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Hospital do Servidor Público Municipal
ABSCESSO HEPÁTICO PIOGÊNICO: RELATO DE CASO E REVISÃO
DA LITERATURA
ANAMÁRCIA DO NASCIMENTO ARAGÃO
São Paulo
2013
ANAMÁRCIA DO NASCIMENTO ARAGÃO
ABSCESSO HEPÁTICO PIOGÊNICO: RELATO DE CASO E REVISÃO
DA LITERATURA
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à
Comissão de Residência Médica do Hospital do
Servidor Público Municipal, para obter o título de
Residência Médica
Área: Clínica Médica
Orientadora: Dra. Rafaela Cristina Goebel
Winter Gasparoto
São Paulo
2013
FICHA CATALOGRÁFICA
ARAGÃO, Anamárcia do Nascimento Aragão Abscesso Hepático Piogênico: Relato de Caso e Revisão da Literatura. Anamárcia Aragão / São Paulo 2013. Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Comissão de Residência Médica do HSPM-SP, para obter o título de Residência Médica, na área de Clínica Médica. Descritores: 1. Hepatopatias 2. Abscesso hepático piogênico3. Drenagem 4. Streptococcus
ANAMÁRCIA DO NASCIMENTO ARAGÃO
ABSCESSO HEPÁTICO PIOGÊNICO: RELATO DE CASO E REVISÃO
DA LITERATURA
Banca examinadora:
Dr. João Baptista dos Santos Júnior
Dra. Lucila Maria Barbosa Bezerra
Dr. Eduardo Khede
AUTORIZO A DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE
TRABALHO , POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU
ELETRÔNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA,
DESDE QUE CITADA A FONTE.
SÃO PAULO,____/____/_____
Assinatura do Autor:
_________________________________________________
Agradecimentos
À Dra. Rafaela Winter, pelos valiosos ensinamentos, pela paciência na
orientação e incentivo, tornando possível a conclusão deste trabalho.
À Deus.
Aos meus pais, Aragão e Nasaré, e ao meu irmão, Márcio, pelo apoio e
compreensão.
Resumo:
Introdução: Um abscesso hepático piogênico constitui-se em um acúmulo
focal de secreção inflamatória e purulenta, causado por um ou vários patógenos
bacterianos. São causados pela disseminação de uma infecção através das vias
biliares, veia porta, artéria hepática, por extensão direta de um processo infeccioso
ou trauma. Quando não há causa identificável, é denominado abscesso criptogênico.
Febre, dor abdominal e calafrios são os sintomas mais comuns. Porém, os sintomas
de um abscesso hepático piogênico podem ser inespecíficos. Exames laboratoriais
podem apresentar alterações, que, associados ao quadro clínico, conduzem à
realização de exames de imagem. Objetivo: Este trabalho relata o caso de uma
paciente de 57 anos, com quadro clínico pouco específico, cujos exames
evidenciaram abscesso hepático, que foi tratado conforme as orientações
bibliográficas atuais (antibioticoterapia e drenagem percutânea), com sucesso. A
cultura do material aspirado do abscesso revelou crescimento de Streptococcus
viridans. Conclusão: O abscesso hepático deve ser conhecido por clínicos e
cirurgiões, especialmente em serviços de emergência, pois devem incluir esta
possibilidade no diagnóstico diferencial de quadros abdominais. Em casos de
retardo no diagnóstico e consequente demora no tratamento efetivo em tempo
oportuno, a morte em decorrência de sepse é um desfecho provável.
Descritores: hepatopatias; abscesso hepático piogênico; drenagem;
Streptococcus.
Absctract:
Introduction: A pyogenic liver abscess is an accumulation in focal inflammatory
and purulent secretion, caused by one or more bacterial pathogens. Are caused by
the spread of infection through the bile duct, portal vein, hepatic artery, by direct
extension from an infection or trauma. When there is no identifiable cause, is called
cryptogenic abscess. Fever, chills, and abdominal pain are the most common
symptoms. Nevertheless, symptoms of a pyogenic liver abscess can be nonspecific.
Laboratory tests may show abnormalities that, in association with the clinical picture,
lead to completion of imaging exams. Objective: This paper reports the case of a 57-
year-old with an unspecific clinical presentation, whose tests showed a liver abscess
and was successfully treated as current guidelines (antibiotics and percutaneous
drainage). The culture of the aspirate of the abscess showed growth of
Streptococcus viridans. Conclusion: The liver abscess should be known by clinicians
and surgeons, especially in emergency services, who should include this possibility
in the differential diagnosis of abdominal frames. In cases of delayed diagnosis and
consequent postponement in effective treatment in a timely manner, the death from
sepsis is a likely outcome.
Keywords: liver diseases; liver abscess, pyogenic; drainage; Streptococcus.
Sumário
1. INTRODUÇÃO.........................................................................................................1
2. OBJETIVO.............................................................................................................13
3. RELATO DE CASO...............................................................................................14
4. DISCUSSÃO..........................................................................................................24
5. CONCLUSÃO........................................................................................................30
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................31
1
1. Introdução
O abscesso hepático piogênico é uma coleção inflamatória contendo debris
celulares, causada por uma infecção bacteriana. É uma condição relativamente rara
nos dias atuais, associado a elevado índice de gravidade.1
O fígado é um órgão intra-abdominal, considerado um tecido estéril, visto que
não possui mucosa ou lúmen que seja naturalmente colonizado por bactérias.
Porém, bactérias podem inadvertidamente alcançar o fígado e causar abscesso
hepático. O tecido hepático é provido de células de defesa, chamadas células de
Kupffer, que são capazes de eliminar a maioria das bactérias invasoras. Porém
quando a carga bacteriana excede sua capacidade de eliminação, ocorre invasão
tecidual com início da formação do abscesso hepático piogênico. ¹,3
São quatro vias principais de infecção hepática: vias biliares; via
hematogênica, através da veia porta ou artéria hepática; por contiguidade de um
processo infeccioso intra-abdominal; trauma penetrante. 1,4
A colangite supurativa ascendente é uma infecção que ocorre em
consequência de obstrução biliar culminando em estase da bile, colonização e
infecção bacteriana. Pode ser secundária a cálculos, tumores malignos, estenoses
biliares, colangite esclerosante e anomalias biliares congênitas (especialmente a
doença de Caroli), ou pode até mesmo ser secundária a iatrogenia, como em casos
de estenose de anastomoses biliodigestivas, após instrumentação biliar e
colangiopancreatografia endoscópica retrógrada. A anastomose bilioentérica tem
sido uma causa de abscesso piogênico devido a contaminação bacteriana
2
retrógrada, da via entérica para a vida biliar. Tratamento de tumores hepáticos por
quimioembolização representa um fator de risco, pois leva à agressão dos ductos
biliares (isquemia e inflamação), podendo haver contaminação e infecção. 2
A veia porta é a segunda fonte mais frequente de infecção. A veia porta é
responsável pela drenagem venosa de todo trato gastrintestinal. Portanto, qualquer
infecção do trato gastrintestinal ou pélvica pode resultar em infecção ascendente da
veia porta, a qual é denominada pileflebite. São causas de pileflebite: apendicite,
diverticulite, pancreatite, doenças inflamatórias como Doença de Crohn e retocolite
ulcerativa, doença inflamatória pélvica, úlcera perfurada, neoplasia colorretal,
empiema de vesícula biliar, abscesso perianal. Antes do advento dos antibióticos, a
grande causa dos abscessos hepáticos piogênicos era secundária à pileflebite;
sendo a partir, principalmente, das apendicites agudas. Portanto, havia elevada
incidência da doença em pacientes jovens, em torno de 20 a 30 anos. A evolução do
tratamento da apendicite, com uso rotineiro de antibióticos e realização de
apendicectomia, levou a mudanças significativas na faixa etária e na apresentação
clínica dos pacientes com abscesso hepático. Ademais, o envelhecimento da
população propiciou o aumento da incidência do abscesso hepático piogênico em
indivíduos com mais de 50 anos. Fatores como imunossupressão e Diabetes
Mellitus vêm sendo descritos como predisponentes à doença. 2
A artéria hepática pode, de forma semelhante, permitir o acesso de bactérias
ao fígado, embora em menores proporções. Assim, qualquer infecção sistêmica
pode resultar em bacteremia e infecção do fígado. Por essa via, chegam bactérias
provenientes, por exemplo, de pneumonia, infecção das vias urinárias, infecções
odontológicas, endocardite. Abscesso após transplante hepático não é comum,
porém pode ocorrer em associação com trombose da artéria hepática.2
3
O abscesso hepático pode ser resultado da extensão direta de um processo
infeccioso contíguo ao órgão, podendo ser consequência de abscessos subfrênicos,
colecistites supurativas e abscessos perinefréticos.2
Deve ser lembrada ainda contaminação direta do fígado através de biópsia
percutânea, ou após traumatismo penetrante. Trauma contuso também pode originar
abscesso, devido hematoma hepático ou área de necrose hepática. 2
Entretanto, em grande parte dos casos, a causa primária do abscesso
hepático piogênico não é encontrada, sendo denominados criptogênicos. Acredita-se
que ocorram em consequência de doenças intra-abdominais não diagnosticadas ou
devido ao fato de o processo infeccioso primário já ter sido debelado à época da
apresentação. Nessa situação, ainda há muita controvérsia sobre a real necessidade
de realização de exames apurados em busca do possível foco primário de infecção.2
Na Tab. 1 podemos observar as principais etiologias do abscesso hepático
piogênico, com sua frequência de ocorrência.
4
Tabela 1: Etiologia dos abscessos hepáticos piogênicos.
Etiologia %
Doença biliar extra-hepática Benignas ou malignas
47
Infecção abdominal Apendicite, perfuração intestinal, sepse
12
Contiguidade Lesão gastroduodenal (úlcera perfurada), cólon e vesícula biliar
5
Tumores hepáticos primários e metastáticos 16
Infecção hepática primária Trauma e cisto infectado
9
Desconhecida (criptogênica) 5
Trauma hepático extenso 3
Hematogênica Endocardite, pneumonia, abscesso perinéfrico, infecção urinária, tuberculose miliar
3
Adaptado de: Torres OJM, Ver Bras Med,1997.
Não há diferença significativa de localização geográfica ou etnia com relação
à frequência da doença. O abscesso hepático piogênico predomina em homens,
sendo a proporção homem-mulher de aproximadamente 2,5:1. 2,7
Os abscessos piogênicos do fígado podem sem monomicrobianos ou
polimicrobianos. A maioria é monomicrobiana, ocorrendo em torno de 60%.
Geralmente, o perfil bacteriano depende da via de infecção. Abscessos decorrentes
do trato biliar ou da veia porta costumam ser polimicrobianos. Enquanto abscessos
decorrentes da artéria hepática comumente são monomicrobianos.2
Os microorganismos mais comuns são os gram-negativos. Escherichia coli
ainda é o principal microorganismo, sendo encontrado em dois terços dos casos,
5
principalmente naqueles secundários à infecção do trato biliar e à infecção através
da veia porta. Outra bactéria encontrada é a Klebsiella pneumoniae, que tem sido a
principal causa de abscesso hepático em países como a Tailândia, principalmente
em diabéticos, e sem doença biliar. Outros microorganismos comuns são
Streptococcus viridans, Staphylococcus aureus, espécie Enterococcus e espécie
Bacteroides. Os estafilococos existem geralmente em abscessos monomicrobianos
secundários à infecção sistêmica. O uso indiscriminado de antibióticos causou
aumento da frequência de bactérias gram-negativas aeróbias resistentes como
Proteus vulgaris, Streptococcus faecalis, Citrobacter freundii. 2
Na Tab. 2, observamos os microorganismos que podem causar o abscesso
hepático piogênico, com sua incidência.
Tabela 2: Microorganismos observados nos abscessos hepáticos piogênicos.
Bactérias %
Escherichia coli 20
Streptococcus sp. 11,2
Klebsiella enterobacter 6,4
Staphylococcus aureus 9,4
Bacteróides 8,0
Pseudomonas aeruginosa 3,2
Flora mista 20,0
Bactéria não identificada 16,8
Proteus vulgaris 2,5
Clostridium 2,5
Adaptado de: Torres OJM, Ver Bras Med, 1997.
6
A maioria dos abscessos estéreis ocorre devido ao meio de transporte
inadequado ou ao uso prévio de antibióticos. No entanto, um abscesso estéril pode
ser secundário à necrose de uma neoplasia hepática de crescimento rápido.
Abscessos hepáticos fúngicos ou micobacterianos são raros, e associados à
imunossupressão, devendo, nesses casos, serem solicitadas culturas do aspirado
para micobactérias e fungos.2
Nas últimas décadas, os avanços nos meios diagnósticos e o aparecimento
de novas alternativas de tratamento possibilitaram maiores percentuais de cura. No
entanto, apesar de tais progressos, o abscesso hepático continua representando um
grande desafio diagnóstico e terapêutico.2
A dificuldade na suspeita diagnóstica e a inespecificidade dos sintomas são
fatores que levam ao diagnóstico tardio e, consequentemente, ao elevado número
de óbitos nestes casos.2,23
O quadro clínico do abscesso hepático piogênico depende das manifestações
do próprio abscesso, da causa básica (quando identificável) e do desenvolvimento
de complicações. A apresentação é variável, desde uma doença aguda, rica em
sinais e sintomas, até uma doença crônica, menos agressiva e que dura meses. Foi
observado que o quadro agudo, geralmente, está associado a uma doença
abdominal identificável, enquanto a doença crônica está associada ao abscesso
criptogênico. Existe uma variedade de sintomas não específicos que podem ser
encontrados. A febre é o sinal clínico mais frequente, sendo observado em 70 a 90%
dos casos. Dor abdominal e calafrios são os sintomas mais comuns. A dor
abdominal pode estar ausente em cerca de 50% dos casos, o que torna o
diagnóstico ainda mais difícil. Geralmente, existe um intervalo silencioso de seis dias
7
a cinco semanas para evolução de dor causada por distensão da cápsula hepática
até dor causada por irritação direta do peritônio pelo processo inflamatório. O quadro
clínico também depende do tamanho, do número e do tempo de evolução do
abscesso. Nos abscessos únicos a sintomatologia é subaguda ou crônica, e nos
abscessos múltiplos, há tendência em haver um quadro mais agudo, com maior
frequência de episódios de choque séptico. Podem fazer parte do quadro, ainda,
hiporexia, astenia, náuseas, perda ponderal, dor referida no ombro direito. Icterícia
pode estar presente, sendo considerada por alguns como sinal de prognóstico
desfavorável; é encontrada em cerca de 25 % dos casos. Muitas vezes, está
associada a doença biliar subjacente (colangite). Frequentemente há aumento do
volume do fígado ao exame físico. Pode haver tosse, dor torácica ou dispneia devido
acometimento do diafragma ou doença intratorácica primária. Uma complicação rara,
própria do abscesso por Klebsiella pneumoniae é a endoftalmite endógena,
ocorrendo em 3% dos casos e mais comum em pacientes diabéticos, sendo
necessários diagnóstico e tratamento precoces para preservação da função
visual. 2,12
São comuns alterações inespecíficas nos exames bioquímicos. Leucocitose é
comum, sendo a leucometria média entre 14.000 e 20.000/mm³, exibindo formas
jovens no sangue periférico. Anemia é frequente. A fosfatase alcalina sérica está
elevada em mais de 90% dos casos, sendo mais alta em caso de abscesso
relacionado a infecção do trato biliar. É comum também a elevação do nível sérico
de gama glutamiltransferase. A bilirrubina total eleva-se em 20 a 50% dos casos. As
transaminases permanecem pouco elevadas. Grandes alterações dos testes de
função hepática estão, geralmente, associadas a doença biliar subjacente. Pode
estar presente hipoalbuminemia e aumento no tempo de protrombina. Alterações
8
nesses exames sugerem anormalidade no fígado que conduzem a exames de
imagem. Exame sorológico para amebíase deve ser sempre solicitado, para excluir
etiologia amebiana. As hemoculturas repetidas são muito importantes, apesar de
menos sensíveis que as culturas do abscesso, sendo positivas em
aproximadamente metade dos casos. O correto manuseio do material e transporte
imediato ao laboratório são imprescindíveis, devendo ser semeado em meio de
cultura para aeróbios e anaeróbios. 2
O diagnóstico de abscesso piogênico do fígado é difícil de ser estabelecido
baseado unicamente no quadro clínico e exames laboratoriais, devido à variedade
de alterações inespecíficas. Portanto, são necessários exames de imagem para sua
confirmação e localização precisa. 2
As radiografias de tórax são anormais em metade dos casos, havendo
achados como elevação do hemidiafragma direito, derrame pleural à direita ou
atelectasia, podendo ser à esquerda se o abscesso estiver no lobo esquerdo.
Radiografia de abdome pode mostrar nível hidroaéreo ou gás na veia porta.3
A ultrassonografia (USG) abdominal é o exame de rotina mais últil e tem uma
série de vantagens: é seguro, não invasivo, preciso, relativamente barato e não
imprega radiações ionizantes. É capaz de distinguir com segurança lesões sólidas
de lesões císticas, e tem uma sensibilidade de 80 a 95% para o diagnóstico de
abscesso hepático. Em geral mostra uma lesão menos ecogênica que o fígado.3
A tomografia computadorizada (TC) é mais sensível que a USG, sendo sua
sensibilidade de 95 a 100%. Permite melhor definição das lesões, detectando com
precisão abscessos hepáticos únicos ou múltiplos. TC de alta resolução pode
identificar abscessos muito pequenos, de até 0,5 cm. As lesões possuem atenuação
9
menor que o fígado ao exame e a parede realça o meio de contraste. Porém, devido
ao custo elevado e uso de radiação ionizante, a USG ainda é o primeiro exame a ser
solicitado.3
Tanto a TC quanto a USG são úteis no diagnóstico de outras doenças intra-
abdominais, como a colecistite, apendicite, diverticulite, dentre outros.3
A ressonância magnética não parece ser melhor que a TC no diagnóstico dos
abscessos hepáticos. Dessa forma, deve ser utilizada somente em casos
selecionados, especialmente em casos em que há dúvida diagnóstica entre
abscessos e outras massas hepáticas. A colangiorressonância e a
colangiopancreatografia endoscópica retrógrada podem ser utilizadas na pesquisa
da causa do abscesso hepático, na suspeita de etilogia biliopancreática.3
Se não tratado, a mortalidade causada por abscesso piogênico do fígado é de
100%. Antes do uso de antibióticos e procedimentos de drenagem havia alto índice
de mortalidade. Até os anos de 1980, a drenagem cirúrgica aberta era o único
tratamento. A partir de então, técnicas menos invasivas como drenagem percutânea
passaram a ser empregadas, juntamente com uso de antibiótico endovenoso.3
Uma vez suspeitado o diagnóstico de abscesso hepático piogênico, deve ser
prontamente iniciada antibioticoterapia adequada, para conter a bacteremia e suas
consequências. Devem ser utilizados antibióticos intravenosos de amplo espectro. A
escolha do antibiótico deve ser baseada em culturas e antibiogramas das bactérias
isoladas da corrente sanguínea ou do próprio abscesso; porém, se os resultados
não estiverem disponíveis, a seleção dos antibióticos deve ser feita com base na
etiologia presuntiva, cobrindo bactérias gram-negativas, gram-positivas e
anaeróbias. São recomendados: Cefalosporina de 3° geração com Metronidazol ou
10
associação de Ampicilina, Aminoglicosídeos e Metronidazol. A duração do
tratamento depende do sucesso do procedimento de drenagem, devendo-se
continuar antibioticoterapia enquanto houver evidência de infecção como febre ou
leucocitose, sendo o recomendado duas semanas de tratamento ou mais. Os
antibióticos administrados isoladamente, sem drenagem, raramente são efetivos.3,10
É necessário diferenciar abscesso piogênico do abscesso amebiano ou cisto
equinococótico devido às diferenças no tratamento. O tratamento do abscesso
piogênico requer antibiótico e drenagem; o amebiano requer antibiótico e o
equinoccocótico é tratado com cirurgia. O abscesso equinococótico possui achados
em exames de imagem característicos. O quadro clínico de abscesso piogênico e
amebiano é semelhante, porém o amebiano ocorre mais em jovens, e no piogênico
são comuns sintomas de uma bacteremia, como calafrios. No abscesso piogênico
pode haver baixos títulos de anticorpos séricos amebianos, ao contrário do abscesso
amebiano. Aspiração é capaz de diagnosticar o abscesso amebiano em apenas 10 a
20% dos casos. Portanto, às vezes, pode ser necessário teste terapêutico com
antibiótico antiamebiano. 3
As complicações causadas pelo abscesso hepático piogênico ocorrem,
principalmente, em consequência da disseminação da sepse. Perfuração do
abscesso pode levar à fístula, abdome agudo, formação de abscesso subfrênico,
empiema pleural e peritonite generalizada. Inflamação do diafragma pode levar à
derrame ou empiema pleural e pneumonia. A bacteremia é uma complicação grave.
Pode haver disseminação hematogênica para pulmões, rins ou cérebro. Ascite é
outra complicação que está presente em até 30% dos casos. Complicações pós-
tratamento incluem reativação de cavidades de abscessos residuais e recorrência.3
11
Assim, em todos os casos de abscesso hepático piogênico, a drenagem deve
ser realizada o mais breve possível, exceto em casos de múltiplos abscessos
pequenos que impossibilitem a drenagem. A drenagem pode ser via percutânea ou
cirúrgica.3,6
A drenagem percutânea guiada por USG ou TC consiste na inserção de um
cateter de demora no abscesso via transparieto-hepática, sendo o método de
primeira escolha, inclusive para abscessos múltiplos, apesar de neste caso ter uma
taxa de insucesso maior. As vantagens são a simplicidade do tratamento e o fato de
não necessitar de anestesia geral e laparotomia. São contra-indicações a presença
de ascite e coagulopatias. São possíveis complicações da drenagem percutânea:
perfuração de outras vísceras, hemorragia e deslocamento do cateter. 3
A aspiração percutânea, sem a colocação de um dreno, tem índices de
sucesso semelhante à aspiração percutânea. Porém, apresenta alta incidência de
recorrência, com necessidade de novas aspirações.3
A drenagem cirúrgica aberta deve ser reservada para os pacientes com
doença abdominal primária que necessite de tratamento cirúrgico, como, por
exemplo, apendicite e obstrução biliar. É recomendada em casos em que não houve
sucesso com a drenagem percutânea, quando há abscessos piogênicos de difícil
acesso às medidas de punção e drenagem percutânea, em caso de tratamento das
complicações das drenagens percutâneas e quando há necessidade de excluir
neoplasia.3,14
A ressecção hepática ou lobectomia raramente são necessárias. No entanto,
pode ser necessário em caso de destruição hepática grave em decorrência de
12
infecção, abscesso piogênico pós-trauma com grande laceração de fígado,
neoplasia hepática infectada, hepatolitíase ou estenose biliar intra-hepática.3
Com o diagnóstico precoce com auxilio de técnicas de imagem, uso de
antibióticos intravenosos e uso de técnicas drenagem do abscesso houve redução
substancial da mortalidade. Porém a taxa de mortalidade alcança 100% em casos
de abscessos não- diagnosticados ou mal drenados.3
São fatores de pior prognóstico: hipoalbuminemia, presença de malignidade,
complicações e doenças associadas, como síndrome da imunodeficiência adquirida.
São associados a pior resultado os casos que evoluem com sinais de infecção grave
com elevada leucocitose, ruptura do abscesso, bacteremia e choque. 3
A prevenção dos abscessos piogênicos deve ser adotada rotineiramente nas
seguintes situações: prevenção e tratamento de infecções agudas intra-abdominais;
descompressão de via biliar obstruída; tratamento adequado das lesões hepáticas
traumáticas com excisão de tecidos desvitalizados e necróticos. Antibioticoprofilaxia
deve ser feita antes de instrumentação da via biliar. Nos procedimentos para
tratamento local de tumores hepáticos também está indicada antibioticoprofilaxia
antes do procedimento e continuada por 7 dias.2
13
2. Objetivo
Relatar um caso de abscesso hepático piogênico, com diagnóstico precoce e
evolução favorável com antibioticoterapia endovenosa e drenagem percutânea
concomitante.
14
3. Relato de Caso
Paciente T.J.T., sexo feminino, 57 anos, natural e procedente de São Paulo,
professora de educação infantil, divorciada, católica.
A paciente deu entrada no Pronto-Socorro do Hospital do Servidor Público
Municipal (HSPM) com queixa principal de dor abdominal há 5 dias.
Relatava que há 5 dias teve início súbito de dor em andar superior do
abdome, contínua, de forte intensidade, com piora progressiva, sem fatores de
melhora, sem relação com a alimentação, sem irradiação, associada a febre (39oC),
diária, intermitente, acompanhada de calafrios, além de tosse com expectoração
amarelada, astenia, colúria e hiporexia. Negava acolia fecal, vômitos, dor torácica e
dispnéia.
Havia procurado previamente outras unidades de emergência, sendo
prescritos analgésico e antibiótico Levofloxacino devido hipótese diagnóstica de
Pneumonia. Fez uso do antibiótico mencionado por dois dias, porém evoluiu com
evidente piora clínica e queda do estado geral, tendo então procurado atendimento
no HSPM.
Como antecedentes patológicos referia apenas osteoartrose, em uso de
sulfato de Glicosamina 1,5 g ao dia e acompanhamento com a Reumatologia.
Negava Diabetes Mellitus, Hipertensão Arterial Sistêmica ou cardiopatias. Negava
história de colecistite ou pancreatite prévias, assim como procedimento prévio com
manipulação de vias biliares. Relatava como cirurgia prévia perineoplastia há 30
anos. Negava doença periodontal ou uso de prótese dentária. Negava uso de
15
corticosteróide. Tabagista com carga tabágica de 20 maços/ ano. Não etilista. Negou
uso de drogas ilícitas.
Como antecedente familiar relatou apenas Hipertensão Arterial Sistêmica.
Negou antecedente familiar de qualquer neoplasia ou outras patologias.
À admissão, apresentava os sinais vitais: Temperatura axilar = 39,2 °C,
Pressão arterial = 120 x 80 mmHg, Frequência cardíaca = 105 bpm, Frequênica
respiratória = 26 irpm.
À ectoscopia, paciente com regular estado geral, acianótica, desidratada
(2+/4+), ictérica (1+/4+), febril ao toque, hipocorada (1+/4+), taquipnéica, orientada.
Ausência de linfonodomegalias palpáveis. Cavidade oral sem sinais de infecção
local.
Aparelho pulmonar com expansibilidade normal, som claro pulmonar à
percussão, com murmúrio vesicular presente em ambos hemitórax, porém reduzido
em base pulmonar direita, sem ruídos adventícios.
Aparelho cardiovascular com ritmo cardíaco regular em dois tempos, bulhas
normofonéticas, sem sopros.
Abdome globoso, sem cicatrizes, com ruídos hidroaéreos presentes,
timpânico, flácido, doloroso à palpação superficial e difusa em hipocôndrio direito e
em epigástrio, sem dor à descompressão brusca, fígado aumentado (3 cm do
rebordo costal direito, superfície lisa, bordo rombo, doloroso à palpação), com sinal
de Torres-Homem presente.
Extremidades sem edema, com pulsos periféricos palpáveis e simétricos,
sem empastamento de panturrilhas.
16
Foram solicitados inicialmente exames bioquímicos (demonstrados na
Tab.3) e radiografias de tórax e abdome.
Tabela 3: Exames laboratoriais colhidos na admissão hospitalar da paciente.
Exames Resultados Valores de referência
Hemoglobina (g/dL) 11,0 12,0 - 14,0
Leucócitos (mm3) 17.500 4.500 - 13.500
Bastões/segmentados (%) 27/ 76 0-3%/40 - 60%
Plaquetas (mm3) 337.000 150.000 – 400.000
Bilirrubina total (mg/dL) 3,9 0,3 – 1,3
Bilirrubina direta (mg/dL) 2,9 0,1- 0,4
TGO (U/L) 119 10 – 40
TGP (U/L) 48 7 - 30
FA (U/L) 305 45 - 115
GGT (U/L) 350 12 - 73
Albumina (g/dL) 2,6 3,5- 5,5
TAP(segundos)/INR 15,8 / 1,26 Até 15/ 0,9- 1,2
Creatinina (mg/ dl) 0,8 0,6 – 1,4
VHS (mm/h) 112 20
Amilase (U/L) 52 28-100
Abreviações: TGO = transaminase glutâmico oxaloacética; TGP = transaminase glutâmico pirúvica; FA = fosfatase alcalina; GGT = gama glutamiltranspeptidase; TAP = tempo de protrombina; INR: InternationalNormalizedRatio; VHS = velocidade de hemossedimentação
17
As sorologias para hepatites virais foram negativas, assim como VDRL e a
sorologia para HIV.
A radiografia de tórax evidenciou elevação da hemicúpula diafragmática
direita, sem opacidade intersticial ou alveolar, sem obliteração de seios costofrênicos
ou sinais de pneumoperitôneo (Fig. 1 e Fig.2).
Figuras 1 e 2: Radiografia de tórax em incidências póstero-anterior e perfil esquerdo evidenciando elevação de hemicúpula diafragmática direita, ausência de pneumoperitôneo e
ausência de aerobilia.
(Fonte: Fotos feitas pelo autor(a) na enfermaria do HSPM, durante a internação)
18
A radiografia de abdome visibilizou distensão de alças intestinais. (Fig.3).
Figura 3: Radiografia abdominal em posição ortostática mostrando distensão de alças intestinais.
(Fonte: Foto feita pelo autor(a) na enfermaria do HSPM, durante a internação)
Solicitada USG abdominal total, que demonstrou hepatomegalia heterogênea,
às custas de formação expansiva predominantemente cística (com conteúdo líquido
espesso) e multiloculado, no lobo hepático direito, medindo 7,0 cm x 6,4 cm x 6,2 cm
nos maiores eixos (Fig. 4). Restante do parênquima hepático sem alterações (Fig.5).
Ausência de cálculos na vesícula biliar. Ausência de dilatação de vias biliares intra e
extra hepáticas. Ausência de sinais de apendicite, coleções ou líquido livre na
cavidade abdominal.
19
Figura 4: Ultrassonografia demonstrando imagem cística multiloculada
em lobo hepático direito.
(Fonte: Foto feita pelo autor(a) na enfermaria do HSPM, durante a internação)
Figura 5: Lobo esquerdo hepático morfologicamente preservado à ultrassonografia.
(Fonte: Foto feita pelo autor(a) na enfermaria do HSPM, durante a internação)
Frente ao quadro clínico e imagenológico compatível com abscesso hepático,
foram solicitadas duas amostras de hemocultura, além de iniciado tratamento clínico
com hidratação venosa, analgesia e antitérmicos, além de antibioticoterapia empírica
endovenosa de amplo espectro (Ceftriaxone 2 g/dia e Metronidazol 1500 mg/dia).
Solicitado também exame protoparasitológico de fezes (3 amostras).
Solicitada ainda avaliação da equipe de Cirurgia Geral quanto à
possibilidade de drenagem percutânea do abscesso, guiada por USG. A equipe
cirúrgica optou por não realização imediata da drenagem do abscesso, sugerindo
20
realização de TC de abdome com contraste para confirmação diagnóstica e melhor
caracterização da lesão, assim como a localização e delimitação da mesma.
A TC mostrou fígado com contornos regulares, dimensões aumentadas, e
parênquima heterogêneo às custas de imagem ovóide, hipoatenuante, com realce
assimétrico após a injeção do meio de contraste, aparentemente multiloculada,
medindo cerca de 9,1 x 6,5 x 5,2 cm, na topografia dos segmentos VI/ VIII,
compatível com abscesso (Fig. 6 e Fig. 7). Veia porta de calibre e valores de
atenuação normais. Pâncreas normal. Espessamento da linha pleural direita. Sem
sinais de líquido livre na cavidade abdominal ou processo inflamatório apendicular
ou colônico.
Figuras 6 e 7: Tomografia Computadorizada de abdome revelando imagem ovóide, hipoatenuante, multiloculada, medindo cerca de 9,1 x 6,5 x 5,2 cm, na topografia dos segmentos VI/ VIII, compatível com abscesso. (Fonte: Fotos feitas pelo autor(a) na enfermaria do HSPM, durante a
internação)
21
A paciente havia evoluído desde a admissão com picos febris elevados (em
torno de 39°C), aumento da leucocitose e do número de formas jovens no sangue
periférico, chegando a 18.500 leucócitos/mm3 e 27% de bastonetes, apesar da
antibioticoterapia endovenosa. A paciente submeteu-se à drenagem percutânea
guiada por USG pela equipe de cirurgia geral 4 dias após a admissão hospitalar. Foi
realizada punção no décimo espaço intercostal, introdução de cerca de 10 cm da
agulha, com saída de secreção purulenta fétida. Optado por passagem de fio guia,
dilatação e introdução de cateter de Shilley, que permitiu drenagem local (Fig. 8).
Houve saída inicial de 300 mL de conteúdo purulento. Amostra do material foi
enviada para análise bioquímica e cultura.
Figura 8: Cateter de Shilley utilizado para drenagem percutânea,com saída de líquido amarelo-citrino, no terceiro dia após a drenagem. (Fonte: Foto feita pelo autor(a) na
enfermaria do HSPM, durante a internação)
A análise bioquímica do material evidenciou líquido turvo, com predomínio de
polimorfonucleares (acima de 90%), em sua maioria degenerados; citologia oncótica
negativa.
22
Cerca de 72 horas após a drenagem, a paciente apresentava melhora clínica,
evoluindo afebril, em bom estado geral, com normalização da leucometria. O débito
do dreno foi quantificado diariamente, e mostrou drenagem progressivamente menor
a cada dia.
Cinco dias após a admissão hospitalar, o resultado final da hemocultura não
mostrou crescimento bacteriano. Três dias após a drenagem, a cultura do material
drenado do abscesso evidenciou crescimento da bactéria aeróbia Streptococcus
viridans, sem crescimento de bactérias anaeróbias. Antibiograma evidenciou
sensibilidade a Ceftriaxone, antibiótico que havia sido iniciado empiricamente.
Os exames protoparasitológico de fezes não mostraram sinais de infecções
parasitárias, como amebíase.
Foi realizado ecocardiograma transtorácico para avaliação quanto à
possibilidade de endocardite como foco primário inicial de disseminação
hematogênica, que não mostrou vegetações valvares, além de demonstrar fração de
ejeção (Teicholz) de 67%.
Dezesseis dias após a drenagem percutânea, foi retirado o cateter de Shilley.
20 dias após a admissão hospitalar, a paciente recebeu alta assintomática, estável
clinicamente, anictérica e sem dor à palpação abdominal, além de notável melhora
laboratorial (Tab. 4). Completou esquema antibiótico em ambiente domiciliar, por
mais 14 dias.
23
Tabela 4: Exames laboratoriais apresentados no dia da alta hospitalar.
Exames Resultado Valores de referência
Hemoglobina (g/dL) 11,5 12,0 - 14,0
Leucócitos (mm3) 4800 4.500 - 13.500
Bastões/segmentados (%) 0 / 55,3 0-3%/40 - 60%
Plaquetas (mm3) 571.000 150.000 – 400.000
Bilirrubina total (mg/dL) 0,7 0,3 – 1,3
Bilirrubina direta (mg/dL) 0,5 0,1- 0,4
TGO (U/L) 14 10 – 40
TGP (U/L) 10 7 - 30
FA (U/L) 189 45 - 115
GGT (U/L) 221 12 - 73
Albumina (g/dL) 2,7 3,5- 5,5
TAP(segundos)/ INR 15,2 / 1,17 Até 15 s/ 0,9- 1,2
Creatinina (mg/ dl) 0,6 0,6 – 1,4
Abreviações: TGO = transaminase glutâmico oxaloacética; TGP = transaminase glutâmico pirúvica; FA = fosfatase alcalina; GGT = gama glutamiltranspeptidase; TAP = tempo de protrombina; INR =InternationalNormalizedRatio.
Retornou ao ambulatório de Gastroclínica para acompanhamento, mantendo-
se assintomática e com exame físico normal. Até a presente data, a paciente evolui
bem, sem sinais de recorrência da patologia tratada.
24
4. Discussão
A coleção purulenta que se instala sobre o parênquima hepático recebe a
denominação de abscesso piogênico do fígado.3
A idade de maior incidência dos abscessos hepáticos parece ter mudado nos
últimos 50 anos. No passado, a maior incidência se dava na terceira década de vida,
com altos índices de mortalidade devido à falta de recursos diagnósticos e
terapêuticos eficazes. Nos últimos 50 anos, os relatos mostram maior incidência em
pacientes com idades entre 50 e 60 anos, como a paciente do caso clínico relatado.
Esse fato parece estar relacionado às significativas mudanças que ocorreram na
etiologia dos abscessos hepáticos. As doenças inflamatórias agudas, como a
apendicite, deixaram de ser a principal causa devido ao advento dos antibióticos e
tratamento mais precoce e adequado. Associado a isso, com o envelhecimento da
população, o abscesso piogênico do fígado tornou-se mais relacionado com a
doença do trato biliar, além do aumento do número de casos em que o abscesso é
considerado criptogênico.2,4
Estudos recentes evidenciam pequeno aumento na incidência, o que pode ser
explicado, na verdade, pela disponibilidade de exames de imagem de alta qualidade,
permitindo diagnóstico mais apropriado da doença. A USG abdominal, que
diagnostica adequadamenteos abscessos hepáticos (tem sensilibidade superior a
85%), tem baixo custo, é um método pouco invasivo, não possui contra-indicações
formais e é amplamente disponível, mesmo em áreas afastadas dos grandes
centros.¹
25
A via biliar constitui a principal via de infecção do fígado1,2,3. No caso relatado,
não havia sinais de dilatação de vias biliares intra e extra-hepáticos, tampouco
cálculos na vesícula biliar ou antecedente de manipulação prévia de vias biliares,
clínica ou cirúrgica.
Em cerca de 20 a 50% dos casos, apesar dos avanços dos conhecimentos a
respeito da etiopatogenia dos abscessos hepáticos, não é possível identificar o fator
desencadeante, sendo chamados de abscessos criptogênicos. As explicações são:
na época da apresentação o processo infeccioso primário já foi resolvido, existência
de doença abdominal não diagnosticada ou a doença ocorre devido maior
suscetibilidade do hospedeiro à bacteremia devido fatores como Diabetes Mellitus
ou malignidade. Ainda existem controvérsias sobre a real necessidade de busca
ativa por possíveis causas, mesmo que subclínicas. Sugere-se que uma história
clínica detalhada, um exame físico detalhado e exames laboratoriais minuciosos
devem fazer parte da avaliação do paciente, em busca de anormalidades no trato
gastrointestinal e biliar. Exames invasivos devem ser solicitados individualmente, de
acordo com alterações identificadas nos exames iniciais. Exames invasivos como
colonoscopia e colangiopancreatografia retrógrada endoscópica têm maior
probabilidade de evidenciarem resultados positivos somente quando há alguma
alteração objetiva no exame clínico ou exames laboratoriais e imagenológicos que
sugiram alguma anormalidade subclínica.1
O abscesso piogênico do caso clínico em questão foi considerado
criptogênico. Conforme descrito, não havia sinais de doença biliar ou doenças
inflamatórias abdominais. O ecocardiograma também não demostrou alterações que
justificassem embolizações sépticas, como endocardite infecciosa. Colonoscopia
não foi realizada visto que não havia alterações clínicas e os exames realizados não
26
sugeriram anormalidade subclínica a ser identificada, como densificação da gordura
mesentérica ou espessamento segmentar de alça intestinal. A paciente apresentava,
na admissão hospitalar, constipação como alteração transitória do hábito intestinal,
devido, provavelmente, ao íleo metabólico secundário à infecção, com resolução de
acordo com a melhora clínica evolutiva.
Os abscessos piogênicos do fígado podem ser únicos ou múltiplos, ocorrendo
em igual frequência. Abscessos múltiplos podem ocorrer se a infecção se disseminar
através da via biliar. A maioria ocorre no lobo direito, provavelmente devido a
existência de fluxo sanguíneo preferencial para este lobo1. Podem ser multiloculados
ou em uma cavidade única. O tamanho varia de menos de um milímetro a vários
centímetros de diâmetro.1,2 No presente caso, a paciente apresentou abscesso
piogênico do fígado multiloculado e maior que 5 cm. Apesar disso, apresentou boa
resposta terapêutica à drenagem percutânea, evitando a realização de procedimento
invasivo como a laparotomia, e a realização de anestesia geral.
A paciente apresentou febre alta diária intermitente, dor abdominal, icterícia,
tosse, sendo sintomas que sugerem o diagnóstico, porém são sintomas
inespecíficos, devendo, portanto, o abscesso piogênico do fígado ser diagnóstico
diferencial a partir de uma variedade de sintomas e sinais clínicos, principalmente à
admissão do paciente na emergência, visto que é uma patologia que requer
diagnósitco precoce para evitar complicações potencialmente fatais.1,2 A
inespecificidade dos sintomas, especialmente antes de aparecer a icterícia, fez com
que ela procurasse outro serviço e não tivesse o diagnóstico estabelecido.
No caso clínico descrito, a hemocultura foi negativa. Este resultado vai de
acordo com o esperado, já que dados bibliográficos sugerem positividade deste
27
exame em apenas 50% dos casos. Na cultura do material obtido na drenagem do
abscesso, houve isolamento de um dos germes mais comuns, causadores de
abscesso piogênico do fígado, o Streptococcus viridans, inclusive com boa
sensibilidade a um dos antibióticos empiricamente empregado (Ceftriaxone).
O diagnóstico de abscesso piogênico do fígado é difícil de ser estabelecido
com base apenas no quadro clínico e exames laboratoriais devido a variedade de
alterações inespecíficas; portanto, são necessários exames de imagem para sua
confirmação e localização precisa.1,2
As radiografias de tórax são anormais em metade dos casos. No caso
descrito, foi encontrada elevação do hemidiafragma direito, e ausência de sinais de
pneumonia. A paciente havia recebido, previamente, antibiótico para infecção
pulmonar. Porém acreditamos que a tosse apresentada pode ter ocorrido como
consequência de irritação subdiafragmática.
Frente ao diagnóstico de abscesso hepático piogênico, é recomendado o
tratamento com antibioticoterapia endovenosa, que deve ser prontamente iniciada,
mesmo se ainda não estiverem disponíveis resultado das culturas. Além disso, deve-
ser realizar imediata drenagem do abscesso, preferencialmente por via percutânea,
guiada por exame de imagem. No nosso caso clínico relatado, foram prontamente
iniciados, conforme recomendado em literatura, Ceftriaxone e Metronidazol, além de
realizada drenagem percutânea guiada por USG. Esta modalidade terapêutica é
considerada ideal atualmente. Porém, a demora na realização da drenagem deve
ser evitada, pois pode levar a piora clínica e disseminação da infecção, com
evolução para sepse e aumento da morbidade.3
28
A USG possui sensibilidade de 85% a 95%, devendo ser o primeiro exame a
ser solicitado, pois, integrado ao contexto clínico apropriado, possibilita fazer um
diagnóstico definitivo num espectro alargado de lesões hepáticas focais, como o
abscesso hepático 2. A TC com contraste pode ser útil porque identifica com melhor
precisão a lesão, e, também, a existência de possível infecção intra-abdominal como
apendicite e diverticulite, que consista em foco primário de infecção e que tenha
culminado em pileflibite.3 No entanto, pode atrasar ainda mais a realização da
drenagem do abscesso, o que pode causar complicações sérias e irreversíveis ao
paciente. No presente caso, a TC foi importante para a delimitação da lesão e para
exclusão de infecção intra-abdominal como causa do abscesso, porém a exigência
da TC fez com que a realização do procedimento fosse preterida, com retardo na
melhora clínica da paciente. O resultado da USG, associado ao critério clínico,
poderia ter propiciado drenagem percutânea mais precoce, em vista dos riscos
evidentes durante a evolução, frente à postergação do procedimento.
Não foi realizada sorologia para amebíase. Infelizmente, a sorologia para
Entamoeba histolytica não é um exame de fácil acesso, pois apresenta alto custo. A
avaliação microscópica das fezes, com pesquisa de ovos e protozoários, foi
solicitada, apesar de não apresentar sensibilidade adequada para o diagnóstico de
abscesso hepático amebiano. As 3 amostras do exame protoparasitológico de fezes
foram negativas. Além disso, o quadro clínico, com febre, calafrios, leucocitose e
desvio para esquerda é altamente sugestivo de abscesso piogênico. Foi iniciado
tratamento empírico para bactérias gram-negativas, gram-positivas, assim como
para bactérias anaeróbias (neste último caso, o metronidazol foi usado, além de
apresentar cobertura adequada para E. histolytica).
29
Apesar da leucocitose importante e bacteremia iniciais, além de
hipoalbuminemia, a paciente evoluiu bem após a instituição dos antibióticos
endovenosos e, principalmente, com a drenagem urgente do abscesso, não
desenvolvendo complicações graves como choque séptico.
Uma das complicações após o desfecho do tratamento e a resolução do caso
é a recorrência posterior 3. No caso clínico observado, felizmente, a paciente não
apresentou esta complicação, mesmo tardiamente durante o acompanhamento
ambulatorial.
O abscesso hepático piogênico é uma doença grave, potencialmente fatal,
que tem sintomas iniciais inespecíficos. Se não for tratada adequadamente, tem
mortalidade alta 1,27. Por isso, acreditamos que esta entidade deve ser conhecida por
clínicos e cirurgiões, especialmente aqueles que trabalham em serviços em
unidades de emergência. Há a necessidade de avaliação multidisciplinar, como
demonstrado no caso descrito, sendo necessário o acompanhamento clínico e
realização da drenagem do abscesso pela equipe cirúrgica, para evoluir para
desfecho favorável.
30
5. Conclusão
O abscesso hepático piogênico é uma doença infrequente, com sintomas
muitas vezes inespecíficos. Porém deve ser lembrada, especialmente nas unidades
de emergência, pois apresenta elevado índice de morbimortalidade se não
diagnosticada precocemente. Sempre que houver suspeita clínica, é necessário o
auxílio de exames de imagem para confirmação. O tratamento deve ser instituído
prontamente, com antibioticoterapia de amplo espectro e drenagem do abscesso.
31
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