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Bebezões a bordo!
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GV executivo 49
FATOR HUMANO
Bebezes a bordo
Vivemos em uma poca em que cresce a dvida sobre o que ser adulto. Em vrias circunstncias, por exemplo, no modo como a publicidade mima o consumidor com o intuito de mant-lo satisfeito e aberto ao consumo, ou na tendn-cia de os pais se igualarem a seus prprios fi lhos, observamos um fenmeno social inverso pelo qual os adultos so infantilizados ou se auto-infantilizam. O artigo discute as bases desse fenmeno e procura estend-lo ao campo das empresas.
por Pedro F. Bendassolli e Maurcio C. Serafi m FGV-EAESP
Se o leitor pai ou me de classe mdia, certamente j
deve ter passado por situaes difceis com respeito
educao do prprio fi lho ou fi lha: gritos, falta de modos
em ambientes pblicos, desejo irrefrevel e inadivel de
algum novo brinquedo, birras, manhas e uma infi nidade
de outros comportamentos problemticos. Se o leitor
professor ou professora, decerto j deve ter tido (ou
tem) problemas com o comportamento de seus alunos
em sala de aula, materializado em fala excessiva, desres-
peito s regras e aos prprios colegas, descompromisso
com a aprendizagem e rebeldia com a autoridade (o
professor).
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Agora, se o leitor um gerente ou pessoa encarregada
de controlar o trabalho de outras pessoas, talvez esses
problemas de educao no apaream de forma to
evidente. Afi nal, ao que tudo indica, os funcionrios
em geral chegam empresa com um comportamento
disciplinado, dispostos a acatar as ordens e a se envolver
com o trabalho, comprometidos com as tarefas e inte-
ressados em colaborar, maduramente, com os colegas.
A favor dessa idia, a intuio popular nos diria que a
empresa uma terra de adultos maduros. Crianas e
adolescentes habitam outros lugares: em casa, na escola
e nos shoppings.
O leitor poderia dizer que isso ocorre graas ao lento
processo de aprendizagem civilizatria que transforma
crianas e adolescentes rebeldes em jovens adultos res-
ponsveis, e que, por uma questo bvia, uma vez forjado
o adulto, a criana que o precedeu fi ca l atrs no passado
memorial do indivduo. Ao contrrio da criana, o adulto
algum autnomo, independente, capaz de escolher, por
sua prpria deliberao, sua carreira, suas roupas, seu estilo
de vida e seu parceiro.
Espera-se, novamente por uma questo intuitiva, que
a sociedade tenha adultos em proporo adequada para
cuidar de suas crianas, para educ-las, prepar-las para
a vida; para transformar seus adolescentes em cidados
conscienciosos e trabalhadores efi cazes; e, claro, para se
responsabilizarem pelo prprio desenvolvimento de suas
instituies. Essa a viso comum, e, por algum tempo,
foi assim que as coisas funcionaram.
O sintoma social de infantilizao do
adulto mostra que existe hoje, em grande
parte de nossas sociedades civilizadas,
uma espcie de negao geracional: os
pais, os adultos, enfi m, as fi guras de
autoridade, esto abdicando de seu papel.
Infantilizao generalizada. No entanto, tese con-trria foi recentemente defendida pelo professor e jornalista
ingls Michael Bywater, em seu Big Babies [Bebezes] livro
que acaba de ser publicado na Inglaterra. Nele, o autor reco-
loca em pauta uma velha, e aparentemente banal, pergunta:
afi nal, o que ser adulto? Para ele, assistimos hoje a um
fenmeno inverso ao processo, acima descrito, de desen-
volvimento de crianas em adultos: agora, o que vemos,
generalizadamente, so adultos se tornando crianas.
Para justifi car seu argumento, Bywater menciona que o
sintoma mais caracterstico dessa inverso a tutela excessiva
exercida sobre os adultos: desde a escolha de uma camisa,
passando pela casa onde vai morar, o
emprego que vai ter, a marca e o tamanho
do carro a comprar, at a escolha do par-
ceiro amoroso, o adulto depende agora
de conselhos e recomendaes vindos de
outro algum: de um consultor de moda,
de um agente imobilirio, da mdia em
geral, de conselheiros amorosos ou sexu-
ais, de um coach, de um mentor e assim
por diante. Para Bywater, somos cada vez
mais dependentes das recomendaes
ou conselhos de entidades abstratas, das
quais o mercado certamente a mais
emblemtica.
O autor ainda vai mais longe na sua tese da infantiliza-
o. Diz que somos tutelados no porque sejamos forados
a isso, mas antes o contrrio: desejamos ser tutelados. E
ele apresenta uma razo persuasiva: a contrapartida da tu-
tela, para o indivduo, o conforto, o mimo e a bajulao.
Bywater cita o exemplo da propaganda: na era da satisfao
total do cliente, este quem sempre tem a razo uma
reclamao sua gera, normalmente, uma reao imediata
nos departamentos de marketing das empresas. O objetivo:
eliminar rudos de insatisfao que possam gerar quedas
nas vendas (paralelo: voc j viu o que acontece com uma
criana contrariada?).
Quem entrar hoje em um shopping center vai entender
isso na prtica: sorrisos sem comedida de atendentes;
mquinas falantes; visual atrativo, com muita decorao,
cores chamativas; descontos especiais para voc; enfi m,
um shopping um ambiente altamente infantil que lembra
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as saudosas casas de bonecas da infncia. Mas, se ainda
assim se sentir mal atendido, o cliente logo passa a reclamar:
reclama do carro que o manobrista delonga em entregar;
reclama das fi las; reclama da falta de ateno da mulher
do caixa, etc.
E as reaes so claras: cara fechada; pedidos para
falar com o gerente; grosseria com os funcionrios o
adulto insatisfeito, nessas circunstncias, interpreta a si-
tuao como um absurdo. Pois bem. O efeito do mimo
do mercado em relao ao cliente paradoxal: ao mesmo
tempo em que gera fi delidade, aumenta exponencialmente
as chances de revolta, birra e reclamaes. Mas as vantagens
da infantilizao so igualmente grandes: melhor agirem
como crianas, pois assim compram por compulso. Seria
pouco provvel que comprssemos tudo o que compramos
se parssemos para pensar bem, ou seja, se analisssemos
detidamente o que realmente necessitamos.
O que ser adulto. A tese de Bywater persuasiva, apesar de, em alguns momentos, resvalar em exageros. No
entanto, ele parece acertar no alvo: identifi ca um fenmeno
macio de inverso de fases de desenvolvimento que torna
difcil responder, com tranqilidade, questo sobre o que
ser adulto nesses tempos harrypotterianos.
Para se ter uma idia melhor da referida inverso,
vamos apresentar quatro vises at ento infl uentes sobre
o que ser adulto. A primeira vem da histria: na Idade
Mdia, a criana no tinha um estatuto prprio, sendo
socialmente vista como um adulto em miniatura. Isso era
expresso na arte da poca, como mostrado na fi gura abaixo.
Nesse sentido, exigia-se da criana comportamentos iguais
aos que se exigiam do adulto, em um fenmeno que pode-
ramos chamar de adultizao da criana. Foi s a partir
do sculo XVII que a criana comeou a ser vista com ca-
ractersticas prprias, com um mundo parte, diferente do
mundo adulto no qual deveria se inserir com o tempo.
A segunda viso vem da fi losofi a. Ser adulto na infl uente viso do Iluminismo, corrente fi losfi ca ini-
ciada com os fi lsofos Ren Descartes e completada por
Emmanuel Kant desenvolver o intelecto, fazendo-o che-
gar maturidade fato tangibilizado pelo desenvolvimento
do discernimento, da autonomia de idias, da capacidade
de deciso prpria e da responsabilidade em relao a elas.
O indivduo idealizado pelo Iluminismo era algum cons-
ciente de seus pensamentos e responsvel por suas aes.
Dessa forma, o homem adulto poderia ser entendido como
sinnimo do homem que ousa pensar.
A terceira viso vem de uma tradio sociolgica
especfi ca. Para o infl uente socilogo Norbert Elias, por
exemplo, o homem moderno surge graas ao processo por
ele denominado civilizacional. Embora Elias no se inter-
rogue especifi camente sobre o que ser adulto, empreende
um brilhante estudo no qual mostra que as antigas classes
brbaras (pessoas sem modos) foram pouco a pouco se
convertendo em classes civilizadas, hbeis mesa, no uso
de garfo e faca, no domnio de comportamentos pblicos.
Ser adulto, nesse caso, ser algum capaz de dominar uma
determinada etiqueta social.
E a quarta viso vem da psicanlise. Sigmund Freud foi
um dos primeiros pensadores a mergulhar fundo na vida
mental do adulto, vendo-a como refl exo ou continuidade,
sob outra perspectiva da vida infantil, repleta que de
Figura La Madonna col Bambino (Nossa Senhora com o Menino Jesus, sc. XIII). Na Idade Mdia, a criana era representada como um adulto pequeno. Na Ps-Modernidade, como o adulto seria representado?
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confl itos e dilemas no resolvidos. Em uma interpretao
ampla da viso freudiana, poderamos dizer que o adulto
algum capaz de responsabilizar-se por seus prprios dese-
jos. Alternativamente, o adulto algum capaz de superar
a onipotncia infantil, de acordo com a qual o mundo (e
as pessoas nele) estaria a a nosso inteiro servio, pronto
a satisfazer todas as nossas necessidades e a minimizar
todas as nossas frustraes. O adulto seria, ento, refl exo
da quantidade de frustraes que, em vez de lev-lo ao
desalento, o confrontaram com suas prprias limitaes e
o fi zeram crescer.
Negao geracional. Cada uma das quatro vises anteriores sobre o que ser adulto vem sendo fortemen-
te subvertida na atualidade, e aqui novamente a tese de
Bywater precisa ser retomada. De fato, o sintoma social de
infantilizao do adulto mostra que existe hoje, em grande
parte de nossas sociedades civilizadas, uma espcie de
negao geracional: os pais, os adultos, enfi m as fi guras de
autoridade (portanto, pessoas crescidas), esto abdicando
de seu papel. Mas por que, afi nal, essa negao ao amadu-
recimento? A seguir traamos algumas hipteses, tomando
ainda o cuidado, ao fi nal, de aproximar essas questes do
terreno das empresas.
Antes de mais nada, h uma tendncia de o amadu-
recimento ser hoje mal visto. Costuma-se afi rmar que a
sociedade atual enfatiza o desejo da eterna juventude. Isso
ocorre principalmente pelo fato de nossa identidade estar
ancorada no corpo. Assim, o pice do sentido de nossa
vida coincidiria com o pice de nosso corpo. Contra a vi-
so iluminista do desenvolvimento da conscincia, hoje
o foco est na conscincia do corpo, ou no corpo como
nova representao da conscincia.
Dessa forma, a maturidade vista como o incio da
decadncia, por ter como critrio o corpo biolgico. Nesse
mito, a pessoa madura vista como entrave novidade,
pois possui manias e tem a tendncia de ser resistente s
mudanas. Essa reduo ao corpo, que no leva em con-
siderao o amplo escopo do que ser humano (pensar,
sentir, agir, etc.), transforma a maturidade em uma fase
que se deve evitar ao mximo. E, para isso, nada melhor
do que fazer de tudo para que a infncia e a imaturidade
da adolescncia se prolonguem indefi nidamente.
Outro exemplo dessa mesma negao geracional so os
pais que temem se impor aos fi lhos com medo de represlias
destes: preferem, ento, igualar-se a eles vestindo as mesmas
roupas, tendo as mesmas opinies e os mesmos valores, as-
sistindo aos mesmos programas, namorando amigos(as) dos
fi lhos. Podemos, por fi m, mencionar a tendncia de as pes-
soas no suportarem discusses de assuntos considerados
chatos, como poltica ou mesmo teoria ironicamente
chamada por algumas pessoas de distante da prtica! As
crianas em geral no discutem: simplesmente querem que
as coisas aconteam de acordo com os seus desejos.
O fenmeno nas empresas. Por fi m, oferecemos uma refl exo sobre a presena dos big babies nas empresas. Por
mais surpreendente que isso seja, a tese da infantilizao
vale tambm para o mundo corporativo: se o funcionrio
no estiver satisfeito, se no estiver identifi cado com a em-
presa, no haver produtividade. Como resposta, os depar-
tamentos de RH empreendem muitas vezes um gigantesco
ritual de agrado, tutela e cooptao dos funcionrios, tra-
tando-os, no fundo, como verdadeiros bebs crescidos. Em
troca, deixam subentendido o pedido de lealdade e amor.
Adicionalmente, os livros de auto-ajuda corporativos
e aqueles que relatam a vida e a obra de executivos de
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sucesso reforam a infantilizao dos adultos. Quase
sempre, em seu ttulo ao iniciarem com um Como... ou
ao possurem as palavras vencer, respostas, segredo
e sucesso , pressupem um pblico que deve ser pego
pela mo e a quem se deve mostrar as coisas a serem feitas
e o modo como faz-las, exatamente como fazemos com
os nossos fi lhos pequenos.
O estilo e a estrutura desses livros
utilizam um arqutipo muito parecido
aos conselhos que um pai repassa aos seus
fi lhos. A prpria idia da necessidade de
buscar um grande lder empresarial, ali-
mentada pela Administrao por meio de
cursos, livros e da imprensa especializada,
pode ser uma fonte infantilizadora por
considerar que sempre devemos precisar
de um grande pai.
Para completar, temos dvidas se
as pessoas vm empresa inteiramente
maduras tal como sugerimos ao iniciar este texto. Talvez a
distncia entre o adolescente rebelde e o executivo madu-
ro no seja to grande quanto se possa imaginar. Exemplo
disso a obsesso recente pelos chamados cdigos de tica
ou de boa conduta.
Apesar de serem instrumentos importantes para a
gesto, esses cdigos pressupem que um adulto membro
de uma organizao no possua capacidade sufi ciente para
saber discernir o que certo ou errado fazer. Ora, a fase
de desenvolvimento humano em que aprendemos o que
aceitvel ou no socialmente a infncia, e aprendemos
geralmente por meio de exemplos e punies. Portanto, o
cdigo de tica, apesar das boas intenes da organizao,
pode ser uma fonte de infantilizao por desconsiderar a
autonomia de seu funcionrio, dizendo a ele como deve
se comportar.
Terra do nunca. Freud, em um de seus textos sobre a origem da civilizao, diz que esta comea com a morte
do pai, querendo com isso dizer que s podemos nos
tornar algum (leia-se, adultos) quando ultrapassamos
nossos modelos idealizados e infantilizadores de autori-
dade e passamos, ns prprios, a discutir os princpios a
seguir. Seguindo ao extremo essa metfora freudiana, hoje
parece que se quer novamente o retorno do pai claro que
no do pai tradicional (autoritrio, dono da verdade; na
empresa, do lder-patro), mas de substitutos para ele ,
por exemplo, nas drogas lcitas e ilcitas, no consumo, em
revitalizaes de misticismos religiosos, ou na idealizao
de lderes empresariais.
Com tudo isso, fi ca a sensao de que o sujeito moderno,
aquele consciente de seus pensamentos e responsvel por
suas aes, est com os dias contados. Isso signifi ca que a
razo e a capacidade crtica no so o que melhor nos defi -
niria hoje. Por sua vez, a inverso que discutimos aqui parece
ter ido bem longe: se, na Idade Mdia, o contedo da vida
adulta era estendido criana, agora o mundo infantil que
parece se alastrar at o mundo dos adultos, engolindo-o.
Como podemos lidar com isso tudo, de modo que as
organizaes no venham a se transformar, aos poucos, na
lendria Terra do Nunca ilustrada na conhecida histria de
Peter Pan, o garoto que se recusava a crescer? Bem, vamos
fazer aqui a nossa parte no vamos fechar este texto com
possveis solues para o(a) leitor(a). Afi nal, estamos
escrevendo para adultos, e um adulto pensa e decide por si
mesmo, certo? Ento, fi ca em suas mos essa misso...
Pedro F. BendassolliDoutor em Psicologia pela USP. Prof. do Departamento de Funda-mentos Sociais e Jurdicos da Administrao da FGV-EAESPE-mail: pbendassolli@fgvsp.br
Maurcio C. Serafi mDoutorando em Administrao de Empresas na FGV-EAESPE-mail: serafi m.adm@gmail.com
Apesar de serem instrumentos
importantes para a gesto, os cdigos
de tica pressupem que um adulto
membro de uma organizao no
possua capacidade sufi ciente para saber
discernir o que certo ou errado fazer.
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