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AArrlleettttee GGeenneevvee
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AARRGGUUMMEENNTTOO::
Andrew Robert Beresford é o libertino mais famoso de
todo o sul da Inglaterra. Suas conquistas são
escândalos contínuos em Whitam Hall, e além disso,
produzem uma terrível dor de cabeça no patriarca
dos Beresford. É um conquistador, e nenhuma mulher
é capaz de resistir a seu olhar e sorriso maliciosos.
Rosa de Lara e Guzmán acredita na liberdade e na
igualdade de todo o ser humano e, para escapar da
tirania do duque de Fortaleza, planeja a forma de
seduzir o jovem inglês que lhe roubou o coração:
Andrew Beresford. Sua alegria e sua impulsividade lhe
mostram um mundo que ignorava que existisse,
entretanto a guerra está a ponto de estourar...
Ambientada na convulsiva Madrid de 1835, quando
se gerou a primeira guerra carlista na Espanha, Me
Beije, Canalha é a história de dois corações que
souberam vencer a distância e superar as
dificuldades.
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PRÓLOGO
Palácio de Zújar, cidade de Córdoba.
Alonso cruzou a porta aberta na muralha árabe, que constituía a
entrada principal ao palácio. Este fora edificado em torno de um pátio
mudéjar1: um jardim de forma retangular, dividido em quatro zonas, com
reservatórios nos extremos enlaçados através de pequenos canais e lajes de
mármore que formavam um conjunto harmonioso e aprazível. Ao redor do
pátio se dispunham as dependências da moradia.
Zújar estava localizado no bairro do Bairro dos Judeus, muito perto
da mesquita e da catedral. Na zona mais influente e próspera da cidade de
Córdoba.
Alonso elevou seus olhos castanhos para as janelas fechadas da
planta alta. Os diferentes quartos estavam situados ali, distribuídos em
corredores amplos decorados com a arquitetura tradicional, muito estendida
na cidade, e com o acréscimo de colunas próprio da região. Com as mãos
às costas, observou com atenção cada arcada e canto do pátio, por isso, não
foi consciente da presença feminina que o esquadrinhava de uma porta
entreaberta, no outro extremo do jardim; mas, como se intuísse que o
estava olhando, Alonso girou sobre si mesmo e cravou seus olhos em Rosa
sem dizer nada.
1 A arte mudéjar é um estilo artístico e arquitetônico que incorpora influências, elementos ou materiais
de estilo hispânico e muçulmano. Fonte: Wikipédia.
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Esta olhou para seu irmão, que vestia uniforme de oficial militar.
Fixou-se no chapéu adornado em ouro que lhe cobria os cabelos negros,
pulcramente penteados para trás. A casaca azul escura estava enfeitada
também em tons dourados no pescoço. A cor combinava com o tom torrado
de sua pele. As voltas, pescoço e lapelas eram de um vermelho intenso.
Alonso levava as lapelas da casaca abertas até médio peito e viradas para
fora, seguindo a moda dos generais de terra.
Seu grau era indicado pelos dois galões dourados nos ombros.
Baixou os olhos para o cinturão, onde pendurava o sabre de oficial,
e cravou suas pupilas na mão masculina que segurava com força o punho.
Rosa pensou que seu irmão parecia imponente e em atitude perigosa. De
novo, olhou em seus olhos rasgados e profundos e analisou cada traço do
querido rosto. Sua forte constituição e sua altura dignificava o uniforme,
que caía como uma luva. Era muito atraente, mas teimoso e obstinado até
um ponto que conseguia desanimá-la. Desde menino, tinha mostrado seu
forte caráter e sua determinação em cada projeto que empreendia, e, no
auge de seus trinta e cinco anos, não mudou nem um pouco.
—Rosa — a saudou, com voz grave.
—Alonso — respondeu ela, a sua vez.
De novo, o silêncio se hospedou entre os dois irmãos, que se
contemplavam, um com excessiva arrogância, a outra com prudente
cautela.
Rosa olhou os dois soldados que faziam guarda na porta da rua e,
sem explicar o motivo, sentiu que lhe encolhia o estômago.
—Foi toda uma surpresa descobrir que tinha deixado os hábitos. —
A voz masculina soou fria como o gelo.
—Nunca tomei — confessou, um pouco coibida.
—Então, por que não retornou a Sevilha?
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—Acostumei-me a viver em Córdoba; aqui tenho tudo o que
preciso.
—Não convida seu irmão para um gole? Tenho a garganta
ressecada.
Era uma falta de educação por sua parte mantê-lo no pátio e não
convidá-lo ao interior da moradia, mas estava tão surpresa por sua chegada
que não tivera tempo de preparar-se para enfrentá-lo.
—É óbvio — respondeu um momento depois — Acompanhe-me.
Alonso se aproximou dela. Os guardas o seguiram, a um gesto dele,
vários passos atrás.
Rosa guiou seu irmão para a formosa biblioteca do palácio. Alonso
esteve a ponto de soltar um assobio de admiração. As enormes estantes
cheias de livros chegavam até o teto e cobriam três das quatro paredes da
estadia.
—Deve pagar uma renda muito alta por este lugar — disse, de
repente.
Rosa fechou os olhos um instante, antes de responder.
—É de minha propriedade. — Alonso a olhou, com olhos
semicerrados — Eu o comprei com parte da herança que me deixou mãe,
mas imagino que já sabe e só perguntou para me pegar com a guarda baixo,
como é costume em você, não é certo?
Alonso não se incomodou com sua crítica, mas pensou que, se só se
tratasse da compra do palácio, ele não estaria, nesse momento, em
Córdoba, desatendendo seus assuntos em Sevilha. Rosa pediu ao mordomo
que servisse um refresco e fez um gesto a seu irmão com a mão, para que
tomasse assento em umas belas poltronas estofadas em um tom verde muito
alegre.
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—Já tem várias propriedades — replicou ele, com aspereza — não
precisa de mais.
—É certo, mas a maioria está em Sevilha, e eu queria uma nesta
formosa cidade de Córdoba — respondeu, concisa — Desaprova minha
escolha?
Alonso não lhe respondeu, e, durante os seguintes minutos,
esperaram em silêncio, até que o mordomo deixou a bandeja na mesinha
auxiliar e partiu. Rosa olhou para a porta da biblioteca, quando o servente
saiu por ela, e se precaveu dos dois homens que montavam guarda do lado
de fora. Acreditava que ficariam no pátio.
—Estou detida? — perguntou a seu irmão, diretamente.
Cansou-se de ser educada e sentia a imperiosa necessidade de saber.
Alonso tomou seu tempo em lhe responder, e, quando o fez, seu
olhar bulia de desconfiança.
—Pensa que tem motivos para isso?
—Quer brincar de adivinhações? — Rosa lhe estendeu o suco de
laranja que tinha levado o mordomo.
Alonso aceitou o copo com um gesto de cortesia tão gélido, que ela
sentiu um calafrio na base da nuca.
—Andou muito mal, minha querida irmã — disse, de repente, com
uma voz áspera que lhe soou autoritária.
Rosa tragou uma saliva espessa. Sabia que esse momento ia chegar,
cedo ou tarde, embora acreditasse estar preparada, havia começado a
tremer.
—Refere-se a que viva em Córdoba ou a ter ideias políticas
diferentes das suas?
Alonso estreitou os olhos ainda mais.
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—Apoiar Carlos Isidro é uma soberana estupidez — soltou, de
repente.
Rosa apertou os lábios, ofendida.
—Pai morreu por quão ideais defendo. Esqueceu?
—Seus ideais são equivocados — replicou, aborrecido — Pai era
um traidor a Espanha. Um maldito bonapartista! Esqueceu você?
Preocupada, Rosa cravou suas pupilas negras nas de seu irmão.
Alonso Miguel de Lara e Arenas foi um dos muitos nobres que apoiaram
Napoleão Bonaparte e pagou com sua vida essa escolha.
—Pai defendia uns ideais que o rei Fernando se encarregou de
destruir e amordaçar. Acaso lhe deixa indiferente ver o que tem feito com o
povo? Sua tirania? Seu absolutismo?
As aletas do nariz de Alonso se dilataram, ao escutar sua irmã.
—Era um bebê, quando estourou a guerra com a França; pai não
pôde influir você para que adotasse sua postura e abraçasse suas ideias
políticas — o alfinetou, com fúria — Pensa assim porque se criou no país
inimigo que quis nos submeter, que nos massacrou para obtê-lo, maldita
seja!
—Nossa avó materna era francesa — recordou ela, amargamente —
mas que eu me criasse na França não significa nada. Os ultrajes são sempre
abusos, arbitrariedade, e, por esse motivo, me declaro contrária à política
que você defende.
Alonso a perfurou com um olhar ácido, cético ante a defesa de suas
ideias. Ele sabia muito bem que a educação que recebera na França era a
culpada da traição que tinha cometido.
Rosa inspirou, profundamente, ante as lembranças que a golpearam.
Depois da batalha de Somosierra, seu pai enviara a ela para a França com a
família materna de sua esposa. Alonso Miguel de Lara e Arenas
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compreendera que a situação na Espanha ia piorar e quis pôr a sua família a
salvo, mas Sofía, sua mulher, negou-se a partir e deixá-lo sozinho.
Finalmente, Alonso ficou também em Sevilha com eles. Por esse motivo,
Rosa se criou sem sua família mais próxima e cresceu com sua avó
materna, em um país odiado pelos espanhóis. Ela mesma era objeto da
aversão e o rechaço da nobreza sevilhana a sua volta.
—Por quê? — A pergunta foi formulada de forma imperativa.
Rosa decidiu justificar-se com seu irmão.
—Porque não sou como você — explicou, em voz baixa — e
porque acredito na liberdade e na igualdade de todo homem. Odeio os
métodos que utilizou este monarca para nos submeter.
—Por quê? — Alonso voltou a lhe fazer a mesma pergunta, mas,
agora, com um tom muito mais inquisitivo.
—Tomei a decisão de apoiar dom Carlos, porque acredito
sinceramente que é o melhor para a Espanha, para todos nós. — Ele bufou,
incrédulo — Acredito que seu reinado será mais eficaz que o de uma
infanta cuja minoria de idade nos trouxe uma regência pouco clara.
Fernando se rodeou de incompetentes, de conselheiros inúteis que utilizam
a regência da infanta em seu proveito. Não o vê?
—Não sabe o que diz! — vaiou Alonso, entre dentes.
—O que nos trouxe o rei depois de sua volta? Nada! Aboliu a
Constituição de 1812 que custou tantas vidas, restaurou a Inquisição, e
poderia seguir enumerando ações e atrocidades cometidas por esse rei que
defende, mas que não vale a pena.
Seu irmão inspirou, profundamente.
—Nos últimos tempos, permitiu certas reformas para atrair os
setores mais liberais. Pretendia igualar as leis em todo o reino.
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—Mas não foi suficiente! — exclamou, convencida — Nunca o
será! Não é capaz de vê-lo?
Alonso amaldiçoou com voz grave. Seu pai, morto na batalha de
Tolosa, permitiu que a herança íntegra de sua mãe passasse às mãos de sua
irmã, e ele acreditava, firmemente, que nenhuma mulher devia possuir tanta
riqueza, porque isso lhe outorgaria influência. Rosa fora educada como um
homem, inclusive estudara sob a supervisão de um professor e tutor francês
designado por seu pai. O duque de Fortaleza enviou a sua única filha muito
longe de sua influência, e, embora Alonso tentasse por todos os meios
anular os acertos feitos por seu pai e controlar o patrimônio e a riqueza de
sua irmã, não o tinha obtido. Logo, a muito insensata retornara a Sevilha,
quatro anos depois de terminar a guerra contra Napoleão. Relacionou-se
com traidores à monarquia e empregou o dinheiro de sua mãe, falecida
pouco depois da morte do duque, para financiar a reclamação de Carlos à
Coroa espanhola. Armar a um exército era muito caro, ele, como militar,
sabia.
Alonso fechou os olhos, por um momento. O que tinha de fazer a
seguir era extremamente desagradável, mas necessário. Deixou o copo na
bandeja, levantou-se de seu assento e se dirigiu para a porta. Agarrou o
trinco com a mão direita e a abriu.
—Prendam-na — ordenou, com voz firme.
Os dois soldados que montavam guarda em ambos os lados da porta
fizeram um gesto afirmativo com a cabeça e se meteram na estadia até ficar
frente a Rosa.
—Alonso! — exclamou ela, com os olhos arregalados — O que
significa isto?
—Fica detida pelo crime de traição à Coroa da Espanha.
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Não podia acreditar. Seu irmão a prendia? Observou os dois
soldados com o coração em um punho. Embora estivessem muito perto,
não a seguravam, por isso correu para Alonso e se abraçou a seu pescoço
para implorar.
—Não faça isso! Que seja outro o que cometa esta infâmia, mas
você não.
Soltou as mãos dela de seu pescoço e a olhou, fixamente, entre o
desgosto e a decepção.
—Sabia o preço que pagaria por sua deslealdade à Coroa. — Rosa
ergueu as costas e cravou seus olhos castanhos nos de seu irmão, que lhe
sustentava o olhar com aborrecimento — Por que acredita que solicitei seu
ingresso no convento de Santa Marta? Para evitar que cometesse o maior
engano de sua vida. Acredita que a Casa Real não conhece suas ações
políticas? Têm conhecimento de suas reuniões com um dos homens de
Rafael Maroto2: Joaquín Moreno. Sabem que, junto com outros traidores,
está financiando a reclamação ao trono de Carlos Isidro.
Rosa não podia pensar, mas tinha de ganhar tempo.
—Não penso me mover de Zújar.
Alonso lhe agarrou o queixo e a levantou.
Ela o olhou, atentamente. Seu irmão tinha os lábios apertados com
cólera, o que lhe produziu um sobressalto maior.
—É ainda mais estúpida do que acreditava — espetou,
amargamente — Por que acredita que solicitei à Coroa a responsabilidade
de levar a cabo sua detenção? Pretendo manter você com vida todo o tempo
que possa, embora não o mereça.
2 No original em espanhol: “ general espanhol que participou da Primeira Guerra Carlista a favor do
irmão do rei, Carlos Isidro”.
12
Rosa já imaginava algo assim, mas ser presa por seu próprio irmão
resultava muito humilhante e doloroso.
—Permanecerá prisioneira no convento de Santa Marta por tempo
indefinido. Pode agradecer pelo sobrenome que leva e de que eu seja um
fiel servidor da Coroa, porque, do contrário, já estaria morta.
Ela sabia. Quando decidiu mostrar seu apoio ao irmão do rei
Fernando, Carlos, era consciente do risco que corria; mas seus ideais a
impeliam a fazer algo. Seu pai morrera por esses mesmos princípios, e
Rosa detestava a posição absolutista de seu irmão.
—Posso escrever uma nota a meu advogado para que se ocupe de
administrar as propriedades em minha ausência? E preciso dar ordens ao
serviço. — Alonso lhe fez um gesto afirmativo com a cabeça — Então,
subirei a meu quarto para me trocar de roupa e vestir algo mais apropriado,
se não for inconveniente.
Pôde ver a dúvida nas pupilas dele.
—Que garantia tenho de que não tentará fugir, enquanto espero? —
perguntou, com certa desconfiança.
Olhou-o, com decepção nos olhos, mas com um brilho decidido em
seu atraente rosto.
—Porque sou plenamente consciente de que, enquanto esteja a seu
lado, seguirei com vida. Ao menos, até que seja julgada.
Alonso estava seguro de que não pensava em escapar, mas, embora
o tentasse, resultaria-lhe impossível; tinha uma guarnição de soldados na
porta do palácio e, no caso de, havia coberto também outras vias de
escapamento.
—Vá, então, e escreva essa carta, e vista um traje de viagem.
Rosa lhe fez um gesto afirmativo com a cabeça e saiu da biblioteca
com o estômago revolto. Apoiou a mão sobre o corrimão de madeira da
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escada, deteve-se e respirou, profundamente. Agora que havia chegado o
momento, um agudo remorso lhe perfurou o coração. As possíveis
consequências de suas ações eram válidas, quando estava sozinha, mas
tinha alguém sob sua responsabilidade e falhara de forma estrepitosa.
Era imperioso que escrevesse uma carta e preparasse os
documentos que Glória teria que levar a Inglaterra; confiava em que
chegassem bem a seu destino. No momento em que decidiu ir de Sevilha,
longe da influência de seu irmão, soube que, cedo ou tarde, teria de prestar
contas por suas ações. Rezou uma prece e desejou que Deus escutasse seu
rogo. Felizmente, Alonso ignorava quase tudo a respeito dela e dos
segredos escondia.
Agora, seu destino estava nas mãos de Deus e o que mais amava na
vida ia ficar em mãos de uma pessoa que não via há anos. Teria mudado
muito, durante esse tempo? Aceitaria com indulgência cuidar do que mais
lhe importava no mundo?
«Meu deus, que a aceite e a proteja de todo o mal», suplicou, com o
coração atormentado.
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CAPÍTULO 1
Enchamos a noite de gemidos gloriosos
e suspiros celestiais, para que os anjos desfrutem.
e dancem ao ritmo de nossa paixão.
Andrew R. BERESFORD
Condado de Hampshire, Inglaterra, 1835.
Um dedo masculino percorria o contorno das costas nua da mulher.
Desenhou uma flor e continuou a descida até a curva do quadril. Ela moveu
a cintura, ao sentir a cócega do dedo brincalhão, mas não mudou sua
postura lânguida.
—É um homem travesso. — A voz feminina soou ansiosa — Mas
eu adoro tudo o que me faz. — Andrew sorriu de forma maliciosa,
enquanto lhe acariciava a curva do quadril de forma muito mais atrevida —
E é insaciável. — Suas palavras o fizeram estreitar os olhos, durante alguns
segundos.
À sua mente, acudiu uma lembrança que lhe resultou extremamente
dolorosa: a imagem de uma mulher que significara tudo para ele, e que, em
pagamento pelos profundos sentimentos que albergava por ela, tinha-o
usado a seu desejo e logo o deixado, sem se importar nem um pouco com o
amor que lhe professava. Piscou para tentar afastar o sentimento de
desgosto que o embargara, durante uns instantes.
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Sua companheira notou a leve hesitação de sua mão em sua pele e
apoiou os cotovelos no colchão para olhá-lo. Seus azuis olhos brilhavam
com um desejo que não tinha diminuído nem um pouco nessa tarde
libidinosa.
—Não deve preocupar-se, meu marido não chegará até manhã.
Sua voz apagou em Andrew a lembrança, mas, assim que ela
terminou de dizer essas palavras, ouviu-se a carruagem que tomava o
caminho de entrada à mansão. As rodas moviam os seixos no caminho e os
lançavam contra as esculturas que adornavam o percurso até a casa. O som
resultava inconfundível.
—Charles terá adiantado sua volta! — A voz da mulher soou
assustada, mas Andrew lhe piscou os olhos um olho para tranquilizá-la.
Ouviram o grito do chofer, que deteve os cavalos em frente à porta
principal. Andrew recolheu suas roupas espalhadas pelo chão a toda
velocidade. Vestiu primeiro as calças e, sem fechar os botões da camisa, a
pôs também, assim como as botas.
—Detesto ter de deixar você de forma tão apressada, mas devo ir.
— A mulher o beijou nos lábios, que ele abriu para ela de maneira
premeditada.
—Sentirei saudades, amor, não duvide. Até que a veja de novo, o
tempo será eterno e tedioso.
Andrew lhe segurou o queixo, para aprofundar seu beijo de
despedida.
—Nos veremos durante a próxima viagem de seu marido.
Avançou até o balcão e abriu a alta janela. Por fortuna, uma das
paredes do amplo quarto dava a um jardim lateral; a distância até o seguinte
balcão não era muita, e a trepadeira parecia resistente. Era fácil deslizar por
ela e cruzar o jardim até a taipa, para depois saltá-la. Tinha-o feito
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infinidade de vezes. Sabia que era arriscado manter uma relação com lady
Hill, mas a impetuosidade da dama era uma tentação que não podia resistir.
Embora cada vez fosse mais difícil manter encontros clandestinos, e temia
ter chegado o momento de terminar a aventura e passar a outras reservas
ainda não exploradas.
Agarrou a trepadeira e assegurou os pés, à medida que ia baixando;
a camisa aberta enganchou em um espinheiro, e Andrew soltou uma
maldição em voz baixa, quando teve de rasgar o tecido, mas já havia
chegado quase ao final e salvou a distância, até o chão para logo pôr-se a
correr em direção oposta à casa. Já podia ver o muro e a árvore por onde
tinha de subir. Tinha o cavalo preso do outro lado. Deu um salto e apoiou o
pé direito na parede para dar impulso e agarrar um galho grosso. O cálculo
fora perfeito, porque o peso de seu corpo o fez oscilar sobre sua cabeça e
pôde segurá-lo com a outra mão sem dificuldade. Balançou-se, até que
conseguiu elevar-se e ficar dobrado sobre o galho. Em questão de
segundos, sentou-se nela a escassos centímetros da borda do muro; de onde
estava, podia ver sua montaria, que pastava tranquilamente à luz da lua.
Então, Andrew girou o rosto para a casa e viu a silhueta feminina através
da janela aberta; esqueceu-se de fechá-la. Contemplou o rosto irado de
lorde Hill e a forma possessiva em que agarrou o braço de sua mulher e a
arrastou até o leito. Imaginou o que viria a seguir e, de repente, sentiu
remorsos.
Soube que tinha de recomeçar
Alcançou o muro com relativa facilidade e saltou junto a seu
cavalo, que não se moveu do lugar. Abotoou a camisa e desdobrou a capa
negra que tinha deixado dobrada sobre a sela. Depois de colocá-la sobre os
ombros, montou com uma agilidade assombrosa, esporeou o garanhão e
empreendeu galope para Southampton. Ali conhecia um botequim onde
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serviam boa cerveja negra e havia umas empregadas voluptuosas que
podiam lhe dar um bom momento, até que decidisse retornar a Whitam
Hall. Quando o fez, a altas horas da madrugada e algo ébrio, seu pai, o
marquês de Whitam, esperava-o com um ultimato que ia mudar sua vida
por completo.
John Beresford seguia movendo a taça de xerez na mão. Tinha o
olhar fixo em um quadro da biblioteca e, sem dar-se conta, seus olhos se
foram estreitando com desgosto, à medida que suas pupilas percorriam o
retrato de seu filho caçula. Era o libertino mais famoso de todo o sul da
Inglaterra, e suas contínuas conquistas femininas produziam em seu pai
uma terrível dor de cabeça. Por que maldita razão todos os problemas com
saias que tinha deviam ser com mulheres casadas com homens influentes?
John se cansara de lutar com maridos ultrajados que pediam o
sangue de seu filho.
Andrew se via envolto em vários duelos, dos quais saía ileso por
milagre, mas ele tinha intenção de mudar sua dissipada vida. Estava farto
de manter conversas infrutíferas para tentar fazê-lo repensar sobre sua
atitude e sua maneira despreocupada de levar as coisas, de meter-se em
situações perigosas.
Nem Christopher nem Arthur tinham obtido, tampouco, fazê-lo
mudar seu modo de agir e de comportar-se.
Deixou de observar o quadro para olhar o relógio pendurado na
extremidade contrário da parede. Os ponteiros marcavam as cinco da
madrugada. Para John, doía-lhe a cabeça de procurar soluções, medidas
para devolver seu filho ao caminho da responsabilidade. E, pela enésima
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vez, perguntou-se onde estaria naquele momento, a que mulher estaria
seduzindo de forma libertina e despreocupada.
Sentia que as horas que marcavam os ponteiros do relógio eram
como pequenas punhaladas em seu coração de pai preocupado.
Andrew era um libertino muito atraente. Um descarado encantador,
e nenhuma mulher resistia seu olhar malicioso, seu sorriso malandro, mas
John devia tomar medidas, embora, para isso, o tivesse de afastá-lo de
Whitam Hall durante um tempo prolongado.
Por fim, ouviu o som da porta ao abrir-se. E o golpe, seguido do
impropério que seu filho soltou, quando, no vestíbulo, tropeçou com a
cadeira estofada que John tinha separado da parede com esse propósito:
saber quando voltava. Levantou-se da poltrona e deixou a taça em um canto
da escrivaninha. Com passo firme e seguro, encaminhou-se para o
vestíbulo, antes que Andrew subisse a suas dependências. A casa estava
tenuemente iluminada com abajures de gás, que ordenou deixar acesas.
Quando mostrou a cabeça pela porta, seu filho estava tentando pendurar a
capa no cabide; seu lamentável estado não ia impedir a conversa .
—Estava esperando você.
Andrew deu um coice, sobressaltado. Quão último esperava ao
chegar a Whitam Hall era ver seu pai aguardando-o.
Voltou-se para ele com olhos abertos pela surpresa. Que fazia de pé
a aquelas horas da madrugada? Por que tinha esse olhar de amarga
decepção?
—Venha comigo, temos de conversar.
Andrew o seguiu à biblioteca. Uma vez dentro, tomou assento
frente a ele, sem que seus lábios abandonassem seu perene sorriso.
19
—Se o visse neste momento... — John se calou. As sobrancelhas
loiras de seu filho se elevaram interrogantes — Tem um aspecto
lamentável.
—Bebi um pouco mais do que pensava — admitiu, com franqueza.
Seu pai negou com a cabeça, enquanto inspirava profundamente e
lhe punha diante um documento em branco.
—Assine. — Andrew olhou o papel, sem entender — Terá que
fazer uns acertos em seu imóvel e preciso de sua autorização. Tem-no
virtualmente na ruína.
Ele se sentiu um pouco envergonhado. Era verdade que descuidara-
se completamente da propriedade que seu pai lhe deu de presente, quando
fez dezoito anos. Por esse motivo, assinou sem demora o documento. John
o guardou em uma pasta de pele marrom.
—Comprei para você um grau de oficial na Marinha. Partirá a
próxima semana a bordo do Revenge.
Andrew piscou surpreso. Não tinha ouvido bem. Ingressar na
Marinha? Certamente, bebera muito: parecia-lhe que seu pai o enviava para
longe da Inglaterra.
—Não o quero em Whitam Hall — admitiu John, abatido — Não
penso em tolerar um escândalo mais.
—Na Marinha? — perguntou, pasmo — Quer me enviar para longe
da Inglaterra? Desterra-me? — Inspirou, profundamente.
Sua voz pastosa fez com que John lançasse uma maldição em voz
baixa.
—Não penso em pagar por nenhum outro excesso. Acabou-se sua
libertinagem às minhas custas. Não vai colocar-se em nenhum duelo mais.
Não, enquanto fique um sopro de ar nos meus pulmões.
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Andrew se apoiou no respaldo da poltrona, completamente
estupefato. Seu pai falava de enviá-lo para longe, mas ele já não era um
menino, embora se perguntasse por que motivo quereria fazer algo assim.
Ele simplesmente se divertia um pouco, bom, devia reconhecer que um
pouco mais da conta.
—Não penso em ingressar na Marinha — respondeu, com tom
escandalizado.
—Andrew — começou John — não pode seguir com esta vida
dissoluta. Penso que o exército o fará sentar a cabeça muito mais que meus
sermões e ameaças.
—Ao diabo o exército! — exclamou, zangado — Não em penso me
sair da Inglaterra. Está louco, se acredita que embarcarei de forma
voluntária.
Seu pai se levantou da poltrona sem afastar os olhos de seu filho
mais novo. Suspirou com cansaço e deu um passo atrás para separar a
cadeira da mesa.
—Em uma semana, embarcará no Revenge. Eu, se fosse você, iria
preparando a bagagem. E, agora, boa noite.
Andrew olhou sua solene partida sem poder articular palavra.
Seguiu sentado na mesma postura de abandono e sem saber com exatidão
se a ordem paterna tinha sido real ou imaginada. Seu pai o punha de
patinhas na rua. Por quê? Não podia entender, não tinha feito nenhum mal.
Bom, isso não era de tudo certo, os dois últimos duelos causaram alarme na
família, até o ponto de que seus dois irmãos mais velhos fizeram causa
comum com seu pai para tentar interferir em seus assuntos, mas ele não
permitiu. A honra de um homem era inquebrável, e, se tinha que defendê-la
em um duelo, a defenderia.
21
A essa tardia hora da noite, Andrew imaginou se deveria limitar-se
a conquistar as casadas do povoado em vez das nobres; mas ele não era
quem as escolhia, justamente o contrário, elas o escolhiam. Caíam rendidas
de amor. Eram mulheres fáceis que procuravam alguns momentos de prazer
com um homem que soubesse seduzi-las, e Andrew era um perito em fazê-
las sentirem-se especiais.
Suspirou, cansado pela falta de sonho. Custava-lhe centrar-se e
tomar resoluções, por isso decidiu ir à cama, para recuperar forças e poder
enfrentar seu pai, no dia seguinte. Ele não pensava em ir a nenhum lado e,
se para contentá-lo tinha de deixar de pular com alguma mulher durante um
tempo, raciocinou que o esforço merecia a pena.
Ao dia seguinte, começaria o princípio de seu celibato e o final dos
duelos a meia-noite.
Com essa resolução em mente, levantou-se da poltrona e tomou o
mesmo caminho que seu pai, uns momentos antes.
22
CAPÍTULO 2
John Beresford ficou um momento parado na soleira da porta da
biblioteca. A mulher estava de costas à janela, levava uma capa negra e
retorcia as mãos em um gesto compulsivo que o fez compreender quão
nervosa estava. Inclinava a cabeça, que inclinava um pouco para o ombro
esquerdo ao tempo que murmurava uma oração em voz baixa.
John deu os últimos passos, entrou na estadia e se aproximou dela.
—Desejava ver-me? — A mulher elevou o rosto, bruscamente, ao
ouvir sua voz, e ele pôde ver, então, quão jovem era.
Tinha o rosto redondo, e a palidez de suas bochechas era notável. A
moça qualificou-a assim porque lhe resultava impossível precisar sua
idade, sustentava-lhe o olhar com a submissão própria da servidão, embora
com a suficiente maturidade para conter seu medo.
—Procuro o senhor Andrew Beresford — disse ela, com palavras
medidas, em um tom muito suave.
John se surpreendeu com seu pedido.
—Deduzo de sua petição que conhece meu filho. — As pupilas da
jovem brilharam incômodas — Que deseja dele?
23
—Está aqui? — John negou levemente, sem afastar seus olhos da
garota, que tinha incrementado os movimentos de suas mãos e mordia os
lábios nervosa — Preciso vê-lo com urgência!
—Diga-me por que o busca, e eu lhe transmitirei sua mensagem,
assim que retorne a Whitam Hall.
Ela piscou várias vezes.
—O que me traz aqui é um assunto privado que devo tratar
unicamente com ele.
Seu tom tinha subido de volume. John estava cada vez mais
intrigado.
—Meu filho não está em casa.
Suas palavras fizeram com que a moça deixasse cair os ombros
abatida, e soltou um suspiro de pesar claramente audível. Tinha o
semblante decomposto, e John se fixou na mão que levou a garganta para
conter um gemido. As sombras azuis sob seus bonitos olhos castanhos
evidenciavam uma profunda vacilação, como se não soubesse o que fazer a
seguir.
—Precisa de ajuda? — Sua pergunta soou sincera, e ela semicerrou
os olhos, como se considerasse a alternativa.
—Não posso perder mais tempo! Tenho de voltar com minha
senhora! — exclamou, com um fio de voz, e voltou a retorcer as mãos em
um intento de mantê-las ocupadas — Pode enviar um lacaio, para que tente
localizá-lo? Preciso falar com lorde Andrew para lhe entregar algo muito
importante.
John se fazia um montão de perguntas sobre a moça. Não era nobre,
bastou-lhe uma olhada para sabê-lo. Embora se movesse e se expressasse
com uma correção aprendida possivelmente na adolescência, sua forma de
falar denotava que fora educada por uma senhora benevolente. Tinha um
24
acento como do sul da Espanha, possivelmente Sevilha ou Cádiz, embora
não pudesse precisá-lo. Um movimento na poltrona de pele fez com que
John desviasse os olhos da jovem a alguém que acabava de dar um salto
para ficar em pé. Não se precavera de que a moça não estava sozinha.
—Querida, despertei você? — A menina assentiu em resposta e, à
medida que avançava para onde estavam os dois adultos, a surpresa de John
aumentou.
A pequena andava muito erguida para sua idade. Uma capa de
veludo vermelho cobria seu corpinho. O capuz, que levava posta, tampava
seu rosto quase por completo. Como não via bem, ao caminhar, a jogou
para trás e, quando o fez, deixou ao descoberto uns cachos negros tão
formosos que John esteve a ponto de soltar um assobio de assombro. A
menina era de uma beleza excepcional, comovedora. Seu pequeno rosto
com forma de coração era aristocrático, e, quando seus olhos azuis se
cravaram nele, pareceu-lhe que estava contemplando um anjo.
Onde tinha visto antes esse olhar...?
—Desculpe-me, lorde Beresford, mas preciso falar com seu filho
logo — voltou a insistir a jovem, mas John não podia afastar os olhos da
pequena, que se deteve a um passo dele.
Inclinou-se até ficar em cócoras em frente a ela e a observou muito
atentamente. Tinha a pele muito branca, por isso, o negro de seu cabelo
realçava a cor celeste de seus olhos, emoldurados por longas e espessos
cílios. Como podia uma menina ser tão adorável?
—Olá, meu nome é John, e você? — Ela piscou várias vezes, sem
decidir-se a aceitar a mão que lhe estendia — Bem-vinda a Whitam Hall.
A jovem decidiu intervir.
—Permita que faça as honras, lorde Beresford. — Mas John seguia
de cócoras, olhando a pequena, com supremo interesse — Apresento-lhe
25
Rosa Catalina Branca de Lara. — Ele a escutava sem afastar os olhos do
rosto infantil.
—Tem um nome muito longo para ser tão pequena — disse John à
menina, que tinha aceitado sua mão.
—Sua neta, lorde Beresford.
John se levantou, de repente, e olhou para a moça com olhos
exagerados; uns segundos depois, voltou-os a cravar na pequena.
Dissera sua neta!?
—É uma brincadeira?
A jovem puxou um envelope lacrado do bolso de sua capa negra e o
estendeu para ele.
—É uma carta de minha senhora para lorde Andrew Beresford.
Tenho que entregá-la em pessoa e deixar a pequena a seu cargo.
John não saía de seu assombro. Aquela preciosa criatura era filha de
Andrew?
—Quem é a mãe? — A pergunta de John não admitia evasão
alguma.
—Rosa María Sofía de Lara e Guzmán — respondeu ela, sem
vacilar.
Ele piscou atônito, antes de falar:
—Os Lara de Sevilha? Seu tio é o duque de Fortaleza? —
perguntou, embora conhecesse a resposta.
A moça afirmou com a cabeça, e John pensou a toda velocidade.
O duque de Fortaleza, Alonso de Lara, era inimigo inveterado do
tio de sua filha Aurora: Rodrigo de Velasco e Douro. Mãe de Deus! Que
diabos fez Andrew? A cólera começou a substituir a surpresa que o
embargava, mas, ao percebê-lo, a menina deu um passo para trás, e ele
amaldiçoou seu descuido, pois, de modo algum, desejava assustá-la.
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—Não é porque desconfie de sua palavra, senhorita... — John a
convidou a apresentar-se.
—Glória de Hernández e Romero. Trabalho para a senhora Lara há
vários anos.
—Compreenderá que necessito da confirmação de meu filho sobre
este assunto.
Mas o coração do John lhe dizia que a pequena era uma Beresford.
Concebida em uma das numerosas viagens de seu filho caçula à Espanha.
—Lorde Andrew Beresford é o pai da filha de minha senhora.
Trago sua certidão de nascimento. Também tenho que lhe entregar umas
competências, para que a reconheça legalmente na Inglaterra, assim como
documentos valiosos que minha senhora deseja que ele tenha, a partir de
agora.
—Onde está sua mãe? — A pergunta de John era bastante lógica,
dadas às circunstâncias — Por que não está aqui com ela?
A menina permanecia em silêncio, pega à saia da donzela e sem
afastar os olhos do rosto dele.
—Tem de ajudá-la, não pode negar. Meu Deus, minha senhora não
sabe o que fazer ou a quem recorrer!
John a contemplou, atentamente. A angústia da moça era autêntica.
Via-a debater-se em muitas dúvidas.
—Diga-me como pode ajudá-la meu filho.
Glória vacilou, durante um minuto longo e pesado, mas, finalmente,
se decidiu; ao fim e ao cabo, lorde John Beresford era o avô da pequena
Branca.
—Minha senhora foi presa e declarada traidora à Coroa da Espanha.
Será executada em breve.
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John procurou uma cadeira e se sentou, de repente. O sobressalto o
deixara sem capacidade de reação.
Tentou pensar em todos os aspectos da situação. Andrew havia
concebido uma filha com uma mulher pertencente a uma das famílias mais
influentes do sul da Espanha. Agora, a mãe da pequena estava acusada de
traição, e, em Whitam Hall, se encontrava a menina mais formosa do
mundo, com uns parentes que não conhecia. Algo tinha sentido? Que
demônios ocorria? E por que motivo ele não sabia absolutamente nada?
—Por favor, comece desde o começo — pediu, com uma careta
perplexa.
Glória vacilou um instante, mas, finalmente, aceitou. Tomou
assento na poltrona que havia frente à pequena mesa. A menina a seguiu, e
ela a acomodou sobre seu colo.
John seguia pensando em seu filho Andrew, nas consequências do
que fizera. Perguntou-se quando, como e onde conhecera irmã do duque de
Fortaleza. Alonso de Lara era o homem mais vingativo que existia.
No vestíbulo, se ouviram umas risadas, e lhe pareceu ouvir a voz de
Andrew. Olhou a moça e a pequena, que seguia em seus braços e se
levantou rápido para sair ao encontro deles.
—Irei em busca de meu filho, por favor, espere aqui.
Glória fez um leve assentimento.
John fechou os olhos ante o desastre que se erguia. Se o que a
jovem dizia era certo, se Andrew tinha uma filha, essa noite ia rodar uma
cabeça e tinha um nome: Andrew Beresford.
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—Onde está seu irmão? — Arthur olhou para seu pai, que tinha o
rosto sério. Ainda não tirara a capa negra nem as luvas de pele, e o
mordomo esperava para recolhê-los.
—Não pude convencê-lo para que retornasse comigo. Segue em
Portsmouth, nos jardins do porto, desfrutando de uma opereta satírica.
John inspirou, profundamente.
—Boa noite, lorde Beresford. — A amável saudação do jovem
McMillan fez com que deixasse de olhar a seu filho para observar ao moço
que era o melhor amigo de Arthur, desde que ambos estudaram na
universidade.
—Ao ouvi-los rir, pensei que Andrew havia retornado — explicou.
—Estou convencido de que chegará logo — respondeu Arthur.
John se disse que seu filho estava muito equivocado. Apesar da
conversa mantida dois dias atrás com Andrew na biblioteca e de sua
ordem, nada mudara. O jovem seguia com suas farras noturnas e seus
excessos.
—Arthur, vemo-nos na próxima semana.
Este se voltou para seu amigo e lhe sorriu para despedi-lo.
—Saúde lady McMillan de minha parte.
—Assim o farei.
—Lorde Beresford, Arthur, boa noite.
O jovem saiu pela porta com celeridade, e o vestíbulo ficou,
repentinamente, silencioso. Arthur olhava seu pai com interesse, porque o
notava ausente.
—Aconteceu algo grave? — perguntou, com um brilho de
preocupação nas pupilas.
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John inspirou e cravou seus olhos azuis em Andrew. E se
perguntou, de novo, por que motivo o mais novo era tão crápula, libertino e
irresponsável.
—Não vai acreditar nisso, mal posso acreditá-lo eu.
Arthur elevou uma sobrancelha com interesse, seu pai falava de
forma ininteligível.
—Não o compreendo.
John tinha um brilho estranho no olhar e uma determinação no
semblante, que o fez semicerrar os olhos, para observá-lo melhor.
—Prepare sua bagagem, partimos para Madrid.
Arthur o olhou atônito.
—Partir para a Espanha? Agora?
John tinha uma ideia. Sabia o que tinha de fazer para endireitar ao
amalucado Andrew e não ia hesitar nem um instante em levá-lo a cabo.
—Tenho de ajudar alguém — disse seu pai — Uma pessoa
importante para a família foi declarada traidora à Coroa espanhola, e devo
me entrevistar com o embaixador inglês em Madrid, e inclusive com o
duque de Fortaleza, se for necessário.
—Refere-se a Alonso de Lara? — perguntou Arthur, absolutamente
atônito.
—Por isso, tem que me acompanhar, preciso que me assessore em
alguns assuntos. Há aspectos legais que teremos que arrumar de Madrid.
—Não posso ir à Espanha agora. É uma loucura — respondeu
Arthur.
—Tem que ajudar seu irmão.
—Christopher?
—Não, Andrew — esclareceu John.
Arthur entendia cada vez menos.
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—Como?
—Explicarei isso tudo pelo caminho. Agora, ordene a Marcus que
prepare a bagagem, eu me encarregarei de escrever umas cartas e de que
disponham o Diabo Negro para nossa partida. Tenho que dar indicações ao
serviço e fazer uma visita breve a Christopher, para que vigie, em minha
ausência, esse vadio que tem por irmão.
De repente, John soltou uma gargalhada que pegou Arthur de
surpresa.
—Pai, está-me preocupando. — E era certo.
Olhou-o no rosto e viu um olhar decidido nos olhos claros.
—Deus escutou minha prece — disse John, mas o jovem Beresford
seguia sem compreender nada — Na biblioteca, se encontra o que
endireitará o rumo e o destino do Andrew. Enfim, um pouco de coerência e
normalidade em sua vida.
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CAPÍTULO 3
O ruído das cortinas ao serem corridas com brutalidade o fez
levantar a cabeça do travesseiro e gemer, um segundo depois. Era como se
o golpeassem com inusitada fúria contra uma bigorna. Sentia a garganta
ressecada e um gosto amargo no paladar. Tinha de permanecer quieto, para
que o estômago não o martirizasse. A cerveja do porto era realmente má, e,
agora, pagava as consequências de havê-la bebido.
—Volte a correr a cortina e fecha a porta ou será um homem morto
— ordenou Andrew, com voz estrangulada.
Marcus, o mordomo de Whitam Hall, estava acostumado a esse tipo
de vocabulário por parte do caçula dos Beresford.
—Tem visita — foi à direta resposta do homem.
Ele bocejou, sonoramente.
—Imagino que poderá atendê-la meu pai ou, em sua falta, Arthur.
—Algo assim é do todo impossível, porque nem seu pai nem seu
irmão se encontram em Whitam, neste preciso momento.
32
Andrew amaldiçoou, em voz baixa.
—Que horas são?
—Faltam uns minutos para as oito.
—Faz apenas duas horas que me deitei! — bramou, zangado.
—Uma senhorita o aguarda, e seria uma descortesia muito grave
fazê-la esperar de forma desnecessária.
Ele voltou a soltar outra maldição. Não se sentia com forças para
receber ninguém.
—Que parta e retorne mais tarde!
—Isso é impossível senhor. É uma convidada muito especial. Seu
pai, lorde Beresford, deixou ordens explícitas sobre ela.
Andrew balbuciou de forma ininteligível. Parecia-lhe inaudito que
uma convidada se apresentasse na casa à uma hora tão inapropriada.
Marcus tirava os objetos de vestir do armário, sem dizer nada, tão
solene como sempre.
—Espero que o esforço valha a pena — disse ele, com voz
sonolenta.
—Posso lhe dizer que é uma moça preciosa — revelou, de repente,
o mordomo e, com essas palavras, avivou por completo seu interesse.
—Diz que é bonita? Como de formosa?
—A mais formosa que vi nunca, se me permitir isso.
—Confio em que não seja uma de minhas amantes despeitadas ou
uma bruxa enviada por meu pai para que me vigie, como vingança pessoal.
Pensou que seu pai era capaz de lhe enviar a uma matrona
desenquadrada, com tal de tirá-lo do leito. Quem diabos era aquela mulher,
para que ele tivesse de atendê-la a uma hora tão incomum da manhã?
—Duvido muito — respondeu o mordomo.
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—Que seja uma de meus amantes ou uma bruxa enviada por meu
pai para me vigiar?
—Rotundamente, a primeira questão, senhor.
Andrew acabou rindo. «Quem demônios em seu são julgamento
visita uma família respeitável às oito da manhã?», perguntou-se, ainda
meio adormecido, mas, de modo inconsciente, terminou de vestir uma
camisa branca e umas calças cinza.
Enrolou as mangas da camisa e prescindiu do lenço e o colete. O
rosto de Marcus refletiu de maneira bastante eloquente o que pensava de
seu traje desenvolto, mas ele estava desejando dar uma olhada na visita
para retornar à cama.
—Onde estão meu pai e meu irmão? — perguntou com interesse
genuíno.
—Lorde Beresford lhe deixou uma nota. ,
Andrew pensou que tudo era muito estranho. Seu pai não
acostumava sair da casa antes das dez da manhã, e por que motivo Arthur
se encontrava também ausente? Voltara para casa apenas um par de horas
antes que ele, e devia estar igual de esgotado.
Seguiu o mordomo pelo amplo corredor do segundo andar,
enquanto a cabeça zumbia; não pensava em beber uma cerveja mais nos
botequins do porto.
—Marcus, preciso de um café. — O homem lhe fez uma inclinação
de cabeça, ao tempo em que lhe sustentava a porta da sala de jantar, para
que entrasse — Desde quando se recebe as visitas na sala de jantar
familiar? — perguntou, completamente desconcertado.
Marcus se encolheu de ombros.
Andrew cruzou a soleira, mas a estadia estava vazia. Ali não havia
ninguém.
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—É uma brincadeira? — perguntou ao mordomo, que entrara justo
atrás dele. Marcus lhe assinalou o extremo da mesa, onde havia sentada
uma menina pequena.
Andrew cravou atônito os olhos nela.
Mal chegava à mesa, por esse motivo, tinha escapado a seu
escrutínio anterior. Pôs as mãos nos quadris e, interrogante, olhou para o
mordomo.
—O que significa isto? — perguntou, com voz controlada.
—A nota de seu pai, senhor. — Marcus lhe estendeu um envelope,
que ele se apressou a agarrar — Deseja seu café bem forte, como de
costume?
Andrew já não lhe respondeu. Tomou assento em frente da menina,
que o olhava com olhos sérios. Com a surpresa, se esqueceu da norma mais
elementar de todas: saudar, mas antes que pudesse abrir a boca, Marcus já
estava ao lado da criança com uma jarra cheia de chocolate quente.
—Senhorita Lara, deseja seu chocolate com leite? — A menina
olhou o mordomo e lhe fez uma ligeira inclinação com a cabeça, aceitando
— Os pães-doces estão deliciosos, acredito que gostará.
Andrew elevou uma sobrancelha, enquanto escutava o falatório de
Marcus. Em todos os anos que o conhecia, nunca o ouvira falar com tanta
candura com uma criança, e menos em um idioma que não fosse inglês, por
isso, concluiu que seu esforço merecia um aplauso.
—Senhorita Lara? — repetiu ele, em um perfeito espanhol, muito
interessado.
A menina cravou nele seus olhos azuis de uma forma tão intensa
que fez com que lhe encolhesse o estômago.
—Está muito longe de casa, não é?
A pequena seguia em silêncio.
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—Marcus — disse, de repente. O mordomo o olhou — que tragam
duas almofadas à senhorita Lara; mal a vejo a frente.
O homem fez uma inclinação de cabeça e partiu para cumprir o
encargo. Andrew rasgou o envelope para ler a nota, enquanto mexia o café
de sua xícara de forma mecânica.
O mordomo retornou com duas grandes almofadas. Levou-as junto
à menina e a levantou, para colocá-las sobre a cadeira. Logo, a sentou sobre
elas e lhe aproximou os pães-doces, para que lhe resultasse fácil pegá-los.
A pequena já levava um à boca, quando, de repente, se ouviu uma forte
exclamação e uma tosse seca.
Andrew engasgara com o primeiro gole de café, ao ler a nota de seu
pai. Seguia tossindo com dramalhões, por isso, Marcus se apressou a lhe
encher um copo com água.
—Más notícias? — perguntou o mordomo, com voz a tão seca
como seu rosto.
Andrew seguiu tossindo, sem afastar os olhos da menina, que
sustentava o pão-doce a meio caminho da boca.
—Pode acreditar que embarcaram ontem noite no Diabo Negro?
—É óbvio.
Deixou de olhar a menina, para elevar seu rosto para Marcus.
—Sabia?
—Lorde Beresford me deixou indicações, antes de sua partida —
respondeu o homem.
Andrew cada vez entendia menos.
Na nota, seu pai lhe explicava brevemente que era imperativo que
se ocupasse da pequena. Ele cravou de novo seus olhos nela, que o olhava
do outro extremo da mesa com imensa cautela; ainda não tinha provado o
pão-doce que sustentava entre seus dedinhos. Seu pai o deixava a cargo de
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uma menina da qual não sabia absolutamente nada. Simplesmente lhe dizia
que sua mãe não podia ocupar-se dela e que ele partia a Espanha com
Arthur para tentar resolver uma questão de vida ou morte. Retornariam ao
cabo de umas semanas como muito.
As indagações apareciam em sua mente, e o mal-estar de seu
estômago crescia a passos aumentados. Amaldiçoou a cerveja e as
empregadas do botequim do porto.
—Já pode dar a primeira mordida — disse, de repente.
A menina tomou suas palavras como uma ordem e, imediatamente,
levou o pão-doce à boca. Mastigou-o, lentamente, sem fazer ruído e sem
gestos exagerados, como era próprio em pirralhos de sua idade.
Andrew se dedicou a esquadrinhá-la com olho crítico.
Seu pai devia ter bons motivos para empreender uma viagem tão
repentina, mas se perguntou por que o deixou aos cuidados da pequena. Ele
não se acreditava capaz de uma ação de semelhante magnitude e, de novo,
se perguntou que assuntos devia resolver seu pai na Espanha.
O brilho de seus olhos azuis se empanou, durante uns instantes, ante
uma lembrança dolorosa. Fazia cinco anos que Andrew retornara de
Córdoba, e, em duas ocasiões, voltou para a cidade sulina para tentar
convencer a mulher de sua vida de que o aceitasse; mas ela não o recebera
nem quisera encontrar-se com ele, que, com essa fria negativa, recebeu o
maior golpe de sua vida. A única mulher que tinha amado de verdade o
tratara com pouca atenção, sem pensar em seus sentimentos, no muito que
a amava e necessitava.
Retornou a Inglaterra, mas já não pôde ser o mesmo de antes. Seu
pai lhe perguntou, em incontáveis ocasiões, o motivo de seu louco
comportamento como resultado de sua volta, mas ele não podia lhe revelar
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a profunda ferida que tratava de curar e que não podia esquecer: amar um
impossível.
Seria sempre um aviso de sua estupidez, de sua imaturidade e sua
loucura.
—Como se chama? — perguntou à menina, com voz suave.
Ela hesitou um instante. Logo, limpou os lábios com o guardanapo
dobrado, com um gesto tão sério e comedido que Andrew estreitou os
olhos, estranhando.
Comportava-se como uma perfeita dama, apesar de sua pouca
idade.
—Meu nome é Ro... rosa Ca... Catalina Branca de Lara —
gaguejou, ao pronunciá-lo, e estranhou, absolutamente. Por que punham
nas crianças nomes tão longos? — Mas me chamam de Branca.
Ao escutar o primeiro nome, o sangue lhe gelou nas veias durante
uns segundos. Andrew recordava-se perfeitamente de uma Rosa espanhola
cheia de espinhos, tantas, que uma das feridas que lhe provocara ainda
sangrava, e muito temia que não deixaria de afogar suas ilusões e
esperanças em um atoleiro de indiferença.
—Conheço um homem malvado que se chama Lara — disse, de
repente, e a menina abriu os olhos como pratos — Embora imagine que não
terá nada que ver com ele, não é?
—Espero que não trate de intimidá-la. — A voz de seu irmão às
suas costas o fez voltar à cabeça — Senhorita Lara, sou Christopher
Beresford.
Aproximou-se dela, tomou a mão infantil e a beijou com elegância.
A pequena fez um gesto com a cabeça tão régio, que Andrew se perguntou
se estaria acostumada a esse trato diferente masculino. Quando se precaveu
de que tinha a boca aberta de surpresa, fechou-a, morto de calor. Como era
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que seu irmão sabia o sobrenome da menina, se ele acabava de descobri-lo?
E, o mais surpreendente, que fazia em Whitam tão cedo?
—Marcus, eu também tomarei um café — disse ao mordomo.
Este saiu da sala de jantar familiar em absoluto silencio.
—Pai e Arthur partiram a Madrid — explicou Andrew a seu irmão
mais velho.
Christopher tomou assento ao lado da menina, que deixara sua taça
de chocolate para olhar com interesse o sorridente rosto masculino.
—E eu tenho que cuidar desta jovenzinha até sua volta. — As
palavras de Andrew tinham divulgado como uma queixa resignada.
Christopher agarrou a xícara de café que lhe deu Marcus.
—Um pouco de responsabilidade em sua vida não lhe virá mal —
espetou, de repente.
Andrew estalou a língua com chateio, ao escutá-lo. A palavra
responsabilidade estava engasgada fazia muito tempo.
—Como está minha cunhada? — perguntou a Christopher.
Os olhos de este brilharam.
—Imersa de cheio na decoração de nosso lar. — Andrew sorriu
pelo comentário — E me voltando louco, como sempre.
Andrew se animou, ao vislumbrar uma solução a seu problema.
—Poderia levar a senhorita Lara a sua casa. Ágata poderia ocupar-
se dela, até a volta de pai e de Arthur.
Christopher negou com a cabeça antes inclusive de que seu irmão
terminasse a frase.
—Disto não poderá escapar — disse, muito sério — Pai o designou
como protetor desta menininha, e penso em me assegurar de que cumpra
seu encargo à perfeição.
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—Uma mulher cuidaria dela muito melhor que eu — replicou ele,
com sinceridade.
—Isso é indiscutível, mas vê alguma mulher em Whitam Hall, salvo
as criadas? E admitirá que não podem deixar seu trabalho para ocupar do
seu.
Andrew amaldiçoou baixo.
—Contratarei uma babá para que se dela ocupe.
Christopher assentiu com a cabeça com gesto sério.
—Estou de acordo em que terá que procurar uma babá competente,
mas, até então, é sua responsabilidade.
—Tenho compromissos que atender.
—Falamos de farras, festas e duelos em metade da noite?
Andrew estreitou os olhos e o olhou, com aborrecimento.
—Os duelos são consequências não desejadas, mas lhe esclareço
que não é um delito desfrutar da vida.
Christopher piscou, assombrado pelo comentário de seu irmão.
—Andrew, você não desfruta da vida, devora-a! Mas de uma forma
errônea, e pai sofre muito cada vez que cabe a possibilidade de que o
matem em um desses duelos aos quais você adora assistir; e não como
mero espectador, mas sim como um participante ativo.
Ele inspirou fundo, não queria iniciar uma disputa com seu irmão
diante da menina.
—É preciosa — disse, de repente, Christopher.
Andrew devolveu sua atenção à pequena. A longa juba de cachos
negros era espetacular e contrastava belamente com a cor de seus olhos, de
um azul tão claro como um dia do verão. Tinha os lábios perfeitamente
desenhados e esboçavam um sorriso muito suave; recordaram-lhe as pétalas
de uma rosa a ponto de florescer.
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—Perguntou-me quem será sua mãe — disse, como para si mesmo.
—Indubitavelmente, deve ser uma mulher muito bela —respondeu
Christopher.
Andrew estava de acordo com sua apreciação. Uma menina tão
bonita devia ter uma mãe igual ou mais bela, se fosse possível.
—Não posso imaginar que seu pai não possa ocupar-se dela, de
protegê-la, que esteja de acordo com deixá-la aos cuidados de uns
completos desconhecidos.
Christopher pigarreou algo incômodo.
—Não me cabe a menor dúvida de que seu pai deve ser... — Calou
um momento, e Andrew se precaveu de que tinha na boca um tom
zombador — Como se diz em espanhol? Ah, sim, um irresponsável de
cuidado.
Ele o olhou ao perceber seu tom pedante. Christopher tinha nos
olhos um brilho malicioso que o desconcertou.
—Conhece seu pai? — Seu irmão arqueou uma sobrancelha, ao
ouvir a pergunta — Sabe algo que eu ignoro? Agradeceria toda a
informação que possa me dar.
—Só imagino como é. E penso que um homem em seu são
julgamento não permitiria que a esta preciosidade ocorresse nada mal.
Andrew estava de acordo. Disse:
—Possivelmente, esteja preso ou desaparecido... — Christopher
encolheu os ombros — E sinto muita curiosidade por saber o motivo da
repentina marcha de pai e de Arthur para ajudar à família desta criatura.
—Pai é um bom cristão — recordou Christopher — Agora tenho
que deixá-lo.
—Parte? — perguntou Andrew, atônito.
—Devo resolver uns assuntos em Devon antes das doze.
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—Eu gostaria de acompanhar você.
—Não pode. Sua tarefa é proteger a uma menor.
—Não é preciso que me recorde isso.
—Estarei vigiando você.
—Isso soa a ameaça.
Christopher já não respondeu. Olhou para a pequena, que se
mantinha em silêncio e sem mover-se, enquanto eles dois estiveram
conversando. Nenhum protesto, nenhuma queixa. Era uma menina
admirável.
—Quantos anos têm? — perguntou Christopher, de repente. Ela
levantou sua mãozinha e lhe mostrou quatro dedos — Meu filho estará
encantado de brincar com você, você gostaria? — A menina fez um gesto
afirmativo com a cabeça — Então, o trarei logo para que o conheça. — Um
segundo depois, agarrou-lhe a mão e a beijou com soma cortesia — A seus
pés, senhorita Lara.
—Dê saudações a minha cunhada e um beijo a meu sobrinho —
disse Andrew.
Christopher se voltou para ele com uma advertência em seus olhos
claros.
—Cuide dela ou terá que se ver comigo.
—Ameaça-me ou me adverte? — perguntou, aborrecido.
—Tome como quiser, mas não esqueça minhas palavras.
Depois de sua marcha, a sala de jantar ficou, repentinamente,
silenciosa.
A menina piscava, sem afastar seus olhinhos do rosto de Andrew.
Tinha as mãos recolhidas no colo e os ombros erguidos. Sua postura, séria
e decidida, fez com que ele a olhasse estranhando ainda mais. Por que se
mostrava tão comedida?
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—O que você gostaria de fazer? — perguntou, com curiosidade.
Por sua parte, adoraria deitar-se de novo na cama e dormir até a noite, mas
algo assim era completamente impossível dadas às circunstâncias —
Cavalgar? Brincar? Dormir?
A última pergunta a tinha formulado com um cômico tom de
esperança.
—Quero ir com mamãe — respondeu ela, com um fio de voz.
A tristeza de seu tom cravou ao Andrew diretamente no coração. O
que podia dizer para tranquilizá-la?
—Lamento, mas agora é impossível.
Os olhos infantis se encheram de lágrimas, que a pequena conteve.
Alarmou-o o controle que exercia a menina sobre seus sentimentos.
—Embora prometa que logo a verá.
Ela mordeu o lábio inferior, como se meditasse suas palavras.
—Começamos desde o começo? — perguntou Andrew, com um
sorriso e um segundo depois, apresentou-se com suma cortesia — Meu
nome é Andrew Beresford e prometo cuidar de você, até que possa se
reunir de novo com mamãe.
Depois de escutar seu nome, Branca assentiu com a cabeça e lhe
sorriu em resposta. O brilho cândido de seus olhinhos azuis o fez enrugar a
fronte com estranheza.
—Falaram-lhe que mim?
De novo, a cabeça dela se inclinou assentindo. Andrew supôs que
teria sido seu pai, antes de ir, e o agradecia. Quão último precisava era
cuidar de uma menina assustadiça e desconfiada.
—Gosta de sair a cavalgar? — Ele precisava montar para limpar-se.
Tinha a mente feita um matagal.
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A pequena não respondeu em seguida, mas, uns momentos depois,
fez um gesto afirmativo com a cabeça.
—Vamos, então, antes que o parque se encha de carruagens.
Andrew se levantou da cadeira e se encaminhou diretamente para a
menina. Estendeu-lhe os braços, para comprovar se os aceitava. Branca lhe
estendeu também os seus, e ele a agarrou para sair ao vestíbulo.
Seu pai poderia ter muitas queixas sobre ele, mas Andrew
indubitavelmente sabia como entreter uma criança, e pensava em fazê-lo,
imediatamente.
Ajudou-a a vestir uma capa vermelha e a atou ao pescoço com um
grande laço. Logo, lhe pôs o chapéu e meteu umas pequenas luvas no bolso
da jaqueta de montar, se por acaso ela necessitava delas mais tarde. Já nas
quadras, subiu-a sem esforço em uma dócil montaria. Tinha escolhido uma
égua mansa para o passeio. Quão último pretendia era assustá-la com um
animal brioso.
A menina se segurou ao pomo da sela e passou a perna por cima,
para cavalgar estilo amazona.
—Não vai montar de lado! — O tom de Andrew soou assustado —
Pode cair.
—Mamãe diz que as damas devem montar assim — explicou a
menina, com voz suave.
Embora ceceasse, pronunciava claramente todas as palavras.
—Quantos anos têm? — perguntou, de repente.
Na sala de jantar, não vira a resposta a essa mesma pergunta
formulada por Christopher. As largas costas de seu irmão a abafaram,
quando lhe mostrava os dedinhos.
Branca fez exatamente o mesmo, levantou a mão e lhe mostrou
quatro dedos.
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—Incrível! — exclamou ele, com um amplo sorriso — É muito
pequena para se expressar tão bem.
Ela piscou, sem compreender. Andrew olhou sua capa vermelha e
as botas combinando. Parecia um quadro pintado pelo Miguel Anjo.
—Logo, completarei cinco.
—Sabe conduzir um cavalo? — A menina negou com sua
cabecinha, e vários cachos ondularam no compasso de seu movimento —
Sempre montou de lado? — insistiu.
Ela não respondeu, mas Andrew tampouco esperava uma resposta.
Segurou as rédeas, apoiou o pé no estribo e, com um forte impulso, montou
justo atrás da pequena. Colocou-a bem sobre a cadeira e empreendeu um
trote ligeiro.
No último momento decidiu não levá-la até o parque de
Portsmouth, dariam um passeio pelos arredores do Whitam Hall e
retornariam para casa.
Com uma mão, segurou-a pela pequena cintura, e a menina apoiou
as costas no estômago dele e começou a rir, enquanto a égua iniciava um
galope controlado pelas peritas mãos de Andrew.
45
CAPÍTULO 4
Tivera várias entrevistas e rechaçou todas as candidatas.
O motivo principal era que não falavam espanhol. Andrew
necessitava de uma babá que pudesse comunicar-se com a pequena em sua
própria língua, que lhe inspirasse confiança e ficasse com ela à noite,
enquanto ele cumpria com seus diversos compromissos, que de momento
não podia atender.
Sentado na poltrona, contemplou Branca, deitada de barriga para
baixo sobre o tapete, perto da lareira. Completamente absorta, pintava os
desenhos de um caderno que lhe dera. Ainda estranhava que não sentisse
nenhuma desconfiança dele. Aceitou sua companhia com uma facilidade
assombrosa, e o surpreendia gratamente que nunca se queixasse.
Intrigavam-no seus prolongados silêncios. Não havia conhecido nenhuma
criança tão séria, comedida e formal. Sabia que Branca estava na mesma
habitação que ele porque, de vez em quando, desviava os olhos do livro que
estava lendo para a pequena figura deitada no chão.
Sem se dar conta, Andrew sorriu.
Branca era a antítese de um menino alegre e despreocupado. Agora
que a conhecia melhor, dava-se perfeita conta da falta de espontaneidade e
do excesso de contenção que advertia em sua personalidade severa. Grave
de atitude e comportamento. Tinham-na ensinado a ser assim do berço, e se
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perguntou que pais educavam de maneira tão rígida uma menina tão
formosa.
Como se pressentisse que a observavam, Branca deixou de pintar
no caderno e cravou os olhos em Andrew. E lhe sorriu de uma forma tão
encantadora e doce, que lhe deu um tombo o coração.
As crianças de olhar tenro eram sua perdição!
Seguia refletindo sobre a viagem de seu pai a Espanha com seu
irmão sem lhe dizer nada, mas, com seu habitual bom humor, optou por
despreocupar-se. Deduziu que John pensara nele para cuidar da menina
porque não se confiava no caráter sério e seco de Arthur. Andrew, em
troca, adorava crianças e desfrutava muitíssimo, ao escutar suas línguas de
trapo, suas ocorrências graciosas, carentes de superficialidade, e, por esse
motivo, não se sentia muito zangado com seu pai por deixá-lo de babá.
Arthur teria organizado um motim, mas ele desfrutava com os pirralhos.
Adorava seus sobrinhos e estava acostumado a tratar com eles.
—Gostaria de uns pães-doces quentes? — perguntou. Branca o
olhou fixamente e assentiu, com expressão solene — Então, pedirei a
Marcus que nos prepare isso. Voltarei logo.
Branca olhou para Andrew, enquanto saía da biblioteca para dar as
pertinentes ordens ao mordomo, e, ao cabo de uns segundos, concentrou-se
de novo no desenho que estava pintando.
—Olá. — A saudação infantil a sobressaltou.
—Olá — correspondeu, com amabilidade.
Contemplou o menino loiro que se sentava a seu lado com olhos
curiosos. Não o ouviu entrar na sala.
O pequeno Christopher olhava os pés nus dela estranhando, um
segundo depois, olhou seus próprios pés, calçados com botas de couro.
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—Tem frio? — Branca negou com a cabeça — Onde estão? —
perguntou ele, assinalando com seu dedo indicador os pequenos pés.
—Meus zapatos? — perguntou, com interesse.
Christopher assentiu.
—Dizem-se sapatos — a corrigiu, dando-se importância, como se
ela não soubesse pronunciar bem as palavras.
—Zapatos — voltou a dizer Branca, extremamente intrigada com o
menino que se interessava por seus pés nus.
—Sa-pa-to — insistiu ele, muito sério.
Ela riu com olhos alegres; era a primeira criança que via em muito
tempo. Desceu os olhos, do rosto simpático à camisa de um vermelho
chamativo. Tinha bordados uns patos de cor branca que lhe chamaram
poderosamente a atenção.
—Eu gosto de sua camisa — disse, de repente. Ele baixou seus
olhos azuis para olhar — Quer pintar aqui? — convidou-o com um sorriso,
lhe assinalando o caderno. Chris lhe fez um gesto afirmativo — Quer a cor
asul? — ofereceu-lhe, com amabilidade.
—Azul — a voltou a corrigir ele, com a testa franzida.
—Asul — repetiu Branca, com olhos brilhantes.
Da porta, Christopher escutava a conversa de ambos os meninos.
Ela tinha o sotaque próprio da Andaluzia, algo completamente diferente do
que estava acostumado seu filho, que falava espanhol com acento francês.
Os dois voltaram à cabeça para a porta de entrada à biblioteca.
—Apresentou-se com correção? — perguntou Christopher a seu
filho. O pequeno assentiu com a cabeça — Recorda que, em presença de
uma dama, deve se mostrar educado.
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Andrew e seu irmão mais velho tomaram assento no amplo sofá de
pele. Christopher afastou um livro e uma estatueta da mesa auxiliar, para
que Marcus depositasse nela a bandeja com o chá e os pães-doces.
—Por que não veio Ágata? — perguntou Andrew, estranhando a
ausência de sua cunhada.
—Minha casa é um campo de batalha. Está decorando uma das
habitações para o bebê. Já sabe que os quartos estão virtualmente vazios,
salvo o nosso e a do pequeno Christopher, e precisamente esta tarde veio a
Pheasant House um de quão restauradores contratamos.
—Pai ainda não se acostumou a sua ausência. Segue afirmando que
Whitam Hall é muito grande. Aqui estariam muito bem. Sentimos
saudades, ao menos, eu sinto falta desse diabinho.
Christopher soube que seu irmão se referia ao pequeno Chris. E, ao
voltar à cabeça para olhar a seu filho, viu que ambos os meninos estavam
pintando no caderno que Branca sustentava em seu colo.
—Já falamos isso com pai em seu momento. Ágata esteve de
acordo em fazer realidade meu sonho de construir Pheasant House. —
Christopher calou um momento e contemplou seu irmão, que olhava com
doçura os dois pequenos sentados no tapete. Tinha o mesmo olhar
malicioso de quando era menino e planejava alguma travessura — É muito
boa, verdade?
Andrew fez um gesto afirmativo.
—E acabo de me precaver da falta que lhe faz estar com outras
crianças — respondeu Andrew.
—Encontrei uma babá para a senhorita Lara, virá na próxima
semana.
As sobrancelhas de Andrew se arquearam.
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—Eu entrevistei hoje um total de quatro, mas nenhuma falava
espanhol. Tive que descartá-las, apesar dos bons créditos que tinham.
O rosto de Andrew mostrava a impotência que havia sentido.
—Clare, a senhora Grant, está encantada de cuidar de Branca, até
que a mãe da pequena possa encarregar-se dela — disse Christopher.
—Fala espanhol? — Seu irmão assentiu com a cabeça — Como
encontrou uma babá tão depressa?
—É a que se ocupa de seu sobrinho. Ágata acredita que aqui, em
Whitam Hall, é mais necessária que em nosso lar. Ela ainda se pode ocupar
do Chris. Mas a senhora Grant deve resolver uma questão familiar em
Devon, antes de vir a Whitam: calculamos que poderá fazê-lo no começo
da próxima semana.
O rosto de Andrew mostrou o imenso alívio que sentia.
—Ainda me pergunto por que pai me deixou aos cuidados de uma
menina tão pequena e da que o ignoramos absolutamente tudo.
—Isso não é certo — o corrigiu Christopher — Pai conhece os pais
de Branca. Estão em um grave apuro e pretende ajudá-los, por isso teve que
ir a Espanha de forma tão repentina. Ali precisa do conselho e o
assessoramento de Arthur em alguns assuntos legais, e, por isso, deixou
para você o cuidado da pequena.
—Tão grave é a situação? — Andrew estava, realmente,
interessado.
Seu irmão decidiu sair pela tangente; não pensava em responder a
sua pergunta.
—O conde Falcon espera nossa assistência ao jantar que dará na
próxima sexta-feira em Selby House.
—Não esqueci. Embora ignorasse que assistiria — respondeu
Andrew.
50
—Vou representar nosso pai.
Essas palavras incomodaram Andrew.
—Sou capaz de substituí-lo perfeitamente em qualquer ato,
enquanto esteja ausente — objetou, com voz seca.
Christopher não esperava que seu irmão se ofendesse.
—Pai está muito magoado por sua atitude destes últimos meses.
Andrew teve o bom tino de mostrar-se perturbado, ao ouvir sua
recriminação, e admitiu para si que tinha toda a razão, embora decidisse
mudar de assunto.
—São crianças muito bonitas. — Seu irmão esteve completamente
de acordo — Pode imaginar um compromisso futuro entre o pequeno Chris
e a senhorita Lara?
Christopher abriu a boca para dizer algo, mas a voltou a fechar em
seguida. Indubitavelmente, Andrew falava em brincadeira, mas não achou
nem pingo de graça no comentário.
—A última coisa que desejaria neste mundo — respondeu, ao fim
— é ter o pai dessa criatura como sogro. Acredito que terminaria
estrangulando-o com minhas próprias mãos.
Seu irmão piscou ,ao notar seu tom imperativo.
—Bom, para te ser franco, de estar em seu lugar, pensaria
exatamente igual a você. Um homem que não é capaz de proteger e cuidar
o que é seu não merece nenhum respeito — respondeu, mas Christopher
não pôde dizer nada mais, porque Marcus entrou na biblioteca nesse
preciso momento. Levava uma enorme bandeja de prata com diferentes
pratos cheios de doces. Deixou-a com suavidade sobre a mesinha auxiliar.
—Obrigado, Marcus — disse Christopher.
O mordomo fez a ambos os homens uma inclinação de cabeça,
antes de partir.
51
—Venham, meninos, é hora de lanchar.
O pequeno Chris foi muito mais rápido que Branca, que primeiro
vestiu as meias três quartos e, depois, os sapatos com uma cerimônia que
quase conseguia deixar Andrew irritado. Tudo nela era meticuloso,
consciencioso, até um ponto exasperante. Moveu-se com passos medidos,
suaves, depositou o caderno e os lápis de cores em cima da enorme
escrivaninha e, depois, se encaminhou para onde estavam os três sentados.
Quando chegou à poltrona vazia do lado de Christopher, sentou-se, e
arrumou as possíveis rugas da saia de seu vestido azul, antes de olhar os
dois homens que a contemplavam estupefatos.
—É sempre assim tão cuidadosa em tudo? — Não precisou que
Andrew respondesse, porque seu olhar foi bastante eloquente — Acredito
que é bom para você — acrescentou Christopher — inclusive, é possível
que lhe ensine boas maneiras e comportamento.
Nesta ocasião, Andrew bufou, muito ofendido.
Ambos os irmãos falavam em inglês.
—Cada coisa que faz, como vestir a capa ou os sapatos, limpar-se
com o guardanapo, pentear o cabelo, é de uma meticulosidade irritante.
Branca observava o pequeno Chris, que tinha levado dois pães-
doces à boca, ao mesmo tempo, e os mastigava com a boca aberta. O
açúcar caía sobre a calça e os sapatos, sem que se preocupasse nem um
pouco.
—Senhorita Lara, deseja um pão-doce quente? — perguntou
Andrew, com suma cortesia. A pequena assentiu com a cabeça e aceitou o
prato que lhe estendia. Assegurou-se primeiro de que todos tivessem um
doce na mão, antes de agarrar o seu e dar a primeira mordida. Logo, o
mastigou lentamente, sem fazer ruído. Agarrou o guardanapo que lhe
52
ofereceu Christopher e limpou alguns grãos de açúcar do lábio superior e o
deixou depois perfeitamente dobrado sobre seu colo.
—Se não o vir, não acredito! — exclamou Christopher, atônito.
—E isto não é nada, teria que vê-la no almoço — respondeu
Andrew — Estou convencido de que poderia cortar um camarão-rosa com
faca e garfo em segundos.
—Verdadeiramente assombroso!
Andrew arqueou uma sobrancelha, ao ouvir a exclamação de seu
irmão, e teve vontade de provocá-lo.
Com um sorriso avesso, espetou-lhe:
—Não entendo por que se surpreende tanto, é tão meticulosa quanto
você. Nem imagina o quanto recorda você. Se tivesse uma filha, não
pareceria mais, acredite.
Essa vez, que piscou com desconcerto foi o próprio Christopher,
porque seu irmão nem imaginava o perto que estava da verdade. Branca
não era sua filha, mas, sim, sua sobrinha. E, de repente, soltou uma sonora
gargalhada, ante o absurdo que lhe parecia tudo. Ambos os meninos o
olharam, sem compreender sua hilaridade, mas se somaram à alegria com
seus respectivos sorrisos.
Andrew lhes serviu chocolate quente e doce na xícara. O pequeno
Chris o bebeu de um gole, mas Branca tomou colherada a colherada, sem
dizer nada, olhando com seus grandes olhos o menino que sorvia de sua
taça com rapidez.
—A meu sobrinho não viriam mal alguns exemplos de maneiras —
prosseguiu Andrew — Possivelmente, teria que passar um pouco mais de
tempo com Branca.
Para ouvir seu nome, a menina cravou as pupilas no rosto de
Andrew, que lhe piscou o olho, com gesto cúmplice.
53
—Não duvido que a presença da senhorita Lara seja muito
importante na vida dos Beresford. Nada voltará a ser igual na família,
posso assegurá-lo.
Andrew não soube por que as palavras de seu irmão lhe pareceram
um hieróglifo que implicava diretamente a ele. Christopher tinha um olhar
do mais estranho e se atreveria a dizer que perverso; como se soubesse algo
que ele ignorava e desfrutasse com isso.
O pequeno Chris decidiu que já haviam terminado de lanchar.
Deixou sua xícara vazia em cima da bandeja e tomou a Branca da
mão para conduzi-la à zona de jogos. Andrew a animou com um sorriso
para que acompanhasse seu sobrinho em sua iniciativa. Alegrava-se
enormemente da boa relação de ambos, mas, depois, se perguntou se não
seria prejudicial para a pequena afeiçoar-se a eles, se ia retornar logo a seu
lar.
Os passeios a cavalo matutinos se converteram em um costume
diário. Branca já controlava a pequena montaria que Andrew lhe fornecera.
Encontrar um pônei para ela não fora difícil, a dificuldade vinha porque
não queria montar escarranchado; seguia empenhada em fazê-lo ao estilo
amazona, e, finalmente, ele optou por capitular. O pônei era o animal mais
manso que encontrara, e embora, ao princípio, a Branca custasse um pouco
para dominá-lo, já era quase uma perita. A babá, Clare, ainda não tinha
retornado de Devon, mas ele confiava em que o fizesse muito em breve.
Andrew deteve sua montaria perto da lacuna, ao lado de Crimson
Hill, a casa onde viviam sua irmã Aurora e seu cunhado. Atou o pônei
junto ao garanhão no poste do cais e ajudou Branca a desmontar; ela alisou
a saia do vestido, assim que pôs os pés no chão.
54
—Não está enrugada — disse ele, pela enésima vez.
A pequena piscou e, depois, lhe ofereceu um autêntico sorriso, dos
que podiam derreter o coração mais duro. Para Andrew, era cada vez mais
difícil mostrar-se firme, e cedia a suas demandas com uma brandura que
não surpreendia ninguém do serviço de Whitam Hall.
—Mamãe o faz sempre — respondeu, com voz suave.
Andrew suspirou, cansado de suas respostas repetitivas. A mãe da
menina devia ser absolutamente insuportável, se estivesse sempre pendente
de manter seu traje impecável.
—Tem quase cinco anos — replicou, com voz controlada — tem
direito a enrugar a roupa, a manchá-la, em uma palavra: a se despentear.
Branca o olhou com olhos como pratos.
—Dê... dê... — Era incapaz de pronunciar a palavra.
Andrew a ajudou com um sorriso de orelha a orelha.
—Dê — repetiu, sílaba a sílaba.
—Mamãe não se dê... dê... — Tentava, mas era muito difícil para
ela.
—Sabe o que? — disse ele. A menina o olhava com atenção —
Chegou a hora de que aprenda uma valiosa lição com a qual vai desfrutar
muito.
Andrew se encaminhou à borda do lago com Branca seguindo-o de
perto. Quando as botas dele tocaram a água, inclinou-se e agarrou um
punhado de barro. Sem prévio aviso, lançou-o sobre a roupa da pequena,
que olhou estupefata a bolota de lodo que descendia por seu peito e lhe
manchava, com uma esteira marrom, a camisa branca. Deu um passo atrás
completamente espantada. Andrew voltou para a carga e lhe lançou outra
bola de barro, mas, nesta ocasião, muito maior e escorregadia, que lhe baeu
em pleno queixo. A massa pegajosa escorreu pelo pescoço de Branca, que
55
começou a soluçar assustada. Seus pequenos ombros começaram a tremer,
e Andrew se deteve, ao ver seu rosto triste.
Maldita fora! Outra menina começaria a brincar com ele e a lhe
devolver o mesmo trato.
—Branca, não se assuste, é só um jogo.
Tinha os bonitos olhos alagados em lágrimas, lágrimas que
começaram a descender profusamente por suas bochechas.
—Vamos, preciosa, não tem que preocupar-se pela roupa. Você não
gostaria de jogar barro em mim?
Ela negou várias vezes com ímpeto, e Andrew amaldiçoou sua falta
de perspectiva.
Brincara tanto com seus sobrinhos de manchar uns aos outros que
não teve em conta os sentimentos da pequena a respeito. Enxaguou a mão
cheia de barro na água e a secou na calça. A menina o observou, com certo
receio.
—Bom, como não quer brincar nos manchar a roupa, o que acha se
formos comer bagos? Conheço um lugar onde crescem gordas e suculentas.
Branca continuou em silêncio, e Andrew suspirou ante a decepção
que se levou por seu ato impulsivo. Agora, tinha de ganhar sua confiança
de novo. Por que diabos gostava tão pouco de sujar-se? Divertir-se como
qualquer outra criança?
—Verá que ricas estão.
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CAPÍTULO 5
Andrew olhou para a pequena com olhos brilhantes. Apoiou as mãos
nos estreitos quadris e franziu os lábios em uma careta apreciativa.
—Dê uma volta para que a veja melhor — pediu, amavelmente.
Branca obedeceu, em silêncio, e girou sobre si mesma não uma, a não ser
duas vezes — Está espetacular.
Ela inclinou a cabeça para olhar as botas brilhantes, gostava
muitíssimo. Ia vestida exatamente igual a Andrew: botas negras de cano
alto, calça cinza escuro e colete listrado de vermelho e cinza. O único
diferencial era a camisa branca; a dela levava séries de renda no peitilho e
nos punhos.
—Quer pôr a jaqueta, antes de sair? — Branca negou, ante sua
sugestão — A capa então? — O sorriso infantil o desarmou.
Estava como louca com sua larga capa negra, como a da Andrew.
Sentia-se entusiasmada de vestir igual a ele.
—Pareço uma menina? — perguntou, um pouco preocupada.
Andrew a olhou, com olhos semicerrados, mas risonhos.
—Com essa preciosa cabeleira, não só parece uma menina, também
uma princesa, e, inclusive, uma bruxinha feiticeira. — E era certo.
As grossas mechas negras descendiam sobre seus ombros e
embelezavam seu rosto realçando seu contorno.
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—Compadeço a seu pai. O dia que em cumpra os dezesseis anos,
não voltará a pregar olho, à noite.
Branca elevou suas escuras sobrancelhas, surpresa, não
compreendia ao todo suas palavras, mas, quando lhe piscou um olho com
gesto cúmplice, sorriu em resposta.
Andrew se sentia muito satisfeito com a mudança que se produziu
na menina. Agora que vestia de forma mais cômoda, poderia montar
escarranchado no pônei, sem preocupar-se com as rugas do vestido. Esses
gestos femininos em uma pessoazinha tão pequena o enervavam, mas tinha
encontrado a solução perfeita: vesti-la com calças.
Soltou um suspiro carregado de otimismo, conseguira o mais difícil,
que seu alfaiate fizesse uma cópia de seu traje de montar para a menina.
Embora sua petição suscitasse muitos olhares reprovadores por parte dos
empregados da casa, inclusive Marcus, ele acreditava que o esforço valia a
pena e, agora, que a via embelezada assim, o resultado era magnífico, e se
sentia muito satisfeito.
Branca estava adorável!
—Nunca diga a seu pai que lhe permiti usar calças, porque me
pegará com um tiro.
Ela o olhou, com olhos brilhantes, e Andrew franziu o cenho,
pensativo.
—Pode acreditar que, a estas alturas, ainda não sei como se chama
seu pai? — A menina seguiu olhando-o, em silêncio — Suponho que não
tem importância, mas eu gostaria de saber mais coisas de você. Por
exemplo, onde vive? Vai à escola?
Branca seguia de pé em meio da biblioteca, observando o rosto
sério de Andrew. Não compreendia a mudança de humor que se operou
nele.
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—Seu acento é do sul, mas não sei localizá-lo.
Ela encolheu os ombros, lhe dando a entender que ignorava o
significado da palavra « localizar».
—Como disse que se chama sua mamãe?
—Rosa María Sofía — respondeu, calmamente e com o olhar
orgulhoso, porque sabia pronunciar, sem equivocar-se, o nome completo de
sua mãe.
—E seu papai? — inquiriu, extremamente interessado.
A menina o olhou, fixamente; Andrew não perdia detalhe de cada
expressão de seu rosto.
Mas a pequena não pôde lhe responder devido à inoportuna entrada
de Christopher na biblioteca, seguida pelo mordomo. Quando olhou o traje
de Branca, apertou os lábios, com aborrecimento, convertendo-os em uma
linha. Ou era assombro?, perguntou-se Andrew.
—É carnaval? — perguntou seu irmão.
—Pensávamos em sair a cavalgar.
—Não a vestiu, adequadamente, para montar. Esquece que é uma
senhorita.
Branca olhava para Andrew e Christopher, alternativamente,
seguindo a conversa de ambos com rosto preocupado. Gostava de muito da
roupa que vestia e temia que a fizessem trocar por outra.
—Está aprendendo a montar um pônei e, por isso, deve vestir-se o
mais cômoda possível.
—Não é correto, Andrew — respondeu Christopher — A mãe dela
não gostaria, acredite.
Essas palavras aborreceram Andrew.
—Acaso vê sua mãe em Whitam?
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Christopher ia responder, mas pensou melhor e manteve a boca
fechada.
Andrew pensou que seu irmão se mostrava muito suspicaz com a
pequena.
—Estou tentando ensiná-la a montar, e, para obtê-lo, Branca deve
vestir cômoda, não é certo, preciosa? — Andrew fazia a elucidação e a
pergunta em espanhol.
A menina fez vários decididos assentimentos de cabeça.
—Precisa, urgentemente, de uma babá — disse Christopher.
Andrew se propôs a não zangar-se, embora essas palavras lhe
caíssem como um jarro de água fria.
—Branca, vá à cozinha e diga a Marcus que já pode avisar Simon
que prepare as montarias.
Ela saiu a toda velocidade da biblioteca, para cumprir seu encargo.
Estava claro que adorava agradá-lo. Quando os dois irmãos ficaram
a sós, Andrew olhou para Christopher com rosto sério e severidade.
—Rogo que omita comentários negativos na presença de Branca.
Christopher piscou, ao perceber seu aborrecimento. Tinha-o pego
de surpresa, mas não se preocupou: a pequena não entendia o idioma no
que conversavam normalmente.
—Pai fez mal a deixando a seu cuidado — espetou, de repente.
—Estou completamente de acordo.
—Pensa em assistir amanhã ao jantar em Selby House?
Informaram-me que não rechaçou o convite.
—Isso é porque havia pensado em ir.
—Não pode deixar a menina sozinha.
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—Marcus cuidará dela por umas horas em minha ausência. Além
disso, Whitam Hall está cheia de serventes, de criadas. Dificilmente, pode
dizer que estará sozinha.
—Deveria declinar o convite.
Andrew sabia que seu irmão temia que se fosse depois da farra, mas
não era tão insensato para contemplar essa possibilidade.
—Veio a Whitam somente por esse motivo, para me fazer desistir?
—Ágata deseja que Branca e você vão jantar no próximo sábado
em Pheasant House.
Andrew o pensou por apenas dois segundos.
—Não temos nada mais de interessante que fazer, podem contar
conosco.
—Seu entusiasmo me intimida.
—Sou um espelho que reflete o seu.
—Está muito suscetível.
Andrew calou-se, de repente. Acabava de começar uma discussão
com seu irmão mais velho e não sabia qual era realmente o motivo; pensou
que era devido a seu confinamento na casa.
Estava acostumado a lidar com pirralhos, sua irmã Aurora tinha seis
filhos com os quais ele estava acostumado a passar muitas tardes, quando
estavam em Crimson Hill, mas estar vários dias com suas noites a cargo de
uma menina pequena decidiu que havia o tornado muito suspicaz.
—Se não poder convencê-lo para que desista, parto-me.
Branca entrou na biblioteca, nesse preciso momento, e, por esse
motivo, Andrew não respondeu como acreditou que seu irmão merecia,
com seu mesmo tom seco.
—Nos veremos esta noite, Senhorita Lara, até logo. — E
Christopher partiu de Whitam Hall, que ficou, de repente, silencioso.
61
Ambos, adulto e menina, olhavam o oco da porta vazio.
—Quantas bolachas comeu? — Andrew fez a pergunta, sem olhar
para Branca.
—Sinco — respondeu ela e limpou as mãos imediatamente, embora
não se precavesse de que tinha as comissuras da boca cheias de migalhas, e
que, por isso, a tinha descoberto Andrew.
—Come muitas bolachas com o passar do dia — advertiu, com voz
tranquila.
—Estão deliciosas — respondeu, justificando-se — São de mexas.
Andrew, agora sim, baixou os olhos e os cravou no rosto dela; ao
ver sua expressão de deleite, não pôde ocultar um sorriso.
—Adoro as bolachas de ameixa. Vamos pegar mais?
Branca agarrou a mão que lhe estendia e saíram ao vestíbulo, onde
pegaram as capas e as luvas de montar. Logo, retornaram sobre seus passos
e se dirigiram para a parte traseira da casa, onde estavam situados os
estábulos, mas, antes, fizeram uma parada na cozinha, para aprovisionar-se
de bolachas de ameixa.
A pequena Branca se resfriou. Andrew pensou que a jaqueta fora a
causa. Nas tardes anteriores, a temperatura foi suave e cálida, mas ele
esquecera quão caprichoso era o clima inglês para alguém não acostumado,
e, essa tarde, o vento gelado do Atlântico açoitou o condado de Portsmouth
com uma força insólita. A aula de equitação tinha durado muito pouco,
Andrew decidiu retornar à casa e pedir um chocolate bem quente para a
pequena. Logo após entrar no pátio e jardim traseiro, Branca começou a
espirrar. Ao lhe tocar o rosto, precaveu-se, preocupado, de que estava um
pouco mais quente que o normal. Um par de horas depois, a febre
62
aumentou, e ele decidiu chamar o médico da família. Este a examinou
minuciosamente, mas o diagnóstico não era preocupante: um simples
resfriado que curaria em um par de dias no máximo.
Agora, plantado aos pés do leito, observava a pequena dormindo.
Tinha o rosto avermelhado e respirava com certa dificuldade. Andrew se
massageou a base do pescoço, onde lhe concentrava a tensão. Que Branca
se houvesse posto doente, estando sob sua responsabilidade, o fazia sentir
remorsos. Estava tão obcecado por obter que passasse bem, que esquecera a
regra mais elementar de todas: cada criança é um mundo, e o que a umas
não afetava, a outras sim.
Viu-a mover-se no leito com um gemido, a febre estava acostumada
a causar dores musculares e mal-estar geral. Aproximou-se da cabeceira e a
cobriu até o pescoço com a colcha. Voltou a lhe tocar a fronte, e embora a
febre baixasse algo graças ao tônico que lhe ministrara o médico, seguia
sendo considerável.
Arrastou a poltrona que estava na parede do fundo e a colocou ao
lado da mesinha auxiliar, muito perto do leito. Saiu logo em busca de um
livro e, quando encontrou um título que lhe pareceu interessante, retornou
ao quarto de Branca. Soltou o lenço do pescoço, enrolou as mangas da
camisa, e desabotoou os botões do colete.
Esperava-o uma larga noite.
Ágata manteve uma azeda discussão com seu marido sobre a
pequena Branca. Parecia-lhe amoral que mantivesse Andrew na ignorância
sobre sua paternidade, mas seu marido foi cortante a respeito. Tinha-lhe
explicado de forma firme, embora com infinita paciência, que John
Beresford queria assim por motivos que logo explicaria à família.
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Ele aceitara sem uma réplica, porque seu pai estranha vez errava,
quando tomava uma decisão. Ela decidiu deixar de visitar Whitam Hall por
medo de não ser capaz de calar a verdade, e Christopher aplaudira sua
decisão. Visitava seu irmão várias vezes, para certificar-se de que tudo
discorria com normalidade e sem contratempos, mas Ágata morria de
vontade de conhecer a menina e, finalmente, optou por deixar-se vencer
pela tentação.
Nesse momento, cruzava a cerca branca que dividia a propriedade
de Whitam Hall da adjacente, Crimson Hill, pertencente ao duque de Arun,
grande amigo do marquês de Whitam. O pequeno Christopher ria e fazia
perguntas sobre os diversos animais que encontravam pelo caminho.
Lesmas, gafanhoto e demais espécies.
—Aqui vive Branca — disse o menino, de repente, quando
cruzaram a grade de ferro que dava acesso ao caminho da casa. Ágata
pedira ao condutor da carruagem familiar que os deixasse perto, pois
gostava de caminhar um pouco. O molesto vento do dia anterior tinha
amainado por completo, e a manhã estava espetacular.
—Sim, Chris, aqui vive a prima Branca.
—É bonita, mas não sabe falar, não sabe dizer sapato. — Ela olhou a
seu filho, estranhando — Chama zapato, mas eu a ensinei a dizê-lo bem.
—E conseguiu? — perguntou, interessada.
O pirralho negou com sua loira cabeça.
—Fala de uma forma estranha. Algumas palavras não entendo.
Ágata sorriu. Seu filho era muito pequeno para compreender que as
crianças criadas na Andaluzia tinham uma forma particular de pronunciar
algumas palavras ou letras.
—Terá muito tempo para ensiná-la a falar direito.
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Justo quando terminava de dizer a última palavra, chegaram à porta
principal. Tocou a aldrava com suavidade, e, uns momentos depois, Marcus
abriu com o rosto sério, como era costume nele.
—Bom dia, Marcus! — saudou-o ela — Despertou a pequena
Branca? — O mordomo negou com a cabeça — Lorde Beresford,
possivelmente? — Outro gesto idêntico seguiu-se ao primeiro.
—Temo que estejam dormindo — respondeu, com a voz séria.
—Então, nós despertaremos a bela adormecida e a ajudaremos, não
é, Chris?
O menino assentiu, entusiasmado. Gostava muito desse conto,
porque sua mãe o narrava como se ele fosse o príncipe que resgatava a
princesa.
—Mas não penso em lhe dar um beijo para despertá-la — replicou,
com uma careta de asco.
Ágata sorriu, ao ver sua expressão.
—Acredito que não será necessário.
—Sigam-me, por favor — indicou o mordomo.
Mãe e filho subiram a escada em silêncio, atrás de Marcus. Quando
chegaram ao quarto de Branca, o mordomo levantou a mão para chamar,
mas Ágata o deteve.
—Nós os despertaremos, muito obrigado — disse, com voz suave.
—Ordeno que preparem dois talheres mais para o café da manhã?
Ela olhou a seu filho, que assentiu com entusiasmo em que pese a já
ter tomado o café da manhã. Adorava os pães-doces que preparava a
cozinheira de Whitam.
—Desceremos em alguns minutos.
Ambos olharam como Marcus partia. Ágata agarrou o trinco da
porta e o acionou para abri-la. A estadia estava cálida e tenuemente
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iluminada, porque não tinham deslocado as cortinas grosas de noite, só as
cortininhas. Quando voltou os olhos para o leito, a surpresa a deixou
pasma.
Andrew adormecera junto à menina!
Levava as calças, a camisa e o colete, embora tirasse as botas de
montar, que tinha deixado atiradas aos pés do leito. Dormia em cima da
colcha, e seus braços rodeavam a cintura da pequena, que estava virada
para ele com a cabeça descansando em seu pescoço. A respiração regular
de Andrew movia, levemente, algumas mechas do cabelo negro dela.
Era uma imagem preciosa, única.
—Tio, tio! — exclamou o pequeno Chris, e Ágata não chegou a
tempo de deter sua carreira para o leito, antes que se atirasse em cima de
Andrew, que despertou sobressaltado. Quão mesmo Branca.
Ágata levou a mão à boca, para afogar uma risada. Nesse momento,
seu cunhado tinha a mesma expressão atônita que sua filha.
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CAPÍTULO 6
Ágata se ocupou de ajudar a assear-se e vestir Branca, antes de
descer à sala de jantar familiar. A menina era um verdadeiro encanto. Doce,
submissa, e com um olhar tão parecido com o de Andrew, que se
perguntou, insistentemente, como era possível que este não se precaveu
ainda da enorme semelhança entre ambos. Quando a ouviu falar com
aquele acento tão particular, Ágata soube que era cordovês e não sevilhano,
como supunham todos. Ela o perdera, porque viveu muitos anos na França
e os últimos na Inglaterra, mas ouvi-lo de novo lhe agitou uma fibra de seu
ser até o ponto de sobressaltá-la de nostalgia.
Agora, os três esperavam a chegada de Andrew, que aceitara a
inesperada visita como era normal nele: com alegria e senso de humor. Não
havia um homem no mundo mais afável, carinhoso e simpático que seu
cunhado. Era excepcional, e, por isso, se sentia aborrecida pelo engano de
todos, incluída ela mesma.
Inspirou, profundamente, para tentar controlar os batimentos de seu
coração. Sentia-se emocionada, mas também inquieta. Nem John nem
Christopher tinham em conta a reação de Andrew, quando se inteirasse da
verdade. Contavam com seu bom caráter e sua maneira pacífica de levar as
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coisas, mas podia dar-lhes uma desagradável surpresa, reagindo como não
esperavam.
Olhou para Branca, que estava sentada sobre duas enormes
almofadas com os quais chegava bastante bem à mesa para poder comer
com comodidade. Seu filho Chris sempre ficava de joelhos sobre o assento,
quando não estava em casa, com sua cadeira especial mais alta do que o
normal, mas ela já deixara de insistir que se sentasse de forma correta,
quando fossem visitar a casa do avô.
—Diga a minha mamãe como diz sapato — pediu, de repente,
Chris.
Branca piscou surpreendida pela inesperada pergunta.
—Por quê? — perguntou, com um pouco de receio.
—Porque tem um acento encantador — respondeu Ágata, no lugar
de seu filho — O acento cordovês é precioso. — A menina mostrou um
cândido sorriso, ao escutá-la — Como se chama sua casa? Porque imagino
que tem nome — perguntou, logo com voz serena.
—Palácio Zújar — respondeu, com prontidão.
—Um nome muito bonito. A minha em Córdoba se chama Casa
Lucena — disse Ágata — Era a casa de meu avô.
Branca meditou suas palavras como se as tivesse compreendido.
—É minha prima? — perguntou, de repente, Chris — Porque minha
mamãe diz que é minha prima. Filha de meu tio, mas tenho muitos tios, e,
por isso, não sei qual é o seu papai.
—Só tem três tios — o corrigiu sua mãe — e um deles, o tio Justin,
não é irmão de papai, a não ser o marido de sua tia Aurora.
Chris estreitou os olhos sério, porque Ágata acabava de desmontar
o castelo familiar que tinha construído em sua cabeça.
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—Então, minha mamãe é sua tia? — perguntou Branca ao menino,
pensativa; igual ao pequeno Chris, fazia suposições sobre o assunto da
família.
—Como se chama sua mamãe? — perguntou ele, com voz aguda.
—Rosa María Sofía — respondeu ,com simplicidade, mas de cor.
—Por que tem um nome tão longo? — insistiu o pequeno, com suas
perguntas.
Ágata decidiu intervir.
—Porque as pessoas importantes estão acostumadas a levar os
nomes de seus avós e de seus papais. Não são longos, a não ser vários
nomes de uma vez.
Ambos os meninos ficaram meditando a resposta.
—É importante? — perguntou Chris, então, com voz confusa, e
sopesando se essa possibilidade era boa.
—Não sei — respondeu a menina, com sinceridade, ao tempo em
que fazia uma careta com sua boquinha.
—Branca é sobrinha de um duque e neta de um marquês —
esclareceu Ágata. Os olhos infantis de ambos se cravaram nela — Isso a
coloca em uma posição muito importante — recalcou.
—Então, seu pai é um rei ou um príncipe?
Ágata tinha vontade de terminar com as insistentes pergunta de seu
filho, mas, quando um tema lhe chamava a atenção, Chris se voltava
incansável.
—Meu papai é um... — Branca calou-se por um momento, tentando
recordar a palavra que ouvira dias atrás — Ex... Excên... Trico —
conseguiu balbuciar. E sorriu por seu lucro, porque era uma palavra muito
difícil.
Chris estourou em uma gargalhada, ao escutá-la.
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—Onde ouviu essa palavra? — perguntou Ágata, escandalizada.
Branca assinalou Chris com um dedo.
—Seu papai o disse a meu papai.
Ágata deixou de respirar.
Virgem Santa! A menina sabia que Andrew era seu pai? Como
diabos sabia? E, o mais preocupante, por que não havia dito nada? Tinha de
indagar isso, imediatamente. Mas a razão principal do assunto estava a
ponto de entrar na sala de jantar e se sentia relutante a tentá-lo, embora não
pôde com a curiosidade.
—Branca, preciosa — disse — responde a uma pergunta. — A
menina a olhou, solene — Conhece o nome de seu papai? Sabe quem é?
Os formosos olhos azuis se iluminaram durante uma fração de
segundo, e, a seguir fez, um gesto afirmativo com a cabeça.
—Conhece o nome de seu pai? — insistiu.
—Minha mamãe me fez aprendê-lo.
—Disse-lhe isso como um segredo? — Branca assentiu, com um
sorriso — Mas sabe o que é um segredo, pequena? — perguntou-lhe Ágata,
com um fio de voz, e, dessa vez, a menina a olhou confusa.
—Se prometer uma coisa, não pode contá-la nem dizê-la a ninguém
— disse, com um sussurro — e eu o prometi muitas vezes.
Ágata fechou os olhos completamente surpresa. Branca era uma
menina. Como podia guardar uma informação tão importante? Ia dizer algo
mais, mas Andrew escolheu esse preciso momento para entrar na sala de
jantar familiar, que ficou, de repente, silenciosa. Tinha o cabelo úmido pelo
banho e cheirava a sabão de feno.
Quando observou a atitude pensativa de sua cunhada e seu
semblante perturbado, perguntou-se o que teria acontecido em sua
ausência, mas decidiu não perguntar. Marcus entrou atrás dele, levava uma
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bandeja que depositou no aparador onde estava o resto das bandejas
tampadas. Um momento depois, serviu chocolate aos dois meninos e
deixou perto de ambos um prato com pães-doces recém-feitos.
Andrew encheu uma xícara com chá preto para sua cunhada,
acrescentou-lhe um pouco de leite e um pouco de açúcar. Ágata se
emocionou que fosse tão serviçal e atento. Não lhe importava
absolutamente em fazer o trabalho do mordomo. Conseguir que as pessoas
se sentissem a gosto a seu lado era algo inato nele.
—Manchou-se de asúcar — disse Branca a Chris e lhe passou seu
guardanapo, para que limpasse a boca.
Ele ignorou seu amável gesto e limpou a boca com o dorso da mão.
Ágata suspirou com alívio, porque pensou que as crianças se esqueceram
do tema.
—Minha mamãe diga-se: «Aquele não agradece ao diabo se
parece» — repôs Branca.
Ágata abriu a boca, surpresa, e Andrew olhou a menina com
inusitada atenção. Tinha tomado assento e ia beber de sua xícara de café,
mas a deixou suspensa no ar, a meio caminho da boca. O único alheio ao
comentário de Branca era o pequeno Chris, que rechaçara com total
indiferença o guardanapo oferecido um momento antes.
—Desculpe-se, Chris — o admoestou sua mãe. Ele a olhou,
enquanto devorava outro pão-doce quente — Muito amavelmente, ofereceu
seu guardanapo para se limpar, tem que lhe corresponder com um
agradecimento.
Andrew olhou, fixamente, o rosto da pequena, que dava pequenas
dentadas a seu pão-doce sem afastar os olhos de Chris. O dito que
mencionara havia lhe trazido uma lembrança que o confundiu, porque era o
mesmo que seu pai repetia até não poder mais. E, de repente, começou a
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olhá-la com olho crítico, com atenção incisiva, cortante. Tentando penetrar
em sua própria alma. Sentia-se engolido por uma espessa nuvem que não
podia ver nem ouvir, mas, sim, sentir a fria umidade que lhe penetrava até
os ossos. E, então, todas as perguntas que tinha de haver-se feito desde o
começo mesmo martelaram dentro de seu cérebro de forma brutal,
desenquadrando-o. E, como se o destino quisesse transtorná-lo ainda mais,
Branca deu um sorriso torto, quando o pão-doce escorreu pelos dedos de
Chris, e ao fazê-lo, lhe formou uma covinha na bochecha que o deixou
desencaixado. Fechou os olhos e engoliu, de repente, uma saliva espessa.
Tinha estado cego!
—Andrew, o que ocorre? — A voz de Ágata soou alarmada, mas
ele não pôde lhe responder. Ficou mudo, com as cordas vocais duras.
—Desculpem-me — disse, ao fim, depois de um longo silêncio,
incômodo e inesperado.
Levantou-se de sua cadeira com muita rapidez.
—Ágata, pode cuidar de Branca até que retorne?
Ela lhe fez um gesto de assentimento mal perceptível com a cabeça,
e ele saiu pela porta precipitadamente. Somente havia tomado um café.
Esteve virtualmente todo o dia fora de Whitam Hall, por isso,
quando voltou para sua casa, sua cunhada se foi, havia tempo, embora
tivesse dado instruções ao serviço para que cuidassem da pequena em sua
ausência e até que ele retornasse.
Andrew entregou a Marcus a capa, as luvas e o chapéu.
—Onde está a menina?
—No salão, diante da lareira. Simon está lhe ensinando a jogar
pôquer, apesar de minha manifesta opinião em contra.
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Andrew não disse nada. Foi direto ao salão, abriu rapidamente a
porta, e procurou com os olhos a pequena figura, mas não a viu logo,
porque estava sentada na poltrona que ficava de costas à porta.
—Branca? — A menina mostrou a cabecinha pela lateral da
poltrona — Tem que se preparar, vamos a uma reunião. — Simon se
levantara, quando Andrew fez sua aparição na estadia — Prepare a
carruagem, Simon, a senhorita Lara e eu temos uma entrevista em Selby
Cross.
O servente assentiu silencioso com a cabeça e se foi com passo
ligeiro.
—Tem um vestido bonito para um jantar importante? — Branca
piscou, interessada — Acompanharei você a escolher um.
Quando saíram pela porta em direção ao vestíbulo, deram-se de
cara com Marcus, que lhe levava uma bandeja com um café quente, mas
Andrew rechaçou a bebida. Sentia muita urgência.
O mordomo os contemplou ambos subirem a escada para o andar de
acima, onde estavam os quartos.
—Tenho um bonito — disse Branca, com um sorriso.
Andrew lhe acariciou os cachos do cabelo com ternura.
—Estou convencido de que será especial.
E não se equivocou.
Quando a ajudou a procurar no grande armário, a pequena lhe
indicou um vestido guardado entre tecidos de seda. Tinha um corpete
ajustado de um rico veludo azul, e com decote redondo com renda, coberto
com um lenço branco de linho muito fino. As mangas eram largas no
ombro, embora logo se ajustassem até o punho. Branca procurou uma rede
para cabelo para a cabeça e um avental branco, combinando com o lenço.
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Andrew deixou o bonito objeto em cima do leito e, depois, se voltou para
ela para lhe dar indicações.
—Agora, quando chegar Emma — que era a donzela que se
ocupava da habitação e a roupa da pequena — ajudará você a se vestir e se
pentear. Eu esperarei no salão. Será rápida? — Branca assentiu com sua
pequena cabecinha — Bem, assim que esteja preparada, partiremos. —
Emma chamou com os nódulos à porta. Andrew lhe deu permissão para
entrar e, logo, lhe disse que preparasse à menina. Um momento depois, saiu
do quarto com pressa.
Quando Branca entrou no salão, uma hora mais tarde, Andrew já a
estava esperando. Ia vestido a rigor, e ela o olhou, enquanto ele a olhava a
sua vez, surpreso. Era evidente que nunca vira uma menina vestida de
forma tão peculiar.
—Está preciosa — disse, com um amplo sorriso.
Os bordados da saia eram de cor branca, como a rede para cabelo e
os bordados da saia. Emma levava nas mãos a capa negra, perfeitamente
dobrada.
— Não prefere sua capa de veludo vermelho? — perguntou ele,
estranhando. Branca negou de forma repetida — A negra é para montar —
particularizou Andrew, para convencê-la.
A capa de veludo vermelho era muito mais apropriada para o
vestido que levava.
—Eu gosto muito desta — respondeu ela, com ingenuidade.
—Então, levará a negra. — calou-se um momento e, logo, se voltou
para Emma — Não é preciso que nos esperem acordados. A senhorita Lara
e eu retornaremos um pouco tarde.
A donzela, de rosto afável, sorriu.
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Colocou em Branca a capa, enquanto Andrew pegava a sua das
mãos de Marcus. Depois, os dois se dirigiram para o vestíbulo e a
carruagem que os esperava na porta.
CAPÍTULO 7
Esperava com impaciência a chegada de Christopher, enquanto
bebia uma taça de champanha no grande salão da mansão Selby. Nesse
momento, lorde Falcon conversava com ele sobre temas políticos que a
Andrew não interessavam absolutamente, mas não o demonstrou. Antes
tinha respondido a todas as perguntas sobre a ausência de seu pai, mas se
cansara de esperar a chegada de seu irmão. Quando, pela manhã, saiu
precipitadamente da sala de jantar de Whitam, foi em busca de Christopher
para lhe perguntar sobre o assunto que lhe queimava as vísceras, mas este
havia partido muito cedo para de Londres e não previa retornar até última
hora da tarde. Suas intenções de falar com ele se esfumaram, pois, como
um sopro de ar.
Andrew empregara várias horas em enviar telegramas; um a sua
irmã Aurora, em Granada, outro à granja Azhara, e um mais ao porto de
Paus, onde supôs que estaria amarrado o navio de seu pai. Tinha dedicado
parte da tarde a procurar uma babá em Portsmouth e Southampton, embora
sem êxito. Todas as agências necessitavam de vários dias para encontrar
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uma adequada. Finalmente, Andrew se deu por vencido e, em um arranque
impulsivo, decidiu levar a menina a Selby House com ele.
Agora, Branca estava brincando em uma das estadias infantis da
planta superior da mansão, com uma donzela que o conde Falcon teve a
amabilidade de lhe atribuir. Andrew sabia que Branca não ia ser a única
menina na casa.
E, de repente, viu Christopher, que acabava de entrar no salão e se
dispunha a passar entre os convidados para acompanhar Ágata a uma das
poltronas dispostas para as damas. Como se o pressentisse, seu irmão se
voltou para ele e o olhou com olhos semicerrados. Saudou-o com a cabeça
e seguiu falando com sua esposa e com uma das irmãs de lorde Falcon.
Depois de uns momentos que, para Andrew, pareceram eternos,
Christopher se despediu das damas e começou a atravessar o salão em
direção a ele, que tinha apurado já a quarta taça de champanha frio.
—Lorde Falcon, Andrew — saudou Christopher, com cortesia.
—Lorde Beresford — correspondeu o anfitrião com um sorriso e a
mão estendida. Ele se apressou a estreitá-la, mas estranhou a falta de
resposta de seu irmão, que tinha nos olhos um brilho estranho, como não o
tivesse visto nunca.
—Acreditava que finalmente não viria ao jantar — disse, com tom
recriminatório.
Andrew agarrou outra taça de champanhe de uma das bandejas que
passeava pelo salão um dos lacaios da mansão.
—Preciso falar com você — informou Andrew, de repente, com
voz áspera.
—Deixarei vocês para que conversem tranquilamente — se
apressou a dizer lorde Falcon e, lhes fazendo uma ligeira inclinação de
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cabeça, girou sobre seus calcanhares e se encaminhou para o outro extremo
da sala.
Christopher se fixou no traje de seu irmão; levava o laço do pescoço
algo solto, e ia um pouco despenteado, como se a urgência por chegar a
Selby o impedisse de arrumar-se como correspondia.
—Agora? Deseja falar quando está a ponto de começar o jantar?
—Acompanhe-me — ordenou Andrew, com a voz mais seca ainda.
Ele decidiu não contrariá-lo e o seguiu com passo rápido a caminho
de um dos gabinetes situado no outro extremo do amplo vestíbulo.
Ágata contemplou a saída impetuosa de ambos os irmãos e, sem
querer, franziu a fronte. Ficou, momentaneamente, pensativa, porque algo
ocorrera pela manhã que tinha provocado esse troco em Andrew, mas ela
ignorava o que podia ser. Seu cunhado não ouvira a conversa que manteve
com os meninos, mas o olhar furioso de seus olhos azuis era muito
eloquente. Pediu desculpas a lady Falcon e se levantou para seguir Andrew
e seu marido e tentar averiguar o que ocorria.
No pequeno despacho, Andrew olhava fixamente para seu irmão
mais velho com olhos brilhantes e os lábios apertados, até o ponto de
convertê-los em uma linha. Inspirou profundamente várias vezes e afiançou
os pés no chão, enquanto cruzava os braços contra o duro torso, sem se
importar que a casaca se enrugasse.
Christopher o via conter-se com muita dificuldade. Seu rosto
mostrava claramente que estava furioso, embora sua atitude comedida o
preocupasse ainda mais. Um homem em semelhante estado poderia
estourar a qualquer momento de forma ímpar e perigosa.
—A pequena Branca é uma Beresford? — perguntou Andrew, de
repente, com voz grave.
Christopher estreitou os olhos, ao escutá-lo.
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Perguntou-se como ou quando o teria descoberto e, ao momento,
amaldiçoou a visita de Ágata e o pequeno Chris a Whitam pela manhã;
devia ser a maneira como seu irmão descobrira o segredo. Sopesou negá-lo,
porque o prometeu ao pai de ambos, mas já não tinha sentido guardar
silêncio.
—Sim — respondeu, sinceramente.
Andrew tragou violentamente e soltou um abrupto suspiro.
—De pai? — perguntou, com olhos chamejantes — Branca é filha
de nosso pai?
Christopher estava atônito. Por que seu irmão pensava que a
pequena era filha do pai de ambos? Não tinha sentido.
Andrew se sentia abatido.
Quando viu o sorriso do meio lado e a covinha da bochecha infantil,
a dúvida o golpeou: tinha o mesmo sorriso e a mesma covinha de seu pai,
mas precisava da confirmação do Christopher. Sentia-se magoado de que
lhe escondessem o parentesco, por que motivo seu pai agiria dessa forma?
Incomodava-o que seu irmão mais velho estivesse a par da notícia e o
mantivessem à margem. Era parte da família, maldito fosse! Mas, nesse
momento, se sentia como um emparelha banido. Agora, compreendia a
rápida partida de seu pai e de seu irmão Arthur para a Espanha.
Todo o quebra-cabeças encaixava.
Christopher contemplou as variadas emoções que cruzaram o rosto
de seu irmão caçula e se compadeceu dele.
—É sua — espetou, de repente.
Andrew deu um passo para trás, como se o golpeassem no
estômago. Havia dito dele? Tinha que estar equivocado.
—Não é minha! Não é possível! — exclamou sentido — Não
conheço a mãe da pequena.
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—É sua, Andrew, vi a certidão de nascimento; pai me mostrou na
madrugada que partiu para a Espanha.
Um pensamento atravessou seu cérebro à velocidade do raio. Se seu
pai se desligou da menina, por que fora a Espanha para ajudar à mãe? E, o
que mais o intrigava, quem era e onde a tinha conhecido? Não escutava a
seu irmão mais velho, estava muito ocupado aceitando e desprezando
hipótese.
—Pai não pensa em assumir sua paternidade? — perguntou,
estupefato — Não posso acreditar, do pai não. É o homem mais
responsável que conheço, embora ainda esteja atônito de nosso parentesco
com a pequena. Descobri-lo foi surpreendente, mas não graças a você, não
é, irmão? — recriminou-o, magoado.
Christopher soltou um longo e profundo suspiro.
—Branca é sua filha. Não cabe nenhuma dúvida. Sua e da irmã do
duque de Fortaleza.
«O vingativo duque sevilhano?», perguntou-se Andrew, confuso,
mas seguia sem compreender por que Christopher insistia no mesmo. Ele
não conhecia a irmã do duque de Fortaleza. Nunca estivera em Sevilha! Ia
negar de novo, quando uma voz feminina do corredor o silenciou.
—Como se chamava? — A pergunta, formulada em voz baixa por
Ágata, fez com que ambos os irmãos se voltassem para ela. Estava de pé na
soleira da porta, como se não se atrevesse a cruzá-la — Como se chamava a
mulher que conheceu em Córdoba?
Andrew apertou a mandíbula com força. Nunca contou a sua
família dos sentimentos que despertara uma moça humilde que tinha
conhecido em Hornachuelos. Ignorava para aonde queria conduzi-lo sua
cunhada com essa pergunta, mas decidiu dizer a verdade.
—Rosa de Guzmán — respondeu, quase em um sussurro.
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Ágata suspeitara desde o começo. O acento da menina, parecido
com a moça que ela conheceu na fazenda de seu avô.
—A irmã do duque de Fortaleza se chama Rosa María Sofía de
Lara e Guzmán. — O rosto de Andrew se decompôs — Não sabia? É uma
preciosa mulher de cabelo negro e rosto sereno. Christopher e eu a
conhecemos na fazenda de meu avô faz seis anos, recorda?
Seu marido afirmou com a cabeça, sem afastar os olhos de seu
irmão.
O coração de Andrew deixou de pulsar durante uns segundos,
tentando assimilar a notícia. Rosa, sua Rosa era irmã do duque? Tinha-o
enganado! Tinha-lhe mentido! Por quê? Estava tão concentrado em seus
pensamentos que não se precaveu do envelope que Christopher lhe
estendia. Continuava tentando encontrar um sentido para tudo aquilo, mas
sem conseguir. A pequena era sua filha! Impossível! Ele não merecia um
presente tão maravilhoso, não fizera nada para merecê-lo, salvo amar a sua
mãe de uma forma louca, sem medida nem controle. E com a mesma
intensidade que a amara, a odiara por sua negativa a acompanhá-lo a
Inglaterra...
Seu rosto mostrou de maneira clara e contundente as emoções que a
revelação lhe produzia. Caos absoluto. Dor dilaceradora e um profundo
sentimento de perda. Ágata e Christopher se sentiram sobressaltados, ao
contemplá-lo, porque os olhos do jovem brilhavam, tentando assimilar a
dura revelação.
—É uma carta da senhorita Lara para você. — Andrew piscou
várias vezes, mas sem mover-se do lugar — Estive tentado a lhe entregar
isso em várias ocasiões, mas pai me aconselhou que esperasse até sua volta.
Andrew não fez ameaça de pegar o envelope, simplesmente olhou
para seu irmão com uma decepção tão profunda no olhar, que conseguiu
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com que Christopher baixasse os olhos com certa confusão; com isso, não
pôde preparar-se para o murro que recebeu a seguir.
Não pôde agarrar-se a nada e caiu para trás com estrépito. Ágata já
corria para ele para tentar segurá-lo.
—Andrew, Por Deus, não! — suplicou a seu cunhado —
Christopher não tem culpa.
Ele já segurava seu irmão pelo peitilho para voltar a golpeá-lo, mas,
depois de um instante, baixou o punho e soltou o tecido. Logo, agarrou o
envelope, que saíra disparado pelo impacto, dobrou-o e o guardou no bolso
interior da casaca.
Christopher se levantou, ao tempo em que passava o dorso da mão
pelo lábio machucado. Olhou o sangue e cravou suas pupilas em seu irmão.
—Não merecia isso, Christopher — disse este — Por quê? Maldito
seja! — espetou-lhe, amargamente.
Ágata se havia interposto entre ambos, acreditando que Andrew
voltaria a golpear Christopher, mas a ira que tinha embargado o caçula dos
Beresford partiu tão rápido como chegou: como a exalação de um suspiro.
—Foi uma decisão do pai, não minha.
—E por que partiu com Arthur a Espanha? O que me escondem?
Tenho direito de saber!
—Leia a carta — aconselhou Christopher, mas ele não queria fazê-
lo.
Andrew estava furioso, seu irmão teve a carta de Rosa todos
aqueles dias e não lhe havia dito nada. A escondeu! Parecia-lhe
inconcebível, mas se a pequena estava em Portsmouth e a mãe não, devia
ser por um motivo muito poderoso, e ele se sentia resistente saber. Não
podia arriscar-se a descobrir que Rosa já não existia. Que algo horrível lhe
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acontecera. Por isso, quando escutou as seguintes palavras de Christopher,
sentiu uma violenta sacudida, porque seus piores temores se confirmavam.
—Pai me disse que foi presa e declarada traidora à Coroa da
Espanha.
Andrew abriu a boca, mas a voltou a fechar em seguida. Percebeu
como o ar ficava retido na garganta e se sentia incapaz de empurrá-lo para
os pulmões. Teve que inspirar várias vezes para obter que descesse; uns
segundos depois, seu peito se dilatou para receber o ansiado sopro de
oxigênio.
«Traição à Coroa espanhola? Isso significa a forca!», pensou, com o
coração acelerado, mas não pôde responder a seu irmão, porque lorde
Falcon entrou no pequeno gabinete com ímpeto e com o semblante
preocupado. Piscou várias vezes, como se hesitasse em falar.
—Lorde Beresford — começou — a pequena Branca desapareceu.
Andrew sentiu um assobio horrível nos ouvidos. Retrocedeu
lentamente até topar com o quadril na borda da mesa. Posou a palma da
mão na cálida madeira de mogno, enquanto levava a outra ao peito, porque
lhe custava respirar. Em questão de minutos, havia descoberto que tinha
uma filha, que a mulher que amava com loucura estava condenada a morte,
e agora, agora...
Ágata foi até a escrivaninha para agarrá-lo pelo braço, pois viu que
tinha empalidecido por completo. Christopher se fez com o controle da
situação imediatamente.
—Pode ser um engano, lorde Falcon? — perguntou, com voz
calma, apesar das circunstâncias.
Por que diabos Andrew levara pequena Branca ao jantar?
82
—A donzela está angustiada, diz que a acompanhou ao banho, e
que, ao comprovar sua tardança em sair, entrou em procurá-la, mas já não
estava.
—Como é possível que tenha desaparecido? — trovejou a voz de
Andrew — Como pode perder uma menina em um quarto de banho?
Lorde Falcon ficou tão vermelho como o sangue.
—Gladys não se precaveu de que a tinha levado a um quarto de
banho que tem duas portas enfrentadas; pode-se entrar de dois corredores
distintos. Tenho grande parte do serviço procurando-a por toda a casa.
Andrew não esperou nenhuma explicação mais. Saiu do gabinete
em direção ao vestíbulo e a escada imperial que subia ao andar superior. A
música do salão lhe parecia muito com um horrível grito que o
incomodava, profundamente, e seu coração martelava uma única ladainha:
«Tenho de encontrá-la. Tenho de encontrá-la».
Christopher reuniu os homens que estavam procurando a menina,
mas fazê-lo em meio de uma festa com mais de quinhentos convidados era
pouco menos que uma loucura. Ágata também participava da busca.
Registraram o segundo andar, os jardins traseiros, o porão e as cavalariças,
mas Selby House era uma casa muito grande com inumeráveis esconderijos
para uma menina tão pequena como Branca.
Andrew notava o coração nas têmporas, e, à medida que o tempo
transcorria sem encontrar à menina, sua angústia aumentava a uma
velocidade vertiginosa. Inclusive os convidados se precaveram de que
acontecia algo estranho, porque o jantar fora atrasado com uma breve
explicação. Via criados e donzelas ir e vir apressados pela casa, o que lhes
causou uma apreensão justificada.
83
Andrew tropeçou com sua cunhada nos jardins. Ágata estava
acalorada e ofegante, seu embaraço a impedia de seguir o ritmo de outros,
mas o tentava.
Parecia-lhe uma brincadeira macabra. Justo quando Andrew
descobrira que tinha uma filha, perdia-a. Viu-o mexer no cabelo com
impaciência, amaldiçoar e jurar. Desatou o nó do lenço e desabotoado o
colete; tinha a aparência de um homem desesperado.
—Vamos encontrá-la, Andrew — disse.
E como se Deus tivesse escutado suas palavras, pelo atalho que
conduzia ao prado ouviram falar com dois meninos que vinham para eles
caminhando despreocupados, tão absortos um no outro que não se
precaveram dos dois adultos que os estavam olhando. Branca estava
acompanhada de um garoto alguns anos mais velho que ela.
Andrew se fixou em que a pequena levava nos braços um
cachorrinho de pelo negro que lhe mordia as rendas do vestido. O alívio foi
tão intenso que, inclusive, sentiu um leve enjoo. Fechou as pálpebras para
conter a emoção dilaceradora que o sacudia.
—Branca! — exclamou com voz firme.
Ambos os meninos deixaram de olhar o cão, para cravar os olhos
nos dois adultos que os observavam com aborrecimento.
—Fomos ver uns cachorrinhos — explicou Branca, com um tímido
sorriso — Verdade que é presioso? — Andrew contemplou o cão mais feio
que já vira. De orelhas enormes e focinho úmido.
E, de repente, notou um detalhe tão importante que se chamou a si
mesmo de estúpido uma infinidade de vezes. Ela jamais se dirigiu a ele por
seu nome, e, então, soube a razão. Recordou, perfeitamente, o brilho de
seus olhos infantis na manhã em que ele se apresentou com seu nome
completo. Sempre soube quem era!
84
Sentia-se tão ridiculamente exposto, que olhou para outro lado,
enquanto inspirava fundo.
—Posso ficar com ele — perguntou-lhe a menina.
Andrew cravou nela seus olhos azuis e, ao vê-la com aquele sorriso
malicioso e o olhar lisonjeador, sentiu-se desolado. Fizera-o passar uns
momentos horríveis. De uma agonia tão estremecedora, que desejou apagar
o sorriso que esboçavam seus bonitos lábios.
—Deveria pedir a seu pai. Está de acordo? — Branca piscou
confusa, ao escutá-lo, porque seu tom era um pouco áspero.
—Andrew! — exclamou Ágata, surpreendida pela resposta.
—Estou tão furioso, que se remoo a língua possivelmente contrairei
raiva — alfinetou ele, amargamente.
—Ela não tem culpa — disse conciliadora.
«É certo», pensou Andrew.
A culpa de tudo o que sentia nesse preciso momento era de uma
mulher de cabelo negro que havia o tornado completamente louco. De
repente, e para surpresa de Ágata e do menino que acompanhava Branca,
ficou de cócoras e abraçou a pequena com força, com um caos anímico
mesclado de cólera, impotência e alegria. Beijou-a no cocuruto e fechou os
olhos, agradecendo por havê-la encontrado sem mais percalço que um bom
susto.
—Tão, posso ficar com ele? — voltou a perguntar a voz infantil.
Andrew sorriu, apesar de tudo. Agarrou-a pelos ombros e a separou
uns centímetros de seu corpo. Olhou-a no rosto e contemplou a íris de seus
olhos, idêntico ao dele; em realidade, idêntico a todos os Beresford.
Esteve completamente cego!
85
—Perguntou a seu pai? —inquiriu, com os olhos semicerrados.
Esperava sua resposta com uma ansiedade desconhecida até então para ele.
Acabava de descobrir que lhe importava muitíssimo.
Branca jogou a cabeça para trás para ter uma melhor visão do rosto
masculino. Queria comprovar se seguia zangado com ela, mas o que
observou nos olhos dele foi o mesmo brilho malicioso de sempre, e
assentiu ligeiramente com a cabeça. Andrew voltou a abraçá-la muito mais
forte, tanto, que o cachorrinho protestou com um grunhido.
Era dele, fruto da paixão e o amor que compartilhara com Rosa. E
se sentiu tão orgulhosamente ufano, que não pôde evitar um sorriso
arrogante.
Branca era a filha que qualquer homem desejaria, e soube que a
mãe já não poderia negar a estar com ele, com os dois, porque ia fazer o
impossível para levá-la a Inglaterra.
Um momento depois, o jardim se encheu de gente que foi
comprovar a notícia de que tinham encontrado a pequena em perfeito
estado. O menino que a acompanhava era filho de um dos sobrinhos de
lorde Falcon e a convidara a ir ver uns cachorrinhos, quando a encontrou
perambulando sozinha pelos corredores do andar superior. A curiosidade
infantil havia feito o resto. Mas graças a Deus, tudo havia se resolvido bem.
Embora Andrew não fosse esquecer na vida o susto que se levou.
Quando o silêncio alagava cada espaço e canto da casa, quando a
penumbra lambia e engolia a luz do único abajur aceso do quarto, Andrew
decidiu ler a carta que Rosa lhe enviara. Uma carta da qual não teve notícia
até umas horas antes. Rasgou o envelope amarelo e abriu a folha de papel
com atenção. A bela caligrafia negra dançou durante um momento ante
86
seus olhos devido à emoção que o embargava. Respirou, profundamente, e
cravou suas pupilas nas linhas negras com soma atenção.
Querido Andrés...
A lembrança o golpeou com fúria, porque ela sempre o chamava
Andrés.
Se soubesse quanto o desejei ao longo destes anos, vazios de sua
presença, quando minhas mãos ansiavam de novo seu contato cheio de
fogo, seus sorrisos cândidos e maliciosos. Foi em minha vida uma tábua de
salvação, e os remorsos que sinto por perder você de forma voluntária mal
me deixam respirar à noite, e, em meio de meu castigo eleito
conscientemente, sinto que a solidão me rodeia como um laço negro e forte
aperta-me tanto que mal posso desfazer o nó que me prende, mas o
mereço. Menti para você de uma forma que não tem desculpa nem
justificativa, e, neste momento crucial de minha existência, peço-lhe
perdão do fundo de minha alma. Não leve em conta a ofensa tão grave que
cometi ao lhe ocultar a existência de Branca: sua filha. É preciosa! E,
agora, lhe faço entrega do mesmo presente que você me fez naqueles dias
em Hornachuelos. Esta missiva não é uma petição nem uma ordem, a não
ser uma súplica de indulgência. Perdoe-me e aceite-a! Branca não tem
culpa de meus erros, de meu equívoco execrável, mas, se de algo lhe serve
este momento de pesar é que sinto por havê-lo enganado, recorde que
meus sentimentos por você sempre foram sinceros e profundos. Lutei com
todas as minhas forças contra meus ideais, mas não me senti capaz de
acompanhá-lo a sua pátria, nem fazer o que ditava meu coração
perseguido por minha consciência, e, por esse motivo, suplico-lhe com
87
toda a minha alma, que me perdoe e compreenda quão duro foi para mim
tomar a decisão que tomei. Minha donzela, Glória de Hernández e
Romero, dará a você todos os documentos necessários para que possa
reconhecer nossa filha, assim como poderes para que possa administrar
sua fortuna, quando eu faltar.
Lamento não poder acompanhá-la em sua viagem a seu encontro,
mas devo confrontar o resultado de minhas decisões, que vêm me pedir
contas, e, embora gostaria, não posso me libertar de sua mão vingativa.
Por favor, Andrés, me perdoe e cuide o que mais quero no mundo:
nossa pequena.
Com afeto, Rosa María Sofía de Lara e Guzmán, para ti sempre,
Rosa de Guzmán.
Andrew terminou de ler a carta e a deixou repousando sobre seu
peito, junto a seu coração. «Irei buscar você, Rosa. Reunirei você com
nossa filha, e viveremos os três juntos e felizes. Trarei você para o lugar
onde deve estar sempre: a meu lado», prometeu-se em silêncio, ao tempo
em que dobrava a carta e a colocava de novo no envelope.
88
CAPÍTULO 8
Andrew bebeu um longo gole de seu suco de frutas sem afastar os
olhos de Branca. Fixou-se em como passava a manteiga no pão recém-
assado e na enorme quantidade de geleia que lhe punha a seguir. Observou,
com interessem a perfeita dobra que fez na torrada, antes de levá-la à boca
e lhe dar uma pequena dentada, enquanto fechava os olhos com deleite e
lambia o lábio superior para retirar um rastro da suculenta geleia.
Essa manhã, Christopher decidira tomar o café da manhã em
Whitam Hall com seu irmão e sua sobrinha. Sentia a urgente necessidade
de comprovar se tudo ia bem. Mal pôde pregar olho durante a noite, depois
do susto da perda da pequena. Agora, ao observar Branca, precaveu-se,
pela primeira vez, de que, em cada gesto que fazia, era como se
contemplasse o próprio Andrew quando tinha sua idade, salvo que seu
89
irmão mais novo estava acostumado a colocar muito mais geleia na torrada,
até o ponto de derramá-la no prato.
—Vou à Espanha esta tarde — anunciou este, de repente.
Christopher o olhou, impassível — Tenho que lhe pedir que cuide de minha
filha em minha ausência.
—Acha conveniente? — perguntou seu irmão, com a fronte
enrugada.
—Necessito de uma longa explicação — disse Andrew, direto.
—Da mãe? — Ambos dirigiram seu olhar à pequena, que seguia
comendo sua torrada alheia à conversa .
—Não posso ficar de braços cruzados, sem saber o que acontece e
como posso ajudá-la.
—Pai já está lá para tentá-lo.
Mas John não saberia como ajudar ou convencer Rosa, disse-se
Andrew.
—Conte-me, me diga como a conheceu — pediu Christopher.
Ele meditou uns instantes, sumido em lembranças que, pelo brilho
de seus olhos, deviam ser muito prazerosas.
—Conheci-a quando estivemos em Córdoba, muito antes que
recebesse o telegrama nos comunicando da enfermidade de pai, recorda? —
começou — Dois dos sobrinhos de Eulalia nos apresentaram, um deles
trabalhava como capataz na granja Azhara. Convidaram-me à festa da
fogueira, e ali, entre chamas de fogo e música, meus olhos descobriram a
mulher mais formosa que já vira. Foi olhá-la uma vez e já não pude voltar a
respirar com normalidade.
Por isso, Andrew havia demorado tanto em retornar a Inglaterra.
Até então, Christopher lhe escondera o telegrama sobre a enfermidade de
seu pai.
90
—Não lhe disse quem era ou que fazia em Hornachuelos?
Seu irmão não respondeu. Meditou durante um longo instante,
como se acariciasse uma lembrança formosa.
—Se for sincero, mal podia pensar com coerência. O sangue me
fervia nas veias, meu coração galopava a seu desejo entre a euforia e o
desenfreio. E meu cérebro sofreu um motim emocional como não
experimentara nunca.
Christopher conhecia muito bem esses sintomas, ele mesmo os
tinha padecido por Ágata tempo atrás.
—Rechaçou você? — perguntou, então, com verdadeiro interesse.
Andrew não queria responder essa pergunta. Não, estando a menina
presente, mas, antes que pudesse dizer algo, Marcus entrou na sala de jantar
para anunciar uma visita, e esse lapso de tempo lhe deu uma pausa.
—Lady Jane Taylor pergunta se pode ser recebida — informou o
mordomo, com a mesma seriedade de sempre.
Christopher e Andrew se olharam fazendo a mesma pergunta.
Ignoravam quem era a dama em questão, mas a pequena Branca exclamou
com júbilo inusitado para ouvir o nome e, de forma quase instantânea,
desceu de suas duas almofadas para sair correndo para o vestíbulo. A
torrada mordida ficou esquecida no pequeno prato.
—Aia Jane! Aia Jane! — A menina saíra da sala de jantar a uma
velocidade que deixou atônitos a ambos os irmãos.
Seguiram-na com prontidão e, quando cruzaram a soleira da porta,
viram uma mulher que abraçava Branca com um grande sorriso nos lábios.
Agarrou-a nos braços, enquanto se sucedia uma inundação de perguntas e
respostas dadas e oferecidas em um perfeito inglês. Christopher e Andrew
não davam crédito ao que viam e ouviam. Seguiam de pé no vestíbulo, sem
perder nenhum detalhe do encontro entre a mulher e a menina.
91
Lady Jane Taylor, uma mulher de uns quarenta e cinco anos, de tez
branca e cabelo loiro, abraçava a pequena com um genuíno afeto. Ao
precaver-se dos escrutinadores olhares masculinos, deixou Branca no chão
e olhou para ambos os homens tentando decidir a qual dos dois devia
oferecer seus respeitos em primeiro lugar; a aparência severa de um lhe
indicou que devia ser o primogênito. Lamentava que a carta de Rosa não
fosse mais explícita a respeito. Depois de um instante de dúvida,
aproximou-se diretamente de Christopher com a mão estendida.
—É um prazer, lorde Beresford. Sou lady Jane Taylor, amiga de
Rosa, a mãe desta preciosidade.
A menina não se afastou de suas saias.
Christopher lhe beijou a mão.
—Lady Jane, bem-vinda ao Whitam Hall. — Logo, Christopher se
voltou, ligeiramente, para seu irmão, quando este se inclinava para beijar
deste modo a mão da dama inglesa.
—Lorde Beresford. — Jane alargou o sorriso e aceitou a galante
saudação de Andrew.
—Por favor, nos acompanhe a tomar um chá, estaremos encantados
de conhecer as notícias que traz da Espanha.
Andrew não duvidava nem por um momento que Rosa enviara lady
Jane para cuidar da filha de ambos, mas se perguntava por que não tinha
chegado com ela ao princípio.
Quando os quatro estiveram sentados à larga mesa, Marcus serviu a
dama um chá com leite, que ela lhe agradeceu. Branca a olhava com olhos
cheios de alegria. Indubitavelmente, sentia pela mulher um carinho
especial, e estava tão emocionada com sua chegada, que a interrompeu em
sua explicação para lhe perguntar por sua mãe. Mas lady Jane a olhou com
atenção e uma ligeira advertência em seus olhos castanhos, e Branca
92
repetiu a pergunta em espanhol, embora logo voltasse a fazê-la em inglês.
Jane lhe respondeu com grande afeto e infinita paciência.
Andrew acabava de descobrir por que a pequena falava inglês tão
bem como espanhol; devia-se a lady Jane. Recordou todas as conversações
que manteve em sua presença com seu irmão mais velho, com sua cunhada
e inclusive com o serviço, acreditando que não entendia nada; quão
equivocado estava. Branca compreendia cada palavra que saía por sua
boca.
—Conhece-a a muito tempo?
Christopher não soube se a pergunta de seu irmão se referia à mãe
ou à filha.
—Cuido desta menina desde que era um bebê. — Acariciou o
cabelo de Branca, com carinho — E sofri muito por estar separada dela.
A pequena não pôde conter-se, desceu da cadeira e se aproximou
até Jane, que a levantou e a sentou no colo, ao tempo em que a beijava na
bochecha. As amostras de alegria do vestíbulo não foram suficientes, e os
seguintes minutos transcorreram-se entre abraços e bajulações entre ambas,
até que Christopher decidiu intervir. Andrew tinha de manter uma conversa
privada com a inglesa e, para isso, precisava que a menina não estivesse
presente.
—Eu adoraria conhecer seu pônei. Andrew me falou muito dele e
de quão bem monta. — Os olhos de Branca se iluminaram — Acompanha-
me? — Ela acessou, com entusiasmo.
Ele se levantou, então, com cerimônia de sua cadeira e estendeu a
mão a modo de convite para sua sobrinha.
—Estaremos no estábulo — disse, antes de ir.
O silêncio que seguiu à partida de tio e sobrinha resultou algo
incômodo. Andrew terminou seu café frio, enquanto observava a mulher,
93
que não tirara o chapéu nem as luvas, coisa que fez então, como se lhe
tivesse lido o pensamento.
—Falaremos melhor no salão. — Andrew não esperou sua resposta.
Abriu-lhe a porta da sala de jantar com gentileza, e Jane o seguiu, em
silêncio, mas sem deixar de sorrir. Foram ao salão, e, uma vez ali, sentou-
se na poltrona de pele que lhe indicou.
—Como está Rosa? — Andrew não esperou sequer a que a mulher
arrumasse as dobras da saia. Estava ansioso. Preocupado e cheio de
perguntas que não se atrevia a formular — Onde está presa?
—Está detida no convento de Santa Marta, em Sevilha.
Andrew fechou os olhos e se recostou no respaldo da cadeira, como
se sobre seus ombros tivesse caído todo o peso do mundo. Tinha a pequena
esperança de que tudo estivesse já solucionado ao fim.
—Gostaria de estar com ela, quando a prenderam — continuou Jane
— mas me encontrava resolvendo uns assuntos em Madrid. Por isso, não
pude trazer para a menina com você, como Rosa desejava, e não imagina o
quanto o lamentei.
—Por que a detiveram? — Andrew o intuía, mas precisava
perguntá-lo.
—Por seu apoio a Carlos Isidro, o irmão do rei Fernando. Alguns
nobres espanhóis não estão de acordo com a regência de María Cristina.
Andrew pensou que a notícia era pior do que pensava. A Espanha
se dividia entre os seguidores de Fernando e os de Carlos. O avô de sua
cunhada Ágata tivera de fugir para a França, anos atrás, quando se produziu
o primeiro intento de derrubar o rei.
—Quando terá lugar o julgamento?
94
—Está previsto para dentro de dois meses, mas há um problema
muito grave: dom Alonso de Lara, o irmão de Rosa, é um dos principais
acusadores.
Andrew o temia. O duque de Fortaleza era o mais leal defensor do
rei Fernando, além de um justiceiro implacável. Era um militar de alta
graduação que gozava do favor do rei da Espanha e o encarregado de
prender os traidores à Coroa.
—É você a professora de Branca?
Lady Jane fez um gesto negativo com a cabeça.
—Branca teve um professor francês desde que sabe andar. Está
aprendendo as letras e os números, e a música lhe dá bastante bem. Tem
uma voz muito bonita para cantar.
Andrew estava aniquilado. De repente, tinha uma fonte inesgotável
de informação a respeito de sua filha. Parecia-lhe incrível que, ao fim,
pudesse saciar sua curiosidade sobre ela. Tão pequena e já conhecia as
letras e os números. Estava perplexo.
—Foi toda uma surpresa descobrir que fala inglesa quase sem
acento — disse, com um tom de orgulho que fez com que Jane sorrisse.
—Era parte de meu trabalho, lorde Beresford. Desde que Branca era
um bebê, lhe falou nas duas línguas, a espanhola e a inglesa. A senhora
Lara o dispôs assim. Trabalhou em excesso se em procurar uma babá que
fosse nativa de Grã-Bretanha. — Lady Jane ficou pensativa, uns momentos,
recordando o passado — Nós nos conhecemos na embaixada inglesa em
Madrid, pouco depois da morte de meu marido. Era comerciante e adorava
viver na Espanha, igual a mim. Causava-me pena retornar a Inglaterra após
enviuvar, e, como um milagre inesperado, a senhora Lara me ofereceu sua
amizade e sua casa em troca de ensinar à pequena minha língua materna e a
95
história de meu país. Quando vi o formoso rosto de sua filha, não pude
resistir. É uma menina tão inteligente!
Andrew se sentia estranhamente confuso.
Rosa lhe escondera a existência da menina, e esse era um ato
censurável de que teria de lhe render contas, quando a resgatasse. Porque
isso era precisamente o que pretendia fazer: ir até a Espanha e levar dali a
mulher que lhe tinha mentido, enganado e dado o presente mais formoso de
quantos podiam entregar-se.
—Ficará na Inglaterra? — perguntou a lady Jane, com um tom de
esperança que não trabalhou em excesso em ocultar.
—Não posso abandonar a Branca. É como a filha que não tive, sinto
por ela um carinho especial. E, além disso, prometi a minha amiga Rosa
que viria aqui, se seus temores se confirmassem. Ela já suspeitava que
podiam prendê-la por seu apoio a Carlos Isidro.
Andrew olhou a dama, que lhe sustentava o olhar sem uma piscada.
Viu em seus olhos uma absoluta sinceridade, e suas palavras, oferecidas de
forma tão generosa, aliviaram seu coração. Soube que poderia partir
imediatamente e ficar tranquilo, porque sua pequena estaria em boas mãos.
—Rosa me deu claras instruções: tinha de trazer a menina para
você, mas tudo se precipitou antes que eu terminasse meus assuntos em
Madrid. Quando recebi o telegrama em que me informava da detenção de
minha amiga, soube que havia chegado o momento de embarcar rumo a
minha pátria para me ocupar de Branca, como lhe prometi.
—Necessito de um endereço em Sevilha — disse Andrew — e
alguns detalhes que considero muito importantes.
Lady Jane fez um gesto afirmativo.
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—É óbvio — respondeu cúmplice — embora Rosa confie em que a
transladem ao convento da Santa Isabel, na cidade de Córdoba, até que a
julguem. Acredita que as religiosas não se oporão.
Andrew pensou que lhe resultaria muito mais fácil resgatá-la em
Córdoba que em Sevilha, pois, na primeira cidade, tinha amigos que
podiam ajudá-lo; a possível dificuldade não conseguiu desanimá-lo.
—Conhece o convento?
—Visitei-o em inumeráveis ocasiões.
Andrew pensou que o destino lhe sorria.
—Onde está Alonso de Lara?
—Sua residência habitual é o palácio dos Silêncios, em Sevilha,
mas, ultimamente, se encontra na corte madrilenha.
Ele pensava a toda velocidade. Se o irmão de Rosa se encontrava,
permanentemente, em Madrid, tudo resultaria muito mais fácil, embora
morresse de vontades de pô-lo em seu lugar. Ia agir como acusador no
julgamento de sua irmã? Acaso não tinha honra nem decência? À família
não se traía; Andrew se prometeu lhe dar seu castigo chegado o momento.
—Fale-me de Alonso de Lara — pediu a lady Jane.
—Que deseja saber sobre ele?
—Tudo, absolutamente tudo.
97
CAPÍTULO 9
Rosa María Sofía de Lara e Guzmán
Convento de Santa Marta, Sevilha.
A madre superiora conduziu John Beresford para uma salinha
privada onde as noviças podiam ver seus familiares um momento. A
religiosa ignorava que John não era um familiar, a não ser um amigo
interessado, mas os créditos que levava eram mais que suficientes. A Coroa
lhe permitia um breve encontro com a detida.
—A senhora Lara virá em seguida. — John fez um gesto de
agradecimento à monja, que tinha um olhar sério e severo — Por favor,
seja breve.
98
Ele tomou assento na única cadeira disponível. A estadia era
pequena e estava mal ventilada. Fixou-se na madeira escura da mesa e no
crucifixo que havia em uma das paredes, de onde pendurava como se o
tivessem esquecido. As paredes de pedra cheiravam a mofo envelhecido, e
o chão de tijolo cru estava úmido pela água que tinham utilizado em sua
limpeza. Ouviu passos apressados e se levantou, rapidamente, antes que a
porta se abrisse. Uma mulher entrou justo detrás da madre superiora.
—Esperarei lá fora — disse a religiosa, e suas palavras soaram
como uma crítica.
Rosa de Lara olhou, surpresa, o homem que permanecia de pé ao
outro lado da mesa. Nas semanas que estava encerrada no convento, não
recebera nenhuma visita, e não entendia o que fazia um estrangeiro em
Santa Marta.
—Meu nome é John Beresford — se apresentou ele.
Rosa deu um passo atrás para ouvir o nome.
Piscou, nervosa, porque o último que esperava em seu
confinamento era conhecer o pai de Andrew, mas sua presença em Sevilha
só podia significar uma coisa: que ocorrera algo espantoso.
—Minha pequena! — exclamou, aterrorizada — Meu Deus! Não!
John a tranquilizou, imediatamente.
—Branca se encontra bem. Está aos cuidados de seu pai, meu filho
Andrew.
Respirou profundamente aliviada, embora fechasse os olhos para
tentar controlar a angústia que a embargava.
John se dedicou a olhar a mulher que tinha diante. Era de uma
formosura comovedora. Pequena, mas esbelta. De cabelo tão negro como o
de sua filha, e com um rosto muito harmonioso e aristocrático.
Compreendeu, perfeitamente, por que Andrew se havia sentido atraído por
99
ela. Observou, com grande atenção, o controle que exercia sobre suas
emoções, que foram do desespero à impaciência, sua forma precavida de
olhá-lo e a prudência que brilhava em seus olhos escuros. Nessa breve
apreciação, entendeu por que Rosa manteve seu filho na ignorância respeito
à de sua paternidade: Andrew não estava à sua altura!
—Como está Branca? Comporta-se bem? Sinto tanta falta dela!
—Minha neta é uma menina preciosa, um orgulho para os
Beresford.
As lágrimas foram aos olhos de Rosa. Eram as palavras que
precisava escutar, nesse momento, e as agradeceu profundamente.
—Como permitiu a madre superiora esta visita? — Formulou a
pergunta com soma estranheza.
—Por Arthur Wellesley3, que era amigo do falecido rei Fernando.
Graças a sua influência, pude conseguir uma permissão para visitá-la aqui
em Sevilha.
Rosa tomou assento em frente a ele, que a imitou, um instante
depois.
—Não tenho coragem para sustentar seu olhar — começou ela —
Fui muito injusta com Andrew —acrescentou, cheia de angústia.
John precisava saber de uma coisa de forma imperativa.
—Por favor, me diga que minha neta não foi o resultado de um
escarcéu sem importância.
Os olhos de Rosa se abriram, atônitos. Como podia lhe perguntar
algo tão íntimo e de modo tão direto? Mas seu olhar se adoçou, ao evocar a
3 “Primeiro duque de Wellington e primeiro ministro do Reino Unido de 22 de janeiro de 1828 até 22 de
novembro de 1830”.
100
lembrança do homem que significara tudo para ela; e sua renúncia mais
significativa.
Ao ver seu rosto, John comprovou que suas deduções foram
acertadas. Andrew lhe importava muitíssimo! O alívio quase lhe produziu
um sobressalto.
—Amei Andrés, profundamente. Sua alegria, sua impulsividade. —
Calou-se, um momento, antes de continuar — Descobri um mundo que
ignorava que existisse. Apaixonei-me, perdidamente, mas não podia
acompanhá-lo a Inglaterra como ele pretendia. Você pode compreendê-lo?
— O longo e profundo suspiro masculino a pegou de surpresa.
John o entendia muito mais do que podia imaginar a senhorita Lara.
Ele mesmo se encontrou em uma situação idêntica a de seu filho caçula. No
passado, amou uma mulher sobre a que pesava uma grande
responsabilidade, com raízes profundamente arraigadas em sua família, em
sua terra... É óbvio que a compreendia. John se perguntou se, como ele,
seus filhos estariam destinados a apaixonar-se por mulheres com um futuro
difícil.
—A pequena já está reconhecida como uma Beresford. Meu filho
Arthur, que é um excelente advogado, pôde fazer todos os trâmites da
embaixada inglesa em Madrid.
Rosa suspirou, profundamente sossegada. Sua filha estava a salvo
de seu tio Alonso, e Andrew controlaria o patrimônio da pequena, quando
ela faltasse.
—Além disso, averiguamos e preparou uma forma de ajudá-la.
—Ajudar-me? Mais ainda? — perguntou, surpresa.
—A rainha regente, María Cristina de Borbón, deu seu
consentimento para que o embaixador da Inglaterra, sir George Villiers,
possa visitá-la na próxima semana.
101
Rosa se perguntou por que motivo lhe concedia essa mercê
inesperada.
—Consegui uns poderes para que o embaixador a despose com meu
filho Andrew. Se me permitir isso, pronunciarei os votos em seu nome.
O gemido dela foi espontâneo e inesperado.
«Casar-se com Andrew, sem Andrew?», perguntou-se, bastante
confusa.
—Andrés, Andrew — retificou, ao precaver-se de que tinha
pronunciado o nome em espanhol, embora não fosse à primeira vez — Está
de acordo?
John sabia que agia mal, ao lhe esconder a verdade, mas, depois de
uma exaustiva investigação, descobrira que os cargos que pesavam sobre a
mulher eram muito graves para andar com escrúpulos. Não pensava em lhe
dizer que Andrew ignorava, inclusive, que estivesse cuidando de sua
própria filha. Uma vez que ela estivesse a salvo na Inglaterra, tentaria
resolver o problema das meias verdades. Se Rosa não admitisse que amava
o amalucado de seu filho, possivelmente, não se atreveria a mentir de
forma tão descarada, mas não podia deixar uma menina sem mãe.
Sua neta merecia todo seu esforço.
—Quando o matrimônio seja um fato, será você cidadã inglesa, e
procederemos a solicitar, legalmente, seu retorno à Inglaterra.
Ela fechou os olhos, porque compreendia muito bem o que isso
significava.
—Meu desterro voluntário — disse, com infinita tristeza.
—Melhor um desterro que a forca — replicou ele, convencido.
—Renunciaria a tudo com tal de estar de novo junto a minha
pequena, não o duvide nem um instante. —Mas o tom de sua voz
desmentia suas palavras.
102
John inspirou com força, porque não a compreendia. Casando-se
com Andrew, poderia escapar de uma morte segura. O preço lhe parecia
insignificante.
—Senhorita Lara, acredite em mim, terá de renunciar a tudo. —
Rosa se manteve em silêncio, durante uns momentos, assimilando a
mudança que se produziu em seu futuro em uns instantes — A Coroa não
permitirá mais intervenções por sua parte, nem pessoais nem monetárias,
na política da nação. Uma vez que seja cidadã inglesa, acabaram-se as
conspirações contra a monarquia espanhola.
Ela sabia como estava jogando María Cristina. Ao permitir seu
matrimônio com um cidadão britânico, matava dois pássaros com um tiro.
Assegurava a lealdade de seu irmão Alonso, que veria o perdão real como
um ato de bondade, e também se assegurava a passividade de alguns nobres
que não veriam com bons olhos a execução da irmã do duque de Fortaleza,
e que poderiam opor-se a isso. A regente era uma mulher muito inteligente
e não agia de maneira precipitada ou impulsiva. Media cada passo,
valorando no que a beneficiava, e procedia em consequência.
—Conte-me como conheceu meu filho — pediu John, de repente —
Por favor.
Rosa esboçou um cândido sorriso, embora a vergonha tingisse de
vermelho suas pálidas bochechas.
—Foi em Hornachuelos, na granja Azhara. Andrew assistia com
uns amigos ciganos a uma festa popular entre granjeiros. Eu me reunia
esses dias com Joaquín Moreno, o secretário de Rafael Maroto. Sabe de
quem falo?
John lhe fez um gesto afirmativo com a cabeça, mas permaneceu
calado, animando-a a que continuasse com sua explicação.
103
—Desarmou-me sua alegria, sua forma vivaz de levar as coisas. E
os dias que passamos juntos na serra se encarregaram do resto.
—Informaram-me que pensava em tomar os hábitos.
Rosa experimentou uma sacudida, ao escutar as palavras do
marquês.
John podia imaginar o acontecido, uma noviça que ma provara o
sabor da existência e encontrou em Andrew o meio para fazê-lo. E, se de
algo podia estar seguro, era da capacidade que tinha seu filho caçula para
desfrutar da vida, espremê-la ao máximo e contagiar sua felicidade ao resto
dos mortais.
Rosa não respondeu logo. Que tomasse os hábitos era o que
pretendia seu irmão Alonso, mas ela não tinha nenhuma intenção de fazê-
lo. Por isso, pediu, então, que a transladassem do convento de Santa Marta,
em Sevilha, onde estava encerrada e vigiada, ao de Santa Isabel, no
Córdoba. Pretendia ir o mais longe possível da influência de seu irmão, e
sabia o que tinha de fazer para que a Igreja não aceitasse seu voto de
renúncia ao mundo: entregar-se a um homem, perder a castidade de forma
voluntária.
Andrew tinha resultado ser a tabela de salvação da qual necessitava.
Em um de seus encontros lhe dissera, claramente, que só estava no
Córdoba de passagem. Pensou que, para ele, seria simplesmente uma
mulher fácil que conheceu em terras cordovesas e, portanto, suscetível de
esquecer, mas não havia contado com apaixonar-se cegamente por Andrés,
nem o quão profundamente ia feri-lo com sua negativa a acompanhá-lo a
seu país, quando ele pediu. Seus cálculos foram errôneos, mal aplicados, e
tinha feito sofrer um homem que não o merecia, mas ela se envolveu total e
absolutamente com seus sentimentos. Pouco depois da partida de Andrew,
104
motivada pelo despeito por sua negativa a casar-se com ele e acompanhá-lo
a Inglaterra, descobriu que estava grávida...
—Nunca tive intenção de tomar os hábitos. Era meu irmão Alonso
o mais interessado em que o fizesse, porque desse modo poderia controlar a
herança que me deixou minha mãe e reprimir minhas ideias políticas.
»Meu pai foi bonapartista, lutou pela liberdade de um povo
amordaçado. Admirava o que Napoleão obteve na França, e acreditou,
como muitos nobres décadas atrás, que, na Espanha, poderia triunfar algo
similar. Eu tratei de seguir seus passos, embora com um resultado péssimo,
como pode comprovar.
—A política é um assunto muito sério — disse John — Muitos
homens perderam a vida ao longo da história por situar-se a um lado ou a
outro.
Rosa já sabia. Mas havia sentido muito dentro de seu coração que
lhe devia lealdade a seu pai e aos ideais pelos que este tinha morrido.
—Você se casará com meu filho Andrew por poderes?
Rosa meditou por um longo instante a pergunta. Apresentava-se
uma oportunidade que não podia rechaçar, mas teria coragem para
enfrentar Andrés cara a cara? Seria possível retornar com sua filha? Poderia
separar-se de tudo o que conhecera e partir a um país que não tinha visto
alguma vez? Obter o perdão do homem a quem havia enganado e mentido?
As dúvidas a devoravam. O desespero a sacudia, mas o que mais
desejava no mundo era abraçar de novo sua pequena, e, por ela, pactuaria
com o próprio diabo, se este o pedisse.
—Sim — respondeu ela, sem vacilar — Eu me casarei com seu
filho Andrew.
105
Arthur estava esgotado. Resolver questões legais em um país
diferente da Inglaterra, onde a papelada se multiplicava por dez, resultava
desolador. Mas tudo saíra bem. Branca, a menina que ele não chegou a ver
em Whitam Hall, agora, era legalmente lady Beresford, e as diversas
propriedades que possuía sua mãe mudaram de titularidade e, agora,
pertenciam à pequena; seu irmão Andrew fora renomado curador de todas
elas. Arthur pensou que Rosa de Lara era uma mulher muito rica, e sua
sobrinha Branca o seria, no futuro. Tinha um patrimônio de várias casas em
Sevilha, um palácio em Córdoba e outro em Guadalajara. Um imóvel na
serra de Hornachuelos com touros selvagens e um moinho para moer
azeitonas. Rosa de Lara tinha disposto tudo, antes de ser detida,
demonstrando, com isso, uma previsão surpreendente. Graças a sua rapidez
e intuição, o trabalho de Arthur resultou muito menos difícil e mais
frutífero.
Agora, se perguntava, insistentemente, como teria obtido seu pai
uma procuração do próprio Andrew para o casamento, mas tinha por
costume não questionar nenhuma das decisões de seu progenitor, pois
sempre mostrava uma sagacidade única e acertada.
Massageou-se o pescoço, tenso pelas últimas gestões. Entre
reuniões com o embaixador inglês e o embaixador espanhol, e as viagens
de Madrid a Sevilha e vice-versa, mal dormira. Mas se sentia tranquilo,
porque tudo se resolveu muito melhor do que esperava. Olhou a rua
tranquila e observou os caminhantes, com interesse. Adoraria percorrer a
formosa cidade sevilhana e, inclusive, viajar até Salamanca para comprar
alguns cavalos para sua irmã e seu cunhado. Os gados salmantinos tinham
fama de criar formosos e finos garanhões.
Quando ouviu a porta se abrir, deixou de olhar pelo balcão. Seu pai
acabava de deixar sobre uma mesinha o chapéu, a capa e as luvas.
106
—Como se encontra a senhorita Lara? — perguntou, com interesse.
—Lady Beresford, Arthur, não esqueça que já está casada com seu
irmão e é membro de nossa família.
Arthur não podia esquecer. E se sentia estranhamente desejoso de
ver a cara de Andrew, quando descobrisse. Acabaram-se as farras noturnas!
Ir de um leito a outro, antes, inclusive, que se esfriassem os lençóis do
primeiro.
—O indulto já chegou — disse seu pai — Logo, poderá retornar a
Inglaterra, e minha neta se reunirá, ao fim, com sua mãe.
John soltou logo um suspiro azedo.
Lutar com as confusões de seus filhos o esgotava, enormemente.
Ainda recordava os problemas que teve que sortear com Christopher e
Ágata em Paris. Quase perdeu a vida no intento, mas o resultado valeu a
pena. Nunca vira seu primogênito mais feliz e completo. Sua esposa era
perfeita para ele; em realidade, para todos. Por esse motivo, quando
conheceu sua neta Branca e soube das dificuldades pelas quais passava a
mãe, decidiu que tinha de fazer algo, de uma vez que represasse a vida de
libertinagem que levava seu filho caçula. Rosa resultou ser tal como
imaginava. Seus filhos sentiam uma predileção natural por mulheres de
existência complicada, embora formosas e apaixonadas até o ponto de
provocar a loucura em um homem.
Arthur contemplou seu pai, que servia brandy em duas taças e lhe
oferecia uma. Ambos se sentaram nas macias poltronas do hotel. Tinham
alugado uma ampla suíte com vistas a Guadalquivir.
—Parece cansado.
—Estou desejando terminar com isto, mas, até que lady Beresford
não esteja instalada em Whitam Hall, não poderei descansar totalmente.
107
Embora esteja pensando em viajar até a cidade de Granada. Tenho muita
vontade de ver sua irmã.
Arthur pensou que uma estadia de seu pai em Granada poderia ser
muito benéfica para sua saúde. A tranquilidade da cidade sulina e os
cuidados de sua irmã eram o que precisava nesse preciso momento.
—Esforçou-se muito — o reprovou, embora com supremo respeito
— E o médico foi cortante a respeito —recordou — Nada de emoções
fortes, parece que esqueceu.
—Vale a pena, Arthur. O esforço vale a pena, embora me custe
compreender por que seus irmãos escolheram mulheres com um caráter tão
visceral e decidido.
Ele pensou em sua cunhada Ágata e nas vicissitudes que teve de
enfrentar seu irmão, até que, finalmente, puderam estar juntos. E, agora,
acontecia o mesmo com Andrew. Uma situação que o fez reafirmar-se em
sua decisão de não casar-se com uma estrangeira de ideais complicados.
—Tremo ao pensar na filha que me dará você — começou John —
A mulher que seu coração escolherá.
Arthur se incomodou um pouco. Ele não pensava em agir de forma
tão irresponsável como seus dois irmãos. Ele tinha a cabeça sobre os
ombros, às ideias bem claras e gostos bem definidos.
—Eu me casarei com uma autêntica dama inglesa — asseverou,
convencido — Refinada. Elegante. Uma mulher a quem não importará a
política, nem será propensa a meter-se em confusões. Será uma perfeita
senhora, dedicada por inteiro a seu marido.
John foi enrugando o cenho, à medida que o escutava. Falava com
calculada frieza, com uma indiferença que raiava o desprezo, e não gostou,
absolutamente.
108
—Arthur, aceite um conselho que lhe ofereço com a experiência
adquirida com os anos: no coração não se pode mandar. Quando chegar o
momento, tomará suas próprias decisões, e não poderá fazer nada.
Arthur pensou que seu pai estava muito equivocado, ele sabia
segurar suas emoções e seus impulsos. Nenhuma mulher ia romper o
controle e o domínio que tinha sobre sua aprazível existência, por esse
motivo, replicou convencido:
—Eu sei, exatamente, o que quero em minha vida, e o que desejo
não são complicações sentimentais como a de meus irmãos. Escolherei uma
dama inglesa no sentido amplo da expressão.
—Uma dama inglesa? — repetiu John, com ceticismo.
—Posso lhe assegurar que não terá nascido na Espanha nem na
França.
John tomou um gole de seu brandy, sem que a desconfiança
desaparecesse de suas pupilas. Algo lhe dizia que Arthur seguiria o mesmo
caminho de seus dois irmãos. Inclusive, era possível que seu coração
escolhesse uma moça ainda mais complicada que Ágata Martin ou Rosa de
Lara. Seus três filhos tinham um gosto muito parecido com respeito às
mulheres; de caráter forte e decidido, muito apaixonadas. Com uma
necessidade tão intensa de desfrutar da vida, que não lhes importava
romper todas as regras e normas para obtê-lo.
—Acredito que vou tomar uma pausa em Granada — confirmou.
—Pode voltar com Aurora e Justin, quando eles decidam fazê-lo —
respondeu Arthur, cada vez mais convencido — As crianças estarão
encantados de ter seu avô, durante uns dias.
John pensou que tinha razão. Sentia saudade de seus netos e morria
de vontade de abraçá-los.
109
—Não quero que retorne sozinho — admitiu John, com certa
culpabilidade.
Arthur esboçou um sorriso.
—Tenho intenções de viajar a Salamanca. Eu gostaria de comprar
um par de éguas árabes para nossos garanhões da Inglaterra. O embaixador
me comentou que alguns gados salmantinos são excepcionais.
John se enterneceu, ao ver a paixão que seu filho sentia pelos
cavalos. Sua irmã Aurora e ele estavam obtendo umas crias valiosas e que
alcançavam preços exagerados no mercado boiadeiro inglês.
—Sir George Villiers convidou-me a propriedade de férias e
prometeu me levar ao melhor gado — comentou.
John se surpreendia com a amizade que se forjou entre o
embaixador inglês em Madrid e Arthur e se perguntou se a sobrinha do
embaixador teria algo a ver nisso.
—Sente-se atraído pela sobrinha do embaixador, filho?
Arthur levantou uma sobrancelha, ao ouvir a pergunta tão direta.
—É uma perfeita dama inglesa — respondeu, com certa ironia.
John ficou desarmado. Não soube se seu filho falava em brincadeira
ou a sério.
—Quando retornará a Whitam Hall?
—Quando tiver conseguido as éguas.
—Tomará cuidado?
Arthur o olhou, com um sorriso matreiro.
—Esteja tranquilo, pai, esquece que eu não sou Christopher nem
Andrew.
Mas essa resposta obteve justamente o contrário: não o tranquilizou
nem um pouco.
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CAPÍTULO 10
A mulher apenas coberta com uma camisola branca destacava-se na
escuridão da quarto. Tinha uma mão debaixo da bochecha e dormia de
frente à porta.
Andrew caminhou os dois únicos passos que o separavam dela e
tomou assento na borda do leito com suavidade, para não despertá-la. O
formoso cabelo comprido caía com descuido pelos ombros e as costas. A
111
tentação de agarrar algumas mechas entre seus dedos, para sentir sua
textura, foi quase insuportável; recordava, perfeitamente, aquele corpo
feminino abafado unicamente pela cortina de cabelo escuro e sedoso.
Ela se revolveu, como se percebesse sua presença na quarto.
—Chist.
Rosa sentiu que alguém lhe tampava a boca com a mão e a
esmagava contra o colchão.
—Não vou fazer machucá-la, mas, se gritar, podem nos descobrir.
Piscou para esclarecer a visão.
Sobre ela se inclinava um rosto parcialmente coberto por um capuz
marrom. Era um monge? Como conseguira entrar em seu quarto? Por que
lhe tampava a boca? O coração pulsava acelerado, embora tivesse a frieza
de raciocinar que, se quisesse machucá-la, já teria feito.
—Se afastar a mão, gritará?
Rosa fez um gesto negativo, e a mão morna do homem se afastou
muito lentamente.
Os largos dedos agarraram a borda do tecido marrom que lhe cobria
a cabeça e jogou o capuz para trás. Ao ficar ao descoberto o cabelo loiro
ondulado e o sorriso, Rosa sentiu que o coração lhe dava um tombo.
—Andrés! — exclamou Rosa, estupefata — O que faz aqui? Como
entrou? O que ocorreu? — A sucessão de perguntas não seguia uma ordem
lógica.
Estava assustada. A presença de Andrés na estadia só podia
significar problemas.
—Aconteceu algo a Branca?
—A pequena está perfeitamente. Lady Jane cuida dela em minha
ausência.
112
Rosa tratava de encontrar sentido à presença dele em Sevilha.
Estava sentado em seu leito como se fosse algo completamente natural.
Lady Jane estava na Inglaterra? O alívio que sentia se manifestou em forma
de suspiro.
—Por que vai vestido de monge? O que faz no convento?
O sorriso masculino se alargou, e o musculoso corpo se inclinou
ainda mais sobre ela, que recordou, de repente, que seguia deitada.
Rastejou para trás e se incorporou sobre o travesseiro, sem deixar de olhar,
com assombro, o rosto querido, recordado.
—Sinceramente, esperava uma recepção mais calorosa por sua
parte — a repreendeu ele.
Rosa levou uma mão à garganta para sufocar um gemido. Tinha de
estar sonhando, Andrew não podia estar ali com ela, porque a porta da
quarto seguia fechada com chave e a janela não fora forçada, mas estava a
seu lado. Podia cheirar o aroma de sua pele, tocar o grosso cabelo rebelde.
Um instante depois, lançou-se em seus braços. Ele a recebeu como se fosse
uma peça preciosa e extremamente delicada, estreitou-a contra seu peito e
aspirou ao aroma de seu cabelo, um instante depois, procurou com sua boca
os lábios femininos, que se abriram a seu encontro sem um protesto. O
beijo foi faminto, intenso de recriminações, completo de saudade.
Andrew saboreou o sabor de Rosa. A suavidade interior de suas
bochechas, a voluptuosidade de seus lábios grossos e suculentos.
Ela pensou que a presença de Andrés ali era um milagre.
Ao cabo dos anos, sentir-se de novo abraçada por ele, beijada de
forma tão intensa, era um sonho feito realidade; mas as perguntas se
acumulavam em sua mente, por isso, parou o beijo com relutância.
Cravou suas pupilas nas masculinas, que brilhavam interrogantes.
—Está louco.
113
—Vim resgatar você — anunciou ele, triunfante.
—Resgatar-me? — perguntou, desconcertada — Como entrou?
—Por este muro.
—Pela horta das laranjeiras?
—A escalada é mais fácil do que parece à simples vista. A parede
está em muito mal estado. Há ocos entre as pedras que servem como
degraus.
A Rosa custava pensar.
—Tem de partir — disse, ao fim, apressada.
Andrew a olhou, atônito.
—Partiremos, quando terminar de beijar você outra vez.
Não lhe deu opção de negar, encerrou-a entre seu peito e seus
braços e se apoderou de sua boca como um morto de fome. Rosa lhe
correspondeu completamente vencida e cheia de sentimentos
contraditórios: sorte, preocupação, felicidade, prudência.
Depois de um longo momento, Andrew finalizou o beijo, mas não a
soltou do fechamento de seus braços.
—Tem que ir, podem descobrir você — o apressou ela — e, então,
pioraremos tudo.
—Então, vamos! — concluiu ele — Julio e Luis não esperarão toda
a noite.
Julio e Luis eram sobrinhos da aia cigana de sua irmã Aurora.
Tinham-no acompanhado, decididos a lhe emprestar a ajuda necessária
para resgatá-la; bastou que mencionasse o problema, para que acudissem
dispostos. Andrew também contratara um par de trabalhadores, por
precaução. Não queria deixar nenhum fio solto.
114
Rosa o olhou atônita, mas eufórica. Andrew pretendia que partisse
com ele! Ela nada ansiava mais no mundo, mas não podia fazê-lo, disse-se,
com desânimo.
—Pretende que me parta com você, agora? — perguntou, surpresa.
—Acabo de assaltar um convento para liberar você, que resgate
seria se a deixasse aqui?
A lógica era esmagadora, mas ela não variou sua postura.
Rosa quase conseguira a liberdade. Tinham-lhe concedido o
indulto, mas precisava ter uma conversa com seu irmão pela manhã, antes
de ser liberada. Não podia fugir! Fazer isso seria complicar tudo.
—Não posso partir com você — disse, ao fim, cheia de angústia.
Andrew a olhou, incapaz de reagir e sem entender de todo sua
negativa.
Por ela, galopara como um louco até Dover. Procurara e contratara
um veleiro que lhe custou uma pequena fortuna, e que, nesse preciso
momento, estava ancorado no porto de Sevilha, esperando-os. Recorrera a
seus dois amigos bandoleiros para que o ajudassem, e Rosa resistia a
acompanhá-lo.
—Não fala sério — alfinetou, ainda incrédulo.
Ela compreendeu que sua negativa o incomodava, de novo, mas
devia fazer as coisas bem por sua pequena.
—Antes de poder partir de forma definitiva, tenho de falar com meu
irmão Alonso e, para isso, devo permanecer aqui.
Andrew ignorava que Rosa fora indultada pela Coroa em troca de
pactuar algumas coisas com o duque de Fortaleza. Acordos que iam
confirmar aquela mesma manhã, antes de sua completa liberação.
—Fala do mesmo irmão que está disposto a acusá-la? A contribuir
com seu enforcamento?
115
As perguntas a desconcertaram, porque aquilo não era verdade.
Alonso não era um assassino.
—Permita que lhe explique...
—Não temos tempo — a interrompeu ele.
—Andrés! Não posso partir com você! —exclamou, cheia de dor.
Andrew se cansou de suas contínuas negativas. Rosa tinha uma
obrigação com sua filha muito mais importante que pactuar um acordo com
seu irmão. Segurou-a pelos ombros, para obrigá-la a sair do leito, mas ela
resistiu.
—Não posso acompanhar você — insistiu, embora morresse de
vontade de fazê-lo.
Sua cortante negativa o enfureceu. Olhou-a de maneira intensa,
penetrante.
—Peço-lhe uma prova de amor — disse, solene.
—Prova de amor? — repetiu ela, completamente sobrepujada.
—Se alguma vez me quis, se deseja abraçar de novo nossa filha,
peço uma prova de amor: acompanhe-me agora. Não olhe para trás. Deixe
tudo e venha comigo. Sem perguntas, sem dúvidas. Só venha.
Rosa fechou os olhos, por um instante. Andrew não imaginava o
que significava para ela deixar tudo e sem solucionar nada. Tinha ao
alcance da mão pactuar um acordo que resultaria benéfico para a filha de
ambos no futuro. E lhe pedia uma prova de amor, mas... Por Deus que ia
dá-la!
—Então, vamos, rápido!
Andrew a beijou, profundamente, antes de virar-se e ir para a porta
fechada.
Rosa tinha baixado já um pé ao chão, enquanto agarrava a bata para
vesti-la, mas, com tão má sorte, que o outro pé se enredou no longo
116
cinturão, ao tentar dar um passo. Assim, não pôde reagir a tempo, e caiu
com estrépito para frente, golpeando a cabeça na esquina bicuda da
mesinha de noite, sobre a qual havia um copo de água meio vazio e um
rosário de contas de madeira com um crucifixo de prata.
Ficou inconsciente no chão, e Andrew correu para socorrê-la.
Abraçou-a muito forte e a estreitou contra seu peito, aflito; instantes depois,
tomou o pulso e se fixou no golpe que levou na cabeça e que começava a
adquirir uma cor púrpura.
Agarrou-a nos braços e a tirou da estadia. Com ela assim, não
poderia escalar o muro, mas, graças à lady Jane, sabia que caminho tomar
para sair pela porta principal sem contratempos. Só devia ter um pouco de
paciência. Logo, seria a hora de laudes, quer dizer, por volta das três da
madrugada. A essa hora, segundo a regra beneditina, era preceptivo que
toda a comunidade religiosa se reunisse na capela para rezar, e faltavam
apenas uns minutos. Ao não ser monja nem noviça, Rosa não tinha essa
obrigação, e, por isso, a encontrou dormindo em seu leito como um anjo.
Lady Jane instruíra Andrew muito bem a respeito.
Olhou o corpo feminino que sustentava entre seus braços com
imensa ternura.
Rosa tinha perdido peso, era de sobra conhecida a austeridade dos
conventos em todos os aspectos, mas ele pensava em mudar essa
circunstância, imediatamente. No momento em que despertasse, conseguir
para ela um café da manhã digno de uma rainha, para lhe pôr carne nos
ossos.
A partir desse momento, estaria junto a ele, em sua casa e em seu
leito. Podia um homem pedir mais? Duvidava.
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Um suave balanço despertou, mas lhe doía terrivelmente à cabeça e,
além disso, sentia o estômago revolto. De repente, recordou tudo. Golpeou-
se, ao cair sobre a mesinha!
Levantou a mão e comprovou que tinha a cabeça enfaixada, embora
pudesse perceber a protuberância do golpe através da fina atadura.
Quando se incorporou, viu Andrew aos pés do leito, observando-a
com olhar cálido. Tinha as mãos apoiadas nos estreitos quadris. Vestia
calça negra ajustada, camisa branca com dois botões abertos no pescoço, e
faixa vermelho combinando com o lenço, que atara como um corsário;
parecia uma mescla de pirata e bandoleiro. O coração se acelerou,
imediatamente, pois estava muito mais atraente que antigamente. Os anos
lhe deram um ar muito mais amadurecido, mas seguia tendo o mesmo
aspecto de patife.
Olhou-o com um pesar tão profundo em seus olhos castanhos, que
conseguiu incomodá-lo, embora não fosse consciente disso.
Andrew seguia suas sucessivas emoções com atenção. Viu-a passar
do amor mais intenso ao arrependimento mais genuíno e se perguntou o
motivo. Os olhos de Rosa lhe demonstravam que seguia sentindo um
interesse muito profundo por ele e algo mais que o mantinha alerta.
—Meu Deus, sou uma insensata! — exclamou ela, com um fio de
voz.
Rosa percebia a enorme estupidez que tinha cometido, ao não falar
com seu irmão e deixar todos seus assuntos bem atados.
Ele seguiu contemplando-a, em silêncio. Hesitando entre ir a seu
encontro e abraçá-la ou esperar que se acostumasse à ideia de não ter o
controle sobre os acontecimentos.
Finalmente, rompeu o silêncio.
118
—Está a salvo — disse, depois de um longo momento que, para
Rosa, pareceu tenso.
Sua mente seguia calibrando as consequências de sua escapada.
—Já estava a salvo, Andrés — respondeu, com a voz fraca — mas,
quando estou com você, não posso pensar. Nubla-me o julgamento e a
razão — acrescentou, com certo pesar.
Andrew esperava outro comportamento por sua parte, não aquela
resignada aceitação; e isso lhe provocava incerteza.
—Desculpe meu ceticismo, Rosa, acaso não estava encerrada entre
quatro paredes, a espera de um julgamento que a tivesse condenado à
forca?
«É certo, mas não tem nem ideia do que fiz», pensou mortificada.
—Graças a John Beresford, minha vida não corria perigo —
esclareceu, com um tom que soava a recriminação. Andrew apertou os
punhos aos flancos, ao ouvir isso — Só tinha de assinar um acordo
voluntário mediante o qual me comprometia a não voltar a me envolver em
uma conspiração contra a Coroa espanhola. Era o preço pelo indulto
devotado e, como garantia, devia deixar minhas posses em Sevilha.
—Então, que seu irmão Alonso envie o acordo à Inglaterra, onde
residirá, a partir de agora. De lá, poderá administrar todos os aspectos
legais presentes e futuros.
Rosa se disse que ele não tinha nem ideia do que podia significar
sua partida.
—Para meu irmão, minha fuga significará uma prova mais de
minha rebeldia e minha intenção de não manter o acordo. — Andrew não o
via como ela — Deveria retornar e tentar consertá-lo.
—Não — respondeu ele, cortante — Se retornar, prenderão você,
de novo, por essas mesmas razões.
119
—É uma possibilidade...
—Já não há volta, Rosa, aceite.
Ela apertou os lábios, aborrecida por sua postura intransigente.
Jogava-se muito!
Vê-lo, depois de tanto tempo, criou um caos emocional. Despertou
todos os sentimentos que acreditava controlados e conseguiu fazer renascer
o fogo da paixão que a consumia, mas, agora, mais calma, dava-se perfeita
conta do enorme engano que cometera. Só teria de esperar um pouco mais
e sua liberdade seria uma realidade sem sombras.
—Não decida por mim! — alfinetou, seca, e Andrew sentiu uma
sacudida em todo o corpo que o deixou tremendo.
Seu rosto, normalmente risonho, adquiriu um tom vermelho de
fúria.
—Acaso não o fez você faz anos? Decidiu por mim e me roubou
cinco preciosos anos de minha filha. É a menos indicada para me lançar
uma acusação assim.
Rosa inspirou fundo. Levantou-se do leito e se aproximou, até ficar
a um passo dele. Equivocou-se ao escolher as palavras; podia ver em seus
olhos o ferido que se sentia.
—Lamento — se desculpou, com sinceridade — mas a
oportunidade de consertar minha situação e ver você, depois de tanto
tempo, me perturbou de tal forma que esqueci tudo. Com você, sempre me
esqueço de tudo.
Suas palavras pareceram, para Andrew, uma recriminação.
O brilho dos olhos azuis se empanou, por um instante, e a olhou,
fixamente, sem piscar. Parecia-lhe inaudito que Rosa acreditasse que
aquela simples desculpa pudesse apagar cinco anos de pérfido silêncio.
120
—Isso é tudo? — perguntou, com voz colérica — Faz uma ideia do
dano que me fez? Suas ações foram uma afronta difícil de assimilar.
—Foi uma decisão provocada pelas circunstâncias — se defendeu
ela.
Andrew estava cada vez mais zangado. Tinha a esperança de
encontrar outra explicação. Medo, vergonha, possivelmente vacilação...
—Pelas circunstâncias? — repetiu, com voz ameaçadora — Acaso
enganei você? Acha que menti? Que a usei, vilmente?
O rosto de Rosa ia adquirindo a cor dos morangos amadurecidos.
Suas palavras soavam devastadoras nos lábios masculinos.
Sentia-se mortificada, porque Andrés tinha razão em tudo.
Enganara-o, ao não lhe dizer quem era realmente. Mentira, ao evitar
encontrar-se com ele nas duas ocasiões em que havia retornado a procurá-
la, e o usara sexualmente para cumprir um propósito: deixar de ser uma
noviça aceitável para a Igreja.
—Teria de experimentar o que se sente, quando mentem para você,
quando usam você.
—Cale-se! Deixe de repetir isso — pediu, angustiada.
—Mas, a diferença de você, nossa filha me importa muito para
devolver a você o que realmente merece.
—Acreditava que me tinha perdoado — disse, em um sussurro.
—Neste momento de minha existência, sinto-me traído, e o perdão
fica em um segundo plano.
Rosa mordeu o lábio inferior, com nervosismo. Ante a alegria de
vê-lo, tinha esquecido o censurável de suas ações.
—Traí você, mas não com intenção de feri-lo. Suas palavras o
fazem parecer vingativo, e nunca pensei que fosse.
—Não sou, mas me custa aceitar sua postura.
121
Andrés escutava sua explicação muito melhor do que ela imaginara.
—Minha postura tem um propósito: proteger Branca.
Andrew esteve a ponto de amaldiçoar, mas se conteve.
—Seu comportamento a pôs em um grande perigo. Esteve a ponto
de deixá-la órfã, converteu-a em uma possível arma para que seu tio se
vingue de você, além de convertê-la em centro dos olhares e a crítica de
todos que a rodeiam, o que a impedirá de levar uma vida digna, porque
sempre será a filha de uma traidora e uma bastarda.
Rosa conteve um gemido. As palavras de Andrew estavam cheias
de razão e a golpearam, ferozmente, embora o tom utilizado por ele fosse
muito mais suave do que merecia.
—Tratava de evitar precisamente isso — disse.
—E isso redime sua premeditada conduta anterior?
—Enviei-a a Inglaterra para seu pai — recordou.
Andrew resmungou ostensivamente.
—Enviou-a a Inglaterra unicamente quando se viu quase com a
soga ao pescoço, não por um gesto de consideração a mim. Acaso os fatos
não a assinalam como uma mulher traiçoeira?
Tinha toda a razão em sentir-se ofendido, mas ela agira por um
sentimento de lealdade e, agora, por medo.
—Traiçoeira não, desesperada — o corrigiu — E o desespero nos
induz a cometer atos impulsivos e equivocados.
—Então, também poderá justificar meus.
—O que trata de me dizer?
Já não respondeu. Falou-lhe sem piedade, mas se sentia tão
ultrajado em seu orgulho masculino que não media as palavras.
—Quando cruzarmos o mar da Irlanda, explicarei.
122
—O mar da Irlanda? — Rosa não compreendia nada — Não vamos
a Portsmouth? — Seu silêncio a alarmou — Aonde me leva?
—Vamos a Gretna Green.
—A Gretna Green? — perguntou, ainda mais confusa.
—Vamos nos casar na Escócia. Minha filha não pode continuar
sendo uma bastarda.
Rosa ficou muda. O peso de suas palavras caiu em cima dela como
um raio paralisante.
Andrés ignorava que estava casado com ela por procuração!
—Não posso me casar com você! — exclamou, com o estômago
encolhido de apreensão.
Andrew tomou sua negativa da pior forma possível e não pôde
conter-se. Emoldurou-lhe o rosto com as mãos e a olhou com olhos como
adagas. Afundou os dedos em sua espessa e longa juba e os fechou como
garras, para obrigá-la a jogar a cabeça para trás.
—Basta! — disse, com voz rouca pelo despeito — Não penso em
tolerar nenhuma negativa mais. No passado me ofereceu muitas, mas, neste
momento, não vou aceitar nenhuma sozinha.
Soltou-a com tanta força que ela esteve a ponto de perder o
equilíbrio, mas pôde segurar-se com a mão direita à camisa dele, para
evitar cair.
—Andrés! — exclamou doída — Não compreende que...?
Não lhe permitiu continuar. Silenciou-a, com um dedo, embora
fosse o obscurecimento de seus olhos o que calou sua réplica.
—Nesse arca, tem roupa. — Assinalou-lhe um baú com a cabeça,
situado em um canto junto à estreita mesa que servia de escritório —
Troque-se e desfrute da travessia.
Saiu do camarote precipitadamente.
123
Rosa ficou pasma. Cheia de um desgosto que lhe provocava um
sufoco físico. John mentira! Andrew não sabia que estava casado com ela.
Deus bendito! E agora como lhe explicava que não podiam casar-se porque
já estavam unidos em matrimônio? E o mais preocupante, como se tomaria
ele esse troco em sua vida, sem ter participado dele? O temor pelo possível
resultado a martirizava, porque a manipulação fora completa.
Andrew teria motivos de sobra para estar, e continuar estando,
completamente zangado com ela.
CAPÍTULO 11
Alonso de Lara olhou para a madre superiora, fulminando-a com o
olhar. Ignorava por que lhe escondera as visitas que havia recebido sua
irmã no convento, dias atrás. E, agora, se inteirava de que desaparecera de
seu quarto sem deixar rastro. Via a religiosa retorcer as mãos, com
124
preocupação, certamente devido às repercussões que poderia ter para a
ordem o aborrecimento da casa De Lara. E tinha razão em estar
preocupada, porque, nesse momento, sentia o impulso de retirar os recursos
que destinava ao convento cada ano.
Olhou para seu secretário e homem de confiança, que seguia
passando um dedo pelos documentos que encontraram nas dependências de
sua irmã, em uma gaveta do pequeno escritório.
Luis do García era um advogado muito competente e trabalhava
para ele fazia vários anos.
Alonso seguia atônito; a roupa de sua irmã estava toda no armário,
assim como objetos pessoais que nenhuma mulher deixaria de forma
voluntária. Seus olhos percorreram o quarto espartano. Podia perceber no
ambiente o perfume de Rosa, e se perguntou, pela enésima vez, por que
teria voltado a enganá-lo.
—O documento é legal — afirmou o secretário.
Alonso apertou os dentes, com força. Fora um estúpido. Sua irmã
seguia sendo igual de rebelde e contumaz.
—A menina foi reconhecida por seu pai — acrescentou, de repente,
o advogado.
—Menina? — perguntou Alonso, com voz furiosa.
—A filha de sua irmã, senhor Lara. Entre os documentos, está sua
certidão de nascimento.
«Rosa tem uma filha? Impossível!», pensou Alonso. Se tivesse, ele
saberia. Começou a caminhar acima e abaixo da estadia. Refletindo,
descartando possibilidades, sopesando alternativas.
—A menina, Rosa Catalina Branca de Lara, nasceu na cidade de
Córdoba.
125
Alonso fechou os olhos, um instante, incapaz de assimilar a
surpreendente noticia. Rosa tinha uma filha! Uma menina que ele
desconhecia por completo!
—Tenho uma sobrinha? — perguntou, completamente estupefato
— E não sabia absolutamente nada? — Seu olhar de falcão se cravou na
religiosa, que desviou os olhos, rapidamente — Isto é uma traição sem
comparação! — exclamou, colérico.
Luis do García continuava examinando documentos.
—O matrimônio de sua irmã com lorde Andrew Robert Beresford é
legal. A cerimônia foi oficiada pelo embaixador inglês, sir George Villiers.
Alonso pensava a toda velocidade. Havia dito Beresford? Tinha de
estar equivocado.
—Os Beresford de Portsmouth? — perguntou, com voz cheia de
ódio e ansiedade.
O advogado assentiu com a cabeça, e Alonso amaldiçoou,
violentamente. Ele conhecia muito bem os Beresford, mas uma dúvida lhe
mordia o coração, lhe provocando um estado caótico difícil de conter:
como Rosa os conhecera? Indubitavelmente, por sua amiga Isabel, a filha
de seu inimigo mais inveterado: o conde Ayllón.
—Maldita traidora! — resmungou, ofendido.
Rosa zombava dele durante anos. Maquinara às suas costas, não só
contra a Coroa, mas também contra a casa De Lara. Tinha a certeza de que,
por trás do casamento de sua irmã com um maldito inglês, estava o conde
Ayllón. E jurou fazê-lo engolir suas manipulações.
—A rainha María Cristina atuou como testemunha ausente do
matrimônio. Aqui está sua assinatura real no documento — prosseguiu o
advogado, que seguia examinando documentos.
126
Alonso cada vez entendia menos. A rainha não podia apoiar a união
de sua irmã com um desconhecido. Tinha de haver um engano.
—Todas as propriedades foram transferidas em nome de sua
sobrinha, senhor Lara. E o pai da pequena foi renomado tutor e curador das
mesmas. — Alonso piscou incrédulo. Abobalhado. Sua irmã jogou suas
cartas com uma astúcia assombrosa — Mas estes documentos são meras
cópias, imagino que os autênticos estarão em poder de lorde Andrew
Robert Beresford.
—Não servem para uma reclamação? — perguntou.
O advogado negou com a cabeça.
—Suponho que sua irmã decidiu fazer uma cópia deles, se por
acaso fosse necessário.
—Necessário para que? — inquiriu Alonso, com voz ainda mais
furiosa.
—Para que a Coroa ou a casa De Lara não pudesse ter acesso às
suas propriedades e a sua fortuna. Com eles, poderia mostrar sua
legalidade, mas não serviriam para levar a cabo uma reclamação, porque
para isso são necessários os originais.
Alonso resmungou, ostensivamente. Mas, se sua irmã acreditava
que o vencera, estava muito equivocada. Cravou seus olhos em seu
secretário e homem de confiança que, agora, contemplava em silêncio os
documentos.
—Vá a Córdoba, ao palácio de Zújar, e procure lá todos os
documentos que ache de interesse. Veremo-nos em Madrid em dois dias.
O outro homem lhe fez um gesto afirmativo. Alonso recolheu todas
as cópias, enrolou-as e as atou com uma fita amarela. Olhou o advogado,
com os olhos semicerrados.
127
—E prepare um contrato matrimonial entre minha sobrinha, Rosa
Catalina Branca de Lara, e o primogênito do duque de Marinaleda, Leon
Alejandro de Fidalgo e Ursina.
Luis do García se recostou no respaldo da cadeira, enquanto olhava
o duque de Fortaleza caminhar de um lado a outro da estadia com rosto
sombrio e um duro olhar.
—Esse acordo matrimonial estava destinado a sua filha, senhor
Lara — disse, de repente.
Alonso se deteve e o olhou. Em efeito, combinara esse acordo para
sua futura filha, mas ainda não tinha descendência e duvidava que a tivesse.
—Mas eu não tenho nenhuma filha, não é? — perguntou, de forma
retórica — Embora me caiu do céu uma sobrinha. Um golpe de sorte que
penso em aproveitar ao máximo.
—O duque de Marinaleda pode pôr alguma objeção a respeito —
disse o advogado, com tom comedido.
—Meu amigo Leonardo não porá objeções — alegou, convencido
— Seu filho tem quase quinze anos, e minha sobrinha cinco. Uma idade
muito apropriada para arrumar um matrimônio entre ambos.
—Devemos pensar na parte contrária. O pai da menina pode opinar
de forma muito diferente — continuou o homem de confiança do Alonso
— Não esqueça que foi reconhecida recentemente. A menina é, portanto,
cidadã inglesa.
Alonso sorriu com cinismo.
—A menina nasceu em Córdoba, não é certo? — O advogado
assentiu — Isso é o único que me importa.
—Deverá obter que a Coroa apoie sua reclamação sobre a menina.
128
—Sou um Grande da Espanha4. A Coroa me respaldará. Como
responsável por minha sobrinha, poderei conseguir um casamento com uma
casa leal à Coroa. E minha irmã estará completamente de acordo, posso
assegurar.
Levavam vários dias de navegação, mas Andrew não fora nenhuma
só vez ao camarote onde Rosa estava encerrada. Esta sentia que mudara
uma prisão por outra. Cada vez que um dos grumetes lhe levava uma
bandeja com comida, ela insistia em sair, mas sempre topava com uma
cortante negativa. E sua fúria ia alcançando o ponto de ebulição necessário
para uma explosão, salvo que não podia ressarcir-se como gostaria.
Passou os dedos pelo cabelo despenteado. No pequeno camarote,
não tinha sequer um pente, assim não ficava mais remédio que levá-lo solto
e desgrenhado. Banhava-se, a cada noite, com água salgada, embora fosse o
suficientemente grata para não queixar-se dessa circunstância. Entretanto,
não suportava a solidão e o silêncio. Apesar dos anos que havia passado no
convento, não se acostumava à falta de companhia e chegou a pensar que ia
voltar se louca, se continuasse presa, com a melancolia como única
acompanhante.
Com o transcorrer das horas, pôde repassar uma e outra vez sua
situação.
Escapara de Sevilha no momento menos indicado. Pretendia fazer
as coisas bem pelo futuro de sua pequena, para que pudesse voltar para
Córdoba sem que a considerassem uma pária, mas isso agora já não poderia
4 “A Grandeza da Espanha é o máximo título da nobreza espanhola na hierarquia aristocrática. É
também a mais alto título de seu tipo em toda a Europa. Seus privilégios foram maiores que os de
outras figuras similares: pares da França ou do Reino Unido.”.
129
acontecer. Depois do indulto, teria de viver na Inglaterra, mas de que lhe
servia? Amaldiçoou sua má sorte e a teimosia de Andrew por não escutar
as razões que havia enumerado para retornar imediatamente à cidade de
Guadalquivir. Ao pensar nele, o coração se acelerou de novo. Estava muito
mais atraente e viril, sem que a veia de canalha que o caracterizava tivesse
desaparecido nem um pingo. Mas ambos estavam colocados totalmente em
uma situação bizarra, casados sem que uma das partes soubesse. Rosa
concluiu que merecia tudo o que lhe ocorria; por agir sem pensar nas
consequências.
Vivera de forma temerária, dando passos perigosos sem calibrar
aonde a levariam e, agora, se encontrava com o que se procurou com sua
soberba: o desterro e o desprezo do homem que mais lhe importava. Porque
não cabia a menor dúvida de que Andrew a desprezava. Seu olhar colérico,
cheio de recriminações, o dizia. Ela o feriu de uma maneira profunda,
completa. A mente de Rosa, rebelde e faminta, voltava uma e outra vez aos
dias que passara em sua companhia. Amando-o de uma forma louca e
alucinada.
A primeira noite, quando o conheceu, se vestia e ria como um
fazendeiro cordovês, salvo por aqueles olhos cor de céu, e o cabelo
dourado. Andrew a olhou, e todo seu corpo se amotinou em um desejo que
a abrasou por completo. Nunca desejou nada com tal intensidade, até o
ponto da loucura, e essa imprudência temerária de ansiar o que não devia
ainda a martirizava, porque se comportara como uma tola, com uma
insensatez carente de toda lógica. Mas Andrew lhe correspondeu, e ela se
refugiou em seus braços com uma força demolidora e, logo, o afastou de si
por essa mesma loucura que a havia possuído.
130
A porta do camarote se abriu com certa brutalidade, e Andrew
apareceu por ela. Entrou com semblante sério e olhar crítico, e Rosa se
encolheu como se houvesse sentido uma dor repentina.
—Acabamos de entrar na baía de Portsmouth.
Suas palavras a desconcertaram.
—Então, não vamos cruzar o mar da Irlanda?
—Há uma pequena mudança de planos.
—Por quê? — Rosa esperava que explicasse, mas o mutismo dele
lhe resultou inesperado — Mereço saber, Andrés.
Ele a olhou com um brilho resistente que lhe produziu um calafrio.
—Saberá ao seu devido tempo. Agora, prepare-se para deixar o
navio. Toma, cubra-se com esta capa.
Rosa pôde agarrá-la, antes que caísse no chão. Seguia de camisola.
Andrew não teve a previsão de pegar um vestido de seu armário no
convento, quando ela bateu a testa na mesinha de noite.
Ele partiu da mesma forma que chegara: com brutalidade, e ela
ficou de pé, no centro do camarote, sem saber a que ater-se. Recordou a
azeda discussão que mantiveram dias atrás e procurou o motivo para sua
mudança de atitude, agora, distante e fria. Não parecia o mesmo homem
pelo qual se apaixonou, e a culpa a afogava.
As seguintes horas foram caóticas.
No navio, os marinheiros iam e vinham pela proa e popa a toda
velocidade, em uma atividade frenética que lhe resultou viciante pelo
contraste com o tempo em que passara em absoluta passividade. Rosa
ignorava todo o relativo ao manejo de um veleiro, nunca teve ocasião de
viajar por mar; a maior parte de sua vida transcorreu entre quatro paredes
silenciosas, sem companhia, salvo os anos que havia vivido e estudado na
França, que foram os mais formosos e frutíferos, embora cheios de
131
insatisfações. Ninguém lhe perguntara nunca aonde queria viver, o que
desejava fazer com sua vida; sempre agiram por ela, tomado decisões em
seu nome. Primeiro, seu pai, depois, seu irmão, e, agora, Andrew.
Do corrimão do veleiro, pôde ver a atividade do porto, os diversos
navios amarrados, a atividade comercial do entorno e a carruagem com o
emblema dos Beresford na porta esperando no porto. Uma brisa fria
penetrou pela barra de sua camisola e formou redemoinhos com o tecido
entre suas pernas. A fina capa não a protegia do vento gelado que soprava.
A diferença com o clima de Sevilha era mais que notável, mas, ao olhar as
verdes montanhas, seu cenho enrugado se distendeu. A Inglaterra era um
país formoso. Poderia encaixar-se ela lá?
—Preparada? — voltou-se, bruscamente, ao ouvir a voz de Andrew,
parado atrás dela — Sua filha a espera.
Suas palavras conseguiram fazê-la perder a coragem, porque se
tinha referido à pequena Branca unicamente como filha dela, não de ambos.
Não soube como tomar a frieza que mostravam seus olhos e a expressão
cínica daquela boca que ansiava beijar.
—Andrés... — começou — nunca pretendi ferir você, ao menos, de
forma consciente. — Calou um momento para posar a mão no braço dele
— Peço, por nossa pequena, que dissimule o ressentimento que sente por
mim diante dela. Por favor. Somente na presença da menina, o resto da
gente não me importa.
Andrew a olhou, com intensidade.
Rosa voltava a ser a mesma mulher que o rechaçara no passado:
comedida, séria, prudente, amadurecida. Mas ele sabia que era uma
fachada, porque, entre seus braços, era toda fogo e paixão. Por isso, agora,
detestava sua aparência altiva, senhorial.
132
—Não pressuponha meus sentimentos — respondeu — Estou
furioso, decepcionado, mas não sinto ressentimento por você.
O coração de Rosa voou durante um segundo, impulsionado por
uma alegria desconhecida.
—Obrigado — disse, comovida. Ele contemplou como seus lábios
pronunciavam seu agradecimento — Não mereço sua consideração nem
sua amabilidade, depois do trato injusto que lhe dei.
Andrew elevou as sobrancelhas, interrogante. Sua aparente
submissão resultava todo um enigma para ele, e deduziu que os dias que
Rosa passou em solidão tinham obrado o milagre de lhe insuflar sensatez,
ao menos, essa era sua intenção.
Manter-se afastado dela custou-lhe um esforço sobre-humano.
—Nisso estamos de acordo — respondeu, com voz tranquila — O
rancor é uma emoção que desprezo e que não tem lugar em minha vida.
Confio em que não se esqueça disso.
Por que motivo sua elucidação, tão seca, parecia uma ameaça?,
perguntou-se Rosa, com curiosidade.
—Não esquecerei.
—Então, vamos, Whitam Hall nos espera.
Rosa tomou o braço que Andrew lhe oferecia e o seguiu pela
passarela em suspense.
Uma nova vida se abria ante ela, mas não estava segura de estar à
altura. Tinha medo, mas que ser humano poderia manter-se impávido ante
tamanhas adversidades? Estivera tão perto da morte que ainda não se
recuperou do susto.
Sob os dedos gelados percebia a força dos músculos de Andrew e
não soube por que estranha razão isso a fazia sentir-se reconfortada. Sem
querer, ele sempre teve essa capacidade de fazê-la sentir-se a salvo. E
133
esperava que essa emoção fundamental não se esfumasse nunca de seu
corpo nem de seu coração.
Whitam Hall era espetacular. A mansão fora erguida em um terreno
alto e, na extremidade, dominava a baía de Portsmouth por completo. Com
seus dois andares, elevava-se orgulhosa para o céu. A fachada era luxuosa,
sólida, majestosa. Quando Andrew a conduziu para dentro, sua surpresa
aumentou ainda mais. No amplo vestíbulo, havia duas escadas, uma de
frente para a outra, que subiam ao andar de acima. Os móveis pareciam
fabricados especialmente para a casa, e os numerosos quadros do saguão
ofereciam ao convidado a magnífica oportunidade de admirá-los e valorá-
los, enquanto esperavam ser recebidos. Deteve-se ante um que chamou,
poderosamente, sua atenção. Era o último da fileira, e a mulher
representada no tecido a deixou sem respiração, durante um momento. Era
bela e, indubitavelmente, de origem espanhola.
Andrew observou a série de emoções que atravessaram o rosto dela,
ao olhar os retratos de sua família.
—Quem é? — perguntou Rosa, cheia de curiosidade.
—Minha irmã Aurora — respondeu ele.
—É muito bonita.
«Não tanto como você», pensou Andrew, sem deixar de olhá-la.
Uma voz infantil no andar superior fez com que Rosa levasse a mão
à garganta, sobressaltada. Hesitava entre dar um passo ou ficar quieta. A
pequena Branca descia os degraus com rapidez, acompanhada de lady Jane.
Gritava e aplaudia, ao mesmo tempo, e, quando desceu o último degrau,
ficou parada, durante um instante, antes de voltar a gritar como uma louca.
—Mami! Mami!
134
Empreendeu uma veloz corrida em busca dos braços de sua mãe,
que ficou de cócoras, justo no momento em que Branca chegava a seu lado.
Estreitou-a em um abraço tenro e amoroso, enquanto a cobria de beijos.
—Minha menina preciosa. Como está grande!
Menina e mulher riam e falavam, ao mesmo tempo. Andrew pôde
notar a emoção na voz de Rosa. A esperança que continha e a alegria que a
transbordava. Um momento depois, a pequena se separou dos braços de sua
mãe e correu a abraçar-se às pernas de seu pai. Andrew ficou cravado no
chão, ante essa amostra de afeto inesperado.
—Obigada!Obigada!
Ele a segurou nos braços e a estreitou, com força. Sua felicidade
resultava contagiosa.
—Disse que a reuniria logo com ela. Tinha esquecido?
Rosa contemplou extasiada a imagem de Andrés girando com a
filha de ambos nos braços e sentiu um nó na garganta que a impedia de
respirar. Nesse momento, era plenamente consciente do enorme dano que
lhe fizera com seu silêncio, e essa certeza lhe pesou na alma como se
levasse em cima de si uma imensa roda de moinho.
Lady Jane abraçou Rosa com carinho e respeito.
—Alegro-me tanto de vê-la— disse, emocionada.
—Obrigado por cuidar de minha pequena — respondeu ela.
Marcus, o mordomo, pigarreou para chamar a atenção de Andrew.
—A bagagem já está descarregada da carruagem, assim como
outros equipamentos que levou.
—Obrigado, Marcus. Ordene que preparem o quarto dourado para a
senhora Lara.
—Ocupei-me disso, antes de sua marcha.
Andrew sorriu. O homem era excepcionalmente eficiente.
135
Rosa mordeu o lábio inferior, preocupada. Tinha de haver revelado
a Andrew que estavam casados, mas, depois de cinco anos de separação,
quase lhe parecia um insulto. Sopesou se seria melhor que fosse John quem
informasse a seu filho da medida adotada em seu nome para liberá-la da
forca e tirá-la da Espanha. Finalmente, não sem certas reservas, decidiu que
o marquês era o mais apropriado para explicar.
Esperaria sua volta para lhe revelar a Andrew o matrimônio entre
ambos.
—Seu irmão Christopher e sua esposa deverão jantar aqui, esta
noite.
Andrew fechou os olhos ante a notícia. Quão último precisava era a
presença de seu irmão mais velho e sua cunhada em seu primeiro dia em
Whitam, mas não disse nada. Seguia com sua filha nos braços, que agora
havia recostado sua pequena cabecinha em seu ombro com verdadeiro
prazer.
—Acompanhamos a mamãe a seu quarto?
A pequena Branca lhe fez um gesto afirmativo.
—Esperarei vocês na biblioteca — disse lady Jane, com as mãos
cruzadas sobre o colo.
Os três seguiram Marcus para o andar superior.
Rosa caminhava atrás de Andrew e sua filha. Contemplou,
entusiasmada, o laço paterno-filial que se desenvolveu entre eles, e isso a
enterneceu, profundamente. Disse-se que o sangue podia mais que a lógica
e os raciocínios. Andrew poderia estar zangado com ela, mas jamais
pagaria com a pequena. E todas as dúvidas que sentia, antes de decidir
entregar-se, se voltaram contra ela de uma forma feroz. Cinco anos atrás,
equivocou-se, e esse tempo maravilhoso e único já não poderia ser
recuperado.
136
Marcus se deteve em frente a uma porta fechada, procurou entre
suas chaves a da habitação e, um momento depois, estava abrindo as
cortinas e abrindo as janelas que davam ao jardim traseiro.
Rosa contemplou o quarto com agrado. Ao ver os marcos dourados
dos quadros e o espelho, assim como a colcha, compreendeu por que o
chamavam de quarto dourado.
—É precioso — conseguiu dizer.
—A habitação de Branca é contigua a esta — informou Andrew —
Lady Jane está alojada no outro extremo do corredor.
Marcus ordenava alguns objetos de cama que as donzelas deixaram
aos pés do leito.
—Lamento que não tenha roupa, mas Emma lhe trará algumas dos
objetos que minha irmã deixou em Whitam, quando se mudou para seu
novo lar. A donzela a ajudará a fazer os acertos necessários para que lhe
sirvam. Confio em que possa vestir algum dos vestidos antes do almoço.
—Não se importará? — perguntou ela, com certa vacilação.
As mulheres costumavam ser muito possessivas com seus pertences
e a última coisa que desejava era incomodar a irmã de Andrew.
—Aurora é muito generosa, estará encantada em ajudar.
—Obrigada.
—Amanhã, iremos a Portsmouth para lhe encomendar um novo
vestuário. — Rosa permaneceu em silêncio — Logo, virei buscar você para
acompanhá-la à sala de jantar.
A seguir, deixou a pequena Branca no chão. Esta correu até o leito e
se sentou sobre o fofo colchão.
—Passe bem — disse Andrew à menina e, depois, girou sobre si
mesmo e se encaminhou à porta que Marcus sustentava aberta.
Um instante depois, o quarto ficou em silêncio.
137
CAPÍTULO 12
Andrew não sabia como enfrentar os acontecimentos.
Quando decidiu ir em busca de Rosa para tentar salvá-la, tinha as
ideias claras, mas agora tudo se tornava de um cinza tão escuro que o
impedia de orientar-se para avançar. Estava preciosa, muito mais formosa
do que recordava, mas sua contenção era um muro que ele não poderia
138
escalar, se ela não o ajudasse. Sua nova negativa a casar-se com ele lhe
causou o mesmo efeito que uma estocada direta no coração. Não pudera
convencê-la cinco anos atrás, e, agora, embora acreditasse, erroneamente,
que a pequena Branca seria o meio para que ela cedesse, ao fim, havia
tornado a equivocar-se por completo. Por esse motivo, mudou seus planos.
Gretna Green podia esperar por um momento mais propício. Enquanto isso,
ele tinha ante si a maior provocação de sua existência: obter sua completa
capitulação.
Rosa de Lara era a mulher de sua vida. Descobrira isso na granja
Azhara, na mesma noite em que a conheceu. Seus olhos inocentes, sua boca
sensual sorrindo, selaram seu destino. Mas ignorava tantas coisas dela, que,
agora, se perguntava como se conectaram de uma forma tão especial no
passado.
Entretanto, em parte, se sentia tranquilo. Agora, Rosa dependia
unicamente dele, porque havia deixado tudo para acompanhá-lo à sua
pátria, e, embora o patrimônio do Andrew não fosse muito, poderia mantê-
la de forma folgada, até que encaminhasse sua vida profissional. Fora um
excelente estudante, com notas mais que satisfatórias, e pensava que não
lhe resultaria difícil encontrar uma ocupação adequada a sua formação
acadêmica. Inclusive, estava disposto a pedir a seu pai para que lhe desse
uma mão para obter seu objetivo.
Não obstante, se mostrava precavido. Tinha a mente cheia de ideias
e o coração transbordante de ilusões, mas as mãos vazias de respostas por
parte de Rosa, embora nada pudesse mudar as grandes expectativas que se
abriam, ao tê-la em seu lar. O futuro se apresentava cúmplice,
possivelmente conciliador, e não pensava em desperdiçar as oportunidades
que o destino colocava em seu caminho. Tinha de convencê-la. Havia
139
muitas coisas contra, mas, mesmo assim, algumas questões deviam ser
discutidas e resolvidas entre ambos.
Chamou com suavidade à porta fechada do quarto. Lá dentro podia
ouvir a risada de Branca e a voz melodiosa de sua mãe, que lhe dizia que
deixasse de pular sobre o leito. Seu coração palpitou, emocionado. Ele, que
fazia umas semanas era um excêntrico sem rumo e sem uma meta essencial
na vida, tinha, agora, a seus cuidados duas preciosas flores; tão delicadas e
especiais que pensava em pôr todo seu empenho em cuidar delas e mimá-
las como mereciam. O conceito de família o orgulhava, pois sempre
invejou a felicidade que se respirava no lar de sua irmã e no de seu irmão
Christopher. Andrew queria o mesmo para si e, agora que tinha uma filha,
devia velar por sua segurança futura.
Branca abriu a porta e, ao ver seu pai de pé na soleira, dedicou-lhe
um sorriso capaz de derreter qualquer um, desses que transformam tudo em
positivo. E Andrew soube que, com ela, ia ter um enorme problema, porque
não poderia negar nada do que lhe pedisse.
—Estão preparadas?
A menina o pegou pela mão para ajudá-lo a entrar, como se intuísse
que precisava.
—Mamãe tem problemas com o decote e desidiu trocar de vestido.
A palavra «decote» lhe produziu um caos emocional.
Recordava, perfeitamente, seu corpo nu entre seus braços, seu
aroma doce e sua pele quente. Teve de pigarrear para recuperar a voz. Só
de pensar intimamente nela, tremia de desejo.
—Sua tia é mais alta que mamãe, e, por isso, o vestido não se ajusta
a sua estatura.
Branca enrugou a fronte assimilando as palavras de seu pai. Ela não
conhecia sua tia, e não sabia se era tão alta como lhe dizia.
140
—Mamãe diz que não tem peitos.
—Branca! — A exclamação de Rosa chegou do interior do quarto
de banho.
—Pelo que me lembro, isso não lhe falta — disse Andrew à
menina, como se fosse um segredo.
—Andrés! — voltou a exclamar Rosa, mas mais horrorizada —
Querida — acrescentou, dirigindo-se a Branca — não deve repetir as
palavras que ouve dos adultos, quando estes mantêm uma conversa que não
é com você. — Seu tom foi contundente, para que o efeito da reprimenda
não perdesse sua finalidade: a correção — E mamãe não disse essa palavra.
—Que palavra? — perguntou Andrew à menina como se não a
tivesse ouvido.
—Peitosss — voltou a dizer Branca, arrastando os esses.
—Ah, isso! — exclamou, zombador.
Como podia manter uma conversa tão escandalosa com a menina e
de forma tão natural? Apareceu pelo oco entre o quarto de banho e o
dormitório e ficou olhando pai e filha com olhos amorosos.
Nenhum dos dois se precaveu disso.
E terminou por esboçar um sorriso. Educar a pequena era uma
tarefa constante e pensou que, graças a Andrew, agora, todo seu esforço
terminaria indo por água abaixo, porque ele mesmo era um menino; mas
estava adorável olhando para sua filha com aquela admiração. Não cabia
dúvida do muito que a queria. E voltou a sentir-se terrivelmente culpada.
—Disse busto — matizou, cruzando a soleira que dividia o quarto
de banho do quarto.
Andrew a olhou, mas o sorriso se apagou de seu rosto, ao
contemplar seu traje. Vestia roupas de criada: saia negra e blusa branca.
141
Rosa soube o que se passava em sua mente naquele preciso
momento.
—Andrés, não é um desprezo a sua irmã, mas sua roupa fica
enorme em todos os sentidos. Emma teve a amabilidade de me emprestar
algo dela. Ambas temos as medidas parecidas.
—Também eu poderia lhe emprestar algo meu — ofereceu ele, com
um olhar enigmático — Se pusesse isso, faria-me imensamente feliz.
Andrew tinha em mente sua bata de cetim azul. Seria interessante
vê-la vestida sem nada debaixo, só a pele acetinada de seu corpo; o tecido
arrastaria pelo chão, fazendo com que se abrisse na frente, deixando
expostas suas coxas brancas...
Ao ouvir o gorjeio de Branca, Rosa olhou para ambos com olhos
semicerrados; ao parecer, guardavam um segredo. Pai e filha trocaram um
olhar cúmplice que a fez lançar um suspiro.
A pequena voltou a gemer, afogando uma risada.
—Por que riem? — perguntou-lhes, cheia de curiosidade, mas
nenhum dos dois respondeu.
—Está preparada? — A voz de Andrew soou pouco séria.
Ela fez um gesto afirmativo e tomou a mão que lhe estendia, mas,
antes de sair do quarto olhou para a donzela.
—Obrigado, Emma, por sua amabilidade. Logo, lhe devolverei a
roupa.
A moça lhe sorriu e continuou recolhendo os objetos que ficaram
pulverizados sobre o leito, depois das numerosas provas.
—Como e onde lhe contou? — perguntou Andrew.
142
Nesse momento, Rosa olhava para sua amiga Jane, que conversava
animadamente com Branca no outro extremo do salão.
—Como lhe contei o que...? — disse ela, voltando à cabeça para
ele, que estava a um pequeno passo.
—Que sou seu pai. — Sua voz tinha um tom de causar pena que
enterneceu Rosa — Tinha me proposto manter esta conversa contigo em
um momento mais propício, mas não posso esperar, a impaciência me
devora, e preciso saber.
Rosa piscou várias vezes, tentando tragar o doloroso nó que sentia
na garganta. Teria de passar muito tempo para que Andrew superasse sua
decepção e ela seus remorsos.
—A mesma noite em que partiu de Zújar a seu encontro.
Andrew tinha uma pequena esperança de que tivesse contado antes
e não na noite em que a prenderam, como acabava de lhe dizer ela, porque
isso queria dizer que, se não fosse pelas atuais circunstâncias, ele seguiria
sem saber da existência da pequena.
—Branca não me disse nada a respeito — explicou ele — Manteve-
se em silêncio como se fosse um segredo muito importante. — Havia
melancolia em sua voz masculina?, perguntou-se Rosa — Todos me
mantiveram na ignorância, e, uma vez que soube, essa atitude me
desanimou.
—Lamento — voltou a desculpar-se.
Podia imaginar o difícil que resultava a ele toda aquela situação,
mas Rosa lhe escrevera uma carta contando-lhe tudo, junto com os
documentos legais para que reconhecesse Branca. Ignorava que John lhe
escondesse e, o mais preocupante, por que? Não lhe ocorriam as palavras
idôneas para suavizar a decepção que lhe provocara, exceto dizer a
verdade.
143
Andrew sentia muitas coisas, nesse preciso momento, e a
indulgência não era uma delas. Não podia evitar os sentimentos que o
sacudiam.
—Nunca lhe disse que seu pai estivesse morto, a não ser longe por
circunstâncias alheias que ela não podia entender ainda. — Embora
Andrew devesse haver sentido certo alivio, ao ouvi-la, não foi assim. Doeu-
lhe a manipulação de Rosa a respeito de sua paternidade, mas não disse
nada; continuou em um silêncio distante — Pouco antes que me
prendessem — continuou ela — dava-lhe instruções precisas sobre você e
sobre a viagem que ia empreender. Branca sabia que ia reunir-se, ao fim,
com seu pai, mas lhe pedi prudência e cautela, recordei-lhe que era possível
que não a recordasse, porque tinha passado muito tempo. — Os olhos dele
se estreitaram, com dor — Fiz-lhe prometer que guardaria silêncio até
comprovar que a aceitava, que a recebia com afeto. É uma menina muito
inteligente e entendeu perfeitamente minhas palavras.
—Maldita seja, Rosa! É muito pequena para carregar com essa
responsabilidade. Como pôde...? — Mas não pôde continuar, porque Rosa
cortou seu arrebatamento.
—Fiz o melhor que soube — respondeu, com voz fraca.
—Por que não me disse isso, quando fui buscar você? — Seu tom
era de desgosto — Merecia saber. Tinha uma filha, uma filha do amor, que
mantinha deliberadamente separada de mim.
Esse fora seu engano maior, pensou ela, mas já não podia mudar.
—Não estava preparado para ser pai — soltou, de repente, mas, ao
momento, retificou — Acreditei que não estava preparado.
O dano já aparecia, e não podia retirar suas palavras, que
pareceram, extremamente, ofensivas.
—Estava você para ser mãe?
144
Rosa o olhou de frente e, um segundo depois, negou com a cabeça.
A tristeza de Andrew a desarmava.
—Nossa pequena não foi concebida por obrigação nem por honra, a
não ser, como você mesmo disse, por amor. E, por esse amor que sentia por
você, não queria atá-lo a minha vida com os laços de um dever e um
compromisso que não tinha procurado.
Andrew não pôde evitar apertar a mandíbula, ao escutá-la. Parecia-
lhe que as razões que esgrimia eram meras desculpas.
—Uma filha é uma responsabilidade, e eu estou acostumado a levar
as responsabilidades muito a sério — respondeu com voz tranquila, embora
com certo ressentimento que não tentou esconder.
—Aí tem a resposta — replicou Rosa — Era uma responsabilidade
que não procurava, e não me senti com suficiente força moral para obrigá-
lo.
Disse-se que Andrew era um homem que não se intimidava ante
nada. E um espírito livre como o seu não podia ser escravizado por um
arrebatamento de paixão que produziu um filho. Por que ele não podia vê-
lo com a mesma objetividade?
—Casaria com você sem vacilar — disse, com os olhos
semicerrados e ameaçadores. Rosa pensou que casar-se não era o problema.
Andrés retornara a Córdoba em duas ocasiões, para convencê-la — Mas
não me deu a oportunidade de oferecer meu amparo para você e a menina.
Deixou-me à margem, sem ter em conta meus sentimentos.
De sua boca, fluíam todas as recriminações que merecia.
—Quem era eu para cortar suas asas e mudar o rumo de seu voo?
— espetou, com o coração em um punho — Estava de passagem em minha
vida, eu simplesmente seria uma lembrança seletiva em sua memória. Não
145
me devia nada, não lhe pedi nada — concluiu, com um fio de voz —
Deseja me fazer sentir culpada, mas lhe asseguro que não é preciso, porque
os remorsos não me deixam dormir à noite. Entretanto, não posso mudar os
fatos por mais que o anseie.
Andrew sentiu que a irritação crescia dentro dele, mas não podia lhe
dar saída porque não estavam sozinhos. Para Rosa, tudo tinha justificativa,
mas ele se sentia com uma parte de sua alma decepada. Ia replicar, com
secura, quando Marcus anunciou a chegada de Christopher e Ágata, com o
pequeno Chris. Andrew guardou para si a enxurrada de recriminações para
um momento mais apropriado, quando pudessem esclarecer coisas de
forma definitiva.
Precisava, com desespero, escutar toda a verdade de seus lábios.
As apresentações entre cunhados tiveram lugar com suma cortesia.
Christopher mostrou tosa sua elegância para fazer Rosa e Jane se
sentirem confortáveis em sua presença.
De vez em quando, Ágata olhava o rosto do Andrew, escurecido
por um sentimento de perda e dor como não nunca vira. Não parecia o
mesmo homem despreocupado e risonho que sempre fora. E, durante o
jantar, se mostrou calado, distante, como se estivesse perdido em
pensamentos dolorosos. Sentia vontade de estender a mão e lhe transmitir
um pouco de ânimo, mas se conteve com esforço.
Fixou-se em que Rosa não levantou os olhos dos diferentes pratos,
durante o jantar. Parecia incômoda e chateada. Felizmente, a pequena
Branca não era consciente da batalha emocional que seus pais mantinham
em silêncio. A pequena estava absorta, tentando que Chris segurasse o
garfo da forma correta, e esse detalhe lhe arrancou um sorriso de empatia.
Ambos os meninos tinham quase a mesma idade, mas Branca era muito
mais amadurecida, e Ágata recordou quão difícil resultava criar um filho
146
sozinha. Ela mesma tinha sofrido na carne, por isso, compreendia bem
Rosa, embora também se compadecesse por Andrew.
Tinham o mesmo problema que viveram Christopher e ela, anos
atrás, mas, ao fixar seus olhos na pequena, que seguia de modo atento cada
ação do pequeno Chris, disse-se que não importava o abismo que parecia
separá-los, Branca ia ser o conduto que canalizaria de novo as ilusões e as
metas de ambos.
Sorriu ante esse pensamento reconfortante, entretanto, as seguintes
palavras de Christopher acenderam um paiol de pólvora devastador. Apesar
de lhe dirigiu um olhar de contenção, ele não a respeitou. Elevou sua taça
de champanhe em direção ao casal que seguia em um silêncio incômodo,
enquanto Ágata fazia vários gestos negativos com a cabeça que seu marido
ignorou por completo.
—Bem-vinda à família, lady Beresford.
Nesse momento, os olhos de Andrew brilharam como duas chamas
incandescentes. Escutou com suma atenção as palavras de seu irmão.
—É um enorme prazer recebê-la entre nós como esposa de meu
irmão mais novo. — Alguém gemeu, mas ninguém soube de que boca saíra
à exclamação — Ordenei a Marcus que sirva uma sobremesa especial para
celebrar o acontecimento. Um casamento é um casamento, embora o noivo
estivesse ausente, enquanto se celebrava.
Rosa conteve a respiração, ao mesmo tempo em que abria muito os
olhos pelo horror e a surpresa. Ágata tentou dar a Christopher um pontapé
por debaixo da mesa, sem conseguir; não podia alcançá-lo, porque presidia
a mesa, sentado à cabeceira da mesma.
Andrew cravou as pupilas na mulher sentada a seu lado, que não
afastava os olhos do rosto de seu irmão, e, por alguma estranha razão,
soube que as palavras de Christopher eram a chave.
147
Contemplou a quebra de onda de emoções contraditórias que
cruzaram o formoso rosto de Rosa, que ficou da cor das rosas vermelhas.
Viu com interesse o sobressalto que tentava conter, a surpresa e a vergonha
que expressou, ao mesmo tempo, em questão de segundos.
Fechou os olhos com uma terrível suspeita.
—Obrigado, lorde Beresford — disse Rosa, com voz entrecortada.
E, logo, desviou os olhos de Christopher para cravá-los em Andrew, mas
este não olhava para ela, a não ser para um ponto indeterminável da sala de
jantar — Mas não mereço semelhante honra.
O chiado das pernas da cadeira, ao ser corrida para trás com
brutalidade, foi desagradável e premonitório. Andrew se levantou e a olhou
de forma penetrante, aguda, quase com violência.
—Nisso estamos de acordo — conveio, com voz áspera e
ressentida.
Um momento depois, abandonou o local com descortesia, sem virar
para trás.
CAPÍTULO 13
—Christopher! — exclamou Ágata.
—Meu Deus! — soluçou Rosa.
—O que acontece? —perguntou Branca, com semblante
preocupado, ao ouvir a imprecação de sua mãe.
A menina contemplou a saída do Andrew com surpresa, sem saber
o que tinha acontecido entre os adultos. Só viu que sua mãe parecia
148
angustiada e deixou o garfo sobre o prato para ir com ela. Mas lady Jane,
rápida e intuitiva, a segurou pela mão para impedi-la. Um segundo mais
tarde, levantou-se para abandonar o salão. Tinha pegado a pequena nos
braços, enquanto lhe sussurrava algo ao ouvido que a deixou em silêncio e
total. Um instante depois, estendeu a mão ao pequeno Chris, convidando-o
a ir com elas. O menino não o duvidou. Desceu da cadeira e os três se
foram da sala de jantar.
O silêncio que seguiu a seguir resultou pesado e cheio de coisas não
sortes.
—Por que fez isso? —perguntou Ágata a Christopher, com a voz
tensa.
Rosa não podia elevar os olhos do prato. Sentia-se mortificada.
Ainda notava cravado nas vísceras o olhar sofredor de Andrés, antes de
abandonar a sala de jantar.
—Acreditei que sabia ou que devia saber — se desculpou ele, que
ainda não era consciente da brecha aberta entre seu irmão e sua cunhada.
—Não pude dizer-lhe. O medo me paralisou — confessou Rosa,
fechando os olhos.
Christopher emudeceu, ao ouvir seu tom desolado. Andrew não
sabia que estava casado? Acaso não havia resgatado Rosa ele mesmo?
—Recebi um telegrama de meu pai me contando que tudo tinha
saído de forma satisfatória — explicou — e que, por isso, decidiu
descansar uns dias em Granada, com minha irmã e sua família. Meu pai
precisava recuperar as forças, por isso, não está em Whitam conosco.
Supus que, depois de sua partida de Sevilha, tudo estava esclarecido.
Rosa pensou que tudo se complicava. Ela esperava ver o John em
Whitam e, agora, entendia o motivo de sua ausência.
149
—Quando nos despedimos, seu pai não mencionou aonde ia, e
supus que retornava a Grã-Bretanha.
—Por quê? — Ágata reiterou a pergunta a seu marido, mas foi Rosa
a que respondeu.
Olhou para Christopher, enquanto este sustentava o olhar com
determinação.
—John Beresford me fez acreditar que Andrés concordava com o
casamento. Quando descobri a mentira, senti-me incapaz de lhe revelar a
verdade. Imagino que primeiro queria comprovar seus sentimentos a
respeito. Mas, agora, já é tarde.
Christopher meditou um instante.
—Meu irmão é um homem capaz e amadurecido, aceitará que o
casamento por procuração foi um mal necessário.
Rosa piscou várias vezes, tentando conter as lágrimas. Suas
palavras acertaram em cheio. Seu casamento podia se considerar um mal
necessário.
—Christopher! — voltou a exclamar Ágata. Parecia-lhe inaudita a
falta de tato de seu marido, ao tratar de um assunto tão delicado e
espinhoso.
Rosa esticou os ombros, e suas pupilas brilharam com
determinação.
—Já não há motivos para manter esta farsa. Minha vida já não corre
perigo. O casamento foi concebido para me tirar da Espanha e evitar meu
enforcamento. Andrés voltará a ser um homem livre, eu asseguro.
Ágata pensou que Rosa se equivocava nas palavras e na maneira de
enfocar o assunto.
—Permita que seja ele quem tome a decisão em uma direção ou em
outra — aconselhou — Ele merece.
150
Rosa meditou sua sugestão e soube que tinha razão. Andrew devia
ter a última palavra sobre a situação de ambos.
—Assim o farei, embora duvide que agora me escute —
reconheceu, cheia de tristeza.
—Não o fará — vaticinou Christopher, escurecendo ainda mais o
semblante dela — Esconderam muitas coisas dele. Um homem tem seu
orgulho, e o de meu irmão foi muito pisoteado nestas semanas.
A vergonha tingiu de um vermelho intenso as bochechas de Rosa, e
Ágata decidiu romper uma lança em seu favor, ao ver a tribulação que
sentia.
—Andrew possui a capacidade necessária para compreender e agir
em conformidade. Não terá de julgar uma postura que não tomou ainda —
disse — Falarei com ele — acrescentou, depois.
—Não! — exclamou Christopher — Eu sou tão culpado como o
resto por guardar silêncio. É justo que eu seja quem tente apaziguá-lo.
Rosa não escutava nenhum dos dois. Sentia que devia procurar
Andrew. Deixaria que ele tomasse a decisão de seguir casado com ela ou
não.
—Onde posso encontrá-lo? — perguntou, com voz triste — Tenho
a obrigação de falar com ele, antes que ninguém. Devo-lhe cinco anos de
silêncio. Quero manter uma conversa em particular com ele de forma
urgente.
Ágata e Christopher a olharam, com surpresa, e, logo, calibraram
qual seria a melhor alternativa naquelas circunstâncias.
—É justo, Christopher — disse Ágata.
—No porto, há um botequim, Port Royal, Andrew está acostumado
a ir lá, de vez em quando, para tomar uma cerveja, quando se sente
intranquilo. — Rosa se levantou da cadeira e se encaminhou para a porta
151
— Não é um lugar apropriado para uma dama — acrescentou Christopher
— Acompanharei você.
Ela conseguiu sorrir em meio de sua aflição e lhe fez um gesto
negativo com a cabeça.
—Não sou uma dama. Sou uma esposa que vai a busca de seu
marido para trazê-lo de volta a casa e falar com ele. — Ágata sentiu
vontade de aplaudi-la. Eram as palavras certas, e Christopher as entendeu à
perfeição — Preciso ir sozinha para convencê-lo.
—Então, pedirei a Simon que prepare a carruagem e a acompanhe.
O porto não é um lugar perigoso em Portsmouth, mas não se deve baixar
nunca guarda.
—Obrigada.
Quando Rosa foi falar com sua filha antes de partir em busca de
Andrew, Christopher fez o mesmo para dar as ordens necessárias. Retornou
uns momentos depois. Marcus o seguia de perto, com uma bandeja com
café que deixou em cima da mesa, sem servir, por expresso desejo de
Christopher. O mordomo abandonou o salão em silêncio.
Ágata olhou para seu marido com os olhos entrecerrados, enquanto
se servia um café com muito açúcar.
—Sabia que não sabia, mas agiu como se soubesse — reprovou,
zangada.
—É um trava-língua, querida? — O sorriso zombador dele a
enrijeceu.
Em todos os anos que levavam juntos, Christopher não tinha
suavizado nenhuma das arestas de soberba de seu caráter, mas ela o amava
com loucura.
152
—Sabia que Andrew ignorava que estava casado. Armou esta
confusão de propósito.
—Pai me informou de tudo e me deu instruções precisas com
respeito a nossa cunhada e sua chegada a Whitam Hall. Ele não tinha modo
de saber que meu irmãozinho iria em sua busca para trazê-la para casa.
Suponho que nem lhe ocorreu; algo insólito, porque a impulsividade de
Andrew lhe deu mais de uma dor de cabeça.
—Por que não falou com seu irmão, antes de acender o pavio?
—Porque nunca o vi tão perdido. Não se precaveu que seu rosto
contorcido durante o jantar? Não sei o que aconteceu entre esses dois, mas
não podia ficar de braços cruzados vendo como seguia na ignorância.
—Mas escolheu o caminho equivocado — o recriminou, com certa
aspereza.
—Escolhi o caminho direto. Nada de rodeios. E não conseguirá que
me arrependa.
—E por que a enviou ao botequim? Pode ser perigoso.
—Precisamente, querida Ágata. Vaticino que meu irmão vai às
nuvens, quando a vir lá, ou, como diria meu pai, armará a de Deus é
Cristo5. E presumo que o aborrecimento o empurrará a levá-la para longe e
mantê-la presa em uma habitação durante dias, onde terão muito tempo
para conversar, além de dedicar-se a outros misteres, que aqui, em Whitam
Hall, seria pouco menos que impossível de levar a cabo, porque há muita
gente.
—Christopher! — exclamou horrorizada, mas, um segundo depois,
sorriu — Não tem remédio.
5 No original:” A Frase refere-se às controvérsias no Concílio de Nicéia — o primeiro concílio ecumênico
— celebrado no ano de 325. Nele, se discutiu a dupla natureza, humana e divina, de Jesus Cristo”.
153
—Acabo de lhes oferecer uma estupenda lua de mel. Nós nos
ocuparemos de Branca até sua volta.
Ágata o olhou, entusiasmada. Sempre conseguia surpreendê-la.
Tinha acreditado que atuava por um impulso, mas nada mais longe
da verdade. Christopher sabia em todo momento o que fazia, e isso
aumentou sua admiração por ele.
Rosa tinha esquecido dois detalhes importantes, quando empurrou a
porta de madeira do botequim para entrar: que ia vestida com roupas de
criada e que não sabia como esquivar-se de homens ansiosos por
companhia feminina. Sempre vivera protegida, nunca se vira em meio de
uma disputa ou rixa das que abundavam nos botequins de qualquer porto, e,
sem saber, estava a ponto de meter-se na boca do lobo. Mas tinha tal
urgência em encontrar a Andrew que não mediu o perigo ao que ia se
expor.
O aroma da madeira salgada e o uísque ácido a fez conter a
respiração. Olhou para Simon, atrás dela, e lhe pediu que se mantivesse do
lado de fora até que localizasse Andrew. O homem não gostou de sua
petição, mas aceitou de forma relutante. Era um empregado que nunca
discutia uma ordem e, embora nessa ocasião estivesse a ponto de fazê-lo,
finalmente, aceitou ficar fora do botequim, embora vigilante.
Os olhos de Rosa percorreram o local lotado.
As mesas estavam cheias de homens que bebiam e falavam ao
mesmo tempo. Outros, sentados no bar, contemplavam às garçonetes com
interesse libidinoso. Sentia-se extremamente incômoda, mas chegara muito
longe para retirar-se. Um marinheiro com algumas cervejas a mais, sentado
em um canto, reparou em sua solitária presença. Cravou seus olhos
154
cinzentos em seu cabelo negro que o capuz da capa não escondia
totalmente e, como impulsionado por uma mola, levantou-se e se
encaminhou diretamente para ela, que estava de costas, olhando em outra
direção. Quando sentiu o forte braço que a segurava pela cintura, voltou-se
esperançada, mas não viu Andrés, a não ser um homem corpulento que
cheirava a cerveja amarga.
A sucessão de palavras em inglês a deixou confusa, pois mal
entendia o idioma. Por um instante, lamentou seu impulso. Precisava falar
com Andrés, mas, ao tentar buscá-lo, podia ver-se metida em um problema.
O marinheiro a segurou mais forte, e Rosa tentou empurrá-lo com uma
desculpa em espanhol.
Simon apareceu atrás dela e conseguiu soltar as mãos como garras
que a prendiam. O forte impulso a fez tropeçar para trás e não pôde evitar
cair sobre uma mesa. Outros braços muito mais decididos a seguraram
pelos ombros, antes que caísse no chão.
—Que demônios faz aqui?
Era Andrés!
O alívio que sentiu foi imediato, mas sua sensação de tranquilidade
durou muito pouco. Vários marinheiros foram em ajuda do primeiro e
começaram a golpear Simon. Andrew a empurrou para fora do botequim,
protegendo-a com seu musculoso e robusto corpo. Ordenou-lhe que subisse
à carruagem, mas, antes que ela pudesse fazê-lo, várias mãos o pegaram,
atirando-o no chão. A sucessão de golpes rápidos que ele recebeu a deixou
paralisada. Rosa retornou sobre seus passos e se meteu totalmente na briga,
sem pensar que poderia sair maltratada. Andrew tinha conseguido derrubar
três marinheiros, mas um quarto se aproximava por trás com intenções
pouco claras. Rosa nem pensou, agarrou uma jarra grande cheia de cerveja
de uma das mesas e a estampou ao homem na cabeça; depois do golpe, o
155
marinheiro caiu a seus pés, inconsciente. Andrew se voltou e, ao
compreender o que ela tinha feito, sorriu-lhe, mas, ao fazê-lo, baixou a
guarda e recebeu um murro que o lançou para trás com força.
Simon estava recebendo outro tanto. Eram muitos!
Rosa pensava a toda velocidade e, então se lembrou do fuzil e da
pistola que Simon levava na boleia. Saiu a toda velocidade para agarrá-los,
mas demorou mais do que pensava, porque, quando retornou, Andrew
estava em um verdadeiro problema. Dois marinheiros o seguravam contra o
bar, e um terceiro o golpeava no estômago com força. Rosa acionou o
gatilho e apontou ao teto, um segundo depois, disparou. O som foi
ensurdecedor, e todos os que brigavam detiveram-se para olhá-la. A
fumaça seguia saindo da boca do canhão do fuzil. Então, levantou a pistola
e, embora não apontasse para ninguém em particular, a ameaça brilhava em
seus olhos.
—Soltem meu marido imediatamente! — bramou, estridentemente
—. Ou juro que vou explodir a cabeça de vocês. — Martelou a arma de
pequenas dimensões. Segurar o fuzil descarregado e a pistola ao mesmo
tempo era difícil, mas tentou não demonstrar aos indivíduos que não
tiravam os olhos de cima dela.
Os que seguravam Andrew o soltaram e lhe permitiram aproximar-
se dela, sem contratempos. Tirou-lhe a arma quente que sustentava; a
pistola lhe custou algo mais, porque Rosa se negava a entregá-la. Simon se
soltou também dos que o atacavam, e Andrew lhe deu um punhado de
libras para que pagasse os destroços das mesas e as cadeiras causados pela
briga.
—Vamos — disse a Rosa, com voz firme.
Rodeou seus ombros com o braço e a dirigiu para fora do botequim.
156
Ela reagiu, ao fim. Elevou seus olhos para ele e contemplou seu
rosto machucado.
—Sinto muito — se desculpou, de novo.
Era plenamente consciente de que fora a causadora da briga e se
sentia desanimada. Sempre agia sem pensar, e os resultados acabavam
alcançando-a.
—Quando terminar com você, sim, sentirá muito, acredite em mim.
Suas palavras soaram como uma ameaça, mas Rosa pensou que as
merecia. Simon, que os seguia de perto, subiu à boleia e esperou. Andrew a
ajudou a subir os degraus, enquanto sustentava a porta da carruagem.
—A Gretna Green — ordenou ao chofer, com voz firme.
A ordem tinha divulgado irrevogável.
CAPÍTULO 14
—Andrés...! — exclamou Rosa, para detê-lo, mas ele não o
permitiu.
—Tem toda a noite para me dar a explicação que espero desde que
meu querido irmão soltou essas pérolas por sua boca. — Ela se amassou
em sua capa de veludo negro e apoiou as costas no fofo respaldo do assento
— E prometo escutar atentamente até o final.
Andrew tomou assento em frente a ela e golpeou com o punho o
teto para que Simon empreendesse viagem para a fronteira escocesa.
157
Depois de uns instantes de silêncio nos quais só se ouviu a respiração de
ambos, Andrew a animou, embora com voz um tanto rouca:
—Seu marido está esperando.
Jesus! Tinha que lhe recordar a frase que ela empregara no
botequim para dissuadir um grupo de marinheiros bêbados, disse-se Rosa.
Em questão de segundos, havia perdido a voz e recuperado a vergonha,
pois devia dar uma explicação que ia resultar longa e dolorosa, embora
extremamente necessária.
—Já estamos casados — soltou, com voz tremente — Seu pai
pronunciou os votos em seu nome no convento de Santa Marta. Uniu-nos
em matrimônio o embaixador inglês, com a rainha María Cristina de
Borbón como testemunha de nosso enlace, embora a soberana não estivesse
presente.
Andrew inspirou, profundamente.
Suspeitou, ao escutar o surpreendente brinde de seu irmão. E soube
que este fez isso de propósito para lhe tirar de uma vez por todas a atadura
que tinha nos olhos. Embora censurasse seu modo de fazê-lo, pois quase
teve uma vertigem, ao descobri-lo. De fato, sentiu-se tão perturbado que
teve de sair da casa para respirar um pouco de ar fresco e limpar os
sentimentos que o apressavam.
—Não seja muito duro com seu pai — pediu com voz causar pena
— Descobriu que, se me casasse com você, me converteria em cidadã
inglesa, e, assim, podia pedir minha volta a Inglaterra com a pressão e o
respaldo da embaixada britânica para obtê-lo.
Andrew pensou que algo assim era típico de John Beresford,
sempre procurando soluções rápidas e eficazes.
—Poderia ter a amabilidade de me contar esse pequeno detalhe,
quando fui resgatá-la — a recriminou, um pouco aborrecido.
158
—Quando me percebi que não sabia, faltou-me coragem para lhe
dizer isso. Senti-me incapaz de apertar ainda mais o nó que sentia que atei a
seu pescoço.
E era certo. Desde que tinha descoberto sua paternidade, começou
uma descida sem freios nem controle, pensou Andrew resignado.
—Pronunciou seus votos de forma voluntária? — perguntou, com
verdadeiro interesse.
Se Rosa se viu coagida, afundando ainda mais no poço emocional
em que se encontrava.
Ela inspirou, profundamente, antes de responder.
—Acreditei que você estava de acordo — respondeu, cabisbaixa—
e lamento muito que não seja assim. Somei outro engano mais em sua vida.
—Esquece que eu quis me casar com você desde o começo.
Como poderia esquecer! Tomar a decisão que tomou em seu
momento foi o mais duro que Rosa fizera em sua vida.
—Não podia me casar com você porque já o estou — recordou
Rosa, de forma aprazível — E o fiz voluntariamente.
Ele mostrou seu temperamento afetuoso de sempre e um sorriso de
canalha.
—Meu cunhado Justin se casou inconsciente, mas eu estou decidido
a pronunciar meus votos com voz firme e clara, para que não tenha
nenhuma dúvida a respeito, nem agora nem nunca.
Rosa abriu os olhos, com surpresa.
—Não é obrigado, Andrés. Não há necessidade de casar
novamente. — Ele a olhou com as pálpebras semicerradas. Cada palavra
que saía por sua boca o comovia absolutamente — Aprecio muito você
para isso.
159
—Aprecia-me? — perguntou, assombrado — Por favor, troque o
verbo, porque apreço não é o que espero de você.
Os olhos de Rosa brilharam na escuridão do interior da carruagem.
Precipitou-se de novo, mas se sentia tão feliz de ele tomava o assunto, que
decidiu abrir seu coração de uma vez por todas. Andrés merecia isso.
—Quero-o muito para forçá-lo. Sempre o amei, desde o momento
em que conheci você, já sabe.
Ele sorriu com infinita tristeza, porque, apesar de tudo, sentia-se
ressentido, decepcionado, e não pôde evitar recriminá-la:
—Se me amasse como assegura, não me afastaria de sua vida.
Justamente o contrário, faria parte da minha, sem condições.
Rosa se desanimou, pois viu que seguia zangado com ela e suas
decisões.
—Não podia ir com você. Minha vida estava em Zújar. A sua em
Whitam.
Andrew bufou; esperava dela algo mais que atalhos.
—Eu teria ficado com você. E sabe por quê? Porque, ao contrário
de você, você foi tudo para mim.
Rosa baixou as pálpebras, tentando que ele não visse como seu
sincero reconhecimento a deixou perturbada.
—Não queria ser injusta com você afastando-o de tudo o que amava
e conhecia. Sua família, sua casa, seus amigos.
Andrew voltou para o ataque sem compaixão, descarregando toda a
artilharia de seu arsenal emotivo.
—Minha família, minha casa e meus amigos estariam onde você
estivesse.
«Essa é a maior diferença entre nós», disse-se Rosa. Sempre havia
sentido dentro de seu ser que Andrés a amava muito mais que ela. Não
160
reservava uma parte de si mesmo. Entregava tudo, mas Rosa não sabia
como fazê-lo, sem sentir que ficava exposta, vulnerável.
—Não podia deixar tudo para ir com você — declarou, baixinho —
Não estava preparada para isso, e é uma decisão que terá que me perdoar e
aceitar.
—Agora, o fez, deixou tudo — a provocou.
Rosa tinha de purgar seus pecados e só existia um caminho para
conseguir: chegar a seu coração com a verdade.
—As circunstâncias mudaram — respondeu, em um sussurro — e
não posso pensar somente em mim. Devo fazê-lo também na preciosa filha
que temos.
—E levou cinco anos para perceber isso? Tinha de chegar a essa
conclusão no exato instante em que descobriu que estava grávida.
A atmosfera do interior da carruagem se tornou espessa de ira,
quente de recriminações. Andrew retornava ao mesmo tema uma e outra
vez. Rosa compreendia que tinha de superar sua decepção, e falar sobre
isso contribuiria a acelerá-lo. Embora se sentisse realmente incômoda,
manteve-se firme em suas respostas.
—Seria uma egoísta consumada se tivesse suposto que você não
havia refeito sua vida e formado uma família feliz. Como poderia quebrar
os muros de sua paz? Seu reduto de tranquilidade? Os anos nos modificam,
Andrés, e também nossas prioridades.
Ele se disse que em parte tinha razão, mas Rosa ignorava que
jamais poderia amar outra como a amara. Para que sua vida fosse
completamente feliz, Rosa devia estar incluída e também a pequena que
conceberam.
—É tarde para convencê-lo do contrário, compreendo. — Rosa
calou um momento para tomar ar, antes de continuar — Mas não é para lhe
161
dizer que penso em compensar você pelo passado, se me permitir isso.
Equivoquei-me, Andrés, mas estou aqui e isso é quão único importa. Amo
você! Com toda minha alma.
Rosa não poderia escolher melhores palavras que acalmassem seu
maltratado orgulho masculino. Andrew as aceitou com grande prazer.
—Tem a mais remota ideia do que penso fazer com você em nosso
caminho para Gretna Green? — Fez-lhe um gesto negativo, embora pouco
convincente — Vou fazer amor com você como um louco. Penso em beijar
cada centímetro de sua pele e levá-la até as estrelas, para ouvir você gritar
de novo. Nem imagina o que me custou me manter afastado de você.
Tremo só de pensar em possuí-la.
—Andrés! — exclamou, completamente envergonhada, mas cheia
de júbilo.
—Uma vez claros seus sentimentos e meus, o único que resta é
escutar seus gemidos, seus suspiros de prazer. É meu objetivo neste
momento.
Quando Rosa viu que se sentava a seu lado com claras intenções de
cumprir sua palavra, ficou sem respiração, e o coração se acelerou de forma
perigosa.
—Esquece que não era a única gemia e suspirava — recordou,
malévola.
Segurou-lhe as mãos, encerrando-as entre as suas.
—Então, enchamos a noite de gemidos gloriosos e suspiros
celestiais para que os anjos desfrutem e dancem ao ritmo de nossa paixão.
Rosa não pôde protestar mais, porque a boca de Andrew tinha
capturado a sua. E ela o seguiu em sua reclamação, submissa, lhe
oferecendo tudo que pedia, inclusive sua própria alma.
162
Amava-o, adorava Andrew Beresford e o resto carecia de
importância.
O balanço da carruagem ajudava ao propósito que ele tinha de
seduzi-la, de arrancar-lhe a resposta física que ansiava desde o momento
em que a viu dormindo em seu leito do convento de Santa Marta. Desejava
lhe causar um motim emocional como nunca conhecera. Os dias de
travessia resultaram ser um suplício de que saíra cordato com muita
dificuldade. Desejava-a, desejava perder-se nela como tantas vezes no
passado.
De um só gesto, sentou-a sobre seus joelhos e lhe desatou o laço da
capa, que se deslizou até o chão da carruagem. A roupa de donzela que
Rosa vestia ajudava bastante na tarefa de despi-la. Tirou-lhe a barra da
camisa branca de dentro da saia e tocou a pele quente de sua cintura com a
gema dos dedos, sem deixar de beijá-la. O gemido da garganta feminina lhe
indicou que ia pelo caminho certo. Deslizou seus lábios úmidos por seu
macio pescoço e foi deixando um rastro de beijos que deixou seus cabelos
de pé. Rosa rodeou com suas mãos a cabeça dele para aproximá-la de seu
decote, quando Andrew se entreteve no canal no início de seus seios como
se saboreasse o momento. Um a um, foi desabotoando os botões da fina
camisa de algodão, descobrindo sua pele acetinada. Agradeceu que não
levasse sutiã, porque, assim, podia acessar sem travas seus seios
amadurecidos, que ficaram expostos, ao arrancar o último botão.
—Peça-me isso — disse Andrew, de repente.
Rosa não podia pensar devido às sensações que a embargavam.
Havia fechado os olhos no momento em que sentiu a língua quente e áspera
dele sobre o vale de seus seios.
—Rosa, me diga o que desejo escutar! — insistiu — Agrade-me.
163
Tinha de concentrar-se, mas antes devia recuperar a respiração e a
fala.
—Que lhe diga...? — sentiu-se incapaz de terminar a frase.
Os dedos de subiam sua saia pelos quadris. Nada separava sua pele
dos dedos travessos que lhe acariciavam o interior das coxas até chegar ao
vértice que ardia como se lhe tivessem colocado um carvão em brasa.
Começou a ofegar de prazer.
—Por Deus, Andrés! — exclamou, com voz entrecortada — Não
posso pensar.
—São unicamente duas palavras, e recordo que estava acostumado
a me dizer isso a cada momento.
Seu fôlego sobre seu seio esquerdo a desconcentrava. Sentiu como
lhe endurecia o mamilo ante a expectativa de que o beijasse, mas Andrew
se mantinha perversamente afastado, respirando tão perto do sensível
montículo que notou uma chicotada nas vísceras que a fez lançar um
gemido.
—Me beije, canalha! — balbuciou, ao fim.
E a boca faminta de Andrew chupou e mordiscou o mamilo
feminino a seu desejo, ao mesmo tempo em que lhe afastava a roupa
interior e a levantava para deixá-la cair sobre seus quadris com um só
gesto.
Rosa ficou sem respiração durante um instante longo, eterno.
Incapaz de fazer nada, salvo desfrutar da plenitude de sentir-se invadida
pela potência sexual de Andrew.
—Se você se mover, me mata! — exclamou ele, cheio de paixão.
«Sempre acontecia assim», recordou Rosa. Cada vez que ele a
penetrava, o mundo se detinha, e os dois ficavam durante uns instantes
completamente quietos, como tentando recuperar a capacidade de reação.
164
—Se não me mover, morrerei eu — disse, com a voz rouca pela
emoção, mas não teve tempo de dizer mais, porque um buraco do caminho
a lançou para cima e a fez aterrissar sobre o duro membro de Andrew de
forma surpreendente.
O gemido masculino quase a convenceu de deter o movimento
rotatório que iniciara com os quadris, mas recordou a tempo quanto do ele
gostava que ela tomasse a iniciativa.
—Estar assim com você é como estar no paraíso — sussurrou
Andrew, junto a seu ouvido. O ardente murmúrio lhe acelerou o coração —
Poderia morrer agora mesmo.
Rosa acabou sorrindo. Andrew era um amante excepcional, mas
tinha o costume de falar muito no momento mais inoportuno.
—Se falar, me desconcentra — se queixou, com o queixo apoiado
no cocuruto dele.
—Tento desconcentrar-me eu e, assim, evitar me derramar em seu
interior como se fosse um jovenzinho inexperiente.
Com as mãos, lhe segurava as nádegas e a ajudava no movimento
ascendente e descendente.
—Estou ardendo, Andrés!
—Então, me abrace para que eu arda com você...
165
CAPÍTULO 15
Palácio do Oriente, Madrid.
Alonso de Lara esperava a rainha María Cristina com atitude
cautelosa.
As notícias que lhe levava eram esperançosas, porque a guerra
contra o infante dom Carlos durava mais do esperado. As províncias do
norte se haviam amotinado. Rioja e Navarra estavam ao mando de
166
Zumalacárregui6, e obtinham vitórias inesperadas. O general organizou em
pouco tempo um exército considerável, ao que se uniram outros carlistas,
debilitados depois da expedição de Pedro Sarsfie. Pôde equipar seus
homens com armas tomadas dos exércitos cristinos no campo de batalha e
participaram de ataques contra destacamentos dirigidos por dom Luis
Fernández de Córdoba.
Zumalacárregui era um homem consciente de sua inferioridade
numérica, e, por esse motivo, se valia das táticas de guerrilha que foram
proveitosas no passado contra Napoleão, para minar o exército da rainha
María Cristina. Mas se mostrava cruel na repressão e empregava o terror
para manter controlado o território, atitude que Alonso censurava.
Felizmente para a monarquia, a derrota que sofrera o exército carlista na
batalha de Mendaza e a prudente retirada na batalha de Arquijas havia dado
um giro inesperado à luta.
Os carlistas retrocediam, e eles avançavam.
Alonso se deteve para observar o Salão de Embaixadores, onde
esperava a rainha María Cristina de Borbón. Foi chamado a palácio com
urgência.
O salão estava presidido por dois tronos. Pareceu-lhe que o veludo
vermelho enfeitado com franjas de estilo rococó de prata dourada que
cobria as paredes carregava demais o conjunto decorativo.
Em ambos os lados do trono havia quatro leões de bronze, cada um
com uma garra apoiada sobre uma bola calcária de cor avermelhada. Além
disso, decoravam o salão doze consoles dourados com espelhos fabricados
e trazidos da Itália. Tanto os consoles como os espelhos representavam as
6 “Tomás de Zumalacárregui y de Imaz, duque de Victoria e conde de Zumalacárregui, conhecido como
«Tio Tomás», foi um militar espanhol que chegou a ser general durante a primeira guerra carlista”.
167
quatro estações do ano, os quatro elementos e os quatro continentes.
Alonso dirigiu seus olhos para as estátuas dos leões, trazidas por Velázquez
por encargo do rei Felipe IV. O conjunto da sala era excepcional, mas o
fazia sentir estranhamente oprimido.
Uma das grossas e altas portas de uma das laterais se abriu para dar
passo à rainha. Alonso se inclinou em uma profunda reverência.
—Levante-se, duque.
Alonso cumpriu a ordem real e ficou a aproximadamente um metro
da figura régia.
María Cristina ia acompanhada por seus homens de confiança:
Agustín Fernando Muñoz, Martínez de Rosa e Luis Fernández de Córdoba.
—Que notícias traz? — perguntou a rainha, com voz marcial.
—A derrota sofrida pelo exército carlista na batalha de Mendaza e a
prudente retirada na batalha de Arquijas deram um giro inesperado à luta.
Os carlistas retrocedem, majestade.
María Cristina lançou um profundo suspiro e seguiu olhando
Alonso, com olhos inquisitivos.
—Mas me preocupa Nazario Eguía, que assumiu o posto de general
em chefe das tropas em Navarra — repôs a rainha — Seu exército sobe a
mais de trinta e seis mil homens.
—Estão empenhados em liberar Bilbao e essa pretensão pode lhes
sair muito cara — respondeu Alonso.
A rainha começou a percorrer a sala acima e abaixo a passos curtos,
meditando as palavras do duque.
—O que realmente nos faz mal não é o exército armado, a não ser
as guerrilhas.
168
Alonso suspirou. A luta de guerrilhas minava o exército real da
mesma forma em que minaram o exército de Napoleão; porque se
escondiam nas montanhas e se moviam como serpentes sigilosas.
A rainha se deteve e o olhou com atitude reprovadora.
—Acreditava que, ao estabelecer alianças entre nobres e unir casas
importantes mediante matrimônios conseguiria parar esta guerra absurda,
essa reclamação sem sentido por parte de meu cunhado.
Alonso esticou os ombros, pois sabia o que vinha a seguir.
—Aracena de Velasco comanda a maior guerrilha de Burgos.
Ele apertou os lábios com fúria ante o nome mencionado pela
rainha. Fechou os punhos aos flancos para conter a cólera.
—Aracena é um problema menor, majestade — replicou, seco.
—Uni as casas de Lara e Velasco precisamente para evitar isto. E
me surpreende sua falta de capacidade para controlar sua esposa. — A
crítica da rainha lhe ardeu no mais profundo — Aceitei o matrimônio de
Rosa de Lara com o inglês para me assegurar a lealdade de sua irmã, mas
tudo foi em vão.
Alonso estreitou os olhos, antes de responder.
—Por esse motivo, desejo pedir a mercê de uma graça. — As
sobrancelhas da rainha se elevaram interrogantes — Um compromisso
entre minha sobrinha Rosa Catalina Branca de Lara e Leon Alejandro de
Fidalgo e Ursina.
A rainha piscou, surpreendida. A pretensão de Alonso de Lara de
unir os ducados de Fortaleza e Marinaleda era de uma ambição desmedida.
—E que ganha a Coroa com a união de ambas as famílias?
—Se aprovarem o compromisso de minha sobrinha, controlarei a
fortuna e influência de minha irmã para que não possa financiar a luta de
dom Carlos.
169
—Consta-lhes que o esteja financiando? — perguntou a rainha, com
voz seca.
Alonso sabia que caminhava na borda de um precipício. A rainha
era muito desconfiada, e ele tinha de andar com muito cuidado.
—Não — respondeu, de forma categórica — mas o pai da pequena,
como tutor e curador da fortuna desta, pode desviar recursos para a causa
carlista. Mas, se consigo o acordo de compromisso, as propriedades de
minha irmã passarão a minha sobrinha e ficarão presas como dote. Nesse
caso, eu as controlarei.
A rainha meditou uns momentos sua proposta.
—Se acessar ao compromisso — disse, ao fim — posso criar um
conflito internacional com a Inglaterra que poderia ser prejudicial para a
Coroa e não estou disposta a um infortúnio de tal magnitude.
Alonso temia uma resposta assim.
—Os ingleses estão lutando a favor do infante dom Carlos —
espetou, com voz tranquila — Um exemplo disso o têm em Charles
Frederick7. E muitos outros dos que ainda não temos conhecimento.
O queixo da rainha se endureceu, ao escutá-lo.
O inglês era prisioneiro de Alonso de Lara e quão último
necessitava a monarquia espanhola era de intrusos que se acreditavam
paladinos da reclamação carlista.
—Fala com imprudência, De Lara, e posso tomar como uma
provocação.
Fernando Muñoz decidiu intervir na discussão.
—Não é uma ideia tão descabelada — apontou, conciliador — mas,
de fazê-la efetiva, terei que atar bem todos os cabos. — María Cristina e
7 “Soldado inglês que serviu com os carlistas.”.
170
Alonso olharam, atentamente, o ministro, sopesando suas palavras —
Assegurar a lealdade dos nobres unindo-os às famílias mais fiéis é a melhor
estratégia que podemos seguir para obter a vitória.
—Mas até agora não deu resultado. — A rainha tinha em mente o
casamento de Alonso de Lara com Aracena de Velasco, e de Rosa de Lara
com um inglês, ambos apoiados por ela — Pensei, erroneamente, que ter à
maioria dos nobres de minha parte seria suficiente, mas me equivoquei.
—O conde Ayllón não se pronunciou a respeito — recordou Alonso
à rainha — Segue vivendo à margem, em sua torre vermelha, e duvido que
se mova em um sentido ou outro.
—De Velasco seria um aliado importante para minha causa —
comentou María Cristina, com um suspiro de resignação — Com seu apoio,
poderíamos ter outros tão importantes como o do marquês de Irian, o duque
de Besande e os condes de Arcayos e Laciana.
—Tenho intenção de visitar minha irmã na Inglaterra — disse
Alonso, em voz baixa — E posso me entrevistar com o conde Ayllón,
majestade. Tentarei inquirir sobre sua demonstrada parcialidade no assunto
que nos concerne.
A rainha estreitou os olhos com certa irritação.
—Preciso de você aqui, na Espanha, e não em um país estrangeiro
que pode manifestar-se a favor do direito divino da infanta Isabel de
proclamar-se a rainha legítima de todos os espanhóis.
—Será só um breve período de tempo, o suficiente para tentar fazê-
los compreender, a minha irmã e ao conde, a necessidade imperiosa de
apoiar sua causa.
—Não penso em criar um conflito por sua desmedida ambição,
duque.
—Não o farão, majestade. Dou minha palavra.
171
—Vá, então. Tente controlar sua irmã e convença o conde a meu
favor.
Tudo tinha ficado dito.
Alonso fez uma profunda reverência e se retirou caminhando de
costas, até dar com a porta de madeira. Agarrou o trinco dourado e voltou a
inclinar a cabeça a modo de despedida. Fechou a porta brandamente atrás
de si.
Tinha por diante um longo caminho, e muitas armadilhas pela
frente, mas se sua irmã se acreditava a salvo dele, estava muito equivocada.
CAPÍTULO 16
Os dias que desfrutaram na fronteira escocesa foram os mais
formosos de que podia recordar. Casar-se na pequena capela foi toda uma
experiência que a encheu de imensa sorte. Rosa não trocaria esses
momentos por nada do mundo. Andrew se mostrara risonho, falador e tenro
como no passado. Ela desfrutava de cada minuto de energia que esbanjava,
e lá, em Gretna Green, parecia como se o tempo não tivesse transcorrido,
era como se continuassem amando-se na serra de Hornachuelos, livres de
toda pressão e responsabilidade, como dois adolescentes.
Mas haviam retornado a Whitam Hall. Andrew a apresentou a todo
o serviço como a senhora da casa, nomeação que aceitaram todos e cada
um deles. Desde esse momento, cada decisão relativa ao serviço doméstico
172
era fiscalizada por ela. Rosa se transladara da habitação dourada ao quarto
de Andrés, onde compartilhavam intensas noites de amor e brincadeiras.
A vida estava se comportando magnanimamente com ela.
Andrew olhava para a mulher que havia virado seu mundo pelo
avesso. Era a mesma feiticeira que conhecera em Hornachuelos. Serena nos
gestos, ávida na aprendizagem e uma amante desinibida e risonha como só
existiam nos relatos escritos especialmente para o sexo masculino.
Recordou a primeira vez que a viu falando com um homem que lhe pareceu
um comerciante. Ali, no pátio sombrio da casa, tinha ficado cativado pela
figura daquela mulher que irradiava sensualidade por cada poro da pele. O
sussurro de sua voz aveludada, os gestos calmos e contidos o atraíram
como se ele fosse uma abelha e tivesse descoberto, de repente, o prado
mais formoso, repleto de flores.
Perseguiu-a e a acossou, até que o sorriso que lhe ofereceu o deixou
tonto de desejo. Mas Rosa não foi uma conquista fácil. Esquivava-se com
mestria dos dardos que lhe lançava, até que a sorte lhe sorriu, ao fim, e um
deles acertou o coração feminino.
Fazê-la sua foi o mais ousado e divino que podia aspirar um mortal.
Andrew se apaixonou por completo em questão de dias. Rosa levou mais
tempo aceitar que também sucumbira à flecha que Cupido arrojara a
ambos, mas, quando ao fim o admitiu, o fez o homem mais feliz do
mundo... Até que o descartou. Esse dia e os restantes, Andrew caiu do
paraíso terrestre aos infernos em chamas, embora confiasse cegamente em
sair ileso deles.
Era dela. Casada duas vezes para que nunca houvesse nenhuma
dúvida a respeito. Rosa de Lara era Rosa Beresford, para o bom e para o
mau.
—Parece o gato que comeu o camundongo.
173
Andrew entreabriu os olhos, ao ouvir suas palavras. Estava imerso
em lembranças que lhe aceleravam o coração.
—Lady Beresford, não sou o gato que comeu o camundongo, sou
um leão que caçou a corça esquiva.
Rosa lhe sorriu pela metáfora utilizada.
—Pensa em devorá-la?
Ele negou com a cabeça várias vezes.
—É tão formosa que decidi mantê-la cativa em meu reino.
Apanhada sob minhas garras e com meu fôlego desenhando corações em
seu pescoço de cisne.
Os olhos dela brilharam com humor.
—Sempre gostei dessa particularidade sua — confessou, em voz
baixa — Seu incrível senso de humor; algo estranho, vindo de um inglês.
Andrew cruzou uma perna sobre a outra, enquanto a carruagem
seguia seu destino para Crimson Hill, onde ia ter lugar uma recepção por
suas bodas.
—Porque sou um inglês sulino. E nós temos o sangue mais quente,
como os espanhóis.
Rosa não podia estar mais em desacordo.
Recordava, perfeitamente, o irmão mais velho de Andrew, Arthur,
pois nunca contemplara um rosto mais severo e régio. Tinha levado o
assunto da legalidade da pequena Branca com uma parcialidade que a
deixou surpresa. Não contemplara em seu rosto varonil um sorriso, nem um
brilho de empatia. Não, Andrés se equivocava. Os homens ingleses do sul
eram estritos e sérios.
—Eu não gosto de deixar Branca sozinha — disse, de repente, com
olhar nostálgico.
174
—Nossa pequena está bem. Lady Jane não permitirá que lhe ocorra
nada de mau.
—Minha mente sabe, mas meu coração não quer separar-se dela.
Andrew não pôde lhe dizer nenhuma palavra de consolo, porque a
carruagem cruzava o portão e tomava o caminho que levava a mansão.
Olhou para Rosa, que demonstrou seu nervosismo mordendo o lábio
inferior. Começou a alisar as inexistentes rugas da saia de seu vestido de
gala com gestos idênticos aos de Branca.
—Não deve preocupar-se. Nunca permitiria que lhe fizessem mal.
Mas o temor dela discorria por outros atalhos muito mais sombrios:
seu irmão Alonso e a guerra na Espanha; embora não pensasse em admitir.
—Desejo ser digna de você, Andrés — soltou à queima roupa —
Não gostaria de envergonhar você diante de seus amigos.
Ele inspirou profundamente ante a chicotada de orgulho que sentiu.
Gostou de suas palavras extremamente, mas não lhe disse.
—Desejo começar bem nossa vida em comum. Ser aceita pelas
pessoas que o amam.
—Não tem nada a temer nesse aspecto. É a mulher de minha vida, e
todos sabem ou saberão.
Rosa o olhou, com os olhos brilhantes de emoção. Andrew era um
homem que não media as palavras de afeto, e, nele, não resultavam
açucaradas. Dizia o que pensava e fazia com que seu coração se acelerasse,
ao ouvi-lo. Era um sedutor nato. Um Dom Juan único, e era seu marido.
Realmente, sentia-se muito feliz.
A carruagem deteve seu avanço, e Andrew a segurou pelas mãos,
antes de abrir a porta e sair, mas antes de ajudá-la a descer, disse-lhe umas
palavras para tranquilizá-la.
175
—Agora, estou aqui para proteger e amar você. Afaste a
preocupação de seu rosto e o temor de sua alma. Minha família a quererá
tanto como eu. Meus amigos a respeitarão tanto ou mais que eu.
O sorriso de Rosa lhe demonstrou que suas palavras eram
apropriadas.
Andrew lhe beijou ambas as mãos e a ajudou a sair, ao fim, da
carruagem. Quando se voltou lhe oferecendo o braço, viu que Christopher e
Ágata começavam a descer a escada da casa a seu encontro. Era todo um
detalhe que os acompanhassem naquele primeiro encontro que iam ter
como marido e mulher com a nobreza de Portsmouth.
—Está preciosa, lady Beresford. Andrew... — A efusiva saudação
de Christopher foi como um bálsamo reparador em seus músculos
doloridos pela tensão.
Era tão agradável receber amostras de ânimo!
Aceitou o beijo galante de seu cunhado e o carinhoso abraço de
Ágata. Rosa se sentia realmente sobressaltada pelo bom recebimento.
—É impressionante — disse ao mesmo tempo em que levantava os
olhos para olhar a mansão, depois das saudações — Quase tanto como
Whitam Hall.
Christopher gostou dessas palavras, pois seguia preferindo o lar dos
Beresford.
—Crimson é maior, mas Whitam não está atrás em tamanho.
A voz de Andrew parecia orgulhosa, e Rosa pensou que tinha
motivos para isso. Ambas as casas eram excepcionais e de um luxo que
sobressaltava.
—Chegamos tarde — se apressou a dizer Christopher — Ágata não
me permitiu mostrar meus respeitos a Devlin até sua chegada.
176
—Rosa deve fazer sua entrada apoiada pela família — reiterou sua
esposa.
Rosa dedicou um sorriso a sua cunhada, enquanto aceitava o braço
de Andrew para subir.
O duque de Arun e dono da mansão estava no outro extremo de
uma longa fila de convidados. Era um homem alto e de cabelo abundante.
Sorria de uma forma que surpreendeu Rosa, que o imaginara muito mais
austero e frio. Andrew a conduziu pelo corredor iluminado até o grande
salão.
—Não esperamos que nos anunciem? — perguntou ela, alarmada.
Christopher e Ágata os seguiam de perto.
—Somos da família — disse Christopher — Minha irmã está
casada com o primogênito do duque. Crimson Hill é nosso segundo lar.
Para Rosa, a explicação parecia inaudita, porque, apesar do
parentesco, seguiam sendo convidados.
—Encontra-se aqui? — referia-se a Aurora, a irmã de Andrew e
Christopher.
—Não. Vive a maior parte do ano em sua casa de Granada. Eu
estou acostumado a visitá-la ao menos uma vez ao ano.
Rosa o olhou, perplexa, mas se manteve em silêncio. Agora,
recordava as palavras de John. Depois de arrumar o assunto dela, tinha-lhe
mencionado que iria passar uns dias com sua filha Aurora.
O duque os divisou na distância e, desculpando-se com alguns
convidados, pôs-se a caminhar diretamente para eles. Rosa se preparou
para efetuar a reverência requerida.
—Estava-lhes esperando. — A voz grave não continha nem um
pingo de recriminação.
177
—Lorde Penword — começou Andrew — permita que o presente a
minha esposa, Rosa de Lara e Guzmán.
Devlin observou para a moça com olhar crítico, e ela se inclinou em
uma reverência profunda e cheia de graça.
—Sua excelência...
Devlin lhe beijou a mão, com candura.
Ágata olhava para sua cunhada entre o assombro e a inveja. Ela
jamais poderia realizar uma reverência tão cheia de mímico e elegância.
—Bem-vinda a Crimson Hill.
E desde esse momento Andrew ficou sozinho, pois Devlin
monopolizou a atenção de Rosa por completo. Agarrada a seu braço,
conduziu-a para o resto dos convidados para apresentá-la com todas as
honras.
Christopher, Ágata e Andrew passaram a seguinte hora
respondendo às perguntas formuladas por matronas e amigos muito
interessados em conhecer os pormenores de tão singular casamento.
—Vou resgatá-la — se ofereceu Ágata, mas Andrew negou com a
cabeça sem afastar os olhos de sua mulher, que, nesse preciso momento,
falava de forma comedida com lorde Eliot8.
Rosa escutava muito atenta as explicações que lhe dava o lorde
sobre algo. Via-a assentir, de vez em quando.
—É toda uma dama — disse, de repente, Ágata — Leva mais de
uma hora escutando ao mesmo interlocutor sem que seu rosto mostre outra
emoção salvo interesse. Eu estaria morta de aborrecimento.
Andrew pensava exatamente igual, mas se manteve em silêncio.
8 “Lord Eliot foi enviado à Espanha pelo governo britânico para por fim aos fuzilamentos indiscriminados
de prisioneiros em ambos os lados e promover a troca dos mesmos”.
178
Christopher bebeu um gole de uma taça de champanhe. Enquanto a
que sustentava Andrew se esquentava em sua mão, sem que lhe
emprestasse atenção.
—Logo se anunciará o jantar — recordou Christopher.
Ele não podia afastar seus olhos da figura de sua esposa. Rosa
mantinha as costas retas, a cabeça inclinada para lorde Eliot e as mãos
enlaçadas. Tinha o porte de uma rainha e a moderação de um general. E se
perguntou por que lhe incomodava essa atitude. Uma só vez, o olhar dela se
desviou para onde estava contemplando-a, devorando-a com os olhos.
—Vê, Andrew — disse Christopher — Rosa é muito educada para
interromper uma conversa que seguro que não lhe interessa.
—Não queria parecer impaciente ou intrometido — admitiu, em
voz baixa.
—Está em seu direito de reclamar uma atenção que lhe pertence.
Lorde Eliot terá que aceitar e o resto dos convidados também.
Mas não foi preciso que Andrew a resgatasse, porque lorde Eliot já
a acompanhava de retorno a ele.
O rosto de Rosa refletia uma preocupação que lhe produziu um frio
no estômago. De que diabos teriam falado? Por que sua esposa passou da
alegria ao sofrimento à velocidade de um raio? Andrew tinha muitas
perguntas, mas sua curiosidade deveria esperar um momento mais propício
para ser saciada, porque, nesse instante, se anunciou o jantar.
Rosa já não era a mesma pessoa que havia chegado cheia de ilusão
à mansão de Crimson Hill agarrada em seu braço. No jantar, esteve séria,
ausente. Nem as brincadeiras de Ágata a tinham feito mudar o semblante.
—O que aconteceu? — perguntou Andrew, antes da sobremesa.
179
Ela permaneceu em silêncio a maior parte do jantar. Andrew a tinha
sentada justo a sua frente por um erro de protocolo que não fora consertado
a tempo, e, graças a isso, não perdeu nem um só gesto de seu rosto.
—Lorde Eliot viajará a Espanha breve — respondeu ela, com voz
pausada.
Ele entreabriu os olhos, porque ignorava o que significava essa
viagem para sua mulher.
—O governo britânico se preocupa com o contínuo fuzilamento de
rebeldes em minha pátria.
Agora, Andrew amaldiçoou baixo. Se a Inglaterra intervisse na luta
dos espanhóis, os problemas não demorariam para aparecer.
—Estiveram falando de fuzilamentos? — Parecia-lhe inaudito que
lorde Eliot monopolizasse sua esposa com um tema político e que só
correspondia a homens.
—Sabe que fui presa pela Coroa espanhola por me pronunciar a
favor de Carlos Isidro.
Andrew se perguntou como sabia que ele havia desposado com uma
rebelde.
—Os carlistas também começaram a fuzilar em represália a quão
prisioneiros capturam — continuou Rosa — Essas barbaridades estão
sendo discutidas pelo governo britânico, que decidiu enviar uma comissão
para que ambos os bandos cheguem a um acordo para suprimir os
fuzilamentos indiscriminados.
—Entendo sua preocupação, mas aqui está a salvo.
Rosa o olhou, com olhos sérios.
—Sei, mas isso não faz com que não me sinta preocupada com
minha família e amigos que ficaram na Espanha.
180
—É o que tem a guerra, Rosa. Os resultados costumam ser terríveis
ali onde se produz.
—Conversar com lorde Eliot me recordou por que terá que seguir
lutando.
Ele temia algo assim. Rosa escapara da forca de milagre, mas
seguia pensando nos que combatiam por seus ideais.
—Deixemos a política por esta noite, lady Beresford.
Ela cravou suas pupilas no rosto de seu marido, que tinha adotado
um gesto diabolicamente atraente.
—E, além disso, sei como apagar essa expressão tristeza de seu
rosto. Não quero ver preocupação nele nunca mais.
Rosa não pôde lhe responder, porque o servente acabava de servir a
sobremesa: pudim de chocolate e morangos enfeitados com mel. Quando ia
cravar a colher no mesmo, notou uma carícia sob a mesa. Um pé masculino
acabava de deslizar pelo interior de suas pernas.
Desviou os olhos do prato para seu marido, que seguia comendo
pudim, alheio ao sufoco que lhe provocou. Ficou rígida e soltou a colher,
que fez um som metálico ao se chocar contra a porcelana do prato.
—Andrés! — exclamou, ao notar a segunda carícia, que nesta
ocasião tinha chegado ao joelho.
—Acontece algo? — perguntou Ágata, que estava sentada a seu
lado.
Christopher estava sentado à direita de Andrew.
—É a primeira vez que prova o pudim — soltou este a sua cunhada,
com humor.
Rosa inspirou, profundamente, enquanto seu pé seguia
atormentando-a por debaixo da mesa.
181
Jesus! Mal podia respirar e levar a colherada de pudim à boca, sem
que lhe tremesse a mão. Com a perna direita tentou afastar o pé de Andrew,
mas o movimento a deslocou na cadeira. Conseguiu segurar-se na borda da
mesa para não perder o equilíbrio.
—Andrés! — sussurrou, atônita, porque ele seguia com o jogo.
Tinha chegado à face interna de suas coxas.
Ele elevou os olhos do prato para olhá-la; pôs-se tão vermelha
escarlate.
—Você não gosta do pudim, querida? Ou continua pensando na
guerra?
CAPÍTULO 17
Rosa se mostrava receptiva.
Estava aprendendo muito sobre sua nova pátria e os costumes
diferentes dos ingleses. Todos em Whitam a ajudavam, para que se
adaptasse o mais rápido possível, e como membro recente da família
Beresford, fora aceita pela nobreza de Portsmouth por completo.
Em Whitam, se esperava a visita oficial do embaixador espanhol
em Londres, assim como a de lorde Eliot e a do coronel John Gurwood9.
9 “Ajudou a negociar o chamado Tratado de lord Eliot na Espanha”.
182
Andrew se sentia um pouco excedido, porque seu pai sempre se encarregou
das visitas especiais. Christopher não ajudava muito nesse aspecto, pois
estava convencido de que seu irmão mais novo poderia superar a prova
com facilidade. Mas nenhum deles podia imaginar o horror que lhe causava
não estar à altura.
Seguiu abrindo a correspondência com a mente posta na futura
visita.
Imaginou o motivo de que o embaixador espanhol agendasse uma
reunião na ausência do patriarca dos Beresford, e Andrew a amaldiçoava,
porque isso queria dizer que estava decidido a manter uma conversa com
Rosa sobre os rebeldes espanhóis. Tirar dela toda a informação que
considerasse útil. Mas ele ansiava que ela se esquecesse da luta da Espanha
e começasse a viver tranquila a seu lado, em Whitam, o lugar onde estaria a
salvo.
O som da porta da biblioteca, ao se abrir, o fez levantar os olhos da
correspondência ante a presença de sua filha, que mal alcançava a
maçaneta.
O sorriso infantil o desarmou por completo e fez com que, em seu
coração, sentisse um amor desmedido e profundo.
—Está preparada? — perguntou.
Branca lhe fez um gesto afirmativo que fez ondear os cachos de sua
cabeleira negra.
—Mamãe disse que virá logo.
Ele se levantou da poltrona e pôs-se a andar em direção à pequena.
Quando chegou a seu lado, ficou de cócoras e a olhou nos olhos.
—Está preciosa.
Branca lhe esboçou um radiante sorriso.
—Você também — respondeu, cândida.
183
—Eu também estou precioso? — perguntou Andrew, com picardia.
—Tão presioso como Atila.
Ele estalou a língua, ao recordar o cão que adotara Branca e o nome
que lhe colocou. Que, certamente, servia como uma luva.
Por onde corria, já não crescia a erva.
—Atila continuará sem entrar na casa até que domine esse ímpeto
que tem. E o que diga não conseguirá me fazer mudar de opinião.
—Atila não sabe o que faze — argumentou à pequena.
Andrew estava de acordo com sua filha, mas o cão seguiria no
estábulo, até que aprendesse a conter-se. Ainda podia ouvir o grito que deu
a cozinheira, quando comeu parte do faisão assado para o jantar. E isso sem
mencionar o alvoroço das donzelas, quando mordeu os travesseiros. Ainda
lhe parecia ver plumas flutuando nas quartos.
—Mas eu o ensinarei — admitiu a pequena, com orgulho.
Andrew a abraçou muito forte. Um momento depois, segurou-a pela
mão, para sair ao encontro de sua esposa, que descia para eles pela escada
principal.
Quando os viu, Rosa inspirou, profundamente. Branca ia vestida
exatamente igual a seu pai: calça de montar, colete estampado, blusa
branca, botas negras e capa combinando.
Andrew conteve um assobio, ao ver o traje de Rosa. Levava um
traje de amazona de veludo verde escuro, o cabelo recolhido com uma rede
para cabelo e o chapéu inclinado, com flores combinando com a cor do
vestido. Todo seu vestuário tinha chegado da Espanha um par de dias atrás.
Cada vez que a via, ficava sem fôlego.
—Direi a Emma que troque sua roupa — disse Rosa à menina, com
voz contida.
184
Girou sobre si mesma e pôs-se a andar, mas as palavras do Andrew
a detiveram.
—A Branca adora cavalgar vestida assim. Não é, querida?
A pequena manteve um prolongado silêncio, pega às pernas de seu
pai, como procurando seu amparo.
Rosa se virou, de repente, e cravou suas pupilas nas de Andrew, que
a olhava com ironia.
—Branca, vá em busca de Emma e lhe diga que troque seu vestido.
A menina obedeceu sua mãe, imediatamente. Soltou-se da mão de
Andrew e correu para o vestíbulo sem olhar atrás. Ele cruzou os braços e
sustentou o olhar de Rosa.
—Andrés, Branca não pode ir vestida como um menino —
começou ela, mas a expressão dele a fez morder o lábio inferior.
—Nossa filha irá vestida como desejo, sempre que for
acompanhada de seu pai.
Rosa piscou uma vez, porque Andrew tinha utilizado um tom
autoritário.
—Tem de aprender a comportar-se como uma senhorita e vestir-se
como um moço não a ajudará — tentou lhe explicar.
Ele esboçou um sorriso arrebatador.
—É muito pequena para preocupar-se com esses pormenores. Tem
todo o tempo do mundo para aprender os rigores da etiqueta, acredite. —
Rosa soltou o ar, pouco a pouco — E será a última vez que questiona
minha autoridade na presença de nossa filha.
Rosa baixou os olhos ao chão, sobressaltada. Andrew tinha razão,
mas a ela ainda custava assimilar que a educação de sua pequena já não lhe
competia exclusivamente.
185
—Lamento o haver desafiado — disse, sincera — mas Branca se
vestirá como uma senhorita ou não sairá a cavalgar.
Ele deu um passo em direção a ela, com os olhos entreabertos.
Compreendia, perfeitamente, o desconforto que lhe produzia o traje da
menina, porque Rosa se criou com normas rígidas e regras e, sem dar-se
conta, transladava essa austeridade para sua filha; mas não pensava em
permitir, embora tivesse de pará-la em seu avanço e determinação. Branca
se criaria como uma menina normal e sob a supervisão de um pai que a
adorava.
Rosa sabia que se extrapolara em suas palavras, mas educar uma
criança era difícil e não pensava em jogar pela amurada anos de dedicação
e esforço. Acaso Andrew não se precavia de quão prejudicial poderia ser
para o futuro da menina que a pontuassem de excêntrica? De estranha? E
lhe permitindo cavalgar com traje masculino, fomentava precisamente
essas qualidades, nada desejáveis em uma senhorita.
—Andrés, não pretendia desgostar você — disse, com sinceridade.
—Mas o fez — replicou ele, firme, mas sem recriminação.
—Branca tem de aprender desde pequena, e eu não gostaria que a
considerassem rebelde, porque não lhe ensinou a acatar as normas
adequadas para uma moça decente.
—Tem muito tempo para aprender a acatar as normas.
—Mas não aprenderá, se não lhe pusermos limitações.
—Vestir-se de forma cômoda para cavalgar não significa não lhe
pôr limitações.
Rosa inspirou fundo, enquanto procurava argumentos.
—Quando se converter em uma adolescente, não vai querer vestir
uma incômoda e volumosa saia cada vez que se apresentar a ocasião de
186
cavalgar, e, então, você, com sua permissividade, terá criado um grande
problema.
Andrew estava a ponto de rir, mas não o fez para não minar sua
autoridade. Rosa estava deliciosa defendendo uma postura do todo lógica e
coerente. Mas ele pretendia educar sua filha longe do protocolo e a rigidez.
—Cavalgará com saia cada vez que a etiqueta o exija, posso
assegurá-lo, mas, quando montar com seus pais, não limitará sua liberdade.
Rosa estava a ponto de soltar um impropério, mas se conteve. A
discussão estava adquirindo umas proporções desmedidas e lhe estava
escapando das mãos.
—Não pretendia provocar você — confessou, com um fio de voz.
—Toda você é uma provocação.
Andrew tinha chegado a seu lado. Segurou-a pela cintura e a pegou
a seu corpo.
—E deve aprender bem uma coisa: de agora em diante, não voltará
a me contradizer na presença de nossa filha.
—Mas Andrés...
—Vou beijar você tão intensamente que não vai saber onde tem a
cabeça e onde os pés. Vou soltar essa gloriosa juba para que ondeie ao
vento, enquanto cavalga para meu lado, para que ensine nossa filha parte da
liberdade de que pode desfrutar junto a seus pais.
E começou a fazer precisamente isso.
Tirou-lhe o chapéu da cabeça e o lançou ao cabide em um canto,
mas com tão mau tino que caiu ao chão. Logo, inclinou a cabeça ao
encontro de sua boca e a beijou como um homem beija a mulher que ama.
Com ardorosa paixão. Com fome voraz. Enquanto, ia tirando os
grampos do coque e lhe soltando as mechas, com tanta suavidade como se
o fizesse com a língua em lugar de com os dedos.
187
O sabor dele a embriagava. O aroma de sua pele lhe enlouquecia os
sentidos, e, quando Andrew se afastou, Rosa não sabia onde se encontrava
nem o que estavam discutindo. Sentia em seu interior uma avalanche de
sensações que a deixavam enjoada.
—Estou sem fôlego — confessou, perturbada e completamente
excitada.
Ele cravou suas pupilas em seu rosto, avermelhado por seu beijo, e
a desejou com uma intensidade inquietante.
—Pois respire fundo, porque vou beijá-la outra vez.
Já inclinava a cabeça ao encontro de sua boca, quando uma risada
infantil fez com que se separasse de Rosa, que seguia com os olhos
fechados e os lábios entreabertos, esperando o beijo prometido.
Ambos estavam na metade do vestíbulo. Tinham perdido a noção
do tempo, e separá-los custou um esforço incrível.
Andrew olhou para Branca, que substituíra as calças por uma saia
azul, mas seguia levando a camisa, o colete, as botas e a capa.
Rosa se recuperou, ao fim, e cravou os olhos na pequena, que a
olhava de uma forma que lhe resultou enigmática. O brilho de seus olhos
infantis lhe provocou um frio no estômago e a sensação de perder algo,
embora ignorasse o que. A cumplicidade entre pai e filha era inegável e a
encheu de uma paz desconhecida até então.
—Está preparada? — perguntou a sua filha, com voz doce.
Branca fez um gesto afirmativo, mas não lhe respondeu.
Rosa se voltou para a porta, enquanto colocava as luvas com mãos
nervosas. Os beijos de Andrew a deixavam louca, faziam-na arder, e, se
Branca não os interrompesse, não lhe teria importado que fizessem amor no
vestíbulo da casa. Estava perdendo a sensatez rapidamente!
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Andrew estendeu uma mão para Branca, que desce o último degrau
para ele. Quando se precaveu de que sua mãe não os estava olhando, subiu
a saia azul e mostrou a seu pai que debaixo seguia levando calças.
Andrew soltou uma gargalhada, ao tempo em que a agarrava em
braços.
Rosa se voltou para ver o que lhe provocava semelhante hilaridade,
mas o único que viu foi como Andrew sussurrava algo no ouvido de
Branca, esta o fazia um gesto afirmativo e lhe correspondia com um sorriso
cândido.
A imagem de pai e filha compartilhando uma confidência era
realmente preciosa e lhe pôs um nó na garganta.
—O que o preocupa? — A pergunta de Christopher o devolveu
bruscamente à realidade — Ultimamente, o noto ausente. Distraído.
A preocupação de Andrew tinha um nome: a guerra da Espanha.
—Amanhã, será o jantar oficial com o embaixador espanhol e lorde
Eliot.
Christopher bebeu um gole de sua taça de brandy.
—Rosa fará tudo muito bem. É uma mulher preparada, embora
confie que seja outro o motivo de sua tensão.
Andrew não se sentia tenso, e, embora estivesse de acordo com a
apreciação de seu irmão a respeito de Rosa, essa não era a questão.
—Acredita que o pai demorará muito em retornar?
Christopher encolheu os ombros. Ignorava a data da volta de seu
pai, inclusive a de Arthur, que decidira seguir um tempo fora da Inglaterra.
Encontrava-se em Salamanca, comprando éguas para as quadras de
Crimson Hill.
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Seu irmão ganhava autênticas fortunas com os potros que criava.
—Parece arrasado — comentou Christopher, sem afastar os olhos
de seu irmão caçula.
O rosto normalmente despreocupado de Andrew tinha um rito de
intranquilidade que lhe resultava estranho. Novo.
Ambos estavam sentados frente à mesa do gabinete, na biblioteca
de Whitam. A porta estava fechada para preservar sua intimidade.
—Pai é um homem muito influente e os compromissos aos quais
tenho que assistir em seu nome são muitos. Mal acabo com um, quando já
tenho outros em florações e todos inevitáveis.
A queixa de Andrew a Christopher pareceu justificada; o jovem não
estava acostumado aos rigores da etiqueta. Tinha sido mimado.
—Pois não aceite os convites — aconselhou, sem alterar-se.
As loiras sobrancelhas de Andrew formaram um arco perfeito.
«Não aceitar? Impossível», disse-se.
—Não posso.
—Por quê?
—Porque são compromissos de meu pai, e meu dever é representá-
lo. Que seu nome continue sem máculas. Levou toda uma vida para formar
sua excelente reputação, e eu não posso jogar tudo fora só porque as
reuniões sociais me deixam agoniado.
Christopher abriu a boca, mas a fechou, de novo. Andrew não
parecia o mesmo. Onde estava o libertino que ia de farra em farra até cair
exausto?
—Presumo que essas palavras não são suas, mas, sim, de sua
esposa.
O brilho nos olhos de seu irmão lhe mostrou que tinha acertado
totalmente na hipótese.
190
—É uma dama em todos os sentidos da palavra — disse Andrew,
de repente.
Christopher não pôde discernir por que seu tom parecia resignado.
Rosa era uma mulher excelente, uma esposa extraordinária e uma mãe
atenta e abnegada.
—Para todos que a vêm, é óbvio que o ama e se esforça por agradá-
lo — disse, para consolá-lo.
—Mas é tão... — Andrew calou um momento — tão rígida e severa
— concluiu, ao fim — Seus gestos são cuidados, elegantes. Nunca leva o
vestido enrugado ou um cacho fora de seu lugar. Jamais ri de forma
espontânea em presença de convidados. Controla suas emoções diante das
pessoas como se fosse uma rainha ante seus inimigos. Deixa-me louco
tanta austeridade!
Christopher começava a compreender o humor de seu irmão.
—Falou com ela a respeito? Seria bom que lhe contasse como o faz
sentir sua régia educação.
A expressão do rosto de Andrew foi tão cômica, que, para
Christopher, custou um verdadeiro esforço manter a compostura e não
soltar uma gargalhada.
—Acha que posso lhe dizer que me incomoda sua forma de ser tão
educada? Foi criada desde o berço para comportar-se como se espera em
uma dama de alta linhagem.
—E onde reside o problema?
—Eu gostaria de vê-la perder as estribeiras, ao menos uma vez. Que
manche o vestido e que não se importe. Que leve o cabelo solto para o
desfrute de meus olhos...
—Deveria aceitá-la como é.
191
Aceitava-a, disse-se Andrew, mas não podia evitar desejar que
fosse mais espontânea com ele.
—Quando a conheci, era uma pessoa completamente diferente da
mulher que é agora. Apaixonei-me por sua forma de me olhar. Sua maneira
de comportar-se, livre, mas inocente. Calada, mas comunicativa...
Christopher decidiu interrompê-lo.
—Entre aquela moça e a mulher que é agora, há uma menina de
cinco anos e uma guerra, Andrew. Deve ter sido muito duro para ela criar
minha preciosa sobrinha sozinha. Manter um enfrentamento com um irmão
absolutista e, além disso, ser declarada traidora à Coroa. Não esqueça que
está viva por milagre.
—Tem razão — concedeu Andrew — Mesmo assim, não posso
evitar sentir que eu gostaria que cantasse uma balada de amor para mim ou
que desse um soco em uma mulher por minha honra. Pareço um menino
com um acesso de raiva, não é? — reconheceu, humildemente.
Christopher recordou que Ágata fizera, precisamente, algo assim
por ele, mas Ágata não era filha de um duque espanhol, a não ser a filha de
um derrotado oficial francês.
—Você viveu sempre no limite. Sem se importar nem um pouco
com os corações que deixava quebrados pelo caminho. — Seu irmão ia
interrompê-lo, mas Christopher não permitiu — Nunca teve
responsabilidades. Pai deixou que crescesse livre, sem mais cargas que a
diversão, embora sempre pensei fosse um desserviço, e o tempo me deu a
razão.
—Eu a amo com toda minha alma, Christopher — admitiu, com
voz firme — mas me desgosta que seja tão perfeita.
Tinha dado com a palavra adequada: Rosa era muito perfeita para
ele.
192
—Então, diga-lhe, para que saiba como se sente.
Mas Andrew não pensava em seguir sua sugestão.
O problema não estava em Rosa, a não ser nele mesmo, que tinha
muita saudade da mulher que fora no passado. Os momentos risonhos e
despreocupados que compartilharam, quando ele ignorava que era a filha
de um duque e a irmã de um homem muito intolerante e belicoso.
Andrew colocou como meta conseguir que Rosa se comportasse de
forma mais natural, mas não sabia se obteria seu propósito.
CAPÍTULO 18
Rosa fiscalizou tudo pela enésima vez.
A prata foi polida até deixá-la reluzente. A baixela de honra estava
colocada com esmero, e os centros de flores enchiam de fragrância não só a
sala de jantar, mas também o vestíbulo e o salão principal da casa.
Escolhera com mimo o jantar e repassado com a cozinheira os detalhes dos
pratos e das sobremesas. Contratara dois lacaios mais para reforçar o
serviço em uma ocasião tão especial como a que ia viver-se em Whitam
Hall.
Quando Andrew a apresentou ao pessoal da casa, Rosa acreditou
que faz com que a obedecessem ia resultar muito difícil, entretanto, o
193
mordomo, a cozinheira e o resto do serviço acataram cada sua sugestão sem
uma réplica. Levar a mansão de Whitam não era trabalho fácil, mas estava
bem preparada, e, graças ao respeito que lhe mostravam todos, realizar as
tarefas próprias da senhora da casa era fácil.
—Marcus. — O mordomo cravou os olhos nela, que lhe sorriu
agradecida — Tudo está perfeito.
O homem inchou o peito, com orgulho. O reconhecimento que
acabava de fazer a senhora por seu trabalho lhe resultou inesperado, mas
muito agradável.
—É meu trabalho, milady — respondeu, um tanto incômodo.
Rosa posou a mão direita no antebraço do mordomo, enquanto o
olhava com atenção.
—É algo mais que isso. É dedicação exclusiva. Whitam funciona à
perfeição graças a seu esforço e ao do resto do pessoal da casa. Muito
obrigado e, por favor, transmita a todos meu sincero agradecimento.
Marcus estava realmente sobressaltado. Era a primeira vez que uma
senhora Beresford lhe agradecia por fazer seu trabalho. Um trabalho que
realizava com supremo prazer.
—Vai deixá-lo vermelho, querida.
A voz de Andrew lhe chegou da porta de entrada ao salão principal.
Rosa o olhou, mas não avançou para ele.
—Só constato um fato que merece um efusivo reconhecimento por
nossa parte — alegou, com voz cheia de simpatia, que provocou a rápida
retirada de Marcus.
—Irei fiscalizar que as donzelas tenham tudo pronto, milady.
Andrew não deixou de olhar o mordomo, que já fechava a porta
atrás dele.
—Tem a ele comendo em sua mão.
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Rosa se inclinara para cheirar o buquê de flores disposto no centro
da mesa. Outros menores estavam colocados a uma prudente distancia entre
si para não carregar muito o ambiente com o penetrante aroma das rosas.
—Cada dia me surpreende mais — continuou ele.
Rosa se voltou para seu marido, que caminhava para ela com um
brilho malicioso nos olhos. O coração acelerou. Assim que o olhava,
esquecia-se absolutamente de tudo. Que poder tinha Andrew que a
subjugava por completo?
—Surpreendo você? — perguntou, com certa ansiedade na voz.
Ele se fixou em seu vestido, de decote quadrado com transparências
de renda no pescoço. A cintura era alta, logo abaixo do busto. Mal tinha
cauda, e a cor dourada era muito bonita. Conseguia que o cabelo dela
brilhasse ainda mais escuro sob o lustre de cristal. As joias que levava eram
muito discretas, apenas uma cadeia fina com um pequeno crucifixo no
pescoço. Um passador de pérolas no elaborado coque e o anel de
esmeraldas que lhe pôs no dedo, quando a desposou na fronteira escocesa.
Mas, embora fosse vestida com farrapos, sua linhagem seria
indiscutível. E, de repente, a dúvida fez vacilar sua confiança. Ele nunca se
preocupou pela etiqueta, por guardar as formas. Seu pai sempre lhe tinha
desculpado e permitido que prescindisse da maioria dos compromissos
sociais, porque lhe resultavam tremendamente aborrecidos.
—Noto-o preocupado. — As palavras de Rosa lhe chegaram entre
suspiros.
Estava perdido, imerso em sentimentos desanimadores.
—Andrés...
Piscou para afastar a incômoda sensação de estar fora do lugar.
Rosa entrelaçara seus dedos com os seus, frios de repente.
—Está preciosa — disse, ao fim.
195
Ela cravou os olhos nos seus e admirou seu brilho.
—A velada será um êxito — acrescentou ele, com orgulho —
Durante semanas, se falará do suntuoso jantar oferecido em Whitam Hall.
Ela tomou como o elogio que era, mas algo em sua atitude lhe
chamou a atenção. Fazia vários dias, o rosto de Andrew refletia
preocupação, certa reserva, e ignorava o motivo.
—Você faz tudo muito mais fácil — disse ela, com simplicidade.
Gostou muito dessas palavras, embora soubesse que as havia dito
para agradá-lo. Rosa sempre tinha uma palavra amável para todos,
inclusive para o moço que se ocupava de manter limpos os estábulos.
—Eu gosto de seu lar. Aqui, se respira amor e cordialidade —
acrescentou ela, sem deixar de olhá-lo.
—Quando conhecer melhor meu irmão Arthur, mudará de opinião.
Rosa entreabriu os olhos, estranhando o comentário. Embora Arthur
lhe parecesse frio e reservado, não acreditava capaz de alterar a harmonia
familiar que ela podia perceber na casa. Em cada canto do lar.
—Certamente, parece excessivamente sério — comentou, sem lhe
soltar a mão — Mas suponho que é só a primeira impressão.
Andrew lhe pôs a palma da mão no ombro. Mal podia afastar o
olhar de seu rosto, belo e cheio de interesse. Por mulheres como Rosa, se
conquistavam impérios, declaravam-se guerras, perdia-se a vida.
—Necessita de um pouco de descuido em sua aparência.
—Descuido...? — Não pôde terminar a frase, porque a boca de
Andrew cobriu a sua com voracidade.
Sua ávida língua a pegou de surpresa, e seu ofego de prazer ficou
afogado em sua garganta. Seu marido lhe mordiscou o lábio inferior,
acariciou-lhe o interior das bochechas e procurou sua língua com a sua de
forma atrevida e sensual. As pernas de Rosa ameaçaram não sustentá-la;
196
parecia que os joelhos houvessem se tornado de gelatina, e não teve mais
remédio que agarrar-se às lapelas da casaca dele para não cair no chão.
A mão de Andrew foi ascendendo, lentamente, por suas costas,
acariciando cada vértebra e oco até alcançar a base de sua nuca, onde a
segurou com suficiente força, para que ela não pudesse mover a cabeça. E
aprofundou ainda mais o beijo. Saboreou-a com consciência e desejo.
Buscou em seu interior acetinado, até o ponto de enjoá-la por falta de ar.
—Jesus! — exclamou Rosa, quando os lábios dele começaram a
riscar um pequeno círculo ao redor de sua orelha.
O movimento lhe resultava tremendamente excitante e lhe
provocava umas cócegas no ventre que se parecia com o bater de asas de
algumas brincalhonas borboletas.
—Deixe isso solto.
Rosa não soube a que se referia, até que ouviu soltar o passador que
lhe segurava a espessa juba escura. Quando suas grossas mechas
começaram a cair pelos ombros e as costas, separou-se uns centímetros de
seu corpo.
—Andrés! — exclamou, horrorizada — Não é apropriado que uma
dama leve o cabelo solto em um jantar formal.
Tentava voltar a prender o cabelo, mas os dedos dele o impediam.
Andrew enroscou algumas mechas entre os dedos e as acariciava como se
quisesse comprovar sua textura e grossura.
—Adoro seu cabelo. Eu adoro vê-lo solto.
O instante mágico e íntimo que compartilharam se desvaneceu de
forma brusca. Rosa tinha os lábios inchados pelo beijo, às bochechas
ruborizadas pela fricção do rosto masculino e o cabelo despenteado e
caindo completamente à vontade em sua cintura.
197
—E o verá, esta noite, quando tiver ido o último dos convidados —
disse, com um tom de voz involuntariamente seco.
—Aos convidados não importará — respondeu ele, para incentivá-
la.
Rosa não podia compreender sua despreocupada atitude. Ela era
uma dama, e as damas não se apresentavam em um jantar como se fossem
lavadeiras.
—Mas, a mim, sim, e é uma opinião que deveria sobressair-se em
uma situação como esta.
—O coronel John Gurwood e sua esposa esperam ser recebidos —
anunciou Marcus, depois de um leve pigarro.
O gemido de horror de Rosa fez com que Andrew fechasse os
olhos. Tinha cometido uma grande estupidez, ao lhe soltar o precioso
cabelo.
—Preciso me arrumar, mas não posso cruzar o vestíbulo para subir
a meus aposentos e permitir que me vejam assim.
Seu pânico era bastante eloquente.
—Parece uma ninfa — lhe sussurrou ele ao ouvido.
—Andrés! — exclamou indignada.
O horror em seu rosto o fez desistir de sua postura brincalhona.
Rosa estava realmente preocupada, tentando prender as mechas com o
passador, sem conseguir.
—Não se preocupe — concedeu, resignado — Eu os acompanharei
à biblioteca para mostrar ao coronel a coleção de armas de meu pai, assim,
terá tempo suficiente para subir e se recompor.
Rosa lançou um suspiro entrecortado.
—Obrigada — respondeu, com simplicidade.
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Mas Andrew voltou a beijá-la de maneira apaixonada e intensa, até
que o pigarro de Marcus o fez soltá-la. Esqueceu-se, completamente, do
mordomo e dos dois primeiros convidados, que esperavam no vestíbulo.
O jantar discorria com normalidade, mas os olhos de Andrew não se
separavam da figura de sua esposa, que escutava, atentamente, o coronel e
sua mulher. Ambos lhe explicavam, com meticulosa exatidão, a forma de
vida no Caribe, aonde fora destinado o coronel, no princípio de sua carreira
militar. Nem um gesto mostrava quão aborrecida devia lhe parecer à
conversa para Rosa. Vigiava com esmero que não faltasse nada na mesa e,
de vez em quando, olhava para Marcus e lhe fazia um gesto afirmativo,
como indicando que tudo transcorria com normalidade. As taças dos
convidados sempre estavam cheias e, às damas, lhes facilitou uns leques,
para que se refrescassem do calor que produziam as velas, a boa conversa
e o bom humor que reinava na sala de jantar.
Ele estava sentado no outro extremo da mesa, junto ao embaixador
espanhol e sua esposa. Seu irmão Christopher presidia em ausência do pai
de ambos. Rosa se sentava entre os dois convidados masculinos de maior
idade, lhes demonstrando assim uma grande deferência. Quem gostaria de
estar entre duas pessoas que mal ouviam e cuja única conversa era as
vicissitudes do passado? Ele, certamente, não.
Ágata ria junto a duas senhoras que não paravam de falar sobre
moda, um tema que, ao menos, não devia resultar muito tedioso a sua
cunhada, e Andrew se encontrou, de repente, analisando cada rosto com
interesse. Estava mortalmente aborrecido, cansado de escutar a conversa
sobre a guerra da Espanha que tinha iniciado o embaixador, tema que gerou
uma polêmica entre vários cavalheiros. E, quando cravou suas pupilas em
199
seu irmão, precaveu-se que mantinha a mesma serenidade que Rosa. Estava
sentado de forma erguida, sem relaxar os ombros, justamente o contrário
que ele, que tinha cruzado uma perna sobre outra para manter-se sentado
sem dobrar-se como um acordeão. Os olhos de Christopher demonstravam
interesse pela pessoa que monopolizava sua atenção, mas sem abandonar o
ar elegante que o caracterizava. Ao olhar, sucessivamente, para Rosa e para
Christopher, precaveu-se de que ambos estavam cortados pelo mesmo
padrão, tinham a mesma desenvoltura, elegância e saber estar. De repente,
seus olhos se desviaram para sua cunhada Ágata, que o olhava fixamente e
o fazia um gesto de contenção mal perceptível com a cabeça. Sabia o que
estava pensando! Esboçou um sorriso, ao tempo em que elevava a taça e
lhe dedicava um brinde.
—Verdade, lorde Beresford? — Andrew abandonou seus
pensamentos, para fixar os olhos no embaixador que lhe fizera a pergunta,
uma pergunta que ele não tinha ouvido, por estar pendente de seu irmão e
de sua mulher.
—Perdão? — respondeu, com outra pergunta; estava
completamente sobressaltado.
—Lorde Freeman acredita que o levante carlista não durará muito
tempo.
Seguiam falando da guerra na Espanha, um tema que Andrew
começava a detestar.
—O afastamento das hostilidades por parte de ambos os bandos
seria muito benéfico para o resto dos espanhóis que não combatem —
respondeu veloz, mas sem emoção.
O embaixador espanhol se apoiou no respaldo da cadeira e o olhou,
atentamente. Analisava seu comentário de forma crítica.
200
—Por suas palavras, deduzo que está a favor da regência de María
Cristina, certo? — A pergunta de lorde Freeman o pegou com o guarda
baixo.
Ele não estava a favor nem contra nada.
—As guerras só trazem morte e miséria — alegou, com voz
despreocupada — e isso é um fato indiscutível.
—E o que pensa sua esposa de sua postura neutra? — insistiu o
embaixador, sem deixar de olhá-lo.
Andrew não meditou a resposta, que foi a seus lábios quase sem
pensar.
—Lady Beresford pensa igual a eu.
—Permita-me que o duvide, lorde Beresford — o contradisse o
embaixador, com voz calma — Sabemos que sua esposa é partidária de
Carlos e não da infanta e que financiou com sua própria herança a
reclamação do irmão do rei.
Andrew entrava em um terreno perigoso, mas queria resolver o
tema de forma definitiva.
—Minha esposa compreende e aceita que a política é coisa de
homens. Agora, é cidadã inglesa, e, portanto, a sublevação de dom Carlos e
a resposta bélica dos seguidores da infanta não é um problema para ela.
O gemido generalizado lhe mostrou que havia dito as palavras
equivocadas, e, depois delas, produziu-se um incômodo silêncio.
Andrew olhou a Rosa, que o contemplava incrédula e, um segundo
depois, desolada.
—Andrew, a maioria dos convidados não conhecem seu senso de
humor — interveio Christopher, tentando desviar a atenção da resposta de
seu irmão.
Rosa seguia sem afastar os olhos dos dele.
201
Andrew compreendeu que acabava de colocá-la em uma situação
bastante comprometedora. Expressou em voz alta o que sentia e tinha
esquecido por completo que sentado a seu lado estava o embaixador
espanhol, claro defensor da regência de María Cristina.
O silêncio se prolongou durante uns momentos angustiantes,
incômodos. Ágata não sabia como sua cunhada podia emendar um
comentário tão desafortunado por parte do Andrew.
Mas Rosa respondeu de forma muito diferente a como esperavam
todos.
—Meu marido tem razão em relação à política. E a situação
espanhola o preocupa, embora ele se cale, para não me inquietar —
admitiu, ao fim — Sua insônia por meu bem-estar o leva a expressar-se
assim, não é, amor?
Agora, todos os olhares se dirigiram para Andrew.
Rosa conseguira mitigar o desastre que tinha ocasionado com suas
palavras e o deixou muito melhor do que o fez ele com ela.
—Só desejo sua felicidade — disse Andrew, em voz baixa, como se
fosse um sussurro.
Cada palavra pronunciada por sua boca saía, diretamente, do
coração, e estavam cheias de um amor profundo e apaixonado que Rosa
soube valorizar.
—Sei — correspondeu, com simplicidade — E estou imensamente
agradecida.
Os convidados seguiam o diálogo de ambos. Era como se
estivessem sozinhos na sala de jantar e sentados juntos, apesar da distância
que os separava.
Christopher decidiu intervir na conversa que se tornou sossegada
graças ao saber fazer de sua cunhada. Conseguiu que umas palavras
202
depreciativas fossem tomadas como uma declaração de amor. Estava
assombrado.
—Senhores, tomaremos o brandy no salão. Rogo que me
acompanhem.
As palavras de Christopher obtiveram que os homens se
levantassem para segui-lo, salvo Andrew, que continuou sentado à mesa,
sem afastar os olhos de Rosa.
Nada na postura dela indicava que estivesse ofendida. Somente seus
olhos expressavam certo pesar, mas passaria despercebido para qualquer
pessoa que não a conhecesse tão bem.
Era uma mulher única.
CAPÍTULO 19
Andrew não acompanhou seu irmão ao salão, com o resto dos
convidados masculinos para saborear uma taça de brandy. Precisava
respirar um pouco de ar, por isso, saiu ao jardim traseiro da mansão.
Encaminhou-se para o roseiral, cruzou-o e se sentou em um banco de
pedra, ao amparo de umas árvores frutíferas.
A noite era, na verdade, formosa, mas ele se sentia aflito.
Rosa não tirou os olhos de cima dele, depois de seu último
comentário, mas como boa anfitriã, acompanhou o resto das convidadas à
sala especialmente habilitada para elas, enquanto os homens fumavam e
falavam de política no salão.
203
Andrew não compreendia a necessidade que sentiam os homens de
manter-se separados de suas mulheres, quando o único que ele ansiava era
estar com a sua. Mais que nada, gostaria de tê-la, nesse momento, sentada a
seu lado, desfrutando de uma cálida e perfumada noite sob as estrelas. Sem
preocupar-se com os problemas do mundo, nem escutar, durante horas
intermináveis, as banais conversações de convidados que não significavam
nada.
Suspirou, com um pouco de tédio.
—Procurava você. — A voz de sua cunhada lhe chegou em tom
muito baixo.
—Precisava respirar um pouco de ar — disse, com certo
desconforto.
Acreditava que nenhum convidado se precavesse de sua fuga para
os jardins.
—Posso me sentar com você?
Andrew se fez a um lado do banco e afastou algumas folhas secas
que a brisa vespertina espalhara pelo jardim.
Depois de uns momentos de silêncio, Ágata o rompeu, com um
comentário cheio de simpatia.
—Sei como se sente. — Suas palavras o pegaram de surpresa.
Ele mesmo não saberia expressar como se sentia.
—Comigo aconteceu um pouco parecido com Christopher.
Andrew a olhou, com os olhos brilhantes de interesse.
—Sentia que não estava à sua altura?
—Nunca estarei à altura dele, Andrew, mas aprendi a aceitar
minhas limitações.
A palavra «limitação» lhe resultava aborrecível.
204
—Acreditava que o amor que nos professamos superaria qualquer
barreira — admitiu, com certa vacilação — mas, agora, não estou tão
seguro.
—Entendo seu desgosto, mas acredito que está fazendo isso muito
bem.
Andrew desprezou suas palavras de ânimo porque não eram certas.
Não estava fazendo nada bem, justamente o contrário. Sua atitude indolente
começava a pesar no aspecto de Rosa.
—Por que a provoca? — perguntou Ágata, olhando-o nos olhos.
Ele sentiu a necessidade de afastar os olhos, mas não o fez. Lá, em
meio ao jardim e rodeados pelas árvores frutíferas, sua cunhada acabava de
pôr nomes aos desencontrados sentimentos que o sobressaltavam.
Provocava Rosa com premeditação!
Meditou profundamente, antes de responder.
—Possivelmente, para obter uma resposta como a que obteve meu
irmão de você.
Ágata piscou, atônita por suas palavras.
—Rosa é uma dama, e eu uma má cópia que tenta parecer com isso.
Andrew negou várias vezes com a cabeça.
—Você é autêntica e não deveria se menosprezar.
—Não julga nem questiona o severo e intransigente caráter de
Christopher com tanta dureza e parcialidade como o faz com o caráter de
Rosa, por que?
Era certo. Seu irmão se comportava com a mesma correção e frieza
que sua mulher. Mas ele não se deitava com Christopher, nem desejava
passar toda a vida a seu lado. Se fosse assim, o mataria em um arranque de
tédio!
205
—Desejo recuperar a moça que conheci em Hornachuelos e me
desanima não saber como conseguir.
Ágata entendia muito bem as palavras de seu cunhado, que se
equivocava, guiado por um sentimento de inferioridade. Rosa destilava
segurança por cada poro de sua pele. Tinha sido educada desde a infância
com rigidez, controle e, o mais importante, ausência de liberdade. O que,
para Andrew, foi dado de mãos cheias.
—Conheceu uma moça única e acredita que era perfeita para você,
porque pensou que não tinha uma família a que prestar contas e estar presa.
Uma mulher sem responsabilidades, mas se enganava. Todo tem um
passado, mas está em você conseguir que seja seu presente e seu futuro.
Andrew meditou as palavras de Ágata.
Era certo. Havia tomado a Rosa por uma moça singela e órfã,
porque, quando lhe perguntou por sua família, ela deixou muito claro que
perdera todos na guerra contra Napoleão.
—Nunca me falou de seu irmão — reconheceu, com certo pesar —
Em Hornachuelos, fomos simplesmente duas pessoas que deram rédea solta
ao amor que sentiam e os devorava.
—Um casamento deve compartilhar muitas coisas além de amor.
Sentimentos como o respeito, a fidelidade e a confiança.
—Sinto-me um egoísta. Sou ambicioso, sei, mas a amo muito e não
me conformo sendo uma sombra a seu lado. Quero iluminar toda sua vida.
Ágata soltou um suspiro, pormenorizado.
—Então, compartilhe com ela suas inquietações. Ajude-a a alcançar
suas metas e será sua estrela brilhante pelas noites e seu sol quente durante
o dia.
Andrew ignorava para onde o conduzia Ágata com suas palavras.
—Não compreendo que tenta me dizer.
206
—Se lhe importar a política, não a desanime, participe ativamente
nela e tome partido. Se lhe preocupar a situação na Espanha, lhe dê consolo
e lhe mostre seu apoio.
—Sempre rechacei a política — admitiu, evasivo — detesto as
reuniões sociais e a falsidade da aristocracia em geral. Resulta-me
vomitivo.
Sua cunhada fez uma careta de censura por seu último comentário.
—Pois, mal que lhe apesar, desposou, nada mais e nada menos, que
a filha de um duque. A irmã de um duque e a futura tia de um duque.
Embora não queira caldo, lhe tocará tomar três taças10
.
Andrew riu, ao fim.
—Agora, que recuperou um pouco de senso comum, procure sua
esposa e lhe mostre o quanto brilha para ela...
A ausência de Andrew na recepção lhe produzia um enorme
desconforto. Os convidados masculinos se reuniram de novo com as damas
para escutar um pouco de música, e ela se encontrava no dilema de querer
ir buscá-lo e não poder fazê-lo, porque, então, deixaria desatendidas às
damas. Algo imperdoável para uma boa anfitriã. Mas, quando o viu cruzar
as enormes portas de vidro que davam ao jardim traseiro, o suspiro que lhe
saiu da alma foi audível para as duas mulheres que tentavam monopolizar
nesse momento sua atenção.
Desejava com todas suas forças que Andrew se dirigisse para ela e a
beijasse, porque, assim, conseguiria acalmar a ansiedade que sentia, mas
10
Ditado mexicano, que significa que se quiser muito alguma coisa, tem que arcar com as
consequências.
207
ele fez justamente o contrário do que desejava. Sentou-se junto a lorde
Eliot e aceitou uma taça que lhe serviu seu irmão, solícito, mas com olhar
severo.
Christopher censurava a escapada de Andrew justo depois do jantar.
Ágata apareceu, pouco depois, e esboçou um sorriso em direção a
Rosa acompanhada de um brilho especial no olhar. Rosa se perguntou por
que lhe sorria, embora decidisse levar isso como uma amostra de
solidariedade pelo bom resultado final da recepção.
Durante a seguinte hora, dedicou-se não só a escutar atentamente o
bate-papo de lady Stone, mas também a observar cuidadosamente seu
marido, que seguia mostrando um enorme interesse pela conversa que
mantinham com lorde Eliot. Via-o assentir e negar pouco depois e se fez
um montão de perguntas a respeito.
Os convidados foram abandonando a casa em um constante fluxo.
E, quando a grossa porta se fechou depois do último, Christopher encarou
com Andrew de uma forma que o coração de Rosa se encolheu.
—Está satisfeito? — Seu irmão não esperou nem que o mordomo
partisse para as dependências do serviço para ordenar que retirassem os
restos do jantar.
Rosa estava junto a Ágata. Ambas saíram ao vestíbulo para se
despedir do último convidado, e a voz colérica do Christopher as deixou
paralisadas.
—Mais do que esperava. — A voz de Andrew parecia insolente.
—Deveria lhe dar um murro — o ameaçou seu irmão, que não
afastava os olhos do rosto dele — Hoje se comportou como um autêntico
pusilânime e pôs Rosa em uma situação difícil.
—Sei, mas não foi premeditado.
208
Ambas as mulheres seguiam sua conversa . Nenhum deles se
moveu. Os dois se mantinham alerta.
—E já está? — perguntou, mais colérico ainda — Em certas
ocasiões, terá de comportar-se como um verdadeiro homem e, esta noite, se
mostrou um pirralho imaturo, insensível e falto de ideias.
—Lorde Beresford! — exclamou Rosa, completamente atônita.
Mas seu cunhado não a olhou nem cessou em suas duras recriminações.
Ágata a segurou pela mão no momento em que a viu avançar para
Andrew, que seguia na mesma postura defensiva.
—É de humanos errar, Christopher, e meu comentário foi um
pensamento em voz alta que não pude conter a tempo.
—Maldito! — resmungou seu irmão mais velho, com voz altiva —
Seu comportamento deveria envergonhar você, e não me dê desculpas.
Hoje fez algo lamentável, como desaparecer justo depois do jantar. Em que
demônios estava pensando?
Rosa mantinha o olhar cravado no rosto de Andrew, que se via
aflito. As duras palavras de Christopher o machucavam e o faziam fechar
os punhos aos flancos.
Seu irmão voltou para a carga, mas Rosa se adiantou, apesar do
gesto de Ágata para que se contivesse.
—Hoje, os dois Beresford desta casa estão se comportando de uma
maneira muito imatura.
Christopher se voltou para ela, às suas costas, junto à escada.
—Defende-o? — perguntou, estupefato — Não posso acreditar!
—Andrés agiu de forma impulsiva, certo, mas foi motivado porque
não está acostumado à obrigação de seguir normas muito rígidas e mostrar,
em todo momento, um sorriso satisfeito que nenhum dos convidados
aprecia nem um pouco. Por isso, me parecem estranhas suas palavras
209
recriminatórias. Se tiver algo que lhe dizer a respeito, faça-o na intimidade,
e não no meio do vestíbulo e diante de duas senhoras que só desejam ir
dormir, depois de uma velada exaustiva.
Ágata conteve a respiração, ao escutar sua cunhada. Nenhuma
mulher lhe falava assim com primogênito dos Beresford. Nem ela mesma
se atreveria!
Christopher piscou várias vezes, ao tempo em que assimilava a
severa reprimenda que acabava de soltar sua cunhada. Como podia
defender o crápula de seu irmão, depois do abafadiço espetáculo que tinha
devotado antes, durante e depois do jantar?, perguntou-se irado.
—Assim, se deseja continuar a discussão, por favor, rogo que seja
na biblioteca e com a porta fechada, para evitar um desconforto, e, agora,
boa noite, lorde Beresford.
Rosa girou sobre si mesma e começou a subir a escada. Ágata a
seguiu, precipitadamente. Seguia atônita e sem poder pronunciar palavra.
Andrew a contemplou, enquanto subia, com sua cunhada atrás.
Quando ambas as mulheres se perderam no corredor de acima, cravou suas
pupilas nas costas de seu irmão, que seguia olhando a escada assombrado.
Christopher se voltou para ele com uma expressão bastante
eloquente: estava atônito!
—Não a merece.
—Sei — respondeu Andrew, cheio de orgulho.
Um breve silêncio se instalou entre ambos os irmãos, que não
moveram nem um músculo.
—Queria uma bofetada? Pois aí a tem. Cretino! — Andrew esboçou
um sorriso um pouco perturbado — Ficaremos em Whitam até a volta do
pai — concluiu Christopher.
E suas palavras soaram cortantes.
210
—Acaso não confia em mim? — perguntou Andrew, com ironia.
Seu irmão o olhou de cima abaixo, sem piscar.
—Nem um pouco.
E, depois da ofensiva resposta, voltou-se rápido e subiu os degraus
de dois em dois.
Andrew ficou, de repente, sozinho no grande vestíbulo de Whitam
Hall.
CAPÍTULO 20
Rosa seguia escovando o cabelo, esperando a chegada de Andrew ao
quarto.
Cada vez que recordava o que dissera ao primogênito dos
Beresford, ruborizava de vergonha. Mas Christopher se mostrou muito
intolerante com seu irmão, que estava aprendendo a passos largos as
inumeráveis e tediosas regras sociais. Este seguia sendo um espírito livre,
como em Hornachuelos, e isso era o que mais a atraiu nele, no passado.
Andrew nascera em uma família nobre, mas nunca se comportou como tal
porque não lhe fazia falta, até então.
Quando ouviu o ruído do trinco, deteve a mão com a escova no ar e
se voltou para Andrew, que sustentava duas taças de cristal e uma garrafa
211
de vinho tinto. Ficou parado na metade da quarto, sem afastar seus olhos
azuis dela.
—Deixa-me sem fôlego. — O carinhoso elogio lhe provocou a
mesma emoção de sempre.
Rosa deixou a escova de manga de prata na pequena mesa que
utilizava como penteadeira. A habitação de Andrew era muito masculina.
Como ele.
—Estou zangada — espetou, de repente.
O silêncio se instalou entre ambos, até que Andrew decidiu rompê-
lo.
—Sei. — E, pela primeira vez, se precaveu de quantas vezes
repetira essas mesmas palavras, desde que estava casado — Por isso, quero
fazer as pazes com você.
—Não é um menino, Andrés. Não pode se comportar com essa falta
de coerência.
—Não é falta de coerência, Rosa.
Ela abriu a boca, mas a fechou, um instante depois.
Ele tinha deixado à garrafa e as duas taças sobre a mesinha de
cabeceira. Viu-o caminhar para o closet, enquanto desabotoava a camisa de
gala, o colete e as calças. Fechou os olhos, porque ainda lhe produzia certo
sobressalto contemplar como se despia diante dela.
Seu corpo era como o de uma divindade nórdica. Dourado da
cabeça aos pés.
Quando ouviu o ruído da garrafa ao ser desarrolhada, abriu-os
rápido. Andrew vestira um roupão de seda azul que se adaptava aos
músculos de seu corpo, delineando-os.
—Meu comportamento é o resultado da insegurança que me
provoca — disse, a seguir.
212
—Insegurança? Não o compreendo, Andrés. — E era certo.
Cravou suas pupilas nas dele, que lhe mostravam um brilho de
desejo misturado com incerteza.
—Temo cometer enganos, por isso, me comportei assim esta noite.
—Andrés! — exclamou, compungida. Ela esperava outra resposta.
—Mas lhe dou minha palavra de que, de agora em diante, me
esforçarei ao máximo para ser um autêntico Beresford.
—Meu aborrecimento não está provocado por seu comentário
durante o jantar — esclareceu, com a voz serena.
Ele estava perplexo. «Então, por que está zangada?», perguntou-se.
—Mas, sim, por sua passividade ao permitir esse tom em seu irmão
ao censurá-lo — acrescentou Rosa.
Estava cada vez mais atônito.
—Você é responsável em Whitam, na ausência de seu pai. Embora
seu irmão esteja presente no jantar, é um convidado mais. E não deve
permitir que monopolize a reunião e se desloque no trato com os
convidados. Não é correto, Andrés. Hoje deveria ter ocupado o lugar de
honra na mesa e não ficar à margem como um mero observador, sem
intervir.
Andrew sentia uma vontade enorme de soltar uma gargalhada,
embora se contivesse, mas esboçou um sorriso de orelha a orelha. Ela
seguia falando do maldito protocolo.
—Não escutou nada do disse — o recriminou, mas de forma mais
suave, ao ver sua diversão.
Ele fez um gesto negativo com a cabeça.
—Sim escutei, mas não estou de acordo com você. Como
primogênito e futuro marquês, Christopher é responsável por tudo o que
acontece em Whitam, na ausência de nosso pai. E, esta noite, eu me
213
comportei como um pirralho imaturo, porque me aterra a ideia de perder
você.
«Andrés temia perdê-la?» Sua confissão a pegou despreparada.
—Sou eu a que se sente insegura a respeito de você.
Sem pretender, Rosa ouvira uma conversa entre duas convidadas
sobre as contínuas e constantes conquista do jovem Beresford. Sem querer,
descobriu que seu marido era um libertino consumado e, de repente, ser
consciente disso lhe provocava um temor muito real.
Andrew a olhou entre a dúvida e o assombro. Ela se sentia
insegura? Não podia acreditar!
Rosa decidiu lhe contar o motivo de sua preocupação.
—Por acaso, ouvi uma conversa sobre as mulheres que desfilaram
por seu leito. Segundo duas das convidadas, o número de suas conquistas
chega a uma centena. — calou-se, por um momento, porque a conversa a
mortificava, mas tinha de ser sincera com ele e lhe mostrar o modo como a
afetava saber disso — E devo admitir que não gostei em absoluto. Embora
não tenho o direito a recriminá-lo, posto que agia como um homem sem
responsabilidades.
Rosa não duvidava que as mulheres exageravam o número de
conquistas de Andrew, mas, mesmo assim, não gostou de conhecer seu
passado amoroso.
Ele sentia em enorme desejo de abraçá-la. Conforme disse, estava
zangada e se sentia insegura, mas mostrava o orgulho de um general em
plena batalha.
Não perdia o orgulho nem quando estava com ciúmes.
—Foram muitas — a provocou — mas não uma centena.
214
Durante um décimo de segundo, o brilho nas pupilas de Rosa lhe
mostrou como seria uma vingança consumada por ela: absoluta. E esse
conhecimento o fez tomar ar.
—Mas não significaram nada — acrescentou — Foram um triste
consolo no qual tentei me refugiar depois de seu abandono.
Os olhos dela brilharam espectadores.
—Não o abandonei — esclareceu — Eu me neguei a acompanhá-lo,
o que não é o mesmo.
Sua observação o incomodou, porque os desviava de um tema que
começava a apaixoná-lo: os ciúmes femininos.
—Destroçou-me o coração, Rosa, e, depois, caminhei na borda do
precipício. Por isso, procurei consolo em outros braços femininos.
—Em outros ou em centenas? — perguntou, controlando sua voz,
mas não seu olhar.
Sua contínua piscada mostrou a Andrew que estava muito afetada.
—É e será a única mulher em minha vida. — Sua declaração,
singela e espontânea, arrancou-lhe um profundo suspiro, uma exalação que
impregnou na alma dele, acariciando-a por completo.
Rosa se manteve em silêncio, mas abandonou sua postura passiva,
sentada frente da penteadeira e se aproximou de onde estava ele, com os
braços na cintura e o rosto imperturbável.
—Amo você, Andrés, com toda minha alma. Não quero perder você
nem desejo que procure consolo em outro leito que não seja o meu.
Suas palavras o desarmaram por completo.
—Então, me deixe que lhe mostre tudo o que sinto por você e quão
valiosa é aos meus olhos.
Suas mãos seguraram as suas com delicadeza.
Rosa se deixou guiar até os pés do leito.
215
—Se olhe como a vejo e note a adoração que sinto por você.
Ela fez um gesto afirmativo com a cabeça.
Andrew lhe agarrou uma mão, colou-a as suaves costas dela a seu
peito e começou a lhe sussurrar ao ouvido em voz muito baixa.
Rosa fechou os olhos, ante sua petição.
Andrew lhe abriu a palma e a levou para a seda da camisola, onde
iniciou um lento percurso em seu quadril direito, enquanto ele a guiava.
—O contorno é perfeito, firme e ondulante. O começo de uma
questão inacabada. — A mão aberta de Rosa acariciava a própria curva de
seu quadril, que, em seu subconsciente, se revelou como uma suave duna
do deserto. Agora, seguia o percurso por seu ventre e seu estômago — Esta
ligeira proeminência me recorda a ladeira de uma montanha orgulhosa,
com um pendente atraente, e aqui — a palma dele se deteve em seu umbigo
— aqui, na boca da cratera adormecida, escondem-se segredos que
ninguém pode desvelar, apesar de que nos resulta sedutor, intrigante. O
começo de uma aventura que nos apanha, engole-nos. — De novo, voltou a
posar sua mão no dorso da dela para seguir a exploração. Com suma
destreza, a subiu pelo lado direito até alcançar a delicada curva do seio,
onde a deteve para que ela calibrasse a forma e o peso — Dois montículos
perfeitos em um vale fértil, cheios das mais doces promessas.
Fê-la girar no sentido das agulhas do relógio, a palma de Rosa
estava quente a seu contato.
Ela ofegou, sufocada. O jogo que Andrew tinha começado era
extremamente erótico.
—Sente tudo o que diz quando lhe fala com suas carícias. — Seus
mamilos se endureceram ante suas palavras, e ficaram eretos, como casulos
de rosa, antes de abrir-se ao sol.
216
Rosa começava a tragar com dificuldade. Andrew era um sedutor
nato.
—Se fosse mais alta, seriam pequenos. Se fosse menor, justamente
o contrário, mas têm o tamanho perfeito para que um homem se deleite
com eles e morra por saboreá-los. — Sua mão percorreu o seio dela até
alcançar a base de sua garganta — Um atalho solitário que nos conduz à
cova das maravilhas, onde nos esperam mil e uma sensações, mas antes
devemos sortear a montanha belicosa. — Sua forte mão tinha alcançado a
parte baixa de seu queixo e se dirigia impenitente ao contorno de seus
lábios.
O peito de Rosa começou a agitar-se, estremecido. As metáforas de
Andrew sobre seu corpo lhe produziam um ardor incessante no ventre, que
subia de intensidade a cada momento.
—Duas pétalas que se abrem à reclamação de uma abelha para
beber o néctar que esconde em seu interior.
Acariciou-lhe com um dedo os lábios abertos pela surpresa. Rosa os
fechou por instinto e, um instante depois, notou o sabor dele em sua boca;
seu gosto salgado lhe produziu um intenso prazer que a deslocou.
Era imune a tudo o que não fosse às sensações que despertavam as
sensuais palavras dele em seu ouvido.
—É o prazer feito realidade. — Os lábios de Andrew foram
passeando à vontade por seu pescoço, procurando o prêmio que ela estava a
ponto de lhe outorgar.
Acariciou seus delicados ombros e a virou, com grande lentidão,
para ele.
—Abra sua cova para mim! — Rosa lhe correspondeu — A mais
sedutora das deusas.
A boca dele a buscou até encontrá-la.
217
O beijo firme e delicado ante a selvagem resposta dela se tornou
lacerante.
A mão de Andrew tinha abandonado a passividade para acariciar o
mesmo trajeto que fizera a mão dela uns minutos antes. Seguia reclamando
com a língua, pedindo uma rendição que Rosa lhe outorgou encantada. Ela
gemia ante as sensações que foram circulando por seu corpo, lhe causando
pequenas cãibras nas extremidades. Os joelhos começaram a fraquejar e se
recostou no peito forte de Andrew.
Sua boca tinha sabor de café e o aroma lhe resultou extremamente
excitante, por isso, seguiu bebendo como uma sedenta. Mordiscou seus
voluptuosos lábios com consciência. Com sua língua, indagou, explorou e
delineou as curvas mais ocultas sem que ela opusesse resistência. Quando a
mão dele se fechou em torno de seu seio, Rosa lançou um gemido profundo
que a surpreendeu por sua intensidade, e a descarga que recebeu a deixou
tão fraca que não replicou quando foi deitada no leito.
Rosa baixou a mão em uma suave carícia pelo duro torso dele,
medindo, descobrindo os planos duros de seu estômago, que se iam
revelando, à medida que o tocava com dedos febris. Seguiu descendo por
seu estômago até a abertura da bata. Seu pênis, ereto como um mastro,
sofreu uma violenta sacudida ante o roçar delicado de sua mão e se
entregou a sua exploração tornando-se ainda mais duro.
Rosa seguiu em seu desinibido avanço.
Começou, com ousadia, uma lenta exploração do tamanho,
suavidade e longitude do membro pulsante em sua mão com um desespero
que escapava ao entendimento de Andrew. Conheciam-se intimamente,
mas com ela sempre era como a primeira vez.
Desfez-se da bata de seda azul, e Rosa o ajudou, solícita, a cada
segundo, mais impaciente. Ele fez o mesmo com a camisola dela. Quando
218
ambos estiveram nus sobre a colcha, as mãos de Andrew agarraram as dela,
que segurou por cima de sua cabeça, antes de voltar a apoderar-se de sua
boca em uma lenta descida que, para Rosa, resultou angustiante pela
expectativa.
Os lábios de Andrew riscavam círculos sobre seu pescoço, seu
queixo, antes de apoderar-se novamente de sua boca. Não pôde conter um
gemido de prazer, ante o sabor que a seduzia.
Andrew perfilou com sua língua morna suas curvas acetinadas em
um beijo lento e profundo que lhe arrancou outro gemido gutural.
—Quero sentir você dentro! — Sua exclamação urgente fez que o
membro do Andrew se elevasse com um espasmo brutal — Rápido!
Escutou o rogo suplicante e, de uma só investida, entrou em seu
interior como se fosse um guerreiro furioso após cravar sua lança na presa
que esteve espreitando. As vibrantes pulsações dela o encheram de atônita
estupefação. Não havia começado a mover-se, e Rosa chegou ao orgasmo
quase sem sua colaboração.
Andrew se debatia entre sentir-se adulado ou ofendido.
Quando os gemidos femininos se apaziguaram em parte, começou
um lento ataque que foi enchendo-a outra vez de excitação. Rosa rodeou a
cintura dele com as pernas, para acompanhá-lo nos movimentos. Sentia-se
como uma taça vazia que ia enchendo, pouco a pouco, de borbulhas
faiscantes, que se chocavam umas com outras, lhe produzindo uma
sensação plena e maravilhosa. Andrew a submetia com urgentes
arremessos, medindo a cadência e a intensidade. Quando acreditou
conveniente, começou a acelerar o ritmo, ao mesmo tempo em que a
respiração. Rosa voltou a gritar, quando o paiol de pólvora estalou em seu
interior de novo.
219
Andrew rugiu com prazer, ao alcançar a liberação, poucos instantes
depois dela. Seu rugido de satisfação deve ter sido ouvido por toda a casa.
CAPÍTULO 21
Sentia-se cheia de expectativas.
Os dias passavam iguais entre si, e a harmonia e a felicidade que
reinavam em Whitam a faziam sentir-se o ser mais privilegiado do mundo.
Andrew enchia suas ilusões de esposa apaixonada, e a presença na casa do
Christopher e Ágata alimentava ainda mais o crescente interesse que seu
marido mostrava pela política e os assuntos de sociedade. Tinham assistido
a dois jantares formais e a um picnic em um parque próximo ao porto.
Andrew fora quase tão formal e bom convidado como seu irmão maior. Sua
inteligente conversa e seus elegantes gestos conquistaram a maioria das
matronas do condado de Hampshire.
220
Seu amor era um diamante em bruto, e Rosa se sentia muito
afortunada por havê-lo encontrado.
Andrew desejava agradá-la em tudo e, por isso, aceitou um convite
de lorde Eliot, para que o visitasse em sua residência de Londres. O
embaixador na Espanha desejava lhe comentar alguns assuntos, antes de
sua partida para Madrid, e ambos tinham consertado uma reunião ali.
Embora levasse unicamente dois dias fora de Whitam, para ela pareciam
muito semanas, porque Andrew se converteu no pilar fundamental de sua
existência e porque desejava conhecer notícias sobre o desenlace do
enfrentamento na Espanha.
Soltou a pluma que sustentava e a deixou de novo no tinteiro.
Estava escrevendo uma carta a sua madrinha. Fazia muitos anos que não a
via, por isso, a convidava a visitá-la em breve em Whitam.
—Alonso de Lara espera ser recebido. — Marcus havia entrado tão
silenciosamente que Rosa, em um princípio, não o ouviu. O leal servente
repetiu suas palavras — O duque de Fortaleza se encontra no vestíbulo,
milady.
Seu ofego foi claramente audível. «Que fazia Alonso em
Whitam?», perguntou-se, desesperada. Marcus entregou o cartão de visita,
e Rosa se encontrou lendo umas letras que pareciam apagar-se.
Um suor frio começou a brotar em sua fronte. Alonso sempre ia
acompanhado de más notícias. Desde que podia recordar, cada vez que seu
irmão aparecia, a paz se esfumava do ambiente como por arte de magia.
—Se o estimar conveniente, posso lhe dizer que não está em casa
ou que se sente indisposta.
Rosa levantou os olhos do cartão ao mordomo, que a olhava solene.
221
Marcus estava disposto a tirá-la do apuro que lhe tinha parecido que
representava a visita de Alonso, e Rosa supôs que seu desgosto resultava
muito evidente.
Inspirou, profundamente, antes de lhe responder:
—Leve-o à biblioteca. Eu o receberei lá.
Marcus fez um gesto afirmativo e, de forma tão silenciosa como
tinha entrado, abandonou a sala de leitura onde ela se encontrava.
Rosa levou uma mão ao estômago ante a arcada que lhe sobreveio.
A visita de seu irmão não pressagiava nada bom, e ela sabia melhor
que ninguém. Tinha abandonado o convento sem assinar o acordo
preparado pela rainha, nem o transpasse de suas propriedades.
Secou a palma das mãos no tecido de seu vestido e, ao olhá-las, viu
o quanto tremiam. Tentou recolher algumas mechas que se soltaram do
coque, e alisou a saia, acaso tivesse alguma ruga. Encaminhou-se para a
porta com passos curtos, medidos, como se fosse diretamente à força.
Empurrou a porta e saiu ao vestíbulo. A distância entre a biblioteca e o
salão de leitura não era muita, mas, para Rosa, pareceram léguas íngremes
e cheias de penhascos cortantes.
Quando chegou frente à porta fechada, inspirou, de novo, e
empurrou a grossa madeira. Seu irmão estava de costas e olhava uma das
estantes cheias de livros. Com os dedos da mão direita, acariciava um
luxuoso volume de couro, com letras gravadas em ouro na parte de trás.
—Alonso.
Este se virou, com rapidez, para sua voz, que parecia indecisa.
Quando Rosa cravou os olhos em seu rosto, sufocou um gemido de
surpresa. Seu irmão não parecia o mesmo! Levava o cabelo mais longo e
tinha emagrecido grandemente.
—Rosa — respondeu, com voz seca.
222
Ela se sentia incapaz de dar um passo mais. Parecia como se lhe
pregassem os sapatos ao chão e se sentia as pernas torpes e pesadas.
—Tomarei um café, muito obrigado — disse Alonso, para romper o
silêncio que se instalou entre os dois.
Rosa não lhe perguntara se desejava tomar algo. Sentia-se tão
paralisada que mal podia respirar, muito menos falar.
—O que faz em Whitam Hall? — conseguiu perguntar, ao fim, mas
sem poder controlar os anárquicos batimentos de seu coração.
Ele caminhou vários passos, até situar-se a escassos centímetros
dela, quase na soleira do aposento. Rosa fechou, ao fim a porta, às suas
costas e ficou apoiada na madeira. Não soltou o trinco. Desejava ter as
mãos ocupadas, para que Alonso não se precavesse de quão nervosa estava
em sua presença.
—Tenho assuntos para tratar com você — admitiu seu irmão, com
voz firme e sem deixar de olhá-la.
—Depois partirá? — perguntou, com ousadia.
Com essa pergunta, demonstrava o temor que sua presença lhe
produzia.
Alonso entreabriu os olhos, com cautela. Parecia muito apurada, e
ele sabia por que. Rosa avançou vários passos, até chegar perto da lareira.
—Desejo conhecer minha sobrinha — soltou ele, de repente.
O ar se tornou tão espesso que os pulmões dela não podiam inalá-
lo. Sentia-se incapaz de empurrar o fôlego de vida através de sua garganta
até seu peito. Respirava de forma entrecortada, com inspirações pausadas,
mas não funcionava. Afogava-se!
—Pedirei um café — disse a seu irmão, com apenas um fio de voz.
223
Rosa acionou o atirador situado perto da lareira para chamar o
serviço. O mordomo apareceu no aposento apenas uns instantes depois.
—Marcus, dois cafés, por favor.
Antes de retirar-se, o homem olhou com olhos semicerrados a visita
inesperada e sustentou o olhar do duque uns segundos mais do que indicava
o protocolo. Finalmente, abandonou a biblioteca.
—Um criado insolente — arguiu Alonso, com voz crítica.
Quando voltou a olhar para sua irmã, precaveu-se de que seguia em
completo silêncio e apoiada no suporte de mármore da lareira. Parecia
como se necessitasse de sustento. Ele começou a percorrer o agradável
aposento, olhando cada objeto com suma atenção.
—Está me deixando nervosa. — As palavras de Rosa detiveram
seus passos e se voltou para ela para olhá-la de frente.
—Tem motivos para lhe estar — alfinetou, cínico.
—Aqui não pode manipular minha vida nem meus interesses — o
desafiou.
Estava tão exaltada que mal meditava as palavras antes de dizê-las.
A surpresa se refletiu claramente no rosto de Alonso, que a olhou
entre a resignação e o dever por cumprir.
—Nunca pretendi machucar você — disse, com voz amarga — Não
obstante, é meu único parente vivo e faz muitos anos prometi velar por sua
segurança.
—Veio sozinho?
Alonso se perguntou por que sua irmã mudava de conversa como
quem troca o lenço de mão. Evitava olhá-lo, e isso o enervou.
A entrada do mordomo silenciou sua réplica. Observou Marcus
enquanto deixava a bandeja de prata na mesa e servia o café com gestos
224
precisos. Quando tudo esteve preparado, fez uma inclinação de cabeça e se
retirou.
O silêncio entre ambos os irmãos resultou muito eloquente.
Rosa inspirou fundo para tentar acalmar-se. Pegou uma das xícaras
de porcelana com café e a ofereceu o Alonso, que tomou sem dizer nada.
Sentaram-se em frente à mesa.
—Não viajei sozinho. Acompanham-me Alejandro de Martín e
Villanueva e Enrique Palácios.
Rosa conhecia ambos os nobres; serviam com ardor à rainha María
Cristina.
—Fizeram uma viagem muito longa.
Alonso cravou suas pupilas nela, antes de responder.
—Iria às colônias, se fosse preciso.
Rosa desviou os olhos de seu irmão e esticou as costas. Sua frase
resultava muito reveladora, pois Alonso detestava as colônias espanholas.
—Por quê, Rosa?
A pergunta direta lhe mordeu o coração. Em sua voz, não havia
cólera nem altivez e, sim, um matiz de decepção que a fez olhá-lo de frente.
—Quando me apresentou a oportunidade de partir do convento, não
medi as consequências — respondeu, sincera.
—Não lhe perguntei por que motivo fugiu, mas, sim, por que me
escondeu que tenho uma sobrinha.
Ela sopesou várias respostas e, finalmente, pensou que lhe dizer a
verdade seria o melhor nesse momento.
—Nunca tive intenção de tomar os hábitos. Parti de Sevilha para
pôr distância entre você e suas intenções. Uma vez instalada em
Hornachuelos, conheci lorde Beresford e me apaixonei profundamente
dele. O resto não importa.
225
—Essa decisão sua já a pressupunha — respondeu severo, se
referindo aos hábitos que não tomara — mas sua desobediência me aflige
até um ponto inconcebível.
—Minha desobediência tem um nome: fidelidade e compromisso.
Seu irmão a olhou, perplexo.
—Parecem as palavras de um político pronunciando um discurso —
respondeu — e não o de uma dama de sua linhagem e com
responsabilidades.
Rosa se prometera não perder o controle, mas estava custando um
esforço tremendo. Seu irmão tinha a capacidade de derreter sua vontade
como manteiga.
—Já não tem controle sobre mim, nem sobre minhas propriedades.
Tomei em minhas mãos o rumo de minha vida e atuo em consequência.
—E o que conseguiu, Rosa? — A pergunta exigia uma resposta
inteligente. Alonso não era um homem de meias palavras, e ela decidiu
mostrar-se valente.
—Independência.
—Recordo-lhe que, agora, é uma mulher casada, seu marido
controla sua liberdade. Chama isso de independência? E, o mais grave,
Rosa, seu inglês pratica outra religião distinta de nosso país e antepassados.
Não sente o mínimo remorso?
Alonso tinha razão, mas, por amor, ela evitava todos e cada um
desses detalhes que, agora, tão amavelmente lhe mostrava.
—Já conhece o dito, «O amor e o mar não se podem murar», e eu
amo lorde Beresford tão profundamente que essas objeções me pareceram
superáveis.
226
—Mas é um estrangeiro, Por Deus, Rosa! — clamou seu irmão,
com um tom de voz desesperado — Devia fidelidade à família. Devia-me
obediência!
Ela soltou o ar, abruptamente.
—Pretende me castigar com suas palavras? — perguntou, magoada
— Andrés é estrangeiro, sim, mas seu pai lutou na Espanha contra
Napoleão. Sua irmã é espanhola e sobrinha do conde de Ayllón. Como
pode ver, não foi uma escolha tão desastrosa.
—Só tento ajudar você, mas você nunca me permitiu — respondeu,
pesaroso.
—Ajudar? Encerrando-me em um convento? — inquiriu, cheia de
uma angústia, ressabiada por anos de silêncio — Essa é sua forma de
ajudar a sua única irmã?
—Intermediei ante a Coroa para evitar seu enforcamento, mas, em
vez de confiar em mim, aceitou a ajuda do primeiro que lhe ofereceu isso
com interesses.
—Isso é uma sandice — replicou, aborrecida — O auxílio do
marquês de Whitam foi altruísta e desinteressado.
—Sou um grande da Espanha e minha irmã uma das mulheres mais
ricas da Andaluzia; não posso acreditar na imparcialidade de seus
benfeitores.
Alonso se mostrava tão suscetível como sempre.
—Quando conheci lorde Beresford, ele não sabia quem era eu. E
me amou, acreditando que era uma moça singela.
Alonso meditou suas palavras. No convento, levava uma vida
austera e sem luxos, lhe teria resultado fácil fazer-se passar por uma
camponesa, a não ser por seus traços aristocráticos e aquela altivez inata
em sua forma de olhar.
227
—Olhe-se no espelho e verá como isso que diz é uma soberana
estupidez. Só terá que se ver uma só vez para saber que por suas veias corre
o sangue mais nobre. Duvido que o tal Beresford ignore quem era
realmente.
Rosa não pensava em cair na armadilha; Andrew estava fora de
toda discussão.
—Veio de tão longe para me recordar quão nobre é meu sangue?
A pergunta estava cheia de sarcasmo.
Alonso apertou a mandíbula até ranger os dentes, pois não esperava
essa atitude obstinada por parte dela. No passado, Rosa sempre se mostrou
introvertida e distante. Era sua única irmã, mas se comportava com ele
como uma completa estranha.
—Embora resulte inconcebível, sempre tive um autêntico interesse
por proteger você.
Ela piscou várias vezes. Essa admissão a pegou com a guarda baixa.
—Recordo que foi você quem me prendeu.
—Fiz isso para salvar sua vida. Incrédula!
—Não minta, Alonso! Não posso suportar!
—Não o faço, e não imagina nem por um momento os favores que
tive que outorgar, nem o muito que tive que rogar por sua causa.
—Nunca lhe pedi isso.
—Não me precisa pedir isso. Sou seu irmão e prometi a pai que a
protegeria, inclusive com minha própria vida.
Rosa se sentia cada vez mais incômoda.
A atitude do Alonso a desconcertava, porque não se comportava
como ela esperava. Não lhe falava com ódio, nem seu tom continha
despeito algum, e essa clara resignação a incomodava, profundamente,
228
porque a fazia parecer mais culpada do que se sentia por havê-lo enganado
e fugido, quando tudo estava a ponto de concluir.
—O que quer, Alonso? A que veio, realmente, a Whitam Hall?
Um silêncio pesado, como uma sombria tormenta, pendeu entre
ambos, que se mediam mutuamente como adversários e não como irmãos.
—Mudei meu testamento e nomeei minha sobrinha herdeira de todo
meu patrimônio. Meu títulos passarão diretamente a ela, quando eu morrer.
Rosa abriu os olhos como pratos, depois escutar a franca declaração
de seu irmão.
Alonso estava louco!
CAPÍTULO 22
—A Espanha está em guerra, e comando os Húsares da Princesa,11
no norte. A situação lá é bastante delicada.
11 Regimento criado em 16 de março de 1833. Inicialmente, utilizado como escolta de honra da
princesa, mas a eclosão da guerra civil fez com que passassem a prestar serviço na campanha junto com
o restante dos regimentos de cavalaria”.
229
—Sei — admitiu, algo evasiva — O embaixador espanhol em
Londres teve a bondade me informar de como se desenvolve o conflito na
Espanha.
Alonso ignorava que o embaixador espanhol tivesse entendimentos
com sua irmã.
—Preocupa-me morrer em combate sem ter deixado meus assuntos
resolvidos.
—Agradeço a grande honra que faz a Branca, mas estou convencida
de que terá seu próprio herdeiro. É um dos melhores paladinos da rainha,
poucos homens superam sua audácia e inteligência em batalha.
Alonso se sentiu comovido por suas palavras, embora não
demonstrasse.
—Mas é um fato que posso morrer amanhã por uma baioneta
inimiga ou por uma bomba no campo. E, com sua declaração de rebeldia, o
título que ostentou nosso pai, nosso avô e parentes anteriores, passará à
Coroa, assim como a totalidade de nossas posses. Não pode permitir, Rosa.
Nosso pai e antepassados se revolverão em suas tumbas, se o fizer.
Ela não queria considerar essa possibilidade. Alonso era o único
familiar próximo que tinha, e pensar em perdê-lo agitava seu coração com
sentimentos contraditórios pela primeira vez em sua vida.
Desde menina, se havia sentido deslocada, porque ela se criou longe
do lar familiar, enquanto que seu irmão desfrutara da companhia de seus
pais. Isso alimentou sua rebeldia contra ele. Agora, podia admiti-lo e ser
consciente disso aumentou a vergonha que sentia até um ponto intolerável.
—E isso o que significa? Não posso retornar a Espanha! Não, a
menos que ganhem os carlistas.
Alonso inspirou, profundamente.
230
—Olhe em seu coração, Rosa. Estou convencido de que sabe que
não ganharão. Não podem vencer o exército real!
Ela o pressentia. Apesar das vitórias carlistas, a rainha ganharia,
finalmente, a batalha contra dom Carlos.
—Então, já está tudo dito entre os dois. Ou não é isso o que deseja
escutar de meus lábios? — perguntou, angustiada.
—A Coroa não esquecerá sua traição, mas Branca pode ser o meio
para que algum dia possa retornar a Sevilha.
—Não sei se desejo retornar — admitiu, um pouco perturbada.
Alonso a olhou, atônito. Sua irmã não podia falar a sério.
—Renuncia a tudo o que pai lhe ensinou? Despreza nossas raízes?
Amigos? Não posso acreditar, Rosa, seria uma infâmia muito grande.
Ela soube que tinha equivocado as palavras.
—Lamento me haver misturado em política e pôr, com isso, em
interdição o bom nome da família. Se pudesse voltar atrás, tomaria outros
roteiros, mas já não posso mudar os fatos — admitiu em um sussurro pouco
audível.
—Então, me permita que arrume os assuntos que assegurem o
futuro de Branca na Espanha.
«Assegurar o futuro de Branca?» Rosa não compreendia nada.
—Como? — perguntou, atônita pela sugestão.
—A rainha está disposta a aceitá-la como minha legítima herdeira
e, além disso, aprova o compromisso nupcial entre o ducado de Fortaleza e
o de Marinaleda.
Rosa ergueu as costas, ao ouvi-lo.
—Não penso em prometer minha filha! — replicou, com incrédula
agitação.
231
—Escute-me, Rosa — pediu ele, em um tom conciliatório — Faz
muitos anos, assinei um acordo com o ducado de Marinaleda entre minha
primogênita e o primogênito do Leonardo, e, agora, é impossível rompê-lo.
Permita que lhe mostre os documentos que redigi, porque inclui algumas
mudanças.
Alonso se levantou e se encaminhou com passo veloz até o lateral
da lareira apagada. Agarrou uma pasta de pele que Rosa não vira quando
entrou no aposento e retornou até onde ela estava sentada, quieta, sem
mover-se.
Viu-o desatar o nó que fechava a pasta e começar a tirar diversos
papéis.
—Aqui tem meu testamento e uma cópia que ficará em seu poder,
quando partir.
Entregou-lhe o documento, que ela leu com suma atenção.
—Este é o acordo nupcial entre ambos os ducados, mas me permiti
incluir uma cláusula: Branca poderá romper o acordo, se, finalmente, não
desejar o compromisso com Marinaleda, embora, para isso, terá de esperar
à maioridade e renunciar a metade de seu dote. É o melhor que pude
conseguir.
Alonso deixou o documento na mesa e ia amontoando outros.
—Todas e cada uma das propriedades que estão em posse dos Lara
passarão a Branca, quando cumprir a maioridade, e, em caso de contrair
matrimônio, passarão às mãos de seu marido, mas você administrará o
usufruto de todas.
Rosa estava assombrada. Ao olhar aqueles documentos, sentia uma
opressão no peito. Era como se Alonso dispusesse tudo para sua morte
iminente.
—Só existe uma condição — disse ele.
232
—Uma condição?
—A rainha deseja conhecer Branca em pessoa. Uma vez o fizer,
expedirá o documento real que a reclamará na corte, quando cumprir os
dezoito anos, para tomar posse de sua herança. Mas deseja assiná-lo na
presença da pequena, como manda a lei.
—Meu Deus! — A voz de Rosa parecia angustiada.
Tudo aquilo era muito mais sério do que podia imaginar.
—Juro que a protegerei com minha vida, se me confiar isso!
—Não posso enviá-la a Espanha!
—A menina estará fora algumas semanas, no máximo.
Algumas semanas que, para ela, seriam como muito anos.
—Está louco se acredita, por um momento, que estou disposta a
deixar partir a minha pequena!
—Rosa, não se prenda com ninharias. É um preço ínfimo em troca
de ser minha herdeira legítima. A rainha compreenderia que é um ato de
boa fé por sua parte.
—Tenho que falar com Andrés.
Alonso apertou os lábios, com uma careta de ira.
—Eu falarei com ele — concedeu, de forma marcial.
Ela piscou confusa, pensando em Andrew e no que diria se
estivesse presente.
—Não está aqui, foi a Londres.
Seu irmão inspirou várias vezes, ao mesmo tempo em que
entreabria seus olhos negros.
—Quando pensa em retornar?
—Ignoro-o, possivelmente dentro de dois ou três dias; uma semana,
no máximo.
—Não posso esperar tanto tempo!
233
Rosa o olhou de frente e lhe sustentou o olhar, com crueldade.
—Alguns dias não supõem nenhuma mudança.
—Como pode dizer algo assim? Estamos em guerra, maldita seja!
Ela conteve um gemido e sopesou diferentes alternativas.
—Podemos arrumar estes assuntos mais adiante — disse, embora
sem estar completamente convencida.
—Quando tiver morrido? — perguntou seu irmão, à queima-roupa.
—Alonso! — exclamou, horrorizada.
—Sempre, desde que tenho memória, você pôs obstáculos em
minha vida. — O suspiro dela o enervou ainda mais — Merecia saber que
não tinha intenção de tomar os hábitos. Que tinha uma sobrinha e que
pensava em se casar com um completo desconhecido. Você foi uma
constante decepção. Um amontoado de desobediências que nos levaram até
aqui: um beco sem saída.
Rosa o olhou, fixamente, com uma dor surda no peito.
Ela foi criada na França e não vira morrer a seus amigos no campo
de batalha, lutando contra os franceses para defender suas terras, a seus
filhos. Acreditou-se em posse da verdade e, agora, quando quase tinha
perdido a sua filha por suas ideias políticas, deu-se conta de que nada
importava mais que a família, e que Alonso seguia sendo seu irmão...
—Sei, e não sabe o quanto lamento.
—Então, me ajude a tomar as medidas que assegurem o futuro de
minha única sobrinha. A que não percamos tudo o que obtiveram nossos
pais...
—Não está sendo justo.
—Deve isso ao nosso pai! — exclamou ele, com um tom de voz
que lhe colocou o cabelo de pé.
Rosa pensou que Alonso sabia como dar estocadas certeiras.
234
—Não posso agir às costas de Andrés, é o pai de Branca e, agora,
não está em Whitam para dar sua autorização.
—Um pai ausente até faz bem pouco, não é certo?
O rubor cobriu as bochechas de Rosa por completo.
—Esse foi um comentário malevolente. Ele desconhecia sua
paternidade.
Alonso atacou com mais firmeza.
—Malevolente ou não, é certo. Rosa, desejo apagar a palavra
«traidor» de nosso sobrenome e, com sua atitude, me faz sentir que lhe
importa bem pouco que o obtenha.
Ela sentia que lhe faltava o ar. Cada palavra que pronunciava seu
irmão lhe cravava no coração como uma mordida de serpente. Ignorava
como enfrentar esse fato indisputável: tinha atirado no lodo o ilustre nome
de sua família. Gerações de Lara com uma honra irrepreensível.
—A traidora sou eu, você não deveria pagar por meus pecados.
Alonso sabia que encontrara uma greta onde penetrar mais
profundamente com seus argumentos. Rosa estava a ponto de capitular,
pressentia-o.
—A palavra «traidor» estará ligada a nosso sobrenome
eternamente, se eu morrer em batalha e não me permite que reconheça
Branca como minha herdeira.
Rosa pensava a toda velocidade.
—Para reconhecê-la, a menina não precisa viajar a Espanha por um
capricho da rainha.
Alonso apertou muito mais forte o laço que ia atando ao pescoço de
sua irmã.
—Foi reclamada pela regente. Sou um grande da Espanha, maldita
seja! Não posso nem ir urinar sem permissão da Coroa.
235
Rosa desprezava esses pensamentos, porque a levavam para um
lugar ao que não queria ir: às consequências de suas ações.
Ansiava ainda mais que Alonso que a palavra «traidor» não
estivesse ligada para sempre ao sobrenome Lara, mas como seu irmão tinha
exposto de forma tão contundente, isso era precisamente o que ocorreria, se
ele morresse em batalha e sem descendência.
Então, ela, como única representante viva da dinastia Lara, teria de
suportar o desprezo e a vergonha que a acompanhariam sempre, não
somente a ela, mas também a todos os seus descendentes.
Não podia fazer isso a seu irmão! Mas tampouco podia agir às
costas de Andrew.
Alonso se precaveu de sua vacilação.
—Juro que a protegerei com minha vida! — exclamou, de forma
veemente.
Rosa se retorcia as mãos, angustiada.
—Não posso, Alonso! Seriamente que não. Andrés não merece algo
assim. Não posso agir às suas costas sem conhecer sua opinião a respeito.
Os olhos dele se cravaram nos de Rosa, sem piedade.
—É sua última palavra? — perguntou, magoado. Ferido no mais
profundo de seus sentimentos fraternais.
Ela fez um gesto afirmativo com a cabeça, enquanto o silêncio
voltava a instalar-se entre ambos. Depois de um momento longo e pesado,
Alonso se levantou, enfim, da poltrona e pôs-se a andar para a porta sem
pronunciar uma só palavra.
Rosa o observou com os olhos cheios de lágrimas. Não se despediu
dela, sequer uma despedida amarga, mas, antes que ele abrisse a porta,
deteve-o com suas palavras.
—Espere...!
236
Alonso não voltou.
Ficou quieto com os ombros tensos, as costas erguidas e a mão no
trinco de bronze.
No aposento, ouvia-se o respirar agitado de Rosa, o frufrú do tecido
de seu vestido, ao levantar-se da cadeira e aproximar-se dele.
—Mandarei uma mensagem urgente a lorde Christopher Beresford.
É o irmão de meu marido. Falarei com ele e lhe contarei sua proposta.
Alonso fez um gesto afirmativo, e, quando se voltou de novo para
Rosa, esta já tinha alcançado o atirador para chamar o serviço.
CAPÍTULO 23
Andrew saltou da boleia da carruagem a toda velocidade, antes,
inclusive, de que tivessem freado os cavalos. Sentia-se ansioso por entrar
em casa e abraçar as duas mulheres de sua vida. Subiu os degraus de dois
em dois e tocou a aldrava da porta com energia inusitada. Ignorava por que
237
Marcus demorava tanto em abrir e voltou a insistir com mais urgência
ainda.
Quando a grossa porta de entrada se abriu, ao fim, a calidez do
interior o recebeu como se lhe desse um abraço. Não se parou para dar as
luvas nem o chapéu ao mordomo, mas, sim, os lançou de forma precipitada
sobre a cadeira de veludo que estava próximo a uma parede do amplo
vestíbulo e se encaminhou com passo rápido para o grande salão; mas o
encontrou vazio. Voltou-se com os olhos entreabertos para Marcus, que o
seguia de perto.
—Onde está lady Beresford? — Mas não esperou uma resposta por
sua parte.
Foi de novo para o vestíbulo e começou a subir a escada em direção
aos quartos. Quando chegou à habitação de Branca, seu rosto mostrava um
sorriso de orelha a orelha.
—Onde está minha princesa?
Mas o aposento também estava vazio. Mantinha a porta aberta sem
soltar o pomo. Era inconcebível que ninguém saísse a recebê-lo. Estava
fora há quase uma semana, e os dias pareceram muito longos e tediosos.
—Andrés! — A exclamação de sua esposa, que acabava de chegar
ao patamar de acima, o fez sair do dormitório de Branca a toda pressa.
Rosa o ouvira chegar, quando se encontrava na sala de leitura, mas
não teve tempo de alcançá-lo. E rezou para que Christopher Beresford
chegasse logo à casa, como de costume, e, assim, poder ajudá-la na
explicação que tinha que dar a seu marido sobre a ausência de Branca.
Eram os termos que combinara com Christopher, mas não estava segura de
que este chegasse a tempo.
Andrew superou a distância que os separava e, ao chegar a seu lado,
abraçou-a e a beijou, com intensidade. Sentira muita saudade dela. Mordeu-
238
lhe os lábios e afundou com a língua em sua cavidade aveludada; a boca de
Rosa lhe respondeu com o mesmo desejo.
Provou a pura ambrósia.
Ela se deixou abraçar, embora respondesse à efusiva saudação com
certo recato, porque estavam de pé no patamar de acima, à vista de
qualquer servente. Andrew interrompeu o beijo, mas não se separou dela.
Seguia abraçando-a com força.
—Senti muito a sua falta — sussurrou, com voz carinhosa.
O coração de Rosa galopava ditoso.
—Não sabia que chegaria hoje. Christopher disse que
possivelmente se atrasaria até manhã. — Seu tom parecia contido, mas
emocionado.
—Não suporto Londres. É muito buliçoso e enervante — disse ele,
enquanto seguia estreitando-a entre seus braços — Trouxe uns presentes a
Branca, mas ainda não a vi.
—Andrés. — Rosa tinha pronunciado seu nome quietamente, mas
não lhe emprestava atenção.
Segurou-a pela mão com carinho e pôs-se a andar com ela em
direção ao andar de abaixo, porque imaginou que Branca estaria no jardim
traseiro. Adorava brincar dentro do labirinto com o nervoso Atila como
companheiro.
—Vamos procurá-la juntos. Estou desejando abraçar minha
pequena. Não imagina quanto pensei nela. — Retificou suas palavras —
Quanto pensei nas duas.
—Andrés... — Rosa repetiu seu nome de maneira vacilante, e ele se
precaveu de que resistia a acompanhá-lo — Tenho que conversar com
você.
239
—Eu também — respondeu — mas antes quero abraçar e beijar a
minha menina.
Rosa mordeu o lábio inferior, porque fizera algo censurável e não
sabia como dizer-lhe. Confiava em seu bom caráter e em sua forma
particular e pacífica de tomar as notícias desagradáveis. Puxou sua mão
para ela e o olhou com candura em seus olhos castanhos.
—Tenho que falar com você sobre Branca.
Andrew sentiu algo parecido à incerteza no peito e a olhou com
cautela.
—O que ocorre? Por que não vai me receber?
Rosa o conduziu de volta ao quarto de ambos, algumas portas além
do quarto de Branca. Ele se deixou guiar em silêncio, embora com o
coração em um punho. A estranha atitude era insólita, por não dizer
preocupante.
Rosa entrou no dormitório e fechou a porta atrás deles.
—Branca não está em Whitam Hall — disse, ao fim.
Andrew a olhou, entre surpreso e alarmado.
—Vai caminho da Espanha, acompanhada de meu irmão Alonso e
de lady Jane.
Ele acreditou que não tinha ouvido bem.
—Faz uns dias, recebi a visita de meu irmão —,continuou Rosa.
Andrew seguia em silêncio, sem poder articular palavra — E graças a
Deus, tudo ficou solucionado entre ambos. Sinto-me na verdade feliz.
—Repete o que disse — insistiu, com voz séria.
—Tenho que lhe explicar muitas coisas — prosseguiu ela, mas
Andrew a interrompeu:
—Repete o que disse.
Rosa mordeu o lábio, porque não sabia como lhe contar a verdade.
240
—Branca foi reconhecida como herdeira legítima de meu irmão
Alonso.
Herdeira legítima? Do que estava falando?, perguntou-se ele.
—Está brincando comigo? Porque lhe informo que não tem graça
— disse, sem piscar.
Ela negou com a cabeça.
—A Coroa da Espanha reclama a presença de Branca para legalizar
a petição de meu irmão de nomeá-la sua herdeira. Há muitos aspectos
legais que resolver e têm de fazer-se em Madrid.
O silêncio de Andrew pendeu sobre sua cabeça como uma espada
afiada. O brilho de suas pupilas adquiriu um matiz perigoso e que não vira
nunca.
—Enviou a minha filha para fora da Inglaterra sem minha
permissão?
Sua voz parecia tão fria como o gelo, e seus olhos azuis se tornaram
escuros como uma tormenta de inverno.
—A rainha María Cristina de Borbón assim o exigiu.
O coração de Andrew saltou, dolorosamente, no peito. A revelação
de Rosa era como uma punhalada nas costas.
—Não lhe inspiro o suficiente respeito e confiança para tratar um
assunto tão delicado comigo? — Sua pergunta tinha um tom de tristeza que
a pegou de surpresa — Não considera que esteja à altura para decidir sobre
o futuro de nossa filha?
Rosa sabia que caminhava por areias movediças.
—Estava ausente e Alonso tinha de partir imediatamente — se
justificou.
Andrew fechou os olhos um instante, tentando tragar o veneno que
lhe tinha vertido diretamente na garganta.
241
—Confiou a vida da minha filha a um homem que estava disposto a
enforcar você? Para ele, Branca significa pouco mais que nada! — Sua voz
exsudava uma incredulidade que se ia transformando em fúria desmedida.
Rosa saiu em defesa de seu irmão. Andrés levava o assunto muito
pior do que esperava, mas ela agira de boa fé. Estava em jogo uma herança.
—Alonso não fará nenhum dano a nossa filha, ao contrário. Deseja
assegurar o futuro de Branca como sua herdeira legítima, e, como grande
da Espanha, tem que fazê-lo como exige a Coroa.
Ele passou a mão pelo cabelo revolto. Parecia-lhe inconcebível que
Rosa agisse com tão pouco julgamento.
—E lhe importa mais um título que o bem-estar de nossa filha?
A pergunta era injusta, e, assim, o disse ela.
—Meu irmão pode morrer amanhã lutando contra os carlistas, e eu
fui declarada traidora à Coroa. Como posso permitir que desonre o nome de
minha família por minha causa? Minha obrigação é defender e manter o
título de meus antepassados. Se o perdesse, meu pai se revolveria em sua
tumba.
—Tem ideia do que fez? — Seu tom demonstrava muito mais
receio do que Rosa imaginava.
—O correto — respondeu, com um fio de voz, mas não tremeu.
—O correto!? — bramou Andrew, com as mãos na cintura.
Pôs-se a andar para ela, que se debatia entre continuar sua
explicação ou abraçar-se a ele para acalmar a dor que lhe via nos olhos. Seu
comportamento fora censurável, mas compreendia a angústia de seu irmão
e a importância de seus motivos, que o levaram a apresentar-se em
Whitam, deixando a um lado seu orgulho. Por isso, agira como o tinha
feito.
242
Andrew chegou até onde ela estava e, agarrando-a pelos ombros,
sacudiu-a com força inusitada.
—É uma insensata! — exclamou, com voz furiosa — Uma
completa estúpida que só pensa nos malditos títulos.
Os dedos dele se cravaram na tenra carne de seus ombros e não a
soltou. Seguiu sacudindo-a com cólera ardente, entristecedora.
—Bem diz seu irmão que é uma traidora, além de uma
conspiradora. Joga com a vida de outros, sem se importar absolutamente o
que se perca no caminho.
—Andrés! — exclamou ela, suplicante. Machucava-lhe os ombros,
e suas palavras lhe causavam uma profunda dor no coração — Fiz o
correto!
—Maldita seja sua percepção do que é correto e o que não!
Soltou-a, de repente, como se não suportasse tocá-la.
Rosa esteve a ponto de cair ao chão pela força do impulso.
Contemplou-o caminhar com passos rápidos, e, então, sem prévio aviso,
dirigir-se para a escrivaninha que ela usava como penteadeira, agarrar um
vaso de porcelana e estelar o contra a parede com todas suas forças. O vaso
se fez em pedacinhos. Logo continuou lançando à parede todos os objetos
que encontrou, até deixar a penteadeira vazia.
—Andrés, Andrés! O que faz? — perguntou ela, correndo até ele,
para detê-lo, e interpondo-se de forma temerária na trajetória dos objetos
lançados.
Andrew a olhou, furioso.
—Desafogar a ira que me consome.
Ela se abraçou ao corpo firme dele, mas Andrew estava muito
afetado para permiti-lo.
243
Ambos gritavam de uma vez, Andrew pedindo que o soltasse, Rosa
desculpando-se por não obedecê-lo.
—Que diabos ocorre aqui!?
Christopher entrou, de repente, no quarto. A porta golpeou a parede
com brutalidade, ao abrir-se, e deixou um rastro profundo na grossa
tapeçaria. Quando se precaveu do desastre do dormitório, inspirou com
força uma baforada de ar. O chão estava cheio de cristais, de louça
destroçada e de porcelana. Ignorava qual dos dois tinha começado a batalha
campal.
Mas, indubitavelmente, ambos haviam se tornado loucos.
Olhou para seu irmão e a sua cunhada sem compreender nada. Rosa
estava abraçada ao pescoço de Andrew, e este tentava lhe soltar as mãos,
sem conseguir.
Uma lembrança como uma chama lhe trouxe uma imagem parecida
dele e Ágata em uma habitação em Paris, anos atrás.
—Solte-me! — pediu Andrew, com voz áspera, alheio à derrota
emocional dela.
—Não, não o soltarei até que me escute! — insistiu Rosa, com voz
angustiada.
—Se em algo aprecia seu bem-estar físico, me solte, porque não
respondo de meus atos. Não agora que me sinto traído por você.
Ela não se soltou do pescoço dele, nem se afastou.
—Não posso permitir que parta tão furioso.
Andrew voltou a resmungar de forma visível.
Christopher seguia na soleira, sem decidir-se a entrar nem a deixá-
los sozinhos. Embora supusesse que a pior parte do estalo violento tinha
passado.
244
—Sinto-me incapaz de escutar você. Antes tenho que assimilar suas
censuráveis ações. Sinto-me ultrajado!
Ao escutá-lo, Rosa o soltou, ao fim, e se afastou um passo dele, mas
Andrew não abandonou o quarto, como ela acreditava.
Algo em seu olhar a insistiu a afastar-se tal e como ele queria.
Andrew seguia respirando de forma agitada depois do estalo, e Rosa
decidiu bater em retirada, porque entendia que necessitava de tempo para
acalmar-se e que não o faria, estando ela presente.
—Quando desejar continuar esta conversa , em encontrará na sala
de costura. Esperarei você lá.
Encaminhou-se para a porta com a alma encolhida. O despeito de
Andrew, era muito evidente para a tranquilidade de seu espírito. Ao passar
junto a Christopher, olhou-o com os olhos alagados em lágrimas, mas seu
cunhado se manteve em silêncio.
Ambos os homens ficaram sozinhos na quarto.
Christopher ouviu a respiração agitada de seu irmão, que havia se
virado para o balcão para ficar de costas para ele. Durante vários minutos,
nenhum dos dois se moveu, nem fizeram nada para aproximar-se.
Quando uma das donzelas subiu para recolher a louça destroçada, a
pedido de Rosa, Christopher lhe fez um gesto negativo com a cabeça para
que os deixasse sozinhos. A criada fechou a porta sem dizer nada.
De repente, Andrew rompeu o incômodo silêncio.
—Por que, Christopher? Por que permitiu que a levasse?
Andrew seguia de costas a ele, que deu vários passos até aproximar-
se de seu irmão.
—Era o correto, Andrew.
245
A resposta de seu irmão mais velho o fez voltar-se, rapidamente,
para ele, aflito pela traição. Olhava-o, sem acreditar suas palavras, que o
encheram de veneno.
—Eu não permitiria que se levassem o pequeno Chris jamais! —
respondeu, enervado, até um ponto que, para Christopher, resultou
alarmante.
E se deu conta de que Andrew estava na verdade decepcionado. Seu
caráter aprazível, agora, estava dominado pela cólera, e seus olhos, que
sempre riam com júbilo, mostravam nesse momento uma profunda dor.
—Deixei-as a seu cuidado, confiava em você... —recriminou-o.
Mas não pôde terminar a frase. Sentia na garganta uma opressão que o
impedia de respirar com normalidade.
—Alonso de Lara falou comigo, antes de partir com a pequena.
As pupilas de Andrew brilharam com um fogo que anunciavam o
caos absoluto. Christopher soube, que nesse estado, seu irmão poderia fazer
algo, e tentou apaziguá-lo.
—Não permitirá que lhe ocorra nada à menina. Além disso,
removeu céu e terra para reconhecê-la legalmente como sua herdeira.
—Só é um maldito título! — exclamou, com veemência — E minha
filha vai se encontrar em meio de uma guerra entre. Diga, como poderá
protegê-la em meio da barbárie, se ele mesmo estará dirigindo uma parte do
exército?
Christopher suspirou, resignado, porque seu irmão mostrava um
aspecto que, a ele, tinha escapado. Quando sua cunhada e o duque de
Fortaleza lhe explicaram as razões para legalizar à pequena como herdeira
do ducado, pensou que era o melhor para a continuidade da casa de Lara.
O duque mostrara todos e cada um dos documentos preparados e
registrados, contou-lhe os passos que havia dado para resolver as possíveis
246
dificuldades, e as razões da Coroa, ao exigir a presença da menina para
ultimar os detalhes sobre sua herança.
Ele, melhor que ninguém, compreendia a importância que tinham
os títulos e a responsabilidade, assim como a necessidade de fazer todo o
possível para conservá-los.
—Andrew, seu cunhado é um homem sensato, e estou convencido
de que protegerá a pequena Branca com todas suas forças. Além disso, na
corte de Madrid, estará muito mais a salvo do que possamos imaginar. A
insurreição tem lugar no norte.
—Está completamente equivocado. A sublevação chegará a Madrid
muito antes do que imagina — replicou, mal-humorado — Você agiu que
forma censurável pondo em perigo a vida de minha filha, e isso é algo que
não penso em esquecer nem perdoar.
Christopher tomou sua recriminação com estoicismo, mas não
reteve a réplica feroz que foi a seus lábios.
—Sei julgar os homens, e seu cunhado removeu céu e terra para
reconhecer à pequena como sua única e legítima herdeira. Deveria meditá-
lo, e, depois, se ainda se ache com posse da única verdade, julgue Rosa e
seu esforço para não permitir que a herança de seu pai se malogre e se
perca por insignificâncias.
Andrew o olhou, com as pupilas brilhantes e os lábios apertados
com desgosto.
—Nunca me importaram os títulos, sabe. E as ações do duque de
Fortaleza têm um único propósito: castigá-la. E você, meu irmão mais
velho, o protetor da família, a serviu em bandeja de prata.
Christopher pensou que estava muito equivocado, mas tão magoado
como o via, era virtualmente impossível fazê-lo raciocinar.
247
Andrew passou muito perto dele ao partir do quarto, mas
Christopher o segurou pelo braço, detendo-o.
—O que pensa em fazer? — A pergunta soou preocupada.
Nesses momentos, seu irmão era como um paiol de pólvora a ponto
de estalar.
Andrew se soltou de sua mão e o olhou com uma decepção tão
profunda nos olhos, que o estômago de Christopher se apertou.
—Trazer de volta a minha pequena.
Seu irmão o seguiu pelos corredores de Whitam, lhe pedindo
explicações dessas últimas palavras.
CAPÍTULO 24
Rosa se sentia as mãos ardentes de tanto esfregá-las entre si.
248
Levava horas esperando Andrés, mas a desculpa e a explicação que
tinha preparadas para ele não iam servir de nada se não lhe permitia
oferecê-las. Durante horas, debateu-se entre fazer o correto ou esperar sua
chegada, mas a pressa de seu irmão Alonso requeria medidas urgentes, e
falar com o Christopher em um primeiro momento e lhe expor as dúvidas
que a angustiavam, além das preocupações, tinha-lhe esclarecido muitos
detalhes. Seu cunhado se mostrou a favor do reconhecimento da pequena
como herdeira de Alonso, mas, agora, ao comprovar a enorme decepção
que ocasionara ao homem que mais amava no mundo, Rosa se sentia
desfalecer. Mas não podia mudar os fatos.
Levava tantos anos equivocando-se em suas decisões, que se
perguntou se, alguma vez, aprenderia a meditar, antes de deixar-se levar
por seus impulsos. Suspirou várias vezes. Se pudesse retroceder seis anos,
tomaria um rumo muito diferente ao que tomou então, mas, agora, só podia
encarar as dificuldades conforme vinham e enfrentar os resultados com
coragem.
Alguém moveu o trinco, e ela se preparou para ver Andrew, ao fim.
Entretanto, a pessoa que cruzou a soleira não era o homem ao que queria
com todas suas forças.
—Rosa... —, A potente voz de Christopher varreu suas ilusões, que
ficaram pulverizadas pelo chão, ao tempo em que ela se sumia no
desespero.
—Onde está Andrés? — Sua voz soou com uma angústia evidente.
—Ultimando os detalhes para sua marcha.
—Parte? Aonde...?
—Pensa trazer de volta Branca.
O coração de Rosa se deteve, um instante. A cor tinha desaparecido
de suas bochechas, que se tornaram brancas como a cera.
249
—Então, partirei com ele.
Seu cunhado deteve seu avanço para a porta. Os olhos dela se
cravaram nos dele com surpresa.
—Se retornar à Espanha, será detida — disse.
Essa era uma verdade esmagadora, mas Rosa estava muito longe de
sentir preocupação por si mesma.
—E o que me importa isso!
A mão de Christopher seguia segurando-a pelo cotovelo. Ela tentou
soltar-se, mas não conseguiu.
—Andrew não atende a razões, mas confio em que você, sim, o
faça.
—Não devia permitir que meu irmão levasse Branca. Acreditava
que fazia o correto, mas Andrés me demonstrou quão equivocada estava.
Nenhum título nem riqueza vale a dor que lhe causei. Sinto-me
profundamente arrependida.
Rosa se debatia, tentando soltar-se do aperto de Christopher.
—Se partir, todo o esforço de meu pai será sido em vão, e não
posso permitir isso — alegou, convencido — Além disso, não falamos de
uma simples herança, mas, sim, de um nome e um legado.
Rosa mordeu o lábio inferior, muito alterada.
Quando permitiu a partida de sua pequena, seu coração se partiu em
dois, apesar de saber que a separação seria breve, mas a reação de Andrew
mudava, absolutamente, tudo. Supôs que ele ia incomodar se, embora
pensasse que a compreenderia, mas fora muito curta em sua valoração.
Andrew estava irreconhecível.
—Devo evitar um enfrentamento entre meu irmão e meu marido —
respondeu, concisa — devo me colocar entre os dois.
250
E isso a sobressaltava. Não importava o que fizesse, um dos dois
homens de sua vida ia estar em desacordo e ficar decepcionado.
Christopher pensava justamente o contrário. Ambos os homens
podiam resolver suas diferenças, se não tivessem que preocupar-se da
segurança dela, mas não sabia como fazê-la entender. Rosa seria mais um
estorvo que uma ajuda.
—Andrew não quererá levar você com ele. Não estando tão
zangado que está com você.
Tinha omitido a parte que incluía a ele no aborrecimento de seu
irmão. Rosa o olhou, confundida.
—O longo trajeto temperará seu ânimo, acalmará sua fúria, mas
sempre e quando não o perseguir com sua presença, lhe recordando
precisamente o motivo pelo que tem que fazer a viagem.
Suas palavras a ofenderam.
—Andrés não conhece os rigores da corte espanhola. Não pode
apresentar-se ante a rainha e, voilà!, tudo solucionado. Ali as coisas não
funcionam assim — tentou lhe explicar.
—Esse foi nosso maior engano: pensar por ele — admitiu
Christopher — Que Andrew salte a maior parte das regras sociais não quer
dizer que as desconheça ou que não as possa cumprir.
Mas Rosa não o escutava. Estava surda a tudo o que não fosse a
enorme necessidade de consertar o erro cometido.
—Vou com ele.
Christopher a soltou, ao fim.
Ela secou a palma das mãos no vestido de forma inconsciente.
Suava de medo e temor, por não saber como represar o desastre que
propiciara com sua impulsividade.
251
—Acredito sinceramente que se equivoca — disse seu cunhado,
com voz muito séria.
—Não, não se equivoca. — A voz de Ágata chegou a ambos em um
tom muito baixo.
Esta deixou aberta a porta do salão de costura, ao entrar e se
aproximou dos dois.
—Não se intrometa — aconselhou Christopher a sua mulher, que
caminhava decidida para Rosa.
Se Ágata intervisse, os problemas aumentariam.
—Prometo não me intrometer tanto como você — replicou ela,
embora sem deixar de olhar para Christopher, com olhos cheios de afeto.
Rosa ficou apanhada entre o casal, que, com sua presença, a
impediam de uma saída digna para o vestíbulo. Para fazê-lo, teria que fazer
um giro brusco e dar as costas a ambos.
Ágata desviou o olhar de seu marido para fixá-lo nela.
—Procure Andrew e fale com ele. Escute o que sente seu coração e,
depois, aja. Agora, mais que nunca, necessita do apoio de todos.
E, dizendo isto, se moveu para o lado, para permitir sua saída. Rosa
lhe fez um gesto afirmativo com a cabeça, antes de abandonar o aposento, a
toda velocidade.
Christopher entreabriu os olhos, ao mesmo tempo em que olhava
para sua mulher, que sorria de forma ardilosa, como se soubesse algo que a
ele escapava.
—Acaba de enredar a meada ainda mais, ao animá-la a encetar-se
de novo em uma briga com Andrew.
Ela pôs as mãos na cintura e levantou o queixo, com insolência.
Certamente, cabia essa possibilidade, mas confiava no caráter aprazível de
seu cunhado para resolver a situação.
252
—E isso o diz um homem que nunca retificou sua postura.
O golpe de Ágata resultou certeiro, porque Christopher cometera
muitos enganos no passado, ações equivocadas que lhe recordava, agora,
tão amavelmente.
—Agi de boa fé — disse — Escutei as razões de Alonso de Lara e
entendi a preocupação que sentia sobre o futuro de seu ducado. Além disso,
é o tio da pequena.
Mas esse não era o problema, pensou Ágata.
—Conhecendo Andrew como o conhece, devia ser manter à
margem e agir em seu benefício. Branca jamais sairia de Whitam sem sua
autorização, sabe. É tão responsável por isto como Rosa.
Ele pensou que sua esposa tinha parte de razão, mas a herança e as
raízes pesavam muito no ânimo para ter em conta outros detalhes mais
insignificantes. Mostrou-se igual de interessado que sua cunhada. Havia um
ducado que salvar!
Ágata continuou em seu ataque com voz serena, enquanto
acariciava a bochecha de seu marido.
—Todos passam por cima os desejos de Andrew, se amparando no
pouco que lhe importam os convencionalismos, mas posso assegurar sem
temor a me equivocar, que, nesta ocasião, não ter em conta seus
sentimentos foi daninho e perverso. Um ato censurável que não esquecerá
em muito tempo.
Rosa não chegou a bater na porta do quarto. Entrou decidida, mas
Andrew não estava lá. A donzela recolhera a louça destroçada no chão e
arrumou a penteadeira. Voltou-se, com ímpeto, e retornou sobre seus
253
passos de novo para o corredor, ao que davam as diferentes habitações e
salas da planta superior.
Tinha uma intuição e se deixou guiar por ela.
Devia encontrar Andrew, tinha de falar com ele e lhe pedir perdão.
Agira como uma insensata, movida pelos remorsos que sentia por trair o
nome da família em prol de uns ideais que, agora, lhe pareciam
secundários.
E, agora, sua família era Andrew!
E não haver demonstrado isso lhe produzia uma sensação de sufoco
extremo.
Com passos enérgicos, chegou até a porta do quarto da pequena
Branca. A grossa folha de madeira não estava fechada, a não ser
entreaberta, e, com mão tremente, a empurrou, brandamente, antes de
entrar na silenciosa habitação.
A tarde começava a definhar, e os últimos raios de sol se foram
apagando pouco a pouco entre as cortinas brancas. Rosa não tinha
almoçado e supunha que Andrew tampouco teria comido, depois do
enfrentamento de ambos no meio da amanhã.
Ele estava sentado no fofo colchão e sustentava um objeto negro
entre os dedos.
—Não levou sua capa.
Acariciava o negro tecido com reverência.
Sobre o leito, havia uma bolsa de viagem aberta. Rosa pôde dar
uma breve olhada a seu interior e viu que estava virtualmente cheia de
roupa. Ajoelhou-se aos pés dele e lhe segurar as mãos entre as suas.
—Perdoe-me, Andrés — se desculpou, com um fio de voz —
Lamento muitíssimo ferir você com minhas ações.
254
Mas seu marido não a olhava. Seguia tocando a grossa malha de
forma mecânica e com expressão ausente.
—Não tive em conta sua opinião, e tem todo o direito de estar
zangado comigo, mas juro que não voltará a acontecer.
Seu silêncio a preocupava muitíssimo. Andrew tinha o olhar
perdido e uma careta indecifrável nos lábios.
—Prepararei minha bagagem — disse Rosa, de repente.
Levantou-se do chão, mas a mão de seu marido reteve a sua com
firmeza.
—Aonde vai? — perguntou, com voz rouca.
Rosa o olhou, perplexa. Aonde poderia ir a não ser com ele?
—Acompanho você...
Sua reação a pegou, completamente, de surpresa. Andrew se
levantou, com solenidade, dobrou a capa de viagem de Branca e a colocou
dentro da bolsa antes de fechá-la.
—Não necessito de sua companhia para trazer de retorno a minha
pequena — espetou.
Ela inspirou, profundamente, pelo tom que ele tinha utilizado:
áspero e provocador.
—Sou consciente de que não necessita da minha companhia para
trazê-la, mas, mesmo assim, desejo ir com você.
Ele, agora sim, a olhou com as pálpebras entreabertas.
—Deseja somar outra preocupação às que já tenho?
Rosa deu um passo para trás, para olhá-lo melhor. Seu marido era
um homem muito alto e corpulento.
—Sei como se sente, e, por isso, quero emendar meu grave engano.
Andrew passou os dedos pelo cabelo, para tentar acalmar-se.
255
Durante horas, meditara muito nos motivos de uns e outros para pô-
lo na situação em que se encontrava. E isso o levou a tomar uma decisão
irrevogável.
—Sinto-me ofendido — reconheceu, com voz cansada.
Rosa se abraçou a si mesma, como se, de repente, a tivesse açoitado
um ar gélido do norte.
—A mulher que amava mais que a minha vida jogou-me de seu
lado, como se fosse um estorvo em seu mundo de etiquetas e regras sociais,
salvo que eu não tinha modo de saber, porque acreditei que era uma moça
singela e não a elevada filha de um duque. Se me houvesse dito quem era
realmente, teria agido em conformidade. — Rosa ia protestar, mas a mão
elevada dele silenciou sua resposta — Meu pai tomou a decisão de me
casar sem meu conhecimento, porque acreditou que era o melhor para
liberar você da forca. E tinha razão, mas se esqueceu de me perguntar o que
opinava e sentia a respeito, ignorava quem foi para mim e o que significava
em minha vida. — Um silêncio pesado, amargo, instalou-se entre ambos
durante uns momentos — Meu irmão mais velho, o homem que mais
admiro depois de meu pai, ocultou-me que a formosa menina que tinha sob
minha responsabilidade em Whitam era minha própria filha e, agora,
conspira com você para me tirar isso. Diga-me, Rosa, como deveria me
sentir?
Ela não podia responder, porque se sentia mortificada.
Andrew tinha exposto todas e cada uma das censuráveis ações que
todos cometeram contra ele e as enumerou sem despeito, rancor ou cólera.
Mas suas palavras continham uma decepção tão profunda que lhe abateu o
ânimo e a deixou com uma sensação de derrota muito mais intensa que a
que refletia o semblante masculino.
256
Viu-o vestir a casaca e abotoá-la com gestos lentos. O coração de
Rosa se encolheu, de forma dolorosa.
—Andrés, por favor... — Mal podia articular as palavras. Tinha os
lábios insensíveis de tanto apertá-los pelo remorso que sentia — Pensa em
partir sem me dizer nada mais?
Não lhe respondeu. Limitou-se a olhá-la de ma maneira penetrante,
como se quisesse ver no interior dela a outra pessoa. Depois de seu severo
escrutínio, soltou um suspiro e saiu pela porta, mas, antes de fechá-la,
voltou-se um pouco para ela.
—Pergunte a Christopher. Ele informará você sobre os detalhes de
minha marcha...
—Andrés, não! Diga-me isso você! — exclamou, realmente
preocupada e com um tom compungido que não o comoveu nem um pouco.
Negou com a cabeça várias vezes.
—Está proibida de sair da Inglaterra — lhe recordou — E, embora
eu gostaria de lhe pagar com a mesma moeda, não sou como você. Porque
eu, sim, valorei você sempre como merece, ou como acreditava que
merecia, que não é o mesmo, não é?
Rosa conteve um gemido, ao sentir-se golpeada por suas duras
palavras.
—Fale com o Christopher, ele a informará de tudo.
257
CAPÍTULO 25
Palácio dos Silêncios, Parque dos Príncipes, Sevilha.
Andrew seguia esperando em um dos bancos de pedra situado em
um lateral do formoso jardim arborizado. A residência dos Lara estava
localizada em um lugar emblemático e muito formoso da cidade de
Guadalquivir. Fazia várias gerações, pertencia a essa família. O palácio,
chamado dos Silêncios pelo claustro que tinha encostado na parte esquerda,
era um dos mais antigos e belos que ele já vira. O edifício se compunha de
uma planta quadrada e cada um dos quatro lados recebia o nome de panda.
No centro, estava o jardim, e, em uma das fontes, havia encostados vários
bancos para a leitura e a meditação. Andrew estava, agora, sentado em um
deles, o mais próximo ao poço de água. No espaço restante, o lugar se
dividia em quatro caminhos que levavam a um roseiral, uma horta de
árvores frutíferas, ao claustro e a outro jardim que continha uma piscina,
provavelmente destinada ao banho, nos dias mais quentes.
Levantou os olhos para a galeria superior com um corredor coberto
limitado por uma arcada. Cravou seus olhos num local onde havia um
pequeno aposento que podia servir de escritório ou biblioteca independente
da biblioteca principal que possuíam a maioria dos palácios e castelos. A
seguir, se achava o grande salão, peça imprescindível e que geralmente se
construía com variada e rica ornamentação arquitetônica.
Andrew continuou movendo o pé, ritmicamente, enquanto que, com
os olhos, seguia os desenhos geométrico dos ladrilhos do jardim,
intercalados com pedras de mármore listrado de cinza. Mas, incapaz de
permanecer sentado, aguardando, dedicou-se a observar as paredes do
258
jardim, cuja delicada decoração geométrica, indubitavelmente, estava
inspirada em imagens da natureza e da pesca. Encaminhou-se para o
seguinte jardim, que continha a piscina, e, uma vez lá, olhou a quietude da
água, que parecia um espelho onde se refletia a serenidade do céu azul e o
verde relaxante do mirto.
Como podia um lugar transmitir tanta paz e quietude?, perguntou-
se. Concluiu que o nome do palácio era muito apropriado, porque, entre
seus muros, se respirava calma e contenção.
Contemplou a água, durante um momento, ao tempo em que
aspirava ao aroma penetrante dos jasmins e a lavanda. A profusão de
aromas e cores daquele lugar era assustadora.
Ficou ali quieto, até que, ao fim, ouviu abrir-se a grossa porta do
claustro e os passos firmes que se dirigiam para onde ele estava. Supôs que
seria o mordomo, mas sua surpresa foi grande quando foi o próprio Alonso
se apresentou ante ele.
Andrew cravou seus olhos em seu cunhado que, com traje militar,
caminhava diretamente para ele. Não mudara muito, apesar dos anos que se
transcorreram, desde que o viu pela primeira vez na casa do tio de sua irmã
Aurora.
Sem lugar a dúvidas, Alonso o teria visto da casa.
—Siga-me. — A ordem imperativa o fez estalar a língua com certa
brincadeira, porque o duque omitiu o gesto mais elementar de todos: a
saudação.
Andrew fez o que pedia seu cunhado e caminhou atrás dele, mas
para o palácio e não para o claustro, como acreditava. Alonso lhe sustentou
a porta, para que entrasse, e logo a fechou. Conduziu-o por vários
corredores e pátios, até a biblioteca principal e, uma vez ali, convidou-o a
sentar-se em frente à escrivaninha de madeira de castanheiro.
259
Andrew decidiu manter-se de pé para não perder a vantagem que
sua elevada estatura lhe conferia.
—Na Inglaterra — começou para romper o gelo — damos as boas-
vindas às visitas, embora nos resultem desagradáveis.
A recriminação não afetou Alonso, que, ignorando a posição de pé
de seu inesperado convidado, tomou assento atrás da mesa. Logo, cruzou
uma perna sobre outra com inusitada elegância, como era próprio em
homens de sua fila.
—Não estou acostumado a saudar meus inimigos — respondeu,
com sinceridade.
A resposta pegou de surpresa Andrew, que o olhou tão
sobressaltado como incrédulo. Havia dito inimigo?, perguntou-se.
—Sou seu cunhado, não um adversário — respondeu ele, cortante
— Confio em que saiba distinguir a diferença, ou se não, lhe posso mostrar
isso com gosto.
Alonso tinha de levantar a cabeça para olhá-lo, mas isso não o
impediu de mostrar seu desdém e o poder que ostentava em seu próprio lar.
Se o malandro queria permanecer de pé, ele não ia impedi-lo.
Andrew tirou as luvas e o chapéu e os deixou sobre a escrivaninha.
—A que devo a honra de sua visita? — inquiriu Alonso, com voz
áspera.
Ele pensou que a pergunta era tão estúpida como a atitude do
homem que a formulava, mas decidiu mostrar respeito ao único tio materno
de sua filha, embora não o merecesse.
Se algo podia fazer em honra de seu pai, era mostrar-se educado e
correto.
Começou a passear pelo amplo aposento, admirando os retratos das
paredes. Um deles lhe chamou poderosamente a atenção, porque
260
representava uma menina que ria feliz, enquanto abraçava um cachorrinho.
Indubitavelmente, o retrato era de Rosa, mas não fora pintado na Espanha,
a não ser no estrangeiro. Deduziu-o pela distribuição do jardim e a casa que
se podia ver no fundo, embora não pudesse assegurá-lo de todo.
A luz do quadro era na verdade magnífica.
—Devo esperar todo o dia para obter uma resposta tão singela? —
voltou a insistir Alonso, com voz um pouco mais inquieta, mas com o olhar
tão frio que parecia de gelo.
Sentia que a atitude passiva e aprazível do inglês o atordoava.
Quando o mordomo lhe mostrou o cartão de visita, havia sentido a
imperiosa necessidade de queimá-lo, mas ele não era homem que desse as
costas aos problemas. Alguma vez, tinha de enfrentar o marido de sua irmã,
e fazê-lo em seu território lhe parecia do mais apropriado.
Andrew o olhou, de frente, sem hesitação, mas sem que sua atitude
denotasse predisposição à belicosidade, justamente o contrário: seu rosto
mostrava absoluta determinação a fixar uma trégua. Deteve-se em frente a
Alonso, ambos separados pela larga mesa.
—Algo óbvio: desejo ver minha filha.
Os dois homens se olharam, com os olhos entreabertos, medindo-se
com insolência.
—Percorreu um caminho muito longo simplesmente para uma
visita.
Andrew soube que Alonso jogava com ele, mas levava certa
vantagem que estaria satisfeito de lhe mostrar ao seu devido tempo.
—Também temos que concretizar alguns aspectos legais sobre a
herança de Branca e seu futuro. Depois, minha filha retornará a casa.
261
Alonso soltou, de repente, o ar que estava contendo, e Andrew se
felicitou, porque isso queria dizer que o duque não estava tão seguro como
presumia com sua atitude régia, excessivamente marcial.
—Minha sobrinha deveria criar-se na Espanha. Conhecer suas
raízes e amar o legado de sua herança. Viver na Inglaterra a privará de tudo
isso.
Andrew meditou suas palavras e, contra todo prognóstico, esboçou
um sorriso cheio de empatia. Estava completamente de acordo com sua
última frase. A Inglaterra era muito diferente da Espanha.
—Apesar de tudo, cunhado... — Andrew remarcou a palavra, pondo
em relevo o parentesco entre ambos de uma forma que chiou nos ouvidos
de Alonso — Branca se criará junto a seu pai. E surpresa!, Seu pai é inglês,
e, além disso, vive na Inglaterra. Embora, para sua tranquilidade presente e
futura, direi que sempre será bem-vindo em Whitam, quando desejar fazer
uma visita a sua sobrinha... Ou a sua irmã.
A última palavra a disse com um toque de sarcasmo que, para
Alonso, não passou despercebida. O inglês tinha mostrado suas cartas sem
nenhum blefe, mas ele sabia como deixar uma boa partida, quando estava
perdendo. E, com respeito a sua sobrinha, tinha perdido a vantagem.
—Está-me provocando? — Tinha apertado as mandíbulas, até o
ponto de fazer chiar os dentes — Porque a paciência não é uma de minhas
virtudes.
Andrew se surpreendia com o caráter extremo do irmão de Rosa.
Via-o rígido em sua cadeira, sem perder a compostura, salvo algum
movimento na comissura da boca de tanto contraí-la, aborrecido, mas sabia
que era, simplesmente, aparência. Alonso de Lara fora criado de forma
ainda mais severa que seu irmão Christopher, por isso, compreendia a
imensa solidão de sua alma e se compadeceu dele, embora cuidasse de não
262
demonstrar. Intuía que o homem agressivo que tinha diante não agradeceria
que lhe tivesse lástima.
—Tenho outros assuntos para tratar com você e, embora lhe pareça
estranho, provocá-lo não é um deles — admitiu Andrew, de forma
conciliadora.
Alonso se sentia desconcertado.
Estava acostumado a tratar com homens muito mais duros e
matreiros, mas a atitude repousada e plácida do inglês o surpreendia.
Outros, por muito menos, haveriam desembainhado a espada e tentado
cravar-lhe no coração. Inspirou, profundamente, e se manteve em silêncio,
avaliando o homem que tinha frente de si. Sua forma descuidada de apoiar
a palma das mãos na mesa e a forma de inclinar-se lhe pareceram
provocadoras. Vestia traje militar inglês e se perguntou o motivo para
semelhante excentricidade; a Inglaterra não estava em guerra com nenhuma
de suas colônias.
—Aceito que designe a Branca como sua herdeira, mas não aprovo
o compromisso que consertou para ela. Esse é um assunto que me compete
exclusivamente. — Christopher lhe dera todos os documentos facilitados
pelo duque de Fortaleza em sua visita a Whitam. E Andrew os estudou
muito bem durante o longo trajeto para a Espanha.
Alonso apoiou as costas no alto respaldo da cadeira, ao tempo em
que cruzava as mãos sobre a mesa com atitude cautelosa. Agora, tinha de
superar o problema mais importante da operação que levara a cabo.
—Se algo me acontecesse — começou — Branca seria duquesa de
Lara e não poderia optar por um matrimônio de inferior fila.
Andrew decidiu sentar-se, porque a conversa se estava pondo mais
interessante por momentos. Afastou as luvas de pele e o chapéu a um lado,
263
ao tempo em que se ajustava a espada ao quadril, para tomar assento com
maior comodidade.
—Na Inglaterra, também temos ducados que se mostrarão
interessados em consertar um matrimônio com minha filha. Mas isso é algo
que não penso considerar de momento. Possivelmente, quando Branca
cumpra os... Trinta anos?
Alonso soube que estava brincando com ele e ficou furioso. Havia
dito trinta anos? Isso era uma estupidez. Os matrimônios se consertavam na
infância.
—Acreditava que estávamos falando a sério — disse, com voz
cortante.
—Disse-lhe isso para que tenha claro que, nesse aspecto, não penso
capitular. Que minha filha se case está descartado por muito tempo.
—Isso é inviável — alegou Alonso, com os olhos entreabertos.
—É uma atitude aceitável nas atuais circunstâncias, e me estou
mostrando extremamente razoável neste assunto — espetou Andrew, com
um tom de voz parecido ao que utilizavam os meninos quando reprovavam
outro por fazer uma armadilha.
—Se minha sobrinha se casar com um inglês, não poderá ocupar-se
de sua herança na Espanha. O ducado ficaria relegado, e isso é algo que
não posso nem devo permitir.
Andrew pensou que nisso tinha que dar parte de razão a seu
cunhado. Se Branca contraísse matrimônio com um duque inglês, o ducado
de Fortaleza ficaria sempre em segundo lugar, algo inconcebível para um
homem do caráter e a inteligência do duque de Fortaleza.
—Pensou, por um momento, que sua sobrinha pode desejar casar-se
simplesmente por amor e sem um título no meio?
Alonso abriu a boca, estupefato.
264
—Branca é uma herdeira e como tal tem uma obrigação a cumprir.
Andrew deu um passo em falso, mas tentou retificar. Levar o
espanhol por esse caminho significava lhe explicar que, embora Rosa fosse
à filha de um duque e ele o filho caçula de um marquês sem opção a
nenhum título, amavam-se com loucura. Com o matrimônio de ambos,
deram a Alonso motivos para temer pela futura união de Branca.
Fora a Sevilha para ganhar a confiança de seu cunhado. Para lhe
demonstrar que era um homem digno de confiança e que pretendia o
mesmo que ele: a felicidade de Rosa e de Branca, mas não estava
conseguindo. Alonso se mostrava muito suscetível e tão estrito com as
normas que recordou seu irmão mais velho. Falar de amor sem títulos no
meio era algo inconcebível para um nobre tão elevado como o duque de
Fortaleza.
Durante a viagem, sopesou todas as alternativas que tinha em seu
primeiro encontro com ele: desafiá-lo em duelo, lhe dar uma surra ou tentar
chegar a um acordo satisfatório para ambos e, ao mesmo tempo, ganhar seu
respeito pelo bem de Rosa e de Branca. Levou dias para controlar a fúria
que o embargava e chegar à conclusão de que queria obter a confiança de
seu cunhado acima de tudo. Era o irmão de Rosa! E isso eram palavras
maiores. Andrew não desejava disputas familiares e, se tivesse o único
familiar de sua esposa em contra ele, a convivência familiar podia
converter-se em um problema a longo prazo. Além disso, não era tão
egoísta para privar sua filha de seu único tio materno. Seu pai, John,
inculcara-lhe desde a infância a necessidade de respeitar e valorizar a
família, e, por isso, encontrava-se, agora, tão longe da Inglaterra, tentando
fazer raciocinar um teimoso duque.
—Você vai perder e sabe disso. Nenhuma Coroa, seja britânica ou
espanhola, tirará de um pai o poder de combinar o casamento de sua filha.
265
O duque apertou os lábios, com uma careta de desdém.
Alonso era plenamente consciente de que o pai de seu cunhado,
John Beresford, era um marquês muito respeitado. Fizera indagações a
respeito e obteve informação sobre a família até cinco gerações atrás, e
embora o homem que tinha diante não possuísse título, sua linhagem era
indiscutível. Se Rosa se fixasse em um plebeu, tudo seria muito mais fácil,
mas os aristocratas eram ilustres, tanto na Espanha como na Inglaterra, e a
rainha María Cristina deixara isso muito claro, quando aceitou que a
pequena Branca herdasse o ducado de Fortaleza.
—Tudo o que fiz até agora foi pelo bem-estar de minha sobrinha no
presente e no futuro. Condeno os atos políticos e a atitude rebelde de minha
irmã, mas sou consciente de que Branca não tem culpa do comportamento
da mãe e, por isso mesmo, sinto que é minha obrigação impedir que pague
por seus enganos. Embora ambos sabemos o preço disso, não é certo?
Alonso se referia à declaração de traição por parte da Coroa
espanhola sobre Rosa. Ele pretendia limpar essa mancha do futuro de sua
sobrinha e, para obtê-lo, devia mostrar submissão absoluta à rainha.
Andrew estava de acordo em quase todas as suas afirmações, mas
seus atos foram equivocados, ao não tratar diretamente com ele em Whitam
Hall. Sua atitude levantou entre os dois um muro alto e espinhoso, que ele
sozinho não poderia atravessar, se a outra parte não estivesse disposta a um
acordo de cooperação.
—Quando pensava em devolvê-la a Inglaterra? — Andrew jogava
muito com a pergunta e esperou com ânsia a resposta, porque, com ela,
Alonso demonstraria seu grau de venerabilidade.
O duque não titubeou, ao responder, e, por isso, Andrew soube que
era sincero.
—Tudo estava disposto para que retornasse em um par de dias.
266
O alívio que sentiu ao escutá-lo se refletiu em todo seu corpo, que
ficou, de repente, bambo na cadeira. Parte da tensão que sentira nas últimas
horas se esfumou totalmente, lhe deixando uma sensação de quietude
indescritível.
Em que pese a sua obstinação, Alonso era um homem consequente
em ações e palavras.
—Pensava em acompanhá-la de volta? — perguntou.
Ele negou com a cabeça de maneira quase imperceptível.
—Quatro de meus melhores homens iriam ocupar-se da segurança
de Branca em seu retorno, mas com seu pai aqui, deduzo que já não é
necessário que me ocupe disso.
—Posso ver agora minha filha? — perguntou Andrew, com voz
imperativa — Acredito que cumpri de forma satisfatória suas expectativas,
porque segue tendo a cabeça sobre os ombros.
Alonso relaxou também sua postura e se inclinou para seu cunhado.
—Devo admitir que me surpreendeu — replicou — Mas ainda
temos que tratar o acordo de compromisso com o ducado de Marinaleda.
Nesse assunto, Andrew se mostrou implacável.
—Não aceito o compromisso — reiterou, com voz que não admitia
réplica.
O duque utilizou toda sua artilharia.
—Marinaleda é uma das melhores e mais importantes famílias da
Andaluzia, e me atreveria a dizer que da Espanha — contra-atacou,
decidido a fazer capitular o pai de sua sobrinha — Seria uma soberana
estupidez romper o acordo.
—Não duvido, mas, por mais empenho que ponha, não aceitarei o
compromisso.
—Minha sobrinha merece inclusive uma coroa.
267
Essas palavras o afetaram, profundamente. Alonso falava
convencido, e Andrew gostou que tivesse em tão alta consideração a sua
filha.
—E a terá, se assim desejar — concedeu, ao fim.
O duque soltou um suspiro que, para Andrew, pareceu apaziguado.
—Então, estamos de acordo — rematou, mas ele voltou a negar
com sua loira cabeça, sem que o sorriso abandonasse seus lábios.
—Se Branca deseja casar-se com um nobre espanhol, não oporei a
isso, mas não penso passar em um acordo matrimonial que lhe impeça de
ter a liberdade de escolher a seu futuro cônjuge.
—Há uma cláusula no contrato que lhe outorga a faculdade de
romper o compromisso, se assim o desejar, mas, para isso, terá que esperar
os dezoito anos e perder a metade do dote.
Por que ninguém lhe falara dessa cláusula?, perguntou-se Andrew,
estranhando. Estava discutindo com seu cunhado algo que tinha acerto no
futuro.
—Embora haja mais um — prosseguiu Alonso.
Ele se preparou para o pior.
—A Coroa espanhola terá a última palavra sobre o enlace que
pactue minha sobrinha e sobre o candidato eleito por ela — informou, de
forma concisa.
Andrew sopesava os prós e os contra.
—Isso é inaceitável. Não estamos falando de política, mas, sim, do
futuro casamento de minha filha.
Alonso teimou ainda mais.
—Será uma grande da Espanha, com responsabilidades que não
poderá evitar.
268
Andrew pensou que, se seu cunhado voltasse a repetir a palavra
«grande», ia fazer algo drástico, como lhe lavar a boca com água de Javel12
.
—Só está especulando com a possibilidade, porque, até a data, você
segue vivo e presumo que com sua dignidade intacta para encher este
mausoléu de pequenos Laras tão frios e, insuportavelmente, rígidos como
seu progenitor...
Depois de escutar sua invectiva, Alonso fez uma careta que parecia
diversão, mas Andrew pensou que seguro que se equivocava, pois seu
cunhado era o homem mais seco e autoritário que havia conhecido.
—Estamos de acordo, então? — O duque ficou de pé e lhe estendeu
a mão como dando o tema por resolvido.
Andrew também se levantou, mas duvidou uns instantes em aceitar
a conclusão do trato, pois não tinha obtido nada, salvo aparar as arestas
com ele. Mas, ao menos, já não sentia vontades de lhe fazer verdadeiro
dano, só de derrubá-lo com um murro.
—Aceito. — Estreitou a mão que lhe estendia Alonso e, de repente,
fez algo completamente inesperado e que pegou o duque de surpresa.
Sem soltá-lo, lhe deu um murro com a esquerda que o deixou
desequilibrado por completo. A cadeira caiu com estrépito, assim como
vários equipamentos do escritório, mas Alonso pôde apoiar-se na mesa,
para não cair no chão.
Quando se recuperou, olhou ameaçador para o homem que teve a
ousadia de golpeá-lo em sua própria casa, mas Andrew esboçou um sorriso
cúmplice.
12
água de Javel é um desinfetante muito forte usado em várias partes do mundo. Mata uma infinidade
de bactérias e pode ter também função alvejante.
269
—Isto é para que não esqueça que sou o pai de sua sobrinha e o
marido de sua irmã. Quando desejar tratar um assunto legal, fará isso
comigo ou não será o único murro que receberá de mim. — Seu cunhado
massageou o queixo, mas não fez ameaça de devolver o golpe. Ainda
estava assombrado pela audácia que demonstrara — E, agora, faça chamar
minha filha, porque não posso esperar mais para vê-la.
Durante um momento, os dois homens se olharam desafiando-se;
finalmente, Alonso se aproximou do atirador e chamou. Quando o
mordomo abriu a porta com atitude solene, voltou-se para ele.
—Avise a lady Jane para que traga para a senhorita Lara.
Andrew esteve a ponto de corrigir seu cunhado, com um novo
golpe, por sua maneira de chamar Branca. Pelo visto, não fez caso de sua
advertência uns momentos antes, mas decidiu deixar passar. Tempo teria de
lhe baixar a bola ducal.
A inoportuna entrada de Branca na biblioteca, acompanhada de lady
Jane, converteu-se em uma festa de gritos e aplausos. Andrew abraçou a
menina e a lançou várias vezes no ar. As gargalhadas infantis resultavam
contagiosas. Uns momentos depois, pai e filha começaram um bate-papo
em inglês que excluiu Alonso, por completo.
Este ignorava tudo a respeito de sua sobrinha, mas também
desconhecia tudo o que tinha a ver com sua irmã. Era consciente de que o
fato de haver-se criado na França fora o estopim para sua declarada
rebeldia e sua obstinada teima.
Rosa o havia enganado, manipulado, mas ele conseguiu a
cooperação de Andrew Beresford para assegurar a continuidade do ducado;
podia sentir-se satisfeito. Quando decidiu embarcar com rumo à Inglaterra,
esperava muito menos, mas seus planos de controlar o imenso patrimônio
270
de sua irmã estavam muito mais perto, com a designação de sua sobrinha
como herdeira.
A partida se tornou um impasse, como previra desde o momento em
que soube da chegada ao palácio dos Silêncios do inglês que, agora,
formava parte da família Lara.
Desaprovava por completo a escolha de Rosa, porque, por
linhagem, podia aspirar a muito mais. Se lhe contasse que não pensava
tomar os hábitos, combinaria para ela um matrimônio muito mais vantajoso
com um nobre afim à casa Lara. Mas isso já não tinha remédio, embora a
situação de Branca, sim; e ele pensava em vigiar com muita atenção a sua
sobrinha, para que não cometesse o mesmo engano da mãe. Não pensava
em permitir que desposasse um maldito inglês. A herança materna dos Lara
devia continuar na Espanha.
Andrew se aproximou dele com sua filha em braços.
—O tio Alonso está encantado de que fique aqui uns dias — disse à
pequena em espanhol, e a menina voltou a gritar com júbilo.
Ele não estava encantado nem um pouco, mas não o contradisse.
Não ficava mais remédio que oferecer hospitalidade ao pai de sua sobrinha,
até que partisse, mas confiava que isso ocorresse muito em breve.
—Bem-vindo a Silêncios, cunhado.
Disse-o com a mesma entonação sarcástica que utilizara Andrew
momentos antes e recebeu uma piscada como resposta.
Andrew se sentia satisfeito, porque tudo saíra como tinha planejado
em um princípio, bom, ao menos em parte, porque tratar com Alonso de
Lara resultava complicado e exaustivo.
271
Branca estava com seu avô John Beresford em Granada. Ambos
retornariam a Whitam Hall com Justin e Aurora, que pensavam partir em
breve a bordo do Diabo Negro. O veleiro, propriedade de seu pai, estava
ancorado frente à Torre do Diablo na costa Granada e esperava as
oportunas ordens. Lady Jane também voltava com eles. Com aquela
entonação que Andrew adorava, Branca lhe explicou que, durante o tempo
que estivera em Sevilha, lady Jane cuidou muito bem dela. Ele agradecia a
mulher, profundamente, mas sua filha era uma contínua caixa de surpresas.
Não protestou nenhuma só vez, ante o desconforto de ir de um lado
a outro com estranhos, e se mostrou encantada de conhecer seu tio Alonso
e de poder estar um tempo em sua companhia. A incomum maturidade de
sua pequena o enchia de um imenso orgulho paterno. Nesses momentos,
Branca recebia os cuidados de seus primos mais velhos: Mary, Roderick, e
os gêmeos Hayden e Devlin, na casa granadina que possuía sua irmã
Aurora. Seus sobrinhos se puseram muito contentes, ao conhecer sua nova
prima, e embora Andrew soubesse que Branca ia estar muito bem e
protegida por sua família, deixá-la de novo a cargo de outro lhe parecia um
suplício. Queria-a com toda sua alma e o entristecia enormemente separar-
se dela. Mas ele não podia voltar ainda à Inglaterra, porque aceitara um
encargo e tinha a obrigação de cumprir.
A longa e sincera conversa manteve com seu pai foi muito frutífera,
mas John não guardou nenhuma só recriminação das que tinha pendentes.
E foi demolidor.
Ainda lhe ardiam as orelhas pelo sermão de desaprovação que
recebeu de sua parte, embora o merecesse. Durante anos, comportou-se
como um cretino sem escrúpulos, mas resistiu a lhe confessar que sua
atitude desmedida era consequência do desamor que Rosa lhe mostrara no
passado. Ela nunca deixou de amá-lo, mas se calou, convenientemente.
272
Se Rosa confessasse que era filha de um duque, Andrew teria
acatado e seguido todas as regras sociais para ganhar a sua família e a toda
a nobreza sevilhana, se fosse necessário, mas o fizera acreditar que era uma
moça singela e sem responsabilidades, e essa omissão da verdade os levou
por um caminho espinhoso e estéril. Mas, por Branca, por sua filha, ia fazer
todo o possível por cumprir cada estúpida norma de etiqueta, embora
perdesse a vida no intento. Tinha uma grande responsabilidade e, por isso,
aceitou ingressar no exército, sob as ordens do coronel John Gurwood. Se
demonstrasse à rainha da Espanha sua boa disposição, ao lutar por sua
causa, e de mediar no conflito sob a tutela da Inglaterra, María Cristina
compreenderia que neles não tinha inimigos.
Entretanto, seu pai era outra questão.
John Beresford se mostrou surpreso, quando lhe revelou o cargo
militar que aceitou por sugestão de lorde Eliot e do coronel John Gurwood.
Ambos foram comissionados para mediar na guerra espanhola, e Andrew ia
ser o homem de confiança de Gurwood nas conversações que iam manter
com ambos os lados. O grau de oficial que lhe comprara John e que não
havia utilizado lhe serviria, nesses momentos cruciais.
Seu pai expressou seu desgosto, porque a situação na Espanha se
estava tornando perigosa. Andrew era consciente disso, por isso, insistiu
tanto em que sua irmã abandonasse a Espanha e retornasse a Inglaterra com
seu marido e filhos.
Agora, se encontrava no palácio dos Silêncios, esperando a chegada
do coronel Gurwood e do embaixador inglês, para ultimar detalhes com
Alonso de Lara, que tinha de retornar, em breve, à frente norte. Quando
contou seus planos a seu cunhado, o duque se mostrou atônito e reservado.
Alonso era da opinião de que os estrangeiros não deviam intervir
em um conflito que não lhes correspondia, mas as credenciais de tradutor
273
que lhe mostrara silenciaram seu protesto. A rainha María Cristina e Carlos
Isidro aceitaram a intervenção estrangeira, e ele não era ninguém para
questionar os motivos reais. Além disso, como Andrew Beresford falava e
escrevia corretamente em espanhol, seria um tradutor necessário e
competente entre ingleses e espanhóis.
Tampouco objetou em nada a sua intenção de levar a pequena
Branca a Granada com seu avô, em vez da Inglaterra, e retornar ele, dois
dias depois, para manter uma reunião com homens influentes vindos de
Grã-Bretanha para conversar sobre a guerra em chão espanhol.
Andrew repassou, brevemente, seu traje e acomodou a espada ao
cinto, mas, antes de terminar de ajustar o cinturão, o mordomo anunciou a
esperada visita.
Alonso ficou de pé e se encaminhou para a porta.
Um grupo de quatro homens fez sua enérgica entrada na grande
biblioteca do palácio, e, todos salvo um, iam vestidos de militar.
—Sua excelência. — O primeiro em saudar foi o embaixador
espanhol, seguido muito perto por lorde Eliot e, finalmente, pelo coronel
Gurwood, que ia acompanhado de seu homem de confiança, o general
espanhol Francisco José de Santillana e Murillo. Este fez ao duque uma
breve inclinação de cabeça a que ele correspondeu com uma saudação
militar em toda regra.
Alonso apresentou seu cunhado, antes de convidá-los a tomar
assento. Explicou sua presença na casa e na reunião que ia ter lugar nesses
momentos. Instantes depois, pediu ao mordomo cafés e licor para todos os
presentes.
Durante as seguintes horas, os homens reunidos no palácio dos
Silêncios se dedicaram a planejar estratégias de combate e a designar
lugares apropriados para o intercâmbio de prisioneiros de ambos os bandos.
274
Falou-se da vitória obtida em Bilbao, Durango e Guernica com uma
pequena divisão, graças à fortificação das cidades. Falaram com supremo
respeito do general Espartero, que perseguira pequenas guerrilhas que se
foram formando em distintos pontos, depois do enfrentamento. O general
Santillana elogiou com urgência e orgulho a façanha de Espartero, quando
os cristinos foram sitiados no norte por uma coluna de seis mil homens. O
intrépido militar pôde liberar a cidade com uma força cinco vezes inferior
que as dos atacantes. Por esse motivo, Santillana insistia em encarar os
enfrentamentos seguindo o modelo de Espartero, para, assim, sofrer as
menores baixas possíveis.
Andrew escutava com atenção, sem interromper a conversa entre o
general inglês e o espanhol sobre acordos táticos que deviam ser pactuados.
E ali, entre tensões e recriminações não ditas em voz alta, formou-se a
comissão para obter que ambos os lados chegassem a um acordo para evitar
os fuzilamentos indiscriminados.
Alonso não desviou os olhos nenhuma só vez da figura de Andrew
e se perguntou o que o futuro lhe reservaria na guerra espanhola.
275
CAPÍTULO 26
Rosa sentia muita falta de Andrés.
Se tornava muito difícil imaginá-lo em sua pátria, com seu irmão
Alonso como companheiro, porque, mais que um familiar político, este
seria um rival implacável.
A chegada de Branca semanas atrás, acompanhada de John
Beresford, provocou-lhe uma alegria que seria completa, se seu marido
tivesse cruzado a soleira com ela. Mas sua prolongada ausência lhe
recordava o estúpida que fora, ao não valorar o amor que lhe professava
como se merecia.
Quantos enganos!
Mas já não tinha sentido lamentar-se por algo que não podia mudar,
embora ansiasse com todas suas forças.
Seguiu contemplando as flores do jardim, através de uma janela da
biblioteca, enquanto bebia um gole pequeno de sua xícara de chá
fumegante. Sentia saudades do café da Espanha... Rosa sorriu. Tinha
saudades de muitas coisas que já não poderia recuperar e só lhe restava
mostrar sua conformidade pela fortuna que a vida lhe ofereceu, apesar de
seus graves equívocos. Outros haviam perdido muito mais que ela na cruel
batalha que se travara em chão pátrio, e isso a fez lamentar, profundamente,
com sincero remorso o tempo que tinha desperdiçado em lamentações.
Atrás cristal, o fôlego de Rosa empanava as figuras do jardim e o
escureciam e, sem ser consciente do que fazia, com o dedo indicador,
desenhou o contorno de uma flor e um coração que chorava. As
imaginárias lágrimas caíam sobre a flor, mas no desenho não a dobravam.
Voltou a exalar o quente fôlego e seguiu desenhando figuras abstratas sem
276
sentido e sem forma ao redor da flor que delineara primeiro. Uns momentos
depois, com a malha da manga do vestido limpou qualquer rastro que
tivesse deixado no cristal com seu jogo e terminou o chá.
Ao virar-se para a mesinha auxiliar para deixar a xícara, precaveu-
se de que não estava sozinha. Christopher estava de pé, observando-a,
atentamente, tanto, que conseguiu pô-la nervosa. Em certas ocasiões,
olhava-a como se fosse um ser de outro mundo, e Rosa se perguntou o
motivo daquele constante escrutínio sobre sua pessoa. Adotou uma postura
relaxada e lhe falou com um timbre de voz sereno. Não o ouvira entrar,
mas isso era porque nunca fechava a porta das dependências onde se
encontrasse. Odiava os espaços fechados.
—Deseja uma xícara de chá? — perguntou.
Christopher fez um gesto negativo com a cabeça e avançou para
onde ela estava.
—Acreditava que meu pai estaria aqui, na biblioteca.
Rosa duvidou de sua explicação, seu cunhado tinha nos olhos um
brilho que ela começava a conhecer muito bem. Desde a chegada de John a
Whitam, este sempre levava Branca para passear pelo parque nessa mesma
hora.
—Retornarão logo — respondeu.
Nem um só gesto de Christopher indicou a Rosa que este
conhecesse essa informação.
—Aceitarei essa xícara de chá. — Sua mudança de parecer a pegou
de surpresa. Mesmo assim, encheu outra xícara e a entregou com mão
firme.
—Obrigado — disse ele, enquanto tomava assento a seu lado. Em
vista das circunstâncias, Rosa optou por sentar-se.
—Não se merecem — disse ela, com um fio de voz.
277
Durante os seguintes minutos, o silêncio reinou entre os dois,
enquanto se observavam com cautela e franco interesse.
Depois da partida de Andrew para a Espanha, Rosa perguntou a
Christopher sobre os motivos que este lhe dera para sua repentina viagem,
mas seu cunhado demonstrou uma insensibilidade que ainda a incomodava,
ao não responder a suas perguntas com clareza e rapidez.
Embora ela tentasse impedir a viagem de Andrew em busca da filha
de ambos, não conseguiu. E, depois de sua marcha, sentia-se ferida e cheia
de umas dúvidas que a encheram de um descuido que não havia curado
nem com a chegada de sua pequena Branca nem os cuidados que lhe
dispensava seu sogro.
Christopher intuiu cada pergunta que cruzou pela mente dela,
enquanto o olhava, mas, educada nas mais estritas normas, jamais se
atreveria a perguntá-las. Tomou o chá de um gole e depositou a xícara e o
pires sobre a bandeja, depois, acomodou-se na poltrona de pele, ao tempo
em que cruzava uma perna sobre a outra sem afastar seu inquisitivo olhar
do rosto feminino. De repente, Rosa desejou que John Beresford ou a
própria Ágata entrassem na biblioteca, para aliviar um pouco a tensão que
lhe provocava estar com o homem mais enigmático de quantos tinha
conhecido.
—Andrew estará bem — disse, de repente.
Os olhos dela cintilaram, ao escutá-lo. Se Andrew estava bem ou
não, só dependia de Deus e de sua misericórdia divina; por isso, a
banalidade do comentário lhe pareceu sem nexo.
—Rezo toda noite para que seja assim — respondeu, com certo
desconforto.
Christopher sabia que lhe devia uma longa explicação, mas a havia
posposto, confiando no breve retorno de seu irmão. Tinha-lhe devotado só
278
respostas curtas e evasivas sobre a decisão de Andrew de acompanhar o
embaixador espanhol a Madrid e agir como tradutor na comissão enviada à
Espanha para intermediar na luta.
—Se não estar aqui é por um motivo concreto que já lhe expliquei
em muitas ocasiões — continuou Christopher, com voz firme, mas sem
intenção de ofendê-la.
Rosa piscou uma só vez, enquanto o escutava, com atenção.
—Mas não deve temer por ele. Sua vida não corre perigo.
O comentário a enervou. Estar em meio de uma guerra era ter todas
as chances para uma morte horrenda, inclusive mesmo não compartilhasse
os ideais do conflito.
—Que fácil resulta pressupor algo assim da segurança de Whitam
— respondeu, com a voz um pouco alterada — não é certo?
—Admito que me sinto um pouco preocupado e, por isso, acredito
que seria interessante que mantivéssemos uma conversa sobre o assunto.
Intuo que, assim, ficaria muito mais tranquila — disse, sem afastar os olhos
dos dela, que resplandeceram, de forma intensa.
Perguntou-se se o motivo seria o aborrecimento ou a tristeza.
—Agora? — perguntou Rosa, incrédula — Quer que falemos agora,
depois de semanas de silêncio? Parece-me inaudito.
Christopher lhe sustentou o olhar inexpressivo.
Ela se acomodou na poltrona e olhou o vaso com flores do centro
da mesa, enquanto tentava retomar o controle de sua respiração. Se
seguisse olhando para seu cunhado, sentia que ia perder a compostura em
sua presença.
—Aquela noite estava muito alterada para se mostrar razoável, e
Andrew foi muito cortante a respeito.
—Cortante? — repetiu, com curiosidade — A que se refere?
279
—Ele não desejava que você saísse da Inglaterra sob nenhuma
hipótese.
Esse detalhe ficou bem claro, antes que seu marido partisse.
—Ele mesmo me deu essa ordem e não pensava em desobedecê-la,
mas o que anseio saber é por que decidiu intervir em um conflito que
desdenha. Andrés detesta a luta na Espanha, por isso, me parece ilógico e
contraproducente que tenha decidido fazer-se de intérprete para ambos os
bandos — arguiu, imersa em suas cortantes dúvidas — Não tem por que
fazê-lo.
Christopher se disse que Rosa tinha toda a razão em mostrar-se
suscetível.
—Sim, tem por quê.
—Ah, sim? — perguntou, intrigada.
—Pretende ganhar a confiança da rainha da Espanha.
Agora, sim, que ficou atônita e sem capacidade de reação. Durante
vários minutos, esteve olhando para Christopher muda de assombro.
—De María Cristina? — conseguiu perguntar, um momento depois,
em um tom de voz que raiava o ceticismo.
—Explicou-me que deseja limpar o nome de Lara e restaurar a
honra de sua família, e, para isso, deve intervir na luta a favor da regente.
Rosa fechou os olhos ante as quebras de onda de emoção que a
embargaram. Por que Andrew não lhe disse nada? Porque estava zangado
com ela pelos últimos acontecimentos, disse-se. Mas um profundo alívio a
alagou, fazendo-a soltar um suspiro longo e significativo.
Depois da chegada de John com Branca, a tensão que se respirava
em Whitam Hall havia minguado grandemente. Rosa sentia que lorde
Beresford a culpava pelo alistamento de seu filho mais novo, mas não a
fazia sentir incômoda por isso; justamente o contrário.
280
Mas não estranhava que ninguém assinalasse seus enganos, para
que Rosa se sentisse atormentada; mal podia respirar pela culpa que a
embargava e, até que Andrew retornasse, não deixaria de sentir-se como
uma pessoa que manteve uma atitude execrável.
—Nunca esperei algo heroico de sua parte — respondeu,
cabisbaixa.
Era insuportável sustentar o olhar de Christopher. Recordava muito
Alonso.
—A postura de meu irmão nestes meses é a consequência lógica da
insegurança que o faz sentir.
Rosa levou suas palavras de uma forma completamente distinta
como pretendia Christopher.
—Jamais lhe faltaria em modo algum. Não está em minha natureza
me mostrar vaidosa ou frívola.
—É a filha de um duque, e sua fila a permitiu ter tudo o que
desejava.
A frase parecia como uma acusação, e, assim, tomou Rosa.
—Sou neta de um duque, filha de um duque e afilhada de uma
duquesa. Acredita que devo me sentir envergonhada?
Não pretendia mostrar-se pedante, mas a atitude de seu cunhado a
irritava. Durante semanas, ele evitou falar com ela sobre Andrew. Rosa o
tinha exigido, suplicado, mas sem obter nada. E, agora, se mostrava como
um autêntico cretino.
Christopher meio sorriu, ante seu arranque de mau humor. Tinha as
costas tão rígidas que parecia uma lança.
—Meu irmão acredita que, a seu lado, se encontra em clara
desvantagem, e eu fui tão estúpido que aumentei sua insegurança com
minha defesa à sua forma de se comportar.
281
«Christopher a defendera frente a Andrew? Por quê?», perguntou,
estranhando.
—Como poderia ter aumentado sua insegurança, se eu, alguma vez,
lhe dei motivos para desconfiar de mim? — perguntou, com absoluto
desconcerto.
—Andrew não sente ciúmes, nem teme que se mostre cabeça de
vento com outros homens; sua insegurança está causada por sua educação.
Por ser filha de quem é.
Ela demorou um longo minuto em compreender as palavras de seu
cunhado.
O próprio Andrew lhe falara de seus temores, depois de um jantar
desastroso com o embaixador espanhol, em Whitam, mas Rosa acreditava
que sua insegurança estava motivada por outra causa.
—Por que se sente inseguro ante minha linhagem? — perguntou, de
improviso — Ele mesmo é filho de um marquês e não de um limpador de
lareira s. Isso não tem sentido.
Christopher se perguntou o mesmo uma infinidade de vezes. Desde
a adolescência, seu irmão possuía um encanto natural que conseguia
seduzir a qualquer. Perdoava-lhe quase tudo, sem importar a gravidade, por
isso lhe parecia tão falta de lógica a insegurança que Rosa lhe provocava.
—Segundo suas palavras, é muito perfeita. Seu comportamento
sempre é impecável. Rigoroso.
Rosa piscou, confusa, porque essas palavras, sim, a deslocaram.
—Meu comportamento é de tudo adequado. Não posso me mostrar
como uma descarada. Minha obrigação é honrar o nome de minha família.
Christopher suspirou. Tinha-a onde a levara com suas palavras.
—Andrew precisa da mulher que conheceu em Hornachuelos. A
moça de comportamento singelo que o fez perder a cabeça.
282
Rosa se sentia tão surpreendida que, se a acertassem, não tirariam
nenhuma gota de sangue.
Por que Andrew se empenhava em recuperar um tempo que já havia
passado?, perguntou-se, perplexa. Entre ela e a mulher que ele conheceu
em Hornachuelos, aconteceram muitas coisas que a mudaram de forma
drástica: uma maternidade, uma guerra...
—As mudanças que vivi são inevitáveis. Inclusive, ele mesmo não
é o que conheci em Córdoba.
Christopher negou com a cabeça de maneira eloquente.
—Um exemplo para que compreenda seu desgosto. Meu irmão
adoraria que lhe dedicasse uma canção. E mais, que a cantasse em público
em um jantar de gala.
Rosa afundou os ombros. Que lhe dedicasse uma canção?
Certamente, não entendia nada.
—Não sei cantar — admitiu, sem pudor algum — e não mataria de
tédio os convidados com um hobby tão comum e pouco transcendental.
—Também poderia dar uma bofetada em uma mulher para defender
o nome de Andrew, quando o chamassem de libertino.
Christopher rogou que suas palavras não se voltassem contra ele,
porque, se de algo se podia tachar seu irmão, era de libertino consumado.
Rosa piscou várias vezes, atônita pelos roteiros que estava tomando
a conversa .
Momentos atrás, estavam falando do alistamento de Andrew e,
agora, de que ela batesse em uma mulher inexistente.
—Jamais me rebaixaria a esbofetear ninguém. Não está em meu
caráter me mostrar como uma harpia belicosa e inculta.
Christopher soube que fio puxar para lhe mostrar o que Andrew
pretendia dela.
283
—Não agiria assim porque é filha de um duque? — provocou-a.
Rosa tomou ar, antes de dar uma resposta a seu mordaz comentário.
—Não agiria assim porque um olhar inteligente silencia a postura
mais enérgica e o protesto mais acalorado — respondeu com voz firme,
mas, no fundo, escandalizada — Para que nos manchar as mãos, quando
podem usar o intelecto de forma muito mais eficaz e contundente?
Christopher esboçou um autêntico sorriso. Estava desfrutando
muito daquela conversa . Era muito difícil encontrar uma mulher com uma
mente tão fina e cuidadosa.
—Ágata cantou uma tonadilha burlesca em um jantar que meu pai
ofereceu em sua honra. — Rosa o olhou, precavida — E deu um murro em
uma antiga amante despeitada que se mostrou insolente. — Os olhos de
Christopher brilharam com orgulho, ao recordar o incidente que levantou
tantas ampolas — Devo confessar que desfrutei muitíssimo com seu
comportamento tão afastado do protocolo.
Rosa abriu a boca para dizer algo, mas pensou melhor e optou por
fechá-la e meditar no que Christopher lhe disse.
—Tenta me advertir de que Andrés não se incomodaria nem um
pouco com um comportamento assim de minha parte? — raciocinou, ao
fim, depois de uma longa pausa — E lorde John Beresford tampouco?
Não podia acreditar. Bater uma antiga amante de Andrew?
Certamente que poderia fazê-lo; até deixá-la inconsciente...
—Em Whitam Hall, sempre pode ser você mesma — disse
Christopher, em tom confidencial — Embora seja filha de um duque ou
parente da própria rainha da Espanha.
Deus bendito! Agora, entendia.
284
—Poderá comportar-se com a mesma liberdade que em
Hornachuelos, e Andrew será feliz de recuperar a mulher pela qual se
apaixonou, perdidamente.
A mente de Rosa fervia de especulações. A responsabilidade pesava
sobre seus ombros de uma forma contínua, até o ponto de asfixiá-la.
—Mas eu não sei cantar! — exclamou, horrorizada.
Ele reprimiu uma ameaça de sorriso, ao ver sua cunhada tão aflita.
Tomando e descartando opções a toda velocidade.
—Rosa, presumo que tem uma boa direita e não tenho a menor
dúvida de que poderia utilizá-la, sem rubor algum, caso se apresentasse a
ocasião.
Ela tapou a boca com a mão, para conter a risada.
—Se Andrew for intervir por você em um conflito que detesta, é
justo que lhe corresponda com a mesma moeda. — Rosa fez um gesto
afirmativo — Que recupere a mulher que conheceu em Hornachuelos. Faça
tudo o que nunca faria como filha de um duque e, sim, como a mulher que
ama meu irmão. Predigo que será o homem mais feliz do mundo.
Já não esperou uma resposta por sua parte. Levantou-se e caminhou
para a porta que dava ao vestíbulo. Intuiu que Rosa precisava meditar na
conversa que haviam mantido e, com sua marcha, deu-lhe a oportunidade
de fazê-lo.
Rosa estava sumida em uma marejada de sentimentos que se
enredavam cada vez mais. Andrew lhe dissera como se sentia, mas ela
estava imersa em uma nuvem de normas, protocolo e regras. Ambos
mudaram, mas as palavras de Christopher abriram uma porta a um mundo
desconhecido que deveria cruzar pelo bem de seu casamento.
Embora não pensasse em cantar uma canção, embora sua vida
dependesse disso.
285
CAPÍTULO 27
Voltava para casa. Sentia-se exausto, mas feliz.
O conflito na Espanha seguia sangrento, mas o intercâmbio de
prisioneiros resultou eficaz e seguro. Parte da comissão inglesa, continuaria
durante uns meses em chão espanhol, mas até novas ordens, ele podia
retornar a casa.
Durante as semanas que passou tão perto da luta, tinha meditado,
profundamente, sobre a importância que dava a detalhes que, com o tempo,
resultavam insignificantes. Graças ao conflito no qual tomou parte como
tradutor, descobriu que o que realmente lhe importava na vida era sua
família.
Os grossos muros de Whitam Hall lhe pareceram à entrada ao
paraíso.
Ficou parado na escadaria da mansão, escutando o gorjeio dos
pássaros. Contemplou as nuvens que brincavam com o sol, escondendo-o, e
se deleitou com a música de piano que se ouvia no interior da casa.
Procurou a chave no bolso de sua calça militar e a colocou com cuidado na
fechadura. John estava acostumado a desgostar-se com ele e com seus
irmãos por usar chave própria. Alegava, enfaticamente, que o serviço
estava para abrir e fechar a porta, mas lorde Beresford ignorava que seus
irmãos e ele preferiam entrar e sair sem ser vistos; assim, Marcus não podia
lhe dar detalhes sobre as escapadas que estavam acostumados a
protagonizar de madrugada.
Mas isso fazia já muito tempo.
Justo quando se voltou para fechar a porta atrás de si, ouviu uma
nota mal tocada e uma risada infantil que se desculpava. Soube que sua
286
filha estava tocando o piano e, em vez de percorrer os passos que o
separavam do salão, ficou parado no vestíbulo, escutando às escondidas as
diversas risadas e comentários sobre a letra de uma canção.
Marcus apareceu no vestíbulo como se o pressentisse, mas lhe fez
um gesto com o dedo nos lábios para que não delatasse sua presença ao
resto da família. Aproximou-se com sigilo para a porta aberta e
contemplou, com olhos famintos, o espetáculo que se apresentava ante seus
olhos.
John estava sentado ao piano, com a pequena Branca a seu lado,
com as mãos sobre o teclado de ébano e marfim. O pequeno Chris estava
recostado sobre o tapete, muito perto da lareira apagada, e Rosa, sua Rosa,
estava de costas a ele, passando as folhas de uma partitura.
Ouviu a potente voz de seu irmão Christopher repreendendo seu
filho porque não emprestava a devida atenção, mas o menino estava muito
ocupado em lutar com uns cavalos de madeira. Percebeu o tinido de uma
colher, ao mexer uma xícara de porcelana, e supôs que sua cunhada Ágata
estava acrescentando leite e açúcar a uma reconfortante xícara de chá
fumegante.
Sentira tanta falta do chá!
Seu pequeno tesouro voltou a tocar as teclas e retomar uma melodia
inglesa que ele não ouvia desde que era um menino. Conforme ia escutando
debulhar a letra, foi ficando mais e mais perplexo.
A voz infantil tinha um timbre invejável e entoava com suma
correção, mas a canção era muito zombadora para que a interpretasse uma
menina tão pequena como Branca.
Levou a mão à boca, para reprimir uma gargalhada.
Indubitavelmente, o responsável pela letra era John Beresford, pois, quando
287
a menina se equivocou em uma palavra e cessou de tocar, ele voltou a
começar a canção com sua voz de barítono.
Deve ter rido em voz alta, porque Rosa olhou por volta da porta e,
de repente, ficou lívida.
Disse seu nome, e avô e neta detiveram a interpretação, de repente.
—Andrés! — voltou a exclamar Rosa, com a mão na garganta;
possivelmente, para conter os amalucados batimentos de seu coração, que
se desbocara ao vê-lo de pé na soleira de entrada ao salão.
—Filho!
Os brilhantes olhos de seu pai eram a melhor boas-vindas que podia
ter.
—Tio, tio! — O pequeno Chris se levantou do tapete para ir a seu
encontro, mas não foi tão rápido como Branca, que chegou um passo antes
que ele.
Tomou ambos os meninos nos braços e os fez girar pela habitação,
lhes provocando gargalhadas de deleite.
Rosa se aproximou deles, mas conteve o ímpeto de abraçá-lo, até
que Andrew deixou de dar voltas pelo aposento.
Soltou os meninos no chão com suavidade e ficou em frente a ela.
—Andrés...! Meu deus!
Ambos se olharam, sem piscar. Rosa estava repleta de alegria, ao
vê-lo ileso. Com apenas um arranhão na bochecha esquerda.
—Mas que bonita está!
Não se importou que a abraçasse, nem que fundisse sua boca com a
sua diante da família em um beijo tão intenso que a deixou tonta e repleta
de uma felicidade indescritível. Mas o pigarrear de John fez com que ele a
soltasse com relutância.
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Não era o momento de dar um festim com sua esposa, por mais que
ansiasse agarrá-la nos braços e levá-la ao dormitório nesse preciso
momento, para dar rédea solta à paixão que o afogava.
—Bem-vindo a casa, filho! — As palavras de seu pai o fizeram
desviar os olhos de Rosa para ele, mas sem mover-se do lugar. Seguia
segurando-a pelos ombros com firmeza, impedindo que pusesse distância
entre ambos.
Christopher o saudou de forma efusiva, e Ágata o abraçou ao
pescoço com alegria sincera.
—Que recebimento tão esplêndido! — disse, emocionado.
John estreitou sua mão e, seguidamente, atraiu-o para seu corpo
robusto para lhe dar um abraço de urso. Para Andrew, não ficou mais
remédio que soltar Rosa.
—A emoção me transborda ao ver você são e, por fim, em casa.
A voz de seu pai estava impregnada de um sentimento grato e vivo,
produzido pela volta de seu filho caçula ao lar familiar. Andrew vestia um
pouco desalinhado e tinha o cabelo bastante mais longo e claro, sintoma
inegável de que tinha gozado do sol espanhol.
Depois do efusivo abraço paterno, desabotoou a jaqueta e a lançou,
com certeira pontaria, para o sofá. Logo, desabotoou também as mangas da
camisa e as enrolou de qualquer modo. Nesse sentido, não havia mudado
nada, pensou John.
—Daria minha vida por um banho quente e uma xícara de chá —
disse a todos, com semblante risonho, como era habitual nele. Mas Ágata
se adiantou a seus desejos e já lhe trazia uma xícara fumegante que ele
bebeu de um gole.
—Direi a Marcus que lhe prepare um banho — se ofereceu
Christopher, com emoção contida.
289
Saiu do salão em busca do mordomo para dizer-lhe.
John não podia separar os olhos de seu filho. Andrew mudara muito
e não precisamente no físico. Na profundidade de seu olhar, tinha uma
resolução que não nunca vira, e da qual gostou muitíssimo.
—Ajudarei você — se ofereceu Rosa.
Os olhos do Andrew se cravaram nela, ao escutar suas palavras. Se
subisse com ele ao quarto, terminaria fazendo o amor com ela como um
louco, e todos saberiam.
Agarrou-a pela mão para sair com ela do aposento.
—Não pode ir e nos deixar assim ansiosos por saber algo de sua
estadia na Espanha — disse John, atônito.
—Pai — respondeu Rosa, com um amplo sorriso — Andrés nos
informará durante o jantar de tudo o que desejamos saber, não é, amor?
Se ela continuasse olhando-o assim, não responderia por seus atos.
Rosa lhe deu uma cotovelada carinhosa, para que respondesse a seu pai.
Mas Andrew estava saboreando suas palavras. Nenhum dos
pressente podia imaginar o que sentiu, ao ouvi-la chamar John Beresford de
pai.
Ela, sim, tinha muitas coisas que lhe contar.
—Dou minha palavra de que lhes informarei de tudo, durante o
jantar.
Branca se pegou a ele e colocou a mãozinha na de seu pai, que se
agachou para abraçá-la com infinita ternura. Cheirou o cabelo infantil e
fechou os olhos pelas gratas lembranças que foram à sua memória.
Era tão bom estar de novo em casa!
Finalmente, afastou a pequena de seu corpo uns centímetros, para
olhá-la, fixamente, nos olhos.
290
—Prometo descer muito em breve e lhe contar muitas coisas. —
Calou um momento, antes de continuar — Poderá esperar?
Branca lhe fez um gesto afirmativo com a pequena cabeça.
—Chris e eu esperaremos até intão — respondeu, com voz solene.
Andrew não pôde resistir ao impulso de beijar sua macia bochecha
nem de voltar a estreitá-la entre seus braços. Ver o rosto angélico de sua
filha era a maior bênção que podia receber.
—Acompanha-me? — As palavras foram dirigidas a Rosa.
Andrew se tinha elevado de sua postura de cócoras e lhe estendia a
mão com um brilho de desejo nos olhos. Ela a aceitou encantada, e ambos
saíram do salão compartilhando confidências, sem virar para trás. Subiram
a escada entre carinhos e beijos.
Quando chegaram ao quarto, Marcus terminava de ordenar o banho
e fiscalizava com absoluta discrição à roupa do armário, escolhendo alguns
objetos apropriados. Christopher lhe informou do caráter festivo que teria o
jantar pela chegada inesperada de Andrew. As cozinhas buliam de
atividade preparando as boas vindas ao mais jovem dos Beresford.
—Senti tanto a sua falta... — Ele voltou a beijá-la, intensamente,
sem se importar com a presença do servente, que se movia em silencio pelo
quarto.
—Tem que tomar um banho — recordou Rosa, enquanto lhe
desabotoava, um a um, os botões da camisa.
Andrew não cessava de beijá-la de forma ardorosa, e ela passou a
palma da mão pelo duro peito masculino. Delineou a curva das costelas e
seu ventre liso.
Ele gemeu, como se com seu roce lhe provocasse uma dor
insuportável.
291
—Marcus, já pode se retirar... — Mas o mordomo saíra do quarto
minutos antes, completamente sobressaltado.
Andrew a abraçou tão forte que Rosa temeu que lhe rompesse as
costelas.
—Amo você, Andrés. Não volte a me deixar sozinha nunca mais.
Ele não pôde lhe responder, porque sitiou sua boca com uma fome
desmedida. Rosa se apoiou em seu corpo firme e lhe rodeou o pescoço com
os braços, sem separar os lábios dos seus.
Agarrou-a nos braços e se dirigiu com ela para o leito, sem deixar
de beijá-la.
—Andrés, não... O que...
Não lhe permitiu continuar com a negativa.
Aprofundou o beijo e a apertou muito mais forte contra seu corpo,
até o ponto de lhe arrancar um gemido de prazer.
—Vou fazer amor com você agora mesmo.
—A água vai esfriar.
—Voltarei a pedir que a esquentem mais tarde.
—Não, espere... — Rosa se afastou e provocou que a soltasse —
Desejo tanto ou mais que você que faça amor comigo, mas o esperam lá em
baixo, e seria uma grosseria impacientá-los, sem um motivo válido.
—Fazer amor com você não é um motivo válido?
Ela sorriu de orelha a orelha.
—O melhor, mas não penso permitir que se atrase por minha culpa.
Andrew já se desabotoava os botões da calça azul escura.
—Você mesma está provocando o atraso com sua negativa.
—Andrés! — exclamou ela, quando ele ficou completamente nu —
Não tem vergonha. — Mas a recriminação foi dita em um tom de
brincadeira que o encantou.
292
Rosa não podia imaginar os horrores que tinha visto. A crueldade
com que os homens se atacavam. E, agora, só desejava perder-se entre seus
braços durante uns momentos.
—Estou disposto a fazer amor com você, e não poderá me deter.
Ela soube que não podia negar-se. Não quando havia sofrido e
chorado tanto por ele, quando temeu perdê-lo para sempre. Tê-lo a seu lado
era um sonho feito realidade.
—Então, me beije, canalha...
Quando entraram no salão, todos os olhares lhes demonstraram que
sabiam perfeitamente o que ocorrera entre os dois, na intimidade do quarto.
Rosa ficou vermelha escarlate, ao precaver-se do olhar faiscante de sua
cunhada Ágata, mas Andrew mostrou seu melhor aspecto e piscou um olho
a seu pai, que teve que morder o lábio, para que não o delatasse um sorriso
cúmplice. Devia mostrar-se severo, mas com seu filho caçula sempre lhe
custava um verdadeiro esforço.
Seguia sendo um vadio incorrigível.
Andrew se precaveu de que a cadeira alta de Branca estava ao lado
da sua. Um detalhe que agradeceu, enormemente, porque ansiava passar
todo o tempo possível com a menina de seus olhos.
Cada comensal tomou assento em seu respectivo lugar, salvo Rosa,
que se sentou justo em frente a ele. Ante o olhar inquisitivo dele por não
estar a seu lado, ela o olhou de forma maliciosa, como se guardasse um
segredo que ninguém conhecia e que não pensava em revelar de momento.
O jantar transcorreu entre risadas, anedotas sobre o insofrível sol
espanhol e o vinho dos botequins, que derrubava os homens com mais
contundência que as balas do inimigo.
293
Andrew brincou com Branca entre bocado e bocado. A menina o
olhava encantada e atenta a cada palavra que saía de sua boca. Ágata não
cessava de sorrir, e Rosa, sua Rosa, tinha o semblante de alguém que, na
vida, não anseia nada mais que viver esse momento. Valia participar de
uma guerra, se a recepção era assim de espetacular.
Depois das sobremesas, as crianças se retiraram, acompanhados de
lady Jane, que foi à sala de jantar, para felicitá-lo por sua volta. Marcus
deixou a bandeja com o café no centro da mesa, assim como uma das
melhores garrafas de brandy das adegas de Whitam Hall.
—Renderam-se os carlistas? — A pergunta de John conseguiu que
Andrew afastasse os olhos de sua mulher, e olhasse para seu pai, que
esperava sua resposta com interesse.
—O exército de María Cristina está tendo reversos importantes.
Todos o escutavam, com grande atenção.
—Sofreu derrotas graves e decisivas em Artaza, onde os carlistas de
Zumalacárregui venceram Jerónimo Valdés. Mas os cristinos estão
preparando uma grande ofensiva. As tropas leais à rainha partirão de
Aclama para ocupar o alto de Arlabán, que, atualmente, está em poder dos
carlistas. Comandará as tropas o general Luis Fernández da Córdoba e
contarão com o apoio da Legião Auxiliar Britânica13
. Também a Legião
Francesa e unidades sob o mando de Baldomero Espartero. Ele se dividirão
em três avanços para conter e envolver o inimigo por várias frentes.
—Essa é uma excelente notícia — disse John — Pode significar o
desenlace e o final da luta.
Andrew pensava igual a seu pai.
13 A Legião Auxiliar Britânica era o corpo militar de voluntários formado em 1935 pela Grã Bretanha a
pedido do governo da regente da Espanha, María Cristina de Borbón, para apoiar as tropas liberadas
durante a primeira guerra carlista”.
294
—Voltará para a luta? — A pergunta de seu irmão fez com que
Rosa contivesse o fôlego. Não tinha ponderado essa possibilidade.
Retornar Andrew à luta? Só de pensar nisso, ficava doente, pensou,
com os olhos obscurecidos pela preocupação. Mas o gesto negativo de seu
marido fez com que a angústia que a embargara, instantes antes, remetesse,
de repente.
—O duque de Fortaleza intercedeu pessoalmente ante a Coroa para
obter minha volta à Inglaterra. Se voltarem a necessitar, novamente, meus
serviços como tradutor, ele mesmo reclamará minha presença, embora
duvide que o faça.
Rosa inspirou tão profundamente que quase se afogou com seu
próprio ar. Andrew ficava em Whitam! Sentia-se eufórica.
—Então, tudo terminou? — A pergunta de seu irmão mais velho o
devolveu à realidade.
—O primeiro-ministro me ofereceu um posto como ajudante e
supervisor do embaixador inglês na Espanha. O oferecimento está
avalizado pelo coronel John Gurwood, embora me asseguraram que
poderia realizar a supervisão de Londres.
John pensou que era o sonho de qualquer pai, um de seus filhos
metido em política! E, de repente, se deu conta do quanto benéfica foi à
presença de Rosa na vida de Andrew. Não só o represara, mas também
conseguia que o rebelde de seu filho tomasse as rédeas de sua existência e a
dirigisse de forma extraordinária.
John se sentia muito orgulhoso. Andrew na política! Não podia
acreditar.
—Que fantástica notícia! — exclamou Ágata, enquanto aplaudia
com ardor.
295
Os olhos de Andrew se cravaram em Rosa, e, nesse momento,
agradeceu por tê-la sentada diante dele, porque assim não se perdia uma só
expressão de seu formoso rosto.
—O que pensa? — Para ele, era vital conhecer a opinião dela.
—É o que realmente deseja?
Sua voz continha uma ansiedade que ele entendia bem.
—Como filho caçula, minha opção era a Igreja — explicou
Andrew. Rosa mordeu o lábio, para conter um sorriso, porque este não
servia para clérigo — Ou a política.
—É muito descarado para se dedicar ao ministério espiritual —
soltou Christopher, de repente.
Andrew o olhou, com uma sobrancelha elevada, ante seu
comentário insolente.
—E você que não tem casa? — perguntou a seu irmão, com
sarcasmo.
—Andrés! — Esperava a exclamação de Rosa, por isso, esboçou
um sorriso cúmplice, antes de lhe oferecer uma breve explicação.
—Durante muito tempo, Arthur e eu sonhamos em perder de vista o
frio do Christopher. — Andrew ficou meditando em silêncio, como se, de
repente, se precavesse de algo — Possivelmente, por isso, Arthur segue na
Espanha, para não lutar com a arrogância e soberba do herdeiro de Whitam,
mas, contrariamente ao que pensávamos quando se casou com Ágata, passa
mais tempo em Whitam que em seu próprio lar.
—Andrew! — Agora a exclamação de surpresa proveio do próprio
John.
Com um olhar o ameaçou para que contivesse a língua, mas
Andrew subtraiu importância à advertência paterna.
296
—Como está Arthur? — perguntou Ágata, para aliviar o momento,
embora Christopher não fizesse caso da queixa de seu irmão.
Continuou saboreando o brandy com rosto agradado.
—Anda à caça da sobrinha de sir George Villiers, o embaixador
inglês em Madrid.
John conhecia as intenções de seu filho, porque o próprio Arthur as
revelara, antes de partir para Granada.
—Depois da reunião que mantive com o coronel e o embaixador no
palácio dos Silêncios, passei dois dias no imóvel que sir George Villiers
tem em Salamanca.
—Pensa em retornar logo? — Ante a pergunta de John, Andrew
encolheu os ombros.
—Não é perigoso que fique na Espanha? — inquiriu Rosa,
pensativa.
Ele negou com a cabeça.
—As primeiras insurreições foram as de agrupamentos locais de
Voluntários Realistas14
, e tiveram muito pouco êxito, exceto no norte, onde
conseguiram controlar as cidades de Logroño, Pamplona e Aclama, embora
por pouco tempo. As sublevações não têm o respaldo do exército.
—É um alívio saber disso — disse John — Mas me intranquiliza
que seu irmão siga lá, se a luta se recrudescer.
—Arthur é inteligente — respondeu Christopher — Se o centro da
Espanha se voltar instável, irá para o sul, a Ronda ou inclusive a Granada.
Poderá retornar pelo cabo de Paus.
14
“O Corpo de Voluntários Realistas foi uma milícia que Fernando VII organizou em 10 de junho de
1823, depois da queda governo liberal na Espanha. Tinha como objetivo evitar o restabelecimento do
governo constitucional e lutar contra os elementos liberais. Dissolveu-se, oficialmente, em 1833, e uma
parte de seus integrantes se uniu às forças do infante Carlos María Isidro, durante a primeira guerra
carlista”.
297
John meditou as palavras de seu primogênito e confiou que fosse
assim. Ele lutara na guerra da independência contra Napoleão e conhecia o
selvagem que se voltavam os homens, quando lutavam. Rezou com todas
suas forças, para que Arthur retornasse logo ileso.
Olhou para seu filho caçula e percebeu como esgotado estava.
—Vá descansar, Andrew. Amanhã, continuará nos informando de
tudo. Parece exausto, e nós podemos conter nossa impaciência até então.
Ele seguiu o conselho de seu pai acompanhado por Rosa, que se
despediu de todos com um gesto de mão. Mas Andrew não tinha intenções
de dormir, mas, sim, de voltar a fazer amor com sua esposa sem descanso.
Não podia mover o braço. Pela escuridão do quarto, supôs que
devia ser ainda de madrugada e, em parte, se envergonhou por cair rendido
sem fazer amor com Rosa, de novo, como era sua intenção. Tinha-a
esperado no leito, mas estava tão extenuado que não se deu conta de
quando adormeceu nem de quando ela se meteu entre os lençóis.
Custava-lhe mover-se no leito. Tentou virar-se e, então, se precaveu
que a pequena Branca estava dormindo entre ele e Rosa e lhe esmagava o
braço com seu corpo. A intromissão infantil, mais que lhe incomodá-lo,
arrancou-lhe um sorriso de sorte.
Virou-se, com cuidado, para não despertá-la, e a deslocou para o
travesseiro. A menina seguiu adormecida, sem dar-se conta de nada. Rosa
se removeu, ao receber um golpe de um braço da pequena, mas tampouco
despertou, simplesmente soltou um longo suspiro e seguiu quieta, na
mesma postura.
Andrew afastou um cacho de cabelo negro do rosto de Branca e o
colocou atrás da orelha. Na escuridão do quarto e em completa placidez, o
298
rosto de sua filha lhe pareceu ainda mais bonito. Colocou o braço em cima
da cintura de Rosa, que, por instinto, se pegou mais às costas de Branca.
Andrew fechou os olhos e inspirou longamente, antes de voltar a cair em
um sonho profundo.
Tinha entre seus braços o que mais amava no mundo.
299
CAPÍTULO 28
O peculiar som das cortinas, ao serem abertas com certa rudeza, o
fez levantar a cabeça dos macios travesseiros. Andrew piscou várias vezes,
para limpar o torpor. Estava sozinho na cama e ignorava em que momento
as duas mulheres de sua vida saíram da habitação. Marcus acabava de
virar-se e se dirigia, com cerimônia, para o closet.
—Volte a correr a cortina — ordenou Andrew, com voz
estrangulada — ou é um homem morto. — O mordomo resmungou entre
dentes, ao escutar a áspera ordem. Felizmente, estava acostumado a esse
tipo de vocabulário por parte de Andrew e também a não lhe fazer caso, na
maioria das vezes.
—Esperam-no no salão — foi sua cortês resposta. Marcus tirou do
armário uma camisa branca perfeitamente engomada e uma calça de
montar.
Ele bocejou, sonoramente. Parecia-lhe que tinha dormido vinte e
quatro horas seguidas. Sentia os músculos relaxados e o coração tranquilo.
—Lady Beresford e a pequena Branca esperam há mais de trinta
minutos. Estão ansiosas, segundo suas palavras, para sair a cavalgar em sua
companhia.
—Que horas são?
—As dez menos quarto.
Essa informação conseguiu que Andrew se incorporasse do leito de
um salto.
—Tão tarde?
—Temo que é uma hora algo incomum — assentiu Marcus.
300
Andrew se dirigiu para o jarro que o mordomo enchera com um
pouco de água e, nos seguintes vinte minutos, se dedicou ao trabalho de
assear-se e vestir-se, antes de descer à sala de jantar.
Por cima de seu jornal, John Beresford olhou para sua nora, que
repreendia, de forma carinhosa, Branca. A menina golpeava a xícara de
chocolate com a pequena colher, mostrando, assim, a impaciência que
sentia. Levavam duas horas esperando que Andrew aparecesse à sala de
jantar familiar, mas, ante seu atraso, parecia que teriam de esperar um
pouco mais.
—Querida, termine o chocolate.
Branca voltou a segurar a xícara e a levá-la aos lábios, para beber o
último gole que restava, antes de deixá-la, de novo, em seu lugar. Andrew
entrou no aposento com um sorriso de desculpa.
—Sinto ter adormecido.
John entreabriu os olhos, ao tempo em que deixava o jornal dobrado
a um lado da mesa.
—É incrível que não o tenha despertado o escândalo que montou o
pequeno Chris, quando seu irmão e Ágata o levaram de Whitam, na
primeira hora da manhã.
—Espero que não partiram a em razão de minhas palavras de ontem
— meio que se desculpou Andrew.
—Por certo, foi um pouco grosseiro ao dizer isso — espetou John,
com voz autoritária.
—Pai, nem imagina o que significa suportar seu frio aborrecimento.
Andrew se aproximuo de Rosa e a saudou com um beijo nos lábios
que durou mais tempo do que o permitido para um beijo matinal dado em
301
presença de John. Branca lhe deixou um rastro de chocolate na bochecha,
quando o beijou e, surpreendentemente, ninguém disse nada.
—Está preciosa. — O galanteio era dirigido à pequena Branca.
Andrew pegou a xícara de café que Marcus lhe oferecia e levou a
boca um croissant crocante. Tomou o café da manhã de pé.
John suspirou, resignado. Seu filho seguia com seus costumes.
Continuava saltando todas as normas em cada ocasião que se apresentava, e
o café da manhã dessa manhã não era uma exceção.
—Sabe que me desgosta que esteja de pé, enquanto outros estão
sentados à mesa.
Andrew bebeu o café de um gole e se limpou com o guardanapo,
antes de responder a seu pai.
—Sei, mas não quero atrasar mais o passeio com minhas
encantadoras mulheres. Penso em desfrutar desta maravilhosa manhã no
parque e já levo atraso mais que suficiente.
John fez um gesto negativo, ao ouvir sua explicação, mas não disse
nada.
—Estou preparado.
Branca foi primeira em saltar da cadeira e correr para os braços de
seu pai, que a levantou, com alvoroço. Mas, quando olhou para Rosa, ficou
boquiaberto, de surpresa. Mãe e filha foram vestidas igual a ele. Calça
negra, colete cinza e camisa branca. Estivera tão concentrado em tomar o
café da manhã que não se fixou em seu traje.
—Pensa em cavalgar assim?
Rosa olhou sua roupa e sorriu, maliciosa.
As calças que tinha mandado confeccionar ficavam bastante bem,
embora justas. A camisa branca com babados nos punhos e no peito lhe
dava um ar de bandoleira, que a faixa vermelha ajudava a acentuar.
302
Tinha pegado emprestado um colete de Andrew do qual gostava de
muito e que se parecia bastante ao que ele vestia essa manhã. Além disso,
recolheu a longa cabeleira em um rabo bastante singela, mas que resultava
muito cômodo.
—O pai não se importa — disse ela, com um brilho nos olhos, que
Andrew pensou que poderia lhe derreter os ossos.
—Não está muito bonita? — A voz de Branca fez com que
desviasse os olhos de sua esposa para a pequena.
Bonita era pouco, Rosa estava espetacular, pensou Andrew. Mas
não podia sair para cavalgar com aquelas calças, porque ele cairia do
cavalo, ao não poder afastar os olhos dela; daquelas curvas que o
deixaremos louco.
—Retornaremos logo, pai. — Rosa já se inclinava para John, para
lhe dar um beijo na bochecha.
Andrew a seguiu para o vestíbulo, mudo de assombro. Viu-a vestir
as luvas e pegar a capa que Marcus lhe estendia. Depois, voltou-se para ele,
sem que seus olhos deixassem de brilhar. Estendeu as luvas a Branca e lhe
atou a cinta da capa para ajustá-la ao pescoço.
A pequena seguia nos braços de seu pai.
—Esta noite temos que assistir a um jantar em casa do capitão
Damon. — Este era íntimo amigo de John — Deseja celebrar sua volta do
fronte com um jantar formal, e seu pai aceitou em seu nome.
Andrew seguia mudo, observando os movimentos de Rosa. Apesar
de levar a capa negra, podia vislumbrar perfeitamente sua silhueta com as
calças justas. Tragou o nó que sentia na garganta.
—Já cavalgou vestida assim? — perguntou.
Ela negou com a cabeça, e ele suspirou, profundamente aliviado.
303
—Prometi a John que somente o faria nesta ocasião. Por você, para
agradá-lo.
Ele se fazia um montão de perguntas. Meses atrás, Rosa se negara
que Branca cavalgasse com calças e, agora, se encontrava com a grata
surpresa de vê-la vestida assim.
—Branca, querida, importa-se de pedir à cozinheira umas bolachas
de ameixa para o caminho? — pediu Andrew e a baixou ao chão.
A menina se apressou a cumprir sua petição e saiu correndo em
direção às cozinhas.
—Por quê? — perguntou, quando ficaram sozinhos.
Estava intrigado. Parecia-lhe inaudito que sua esposa levasse calças
e o cabelo recolhido daquela forma descuidada. Estava arrebatadora, mas
ansiava conhecer o motivo.
Ela o olhou, completamente entusiasmada.
—Porque desejo lhe demonstrar algo. — O coração do Andrew
palpitou com violência dentro de seu peito — Sou a mesma mulher que
conheceu em Hornachuelos e se tiver de vestir calças para convencê-lo
disso...
Deixou o resto da frase sem concluir.
Andrew se aproximava dela, com lentidão. Observando seu rosto, à
medida que lhe explicava o porquê de sua mudança radical. Sustentava-lhe
o olhar de forma serena, com determinação. E não se moveu, apesar de que
lhe tremia o joelho esquerdo.
Nas semanas em que Andrew estivera longe, combatendo, havia
sentido o maior medo de sua existência, e esse terror justificado a perdê-lo
a fizeram chegar a uma conclusão fundamental: não esbanjar o tempo nem
as energias em convencionalismos. Ele queria recuperar a mulher pela qual
se apaixonou, e ela jurou que lhe daria. Compreendeu que saltar algumas
304
normas de etiqueta não supunha um descalabro em sua existência,
justamente o contrário; poderia desfrutar da liberdade, sem a pressão nem a
rigidez do protocolo, ao menos quando estivesse a seu lado.
E essa manhã começava o princípio de sua liberação.
—Sinto-me imensamente feliz — disse Andrew, com a voz cheia
de paixão.
Ela se colou a seu corpo, excitando-o, sem intenção.
—É maravilhoso pertencer a sua família. — A voz dela soou
candente, sensual e cheia de uma emoção que o embargou por completo —
Vou ser muito feliz a seu lado e vamos criar um montão de crianças
maravilhosas aqui em Whitam.
Andrew pôs as palmas das mãos em seus ombros, estava a ponto de
beijá-la, mas, se o fizesse, já não poderia parar. E ir montar se iria ao diabo.
—Está tentando me dizer que está grávida? — O brilho de seus
olhos se intensificou com a pergunta.
Rosa fez um gesto negativo que levou a decepção às pupilas de
Andrew.
—Você gostaria que estivesse? — perguntou, à sua vez.
Ele afirmou várias vezes e de forma contundente.
—Desejo um montão de meninas tão formosas e inteligentes como
Branca. Entre dez e doze acredito que seria uma cifra aceitável. — ficou
um momento calado, como se meditasse — Mas me conformarei com seis
ou sete.
Rosa arregalou os olhos. Acreditava que não tinha ouvido bem.
—Tantas? — perguntou, para provocá-lo.
A mão dele a segurou pela nuca e foi atraindo-a muito devagar, sem
piscar, para não perder o amor que refletia o rosto dela, ao olhá-lo.
—Todas as que queira me dar.
305
—Nenhum varão? — atreveu-se a perguntar Rosa.
Andrew negou, repetidamente, com a cabeça.
—Não posso me arriscar a ter um que se pareça com o tio
Christopher ou a Arthur. Ficaria louco e viveria o resto de meus dias me
amaldiçoando por isso.
Rosa soltou uma gargalhada, pela insólita resposta.
—Por que é tão maravilhoso? — disse-o com uma ansiedade que
lhe provocou um frio no estômago.
—Porque amo você — respondeu ele, simplesmente.
Rosa inspirou fundo, sem afastar os olhos dos dele.
—Diga-me isso de novo, porque cada vez que o faz, sinto que me
enche de força e coragem para enfrentar o que quer que seja.
306
EPÍLOGO
A carruagem continuava seu percurso com seus dois ocupantes em
completo silêncio. Andrew continuava com o olhar cravado em Rosa que,
envolta em sua capa de seda, olhava as luzes do porto, enquanto as rodas
giravam sobre a pavimentação cinza. O pequeno farol de gás projetava uma
tênue luz que iluminava o rosto feminino e o fazia brilhar sob a lua. O
decote do vestido tinha a renda descosturada na parte esquerda e um rasgo
na cintura que já não tinha acerto.
Mas Rosa não estava zangada com ele, apesar de ser a causa de seu
desalinho.
O jantar em Blandford Abbey foi muito interessante, para não dizer
insólito. Durante o jantar, Rosa esteve sentada em frente a ele, por petição
dela, embora Andrew ignorasse o motivo, mas, quando sentiu seu pé
deslizar-se por sua panturrilha, na metade do jantar, soube a causa dessa
mudança de lugar. Ao princípio, pensou que fosse um roce acidental, nada
na postura dela indicava o contrário, pois Rosa seguia conversando com o
comensal que tinha a sua direita com rosto imperturbável e com toda sua
atenção posta na descrição dos puros-sangues árabes. A segunda ocasião
em que sentiu o deslizamento do pé feminino sofreu um sobressalto que
quase o fez atirar a taça de vinho. Dessa vez, fora muito mais ousada, e
seus dedos lhe roçaram a virilha, provocando uma ereção extremamente
dolorosa. Mas Andrew se desforrou com acréscimo pelo jogo que ela
iniciara, e o resultado era o desalinho que, agora, mostrava na roupa e no
cabelo.
—De verdade não está zangada comigo?
Rosa o olhou e mordeu o lábio inferior, antes de lhe responder.
307
—Muitíssimo — disse com olhos brilhantes — Mas por outros
motivos que nada têm a ver com o que imagina.
Ele imaginava muito mais do que ela acreditava.
Os carinhos que trocaram no aposento onde guardavam as capas e
os chapéus foi memorável, mas muito insatisfatório, porque não pôde dar
rédeas soltas à paixão que o consumia. Passou toda a velada excitado,
desejando retornar a Whitam para fazer amor como um louco durante toda
a noite.
—Lamento haver rasgado seu vestido — se desculpou, com
sinceridade.
Ela baixou as pálpebras para olhar o decote.
—Penso em fazer que me pague, pelo menos, uns quantos vestidos
de festa.
—Então, não está zangada? — voltou a perguntar. Sua resposta lhe
importava muitíssimo.
Rosa o olhou, com as pupilas brilhantes de paixão.
—Não pode começar algo, se não tiver intenção de terminá-lo — o
repreendeu, mas com um tom de voz tão sensual que conseguiu lhe acelerar
o pulso e a respiração.
Andrew inspirou com força, e, ela, ao escutá-lo, abandonou seu
lugar na carruagem e se sentou nos joelhos dele, ao tempo em que
levantava a saia com claras intenções de provocá-lo.
Esse descaramento feminino gostava e o martirizava por igual.
—Busca uma compensação? — disse ele, com uma voz que soou
estrangulada; ela riu, em resposta.
—Uma dúzia, mas me conformarei com um incentivo, antes de
chegar em casa.
308
Andrew a fez dar a volta e a sentou sobre seus joelhos de costas a
ele. Acariciou-lhe as coxas acetinadas com a palma quente.
—Excita-me que não leve as meias.
Em realidade, tudo nela o estimulava, provocava-lhe uma paixão
extrema.
Rosa não respondeu, porque a mão dele se deteve no vértice de suas
coxas, enquanto metia a outra no decote de seu vestido, lhe rasgando ainda
mais a renda.
—Adoro tocar você, cheirar.
O fôlego dele lhe acariciou a base do pescoço e lhe provocou
centenas de cócegas.
—Recoste sobre mim, para que possa lhe dar a compensação que
anda procurando há horas. — Ela obedeceu, submissa.
Apoiou as costas no robusto torso masculino, e, ao fazê-lo, ele pôde
tocá-la de forma mais íntima.
A mão de Andrew acariciou seu púbis, coberto pelas finas calcinhas
e, com os dedos, lhe beliscou o mamilo até ficar o ereto. Rosa tinha
começado a ofegar, enquanto desfrutava das carícias que lhe prodigalizava.
Quando introduziu seus dedos sob o tecido, arqueou as costas e abriu mais
as pernas. Ele começou a tocá-la de forma tão suave que ela teve que
levantar os quadris para manter o contato.
—É preciosa — disse Andrew ao ouvido, quando a ouviu gemer de
forma entrecortada — E um vulcão em erupção, que abrasa tudo o que
toca.
A mão dele se retirava de seu centro, para voltar, instantes depois, à
carga, deixando-a louca. Andrew aumentava seu desejo a um ritmo
frenético.
309
—Agora mesmo, cheira a ambosia. O néctar doce que estou
impaciente por saborear...
Deslizou a língua pela base do pescoço e lhe lambeu o lóbulo da
orelha, excitando-a.
—Penso em fazer amor com você durante toda a noite. Estarei
dentro de você até que não possa suportar mais. E, então, quando me
suplicar...
—Andrés... — protestou, com um fio de voz — Fala... Muito!
Esmagou a mão dele com a sua, para mantê-la quieta, mas Andrew
utilizou os dedos para lhe acariciar o clitóris e, então, tudo estalou a seu
redor.
Enquanto as quebras de onda de prazer passavam, ele seguiu lhe
sussurrando palavras formosas ao ouvido.
Quando Rosa desceu da carruagem, Andrew reprimiu um
impropério. Parecia uma lavadeira que acabou de derrubar-se na praça do
mercado por uma hortaliça. Antes de entrar, ela alisou o vestido, como se
acreditasse, realmente, que poderia recompor seu aspecto, embora se visse
adorável, ao tentar.
—Estou decente?
Andrew se negou a responder com sinceridade, porque, se o fizesse,
ia criar um problema. Rosa continuava arrumando o cabelo, solto e
desgrenhado. Subiu o decote e tentou esconder o rasgo da renda.
Agarrou a mão que lhe oferecia para subir a escada de entrada à
mansão, mas, antes de tocar a aldrava, Marcus abriu a porta e a manteve
aberta para que entrassem.
310
—Lorde e lady Beresford, esperam no salão — anunciou com voz
solene, como era habitual nele.
Andrew suspirou. Não gostava nem um pouco atender a visita de
seu irmão Christopher, porque o que realmente desejava era deitar Rosa na
cama e fazer amor com ela até o dia seguinte. Lamentou que o pai de
ambos seguisse de visita em Crimson Hill, com o duque de Arun. Sem ele
em casa, não ficava mais remédio que atendê-los de forma pessoal. Devlin
Penword tinha celebrado um jantar formal, e sua irmã Aurora insistiu muito
que John assistisse, até perdendo o jantar oferecido pelo capitão Damon.
Mas seu pai era um homem de muitos recursos: apresentara seus respeitos
em Blandford Abbey e, depois, partiu rumo à casa de sua filha Aurora. E,
desse modo, contentou os dois anfitriões.
Ágata abraçou Rosa inclusive antes que esta chegasse ao centro do
salão.
—Alguém parece ter sofrido um acidente. — O comentário de
Christopher sobre a aparência de sua cunhada fez com que Rosa voltasse a
examinar seu traje, mas além do rasgo, tudo parecia estar bem.
Ela não podia saber que, sem o amparo da capa, tinha uma
aparência caótica e desordenada. Algo incomum nela.
—Enganchei o vestido em uma das figuras de ferro que tanto
abundam em Blandford Abbey — explicou, sem convencer, com suas
palavras, a nenhum dos ali presentes.
Christopher arqueou as sobrancelhas, ao escutá-la. E, ao ver o
sorriso pedante no rosto de seu irmão mais novo, soube qual foi à figura
que lhe destroçou o bonito vestido.
—Tem um telegrama do comando de Madrid. Trouxeram-no faz
uns trinta minutos.
311
Rosa levou a mão à garganta, para deter os batimentos de seu
coração. Não queria nem pensar na possibilidade de que Andrew tivesse
que retornar à frente.
Ele agarrou o papel dobrado e o leu com atenção. Os segundos que
se passaram a seguir resultaram muito longos para as três pessoas que
esperavam e a entrada de John na sala, seguido de lorde Justin Penword,
não desfez o mutismo.
John olhou para seus filhos e suas noras e, ao fixar o olhar em Rosa,
acreditou que seus olhos o enganavam.
—O que lhe ocorreu? — perguntou.
Parecia-lhe inaudito que sua nora estivesse no salão com
semelhante aparência. Não era próprio dela. Rosa era sempre o paradigma
do decoro e o recato.
—Andrew recebeu notícias da Espanha — respondeu ela, sem
afastar os olhos de seu marido e sem precaver-se da pergunta que lhe
formulou seu sogro sobre seu aspecto.
Respirava com muita dificuldade.
—Alonso de Lara foi sequestrado por uma guerrilha burguesa.
Pedem um resgate de cinquenta mil reais para liberá-lo.
—Capturado por uma guerrilha? — repetiu Rosa, enquanto Ágata
continha um gemido de horror.
Mas o sorriso de Andrew a deslocou por completo. O que
significava aquela amostra de diversão ante uma notícia tão terrível?,
perguntou-se.
—É a guerrilha que lidera Aracena de Velasco, a filha do conde de
Ayllón.
Rosa piscou ainda mais confusa. Aracena e Isabel eram suas mais
íntimas amigas e fazia muito tempo que não sabia nada sobre elas. Ambas
312
embarcaram para a Inglaterra procurando o pai que desconhecia sua
existência.
—A cunhada de meu irmão Jamie comanda uma guerrilha? Já! Esta
sim que é boa — exclamou o herdeiro de Arun.
—Aracena de Velasco é cunhada de seu irmão? — Rosa fez a
pergunta, sem compreender absolutamente nada. Isabel casou com um
inglês?, perguntou-se atônita.
Justin a olhou com interesse, mas foi John quem respondeu:
—Dona Isabel de Velasco contraiu núpcias com lorde Jamie
Penword, irmão de Justin e cunhado de minha filha Aurora.
Rosa inspirou com força. Isabel vivia muito perto dela. Por que
ninguém disse nada? Porque ignoravam que eram amigas. Isabel, casada!
—Vive perto daqui? — atreveu-se a perguntar.
—Em Crimson Hill — respondeu Justin, adiantando-se a John.
Rosa fechou os olhos, porque a mansão do duque estava muito
perto de Whitam. Mas não tinha visto sua amiga, quando assistiu a um
jantar em sua honra após retornar de Sevilha.
—Não a vi, quando visitei Crimson Hill — alegou, em voz muito
baixa.
—Meu irmão Jamie e sua esposa estão na Escócia — explicou
Justin, com voz enérgica — embora presuma que retornarão logo.
Por isso, não tinham se encontrado.
—Alonso deve estar furioso — disse, de repente, Andrew.
Furioso era dizer pouco, pensou Rosa. Devia estar frenético e
irritado.
—E o que isso tem que a ver com você? — A pergunta foi
formulada Ágata, que seguia analisando o conteúdo do telegrama.
313
—O general Francisco José de Santillana e Murillo me oferece a
oportunidade de negociar o resgate. Como familiar de Alonso de Lara,
acredita que tenho não só o direito, mas também a obrigação de ajudá-lo.
—Não pode ser! — exclamou Rosa, horrorizada.
Andrew não podia retornar a Espanha nem intervir em um resgate,
embora o prisioneiro fosse seu próprio irmão. Mas não pôde objetar nada,
porque, no vestíbulo, se ouviram, de repente, uns gritos irados. Era a voz de
Arthur e a de uma desconhecida.
John levou a mão ao peito, ante sua intuição.
—Justin, me sirva um conhaque, por favor.
—Pai! Encontra-se bem? — Depois das palavras de Christopher,
todos os olhos se dirigiram da porta que comunicava com o vestíbulo ao
rosto de John, que tinha empalidecido por completo.
Uns instantes depois, uma moça pequena fez sua entrada no salão,
empurrada por um Arthur de rosto iracundo.
—Volte a dizer algo e juro que lhe arrancarei a língua! — a
repreendeu, com voz grave e áspera.
Ela se voltou para ele com olhos que despediam um fogo abrasador.
—Nunca, jamais volte a me dirigir a palavra! Porque não respondo
por meus atos.
Todos no aposento olhavam a cena como se observassem uma peça
de teatro. Arthur foi diretamente para a mesinha onde estavam às bebidas e
se serviu uma generosa ração de uísque, que tomou de um gole.
John olhava sem piscar para a moça que ficou de pé junto à
poltrona de pele. Por sua postura, intuía que não desejava estar ali. Vestia-
se de forma um tanto estranha, com um chapéu que lhe cobria toda a
cabeça e parte dos ombros.
—Arthur, o que...?
314
John foi incapaz de continuar a frase, quando seu filho se voltou
para ele. Tinha um olho arroxeado, o lábio inferior partido e os nódulos da
mão com que sustentava o copo de licor com feridas que deviam ter
sangrado.
Arthur olhou para seu pai, que lhe sustentava o olhar com uma
pergunta nos olhos.
—Boa noite, pai, presumo que não esperava ver-me. — John seguia
olhando a moça, com interesse, como o resto da família — Acredito que
devo fazer as honras correspondentes e realizar as oportunas
apresentações...
Mas, antes de fazê-lo, serve-se outra medida de licor, embora nesta
ocasião o tomou em dois goles.
Finalmente, aproximou-se onde estavam todos, perplexos, e disse:
—Família, apresento-lhes lady Beresford, mi... Minha esposa. — A
vacilação tinha sido intencionada.
John tomou assento, de repente, e soltou o copo, que terminou
estatelando-se no chão. Mas nenhum deles desviou os olhos para o som de
cristais quebrados, porque seguiam olhando fixamente a recém-chegada.
O olhar atônito de seu pai e de Christopher fez com que Arthur
soltasse uma gargalhada carente de humor. Ágata e Rosa mal se atreviam a
respirar. Justin tinha cruzado os braços e olhava para moça com insolente
descaramento, embora resultasse impossível ver seu rosto, porque seu
estranho chapéu o tampava por completo.
Arthur soube o que passou pela mente de seu pai e de seu irmão,
nesse preciso instante, e decidiu enfrentar suas perdas. Cortar pela raiz as
especulações.
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—E, para sua informação, não está grávida nem vai estar nunca —
rematou, antes de pegar a garrafa e sair pela porta — E, agora, vou agarrar
a bebedeira que vim procurar e da qual preciso tanto como respirar.
Depois de sua marcha, o silêncio caiu sobre os presentes como uma
pesada laje. Podiam-se ouvir as respirações de cada um. Christopher ia
dizer algo, quando no vestíbulo se ouviu o tinido de umas esporas.
Imediatamente depois, um homem entrou no grande salão de Whitam Hall.
Tinha uma estatura impressionante; era tão alto ou mais que o
próprio Christopher e vestia-se de forma muito estranha. Não tinha
descoberto a cabeça e o chapéu que levava era de asa larga. Mas o
escrutínio de Christopher foi muito além da cabeça do desconhecido. Ao
redor do pescoço, levava um lenço de algodão vermelho ao que afrouxara o
nó, de modo que ficava bastante folgado sobre o pescoço. As calças eram
muito diferentes das que vira, anteriormente, mas não podia apreciar bem
pelas rachaduras que cobriam suas pernas. Calçava botas altas com ponteira
pronunciada, possivelmente, para facilitar que o pé encaixasse no estribo.
Mas o mais surpreendente era o rifle que tinha apoiado no ombro e que lhe
dava um aspecto bastante perigoso.
O homem fez um varrido com o olhar, detendo-se em cada uma das
pessoas que havia no salão. Seus olhos escuros não mostraram nem
hesitação nenhuma vacilação, ao passar de um rosto a outro com imensa
curiosidade e absoluto descaramento.
—E você é...? — perguntou Christopher, sem sair ainda do
assombro que lhe havia produzido a inesperada visita. Deu um passo
adiante, sem afastar o olhar do rosto torrado pelo sol, mas foi à moça a que
tomou a iniciativa nas apresentações.
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—Desculpe a grosseria de Arthur Beresford, milord — disse, com
voz cálida, embora um tanto nervosa — Apresento meu irmão Liberty
Matthew.
Os olhos de Christopher se cravaram na pequena mulher que havia
se interposto entre o mencionado e ele, como se tentasse protegê-lo.
John pensou que as dificuldades retornavam, e que a moça que
tinha frente a si, com aquele chapéu muito grande para sua pequena
estatura, não era a sobrinha do embaixador inglês, a não ser uma completa
desconhecida que falava com acento das colônias. Maldita fosse! O que
fizera Arthur em Salamanca para terminar casado com uma americana? E
por que diabos chegou a Whitman Hall tão furioso? John não entendia
nada, mas estava disposto a averiguá-lo.
FIM
Família Beresford
1 – Me Ame, Canalha
2 – Me Beije, Canalha
NT. A autora está escrevendo a história do terceiro irmão, ainda sem
data de lançamento.
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