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A caixa de Zoé -
- A.C. Gardini
A. C. Gardini
A caixa de
Z O É
A caixa de Zoé -
À minha esposa,Minha Inspiração.
Ao meu filho,Minha Continuação.
Às minhas filhas,Minha Iluminação.
- A.C. Gardini A caixa de Zoé -- A.C. Gardini A caixa de Zoé -
Capítulo 1
O velho encontrava-se sentado em sua poltrona, de
frente para a lareira, fingindo que lia um livro. A noite es-
tava fria e ele se deixou ficar ali, pensando em como a vida
conseguira lhe pregar tantas peças ao mesmo tempo em que
lhe dera uma recompensa que superava qualquer tesouro
no mundo.
Sua neta, filha de sua filha, era o único motivo que
fazia com que ele, de tempos em tempos, voltasse à civili-
zação.
Usava aquele escritório com decoração simples, teto
de vigas de madeira aparente e estantes de mogno cheias de
livros e recordações, que para ele representavam muito mais
que suas viagens. Ali ele colocara toda sua vida. Quantas
vezes se deixara ficar naquela mesma poltrona escrevendo
seu diário, que um dia pertenceria à sua neta!
Tinha uma paixão especial por Zoé.
Ela, uma menina inteligente, esperta, bonita, com
uns olhos que sempre estavam procurando por alguma no-
vidade.
A caixa de Zoé -
Ele, que nunca se cansava de responder às suas per-
guntas e vezes sem conta ficava ali sentado, sempre se di-
vertindo com a curiosidade da pequena.
Naquela noite, a pequenina já havia se retirado e a
lua ia alta no firmamento. O calor do ambiente fez com que
ele adormecesse com o livro sobre suas pernas, e deixou-se
levar por seus sonhos em suas jornadas. Não ouviu o baru-
lho que veio da janela e nem percebeu o vulto que entrava.
Assim como o intruso, a lua agora também estava
oculta.
O vulto aproximou-se da poltrona onde ele dormia
e certificou-se do sono que o levara dali. Desferiu-lhe um
único golpe, tendo a certeza de que o matara. Teve tempo,
então, de revirar todo o aposento, buscando por algo que
parecia não encontrar. Já com raiva, tirou o aparador de
brasas da frente da lareira e, colocando-o de lado, espalhou
as brasas por todo o tapete, fazendo com que as chamas se
propagassem.
A poltrona se iluminou e fez com que o vulto ensan-
güentado adquirisse uma forma sobrenatural. Parecia que
mesmo na morte o velho estava tranqüilo, uma tranqüilida-
de irônica de quem escondeu algo.
O assassino tinha um propósito em mente. Metade
ele conseguiu.
Assim que o algoz abandonou o escritório em cha-
mas, o velho homem abriu os olhos e, sem entender direito
o que se passava, com o sangue escorrendo de sua cabeça,
gritou por socorro. Quando tentou se levantar, uma viga já
em chamas desprendeu-se do teto e caiu sobre suas pernas.
Preso, ele gritou ainda mais alto.
0 - A.C. Gardini
No outro aposento, sua neta acordou em sobressalto
com os gritos e saiu em disparada em direção ao escritório.
Quando abriu a porta e viu o avô gritando em agonia sob
a viga em chamas, sentiu-se impotente. Recuou e desceu
as escadas, correndo em direção à rua. Ficou parada em
meio ao jardim, atônita, sem ter a quem pedir ajuda, e num
estado de torpor viu as chamas consumindo toda a casa.
A única coisa que restou naquela menina foram os gritos
do avô e as chamas que o envolviam. Uma cena que nunca
mais lhe sairia da mente.
Daquele dia em diante sua vida não poderia ser mais
a mesma, estava totalmente transformada.
Seria possível que desde pequena uma sina nefas-
ta a perseguisse como uma nuvem carregada de chuvas e
granizos a cair sobre uma região desértica? Desde pequena
já estava reservada ao sofrimento e às angústias de perdas
trágicas de entes tão próximos e tão amados?
Seu pai morrera logo depois de seu nascimento, víti-
ma de um acidente de carro, e sua mãe, quando ela contava
apenas quatro anos, fora vitimada por uma febre causada
por algum animal peçonhento em uma de suas viagens à
floresta. Desde então, o avô fizera o papel de pai e de mãe,
desempenhando-se como nenhum outro frente a tão árdua
tarefa. Ele sabia que nunca iria substituí-los, e ela agora
sabia, mais do que ninguém, que estava sozinha.
O que uma menininha órfã poderia fazer numa situ-
ação dessas? Como sobreviver sem o carinho de seu querido
avô? Como sobreviver a tão intensa dor? Será que não era
um sonho ruim que estava tendo? Um pesadelo?
- A.C. Gardini
“Amanhã, quando eu acordar, ele estará esperando
por mim como todos os dias. Vai me contar aquelas histó-
rias de aventuras pela floresta encantada e me fará dormir
em seu colo.” — pensou.
Como qualquer outra criança, encolheu-se nos bra-
ços de um dos bombeiros e, pouco a pouco, fechando os
olhos, se deixou vencer pelo cansaço.
A caixa de Zoé -
Capítulo 2
Olhando aquela paisagem, dizia para si mesma que
nunca se cansaria de ver tão magnífico pôr-do-sol, como
nunca pudera observar em seus tempos de interna no Con-
vento das Irmãs Carmelitas Descalças e Reclusas.
O seu pensamento tentava, em vão, voltar no tempo,
aos seus momentos de infância, mas sentia que os tinha
perdido em algum lugar de sua mente. Não conseguia se
lembrar de nada do que pudesse ser sua vida antes de estar
no convento.
O convento era austero, e a visão de sua fachada ex-
terna impunha um respeito que só era superado quando se
adentrava o portão principal.
A recepção era simples, sem grandes soluções ar-
quitetônicas. Uma simplicidade que beirava a rudeza, não
fosse pelas cores que resplandeciam do mármore no piso
todo trabalhado em uma imensa roseta nas cores rosa, ver-
de, preto, branco e amarelo contrastando com as paredes
totalmente lisas e sem nenhum tipo de adorno.
A caixa de Zoé -
Toca-se uma campainha e espera-se que abram a por-
ta. Mas ali não era assim que acontecia. Uma corda pendia
ao lado da porta de entrada e do outro lado um sino ecoava
quando puxado com força. Ouvia-se o som do sino se dis-
sipando no éter e a espera fazia-se maior que a realidade
imposta pelo silêncio quase sepulcral e pelo sentimento de
opressão que se sentia ali, parado, esperando.
Zoé de Melo Rezende não se lembrava de como ti-
nha chegado àquele convento, mas sabia muito bem que
seu futuro não era como o de tantas outras suas colegas.
Quantas vezes olhara de soslaio para o céu, imagi-
nando como seria o espaço infinito que só sua alma poderia
alcançar. Seus braços abertos flanando pelo ar, percorrendo
as montanhas, florestas, rios e mares com uma sensação
de liberdade que a inebriava. Nessas horas, despertava de
seus devaneios e ficava a pensar qual seria o seu lugar neste
mundo, pois que ali não era.
Não conseguia se concentrar nas orações nem nas
ladainhas do anoitecer. Ficava vendo a escuridão chegar
através daquelas janelas altas e estreitas, como se algo a
sufocasse todas as noites.
Durante anos, recebera educação esmerada e de-
monstrava uma inteligência acima do normal para uma
menina de sua idade. Tinha um temperamento questiona-
dor, quase beirando a rebeldia, mas tinha um traço de do-
cilidade, que demonstrava ao aceitar as ordens que recebia
de suas superioras. Estas sentiam que o destino de Zoé não
poderia ser enclausurado naquelas paredes centenárias e
seu espírito nunca seria preso a uma só direção. As Irmãs lá
- A.C. Gardini
estavam ou por vocação ou por determinação de suas pró-
prias vontades. Nunca Zoé, com seu interesse, sua curiosi-
dade por tudo o que acontecia.
Suas professoras, com a devida autorização da Ma-
dre Superiora, liberaram a biblioteca inteira para ela. Devido
ao seu interesse, foi sendo apresentada a diversos autores e
obras das mais variadas. Lia Shakespeare, Bacon, Filosofia,
Arte, Arqueologia, Música e estudava, além do Latim, Ara-
maico e Grego. Também Matemática, História e principal-
mente Geografia, a matéria à qual ela mais se dedicava.
Sentia-se realizada quando estudava Geografia e tei-
mava em dizer às suas professoras que essa era a matéria
mais completa que ela conhecia, depois da Matemática.
Pela Geografia, estudava Química, Física, até mesmo Lín-
guas, para poder entender o que vinha escrito em antigos
alfarrábios.
Por mais esmerada educação recebida no convento,
sempre orientada para ser uma esposa do Cristo, aquela
vontade que ela demonstrava de querer abraçar o mundo,
um mundo que ela só conhecia através dos livros, era maior
que qualquer laço criado para segurá-la entre as Irmãs do
convento. Cada livro que lia era uma janela aberta ao mun-
do para o qual ela ansiava em sair.
As Irmãs cochichavam entre si, sem que nunca ela
tivesse percebido nada:
— Zoé tem o sangue do avô — diziam em surdina.
Finalmente chegou o dia em que ela teria que optar
entre a vida monástica, seus votos eternos junto ao grande
Mestre, ou a continuação de seus estudos em lugares lai-
cos.
A caixa de Zoé -
Durante anos viveu reclusa como uma das Irmãs
Carmelitas, e agora, quando tinha a chance de sair e co-
meçar uma nova vida, o medo do desconhecido a envolvia
e fazia com que ela se sentisse desprotegida. Ano após ano
vivendo entre aquelas paredes, não conseguia se imaginar
em outro lugar. Ali era seu mundo, ali era toda sua vida.
Mas algo maior a impulsionava, algo inexplicável
ocorria dentro de seu ser e a impelia na direção contrária
aos seus sentimentos. Se ali ela se sentia segura, não era lá
que queria estar. O seu desejo de conhecer, de ver, de viver
era muito intenso, e parecia que nada neste mundo faria
com que ficasse no convento.
Ela tinha que descobrir quem era, como fora parar
ali. Não queria simplesmente aceitar seu destino sem con-
testação, aceitar um destino que lhe fora imposto por cir-
cunstâncias estranhas à sua vontade. Principalmente por
estar ali, tinha que sair para descobrir como havia entrado.
Não era sua vocação ser uma Irmã e não era de seu feitio
baixar a cabeça sem uma pergunta sequer. Ela haveria de
descobrir a origem de tudo, a causa de seus sonhos.
Durante os últimos anos, aqueles dos quais ela se
lembrava, teve sempre o mesmo sonho. Um grito, mãos
se agitando em sua direção, como a pedir socorro, e fogo,
muito fogo em volta de tudo. Sempre acordava no meio da
noite, suando, com medo, mas com uma incrível vontade
de descobrir o que significava tudo aquilo. De quem eram
as mãos que via em seu sonho? De quem eram os gritos? O
porquê do fogo.
Esse sonho recorrente sempre a deixava inquieta e
pensativa. Durante o dia não conseguia encetar um pen-
- A.C. Gardini
samento em uma só direção. Ficava dispersa e com mui-
to esforço voltava a se concentrar em suas tarefas. Através
desses momentos desenvolvera uma imensa capacidade de
se abstrair do meio ambiente e aumentar seu poder de con-
centração.
Por isso, mais que tudo, tinha que sair para o mun-
do e, com o tempo, descobrir suas verdadeiras origens para
construir, ela própria, a partir de então, seu futuro.
Aquele ocaso representava para ela o início de uma
jornada que fora iniciada há muito tempo atrás, um cami-
nho que percorrera com garra, com determinação. Agora,
diante de si abria-se o mundo para o qual havia planejado
seu futuro.
A partir de agora poderia dedicar-se também a si
própria, à sua vida, ao seu passado, para poder enterrar de
vez todos os seus medos e angústias.
- A.C. Gardini
Capítulo 3
Em pouco tempo o mundo acadêmico percebeu as
vantagens que recolheria com a escolha feita por Zoé.
Formara-se Suma Cum Laude, a mais alta distinção
que um aluno poderia almejar no final de seus estudos no
curso de Doutoramento de Geografia, e agora era a mais
nova PhD na sua especialidade. Era admirada por todos os
seus colegas, não só por sua inteligência, mas também por
sua postura acadêmica, seu respeito para com os colegas e
o desprendimento com que encarava suas conquistas sem
se deixar enlevar por glórias passageiras. Como ela mesma
dizia:
— Tudo o que eu sei, qualquer um pode saber. Está
tudo nos livros, é só a gente entender o que está escrito,
pois muitos são os caminhos e uma só é a direção.
Zoé era bonita. 1,78 de altura, setenta e um qui-
los, traços finos, pele alva, maçãs do rosto salientes, olhos
verdes, nariz bem talhado, formas normais para uma moça
com seus vinte e oito anos de idade, aparentando um pou-
co mais, talvez devido à forma sisuda com que se vestia e
A caixa de Zoé -
pelo penteado em coque no alto da cabeça prendendo seus
longos cabelos castanhos. Elegante, não abria mão de seu
tailleur ou de seus terninhos, sempre bem talhados, mode-
lando suas formas, escondendo muito mais do que alguém
poderia imaginar.
Sua pele branca contrastava com o verde de seus
olhos e o brilho que surgia deles era algo envolvente e ine-
briante. Podia-se ficar horas olhando aqueles olhos e nem
sentir o tempo passar.
Formara-se com louvor e agora passava a fazer parte
do quadro de doutores da Universidade Federal do Tocan-
tins como Titular da Cadeira de Geografia.
Aquele pôr-do-sol representava para ela o coroamen-
to de toda uma etapa de sua vida.
0 - A.C. Gardini
Capítulo 4
Hélio Cortês era do tipo estudioso. Não aquele estere-
ótipo que temos do “nerd”. Não usava óculos de aro redondo
e nem era franzino. Pelo contrário. Ao mesmo tempo em que
era ótimo estudante — sempre o primeiro colocado —, não
abria mão de sua vida social. Era um rapaz alegre, divertido,
tinha facilidade para fazer amizades. Moreno, porte atlético,
cabelos castanhos e fartos, olhos verdes, sorriso largo e since-
ro, dentes alvos, conquistava a simpatia de todos que estives-
sem à sua volta. Imaginem tudo isso em 1,90 de altura e com
covinhas que se formavam nas bochechas quando sorria.
Seu currículo era muito parecido com o de Zoé, mas
sua criação fora bem diferente.
Filho de pais separados, sempre gostou de estudar
e encontrou na História a complementação de tudo o que
sempre havia buscado nos bancos escolares. Criara um mal-
estar com seu pai, que o queria a seu lado para gerenciar
seus negócios e para uma futura sucessão. Hélio, contra-
riando a expectativa paterna, dedicou-se aos estudos, e seu
pai, conformado, o manteve enquanto necessário.
- A.C. Gardini
Além de Mestre em História, tinha curso de Religiões
Comparadas, Aramaico e Grego Antigo. Por onde quer que
tenha passado não encontrou ninguém a sua altura para um
embate acadêmico. Até se deparar com Zoé, quando perdeu
de vez sua arrogância e prepotência, deixando-se levar pela
simpatia e pelo carisma que a envolviam.
Apaixonou-se por ela sem nunca ter tido coragem de
se declarar. Mas nunca mais se afastou dela. Curtia a sensa-
ção de possuir o saber, mas também a de ter sido colocado
em seu devido lugar por uma mulher, uma moça, uma garo-
ta, que além de tudo, era bonita. Inteligente e bonita.
Para ele, ela era a sua Princesa.
Zoé sempre levava a melhor. Era difícil ser ultrapas-
sada naquilo que ela mais gostava.
Respeitava-a e sentia, quando ao seu lado, uma emo-
ção e uma firme ternura que a situava numa redoma intrans-
ponível para ele, acostumado a ter sempre tudo. Não chegava
a ser mimado, mas para chegar onde estava estudara muito,
sempre sem se preocupar com sua situação financeira.
E quantas vezes batia de frente com Zoé! Quantas e
quantas vezes brigavam para, adiante na discussão, perce-
berem que estavam falando a mesma coisa com diferentes
palavras.
— Os caminhos são muitos, — falava ela — e sempre
se encontram à luz da razão.
Tudo começou quando, certa vez, Hélio apresentou
um trabalho para publicação em uma revista na qual Zoé
trabalhava como revisora assistente. Viria a ser o início de
um relacionamento. Era uma publicação direcionada para o
meio acadêmico em comemoração ao aniversário da Conju-
A caixa de Zoé -
ração Mineira, que estava fazendo, naquela época, duzen-
tos e dez anos.
Zoé contestara uma série de dados apresentados por
Hélio.
— Como é que o Professor vai apresentar um artigo
deste naipe para uma comunidade que vive e respira Histó-
ria insinuando coisas que podem vir a se tornar perniciosas
no estudo sério de nossa história?
— Minha cara Zoé, — respondeu Hélio — você já
ouviu falar em licença poética?
— Pois bem. Poesia e História não se coadunam, e
o senhor deveria deixar claro que se trata de um romance,
e não de fatos históricos, pois do jeito que está parece mais
fantasia escrita por alguém sem a mínima cultura.
Aquilo foi a gota d`água que faltava para que Hélio,
dentro de sua prepotência, pensasse em acabar com aquela
revisorazinha.
— A mocinha está pensando o quê? Com quem pen-
sa que está falando?
— Com um professor metido a sabichão que pensa
que pode escrever qualquer besteira e que acha que os ou-
tros irão acreditar — ela não deixava por menos e não se
assustava com a presença de ninguém. — Se quiser publicar
algo, pesquise antes e publique depois.
A partir daquele ponto Zoé começou a mostrar os
pontos falhos — poucos, é verdade — na pesquisa do pro-
fessor Hélio, o que foi suficiente para que houvesse uma
aproximação entre ambos. Nunca mais essa química seria
desfeita. O café com leite estava no ponto ideal.
Muitas vezes apresentavam trabalhos acadêmicos
para disputar conhecimento, onde ambos se beneficiavam
- A.C. Gardini
e toda a consociação acadêmica acabava por lucrar imensa-
mente com esses verdadeiros combates, que, quando acon-
teciam, chamavam a atenção de toda a comunidade.
Agora estavam juntos na Universidade Federal do
Tocantins. Zoé e Hélio, a Geografia e a História. O café e
o leite.
- A.C. Gardini
Capítulo 5
— Mas hoje não será um dia como outro qualquer
— foi logo dizendo Hélio, enquanto avançava apartamento
adentro, procurando por Zoé.
— Onde você está? Temos um programa verdadeira-
mente cultural — berrava ele, demonstrando uma alegria
fora do normal. — Imagine o que vai acontecer nestas ter-
ras de fim do mundo?
— Como posso saber, se nunca acontece nada? E
nunca vi você tão animado desde que chegamos. Desco-
briram uma nova tribo na região? — desdenhou Zoé, pois
desde que chegaram Hélio só sabia se lamentar e dizer que
aquilo era terra de índios e a única novidade seria descobri-
rem uma nova tribo.
“O que é que eu estou fazendo aqui?” era a sua frase
preferida.
A novidade agora era um leilão que haveria na cida-
de, em um dos melhores hotéis da capital.
— Minha querida colega, vai haver um leilão no ho-
tel Eldorado Plaza. Será beneficente, em prol da construção
- A.C. Gardini
do novo Hospital de Clínicas. As principais entidades de
cunho social estarão lá representadas: Rotary, Lyons, Maço-
naria, Igreja Católica, Presbiterianos, Espíritas, etc., não só
através de seus representantes, mas principalmente de suas
doações de objetos que serão a grande sensação do evento.
— Parece coisa de primeiro mundo. A elite da cidade
vai estar presente e eu não vou poder ir.
— Acontece que você não pode perder uma opor-
tunidade como esta de estar no meio de obras de arte, pe-
ças de decoração, antiguidades, quadros, pequenos objetos,
tudo que um colecionador poderia querer. E também uma
dona-de-casa que quisesse acrescentar algo na decoração de
sua casa. Ou um executivo, para seu escritório.
— Não se trata de querer ou não, mas de poder. Infe-
lizmente não vou poder estar nesse leilão com você — Zoé
mostrava-se completamente contrafeita. — Já agendei pra
esta noite um compromisso com um representante da Natio-
nal Geografic Magazine que dará início a uma imensa reporta-
gem televisiva sobre a Gênese e Evolução Paleoambiental dos
solos do Planalto Central brasileiro e o estudo edafológico
dentro da Geografia física, humana e analítico-regional.
Hélio parecia não estar dando muita atenção, e Zoé
continuou.
— Trata-se de uma oportunidade impar, algo no
qual tenho trabalhado durante tempos. E serei a primeira
a esquematizar de forma científica esses primeiros estudos
edafológicos, ou seja, da influência dos solos nos seres vi-
vos, que foi desviado do âmbito das espécies vegetais para
a espécie humana. Isso despertou o interesse de toda a co-
munidade científica internacional.
A caixa de Zoé -
— O que você pretende com tudo isso? — Hélio
gostava de ver como sua colega se empolgava com certos
assuntos.
— Nós demos um grande passo na conquista de
mais espaço para o homem sobre o planeta de uma forma
racional e sem agressões ao meio ambiente — Zoé parecia
fazer um discurso. — O casamento perfeito está a caminho.
O homem e seu habitat, a exploração do solo sem sua de-
gradação. Aquilo que os índios fazem há centenas de anos
resgatado agora de uma forma científica e geradora de for-
mas mais aprimoradas de preservação ambiental.
Zoé arrematou seu discurso quase sem fôlego, ani-
mada com o assunto e com as idéias que lhe fervilhavam a
cabeça.
Mas devido a esses estudos fizera também alguns de-
safetos, não só na comunidade científica, mas também no
meio dos empresários da exploração da madeira e de alguns
laboratórios multinacionais mais interessados em dissipar
qualquer vestígio de biodiversidade ou de cultura que por-
ventura encontrassem para poder levar para outros lugares
suas descobertas e surgir com suas novas patentes.
Hélio não se conformava e insistia com ela para que
o acompanhasse ao leilão, mas era tudo inútil.
— Desde quando uma reportagem desse porte come-
ça num sábado à noite? — argumentou ele.
— Esse encontro já está marcado a mais de seis me-
ses e não posso ser eu a furar com eles. É uma oportunidade
única de fazer com o que o mundo veja nosso país com uma
imagem diferente daquela que tem hoje em dia — contra
argumentou ela. — Eu gostaria muito de ir, mas minha res-
- A.C. Gardini
ponsabilidade com o projeto e com o objetivo que espero
alcançar com essa reportagem me impede.
O compromisso estava agendado e Zoé, como sem-
pre, aguardava ansiosa pelo momento em que se encontra-
ria com toda a equipe de produção para poder iniciar esse
novo projeto.
Em meio à espera, recebeu um telefonema da equi-
pe, que já deveria estar chegando ao campus.
— Alô? Doutora Zoé?
— É ela mesma. Quem fala?
— Somos da equipe da National Geografic. A senhora
não vai acreditar no que aconteceu. Nosso carro quebrou,
pois não vimos alguns buracos na estrada, e agora não te-
mos como chegar até aí ainda hoje. Optamos por passar a
noite com o equipamento e o carro avariado e aguardar o
dia amanhecer para então irmos atrás de socorro.
A voz no telefone parecia ir se perdendo no espaço,
pois Zoé já não conseguia prestar atenção. Apenas na se-
gunda-feira estariam em sua companhia.
Só faltou Zoé gritar de alegria, mas achou melhor
primeiro desligar o telefone. Despediu-se assegurando que
na segunda-feira os estaria aguardando.
Mais que imediatamente ligou para Hélio.
— Se eu resolver ir, você ainda quer companhia?
— Estou subindo já.
E Hélio, já pronto, correu escada acima subindo de
dois em dois degraus. Chegou à porta com o coração dis-
parado pelo esforço e pela emoção. Apertou a campainha e
vibrou quando ela abriu a porta.
A caixa de Zoé -
— Agora tenho certeza do que foi que me trouxe
para este fim de mundo — Hélio estava extasiado com a
visão de Zoé. — Eu nunca poderia deixá-la aqui, sozinha no
meio desses caipiras.
Um leve rubor percorreu as faces de Zoé, mas sem
demonstrar esse constrangimento ela saiu do apartamento,
pegou na mão de Hélio e seguiram em direção ao elevador.
— Você não tem mesmo jeito. Mas eu gostei muito
do que falou.
— Ah! Como eu queria que esse elevador quebrasse
agora — disse Hélio, como sempre brincando com ela para
vê-la sem jeito.
— Por quê? O que você faria? — e com um risinho
muito insinuante, Zoé completou. — Talvez eu até gostas-
se.
sativo.
E foi a vez de Hélio ficar sem ação. Mas sorriu, pen-
Era esse jeito de menina naquele corpo de mulher
que fazia com que Hélio fosse sempre pego desprevenido.
Ele nunca sabia quando ela iria usar seus artifícios femini-
nos, e isso fazia com que cada vez mais ele fosse se apaixo-
nando por ela.
— Agora me conta a verdade. O que fez você mudar
de idéia? — perguntou Hélio.
— Nada além do amor que sempre senti por você.
E eu não poderia deixá-lo sozinho numa noite de sábado,
numa cidade com tantas garotas ávidas por caras novas
— respondeu Zoé, dando risada. — Tantas “caipirinhas”,um carro quebrado, uma equipe de gente mole que prefere
passar a noite na estrada e deixar seus compromissos para
- A.C. Gardini
segunda... Parece até aquela história de deixar tudo pra se-
gunda-feira, aquele papo de quem vai começar um regime.
— Por quê? — perguntou Hélio, sem entender.
— Deixando o regime pra segunda.
— Você é infame. Parece até que suas piadas têm
graça.
— Se não têm, por que você sempre ri?
— Sou educado.
— Ou tonto.
— Lá vamos nós de novo.
— Hahaha! Já perdeu a paciência.
— Sabe o que é? Hoje eu gostaria de ter uma noite
especial com você, sem discussões, afinal de contas é a pri-
meira vez que acontece alguma coisa nesta cidade. E nós
fomos convidados.
— Fomos? Como? — quis saber Zoé.
— Bom, é uma longa história — começou Hélio a
contar enquanto percorriam as ruas, no automóvel dele, em
direção ao hotel.
Mesmo com seu jeito alegre e descontraído, Hélio
agradeceu interiormente, com uma breve oração, o pronto
atendimento de seu pedido e também as imperfeições das
estradas naquela região, que de alguma forma haviam cola-
borado para que Zoé mudasse de idéia.
0 - A.C. Gardini
Capítulo 6
O hotel havia sido construído quando da constitui-
ção do Estado do Tocantins. Sofisticado e merecedor das
seis estrelas que ostentava na entrada, era visivelmente
contemporâneo em suas linhas arquitetônicas de um típico
hotel-fazenda e possuía um requinte que contrastava com
o cerrado e uma linda estrada de acesso feita de cascalho
cercada de palmeiras imperiais e percorrida em menos de
cinco minutos de automóvel até o pátio de estacionamento.
De lá se avistava a entrada principal, hoje feéricamente ilu-
minada, aguardando os visitantes que pouco a pouco aden-
travam o salão de convenções onde seria realizado o leilão.
Zoé pensou que nunca havia estado em um leilão e
o pouco que conhecia sobre isso era o que ouvira dizer ou
lera em livros.
Quando entrou no salão, apertou os olhos, incomo-
dada pela iluminação do imenso lustre de cristal que pendia
do teto e dava um ar vitoriano àquele ambiente campesino.
Deslocava-se com Hélio em meio aos lotes observando e
admirando tudo ao seu redor. Sentia-se como uma criança
- A.C. Gardini
que nunca esteve num parque de diversões, e agora, leva-
da pelas mãos de seu amigo, caminhava entre os objetos e
mesas onde se encontravam expostos os lotes que seriam
anunciados em breve pelo leiloeiro oficial do evento.
— Que coisas lindas! Nunca esperei ver tantas anti-
guidades e coisas exóticas num lugar como este — admirou-
se Zoé.
Em meio aos lances e lotes, um em especial lhe cha-
mou a atenção. Não o lote inteiro, mas um bloco de madei-
ra de ébano, retangular, com quatro letras em dourado, um
V, um T, um O e um L, que fazia parte do lote 26.
Zoé, que nunca havia participado de um leilão, dei-
xou-se levar por uma sensação de êxtase que a transportou
para um local que não conseguia identificar. Algo a arrebatou
daquela sala e lhe modificou o tempo, ou o espaço, quando
então viu uma linda menina correndo em um jardim cheio
de flores em um belo dia ensolarado. Viu a figura de um
velho com cabelos brancos e tez morena queimada do sol,
figura com a qual muitas vezes sonhava, mas que nunca con-
seguira identificar. O velho estava de braços abertos, como
que a recebê-la, com um largo sorriso.
Sentia-se feliz com aquela visão que de alguma ma-
neira a acalmava.
Hélio, percebendo que algo estava errado com sua
amiga, amparou-a.
Um sobressalto percorreu o corpo de Zoé quando
uma mão encostou-se em seu ombro e a parabenizou pela
magnífica aquisição.
Ela não saberia dizer quanto tempo se passou e o que
acontecera nos últimos minutos. Ou teriam sido horas?
A caixa de Zoé -
Sentiu-se desfalecer.
Hélio a olhava espantado. Pois então Zoé, que dizia
nunca ter estado num leilão, agora arrematava um lote com
uma determinação que ele somente via quando de seus em-
bates culturais.
Ela não conseguia entender direito o que havia acon-
tecido. Em seu desligamento momentâneo havia comprado
todo um lote por um valor simbólico, pois ninguém mais se
interessara em comprar aquelas bugigangas. No meio das
quinquilharias ela podia vislumbrar o retângulo de madeira
de ébano com algumas inscrições douradas.
— O que houve? — quis saber Zoé. — Como foi que
isso veio parar em nossas mãos?
— Você não se lembra? Você comprou e até a feli-
citaram pela participação, pois eu acho que ninguém iria
querer esses pedaços de madeira preta.
— Não são pedaços de madeiras comuns — Zoé ape-
nas conseguiu balbuciar a frase.
Hélio admirou-se, mas se manteve calado. Ampara-
da por ele, Zoé voltou ao carro.
— Eu ainda não consigo entender o que foi que acon-
teceu comigo — disse Zoé sem conseguir articular as pala-
vras com exatidão e parecendo embriagada. — Isso nunca
me aconteceu.
— Não se preocupe, Zoé — seu tom de voz era cari-
nhoso. — Você só precisa descansar um pouco.
— Me senti tomada por uma emoção que não pude
dominar — e ela ia arquejando enquanto tentava descrever
o que havia sentido. — Alguma coisa me sufocou. Era como
uma mão me esmagando!
- A.C. Gardini
— Já estamos quase chegando.
— Aquela caixa mexeu comigo de tal maneira que
não consigo tirá-la da cabeça.
— Não é uma caixa, é apenas um bloco de madeira
preta — disse Hélio, tentando disfarçar seu espanto.
— É uma caixa, tenho certeza — Zoé balbuciou e
fechou os olhos, recostando-se no assento do carro.
Hélio levou Zoé de volta para casa e percorreram
quase todo o restante do trajeto sem dizer uma palavra.
Ele já a conhecia há muito tempo para perceber que havia
algo de estranho do qual ela não queria falar. A hora era de
calar.
Nessa noite ela não conseguiu dormir. Algo martela-
va em sua cabeça e não a deixava partir para o mundo dos
sonhos. Algo brotava de dentro de si como uma planta que
ao nascer rompe a casca da semente e começa a se desenvol-
ver movida por uma força cósmica e sutil. Sua consciência
ainda ia adquirindo a noção do que acontecera naquele sa-
lão, naquela noite.
O que tinha visto em seu sonho? Mas não foi um so-
nho. Ela esteve cercada de pessoas o tempo todo, inclusive
Hélio.
Arrematara o bloco de madeira de ébano e ao mes-
mo tempo viu-se levada a outro lugar, outro tempo. Ela era
outra pessoa.
Agora ela era aquela menininha de sua visão, cor-
rendo ao encontro daquele velho homem tão amistoso e
que tanta segurança lhe inspirava. Ela corria de encontro a
ele e podia ver em suas mãos um retângulo de madeira, o
mesmo que viu no leilão.
A caixa de Zoé -
As mesmas mãos com que sempre sonhava. O fogo.
Tudo começava a surgir em sua mente.
— Vovô! — a palavra surgiu de seus lábios. — VI-
TRIOL!
Lágrimas surgiam em seus olhos agora e uma von-
tade de gritar a sufocava. Sentiu falta de ar e correu abrir
a janela de seu apartamento, deixando que uma lufada de
vento lhe refrescasse a face molhada. Não conseguia enten-
der direito o que estava acontecendo, mas sabia que não
adiantaria lutar contra esses sentimentos que surgiam aos
borbotões de dentro de seu ser.
Quem era aquele homem? Avô? Por que lhe inspirava
tanta confiança, tanto amor? O que era aquela menina que
era ela? Onde estava? Havia um incêndio, o velho gritava
por ela, igual às outras tantas vezes que o vira nos sonhos.
Aquele pedaço de madeira de ébano nas mãos do homem
velho agora se tornava mais visível. E ela vislumbrava uma
chave, um medalhão hexagonal com o desenho de uma es-
trela de cinco pontas igual ao que ela usava desde que saíra
do convento, presente da Madre Superiora sob a recomen-
dação de nunca o perder, pois pertencera à sua mãe.
Instintivamente Zoé levou a mão ao peito e apertou
com força o medalhão hexagonal que carregava, sua única
lembrança de uma família que não mais existia.
O que havia acontecido naquele salão? O que era
aquele pedaço de madeira de ébano? Tentando encontrar
respostas, Zoé adormeceu ali mesmo, na sala, embalada pela
leve brisa que entrava pela janela trazendo o calor do cerra-
do. Em suas mãos, o pedaço de madeira de ébano com inscri-
ções douradas e o eco de suas palavras: Vovô! VITRIOL!
A caixa de Zoé -
Capítulo 7
O sol entrava pela janela da sala e foi encontrar Zoé,
já desperta, em seus afazeres diários de uma maneira mecâ-
nica, preparando-se para mais um dia de horas interminá-
veis, como sempre eram os domingos naquela região.
Nunca havia prestado atenção em como sua vida era
formada por hábitos, maneiras sempre iguais pelas quais
acertava sua agenda, suas aulas, sua vida.
Mas alguma coisa acontecera. Naquela manhã de do-
mingo sentia-se diferente. Ela estava mudada, alguma coisa
a transformou, não era mais a mesma Zoé da noite anterior.
Precisava encontrar Hélio o quanto antes, pois ele era o
único que presenciara a cena da noite passada e percebera
que algo havia acontecido. Ela lhe devia uma explicação e
ao mesmo tempo sentia que iria precisar de sua ajuda.
Desceu os dois andares pelas escadas, bateu à porta
do amigo e esperou longos e intermináveis minutos. Tudo
nela tremia, havia quase que um torpor mental e uma ânsia
muito grande por algo que não conseguia decifrar.
A caixa de Zoé -
Hélio, ainda de pijama e com a cara amarrotada do
sono da noite, a princípio assustou-se com a presença de Zoé
àquela hora da manhã, mas percebeu que o assunto era sério,
pois nunca a tinha visto com o semblante tão angustiado.
— Precisamos conversar, Hélio — Zoé Foi falando
enquanto entrava no apartamento do amigo.
Ele, mais do que depressa, deu passagem para que ela
entrasse em sua sala ainda desarrumada, como deve ser a sala
de um professor solteirão de uma Universidade no meio do
cerrado. Rapidamente jogou no chão os livros que estavam
no sofá, abrindo espaço para que ela tivesse onde sentar. Es-
pantou-se com a desenvoltura que ela aparentava e chegou a
achar que existia até mesmo certa excitação por parte dela.
Em menos de dez minutos ele já estava de banho
tomado, barba feita, aprumado e bem acordado, com os
dois ouvidos aguçados para ouvir a história que Zoé queria
começar a lhe contar.
— Zoé, desculpe, mas você devia estar em outro pla-
neta para dar um lance em um lote que não valia nada
— falou Hélio. — E ainda mais por se agarrar a um pedaço
de madeira enegrecido, talvez pelo tempo, como se aquilo
valesse sua própria vida.
— É sobre isso que eu queria conversar com você.
— Eu achei muito estranho, ainda mais partindo de
você, que sempre foi tão lúcida, racional... e agora dando
uma dessa! Achei que a temperatura do Tocantins começa-
va a fazer mais uma vítima.
Enquanto falava, ia preparando um café que deixava
o ambiente com cara da casa de mamãe.
— Meu Deus, Hélio! Só você sabe fazer um café des-
se jeito. Eu não entendo como você consegue fazer com que
- A.C. Gardini
ele tenha esse aroma — disse Zoé e fez uma pausa antes de
finalizar. — Mas eu não vim pra isso.
Serviram-se de uma xícara de café quentinho e ela
começou sua narrativa após sorver um grande gole, sabore-
ando lentamente enquanto organizava seus pensamentos.
— Ontem, quando você me deixou na porta de meu
apartamento, não consegui dormir de imediato. Eu estava
muito assustada com tudo o que aconteceu no leilão — foi
dizendo ela. — Acabei adormecendo no sofá e acordei so-
bressaltada no meio da noite.
— Pois eu dormi feito uma pedra — atalhou Hélio.
— Acontece que eu acordei no meio da noite — con-
tinuou Zoé. — Estava me sentindo dominada por uma for-
ça misteriosa e apanhei o que nós pensávamos tratar-se de
um bloco de madeira, limpei seus lados e percebi que não
eram apenas quatro letras douradas. Havia uns entalhes
para mais algumas e dava para perceber o contorno das le-
tras que faltam, um I, um R e outro I formando a palavra
VITRIOL.
Zoé interrompeu sua narrativa com o peito arfando
de emoção, parecendo estar revelando um grande segredo,
não para seu amigo, mas para si própria. Aproveitou para
tomar mais um gole de café enquanto se recompunha.
— Aconteceu então — continuou ela — que eu pe-
guei o medalhão, aquele que você sempre me pergunta de
onde veio, que as Irmãs me deram quando saí do convento
e disseram pertencer à minha família, e, sem saber por quê,
o encaixei na depressão que existe aqui em cima, na tampa
do bloco de madeira, no centro dessa estrela de seis pontas.
Pressionando nas laterais abri o bloco como a uma caixa,
A caixa de Zoé -
como tinha visto a menina dos meus sonhos, fazer — e
Zoé, emocionada e com os olhos marejados, interrompeu
sua narrativa por um instante. Mas continuou. — Uma vez
aberto o bloco de ébano, percebi que desde sempre soubera
do que se tratava e retirei de dentro dele folhas amareladas
pelo tempo, amarradas com tiras de panos. Formavam uma
massa compacta e estavam cobertas por um pergaminho.
Hélio serviu-se de outra xícara de café sem desgru-
dar os olhos de Zoé, que continuou.
— Em um breve instante vi-me menina ainda, senta-
da no colo do meu avô, no escritório que ele usava quando
vinha à cidade, brincando com a caixa de madeira que ele
me ensinava a abrir com o medalhão. Meu avô sempre dizia
que se alguma coisa acontecesse em nossas vidas, se por um
acaso nós nos separássemos, eu deveria pegar aquela caixa
de madeira e abri-la. Lá dentro estaria meu passado e meu
futuro. Do medalhão eu nunca deveria me separar, aconte-
cesse o que fosse.
Zoé estava falando sem parar, por isso parou para
respirar um pouco. Mas novamente continuou.
— Mas ele não contava com o incêndio que termi-
nou por levar-me ao convento, ao mesmo tempo esquecida
de meu passado pelo grande trauma que foi a perda dele no
incêndio. Agora tudo começa a voltar à minha memória.
O diário de seu avô.
— O que é isso, afinal? — perguntou Hélio. — O que
são essas folhas?
— São o diário de meu avô!
— Como assim? Você nunca comentou nada de sua
família. Ainda mais de um avô! — Hélio se mostrava cada
vez mais intrigado.
- A.C. Gardini
— Quando eu era pequena, morava com meu avô. Foi
ele que me criou — as lembranças eram vivas em sua memó-
ria. — Eu fui criada num orfanato e quando cresci saí para po-
der continuar meus estudos e minha busca pelo meu passado.
Eu morava com meu avô, pois meus pais haviam morrido e eu
só tinha ele — disse Zoé, se atrapalhando nos pensamentos e
falando de uma forma incoerente, não conseguindo concate-
nar suas idéias e nem se comunicar com clareza.
— Acho melhor você tomar fôlego e começar do
princípio — interrompeu Hélio e colocou mais uma xícara
de café nas mãos de Zoé. — É melhor se acalmar, senão não
vou entender nada.
— Muito bem — recomeçou Zoé, com calma. —Meus pais morreram quando eu ainda era muito peque-
na. Meu avô, que me criou, sempre me contava que meu
pai morreu logo após meu nascimento, e minha mãe, que
era exploradora, morreu durante uma de suas viagens, aco-
metida por uma febre. Eu nem tinha cinco anos. A partir
daí sempre estava junto de meu avô, e me lembro bem de
quando entrava no escritório que ele tinha em casa, sentava
em seu colo para ouvir histórias de aventuras e brincava
com esta caixa. Ele me deixava usar este medalhão e com
ele eu abria a caixa. Para mim, era uma verdadeira mágica
a maneira pela qual o medalhão abria a caixa. Quando saí
do convento, as Irmãs me deram o medalhão falando que
pertencera à minha família, mas na hora não me lembrei
de nada, assim como nunca me lembrei de nada durante
os anos que passei lá. A única coisa que surgia em minha
cabeça era o sonho que tinha.
E Zoé começou a contar a Hélio todas aquelas lem-
branças da noite anterior.
0 - A.C. Gardini
Capítulo 8
Aquele diário não contava sua vida nem seus roman-
ces, mas suas aventuras. Ou melhor, a única aventura pela
qual valeria a pena ter vivido.
Seu avô pertencera ao exército e durante muito tem-
po serviu junto às fronteiras amazônicas, tornando-se um
verdadeiro apaixonado pela floresta tropical.
Antes dos vinte anos, em pleno vigor de sua juventu-
de, foi servir com aquele que seria sua grande inspiração. Ele
o chamava de “Meu General” e por ele nutriu uma admira-
ção e desenvolveu um carinho tão grande, que prometeu a
si mesmo continuar sua obra se algum dia o velho General
não tivesse mais forças. Mas não foi a falta de forças que
afastou o velho. A força política que o envolvia, o poder de
seu nome e o respeito que ele inspirava aos outros serviram
de desculpas para sua prisão, em 1930, e para sua passagem
para a aposentadoria.
Depois disso, o avô de Zoé ainda continuou servin-
do seu antigo chefe, não mais na condição de militar, mas
na condição de amigo de confiança, até o conflito de Le-
- A.C. Gardini
tícia, entre o Peru e Colômbia, em 1938, quando o velho
General foi chamado de seu retiro, pois era o único capaz
de solucionar o conflito. Ele conseguiu restabelecer a paz na
região, mas retornou quase cego para então nunca mais ser-
vir ao seu país da maneira que sabia, desbravando sertões.
Carregava consigo o mesmo lema de seu amigo: “Morrer, se
preciso for. Matar, nunca.”Quando finalmente seu avô se afastou do convívio
do General, carregava consigo um dos mais preciosos se-
gredos que jamais fora revelado pelo General ou por ele a
quem quer que fosse.
Os dois tinham se tornado inseparáveis, não só na
vida, mas na morte, ao carregarem consigo revelações que
poderiam mudar a história, a nossa e a do mundo conhe-
cido. Os historiadores teriam que reescrevê-la com outras
tintas e outros significados.
Quando partiu da casa do General pela última vez,
seu avô sabia que não o veria mais, e continuou a percorrer
a selva como o explorador de sempre, secretamente alimen-
tando um sonho.
Lera muitas histórias a respeito dos povos que haviam
habitado as Américas, principalmente a América Espanhola.
Ouvira muitas lendas a respeito dos povos amazônicos, re-
gião tão grande e inexplorada que se poderia viver sete vidas
e ainda assim seria pouco para percorrer todos os seus rios e
igarapés. Conhecia todas as lendas, mitos, canções de cada
tribo com que haviam tido contato e levava consigo sempre
um bloco de madeira com inscrições douradas.
Sua única alegria na vida parecia ser a neta, aquela
menina adorável, bela, alegre e cheia de vida que parecia ter
saído do ventre de um anjo.
A caixa de Zoé -
Sua filha, a mãe de Zoé, morrera vítima do vene-
no de um animal em uma das muitas expedições das quais
participara. Tivera apenas aquela filha, e sua filha lhe dera
apenas aquela neta. A ela seu avô contava histórias. Dentre
tantas histórias, a que mais gostava de contar era a do Im-
perador Montezuma. A que mais ela gostava de ouvir era a
do Imperador Montezuma.
Hélio ouvia tudo com atenção e não se conteve.
— Um momento. Essa história está indo longe de-
mais! O que é que seu avô tem com os Astecas?
— Eu sei tanto quanto você. Se você não me atra-
palhar com essas interrupções nós saberemos o que ele nos
deixou — irritou-se Zoé.
— Ei! Espere um pouco, Professora. Foi a minha pri-
meira interrupção.
— Desculpe. Desculpe — e Zoé ficou corada. — Não
sei o que deu em mim pra responder desse jeito.
— Tudo bem. Mas eu queria saber o que seu avô tem
com os Astecas. De qualquer forma, quem pode lhe falar
um pouco a respeito sou eu, afinal, quem é o historiador
aqui? — disse Hélio, sorrindo com seu sorriso de quem está
fazendo as pazes que nunca foram quebradas.
E agora foi a vez de Hélio falar. A Zoé ele contou a
seguinte história.
Quando os espanhóis chegaram na América, vieram
atraídos por lendas que diziam que por aqui corriam rios de
ouro, as casa eram feitas e cobertas com telhas de ouro puro
e os nativos se vestiam com roupas tecidas de ouro.
- A.C. Gardini
Montezuma recebeu os espanhóis como deuses que
estavam sendo enviados de acordo com antigas profecias de
seu povo, cujo salvador viria do leste, pelo oceano, e seria
um deus, um homem branco, de barba, olhos azuis, bem ao
tipo dos espanhóis.
Chegavam, pois, em terra, as personificações de seus
salvadores esperados e cantados pelos anciãos através dos
séculos.
Montezuma colocou-se à disposição, assim como
todo seu império, submetendo-se ao jugo espanhol sem um
mínimo de desconfiança dos verdadeiros interesses desses
que seriam seus algozes. A ingenuidade marcava esse povo
pacífico que apesar de conhecer a roda, só a utilizava para
brinquedos de crianças. Suas ciências astronômicas, físicas
e matemáticas eram de um adiantado conhecimento, que
poderia rivalizar com os homens mais sábios do Oriente,
famosos por seus avanços científicos.
Mas em nome de El Rei, um rei desconhecido, esse
povo foi sendo sistematicamente eliminado. Quando Mon-
tezuma percebeu que estava sendo enganado por aqueles
que recebera como deuses, arregimentou uma parte de seu
povo, fiel ainda aos princípios que norteavam aquela socie-
dade, e transferiu todo o restante de seu tesouro, incluindo
escritos científicos e históricos.
Toda a fortuna do reino estaria em lugar seguro e,
o mais importante, toda sua cultura e seu conhecimento
estariam preservados daqueles conquistadores para os quais
apenas interessava o ouro amarelo.
Montezuma, mais tarde ferido por um súdito seu,
deixou-se morrer numa prisão sem nunca ter revelado o
A caixa de Zoé -
verdadeiro paradeiro de seu imenso tesouro. Parte desse co-
nhecimento, uma pequena parte, foi capturada e enviada
para a Europa como uma demonstração da arte pitoresca
dos índios selvagens que aqui habitavam. São conhecidos
como Códex. Esse tesouro escondido de Montezuma deu
origem à lenda do El Dorado, lugar sagrado cheio de ouro,
buscado com avidez por Orellana e que nunca foi encontra-
do, passando a fazer parte das lendas amazônicas.
Várias expedições foram feitas na época e o histe-
rismo em torno dessas lendas chegou a tal ponto que um
explorador disse ter visto, numa de suas andanças pelo rio,
uma tribo de mulheres guerreiras. Tanto alarde se fez, que
o rio passou a se chamar o Rio das Amazonas, provocando
a ira de um outro rei, que já estava de olho na exploração
da abundante madeira vermelha destas terras, fazendo com
que oficializasse a posse de tão longínquas paragens e en-
viasse para cá seu cavaleiro Cabral.
Aquele povo outrora ocupara lugar de destaque nes-
te continente, do México até a Colômbia, com a construção
de estradas que poderiam rivalizar em extensão e beleza
com as do Império Romano. Também construíram um im-
pério, que foi destruído por conquistadores que não soube-
ram ver a verdadeira riqueza daquele povo tão tranqüilo no
seu viver e tão poderoso em sua essência, povo que agora se
encontrava disperso e perdido para sempre nos meandros
dos rios que serpenteiam pela Amazônia.
Homens mataram e morreram em busca do El Dora-
do, assim como tantos outros morreram em busca da fonte
da juventude.
- A.C. Gardini
Ouvindo extasiada essa história contada por Hélio,
um brilho diferente surgiu nos olhos de Zoé. Era como se
ela estivesse no colo do avô e ele lhe contando suas aventu-
ras e peripécias.
Quando menina, enquanto seu avô lhe contava essas
histórias, ela, com seus olhos verdes faiscando de curiosi-
dade, vibrava a cada ponto e a cada vírgula e sofria com as
respirações que o avô dava para poder concluir um parágra-
fo, criando aquele clima de suspense que envolve qualquer
criança no ouvir de histórias fantásticas.
Que idade de ouro, quando as palavras criam vida em
uma mente vazia de pré-conceitos ou de pré-juízos! Aquela
cabecinha ouvia as histórias e criava seus personagens com
as cores que a infância permite. E a caixa do avô, quantas
vezes brincava com ela abrindo-a com a chave “mágica” que
agora carregava consigo!
Quanta coisa Zoé havia deixado de lado em sua me-
mória por causa daquele incêndio!
— Eu acho que vou aceitar mais de seu café — disse
ela a Hélio. Sua cabeça girava enquanto desfiava, aos bor-
botões, suas lembranças ao único amigo que possuía naque-
la hora.
Ele, empolgado, parecia que iria ficar o dia inteiro
discursando, mas Zoé deixou-se ficar por mais um instante
pensativa no sofá..
Hélio agora a escutava e escutava. Anos de terapia
não teriam surtido o efeito que tiveram aquele bloco de
madeira enegrecida e aquele amigo a escutá-la. Ela nunca
poderia supor que um dia tudo aquilo viraria cinzas. Sua
casa, suas histórias, seus sonhos, seu próprio avô, preso em
A caixa de Zoé -
seu escritório com a queda de uma das vigas que sustenta-
vam o teto.
O incêndio começara perto da lareira do escritório.
Nunca haviam conseguido determinar a real causa, mas es-
peculava-se que uma fagulha podia ter caído sobre o tape-
te e iniciado o incêndio que acabou por consumir toda a
casa. Todos que conheciam seu avô não aceitavam a versão
oficial do ocorrido e comentavam que o velho tinha sido
assassinado para revelar segredos de um grande tesouro que
ele escondia.
A única coisa que ficou de pé foi a lareira com sua
chaminé, como a provocar o destino de uma forma arrogan-
te e a dizer “Continuo de pé, apesar de tudo”. Um monu-
mento à vida de uma criança que continuava seu caminho.
Dentro dessa lareira, acima daquela inclinação na parede
traseira, escondia-se uma caixa de madeira de acácia com a
inscrição V.I.T.R.I.O.L. em dourado, agora totalmente ene-
grecida pelo fogo e tão conhecida da pequenina Zoé.
O choque com a perda do avô, o incêndio, a agonia
do avô, o medo a que foi submetida, a solidão a que se viu
projetada, tudo aquilo ficara escondido em seu subcons-
ciente, como que para protegê-la de um mal que só poderia
ser curado por ela mesma.
Quando foi levada ao convento das Irmãs Carme-
litas, estava em tal estado de letargia que as Irmãs combi-
naram nunca tocar no assunto, mas iriam lhe entregar o
medalhão se algum dia ela quisesse deixar o convento para
uma vida profana.
Alguém, um dia, localizou a caixa dentro da chami-
né, mas tal era o estado de sujeira e fuligem que o processo
- A.C. Gardini
de limpeza acabou por arrancar-lhe a crosta dourada que
cobria as letras que restavam. Tudo o que sobrou foi um
bloco de madeira ebanizado e sem valor.
Seu avô sempre lhe contava que aquela caixa, aque-
le bloco de madeira, havia sido esculpido de um bloco de
acácia e que um engenhoso sistema de travas feitas por
movimentos na própria madeira, deslizando umas sobre as
outras, não permitiria sua abertura, a não ser utilizando-se
inicialmente uma chave, a chave mágica que lhe pertencia
desde sempre. Era igual às antigas caixas chinesas que en-
cerram dentro de si jóias ou outras coisas de valor.
Zoé nunca se esqueceu o que seu avô dizia a respeito
da acácia.
— Suas flores cegam, suas sementes matam e suas
raízes curam. A semente é o veneno, a raiz, o antídoto.
- A.C. Gardini
Capítulo 9
Hélio foi se deixando fascinar pela narrativa da colega
e começou a perceber que poderia haver algo mais do que ela
imaginava em relação àquele bloco. Segurou-o em suas mãos
e pôde sentir uma estranha vibração percorrendo todo seu
corpo. Sempre fora espiritualista e como bom estudante das
forças que regem os destinos humanos, nada deixando es-
capar de sua mente alerta e vívida, percebeu que havia algo
mais do que simplesmente madeira e metal em suas mãos.
Agora não conseguia articular uma palavra. Virava
a caixa em suas mãos tentando adivinhar o que sentia. Até
que uma idéia lhe ocorreu.
— Espere um pouco, Zoé.
Hélio correu até o quarto e voltou com uma fita
métrica nas mãos e já dizendo:
— Se for o que estou pensando, seu avô era um bo-
cado inteligente.
— Muito obrigada pelo elogio — retrucou Zoé. — É
um mal de família. Mas me diga no que você está pensando.
0 - A.C. Gardini
Hélio media e media o retângulo e anotava tudo
num papel, até que liberou uma bela gargalhada.
— Eu sempre quis gritar “Eureka”. Hoje me sinto
realizado com esse seu avô gênio.
— O que foi? — entusiasmou-se Zoé. — Se é sobre
meu avô, tenho que saber.
— O que você está vendo não é uma caixa retangu-
lar.
— Se isso não é um retângulo, então o que aprendi
minha vida toda é pura filosofia.
— Preste atenção, Zoé — continuou falando Hélio
sem se deixar interromper. — Aquilo que nossos olhos vêem
muitas vezes não é a realidade. O que para você parece ser
um retângulo, na verdade é uma realidade matemática da
qual sempre fugimos. Isto é um quadrado oblongo.
Ele nem conseguiu terminar a frase e Zoé já estava se
levantando para ir embora.
— Você falou que eu era vítima do calor do Tocan-
tins. Acho que é verdade. O calor derreteu seu cérebro de
vez.
— Estou falando sério, Zoé — continuou Hélio com
voz séria.
A seriedade foi tanta que Zoé tornou a se sentar.
— Como eu ia dizendo, isto é um quadrado oblongo,
ou um retângulo de secção dourada.
— Dourados são os metais que o recobrem.
— Em algumas seitas secretas, que hoje em dia não
são mais tão secretas assim, aprendemos que quando um
retângulo é feito de forma que a parte menor esteja em
relação à maior assim como a maior em relação ao todo, ou
A caixa de Zoé -
seja, a divisão de uma reta em média e extrema razão, te-
mos um quadrado oblongo. Entendeu? — perguntou Hélio
para Zoé, que estava com a boca aberta.
— Eu tenho a impressão que você não dormiu direi-
to esta noite. Acho melhor voltar mais tarde, quando você
acordar direito.
— Tô falando sério, Zoé — disse Hélio, dirigindo-se
à estante, onde pegou o terceiro livro da quarta prateleira.
Como sempre fazia, assoprou a lombada superior do
livro como a tirar um pó que não existia e começou a fazer
contas sob o olhar curioso de Zoé, que cada vez entendia
menos.
— Seu avô pertencia a alguma associação secreta,
tenho quase certeza disso — continuou ele.
Ela nunca ouvira ou vira nada que poderia lembrá-la
de tal coisa.
— Não sei te dizer, Hélio — ela foi dizendo com
toda a sinceridade. — Que eu me lembre, nunca vi nada
sobre isso. Mas também, se vi, não saberia dizer.
— Pois pode acreditar que era sim. E fazia parte do
alto escalão — afirmou Hélio.
— Como você pode saber essas coisas se nem eu me
lembro direito? — questionou Zoé
— Eu não preciso conhecer seu avô pra saber um
pouco da vida dele e das pistas que ele deixou nas coisas
que ele gostava.
— Como assim?
— As letras na lateral da caixa têm um significado
esotérico, e o seu medalhão hexagonal com essa gravação
da estrela de cinco pontas encaixado no centro da estrela
0 - A.C. Gardini
de seis pontas gravado na tampa também tem outro signi-
ficado.
— Você está me confundindo cada vez mais. Como
poderia meu avô ter deixado tudo isso sem nunca ter falado
nada?
— Ele não precisava falar. Os símbolos falam por ele
— disse Hélio, fazendo marcações num papel para que ela
o acompanhasse no raciocínio. — Veja. Com o medalhão
colocado no centro da estrela de seis pontas, o que vemos
é a estrela de cinco pontas inserida na de seis. Consegue
acompanhar?
— Até agora não vejo nada de mais — retrucou
Zoé.
— Sim. Mas o que você não sabe é que a soma de
seis mais cinco é onze. A largura do cordão do mestre é de
onze centímetros. Onze é dez mais um, isto é, as dez Sephi-
roth e En-Soph. Isso tudo faz parte do início da Árvore da
Vida na Cabala judaica. Qualquer hora te explico.
— Tem lógica, mas não sei aonde isso pode nos levar.
— Além disso, — continuou Hélio, entusiasmado
com sua descoberta — os seis triângulos do hexagrama, ou
estrela de seis pontas, têm dezoito lados. Os cinco triângu-
los do pentagrama, ou estrela de cinco pontas, têm quinze
lados. Se somarmos dezoito com quinze teremos o número
trinta e três. E agora?
— Estou quase entendendo — falou Zoé, fingindo
estar perplexa com tudo aquilo.
— Os trinta e três graus da maçonaria escocesa! —continuou Hélio, inflamando-se em seu discurso como se
estivesse diante de uma platéia. — Podem ser divididos em
A caixa de Zoé -
três séries de onze, o número de ouro. Logo, seu avô era
maçom do mais alto nível, grau trinta e três. Um Soberano
Grande Inspetor Geral — disse Hélio, empolgado com o
próprio raciocínio. — Além disso, a loja maçônica, assim
como a maioria dos documentos e diplomas maçônicos,
tem o formato de um quadrado oblongo — concluiu quase
gritando de empolgação pelo seu raciocínio esotérico, afinal
de contas estudara tanto e agora tinha a oportunidade de
colocar em prática tudo o que sempre vira nos livros.
— Eu ainda não consigo assimilar tanta coisa em tão
pouco tempo — disse Zoé.
Ela estava zonza. Além de todas as recordações, mais
essas revelações todas. Ela ainda tinha muitas dúvidas.
— Mas... Aquelas letras... VITRIOL. O que signifi-
cam? Você falou que talvez tenham um sentido esotérico?
— perguntou ela, confusa.
Hélio continuava com seu livro nas mãos e o folhea-
va com a certeza daquilo que procurava. Até que parou em
determinada página.
— Tem, sim. Veja aqui — respondeu ele enquanto
rabiscava numa folha de papel. — V.I.T.R.I.O.L. significa
“Visita Interiora Terrae Rectificandoque Invenies Occul-
tum Lapidem”. É Latim.
— Mas o que significa? — perguntou Zoé com es-
panto, pois nunca soubera que aquelas letras pudessem ter
algum significado. — “Visita o Interior da...”— “...da Terra e, Retificando-te, Encontrarás a Pedra
Oculta” — completou Hélio. — Trata-se de um convite à
procura do EGO profundo, que nada mais é do que a própria
alma humana no silêncio e na meditação — arrematou.
- A.C. Gardini
— Mas por que será que meu avô guardaria seu di-
ário e um mapa? Simplesmente para meditarmos? — per-
guntou Zoé, ainda mais confusa e atônita com tantas re-
velações. — Hélio, preste atenção. Estão faltando alguns
pergaminhos. Eu acho que os últimos.
Zoé havia percebido que todas as páginas eram nu-
meradas. Olhou todas as páginas e concluiu:
— Faltam exatamente cinco páginas. O que será que
aconteceu com elas?
Imediatamente abriu a caixa à procura de alguma fo-
lha que tenha ficado perdida lá dentro, mas não encontrou
nada.
— Eu tenho a impressão de que é um pouco mais do
que ler um diário. Um mestre como ele deve ter mais a nos
dizer que simplesmente nos mandar meditar — ponderou
Hélio.
Ficaram grande parte da manhã consultando livros
que Hélio tinha em suas estantes, livros que ele sempre le-
vava consigo. Pesquisavam tudo o que fosse relacionado à
Maçonaria, Rosa Cruz, e outras seitas, algumas já extintas,
outras apenas secretas em suas origens, mas se revelando
depois seitas de caráter sectário.
O que mais chamava a atenção de Zoé era a quanti-
dade de símbolos, muitos dos quais ela já havia visto sem
nunca pensar em prestar atenção. Percebia agora o quan-
to esses símbolos faziam parte do seu dia-a-dia e quanto
aprendera com seu avô sem se dar conta disso.
O sol já passava do zênite e começava seu caminho
para o ocaso no céu daquele domingo.
Hélio mais uma vez mostrou do que era capaz para
poder fazer com que ela se sentisse mais à vontade.
A caixa de Zoé -
— Enquanto você tenta decifrar mais alguma coisa
— foi falando — vou preparar uma bela pasta para nós, se-
não morreremos de fome neste fim de mundo.
Em pouco tempo estava pronto um belo prato de
pasta ao molho de vinho tinto com manjericão, uma das
especialidades de Hélio.
Em questão de minutos preparou aquela base com
tomate picadinho em pequenos cubos, sem sementes e sem
a polpa branca, para evitar má digestão, como ele sempre di-
zia, puxado no alho bem amassado, cebola bem picadinha,
tudo isso com azeite de prima esprimitura, deliciosamente
extra virgem e um copo de vinho tinto italiano. Depois de
apurado, misturava o macarrão de grano duro escorrido e
al dente com aquele molho e servia o que ele chamava de
“Pasta en su própria tinta”, numa alusão ao prato de lula,
no qual também era um expert.
Uma garrafa de vinho tinto acompanhava o almoço,
e entre um copo e outro a conversa foi girando em torno
dos acontecimentos que tanto revelaram a Zoé.
— Eu não poderia imaginar a quantidade de coisas
que meu avô me ensinava quando brincávamos em seu es-
critório. Nos dias de inverno, quando ele me deixava ficar
em frente à lareira, me contava histórias e sempre aprovei-
tava a luz das chamas para brincar com as sombras, fazendo
os mais diversos animais se projetarem na parede e no teto.
Eu morria de medo e sempre ia dormir na cama dele, toda
enrolada nas cobertas, com medo que algum bicho viesse
me pegar. E agora...
Não tinha nada mais bonito que o pôr-do-sol na-
quele cerrado e parecia que hoje era um dia especial. O sol
- A.C. Gardini
brilhava no seu ocaso sem ofuscar os olhos, sem queimar a
pele, e Zoé sentia cada onda de luz entrando em seu ser a
aquecê-la internamente.
Tinha ficado com Hélio até o final da tarde e agora,
sozinha, novamente em seu apartamento, pensava em tudo
o que acontecera desde aquele instante do leilão. Seu avô
sempre lhe dizia que dentro da caixa estaria seu passado e
seu futuro. Agora ela começava a entender o significado da-
quelas palavras. Será que ele lhe deixara o segredo de algum
tesouro oculto? O tesouro de Montezuma? O segredo de
sua origem, de sua mãe, de seu pai e também de seu futuro?
Tudo isso em suas próprias mãos?
Nunca acreditara em coincidências ou acaso. Por
que seu avô não usufruíra tudo isso se ele tinha todo esse
tesouro à sua disposição? Por que durante anos percorrera
a selva como um simples explorador? O que seu avô queria
dizer com tudo aquilo? Isso era bem típico dele.
- A.C. Gardini
Capítulo 10
A segunda-feira despertou com um céu azul, aquele
de brigadeiro, um sol maravilhoso e uma vibração no ar tão
boa que era difícil acreditar que estivessem em tão longín-
quas terras.
De sobressalto, Zoé levantou-se e sem se dar tempo
de uma merecida espreguiçada tomou uma ducha, vestiu-se
e pegou suas coisas já preparadas no dia anterior. Estava
pronta para a reunião com o pessoal da TV. Engoliu um
copo de leite semidesnatado acompanhado de uma papaia,
devorada com uma colher e com tanta pressa que nem sen-
tiu aquele gostinho deliciosamente gelado característico da
fruta.
Durante muito tempo acalentara o sonho de um dia
poder aparecer em um programa de alcance mundial para
falar a respeito do nosso solo, da nossa Amazônia, dos pro-
blemas que estávamos enfrentando em relação ao desma-
tamento sem controle, o tráfico de madeira, muito mais
rentável que o de drogas e que estava sendo legalizado pelo
governo.
- A.C. Gardini
Eram tempos difíceis. O discurso oficial era dirigido
para encobrir as verdadeiras máfias que se formavam para
dilapidar o nosso maior patrimônio e aqueles que tinham
alguma esperança de um dia possuir um título de terra e
que eram despojados de qualquer esperança, tendo que re-
tornar ao seu status de sem-terra, ou mais propriamente
dizendo, sem-esperança.
As denúncias sempre se voltavam para causar mais
confusão no público e deixar uma impressão de que have-
ria um grande salvador da pátria na forma de governo. O
desmatamento da Amazônia legal e o desbravamento da
Amazônia. Uma coisa era uma coisa, outra coisa era outra
coisa.
A Amazônia estava sendo dilapidada como se fosse
um prato de sopa quente que se come pelas beiradas, mas
mesmo assim ainda era imenso e selvagem. Mais de cinqüen-
ta bilhões de metros cúbicos em reserva madeireira, sendo
apenas quinze bilhões em madeira comercializáveis com um
potencial de lucro acima de alguns trilhões de dólares, muito
ao gosto de tantos políticos corruptos, de tantas ONG’s or-
ganizadas para mascarar suas verdadeiras intenções.
Mas agora, com a cabeça cheia de recordações e lem-
branças, Zoé tinha que se concentrar de forma redobrada
para conseguir por em prática aquela que sempre fora sua
grande idéia.
O pessoal da National Geografic estava à espera dela
no prédio da Geografia quando ela adentrou, esbaforida, a
sala de reuniões. Em questão de minutos já havia se esque-
cido, pelo menos momentaneamente, dos acontecimentos
do final de semana.
A caixa de Zoé -
Durante toda a segunda-feira e a semana subseqüen-
te ficaram em gravações e diagramações, sendo que tudo
que estava sendo feito tinha que ser por ela aprovado. Fo-
ram quinze dias onde nem mesmo Hélio teve espaço em
seus pensamentos.
Quando se trabalha, o tempo passa rápido.
A campainha tocou no apartamento de Hélio. Quan-
do a porta se abriu, ele, estupefato, afastou-se para que Zoé
entrasse carregando aquele monte de caixas.
— Se eu soubesse que você vinha, teria preparado
uma recepção à sua altura — alegrou-se Hélio ao vê-la tão
bem disposta. — Afinal de contas, agora é uma grande es-
trela de TV. E aí, como foram as gravações e quando vere-
mos você na TV?
— Me falaram seis meses ou mais. Tudo depende
de pauta, ou seja lá o que for — respondeu ela. — O mais
importante é que foi feito e poderemos mostrar uma outra
realidade dos acontecimentos.
— Pra que essas caixas? Aonde você vai? — pergun-
tou Hélio sem saber onde acomodar os apetrechos que Zoé
ia tirando das caixas, até que se deparou com um jantar
chinês completo para duas pessoas. — Opa! O que é isso?
É impressionante como você tem o dom da premonição.
Como sabia que eu não havia jantado ainda?
E quando se dirigia para a cozinha, deu de cara com
Zoé, que já estava lá, com os pratos e talheres nas mãos,
rindo de seu amigo e da sua distração em não percebê-la.
— Os bolinhos chineses são de recheio misto, e só
comprei dois.
- A.C. Gardini
— Eu sou um abençoado nesta terra! — exclamou
Hélio. — Quem mais depois de quinze dias sem uma “janta”decente ganha um jantar chinês, e com a sua companhia?
— Até parece que você ficou sem comer até hoje— Zoé ria da brincadeira de seu amigo. — Não emagreceu
nem um pouquinho.
— Tenho sobrevivido à base de bolachas e água,
meu único alimento material nesses dias sofridos, e da sua
lembrança, que estava quase se apagando de minha mente
igualmente sofrida com a falta de substâncias sólidas — dis-
se Hélio de uma forma séria e compenetrada, provocando
risadas ainda maiores em Zoé.
— Você me engana com essas caras sérias que faz
— e ela ria.
— Eu sei o que fazer para reativar meus neurônios
— disse ele.
Foi até a cozinha e voltou trazendo uma garrafa de
vinho.
— Este eu guardei para uma ocasião especial e tenho
certeza que é hoje essa ocasião — falou erguendo a garrafa.
— Eu não acredito que você ainda tem essa garrafa
de vinho!
Zoé lembrava-se do dia em que, durante uma via-
gem de estudos, haviam comprado aquele vinho importado,
caro para eles naquela época. Haviam combinado de tomá-
lo juntos em uma ocasião especial.
— É lógico que tenho! Você por um acaso pensou
que eu iria tomar sozinho? — retrucou Hélio, mostrando-se
ofendido.
— Não quis dizer isso.
A caixa de Zoé -
— Mas disse.
— O que eu quis dizer...
— Mas não disse — e Hélio começou a rir do mau
humor que começava a tomar conta de Zoé.
— Será que você nunca vai tomar jeito? — zangou-
se Zoé.
A noite foi passando tranqüila, e eles abrindo caixa por
caixa. Foram conferindo tudo o que Zoé havia trazido: bús-
solas, gps, mapas, roupas, utensílios que, Hélio começava a
perceber, não eram para utilização na própria Universidade.
— Pra quê tudo isso? Você não pretende sair a cam-
po com sua turma de pós-graduandos, não é? — perguntou
Hélio, desconfiado.
— Oh, não! Isso tudo aqui é pra nós dois — respon-
deu ela, fingindo certa indiferença.
— Como assim “pra nós dois”?— Você é um e eu sou outra, logo um com outra são
dois, nós dois, Zoé e Hélio, Hélio e Zoé. Nós vamos nos
preparar para uma viagem.
— Como assim?
— O meu querido colega sempre se mostrou muito
inteligente e perspicaz. Solicito então ao seu neurônio Teco
que se esforce e tire as conclusões necessárias tendo em vis-
ta todos estes objetos.
— Agora você enlouqueceu de vez — espantou-se
Hélio. — E pensa em me levar junto sem me consultar?
— Eu já o consultei a partir do instante em que você
partilhou da minha vida e quando lhe contei tudo sobre
meu passado e sobre a caixa do diário de meu avô. É condi-
ção sine qua nom a sua companhia nessa expedição.
0 - A.C. Gardini
— Mas que expedição? O que foi que eu fiz para
você me reservar uma piada dessas?
— Não é piada, e você deveria saber que a reitoria apro-
vou não só a sua ida comigo, mas também nos garantiu verba
suficiente para um mês de exploração da selva Amazônica.
Zoé colocou-se arrogantemente de pé de maneira
tão natural que Hélio desatou a rir.
— Você é muito cara-de-pau — Hélio ria de nervoso.
— Quem disse que eu concordo com isso? Quem te autori-
zou a cuidar de tudo sem minha benção?
— Oh, senhor! Me abençoe com sua graça e me
acompanhe à floresta tropical.
— Assim está melhor. Eu irei, mas com uma condição.
Hélio nunca seria capaz de recusar um pedido de
Zoé. Se é que aquilo era um pedido.
— Qual condição, majestade? — Zoé não se agüen-
tava mais querendo segurar o riso.
— Eu sento na janela no avião.
Ambos deixaram-se ficar até tarde, agora de uma for-
ma mais descontraída, pois Hélio aceitara o “convite” deZoé e estava tudo arranjado.
A noite passou tranqüila, e quando a última caixa foi
aberta, Hélio pôde vislumbrar parte dos equipamentos que
fariam parte da expedição que a Universidade autorizara
a Titular da Cadeira de Geografia realizar com o apoio da
Cadeira de História, para um trabalho de campo.
Teriam trinta dias no meio da Floresta Amazônica,
mas não sabiam ainda exatamente o que estariam procu-
rando por lá.
- A.C. Gardini
Capítulo 11
Zoé chegou ao aeroporto com duas horas de ante-
cedência sem nenhuma necessidade, pois não se tratava de
uma viagem internacional ou de pegar um grande jato. Se-
ria um vôo doméstico em um avião sucateado de outros
países e que ainda prestava grandes serviços em nosso inte-
rior. Não conseguia esconder seu nervosismo por saber que
estava iniciando uma viagem que fora o objetivo da vida
de seu avô. Uma viagem que custara, anos antes, a vida de
sua mãe.
— Estou impressionado com seu nervosismo — Hé-
lio falava como se Zoé o estivesse ouvindo. — Chegar tão
cedo para ficar mais tempo esperando?
Enquanto esperavam o embarque para a cidade de
Barcelos, no Alto Rio Negro, que seria seu ponto de partida,
foram repassando os pontos principais de sua jornada e do
que iriam precisar. Desceriam em Barcelos e de lá seguiriam
pelo Rio Negro até Tapuruquara, onde ficariam três dias,
o suficiente para encontrarem o guia mateiro que haviam
contratado e sua turma de carregadores. Subiriam daí pelo
- A.C. Gardini
Rio Marauiá até os picos fronteiriços do Brasil com a Vene-
zuela e Guiana.
Estariam viajando sob o disfarce de uma ONG inte-
ressada na pesquisa geofísica da região, e para todos os efei-
tos estariam fazendo um levantamento paleontogeográfico
com análises de solo, estudo de fauna e flora encontradas e
sua adaptabilidade ao solo úmido da floresta tropical e sua
influência no efeito estufa.
A quantidade de equipamento científico justificava
a contratação de carregadores e de um guia com experiência
na região.
A última expedição científica e equipada a explorar
daquela forma racionalizada havia sido a do ex-presidente
americano Teodore Roosevelt, em 1913, na companhia do
então General Rondon.
O velho General sabia muito bem o que fazia e onde
levava o presidente. Durante meses passeou com ele por
florestas inexploradas fazendo-o colecionar borboletas e
acumular picadas de abelhas e outros insetos. A expedição
foi um sucesso do ponto de vista ornitológico e botânico,
sendo comparada inclusive ao trabalho de Claus Martius e
Johann Spix sobre nossa flora e fauna.
Do ponto de vista estratégico, foi do jeito que o ve-
lho General quis que fosse.
A expedição de agora, pela primeira vez na história
do país, utilizaria o que pode haver de mais moderno em
termos de tecnologia incorporada ao assunto. Equipamen-
tos GPS (Global Positioning System) para que soubessem exa-
tamente onde estariam, telefones celulares e computadores
portáteis conectados via satélite com os main frame (base
A caixa de Zoé -
de dados) das principais universidades do país, tudo isso
alimentado por baterias solares capazes de gerar energia
suficiente para um grande número de pessoas, podendo in-
clusive abastecer um sistema de chuveiro para um eventual
banho quente.
Estavam saindo para essa expedição na época pró-
pria, o verão, e para isso temos que entender o clima da
região.
Verão é quando chove uma vez ao dia com horário
marcado, e inverno é quando a temperatura cai um ou dois
graus e chove durante o dia todo, todo dia.
— Quer dizer: quando chove pouco é verão, quando
chove muito é inverno, e durante o ano inteiro parece uma
eterna primavera devido à exuberância das flores. Mas o
calor na selva é sufocante!
A explicação de Hélio deixou nossa expedicionária
preocupada.
O vôo levou menos de cinqüenta minutos e foi mais
difícil carregar e descarregar o avião do que chegar ao des-
tino. O aeroporto de terra batida, comum naquela região,
era melhor do que supunham e com sorte não perderam
nenhuns dos equipamentos durante o pouso.
Hospedaram-se no único hotel de Tapuruquara, se é
que se podia chamar de hotel aquela espelunca de pensão,
Nossa Senhora de Aparecida.
Até que se tornava simpática, pitoresca, com sua
passadeira de borracha vermelha que ia da recepção até os
quartos, passando por um corredor com seus vitrôs de ferro
de correr e um jardim interno.
- A.C. Gardini
Aquele local era a fronteira entre a civilização e a flo-
resta tropical, último refúgio às margens do maior celeiro de
biodiversidade do planeta. Ficariam ali esperando a chega-
da de seu guia, que já havia sido contatado do aeroporto.
Passado algum tempo, a recepção informou, através
de um menino com feições de mestiço, que o guia estava es-
perando por eles no bar ao lado da pensão. Lá, não tiveram
dificuldades em saber quem era o seu guia. Dirigiram-se
para um tipo nativo, grandalhão, carrancudo, com longos
cabelos negros cobrindo as orelhas e cortados numa franja
rente aos olhos. Ele, assim que os viu dirigindo-se a ele,
colocou a mão no cabo da faca que trazia pendente em seu
cinto e esperou.
— Como vai, Seu João Augusto? — foi logo dizendo
Hélio como se estivesse em pleno corredor da universida-
de encontrando um aluno seu, tentando não demonstrar o
nervosismo que sentia ao ver aquele tipo estranho. — Espe-
ro que estejamos no horário.
Ouviu-se uma voz saindo de trás do gigante, e este,
saindo de lado, deixou que vissem um tipo bem mais amis-
toso sentado no fundo do restaurante. Era o guia mateiro
contratado.
Zoé ficou impressionada.
Era um tipo surfista, loiro, quase trinta anos, olhos
azuis, um bronzeado um pouco diferente do bronzeado do
mar, mas que o tornava algo mais atraente em meio àquele
povo de feições grosseiras. Seu talhe tornara-se algo rude
pelo seu contato com a natureza.
— Como vai, Professor? — disse o homem fazendo
um gesto para que os dois se aproximassem da mesa onde
A caixa de Zoé -
estava sentado. — Creio que seja a professora Zoé com o
senhor.
João Augusto — esse era o nome do guia — revelava-
se uma pessoa agradável, de boa conversa, demonstrando
um conhecimento inusitado para uma pessoa naquele local.
Tinha sido surfista lá no Rio de Janeiro, de onde viera, e na
sua adolescência, um dia, por causa de um desafio veio para
a selva surfar na pororoca, aquele fenômeno do encontro
das águas do rio com o mar.
— Eu me surpreendo ao vê-lo aqui, longe de qual-
quer vestígio de civilização — Zoé estava realmente admi-
rada com aquele sujeito, naquele lugar. — Ainda mais com
uma história dessas, de surfar na pororoca! Deve ter sido
uma sensação incrível!
— Esse fenômeno gera ondas que às vezes percorrem
quilômetros rio adentro — disse João Augusto, contando a
mesma história que vinha contando nesses últimos anos.
— O grande desafio era ver quem ficava mais tempo sobre
a prancha e até onde chegaria. A sensação de se surfar na
pororoca é algo indescritível, não se comparando em nada
com surfar no mar. No mar você está no meio de elemen-
tos violentos da natureza, as ondas, as correntes, o vento,
numa constante briga para não cair, ultrapassar mais uma
crista, “dropar” mais uma onda. Lembram-se do “no vaca”?Então. Às vezes ficávamos horas esperando a onda perfeita
e invejando os que estavam no Havaí ou então na Austrália
com aquelas ondas gigantes. É uma luta constante contra o
mar. Aqui no rio é diferente. Vão me desculpar falar como
vou falar, mas é a única maneira que encontrei para descre-
ver como é surfar no rio: é sexo!
- A.C. Gardini
— Como assim, sexo? — Hélio, que nunca subira
numa prancha, estava absorvendo cada palavra de seu novo
amigo como se lesse um livro.
— Eu também não faço a mínima idéia do que seja
surfar no mar, quem dirá em um rio — disse Zoé, extasiada
por alguém conseguir descrever o surfe daquela maneira.
— Por favor, continue.
— O surfe no rio é tranqüilo. Você sabe quando a
onda vem e todas são boas, não tem aquela neura de es-
perar a melhor. Você não briga com as águas, mas se dei-
xa levar. Elas são mansas, quentes, vão te arrastando terra
adentro durante a pororoca e você nem percebe o quanto
navega. O prazer que se sente é muito maior que a luta na
água salgada. Você sente o perigo, mas se deixa levar. É um
sentimento interessante de entrega e ao mesmo tempo de
preservação. O rio é dócil, morno, aconchegante, é traiço-
eiro, é feminino. Se puder, ele te mata, mas mesmo assim
você não consegue deixar de gostar dele.
— Eu não gostei dessa parte de que ele é feminino
— Zoé resolveu brincar um pouco.
— Sem intenção de magoá-la ou de me mostrar
preconceituoso — continuou João Augusto. — Muito pelo
contrário, eu estou aqui exatamente por causa desse lado
feminino do rio. Quando você entra nas águas do rio, você
está se entregando de corpo e alma a um ente vivo. Ele te
abraça, te envolve de uma maneira tão carinhosa que nos
esquecemos de onde estamos e vamos ao fundo tranqüila-
mente. É um retorno ao útero materno. Eu acho que grande
parte da lenda da sereia do rio é por causa dessa sensação
de paz que nos envolve. Foi isso que me segurou aqui esses
A caixa de Zoé -
anos todos. Um verdadeiro sexo, selvagem pela localização,
mas extremamente gratificante — e agora foi a vez de João
Augusto dar sua risada, mostrando dentes alvos e perfeitos.
— Eu não só venci em distância, como também em tempo,
pois nunca mais voltei à civilização. Descobri neste povo
a simplicidade de espírito que deveria ser a razão de viver
de todos os seres humanos. Eu descobri a verdade através
dos bem-aventurados que herdarão a terra. Aqui neste fim
de mundo eles são os verdadeiros herdeiros da Terra e de
tudo que ela contém. Aqui eu vivo em contato direto com a
natureza e em contato com a civilização, mas sem se deixar
manchar pelo egoísmo, pela ambição, tão característicos do
progresso.
Seu companheiro, o gigante mal-encarado, uma vez
apresentado mostrou-se uma pessoa delicada e sensível,
com uma índole dócil como a de uma criança. Seu nome
era Amoroso. Seguia João Augusto como um cão segue seu
dono e parecia ser capaz de dar a vida por ele. Chamava-o
de Patrão.
Hélio e Zoé ficaram sabendo depois que João Augus-
to salvara a vida de Amoroso, tendo com isso angariado sua
companhia como uma forma de agradecimento. Tornara-se
seu anjo da guarda, e Amoroso, seu cão de guarda.
O que Zoé e Hélio não sabiam é que para poderem
adentrar em território indígena precisariam de mais auto-
rizações além das que já tinham. Toda aquela região fora
dominada por ONG´s multinacionais e todas as tribos já
tinham seus missionários e seus protetores. Muitos países
mantinham estreitas relações com certas tribos, dependen-
do do interesse de cada um. Tribos que se especializavam
- A.C. Gardini
na coleta de material vegetal que era levado embora para
extração de seus princípios ativos; tribos que se especiali-
zavam na extração de minerais, que eram transportados de
avião, saindo de aeroportos considerados clandestinos, mas
que todos sabiam de sua existência; outras ainda especiali-
zadas em servir de cobaias para experiências in loco realiza-
das por grupos farmacêuticos internacionais. Tudo isso sob
o beneplácito do governo.
Por mais que João Augusto conhecesse a região e os
grupos, teria que convencer esses grupos de que a expedi-
ção era realmente o que dizia ser.
Por uma coincidência incrível, por mais que não acre-
ditemos em coincidências, naquela pensão estava acomo-
dado também um missionário americano, John Marcinkus,
estabelecido junto a um grupo da etnia Yanomami.
0 - A.C. Gardini
Capítulo 12
serva.
Há aqueles acasos que o destino, por vezes, nos re-
Quando ainda estavam João Augusto, Zoé e Hélio
discutindo as várias maneiras de como ou o que poderiam
ou não fazer para adentrarem a selva, providencialmente
John entrou no boteco e colocou-se no balcão.
Em menos de cinco minutos de conversa com o Zé
Mandioca, dono do local, foi colocado a par do que esta-
va ocorrendo com aquele pessoal estranho e do que João
Augusto planejava. Num lugar desses, o dono do bar, além
de poliglota, pode também servir de intermediário para se
conseguir muitas coisas. Esse era o Zé Mandioca.
John se aproximou da mesa onde estava o grupo e se
apresentou.
— Vejo que temos gente nova por aqui, e por isso
mesmo não posso deixar de me apresentar. Meu nome é
John Marcinkus. Fiquei sabendo que os senhores são pro-
fessores da Universidade do Tocantins — Marcinkus não
era de rodeios.
- A.C. Gardini
— O senhor está muito bem informado — Hélio foi
rápido na resposta. — Pelo jeito nossa chegada aqui não
passou despercebida.
— Daqui pra frente você vai ver como o mundo é
pequeno, Professor — disse João Augusto, que já conhecia
John Marcinkus. — Professora, Professor, este é John Mar-
cinkus, como ele já disse, e vai nos arranjar os passaportes
necessários para sua expedição.
— Como assim? Que passaportes? — quis saber Zoé.
— É maneira de falar — retrucou John. — Eu sou
uma pessoa que conhece muita gente por aqui, e esta é uma
região onde todos nós nos ajudamos, professora...
— Zoe de Melo Rezende. Sou professora titular de
Geografia e este é meu colega Hélio Cortês, professor titu-
lar de História.
— Tenho imenso prazer em conhecê-los, e terei
maior prazer ainda em ajudá-los.
John se fazia interessante, e com uma conversa cati-
vante logo deixou nossos dois exploradores à vontade, dei-
xando clara a sua admiração pelo trabalho envolvente de
Zoé.
— Durante os últimos anos — continuou Marcinkus
— estive na selva por diversas vezes em várias expedições.
Quando não envolvido pessoalmente, era como observador.
Nossas expedições eram sempre de grande penetração na
selva.
E seu conhecimento da selva era ainda maior que o
de João Augusto.
Zoé, como não poderia deixar de ser, empolgada
por encontrar ouvidos receptivos a escutá-la naquilo que
A caixa de Zoé -
ela mais gostava, discorria sobre o projeto que os levara
até ali, contente por estar recebendo apoio de pessoas tão
abnegadas e interessadas em ajudá-los pelo simples prazer
de ajudar. João Augusto estava sendo pago para isso, mas
mesmo ele se revelara uma pessoa boníssima, acima da ex-
pectativa deles.
John Marcinkus era um típico americano. Alto, ca-
belo escovinha, traços bem definidos, escondia bem seus
45 anos de idade e se não fosse missionário passaria fácil
por um militar, aqueles que a gente vê nos filmes fazendo a
segurança de algum presidente.
Na realidade, Marcinkus fazia parte de um grupo
muito especial de missionários bem treinados de uma agên-
cia americana. Além de conhecer bem o evangelho, era um
profundo conhecedor de plantas e ervas, sendo diplomado
em botânica pela Universidade do Colorado com especiali-
zação em plantas tropicais.
Vários laboratórios farmacêuticos participavam des-
se grandioso projeto de evangelização dos índios em troca
do conhecimento acumulado pelos pajés sobre a flora e,
eventualmente, fauna ainda pouco exploradas.
Marcinkus representava uma ONG que cuidava dos
interesses de minorias étnicas através do mundo inteiro e
estava lá averiguando denúncias feitas por um grupo de ín-
dios Yanomami recebidas pela matriz. Esse grupo Yanoma-
mi, originário do norte do estado do Amazonas, estava aos
cuidados de uma outra ONG, denominada URIHI, dedica-
da aos cuidados médicos de toda uma comunidade. A carta
tinha sido enviada por um grupo de chefes solicitando a
intervenção dessa outra ONG junto ao governo brasileiro,
- A.C. Gardini
pois não mais estavam recebendo assistência médica por
falta de verbas, que não eram repassadas a eles.
Era pouco mais de dois milhões e meio de dólares em
verbas para poderem cuidar da saúde dos quase quinhentos
índios da reserva. Chapas dos pulmões, tratamento dentá-
rio, prevenção de tuberculose, remédios contra malária e
uma outra série de doenças, nem todas introduzidas pelo
homem branco, como comumente se pensa, mas a grande
maioria endêmica.
Toda essa calamidade na saúde dos Yanomami numa
aérea de mais de noventa e dois mil quilômetros quadrados,
ou seja, noventa e dois milhões de hectares.
John Marcinkus tinha a função precípua de avaliar
o trabalho que estava sendo feito junto aos índios e os re-
sultados obtidos pela URIHI e também o destino dado à
verba conseguida.
Doenças endêmicas não despertavam os interesses
desses laboratórios, pois muitas delas eram raras e localiza-
das, como a doença de Jorge Lobo, que recebeu esse nome
em homenagem ao médico pernambucano que a identificou
na década de 30. Até hoje essa doença não tem cura. Uma
doença incômoda ao portador, pois também é discriminató-
ria pelo aspecto, mas que não é fatal. Morre-se com ela, mas
não dela. Como são poucos os casos relatados, os laborató-
rios preferem investir em produtos de consumo massivo e
por vezes de uso constante.
Conforme a conversa transcorria, John foi se intei-
rando do destino do grupo de pesquisadores. Deixando-se
levar pela conversa inteligente de Zoé, foi mentalmente fa-
zendo um roteiro pelo qual deveriam passar para atingirem
seus objetivos.
A caixa de Zoé -
Logicamente que iriam até aquela região mais ao nor-
te, nas montanhas que nos separam da Venezuela e Guiana,
pois desde a foz até mais ou menos três mil e oitocentos
quilômetros rio adentro o terreno, com seu perfil de planí-
cie e uma queda em torno de apenas oitenta e dois metros,
apresentava solo da era do Cenozóico, de um período bem
moderno e de formação recente.
O que eles buscavam era o estudo dos vários tipos
de terrenos que sabiam iriam encontrar mais ao norte, em
direção às altas montanhas de onde se destacava o pico cul-
minante, o Pico da Neblina, e ao seu lado o Pico 31 de Mar-
ço. Ao redor daquele maciço rochoso sabiam existir todos
os tipos de terreno que poderiam interessar a eles, desde os
mais antigos até os mais recentes, com todas suas camadas
bem delineadas.
— Eu queria saber como uma moça tão bonita veio
se meter em um lugar como este — Marcinkus agora estava
agradavelmente curioso.
— Meu avô foi um grande explorador, ainda que des-
conhecido. Mas era disso que ele gostava, do anonimato.
Eu ficava horas e horas ouvindo suas histórias e sonhando
com aventuras que me levariam por todo este país.
Falava de seu avô e da grande paixão dele pela mata,
sua amizade com o velho General, as histórias de desbra-
vamento e as grandes expedições que percorreram aquela
parte do país.
John era um ouvinte dos mais interessados, queren-
do saber de cada detalhe.
— Você está me falando de seus antepassados. Mas e
agora, o que a trouxe aqui? — perguntou Marcinkus, curioso.
- A.C. Gardini
— Nosso objetivo são as montanhas ao norte, pois lá
encontraremos solo adequado à nossa pesquisa — respon-
deu Zoé.
— A minha curiosidade aumenta quando fico saben-
do que o professor Hélio é da cadeira de História. O que faz
um historiador aqui no meio de nenhuma civilização?
— Não creio que a falta de seres humanos hoje aqui
seja parâmetro para que possamos afirmar nunca ter havi-
do uma civilização que ocupasse este território, pois desde
antes do ano de mil e quinhentos temos gente entrando
e saindo daqui, fundando vilas e desaparecendo — Hélio
tinha um tom de voz nada amistoso, respondendo de uma
forma seca e direta.
— O professor tem razão — Marcinkus não se dei-
xou intimidar pela agressividade da voz de seu interlocutor.
— Já vi vestígios de civilizações muito antigas por onde va-
mos, e se o professor quiser poderemos nos aproximar delas
para, quem sabe, estudá-las melhor.
John Marcinkus revelava uma diplomacia acima de
qualquer suspeita.
— Mas continue, Professora. Me fale mais de seu
avô e de seu trabalho. Diga-me: seus pais, nunca acharam
ruim seu avô roubá-la deles? — continuou ele, interessado
na história de Zoé.
— Lembro-me pouco de mamãe, apenas que era uma
mulher bonita, altiva, orgulhosa, de traços marcantes, ma-
çãs do rosto salientes, testa alta. Notava-se não apenas em
seus traços, mas também em seu porte, uma altivez que lhe
era própria do berço. Nasceu assim, quase uma rainha. Ou
quem sabe em outras encarnações tenha sido uma.
A caixa de Zoé -
— Mas e seu pai? Por que ele não a criou?
— De meu pai pouco vovô me contava a respeito.
Disse apenas que era um bom homem e que havia cumpri-
do seu papel. Morreu jovem, um pouco depois de eu ter
nascido, vítima de um acidente de carro. Mamãe também
morreu, mas de contato com animal venenoso — disse Zoé
e ficou pensativa por um momento. — Irônico. Como pôde
acontecer de uma mulher acostumada à selva com todos os
tipos de animais, fossem venenosos ou não, de repente ser
vítima de um sapo, minúsculo, mas mortífero. O destino
assim quis, e eu, órfã, fui criada por meu avô.
Falar de sua família, principalmente de seu avô, fazia
com que Zoé se sentisse orgulhosa, não mais apenas de seu
trabalho, mas de seu passado com seu avô, porque quanto
mais ela contava mais se dava conta do herói que ele fora.
Desde pequenina, sempre a ouvir histórias e a brin-
car com aquela caixa que seu avô tinha em grande conta.
Quando Zoé citou a caixa, John pareceu acordar de
um marasmo auditivo, pois se até aquele instante ouvira e
se interessara, tinha sido quase que um ato reflexo de seu
treinamento como missionário. Até ouvir falar da caixa.
— Você falou de uma caixa. Por que será que todos
os avôs do mundo têm uma caixa onde guardam segredos
que os netos não podem ver? Meu próprio avô falava sem-
pre de uma caixa secreta.
A curiosidade foi despertada. E que coisa estranha!
Seu próprio avô, que havia participado da primeira grande
guerra e também conhecido o velho General durante a visi-
ta de Teodore Roosevelt, lhe falara de uma caixa. Como será
que era a caixa à qual Zoé se referia?
- A.C. Gardini
Durante mais algum tempo ficaram falando de seus
antepassados e Zoé, movida por uma intuição que nem
mesmo ela soube determinar a origem, calou-se em relação
ao seu achado no leilão. Teve que morder os lábios um bom
par de vezes para não revelar o verdadeiro motivo de sua
jornada, fato que não passou despercebido por John. Ele
sabia muito bem analisar as reações humanas e pressentiu
que Zoé lhe dizia menos do que queria e sabia mais do que
demonstrava.
À noite, Zoé foi dormir aliviada por poder conversar
com alguém que tanto sabia a respeito de selva e que era
um homem de Deus. John deitara naquela noite com a cer-
teza de que a sorte havia sorrido em seu caminho e de que
sua busca de décadas estava para terminar.
Quem não estava muito satisfeito com tudo era Hé-
lio. Desconfiado de tantas amabilidades, chegou a pergun-
tar para Zoé:
— Você não acha muito conveniente encontrarmos
alguém tão conhecedor da selva e dos meios de se chegar
aonde queremos ir?
Zoé riu do amigo, pois tinha certeza que Hélio es-
tava movido pelo ciúme só porque alguém mais estava se
interessando pelo seu trabalho.
— Que coisa feia, Hélio! Você não está sendo nenhum
pouco “cortês” — e Zoé calou-lhe a boca enquanto fazia esse
trocadilho o qual ela sabia que ele tanto detestava.
— Que coisa horrorosa de trocadilho! Você sempre
aproveita as oportunidades para me infernizar com isso.
— Ora, Hélinho! — disse Zoé, abrindo um sorriso
pelo qual Hélio sempre se derretia, mostrando seus dentes
A caixa de Zoé -
alvos, agora ainda mais bonitos naquela moldura de selva.
— Você está com ciúmes.
— Acho melhor mudarmos de assunto já que você
acha que é ciúmes. Estou preocupado com nossa segurança.
Se você está segura de tudo aqui, eu estou muito desconfia-
do com essas coincidências — disse Hélio, parecendo abor-
recido com a atitude de Zoé.
— Não precisa se aborrecer tanto assim — Zoé as-
sumiu um ar ressabiado, como se tivesse sido chamada à
atenção. — Se você se preocupa tanto, não me deixe ficar
falando, pois sabe que muitas vezes não me contenho e me
empolgo na conversa.
Os contatos no Boteco do Pau D`água não poderiam
ter sido melhores se fossem encomendados.
Tudo arranjado. Com João Augusto, o pessoal neces-
sário para o transporte do material, com John, o itinerário
ideal e o objetivo de acordo com seu avô.
O alvorecer na selva era um pouco diferente do alvo-
recer no cerrado. O sol no cerrado nasce lá longe, no hori-
zonte, e vai subindo no céu. Aqui na selva a gente sabe que
ele nasceu porque fica claro. Só se consegue ver o sol quan-
do ele já está lá em cima, mas o horizonte é verde e denso.
— Muito bem, Doutora, — foi falando Hélio enquan-
to Zoé saía do quarto. — Vamos logo tomar nosso café para
podermos dar uma volta pela cidade e ir nos aclimatando.
Zoé parecia mais radiante naquela manhã. Um peso
estava sendo retirado de suas costas e com isso seu sem-
blante ia se iluminando a cada dia.
— Parece que quanto mais o tempo passa, mais bo-
nita você fica — Hélio falava com sinceridade na voz.
- A.C. Gardini
— Fico impressionada com como o ciúme lhe faz
bem — brincou Zoé
— Eu não estou com ciúme. Continuo a dizer que é
tudo muito estranho, muito fácil.
— Pois eu acho bom a gente achar logo esse salão,
porque senão quem vai ficar de mau humor sou eu — disse
Zoé, e seu estômago roncou de fome.
— Pare! — gritou Hélio segurando-a pelo braço e fa-
zendo uma concha com a mão ao redor do ouvido. — Você
ouviu algum animal selvagem roncando?
— Pare com isso já! Foi meu estômago com fome.
Pobrezinho!
Quase que simultaneamente ambos caíram na risa-
da. Desde quando aquela pensão no meio da selva teria um
salão de desjejum?
— Você está pensando no que eu estou pensando?
— perguntou Zoé.
— Acho que sim — respondeu Hélio, não conseguin-
do controlar a risada.
— Eu acho que também sei do que vocês estão rindo
— interrompeu João Augusto.
Zoé e Hélio se assustaram, pois não o haviam nota-
do na entrada da pensão. Mas logo em seguida caíram na
risada novamente.
— Você não acredita! — falou Zoé. — Estávamos
procurando o salão de desjejum, mas não creio que exista
isso por aqui.
— Pode acreditar que não — retrucou João Augusto.
— Mas me acompanhem até o boteco que preparamos uma
surpresa pra vocês dois.
0 - A.C. Gardini
E saiu caminhando na frente dos dois, que não ha-
viam ainda parado de rir.
— O pessoal aqui da cidade quis que vocês tivessem
a melhor das impressões do local antes de partirem.
Augusto abriu a porta do boteco e os deixou entrever
uma mesa colocada no centro do local com todos os tipos
de frutas da região, sucos e um maravilhoso pão feito em
casa. Pão de mandioca, a especialidade do Zé, o Mandioca,
dono do local.
Partiram no dia seguinte com três canoas, “voado-
ras”, como são chamadas naquela região as canoas de si-
lhueta baixa escavadas em troncos de árvores. São extre-
mamente velozes com seus motores de popa. Duas para o
material e o pessoal da universidade e outra para o reveren-
do John Marcinkus.
A caixa de Zoé -
Capítulo 13
A viagem já transcorria há três dias quando na pas-
sagem do Estreito de Óbidos, em meio à forte correnteza,
enfrentaram ondas parecidas com as de um mar bravio.
— O que está acontecendo, João Augusto? — pergun-
tou Hélio, assustado com aquela situação. — Cadê aquele
sexo morno que era o rio?
— Essa parte do rio é o lado masculino dele — gri-
tou João Augusto enquanto manobrava a voadora com ma-
estria e motor ao máximo. — Não podemos nos deixar levar
para as margens, pois ficaremos presos nos redemoinhos e
seremos jogados de encontro às pedras. Não solte os
remos — gritou ele mais alto ainda.
Zoé, sentada, apavorada no meio da embarcação, fa-
zia orações, pois foi a única coisa em que pensou fazer para
não atrapalhar os remadores.
— Não deixe o barco virar de lado — gritava João
Augusto enquanto remava vigorosamente, tentando domi-
nar a embarcação que teimava em se posicionar transversal-
mente no rio. — Se ele virar nós morreremos.
- A.C. Gardini
Essas últimas palavras, pronunciadas aos gritos, sur-
tiram um efeito tonificante em Hélio.
— Pra que lado eu ponho o remo?
Hélio apoiava o corpo na lateral da canoa e enter-
rava o remo na água como se a golpeasse, defendendo sua
vida, lutando contra um ser que, enquanto imaginário, es-
tava disposto a não deixá-los sair dali.
A canoa que levava os carregadores e a maioria do
equipamento vinha logo atrás deles com uma velocidade
muito superior a que deveria estar, por estar carregando
todo aquele peso, e precisando de manobras rápidas.
Quando Zoé sentiu que a voadora em que estava
tornou-se subitamente estável, ouviu Hélio gritando acima
do fragor das águas.
— Diminuam a velocidade! Vocês não vão conseguir
dominá-la!
Eles ainda tiveram tempo de ver o bico da canoa
com os equipamentos e os carregadores avançar para cima
deles.
— Cuidado! — João Augusto gritou para o professor,
que estava na parte traseira com o remo mergulhado na
água. — Para o outro lado!
Hélio, num ato reflexo, tirou o remo da água e jo-
gou o corpo para frente dentro da canoa. O impacto foi
inevitável e a canoa carregada subiu em uma última onda
antes de atravessar na correnteza e emborcar com todos
seus ocupantes. Os gritos foram rápidos e logo sufocados
pelo barulho das ondas.
Esses acontecimentos nunca poderiam ter sido pre-
vistos no início da viagem. Preveniram-se contra chuvas,
- A.C. Gardini
insetos, queimadas, granizos, até mesmo neve, brincavam
eles antes da partida.
A morte, quando ocorre, mesmo prevista sempre é
inesperada.
Mesmo sem prestar atenção, John Marcinkus levou
sua voadora através da garganta com uma destreza de quem
está acostumado aos mais difíceis embates na vida.
Uma das canoas se perdeu, virando com todo o equi-
pamento, víveres e os carregadores que nela iam. Foi impos-
sível o resgate de qualquer um deles, pois isso colocaria em
risco a segurança da canoa em que estavam. O rio, nesse
ponto, se espreme em apenas um quilômetro e meio na lar-
gura e quase cento e trinta metros de profundidade.
Assim que saíram daquele trecho traiçoeiro busca-
ram e aguardaram durante algum tempo pelos companhei-
ros desaparecidos, mas em vão.
A grande perda foram os homens, pois, por maior
que fosse a perda material, nunca recuperariam aquelas vi-
das humanas ceifadas para sempre.
O rio cobrava tributo pela passagem de seus nave-
gantes.
Zoé ficou tremendamente abalada com o aconteci-
do. Começou a achar que algo de muito ruim ainda podia
acontecer.
Passado o estreito, até agora o pior trecho da semana,
continuaram com suas anotações de praxe, de localização,
do que viam sobre a flora, a fauna, algo um tanto entedian-
te, mas necessário para as confrontações das referências do
diário de seu avô.
A caixa de Zoé -
Esse trecho ameno da viagem serviu como um bálsa-
mo nas feridas abertas pela tragédia. Zoé pôde refletir um
pouco sobre o ocorrido, e observando a natureza sentiu-se
reconfortada e energizada o suficiente para seguir adian-
te. Nem mesmo as tentativas de reconforto por parte do
missionário tinham alcançado aquele efeito que a floresta
surtia.
Seu avô descrevia o roteiro que tinha sido percorrido
tantos anos atrás com tantas minúcias e tantos detalhes
que ficava fácil seguí-lo enquanto iam navegando através
dos rios e igarapés.
Estava chegando a hora de deixarem os barcos e se-
guirem a pé pela floresta. Com a perda dos homens e parte
do equipamento, tinham agora que continuar por seus pró-
prios esforços e contar apenas com o que pudessem car-
regar.
Zoé, desde o acidente com a canoa, não ficava mais
tão à vontade e começava a dar razão a Hélio. Sentia no ar
um perigo eminente sem conseguir precisar de onde viria
esse perigo. Pediu a Hélio que ficasse atento, pois algo não
se encaixava.
Parecia que o destino começava a conspirar contra
eles. Um temporal desabou e encharcou quase todo mate-
rial eletrônico que levavam.
— Como foi possível molhar quase todo nosso equi-
pamento se mesmo dentro do rio nós conseguimos conser-
vá-los secos? — Zoé não se conformava com a sorte que
teimava em abandoná-los. — Vejam só o que sobrou!
— Não é tão ruim assim — tentou consolar Hélio.
— Com o material que sobrou podemos muito bem nos lo-
- A.C. Gardini
calizar e seguir adiante. Vai ser um pouco mais demorado,
mas conseguiremos.
Os notebooks estavam inutilizados, assim como dois
aparelhos de GPS. Havia entrado água neles e danificado
as baterias.
Sobraram os velhos mapas militares — que por serem
plastificados não sofreram nenhum dano —, duas bússolas
militares, um aparelho de GPS, um relógio sinalizador e um
celular com bateria extra, por sorte guardados numa embala-
gem inviolável, pois pensavam em nunca ter que utilizá-los
Se voltassem atrás talvez nunca mais tivessem uma
chance como aquela. Desperdiçar todo aquele equipamen-
to, pelo menos aquele que se mantinha seco, seria um gran-
de passo para trás.
A decisão foi única. Seguiriam em frente, buscando
o objetivo traçado pelo avô.
Nesse trecho da jornada, despediram-se do missioná-
rio John Marcinkus, que se separou do grupo e seguiu um
caminho diferente da expedição. Iria ao encontro da tribo
Yanomami que formulara a reclamação junto aos organis-
mos internacionais.
Por mais equipados que estivessem, não tinham se
dado conta da realidade da selva. A densidade da vegetação
que a torna toda igual, os obstáculos incontáveis que difi-
cultam a marcha e vão desgastando o ser humano, exigindo
dos componentes da expedição algo mais que força física:
força espiritual para que, em contato com a natureza, pos-
sam prevalecer sobre ela, sobrepujando-a, fazendo com que
não mais seja um inferno verde, mas uma parte da criação,
uma parte real e palpável.
A caixa de Zoé -
Seu avô sempre dizia que a selva forjava os verdadei-
ros espíritos altruístas.
“Na selva não existe o ‘eu’” — costumava dizer ele.
— “Existem seres humanos que, independentemente de
raça, credo ou cor, necessitam uns dos outros para sobre-
viver”.Começaram a marcha selva adentro caminhando
com dificuldade e se orientando através de seu equipamen-
to de GPS, suas bússolas e utilizando-se do mapa militar.
Tinham noção de onde estavam através de todas essas co-
ordenadas, mas não tinham a mínima noção de para onde
iam. A floresta permitia uma visibilidade de dez a trinta
metros no máximo, com tempo firme. As copas das árvores,
muitas delas centenárias, fechavam-se como um cobertor
vegetal com uma trama às vezes tão densa que dificultava
até mesmo a possibilidade de se ver o sol.
A jornada ia ficando cada vez mais difícil, com um
avanço lento durante o dia e com a parada obrigatória du-
rante a noite.
O maior perigo da noite não eram os animais ou os
insetos, mas a própria noite, tão escura que em noite sem
lua não se via a própria mão a um palmo de distância. Com
a lua, se sua luz pálida conseguisse atravessar as copas das
árvores, veriam um pouco mais adiante.
O epíteto de Inferno Verde era agora sentido em sua
plenitude e justificava-se plenamente.
A caixa de Zoé -
Capítulo 14
Mais oito dias se passaram e o avanço do pequeno
grupo era cada vez mais lento. Cada quilômetro representa-
va uma superação individual.
João Augusto, o mais acostumado com a selva, en-
contrava-se agora mais responsável ainda pelos outros
membros do grupo. Mas ele próprio estava à beira de um
esgotamento.
O grupo seguia um destino pré-determinado e, mes-
mo com o corpo chegando à exaustão, Zoé era um exemplo
de determinação, pois, por mais percalços que encontras-
sem pela frente, era movida por uma força invisível, imbuí-
da de uma vontade até então inabalável.
Uma coisa começou a preocupá-los. Zoé e Hélio,
através das diretrizes do diário do avô e com a ajuda do
mapa, se deram conta de que o cenário à sua volta não
era mais o mesmo. Sessenta anos depois, a floresta havia
mudado. A paisagem, por mais monótona e igual em toda
sua extensão, havia mudado nesse mais de meio século de
crescimento generalizado.
A caixa de Zoé -
Seu avô contava, na época, com um sistema de bús-
sola e anotações de mapas que hoje seria arcaico, sendo a
mesma coisa que comparar um carro fabricado há sessenta
anos atrás e um de agora com toda aquela tecnologia em-
barcada.
A única maneira que tinham de chegar ao fim da
linha era adaptar tudo aquilo que estava no diário e no
mapa com a realidade que encontravam agora. Seu sistema
GPS indicava a localização exata de onde eles estavam. As
indicações no diário mostravam exatamente onde deveriam
estar.
No diário foram registradas as latitudes e longitudes
de cada local que terminariam por indicar o local exato do
fabuloso tesouro de Montezuma.
— Não podemos nos esquecer — foi dizendo Hélio
para Zoé num dos raros momentos em que estavam a sós
— das pequenas variações que foram acontecendo no pla-
neta desde aquela época.
— Você quer dizer sobre a verticalização do eixo pla-
netário?
Zoé lembrou-se do Instituto de Geografia e História
da Universidade de Berna, Suíça, ligada à Universidade de
Neuchatel e Fribourg. Durante uma das palestras da qual
haviam participado anos antes, o cientista palestrante cha-
mava a atenção para uma das mudanças pela qual o planeta
estava passando: a verticalização do eixo terrestre.
A ciência ortodoxa, como sempre, recusava-se a acei-
tar um fato que explicaria as modificações climáticas pela
qual o planeta vem passando. Explicaria o efeito estufa sem
culpar este ou aquele país, o deslocamento das geleiras, a
- A.C. Gardini
migração de insetos de uma região para outra, pequenos
sinais que poderiam ser notados, e ainda resolveria uma
série de fenômenos para os quais os cientistas não têm ex-
plicação hoje em dia.
Numa simples brincadeira, a mesma brincadeira que
um grego inteligente chamado Eratóstenes realizara a dois
mil e quatrocentos anos atrás, Zoé havia demonstrado que
o cientista estava certo. A Terra perdera quase seis graus em
sua inclinação de vinte e três graus em relação ao equador,
modificando com isso sua declinação em relação ao eixo.
Uma vareta espetada no chão, em local determinado, com
latitude e longitude conhecidas, não determinava mais as
mesmas coordenadas de cinqüenta anos antes.
O planeta estava sofrendo modificações que tinham
que ser compensadas na leitura atualizada de mapas de ago-
ra. Se o sistema GPS é tão preciso, era necessário promover
as correções necessárias para a atualidade. Uma variação de
um grau no mapa poderia levá-los a quilômetros de distân-
cia do alvo.
João Augusto às vezes não entendia o que eles fala-
vam lendo um mapa, fazendo anotações e seguindo direção
diferente da indicada. Ou eles estavam perdidos ou esta-
riam dentro de muito pouco tempo.
A selva parecia começar a cobrar o seu tributo, assim
como o rio cobrara o seu. Zoé continuava com a sensação
de perigo eminente, mas nem por um minuto pensara em
desistir.
Nessa noite, sentados em volta da fogueira do acam-
pamento, encontravam-se apenas Zoé e João Augusto. A
conversa ia em direção ao destino da expedição. Hélio, já
A caixa de Zoé -
acomodado em sua rede de dormir, dava uma chance ao
corpo de descansar, tentando conciliar o sono com o turbi-
lhão que girava em sua cabeça.
João Augusto contava a Zoé o que era a Amazonia,
seus rios, igarapés, furos, seus duzentos e oitenta bilhões de
hectares compondo trinta por cento das reservas mundiais
de florestas.
De repente, Zoé sentiu um leve arrepio na pele e
percebeu que o luar conseguira romper aquela cobertura ve-
getal e a iluminava, deixando-a a mercê de sua luz argentina
resplandecendo em sua pele alva.
João Augusto não conseguiu prestar atenção em mais
nada e num movimento repentino colocou-se ao lado de
Zoé. Sem dar a ela tempo de oferecer resistência, colocou
seus lábios sobre os lábios dela e, segurando-a pela cintura,
apertou seu corpo, sentindo-a entre seus braços e esperando
ser retribuído com um longo beijo.
Zoé desvencilhou-se dos braços daquele que por um
instante lhe desviara a atenção do luar. Num ato reflexo,
levantou-se do tronco onde estava sentada, fazendo com
que João Augusto perdesse o equilíbrio e caísse de costas no
chão coberto de folhas úmidas. Sua surpresa transformou-
se em fúria, e quando João Augusto conseguiu se levantar,
tornou a cair sob a mão impiedosa de Zoé.
— Nunca mais faça isso — Zoé estava indignada.
— Eu estou aqui por um motivo muito mais sério do que
simplesmente uma noite poderia me proporcionar. Se você
está acostumado com um tipo de turista, saiba que nós não
estamos aqui a turismo — disse ela, possessa de raiva. —Nunca mais chegue perto de mim.
0 - A.C. Gardini
Hélio, a que tudo ouvira, dormiu naquela noite o
sono dos justos. Ele conhecia muito bem o gênio de Zoé.
Mais um dia que começava. Mais um dia de sol in-
visível, pois se não fosse a luminosidade, nunca saberiam a
diferença entre dia e noite.
Estariam se aproximando do alvo? Estariam indo na
direção certa? As correções teriam sido precisas?
Alguma coisa errada estava acontecendo. Todo dia
desaparecia alguma quantidade de mantimento. João Au-
gusto não conseguia entender o que estava ocorrendo, pois
em todos seus anos de selva sabia que não havia animais
selvagens que agissem de forma tão seletiva. A não ser o bi-
cho homem. Mas eles estavam sozinhos naquela distância
da civilização.
Hélio não confiava no guia.
Mais ou menos na hora do almoço, quando estavam
se preparando para mais uma refeição à base de macarrão
instantâneo e concentrado de proteínas, surgiu no acampa-
mento um velho conhecido deles, John Marcinkus.
Na ocasião em que se separaram, ele foi em direção
ao acampamento Yanomami, e surpreendido por uma forte
tempestade e o alto nível dos rios no local viu-se isolado e
resolveu voltar atrás e se unir novamente ao grupo.
— Você não acha um pouco suspeito que o nosso
amigo missionário tenha conseguido nos achar nessa selva
que se apresenta como impenetrável para nós? — pergun-
tou Hélio para Zoé.
— Lá vem você de novo — redargüiu Zoé. — Por
que não dá uma chance ao reverendo e acredita na história
dele?
- A.C. Gardini
— Eu não falei que não acredito, apenas quero ter
certeza do que ele está falando. E quanto à sua intuição de
perigo? Será que não tem nada a ver com essas coincidên-
cias? — insistiu Hélio.
— Por favor, Hélio, vamos recebê-lo como a um ami-
go que ele já demonstrou ser — disse Zoé, colocando um
ponto final na conversa.
Foram mais dois dias de marcha em meio a selva
fechada. Já haviam subido quase dois mil metros e encon-
travam-se em um estado deplorável pela falta de alimento,
que começava a escassear, e também pelo desgaste físico.
A selva mostrava-se mais inclemente, ainda mais
quando se subia pelas encostas montanhosas. Um passo
em falso significava a morte. Além do cuidado com a selva,
tinham que ter o cuidado redobrado com as armadilhas na-
turais do terreno, muitas delas escondidas pela vegetação.
Armaram o acampamento, dessa vez de uma forma
mais cuidadosa que das outras vezes, acreditando terem
chegado ao local do grande segredo de seu avô. Iriam passar
algum tempo ali.
Estavam quase chegando. Mas onde?
A caixa de Zoé -
Capítulo 15
Olhavam para todos os lados e não viam nada além
de selva seguida de mais selva. Todos os pontos de referência
citados no mapa não mais existiam. Como poderiam atingir
seu objetivo se não havia uma só pedra para orientá-los?
Durante todo o dia analisaram o diário e o mapa
deixado dentro daquela caixa de acácia e não conseguiam
atinar com o significado das marcas e coordenadas.
Seu avô deixara a caixa de acácia como herança sua
e quis o destino que ela lhe pertencesse. Todos os aconteci-
mentos que envolveram sua ida ao leilão não haviam sido
aleatórios, todos se entrelaçavam e de alguma forma, como
se fossem afluentes de um grande rio, acabavam por desa-
guar em seu caminho, que agora parecia chegar a um final.
O que estava reservado para ela? Quais seriam as
revelações que a aguardavam? Seu avô falava que na caixa
estava seu passado, mas este ela conhecia. E o futuro? O
que ele quereria dizer com isso?
Durante todo o dia as dúvidas flutuaram em sua ca-
beça, e mesmo com Hélio ao seu lado Zoé sentia que nada
- A.C. Gardini
sabia a seu próprio respeito. A caixa, os símbolos, números,
letras. Tudo parecia girar em alta velocidade em sua men-
te.
Ainda bem que aquele dia foi tirado para descanso,
pois assim seu corpo físico podia se recuperar um pouco do
desgaste. Mas seu cérebro não parava um só minuto.
A noite chegou e finalmente tiveram um merecido
descanso.
De uma forma amedrontada, quase submissa ao des-
tino, Zoé pediu que John Marcinkus fizesse uma oração em
agradecimento pelos resultados alcançados até aquele dia.
Estavam vivos, por enquanto.
A caixa de Zoé -
Capítulo 16
Na encosta daquela montanha que haviam alcança-
do no dia anterior havia uma série de cavernas naturais.
Talvez dentro de uma delas Zoé encontrasse as respostas
que tanto procurava.
O sol surgia de uma forma diferente. Eles estavam
acampados numa altitude que lhes proporcionava ver o
nascer do sol desde o horizonte, agora não mais encoberto
pela vegetação, mas em sua plenitude.
— Zoé, lembra-se do que significam as letras
V.I.T.R.I.O.L.? — perguntou Hélio, tentando achar uma sa-
ída para aquela situação. — Você lembra do que falamos?
— Era alguma coisa que falava de uma mudança in-
terior — Zoé lembrava do assunto, mas não do significado.
— “Visita o interior da Terra, retificando-te, encon-
trarás a pedra oculta”.Hélio se lembrava porque tinha tudo anotado em
seu caderno de anotações.
— Nós estamos no local certo olhando para o lado
errado — disse Hélio, mais uma vez obrigando Zoé a racio-
A caixa de Zoé -
cinar. — Se está escrito que é para visitar o interior da terra,
não podemos olhar para essas cavernas esperando que de
uma delas saia um seguidor de Montezuma e nos convide a
entrar. Seria muito óbvio e fácil de se chegar.
— Estou tentando entender o que você quer dizer.
Se for para visitar o interior da Terra, devemos olhar para
baixo, e não para os lados ou para cima — entusiasmou-se
Zoé, já pegando o fio da meada.
— É isso mesmo, Zoé! — a resposta veio com uma
entonação de vitória. — Nós estamos na posição exata.
Com as correções todas necessárias em função do tempo
decorrido só nós resta entender a charada por completo.
Sabemos que temos que olhar para baixo, mas o que mais?
— Eu não consigo imaginar o que mais poderia estar
escondido por trás disso tudo.
— Seu avô era um homem inteligente, tanto que
conseguiu nos trazer até aqui. Deve haver mais coisas rela-
cionadas a você e a esse enigma — Hélio ia argumentando,
tentando construir um raciocínio em cima da figura do avô.
— Como será que ele procederia?
— Ele sempre me dizia que essa caixa era meu pas-
sado e meu futuro — Zoé ia falando e lembrando como era
nos tempos em que passava horas no escritório de seu avô.
— Outra coisa. Lembro-me é de que ele determinou a mi-
nha ida para o convento das Carmelitas. Ele deixou indica-
ções precisas para que no caso de sua morte eu fosse para o
convento. Soube pouco antes de vir para cá que estava tudo
planejado e pago. Ele havia feito uma grande doação com a
recomendação que eu fosse educada por elas na sua falta.
- A.C. Gardini
— Mas qual seria a pista por trás disso tudo? — in-
quietou-se Hélio.
— O convento Carmelita pode ser uma pista, pois
me lembro agora do piso da entrada, todo feito em már-
more, representando um pelicano regurgitando alimento na
boca de seus filhotes dentro do ninho. Meu avô sempre me
dizia que ele se sentia um pelicano me contando histórias,
e eu achava que era porque ele era grande e eu, um filhoti-
nho no ninho. Nunca havia pensado nisso de outra forma
— Zoé agora começava a entrelaçar toda sua vida com a
vida de seu avô.
— Estou percebendo que você vai em direção ao
mesmo raciocínio de seu avô — admirou-se Hélio com a
seqüência dos acontecimentos. — Também o pelicano ali-
mentando seus filhotes é um símbolo muito forte na ma-
çonaria.
— Você deve saber, pois quem estudou religião foi
você, e não eu — disse Zoé, empolgada por descobrir mais
uma coisa que poderia ser outra pista. — Mas o nome Car-
melitas tem sua origem nas Escrituras, mais precisamente
com Elias, que é o fundador mítico da Ordem dos Carme-
los, significando “a força de Deus”. Elias “adormece sob
uma árvore e recebe de um anjo um pão e água, e tendo
comido, sobe no monte Oreb”. Como se chama esta mon-
tanha que subimos?
— Beró, de acordo com os indígenas — responde
Hélio, aguardando mais explicações.
— Então estamos no local exato. Basta apenas loca-
lizarmos alguma árvore ou porção de água que deve marcar
o ponto exato. Você, por um acaso, localizou alguma água
A caixa de Zoé -
aqui por perto? — Zoé encontrava-se totalmente absorta
em suas especulações.
— Tem uma queda d`água aqui perto, mas por quê?
— Porque Elias comeu o pão, mas não se fala que ele
bebeu a água. Então deduzo que se acharmos a água, acha-
remos, de alguma forma, a entrada para o local sagrado.
— Como poderia ser marcado um lugar sagrado?
Como os Astecas marcariam o lugar de seu tesouro? — Hé-
lio questionava não mais a Zoé, mas fazia as perguntas em
voz alta, como querendo ouvir a própria voz e tentar res-
ponder suas próprias perguntas.
— Algo me diz que não foram os Astecas que marca-
ram o local sagrado. Aquela intuição feminina me diz que
outras pessoas fizeram isso.
E Zoé sentiu um arrepio.
A caixa de Zoé -
Capítulo 17
Enquanto procuravam chegar ao local da pequena ca-
choeira que Hélio havia visto pouco adiante do acampamen-
to iam levantando mais conjecturas a respeito de como o te-
souro foi parar em um lugar tão distante de Montezuma e ao
mesmo tempo ter ficado escondido durante tantos anos sem
que ninguém tivesse qualquer conhecimento de seu paradei-
ro. Como tantas pessoas poderiam ter carregado um tesouro
imenso e nunca ter surgido comentário algum, a não ser as
lendas que envolviam o maravilhoso tesouro perdido?
— Veja! — alertou Hélio. — Estamos chegando na
cachoeira!
Era uma nascente que formava uma queda d`água
fluindo por debaixo de uma grande árvore formando um
lago fundo e com uma série de pedras colocadas dentro dele
em espaços suficientes para formar um caminho. Poderiam
andar com água pelos joelhos.
Quando chegaram, quase não acreditavam no que
os olhos viam. A árvore “debaixo da qual Elias deitara” e a
água escorrendo para formar o lago.
A caixa de Zoé - 0
Colocando-se de frente para o lago, ao procederem
uma limpeza dos galhos e folhagens acumulados ali pelo
tempo perceberam uma estrutura de pedras em forma de
semicírculo em torno de todo o lago, tão bem colocadas que
não se poderia admitir o acaso da natureza em tão perfeita
harmonia de conjunto.
— Você contou quantas pedras estão arrumadas em
volta do lago? — perguntou Hélio, forçando Zoé a deixar
seus pensamentos de lado. — Repare que são em número de
nove, novamente um número relativo ao Mestre Perfeito.
Zoé, prestando atenção à sua volta, procurava por
algum detalhe que pudesse remetê-los a alguma entrada se-
creta ou algo parecido.
— Preste atenção, Zoé — alguma coisa mais chama-
ra a atenção de Hélio. — Das nove pedras que circundam o
lago, quatro são redondas e cinco de forma oblonga.
— Não vai me dizer que essas pedras querem dizer
algo?
— Desde quando você acredita em acaso? Ou será
que elas caíram nessa posição sem querer? — Hélio agora
anotava num papel a quantidade de pedras e seus respec-
tivos formatos. — Veja bem, temos cinco oblongas, ou, se
você preferir, são cinco barras e as outras quatro são redon-
das. Para os Astecas a forma oblonga vale cinco e a forma
redonda vale um.
— Pera aí — interrompeu Zoé. — Isso tudo tem a ver
com maçons ou com Incas? Só faltava Montezuma ser um
maçom! Essa é demais!
— Se você pensar um pouquinho, ninguém na rea-
lidade detém a verdade. Se nos apegarmos apenas aos Ma-
00 - A.C. Gardini
çons, ou Rosa Cruzes, ou seja lá que seita for, Jesuítas ou Opus
Dei, Judeus, Espíritas, Pentecostais, veremos que todas essas
seitas têm seus segredos que buscam, em essência, a trans-
formação do ser humano em uma pessoa melhor — Hélio ia
falando como um professor com anos de estudo e pesquisa.
— Acontece que noventa por cento dos homens que entram
nessas Fraternidades não entendem seus objetivos e sim-
plesmente ficam nela para receberem benefícios materiais
e poderem dizer aos outros: “Eu pertenço a tal ou tal seita.
Tomem cuidado comigo”.— Quer dizer que o objetivo delas é um só. Ele sem-
pre me dizia que muitos são os caminhos, mas a verdade é
uma só.
— Quem dizia isso? Jesus? — perguntou Hélio, dis-
traído.
— Foi de meu avô que primeiro ouvi dizer, depois
descobri que no Novo Testamento também havia a mesma
coisa.
— Esse papo de que não existe uma única verdade
e de que cada um tem a sua é um pensamento egoísta do
homem profano — Hélio agora se concentrava em busca de
uma solução. — O iniciado sabe que existe uma verdade e
ela pertence ao Ser Supremo. Se a direção que ele tomar for
a mesma do Criador, então ele será um abençoado. Se for
a direção oposta, ele será um ser das trevas, pois estará se
afastando da Luz.
— Você está querendo dizer que todos aqueles que
são iniciados descobrem que existe uma só verdade e uma
só direção?
— Exatamente isso. Todos aqueles que se tornaram
dirigentes de seus povos de alguma forma foram iniciados
A caixa de Zoé - 0
nos mistérios sagrados que o homem tanto busca como
grandes segredos que o levarão à fama e glória terrena.
— Se eu estou entendo, a verdadeira fortuna não
está neste plano?
— Você está entendendo certo — disse Hélio, sen-
tando-se em uma pedra como se fosse um dos antigos filó-
sofos, em seus jardins das Academias, ensinando aos seus
discípulos. — Temos notícias disso desde antes da primeira
dinastia do Egito.
— Agora que você falou em Egito, lembro-me das
tardes em casa, quando era pequenina, os livros que meu
avô mostrava cheios de gravuras de faraós, pirâmides, figu-
ras de pássaros, serpentes e as histórias que ele contava.
— Sem você perceber, seu avô estava te iniciando,
pois esses símbolos passaram a fazer parte de sua compre-
ensão e de seus conhecimentos adquiridos.
— Como assim? — quis saber Zoé.
— Conforme você adquire conhecimento, os símbo-
los vão mudando o seu significado, novas verdades vão se
revelando com as mesmas figuras — Hélio lembrava-se das
palestras de Religião Comparada sobre os símbolos variados
e sempre iguais para todas elas. — Os símbolos se distin-
guem por quatro sentidos diferentes: o Literal, o Alegórico,
o Moral e o Anagógico, este último destinado a elevar o
espírito às coisas do alto.
— Acho melhor conversarmos outra hora sobre
isso.
— Se seu avô queria dizer algo com tudo isso, foi de
uma forma bem esperta — cada vez mais Hélio se admirava
com o velho Maçom.
0 - A.C. Gardini
— O que ele poderia dizer com essas pedras, traço
e ponto. Parece até código Morse — disse Zoé, meio desa-
nimada.
— Já que você perguntou, aposto como você sabe a
resposta — Hélio tinha certeza que Zoé era detentora de
mais conhecimentos do que ela própria poderia imaginar.
— Por que as cinco pedras e mais quatro?
— É muito simples. Isso é Matemática, não Geo-
grafia, nem História — respondeu Zoé com uma expressão
que era a mesma que tanto divertia seu avô, aquelas feições
de quem está pensando profundamente, se concentrando
num problema cuja solução deverá ser a simplicidade de
raciocínio, e não sua complexidade. — Se temos cinco pe-
dras, que você disse valer cinco para os Astecas, multipli-
cando-as teremos o número vinte e cinco. Se pegarmos as
quatro redondas valendo um cada uma, teremos quatro. A
única diferença é que não poderemos somar umas com as
outras, pois são grandezas diferentes, oblongas e redondas
— Zoé começava a se empolgar, pois nunca teria chegado a
essas conclusões se não fosse a chave fornecida pelo amigo.
— Teremos que extrair umas das outras e chegaremos ao
número vinte e um, que é o resultado de três vezes sete.
Três eu sei que é o número do aprendiz, do iniciado, e sete é
o número pitagórico chamado de Veículo da Vida Humana.
Eu sei porque, como sempre gostei dele, andei estudando
um pouco a respeito.
— Outra coisa que podemos juntar nisso tudo que
você acabou de dizer é: cinco pedras referem-se ao grau de
Companheiro e o número quatro refere-se à Marcha do
Companheiro — disse Hélio, admirado com o que Zoé aca-
A caixa de Zoé - 0
bara de falar. — Mas o que você disse? Sete é o veículo da
vida humana? E o que significa seu nome em grego?
— O Sopro da Vida. Aquele sopro inicial que dá a
vida aos seres humanos — respondeu Zoé, espantada. —Quer dizer que meu avô sabia que um dia eu estaria aqui.
Eu sou o número sete e estou acompanhada de um três,
você, um Aprendiz.
— E se você reparar na lateral das pedras desse lago
— completou Hélio, virando-se completamente para a água
— vai ver ali na lateral, abaixo da linha d`água, um encaixe
retangular. Dê-me a caixa aqui.
Ao mesmo tempo em que falou, pegou a caixa de
madeira de acácia e mergulhou-a na água. A acácia é co-
nhecida por sua indestrutibilidade até mesmo quando em
contato com a água por centenas de anos.
Como por um passe de mágica, a caixa se encaixou
no vão previamente limpo por Hélio e ficou presa, como se
garras a segurassem.
Ficaram um tempo se olhando, Zoé e Hélio, sem en-
tenderem o que se passava. Por que a caixa estaria se encai-
xando naquele local?
A caixa de Zoé - 0
Capítulo 18
Aproximava-se a hora do almoço, mas nenhum dos
dois conseguia pensar em parar naquele instante e voltar
para o acampamento. Estavam tão absortos em seus pen-
samentos e descobertas que não haviam reparado no mis-
sionário, o homem de Deus que os acompanhara de longe
até aquele ponto.
O sol estava brilhando no zênite e seus raios mer-
gulharam na água verticalmente. O dia era único no ano.
Solstício de verão. No mesmo instante seus raios, de uma
forma paralela, entraram através da água cristalina do lago
e tocando na tampa da caixa de acácia mergulhada na água
fizeram com que esta, iluminando-se, refletisse através da
estrela de seis pontas, projetando o espectro solar na parede
da montanha, pouco acima de onde estavam, através da
água que escorria em cascata.
Ao verem aquele espetáculo de cores se projetando
na parede da montanha, Zoé e Hélio não tiveram dúvidas
quanto ao significado de tudo aquilo. Estavam ambos em
companhia um do outro. Agora eram companheiros e a
A caixa de Zoé - 0
Marcha do Companheiro, o sinal da cruz invertido, os le-
varia direto através de pedras colocadas no fundo do lago a
um ponto por baixo da cascata que teimava em continuar
caindo durante todos esses anos e que agora era iluminado
pelo espectro solar.
Um pé colocado em uma pedra errada os levaria fa-
talmente ao fundo do lago. Através da água que caía no lago
puderam divisar onde o arco-íris os levava. Na parede lisa,
um furo hexagonal marcava o centro do espectro solar.
— Espere um pouco — disse Zoé e, ato seguinte,
retirou seu medalhão do pescoço e o colocou ali, no furo
da pedra.
O espectro da luz que chegava até ali iluminou o
medalhão ao mesmo tempo em que ouviram um ruído. Pa-
recia que a montanha estava se rasgando inteira. Um bloco
maciço de rocha deslocou-se da frente deles e lhes revelou
uma escada. Nesse instante viram John Marcinkus.
— O que você faz aqui? — surpreendeu-se Zoé ao
ver o missionário surgir como se fosse do nada.
— Durante anos sonhei com este momento — vo-
ciferou John, empunhando um revólver. — Minha família
vem se dedicando à busca deste tesouro desde o princípio
dos tempos. Se você pensa que o seu avô é quem descobriu
este tesouro está muito enganada. Esse tesouro pertence à
nossa ordem e nada fará com que o destino dele seja dife-
rente do que planejamos esse tempo todo. Quando seu avô
morreu, não consegui tirar dele a localização do tesouro,
mas tínhamos certeza de que ele, de alguma forma, havia
deixado pistas para alguém da família, e você era a única
0 - A.C. Gardini
sobrevivente. Só esperamos. Hoje realizo o que meus ante-
passados não conseguiram.
Zoé encontrava-se totalmente imobilizada pela sur-
presa e ainda mais pelas palavras de John. Hélio, impassível
sob a mira da arma, ficava esperando uma oportunidade de
reagir.
— Você é muito parecida com seu avô — continuou
John. — Quando ele estava morrendo, me pareceu tranqüi-
lo, parecia que escarnecia da nossa incapacidade de locali-
zar o que ele já sabia como descoberto há muito tempo, por
ele e pelo Marechal.
Zoé não se conteve. Explodiu de raiva e gritou:
— Então foi você que matou meu avô! Quando eu
o vi agonizando debaixo daquele fogo, ele olhou para mim,
parou de gritar e sorriu. Mesmo na hora da morte ele sabia
que eu estaria com ele e que vocês, seja lá o que vocês fo-
rem, não iriam conseguir nada.
— Nós somos o seu destino, nós somos aqueles que
vieram para herdar o tesouro de Montezuma — John tinha
os olhos injetados de sangue, totalmente fora de si. — Se
sucedemos a De Molay, este tesouro agora nos pertence por
direito.
— John! — gritou Zoé. — Você ficou louco! O que
estiver aí dentro pertence à humanidade. É um patrimônio
da humanidade. Não existe motivo para que fiquemos com
ele.
— Você é muito inocente, não é mesmo, Professora?
— ironizou John. — Pensar que esse ouro todo que está aí
dentro é da humanidade! Você acha mesmo que vai tudo
para um museu qualquer de um paísinho de terceiro mun-
A caixa de Zoé - 0
do? Louco não sou eu, que esperei pacientemente esses
anos todos, te acompanhando onde quer que você fosse,
você e esse idiota do seu amigo.
— Você é maluco, isso sim — agora era Hélio quem
gritava. — Se pensa que pode simplesmente ficar com tudo
sem que venham atrás de nós está muito enganado.
— Meu tio amargou um longo exílio por causa desse
tesouro — disse John, desabafando e desatando um nó há
anos em sua garganta. — Desde que ele envolveu o Ban-
co do Vaticano com a Loja Maçônica P2 e ficou sabendo
da existência desse tesouro, movimentou mundos e fundos
para que pudéssemos localizá-lo.
John estava fora de si, e continuou.
— Durante anos ajudou na criação e na manutenção
de organizações que entraram por toda esta selva atrás de
um vestígio, um pequeno vestígio que fosse. E agora vêm
vocês, almofadinhas da cidade grande, gente sem a mínima
noção do que passamos estes anos todos por causa de Mon-
tezuma, e querem roubar o que é nosso por direito. Durante
anos vasculhando documentos escondidos pela inquisição,
que por mais que tivessem exterminado os selvagens, nunca
conseguiram tirar de qualquer um deles uma informação
confiável.
— Virão nos procurar aqui. Todo o mundo científico
está de olho em nós, no resultado de nosso trabalho — gri-
tou Zoé.
— Não se iludam com isso. A selva vai acabar com
vocês da mesma forma que acabou com seus amigos no rio
— John quase não conseguia controlar a risada nervosa,
quase insana. — A única coisa que vai restar da expedição
0 - A.C. Gardini
da bela doutora será um sinal de GPS bem longe daqui e
um monte de roupas para provar que as formigas amazôni-
cas são carnívoras. A imprensa adora essas notícias.
— Você nunca vai se safar. Você precisa de nós pra
voltar — disse Hélio numa última tentativa de salvar suas
vidas.
— Mais um troxa no meu caminho — John ria des-
bragadamente. — Se o velho morreu sem revelar o cami-
nho, você acha que serve para alguma coisa agora que me
trouxeram até aqui?
John não se continha de tanto rir, esquecendo-se por
um momento da arma em sua mão. Hélio aproveitou esse
instante de distração e se jogou sobre ele, tentando segurar
a arma que estivera apontada para ele o tempo todo.
Os dois rolaram pela escada, caindo na escuridão dos
degraus abaixo. O único som que se ouviu foi o da respira-
ção dos dois em luta e em seguida um estampido.
0 - A.C. Gardini
Capítulo 19
— Hélio! — gritou Zoé em desespero, já imaginando
seu amigo todo ensangüentado ao pé da escada.
— Fique tranqüila, Professora. Eu estou bem e já es-
tou subindo. Agora é a sua vez.
Era a voz ofegante de John.
Zoé tentou correr, mas se viu impedida por Amoroso,
o cão-de-guarda de João Augusto, que chegara exatamente
naquele instante ao lado dela.
— O Patrão mandou vir aqui tomar conta da senho-
ra, pois ele não confia no missionário — cochichou Amoro-
so entre dentes.
Fez a Zoé um sinal de silêncio com o dedo indicador
sobre a boca e colocou-se ao lado da entrada da caverna.
Quando John se precipitou para o lado de fora, com a cami-
sa ensangüentada pelo sangue de Hélio e apontando a arma
diretamente para Zoé, o gigante agarrou-o pelo pescoço e
numa gravata mortal trouxe o corpo dele para junto do seu,
apertando-o cada vez mais.
- A.C. Gardini
John era bem preparado para esse tipo de situação
e conseguiu reagir. Jogando-se no chão, obrigou o gigante a
se curvar e a soltá-lo. Levantou-se num salto, como impul-
sionado por uma mola, e frente ao índio levantou a arma e
disparou uma vez.
O gigante estremeceu ao receber o impacto direto
no peito, mas não deteve sua marcha em direção ao gringo.
Mais um, dois, três, quatro estampidos, e desta vez o gigan-
te dobrou os joelhos em frente ao missionário e, agarrando-
se em suas pernas, caiu lentamente no chão pedregoso.
John se livrou daquelas mãos que mais pareciam um
alicate e abaixou-se bem juntinho da cabeça de Amoroso,
sussurrando em seu ouvido:
— Sempre tive vontade de fazer isso com você, gran-
dalhão. Quero vê-lo sofrer até o último suspiro.
Novamente John levou a arma em direção à cabeça
do índio, mas antes que pudesse disparar, o gigante, num
último alento de força, levantou os braços e agarrou a ca-
beça de John com uma das mãos, enquanto com a outra
segurou seu ombro.
Os olhos de John se arregalaram antes que Amoroso,
o gigante, conseguisse torcer seu pescoço e deixasse cair o
corpo inerte sobre as pedras.
Zoé correu em socorro do gigante que jazia caído no
chão, mas não pôde mais fazer nada pelo amigo que tivera
durante tão pouco tempo.
— Professora — balbuciou Amoroso.
— Por favor, Amoroso, não fale nada. Daremos um
jeito de tratá-lo e levá-lo de volta para a cidade.
A caixa de Zoé -
— Não se preocupe comigo, Professora. A minha dí-
vida está paga. Não tenho mais nada a fazer aqui. Obriga-
do, viu? E agradeça ao Patrão por ter sido tão bom comigo
todo esse tempo.
Zoé não conseguiu segurar as lágrimas. Tivera muito
pouco contato com aquele homem, mas mesmo assim não
poderia esquecer das palavras de seu avô: “Na selva se reve-
lam os verdadeiros seres humanos”.Atraído pelos tiros, surgiu agora João Augusto, cor-
rendo pela trilha em direção a Zoé. Quando chegou ao lado
dela, viu o corpo de seu amigo dos últimos anos, o homem
de quem ele salvara a vida e que se tornara seu guardião.
Cinco furos no corpo dele pelos quais escorria o sangue e a
vida daquele que ao seu lado tinha passado bons momen-
tos. Agora, ao lado do missionário americano, nada mais
restava além de lembranças.
— O que houve, Zoé? Onde está Hélio?
— Lá embaixo — respondeu ela, apontando para
a entrada da gruta aberta pelo deslocamento da pedra. —John o matou.
— Pegue uma lanterna. Temos que descer e verificar
o que aconteceu.
João Augusto colocou-se à frente de Zoé e começa-
ram a descer as escadas. A escuridão, rompida apenas pela
luz das lanternas, parecia que tinha massa, viscosa, pega-
josa, tão densa que grudava em suas roupas. O ar viciado,
difícil de respirar, ia se tornando mais pesado à medida que
desciam os degraus, vinte e seis no total.
Ao chegar ao final da escada, estranhamente não vi-
ram o corpo de Hélio. Depararam-se com um patamar e
- A.C. Gardini
uma porta de bronze ligeiramente aberta dando acesso a
outra escada com outros vinte e seis degraus escavados na
rocha. Estranhamente, quanto mais iam descendo mais fá-
cil ia se tornando a respiração e por algum motivo que não
conseguiam visualizar, a câmara no final da escada estava
iluminada.
Adentraram um salão profusamente iluminado por
pedras que emitiam uma luz, sem calor, sem que incomo-
dasse os olhos, sem que pudessem perceber de onde vinha
a fonte de energia que fazia com que esse espetáculo se
tornasse tão mágico.
Não foi preciso que seus olhos se acostumassem na-
quele local, tal a suavidade das luzes irradiadas das pare-
des.
Zoé e João Augusto não conseguiam mover um mús-
culo, emitir um som. A respiração suspensa como se tives-
sem sido surpreendidos por alguma coisa muito superior às
suas forças.
Olharam o salão sem entender direito o que viam.
Tudo era brilho. Para onde quer que olhassem viam ouro,
pedras preciosas, estátuas, caixas com gemas dos mais va-
riados matizes, jóias de ouro com pedras incrustadas, pei-
torais de ouro puro, tijolos, correntes de ouro, prata em
profusão e de todos os formatos, facas sacrificiais, lanças,
todos os tipos de armas brancas, roupas, escudos. Tudo isso
era visto agora pela primeira vez nesses últimos mil e qua-
trocentos anos.
Uma caixa retangular, com ornamentos dourados,
num altar colocado à entrada do salão, à direita de quem
estivesse descendo as escadas, chamou a atenção de Zoé.
A caixa de Zoé -
Era parecida com a caixa que estivera durante anos com seu
avô e que ela havia arrematado no leilão.
Zoé, assustada e surpresa, pegou a caixa e ao exami-
ná-la percebeu que era idêntica à sua caixa. Inclusive o tam-
po com a estrela de seis pontas. Agora, mais familiarizada
com as coisas de seu avô, levou a mão ao peito buscando o
medalhão e instantaneamente entrou em desespero, tatean-
do mais rápido pelo peito e pelo pescoço, só conseguindo
encontrar um vazio e uma angústia que fizeram com ela
soltasse um grito de pânico.
— O que foi? — assustou-se João Augusto.
— Meu medalhão, eu o perdi — Zoé não sabia mais
para onde olhar ou o que fazer buscando pelo pingente.
— Acalme-se, Zoé. Provavelmente você o deixou cair
lá fora.
— Espere! Eu o deixei na fenda da pedra, debaixo
da cascata — disse Zoé, sentindo um alívio imenso. — Na
confusão dos tiros eu o deixei na pedra.
— Pra que você precisa dele? — João Augusto não
sabia da existência do medalhão mágico de Zoé.
— O medalhão me foi deixado como herança de meu
avô e tem sido a chave que nos trouxe até aqui.
— Como assim? Seu medalhão é uma chave?
— Exatamente! Através dele conseguimos abrir uma
caixa igual a esta que continha o diário e um mapa desta
região, deixados por meu avô. Como ele chegou em minhas
mãos é uma outra história.
Zoé não conseguia encaixar seus pensamentos den-
tro do cérebro com tantas novidades. A caverna, o desapa-
recimento de Hélio, sua vida nas mãos de um missionário
- A.C. Gardini
maluco, a morte de Amoroso, o tesouro. Era muita coisa
acontecendo de uma só vez.
— E agora, Doutora? O que pretende fazer com tudo
isso? Como é que vamos tirar isso daqui? — perguntou João
Augusto.
Zoé sentiu uma coisa ruim na entonação de João
Augusto. Olhou-o de frente, debaixo daquela iluminação, e
era como se conseguisse vê-lo com uma nuvem em volta de
todo seu corpo. Ela estava sendo capaz de ver a aura que o
envolvia.
A aura dos seres humanos, de uma forma geral, é
em tons azuis, mas a aura de João Augusto apresentava-se
escura, uma nuvem negra o recobria. A ambição, a mentira
e a ganância tomaram conta dele, e agora ela conseguia ver
através de sua aura a realidade de seus sentimentos.
— Eu não sei o que fazer — disse Zoé, tentando dis-
farçar o nervosismo. — Teremos que pedir ajuda de alguma
forma para podermos sair daqui.
— Pedir ajuda? Como? — João Augusto começava a
se mostrar irritadiço. — O que vamos fazer com todo esse
tesouro?
— Vamos? Como assim “vamos”?João Augusto começou a, vagarosamente, se aproxi-
mar dela. Em volta deles, várias caixas com tesouros, mas
também com uma quantidade enorme de armas. Quais se-
riam as intenções dele?
— Você tem razão, Doutora. Não vamos. EU vou.
E João Augusto, num movimento brusco, apanhou
uma faca de sacrifícios de ouro puro e avançou em direção
de Zoé.
A caixa de Zoé -
— Você acha que esse tesouro todo é para você? Que
foi o vovô que deixou? Você é doida! — disse ele, avançan-
do mais.
Com a mão armada, envolto naquela nuvem negra,
com suas feições se transfigurando em um verdadeiro demô-
nio, ele avançou em direção a Zoé. Num gesto derradeiro,
levantou o braço para o ataque final. Ouviu-se um silvo cor-
tando o ar, e de repente o braço não desceu em seu alvo.
O agressor ficou paralisado. Suas feições foram se trans-
formando, voltando àquela de surfista de pororoca, ami-
go de todos, quase angelical, lívida, exangue. De seu peito
sobressaiu uma ponta de lança de ouro puro, agora toda
manchada de vermelho. João Augusto tombou com o rosto
voltado para o chão. Zoé, que havia se protegido com o
braço, levantou o rosto e soltou um grito:
— Hélio!
Seu amigo, com o ombro esquerdo ferido, surgiu por
detrás de uma pilha de ouro cambaleando ainda pelo esfor-
ço do arremesso da lança.
— Olá, Princesa — disse ele, e dando um passo dei-
xou-se cair sobre os joelhos em tempo de Zoé se aproximar
e ampará-lo. — Sentiu minha falta?
— Ora, seu.... — Zoé tinha vontade de bater em seu
amigo que lhe pregara tamanha peça. — Como é que você
está aqui? Você não morreu?
— Morri sim, mas voltei para te salvar — Hélio san-
gra, mas não perde a graça. — Não me faça rir, porque dói.
Zoé teve tempo de ver, agora que tinha o amigo nos
braços, a aura de um azul intenso que emanava dele. No
local do ferimento sua aura apresentava uma tonalidade
- A.C. Gardini
vermelha intensa, mas todo o resto transmitia uma paz,
uma tranqüilidade que fez com que Zoé tivesse certeza de
que seu amigo ficaria bem.
- A.C. Gardini
Capítulo 20
Retornaram ao acampamento e Zoé, tendo cuida-
do do ferimento de Hélio, preparou-lhe um belo macarrão
instantâneo, que naquela altura dos acontecimentos era o
verdadeiro manjar dos deuses.
Os dois agora estavam sozinhos. A noite nem bem che-
gou e já os encontrou adormecidos. O cansaço os vencera.
O sol já ia alto quando acordaram. Os acontecimen-
tos do dia anterior pareciam um sonho, mas quando Zoé
saiu de sua barraca, percebeu que o que parecia um sonho
era a realidade a ser vivida. Correu para a barraca de Hélio
e a encontrou aberta. Assustada, levantou a cabeça e procu-
rou com os olhos onde poderia estar seu amigo. Não havia
vestígios de animal que tivesse entrado ou sinal de luta.
Onde se metera Hélio?
— Hélio! — chamou ela a plenos pulmões.
Seu grito ecoou na selva e obteve como resposta uma
revoada de araras azuis.
De repente surgiu Hélio Cortês, vindo da cascata,
com um sorriso nos lábios.
0 - A.C. Gardini
— Acordou, Princesa? — como sempre, ele brincava
com ela. — Vou preparar nosso café da manhã.
— Onde você estava?
— Fui fazer três funerais e um casamento — respon-
deu ele numa alusão a um filme que haviam assistido havia
pouco tempo.
— Então é verdade! Não foi um sonho — disse Zoé.
— É verdade. Mas já está tudo resolvido. Resta saber
agora o que faremos.
— Como assim?
— O que fazer com tanto ouro?
— Vamos tomar um café primeiro.
Zoé não conseguia resistir ao café feito por Hélio.
Mas para surpresa sua, Hélio havia organizado o café da
manhã dentro da caverna, em meio aos tesouros escondi-
dos.
Envoltos pela iluminação natural refletida por aque-
las pedras, eles próprios emitiam uma luz azulada. Era má-
gico! Estavam sentados em milhões em ouro e pedras pre-
ciosas, tomando um café liofilizado horroroso, mas felizes.
Zoé lembrou-se da caixa no altar de entrada que ha-
via caído no chão durante a confusão do dia anterior.
— Hélio, deixei meu medalhão na porta de entrada.
Ontem, quando abrimos a porta, acabei deixando-o colo-
cado lá.
— Eu tenho a impressão que então está perdido,
pois hoje eu não o vi na porta — Hélio usava um tom sério.
— Mas se você usar algumas palavras mágicas, poderá tê-lo
de volta num piscar de olhos.
— Eu não acredito que você o pegou?
A caixa de Zoé -
— É lógico! Com tantos caras maus em volta da gen-
te, você achou que eu ia deixar a chave na porta?
— Você nunca gostou deles mesmo, não é?
— Nunca.
— Por favor, me dê o medalhão.
— Muito bem, disse as palavras exatas.
Hélio ria, e enfiando a mão no bolso da calça tirou
o medalhão e entregou-o a Zoé, que já estava com a caixa
no colo.
— O que será que tem aqui dentro? — Zoé estava
um pouco assustada, pois a última caixa que abrira trouxera
os dois até os confins do Amazonas.
— Vamos logo, Zoé! Abra e pare de fazer onda. —apressou Hélio, ameaçando tirar a caixa do colo dela.
— Você me deu uma boa idéia — disse Zoé com o
rosto se iluminando. — Por favor, Professor, abra pra mim.
Assim você será o responsável pelo que tiver aí dentro —concluiu ela, entregando a caixa para Hélio.
Hélio não se fez de rogado. Pegou o medalhão, in-
troduziu-o no espaço hexagonal no meio da estrela de seis
pontas e pressionou as laterais. A caixa se abriu e revelou
mais algumas folhas de pergaminho, amareladas como as
que compunham o diário de seu avô.
— Veja! — exclamou Zoé. — As folhas que faltavam
no diário.
Hélio pegou as cinco folhas e as entregou a Zoé.
Com as mãos trêmulas, ela começou a folheá-las. A história
de seu avô continuava com mais surpresas do que ela pode-
ria imaginar.
0 - A.C. Gardini
“Durante uma das muitas expedições no interior da
selva, eu, ainda jovem, saudável e bonito tinha tido um
contato com uma tribo em vias de extinção. Não eram
índios ou selvagens de alguma etnia desconhecida. Eram
mulheres guerreiras totalmente independentes em meio à
selva hostil. A maioria delas, morenas, vestia-se com saiotes
curtos feitos de tecido grosso e usavam um tipo de bota que
cobria até o joelho.
Não amputavam o seio esquerdo, como diziam as
lendas, para poderem usar seus arcos e flechas. Simples-
mente quando saíam para caçar, a roupa era um pouco mais
apertada para não atrapalhar os movimentos nem agarrar
nos ramos da floresta.
Falavam uma língua estranha, que posteriormente
identifiquei como sendo uma mistura de Latim Arcaico
com Nauatle, a língua dos Astecas.
Pela minha juventude e pela harmonia estética que
eu apresentava, fui escolhido para gerar uma filha com a
rainha delas.
Essas mulheres, conhecidas como guerreiras, esta-
vam em fase de extinção. Eram em número reduzido e pa-
rece que tinham consciência de sua fragilidade frente ao
futuro. Durante algum tempo fui mantido na tribo, até que
se confirmasse a gravidez da rainha.
Contrariando o ritual secular delas, não fui morto.
Ao contrário, assim que a rainha confirmou seu estado de
gravidez libertou-me com a condição de que eu voltasse à
aldeia para ter contato com a menina que nasceria. Elas ti-
nham métodos secretos de só gerarem filhas, evitando assim
qualquer inconveniente com o nascimento de um menino.
A caixa de Zoé -
Durante alguns meses, retornei às minhas ativida-
des normais junto com meu comandante. Somente nós
dois tínhamos conhecimento de tudo aquilo. Quando che-
gou o tempo de retornar, ambos fomos até o local que
havia sido combinado anteriormente e de lá levados para
a aldeia. Durante essa estada, fiquei sabendo como tinha
sido escolhido: através de certas pedras que emitiam uma
estranha luz natural e totalmente sem calor. Debaixo da-
quela luz elas podiam saber as verdadeiras intenções das
pessoas.
Entre elas não havia inveja, egoísmo ou ambição,
pois qualquer sentimento negativo era mostrado através
daquela luz da pedra e a pessoa era obrigada a modificar
seu padrão de pensamento até ficar de acordo com o res-
tante da aldeia.
— Fico imaginando como seria constrangedor a uti-
lização de tais pedras na nossa civilização.
— Eu queria ver um negócio desses funcionando na
sala do Congresso Nacional, lá na capital — Hélio não po-
deria deixar escapar a oportunidade de uma blague.
— Cale-se e preste atenção — ralhou Zoé.
O diário continua a história contando que durante
essa segunda visita à aldeia foram alertados de que toma-
riam conhecimento de um segredo que havia sido responsá-
vel pela morte de milhões de seres humanos no decorrer da
história da humanidade.
A responsabilidade que estava sendo repassada a eles
era não só do segredo, mas também da preservação do co-
nhecimento que havia sido guardado junto com o ouro.
- A.C. Gardini
Foram levados até o lago e conduzidos através da
passagem por trás da cascata. Desceram a escada e pas-
saram pela porta de bronze até a câmara do tesouro. Lá,
passados os primeiros instantes para poderem se refazer da
surpresa, foram sendo apresentados ao conteúdo das câma-
ras que compunham aquele complexo. Revelaram-se várias
câmaras, todas cheias de tesouros.
O mais importante não era o ouro, mas o conheci-
mento científico escondido. Rolos e rolos de pergaminhos
escritos com tinta indelével, coloridos, de todos os tipos,
empilhados em prateleiras muito bem organizados e apa-
rentemente catalogados. Era uma imensa biblioteca.
Aquelas mulheres não eram apenas uma tribo de
guerreiras, elas eram as guardiãs do segredo de Montezuma.
Quando o Imperador se viu ameaçado, enviou seu tesouro
ao único lugar no mundo onde sabia que ele estaria a salvo.
As Amazonas o esconderiam e nem mesmo ele ou qual-
quer de seus homens saberiam onde estaria. Por isso tantos
morreram sem revelar o local secreto. Não sabiam realmen-
te onde estava, e quando falavam nas mulheres guerreiras,
eram mortos de forma mais rápida, pois achavam que ha-
viam enlouquecido.
Seu avô e o velho General receberam essa tarefa com
a promessa de que não divulgariam esse segredo. A humani-
dade ainda não estava preparada para tanto poder.
Os Astecas tinham grande conhecimento científi-
co em arquitetura, astronomia, hidráulica, medicina, mas
eram, principalmente, um povo altamente espiritualizado e
com poderes psíquicos que ultrapassavam qualquer conhe-
A caixa de Zoé -
cimento atual. Eles haviam herdado de seus antepassados,
os Atlantes.
Quando houve o afundamento definitivo de Atlân-
tida, com seus sessenta e quatro milhões de mortos, seus
cientistas e sua elite intelectual dispersaram-se pelo mundo,
e para que esses cataclismos não mais afetassem seu conhe-
cimento, guardado em rolos de pergaminhos, decidiram os
levar para locais diferentes em diferentes partes do mundo.
Parte para os altos da cordilheira do Himalaia, parte para o
Egito, codificado na grande pirâmide de Gizé, parte para as
altas montanhas da América do Sul.
Esse conhecimento agora estava nas mãos das Ama-
zonas. Estava também nas mãos de seu avô.
— Mas espere um pouco — disse Zoé, interrompen-
do sua própria leitura e sorvendo um gole de água fresca,
tomada em uma taça de prata maciça. — Se meu avô rela-
cionou-se com a rainha das Amazonas, então minha mãe
era a herdeira do trono real. Você sabe o que significa isso
Hélio?
— Estou começando a perceber onde você quer che-
gar — Hélio admirou-se. — Por favor, continue seu racio-
cínio.
— Eu sou filha de minha mãe, certo? Então a herdei-
ra desse legado todo sou eu!
— Minha amiga, você está com um belo problema
nas mãos — Hélio olhou espantado à sua volta. — O que
você pretende fazer com tudo isso?
— É uma decisão fácil, Hélio — Zoé não precisou de
muito tempo para pensar o que fazer. — Se a humanidade
não estava preparada para tais revelações na época do meu
- A.C. Gardini
avô, agora, com toda certeza, está menos ainda. Se nós ten-
tarmos remover tudo isto daqui, por mais sabedoria que
exista aqui dentro, vai acontecer o que sempre acontece no
caso de descobertas assim: serão anos e anos de estudos
onde as vaidades serão exacerbadas e o conhecimento rele-
gado a segundo plano. Grande parte disto vai desaparecer
em coleções particulares, como troféus de caça escondidos
do povo que mais poderia se beneficiar com tudo isso.
Zoé parou e pensou por alguns instantes.
— Vamos fazer exatamente o que meu avô fez. Va-
mos pegar alguma coisa para que possamos viver com certa
tranqüilidade, uma dessas pedras luminosas, e fingir que
nunca estivemos aqui. Quando precisarmos, voltaremos. O
que você acha? — perguntou ela, já conhecendo a resposta
de Hélio.
A caixa de Zoé -- A.C. Gardini
Capítulo 21
Passaram-se alguns meses. A vida teimava em retor-
nar ao ritmo normal na Universidade. Zoé ainda continua
morando no apartamento de sempre, tentando organizar
sua agenda. Era uma sexta-feira. Não haveria aulas no dia
seguinte, então poderia dormir até tarde no outro dia.
Desde que recuperara todos aqueles dados de sua
vida em sua memória, e com a ajuda das Irmãs Carmelitas,
conseguiu resgatar um elo perdido com seu passado. Com
isso herdou uma boa fortuna deixada pelo avô, podendo
pensar em outras coisas além de suas aulas.
Pegou o interfone e ligou para seu amigo Hélio, dois
andares abaixo.
— Hélio, você não quer subir e fazer um café pra nós?
— Estou indo.
Se falarmos que ele levou trinta segundos estaremos
exagerando, mas em menos tempo que se leva para ler um
parágrafo ele já estava à porta dela.
— Que bom que você me chamou! Ia mesmo inter-
fonar.
- A.C. Gardini
— Por quê?
— Nada de muito importante, mas você sabe que
nesta cidade nunca acontece nada.
— Isso é verdade. Se pensarmos em termos de cida-
de, é um verdadeiro tédio.
— Alguma coisa em você está diferente. Você está
mais bonita!
Mesmo notando algo de diferente em Zoé, Hélio
não conseguia de pronto visualizar as mudanças. Cabelos
revoltos, sem óculos, mais solta, alegre, feliz.
E então ele fez o convite.
— Pois então. O que você acha de amanhã irmos a
um leilão?
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