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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SULFACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
CAMPUS VIAMÃO
ANDERSON BALBINOT
HANNAH ARENDT:a violência como um déficit de ações e palavras
Viamão2009
ANDERSON BALBINOT
HANNAH ARENDT:a violência como um déficit de ações e palavras
Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção de grau de Bacharel em Filosofia, pelo curso de Filosofia – Campus Viamão da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Orientador: Prof. Dr. Pe. Marcos Sandrini
Viamão2009
ANDERSON BALBINOT
HANNAH ARENDT: a violência como um déficit de ações e palavras.
Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção de grau de Bacharel em Filosofia, pelo curso de Filosofia – Campus Viamão da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Aprovada em _____ de ___________________ de 2009, pelo orientador,
obtendo o grau: _______________.
__________________________________________Prof. Dr. Pe. Marcos Sandrini
Aprovação com as normas da ABNT,
Grau final: ________.
____________________________________________Prof. Dr. Bruno Odélio Birck
“Também não falta quem, desejando de verdade um mundo mais justo
e mais humano, não creia na força e na violência armada como
solução. Mesmo sem apelar para motivos religiosos ou ideológicos, os
que se decidem a usar a não-violência ativa – a força d’alma, a
violência dos pacíficos, a pressão moral libertadora – tentam
demonstrar que, hoje, há complexos e poderosos dominando a Terra e
partindo para as estrelas: alianças de poderio econômico, poderio
político, poderio tecnológico e poderio militar. Como esperar vencer
pelas armas os Senhores do Mundo, que tem, ao seu lado,
fabricantes de armas e promotores de guerras?”
(Dom Helder Câmara, 1975).
“Mas fazer este povo discutir o socialismo é mais difícil ainda,
porque o que acontece normalmente é que quem tem as idéias
prontas na cabeça tenta enfiá-las pela goela dos trabalhadores,
quando necessário seria fazer com que as pessoas
descobrissem a necessidade de ter reflexão sobre um novo
projeto de sociedade.” Luis Ignácio da Silva (Retrato do
Brasil – depoimentos. Editora Política: 1984, volume IV, p. 4).
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO..................................................................................................... 5
2 A VIOLÊNCIA COMO ATIVIDADE DO TRABALHO............................... 82.1 TRABALHO........................................................................................................ 82.2 VIOLÊNCIA........................................................................................................ 142.2.1 A violência e o contexto histórico de Hannah Arendt...................................... 212.2.2 A Violência e a Tradição..................................................................................... 25
3 O PODER QUE EMANA DA AÇÃO................................................................ 283.1 AÇÃO................................................................................................................... 283.1.1 A redução da ação como trabalho...................................................................... 383.1.2 A irreversibilidade e o poder de perdoar.......................................................... 403.1.3 A imprevisibilidade e a faculdade de prometer................................................ 433.2 PODER................................................................................................................. 443.2.1 Liberdade............................................................................................................. 483.3 PARTICIPAÇÃO POLÍTICA........................................................................... 513.4 POLÍTICA E HISTÓRIA................................................................................... 54
4 RELAÇÃO ENTRE PODER E VIOLÊNCIA.................................................. 59
5 CONCLUSÃO...................................................................................................... 64
REFERÊNCIAS.................................................................................................... 65
5
1 INTRODUÇÃO
Se todo o agir humano interfere na coletividade, que elementos devemos levar em
conta para que as relações não se tornem violentas? Qual a relação entre poder e violência
quando se busca a participação política? Esses são os questionamentos motivadores do nosso
trabalho. As respostas são tentativas de compreender os eventos do século XX no que toca aos
totalitarismos, mas também remontando ao pensamento moderno e grego que deram origem a
boa parte dos conceitos da tradição política.
O pensamento de Arendt é muito amplo. Com este trabalho queremos desenvolver as
categorias de poder e violência e suas origens, respectivamente, nas atividades da ação e do
trabalho, tendo em vista os acontecimentos das primeiras décadas da segunda metade do
século XX, contexto no qual nossa autora escreve, de busca por soluções para os negócios
humanos. Arendt trata das possíveis soluções, participativas ou totalizantes, sentindo o peso
do que fala. Era judia e teve que migrar para escapar do nazismo. Mas ao mesmo tempo,
mesmo nos países democráticos encontrou elementos parecidos com os despóticos. Então, o
que caracteriza um governo violento e um governo democrático? A resposta está na efetivação
da possibilidade da ação, que além de puro agir, também possui o elemento do discurso.
A violência foi considerada a melhor via para resolver o problema da fragilidade das
relações humanas. Hannah Arendt faz um esforço de compreensão da conjuntura da sua
época, oferecendo uma rica reflexão embasada na condição da existência humana. A política
não vem de nenhuma causa mística ou de uma essência humana, decorre da existência
humana enquanto pluralidade. Não conseguiríamos nem nascer sozinhos. O nascimento de um
bebê é a ocorrência de um milagre; não é só um novo ser, mas um ser com a possibilidade do
novo.
No primeiro capítulo vamos visualizar a relação entre a atividade humana do
trabalho e o fenômeno da violência. O artífice trabalha sempre no isolamento, a partir duma
idéia, iniciando e finalizando o processo. A esfera pública, para o homo faber, só tem sentido
quando é espaço de comércio de trocas. O único relacionamento que possui com outros
semelhantes seus é econômico. Trabalhando, o ser humano produz um mundo durável,
permanente no tempo, conferindo estabilidade e previsibilidade ao seu mundo. Mas o homem
não é só isso.
A violência se assemelha muito à atividade do trabalho. Ela é a direta decorrência da
tentativa de estabilizar os acontecimentos que são produzidos em comum. A tradição da teoria
política apostou na violência como alternativa ao convívio humano, tornando até banal a sua
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dinâmica na sociedade. As tendências do seu tempo, a crescente superespecialização, o grande
desenvolvimento dos implementos de guerra, as concepções organicistas da política, o
racismo e outros, ilustram como o elemento da violência é comum, mesmo nos governos tidos
como democráticos.
No segundo capítulo vamos desenvolver a categoria Arendtiana de poder com a sua
atividade correspondente, que é a ação. A ação é a atividade que possibilita a política, a
liberdade e a novidade. A política não é utilitarista como o trabalho, é ao contrário, um fim em
si mesmo, como a atividade mais nobre. A atividade da ação vem da capacidade humana de
falar e agir em conjunto, o que revela o humano singular no espaço público. Não é um agir
pré-determinado, mas livre e consciente. As palavras e os atos são plenos de significado. A
interação humana com palavras e ações forma a teia das relações humanas, que pelas diversas
estórias, forma o grande livro da história da humanidade. Os processos novos não são nunca
seguros, nem chegarão a cumprir a meta pelo qual iniciaram. Cada ação se perde na interação
da teia das relações entre as pessoas. A ação é frágil porque envolve muitas pessoas. Os
negócios humanos possuem a característica da incerteza, o que faz mais irresistível a proposta
de algo que a venha estabilizar. A salvação para a ação está na possibilidade do perdão e da
promessa.
Poder é a dinâmica que possibilita os homens se manterem unidos diante das demais
atividades da vida. É o que permanece no entre-os-homens que os mantêm coesos depois da
dispersão. A ação se esgota depois de sua efetivação. O poder é a lembrança do prazer de agir
juntos; dá permanência à atividade originária enquanto não se está exercendo-a. O poder é
garantido por uma legitimidade, um evento passado onde pessoas discutiram e agiram em
conjunto, de forma poderosa. O que garante a possibilidade do poder entre as pessoas é a
liberdade, que é libertação das necessidades, não só físicas ou biológicas, mas a necessidade
determinística.
A participação política é o ponto de chegada de toda a reflexão. A grande utopia de
Platão e da tradição da filosofia política foi de tentar resolver os problemas resultantes da
fragilidade das ações. A grande ilusão foi pensar na História como pré-determinada. Para
Arendt, a historicidade é um resultado tangível, porém não definitivo, dos inúmeros processos
desencadeados pelos indivíduos, não sendo necessariamente repleta de progressos. A idéia de
progresso é própria de quem acha que a sua idéia deve se instaurar absolutamente, sendo ela o
padrão universal. No último capítulo relacionaremos os conceitos de poder e violência,
fenômenos estes que mesmo opostos, não se encontram puros na realidade.
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Ao mesmo tempo em que abordaremos um tema da teoria política, nosso trabalho
quer mostrar como Hannah Arendt entende o ser humano, dando assim o caráter filosófico da
nossa pesquisa. A condição da existência humana nos limita, mas nos capacita para estarmos
em relação uns com os outros com certo grau de liberdade, nas diversas potencialidades que
possuímos.
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2 A VIOLÊNCIA COMO ATIVIDADE DO TRABALHO
O trabalho é a atividade humana que resulta da necessidade de a pessoa humana
construir um mundo propriamente “seu”, artificial, que possa ajustar-se melhor às suas
necessidades e até oferecer-lhe maiores condições de progredir no conhecimento, mas
também nas relações. O trabalho garante estabilidade e previsibilidade à vida biológica da
pessoa humana, que é passageira e frágil. Não conseguimos viver onde tudo muda
constantemente, precisamos de algumas garantias. Em si, o trabalho não é coletivo, mesmo
quando se trabalha junto com outros; todos, em relação com o produto final, são como que
diversas mãos que moldaram um mesmo produto, porém, não significa que se empenham
coletivamente. Portanto o trabalho é caracterizado pelo isolamento do trabalhador na sua
efetivação.
A violência é o fenômeno do campo da política que emerge de uma fuga da ação
participativa. É a introdução do critério da utilidade nas relações como forma de resolver as
imperfeições resultantes da fragilidade e incompletude essencial do homem. A violência é
instrumental. Precisa de suporte para apoiar-se, assim como no trabalho é necessário
ferramentas.
Arendt percebe que a violência elevou o trabalho e glorificou-o. A modernidade tem
o ideal de objetividade, previsibilidade e determinações; é resultado da tendência moderna de
fazer um mundo conhecido e melhor para se viver. Toda a tradição da filosofia política e o
senso comum tentaram objetivar e tornar mais determinável tudo o que tem afinidade com o
humano. Mas a principal dificuldade é introduzir no campo das relações as mesmas categorias
com que se trata a natureza. Eis o que vamos trataremos neste capítulo: a relação entre
trabalho e violência, junto com algumas situações concretas do tempo da autora estudada,
onde ela os analisa relacionando com os conceitos.
2.1 TRABALHO
Cabe, dentro dos limites do nosso tema, explorar o que Arendt concebe como
trabalho. A pessoa humana é um ser disposto na natureza, que é transformada num mundo
artificial. Tudo o que entra em contato com ela automaticamente se torna parte de sua
condição. A condição humana do trabalho é a mundanidade. O produto do trabalho dá certa
permanência à condição débil da pessoa humana. Com seus principais instrumentos, as mãos,
e podendo estar no completo isolamento, o homo faber faz o objeto a partir do modelo mental
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ideado, podendo destruir como e quando quiser a sua obra. O processo de fabricação, ao
contrário da ação, pode ser interrompido a qualquer momento. Os artefatos são produzidos
“para” alguma coisa. O berço é fabricado para o bebê dormir; a cadeira serve para sentar-se.
A fabricação é regida sempre pelas categorias “meio e fim”.
Para Arendt, a introdução dessa atividade na política leva ao totalitarismo. Arendt
direciona muitas críticas à concepção política platônica, que é a fundamentação de uma
justificação da soberania. Na concepção política de Platão, a política deve ser para os mais
aptos. É o argumento das profissões. O domínio dessa arte só é conseguido por poucos. Sendo
assim a democracia é absurdamente irracional. Ninguém fará melhor que um especialista.
(WOLFF, 2004, p. 106).
A pessoa humana não mistura o seu ser ao ser do artefato. O contato dela com seu
artifício não desgasta o objeto, mas a durabilidade. O desgaste em si, porém, não é o fim
último das coisas, este é mera conseqüência. Os artefatos colocam objetividade à vida
humana. Objetividade quer dizer suportar, pelo menos por algum tempo, as necessidades dos
seus fabricantes. Já dizia Heráclito que “o homem jamais pode cruzar o mesmo rio”. O que
permanece da efemeridade das mutações vem da objetividade do artefato produzido pela
pessoa humana. “Em outras palavras, contra a subjetividade dos homens ergue-se a
objetividade do mundo feito pelo homem.” (ARENDT, 1995, p. 150). Se não houvesse o
mundo objetivo, haveria constante mutação. Pela fabricação a natureza entra no nosso mundo,
tornando-se parte de nossa condição como algo objetivo.
A pessoa humana fabrica seus objetos porque é criativo. Não os necessita para a
manutenção de sua vida biológica. Numa sociedade massificada, o trabalho é feito para suprir
as carências do labor, fabricando objetos para o consumo, onde a característica do trabalhar
pelo simples prazer acaba sendo substituído pelo árduo “adequar-se” no ritmo da máquina. A
atividade de trabalhar só é tal quando se atua com certa intencionalidade (diferente de
liberdade) no que se está fazendo. A previsibilidade lhe é própria. O trabalho é fruto do
esforçar-se da pessoa humana de forma consciente. Arendt critica muito as novas tecnologias
de maquinários que mais parecem a evolução biológica da pessoa humana que tem membros a
mais para produzir utensílios em massa. Os aparelhos têm cada vez mais afinidade com os
processos biológicos. No fundo Arendt diz que o trabalho está sendo executado à forma do
labor e a ação, com as formas de dominação modernas, está sendo substituída por categorias
da fabricação.
A natureza precisa ser transformada para se tornar espaço onde o ser humano possa
viver com alguma estabilidade. Para que possamos efetivar nossa possibilidade de ação e
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participação política, precisamos ter algumas garantias. Ao mesmo tempo, não se pode buscar
saciar as necessidades de sobrevivência e participar ativamente das questões políticas. Um
questionamento que surge com essa reflexão é a de como se pode falar de conscientização
política numa realidade de miséria?
O material para a fabricação não é de imediato já dado na natureza, um produto das
mãos humanas, mas torna-se tal a partir do momento que é retirado da natureza. Por natureza
entendemos em seu significado autêntico o expresso pela origem etimológica que vem da raiz
latina nasci, nascer, ou do grego phyein, “surgir de alguma coisa por si mesma”. O ato de
extrair da sua condição natural é uma violência, uma violação. “Este elemento de violação e
de violência está presente em todo processo de fabricação, e o homo faber, criador do artifício
humano, sempre foi um destruidor da natureza.” (ARENDT, 1995, p. 152). Deus criou todas
as coisas do nada; a pessoa humana adaptou a natureza, criou–a a partir do que já estava aí,
para colocá-la dentro de seu mundo.
Enquanto a atividade do labor é algo exaustivo para a pessoa humana, o trabalho lhe
é prazeroso. A alegria de trabalhar
tem a ver com a exultação sentida no exercício violento de uma força com a qual o homem se mede contra as forças devastadoras da natureza e que, através da astúcia com que inventou as ferramentas, sabe multiplicar muito além de sua medida natural. (ARENDT, 1995, p. 153).
A violência do trabalho, como que ensoberbece a pessoa humana, percebendo sua
força. Esta é a sua motivação para trabalhar.
Ela trabalha sobre um objeto primeiramente ideado pela mente do fabricante ou, com
alguma materialização, mesmo que provisória, num desenho. Essa ideação é chamada por
Arendt de modelo. O que guia o processo de fabricação “está fora do fabricante e precede o
processo de trabalho em si.” (ARENDT, 1995, p. 153). O modelo, mesmo tendo sua
materialidade como artefato no mundo humano, não deixa de existir. Este modelo que
sobrevive ao processo de fabricação serve para a multiplicação de outros utensílios, o que é
diferente de repetição, processo próprio do labor. Esse conceito de multiplicação teve grande
importância na doutrina platônica dos “universais”. Todo ente concreto e sensível tem íntima
relação com o universal que lhe dá ser, não com outro ente concreto e sensível.
O processo de fabricação é sempre guiado por motivações utilitaristas, é determinado
pelas categorias de “meios e fins”. O processo de fabricação se perde ante o produto final. Por
isso, a atividade do trabalho tem sempre um início e um fim bem definidos, o que lhe confere
grande confiabilidade, ao contrário da ação. O processo do trabalho é reversível. A qualquer
momento o fabricante pode destruir sua obra, pois pode sobreviver sem ela com tranqüilidade.
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A característica que distingue a atividade da fabricação das outras atividades da vita
activa é a de que o trabalho tem um começo e um fim bem definido e previsível. São próprias
à pessoa humana duas dimensões: vita activa e vita contemplativa. Vita activa designa três
atividades correspondentes a uma condição básica pela qual a vida nos foi dada na terra:
labor, trabalho e ação.
Outro aspecto do trabalho é a de justificação. O fim justifica os meios e os organiza.
A violência decorrente do processo de fabricação é justificada pela possibilidade do homo
faber de fabricar. Mesmo que não esteja pronto, tudo converge para determinado fim.
Também se aplica a categoria de meios e fins ao próprio produto depois de pronto. A cadeira
foi finalidade enquanto objetivo do fabricante, mas depois é meio de uso ou de troca. A
conseqüência disso é de que tudo passa a ser determinado por essas categorias. Não há mais
fim duradouro: “num mundo estritamente utilitário, todos os fins tendem a ser de curta
duração e a transformar-se em meios para outros fins.” (ARENDT, 1995, p. 167). O princípio
da existência do homo faber é a serventia, o “para que”.
A perplexidade do utilitarismo é que se perde na cadeia interminável de meios e fins sem jamais chegar a algum princípio que possa justificar a categoria de meios e fins, isto é, a categoria da própria utilidade. O ‘para que’ torna-se o conteúdo do em nome de quê’; em outras palavras, a utilidade, quando promovida a significância, gera a ausência de significado. (ARENDT, 1995, p. 167).
Não há mais nada que possa ser considerado um fim em si mesmo. A saída para que
a utilidade se torne significação é onde todos os fins convirjam para um antropocentrismo,
onde a pessoa humana, na sua subjetividade possa ser valorizada. O perigo que reside aí é o
de o homo faber querer realizar-se na fabricação, em degradação do mundo natural, condição
que recebeu como dádiva, e o próprio mundo das coisas, até mesmo as valiosas. O puro homo
faber instrumentaliza tudo ao seu redor. Tudo é regido pelo critério da utilidade.
A mesma operação que faz do homem o ‘fim supremo’, permite-lhe ‘submeter, se puder, toda a natureza a esse fim’, isto é, reduzir a natureza e o mundo a simples meios, privando-os de sua dignidade independente. (ARENDT, 1995, p. 169).
A atividade própria do homo faber é de generalizar a fabricação e com ela os critérios
de meios e fins. Nem o conceito de instrumentalização em si nem o processo que coloca o
produto como finalidade estão em questão. O problema reside no fato de que não se contenta
mais em instrumentalizar os produtos da fabricação, mas tudo o que existe.
O pensamento é o gratuito da mente. Não tem outra finalidade além de si mesma. O
poema é, dentre as obras fabricadas, a mais humana. Seu material é a linguagem e através das
rimas pode ser facilmente guardado na memória. É a obra que menos precisa de
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materialização, mesmo que mais cedo ou mais tarde, para fazer parte do mundo humano
precise ser “feita”, ou seja, escrita e transformada em algo tangível. A cognição sempre tem
um fim claramente definido. Quando alcança a sua finalidade, o processo cognitivo termina.
Já o processo do pensamento coincide com o processo da existência humana, o processo do
pensamento da pessoa humana se dá enquanto este é existente no mundo. O pensamento não
produz nada, só é fonte de inspiração para o homo faber enquanto este produz coisas úteis. A
gratuidade deve ser o critério. O processo da cognição é a produção mental, nos mesmos
moldes da fabricação. As funções da ciência não se diferenciam no caso dos processos
cognitivos da fabricação. A cognição precisa de resultados para não se tornar uma atividade
fracassada.
Também devemos diferenciar os conceitos de pensamento e de cognição com o
conceito de raciocínio lógico que tem muitas semelhanças com os processos de fluição e
biológicos do labor. Os modernos computadores que conseguem copiar a mesma capacidade
lógica do cérebro humano e aumentar sua velocidade não são mais do que outros artifícios ou
substitutos artificiais para aumentar a força da divisão de trabalho nos seus movimentos
simples.
Para que o mundo humano se torne morada e lar para o próprio homem, deve
transcender o trabalho destinado ao uso e ao consumo. A vida humana, no seu sentido não-
biológico se dá na ação e no discurso que possuem a mesma efemeridade da própria
existência humana, que resulta da sua condição da natalidade, da mortalidade e da
pluralidade. Não são tangíveis e se perdem sem deixar vestígio depois do momento da
efetivação e da palavra falada. Para atenuar a fluidez e a fragilidade da ação, a pessoa que age
e fala precisa do “homo faber em sua mais alta capacidade, isto é, a ajuda do artista, de poetas
e historiógrafos, de escritores e construtores de monumentos, pois sem eles, o único produto
de sua atividade, a história que eles vivem e encenam não poderia sobreviver.” (ARENDT,
1995, p. 187). Também o artifício humano deve dar lugar à ação e à fala para que o mundo se
torne lar e moradia humana.
A era antiga sempre direcionou seus esforços para excluir da esfera pública o homo
faber. Na era moderna acontece o contrário. A pessoa humana que age e fala tem cada vez
menos espaço. A modernidade vê como essencial no governo a proteção do lado produtivo e a
manutenção da lei e da ordem. “Tudo pela ordem e o progresso”.
O trabalho, diferentemente do labor que não pode ter nenhum conteúdo público,
possui algumas características que o fazem entrar em contato com outras pessoas. Na
antiguidade, não era o cidadão da polis em si que determinava o conteúdo da esfera pública,
13
mas o homo faber que exibe e troca seus utensílios, frutos do seu trabalho. A esfera pública
não deixa de existir, mas com outra função, a de ser local de negócios.
Além disso, na Grécia, os tiranos nutriam a ambição, sempre frustrada, de persuadir os cidadãos a não se imiscuírem em assuntos públicos, a deixar de desperdiçar o tempo em agoreuein e politeuesthai, e de transformar a agora num conjunto de lojas semelhantes a bazares do despotismo oriental. (ARENDT, 1995, p. 173).
A esfera pública do homo faber não é bem uma esfera política, que é o mercado de
trocas. No isolamento pode produzir seus produtos e relaciona-se com as pessoas somente
para exibir seus produtos e trocar suas mercadorias. Também no trabalho intelectual de um
mestrado é indispensável o isolamento de um artífice, onde o estudante dispõe das idéias
como dispõe de materiais. Antes de compor sua tese necessita ter uma “imagem prévia
mental”. Mestre e trabalhador, maitre e ouvrier, eram empregados como sinônimos. A
atividade com algum contato entre humanos resultante do trabalho é a do mestre que ensina o
ofício aos aprendizes, mas é temporária, como a diferença entre adultos e crianças. O trabalho
em equipe não pode ser considerado coletivo porque nada mais é do que a divisão de trabalho
ou de funções, dos movimentos simples que constituem a obra. O único momento que o
trabalhador sai de seu isolamento é quando termina seu artesanato. As relações políticas estão
completamente fora de qualquer relação de produtividade, o que acontece no inverso, na
atividade do trabalho.
O começo da modernidade foi marcado pela sociedade comercial e o capitalismo
manufatureiro com produção em massa. O fim da sociedade comercial se deu pelo
enaltecimento do labor e a sociedade de consumo ostensivo na sociedade de operários.
As pessoas que se encontram no mercado de trocas não se encontram mais como
pessoas, mas como donos de mercadorias com valor de troca. Numa sociedade onde a
principal atividade política é a troca de mercadoria, até o operário, que vende sua força de
trabalho, se torna bajulado. Isso leva ao que Marx conceituou “auto-alienação”, que resulta na
desvalorização das pessoas como meras mercadorias. O julgamento das pessoas não se dá
porque são pessoas, mas pela qualidade de suas mercadorias. Na sociedade de operários se
julga a pessoa humana pelas funções que exerce na produção, ou seja, o mesmo valor que a de
uma máquina.
O critério do mercado de trocas é a durabilidade. Os produtos começam a ser
fabricados, não para o uso, mas para serem armazenados em vista de trocas futuras. Valor é
“uma idéia da proporção entre a posse de uma coisa e a posse de outra no conceito do
homem.” (ARENDT, 1995, p. 177). No mercado de trocas a mercadoria se torna valor. O
14
valor não pode existir na privatividade, pois é resultado da estima que recebe na esfera
pública.
No mercado de trocas tudo possui valor de troca ou de uso, não mais valor intrínseco
às próprias coisas. A transformação de todas as coisas em mercadorias leva a relatividade
universal. Não há mais pontos fixos para apoiar-se. Se tudo existe se possui relação com outra
coisa, nada tem valor objetivo além do da oferta e da procura. Isso aconteceu com a
introdução do trabalho na esfera pública. Nem as réguas, que devem suas medidas à coisa que
se deve medir, nem o dinheiro, que serve de intermediário às relações mercantis e sempre é
trocado por outra coisa, são medidas ou padrões “absolutos”. Não há mais um ponto
arquimediano. “Isso mostra o quanto a relatividade do mercado de trocas tem a ver com o
conceito de instrumento que resulta do mundo do artífice e da experiência da fabricação.”
(ARENDT, 1995, p. 180). A modernidade colocou o princípio da instrumentalidade para
governar o mundo e isso levou a um esvaziamento de significado e relativização do valor das
próprias coisas.
2.2 VIOLÊNCIA
Colocamos agora a questão sobre o conceito de violência para Arendt. É difícil
conceitualizar a violência porque é um fenômeno muito dinâmico que, na realidade prática se
mescla com muitos outros elementos. Em princípio, na perspectiva de Arendt, a violência é
um fenômeno que apareceu bastante no seu contexto. Fazendo relações entre poder e
violência, a autora menciona alguns verbos sugestivos como “emergir” em
A violência sempre pode destruir o poder; do cano de uma arma emerge o comando mais efetivo, resultando da mais perfeita e instantânea obediência. O que nunca emergirá daí é o poder. (ARENDT, 1994 p. 42).
E “aparece” em “A violência aparece onde o poder está em risco, [...].” (ARENDT, 1994, p.
44).
A violência quase sempre está vinculada com a despolitização ou a substituição da
personalidade por uma identidade massificada. A pessoa humana possui certos recursos que o
elevam pela possibilidade da criatividade, da liberdade, da novidade, da construção
participativa, e são motivações para não resistir às facilidades que o modo despótico oferece
para as relações inter-subjetivas.
A violência não possui uma substância em si mesma. É, antes, oposição ao fenômeno
político, que brota da palavra e da ação. Ela é ausência. A violência antes de construir, destrói.
O que pode constituir-se é o poder com a ação. Mas não sozinho ou isolado. Precisa da
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participação de muitos. Quando nos referimos ao conceito de violência, não entendemos uma
entidade palpável; é antes o que aparece de um déficit de ações e palavras. Porém, isso
implica em mais ressalvas: ações participativas, não manipuladoras; palavras que expressem a
vontade dos homens de estarem juntos, não clichês que escondem e justificam.
Quando se pensa em violência, talvez a primeira idéia que nos vem na mente é a da
impulsividade, da agressividade irracional, do agir pelas emoções e sentimentos. Mas isso,
para Arendt é uma meia verdade. A violência não é irracional, é racional e tenta se justificar
como pode, com a natureza humana, com doutrinas teleológicas da história, com hipocrisia
nas atividades políticas, ou como sendo a melhor forma para se chegar a um estado
paradisíaco de civilização. Pode ser a primeira reação, imediata na intenção de acabar com as
injustiças, mas não pode ser o principal aparato para a mudança. O racional e o sentimental
não são opostos, podem andar juntos. São facas de dois gumes. Tanto um quanto outro podem
ser desencadeadores de processos violentos: O sentimental como impulsividade e a
racionalidade como instrumento do instinto, o que o torna mais irracional; mas também
podem ser portas de entrada para a sensibilização e a conscientização das pessoas.
Uma das características que aparece com mais evidência é a de que a violência
depende de implementos e aparatos. Não é por nada que o século XX se caracterizou pela
morte em massa de pessoas por implementos bélicos. Arendt escreve o livro “Sobre a
Violência” no contexto da guerra fria, o “jogo de xadrez apocalíptico” onde se um vencer
todos perecem. O desenvolvimento tecnológico e a fabricação de instrumentos visam o fim
também regido pela forma como é fabricado: os instrumentos são usados para a violência
assim como o ferro usado é retirado da natureza para o homem fazer uma metralhadora. Se os
instrumentos que antes eram construídos para um fim determinado, fora do campo político, o
utensílio era “meio para”, agora a fabricação do utensílio é um fim, mas que condiciona outro
meio, que por sua vez forma uma cadeia interminável, onde tudo é “meio para”.
A própria substância da ação violenta é regida pela categoria meio-fim, cuja principal característica, quando aplicada aos negócios humanos, foi sempre a de que ele justificaria e que são necessários para alcançá-lo. Visto que o fim da ação humana, distintamente dos produtos finais da fabricação, nunca pode ser previsto de maneira confiável, os meios utilizados para alcançar os objetivos políticos são muito freqüentemente de maior relevância para o mundo futuro do que os objetivos pretendidos. (ARENDT, 1994, p. 14).
Esse tipo de pensamento se baseia na filosofia política de Platão, fundamento da
filosofia política clássica, ou tradição. Platão pensa a polis governada pelo “rei filósofo”. A
sociedade é dividida entre aqueles que sabem o que é bom para o bem comum e os que não
possuem essa competência. A participação é imperfeição e é a fraqueza da democracia. O
16
trabalho do governo é de administrar a polis como o artesão administra os instrumentos de
fabricação manuais. As leis e a administração são “feitas”. Não se pode questionar o modo de
proceder do soberano, pois ele especializou-se a vida inteira para colocar seu trabalho a
serviço. Ninguém pode empreender melhor do que ele na tarefa de tornar a cidade o espaço da
perfeição, da completude, do acabamento. A atividade da fabricação, para Platão, é a
perfeição do soberano.
A violência então se justifica pelo fim desejado: o da perfeição, da completude, dos
resultados previsíveis e determinados. O utilitarismo está instaurado nas relações. Tudo “em
vista de”. Disso decorre a ausência de significado e a falta de fundamentos estáveis, já que
tudo não é fim, mas simples meios. Tudo se perde no ciclo interminável do que é ditado como
necessário e bom para todos.
O ideal de serventia, em si, como os ideais de outras sociedades, já não pode ser concebido como algo de que se necessita para que se obtenha outra coisa; sua serventia não admite discussão. [...] a perplexidade do utilitarismo é que se perde na cadeia interminável de meios e fins sem jamais chegar a algum princípio que possa justificar a categoria de meios e fins, isto é, a própria utilidade. (ARENDT, 1995, p. 167).
O próprio conceito de instrumentalização, o “emprego das coisas como instrumentos
implica em rebaixar todas as coisas à categoria de meios e acarreta a perda do seu valor
intrínseco e independente” (ARENDT, 1995, p. 169), a reificação; exprime o que queremos
afirmar como fenômeno, ou o que aparece da violência.
O artífice se põe a trabalhar sobre o artefato fora do mundo comum aos outros. É no
isolamento que vai se definindo o objeto final de sua obra. A esfera comum é o espaço do
artífice enquanto está moldando sua arte. É a esfera do trabalho enquanto produção ou
fabricação.
Esfera pública é o espaço comum das pessoas, onde elas expõem umas às outras o
produto de seus trabalhos ou a si próprias. É o mundo das aparências, da futilidade, da
liberdade no sentido Arendtiano, da efemeridade. Por isso, desde os primórdios tenta-se
encontrar uma solução para a volatilidade da esfera pública. A violência foi a solução
encontrada, com suas determinações, com início-fim bem definidos e previsíveis e a definição
dos autores do processo. A violência, tentação mais comum neste caso, surge da redução do
público ao privado. A ação é reduzida a atividade do trabalho. As questões públicas são
resolvidas, não de forma comum, mas por um administrador, como um trabalho qualquer, na
esfera privada.
17
Para Platão, o ideal de polis é a monarquia, a tirania de um sobre todos, mas não
sendo ingênuos, essa é somente uma solução para os problemas da ação, existindo outras
formas de governo tirânicas – “variáveis de governo de um só” (ARENDT, 1995, p. 233).
A “idéia” é uma palavra-chave na filosofia de Platão. A violência está intimamente
ligada a esse conceito, sendo fenômeno que advém de uma atividade onde o que está
previamente determinado tem relevante importância. O processo da fabricação se desenvolve
em três partes: a ideação do que vai ser feito, o início do empreendimento e o fim da obra.
“Na República, o rei-filósofo aplica as idéias como o artesão aplica suas normas e padrões;
“faz” sua cidade como o escultor faz uma estátua.” (ARENDT, 1995, p. 239). Como o
demiurgo platônico que contempla as idéias e, a partir delas modela a mãe do mundo, a
matéria, o artífice tem na sua mente o modelo de sociedade e de relações que devem se
efetivar. Chega-se assim ao ápice da redução da esfera pública à esfera privada: a liberdade de
participar dos negócios humanos é transferida para o soberano. A esfera pública é
administrada como numa grande família, na esfera privada do lar. Em teoria, corresponde a
doutrina dos “universais” de Platão: “Na medida em que seus ensinamentos foram inspirados
pela palavra “idéia” ou eidos (“forma” ou “formato”), que ele foi o primeiro a usar num
contexto filosófico, baseava-se em experiências de poiésis, ou seja, de fabricação; [...].”
(ARENDT, 1995, p. 155).
Exemplificando, Arendt trata do mesmo assunto:
O bem é a idéia mais elevada para o rei-filósofo, que deseja governar os negócios humanos porque deve passar a sua vida entre os homens e não pode habitar para sempre sob o céu das idéias. Somente quando volta à caverna escura dos negócios humanos, para conviver com seus semelhantes, é que ele necessita das idéias como normas e padrões que lhe permitam julgar e classificar a multiplicidade vária de ações e palavras humanas com a mesma certeza absoluta e “objetiva” com que o artesão se orienta na fabricação e o leigo no julgamento de cada cama pela idéia invariável e eterna da “cama” em geral. (ARENDT, 1995, p. 238).
A violência, condição e fundamento de toda fabricação, está na base de toda essa
concepção. A tradição da filosofia política está fundada nessa visão de política, platônica,
aristocrática e centralizadora. Hannah Arendt rejeita ser chamada de filósofa política porque a
filosofia requer pensar isolado do mundo, fora do barulho e da agitação, buscando sempre o
universal e necessário, inclusive para os atos humanos. Arendt não acredita, porém, que os
atos humanos possam ser ideados a priori por alguém isolado. Essa atividade isolada só gera
concepções totalizantes, opressoras, centralizadoras e elitistas. Ela prefere ser chamada de
“teórica política”, título que se dá a quem pensa os acontecimentos no tempo, relacionando-
se, envolvendo-se, agindo e falando.
18
O desenvolvimento tecnológico do século XX esteve atrelado à glorificação do
trabalho, que necessita de instrumentos para fazer. Seu progresso foi tão grande que, uns
poucos têm a possibilidade de destruir todos os focos de poder em alguns instantes. Nunca a
riqueza teve tanta importância nas relações bélicas. O fator determinante não é mais o número
de homens do exército ou de armas de fogo, mas sim os aparatos nucleares e outros meios
pensados para a morte em massa.
A violência se baseia na relação de mando e obediência. Segundo Mill há nas pessoas
humanas dois estados de inclinação: a vontade de dominar, de mandar e a necessidade de ser
comandado. Essa concepção tem suas origens na tradição judaico-cristã onde a simples lei
tem já caráter imperativo por ser tal, identificando a relação comando-obediência como a
essência da lei. As tendências biologistas modernas fizeram com que essa concepção se
afirmasse mais ainda, como se houvesse no homem um instinto de dominação ou uma
agressividade inata.
A violência precisa de implementos de violência, como o trabalho precisa de
instrumentos para realizar-se.
Fenomenologicamente, ela (violência) está próxima do vigor, posto que os implementos da violência, como todas as outras ferramentas, são planejados e usados com o propósito de multiplicar o vigor natural até que, em seu último estágio de desenvolvimento, possam substituí-lo. (ARENDT, 1994, p. 37).
Vigor, na concepção de Arendt, é a natural liderança que um indivíduo,
singularmente possui, para seduzir, contagiar, cativar outras pessoas. É uma característica,
uma qualidade que freqüentemente confundimos com poder de persuasão. O vigor vem de
dentro da pessoa que é propensa ao comando. É semelhante à violência porque mina as
resistências das pessoas ou o grupo no qual pretende dominar. Difere da violência porque
domina com naturalidade.
Devemos sempre lembrar que a violência não depende de números ou opiniões, mas de implementos, e, como mencionado, anteriormente, os implementos da violência, como todas as ferramentas, amplificam e multiplicam o vigor humano. Aqueles que se opõem a violência com o mero poder rapidamente descobrirão que não são confrontados pelos homens, mas por artefatos humanos, cuja desumanidade e eficácia destrutiva aumentam na proporção da distância que separa os oponentes. (ARENDT, 1994, p. 42).
O exemplo mais ilustrativo na nossa busca da face da violência é o de que “do cano
de uma arma emerge o comando mais efetivo, resultando a mais perfeita e instantânea
obediência.” (ARENDT, 1994, p. 42). Da força da coerção brota a violência, nunca do diálogo
e da ação, prerrogativas da ação que empodera.
19
Mas a violência não é só prerrogativa de um indivíduo. Os laços de coesão podem
acontecer num grupo onde o objetivo da sua união seja o de cometer um crime ou uma ação
ilegal. A amizade do âmbito privado pode ser ainda mais forte nesse caso. O organismo de
violência em expansão se realiza para continuar seu ciclo. Mas nesse caso, onde a mortalidade
violenta que se fundamenta na destruição, baseia as relações políticas, as relações podem ser
fortes, porém não serão duradouras.
A morte é a experiência da condição humana mais anti-política: “morrer é deixar de
estar entre os homens”. Ela jamais pode fundamentar a política. Pelo contrário, a condição
humana da ação é a natalidade, a possibilidade da pessoa de, pela ação relacional entre iguais,
construir o novo. Desaparecer do espaço da aparência é deixar de participar. Aparecer é ser.
Aparecer e ser reconhecido pelo outro é condição para ser.
A destruição se relaciona mais intimamente com a violência, desde as relações de
trabalho, atrelada ao sentimento de alegria pelo produzido.
Tem a ver com a exultação sentida no exercício violento de uma força com a qual o homem se mede contra as forças devastadoras da natureza e que, através da astúcia com que inventou as ferramentas, sabe multiplicar muito além de sua medida natural. (ARENDT, 1995, p. 153).
O homo faber é um destruidor da natureza, no seu ser artífice do mundo que cria para
si e para os outros agregarem valor ao feito. “Esse elemento de violação e de violência está
presente em todo processo de fabricação.” (ARENDT, 1995, p. 152). Matar um processo vital
no caso de uma planta ou um animal ou interromper um processo lentíssimo da natureza é
necessário para se conseguir o material. O mundo que o artífice objetiva é o que ele próprio
fabrica. A natureza não depende do homem. Do grego physis, quer dizer “aparecer por si
mesma”. Nela o processo de fazer-se se confunde com o objetivo final, ao contrário do que
acontece na fabricação. A semente contém em si a finalidade de ser árvore. Há um
automatismo. No trabalho, o processo é um meio para se chegar ao produto final. A natureza
absolutamente não se confunde com a fabricação.
Quando se quer obter objetivos em curto prazo, facilmente se recorre à violência. Por
ser previsível nos resultados, pois tal ato violento é um meio para se efetivar determinado fim,
e reversível, pois se assemelha ao processo de fabricação onde o artífice pode destruir sua
obra a qualquer momento, ela é uma proposta tentadora. Porém não há nada mais
determinista, não-libertador e não-empoderador do que isso. Para tal problema, tal diagnóstico
e tal remédio. Está já tudo catalogado e é só aplicá-lo na realidade concreta como um manual
de instruções ou receita. Não há espaço para a criatividade. Tudo se torna adequação ao já
dado, já experimentado, já percorrido. O princípio do utilitarismo está sempre como pano de
20
fundo nessa estação: para tal fim, percorre-se por tal via. É fácil e prático. A natalidade é
suprimida porque se nega que há algo de novo para acontecer. E
[...] o perigo da violência, mesmo se ela se move conscientemente dentro de uma estrutura não-extremista de objetivos de curto prazo, sempre será o de que os meios se sobrepõem ao fim. Se os objetivos não são alcançados rapidamente, o resultado será não apenas a derrota, mas a introdução da prática da violência na totalidade do corpo político. [...] a prática da violência, como toda ação, muda o mundo, mas a mudança mais provável é para um mundo mais violento. (ARENDT, 1994, p. 58).
A implicação do utilitarismo nas relações é a de que a violência precisa de
justificação. Ela necessita de uma desculpa pelo qual as pessoas a aceitem como um motivo
justo e tolerável. Sendo instrumental, a violência necessita de justificação. Nada disso pode
ser fim em si, sempre está a serviço de um “para”. Todo “meio” precisa de uma justificação,
que está no fim que deseja chegar. A violência não pode ser fim no sentido de finalidade, mas
possui começo em fim bem definidos, bem como a fabricação.
O fim justifica a violência cometida contra a natureza para que se obtenha o material, tal como a madeira justifica matar a árvore e a mesa justifica destruir a madeira. [...]. Durante o processo de trabalho, tudo é julgado em termos de adequação e serventia em relação ao fim desejado, e nada mais. (ARENDT, 1995, p. 166).
Dar desculpas para os atos mais bárbaros se tornou natural. A palavra não mais
revela, como nos diz Hannah Arendt, serve para esconder e aprisionar as pessoas mais ainda
para dentro de suas cascas, com slogans do tipo: “é necessário cada um fazer sua parte
(isoladamente)”, “o mundo está perdido, não vou gastar minhas energias em algo que não traz
resultados”; são reflexo de que está dando certo para quem propaga e lucra com a
fragmentação, como a mídia corporativa, que tem um público que não confere se o que se está
veiculando é mesmo verdade, então colocando as opiniões que os patrocinadores querem que
seja verdade. Também os políticos corruptos que contam com a desinformação e a
desarticulação da população, a falta de debates nos temas fundamentais, tornando precária a
assistência estatal, desconexa com a vida da população. A desarticulação das comunidades na
busca de direitos para o local onde moram, perpetuando a miséria na periferia, origem de
muitos outros problemas como a violência, o tráfico de drogas, prostituição, a perda da
sensibilidade para com a dignidade das pessoas, o que, no fundo, é uma resposta a uma
sociedade excludente, do sucesso e da desigualdade. Tudo isso se justifica facilmente numa
ótica utilitarista. Para se ter a esperança de chegar a ser vencedor, “devo me resignar ao fato
de que devem existir perdedores, mesmo que no momento eu esteja no meio desses...”.
21
2.2.1 A violência e o contexto histórico de Hannah Arendt
Nossa autora escreve num contexto específico. Ela tem um método próprio,
deslocando-se como numa lacuna “entre o passado e o futuro”, mas refletindo com os pés no
seu momento histórico. Sua obra está intimamente ligada com os acontecimentos que estão na
pauta do dia. Ela não busca universalizações que sejam atemporais ou descontextualizadas. A
violência só é o foco de Arendt por ela ter sentido isso como essencial para análise: o
desenvolvimento dos implementos de guerra e, com isso, a disseminação da mentalidade
cientificista, desqualificada por Arendt como pseudociência. Ainda vinculado a isso há certa
tendência de tentar justificar a violência vigente com uma concepção biologista do homem e
consequentemente das ciências sociais, relacionando a violência à irracionalidade. Hannah
Arendt publicou Sobre a Violência no ano de 1969, em meio ao contexto da guerra do Vietnã,
a Nova Esquerda, a revolução estudantil de 68, os movimentos de resistência violenta ou de
descolonização, os focos de resistência com a desobediência civil e os temores da guerra
nuclear. Arendt parte da análise do momento, dos problemas concretos da pauta política. Nos
Estados Unidos, desde os anos 50, o momento era de embate de forças antagônicas, que
resultou nos “movimentos por direitos civis” nos anos 60; e aproveitando esse momento, as
massas negras e outros segmentos, até então privadas de muitos direitos, lutam para mudar a
estrutura social vigente. São dessa época o movimento de jovens negros, os “Panteras Negras”
e os “Black Power”, a nova Esquerda, o movimento contra a guerra do Vietnã que mobilizou
a opinião pública por sua causa.
É importante perceber que alguns movimentos pregavam a desobediência civil, o
direito de protesto não violento e outros meios de resistência não-violenta. Mesmo depois da
experiência da II Guerra e dos totalitarismos, porém, a violência continuava a ser o
denominador comum da política. O progresso tecnológico avançava para aprimorar os meios
de violência, os Estados democráticos desgastados pela burocracia partidária e as polícias
reprimiam duramente os focos de movimentos. No prefácio do livro Sobre a Violência Celso
Lafer afirma diretamente o que Arendt coloca como de pano de fundo nos acontecimentos:
Hannah Arendt mostra como o século XX encontrou, na violência e na multiplicação de seus meios pela revolução tecnológica, o seu denominador comum [...] (e) a maciça intromissão da violência criminosa, em larga escala, na política. (LAFER apud ARENDT, 1994, p. 7).
São exemplos disso a bomba atômica de Hiroshima e Nagasaki, os campos de
concentração, o genocídio e massacres. O século XX foi marcado por ser o tempo onde mais
se desenvolveram artefatos bélicos de destruição massiva. Isto tinha começado no século XIV
22
e XV com o renascimento artístico e cultural, passando pela fundamentação da ciência, com a
revolução industrial, e coroando com a II Guerra Mundial, cruel e ao mesmo tempo higiênica.
Os campos de concentração foram ideados pela mesma razão libertadora da pessoa humana. A
revolução estudantil de 68 em todo o mundo é parte da onda anti-racionalista do século XX,
que está decepcionada com a ciência que produziu as armas nucleares e os velhos padrões
morais, relacionados com educação, sexualidade e prazer. Na França o movimento estudantil
foi um marco porque mobilizou o país inteiro. Ao final de tudo, porém, o partido gaulista, que
no meio da agitação quase entrou em colapso, voltou mais forte que antes. Chegou um
momento em que a insurreição revolucionária se acalmou rapidamente e tudo voltou ao
normal.
A questão da violência na política se torna fundamental no contexto da autora. A
guerra fria, o que ela chama de xadrez apocalíptico onde se um vencer é o fim para todos, tem
como objetivo, não mais como nas guerras anteriores que findavam com a vitória de um dos
lados, mas o arbítrio e a dominação. O argumento implícito ai é o de que a preparação para a
guerra, desenvolvendo e acumulando implementos bélicos, é a melhor garantia para a “paz”.
A paz aqui pode ser entendida como passividade diante da segurança do status quo. O
totalitarismo, para se auto-sustentar precisa dar segurança às pessoas, mesmo que com
repressão e dominação.
Tudo isso continua porque ainda não entrou em cena nada que possa ser uma
alternativa eficaz. A ação criadora perde espaço para os sistemas deterministas, onde não há
nada de novo. Tudo é síntese do mesmo. A violência se auto-sustenta, pelo menos no início,
através disso: parece não haver alternativa melhor à que está aí, o que gera passividade.
A violência brota da eficiência dos seus implementos. Todo sistema de governo, até o
tirânico, a forma menos poderosa, depende da opinião dos súditos e de associados que o
ajudem na tarefa da violência. Como afirma Arendt, “mesmo o tirano, o Um que governa
contra todos, precisa de ajudantes na tarefa da violência, ainda que seu número possa ser
restrito [...] e [...] nunca é possível sem instrumentos.” (ARENDT, 1994, p. 35). A violência,
sendo instrumental, está justificando o utilitarismo que está no fundo fundamentando essa
concepção: “A violência é por natureza instrumental; como todos os meios, ela sempre
depende da orientação e da justificação pelo fim que almeja.” (ARENDT, 1994, p. 40-41). A
razão, luz esclarecedora da “Idéia Suprema”, também se tornou instrumental, estando a
serviço da violência como fabricação. Não é por pouco que a violência e a fabricação são tão
íntimas.
23
Os cientistas sabem, é claro, que o homem é o fabricante de ferramentas que inventou as armas de longo alcance que o liberaram das restrições ‘naturais’ que encontramos no reino animal, e aquela fabricação de ferramentas é uma atividade mental altamente complexa. (ARENDT, 1994, p. 47).
A mentalidade cientificista é o mal da modernidade e da contemporaneidade. Nos
conselhos de governos cresce a procura de superespecialistas como forma de fazer as coisas
relacionadas com a administração pública, da melhor forma possível.
Em vez de entregarem-se a esta atividade antiquada e improcessável (de pensar), calculam as conseqüências de certas suposições hipoteticamente assumidas, sem, contudo serem capazes de testar suas hipóteses contra as ocorrências reais. A falha lógica nestas construções hipotéticas dos eventos futuros é sempre a mesma: aquilo que primeiro aparece como uma hipótese – com um sem as suas alternativas implicadas, conforme o grau de sofisticação – torna-se imediatamente, em geral, após uns poucos parágrafos, um ‘fato’, o que então origina toda uma corrente de não-fatos similares, daí resultando que o caráter puramente especulativo de toda a empreitada é esquecido. Não é preciso dizer que isto não é ciência, mas pseudociência, ‘a desesperada tentativa das ciências sociais e comportamentais’, nas palavras de Noam Chomsky, ‘de imitar as características superficiais das ciências que tem um conteúdo intelectual significativo’. E a mais óbvia e ‘mais profunda objeção a este tipo de teoria estratégica não é a sua limitada, mas o seu perigo, pois ela pode nos levar a acreditar que temos um entendimento a respeito desses eventos e um controle sobre o seu fluxo, o que não temos’ [...]. (ARENDT, 1994, p. 15).
Este longo fragmento explica bem o que Arendt pensa sobre os governos que se
assentam na falsa ilusão do que há de mais moderno, nos artefatos tecnologicamente mais
desenvolvidos, no conhecimento das técnicas mais avançadas. O governo administrativo se
fundamenta na atividade humana da fabricação. Nessa atividade não entra ética porque não há
alteridade, não há relações entre iguais e o produto fabricado não é construído em conjunto,
mas por um indivíduo capacitado, no isolamento. Por isso o desenvolvimento tecnológico e de
implementos da violência, por maior que seja, não implica necessariamente num salto
qualitativo no campo da ética.
A sociedade de massa leva ao despotismo e à matematização da realidade. O ideal
científico não é mero inocente: as pessoas aceitam cegamente o que lhes colocam como
“cientificamente comprovado”. Arendt ironiza de forma forte contra a superespecialização nos
governos, que quer tornar a civilização num bando de “macacos supercivilizados” – ou pior,
de “homens transformados em galinhas ou ratos”, governados por uma “elite” que deriva seu
poder “dos sábios conselhos de assessorias intelectuais” e que, de fato, acredita que os
assessores são pensadores, e que computadores podem pensar;
os conselhos vão acabar tornando-se incrivelmente insidiosos e, em vez de almejarem objetivos humanos, podem visar problemas completamente
24
abstratos, que tenham sido transformados de maneira inédita em um cérebro artificial. (ARENDT, 1994, p. 60).
Para Arendt, a atitude cientificista e superespecializada na política brota de uma
expressão técnica do homem. A verdadeira pessoa humana aqui não é a que age e fala, mas o
homo faber. Daqui decorre a origem da glorificação da violência.
Diante desse contexto, ainda há muitas correntes que tentam justificar a violência
como sendo natural ao homem, com tentativas de provas tiradas da biologia e do
comportamento dos animais. Mas os problemas humanos não podem ser reduzidos aos
comportamentos animais. O humano é mais complexo que isso.
Para se saber que um povo irá lutar pela sua terra, dificilmente teríamos que descobrir instintos de ‘territorialismo grupal’ em formigas, peixes e macacos; e para se saber que a superpopulação resulta em irritação e agressividade, não é necessário fazer experiências com ratos. Um só dia passado em uma favela nas grandes cidades teria sido suficiente. (ARENDT, 1994, p. 45).
Dizer que os comportamentos agressivos estão relacionados com instintos
animalescos na pessoa humana tendem “a fazer do comportamento violento uma reação ainda
mais ‘natural’ do que estaríamos preparados para admiti-lo em sua ausência.” (ARENDT,
1994, p. 46).
Também Bergson, Nietzsche e Marx pensavam a violência como criatividade, a força
estimulante da vida, e a produtividade da sociedade. O poder nessa concepção se atrela a
violência e, assim como a vida, precisa se expandir para sobreviver porque o “instinto” de
crescer lhe é próprio.
Na opinião da nossa autora é perigoso pensarmos as relações humanas de forma
organicista. Nessa ótica poder e violência decorrem das relações, não propriamente humanas,
onde vigoram outras leis, diferente do valor da liberdade, onde os conceitos de poder e
violência de destruição e submissão coincidem. Essa ótica se baseia numa suposta criatividade
e dinamicidade da vida biológica. As implicações disso são desastrosas: destruição e criação
são as duas faces do mesmo processo natural, de modo que a ação violenta coletiva [...] pode
parecer tão natural enquanto um pré-requisito para a vida coletiva da humanidade, quanto à
luta pela sobrevivência e a morte violenta em nome da continuação da vida, no reino animal.
Vale citar uma ilustração feita por Arendt no que se refere ao racismo como fruto
dessa mentalidade. Sendo assim, não é só um fato normal constatado da vida, mas uma
ideologia:
O racismo, branco ou negro, é por definição repleto de violência porque contesta fatos orgânicos naturais – uma pele branca ou negra – que nenhuma
25
persuasão o poder poderia mudar; tudo o que se pode fazer, jogadas as cartas, é exterminar seus portadores. (ARENDT, 1994, p. 55).
O maior perigo é o de que se justifique o racismo com alguma ideologia, posto que a
violência precisa ser sempre justificada.
Daqui decorre que a violência não é fruto de uma irracionalidade instintiva ou dum
impulso biológico, mas daquela racionalidade que os modernos tanto glorificaram. A
definição do homem como animal racional vem de um dualismo onde a res cogitans é algo
que só acrescenta ao que já está aí. O homem é também um ser instintivo e o elemento
adicional da razão o torna ainda mais perigoso. “É o uso da razão que nos torna
perigosamente ‘irracionais’, pois esta razão é propriedade de um ‘ser originalmente
instintivo’.” (ARENDT, 1994, p. 47). Essa concepção é também fruto de um biologismo, com
o elemento adicional da razão.
A justificação da violência, a racionalidade e a atividade do trabalho andam sempre
juntas:
A violência, sendo instrumental por natureza, é racional à medida que é eficaz em alcançar o fim que deve justificá-la. E, posto que, quando agimos [referência a ação empoderada], nunca sabemos com certeza quais serão as conseqüências eventuais do que estamos fazendo, a violência só pode permanecer racional se almeja objetivos a curto prazo. (ARENDT, 1994, p. 58).
Arendt encontra nos acontecimentos do seu tempo, não uma busca por experiências
místicas fora da consciência racional e esclarecida, mas a busca pela racionalidade, tanto para
justificar, quanto para manipular de forma hipócrita pela palavra. “Só podemos nos fiar nas
palavras se estamos certos de que sua função é a de revelar, e não a de esconder.” (ARENDT,
1994, p. 49).
2.2.2 A Violência e a Tradição
Geralmente o que é óbvio passa por trabalhado e não se dá conta da sua distinção
conceitual e das suas implicações. A violência na tradição política, desde Platão, desempenha
um papel importante e até determinante, porém poucos sentiram a necessidade de desenvolver
esse conceito. Diante do fato de que a edição da Enciclopédia de Ciências Sociais não
mencionar o termo “violência”, Arendt comenta: “Isto indica o quanto a violência e sua
arbitrariedade foram consideradas corriqueiras e, portanto, desconsideradas; ninguém
questiona ou examina o que é óbvio para todos.” (ARENDT, 1994, p. 16).
26
Mas Arendt faz uma coletânea de fragmentos de autores, clássicos e contemporâneos
seus confirmando sua tese: “Clausewitz denominando a guerra como ‘a continuação da
política por outros meios’, ou se Engels definindo a violência como o acelerador do
desenvolvimento humano” (ARENDT, 1994, p. 17); ainda Engels afirma “‘onde quer que a
estrutura de poder de um país contradiga o seu desenvolvimento econômico’, será o poder
político, juntamente com seus meios de violência, que sofrerá a derrota.” (ARENDT, 1994, p.
17). Sartre “afirma que ‘a violência incontrolável... é o homem recriando-se a si mesmo’, que
é por meio da ‘fúria louca’ que os ‘desgraçados da Terra’ podem ‘tornar-se homens’.”
(ARENDT, 1994, p. 19). Marx afirma que “o Estado era um instrumento de opressão nas
mãos da classe dominante.” (ARENDT, 1994, p. 31). Bertrand de Jouvenel: a guerra pertence
à essência dos Estados. (ARENDT, 1994, p. 31).
Essas colocações brotam comumente do pensar os fenômenos de poder e violência
como equivalentes. A tradição não conseguiu perceber a diferença desses dois conceitos e por
isso, tanto o senso comum, como os próprios acadêmico, concebiam “poder” como a relação
de mando e submissão. A maioria dos teóricos, tanto da esquerda ou da direita, definem: “toda
política é uma luta pelo poder; a forma básica do poder é a violência”, como afirma C. Wright
Mills, comentado Weber, na sua exclamação: o Estado como “o domínio do homem pelo
homem baseado nos meios da violência legítima, quer dizer, supostamente legítima.”
(ARENDT, 1994, p. 31). Para Voltaire, o poder “consiste em fazer com que os outros ajam
conforme eu escolho.” (ARENDT, 1994, p. 32); ainda Jouvenel: “Comandar e obedecer, sem
isto não há poder – e, com isto, nenhum atributo é necessário para que ele exista... Aquilo sem
o que não há poder: essa é a essência é o comandar.” (ARENDT, 1994, p. 32).
Mas essa submissão ou obediência derivam de onde?
Tal apoio nunca é inquestionável, e no que concerne à segurança ele não pode alcançar a ‘obediência inquestionável’ que de fato, um ato de violência pode impor – a obediência com a qual pode contar todo criminoso quando me arrebata a carteira com a ajuda de um faca, ou rouba um banco com a ajuda de uma arma.
Arendt interpreta os autores clássicos da tradição política no sentido de não
distinguirem os dois conceitos chaves de seu pensamento. Se fosse como os teóricos
pensavam, o homem não seria mais do que um animal condicionado às determinações da vida
e dos processos. Não haveria liberdade e muito menos ações criativas e iniciadoras. A
autoridade se resumiria na simplista idéia de comando por meio da força e do medo, não de
confiança, esperança, liberdade.
Se a essência do poder é a efetividade do comando, então não há maior poder do que aquele emergente do cano de uma arma, e seria difícil dizer
27
‘em que medida a ordem dada por um policial é diferente daquela dada por um pistoleiro’. (ARENDT, 1994, p. 32).
Arendt diz, porém, que quem não entende dessa forma, que pensa conforme a
tradição deve ser compreendido. Para ela essa incompreensão vem da nossa ânsia por obter
resultados sempre a curto prazo, sem fazer processos. A busca por superespecialistas nas
administrações dos governos e a grande intromissão da violência na política vem dessa ânsia.
Para se obter tal resultado, é necessário fazer tal movimento e, pensa-se, tudo se resolve “num
passe de mágica”. “Fundamentalmente por causa da condição humana da mortalidade, o eu
qua eu não pode raciocinar em termos do interesse de longo prazo, quer dizer, o interesse de
um mundo que sobrevive aos seus habitantes.” (ARENDT, 1994, p. 57). Queremos as coisas
de imediato, ver resultados das nossas ações. Por isso a violência está atrelada ao medo da
morte, a mortalidade, enquanto a ação está ligada a natalidade, ao nascimento, que independe
dos indivíduos isolados, mas de uma continuidade histórica.
28
3 O PODER QUE EMANA DA AÇÃO
Ação é a atividade humana exercida em parceria entre semelhantes, na pluralidade. É
a atividade da vita activa mais humana. Ela é a possibilidade do novo e do milagre. O
aparecimento do homem no meio da natureza é um fato milagroso porque não é só mais
alguma derivação ou desdobramento do ser originário, mas um ser criador e iniciador de
processos novos. A atividade da ação, então, é a atividade criadora.
Poder designa a possibilidade dos homens de criarem juntos. Não há poder se não
existe articulação, movimentação das pessoas, mais do que para fazerem algo, mas para
“serem com”. Poder é em si uma dinâmica que mantém unidas as pessoas pelo puro prazer de
estarem e criarem juntos. Enquanto estão juntos, cada um empresta seu potencial de poder aos
outros, como que em um elo que os mantém ligados.
A ação é fugaz e efêmera. Ela passa e já não existe mais. Precisa de algo que
mantenha o espaço da pluralidade, da diferença. Ser “indiferente” é pensar que o outro é igual
ao eu, e nem precisar se dar ao trabalho de descobrir se isso é verdade... A ação revela o ser
humano que se dá a conhecer e o poder é o que mantém viva a lembrança da existência alheia.
A ação é a fonte e o poder é a dinâmica que a mantêm estável e durável. Vamos desenvolver
melhor esses dois conceitos e suas implicações na teoria política e no conceito de história.
3.1 AÇÃO
São próprias ao homem duas dimensões: vita activa e vita contemplativa. O nosso
foco é a primeira. Vita activa designa três atividades correspondentes à condição básica pela
qual a vida nos foi dada na terra: labor, trabalho e ação. Labor corresponde aos processos
básicos do corpo humano. Tem a ver com a manutenção da vida na sua forma mais elementar.
“A condição humana do labor é a própria vida” (ARENDT, 1995, p. 15). O trabalho
corresponde à capacidade do homem de fabricar objetos que lhe facilitem a vida. É a
dimensão utilitária da vida humana. “A condição humana do trabalho é a mundaneidade.”
(ARENDT, 1995, p. 15). A ação é a atividade do homem sem mediação material. A única
mediação é a pluralidade. Não é o Homem que vive na terra, mas homens habitam o mundo.
É a atividade da vida política.
A ação é a atividade humana em meio a outros homens. É a condição humana da
pluralidade. Na obra A Condição Humana, Arendt a coloca em uma das atividades
fundamentais da vita activa e a atividade em que o homem exerce o que lhe é mais humano.
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Todas as atividades possuem algo de político, mas a ação é a condição de toda a vida política,
pois cria possibilidades para o exercício da liberdade e a novidade. A ação não acontece por
mediações materiais, mas diretamente entre os homens. Não é por outra causa que a relação
política acontece, ela é a própria finalidade. A ação, em Hannah Arendt, corresponde a uma
atividade superior às demais porque diferencia a pessoa humana dos demais seres.
Neste sentido de iniciativa, todas as atividades humanas possuem um elemento de ação e, portanto, de natalidade. Além disso, como a ação é a atividade política por excelência, a natalidade, e não a mortalidade, pode constituir a categoria central do pensamento político, em contraposição ao pensamento metafísico. (ARENDT, 1995, p. 17).
As pessoas não são totalmente diferentes porque senão não se entenderiam, mas ao
mesmo tempo são seres únicos e constroem o seu diferencial pela ação e pelo discurso. Se não
houvesse diferenças não precisaríamos desses dois elementos de revelação do agente. “A
pluralidade humana é a paradoxal pluralidade de seres singulares.” (ARENDT, 1995, p. 189).
A identidade do indivíduo é constituída através de sua revelação.
A alteridade se dá a partir da distinção e da definição. Na matéria inorgânica só há
multiplicações. No mundo animal começa a haver diferenças entre os indivíduos de cada
espécie. A pessoa humana tem a sua diferença na capacidade de expressar-se e não apenas
alguma coisa.
O ser humano organiza juízos lógicos em proposições e possui inclusive a
capacidade de comunicá-los a outro alguém. O ser humano é assim um ser de linguagem.
Arendt traduz isso como capacidade humana do discurso, que tem a função reveladora do ser
humano. No discurso a pessoa humana revela quem é:
Só o homem, porém, é capaz de exprimir essa diferença e distinguir-se; só ele é capaz de comunicar a si próprio e não apenas comunicar alguma coisa – como sede, fome afeto, hostilidade e medo. (ARENDT, 1995, p. 189).
Nenhum outro animal articula sons com sentido da mesma complexidade do que os
da pessoa humana. Essa é uma das características fundamentais que lhe conferem o seu ser
próprio e singular.
É interessante para a nossa temática citar como nossa autora compreende a
importância da política. No livro A dignidade da política (2002a, p. 40) Arendt expõe que “as
armas e a luta, entretanto, pertencem à atividade da violência, e a violência, distinguindo-se
do poder, é muda; a violência tem início onde termina a fala. Quando usadas com o propósito
de lutar, as palavras perdem sua qualidade de fala; transformam-se em clichês.” As relações
de violência, como podemos exemplificar com o caso de um governo totalitário, para se
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manterem, necessitam abolir o espaço das pessoas de expressar-se. No Brasil a expressão
disso é o famoso AI-5, que restringiu as publicações de manifestações de natureza política.
E isto originalmente significava (discurso) não apenas que quase todas as ações políticas, na medida em que permaneciam fora da esfera da violência, são realizadas por meio de palavras, porém, mais fundamentalmente, que o ato de encontrar as palavras adequadas no momento certo, independentemente da informação ou comunicação que transmitem, constitui uma ação. Somente a pura violência é muda, e por este motivo a violência, por si só jamais pode ter grandeza. (ARENDT, 1995, p. 35).
Outra característica fundamental é a da relacionalidade. O ser humano é um ser de
comunidade na liberdade. Pela definição de Rabuske, “na comunidade o indivíduo continua
livre, e também se sente livre e responsável.” (1981, p. 150). Por isso ele consegue construir
uma comunidade, uma rede ou teia de relações onde se cultiva a liberdade. Os animais se
associam por instinto de sobrevivência. O ser humano, além de ser naturalmente político, quer
ser político. Essa categoria, para Arendt, constitui a ação.
A política produz o que é grande e luminoso. Pode-se conceituar como energéia
(efetividade) no sentido de que o agir e a palavra são as maiores realizações do ser humano,
sem uma finalidade (télos). É viver bem. Isso não se consegue com o trabalho, mas só existe
na pura efetividade da ação. O comportamento humano é julgado por padrões morais, mas a
ação é julgada por sua grandeza, pois a ação rompe com os padrões consagrados, o que é
extraordinário e diferente da vida cotidiana.
Na leitura de Bertem (2004), Arendt está próxima a uma concepção de essência
própria do ser humano como político. Para ele Arendt se aproxima muito da tradição
aristotélica. Porém, na leitura de O que é política? (2002b), Arendt alerta para não
essencializar o homem, pois “a política surge no entre-os-homens; portanto, totalmente fora
dos homens. Por conseguinte, não existe nenhuma substância política original.” (ARENDT,
2002b, p. 23). “Só existe liberdade no intra da política.” (ARENDT, 2002b, p. 24). Postular
uma natureza seria dissolver a política na História global, como se fosse necessária e única.
Isso é dissolver a pluralidade e a liberdade. Concluímos a partir disso que Arendt se aproxima
sim da tradição aristotélica, mas a natureza humana de Aristóteles é construída pela relação
aberta ao novo das ações dos agentes da política.
As duas dimensões, da ação e do discurso, constituem outra categoria mais geral: a
ação propriamente dita. A ação está no topo da valoração dos elementos da vita activa. São os
elementos da ação e do discurso que conferem dignidade à política. A ação é a atividade
propriamente humana, correspondente a sua dimensão política. Na ação e no discurso as
pessoas humanas interagem entre si como tais.
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Através deles o homem pode distinguir-se, ao invés de permanecer apenas diferentes; a ação e o discurso são os modos pelos quais os seres humanos se manifestam uns aos outros, não como meros objetos físicos, mas enquanto homens. Esta manifestação, em contraposição a mera existência corpórea, depende da iniciativa, mas trata-se de uma iniciativa da qual nenhum ser humano pode abster-se sem deixar de ser humano. (ARENDT, 1995, p. 189).
A ação e o discurso em Arendt revelam o agente livre, iniciador de processos. Isso
constitui a capacidade de novidade dos seres humanos, livre (em partes) de determinismos e
condicionamentos. A ação precisa do discurso e o discurso precisa da ação. O conceito grego
deste é a práxis.
De qualquer modo, desacompanhada do discurso, a ação perderia não só seu caráter revelador como, e pelo mesmo motivo, o seu sujeito, por assim dizer: em lugar de homens que agem teríamos robôs mecânicos a realizar coisas que seriam humanamente incompreensíveis. Sem o discurso, a ação deixaria de ser ação, pois não haveria ator; e o ator, agente dos atos só é possível se for ao mesmo tempo, o autor das palavras. A ação que ele inicia é humanamente revelada através de palavras; e, embora o ato possa ser percebido em sua manifestação física bruta, sem acompanhamento verbal, só se torna relevante através da palavra falada na qual o autor se identifica, anuncia o que fez e o que pretende fazer. (ARENDT, 1995, p. 191).
A ação e o discurso revelam a identidade pessoal e singular do agente. Diferente de
expressar o “que” alguém é (qualidades, defeitos, aspirações, etc.), revela o “quem” de quem
fala ou age. Sem revelar o agente a ação torna-se vazia, e é como qualquer feito. Torna-se
como a fabricação.
Isso ocorre sempre que deixa de existir convivência, quando as pessoas são meramente ‘pró’ ou ‘contra’ os outros, como ocorre, por exemplo, na guerra moderna, quando os homens entram em ação e empregam meios violentos para alcançar determinados objetivos em proveito de seu lado e contra o inimigo. Nessas circunstâncias, que naturalmente existiram, o discurso transforma-se em mera ‘conversa’, apenas mais um meio de alcançar um fim, quer iludindo o inimigo, quer ofuscando a todos com propaganda. Neste caso, as palavras nada revelam; a revelação advém exclusivamente do próprio feito, e este feito, como todos os outros, não desvenda o ‘quem’, a identidade única e distinta do agente. (ARENDT, 1995, p. 193).
Na ação, o discurso não pode ser usado por intenções utilitaristas. Em outras
atividades ele desempenha papel secundário de comunicação de coisas, porém ele pode ser
substituído pela violência muda.
Sendo pessoa humana, a condição fundamental é a da ação. Ela exerce sua maior
humanidade agindo livremente com os outros. O agir é ser pessoa e expressar-se. No
isolamento a pessoa é como se não fosse. É preciso comunicar o “quem”. Numa obra “feita”
com a atividade do trabalho humano não é relevante conhecermos o autor para apreciá-la. Ela
não possui outro sentido além do que está materializado no quadro. Isso não se aplica a ação,
que precisa estar associada ao seu ator.
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Com a afirmação do zoon politikon, animal político, Arendt contrapõe o singularismo
heideggeriano e moderno. Ela recorda de Aristóteles que o homem é um ser naturalmente
político, mas vai mais além, ele é mais político ainda porque possui a capacidade da
linguagem. Alguns animais vivem agregados, como as abelhas, as formigas e outros, mas
linguagem não é só um conjunto de sons, é o acrescentar algo, conhecimentos, sentimentos,
qualidades e outros.
Para Arendt o elemento do discurso está intimamente ligado a ação política, que é a
esfera que possibilita a comunicação, não de qualquer informação, mas é manifestação da
humanidade. Esse espaço chama-se espaço da aparência ou domínio público. Ai há a presença
do outro que me aparece. O que não possui aparência não possui realidade.
A política foi fundamentada na antiguidade pela natureza humana; no medievo, foi
fundamentada por uma divindade e na modernidade fundou-se na racionalidade. Hannah
Arendt funda a política nas condições da existência humana, mais especificamente a da
pluralidade e da natalidade.
O que quer que toque a vida humana ou entre em duradoura relação com ela, assume imediatamente o caráter de condição da existência humana. [...]. Tudo o que espontaneamente adentra o mundo humano, ou para ele é trazido pelo esforço humano, torna-se parte da condição humana. (ARENDT, 1995, p. 17).
Com o discurso e a ação nos inserimos no mundo humano. No sentido etimológico
mais geral, agir significa começar (archein), imprimir movimento a algo. Pelo fato de terem
nascido, as pessoas tomam iniciativas, são motivados a agir. “Trata-se de um início que difere
do início do mundo; não é o início de uma coisa, mas de alguém que é ele mesmo um
iniciador.” (ARENDT, 1995, p. 190). A todo início e origem há a imprevisibilidade, algo novo
que não poderia ser previsto de qualquer ação anterior. O sujeito agente pode realizar algo
totalmente inesperado e improvável. A ação corresponde ao fato do nascimento, que é
novidade e possibilidade do inesperado; enquanto o discurso ao fato da pluralidade, que é o
viver singular entre iguais.
Um fato novo é aquele que escapou à previsibilidade e que saiu fora dos
determinismos. A “surpresa” é a característica de todo o início, toda origem. Ao longo da
origem e da caminhada do planeta, aconteceram muitos saltos qualitativos: a origem da vida a
partir da matéria inorgânica ou a origem da vida humana a partir da vida animal.
O novo sempre acontece à revelia da esmagadora força das leis estáticas e de sua probabilidade que, para fins práticos e cotidianos equivale à certeza; assim, o novo sempre surge do sob o disfarce do milagre. O fato de que o homem é capaz de agir significa que se pode esperar dele o inesperado, que ele é capaz de realizar o infinitamente improvável. E isto só é possível
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porque cada homem é singular, de sorte que, a cada nascimento, vem ao mundo algo singularmente novo. (ARENDT, 1995, p. 191).
No momento em que nos esforçamos em tentar dizer “quem” alguém é, nos
frustramos porque falamos mesmo o “que” esse alguém é, suas características, qualidades. A
mesma dificuldade é encontrada na tentativa de definição da natureza humana. Dizemos as
suas características e não “quem” de fato é a pessoa. Essa impossibilidade de expressar a
essência viva da pessoa tem algumas implicações. Não podemos tratar dos negócios humanos,
onde o discurso e a ação assumem elementos principais na revelação do agente, da mesma
forma que as coisas que podemos dispor, pois podemos nomeá-las. Outro aspecto é o da
“incerteza de todo intercâmbio direto entre os homens, onde não existe a mediação
estabilizadora e solidificadora das coisas.” (ARENDT, 1995, p. 194). Das relações não
podemos determinar nenhum resultado necessário. A ação é relação aberta.
A ação é a efetivação da condição humana da natalidade e o discurso é a efetivação
da condição humana da pluralidade. Pelo discurso o agente se expressa na ação e sem ela a
ação não pode ser tal, pois não há ator.
A ação que ele inicia é humanamente revelada através de palavras; e, embora o ato possa ser percebido em sua manifestação física bruta, sem acompanhamento verbal, só se torna relevante através da palavra falada na qual o ator se identifica, anuncia o que fez, faz e pretende fazer. (ARENDT, 1995, p. 191).
No encontro das pessoas elas revelam quem são. As mediações para isso são o
discurso e a ação. A ação e o discurso acontecem enquanto revelam o agente, mesmo que o
conteúdo seja sobre o mundo, e que envolvam certos interesses. Além da mediação por
interesse, os homens agem e falam uns com os outros, e isto não é materializável, não
deixando de ser menos real que o primeiro. A esta realidade chamamos de “teia” de relações
humanas. As pessoas, mesmo que empenhadas em alcançar objetivos materiais se revelam
como sujeitos distintos e singulares dos outros. Ignorar que é inevitável que as pessoas se
relacionem como sujeitos distintos e singulares, é o erro básico do materialismo político.
Mesmo que a revelação do agente se refira a uma realidade física e mundana, ela é
revestida e constituída por atos e palavras que se originam do fato de que as pessoas agem e
falam umas com as outras. O resultado disso não é nada material, mas essa realidade é tão real
quanto o mundo tangível. A essa realidade se denomina teia das relações humanas.
É verdade que essa teia é tão vinculada ao mundo objetivo das coisas quanto o discurso é vinculado à existência de um corpo vivo; mas o vínculo não é de uma fachada ou, na terminologia de Marx, de uma superestrutura essencialmente supérflua afixada à estrutura útil do edifício. O erro básico de todo materialismo político – materialismo este que não é de origem marxista nem sequer moderna, mas tão antigo quanto a história da teoria política – é
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ignorar sua inevitabilidade com que os homens se revelam como sujeitos, como pessoas distintas e singulares, mesmo quando empenhadas em alcançar um objetivo completamente material e mundano. (ARENDT, 1995, p. 195-196).
A esfera das relações consiste na teia das relações humanas que está presente onde
existem pessoas vivendo juntos. A revelação da identidade incide numa teia de relações já
existentes. Essa revelação muda radicalmente o futuro de todos os que estiverem
relacionados. No meio das inúmeras vontades conflitantes a ação quase nunca chega a atingir
seu objetivo. Para nosso estudo isso é importante, pois pode tornar tentadora a violência
porque atinge seu objetivo primeiro. A violência nesse enfoque se distingue profundamente da
ação. A ação engloba as vontades conflitantes em si, enquanto que a violência é resultado de
uma vontade dominadora, que engendra um processo parecido com o da fabricação em que o
produto final tem uma grande semelhança com o que foi pensado ou objetivado na mente do
homo faber.
É em virtude desta teia preexistente de relações humanas, com suas inúmeras vontades e intenções conflitantes, que a ação quase sempre deixa de atingir seu objetivo; mas é também graças a esse meio, onde somente a ação é real, que ela ‘produz’ histórias, intencionalmente ou não, com a mesma naturalidade com que a fabricação produz coisas tangíveis. (ARENDT, 1995, p. 196-197).
Mais adiante, porém, Arendt afirma que a história como tal é de natureza diferente de
reificações. Mesmo que nos insiramos no mundo por palavras e ações não é o agente
revelador que “faz” sua história. Esse alguém pode iniciá-la e dela ser agente, mas ninguém
dela é autor. Numa condição pré-política ou pré-histórica da História, pode-se falar que a
história tem um início e um fim. Início com o nascimento e fim com a morte. Toda a vida
humana constitui uma história e a História é, depois, o grande livro de histórias com muitos
atores e narradores. Os motivos disso é que resultam da ação. Qualquer série de eventos
constitui uma história com um sentido peculiar, mas mesmo com dificuldade conseguimos
isolar o iniciador do processo, o sujeito e nunca, com certeza se consegue afirmá-lo como
autor do resultado final.
Na história ocidental formularam-se muitos sistemas racionais e ideologias que
tipificaram concepções sobre a pessoa humana, a política, a sociedade e outros. Essas
tentativas de tipificação não são mais do que a pretensão de elaborar racionalmente e
idealisticamente, pois sabemos que o ser humano não se deixa aprisionar numa redoma
conceitual por ser transcendente e por isso não se efetiva na realidade concreta da sociedade.
Por mais libertadoras ou emancipadoras que sejam, são idéias às quais as pessoas terão de se
submeter forçosamente por serem absolutistas. O absolutismo da idéia, querendo ou não, é o
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grande risco do pensamento racional moderno que adéqua as pessoas àquele modelo em nome
do progresso e da ordem.
Por trás da introdução da atividade do trabalho para a historicidade, formula-se uma
concepção histórica determinista e até o que Marx percebeu e teorizou com o conceito de “fim
para a história”.
O que distingue a teoria do próprio Marx de todas as demais teorias em que a noção de ‘fazer história’ encontrou abrigo é somente o fato de que apenas ele ter percebido que, se se toma a história como o objeto de um processo de fabricação ou elaboração, deve sobrevir um momento em que esse ‘objeto’ é completado, e que, desde que se imagina ser possível ‘fazer história’, não se pode escapar à conseqüência de que haverá um fim para a história. Sempre que ouvimos grandiosos desígnios em política, tais como o estabelecimento de uma nova sociedade na qual a justiça será garantida para sempre, ou uma guerra para acabar com todas as guerras, ou salvar o mundo inteiro para a democracia, estamos nos movendo no domínio desse tipo de pensamento. (ARENDT, 1992, p. 114).
A ação possui dois momentos: a fundação e o preservar da ação, o seu início e
desenvolvimento. O processo que a inicia se dá em meio à pluralidade e repercute no todo
igualmente. Não há um final determinado para o processo que repercute constantemente na
história. O nascimento, ligado às três atividades da vita activa, é mais intimamente ligado à
ação. Uma ação, depois de iniciada, é perpétua e não se pode prever suas conseqüências.
Para Platão a práxis que resulta dos negócios humanos não deveria ser tratado com
seriedade. Para ele a história é guiada por um deus que com sua mão movimenta títeres. Na
verdade é a afirmação de que não há um autor da história. Os resultados da teia das relações
humanas vêm muito mais de feitos do que de idéias, porque as grandes idéias tendem a se
totalizar e absolutizar. A história deve a sua existência aos homens, mas não é feita por eles.
Ela é muito mais que o produto de uma ação individual.
A diferença entre a história real e a ficção é precisamente que esta última é ‘feita’, enquanto a primeira não o é. A história real, em que nos engajamos durante toda a vida, não tem criador visível nem invisível porque não é criada. O único ‘alguém’ que ela revela é o seu herói; e ela é o único meio pelo qual a manifestação originalmente inatingível de um “quem” singularmente diferente pode tornar-se tangível ex post facto através da ação e do discurso. Só podemos saber quem um homem foi se conhecermos a história da qual ele foi herói – em outras palavras, sua biografia; tudo o mais que sabemos a seu respeito, inclusive a obra que ele possa ter produzido e deixado atrás de si. (ARENDT, 1995, p. 199).
Ninguém é autor de sua história de vida, mas sujeito dela, pois nos inserimos numa
história já iniciada antes de nós, por palavras e ações, e ela se compõe de mesclas de
revelações de identidade. Herói não é alguém que domina com potência absoluta sobre si e os
outros, mas aquele que produz ações no cotidiano. Nas palavras de Arendt “originalmente,
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isto é, em Homero, a palavra ‘herói’ era apenas um modo de designar qualquer homem livre
que houvesse participado da aventura troiana e do qual se podia contar uma história.” (1995,
p. 199). Essa disposição de dispor-se ao agir e ao discursar requer coragem.
Como uma boa aristotélica, Arendt afirma como valor político a moderação e não a
ambição de poder. Os limites legais são fronteiras seguras para a ação assim como as
delimitações territoriais permitem a existência de um povo. Mas mesmo assim não permite
que mude o caráter de imprevisibilidade da ação. “A imprevisibilidade decorre diretamente da
história que, como resultado da ação, se inicia e se estabelece assim que passa o instante fugaz
do ato.” (ARENDT, 1995, p. 204). Na fabricação a imagem do produto final está pronta e
racionalizada pelo artífice. Na ação o produto final só aparece ao olhar retrospectivo do
historiador ou ao narrador da história quando todos os processos históricos terminam.
O conceito grego de eudeimon significa a felicidade original da pessoa, não
perceptível a ela mesma, que a persegue em sua vida, mas que só se dá a conhecer aos outros.
A essência humana só passa a existir depois que o indivíduo morre. O que fica são as
histórias. Uma conseqüência disso é que para deixar uma fama imortal deve-se morrer
prematuramente. É uma concepção um tanto individualista de revelação da própria
individualidade. Isso decorre, dentre outras coisas, de um fator importante na nossa pesquisa.
Para os gregos o legislador é alguém que atua como um artesão, reificando leis, resultando
num produto final determinado. “Não se trata mais, ou melhor, não se trata ainda de ação
(práxis), mas de fabricação (poiésis), a qual preferem em virtude de sua maior
confiabilidade.” (ARENDT, 1995, p. 208).
A esfera política se dá pela ação em conjunto, de palavras e atos compartilhados em
comum. A ação, portanto, não apenas mantém a mais íntima relação com o lado público do
mundo, comum a todos nós, mas é a única atividade que o constitui. A esfera pública é a
esfera da aparência. A realidade do mundo garante a aparência pelo fato de fazer aparecer aos
outros o que é comum a todos. Existência é o que aparece a todos. O que é desprovido de
aparência é desprovido de existência e realidade. Se morrer é “deixar de estar entre os
homens”, existir é co-existir, e o que não possui aparência é desprovido de realidade. A polis
grega tinha dupla função: fazer do extraordinário (a novidade) um acontecimento freqüente, e
dotar o discurso e a ação de alguma durabilidade. O espaço público dos gregos estava a
serviço dos cidadãos para torná-los imortais. A lembrança das ações comuns torna um pouco
mais durável a efemeridade das palavras e ações.
O espaço público ou a esfera da aparência “não sobrevive(m) à realidade do
movimento que lhe deu origem, mas desaparece não só com a dispersão dos homens [...], mas
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também com o desaparecimento ou suspensão das próprias atividades.” (ARENDT, 1995, p.
212). A degeneração interna do espaço público é um convite a sua destruição. Esse fenômeno
acontece primeiramente com a perda do poder e acaba com a impotência final. O poder só
existe enquanto é efetivado e exercido. Não conseguimos armazená-lo para depois usarmos
como qualquer objeto ou algum instrumento de violência.
“É o poder que mantém a existência da esfera pública, o espaço potencial da
aparência entre os homens que agem e falam.” (ARENDT, 1995, p. 212). O poder é o elo que
mantém certa durabilidade. O artifício humano, do qual o poder é ‘princípio essencial’,
garante a memória, e isso faz com que as ações não caiam no esquecimento, se perdendo
como a palavra falada. A memória do discurso garante a durabilidade da palavra falada. O
poder só é garantido quando o potencial da ação está presente. A ação é fugaz, efêmera, não
resiste se não é mantida pelo poder.
Não nos deteremos muito agora à temática do poder presente no livro A condição
Humana, porque ele será trabalhado posteriormente. Agora nos interessa a sua relação com a
ação e conseqüências.
O poder e a ação se relacionam neste ponto: o poder mantém a ação depois que passa
seu instante de efetivação. O poder e a ação se dependem mutuamente e quase se confundem.
Ambos são ilimitados, efetivam a condição humana da pluralidade. Assim como a ação revela
o homem através da ação e do discurso, o poder mantém o espaço para ele se revelar como
verdadeiro ser humano. O poder possui essa característica principal de manutenção da esfera
pública que possibilita a revelação do “quem” é cada um.
A ação nunca pode ser “meio para”. “A grandeza, portanto, ou o significado
específico de cada ato, só pode residir no próprio cometimento, e não nos motivos que o
provocaram ou no resultado que produz.” (ARENDT, 1995, p. 218). O que está atrelado com
interesses utilitários, com o fim fora do ato em si, para Arendt não tem relação com ação pura,
mas trabalho. O conceito de energeia (efetividade) traduz bem o significado disso. A ação é
uma atividade que se esvazia de significado no seu ato de efetivação. Não visa um fim
específico. A obra resultante do discurso e da ação, para Aristóteles, é o “viver bem”, é
revelação da pessoa enquanto pessoa. Não há nada de utilitarista aqui, pois o meio já é o fim,
é a pura efetivação da ação.
A filosofia política anterior à de Aristóteles concebia como atividades supremas do
homem a arte da música e o teatro. Estes são produtos da tecné. Arendt comenta a retomada
dessa concepção por Adam Smith na modernidade, baseando a ocupação em desempenho.
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Para nós essa é uma questão pertinente quando falamos em eficiência na profissão. O bem
desempenhar funções técnicas pode dizer a dignidade e a preciosidade das pessoas?
3.1.1 A redução da ação como trabalho
O mercado precisa de pessoas eficientes que consigam fazer seu trabalho com a
maior produção de bens possível. Também o consumo dos bens produzidos pelo trabalho
acontece da forma do labor. Nada deve satisfazer. Ao ser consumido o produto deve dar o
gosto de “quero mais”. Para ser nessa sociedade é preciso ser desejador inquestionável dos
produtos apontados como sendo importantes para saciar o sentido da vida que todos os seres
humanos buscam. Ao contrário do ideal grego, onde as coisas atingem o maior grau de
perfeição quando são finitas, o desejo não pode ser finito. O mercado se sustenta de
consumidores que não se saciam nunca.
Assim como as relações de trabalho se dão como o labor, que se esvai enquanto
produz-se, a ação, sendo a atividade iniciadora de processos, começa a ser usada como
trabalho. O fenômeno desse acontecimento é o fato de que cada vez mais a ciência se volta
para “dentro da natureza”. Nesse caso a ação se realiza ao modo do trabalho. É tratada como
algo planejado e produzido pelo homem. Também a pesquisa científica começa a confundir as
características que necessitam de determinações objetivas ou planejamento, como o trabalho
que antes de se materializar como artefato das mãos humanas é ideado na mente do homo
faber, com as características da ação. As ciências usam o método da experiência sem
objetivos específicos para fazer descobertas. A ciência moderna é a arte de desencadear
processos e “fabricar a natureza” impondo as condições da experiência e assim fazendo
conhecimento. Essa é a ilustração da mudança da ciência de processos pré-concebidos à
ciência de processos sem retorno ou imprevisíveis, características essas próprias da ação.
Assim como as ciências naturais, a ciência histórica se baseia no princípio de
processo, que possui realidade existencial na pessoa pela ação. Essas ciências concebem seus
objetos dentro dum sistema de processos. Por trás do processo há a incerteza da ação, que não
prevê a possibilidade, o quando e onde do próximo passo. A capacidade de iniciar processos é
possível pela faculdade de agir humano. Dos processos surge a incerteza como a principal
característica dos negócios humanos.
O processo faz parte da ação. A ação não é regida pelas categorias de meios e fins. O
processo não pode se perder ante os resultados. Se a ação é o que há de mais próprio, o ser
humano não pode querer ser pleno, ele está continuamente interagindo no processo de tornar-
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se. O ser acabado está mais ligado à categoria de trabalho, onde se “deixa pronta alguma
coisa”. Também a sociedade está imersa nessa dinâmica.
Outro conceito importante é o da fragilidade, presente na ação. No mundo grego isso
é muito mais evidente. Tudo é imortal. A pessoa humana vive no meio do mundo onde todos
seus artefatos e a própria natureza são duráveis. Só ele próprio é “passageiro”, efêmero, frágil.
A imortalidade o circunda, mas nunca lhe é possuída. A durabilidade das coisas é sempre
maior do que dos negócios humanos. Estes, ao contrário, são atividades onde o homem não
pode prever nem desfazer as conseqüências de um ato.
Enquanto a força do processo de fabricação é inteiramente absorvida e exaurida pelo produto final, a força do processo de ação nunca se esvai num único ato, mas, ao contrário, pode aumentar à medida em que se lhe multiplicam as conseqüências; as únicas ‘coisas’ que perduram na esfera dos negócios humanos são esses processos, e sua durabilidade é limitada, tão independente da perecibilidade da matéria e da mortalidade dos seres humanos quanto o é a durabilidade da humanidade. O motivo pelo qual jamais podemos prever com segurança o resultado e o fim de qualquer ação é simplesmente que a ação não tem fim. (ARENDT, 1995, p. 245).
Com essa citação ilustramos o que descrevemos antes ao comentar que a ação
iniciada repercute para até quando existem pessoas. Somos uma lacuna entre o passado e o
futuro. Somos influenciados pelo passado e iniciamos nossos processos e entregamos como
herança para as gerações vindouras.
O iniciador de processos pode parecer mais um paciente ou vítima do que
efetivamente agente e atuador. A liberdade na teia das relações tira a segurança. O que é
produzido entre os homens então cai no descrédito. Isso acontece por alguns motivos: a força
da ação se origina na imprevisibilidade e na irreversibilidade, aquele que age não sabe bem o
que está fazendo e não pode desviar o curso das conseqüências; o ator nunca consegue
perceber o conteúdo revelado pela ação, que só é visível ao olhar retrospectivo do historiador.
Mas é necessário pagar o preço da liberdade e por mais tentador que seja buscarmos formas
previsíveis, essas formas decorrem não de uma forma de governo participativa. É necessário
correr o risco. A liberdade é a “esfera que deve sua existência única e exclusivamente ao
homem.” (ARENDT, 1995, p. 246).
Diante do grande risco do confronto com a ação, o sentimento que nasce é o medo.
Só resta a inação. Assim, a liberdade é acusada de ser a causadora da opção do homem pela
necessidade. Parece que quanto mais livre, ousada e original é a ação, a liberdade originária
aqui leva o homem a querer abrir mão dela. Uma conseqüência perigosa disso é confundirmos
a liberdade com soberania, o que foi pensamento comum na tradição da teoria política. Mas
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Se a soberania e a liberdade fossem a mesma coisa, nenhum homem poderia ser livre; pois a soberania, o ideal da inflexível auto-suficiência e auto-domínio, contradiz a proporia condição humana da pluralidade. Nenhum homem pode ser soberano porque a Terra não é habitada por um homem, mas pelos homens. (ARENDT, 1995, p. 246).
A soberania pode equivaler à liberdade somente quando há um único indivíduo. Para
as tradições politeístas não há um deus absoluto, mas nas tradições monoteístas o deus assume
a liberdade absoluta.
Não podemos ter liberdade absoluta pelo fato da pluralidade das pessoas. A liberdade
subjetiva dá lugar à liberdade intersubjetiva construída pela participação de todos na esfera
pública. A liberdade é um fato incontestável e não pode ser negada mesmo que o ator da ação
não consiga controlar as suas conseqüências.
A ação é sempre livre e nova. A ação é distinta do comportamento. O comportamento
pode ser um agir por determinações e processos já pré-determinados. Do comportamento não
surge algo extraordinário, mas é a rotina, o habitual. As ações são consideradas pelo critério
da grandeza, pois é característica sua violar padrões consagrados; enquanto os
comportamentos são julgados segundo padrões morais.
3.1.2 A irreversibilidade e o poder de perdoar
Para o animal laborans, a tábua de salvação do ciclo interminável que precisa estar
inserido para manter-se é a durabilidade do mundo, a capacidade de fabricar instrumentos que
lhe facilitem a vida. O homo faber encontra saída para a sua futilidade e falta de sentido na
ação e no discurso que produzem histórias significativas. Se permanecesse sempre no
isolamento, onde tudo está determinado pelas categorias meio e fim, não atualizaria a sua
potencial liberdade.
No caso da ação, a dificuldade da irreversibilidade das ações desencadeadas pelos
homens não possui um elemento remissor ou remediador superior. O poder de perdoar, que
desempenha esse papel, é uma das faculdades da própria ação. Da mesma forma a faculdade
de prometer remedia a ação da sua dificuldade de prever as conseqüências. Sem essas duas
faculdades, a ação não poderia ser efetivada nas novas gerações. A promessa para criar o
futuro e o perdão para desfazer os atos do passado que pesam sobre as gerações posteriores.
Se não fossemos perdoados, eximidos das conseqüências daquilo que fizemos, nossa capacidade de agir ficaria, por assim dizer, limitada a um único ato do qual jamais nos recuperaríamos; seríamos para sempre as vítimas de suas conseqüências, à semelhança do aprendiz de feiticeiro que não dispunha da formula mágica para desfazer seu feitiço. Se não nos
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obrigássemos a cumprir nossas promessas, jamais seríamos capazes de conservar nossa identidade; seríamos condenados a errar, desamparados e desnorteados, nas trevas do coração de cada homem, enredados em suas contradições e equívocos – trevas que só a luz derramada na esfera pública pela presença de outros, que confirmam a identidade entre o que promete e o que cumpre, poderia dissipar. (ARENDT, 1995, p. 249).
Essas duas faculdades da ação só são possíveis pelo fato da pluralidade humana e da
sua condição política. Na filosofia política platônica, a legitimidade baseia-se no autodomínio:
o soberano governa os outros como governa a si mesmo. Toda a esfera pública é vista ao
modo do “Homem”, escrito em maiúsculo. Mas as capacidades de perdoar e prometer só
podem ser inferidas numa relação com outros, nunca consigo mesmo.
Para Arendt não podemos nos perdoar, pois perdoar implica o conhecimento daquele
que se perdoa. Fundamentamos anteriormente que a revelação do agente só se dá na ação e no
discurso e só o olhar externo pode conhecer o quem que se revela. Cada um não possui o
conhecimento completo da sua história e não tem as condições de perdoar-se. “No perdão,
como na ação e no discurso, dependemos dos outros, aos quais aparecemos numa forma
distinta que nós mesmos somos incapazes de perceber.” (ARENDT, 1995, p. 255).
Além da ação, fora do espaço público, é perigoso usar essas faculdades. A ciência
não se contenta mais em somente observar e analisar a natureza, mas precisa atuar sobre,
onde algumas conseqüências não terão mais volta. Na relação de fabricação o homem não só
faz pela violência, mas também desfaz as obras mal sucedidas pela destruição. A efetivação
dessa atividade na natureza pode resultar na destruição das condições no qual a vida nos foi
dada.
Desde a composição de sua tese de doutorado, “O conceito de amor em Santo
Agostinho”, Arendt é admirada por alguns insights. Um deles é a elevação do conceito de
amor à categoria política. Aqui também o perdão é secularizado e aproveitado de forma
encantadora para quem a estuda.
Jesus foi o descobridor do perdão na esfera pública. Além de afirmar que o perdão
não é capacidade única de Deus, mas que é condição para o perdão de Deus. “O Evangelho
não diz que o homem deve perdoar porque Deus perdoa, e ele, portanto, deve fazer ‘o
mesmo’, e sim que, ‘se cada um de vós, no íntimo do coração, perdoar’, Deus fará ‘o
mesmo’.” (ARENDT, 1995, p. 251).
O pecado acontece como evento normal do cotidiano e não pode ser evitado. São
eventos decorrentes da teia das relações, onde nada é previsível. A única forma de libertação e
de continuar a vida, agindo e se relacionando como antes é pelo perdão. Se este não existisse
ficaríamos nos lamentando nossa condição em estagnação. Tudo seria condicionado pela
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primeira ação fracassada. O perdão possibilita o recomeço e a liberação do homem para novas
experiências.
Diante de um processo de ação onde não há como mudar as conseqüências, pode-se
ter duas atitudes. A primeira que foi devidamente trabalhada é o perdão ou liberação da carga
que pesa sobre cada ator que tem responsabilidade por cada ato. Diante da ação se pode ter
coragem de iniciar um processo novo depois que se reconcilia com a situação. Outra atitude é
a vingança, que nada mais é que uma re-ação à ação primeiramente desencadeada. A reação
não tem caráter de ação porque continua no mesmo esquema do processo primeiramente
desencadeado; é previamente calculada. O perdão é uma atitude nova, imprevisível, gratuita,
por isso assume caráter de ação, mesmo que seja uma reação a outra ação.
O perdão se estabelece sempre como pessoal, embora não necessariamente privado.
Perdoa-se o que foi feito em consideração a quem o fez. Isso, numa relação dialética, se
materializa na figura do filho, produto do amor, qualidade de quem perdoa. O amor, pregado
por Jesus, assume vivência no cotidiano da esfera dos negócios humanos: “Perdoados lhe
serão os seus muitos pecados, porque amou muito; mas ao que menos se perdoa, menos se
ama”. (ARENDT, 1995, p. 253). Só quem ama pode perdoar. Amar exige conhecimento de
quem se ama, que exige revelação pelo discurso e a ação.
O amor é uma qualidade extra-mundana, não só apolítica, mas anti-política. Ele barra
as relações entre o nós e os outros. O filho joga os amantes de volta para a mundaneidade. O
que o amor é para a esfera da intimidade, o respeito é para a esfera da política, como uma
consideração pela pessoa.
A disposição humana para o perdão possui uma grande importância na construção e
na manutenção do espaço público, objetos do nosso trabalho, como ação política e também
percebermos o que está por trás do seu contrário: a vingança. Ali há a tendência de manter o
mesmo processo, sem novidades. A destruição e a violência acontecem com mais fluidez se
não há um esforço de superar o medo da novidade da ação. O perdão se dá sempre na
humildade e na gratuidade de quem tem consciência da importância da liberação da
responsabilidade por atos gestados por inúmeros atores e fatores. A reação da violência
sempre leva em conta a imediatidade da decisão de alguém que nunca conhece a totalidade
dos fatores, ele também está envolvido na teia de relações. Também o resultado da violência é
pensado para se dar de forma imediata.
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3.1.3 A imprevisibilidade e a faculdade de prometer
Também o poder de prometer possui relevância na nossa discussão. A
inconfiabilidade decorrente das ações humanas vem da falta de garantia de que seja amanhã o
que prometeu hoje e da impossibilidade de prever as conseqüências de um ato na esfera
pública onde todos podem agir e interagir. A vida da pessoa humana não é somente certeza. A
racionalidade é apenas uma faísca de luz numa imensa treva de escuridão. Por isso a
antropologia filosófica afirma a pessoa como “enigma”. Essa é a primeira dificuldade. A
segunda é a de que, mesmo que fossem totalmente racionais, os seres humanos não seriam
inteiramente senhores dos seus atos. A vontade do outro, querendo ou não, limita. A faculdade
de prometer quer firmar algumas ilhas de previsibilidade sem a pretensão de querer dominar
por completo o futuro.
A função da faculdade de prometer é aclarar esta dupla obscuridade dos negócios humanos e, como tal, constitui a única alternativa a uma supremacia baseada no domínio de si mesmo e no governo de outros; corresponde exatamente à existência de uma liberdade que é dada sob a condição de não-soberania. O perigo (e a vantagem) inerente a todos os corpos políticos assentados sobre contratos e pactos é que, ao contrário daqueles que não se baseiam no governo e na soberania, não interferem com a previsibilidade dos negócios humanos nem com a inconfiabilidade dos homens, mas encaram-nas como se fosse uma espécie de oceano no qual podem instalar certas ilhas de previsibilidade e erigir certos marcos de confiabilidade. (ARENDT, 1995, p. 256).
Prometer pressupõe liberdade de poder cumprir e que a promessa. Implica numa
esfera pública, pluralidade. Ninguém pode prometer se não há um outro para o qual promete.
A promessa é vazia se não existem, pelo menos dois implicados no ato: aquele que promete e
aquele que crê ou rejeita a promessa. A faculdade de prometer permite que haja mais
segurança na esfera pública para a ação.
O poder, produto das ações em concerto, se dissolve quando as pessoas se dispersam.
O que mantém as pessoas ainda comprometidas umas com as outras é a promessa. O mútuo
comprometimento enfraquece uma soberania. As promessas surgem não de uma vontade geral
embutida dentro das pessoas por uma força do além, mas de um mesmo propósito onde as
pessoas concordem. A faculdade de prometer dá mais credibilidade para a ação porque,
mesmo tendo os mesmos limites da violência, no que se refere à possibilidade de previsão, lhe
é superior.
Não se pode conceber algo que escapa totalmente da previsibilidade do homem, nem
que possa dominar completamente. A pessoa humana, como Arendt colocava, é uma lacuna.
Não se pode negar que a participação política frustra nossos sonhos de uma sociedade
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“perfeita”, a nossa maneira de pensá-la como ideal, mas também ela não nos escapa por
completo. Se o curso dos acontecimentos desencadeados seguisse sem alguma saída, teria o
mesmo destino da pessoa, pela sua condição humana da mortalidade. O destino da
humanidade seria esse.
Concluindo, a ação é o infinitamente improvável que acontece com freqüência. Essa
é a possibilidade que o espaço público tem para oferecer aos seres humanos. A salvação da
esfera dos negócios humanos é que a ação se afirma ontologicamente pela condição humana
da natalidade. Por isso podemos ter fé e esperança nos negócios humanos, pois são estes os
sentimentos que brotam diante de um recém-nascido.
3.2 PODER
Já vimos como a tradição política clássica e contemporânea de Arendt concebe o
conceito de poder. Queremos agora desenvolver melhor como nossa autora tenta reformular
esse conceito, tirando a carga negativa que historicamente carrega e identificando com
participação.
A autenticidade dos conceitos de violência e poder só vão se esclarecer no momento
em que os assuntos públicos pararem de ser reduzidos à relação de mando e obediência. A
nossa função, enquanto estudantes e pensadores é de pensar essas relações, levando em conta
suas implicações para a vida prática.
O poder é uma habilidade, uma possibilidade da pessoa humana agir, não
isoladamente, mas participativamente, em conjunto com outros. Para Arendt
O poder corresponde à habilidade humana não apenas para agir, mas para agir em concerto. O poder nunca é propriedade de um indivíduo; pertence a um grupo e permanece em existência apenas na medida em que o grupo conserva-se unido. (ARENDT, 1994, p. 36).
O poder precisa do espaço público, onde todos os homens estão para mostrar suas
individualidades. É o espaço da aparência, onde somente quem é percebido, pode
compartilhar da mesma igualdade e liberdade. A esfera pública é o espaço prazeroso, onde os
homens realizam suas maiores potencialidades, daqui surge o que há de mais precioso e
singular que a raça humana pode dar. Nesse espaço os homens se mostram através do discurso
e da ação, modos de revelação dos homens livres. Ele se dissolve não quando é destruído,
como algo material fabricado pelo homo faber, mas quando os homens se dispersam. Só
existe enquanto está em efetivação.
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Por surgir do fato da ação e do discurso, o espaço público é frágil, sensível. O poder
sustenta a existência do espaço público na dispersão dos indivíduos que agem e falam. Ele
precede as constituições formais e quaisquer estruturas de governo que podemos conceber. A
esfera pública decorre do poder que é potencialidade de ser.
O que primeiro solapa e depois destrói as comunidades políticas é a perda do poder e a impotência final; e o poder não pode ser armazenado e mantido em reserva para casos de emergência, como os instrumentos de violência: só existe em sua efetivação. (ARENDT, 1995, p. 212).
Arendt ilustra dizendo que todas as grandes civilizações, independente de sua
riqueza, são destruídas quando há a suspensão ou a dissolução das atividades do corpo
político. Os ataques externos são posteriores. A suspensão das atividades políticas é um
convite para que a violência entre em cena.
A reunião dos homens confere potencialidade, não permanência e estabilidade. O
poder não é uma entidade estática, plena, imutável, é “potencial de poder”. (ARENDT, 1995,
p. 212). Vem do grego dynamis e do latino potentia, tudo afirmando o seu caráter de
potencialidade. O poder não depende muito do fator material, sejam números ou meios,
excerto a convivência entre os homens. Eles se impregnam e efetivam sua potencialidade de
atividade inerente a vita activa, graças à proximidade uns dos outros. Na proximidade, onde
as ações estão sempre presentes, o poder existe e se efetiva. A atividade humana da ação de
um homem isolado nunca se realiza. “O que mantém unidas as pessoas depois que passa o
momento fugaz da ação (aquilo que hoje chamamos de “organização”) e o que elas, por sua
vez, mantém vivo ao permanecerem unidas é o poder.” (ARENDT, 1995, p. 213).
Se o poder fosse uma propriedade de um indivíduo, tal como a força, a coação seria
uma possibilidade humana concreta, assim como seria possível a onipotência. O limite da
força é a existência humana corpórea, enquanto que o limite do poder é a existência das outras
pessoas, o que é essencial, pois decorre da condição humana da pluralidade. O poder é
divisível, enquanto a força é indivisível. A divisão do poder pode até gerar mais poder, se for
promotora de interação, relações e se for mediadora, não centralizadora.
A condição humana da pluralidade é o fato de que os homens agem e falam em
conjunto. Toda forma de governo tirânica contradiz nossa condição humana da pluralidade,
pois se funda no isolamento, que impede o desenvolvimento do poder. A tirania se caracteriza
pela impotência, impossibilitados de realizarem a potencialidade dos súditos para a ação e o
discurso.
O artifício humano, junto com a esfera pública e a esfera da aparência, também se
funda no poder. O mundo feito pelas pessoas perde o sentido sem dar espaço à ação. O sentido
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é a novidade que a ação pode conferir ao artifício humano. O poder lhe sustenta a existência e
o sentido por proporcionar que os indivíduos confiem uns nos outros. Se não houvesse o
poder o mundo seria um amontoado de bugigangas desconexas, onde colocam um e outro
objeto sem sentido ou significação. Não haveria nada de novo.
O poder preserva a esfera pública e o espaço da aparência e, como tal, é também princípio essencial ao artifício humano, que perderia sua suprema raison d’être se deixasse de ser o palco da ação e do discurso, da teia dos negócios e relações humanos e das histórias por eles engendradas. [...] sem o abrigo do artifício humano, os negócios humanos seriam tão instáveis, fúteis e vãos como os movimentos das tribos nômades. (ARENDT, 1995, p. 216).
A esfera pública permite a possibilidade da realização da história conjunta, mas
também da revelação da própria identidade. Sem o espaço onde aparece a pluralidade, não
podemos estabelecer a própria identidade. No trato em comum, as pessoas entram em contato
umas com as outras enquanto pessoas. A grandiosidade das relações humanas reside no fato
de reconhecerem-se iguais e como tal tratarem-se. “[...] os grandes só podem ser julgados pelo
que são. [...], pois a fonte, na verdade, mana de quem eles são, e é portanto exterior ao
processo real de trabalho, ao mesmo tempo que independe do que possam realizar.”
(ARENDT, 1995, p. 223).
A confiança dá espaço para a ação e o discurso em conjunto. Confiar é empoderar as
pessoas para que atem laços firmes entre si, garantindo que o poder se efetive. O poder resulta
do discurso que permanece na memória das pessoas, tornando de certa forma, mais tangível a
atividade efêmera da ação.
Sem a ação para pôr em movimento no mundo o novo começo de que cada homem é capaz por haver nascido, ‘não há nada que seja novo debaixo do sol’; sem o discurso para materializar e celebrar, ainda que provisoriamente, as coisas novas que surgem e resplandecem, ‘não há memória’; sem a permanência duradoura do artifício humano, ‘não haverá recordação das coisas que tem de suceder depois de nós’. E sem o poder, o espaço da aparência produzido pela ação e pelo discurso em público desaparecerá tão rapidamente como o ato ou a palavra viva. (ARENDT, 1995, p. 216).
Poucas coisas duraram tão pouco quanto a confiança na dynamis, a política, e, dentre
as coisas que mais permaneceram na história, a desconfiança platônica e cristã no espaço da
aparência está entre elas. Mas mesmo esse pouco foi suficiente para elevar a ação ao topo da
hierarquia das atividades humanas da vita activa, sendo o elemento diferenciador entre o
homem e o animal. A dignidade da política ainda permanece e não foi suprimida.
O espaço público, uma vez engendrado, inspira aos homens a produzirem o
luminoso, a ousarem o extraordinário, a gerarem atos grandiosos e puros. Por isso só se
aprende participação, participando e, uma vez que se empodera uma pessoa, fazendo-a sentir-
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se responsável pelos seus atos e a história comum a todos, ela nunca mais vai se sentir
acomodada no seu casulo familiar e seguro.
O poder, diferentemente da violência, não visa um fim determinado. O seu fim está
na sua própria realização.
Esta insistência no ato vivo e na palavra falada como as maiores realizações de que os seres humano são capazes foi conceituada na noção aristotélica de energeia (efetividade), com a qual se designavam todas as atividades que não visavam um fim (que são ateleis) e não resultam numa obra acabada (não deixam par’ autas erga), atividades que esgotam todo o seu significado no próprio desempenho. (ARENDT, 1995, p. 218).
Daqui vem a idéia do “fim em si mesmo”, característica de todos os elementos que se
identificam com a atividade da ação. O fim (télos) está na própria obra, o processo não é
suprimido pelo produto final, mas é o produto final, se assim podemos dizer, explicando com
categorias da atividade do trabalho. A política não tem relação com o utilitarismo que se
baseia nas categorias “meios e fins”. O poder é a própria condição de possibilidade de os
indivíduos pensarem e agirem segundo as categorias utilitaristas. Na política os homens se
envolvem enquanto homens e se misturam ao que agem. O
[...] que está em jogo na política, ou seja, nada menos que a eragon tou anthropou (‘a obra do homem’ enquanto homem); e, se definiu essa obra como ‘viver bem’ (eu zen), queria com isso dizer claramente que a ‘obra’, neste caso, não é produto do trabalho, mas só existe na pura efetividade da ação. [...] Em outras palavras, o meio de alcançar um fim já seria o fim; e este fim, por sua vez, não pode ser considerado como meio em outro contexto, pois nada há de mais elevado a atingir que essa própria efetivação. (ARENDT, 1995, p. 219).
Assim, diferentemente da violência, o poder não precisa de justificação. A
justificação faz parte do mundo baseado nas categorias “meios e fins”, em atividades que
precisam ser explicadas, ainda que com palavras ocultadoras, para que as pessoas acatem. O
poder precisa de legitimidade. Os agentes da ação sabem que determinado processo é bom
porque estão envolvidos nele. O poder brota da legitimidade
Mas a legitimidade não pode ser uma relação da pessoa perante si mesma, mas
perante as outras pessoas. Essa confusão emerge dos dois significados da palavra archein, que
pode significar ao mesmo tempo iniciar (de início - arché) e governar. Na tradição da filosofia
política, o fato de simplesmente iniciar já legitimava o governo, o que aos poucos também foi
suprimido. O conceito que mais transparecia a autêntica noção de liberdade desapareceu
completamente da filosofia política.
Enquanto justificação se baseia na obediência, a legitimidade se casa melhor com o
termo “apoio”. O poder emerge de onde as pessoas ajam em concerto e, portanto apóiam o ato
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conjunto. O que a legitimidade ampara é a finalidade da política, o que não tem muito sentido
porque a finalidade da política é a própria relação política.
As características que mais podem ilustrar a diferença entre legitimidade e
justificação é a de que a justificação se baseia numa promessa, remete a um fim futuro.
Quanto mais distante o fim, a violência perde a plausibilidade, por isso requer sempre de
resultados imediatos. Mas a legitimidade se fundamenta nas palavras e ações dos agentes
enquanto conjunto. “Sua legitimidade (do poder) deriva mais do estar junto inicial do que
qualquer ação que então possa seguir-se. A legitimidade, quando desafiada, ampara-se a si
mesma em um apelo ao passado, [...].” (ARENDT, 1995, p. 41).
Concluindo, o poder é potencial para o novo, para a eventos que fogem dos
determinismos, do cotidiano. Assim sendo, cada pessoa é o disfarce de um milagre. Para
Hannah, a ação é uma quebra em todos os processos vindos do passado longínquo ou
próximo. Cada agir corresponde a um fato novo. Há sempre algo de inesperado, uma surpresa.
O fato da capacidade de iniciar processos novos corresponde à condição humana da
natalidade. O poder de agir e iniciar atos novos e imprevisíveis significa “esperar dele o
inesperado, o infinitamente improvável.” (1995, p. 191). A sua revela uma especial
singularidade. Cada nascimento é a chama de esperança. “Se a ação, como início, corresponde
ao fato do nascimento, se é a efetivação da condição humana da natalidade, o discurso
corresponde ao fato da distinção e é a efetivação da condição humana da pluralidade, isto é,
do viver como ser distinto e singular entre iguais.” (1995, p. 191).
3.2.1 Liberdade
O pressuposto para todo o pensamento de Arendt é o conceito de liberdade. Na sua
obra “Entre o Passado e o Futuro” ela desenvolve longamente esse conceito, fundamentando-
o. No nosso trabalho vamos desenvolver estritamente o conceito de liberdade relacionado com
os fenômenos de poder e violência, que Arendt menciona na suas obras Sobre a Violência e A
Condição Humana. Arendt não postula na sua construção teórica uma estrutura de valores
absolutos, como o Bem supremo de Platão, o Uno de Plotino, o Ato Puro de Aristóteles, mas
por interpretação se pode perceber um claro valor: o amor a liberdade.
Para entendermos o que é liberdade precisamos retomar a diferença entre o domínio
público e o domínio privado. Neste último não há liberdade, pois corresponde à esfera da
necessidade. Na polis grega a esfera privada englobava as relações familiares, de senhor e
escravo. As atividades compreendidas aqui sempre estão em função da manutenção da vida
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biológica e da preservação da espécie. As relações são sempre entre desiguais (não no sentido
de entre individualidades, mas como que “essencialmente” desiguais, se é que Arendt
concordaria com esse conceito).
O domínio público corresponde à esfera da liberdade. Aqui os atores agem
relacionando-se entre si como iguais. “O que todos os filósofos gregos tinham como certo, por
mais que se opusessem à vida na polis, é que a liberdade situa-se exclusivamente na esfera
política; que a necessidade é primordialmente um fenômeno pré-político, característico da
organização do lar privado.” (ARENDT, 1995, p. 40). É a esfera onde os agentes podem
mostrar sua individualidade, movendo-se com criatividade para construírem o que quiserem
juntos. Na Grécia antiga, mesmo que a maioria da população estivesse à margem da vida
pública, e, portanto como o diz Aristóteles, um homem próprio do seu tempo, as mulheres e
os escravos são “seres humanos pela metade”, pois o homem é essencialmente pensante e
essencialmente político; a esfera pública, portanto, da liberdade, corresponde à ágora. Lá eles
podiam fugir das necessidades da vida e efetivar o melhor de si pela atividade humana da
ação, vinculados pelo poder e construindo história.
As relações de comando e obediência, característicos do lar e da família eram
considerados pelos gregos como pré-políticos, típicos das relações fora da polis. “A polis
diferenciava-se da família pelo fato de somente conhecer “iguais”, ao passo que a família era
o centro da mais severa desigualdade.” (ARENDT, 1995, p. 41). Comandar outros não
significa ser livre, submetendo-os, pois o dominador também está ligado a “necessidade de
comandar”. A igualdade é, portanto a essência da liberdade. A isenção da desigualdade é
mover-se onde não existem dominadores e dominados.
A liberdade do liberalismo clássico e do comunismo é chamada por Arendt de
pseudoliberdade, pois, no primeiro caso a liberdade significa a limitação da autoridade
política, e no outro caso a esfera política é reduzida à (com um termo analógico) uma
administração familiar.
A eudaimonia grega pressupõe a liberdade. A libertação das necessidades abre a
possibilidade para que os homens possam exercer a atividade da ação em conjunto. Por isso
ninguém, até em nosso tempo pode pensar em participar ativamente da vida política e
acompanhar o que acontece se precisa trabalhar de forma árdua para sustentar a família, ou se
está preso à necessidade de subsistência. Os gregos livres estavam em função da gerência
pública, porém precisavam que outros trabalhassem para se manterem. “Uma vez que todos os
seres humanos são sujeitos à necessidade, tem o direito de empregar a violência contra os
outros; a violência é o ato pré-político de libertar-se da necessidade da vida para conquistar a
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liberdade do mundo.” (ARENDT, 1995, p. 40). Nisso consistia a “vida boa” aristotélica, a
vida do cidadão:
Era ‘boa’ exatamente porque, tendo dominado as necessidades do mero viver, tendo-se libertado do labor e do trabalho, e tendo superado o anseio inato de sobrevivência comum a todas as criaturas vivas, deixava de ser limitada ao processo biológico da vida. (ARENDT, 1995, p. 46).
O poder só é possível onde há a liberdade, o que acontece, por sua vez, onde há
pluralidade e ao mesmo tempo, igualdade. O poder e a liberdade coincidem enquanto há o
espaço público e a diferença. Ser livre está associado à ação política, para Arendt, mas
também para os gregos. A liberdade é sempre liberdade política.
A possibilidade do começo também é condição para a liberdade. Só pode se
considerar livre quem tem o direito de escolher entre, no mínimo, duas possibilidades. A
condição humana da natalidade está relacionada com o fato do “recomeço”. Recomeçar é
romper processos velhos e cansados, que não correspondem mais aos apelos do momento.
Liberdade e determinismos são opostos. O homem é dotado da capacidade de “fazer
milagres”. Em si o homem é um milagre porque nasceu. O milagre da vida é o mais grandioso
mistério para os cientistas que a estudam. O homem tem a possibilidade de agir, começar,
impor um novo começo. A liberdade se materializa nesse poder da criatividade. Ela se
envolve de espontaneidade e nada tem de semelhante às burocracias criticadas por Arendt.
Nelas a política tenta ser suprimida a qualquer custo. A espontaneidade é característica do
recém-nascido. Privar sua possibilidade da novidade seria quase que uma desnaturação.
Como o poder e a ação, a liberdade não pode ser estocada ou armazenada. Ela é
líquida, flui. A liberdade é em seu exercício. Também não é um ente concreto ou ideal. É uma
capacidade, uma propriedade. Como o poder está no “entre os homens”, e, se eles se
dispersam já não há mais poder, a liberdade só é política e por isso não se limita a volição
individual. Liberdade é, então, não somente libertação das necessidades biológicas
individuais, da preocupação com o que comer e o beber, a segurança e de abrigo; mas
libertação dos domínios.
Para o nosso tema, a violência, ligada ao trabalho, não contêm liberdade alguma. No
domínio da violência absoluta a liberdade é suprimida. São dois pólos opostos que interagem
nas relações, ora de domínio, ora de liberdade.
somente quando o trabalho é abolido pode o ‘reino da liberdade’ suplantar o ‘reino da necessidade’. Pois ‘o reino da liberdade começa somente onde termina o trabalho imposto pela necessidade e pela utilidade exterior’, onde termina o ‘império das necessidades físicas imediatas’. (ARENDT, 1995, p. 116).
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Agir e começar, atributos da ação participativa, é começar algo novo, o que torna-se,
a própria essência da liberdade. Negar a liberdade humana é negar a sua melhor parte, o que
lhe dá sentido de todas as outras experiências, como comer, amar, ter, produzir, relacionar-se,
e outras. É reduzir as pessoas tratá-las como um resultado. Não é só porque é uma
impossibilidade prática conhecermos todos os estímulos e determinações, o que nem na
natureza objetiva é totalmente possível, mas porque os motivos humanos são ocultos a todos
os observadores, tanto externos quanto internos.
3.3 PARTICIPAÇÃO POLÍTICA
Se efetivar a atividade humana da ação é efetivar o que há de mais humano nele
mesmo, se o valor a ser buscado é a liberdade e se o que há de mais bonito que o homem pode
fazer é o amor, condição da natalidade, a participação nos negócios humanos tem efeito
humanizador. O protagonismo das pessoas é o ponto de chegada. Empoderar os grupos e
associações, incentivando a participação entre si, corresponde à tarefa do verdadeiro
educador. Apostar nas pessoas, dando responsabilidades segundo as suas possibilidades, faz
brotar a criatividade e o dinamismo. Empoderar é criar as condições para que as pessoas
fiquem frente a frente, para que saiam do seu próprio mundo pessoal, seguro e aconchegante,
para alargarem o mundo na riqueza da pluralidade e da diferença.
Apesar de pouco mencionar a expressão “participação política”, este é o ponto de
chegada do pensamento de Arendt. A ação, atividade humana por excelência, garantida pela
durabilidade do poder legítimo, converge para que as pessoas participem nos negócios
humanos. A participação deve ser ativa e contínua, senão a violência entra em cena toda vez
que as pessoas deixam de participar, quando se recolhem para a esfera privada do lar.
Participar é realizar os mais grandiosos desígnios que o homem tem capacidade.
A participação está ancorada na natalidade. Arendt parte da condição do homem
como existente no mundo onde tudo o que está ao seu redor faz parte da sua condição, junto
com os eventos que decorrem no intervalo de tempo entre o nascimento e a morte. O
nascimento e a morte delimitam a existência. A morte está presente como potencial de
impossibilidade de participação e comunicação. A existência física nos garante que
possuamos uma aparência e o mundo é o lugar da aparência humana.
O existencialismo pensa a partir dessa reflexão. Não mais o homem está no ciclo
interminável da natureza, onde tudo é o eterno desdobramento do ser originário. Aqui “não há
nada de novo debaixo do sol”. Na natureza não há nada de novo, ela é um ser-para-sempre, o
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desdobramento do ser originário no tempo. O homem possui uma existência individual e não
somente como espécie humana. Essa existência tem presente sempre a morte. Somente o
homem morre; a natureza é eterna.
Então a pessoa humana se abstrai da natureza. O aparecimento da pessoa no mundo é
o milagre da novidade, porque ele é um ser singular, sui generis, única, irrepetível, inovadora
e criativa. Existencialmente falando, o nascimento é a condição humana para o agir, porque de
cada nascimento acontece um “milagre”. Ação significa princípio, origem. O homem abriu
uma fenda no eterno ciclo determinista da natureza.
O que faz do homem um ser político é a sua faculdade para a ação; ela o capacita a reunir-se a seus pares, agir em concerto e almejar objetivos e empreendimentos que jamais passariam por sua mente, deixando de lado os desejos do seu coração [...]. (ARENDT, 1994, p. 59).
O poder, sendo assim é a essência dos governos, e não a violência nem a autoridade.
Até mesmo nas dominações mais despóticas, nas relações entre senhor e escravo, a
dominação se amparava numa mútua coesão entre os senhores, que formavam uma
organização superior de poder. Sem outros para apoiá-los, homens isolados não tiveram
sucesso no uso da violência. Na guerra do Vietnã, a superioridade dos implementos de
violência não garantiu a vitória contra um oponente mal equipado, mas bem organizado.
É necessário entender bem o que é política sem preconceitos. Não sabemos aonde a
participação vai nos levar. A ação é a atividade menos tangível e mais efêmera. A participação
gera o frágil, tudo o que é a imagem e semelhança do homem real. Por isso há no ar certa
desconfiança no que toca aos negócios coletivos. Os preconceitos vêm antes e perigam
suprimir a política, pensando estar suprimindo com o fim dela. Por isso aparecem de todos os
lugares soluções totalitárias, conferindo tangibilidade à existência humana.
Mas entender o político como âmbito da apresentação, atuação e protagonismo
humano, pode ser que em vez de uma posição defensiva, encontremos apoio nos que querem
garantias. Mas a durabilidade não é característica da política. A despolitização do mundo e a
solução totalitária residem num elemento central: a desconfiança. Talvez a solução prática
empoderadora seja essa, de confiar nas pessoas, depositar credibilidade.
Vamos dar um exemplo prático que pode ilustrar melhor nossa exposição. Um
governo pode ser visto de no mínimo duas formas: como um grupo de especialistas em
governar, eruditos e cultos, legitimados pela população pela mínima participação, ou governos
articuladores que organizam a participação e o diálogo entre as pessoas da comunidade.
Podemos ter administradores que são eleitos para “fazer”, como qualquer contratado para
fazer qualquer serviço, ou pessoas capazes também de “fazer”, mas que tornem o povo o
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protagonista do próprio país. É muito mais fácil pensarmos da primeira forma. É mais
cômodo. Parece que falar de política causa “stress”. “Se elegemos pessoas para nos
substituirmos não podemos interferir no curso do que fizemos”. Assim a faculdade latente no
homem a todo tempo fica reprimida por acomodação ou falta de consciência. Temos aqui um
grupo que governa, mesmo que da melhor forma possível, mas não deixa as pessoas serem
protagonistas. Elas são alienadas do que está acontecendo. A novidade e a liberdade, próprias
do homem, ficam limitadas à determinação de algum tempo, o intervalo entre as eleições. Na
segunda forma as pessoas participam
A política baseia-se na condição humana da pluralidade. “A política trata da
convivência entre diferentes. Os homens se organizam politicamente para certas coisas em
comum, essenciais num caos absoluto, ou a partir do caos absoluto da diferença.” (ARENDT,
2002b, p. 21-22). O lugar de onde surge a política é a diversidade entre os homens. O
totalitarismo não é resultado de um excesso de política, mas da sua desconfiança. Assim, a
política não é uma superestrutura ideológica como quase sempre nos acostumamos a
responder às grandes questões, mas exige a presença dos demais.
Nosso maior erro, desde Platão, foi o de pensar que podemos executar ações nos
moldes da fabricação e assim produzir efeitos bem determinados e previsíveis. Isso implica na
constituição de atos violentos em vista de fins determinados. Essa concepção vem da
racionalidade filosófica, denominada “racionalidade instrumental” pela Escola de Frankfurt.
O agir politicamente é reinventar o agir a cada agir. É claro que a participação política não dá
respostas absolutas a todas as questões do tempo, nem que a participação universal direta de
todos os indivíduos seja possível. A participação não é a salvação para todos os males. A
nossa sociedade possui questões complexas para responder, o que não pode ser respondido
com respostas simples.
O que importa não é ganhar ou perder uma discussão. Claro que elas vão ter metas e
objetivos concretos, mas que estes não sejam maiores do que a simples oportunidade de
comprometer-se e estar junto, desfrutando do prazer da companhia. André de Macedo Duarte,
(2005, p. 32) diz que
Arendt parece nos ensinar a seguinte lição: esqueçamos a busca por saídas definitivas e nos entreguemos ao prazer raro de trazer novidade ao mundo por meio da discussão pública e da ação coletiva.
Todo reducionismo da dimensão humana relacional não pode ser reduzida ao
alcançar ou não metas, mesmo que comprometer-se seja fundamental. A riqueza da
participação reside na possibilidade de discussões e conflitos sadios que possibilitem o
crescimento. A cidadania consiste nisso: em poder ser relacional e assim ser “humano” de
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fato. Assim cita Arendt um autor Tcheco, definindo um cidadão livre: “cidadão co-dirigente”
(ARENDT, 1994, p. 60), o que para ela significa uma espécie de democracia participativa.
3.4 POLÍTICA E HISTÓRIA
A história é um tema especial no pensamento de Hannah Arendt. Como se está
falando em política, que faz protagonistas pessoas que estão inseridas no tempo, num
contexto, em relação com a cultura, com individualidades, com preocupações próprias da sua
época; se deve pensar também no tempo. Como já foi mencionado, Arendt pensa deslocando-
se entre o passado e o futuro, pensamento esse que é parecido com o de Santo Agostinho,
autor estudado por Arendt na sua graduação, na sua análise do passado do presente e do
futuro.
A pessoa humana não é somente um ser qualquer. Ela pode pensar e, o que a torna
mais especial, pensar-se. Pensar-se significa ser sujeito do seu ser e do seu agir. O ser e o agir
acontecem numa temporalidade especifica: o homem não é anacrônico. Ele pensa-se a partir
de um momento especifico. Em outras palavras, no meio da sucessão de eventos, o homem
reconhece-se, não mero espectador, mas atuante, protagonista. Ele sabe que faz parte da
história. Para Arendt, não há uma teleologia na história, pois ela é fruto de uma inter-
subjetividade de ações humanas, iniciadoras de processos sempre novos. Ela é fruto da teia
das relações humanas. A história é um resultado da ação. Os atos singulares são o resultado
não-tangível da ação enquanto a história é o que a ação produz de mais tangível.
[...] também os eventos na história humana revelam, cada um, uma passagem inusitada de feitos, sofrimentos e novas possibilidades humanas, que, juntos, transcendem a soma total de todas as intenções voluntarias e a significância de todas as origens. [...] Deve-se saber que, embora sua estória tenha um começo e um fim, ela ocorre dentro de um quadro maior, a própria história. E a história é uma estória que tem muitos começos, mas nenhum fim. (ARENDT, 2002a, p. 50).
A história é própria de quem é livre para agir, o que implica que somente na
atividade da ação o homem é plenamente empoderado. A História é o que emerge de mais
tangível nas relações políticas, mas nem por isso é estática. A ação é a qualidade que torna
possível o homem de ser criativo e, portanto, construtor de histórias.
Em Hannah Arendt pode-se diferenciar “história” de “estórias”. Para nossa autora, a
história não existe “em si” como ente, mesmo que dialético ou uma linearidade repleta de
sentido. Em si, a história, tal como o conceito de humanidade, é uma abstração; é o resultado
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das palavras e das ações. Como já descrevemos acima ao analisarmos a ação, a história é o
conjunto das estórias protagonizadas por “heróis” das estórias.
A perplexidade é que em qualquer série de eventos que, no conjunto, compõem uma história com significado único; podemos quando muito isolar o agente que imprimiu movimento ao processo; e embora esse agente seja muitas vezes o sujeito, o ‘herói’ da história, nunca podemos apontá-lo inequivocamente como o autor do resultado final. (ARENDT, 1995, p. 197).
No auge da modernidade tentou-se sistematizar tudo. O racionalismo tenta colocar
tudo dentro do sistema para tentar compreender, prever e interferir nos eventos. Hegel foi o
seu idealizador. Todos os eventos do universo são ideados por um intelecto universal, o
próprio Deus; portanto, a história é produto de uma mente que a pensa num progresso
gradativo. Em todos os acontecimentos está o Todo e cada parte é parte de um Todo ainda
maior.
O que une o pensamento de Hegel, Marx, o liberalismo, o socialismo e o comunismo
é a noção de progresso. Até o século XVII essa noção praticamente não existia e a partir do
século XVIII tornou-se comum entre os pensadores. Antes se pensava no máximo como um
progresso do conhecimento através dos séculos, enquanto no século XVIII já se concebia
como uma “educação da humanidade” até chegar o estágio da “maturidade”.
Mas no século XIX o progresso já não é mais interpretado nesses moldes. Para os
homens deste século, o movimento é o fato e não se pode conceber que haja um lugar
teleológico finalístico. Há no máximo uma direção e um sentido para o movimento, há o
aperfeiçoamento, mas não o homem perfeito.
Para Marx, a revolução (insurreição violenta) é parte do processo para se chegar ao
comunismo. É só um recuo usando os recursos da violência para que a humanidade ou uma
nação em específico, chegue a uma sociedade sem guerra e sem diferenças sociais. Para ele a
guerra é só parte do processo para se chegar a um fim. A garantia para o progresso da história
se baseia em Marx, que toma de empréstimo de Hegel, de que “cada velha sociedade traz
consigo as sementes de sua sucessora, do mesmo modo como todo organismo vivo traz
consigo as sementes de sua descendência.” (ARENDT, 1994, p. 27). É no embate de forças
antagônicas que o progresso acontece, mesmo que haja retrocessos, mas são apenas
temporários e necessários para que o movimento progressivo aconteça. Essa linha de
pensamento emana do conceito de progresso linear e contínuo da história. Aqui tudo é fruto
do mesmo processo que vai se desenvolvendo. No fundo tudo é o desdobramento do que já
estava aí. O inverso da concepção progressiva-linear é a de que houve nos primórdios uma
“época de ouro” donde tudo deriva. Aqui o que há é um declínio contínuo de perfeição no
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tempo. Não é de se estranhar quando se encontra cartilhas de como “fazer a revolução”.
Pensando assim pode parecer natural pensar em política nos moldes da fabricação.
Arendt refuta essa concepção linear-determinista. Se assumirmos o pressuposto de
que a história emerge sempre do mesmo processo, iniciado ou não, e todos os eventos são
direcionados a um fim bem determinado, mesmo que pareça confortável só “caminhar para o
futuro”, não temos liberdade, a atividade da ação e a condição humana da natalidade não são
mais necessárias, na posição de indivíduos não desfrutaremos da morada paradisíaca, pois a
vida individual acaba antes de atingirmos a meta. Nas palavras de Herzen: “o
desenvolvimento humano é uma forma de injustiça cronológica, pois aqueles que vieram
depois estão aptos a desfrutar do trabalho de seus predecessores sem pagar o mesmo preço.”
(ARENDT, 1994, p. 27). Apenas a última geração poderá se beneficiar do completo progresso
da humanidade.
A noção de progresso pode ser positiva no sentido de que pergunta: “o que faremos
agora?” fazer algo maior e melhor a partir do que já está aí. Para Hegel se deve determinar a
tese pela antítese, chegando à síntese. Mas “Em cada um dos casos, estamos seguros de que
nada absolutamente novo e totalmente inesperado pode acontecer, nada senão os resultados
‘necessários’ daquilo que já sabíamos.” (ARENDT, 1994, p. 28). No livro A Dignidade da
Política, uma coletânea de textos de Arendt (2002a, p. 50), ela afirma:
Todo aquele que, nas ciências históricas, acredita honestamente na causalidade nega o objeto de estudo de sua própria ciência. Tal crença pode ser ocultada na aplicação de categorias gerais, tais como desafio e resposta, ao todo dos acontecimentos, ou na busca de tendências gerais, supostamente camadas mais profundas de que se originam os eventos que seriam, em relação a elas, sintomas assessórios. Tais generalizações e categorizações extinguem a luz “natural” que a própria história oferece; e justamente por isso destroem a verdadeira estória, com sua singularidade e seu significado eterno, que cada período histórico tem a nos contar.
A noção de progresso influenciou muito as ciências. Tanto as ciências técnicas
quanto as ciências físicas e astrofísicas se desenvolveram muito nesse tempo. Mas a procura
de pesquisas sobre os mais variados campos está levando à irrelevância, pois a
superespecialização destrói o seu objeto de estudo. Atomiza-se cada vez mais sem levar em
conta as relações entre os objetos. A rebelião estudantil de 68 não foi somente uma investida
contra os padrões morais e políticos, mas também uma revolta contra a pseudo-
especialização, onde se sabe “cada vez mais sobre cada vez menos”. Nas palavras de Arendt,
“o progresso da ciência deixou de coincidir com o progresso da humanidade, e não somente
isso, mas também poderia mesmo disseminar o fim da humanidade, tanto quanto o progresso
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ulterior da especialização bem pode levar à destruição de tudo o que a tornava válida antes.”
(ARENDT, 1994, p. 29).
Se transpusermos o conceito de progresso para a política, não precisará mais do que
um pequeno salto para bem justificarmos a violência. “Se considerarmos a história em termos
de um processo cronológico contínuo, cujo progresso é ademais inevitável, a violência sob as
formas da guerra e da revolução pode constituir a única interrupção possível.” (ARENDT,
1994, p. 30). Mas a ação é sempre novidade e, portanto, não se adapta a essa concepção. Ela
interrompe os processos desencadeados até ai, inovando, fazendo brotar daí algo inteiramente
novo.
Podemos prever os acontecimentos causais, necessários, de forma objetiva. Pelo
contrário, o conceito de “evento”, para Arendt, está conectado ao de ação. “Eventos, por
definição, são ocorrências que interrompem processos e procedimentos de rotina; apenas em
um mundo em que nada de importante acontece poderia tornar-se real o sonho dos
futurogistas.” (ARENDT, 1994, p. 16). Aqui Hannah critica os especialistas que se arrogam
em fazer análises onde dizem ser possível prever os acontecimentos com segurança. A
previsão dos acontecimentos futuros só é possível num mundo onde nenhum processo novo
pode acontecer, onde os eventos não são nada mais do que desdobramentos do que aconteceu,
repercutindo no tempo. “Ela (a ação) excede ainda mais obviamente os cálculos dos
especialistas.” (ARENDT, 1994, p. 16). Sem o evento carregando a novidade não há
liberdade, só necessidade.
Dentro de um quadro de categorias preconcebidas, sendo a mais grosseira delas a da causalidade, os eventos, significando algo irrevogavelmente novo, jamais podem acontecer; a história sem eventos torna-se monotonia morta da mesmice desdobrada no tempo [...]. (ARENDT, 2002a, p. 50).
É até confortável acreditarmos que é possível antevermos os acontecimentos, mas
isso como que nos anestesia para a criatividade.
O perigo está em que essas teorias são não apenas plausíveis, pois tiram sua evidência de tendências presentes efetivamente discerníveis, mas também em que elas possuem um efeito hipnótico, em função de sua consistência interna; elas adormecem nosso senso comum [common sense], que nada mais é do que nosso órgão espiritual para perceber, entender e lidar com a realidade e com os fatos [factuality]. (ARENDT, 1994, p. 16).
A dialética é a conciliação dos opostos. Nesse sentido, então também o progresso
vem da síntese dos opostos. Do bem pode surgir o mal. Marx e Hegel, mas também tantos
outros, confiaram no poder da “negação dialética”, que se assenta no pressuposto de que o
mal não é senão um modo privado de bem e que do bem pode advir o mal. Da tese escorre seu
contrário. Isso se assenta no preconceito de que “o mal é apenas a manifestação temporária de
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um bem ainda oculto.” (ARENDT, 1994, p. 44). Essas afirmações são um erro e só servem
para nos acomodar, elas tem um efeito confortante. Arendt se explica: “Com isso, não
pretendo equacionar a violência ao mal; quero apenas enfatizar que a violência não pode ser
derivada de seu oposto, o poder, [...].” (ARENDT, 1994, p. 44). Numa análise dos eventos
históricos isso é muito evidente: à segunda Guerra mundial não se seguiu a paz, mas a guerra
fria; à revolução comunista resultou em totalitarismos absolutistas, entre outros exemplos.
Levando em conta a atividade humana da ação e a criatividade da vida humana não
se pode conceber que a história não é nada mais do que o transcorrer de processos
deterministas, e que podemos ter controle desses processos por uma ciência histórica ou da
sociedade. Não podemos ter o controle dos eventos histórico e mesmo se pudéssemos seria
necessário fazer uma reflexão se deveríamos fazê-lo.
Na política não basta somente saber o que aconteceu. São necessárias outras virtudes:
coragem, predisposição para a ação, criatividade, etc.; mas a consciência histórica ajuda muito
na compreensão dos eventos do presente, o que é fundamental para agir. Todas as pessoas têm
o direito de saberem o que está acontecendo. A necessidade da consciência histórica é a
necessidade de conhecer os eventos, para depois olhar o passado fragmentado à luz do
presente, como numa lacuna no tempo. O homem do presente vai significando os eventos do
passado e dando sentido a partir do seu próprio presente.
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4 RELAÇÃO ENTRE PODER E VIOLÊNCIA
Depois de descrever individualmente cada conceito, queremos relacioná-los. Já de
início advertimos que os dois fenômenos, embora opostos ou antagônicos, não estão dispostos
de forma pura na realidade. No poder existem elementos de violência e na predominância da
violência também existem alguns resquícios de poder como o apoio e a imprevisibilidade de
algumas ações. As relações concretas estão impregnadas de boas intenções, de mútua
colaboração, mas também o desejo é de que levem à perfeição e à plenitude.
Talvez não seja supérfluo acrescentar que essas distinções, embora de forma alguma arbitrárias, dificilmente correspondem a compartimentos estanques no mundo real, do qual, entretanto, são extraídas. Assim o poder institucionalizado em comunidades organizadas freqüentemente aparece sob a forma da autoridade, exigindo reconhecimento instantâneo e inquestionável; nenhuma sociedade poderia funcionar sem isso. [...]. Ademais, nada, como veremos, é mais comum do que a combinação de violência e poder, nada é menos freqüente do que encontrá-los em sua forma pura e, portanto, e extrema. Disto não segue que autoridade, poder e violência sejam o mesmo. (ARENDT, 1994, p. 38).
Poder e violência não se encontram puros nos governos. Governo é poder organizado
e institucionalizado. Também, à semelhança do poder, é um fim em si mesmo, mas não como
puro fim. Mesmo por trás de um governo violento e opressor, ele precisa de uma
fundamentação de poder. A violência precisa de apoio de outros tanto no pensar quanto no uso
dos implementos de violência.
Na época moderna os conceitos são muito confusos. Mesmo sendo usados
comumente, inclusive nas academias, não se vai a fundo no significado e nas implicações
desses conceitos. Confundir poder e violência nas relações políticas quase sempre se
transforma numa legitimação da violência e o desprezo da política como meio viável para os
negócios humanos.
Diante de afirmações como “o poder brota do cano de uma arma” encontramos
confusão, pois não há diferença entre um consenso e uma coerção. Assim poder não é
diferente de força. Para os autores da tradição, o poder não consistia mais do que a maior
manifestação de força.
É aceitável dizer que a obediência depende da opinião e que isto pode manter uma
estrutura de poder. Então mesmo num regime autoritário, se a obediência estiver atrelada a um
imaginário de necessidade dessa situação e muitas pessoas a compartilham, essa estrutura de
violência estará amparada pelo poder.
Onde os comando não são mais obedecidos, os meios de violência são inúteis; e a questão dessa obediência não é decidida pela relação de mando e
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obediência, mas pela opinião e, por certo número daqueles que a compartilham. Tudo depende do poder por trás da violência. A ruptura súbita e dramática do poder que anuncia as revoluções revela em um instante o quanto a obediência civil – às leis, aos dominantes, às instituições – nada mais é do que a manifestação externa do apoio e do consentimento. (ARENDT, 1994, p. 39).
A superioridade dos meios violentos só se mantém enquanto a estrutura de poder está
intacta: enquanto o exército e as polícias estão prontos a apoiá-la.
Mas isso não quer dizer que violência e poder são uma mesma coisa. Uma das mais
claras diferenças entre os dois é o de que o poder se assenta em números, na pluralidade e na
diferença, enquanto a violência precisa somente de implementos, e pode operar sozinha. Mas
não só não são o mesmo, são opostos; não como na dialética hegeliana, onde reside na própria
afirmação a sua negação, mas que onde um domina absolutamente o outro está ausente da
mesma forma. A violência é capaz de destruir completamente o poder, não de criá-lo.
Poder e violência não são elementos naturais nas relações humanas. Não são
manifestações do processo vital. Eles vêm da esfera do político, garantida pela capacidade do
homem de iniciar processos, de começar algo novo. Disso decorre que fica afastada toda
interpretação “vitalista” da política. A vida tem o elemento do ser-para-si, uma interioridade
particular própria que propicia seu crescimento e desenvolvimento. “Assim como no âmbito
da vida orgânica tudo ou cresce ou declina e morre, supostamente da mesma forma, no âmbito
dos assuntos humanos, o poder só pode sustentar-se por meio da expansão; [...].” (ARENDT,
1994, p. 54). O instinto da preservação da vida é agora uma “luta pela sobrevivência” em
nome da continuidade da espécie.
Pode parecer tentador interpretar Darwin nas relações sociais, pois quando a
população aumenta, cresce também o prestígio dos administradores, para que guiem o
organismo da melhor forma para que cresça e se desenvolva, produzindo os melhores
resultados.
Na mesma idéia de que a violência é um elemento da vida, se a morte é o “eterno
descanso”, a vida é o tempo de lutas e fadigas. É normal que a vida seja um “confronto”. A
quietude é a manifestação da falta de vida, portanto da morte ou até de eternidade. Desse
raciocínio, portanto, infere-se que os jovens são os mais violentos. Não é um jargão comum:
“os jovens estão perdidos, são a causa da violência na nossa sociedade”? Violência e
juventude estão atrelados nos nossos imaginários, frutos dessa falsa idéia. “Não é prerrogativa
dos jovens a ação violenta – daqueles que, presumivelmente, estão cheios de vida? Portanto o
elogio da vida e da violência não são o mesmo?” (ARENDT, 1994, p. 52).
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Mas Arendt mostra que não acontece bem assim. No movimento estudantil de 68, a
juventude foi sensível aos acontecimentos e esteve disposta a agir. Também a criatividade foi
conectada ao conceito de violência. A solução para isso está nas palavras dos hippies: “paz e
amor”. O fazer amor parece ser a característica maior da vida, resultando daí a novidade e a
criatividade da vida.
A ênfase no puro fato do viver, e daí a ênfase no fazer amor como a manifestação mais gloriosa da vida, é sem sombra de dúvida uma resposta à possibilidade real de se construir uma máquina para o fim do mundo e destruição de toda vida na terra. (ARENDT, 1994, p. 54).
O pensamento organicista é perigoso, pois a violência, não o poder, está mais perto
da concepção vitalista. A violência é instrumental, a salvação para o animal laborans, que é
escravo dos processos vitais e biológicos. Um exemplo de explicações deste tipo foram e
ainda são usadas para justificar o racismo. “Não há nada mais para fazer a não ser exterminar
o diferente”. Constitui um sistema ideológico eficaz porque parte de uma crença que há uma
diferença essencial, baseada em teorias pseudocientíficas.
Poder e violência ao mesmo tempo que se repelem, se implicam quando encontrados
na prática das relações, pois a violência precisa de um suporte de poder; da mesma forma na
prática das democracias da atualidade é uma ditadura da maioria. Porém, a violência
geralmente ganha espaço quando há impotência.
Nas condições da vida humana, a única alternativa do poder não é a resistência – impotente ante o poder – mas unicamente a força, que um homem sozinho pode exercer contra seu semelhante, e da qual um ou vários homens podem ter o monopólio ao se apoderarem dos meios de violência. [...] Daí resulta a combinação política, nada incomum, de força e impotência – uma legião de forças impotentes que se desgastam, muitas vezes, de modo espetacular e veemente, mas em completa futilidade, [...] esta combinação tem o nome de tirania [...]. (ARENDT, 1995, p. 214).
A tirania não deve ser temível somente pela sua crueldade, mas pela impotência e a
futilidade no trato com governantes e governados. Ela contradiz a condição humana da
pluralidade, pois semeia o medo e a suspeita na comunidade, negando a possibilidade da ação
política, e o fato de que os homens agem e falam. É baseada fundamentalmente no
isolamento, gerando a impotência, assim como as organizações políticas geram poder.
De fato, percebe-se também na atualidade que quanto mais um governo quer manter-
se afastado de críticas, deve investir no isolamento dos governados. As pessoas tem que achar
que tem coisas mais importantes do que preocupar-se com assuntos que os “políticos” (como
se só alguns tivessem aptidão e soubessem o que melhor para os demais) devem resolver para
eles. Existem inúmeras pesquisas científicas que analisam a influência dos grandes meios de
comunicação no suporte do governo militar no Brasil. A estratégia é apostar sempre na
62
fragmentação, na ênfase de que cada pessoa é contrastante, é distante em relação às outras.
Também todas as formas de articulação da sociedade civil deve ser reprimida para se manter a
“ordem social”. Nesse sentido é a violência que corrói o poder. Arendt conclui assim: “Mas,
se a violência é capaz de destruir o poder, jamais pode substituí-lo.” (ARENDT, 1995, p. 214).
A perda do poder é um convite à violência.
A ação é imprevisível e depende da possibilidade do perdão e do poder de prometer.
A ação não é forte, não consegue estabilidade; é sim, pura dinamicidade. Diante do momento
fugaz da ação podemos perdoá-la para continuar a agir. Perdoar é fundamental num espaço de
aparência onde se está a todo o momento ensaiando uma nova ação irreversível, pois a ação só
tem começo e decorrência. Só pode ser superada com o perdão. A possibilidade do futuro
então também é incerta, o que torna necessário algumas ilhas de certeza, o que se pode
conseguir com a confiança na promessa. A ação por si só é imprevisível por ser nova e
criativa a todo o instante, precisa de um elemento catalisador que possibilite sua
concretização.
Por trás de todo o preconceito com a política, há no fundo outro mais bem radicado:
o de que não se pode confiar nas pessoas. De que o homem é naturalmente aproveitador,
corrupto, “sem ética”. Mas no fundo, não passa de uma projeção no outro do que se vê em si.
“[...] embora eu esteja inclinada a pensar que muito da presente glorificação da violência é
causada pela severa frustração da faculdade da ação no mundo moderno.” (ARENDT, 1994,
p. 60). O século XX foi permeado por grandes conflitos, pelo desenvolvimento de tecnologias
para combate, pela intolerância e desconfiança. A mola propulsora das atrocidades foram,
aparentemente, político-ideológicos. Há certo medo que todo o aparato apocalíptico seja
usado para meios políticos. O resultado disso é a desconfiança na política e a confiança num
governo central. Neste ponto onde falamos do medo, lembramos bem do estado de natureza
hobbesiano: em permanente guerra de todos contra todos. Então é necessário delegar a um o
poder de todos.
Estreitamente ligada a esse medo – a esperança de a Humanidade ter juízo e, em vez de eliminar-se a si mesma, eliminar a política – através de um governo mundial que transforme o Estado numa máquina administrativa, liquide de maneira burocrática os conflitos políticos e substitua os exércitos por tropas da polícia. Na verdade, essa esperança é totalmente utópica quando se entende a política em geral como uma relação entre dominadores e dominados. Sob tal ponto de vista muito menos uma forma de controle dos dominadores pelos dominados. (ARENDT, 2002b, p. 26).
Outro motivo para a glorificação da violência é a sedução do cumprimento dos
objetivos a curto prazo. Enquanto as ações repercutem na coletividade, na comunidade, os
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processos desencadeados não acabam sempre estarão ressoando na história, a violência visa
fins bem determinados e imediatos. Nossa condição de efemeridade e de passagem nos
angustiam. Os resultados das ações geralmente não se dão a conhecer aos autores.
Mas também o poder pode reatar o elo comum entre as pessoas, tornando a
reconhecê-las como tais. O poder tem a possibilidade de suprimir relações de violência.
Porém, o poder tem que emergir da ação, não ser mero re-ação. Re-ação é apenas responder
da mesma forma, violentamente, contra os precedentes processos violentos desencadeados.
Não há nada de ação, de novo e criativo na re-ação. É apenas o comportamento que responde
a um estímulo impulsivo. A ação participativa transcende a re-ação porque é dialogada, é fruto
de uma coletividade e por isso é legítima. O resultado da teia das relações humanas é legítimo
e por isso tem força. Ao contrário, a violência só tem sentido como re-ação.
Por ser a essência de todo governo, o poder pode suprimir com a violência, mas deve
ser de forma participativa, “poderosa”. Um exemplo concreto disso são os estudantes de 68
que, com um pouco de articulação abalaram o governo de De Gaule, mesmo que depois este
tenha voltado mais forte que antes. O que chamamos de “resistência passiva”, a renúncia da
violência mesmo contra um governo materialmente forte, é a maior fonte de poder.
Dar a isto o nome de ‘resistência passiva’ é sem dúvida, uma ironia, pois trata-se de um dos meios mais ativos e eficazes de ação já concebidos, uma vez que não se lhe pode opor um combate que termine em vitória ou derrota, mas somente uma chacina em massa da qual o próprio vencedor sairia derrotado e de mãos vazias, visto como ninguém governa mortos. (ARENDT, 1995, p. 213).
O empoderamento é o investimento mais humanizador e destruidor da violência. Por
detrás até da violência há o elemento do apoio e da confiança. A esperança na solidariedade e
na organização pode sobrepujar-se ao ficar “chorando as cebolas do Egito”, por não sermos
perfeitos, prontos e plenos.
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5 CONCLUSÃO
Mesmo tendo um grande desejo de completude, o ser humano é inconcluso, frágil e
efêmero e por isso mesmo o ser humano é capaz de ir além da necessidade. Agindo e
discursando gera o novo, o milagre. Ser relacional é ser aberto ao que o outro tem para
oferecer. “A comunidade tem o que eu dou e é o que eu sou”. Cada ator colabora com sua
estória que juntas forma a teia dos empreendimentos humanos, influenciando cada pessoa
contemporânea e vindoura.
A violência, a imediata solução para a fragilidade dos negócios humanos, se fortalece
e finalmente se instaura quando as pessoas vão deixando de lado as questões comuns. Para os
políticos administrativos, os superespecialistas e os que predizem os acontecimentos, é mais
prático e útil que as pessoas não se envolvam no espaço público; “que fiquem acomodadas”.
Ser ativo e criativo gera insegurança social. A violência se alimenta do isolamento e do
distanciamento entre as pessoas, em contrapartida com o poder que mantêm as pessoas
“amarradas” umas nas outras. O argumento das profissões não completa o ser humano. As
pessoas podem viver numa ilusão de estabilidade e segurança, porém não estão
desenvolvendo suas melhores capacidades e possibilidades enquanto humanas. Soluções
violentas são opressoras para a maioria, o que é o exatamente inverso da democracia.
A alternativa para diminuir a violência, pois acabar completamente com ela seja uma
utopia, pode ser a de desenvolver mais os espaços de encontro entre as pessoas, favorecendo
as conexões entre elas. Atualmente se pode pensar em inúmeros meios para isso graças à
disponibilidade de recursos tecnológicos; espaços estes, de expressão democrática, de ações
poderosas, de construção do coletivo, de debates e formação da consciência.
O preço a pagar pela imprevisibilidade dos acontecimentos é carregar o pesado fardo
da nossa condição humana de fragilidade. Por isso, para nos relacionarmos precisamos nos
reconhecer imperfeitos e incompletos. Geralmente não esperamos que um sujeito arrogante
gere participação. Por se ver como pleno, “dono da verdade”, toma atitudes violentas e não
participativas. Por isso, quem se predispõe à política participativa é humilde, age e discursa
sabendo o limite do espaço do outro para do mesmo modo poder agir.
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REFERÊNCIAS
ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. 339 p.
ARENDT, Hannah. A Dignidade da Política. 3. ed. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002a. 177 p.
ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. 3. ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 1992. 344 p.
ARENDT, Hannah. O que é Política?. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002b. 232 p.
ARENDT, Hannah. Sobre a Violência. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. 63 p.
BERTEN, André. Filosofia Política. São Paulo: Paulus, 2004. 158 p.
DUARTE, André de Macedo. Hannah Arendt e o Pensamento sem Amparos. IHU On-Line. São Leopoldo, ano 5, n.168. p. 28-33. 12 dez. 2005. Disponível em: <http://www.unisinos.br/ihuonline/uploads/edicoes/1158348701.54pdf.pdf> Acessado em: 25 de maio de 2009.
RABUSKE, Edvino A. Antropologia Filosófica. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, 1981. 207 p.
WOLFF, Jonathan. Introdução à Filosofia Política. 1. ed. Lisboa: Gradiva, 2004. 308 p.
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