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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
FABIANO ARNDT ARAÚJO
ARGUMENTOS PARA A LEGITIMAÇÃO DO SACRO IMPÉRIO ROMANO-GERMÂNICO EM MARSÍLIO DE PÁDUA (1280-1343)
CURITIBA 2013
FABIANO ARNDT ARAÚJO
ARGUMENTOS PARA A LEGITIMAÇÃO DO SACRO IMPÉRIO ROMANO-GERMÂNICO EM MARSÍLIO DE PÁDUA (1280-1343)
Monografia apresentada às disciplinas de Estágio Supervisionado em Pesquisa Histórica e Orientação Técnicobibliográfica em História, como requisito parcial à conclusão do curso de História; Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes; Universidade Federal do Paraná. Orientadora: Professora Dra. Fátima Regina Fernandes.
CURITIBA 2013
Aos meus pais, Vilma Arndt e Alziro Teixeira Araújo, que, em meio a tantas
dificuldades e problemas, permitiram que eu conquistasse o sonho de estudar e
concluir o ensino superior. Vocês não estudaram tanto quanto eu, mas me
ensinaram coisas que nenhuma universidade jamais ensinará.
AGRADECIMENTO (S)
Acima de tudo e de todos, agradeço a Deus. Agradeço a Ele por ter me dado
a vida e um sentido para vivê-la. Por ter me sustentado e guiado em todo o tempo.
Por me permitir enxergar o quanto tudo é tão pequeno e insignificante diante d’Ele. A
Ele, sem dúvidas, se dirigem todos os meus agradecimentos, eternamente.
Agradeço também aos meus familiares, pelo apoio constante, desde
sempre. Especialmente aos meus pais, Vilma e Alziro, aos meus irmãos, Gabriel e
Delton, e ao meu sobrinho, Matheus.
Aos meus professores, especialmente à professora Fátima Regina
Fernandes, pela orientação e pela paciência sem as quais seria impossível realizar
esse trabalho. Também aos professores Renan Frighetto, Andréa Doré, Joseli
Mendonça, Martha Hameister, Ana Maria Petraitis Liblik e Nádia Gonçalves que, em
meio ao caos da academia, foram exemplos de ética e profissionalismo, tão raros.
Aos meus irmãos: Denise, pelos sete anos de companhia; Andréia, pelas
infindáveis horas na cantina e pelas constantes brigas e reconciliações; Maria
Cláudia; Edison, André, David, Estela, Paulo e tantos outros. Também aos amigos e
colegas: Alysson, pelos serões de estudos antes das provas, pelos trabalhos, pelos
cafés; e Luana. As orações, o apoio e as risadas de vocês foram imprescindíveis.
Pois está escrito: Destruirei a sabedoria dos sábios e rejeitarei a inteligência dos
inteligentes. Onde está o sábio? Onde está o homem culto? Onde está o
argumentador deste século? Deus não tornou loucura a sabedoria deste século?
(Primeira Epístola aos Coríntios, 1, 19-20).
RESUMO No início de século XIV, apesar do relativo enfraquecimento do Papado, exilado em Avignon, e da perda de prestígio e influência sofrida pelo Sacro Império Romano-Germânico, o clássico conflito medieval entre Império e Papado reacendeu-se nas figuras de Luís IV da Baviera e João XXII. Nesse contexto, Marsílio Mainardini, professor da Universidade de Paris, optou por colocar-se ao lado de Luís IV em oposição ao pontífice, produzindo tratados cujo objetivo era dar legitimidade ao Império, demonstrando a autonomia do poder secular. As obras de Marsílio, natural de Pádua, que chegaram até nós são os tratados Defensor Pacis, De Translatione Imperii e Defensor Minor, nas quais, partindo principalmente da filosofia aristotélica filtrada por Tomás de Aquino, da Bíblia Sagrada e de escritos dos Pais da Igreja, o autor intenta desconstruir a teoria da Plenitudo Potestatis papal e lançar argumentos que sustentem a legitimidade do Sacro Império Romano-Germânico e, consequentemente, de Luís IV. No presente trabalho, nosso objetivo foi analisar os tratados Defensor Minor e De Translatione Imperii, identificando os argumentos lançados por Marsílio de Pádua para a legitimação do Sacro Império Romano-Germânico e analisando os diferentes aspectos inerentes a tais argumentos. Para tal análise, partimos, sobretudo, da análise da conjuntura do autor e de reflexões sobre a teoria política medieval. Nossa pesquisa permitiu construir uma visão geral sobre o pensamento marsiliano; perceber o uso da história como elemento de legitimação política; identificar a oposição entre virtudes e vícios e a construção de modelos e contramodelos políticos na obra do autor; e, por fim, analisar os argumentos de Marsílio à luz de seu contexto. De modo geral, destacamos a forma como as ideias de Marsílio inserem-se em um contexto maior, de “secularização” das reflexões políticas, que marca a transição do Medievo à Modernidade.
Palavras-chave: Império Medieval. Supremo Legislador Humano. Translatio Imperii.
SUMÁRIO Introdução ................................................................................................................... 7
1. Marsílio de Pádua, suas ideias e seu contexto. .................................................... 12
1.1 Vida e obra de Marsílio de Pádua. ............................................................... 12
1.2 Contextos de escrita dos tratados De Translatione Imperii e Defensor Minor. 20
2. A legitimação do Império e do Imperador na obra de Marsílio de Pádua. ............. 23
2.1. A desconstrução da Plenitudo Potestatis papal no Defensor Minor de Marsílio
de Pádua. ............................................................................................................... 23
2.1.1. O “poder das chaves”: .................................................................................. 24
2.1.2. O questionamento da Plenitudo Potestatis papal:........................................ 28
2.1.3. O Supremo Legislador Humano: .................................................................. 30
2.1.4 Questões matrimoniais: ................................................................................ 31
2.2. Argumentos de legitimação do Sacro Império Romano-Germânico e da figura do
Imperador no De Translatione Imperii de Marsílio de Pádua. ................................... 34
2.2.1. Síntese do tratado. ....................................................................................... 34
2.2.2. O lugar da história na legitimação do Sacro Império Romano-Germânico. . 40
2.2.3. Modelos e contramodelos: a oposição entre virtudes e vícios na legitimação
do Império. ............................................................................................................. 46
2.3. A legitimação do Sacro Império Romano-Germânico no contexto de Marsílio de
Pádua. ....................................................................................................................... 51
Considerações finais: ................................................................................................ 56
Referências: .............................................................................................................. 58
Fontes: ................................................................................................................... 58
Bibliografia: ............................................................................................................ 58
7
Introdução
A transição do Medievo à Modernidade foi um período de grandes
transformações. Entre os séculos XI e XIII, a cristandade latina viveu um período de
expansão e aquecimento, observáveis no crescimento demográfico e no aumento da
produção e do consumo, contexto que possibilitou o florescimento das cidades. A
emancipação urbana gerou novas realidades políticas, econômicas e sociais, além
de diferentes percepções religiosas, dentro ou fora da ortodoxia, ao longo dos
séculos XIII, XIV e XV. No que tange ao pensamento, um dos traços marcantes
dessa série de rupturas foi o aparecimento de novas propostas políticas que
conciliavam a tradição clássica e medieval-cristã às demandas específicas daquela
conjuntura.
Nesse sentido, percebem-se concepções que apontam cada vez mais na
direção de uma visão “laica” da comunidade política civil, em muito influenciadas
pela retomada do pensamento político aristotélico. Muitos nomes seguiram neste
caminho, entre eles Dante Alighieri, Guilherme de Ockham e, já no século XV,
Nicolau Maquiavel. Ainda no século XIV, um dos nomes de maior destaque e
inovação foi o de Marsílio Mainardini (1280-1343), mais conhecido como Marsílio de
Pádua. O pensador paduano era de origem “burguesa”, ligado a essa nova categoria
social urbana que há algum tempo ganhava destaque. Sua ampla formação incluía
estudos de medicina, teologia e filosofia, nas universidades de Pádua, sua cidade
natal, e Paris, onde também foi professor e reitor.
A obra de Marsílio de Pádua significou uma importante evolução dentro do
pensamento político medieval, tanto pela retomada da filosofia aristotélica através de
Tomás de Aquino quanto pela intenção de colocar o poder civil acima do religioso na
esfera temporal. A partir disso, estudar o pensamento de Marsílio constitui um dos
pontos-chave para o entendimento tanto das relações políticas e institucionais
quanto da filosofia política na Baixa Idade Média, bem como uma forma de perceber
as rupturas e continuidades entre o Medievo e a Modernidade.
Marsílio de Pádua, por suas ideias que poderíamos considerar
“revolucionárias” para o século XIV, foi um dos pensadores mais notáveis e
inovadores do período. Em sua principal obra, o tratado Defensor Pacis, publicado
em 1326, o autor combate a teoria da Plenitudo Potestatis, segundo a qual o papa
possuiria plenos poderes, tanto temporais como espirituais, o que, na concepção
8
curialista, manteria a unidade político-social, a ordem e a paz. A conjuntura da Baixa
Idade Média sem dúvidas pesou sobre o pensamento marsiliano, que foi
influenciado, entre outras coisas, pela disputa entre Filipe IV e Bonifácio VIII, pelos
debates entre Espirituais e Comunidade dentro da Ordem Franciscana, pelos
conflitos políticos da Península Itálica e pelo convívio que o autor teve com juristas
de renome, como João de Jandum e Pedro d’Albano. 1
Nossa intenção neste trabalho é analisar, à luz do contexto histórico e da
teoria política medieval, os argumentos desenvolvidos por Marsílio de Pádua em
seus tratados Defensor Minor e De Translatione Imperii. No tratado intitulado
Defensor Minor, que é uma espécie de “síntese” da principal obra do autor, o
Defensor Pacis, Marsílio expõe de modo conciso seu pensamento sobre a
autoridade secular e sua autonomia em relação à espiritual. No De Translatione
Imperii, escrito como complemento ao Defensor Pacis, Marsílio continua o ataque
desferido contra a Igreja e o Papado, construindo uma “genealogia” do Sacro
Império Romano-Germânico, segundo a qual as origens deste remontariam ao
próprio Império Romano. O principal objetivo do autor é claro: dar ao Império uma
origem e um desenvolvimento histórico independentes da instituição eclesiástica, o
que contribuiria para confirmar sua tese maior de que, na esfera terrena, o gládio
temporal estaria acima do espiritual.
A partir das especificidades do pensamento marsiliano, voltamo-nos à
análise dos já mencionados tratados Defensor Minor e De Traslatione Imperii
buscando perceber e interpretar a argumentação do autor à luz do contexto do
século XIV. Nosso trabalho visou identificar quais foram os argumentos do autor
para legitimar o Império e o imperador; qual a importância do contexto histórico
sobre sua obra; que posicionamentos filosóficos e tradições de pensamento podem
tê-lo influenciado; e se é possível inferir as motivações da escrita do autor, bem
como seus posicionamentos no que concerne à filosofia política e à percepção que
possuía de sua própria conjuntura.
Ao longo dessa pesquisa, nosso objetivo maior foi o de compreender e
analisar a argumentação de Marsílio de Pádua para a legitimação do Sacro Império
Romano-Germânico e da figura do imperador. Para isso, tivemos também alguns
1 SOUZA, José Antônio de Camargo Rodrigues de; BERTELLONI, Francisco; PIAIA, Gregório. “Introdução”. In: PÁDUA, Marsílio de. O Defensor da Paz. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 13-63. Passim.
9
objetivos secundários, como: ler e conhecer a historiografia sobre a conjuntura
histórica (Idade Média, Baixa Idade Média e, especialmente, o século XIV); entender
as transformações ocorridas na transição do Medievo para a Modernidade, em
níveis políticos, econômicos, sociais e culturais, para, a partir disso, depreender a
novidade constituída pelo pensamento marsiliano expressa em seus tratados; ler e
criticar as fontes, analisando, sobretudo, os argumentos utilizados por Marsílio para
legitimar o Império Germânico e a figura do imperador, bem como possíveis críticas
que autor construiu ao seu contexto ou soluções que apontou para as demandas do
Império na época; compreender quais seriam as motivações e intenções de Marsílio
de Pádua ao escrever suas obras, que influências pesaram sobre sua produção e,
especialmente, o modo como esta dialogava com o contexto no qual vivia o autor.
De modo geral, pode-se dizer que poucos historiadores trabalharam de
modo especializado com o pensamento político de Marsílio de Pádua. No plano
internacional, destacam-se os filósofos espanhóis Bernardo Bayona e Pedro Roche 2, largamente utilizados para a confecção desta pesquisa. Em termos nacionais,
destaca-se o nome do já conceituado filósofo José Antônio de Camargo Rodrigues
de Souza, professor da Universidade Federal de Goiás, que contribuiu muito para a
compreensão dos conceitos que Marsílio utiliza em suas obras. Os três referidos
autores, no entanto, empenham-se principalmente em entender o pensamento
marsiliano a partir de pontos de vista filosóficos, deixando de lado a análise histórica.
Mesmo internacionalmente, grande parte dos estudos sobre o pensamento
marsiliano parte de pontos de vista filosóficos e a escassez de nomes demonstra o
quanto Marsílio de Pádua não foi suficientemente estudado pelos historiadores, o
que se evidencia ainda mais no Brasil. Uma exceção é o historiador Moisés
Romanazzi Tôrres, professor da Universidade Federal de São João Del-Rei, que
defendeu sua tese de doutoramento em 2003 sobre o conceito de Império na obra
marsiliana 3.
Para a compreensão contextual optamos pela utilização, sobretudo, das
obras A Civilização do Ocidente Medieval 4, de Jacques Le Goff, e Nova História da
2 BAYONA, Bernardo & ROCHE, Pedro (Edit.). Marsílio de Pádua: Sobre el poder del Imperio y del Papa. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 2004. 3 TÔRRES, Moisés Romanazzi. O conceito de Império em Marsílio de Pádua (c. 1275-80 – c. 1342-43). Rio de Janeiro: UFRJ, 2003. 4 LE GOFF, Jacques. A civilização do Ocidente medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1984. (volume II).
10
Igreja 5, de David Knowles e Dimitri Obolensky, e das obras contextuais do já citado
José Antônio de C. R. de Souza e de João de Morais Barbosa 6, além dos estudos
sobre a filosofia na Idade Média desenvolvidos por Etienne Gilson 7. Para o
embasamento a respeito da teoria política medieval como um todo, utilizamos as
reflexões de Jürgen Miethke 8 e Walter Ullmann 9, referenciais na temática, bem
como a produção da professa Fátima Regina Fernandes 10. Além dos autores já
mencionados, muitos outros foram utilizados ao longo da pesquisa, entre estes,
seria importante destacar também: Oliver Nay 11 e Gaetano Mosca 12, por suas
exposições gerais, um tanto quanto “manuais”, sobre a história das ideias e do
pensamento político; Michel Parisse 13 e José Manuel Nieto Soria 14, pelas reflexões
que desenvolveram sobre o Império na Idade Média; e, por fim, Philippe Ariés 15, por
sua contribuição ao refletir sobre a atitude diante da história na Idade Média.
Para a realização desta pesquisa, inicialmente fizemos a leitura as principais
obras sobre o contexto da Baixa Idade Média e, em especial, o Exílio de Avignon e a
querela entre o Sacro Império Romano-Germânico e o Papado. Após a leitura de
produções que pudessem nos dar um panorama geral sobre o contexto, iniciamos
também a leitura de autores especializados na área da teoria política medieval,
como os já citados Jürgen Miethke e Walter Ullmann, além de autores nacionais que
5 KNOWLES, David. & OBOLENSKY, Dimitri. A Idade Média. Coleção Nova História da Igreja (Volume II). Petrópolis: Vozes, 1974. 6 SOUZA, José Antônio de C. R. de Souza & BARBOSA, João Morais. O Reino de Deus e o Reino dos Homens: As relações entre os poderes espiritual e temporal na Baixa Idade Média (da Reforma Gregoriana a João de Quidort). Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997. 7 GILSON, Etienne. A filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 8 MIETHKE, Jürgen. Las ideas políticas de la Edad Media. Buenos Aires: Editorial Biblos, 1993. 9 ULLMANN, Walter. Escritos sobre teoría política medieval. Buenos Aires: EUDEBA, 2003. 10 FERNANDES, Fátima Regina. “O conceito de Império no pensamento político tardo-medieval”. In: DORÉ, Andréa; LIMA, Luís Filipe Silvério; SILVA, Luiz Geraldo (Org.). Facetas do Império na história: conceitos e métodos. São Paulo: Aderaldo & Rothschild, 2008. p. 185-198. 11 NAY, Oliver. História das ideias políticas. Petrópolis: Vozes, 2007. 12 MOSCA, Gaetano. História das doutrinas políticas desde a Antiguidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1958. 13 PARISSE, Michel. “Império”. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: Imprensa Oficial, 2002.Volume I. p. 607-620. 14 NIETO SORIA, José Manuel. “El Imperio medieval como poder público: problemas de aproximación a un mito político”. Anales de la XXIII Semana de Estudios Medievales de Estella. [s.l./s.d.]. p. 403 – 440. 15 ARIÉS, Philippe. “A atitude diante da história na Idade Média”. In: ______. O tempo da história. Rio de Janeiro: Francisco Alvez, 1989. p. 62-94.
11
trabalharam com a temática, como o também já citado José Antônio de C. R. de
Souza. A leitura e o fichamento de tais obras, além de outros textos avulsos,
permitiu iniciarmos o próximo passo, ou seja, a leitura das fontes em si.
Os tratados Defensor Minor e De Translatione Imperii, fontes desta
pesquisa, foram lidos diversas vezes ao longo do percurso de estudo. Inicialmente,
leitura e análise buscavam captar aspectos gerais, como a estrutura do texto, as
principais linhas de argumentação e os posicionamentos claramente defendidos pelo
autor. Essa leitura proporcionou uma visão ampla da obra, que, por sua vez, permitiu
o entendimento geral do pensamento expresso pelo autor, ou seja, a defesa da
legitimidade do Sacro Império Romano-Germânico em oposição à Igreja Romana.
Num segundo momento, somando a leitura da historiografia especializada às
primeiras análises da fonte, pudemos elencar possibilidades de interpretações a
serem averiguadas, como a “genealogia” do Sacro Império construída pelo autor,
seus argumentos, suas opiniões sobre as personagens históricas as quais cita e
suas intenções. Feito isso, trabalhamos em três frentes: a construção de sínteses
das fontes que permitiram seu melhor entendimento; a sistematização dos dados
coletados sobre o contexto de escrita das fontes; e a análise das personagens
citadas no De Translatione Imperii, e das virtudes e vícios atribuídos a elas.
O texto a seguir estrutura-se em dois capítulos. No primeiro traçaremos um
panorama sobre o contexto no qual Marsílio de Pádua viveu, e quais seriam as
demandas conjunturais que pesaram sobre sua escrita. No segundo capítulo
analisaremos as duas fontes já mencionadas, os tratados: Defensor Minor, espécie
de “síntese” na qual Marsílio expõe de maneira sucinta os principais pontos de seu
pensamento; e De Translatione Imperii, no qual Marsílio constrói uma “genealogia”
do Sacro Império Romano-Germânico. Além da análise das duas fontes, também
iremos contrapor, ao final do segundo capítulo, os conteúdos dos tratados ao
contexto exposto no primeiro capítulo, visando identificar as intenções de escrita dos
mesmos, bem como as motivações que pesaram sobre Marsílio e as necessidades
as quais visava responder. Por fim exporemos nossas conclusões parciais.
12
1. Marsílio de Pádua, suas ideias e seu contexto.
José Antônio Rodrigues de Souza, na introdução da edição brasileira do
Defensor Menor 16, afirma que Marsílio de Pádua é considerado um dos pensadores
mais controversos do século XIV por apresentar ideias em muitos discordantes dos
“padrões” da época. Ainda segundo Souza, na concepção curialista, o papa
possuiria plenos poderes sobre os âmbitos espiritual e temporal, o que manteria a
unidade político-social, a ordem e a paz 17. Ao discordar desse “arranjo”, Marsílio de
Pádua deu origem sim a ideias inovadoras, mas que, porém, encontram-se
completamente respaldadas pela conjuntura histórica na qual vivia. O trabalho
intelectual de Marsílio, destinado especialmente a combater a teoria da Plenitudo
Potestatis papal, encontra-se diretamente vinculado a seu contexto. Entender esse
contexto faz-se, portanto, de essencial importância para compreender e analisar as
ideias do autor.
1.1 Vida e obra de Marsílio de Pádua.
Não há consenso sobre data de seu nascimento, mas é provável que
Marsílio tenha nascido entre 1275 e 1280, na cidade de Pádua, no norte da
Península Itálica. Membro de uma família tradicional, pertencente à “classe
administrativa da comuna” 18, seu pai, Bonmatteo Mainardini, foi notário na
Universidade de Pádua 19, o que indica que provavelmente Marsílio cresceu em um
ambiente culto e favorável aos estudos. Marsílio estudou Medicina, Direito e, mais
tarde, Filosofia e Teologia. Seus estudos iniciaram-se ainda em Pádua e foram
continuados na Universidade de Paris, onde Marsílio chegou a ser reitor no ano de
1313. Após atuar como representante pontifício em Pádua e depois de ter servido a
senhores gibelinos lombardos entre 1319 e 1324, Marsílio regressou a Paris, onde,
16 PÁDUA, Marsílio de. Defensor Menor. Petrópolis: Vozes, 1991. 17 SOUZA, José Antonio de C. R. de. “Introdução a Defensor Menor”. In: PÁDUA, Marsílio de. Defensor Menor. Petrópolis: Vozes, 1991. Passim. 18 BAYONA, Bernardo & ROCHE, Pedro (Edit.). Marsílio de Pádua: sobre o poder do Império e do Papa. Madri: Biblioteca Nueva, 2004. p. 14-15. 19 SOUZA, José Antonio de C. R. de. Op. Cit. Passim.
13
com a ajuda de seu colega e amigo João de Jandum 20, escreveu sua principal obra,
o tratado Defensor Pacis, concluído por volta de 1324. Em 23 de outubro 1327 o
Defensor Pacis seria condenado como herético pelo Papa João XXII 21 na bula Licet
Iuxta Doctrinam.
Sobre a escrita do Defensor Pacis pesam diversos elementos conjunturais
ainda do período de estudos de Marsílio de Pádua, como a querela entre monarca
francês Filipe IV e o papa Bonifácio VIII 22, as questões entre Espirituais e
Comunidade 23 dentro da Ordem Franciscana e, sobretudo, as disputas entre Luís IV
da Baviera 24 e o papa João XXII. Neste tratado, cuja “[...] finalidade é demolir a
doutrina hierocrática do Papado” 25, Marsílio sustenta uma de suas principais teses,
segundo a qual a usurpação da autoridade secular pelo Papado seria a causa da
perturbação da ordem e da ausência da paz. Realocar a autoridade secular,
retirando-a das mãos do pontífice, seria o modo de restabelecer a ordem e a paz.
Para Souza 26, o pensamento de Marsílio de Pádua tem como objetivo maior
o restabelecimento da paz, da tranquilidade, da harmonia social, da ordem e do
equilíbrio que se havia rompido. Para que isso fosse possível, seria necessária a
existência de uma autoridade a quem todos se submetessem, tal autoridade, para
20 João de Jandum (1285-1328): filósofo averroísta, teólogo e teórico político. Tradicionalmente aceito como colaborador de Marsílio de Pádua na escrita do Defensor Pacis, hipótese que é contestada por alguns autores, entre eles Quentin Skinner. 21 Jacques d’Euse, pontífice entre 1316 e 1334. Eleito após um período de dois anos de vacância da Sé Pontifícia (1314-1316), promoveu reformas administrativas e envolveu-se em diversas questões políticas em toda a Cristandade Latina. Em 1323, condenou o dogma da pobreza de Cristo e dos Apóstolos, iniciando conflitos com os franciscanos. No seu pontificado decidiu-se definitivamente que a sede do Papado seria em Avignon. 22 Após tributar o clero e confiscar propriedades eclesiásticas, Filipe IV (1268-1314) envolveu-se em sérios conflitos com o pontífice romano, na época Bonifácio VIII (1235-1303). Depois de excomungar o monarca francês, Bonifácio foi sequestrado e espancado por seus aliados em setembro de 1303, vindo a falecer em novembro do mesmo ano. Os desentendimentos entre Bonifácio VIII e Filipe IV foram decisivos para a transferência do Papado a Avignon, ocorrida no pontificado de seu sucessor, Clemente V (1264-1314). 23 A divisão entre Espirituais e Comunidade surgiu dentro da Ordem dos Frades Menores (Franciscanos) após a morte de seu fundador (1226). Enquanto os membros da chamada Comunidade aceitavam uma burocratização relativa da Ordem e a posse comedida de bens, os Espirituais defendiam a permanência nos ensinamentos de Francisco e valores primordiais, especialmente no que diz respeito à pobreza absoluta. 24 Luís IV da Baviera (1282-1347) foi rei da Germânia a partir de 1314 e Imperador do Sacro Império romano-Germânico de1228 até sua morte. 25 RUBINSTEIN, Nicolai. “Marsílio de Pádua”. In: LOYN, Henry R. (Org.). Dicionário da Idade Média. Rio de Janeiro: Zahar, 1997. p. 591. 26 SOUZA, José Antonio de C. R. de. “Introdução a Defensor Menor”. In: PÁDUA, Marsílio de. Defensor Menor. Petrópolis: Vozes, 1991. Passim.
14
Marsílio, não seria a Igreja, mas sim o poder secular. Marsílio submete o poder
espiritual ao civil, idealizando uma sociedade onde predominariam a Lei, o Direito e
o bem comum, e onde o poder seria instituído pelo povo e exercido pelo Imperador,
governante civil com missão também espiritual. O poder secular seria, portanto,
estabelecido por Deus e independente do espiritual, devendo ser exercido por todas
as pessoas. Não por acaso, muitos pensadores destacam a originalidade e a
radicalidade do pensamento político de Marsílio de Pádua, enxergando nele um
importante ponto da transição do Medievo à Modernidade.
No entanto, é preciso voltar um pouco no tempo para entendermos a
motivação das ideias tão inovadoras desenvolvidas por Marsílio. Em uma carta
endereçada ao imperador Anastácio I 27 e datada de 494, Gelásio I 28, bispo de
Roma, já defendia a existência simultânea de dois poderes no mundo:
Suplico à Vossa Piedade que não considere arrogância a obediência aos princípios divinos. Que esteja longe, vos suplico, de um imperador romano considerar injúria a verdade comunicada a sua consciência, pois são dois, imperador augusto, os poderes com os quais se governa, principalmente, este mundo: a sagrada autoridade dos pontífices e o poder dos reis, e desses dois poderes é mais importante o dos sacerdotes, pois têm de prestar contas, também, diante do divino juiz dos governantes dos homens. Bem sabe, clementíssimo filho, que embora por vossa dignidade seja o primeiro de todos os homens e o imperador do mundo, abaixa piedosamente a cabeça diante dos representantes da religião e lhes suplica aquilo que é indispensável para a vossa salvação; na administração dos sacramentos e na disposição das coisas sagradas reconhece que deve submeter vosso governo e não ser vós aquele que governa, e assim, nas coisas da religião, deve submeter-se a seu julgamento e não querer que eles se submetam ao vosso, pois no que se refere ao governo da administração pública, os mesmos sacerdotes, sabendo que autoridade vos foi concedida por disposição divina, obedecem as vossas leis para que não pareça que nas coisas materiais se opõem às leis [...]. (ênfase acrescentada) 29
Gelásio apontava a coexistência e separação dos dois poderes, afirmando
que os bispos seriam superiores às autoridades temporais em assuntos
eclesiásticos, da mesma forma que o Imperador, para as coisas laicas, seria superior
aos bispos. Como aponta Gaetano Mosca, “[...] desde o seu aparecimento o
27 Anastácio I, imperador bizantino de 491 a 518. 28 Gelásio I (410-496), bispo de Roma de 492 até sua morte. 29 A teoria das duas espadas (474). Apud. SÁNCHEZ, Maria Guadalupe Pedrero. História da Idade Média: textos e testemunhas. São Paulo: Editora UNESP, 1999. p. 121-122.
15
Cristianismo aspirava a uma completa autonomia” 30 em relação aos poderes
seculares, aspiração esta que daria lugar a um desejo de supremacia. Sobre as
ideias expostas por Gelásio, explica Olivier Nay:
A tese da separação das esferas, inicialmente destinada a proteger a Igreja e os cristãos dos abusos do poder político, serve, a partir desse momento, a um novo propósito, a saber: justificar a supremacia da Igreja sobre todos os outros poderes. A nova doutrina inicia vários séculos de conflitos entre os reis e os papas. 31
As pretensões de supremacia do Papado receberiam importantes
contribuições a partir de 1073, no pontificado de Gregório VII 32, no qual se
estabeleceu a eleição do papa pelos cardeais, promoveu-se a centralização da
administração eclesiástica, combateu-se a simonia e o nicolaísmo e proibiu-se a
investidura leiga. Em 1075 Gregório VII tornou público o célebre Dictatus Papae, no
qual sustentava que “só o pontífice romano tem o direito de chamar-se universal”,
“que lhe é lícito depor o imperador”, “que ninguém pode revogar sua palavra” ou
julgá-lo e “que o pontífice pode liberar os súditos da fidelidade a um monarca iníquo” 33. A chamada teoria da teocracia pontifícia viria ainda receber aportes nos escritos
de Bernardo de Claraval 34, que defendeu que as “duas espadas”, ou seja, os
poderes espiritual e temporal, estariam ambas nas mãos do papa.
Substancialmente elaboradas com o passar do tempo, o ápice das intenções
teocráticas seria atingido, contudo, durante o pontificado de Bonifácio VIII, cuja
querela com Filipe, o belo, o levaram a publicar as bulas Clericis Laicos (1296),
Asculta Fili (1301) e, por fim, Unam Sanctam (1302), nas quais sustenta
veementemente a superioridade da autoridade eclesiástica sobre a laica,
defendendo a chama teoria da Plenitudo Potestatis papal, segundo a qual o pontífice
deteria a plenitude do poder, tanto espiritual quanto temporal. Na supracitada bula
Unam Sanctam, mais famoso escrito de Bonifácio VIII, o papa afirmava:
30 MOSCA, Gaetano. História das doutrinas políticas desde a Antiguidade. p. 77. 31 NAY, Olivier. História das ideias políticas. Petrópolis: Vozes, 2007. p. 79. 32 Gregório VII (1020-1025 – 1085), pontífice romano de 1073 até sua morte, é considerado um dos papas mais influentes da história pela série de reformar realizadas em seu pontificado. 33 “Dictatus Papae” (1075). Apud. SÁNCHEZ, Maria Guadalupe Pedrero. História da Idade Média: textos e testemunhas. São Paulo: Editora UNESP, 1999. p. 128-129. 34 Bernardo de Claraval (1090-1153), monge cisterciense e doutor da Igreja, foi um grande propagador da Ordem e defensor dos interesses eclesiásticos.
16
[...] E aprendemos das palavras do Evangelho que nesta Igreja e em seu poder estão as duas espadas, a espiritual e a temporal [...] Na verdade, aquele que nega estar a espada temporal em poder de Pedro interpreta mal as palavras do Senhor: “Põe a tua espada na bainha”. Ambas estão em poder da Igreja, a espada espiritual e a material. Mas a última é para ser usada para a Igreja, a primeira por ela; a primeira, pelo sacerdote, a última, pelos reis e cavaleiros, mas de acordo com a vontade e permissão do sacerdote. Uma espada, portanto, deverá estar sob a outra, e a autoridade temporal sujeita à espiritual [...] Por tudo isso declaramos, estabelecemos, definimos e pronunciamos que é absolutamente necessário para a salvação de toda criatura humana estar submetida ao pontífice romano. (ênfase acrescentada) 35
De fato, as disputas ente os poderes espiritual e temporal perpassam toda a
história da Igreja tardo-antiga e medieval. Porém, na construção dos argumentos de
sua supremacia, o Papado encontrou diversos adversários, entre os quais se
destaca o Sacro Império Romano-Germânico. A sistemática tentativa do Papado de
governar toda a Cristandade Latina revela ainda a aspiração tipicamente medieval à
harmonia e à unidade, uma vez que, como aponta Fátima Regina Fernandes 36,
Império e Papado são duas instituições que representam poderes com pretensões
universais, pretensões estas que por vezes colocavam-nos em campos opostos.
Esse clássico conflito, presente nos problemas entre o Papado e Henrique IV 37,
Frederico Barba-Ruiva 38, Henrique VI 39 e Frederico II 40, entre outros, incentivou a
produção teórica tanto ao lado do pontífice quanto ao lado do Imperador. Como
expõe Jürgen Miethke:
Durante el tránsito del diglo XIII al XIV empiezan a aparecer – en primer lugar en la curia romana – escritos que de modo más o menos audaz
35 Bula Unam Sanctam. Bonifácio VIII (1302). Apud. SÁNCHEZ, Maria Guadalupe Pedrero. História da Idade Média: textos e testemunhas. São Paulo: Editora UNESP, 1999. p. 138-139. 36 FERNANDES, Fátima Regina. “O conceito de Império no pensamento político tardo-medieval”. In: DORÉ, Andréa; LIMA, Luís Filipe Silvério; SILVA, Luiz Geraldo (Org.). Facetas do Império na história: conceitos e métodos. São Paulo: Aderaldo & Rothschild, 2008. p. 185-198. 37 Henrique IV (1050-1106), imperador do Sacro Império de 1084 a 1105, sustentou o direito do Imperador em nomear bispos, o que o opôs ao papa Gregório VII, desencadeando a chamada Querela das Investiduras. 38 Frederico I da Germânia (1122-1190), Imperador do Sacro Império entre 1152 e 1190. 39 Henrique VI (1165-1197), Imperador do Sacro Império de 1191 até sua morte. 40 Frederico II (1194-1250), Imperador do Sacro Império de 1220 até sua morte. Envolto em conflitos com o Papado, foi destituído em 1245 por Inocêncio IV, excomungado duas vezes, e chegou a ser chamado de Anticristo pelo papa Gregório IX. Sua morte iniciou o chamado Grande Interregno do Sacro Império Romano Germânico.
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sostenían las pretensiones absolutas del papado definiendo pautas que debían ser seguidas por los governantes temporales. 41
Esse movimento foi seguido por uma reação: a escrita de tratados
defendendo o poder secular. Não por acaso, assistimos, nos séculos XIII e XIV, ao
surgimento de diferentes teorias políticas defendendo ora a autoridade do poder
espiritual e sua superioridade, ora a independência e/ou supremacia do poder
temporal. Alguns dos nomes que se destacam são os de Egídio Romano 42, Santiago
de Viterbo 43, Jean Quidort 44, Dante Alighieri 45, Guilherme de Ockham 46 e o próprio
Marsílio de Pádua.
Como apontamos acima, a querela entre os poderes espiritual e temporal foi
uma realidade e um dos traços marcantes da história do período medieval. O que
Jacques Le Goff 47 chamou de “Cristandade bicéfala”, ou seja, o conflito entre
Papado e Império, dois poderes com pretensões a supremacia universal, constitui a
face mais célebre desta querela. No início do século XIV, apesar da perda da força
do Papado, exilado em Avignon, da ascensão das monarquias e de uma relativa
perda de prestígio pelo Império, esse conflito reacendeu-se nas figuras do pontífice
João XXII e do Imperador Luís IV da Baviera. Foi justamente nesse contexto que
Marsílio de Pádua escreveu suas obras.
Após a morte de Henrique VII 48 (1313), iniciou-se uma disputa entre
Frederico da Áustria e Luís da Baviera pela sucessão ao trono imperial. Nas eleições
imperiais de 1314, Luís obteve cinco votos, contra dois de Frederico, no entanto,
apesar da vitória de Luís nas eleições, ambos foram coroados e a disputa pelo trono 41 MIETHKE, Jürgen. Las ideas políticas de la Edad Media. Buenos Aires: Editorial Biblos, 1993. p. 103. 42 Egídio Romano (1243-1316), teólogo e filósofo da Ordem de Santo Agostinho. Foi discípulo de Tomás de Aquino e autor do tratado De Ecclesiastica Potestate, dedicado a Bonifácio VIII, cujo objetivo era fundamentar as pretensões de governo papal. 43 Santiago de Viterbo (1255-1307), aluno de Egídio Romano, escreveu De Regimine Christiano, no qual utiliza argumentos aristotélicos para defender a Igreja como “Estado exemplar”, logo, acima do poder secular. 44 Jean Quidort (1255-1306), filósofo, teólogo e monge dominicano. Escreveu De Regia Potestate et Papali, no qual fundamenta em conceitos aristotélicos a autonomia dos poderes secular e espiritual. 45 Dante Alighieri (1265-1321), escritor, político e poeta florentino. Escreveu De Monarchia, onde defende a supremacia do poder temporal sobre o espiritual. 46 Guilherme de Ockham (1285-1347), frade franciscano, filósofo e teólogo escolástico inglês. Escreveu Opera Theologica et Philosophica e Opera Politica. 47 LE GOFF, Jacques. A civilização do Ocidente Medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1984. Passim. 48 Henrique VII (1275-1313), Imperador do Sacro Império a partir de 1312 até a sua morte.
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seguiu-se nas armas. Este conflito levou a uma guerra civil que só acabou em 1322,
na batalha de Mühldorf, quando as tropas de Luís, doravante chamado de Luís IV,
venceram as de Frederico. Durante a disputa, Luís e Frederico apelaram ao papa
João XXII para a resolução do conflito, porém o pontífice recusou-se a reconhecer
qualquer um dos dois e tomou a administração imperial para si. Inicia-se então uma
nova questão, desta vez entre o papa e o imperador eleito.
João XXII, tencionado a favorecer Leopoldo, reivindicava o direito de
designar um novo candidato em caso de eleição duvidosa, defendendo a ideia de
que o imperador precisava do consentimento papal para exercer seu poder. Como o
pontífice havia tomado para si o governo da parte italiana do Império, Luís IV, após
vencer Frederico, enviou tropas à península itálica. Em virtude disso, o pontífice
excomungou Luís IV, acusando-o de ser ilegítimo e de apoiar hereges. Como
resposta, em 1324, Luís lançou o Manifesto de Sachsenhausen, no qual chamava
João XXII de “inimigo da paz”, o acusava de heresia, por negar a doutrina da
pobreza de Cristo e dos Apóstolos, e conclamava um concílio para julgar o pontífice.
O imperador decidiu ainda apoiar todos os que estavam contra o Papado, recebendo
em sua corte João de Jandum, Marsílio de Pádua e Guilherme de Ockham, entre
outros.
Marsílio de Pádua, como vimos, havia concluído seu tratado Defensor Pacis
em 1324, dedicando-o a Luís IV e publicando-o anonimamente. Em 1326, após a
autoria do tratado se tornar conhecida, Marsílio e João de Jandum fugiram para a
corte imperial, sendo logo em seguida condenados como hereges por João XXII e
excomungados através da bula Licet Iuxta Doctrinam (1327). Durante a campanha
militar de Luís IV na Península Itálica, Marsílio, Jandum e alguns franciscanos
dissidentes participaram ativamente das iniciativas do imperador. Luís chegou a
Roma no início de 1328 e nomeou o franciscano Pedro de Corbara 49, que tomou o
nome de Nicolau V, como antipapa. Nesse período, Marsílio gozou de grande
prestígio junto ao imperador, sendo inclusive nomeado vigário imperial para a cidade
de Roma e arcebispo de Milão. As tropas imperiais, porém, resistiram pouco tempo
e, em agosto de 1328, o imperador e seus aliados foram expulsos pelas tropas leais
ao papa e retornaram a Munique.
49 Pedro de Corbara (1266-1333), antipapa de 1328 a 1330.
19
Após o retorno das tropas imperiais a Munique e a morte de João de
Jandum, Marsílio passou a atuar como médico e conselheiro particular de Luís IV.
Nesse período, ele criou rivalidades com alguns franciscanos, especialmente com
Bonagrazia de Bérgamo 50 e Gulherme de Ockham. Na corte imperial, Marsílio
participou da redação de uma memória intitulada Quoniam Scriptura, cuja proposta
era a de que o imperador não reconhecesse o pontífice até que este reconhecesse
os direitos do Império. As negociações entre Luís IV e o Papado continuaram sem
grandes acertos até que, em 1338, na Dieta de Frankfurt, os representantes do
Sacro Império declararam válida a eleição do imperador sem a intervenção papal.
Marsílio de Pádua ainda serviu aos interesses Luís IV quando este desejava
casar seu filho, Luís de Brandemburgo, com Margarida de Maultasch, condessa do
Tirol. Como os avós de Margarida e Luís eram irmãos e Margarida já havia se
casado com João Henrique da Boêmia, o papa negou-se a cancelar o primeiro
matrimônio (não consumado) e permitir o segundo. Diante disso, Luís IV pediu a
Marsílio e Guilherme de Ockham que escrevessem tratados defendendo a jurisdição
do imperador sobre questões matrimoniais. Dessa questão surgiram os tratados
Consultatio De Causa Matrimoniali, de Ockham, e De Iurisditione Imperatoris in
Causis Matrimonialibus, de Marsílio. Marsílio de Pádua ainda escreveu outros dois
tratados: De Translatione Imperii e Defensor Minor, que serão analisados no
decorrer deste trabalho.
Segundo Bernardo Bayona e Pedro Roche, “[...] la doctrina de Marsilio era
un impedimento para la negociación del Emperador, el cual se inclinaba ya por un
cierto pragmatismo y mostraba alguna flexibilidad para encontrar soluciones” 51. Em
virtude disso, tudo indica que Marsílio foi afastado do círculo mais estreito de
conselheiros do imperador, dedicando-se quase que exclusivamente à medicina.
Marsílio morreu na corte imperial em 10 de abril de 1343, “ostracizado” e esquecido
inclusive em Pádua, sua cidade natal. Ao saber de sua morte, o papa Clemente VI
teria comemorado, afirmando que havia finalmente desaparecido o “maior herege
jamais visto”. Em suma, “Marsilio fue condenado por la Iglesia que quiso reformar,
50 Bonagrazia de Bérgamo (1266-1340) foi um dos principais apoiadores dos Espirituais Franciscanos. 51 BAYONA, Bernardo & ROCHE, Pedro (Edit.). Marsílio de Pádua: sobre o poder do Império e do Papa. Madri: Biblioteca Nueva, 2004. p. 21.
20
marginado en la Corte del Emperador, a cuyo servicio se entrego de cuerpo y alma,
y rechazado por su ciudad natal” 52.
1.2 Contextos de escrita dos tratados De Translatione Imperii e Defensor Minor.
O tratado intitulado De Translatione Imperii, em português, Sobre a
Transferência do Império permaneceu anônimo até o século XVI, quando, após a
primeira edição impressa do Defensor Pacis (1522), supôs-se que a obra também
pertenceria a Marsílio de Pádua. Segundo nos informam Bayona e Roche 53, apesar
de anônimo, o trato de Marsílio foi usado como “prova histórica” pelo humanista
Konrad Peutinger 54 ao menos em duas ocasiões: em 1519, para apoiar a eleição de
Carlos V 55 à sucessão de Maximiliano I 56, em oposição a Francisco I da França 57,
apoiado pelo pontífice; e em 1530, na controvérsia entre Clemente VII 58 e Afonso
d’Este 59 sobre a possessão de Modena. A primeira versão impressa do De
Translatione Imperii ocorreria em 1555, na cidade de Basiléia.
A data de redação do tratado é imprecisa, mas tudo indica que ele tenha
sido escrito provavelmente entre 1324 e 1326, na cidade de Paris, logo após a
escrita do Defensor Pacis, com o qual possui uma conexão literal. Como vimos, a
proposta marsiliana era a de desconstruir a teoria da Plenitudo Potestatis papal, o
que já iniciara em sua obra inaugural. Tal intenção viria a ser continuada no De
Translatione Imperii:
La transferencia del Imperio refuta, desde la historia, el poder del Papa sobre el Emperador; y, de ese modo, completa la refutación de la plenitudo
52 BAYONA, Bernardo & ROCHE, Pedro (Edit.). Marsílio de Pádua: sobre o poder do Império e do Papa. Madri: Biblioteca Nueva, 2004. p. 25. 53 Ibid. p. 49-54. Passim. 54 Konrad Peutinger (1465-1547), humanista, diplomata, político e economista de origem alemã. 55 Carlos V (1500-1558), Imperador do Sacro Império entre 1530 e 1556. 56 Maximiliano I (1459-1519), Imperador do Sacro Império a partir de 1508 até sua morte. 57 Francisco I (1494-1547), governou a França de 1515 até sua morte. 58 Guilio Giuliano de Médici (1478-1534), pontífice romano de 1523 até sua morte . 59 Afonso d’Este (1476-1534), senhor de Rovigo e duque de Ferrara, Módena e Réggio.
21
potestatis pontificia, que en el El defensor de la paz se había hecho desde la razón y la Escritura. 60
Nossa intenção é discutir mais aprofundadamente a obra De Translatione
Imperii no segundo capítulo deste trabalho. No momento, cabe indicar que o
supracitado tratado foi uma espécie de continuação da obra maior de Marsílio de
Pádua, e no qual este tencionava demonstrar, a partir da história, a autonomia do
Sacro Império Romano-Germânico em relação à Igreja Romana. Entende-se,
portanto, que o tratado possui uma conexão direta com o Defensor Pacis, e que está
imerso na mesma conjuntura, dando continuidade aos propósitos políticos e
ideológicos de Marsílio, quais sejam: atacar a supremacia pontifícia e negar
quaisquer interferências do Papado sobre o Império e, de modo geral, do poder
espiritual sobre o temporal.
O contexto no qual Marsílio produziu o tratado Defensor Minor é bastante
diferente daquele no qual havia produzido o Defensor Pacis e o De Translatione
Imperii. A obra também permaneceu desconhecida por longo tempo, até que, em
1857, descobriu-se um único manuscrito seu (do século XV) em Oxford. Acredita-se
que sua escrita tenha ocorrido entre 1339 e 1340, já que ela tornou-se conhecida
entre 1341 e 1342, pouco antes da morte de Marsílio, em 1343. Nessa fase de sua
vida, como comentamos, Marsílio de Pádua encontrava-se na corte imperial, porém
já não gozava de tanto prestígio junto ao imperador, precisando, portanto, reafirmar
suas posições dentro deste espaço.
No tratado, como aponta Souza 61, Marsílio viria a retomar as principais teses
defendidas no Defensor Pacis, também respondendo, como apontam Bayona e
Roche 62, às questões levantadas por Guilherme de Ockham sobre o primado de
Pedro e a jurisdição de papas e bispos em assuntos eclesiais. Da mesma forma que
De Translatione Imperii, Defensor Minor também guarda estreitas relações com o
Defensor Pacis. De fato, Marsílio mantém as mesmas teses de sua principal obra,
dando mostra da persistência de seus objetivos, porém faz uso de uma linguagem
mais corrente e realiza menores aprofundamentos filosóficos, dando preferência a
60 BAYONA, Bernardo & ROCHE, Pedro (Edit.). Marsílio de Pádua: sobre o poder do Império e do Papa. Madri: Biblioteca Nueva, 2004. p. 51. 61 SOUZA, José Antônio de C. R. de. “Introdução a Defensor Menor”. In: PÁDUA, Marsílio de. Defensor Menor. Petrópolis: Vozes, 1991. p. 09-32. Passim. 62 BAYONA, Bernardo & ROCHE, Pedro (Edit.). Op. Cit. p. 27.
22
textos bíblicos, especialmente do Apóstolo Paulo, e aos Pais da Igreja. A
objetividade manifesta no tratado, que é significativamente menor que o Defensor
Pacis, e as mudanças realizadas por Marsílio provavelmente apontam para uma
aplicação prática dos princípios contidos em sua obra inaugural a uma conjuntura
específica, no caso, o Sacro Império. Voltaremos a essas questões no próximo
capítulo, quando tratarmos especificamente das fontes.
23
2. A legitimação do Império e do Imperador na obra de Marsílio de Pádua. 2.1. A desconstrução da Plenitudo Potestatis papal no Defensor Minor de Marsílio de Pádua.
Como apontamos no primeiro capítulo, Marsílio de Pádua escreveu Defensor
Minor por volta de 1339-1340 e obra tornou-se conhecida entre 1341-1342, pouco
antes da morte do autor (1341). Segundo Bayona e Roche, essa obra “[...] nace de
la necesidad que siente el Paduano de defender su posición dentro de la Corte
imperial” 63, tendo como tese central a unidade do poder secular e a exclusão
completa de qualquer jurisdição sacerdotal e usando, neste propósito, fontes como
textos do Novo Testamento, dos Padres da Igreja e de Aristóteles. Neste tratado,
segundo Souza, o trabalho intelectual de Marsílio de Pádua dirigiu-se a combater a
teoria da Plenitudo Potestatis papal, construção teológica e filosófica erigida durante
séculos por representantes da Igreja Romana 64. A obra guarda, portanto,
vinculações estreitas com as outras produções do autor já mencionadas,
especialmente com o Defensor Pacis, do qual o Defensor Minor é praticamente uma
síntese 65.
Apesar de estar diretamente vinculado à principal obra de Marsílio, Defensor
Pacis, o Defensor Minor apresenta novos conteúdos e uma estrutura própria. Nesse
tratado, o autor mantém as principais teses desenvolvidas em sua obra maior,
usando, porém, uma linguagem mais corrente e com menores aprofundamentos
teóricos. Ainda segundo Bayona e Roche, a obra buscaria a aplicação dos princípios
marsilianos a uma conjuntura específica, apresentando, por isso, uma concepção
claramente imperial. A obra poderia ainda ser dividida em quatro partes, divisão que
seguiremos em sua exposição e discussão: nos primeiros dez capítulos, Marsílio
escreve sobre o chamado “poder das chaves”, definindo e distinguindo Lei Humana
e Lei Divina; a seguir, no décimo primeiro capítulo, Marsílio examina a tese da
Plenitudo Potestatis papal; no décimo segundo capítulo, ele define quem é o 63 BAYONA, Bernardo & ROCHE, Pedro (Edit.). Marsílio de Pádua: sobre el poder del Imperio y del Papa. Madri: Editorial Biblioteca Nueva, 2004. p. 28. 64 SOUZA, José Antonio de C. R. de. “Introdução a Defensor Menor”. In: PÁDUA, Marsílio de. Defensor Menor. Petrópolis: Vozes, 1991. Passim. 65 Daí os tratados serem chamados pelo próprio Marsílio, respectivamente, de “Defensor da Paz Maior”, e “Defensor Menor”.
24
Supremo Legislador Humano; e, por fim, entre o décimo terceiro e o décimo sexto
capítulo, Marsílio analisa os aspectos jurisdicionais acerca do matrimônio.
2.1.1. O “poder das chaves”:
Marsílio de Pádua inicia o primeiro capítulo do seu Defensor Minor,
doravante chamado pelo seu título em português, Defensor Menor 66, expondo as
ideias de Pedro Lombardo 67, segundo o qual os sacerdotes deteriam o “poder de
atar e desatar” 68, podendo excomungar os pecadores e excluí-los da participação
dos bens espirituais e temporais, bem como da comunidade dos fiéis. Esse poder,
na concepção curialista, teria sido dado pelo próprio Cristo aos Apóstolos,
concedendo a eles e seus sucessores poderes diretos sobre a inclusão ou exclusão
do Corpo de Cristo, a Igreja. Marsílio afirma ser oportuno entender a natureza de tal
poder sacerdotal, por ele chamado de jurisdição, bem como qual seria a jurisdição
do Imperador e se esta seria proveniente ou não daquela dos bispos e sacerdotes.
No entendimento do autor, jurisdição, direito e lei seriam sinônimos, e haveria dois
tipos de lei: a Lei Divina e a Lei Humana.
A Lei Divina seria um “preceito imediato de Deus, sem nenhuma participação
humana” 69, e que conteria um preceito coativo a ser infringido na outra vida àqueles
que a desobedecessem nesta vida. Tal lei, como expresso, não teria surgido a partir
da vontade humana, mas sim da vontade divina realizada por intermédio dos
Apóstolos e Evangelistas. A Lei Humana, por sua vez, seria um “preceito estatuído
pelo conjunto dos cidadãos ou por sua parte mais relevante” 70 visando a atingir
o “melhor fim” na presente vida e, portanto, implicaria em penas ou castigos,
aplicados nesta vida, àqueles que a transgredissem. Enunciar o direito ou a lei, para
Marsílio, conteria quatro significados: (1) descobrir a regra e/ou razão de ser dos
atos civis; (2) expor a lei e ensiná-la a outras pessoas; (3) promulgar a lei,
juntamente com o princípio coativo aplicável àqueles que a descumprirem; e (4) 66 PÁDUA, Marsílio de. Defensor Menor. Petrópolis: Vozes, 1991. 67 Pedro Lombardo: filósofo escolástico nascido por volta de 1100, no norte da Península Itálica, e falecido por volta de 1160. Foi professor da escola catedralícia de Notre Dame e também bispo de Paris. 68 PÁDUA, Marsílio de. Op. Cit. p. 35. 69 Ibid. p. 35. 70 Ibid. p. 36. Grifo meu.
25
aplicar este princípio coativo aos transgressores da lei. Enunciar a lei de acordo com
seu primeiro significado caberia aos sábios que a elaboram; expô-la e explicá-la
caberia aos doutores e àqueles que ensinam; promulgá-la e aplicá-la, porém,
caberia unicamente ao conjunto dos cidadãos ou àqueles a quem estes delegassem
o poder, ou seja, aos juízes ou príncipes.
Partindo das premissas por ele estabelecidas, Marsílio chega a algumas
conclusões: em primeiro lugar, nenhum homem pode enunciar a Lei Divina de
acordo com o primeiro, terceiro ou quarto significados; em segundo lugar, enunciar a
Lei Humana em seu terceiro ou quarto significados não compete aos sacerdotes ou
à Igreja; igualmente, nenhum estatuto eclesiástico teria o peso de lei; por fim:
[...] nem o Bispo de Roma, nem qualquer outro ministro eclesiástico, antes mencionado, possuíram ou detêm a jurisdição coercitiva neste mundo sobre pessoa alguma, clérigo ou leigo, até mesmo sobre um herege, a menos que tal jurisdição lhes tenha sido concedida pelo legislado humano [...] tanto o Bispo de Roma quanto os demais citados ministros eclesiásticos estão subordinados real e pessoalmente à jurisdição dos juízes e governantes atuando por força da autoridade do legislador humano.71
O segundo capítulo inicia-se com a afirmação de que a instituição de leis
coercitivas por bispos e sacerdotes, apesar de aparentemente contribuir para o bem
dos homens, é desnecessária, sem finalidades e somente geraria inconvenientes.
Visto que a Lei Divina já foi completamente estabelecida por Deus através dos
Apóstolos e Evangelistas nas Escrituras Sagradas, uma lei instituída por sacerdotes,
segundo Marsílio, não seria nem divina e nem humana. Além disso, tal ato faria com
que surgissem muitos legisladores e governantes sobre um mesmo povo sem
estarem subordinados uns aos outros, situação que é “insuportável por qualquer
comunidade política”72. O fato de os sacerdotes imiscuírem-se na enunciação da lei
em aspectos que não os competem é visto por Marsílio como a causa da
“dissensão” contínua que reinava entre os cristãos, que só poderia ser resolvida se
tal poder e autoridade “usurpados” fossem tirados totalmente das mãos dos clérigos
e devolvidos àquele ao qual realmente pertencem.
Marsílio sustenta ainda que a intervenção do clero em questões civis ou
seculares não é justificada nem mesmo na hipótese de príncipes negligentes ou
71 PÁDUA, Marsílio de. Defensor Menor. Petrópolis: Vozes, 1991. p. 38. 72 Ibid. p. 39.
26
ímpios. A justiça contra tais príncipes competiria exclusivamente ao legislador
humano:
[...] se o julgamento e castigo aos príncipes competisse a uma outra parte ou encargo da cidade, absolutamente seria da alçada dos sacerdotes, mas caberia aos homens prudentes e instruídos, e até mesmo aos ferreiros, ou aos curtidores ou aos demais artífices, pois tanto a razão, como a lei e ainda a Sagrada Escritura, através de um conselho ou preceito, não lhes proíbe se envolver em questões e atividades civis ou seculares. No entanto, conforme indicamos acima, de acordo com as palavras do Apóstolo, há uma restrição sobre isso, concernente aos bispos e sacerdotes 73
Para Marsílio a única forma de intervenção dos sacerdotes seria através das
orações e dos ensinamentos, porém jamais utilizando a força, já que eles não têm
autoridade para tanto.
Citando textos bíblicos e também os Pais da Igreja, Marsílio afirma, no
terceiro capítulo, que as correções aplicáveis pelos sacerdotes são espirituais e
verbais e não carnais e coercitivas. Dando mostras da influência das questões
franciscanas sobre sua obra, o autor também sustenta que nenhum sacerdote pode
reivindicar para si a propriedade de qualquer bem móvel ou imóvel, exceto suas
roupas e uma quantidade de alimento suficiente para seu sustento. Seguindo o
modelo de Cristo, a humildade seria um requisito para exercer o ministério
sacerdotal. De tal premissa, Marsílio deduz:
Disso resulta necessariamente que os bispos ou sacerdotes ou ainda qualquer outro ministro eclesiástico, sucessores de Cristo ou dos Apóstolos, não podem se atribuir o direito de reivindicar dízimos ou uma outra porção determinada de bens materiais, móveis ou imóveis.74
No quarto e no quinto capítulos, Marsílio de Pádua expõe os poderes que
supostamente os sacerdotes teriam. Segundo ele, os bispos e presbíteros podem
somente ensinar a Lei Divina, tendo também autoridade para batizar, ministrar a
eucaristia e instituir sucessores. Ao analisar o chamado “poder das chaves” 75,
segundo o qual os sacerdotes e especialmente o Bispo de Roma poderiam condenar
ou absolver pecados, Marsílio enumera as decorrências deste poder para, em
73 PÁDUA, Marsílio de. Defensor Menor. Petrópolis: Vozes, 1991. p. 41. 74 Ibid. p. 44. 75 “Em verdade vos digo: tudo quanto ligardes na terra será ligado no céu e tudo quanto desligardes na terra será desligado no céu” (Bíblia de Jerusalém. Mateus, 18, 18).
27
seguida, questioná-las uma a uma. Da chamada “plenitude do poder sobre os
demais cristãos” 76 decorreriam: a necessidade de confessar os pecados ao
sacerdote; o poder de um sacerdote infringir castigos aos pecadores para que estes
sejam perdoados; o poder de conceder indulgências; a autoridade para desobrigar
uma pessoa de uma promessa ou profissão religiosa assumida; e, por fim, o poder
de excomungar um cristão em virtude dos seus pecados.
Sobre a confissão, Marsílio afirma que se trata de um conselho e não um
preceito, e conclui que “É suficiente confessar os próprios pecados somente a Deus,
isto é, reconhecê-los e nos arrependermos de tê-los cometido, com o propósito de
não fazê-los novamente” 77 e que ao pecador “[...] bastam-lhe a contrição e o
arrependimento sincero do pecado cometido, sem haver necessidade alguma de se
confessar a um sacerdote para que seja imediatamente absolvido por Deus” 78. De
fato, Marsílio vai ainda mais longe, aplicando a mesma lógica a todas as prescrições
feitas pela Igreja que, por não estarem baseadas na Bíblia, não teriam o peso de
uma lei:
[...] tudo que é prescrito ou estabelecido pela Igreja universal ou pelo Concílio Geral no que tange ao que não foi nem determinado, nem proibido pela Sagrada Escritura, referindo-se apenas ao ritual da Igreja, e tudo o mais que se pode enquadrar no âmbito dos conselhos, não dos preceitos [...]. 79
Sobre o poder de “[...] infringir um castigo pessoal ou real aos pecadores
neste mundo”, Marsílio afirma que “[...] não se pode comprovar através da Sagrada
Escritura que esse poder ou autoridade compete aos sacerdotes” 80. Marsílio
também contesta o poder atribuído ao papa de conceder indulgências, ou seja,
perdoar os fiéis dos seus pecados em situações especiais, dizendo que tal poder
não pode ser demonstrado a partir da Bíblia. Além disso, Marsílio também critica a
realização de cruzadas e peregrinações, afirmando que esse tipo de viagem
somente poderia ser considerado meritório se “[...] para obrigar os infiéis a obedecer
76 PÁDUA, Marsílio de. Defensor Menor. Petrópolis: Vozes, 1991. p. 49. 77 Ibid. p. 50. 78 Ibid. p. 52. 79 Ibid. p. 56. 80 Ibid. p. 57.
28
ao príncipe ou ao povo romano em matéria de preceitos civis ou para reivindicar
tributos adequados” 81. Em síntese:
Pensamos igualmente que as indulgências ou remissões não podem, absolutamente, ser concedidas pelos bispos ou sacerdotes aos pecadores, porque eles não detêm poder algum para outorgá-las ou revogá-las. Somente Deus é que pode fazê-lo, pois só Ele conhece o sentimento dos pecadores e os corações dos penitentes, dos que oferecem uma satisfação, sua qualidade e quantidade, enfim o mérito e demérito de cada um.82
Outro ponto no qual Marsílio de Pádua questiona a autoridade pontifícia é no
que tange ao poder do papa para “[...] liberar ou desligar qualquer cristão do dever
de observar um voto” 83. De acordo com o autor, como o voto é algo espontâneo e
feito diretamente a Deus, uma pessoa não estaria obrigada a realizá-lo, mas, ao
fazê-lo, teria a obrigação de cumpri-lo sem que nenhum sacerdote pudesse anulá-lo.
Além disso, no décimo capítulo da obra, Marsílio também trata do poder de
excomungar os fiéis, privando-os ou mesmo excluindo-os da comunhão eclesial e da
convivência civil. Vimos que a excomunhão foi um recurso largamente utilizado nas
querelas entre o pontífice e autoridades seculares. Para Marsílio, tal atitude não fora
tomada nem mesmo pelos Apóstolos, e, portanto, não faria parte do poder dos
bispos e sacerdotes, nem mesmo do pontífice romano:
É por essa razão que se pode e se deve inferir das asserções sobreditas que não compete à autoridade ou ao poder dos sacerdotes excomungar espiritual ou civilmente os fiéis, isto é, privá-los dos sufrágios religiosos e da convivência social, nem lançar interdito sobre as comunidades dos fiéis, ou negar-lhes a celebração dos ofícios divinos.84
2.1.2. O questionamento da Plenitudo Potestatis papal:
Marsílio também questiona a suposta “plenitude do poder” detida pelo papa,
a qual existiria, segundo a concepção da cúria de Roma, em virtude da
preeminência do Apóstolo Pedro e, consequentemente, da Sé Romana. Segundo
ele, a “plenitude do poder” somente existiria em Cristo, simultaneamente humano e
81 PÁDUA, Marsílio de. Defensor Menor. Petrópolis: Vozes, 1991. p. 59. Grifo meu. 82 Ibid. p. 60-61. 83 Ibid. p. 61. 84 Ibid. p. 74.
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divino, e, portanto, não poderia ser exercida por nenhum outro homem, nem mesmo
por Pedro. Marsílio sustenta que a preeminência de Pedro entre os Apóstolos
deveu-se ao consenso e à escolha dos mesmos, ao passo que a preeminência da
Igreja Romana foi resultado da conveniência, da tradição e da vontade do Supremo
Legislador Humano. A única entidade que deteria a “plenitude do poder” na Igreja
seria o Concílio Geral, ou seja, a união de todos os fiéis cristãos, concílio este que
também só poderia ser convocado pelo Supremo Legislador Humano.
Como aponta Souza 85, o objetivo de Marsílio é restabelecer a paz, a
tranquilidade, a harmonia social, a ordem e o equilíbrio que haviam sido rompidos.
Para que isso pudesse acontecer, no entanto, seria preciso existir uma autoridade a
qual todas as demais estivessem submetidas. Marsílio discorda da concepção
curialista, que enxergava na religião o principal fator de unidade e afirmava ser o
papa detentor de plenos poderes, tanto no âmbito espiritual quanto no temporal. De
fato, como vimos, a concepção de Marsílio contesta e combate a teoria da Plenitudo
Potestatis, colocando a Igreja e seus representantes subordinados ao Supremo
Legislador Humano. Assim sendo, a unidade, a ordem e paz seriam mantidas não
pela submissão de todos os demais poderes ao poder papal, mas sim pela
submissão deste e de todos os demais ao Legislador Humano.
Bayona e Roche 86 afirmam também que o núcleo da filosofia marsiliana
estaria justamente em negar a existência de dois poderes, colocando a raiz da
verdadeira autoridade no ato de legislar e no uso da força coercitiva, que as
autoridades espirituais não têm. A concepção de poder expressa no Defensor Menor
seria, portanto, intimamente ligada à justiça. Além disso, como podemos verificar, as
ideias expressas no Defensor Menor negam o primado papal, estabelecendo a
igualdade entre todos os sacerdotes, refutando qualquer hierarquia entre eles e, por
fim, defendendo a superioridade do Concílio Geral de todos os fiéis cristãos.
Qualquer preeminência, mesmo entre os sacerdotes, resultaria antes da concessão
do Supremo Legislador, o que, mais uma vez, nega o dualismo dos poderes e
reforça a submissão da instituição eclesiástica ao Legislador Humano no que tange
à Lei Humana.
85 SOUZA, José Antonio de C. R. de. “Introdução a Defensor Menor”. In: PÁDUA, Marsílio de. Defensor Menor. Petrópolis: Vozes, 1991. Passim. 86 BAYONA, Bernardo & ROCHE, Pedro (Edit.). Marsílio de Pádua: sobre el poder del Imperio y del Papa. Madri: Editorial Biblioteca Nueva, 2004. Passim.
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2.1.3. O Supremo Legislador Humano:
No décimo segundo capítulo do Defensor Menor, Marsílio responde
objetivamente à questão de quem é o Supremo Legislador Humano. Segundo ele,
este legislador supremo seria formado pelo “[...] conjunto de todos os homens ou
sua parte mais relevante [...]" 87. Tal poder e autoridade haviam, no passado, sido
delegados ao povo romano representado por seu príncipe, o Imperador:
Considerando que este poder ou autoridade foi transferido pelo conjunto das províncias ou sua parte mais relevante ao povo romano, por causa de seu enorme valor, o mesmo sempre possuiu e detém o poder de legislar para todas as províncias do mundo; e considerando, ainda, que o povo romano transferiu igualmente esse poder ao seu Príncipe, é preciso reiterar semelhantemente que este detém o poder de legislar. Por conseguinte, tal autoridade ou poder de legislar vigora e continuará vigorando razoavelmente enquanto o conjunto das províncias não revogar tal concessão feita ao povo romano e este não fizer a mesma coisa em relação ao príncipe.88
Tais poderes delegados ao povo romano e, respectivamente, ao Imperador,
justamente por terem sido outorgados poderiam ser também revogados de acordo
com a conveniência e visando ao bem comum. No entanto, Marsílio afirma que o
Império Romano fora tão justo e verdadeiro que Cristo e seus Apóstolos haviam
recomentado obediência a ele. Além disso, de acordo com Marsílio, a maioria dos
povos se submetera espontaneamente ao povo romano 89.
Como podemos perceber, o Legislador Humano seria a causa eficiente da
lei, procedendo da totalidade dos cidadãos ou da sua “parte mais relevante”, a
valentior pars, parte da comunidade representante da universitas civium. Bayona e
Roche 90 afirmam que o sistema eleitoral do Sacro Império Romano Germânico
poderia ser visto como um exemplo prático do princípio da valentior pars, onde
eleitores representantes do conjunto dos cidadãos votavam e elegiam o Imperador.
O povo não governaria, mas concederia e autorizaria o governo do príncipe. A
87 PÁDUA, Marsílio de. Defensor Menor. Petrópolis: Vozes, 1991. p. 81. 88 Ibid. p. 81. Grifo meu. 89 Veremos que tal ideia já fora previamente exposta no De Translatione Imperii. 90 BAYONA, Bernardo & ROCHE, Pedro (Edit.). Marsílio de Pádua: sobre el poder del Imperio y del Papa. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 2004. Passim.
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submissão ao Imperador seria, portanto, consentida: “La fuente de la autoridad
política sigue siendo la comunidad y el pueblo ha transferido voluntariamente su
poder al príncipe” 91. Além disso, Marsílio diz claramente que o Supremo Legislador
Humano é o Imperador, o que poderia contrariar a visão de alguns autores, como
Quentin Skinner 92, que salientaram apenas as ideias “republicanas” de Marsílio de
Pádua. Como apontam Bayona e Roche, sobre a definição de Supremo Legislador
Humano:
Esta definición del legislador humano no implica una teoría democrática del poder en el sentido moderno, ni una apuesta por una u otra tipología institucional concreta, sino que constituye la alternativa filosófica a las pretensiones históricas de poder temporal del Papado.93
2.1.4. Questões matrimoniais:
No final do tratado, entre os capítulos XIII e XVI, Marsílio de Pádua retoma
ideias que já havia exposto em seu tratado Sobre a Jurisdição do Imperador em
Questões Matrimoniais, inquirindo sobre quem detém a autoridade sobre questões
matrimoniais e, consequentemente, quem pode liberar ou dispensar de um grau de
consanguinidade. Segundo Marsílio, a união entre macho e fêmea pode ser
realizada e/ou dissolvida de acordo com regras, estatutos e costumes, sendo
caracterizada como: uma união livre, não imposta, entre duas pessoas; uma união
consentida por ambas as partes; e uma união realizada somente em idade
adequada.
Para responder às questões sobre o matrimônio, Marsílio retorna a suas
ideias sobre a distinção entre Lei Divina e Lei Humana. Como já expusemos, a Lei
Divina seria um preceito coercitivo estabelecido por Deus através das Sagradas
Escrituras, que teria por finalidade conduzir os seres humanos à vida eterna e que
poderia infringir castigos aos seus transgressores apenas após a morte. A Lei
Humana, por sua vez, seria um preceito coercitivo estabelecido a partir da vontade
ou decisão humana, com o objetivo de conduzir os seres humanos aos seus
91 BAYONA, Bernardo & ROCHE, Pedro (Edit.). Marsílio de Pádua: sobre el poder del Imperio y del Papa. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 2004. p. 41. Grifo meu. 92 SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Cia das Letras, 1996. p. 40-44. Passim. 93 BAYONA, Bernardo & ROCHE, Pedro (Edit.). Op. Cit. p. 44.
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objetivos neste mundo e que puniria seus transgressores na vida presente. Os juízes
de ambas as leis seriam também distintos:
Segundo a Lei Divina o juiz com competência para castigar na vida futura apenas é Cristo somente, e talvez o sejam com Ele os doze Apóstolos [...]. Mas segundo a lei humana, ao contrário, o mencionado juiz é o Príncipe, graças à autoridade do legislador humano. Ele detém o poder coercitivo para castigar, por meio de uma punição pessoal e concreta neste mundo apenas, não no outro, os transgressores da lei humana.94
Retornando à questão acerca do matrimônio, Marsílio afirma que o
casamento em si não é algo espiritual, embora seja o sinal de algo espiritual. Logo,
como algo concernente à Lei Humana, não seria competência dos sacerdotes
legislar sobre o matrimônio:
Contudo, pouco importa que o matrimônio seja ou não considerado como algo espiritual, o que interessa destacar é que não compete aos bispos ou presbíteros em comum ou separadamente proferir qualquer julgamento coercitivo a respeito do mesmo. Cabe-lhes, de acordo com o que já explicamos anteriormente, emitir apenas um parecer de caráter doutrinal.95
Finalizando a questão, o autor afirma também que, a partir das Escrituras
Sagradas, não existe nenhum grau de consanguinidade entre primos e primas que
impeça a realização de um casamento lícito. A proibição de tal união, bem como a
dispensa da mesma, caberia unicamente ao legislador humano.
Ao terminar o tratado, Marsílio novamente confirma a ideia defendida desde
o início, segundo a qual legislar e decretar leis neste mundo, bem como julgar as
pessoas de acordo com as mesmas não competiria à autoridade de qualquer
sacerdote, porém exclusivamente ao conjunto dos cidadãos ou ao “[...] supremo
Príncipe, denominado Imperador dos romanos” 96.
Como pudemos perceber, a legitimação do Império e do Imperador perpassa
todo o Defensor Menor. Já no início do tratado, o autor afirma que o único que
poderia enunciar a Lei Humana e deteria a jurisdição coercitiva neste mundo seria o
legislador humano, representado pelo Imperador. Marsílio também sustenta a
94 PÁDUA, Marsílio de. Defensor Menor. p. 96.Grifo meu. 95 Ibid. p. 106. 96 Ibid. p. 110.
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autoridade imperial no sétimo capitulo, quando afirma que as Cruzadas somente
poderiam ser convocadas pelo príncipe romano. Além disso, o autor afirma que a
única autoridade capaz de excluir pessoas da convivência civil e dispor de seus
bens seria também a do legislador humano. No décimo primeiro capítulo, Marsílio
afirma que a preeminência da Sé Romana resultaria também da decisão, da vontade
e da concessão do legislador humano. Outro ponto no qual Marsílio legitima a
autoridade imperial é no que concerne às questões matrimoniais, sobre as quais
apenas o Imperador poderia legislar.
De fato a forma mais enfática com a qual Marsílio de Pádua legitima o
Império e o Imperador no Defensor Menor é desconstruindo a Plenitudo Potestatis
papal e identificando a figura do Imperador com a do Supremo Legislador Humano:
Igualmente, conforme a lei humana há também um legislador que é o conjunto dos cidadãos, ou sua parte mais relevante, ou ainda, o supremo Príncipe dos romanos, chamado imperador. 97 Ora, segundo o que permite ou determina a Lei Divina, legislar ou decretar leis coercitivas neste mundo ou julgar as pessoas de conformidade com as mesma, impondo-lhes aqui na terra fazer ou não fazer algo, decreto esse acompanhado de uma punição real ou concreta, não compete à autoridade de um só bispo ou presbítero ou de outro ministro espiritual qualquer, ou apenas de sua corporação considerada individual ou separadamente, antes, pelo contrário, tais coisas lhes foram proibidas através de um conselho ou preceito. A autoridade para sancioná-las compete ao conjunto dos cidadãos ou ao supremo Príncipe, denominado Imperador dos romanos. Comprovam nossa tese argumentos humanos racionais fundamentados na verdade, a Sagrada Escritura ou Lei Divina Cristã, os comentários dos santos ao seu texto, bem como as histórias e crônicas fidedignas.98
Ao retirar a autoridade temporal dos clérigos e Identificar o Imperador ao
Supremo Legislador Humano, Marsílio faz com este seja a principal autoridade
temporal e único enunciador da Lei Humana. Dessa forma, abaixo de Cristo,
enunciador da Lei Divina, estaria a pessoa do Imperador dos Romanos que, como
veremos quando analisarmos o tratado De Translatione Imperii, fora vinculada por
Marsílio ao Imperador do Sacro Império Romano-Germânico, à época Luís IV da
Baviera. A seguir, iremos tratar do referido tratado De Translatione Imperii, no qual
veremos que outras argumentações foram construídas por Marsílio de Pádua para a
legitimação do Império e do Imperador. 97 PÁDUA, Marsílio de. Defensor Menor. Petrópolis: Vozes, 1991. p. 94.Grifo meu. 98 Ibid. p. 109-110. Grifo meu.
34
2.2. Argumentos de legitimação do Sacro Império Romano-Germânico e da figura do Imperador no De Translatione Imperii de Marsílio de Pádua.
O tratado intitulado De Translatione Imperii (em português, Sobre a
Translação do Império) como apontamos no primeiro capítulo, foi escrito logo após o
Depensor Pacis, obra maior de Marsílio de Pádua, provavelmente entre os anos de
1324 e 1326. Partindo disso, é possível desde já inferir que Marsílio continua no De
Translatione Imperii os objetivos traçados no Defensor Pacis, ou seja, em termos
gerais, desconstruir a plenitude de poder arrogada pelo pontífice romano e,
especificamente, demonstrar a autonomia do Império. Como sustentam Bayona e
Roche na introdução da tradução espanhola por nós utilizada:
La transferencia del Imperio refuta, desde la historia, el poder del Papa sobre el Emperador; y, de ese modo, completa la refutación de la plenitudo potestatis pontificia, que en El defensor de la paz se había hecho desde la razón y la Escritura. 99
Para a análise do De Translatione Imperii, inicialmente faremos uma síntese
do mesmo, para, na sequência, explorar a concepção de história apresentada por
Marsílio de Pádua ao longo do tratado e, igualmente, a forma como a oposição entre
vícios e virtudes também foi utilizada na legitimação do Império.
2.2.1. Síntese do tratado.
O autor inicia o tratado fazendo uma breve introdução, na qual explica
previamente e detalha a organização e aquilo que pretende trabalhar no decorrer de
cada capítulo da obra. O tratado, assim como o Defensor Pacis, organiza-se em
doze capítulos, nos quais o autor traça uma espécie de “linha do tempo” que vai de
como o Império Romano instituiu-se, consolidou-se e se desintegrou até como se
instituíram os príncipes eleitores do Sacro Império Romano-Germânico. No decorrer
dessa “linha” apareceriam também o Império Bizantino, bem como o Carolíngio. Da
mesma forma que expõe previamente o conteúdo do tratado, Marsílio também
recapitula, no último capítulo, tudo o que sustentara no decorrer do tratado.
99 BAYONA, Bernardo & ROCHE, Pedro (Edit.). Marsílio de Pádua: sobre el poder del Imperio y del Papa. Madri: Editorial Biblioteca Nueva, 2004. p. 51. Grifo meu.
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Marsílio explicita já no primeiro capítulo que o tratado é um complemente ao
que já escrevera no Defensor Pacis, além de uma crítica ao tratado homônimo
escrito por Landolfo Colonna 100, do qual o autor discorda. O autor deixa claro seu
objetivo, que é analisar por meio de quem e de que maneira a sede Imperial
Romana transferiu-se dos romanos aos gregos, dos gregos aos francos e, por fim,
dos francos aos germanos. Para tanto, Marsílio afirma que compreende o Império
Romano não como a monarquia ou o governo da cidade de Roma, mas, em outro
sentido, como “[...] la monarquía universal o general del mundo entero, o al menos
de la mayoría de las prinvincias, tal como se desarrolló la ciudad de Roma y su
govierno” (grifo nosso) 101.
Para alcançar seu objetivo, Marsílio de Pádua afirma ser importante recordar
a origem e a evolução de Roma, retornando, para isso, ao passado mítico da cidade
e sua ligação com Enéias de Tróia. Segundo o autor, Roma seria uma árvore que,
apesar de inicialmente pequena, veio a crescer e tornar-se a maior de todas, sob a
sombra da qual descansariam todos os reis do mundo. Este desenvolvimento e o
fato de os romanos terem submetido todos os povos do mundo a sua autoridade
decorrem, para Marsílio, do adestramento nas armas, da liberdade e da justiça dos
romanos, bem como das alianças estabelecidas com outros povos. Logo, os
romanos teriam subjugado o mundo pela sua própria virtude, de modo que a história
de Roma confundir-se-ia com a história de toda a espécie humana.
Ao falar sobre o Império Romano, no segundo capítulo, Marsílio afirma que
Otávio Augusto 102 foi o primeiro Imperador e não Julio César 103, considerado por
ele um violador e usurpador da República. O Império teria se mantido sem
mudanças até Constantino 104, durante “treinta y tres emperadores y trescientos
100 Landolfo Colonna: clérigo pertencente à família romana dos Colonna. Especialista em Direito Canônico, escreveu obras de cunho histórico e político. De Translatione Imperii, de acordo com o próprio Marsílio, é uma “resenha crítica” do Tractatus de Translatione Imperii a Grecis ad Latinos, escrito por Colonna. 101 PÁDUA, Marsílio de. “La transferencia del Imperio”. In: BAYONA, Bernardo & ROCHE, Pedro. Marsílio de Pádua: Sobre el poder del Imperio y del Papa. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 2004. p. 168. 102 Caio Júlio César Otaviano Augusto (63 a. C. – 14 d. C.): patrício e primeiro imperador romano. Ocupa um papel fundamental na obra marsiliana por ser o responsável pelo início do Império. 103 Julio César (100 a. C. – 44 a. C): patrício, líder militar e político importante no final da república romana. Desempenhou importante papel na transformação da república e instituição do Império. É retratado por Marsílio como um usurpador e um violador da república. 104 Constantino (272-337): imperador romano proclamado Augusto em 306, em 330 fundou a cidade de Constantinopla, sede do Império Oriental e futura capital do Império Bizantino. Na narrativa de
36
cincuenta y cuatro años y quince meses” 105. Constantino mudou a sede do Império
para o Oriente, à cidade de Bizâncio, a partir de então chamada Constantinopla, que
passou a gozar de todas as prerrogativas a antiga Roma. Constantino teria ainda
concedido certos privilégios ao pontífice romano de então, São Silvestre 106. Dessa
forma, os legítimos herdeiros de Roma tornaram-se, ao menos temporariamente, os
bizantinos.
Marsílio afirma que o “domínio pacífico” do Império sobre o Oriente durou até
Heráclio 107, quando os povos orientais começaram a rebelar-se contra o governo
tirânico do Imperador.
El motivo por el que los Orientales, es decir, los Persas, los Árabes, los Caldeos y los demás pueblos vecinos se desvincularon del dominio del Imperio Romano, fue el reinado tiránico de Heraclio. 108
Essa rebelião dos povos orientais contra o domínio bizantino teria também se
manifestado em nível religioso, tendo como personagem central a figura de Maomé 109, cuja proposta religiosa incorporaria influências judaicas e cristãs. Segundo
Marsílio, Maomé teria propósitos políticos ao criar o islamismo, assim como os
gregos, que teriam adotado um culto diferenciado para fugir da obediência à Igreja
Romana. Maomé teria conseguido, através de seus ensinamentos e da imposição
pela força, dominar completamente os povos orientais e levá-los a rebelar-se contra
Marsílio, ganha relevância ao ser o responsável pela primeira translatio imperii, dos romanos aos gregos. 105 PÁDUA, Marsílio de. “La transferencia del Imperio”. In: BAYONA, Bernardo & ROCHE, Pedro. Marsílio de Pádua: Sobre el poder del Imperio y del Papa. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 2004. p. 170. 106 São Silvestre, ou Silvestre I, foi bispo de Roma entre 314 e 335. Para Marsílio, Silvestre teria recebido os benefícios da Sé Romana de Constantino, o que reforçaria a ideia de subordinação da instituição eclesiástica ao poder temporal. 107 Heráclio: Imperador bizantino entre 610 e 641. No tratado é descrito como mau governante, sendo praticamente responsabilizado pela rebelião dos povos orientais. 108 PÁDUA, Marsílio de. Op. Cit. p. 172. 109 Maomé (570-632): liderança religiosa e política de origem árabe, considerado o fundador do Islamismo. Em Marsílio é retratado de forma bastante pejorativa, como anti-exemplo político e religioso, sendo responsabilizado pelas instabilidades que levaram ao fim do Império Bizantino. Além disso, Marsílio também deixa claro que a fé islâmica estaria intimamente vinculada a heresias e seria fruto, antes de tudo, de interesses políticos.
37
o Império, além disso, ele teria também conseguido expandir sua crença “[...] más
por la violencia de la guerra que por la predicación” 110.
Marsílio afirma que o Império manteve-se em mãos gregas até Constantino
VI 111, quando foi transferido aos francos. A transferência teria se iniciado, no
entanto, em virtude da querela entre o Imperador Leão III 112 e a Igreja Romana, à
época liderada por Gregório III 113, acerca da veneração de imagens nas igrejas. O
pontífice teria, sem ter autoridade para tanto, se rebelado contra o Império e
buscado desvincular-se de sua dominação. Apesar de concluída posteriormente, a
transferência do Império surgiria, portanto, nesse contexto, a partir do papa Estevão
II 114, o qual teria decidido pela mudança na época em que Constantino V 115 era
imperador e Pepino 116 rei dos francos. Ao tratar da ascensão de Pepino e da
deposição de Childerico 117, Marsílio faz questão de rechaçar argumentos em favor
de uma intervenção papal nos acontecimentos, para ele, Pepino teria sido eleito de
maneira legítima, já que:
[...] la deposición de un rey y la instauración de outro, por una causa razonable, nunca es competencia de un obispo o de algún clérigo o del colegio de éstos, sino del conjunto de los habitantes de un país, de los ciudadanos y nobles o de sua mayoría prevalente [...] 118.
110 PÁDUA, Marsílio de. “La transferencia del Imperio”. In: BAYONA, Bernardo & ROCHE, Pedro. Marsílio de Pádua: Sobre el poder del Imperio y del Papa. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 2004. p. 176. 111 Constantino VI: Imperador bizantino de 680 a 697, em seu governo, segundo Marsílio, iniciou-se a translação do Império dos gregos aos francos. 112 Leão III: Imperador bizantino de 717 a 741, ficou célebre pela oposição ao culto às imagens, conhecida como movimento iconoclasta. 113 Gregório III: pontífice romano entre 731 e 741, opôs-se fortemente ao movimento iconoclasta, que condenou como heresia. 114 Estevão II: pontífice romano de 752 a 757. Recorreu a Pepino, rei dos francos, na luta contra Astulfo (ou Astolfo), rei lombardo. 115 Constantino V: Imperador bizantino de 741 a 775. Filho de Leão III, continuou o movimento iconoclasta iniciado pelo pai. 116 Pepino, o Breve: rei dos francos de 751 a 768. Ajudou a Igreja Romana na luta contra Astulfo. É retratado por Marsílio como modelo político e religioso, eleito autonomamente pelos francos e praticamente o responsável pela translação do Império aos francos, colocada em prática apenas em vida de seu filho, Carlos Magno. 117 Childerico III (714-754) é considerado o último rei franco da dinastia merovíngia. 118 PÁDUA, Marsílio de. Op. Cit. p. 178.
38
Dando continuidade ao seu pensamento, Marsílio afirma que o pontífice
romano é que teria pedido a ajuda de Pepino contra Astulfo 119, rei dos lombardos,
que havia tomado bens temporais da Igreja. Pepino teria vencido Astulfo e
recuperado tais bens, entregando-os posteriormente à Igreja. A Igreja Romana
colocara-se, assim, sob a proteção dos francos, aos quais recorreu novamente no
reinado de Carlos Magno 120, filho de Pepino, contra Desidério 121, filho de Astulfo.
Carlos Magno teria derrotado Desidério e restituído novamente os bens temporais à
Igreja, além disso, teria também obtido o reconhecimento e a submissão de todas as
cidades da Península Itálica. O papa, à época Adriano I 122, como forma de
reconhecimento aos favores de Carlos Magno, teria concedido a ele o título de
“Patrício dos Romanos”, dando a ele a prerrogativa de investir bispos e arcebispos,
bem como eleger o próprio pontífice romano. Marsílio salienta que apesar de não ter
utilizado o direito de eleger o pontífice, Carlos Magno nunca o renunciou.
Carlos Magno teria também ido ao Oriente, a pedido de Constantino VI, e o
ajudado a recuperar a Terra Santa com o consentimento do rei dos persas, que
ganhou sua benevolência por meio de preciosos presentes. De volta à Roma para a
celebração do natal, o “siempre victorioso [...] gran y pacífico” 123 Carlos Magno foi
coroado Imperador Augusto pelo papa Leão III e aclamado pelo povo romano. A
partir de Carlos estaria transferido o Império dos gregos aos francos: “Esta
transferencia del Império de los Griegos a los Francos se mantuvo entre los Francos
durante siete generaciones, es decir, el reinado de siete emperadores, más de
ciento trés años” 124.
119 Astulfo (ou Astolfo): rei dos lombardos de 749 a 756, liderou um política de expansão e ataques contra o papado, que recorreu a ajuda dos francos. Foi derrotado por Pepino, o Breve. 120 Carlos Magno: filho de Pepino, o Breve, foi rei dos francos a partir de 768 e Imperador entre 800 e 814, ano de sua morte. Atrás de Otto I, é a personagem mais exaltada por Marsílio ao longo da narrativa, sendo exemplo de liderança política e protetor da Igreja. Personificaria a translação do Império dos gregos aos francos. 121 Desidério (710-786): último rei lombardo, reinou de 756 a 774, quando foi derrotado por Carlos Magno. 122 Adriano I: pontífice romano entre 772 e 795, recorreu à ajuda de Carlos Magno contra as intenções de Desidério, rei dos lombardos. 123 PÁDUA, Marsílio de. “La transferencia del Imperio”. In: BAYONA, Bernardo & ROCHE, Pedro. Marsílio de Pádua: Sobre el poder del Imperio y del Papa. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 2004. p.186. 124 PÁDUA, Marsílio de. Op. Cit. p. 187.
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O Império manteve-se nas mãos dos francos até Arnulfo 125, já que seu filho,
último descendente de Carlos Magno, foi derrotado por Berengário 126 antes de ser
coroado imperador. Berengário teria reinado de modo tirânico na Península Itálica e
perseguido duramente a Igreja Romana, a qual viu-se obrigada a pedir ajuda ao
duque da Saxônia, Otto I 127, o qual derrotou Berengário e obrigou o papa João XII 128 a renunciar, dado que “no era un verdadero pastor, sino más bien um
mercenario” 129. Em lugar de João XII, foi nomeado pontífice Leão VIII, o qual
concedeu a Otto os mesmo benefícios que Adriano concedera a Carlos Magno, de
forma que o Império foi novamente transferido dos francos aos germanos.
O último acontecimento do qual Marsílio trata é a instituição dos príncipes
eleitores do imperador. Os sete eleitores, quatro leigos e três clérigos teriam sido
instituídos em tempos de Otto III 130 e do papa Gregório V 131. Tal instituição baseia-
se, segundo o autor, no fato de que a virtude deveria ser o critério maior para a
escolha de um Imperador, e não simplesmente seu sangue, ou seja, seria melhor
eleger um novo imperador com base num colégio de eleitores que simplesmente
consagrar seu descendente. Essa premissa também esta vinculada ao que já vimos
no Defensor Minor, já que o príncipe seria escolhido pelos representantes de todo o
povo, o que está plenamente de acordo com o que Marsílio fala sobre o Supremo
Legislador Humano 132.
Os eleitores do Império seriam: o arcebispo de Colônia, representante da
Itália; o arcebispo de Tréveris, representante da França; o arcebispo de Mogúncia,
125 Arnulfo (850-899): foi rei da França Oriental e da Lotaríngia, além de Imperador Carolíngio. Invadiu a Itália em 896. 126 Berengário (c. 845 – 924): proclamado rei da Itália em 899, opôs-se a Berengário e Guido de Spoleto. Após capturar e ordenar cegar Luís III, em 905, tornou-se Imperador. 127 Otto I (912-973): Imperador do Sacro Império Romano-Germânico entre 962 e 973, atendeu ao pedido de ajuda de João XII contra Berengário. Juntamente com Carlos Magno, é a personagem mais louvada na narrativa marsiliana. 128 João XII foi pontífice romano entre 955 e 964. 129 PÁDUA, Marsílio de. “La transferencia del Imperio”. In: BAYONA, Bernardo & ROCHE, Pedro. Marsílio de Pádua: Sobre el poder del Imperio y del Papa. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 2004. p. 188. 130 Otto III: Imperador do Sacro Império entre 996 e 1002, penúltimo representante da linhagem de Otto I a deter a coroa imperial. 131 Gregório V: pontífice romano entre 996 e 999, foi eleito por meio de seu primo, Otto III. 132 “Igualmente, conforme a lei humana há também um legislador que é o conjunto dos cidadãos, ou sua parte mais relevante, ou ainda, o supremo Príncipe dos romanos, chamado imperador”. cf. PÁDUA, Marsílio de. Defensor Menor. Petrópolis: Vozes, 1991. p. 94.
40
representante da Alemanha; o marques de Brandemburgo; o duque da Saxônia; o
duque da Baviera; e o rei da Boêmia. No último capítulo do tratado, Marsílio afirma
que a eleição é o critério de validade da escolha e não a coroação pelo papa, para
ele o imperador “[...] ha de ser coronado por el obispo Romano para dar solemnidad,
pero no porque sea en modo alguno necesario” 133.
2.2.2. O lugar da história na legitimação do Sacro Império Romano-Germânico.
Como já dito, tanto no primeiro capítulo como no início desta sessão,
Marsílio de Pádua constrói no De Translatione Imperii uma obra de pretensões
históricas, na qual “[...] busca justificar la transferencia del Imperio en razones y
hechos políticos, para rechazar las justificaciones teológicas tradicionales” 134. Nesse
sentido, a obra representa perfeitamente a conjuntura na qual foi escrita, ou seja, de
transição do pensamento medieval à modernidade e de busca de autonomia da
política e de legitimação racional do poder secular. Ao que tudo indica, nesse
tratado, Marsílio continua seus propósitos políticos-ideológicos já expostos no
Defensor Pacis, buscando “[...] probar con escritos históricos que el poder, incluído
el del Emperador, es de institución humana” 135. Nosso propósito neste subitem do
texto é analisar a concepção histórica de Marsílio de Pádua, bem como inferir as
maneiras como a histórica transforma-se em elemento de legitimação do Sacro
Império Romano-Germânico dentro do De Translatione Imperii.
Pudemos perceber ao longo da síntese realizada no início dessa sessão que
o tratado De Translatione Imperii é, sem dúvidas, de caráter notavelmente histórico.
Marsílio desenvolve uma narrativa na qual busca encontrar as “origens” do Sacro
Império, e, para isso, remonta ao Império Romano e perpassa o Império Bizantino e
o Império Carolíngio:
En primer lugar, trataremos de la transferencia de la sede Imperial Romana, por medio de quién o de qué personas y de qué manera, pasó de hecho de
133 PÁDUA, Marsílio de. “La transferencia del Imperio”. In: BAYONA, Bernardo & ROCHE, Pedro. Marsílio de Pádua: Sobre el poder del Imperio y del Papa. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 2004. p. 190. 134 BAYONA, Bernardo & ROCHE, Pedro (Edit.). Marsílio de Pádua: sobre el poder del Imperio y del Papa. Madri: Editorial Biblioteca Nueva, 2004. p. 13-14. 135 Ibid. p. 51.
41
los Romanos a los Griegos, luego de los Griegos a los Galos o Francos y, más reciente, de los Francos o Galos a los Germanos. 136
Ao longo desses mais de mil anos de história, de acordo com Marsílio, o
Império, que ele entende como uma “monarquia universal”, transferiu-se de mãos
em mãos e por fim chegou aos germanos. Como veremos, a ideia de “transferência
do Império”, ou Translatio Imperii, será um conceito de suma importância para a
construção da legitimidade imperial, não apenas na obra marsiliana.
Para retornar aos romanos e narrar a transferência do Império, Marsílio
utiliza “fontes”, obras de outros autores, desde clássicos até praticamente
contemporâneos seus. Alguns desses autores, citados diretamente por Marsílio, são:
o já mencionado Landolfo Colonna, Martinus Polonus 137, Eusébio de Cesareia 138 e
Isidoro de Sevilha 139. Segundo Marsílio seu tratado sobre a translação do Império é
uma resenha crítica de outro, escrito pelo supracitado Landolfo Colonna:
Después de Haber escrito en el tratado El defensor de la paz sobre la institución del principado Romano y de cualquier outro gobierno, sobre um nueva transferencia o sobre cualquier outro cambio relativo al gobierno, y después de Haber dicho por quién y de qué manera puede y debe hacerse según la razón o em derecho, ahora, en estas páginas, queremos reseñar, críticamente, el tratado De la transferencia de la sede Imperial, atenta recopilación de crônicas hecha por el venerable sátrapa romano Landolfo Colonna, pues nuestra opinión disiente de la suya en algunos pasajes, sobre todo en los que há lesionado los derechos del Império según su propio parecer y sin prueba suficiente. 140
Ao longo do tratado é perceptível que Marsílio utiliza tais referências como
“fontes”, criticando-as quando necessário e as usando como “provas” das teses as
quais pretende dar sustentação teórica. No entanto, como demonstra José Antônio
136 PÁDUA, Marsílio de. “La transferencia del Imperio”. In: BAYONA, Bernardo & ROCHE, Pedro. Marsílio de Pádua: Sobre el poder del Imperio y del Papa. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 2004. p. 168. 137 Martinus Polonus: cronista dominicano nascido na Silésia (atualmente República Tcheca), morreu por volta de 1378. 138 Eusébio de Cesareia (c. 275 – 339): bispo de Cesaréia e primeiro historiógrafo cristão, considerado “Pai da Igreja”. 139 Isidoro de Sevilha (556-636): eclesiástico e erudito hispanovisigodo, foi arcebispo de Sevilha de 599 até sua morte. 140 PÁDUA, Marsílio de. Op. Cit. p. 168.
42
de C. R. de Souza 141, não há uma crítica documental ou algo similar, nem mesmo
exatidão nas datas, as “fontes” são utilizadas unicamente no intuito de comprovar os
propósitos políticos do autor.
O propósito central da obra, como já apontado, é demonstrar que o Sacro
Império Romano-Germânico se trata do verdadeiro “descendente” do Império
Romano, tal “ascendência histórica”, como veremos, conferiria ao Sacro Império
legitimidade como maior autoridade secular na Cristandade Latina. Além disso,
Marsílio busca esclarecer sua tese segundo a qual o Império, bem como toda
autoridade secular, tem origem independente das autoridades espirituais, e nessa
empreita a história ocuparia um lugar central. Para analisarmos essas questões,
iremos inicialmente refletir sobre os usos da história na Idade Média, a importância
da história como fator de legitimação para o Império e, por fim, os usos que o próprio
Marsílio faz da história ao longo do tratado.
Segundo Philippe Ariés 142, Santo Agostinho teria concebido a primeira
“filosofia da história”, a qual teria, por sua vez, influenciado o pensamento e a
sensibilidade medievais. A história seria, assim, elemento fundamental da
espiritualidade da Igreja Romana, inclusive para a criação de “mitos historicizados”.
O que o autor chama de “historicidade” teria imperado no cristianismo medieval, e,
consequentemente, pesaria como elemento de validade e veracidade para toda a
Cristandade Latina. A história teria, assim, uma relevância muito grande para o
homem medieval:
Assim, a vida medieval baseava-se no precedente histórico, na recordação do passado: nada vale o que já foi; uma falta contra o antigo uso é uma perigosa novidade. Nenhuma sociedade humana ligou tanto sua condição presente à ideia que fazia do passado [...]. 143
O passado teria um sentido existencial no Medievo, dada a importância da
recordação e a devoção para com o passado, expressa, por exemplo, através da
iconografia. Nesse sentido, e também devido a influências romanas e judaico-
cristãs, os homens medievais compuseram uma “história universal”, através da qual 141 SOUZA, José Antônio de C. R. de. “Scientia historica e philosophia politica no tratado Sobre a Translação do Império de Marsílio de Pádua”. Veritas, Porto Alegre, v. 43, nº 3, Setembro, 1998. p. 449-451. Passim. 142 ARIÉS, Philippe. “O engajamento do homem moderno na história”; “A atitude diante da história: na Idade Média”. In: ______. O tempo da história. Rio de Janeiro: Francisco Alvez, 1989. p. 48-94. 143 Ibid. p. 69.
43
os acontecimentos do passado seriam vistos numa ótica cristã, simultaneamente
sincrônica e universal.
A história, apesar de inicialmente vinculada unicamente à ideologia
eclesiástica, aos poucos se distanciou e passou também a ser utilizada para
propósitos laicos, como a teorização política. Como nos mostra José Antônio de
Souza:
[...] desde a segunda metade do século XIII, no Ocidente Latino os cronistas, ou historiadores de então, passaram a desempenhar um relevante papel cultural, na condição de preservadores da memória das gestas de um povo ou de uma instituição ou de um grupo social, mister esse que se tornou mais importante, ainda a partir da Idade Média Tardia, quando da emergência e consolidação das monarquias nacionais. Para não irmos buscar exemplos longínquos das nossas raízes peninsulares, baste mencionar os cronistas lusitanos Fernão Lopes (séculos XIV-XV), Rui de Pina (século XV) e o castelhano Pero López de Ayala (1332-1407), igualmente chanceler de Castela. 144
No sentido de uma nova reflexão leiga sobre o poder no final da Idade Média,
Oliver Nay 145 aponta, por exemplo, para uma concepção cada vez mais concreta e
impessoal e menos religiosa do poder político. Essa “secularização das ideias
políticas” afetou a representação da coletividade humana, entendida não mais
apenas como societas christiana, mas também como societas humana. Tal
movimento de “secularização” apresentou-se também no entendimento e nos usos
feitos da história no final do Medievo, quando a história passou a ser cada vez mais
uma arma de guerra no campo de batalha da teoria política. Nessa nova conjuntura,
a história seria utilizada tanto como arma de ataque quanto de defesa:
[...] um outro dado relevante, encontrado nas obras de filósofos políticos que viveram na Idade Média Tardia, consistiu em recorrer aos relatos históricos (recentes ou remotos) como mais uma via ou caminho para demonstrar que os adversários estavam errados quanto à teoria, à posição e à verdade que pretendiam defender. Dante Alighieri na Monarquia, Marsílio no Defensor da Paz e Ockham em muitos de seus tratados, por exemplo, na Epístula, no An Princeps, no Brevilóquio, na Consulta e no De Imperatorum et Pontificum Potestate usaram este recurso. Aliás, o primeiro filósofo político medieval,
144 SOUZA, José Antônio de C. R. de. “Scientia historica e philosophia politica no tratado Sobre a Translação do Império de Marsílio de Pádua”. Veritas, Porto Alegre, v. 43, nº 3, Setembro, 1998. p. 645. 145 NAY, Olivier. História das ideias políticas. Petrópolis: Vozes, 2007.
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João de Salisbúria, no Policraticus, agiu dessa maneira, como outrora já haviam feito Platão e Aristóteles em seus escritos políticos. 146
Como pudemos perceber, a história foi utilizada como elemento de
legitimidade tanto pela Igreja Romana como por autoridades seculares, entre as
quais está o Império medieval. Como demonstra o professor José Manuel Nieto
Soria 147, a ideia de uma translatio imperii foi parte integrante da construção do mito
imperial durante a Idade Média. Segundo essa ideia, o Império seria uma entidade
universal e atemporal, que se manifestaria em diferentes épocas ao longo da
história, seguindo ciclos de surgimento, amadurecimento, declínio e renascimento.
Em tal concepção estaria embutida ainda a esperança de melhoria ao longo do
tempo, de recuperação de uma “idade de ouro” passada:
[...] El desarrollo histórico es una forma de repetición, de corrupción y de degeneración. El tiempo se constituye en agente de degeneración y corrupción, no de creación. La história queda detenida, no habiendo posibilidad de progreso. En esta visión catastrofista existe um edad de oro perdida, con respecto a la cual se ha establecido la ilusión de la recuperación, puesto que, a fin de cuentas, la translatio siempre es una recuperatio o, al menos, una esperanza de recuperatio. 148
O apresentado por Nieto Soria aplica-se plenamente à obra de Marsílio de Pádua,
como aponta o próprio autor:
En pleno siglo XIV, cuando escribe Marsilio de Padua, nadie pone em duda la perspectiva que del Imperio ofrece la translatio, esto no impide que, ya no en el plano del pensamiento mítico, sino del pensamiento racional, exista una diversidad interpretativa en torno a su significado exacto y, sobre todo, a sus efectos políticos concretos referidos a quién sea el propietario de la autoridad resultante de esa translatio. Es en esos términos, completamente ajenos – em ló discursivo – al enfoque mítico, como lo plantea, por ejemplo, el propio Marsilio de Padua, quien declara como fuentes de conocimiento la razón, el derecho, las crônicas y las histórias [...]. 149
146 SOUZA, José Antônio de C. R. de. “Scientia historica e philosophia politica no tratado Sobre a Translação do Império de Marsílio de Pádua”. Veritas, Porto Alegre, v. 43, nº 3, Setembro, 1998. p. 646. 147 NIETO SORIA, José Manuel. “El Imperio medieval como poder público: problemas de aproximación a un mito político”. Anales de la XXIII Semana de Estudios Medievales de Estella. [s.l./s.d.]. p. 403 – 440. 148 Ibid. p. 416. 149 Ibid. p. 416. Grifo meu.
45
Marsílio parece estar alinhado à ideia de translação do Império, tanto que é
a isso que se dedica seu tratado, porém não mais de um ponto de vista “mítico”, mas
sim pretensamente racional e aplicado claramente ao propósito de dar legitimidade
ao Sacro Império, visto pela lógica da translatio como herdeiro e sucessor do
Império Romano e, logo, detentor da suprema autoridade secular. Nesse sentido,
Marsílio, ao longo do tratado, indica momentos de rupturas e continuidades, nos
quais o Império universal foi recuperado e, na sequência, novamente entrou em
declínio. As causas para tais recuperações e consequentes declínios, bem como as
causas para a própria translação, são, no entanto, completamente humanas,
explicadas à luz da história, da razão e da vontade. Como veremos no próximo
subitem desta sessão, Marsílio também elencou modelos e contramodelos de
líderes imperiais baseados na oposição entre virtudes e vícios, os quais também
seriam responsáveis pela ascensão ou queda do Império.
É possível ainda inferir se Marsílio acreditava numa renovatio imperii a partir
de Luís da Bavieva, e se a narrativa das translações anteriores não seria também
uma forma de alerta ao Sacro Império Romano-Germânico para que não viesse a
cometer os mesmo “erros” e para que o Império pudesse ser finalmente “restaurado”
como única e suficiente autoridade secular. Nesse sentido, a história apareceria
também como magistra vitae, com a qual os homens do presente poderiam aprender
a imitar os acertos e evitar os equívocos do passado. Passemos agora à análise da
forma como Marsílio de Pádua apresenta e utiliza a história no De Translatione
Imperii.
Como demonstra Talita Cristina Garcia 150, a partir da “redescoberta” de
Aristóteles no século XIII, houve uma crescente busca por bases racionais para a
política, e Marsílio de Pádua, considerado por Etienne Gilson 151 como exemplo de
averroísmo político, se encaixaria perfeitamente nessa tendência. A partir dessa
análise conjuntural, Marsílio, no De Translatione Imperii, abandonaria o
providencialismo e apresentaria a história como resultante da ação dos homens, ou
seja, o processo histórico aparece no tratado como algo completamente humano.
Tal esforço, inserido, como vimos, em um processo maior de “secularização”, teria
150 GARCIA, Talita Cristina. “O uso da história na obra política de Marsílio de Pádua”. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, julho de 2011. 151 GILSON, Etienne. A filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
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obviamente uma finalidade política, a defesa do Império também a partir de
argumentos históricos. Como aponta Souza:
[...] para o Paduano são fatores simplesmente humanos que explicam o processo histórico e, sob esta ótica, ele dessacralizou a História, antecipando-se no tempo, a uma análise interpretativa dos fatos históricos que si veio a se tornar corrente com a Idade Contemporânea. 152
Nessa exposição do processo histórico pelo qual o Império havia passado,
Marsílio acaba também por negar qualquer participação da Igreja na construção da
autoridade imperial. Em síntese, podemos afirmar que, conferindo legitimidade
histórica ao Sacro Império Romano-Germânico, Marsílio lhe confere também
autonomia política frente às pretensões do Papado.
2.2.3. Modelos e contramodelos: a oposição entre virtudes e vícios na legitimação do Império.
Como já dissemos, Marsílio de Pádua, no De Translatione Imperii, apresenta
a história do processo de translação do Império desde os romanos até os germanos,
processo no qual salienta tal translação como feito humano, abandonando o
providencialismo e negando a participação da Igreja Romana na construção da
autoridade imperial. Nesse intento, Marsílio elenca também modelos e
contramodelos históricos, os quais, acreditamos, podem ser vistos como exemplos
para o presente e o futuro do autor. Nossa intenção nesse subitem é analisar os
modelos e contramodelos construídos por Marsílio ao longo do tratado, bem como
as virtudes e vícios neles representados e o peso disso tudo na legitimação do
Sacro Império Romano-Germânico.
No início do tratado, ao falar sobre Roma, o autor já salienta os motivos que
teriam levado este povo a estabelecer uma “monarquia universal”. Recorrendo às
origens míticas de Roma, Marsílio sustenta que o Império Romano foi como uma
grande árvore nascida de uma pequena semente, árvore debaixo da qual
repousariam todos os reis e povos do mundo. Esse desenvolvimento extraordinário
é atribuído pelo autor à virtude humana e à fortuna: 152 SOUZA, José Antônio de C. R. de. “Scientia historica e philosophia politica no tratado Sobre a Translação do Império de Marsílio de Pádua”. Veritas, Porto Alegre, v. 43, nº 3, Setembro, 1998. p. 653.
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Em efecto, los Romanos, que descendían de Eneas, consiguieron someter el mundo a su autoridad por su adiestramiento en las armas, su disciplina en los campamentos, su estrategia militar, su pacífica libertad, su cultivo de la justicia, su respeto a las leyes, sus alianzas con los pueblos vecinos, la madurez de sus consejos, la nobleza de sus palabras y sus obras. Así, el pueblo Romano, durante setecientos años, desde el reinado de Rómulo hasta el de César Augusto, paseó sus ejércitos por todo el mundo con valor y poderio; y, por su propia virtud, subyugó a todos los reinos del mundo, de modo que quienes leen sus magníficas hazañas no se imaginan estar leyendo hechos de un solo pueblo sino de toda la especie humana, y creen asimismo que la virtud humana y la fortuna han competido por construir su Imperio. 153
A narrativa segue com Julio César, visto por Marsílio como violador e
usurpador da República romana, e Otávio Augusto até chegar em Constantino,
responsável pela primeira translação do Império, dos romanos ao gregos. Marsílio
aponta Constantino como modelo de conduta imperial, oposto a Heráclio, que teria,
com sua conduta inapropriada, contribuído para desestabilizar o Império:
Constantino y los emperadores Romanos que le sucedieron, mantuvieron su dominio pacífico em Oriente [...] El motivo por el que los Orientales, es decir, los Persas, los Árabes, los Caldeos y los demás pueblos vecinos se desvincularon del dominio del Imperio Romano, fue el reinado tiránico de Heraclio.154
Marsílio aponta ainda que, após a rebelião dos povos orientais contra o
Império, Heráclio teria enlouquecido, perdendo o controle sobre si mesmo e se
envolvendo com heresias. Ao falar de Maomé, responsável, aos olhos de Marsílio,
por liderar a insurreição oriental, o autor o descreve como mal intencionado e
enganador, insinuando que ele teria expandido suas falsas crenças mais pela força
das armas que pela pregação.
Ao tratar da segunda translação do Império, Marsílio de Pádua afirma que foi
causada por desentendimentos entre o pontífice romano e os Imperadores
bizantinos Leão III e Constantino V, que são apresentados como líderes não
preocupados com a Igreja. A translação aos francos far-se-ia em muito devido às
virtudes de Pepino, opostas pelo autor aos vícios de Childerico:
153 PÁDUA, Marsílio de. “La transferencia del Imperio”. In: BAYONA, Bernardo & ROCHE, Pedro. Marsílio de Pádua: Sobre el poder del Imperio y del Papa. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 2004. p. 169. Grifo nosso. 154 Ibid. p. 172. Grifo meu.
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Pipino, hijo de Carlos Martel, hombre valiente en la guerra, católico y preclaro por la honestidad de todas sus costumbres [...] fue elevado por el papa Zacarías de mayordomo del palacio a la más alta dignidad del reino de los francos. [...] En cuanto a Childerico, que hasta entonces vivía ocioso por su condición de rey y languidecía en la molície de los placeres, se convirtió em monje tonsurado. 155
A mesma lógica de oposição aparece entre Carlos Magno e Arnulfo. Carlos
Magno é descrito como rei e imperador virtuoso, detentor do Império, enquanto
Arnulfo aparece como completamente oposto às virtudes de Carlos Magno,
responsabilizado pelo fim do Império entre os francos:
El siempre victorioso [...] gran y pacífico emperador Carlos Augusto, cononado por Dios. [...] El emperador Arnulfo, último vástago de Carlomagno, que era eneminado y cobarde, estubo neglogente y huidizo gente al tirano Berengario. 156
Ao completar a translação imperial, Marsílio por fim chega aos germanos,
apontando Otto I como modelo de virtudes, tanto que derrotara Berengário, oposto a
ele através do vícios, reunira o concílio e obrigara João XII a renunciar, transferira o
Império aos germanos de forma pacífica:
[...] duque de Sajonia [Otto I], hombre de gran poder que reinaba em toda Alemania. Era tambien un hombre religioso, de confesión católica, de criterio prudente, justo al juzgar, leal a sus obligaciones, valiente en la guerra, admirable por la honestidad de todas sus costumbres y, además, dedicado con total veneración a la Iglesia de Dios. 157
Marsílio, como vimos, aponta também para a instituição do colégio de
eleitores do Sacro Império Romano-Germânico. Para ele, os eleitores do Imperador
demonstram claramente que este poder deve ser pautado pela virtuosidade, acima,
inclusive, dos critérios sanguíneos:
[...] se decidió previsora y oportunamente, por el bienestar de la Iglesia de Dios y del pueblo Cristiano, que un poder tan excelso, que devería ser fruto de la virtud y no de la sangre, no se alcanzara por via de sucesión,
155 PÁDUA, Marsílio de. “La transferencia del Imperio”. In: BAYONA, Bernardo & ROCHE, Pedro. Marsílio de Pádua: Sobre el poder del Imperio y del Papa. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 2004. p. 178. Grifo meu. 156 Ibid. p. 186-187. Grifo meu. 157 Ibid. p. 188. Grifo meu.
49
sino por elección, para que el más digno se hiciera cargo del honor de governar el Imperio. 158
A partir da narrativa feita por Marsílio de Pádua, pode-se perceber que a
virtuosidade aparece também como critério de legitimidade, oposta aos vícios. As
virtudes aparecem, além de enaltecedoras, como representantes da autoridade de
determinadas personagens. Por outro lado, os vícios aparecem como depreciadores,
os quais também diminuiriam a autoridade daqueles que os detêm. Nesse sentido,
pudemos perceber grupos de virtudes e vícios salientados pelo autor ao longo do
tratado e os sintetizamos nos seguintes grupos:
Como podemos observar, através dos modelos históricos, Marsílio ressalta
como virtudes: (1) as virtudes militares e a capacidade guerreira; (2) a capacidade
158 PÁDUA, Marsílio de. “La transferencia del Imperio”. In: BAYONA, Bernardo & ROCHE, Pedro. Marsílio de Pádua: Sobre el poder del Imperio y del Papa. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 2004. p. 189. Grifo meu.
50
de manter a ordem e a liberdade, através de um domínio pacífico; (3) o pautar-se
pela justiça, pela prudência e pela honestidade, bem como o cultivo da lei; (4) a
proteção a Igreja. Do lado oposto, por meio dos contramodelos, Marsílio destaca
como vícios: (1) a covardia e a incapacidade militar; (2) a tirania e o exercício do
poder baseado na violência; (3) a falta de domínio próprio, manifesta no descontrole
e na imoralidade sexual; (4) opor-se ou simplesmente não proteger a Igreja.
Acreditamos que a as virtudes e os vícios elencados por Marsílio, além de
argumentos de legitimidade, serviriam também como modelos de conduta a serem
ou não observados pelo Imperador à época, Luís IV da Baviera, e seus sucessores.
As virtudes militares salientadas por Marsílio apontam em um sentido prático
do exercício do poder, uma vez que o Imperador precisava defender seu território
e/ou expandi-lo. Marsílio destaca também a manutenção da ordem e da paz, as
quais, como percebemos no Defensor Minor, constituíam elementos centrais do
pensamento marsiliano e nas reflexões políticas medievais como um todo. Além
disso, o autor enfatiza a justiça e a prudência, virtudes valorizadas na literatura dos
Espelhos de Príncipe, tão produzidos no final da Idade Média. Por outro lado, a
covardia, oposta à coragem e à valentia, aparece como um vício, já que por ela o
príncipe colocaria todo seu território em risco. A tirania, o excesso no exercício do
poder, também aparece como um vício, algo a ser evitado, o que se alinha
claramente ao corpo do pensamento de Marsílio, uma vez que o Supremo
Legislador expressaria a vontade de todo o povo ou de sua parte relevante, podendo
esta vontade ser delegada ao príncipe. Ainda nesse sentido, Marsílio deprecia o
príncipe que não tem domínio sobre si mesmo, e que, por isso, cai no descontrole e
na imoralidade.
Uma última questão ainda precisa ser analisada, uma vez que Marsílio
apresenta como uma virtude do Imperador o ato de proteger a Igreja, e como um
vício o ato de atacá-la ou omitir-se em protegê-la. Essa ênfase poderia ser percebida
como uma afirmação, ainda que sorrateira, da superioridade da Igreja ao Império, e
do consequente “serviço” que este prestaria àquela. Acreditamos, no entanto, que
este aspecto não contradiz, porém reforça, o núcleo de toda a visão de Marsílio,
pretensa a desconstruir a Plenitudo Potestatis papal. Afinal, como uma instituição
que detém a “plenitude do poder” poderia, ao longo da história, constantemente
demandar a ajuda do Imperador? A partir disso, sustentamos que a virtude de
“proteger a Igreja” demonstraria a superioridade do Império bem como a submissão
51
da Igreja na esfera temporal. Em um sentido tipicamente medieval, aquele que
protege, o suserano, estaria necessariamente acima do protegido, seu vassalo.
A oposição entre virtudes e vícios, bem como a legitimação ou depreciação
de personagens e poderes a partir dos mesmos, constituiu um elemento comum ao
Medievo e que encontra raízes inclusive no mundo clássico, em pensadores como
Cícero e Salústio. Tal tradição, pode-se dizer, sobreviveu ao longo dos séculos,
adaptando-se às demandas de cada conjuntura e servindo aos interesses de cada
época. Nesse sentido, Marsílio de Pádua, como homem do seu tempo, insere-se na
dialética entre tradição e inovação, utilizando um recurso ancestral, a oposição entre
as virtudes e os vícios, com propósitos inovadores, sustentar a legitimidade e a
autonomia do Imperador frente ao pontífice, e, em sentido maior, do poder temporal
frente ao espiritual. De Translatione Imperii mostra-se, portanto, como uma obra
perfeitamente alinhada à época de sua produção, a Baixa Idade Média, marcada
pela permanência de tradições e, simultaneamente, pelo surgimento de novas e
promissoras reflexões, especialmente no que tange à teoria política. Estas reflexões,
ajustadas às necessidades daquela sociedade, apesar de não reconhecidas em seu
contexto, demonstrariam sua força e pujança, sobrevivendo ao tempo e
influenciando concepções modernas e até mesmo contemporâneas.
2.3. A legitimação do Sacro Império Romano-Germânico no contexto de Marsílio de Pádua.
Como vimos no primeiro capítulo deste trabalho, a Igreja havia construído,
ao longo de séculos, uma concepção segundo a qual o pontífice romano, como
vigário do filho de Deus, seria o detentor de plenos poderes, tanto espirituais quanto
temporais. Ainda segundo essa concepção, tal “plenitude de poder” seria a
responsável pela manutenção da ordem, da unidade e da paz 159. No entanto,
percebemos através da análise tanto do Defensor Minor quanto do De Translatione
Imperii que Marsílio discorda da cosmovisão curialista, apresentando uma teoria
política contrária àquela. Nossa intenção nesta última seção é retornar ao contexto
de Marsílio de Pádua e analisar as demandas conjunturais que poderiam ter
influenciado os argumentos que desenvolveu nas duas obras já citadas. 159 SOUZA, José Antonio de C. R. de. “Introdução a Defensor Menor”. In: PÁDUA, Marsílio de. Defensor Menor. Petrópolis: Vozes, 1991. Passim.
52
Em 1313, após a morte de Henrique VII, inicia-se uma disputa pelo trono
imperial entre Frederico da Áustria e Luís da Baviera na qual ambos foram coroados
e apelaram ao papa, João XXII, que por sua vez tencionava favorecer a outro
candidato, Leopoldo. Mesmo após a vitória de Luís, em 1322, João XXII negou-se a
reconhecê-lo como imperador, tomando para si a administração do Império durante
a “vacância” do trono. Essa atitude levou Luís a invadir a Península Itálica, sendo,
em seguida, ameaçado de excomunhão pelo pontífice. Aliados foram elencados por
ambas as partes e Luís IV contou com o apoio de diversos intelectuais, entre os
quais estavam João de Jandum, Guilherme de Ockham e Marsílio de Pádua. O
cerne de toda a questão estava na necessidade ou não de o Imperador submeter-se
ao pontífice para exercer seu poder.
Marsílio dedicou sua principal obra, o Defensor Pacis, a Luís IV da Baviera,
o que deixa bem claro seu posicionamento na questão entre Papado e Império.
Acreditamos que a escrita de Marsílio atendia, portanto, a necessidades práticas de
sua época, construindo argumentações que legitimassem a autoridade do Sacro
Império Romano-Germânico, cujo líder à época, reconhecidamente ou não, era Luís
IV. Mar de que forma os argumentos construídos por Marsílio serviriam às
demandas do Sacro Império e, mais especificamente, de Luís IV?
Faz-se necessário retornar um pouco na história para entendermos o porquê
de o Sacro Império e o Imperador demandarem argumentos de legitimidade frente
às pretensões papais e à ascensão de outros poderes, como as monarquias. Em
1245, no Concílio de Lyon, o papa Inocêncio IV destituiu o Imperador Frederico II,
dando início ao chamado Grande Interregno do Sacro Império, que duraria até a
eleição de Rodolfo I 160, em 1273, dando início à dinastia dos Habsburgos. Nesse
período de relativa desorganização interna do Sacro Império, assistimos ao
fortalecimento das ideias hierocráticas dentro do Papado e, simultaneamente, à
estruturação de monarquias cada vez mais fortes, como a França de Luís IX e seus
sucessores 161, e a Castela de Afonso X, que inclusive dispôs-se a conseguir a coroa
imperial. Portanto, quando da eleição de Rodolfo I, a autoridade imperial estava
enfraquecida e as pretensões de controlar a Península Itálica eram improváveis.
160 Rodolfo I (1218-1291): eleito Imperador em 1273, foi o primeiro habsburgo a ocupar o trono imperial. 161 O poder monárquico mostrar-se-ia tão forte que a partir de 1309 a própria Sé Apostólica estaria sob tutela do monarca francês, no conhecido Exílio de Avignon que perduraria até 1377.
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Enrique VII, antecessor de Luís IV da Baviera e primeiro Imperador desde
Frederico II a ser coroado em Roma, buscou restituir em certa medida o prestígio do
Sacro Império, opondo-se à expansão francesa, ao papa Clemente V, à cidade de
Florença e ao rei de Nápoles. Henrique, no entanto, morreu em 1313, tendo sido
Imperador por apenas cinco anos e sem conseguir concretizar suas pretensões,
especialmente sobre a Península Itálica. A sucessão de Enrique VII, portanto, foi
conturbada, tendo pelo menos três candidatos ao trono imperial, entre eles Luís da
Baviera, que sairia vencedor, sem, no entanto, ser reconhecido pelo Papado.
A Sé Pontifícia, por outro lado, encontrava-se em terras francesas desde
1309, e continuaria assim até 1377. À época de Marsílio, o pontífice era João XXII,
considerado o mais importante papa de Avignon 162. João XXII dera continuidade à
política de centralização iniciada por Clemente V, reformando o sistema de
cobranças e aumentando as taxas devidas à Igreja, tencionando dar maior
autonomia à instituição eclesiástica e, se possível, retornar a Sé a Roma. Além
disso, João XXII envolveu-se em conflitos com o Sacro Império e com as ordens
mendicantes, condenando o dogma da pobreza apostólica em 1323, atitudes que,
somadas, deram origem a um dos pontificados mais agitados da Idade Média 163.
Podemos perceber, então, que o Sacro Império encontrava-se em um
momento difícil, no qual seu maior representante, Luís IV, demandava argumentos
de autoridade que o legitimassem diante daqueles que se opunham ao Império e ele
mesmo. O fato de Marsílio de Pádua dedicar o Defensor Pacis a Luís IV e os
conteúdos desenvolvidos por ele no Defensor Minor e no De Translatione Imperii,
como já analisamos, podem em muito ter respondido à demanda por argumentos de
legitimação do Sacro Império e do Imperador, mas de que maneira? Consideremos,
brevemente, de que forma a argumentação marsiliana inserir-se-ia em seu contexto
e contribuiria para a construção da legitimidade imperial.
Como vimos, no Defensor Minor, Marsílio dirigi-se a combater a teoria da
Plenitudo Potestatis, construindo uma cosmovisão na qual coloca o poder temporal
como superior ao espiritual, uma autoridade a qual todas as demais, inclusive a
Igreja, deveriam se submeter. O objetivo de tal construção seria a paz, alcançada
através da ordem, do equilíbrio e, sobretudo, da unidade. As ideias defendidas no 162 KNOWLES, David. & OBOLENSKY, Dimitri. A Idade Média. Coleção Nova História da Igreja (Volume II). Petrópolis: Vozes, 1974. p. 442. 163 BARRACLOUGH, Geoffrey. Os papas na Idade Média. Editorial Verbo: Lisboa, 1968. Passim.
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Defensor Minor ressaltam a independência e autonomia do poder secular, sendo o
Supremo Legislador Humano o único capaz de enunciar a Lei Humana e, portanto,
única autoridade detentora de algum tipo de jurisdição coercitiva sobre os homens.
Este, o Supremo Legislado Humano, totalidade dos cidadãos ou sua parte mais
relevante, teria delegado tal jurisdição coercitiva ao Príncipe dos Romanos, ou seja,
ao Imperador.
No De Translatione Imperii, por sua vez, Marsílio continuou suas ideias,
demonstrando através da história que o Sacro Império Romano-Germânico seria o
legítimo herdeiro e sucessor do Império Romano. Por meio de uma narrativa
histórica, como vimos, Marsílio dá sequência à desconstrução da Planitudo
Potestatis e recusa qualquer papel do Papado na transferência do Império, dando a
este um surgimento e uma evolução completamente autônomos, de origem
exclusivamente humana. Nessa obra Marsílio demonstra que a fonte da autoridade
imperial não seria a Igreja, mas sim um processo histórico.
Além disso, como já apontamos, no texto do De Translatione Imperii Marsílio
também constrói modelos e contramodelos de virtudes e vícios a partir de
personagens históricas. Por um lado, a existência de tais modelos e contramodelos
reforça a ideia de que a translação do Império, bem como sua autoridade, resultou
de ações humanas, históricas, e não de qualquer favor do poder espiritual ao
temporal, como queriam fazer crer diversos escritos de origem eclesiástica. Por
outro, as virtudes valorizadas poderiam demonstrar aquilo que Marsílio julgava ser
necessário e benéfico ao comportamento do Imperador, de acordo com as
demandas conjunturais nas quais o próprio autor e sua obra de inseriam.
De acordo com essa última hipótese, Marsílio acreditaria que o Imperador
deveria ter virtudes militares, sendo capaz se vencer seus inimigos, como Luís IV
fizera em Mühdorf contra seu concorrente Frederico da Áustria, ou como fizera ao
invadir e conquistar a Península Itálica, mesmo que provisoriamente. O Imperador
também necessitaria estabelecer relações pacíficas com seus súditos, respeitando
suas liberdades e tecendo alianças, o que poderia ser aplicado especialmente à
situação na Itália, sempre problemática para as pretensões imperiais. Não menos
importante seria cultivar a justiça e lei, como no “governo provisório” organizado por
Luís IV ao invadir a Itália, no qual contou com o conselho de Marsílio e João de
Jandum. Por fim, a Igreja Romana precisaria estar sob a proteção e a tutela do
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Sacro Império, como na ordenação do franciscano Pedro de Corbara ao pontificado,
feita por Luís IV em 1328.
Todas essas virtudes e as atitudes delas decorrentes, como se pode
perceber, serviriam como elementos de legitimidade ao Imperador e responderiam
de maneira exemplar as suas demandas e pretensões frente ao Papado. Em suma,
todo o pensamento marsiliano, bem como todos os argumentos elencados ao longo
das fontes analisadas, inserem-se perfeitamente no contexto do autor e servem às
demandas do Sacro Império naquela conjuntura. Evidenciam-se as intenções de
Marsílio ao escrever os tratados analisados e o modo como sua argumentação
atende às pretensões imperiais, em oposição às do pontífice.
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Considerações finais:
No presente trabalho, nosso objetivo foi o de observar os argumentos de
legitimação do Sacro Império Romano-Germânico na obra de Marsílio de Pádua.
Para isso, à luz do contexto do autor e das reflexões da Teoria Política Medieval,
analisamos duas fontes: os tratados Defensor Minor e De Translatione Imperii.
Nessa última parte do trabalho, relembraremos as principais conclusões obtidas a
partir da análise das fontes e exporemos nossas considerações finais sobre o
trabalho.
Analisando o Defensor Minor, pudemos obter um panorama sobre a visão de
Marsílio de Pádua, a qual gira ao redor da desconstrução da Plenitudo Potestatis
papal. A partir das Sagradas Escrituras e dos Pais da Igreja, mas transparecendo
também uma nítida influência aristotélica, Marsílio questiona os principais poderes
arrogados pelo pontífice, construindo uma imagem deste submisso ao poder
temporal. Ainda neste tratado, Marsílio enuncia um dos seus maiores e mais
importantes conceitos, o de Supremo Legislador Humano.
A reflexão marsiliana sobre o poder está diretamente vinculada à ideia de
Lei, a qual ele divide em Humana e Divina. Como a Lei Divina foi enunciada por
Deus através das Escrituras e possui um julgamento espiritual que transcende a vida
terrena, logo, qualquer sacerdote teria unicamente o poder de ensiná-la, mas jamais
de aplicá-la (dado que sua aplicação será realizada pelo próprio Deus). Por outro
lado, a Lei Humana pode ser enunciada e aplicada pelos homens, mediante o
Supremo Legislador Humano. Essa “entidade” política seria formada pelo “[...]
conjunto de todos os homens ou sua parte mais relevante [...]” 164, que, no passado,
teriam delegado seu poder ao príncipe dos romanos, o Imperador.
No De Translatione Imperii, Marsílio continua o seu intento de desmontar a
autoridade do pontífice e dar legitimidade ao Imperador, nesse caso, a partir da
história. Como vimos, Marsílio constrói uma “genealogia” do Império, recorrendo a
ideia de translatio imperii, e apontando o Sacro Império como legítimo herdeiro e
sucessor do Império Romano. Ao buscar argumentos de autoridade na história,
Marsílio utiliza uma base pretensamente racional e laica como meio para legitimar o
164 PÁDUA, Marsílio de. Defensor Menor. Petrópolis: Vozes, 1991. p. 81.
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Império. Nesse sentido, além de toda a argumentação filosófica e bíblica, o autor
recorre também ao passado, demonstrando que a origem, bem como a evolução do
Império ao longo do tempo se deu unicamente a partir da iniciativa humana, de
forma independente da Igreja.
Ao demonstrar que o Supremo Legislado Humano é o príncipe dos Romanos
e ao identificar o Sacro Império como sucessor legítimo do Império Romano, Marsílio
vinculado Luís IV à imagem do Supremo Legislador, deixando claro que este seria a
maior autoridade existente, único capaz de enunciar e aplicar a Lei Humana.
Outra forma utilizada por Marsílio é a construção de modelos e
contramodelos baseados na oposição entre virtudes e vícios. Utilizando
personagens históricas, Marsílio virtudes a serem imitadas e vícios a serem
evitados. Tais virtudes, além de conferirem maior legitimidade à autoridade imperial,
também indicam atitudes e práticas políticas valorizadas pelo autor no exercício do
poder. Como vimos, a tradição de oposição entre virtudes e vícios existe desde a
Antiguidade, no entanto, Marsílio a utiliza como maneira de responder a demandas
da sua própria conjuntura, adaptando-a para as necessidades da sua realidade.
As reflexões de Marsílio de Pádua não foram produzidas desconexas da
conjuntura vivida pelo autor, uma vez que, como sabemos, toda e qualquer
produção humana resulta de seu contexto, influenciando e sendo influenciada por
ele. Como apontamos ao longo do texto, a disputa entre Luis IV da Baviera e o papa
João XXII e a situação do Sacro Império em oposição às pretensões pontifícias
demandavam argumentos de legitimidade para a autoridade imperial, que se
encontrava enfraquecida. A produção marsiliana respondia, portanto, a questões
conjunturais, somadas, é claro, às crenças pessoais do próprio autor.
O pensamento marsiliano alinha-se, de modo bastante claro, à
“secularização” das reflexões políticas do final do Medievo. Simultaneamente, o
autor mantém diversas tradições, como o conceito de translatio imperii e a oposição
entre virtudes e vícios, mas dá a elas uma função “moderna”, no sentido de legitimar
a autoridade secular em oposição à espiritual. Apesar de pouco influentes em sua
própria época, as ideias de Marsílio e outras semelhantes às dele encontraram eco
nas características próprias da transição da Idade Média à Modernidade, fornecendo
e endossando teorias políticas de autonomia do poder temporal e civil que
respondiam às necessidades únicas desse momento de transformações.
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