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Por que aOTAN, que atravessa aGuerra Fria sem engajamento militaralgum, tem um grande ativismo no período pós-Guerra Fria,quando se espera que ela deixe de ser relevante ou necessária? Porque ela passa a atuar além da sua região, em outras áreas do globo emoperações de manutenção de paz? Para melhor entender a nova fasedaOTANe suas consequências para a segurança internacional, é precisoestudar o impacto de sua transformação em relação às missõesque esta cumpria durante a Guerra Fria.
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Introduo
A Organizao do Tratado do Atlntico Norte (OTAN) foi criada
pelo Tratado de Washington, um instrumento que estabeleceu si-
multaneamente seu carter de aliana militar e sua expresso institu-
cional, na forma de uma organizao internacional. Consta do texto
original do tratado, redigido em 1949, alm das disposies sobre a
garantia da paz inter alia e sobre segurana coletiva, a forma de sua
dimenso institucional: a deciso de estabelecer imediatamente um
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Contexto Internacional (PUC)Vol. 32 no 1 jan/jun 20101 Reviso: 07/07/2010
* Artigo recebido em agosto de 2008 e aprovado para publicao em maio de 2010. A autora agrade-
ce Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo (FAPESP) pelo apoio financeiro.
** Doutora em Cincia Poltica pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisadora
da Berghof Foundation for Conflict Studies. E-mail: jbertazzo@gmail.com.
CONTEXTO INTERNACIONAL Rio de Janeiro, vol. 32, no 1, janeiro/junho 2010, p. 91-119.
Atuao da OTAN no
Ps-Guerra Fria:
Implicaes para a
Segurana
Internacional e para a
ONU*
Juliana Bertazzo**
conselho para que os membros pudessem se reunir a qualquer
momento.
Este conselho poderia, por sua vez, estabelecer corpos subsidirios,
tantos quantos forem necessrios, e em particular um comit de de-
fesa (OTAN, 1949, art. 9). Tal agncia estaria encarregada de super-
visionar o desenvolvimento de capacidades individuais e coletivas
para resistir a um ataque armado e organizar os atores para que esta
resistncia fosse efetiva.
O quartel-general da OTAN fundar-se-ia nas proximidades de Paris
apenas dois anos aps a assinatura do Tratado de Washington. Logo
em 1952, dois novos membros seriam convidados a integrar a Alian-
a. A ratificao do acordo pela Grcia e pela Turquia fez com que a
organizao, de uma s vez, deixasse de ser um elo apenas entre a Eu-
ropa e os Estados Unidos, e tambm perdesse fundamentalmente a li-
gao com o Atlntico Norte. A expresso ao norte do Trpico de
Cncer passou a representar melhor a abrangncia da Aliana.
Desde o fim da Guerra Fria, entretanto, a OTAN passou por uma srie
de mudanas e persistiu, mesmo diante do fim do conflito Leste-Oes-
te. Em um perodo de apenas dois anos, a OTAN perdeu dois dos
principais motivos de sua fundao: a ameaa sovitica e a Alemanha
Oriental socialista.1
Foi estabelecido um sistema de cooperao com a Federao Russa e
outros membros do Pacto de Varsvia, a comear pela ex-Alemanha
Oriental, que foram convidados a integrar a Aliana, com requeri-
mentos especficos para a garantia do acesso (SIMON, 1996).
Internamente, a organizao tambm passou por constantes mudan-
as, a comear por sua doutrina, o seu conceito estratgico (OTAN,
1991). A partir de ento, os organogramas da organizao tm muda-
do constantemente, assim como as suas concepes estratgicas,
Juliana Bertazzo
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Contexto Internacional (PUC)Vol. 32 no 1 jan/jun 20101 Reviso: 07/07/2010
para se adaptar s constantes alteraes de cenrios e emergncia de
novas ameaas (SMITH, 1997).
Logo no comeo da dcada de 1990, em funo dos conflitos nos
Blcs, a OTAN declarou que a instabilidade na Europa Central afe-
tava diretamente a segurana de seus membros. Foi ento iniciada a
primeira operao militar da OTAN fora do territrio dos pases-
membros. O objetivo deste primeiro engajamento militar da OTAN
na sua histria era monitorar um embargo areo sobre o territrio da
ex-Iugoslvia, atendendo a um pedido da Organizao das Naes
Unidas (ONU). importante lembrar que esta ao no foi motivada
por uma ameaa ou ataque real OTAN por parte do Estado onde foi
desenvolvida a ao militar. Ao contrrio, a OTAN atuou neste con-
flito apenas como uma fora de restabelecimento da paz, sem montar
aliana alguma com uma parte no conflito. Esta foi apenas a primeira
de uma srie de atuaes com e sem mandatos da ONU e, desde
ento, a OTAN expandiu sua rea de interesse para alm da Europa e
passou a atuar tambm na frica, no Oriente Mdio e na sia.
Por que a OTAN, que atravessa a Guerra Fria sem engajamento mili-
tar algum, tem um grande ativismo no perodo ps-Guerra Fria,
quando se espera que ela deixe de ser relevante ou necessria? Por
que ela passa a atuar alm da sua regio, em outras reas do globo em
operaes de manuteno de paz? Para melhor entender a nova fase
da OTAN e suas consequncias para a segurana internacional, pre-
ciso estudar o impacto de sua transformao em relao s misses
que esta cumpria durante a Guerra Fria (CORNISH, 2004; SMITH,
2000).
Este trabalho analisa a possvel reduo no ativismo humanitrio da
ONU em termos absolutos e em relao ao aumento do ativismo da
OTAN. A hiptese principal de que o ativismo da OTAN busca su-
prir uma reduo da atuao da ONU. Contudo, uma hiptese secun-
dria de que a prpria dinmica interna da OTAN tem consequnci-
Atuao da OTAN no Ps-Guerra Fria:
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as importantes para este fenmeno. As teorias das alianas e as teori-
as das instituies e organizaes, apresentadas a seguir, ofere-
cem-nos elementos para analisar as mudanas pelas quais ainda pas-
sa a OTAN, e que refletem uma mudana mais ampla em conceitos de
segurana internacional.
Alm disso, uma anlise jurdica do papel da OTAN na manuteno
da paz internacional, tambm realizada neste trabalho, lana luz so-
bre as consequncias do fenmeno de sua atuao global e sua cres-
cente autonomia em relao ao Conselho de Segurana da ONU.
Esta situao tem dois problemas fundamentais: primeiro, a autono-
mia da OTAN enquanto organizao vai de encontro s previses do
direito internacional para a atuao de agncias regionais de seguran-
a; segundo, tampouco se justifica o envolvimento da OTAN en-
quanto aliana militar em operaes de manuteno de paz, pois
nesse caso ela no parte em um conflito armado.
A OTAN enquanto Aliana
A literatura sobre alianas, um fenmeno central das relaes inter-
nacionais, concentra-se na anlise da formao e da dinmica desse
tipo de arranjo, mas falha ao explicar sua persistncia. esperado
que uma aliana criada para dissuadir um potencial agressor se dis-
solva assim que a ameaa que a motivou esteja extinta. Por que, en-
to, uma aliana militar em particular, a OTAN, no se esvaziou
quando a principal ameaa aos seus membros deixou de existir? Ao
contrrio, esta organizao se expandiu, acolhendo inclusive mem-
bros do arranjo anteriormente identificado como potencial agressor
(Pacto de Varsvia) e removendo os limites sua ao impostos pela
condio estrita de aliana militar. Poderia uma aliana se organizar
para agir imparcialmente em um conflito alheio aos seus membros,
como o caso das operaes de paz? A literatura sobre alianas
oferece algumas tentativas de resposta a estas indagaes.
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Entre as teorias mais influentes sobre as alianas, podemos destacar a
teoria dos jogos e a teoria do equilbrio de poder (tambm conhecida
como balana de poder), que est presente em grande parte dos estu-
dos da rea de Relaes Internacionais. A ideia de um equilbrio de
foras entre unidades polticas j foi observada por David Hume no
mundo antigo (BULL, 1977, p. 101) e, na viso de Raymond Aron
(1986, p. 189), esta uma regra de bom-senso e sobrevivncia: ne-
nhum dos Estados deve ter fora tal que incapacite uma coalizo de
Estados vizinhos a defender seus direitos contra um ataque que parta
dele.
A teoria realista das Relaes Internacionais, em sua formulao tra-
dicional, estabelece que a distribuio das capacidades de cada Esta-
do no sistema internacional determina as posies de cada um na luta
pelo poder. Uma das definies oferecidas por Hans J. Morgenthau
(1993, p. 26) para o equilbrio de poder : mecanismo autorregula-
trio das foras sociais que se manifesta na luta por poder no cenrio
internacional.
Em outras palavras, o equilbrio de poder uma configurao resul-
tante das polticas dos Estados na luta pelo poder. Este tipo de intera-
o pode levar guerra, porque sua funo manter o sistema de
Estados, e no necessariamente garantir a paz. Hedley Bull (1977)
estuda os tipos e as funes dos equilbrios de poder e observa que a
preservao deste equilbrio tem relaes com o direito internacio-
nal. Embora as potncias possam sempre desrespeitar a soberania de
seus vizinhos localmente, absorvendo seus territrios, um equilbrio
de poder geral impede que isso seja feito em escala mundial.
Para grande parte dos realistas, as alianas maximizam essencial-
mente a segurana dos Estados, e no necessariamente seu poder,
justamente porque no so concebidas como arranjos permanentes.
Alianas podem contribuir para o estabelecimento de um equilbrio
de poder, a fim de neutralizar distrbios causados pela emergncia de
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um adversrio poderoso. Enfim, as alianas no so estveis por duas
razes: primeiro, porque limitam a liberdade dos Estados para agir
em funo de seu interesse nacional; e, segundo, porque podem
fortalecer os aliados do presente, sempre possveis adversrios do
futuro.
No equilbrio de poder geral, um Estado mais poderoso ser contra-
posto a uma aliana de poderes menores, que se uniro para equili-
brar as foras existentes no cenrio internacional e impedir a forma-
o de um imprio global. Esse mecanismo est fundado em grande
medida na estratgia da dissuaso, que incentiva o aumento do poder
de um Estado de tal forma que desencoraje o ataque de outro, o qual
dever desistir ao perceber a certeza do fracasso.2
Uma das premissas
desta teoria a racionalidade dos atores, neste caso, os Estados, que
agem a partir de um clculo estratgico.
J a teoria dos jogos, tambm baseada na racionalidade dos atores,
introduz, alm da ideia de busca do equilbrio, a ideia oposta, de que
os atores podem decidir se aliar ao Estado mais poderoso. Em vez de
se contrapor a um possvel ator hegemnico, de forma a equilibrar o
sistema, Estados mais fracos unir-se-iam a ele. Esta seria a atitude
dos chamados caronas,3
que decidem se aliar ao Estado mais forte
para no pagarem os custos envolvidos na estratgia da dissuaso.
Muitos desses estudos tm como base a racionalidade econmica
atribuda aos atores na teoria dos bens coletivos, com destaque para a
contribuio de Mancur Olson. A impossibilidade de restringir a al-
guns membros de uma aliana os benefcios gerados pela mesma faz
com que ela seja considerada uma espcie de bem coletivo (OLSON;
ZECKHAUSER, 1966). No ambiente da Guerra Fria, os Estados
mais fracos utilizavam a disputa ideolgica para valorizar seu alinha-
mento e, assim, conseguir vantagens. A tentao de embarcar em
uma aliana junto com o Estado mais forte expe um Estado mais
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fraco, contudo, ao risco de abandono, quando o mais forte no tem
interesse em seu apoio.
Muitas crticas foram feitas a estas abordagens tradicionais do fen-
meno das alianas. Entre as mais relevantes para o nosso objeto de es-
tudo, encontramos a de Avery Goldstein (1995), que critica o argu-
mento de Mancur Olson, sugerindo que os benefcios para a seguran-
a, surgidos a partir de uma aliana, necessariamente falham no teste
de impossibilidade de excluso. Isso porque os Estados esto imer-
sos em um ambiente anrquico que permite que seu comportamento
se desvie significativamente daquele esperado pela teoria dos bens
coletivos.
Este mesmo autor desqualifica o argumento de que a dissuaso, in-
clusive a nuclear, existente na Guerra Fria reforce os incentivos para
que os atores se tornem caronas. Muito pelo contrrio, ele acredita
que a bipolaridade e os armamentos nucleares exacerbaram as dvi-
das dos aliados sobre a proviso de segurana por parte das potncias
lderes. Goldstein (1995) estuda os casos da Gr-Bretanha, Frana e
China durante a Guerra Fria. Em funo da desconfiana em relao
ao compromisso de seus lderes, estes trs atores, conquanto manti-
vessem seu alinhamento a uma das superpotncias, deixaram de ser
caronas para tentar garantir sua prpria segurana, investindo em
defesa e adquirindo suas prprias armas nucleares.
Percebemos at aqui que as alianas no so formadas de forma neu-
tra, imparcial para atuao desinteressada em um conflito alheio.
Qual seria, ento, o comportamento tpico dos atores na formao de
alianas? Seriam eles mais inclinados a equilibrar ou a reforar o po-
der de um Estado mais forte? Stephen M. Walt (1988) analisou as po-
lticas externas do Ir, da Turquia, da ndia e do Paquisto na Guerra
Fria. Sua concluso a partir dos casos apresentados que o equilbrio
de poder a opo mais frequente. A Amrica Latina lembrada, po-
rm, como uma notvel exceo a esta regra. Durante a Guerra Fria,
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os Estados latino-americanos pegaram carona sob a influncia do po-
der dos Estados Unidos e esperaram que este pas agisse em favor da
segurana de cada um dos aliados do continente. No houve sequer
um mimetismo do comportamento da Frana, da Gr-Bretanha ou da
China, descrito por Goldstein (1995). Tal atitude seria irracional de
acordo com a teoria do equilbrio de poder, pois, antes de qualquer
outra considerao, o prprio aumento do poder dos Estados Unidos
deveria representar uma ameaa aos seus vizinhos, que deveriam ten-
tar prover a prpria segurana ou ento buscar uma aliana com a
Unio Sovitica.
A teoria do equilbrio de ameaas, desenvolvida por Stephen Walt
(1988), capaz de explicar at mesmo tal comportamento anmalo
dos latino-americanos. Segundo esta teoria mais geral, o poder ape-
nas uma das fontes de ameaas aos Estados. O grau em que um Esta-
do ameaa o outro o produto de seu poder agregado, proximidade
geogrfica, capacidade ofensiva e agressividade de suas intenes.
Desequilbrios de ameaas, e no apenas de poder, promoveriam a
formao de alianas contra o Estado mais ameaador.
No caso da Amrica Latina, as intenes dos Estados Unidos no
eram vistas como agressivas. Mesmo tendo realizado vrias inter-
venes, direta ou indiretamente, nos pases da regio, a conteno
do comunismo era um objetivo declarado dos Estados Unidos, e que
ia ao encontro dos interesses das elites dominantes locais em toda a
regio. Isso porque tal poltica preservaria sua posio dominante,
que seria provavelmente abalada pela instalao do comunismo.
Walt (1988) afirma, contudo, que os Estados Unidos erraram ao con-
siderar que as questes ideolgicas fossem determinantes para o ali-
nhamento. De fato, coalizes sempre foram possveis entre Estados
de estruturas internas diferentes, e muitas vezes mantidas mesmo
quando as estruturas internas se alteravam.
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Contexto Internacional (PUC)Vol. 32 no 1 jan/jun 20101 Reviso: 07/07/2010
A teoria do equilbrio de ameaas, elaborada por Walt, pode ser vista
como um refinamento da teoria do equilbrio de poder. Ela pode ex-
plicar parte das polticas da OTAN no ps-Guerra Fria; por exemplo,
a sua expanso em direo ao leste da Europa. Ainda assim, ela no
explica a persistncia das alianas, quando excludas as ameaas que
motivaram sua formao, como o caso da OTAN.
O Tratado de Washington previa uma reavaliao de seus termos
aps dez anos em vigor, seja em funo de uma mudana de cenrio
para a segurana regional ou do desenvolvimento de outros mecanis-
mos sob a Carta da ONU. Aps vinte anos de vigncia, estava tam-
bm prevista a possibilidade de denncia por parte de qualquer um
dos membros, desde que avisassem aos outros com um ano de ante-
cedncia.
Embora seu prprio instrumento de fundao contivesse as clusulas
de seu possvel encerramento, o Tratado de Washington s registrou
adeses nos primeiros vinte anos de existncia, atravessou mais de
quatro dcadas de Guerra Fria sem alteraes e j completou 60 anos,
sem denncia alguma. Muito pelo contrrio, o fim do conflito bipolar
registrou adeso recorde, mais que dobrando o nmero de membros
fundadores, e existe uma lista de espera de candidatos a adeso. Nem
mesmo o fim da ameaa que motivou sua adeso inicial foi uma mu-
dana suficiente, na avaliao dos membros, para determinar o seu
prprio fim.
Diferentemente de outras organizaes criadas aps a Segunda Guer-
ra Mundial, o texto do tratado deixa claro que a OTAN no foi conce-
bida como um arranjo permanente. No ignorando este caso, e reco-
nhecendo que a OTAN possui um carter dual, de aliana e organiza-
o, a literatura tambm procura explicar a persistncia desta aliana
utilizando a teoria institucional e a dos regimes.
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A OTAN enquanto
Organizao
Vimos que a OTAN uma aliana militar que se funda sobre um tra-
tado de segurana coletiva, o qual, por sua vez, indica a criao de
uma organizao internacional com o objetivo de manter a paz e a
segurana entre seus membros e a democracia dentro deles
(WALLANDER, 2000). Alm da questo militar, o Tratado de
Washington tambm menciona condies polticas e at econmicas
para a estabilidade e a paz entre os aliados e prope a criao de um
frum e outras estruturas para que eles coordenem polticas. Como
lembrado h pouco, esse texto j continha as clusulas de seu poss-
vel encerramento: previa uma reavaliao de seus termos aps dez
anos em vigor e, aps vinte anos de vigncia, estava tambm prevista
a possibilidade de denncia por parte de qualquer um dos membros.
Este tratado, entretanto, nunca recebeu uma denncia ou emenda, e
mesmo com uma mudana de cenrio, o fim da Guerra Fria, apenas
registrou a adeso de novos membros. Somados, o total de novos
membros maior que o nmero original de doze Estados fundadores.
Alm disso, a expanso da OTAN teve um sentido claro de abrigar
sob sua proteo o territrio do arranjo anteriormente adversrio, o
Pacto de Varsvia, com a notvel exceo da Federao Russa.
Algumas alianas podem continuar a existir apenas enquanto trata-
dos, pblicos ou secretos, mas perdem seus efeitos em geral com a
falta de compromisso dos membros. Um exemplo o Tratado Intera-
mericano de Assistncia Recproca (TIAR), ou Pacto do Rio, que no
o documento que serviu como carta para a criao da Organizao
dos Estados Americanos (OEA).4
Esperava-se que a Aliana Atlntica no sobreviveria ao fim do con-
flito, pois os prprios membros veriam-na como irrelevante. As orga-
nizaes, contudo, tendem a permanecer. No estudo da OTAN, por-
tanto, a sua dimenso institucional e organizacional, estabelecida
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desde a fundao da aliana militar, pode ser a chave para a compre-
enso de sua permanncia e de seu novo papel ao fim do conflito
bipolar.
Embora o ambiente ps-Guerra Fria tivesse gerado um desequilbrio
de poder favorvel aos aliados da OTAN, esta no se dissolveu. Todas
as demais previses dos neorrealistas, apoiados na teoria das alian-
as, se concretizaram: a OTAN de fato cortou custos, de certa forma
renacionalizou a defesa5
e seus membros buscaram outras formas de
cooperao internacional, notadamente, dentro da Poltica Europeia
de Segurana e Defesa (PESD). A teoria organizacional prev que os
interesses da instituio, mais que os dos membros, devem manter
seu funcionamento quando ela se encontra neste tipo de situao. Ro-
bert B. McCalla (1996) mostra que os membros tambm tm o desejo
de manter uma organizao existente, ao invs de criar uma nova (o
que implicaria em custos extras) para cumprir novas tarefas.
Em seu estudo sobre a permanncia da OTAN, Robert McCalla
(1996) prope trs nveis de anlise: 1) a dinmica do comportamen-
to da OTAN enquanto organizao; 2) a relao entre seus membros
dentro do regime de segurana que envolve a OTAN; e 3) as polticas
domsticas de seus membros. Quanto ao comportamento da OTAN,
o autor destaca, entre as vrias mudanas que a organizao sofreu,
uma mudana de objetivo: ela deixa de se preparar para reagir a um
ataque de um adversrio claramente definido para se voltar conten-
o de conflitos localizados, ao apoio defesa civil na ocasio de
emergncias e luta contra o terrorismo.
A OTAN passou por todas as posies possveis para organizaes
em face de mudanas fundamentais: negao da mudana, afirmao
prpria e adaptao. Um exemplo da negao da mudana que a
Rssia permaneceu como uma ameaa aos aliados no conceito estra-
tgico da organizao, mesmo com o fim da Unio Sovitica.
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Podemos dizer, contudo, que a posio mais importante para sua per-
sistncia tenha sido a adaptao. Afirmar que a ameaa do arsenal so-
vitico ainda era preocupante no sustentaria uma aliana daquela
magnitude: a OTAN teve que mudar seu comportamento e logo
transformou o ex-adversrio em aliado, quando foras russas inte-
graram uma misso da OTAN na Bsnia-Herzegovina. importante
lembrar que a Rssia j integrava, desde a dtente, um arranjo de coo-
perao com os pases-membros da OTAN, a Conferncia para Segu-
rana e Cooperao na Europa (CSCE), que se tornou uma organiza-
o (identificada como OSCE) aps o fim da Guerra Fria.
O Tratado de Washington no menciona a Unio Sovitica como
ameaa, indicando apenas um possvel ataque armado ou fatores
que afetem a paz e a segurana dos membros, ou seja, no identifica
um inimigo em particular (OTAN, 1949). Pode-se, ento, afirmar
que, de certa forma, a OTAN continua mantendo sua misso princi-
pal de preservar a segurana de seus membros, ainda que o contexto
mundial e, principalmente, as ameaas segurana de seus membros
tenham mudado radicalmente. Aqui est uma abertura para a inclu-
so de novas misses. Prova disso que, no discurso dos membros,
figura como um dos objetivos precpuos da OTAN a estabilidade in-
ternacional em um sentido mais amplo, alm da mera estabilidade in-
ter alia.
J a teoria institucional v a OTAN como parte de uma ampla relao
entre seus membros, que abrange vrios assuntos e se d em vrios
nveis. Tal relao est baseada em normas e regras implcitas e ex-
plcitas, ou seja, constitui um regime. A literatura de regimes clara
quanto aos benefcios que eles podem trazer, sendo o principal deles
a reduo da insegurana dos atores, por meio do aumento do custo
de uma ao desviante das regras. Em uma Europa historicamente di-
vidida entre mltiplas rivalidades, esse benefcio sensvel
(DUFFIELD, 1992). Quanto aos constrangimentos, podemos dizer
que os Estados Unidos conseguiram manter sua supremacia como l-
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der da aliana mesmo com o desenvolvimento das capacidades dos
outros membros, as quais, contudo, ainda no se igualaram sua
(YOST, 1998).
Em resumo, a abordagem institucionalista prev que os membros da
OTAN procuraro mant-la: 1) utilizando suas normas e procedi-
mentos j internalizados para lidar com novas ameaas, em vez de
criar novas regras; 2) modificando sua estrutura organizacional para
adapt-la aos novos problemas; 3) utilizando esse mesmo regime
para se ligar a outros atores a fim de realizar os objetivos dos
membros do regime.
Os membros da OTAN tomaram todas estas medidas por meio do en-
gajamento em operaes de paz, das diversas reestruturaes inter-
nas e do estabelecimento de programas, tais como a Parceria para a
Paz (em ingls, Partnership for Peace (PfP)) com pases da Eursia, o
Dilogo Mediterrneo (MD) com pases do Norte da frica, e tam-
bm da cooperao com a Unio Europeia e com a ONU. Na Cpula
de Istambul, em 2004, foi lanado inclusive um programa de coope-
rao com o Oriente Mdio, a Iniciativa de Cooperao de Istambul
(OTAN, 2004).
A OTAN foi alm da rea poltico-militar prevista no seu formato
institucional original. Em maior ou menor grau de coordenao,
constituiu-se uma comunidade poltica, sendo um frum para discus-
so dos assuntos de interesse comum dos membros. Mais recente-
mente, tambm diversificou sua ao por meio da criao de progra-
mas nas mais diversas reas. Meteorologia, educao, pesquisa cien-
tfica e ambiental esto entre os temas de programas especiais desta
organizao.
Quanto aos fatores internos analisados pela teoria institucional, po-
demos destacar o papel de frum consultivo desempenhado pela
OTAN desde a sua fundao, e previsto no Tratado de Washington. O
alto nvel de coordenao de polticas externas e a efetiva resoluo
Atuao da OTAN no Ps-Guerra Fria:
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de disputas possibilitada pela estrutura desta organizao fazem com
que ela ultrapasse a definio de uma aliana militar comum, cum-
prindo as funes de uma organizao poltica e tornando-se um ins-
trumento valioso de poltica externa para seus membros, do qual eles
no esto dispostos a abrir mo (DUFFIELD, 1994).
A atuao da OTAN no
ps-Guerra Fria
Apesar de poder ser considerada uma organizao regional de segu-
rana, desde o fim da Guerra Fria a OTAN tem incrementado sua rea
de atuao, para alm do que dispe o Captulo VIII da Carta das Na-
es Unidas. O artigo 52 deste captulo permite a criao de tais
agncias para a ao regional, desde que sob os princpios e propsi-
tos da ONU (ONU, 1949, art. 52).
No texto deste documento, fica estabelecido que as organizaes re-
gionais de segurana devem tentar resolver disputas locais entre seus
membros antes de lev-las ao Conselho de Segurana da ONU, e que
este poder utiliz-las para fazer cumprir suas decises. Contudo, o
artigo 53 prev que nenhuma medida coercitiva poder ser tomada
por estas agncias sem autorizao prvia do Conselho de Seguran-
a, salvo medidas contra Estados considerados inimigos segundo o
artigo 107 da mesma Carta, ou seja, os Estados inimigos de qualquer
signatrio da Carta durante a Segunda Guerra Mundial (ONU, 1949,
art. 53).
O envolvimento da OTAN em operaes de paz e de ajuda humanit-
ria um dos pontos mais controversos da nova fase da Aliana. Como
a organizao tem carter de uma aliana puramente militar, suas
operaes no possuem componente civil. Alm disso, com questio-
nvel legitimidade, desde a primeira ocasio do emprego das foras
armadas da OTAN em misses de paz, em apoio a uma operao da
ONU na Bsnia-Herzegovina, a OTAN adquiriu uma relativa inde-
Juliana Bertazzo
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pendncia em relao ONU. Apesar de vrios questionamentos so-
bre a sua atuao expedicionria, em funo de seu carter regional
de adeso restrita, a maior parte das operaes da OTAN no partiu
de iniciativa prpria, mas sim de pedidos externos. A OTAN j aten-
deu, inclusive, um pedido de interveno vindo diretamente de um
chefe de Estado no-membro, o Paquisto,6
e j atuou repetidamente
na frica atendendo pedidos da Unio Africana (UA).
Ao final de 2008, a OTAN mantinha sete operaes em andamento
(OTAN, 2008a), o que corresponde a aproximadamente metade do
nmero de operaes mantidas no mesmo momento pela ONU.7
Enquanto as operaes da ONU esto dispersas entre os cinco conti-
nentes, a OTAN no se restringe ao territrio dos pases-membros
nem Europa e opera atualmente tambm na frica, no Oriente M-
dio e no sul da sia, conforme mostra a Tabela 1.
Tabela 1
Lista Completa das Operaes da OTAN em Andamento
(Dezembro/2008)
Operao Localidade
ISAF AfeganistoSFOR* Bsnia-HerzegovinaAllied Provider SomliaAllied Harmony* MacedniaNTM-I IraqueKFOR KosovoActive Endeavour Mediterrneo
* Estas operaes persistem, ainda que as misses de paz tenham se encerrado oficialmente. AOTAN mantm quartis-generais em Sarajevo e Skopje para dar suporte s operaes da UnioEuropeia instaladas nesses pases.Fonte: OTAN (2008a).
interessante notar que apenas uma das operaes da OTAN em an-
damento em 2008 envolve claramente o princpio de segurana cole-
tiva. A primeira evocao desta clusula na histria da Aliana acon-
teceu em resposta aos ataques terroristas realizados no territrio dos
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Estados Unidos em 11 de setembro de 2001. Ainda que tenha carter
dissuasrio, tal operao, iniciada com sistemas de controle areo
enviados aos Estados Unidos, foi mantida pela Aliana na forma de
controle martimo no Mediterrneo e integra os esforos de uma
mobilizao ainda maior, de sua luta antiterrorismo.
A partir de 2004, a OTAN autorizou o ingresso, em sua frota, de em-
barcaes de naes parceiras que ofereceram apoio operao em
curso no Mediterrneo. Em 2006, um navio russo passou a integrar a
operao e, no ano seguinte, tambm uma fragata ucraniana. Contu-
do, entre os eventos destacados pela OTAN como os mais significati-
vos desta operao, est o resgate de vtimas de acidentes na regio
do Mar Mediterrneo (OTAN, 2008b).
O ativismo militar da OTAN em relao ao estabelecimento de ope-
raes militares abordado por Martin A. Smith (2000), que concor-
da com a anlise de Robert B. McCalla (1996) sobre a burocracia da
OTAN. Esta tende a assumir a defensiva em relao a outras organi-
zaes semelhantes, para evitar perda de sua relevncia: um exemplo
disso a reafirmao, por parte de altos funcionrios da OTAN, de
que esta deveria manter sua liberdade de ao institucional em rela-
o ONU (SMITH, 2000, p. 172). Houve tambm quem defendes-
se a independncia da Aliana para decidir sobre operaes militares
at mesmo em relao OSCE.
A aliana poltico-militar transatlntica estaria preenchendo um de-
clnio do ativismo humanitrio da ONU? De acordo com dados ofici-
ais, houve um aumento sem precedentes no nmero de misses inici-
adas pela ONU a partir do final da Guerra Fria. A Figura 1 compara o
nmero total de operaes da ONU em andamento e o total de
operaes encerradas.
Durante a dcada de 1990, o Conselho de Segurana da ONU esteve
particularmente ativo na resoluo de conflitos, tendo lanado o mai-
or nmero de novas misses em toda a sua histria. Foram iniciadas
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pelo menos duas novas misses a cada ano, o que corresponde ao
patamar mximo dos perodos anteriores.
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Figura 1
Grficos Comparativos do Nmero de Operaes de Paz da ONU
Encerradas e em Andamento
Fontes: ONU (2009) e Military Periscope (2008).
A OTAN passa a se envolver em operaes de paz a partir de 1992,
inicialmente em complementaridade com as atividades da ONU. O
nmero de novas misses estabelecidas pela ONU de fato apresenta
um declnio no momento em que a OTAN realiza sua interveno no
Kosovo sem um mandato especfico da ONU, ou at mesmo um da
OSCE. A Figura 2 apresenta o nmero de operaes da OTAN a cada
ano, desde a sua primeira atuao em 1993. Os dados so apresenta-
dos de forma a permitir a comparao entre o total de operaes
encerradas e o total de operaes em andamento em dezembro de
2008.
Se em sua primeira atuao militar a OTAN cumpriu estritamente o
que foi estabelecido na Carta das Naes Unidas, servindo como ca-
pacidade area adicional daquela organizao, com um mandato do
Conselho de Segurana para o monitoramento do embargo areo na
Bsnia, depois disso a OTAN atuou de diversas outras formas,
inclusive sem um mandato da ONU.
Um ponto particularmente interessante na anlise das operaes
que o recurso OTAN, visando especialmente a utilizao de suas
capacidades militares de transporte areo, no partiu mais apenas da
ONU. Em um procedimento idntico ao observado para com o secre-
trio-geral da ONU, pedidos de chefes de Estado, por meio de cartas
ao secretrio-geral da OTAN, j foram atendidos duas vezes.
A primeira delas ocorreu em resposta ao pedido do governo do Pa-
quisto para viabilizar o envio de ajuda humanitria aps um grave
terremoto. A Aliana transportou as doaes no s de seus membros
como tambm as do Alto Comissariado das Naes Unidas para Re-
fugiados (ACNUR), levando tambm posteriormente equipes de m-
dicos e engenheiros para auxiliar nas tarefas de resgate e
reconstruo das reas atingidas.
A segunda ocasio tambm envolveu um pedido de uso de avies, em
apoio a uma misso da UA. O presidente da comisso da UA pediu
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apoio OTAN para sua operao de paz em Darfur, tambm por meio
de uma carta. A OTAN consultou a Unio Europeia e a ONU para de-
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Figura 2
Grficos Comparativos do Nmero de Operaes de Paz da OTAN
Encerradas e em Andamento
Fonte: OTAN (2008a).
terminar qual tipo de auxlio ela poderia oferecer. Depois de vrias
extenses de mandato, a participao da OTAN em Darfur comple-
tou dois anos, e h planos da UA para incluir a OTAN em novas
misses.
A ltima nova misso da ONU foi lanada em setembro de 2007 e,
desde ento, a OTAN continua lanando novas operaes. Com man-
dato da ONU, por exemplo, a OTAN passou a integrar em dezembro
de 2008 os esforos de vrios pases contra a pirataria na costa da So-
mlia e j lanou uma nova operao de apoio para esta misso.
Portanto, a hiptese de que a OTAN estaria suprindo um espao aber-
to pela omisso da ONU no se confirma, pois, embora a OTAN re-
gistre um total de operaes ligeiramente maior que o da ONU na pri-
meira dcada do sculo XXI, esta no menos ativa para o departa-
mento de operaes de paz da ONU do que as vrias dcadas da
Guerra Fria. Ainda que em menor nmero em relao dcada de
1990, a partir de 2002 foi mantida a frequncia de estabelecimento de
novas operaes da ONU a cada ano, com exceo apenas de 2008
at o momento.
Em funo da forma como a OTAN se insere no campo da segurana
global, contudo, necessrio examinar questes ligadas legitimida-
de de sua atuao militar.
A Questo da Legitimidade
A participao da OTAN em operaes militares fora do territrio
dos Estados-membros e alm da clusula de defesa coletiva contra
um agressor por si s j coloca uma srie de questes controversas
para o cenrio da segurana internacional. Uma complicao adicio-
nal surge quando esta Aliana deixa de se submeter autorizao do
Conselho para iniciar operaes, ainda que de alegado carter huma-
nitrio. Quando chefes de Estado passam a solicitar intervenes di-
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retamente OTAN, cria-se um precedente no relacionamento inter-
nacional que questiona o critrio regional ou subsidirio reservado s
organizaes regionais de segurana no ordenamento internacional.
Este novo padro de comportamento da OTAN, por exemplo, j foi
assumido pela Unio Europeia.
Conforme o estudo realizado por Albane Geslin (2005), este proble-
ma de legitimidade tem como causa tanto a atitude das organizaes
internacionais de segurana, quanto a do prprio Conselho de Segu-
rana. Ao contrrio do que determina a Carta das Naes Unidas, as
organizaes regionais de segurana no necessariamente pedem au-
torizao prvia ao Conselho de Segurana para adotar medidas co-
ercitivas. Por seu lado, o Conselho de Segurana evita, em suas reso-
lues, recorrer especificamente s organizaes regionais de segu-
rana na concesso de mandatos para aes militares.
No caso da interveno internacional no Afeganisto, em termos le-
gais a OTAN atua como uma coalizo multilateral com mandato da
ONU. A partir de um perodo de comando rotativo com envolvimen-
to individual dos Estados-membros, a OTAN s passa a assumir o
controle operacional dois anos aps o incio da operao ISAF.
Este problema prtico abre espao tanto para aes ilegais das orga-
nizaes quanto para a perda de autoridade do Conselho de Seguran-
a. Para tentar legitimar suas aes, as organizaes recorrem a ha-
bilitaes implcitas, em geral referentes aos membros da ONU e
que so estendidas s organizaes em decorrncia de suas prprias
interpretaes do texto de resolues adotadas pelo Conselho de
Segurana.
Para a interveno da OTAN em Kosovo, por exemplo, este tipo de
tentativa de legitimao falhou, j que na Resoluo em questo no
h a autorizao para o recurso fora (GESLIN, 2005, p. 35-36).8
J
para uma ao derivada da solicitao direta de um chefe de Estado
para que a OTAN realizasse uma operao militar, como aconteceu
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Contexto Internacional (PUC)Vol. 32 no 1 jan/jun 20101 Reviso: 07/07/2010
no caso do Paquisto, por exemplo, a legitimidade poderia advir sim-
plesmente do consentimento. Tal consentimento pode, contudo, ser
questionado, j que difcil determinar a existncia de constrangi-
mentos anteriores ou at posteriores delegao de poder em favor
de um interventor.
Outras organizaes regionais, tais como a Unio Africana, possuem
maior coordenao com a ONU, o que ficou evidenciado at mesmo
em ocasies nas quais a UA solicitou o apoio da OTAN para a AMIS,
sua operao de paz na Somlia (AFRICAN UNION, 2004). Esse
apenas um exemplo da atividade consistente com os princpios da
Carta, que refora a afirmao de Geslin (2005, p. 37): somente a
habilitao [dada pelo Conselho de Segurana] pode conferir inter-
veno coercitiva de uma organizao regional um fundamento
jurdico.
Algumas Concluses
Aps o fim da Guerra Fria, a OTAN, considerada ao mesmo tempo
uma aliana militar e uma agncia de segurana regional, comea a
participar de operaes militares fora dos territrios de seus mem-
bros e em misses no motivadas pela segurana coletiva destes. Na
tentativa de explicar a permanncia da OTAN no ps-Guerra Fria e
sua transformao, este artigo ressaltou o seu carter dual, de aliana
militar e organizao de segurana, e analisou os dados sobre sua
participao em operaes militares.
As teorias sobre as alianas analisam arranjos localizados e ad hoc.
Sua preocupao central explicar a formao e a coeso, mas no a
possvel persistncia das alianas na forma de instituies. A teoria
realista, que domina a produo acadmica sobre as alianas, tende a
basear suas explicaes sobre a manuteno prolongada destas de
forma simples: em funo da persistncia de uma ameaa comum
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que inicialmente motivou a coalizo, ou da forte possibilidade de
emergncia de uma nova ameaa comum.
As teorias institucional e organizacional, aplicadas ao fenmeno da
persistncia da OTAN, envolvem os seguintes elementos: sua estru-
tura organizacional robusta, sua capacidade de se adaptar mudana
de cenrios e de buscar novas tarefas que possa realizar quando seus
objetivos iniciais esto cumpridos ou perdem a relevncia.
Contendo trs dos cinco membros permanentes do Conselho de Se-
gurana da ONU, a OTAN consegue construir um consenso na rea
militar com certa frequncia. Ainda assim, as intervenes da OTAN
no so sempre identificadas como legtimas pela ONU. At mesmo
o rtulo de interveno humanitria no est livre de questionamen-
tos no campo da poltica internacional.
Os dados apresentados neste trabalho mostram que houve certo de-
clnio no nmero de novas misses autorizadas pelo Conselho de Se-
gurana da ONU na primeira dcada do sculo XIX quando compa-
rada dcada anterior. A frequncia de lanamento das misses, con-
tudo, difere de toda a histria anterior, e mantm paridade com os
anos 1990. No mesmo perodo, o nmero de novas operaes da
OTAN tambm cresceu, e entre os anos 2000 e 2008 atingiu um total
ligeiramente maior que o registrado para a ONU no mesmo perodo.
Mais do que isso, a atuao independente por parte da OTAN em es-
cala global e o recurso direto OTAN por parte de membros da ONU
representam precedentes importantes.
Contudo, a questo da legitimidade de operaes militares por parte
de outras organizaes deve ser discutida tendo como parmetro as
disposies da Carta das Naes Unidas. Representando um grupo
de Estados mais restrito do que a Assembleia Geral, mas bem mais
amplo do que os membros permanentes do Conselho de Segurana
da ONU, a OTAN tem uma capacidade instalada e mobilizada
relevante em um cenrio internacional bastante conflituoso.
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Contexto Internacional (PUC)Vol. 32 no 1 jan/jun 20101 Reviso: 07/07/2010
O problema da legitimidade ocorre quando se verifica que esta capa-
cidade no est disposio apenas da ONU, nem restrita ao espao
regional, mas tem alcance global para atender unilateralmente aos in-
teresses dos membros e eventualmente de terceiros, de forma bilate-
ral. Tendo em vista a atuao recente da OTAN no cenrio de segu-
rana internacional, possvel, ento, afirmar que uma reforma do
Conselho de Segurana, e at mesmo da prpria ONU, no poder
prescindir de instrumentos que mantenham a sua responsabilidade
primordial sobre a paz internacional.
Notas
1. Outro forte motivo para a criao da OTAN foi, sem dvida, a garantia da re-
soluo pacfica das controvrsias entre os aliados na Europa, um continente
marcado por grandes guerras.
2. Existe uma diferena importante entre uma estratgia de dissuaso e uma
estratgia defensiva: nesta, um ator capaz de desencorajar o ataque de um
agressor porque ameaa oferecer uma forte resistncia em sua prpria defesa.
Na estratgia de dissuaso, um ator desencoraja um ataque porque seu poder
parece insupervel aos olhos do inimigo.
3. A literatura em ingls traz os termos free-riding e band-wagoning para des-
crever esse tipo de comportamento.
4. O TIAR foi largamente ignorado quando da Guerra das Malvinas/Falk-
lands em 1982 e recebeu fraca ateno dos Estados Unidos na ocasio dos aten-
tados de 11 de setembro de 2001, quando evocado pelo Brasil.
5. A renacionalizao da defesa refere-se tambm emergncia de uma pol-
tica europeia comum de segurana e defesa. Tal poltica uma tentativa de redu-
o da diferena de capacidades entre o pilar europeu e o norte-americano, e ao
mesmo tempo uma expresso da vontade poltica de lderes europeus de assu-
mir compromissos na rea de segurana regional. Como exemplo desta inten-
o, temos as operaes de paz da OTAN na Europa, que ou j passaram ao co-
mando da Unio Europeia ou esto em fase de transferncia de comando.
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6. A OTAN atendeu a um pedido do Paquisto para apoio em uma emergncia
humanitria. Este pas havia sofrido em 2005 um forte terremoto, e a OTAN au-
torizou o uso de suas capacidades militares areas para o transporte de ajuda hu-
manitria e, em seguida, enviou um time de engenheiros militares para ajudar o
Paquisto em seus esforos de reconstruo.
7. A ONU mantm quinze operaes de paz no mundo todo, das quais seis es-
to na frica, que tem o maior nmero. As operaes restantes esto assim divi-
didas: uma nas Amricas, duas na sia (exceto o Oriente Mdio, regio que tem
outras trs operaes em atividade) e trs na Europa.
8. A resoluo 1199 de 23 de setembro de 1998, enquanto enfatiza a necessi-
dade de evitar uma catstrofe humanitria em Kosovo e a necessidade de garan-
tir o respeito aos direitos humanos dos kosovares, tambm reafirma que tais ob-
jetivos devem ser atingidos por meios pacficos e que as atividades de estrangei-
ros no pas se limitam a operaes de monitoramento dos acordos estabeleci-
dos. Ao fim, o documento menciona que, em caso de descumprimento das me-
didas exigidas nesta resoluo e na resoluo 1160 (1998), o Conselho de Segu-
rana decide considerar ao futura e medidas posteriores para manter ou
restabelecer a paz e estabilidade na regio (ONU, 1998, p. 5).
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Resumo
Atuao da OTAN no Ps-Guerra
Fria: Implicaes para a Segurana
Internacional e para a ONU
Aps a Guerra Fria, a Organizao do Tratado do Atlntico Norte (OTAN)
utilizou seus recursos militares pela primeira vez em um conflito. Desde en-
to, ela vem atuando com regularidade, sob mandato da ONU ou no. Este
trabalho apresenta a discusso terica em torno da permanncia da OTAN
aps o fim da Guerra Fria, e analisa sua transformao e seu novo papel em
um contexto mundial distinto. As teorias das alianas no explicam a per-
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sistncia de tal tipo de arranjo. As teorias dos regimes, por sua vez, vislum-
bram a permanncia da OTAN em um contexto diverso, desde que ela consi-
ga se transformar para se adaptar s novas condies. O levantamento de da-
dos realizado sobre a atividade da ONU procura testar a hiptese de que
existe um declnio do seu ativismo humanitrio no perodo recente, abrindo
espao para que novos atores atuem no campo da segurana global. A con-
cluso de que h um declnio, o qual no , todavia, significativo em rela-
o ao perodo da Guerra Fria. Portanto, mais do que uma possvel omisso
da ONU, a necessidade de justificar a permanncia da aliana transatlntica
no novo cenrio estratgico surge como fator fundamental para que a OTAN
assuma este carter intervencionista e expedicionrio, alheio aos seus fun-
damentos. A questo da legitimidade da OTAN para este tipo de misso
tambm discutida. So destacados, finalmente, os problemas de ordem le-
gal da atuao da OTAN vis--vis a ONU na manuteno da segurana
internacional, os quais esto contidos em uma questo maior: a necessidade
de reviso dos arranjos globais de segurana coletiva e do Conselho de
Segurana, em particular.
Palavras-chave: OTAN Segurana Internacional Interveno Inter-
nacional Conselho de Segurana da ONU
Abstract
NATOs Action in the Post-Cold
War Era: Implications for
International Security and for the
United Nations
After the end of the Cold War, the North Atlantic Treaty Organization
(NATO) used its military capabilities for the first time in actual conflict.
Since then, it has been acting regularly, either under a United Nations
mandate or not. This work presents the debate in the literature on the
permanence of NATO after the end of the Cold War and analyzes its
transformation and new role in a distinct world context. Alliance theory
does not explain the persistence of such an arrangement. Regime theory, on
the other hand, allows for NATO persistence in a changed context,
provided that it is able to transform itself and adapt to new conditions. The
data obtained are used to test the hypothesis that there is a recent decline in
UN humanitarian activism, which would make room for new actors to work
on the field of global security. The conclusion is that although there is a
decrease in UN activity, it is not significant compared to the Cold War
Juliana Bertazzo
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period. Thus, instead of a possible omission on the part of the UN, it is the
need to justify the permanence of the transatlantic link in a new strategic
scenario that rises as a key factor in explaining why NATO takes on this
interventionist and expeditionary character, quite distinct from its original
one. The legitimacy NATO could have or lack for this type of missions is
also part of the discussion. Finally, it is stressed here that legal problems of
NATO action vis--vis the UN are included in an overarching question: the
need for review of global collective security arrangements and of the
Security Council, particularly.
Keywords: NATO International Security International Intervention
UN Security Council
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