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D.O.I. http://dx.doi.org/10.1590/2176-457347460
172 Bakhtiniana, São Paulo, 15 (4): 172-192, out./dez. 2020.
Todo conteúdo de Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso está sob Licença Creative Commons CC - By 4.0.
ARTIGOS
Capitalismo publicitário: uma análise crítica dos cartões promocionais
de LEMCO do início do século XX / Advertising Capitalism: A Critical
Analysis of Early 20th Century LEMCO Trading Cards
Cecilia Molinari de Rennie
RESUMO
Neste artigo, analiso um conjunto de seis cartões comerciais pertencentes a uma
duradoura campanha de marketing da Liebig Extract of Meat Co. A análise crítica dos
textos promocionais produzidos na virada do século XX oferece insights significativos
sobre os mecanismos discursivos que contribuíram para a hegemonização do capitalismo
burguês. Diferentemente de outras formas de publicidade, os cartões comerciais não são
rapidamente descartados e esquecidos; pelo contrário, eles podem se distanciar dos
produtos anunciados para se tornar parte dos discursos populares de instrução em massa.
Como produtos e produtores de ideologias capitalistas, os anúncios são um local
privilegiado de inscrição do capitalismo e, portanto, se prestam a uma análise crítica.
Minha análise mostra como os textos selecionados se baseiam e texturizam os discursos
do progresso, impregnados como crenças colonialistas e desencadeando uma cadeia de
ações pela qual, mesmo antes de realmente obterem os cartões, são promulgadas ações e
crenças capitalistas.
PALAVRAS-CHAVE: Discursos publicitários; Análise crítica do discurso; Extrato de
Carne Liebig; Cartões promocionais do início do século XX; Espírito do capitalismo
ABSTRACT
In this paper, I analyze a set of six trading cards belonging to Liebig’s Extract of Meat
Co. long-standing marketing campaign. The critical analysis of promotional texts
produced at the turn of the 20th century offer meaningful insights on the discursive
mechanisms that contributed to the hegemonization of bourgeois capitalism. Unlike other
forms of advertising, trading cards are not rapidly discarded and forgotten; on the
contrary, they can detach themselves from the advertised products to become part of
popular discourses of mass instruction. As both products and producers of capitalist
ideologies, ads are a privileged site of inscription of capitalism, and thus lend themselves
to a critical analysis. My analysis shows how the selected texts draws on and textures the
discourses of progress, inculcated as colonialist beliefs and triggering an actional chain
whereby, even before they actually obtained the cards, capitalist actions and beliefs are
enacted.
KEYWORDS: Advertising discourses; Critical discourse analysis; Liebig Extract of Meat
Co.; Early 20th century trading cards; Spirit of capitalism
Universidad de la República – UDELAR, Departamento de Teoría y Metodología de la Comunicación;
Departamento de Historia y Filosofía de la Ciencia, Montevidéu, Uruguai; https://orcid.org/0000-0002-
3070-2471; cecilia.molinari@fic.edu.uy
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Apresentação
Os discursos da publicidade empregam uma forte narrativa cultural sobre a
possibilidade de uma vida melhor baseada no progresso, na eficiência e no valor do novo
(BLAKELY, 2011, p.686). A análise dos textos promocionais produzidos na virada do
século XX contribui para a compreensão dos mecanismos discursivos que levaram à
hegemonização da ideologia do progresso, ou seja, a crença de que a história humana
estava em ascensão e que a sociedade humana e os indivíduos estavam destinados a serem
aperfeiçoados, aumentando o conhecimento científico e o controle técnico sobre a
natureza (HOBSBAWM, 1977)1.
Independentemente de abordar ou não a economia diretamente, os materiais
publicitários oferecem informações valiosas sobre o contexto econômico e social em que
foram produzidos. Como produtos e produtores de ideologias capitalistas, eles são um
local privilegiado de inscrição dos discursos do capitalismo e podem ser analisados
produtivamente da perspectiva da Análise Crítica do Discurso (ACC), para revelar
questões ideológicas que podem não ser aparentes para os pretendidos usuários dos textos
(HART, 2014, p.2).
Neste artigo, analiso Matières prémiers III (M III), um conjunto de seis cartões
colecionáveis emitidos pela LEMCO em 1906 (Liebig Extract of Meat Company), que
descrevem os processos de colheita de materiais exóticos e a sua transformação em
artefatos de luxo.
A LEMCO foi fundada no Uruguai, em 1861, para produzir a fórmula de extrato
de carne (extractum carnis) da Liebig em um imenso complexo industrial localizado às
margens do Rio Uruguai, com acesso ao porto, o qual se tornaria Fray Bentos. Segundo
um prospecto da empresa de 1865, a fábrica poderia abater e processar uma média de
2.500 bois por dia (ESTRADA, s.d.), com uma produção prevista de 1 milhão de libras
de extrato de carne em três anos (BROCK, 1997). O extrato era enviado a granel para a
Inglaterra, onde passava por controles de qualidade para ser embalado e distribuído por
toda a Europa e América. A fábrica empregava entre 1.300 e 1.400 trabalhadores e, como
outras empresas industriais instaladas em territórios coloniais, contratava quase
1 HOBSBAWM, E. J. A era das revoluções. 1789-1848. Disponível em:
https://www.academia.edu/38947955/HOBSBAWM_Eric_J_A_era_das_revolu%C3%A7%C3%B5es/
Acesso em: 5 ago.2020.
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exclusivamente funcionários europeus para serviços administrativos e trabalhos técnicos,
empregando mão-de-obra local para trabalho não qualificado. Em um país agrícola, com
uma população de pouco mais de 1.150.000, o impacto social, econômico e cultural desse
empreendimento, especialmente na região do Rio Negro, foi incalculável.
A LEMCO prontamente começou a comercializar seu produto globalmente,
implementando uma ampla campanha que incluía anúncios tradicionais em jornais,
depoimentos de cientistas e médicos em periódicos científicos, atividades promocionais
como concursos de culinária e vários itens efêmeros, entre eles os cartões colecionáveis
da LEMCO, que se tornaram parte da campanha de marketing da empresa em meados do
século XIX (BROCK, 1997).
Um elemento chave no estabelecimento da marca da LEM foi a figura de Justus
von Liebig (1803-1873), cuja imagem e assinatura figuravam com destaque nos rótulos e
textos promocionais da LEMCO. O capitalismo do século XIX centrou-se nos valores e
na personalidade da burguesia, e não era incomum as personalidades da era vitoriana
promoverem seus interesses comerciais e legais, aproveitando a ideia romântica do autor-
gênio (RICHARDSON & THOMAS, 2012). Justus von Liebig havia cultivado
cuidadosamente sua imagem não apenas como o químico orgânico mais conhecido de sua
época, mas também como empresário, inventor, popularizador da ciência e personalidade
pública envolvido em patrocínios questionáveis, disputas legais bem divulgadas sobre
patentes, e outros escândalos menores (BLONDEL, 2007; BROCK, 1997; FINLAY,
1992; JACKSON, 2008). No final do século XIX, não apenas o Extrato de Carne Liebig,
mas também Justus von Liebig eram (literalmente) nomes conhecidos, ligados de tal
maneira que cada um serviu para aumentar a popularidade e o prestígio do outro muito
tempo depois da morte de von Liebig em 1873.
Os cartões promocionais se tornaram cada vez mais populares na segunda metade
do século XIX, como parte de campanhas de marketing de novos produtos,
principalmente das indústrias de tabaco, cosméticos e nutrição. Impressos em cores,
usando técnicas sofisticadas e desenhados por artistas renomados, os cartões eram itens
de coleção apreciados (LOOMIS, 1950) e rapidamente se tornaram uma parte
significativa da cultura popular. Os cartões da LEMCO foram emitidos entre 1860 e 1974
em vários idiomas e foram distribuídos por toda a Europa e Estados Unidos da América,
atingindo, no seu auge, três milhões de cópias por cartão (HUND & PICKERING, 2013).
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A coleção completa consistia em cerca de 1900 conjuntos de seis ou doze imagens
temáticas, a maioria delas acerca de assuntos de interesse educacional, como ciência,
artes, história e geografia que visavam a um grande público-alvo em termos de identidade
sociocultural e nacional (HANSEN, 2002).
Na virada do século XX, os cartões eram considerados eficazes como materiais
promocionais (HUND & PICKERING, 2013, p.55). Ao contrário da maioria dos textos
do gênero publicitário, que são prontamente descartados e esquecidos, os cartões
receberam um lugar nas famílias: eram revisitados toda vez que um novo item era
adicionado à coleção, ou usados como fonte de informação e entretenimento, desligando-
se assim da conexão com o produto para se tornarem parte da cultura popular,
recontextualizando crenças, práticas e resultados de outras instituições sociais
(LIPSCHUTZ, 2010, p.9). Ao se anexarem a outra rede discursiva, a da educação popular
(MITCHELL & REID-WALSH, 2005), os cartões da Liebig exerceram uma ampla
influência como fontes legítimas de conhecimento, tornando-se parte da “instrução
informal de massa da nova língua do modernismo”2.
1 O “espírito do capitalismo”
Problematizar a definição de capitalismo, explorando suas origens e
desenvolvimento, ou discutindo as diferentes abordagens de seu estudo, excederia o
escopo deste artigo. Talvez, como sugere Latour, o capitalismo não seja sequer uma coisa
no mundo, mas “uma certa maneira de ser afetado ao tentar pensar através dessa estranha
mistura de misérias e luxos que encontramos ao tentarmos chegar a um acordo com as
intersecções vertiginosas de ‘bons’ e ‘maus’”3.
Apesar do crescimento das economias avançadas no final do século XIX
(FRIEDMAN, 2012, p.23), as contradições do capitalismo como sistema econômico
representam um desafio para todos os participantes: os assalariados, alienados dos frutos
de seu trabalho, enfrentam uma vida profissional de subordinação; os capitalistas “se
2 Texto em inglês: “the informal mass instruction of the new language of modernism” (HUND &
PICKERING, 2013, p.55). 3 Texto em inglês: “a certain way of being affected when trying to think through this strange mixture of
miseries and luxuries we encounter when trying to come to terms with the dizzying interplays of ‘goods’
and ‘bads’” (LATOUR, on-line).
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encontram ligados a um processo interminável e insaciável, que é totalmente abstrato e
dissociado da satisfação das necessidades de consumo, mesmo que de luxo”4. Para tornar
o sistema sustentável, ele deve se basear em um conjunto de crenças que apoiem ações e
predisposições compatíveis. Boltanski & Chiapello (1999, p.7), seguindo Max Weber,
chamam esse sistema de “espírito do capitalismo”.
Um espírito do capitalismo legitima a marca do capitalismo de uma época
específica àqueles que se comprometem com o processo capitalista de acumulação,
respondendo por que: 1) é uma fonte de entusiasmo e estímulo, levando a uma vida mais
iluminada, saudável e próspera; 2) oferece segurança para os participantes e seus filhos;
e 3) contribui para o bem comum e pode ser defendido de acusações de injustiça.
Por meio das (re) configurações desses discursos, um espírito do capitalismo
objetiva ofuscar as contradições internas das diferentes versões do capitalismo —sejam
sociais (KRIER AND WORRELL, 2017; PITTS, 2017), culturais (BELL, 1976;
ILLOUZ, 1997), políticas (WOLFE, 1977), econômicas (GLYN, 1990; O'CONNOR,
1991) ou ecológicas (FOSTER, 2002; WRIGHT & NYBERG, 2016) - incorporando
fontes externas de justificativa para abordar críticas e posteriormente as legitima.
Boltanski e Chiapello (2005) identificam três espíritos do capitalismo: o primeiro
espírito, capitalismo burguês, entre o final das décadas de 19 e 30; o segundo, entre 1940
e 1970, e o terceiro, dos anos 80 até hoje. O capitalismo burguês, que nos interessa neste
artigo, é caracterizado pela “expansão vasta e amplamente não regulamentada da
produção de mercadorias e do mercado e redes monetárias relacionadas”, em que o único
objetivo válido é “a constante transformação de capital, fábrica e várias compras
(matérias-primas materiais, componentes, serviços, etc.) em produtos, da produção em
dinheiro e do dinheiro em novos investimentos”5. O estímulo está relacionado ao acesso
a novos produtos de consumo, ao impacto de novos meios de comunicação, à liberação
geográfica que estes permitem e ao trabalho assalariado. A segurança está relacionada à
moralidade burguesa, combinando as novas tendências econômicas com as crenças
4 Texto em inglês: “find themselves yoked to an interminable, insatiable process, which is utterly abstract
and dissociated from the satisfaction of consumption needs, even of a luxury kind” (BOLTANSKI &
CHIAPELLO, 1999, p.7). 5 Texto em inglês: “the vast and largely unregulated expansion of commodity production and related market
and monetary networks”, [where the only valid objective is] “the constant transformation of capital, plant
and various purchases (raw materials, components, services, etc.) into output, of output into money, and of
money into new investments” (BOLTANSKI & CHIAPELLO, 2005, p.5).
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domésticas tradicionais sobre a natureza familiar ou patriarcal das relações com os
funcionários. A justiça tem a ver com a crença no progresso, no futuro, na ciência, na
tecnologia e nos benefícios da indústria: “esse amálgama de propensões e valores muito
diferentes e até incompatíveis [...] sustentam o que deveria ser denunciado no espírito
burguês: sua hipocrisia”6.
2 O discurso da publicidade
O capitalismo burguês, regido por uma ética de autorrealização e conquista
individual (BECK, 2000), impactou todas as principais instituições do Ocidente,
transformando-as para promover o consumidor como uma nova identidade, contribuindo
significativamente para a sua criação (ROBBINS, 2014). Embora os anúncios existissem
antes do século XIX, no final da década de 1890, eles sofreram uma revolução
comunicativa (CIARLO, 2011, p.14) ligada ao uso da mídia visual.
A publicidade (incluindo textos promocionais de diferentes tipos) é um gênero
complexo, cuja função comunicativa vai além da venda de um produto ou serviço. Os
anúncios “também podem divertir, informar, desinformar, preocupar ou advertir”7; e seu
objetivo final é influenciar as atitudes, comportamentos e escolhas de estilo de vida das
pessoas (DANESI, 2004), combinando três componentes: informativo, persuasivo e
estético (BARTHOLOMEW, 2007). Os anúncios são considerados um gênero
parasitário, ocorrendo dentro de e imitando outros discursos, recorrendo a recursos
linguísticos, retóricos, visuais e materiais de outros gêneros (COOK, 1995; MATHESON,
2005; AMALANCEI, 2012; KOLL-STOBBE, 1994), que convergem e se misturam em
cada anúncio em particular. Esse estatuto híbrido de publicidade tem consequências
significativas em termos de como um produto é produzido e recebido; desfocando as
expectativas geradas por um gênero, permite a manipulação estratégica, apresentando
obstáculos tanto à identificação do autor (WICKE, 1998) quanto à identificação do gênero
(TALBOT, 2007) dos textos.
6 Texto em inglês: “this amalgam of very different, even incompatible propensities and values […] underlay
what was to be denounced in the bourgeois spirit: its hypocrisy” (BOLTANSKI & CHIAPELLO, 2005,
p.17). 7 Texto em inglês: ads “may also amuse, inform, misinform, worry or warn” (COOK, 1992, p.4).
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A conexão entre publicidade e capitalismo é tão estreita que foi conceitualizada
como realismo capitalista, cumprindo um papel ideológico semelhante ao Realismo
Social na URSS. Mesmo que a publicidade não seja regulamentada ou subsidiada pelo
governo, é verdadeiramente oficial pois “o governo tacitamente dá aprovação e apoio,
juntamente com o resto da sociedade, a expressões não oficiais”8. Nesse sentido, os textos
promocionais se prestam à análise crítica.
3 Análise Crítica do Discurso
A Análise Crítica do Discurso (ACD) aborda os textos em relação às estruturas e
processos sociais em que são produzidos, bem como ao contexto daqueles indivíduos ou
grupos que constroem significados em suas interações com os textos, enfocando questões
relacionadas ao poder e à ideologia (WODAK & MEYER, p.2009). Discurso refere-se
tanto aos aspectos semióticos da prática social (BERGSTRÖM et al., 2017, p.209),
quanto a uma ferramenta para realizar práticas sociais e participar de sua reprodução e
transmissão (JONES et al., 2015, p.4). Para reunir os aspectos linguísticos e sociais do
discurso, a ACD considera três dimensões inter-relacionadas em um evento
comunicativo: texto, prática discursiva e prática sociocultural. A análise textual é um
processo descritivo que se concentra nos aspectos semióticos dos eventos comunicativos;
a análise da prática discursiva é um processo interpretativo, que trata da forma como o
texto é produzido, distribuído e consumido, e a análise do discurso como prática
sociocultural é um processo explicativo, focado nas questões econômicas, políticas ou
culturais que envolvem o evento comunicativo (FAIRCLOUGH, 2013).
4 Metodologia
Neste artigo analiso um conjunto de seis cartões promocionais da LEMCO,
Matières prémiers III (M III), de 1906, o terceiro de uma série de três conjuntos sobre o
mesmo assunto, os dois anteriores publicados em 1890 e 1892. Cada cartão apresenta a
8 Texto em inglês: “the government tacitly gives approval and support, along with the rest of society, to
unofficial expression” (SCHUDSON, 2000, p.219).
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história de um artefato de luxo, com foco em como e onde os materiais são colhidos e
como são transformados em artefatos. Em consonância com os procedimentos da ACD,
selecionei textos produzidos no momento do surgimento de um novo discurso,
conceituado como o primeiro espírito do capitalismo, concentrando-me em uma pequena
amostra para desenvolver uma análise mais profunda e detalhada.
Para mostrar como o texto selecionado faz parte de uma configuração mais ampla
de discursos que legitimam e promovem o primeiro “espírito do capitalismo”, tanto de
maneira semiótica quanto material, segui o modelo de Fairclough (1992), que considera
o discurso em suas três dimensões de texto (o aspecto semiótico do texto), prática
discursiva (a interface entre os aspectos semiótico e material do texto) e prática
sociocultural (seus efeitos materiais), analisada em três etapas.
A primeira etapa da análise envolve uma descrição semiótica do texto selecionado
em termos de sua gramática, desde a abordagem multifuncional ao significado
desenvolvido primeiramente por Halliday (1978) e adaptado por Kress & van Leeuwen
(2006) para a análise de imagens. Minha análise considera aspectos representacionais,
particularmente os atores sociais representados, seus atributos e circunstâncias; aspectos
relacionais, como tamanho e cor dos elementos representados; e aspectos composicionais,
como layout e contextualização dos elementos representados. Também abordo a relação
entre elementos verbais e pictóricos no texto selecionado. Não desenvolvo aqui a
descrição completa do texto selecionado, mas apresento seus principais elementos, na
medida em que sejam relevantes para minha discussão na seção Análise e Discussão.
A segunda etapa da ACD enfoca o texto como prática discursiva, a relação entre
seus aspectos semióticos e materiais, percebidos como gênero, estilo e discurso
(FAIRCLOUGH, 1995). Os gêneros são constituídos por formas de produção semiótica
da vida social; meu principal interesse está nas características específicas dos cartões
promocionais. O estilo tem relação com a construção semiótica de identidades. Gênero e
estilo são discutidos nas seções anteriores deste artigo, e os discursos envolvidos no MIII
são tratados da maneira como eles se textualizam na seção Análise e Discussão.
A terceira etapa concentra-se nas práticas socioculturais, ou seja, as formas em
que os discursos são operacionalizados como ações e identidades na vida social. Na
Conclusão, discute-se como os discursos do espírito do capitalismo são inculcados e
encenados.
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5 Os textos selecionados
Figura 1- Matières Prémiers III (Fonte: Acervo particular)
A composição de uma imagem organiza a narrativa, estabelecendo relações
retoricamente significativas entre suas partes (KRESS & VAN LEEUWEN, 2006, p.197).
Os textos selecionados são dispostos como um tríptico, representando diferentes estágios
na produção de um item de luxo. Os painéis laterais mostram os trabalhadores envolvidos
nas atividades de colheita das matérias-primas e elaboração de artefatos, em dois tipos
diferentes de ambientes: ambientes naturais ao ar livre (esquerda) e ambientes internos,
em oficinas (direita); essa diferença é ressaltada pelo uso de uma paleta de cores
brilhantes à esquerda e opaca à direita. O painel central, dividido horizontalmente, mostra
o produto final na seção superior e o ícone da empresa abaixo. A imagem também inclui
elementos verbais na forma de etiquetas que aparecem acima de cada painel, nomeando
o material (centro) e conceitos relacionados às atividades representadas nos painéis
laterais.
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Os produtores recorreram a estratégias representacionais e composicionais para o
primeiro plano dos Trabalhadores9 representados: eles são os únicos participantes
humanos representados e, portanto, devem ser entendidos como os elementos-chave na
composição (KRESS & VAN LEEUWEN, 2006); eles são participantes agentivados
(GEE, 2018), ou seja, representados como executando ações (neste caso, materiais de
colheita e artefatos de fabricação), o que permite que o leitor os identifique em termos de
identidade social, a dos Trabalhadores. Por fim, ocupam a maior área da composição,
indicando que são os protagonistas da narrativa.
6 Análise e discussão
Como Locke salienta, “os anúncios são bem-sucedidos quando ‘atingem o ponto’
com o público-alvo; um anúncio bem-sucedido apela a uma história ou histórias que seu
público-alvo costuma contar a si mesmo e, portanto, o público pode compreende-o”10.
Para cumprir seu objetivo comunicativo mais amplo - convencer os usuários a abraçar o
capitalismo e motivá-los a agir de acordo - o texto selecionado deve apresentar as três
dimensões de segurança, justiça e estímulo (CHIAPELLO & FAIRCLOUGH, 2003). Os
produtores de M III fazem isso ao embasar elementos que evocam os “efeitos patológicos”
(THOMPSON, 2017, p.37) do capitalismo, introduzindo elementos de ordens anteriores,
projeções de um melhor estado de coisas, que evocam ideologias bem estabelecidas
(DECIU, 2008, p.34). Discursos já disponíveis são recontextualizados para o público e os
combinam estrategicamente, orientando o leitor para a interpretação desejada.
A dimensão da segurança é expressa na representação da organização do trabalho
como um empreendimento colaborativo, com pequenos grupos de trabalhadores
trabalhando juntos em um ambiente pacífico, usando ferramentas adequadas, seguindo
métodos tradicionais. Os trabalhadores são representados como iguais, com todos os
participantes representados com roupas e implementos semelhantes, sem diferenças que
possam sugerir relações hierárquicas. De fato, os participantes hierarquicamente
superiores das atividades de trabalho representadas - ou seja, os responsáveis pela
9 Utilizo aqui maiúscula para distinguir o termo de seu uso comum. 10 Texto em inglês: “ads are successful when they ‘hit the spot’ with the target audience; a successful ad
appeals to a story or stories that its target audience habitually tells itself and is therefore sympathetic to”
(LOCKE, T., 2004, p.5).
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execução do trabalho - são omitidos. Isso é particularmente significativo nas atividades
descritas nos painéis do lado esquerdo, onde os ocidentais encarregados de reforçar o
trabalho teriam desempenhado um papel importante (CARIÑO & MONTEFORTE, 2009;
MCCARTHY, 2008).
Žižek chama de fantasias ideológicas “a discordância entre o que as pessoas
efetivamente fazem e o que pensam estar fazendo - a ideologia consiste no próprio fato
de as pessoas ‘não saberem o que estão realmente fazendo’”11. Apesar de M III retratar
cenas de exploração colonial, o leitor é estrategicamente afastado de fazer essas conexões.
La nacre, por exemplo, mostra o mergulho de pérolas, que ocorreu ao longo das costas
do sudeste da Ásia, Austrália e Pacífico (CARIÑO & MONTEFORTE, 2009, p.3).
Especificamente, descreve mergulho nu, um método comum de colheita de madrepérola
entre os aborígines australianos (McCARTHY, 2008). Esse método envolvia apneia
tradicional, isto é, pescar sem qualquer equipamento de mergulho, com pedras como
lastro e pescadores usando um clipe de osso ou os dedos para equalizar a pressão do
ouvido. Eles também carregavam uma faca para se defender dos ataques de tubarões, um
perigo tão comum que os barcos de pesca costumavam empregar encantadores de
tubarões. As condições reais de trabalho dos mergulhadores no século XIX variavam
“apenas na dificuldade de suas condições de trabalho, que muitas vezes beiravam a
crueldade. Em geral, eram mal pagos e mal alimentados, mantidos em dívidas sem fim
pelos patrões impiedosos e sempre expostos a doenças e riscos” (CARIÑO &
MONTEFORTE, 2009, p.54)12.
Os produtores do M III também recorrem a estratégias representacionais para
embasar as condições reais de trabalho dos participantes representados nos painéis do
lado direito: esses espaços de trabalho representam uma mistura romântica de tecnologias
do final do século XIX e da indústria de casas pré-industriais da revolução. Como Frieden
aponta, “deixando o colonialismo de lado, os direitos políticos eram severamente
11 ŽIŽEK, S. A mapa da ideologia. São Paulo, 2010. Disponível em:
https://psiligapsicanalise.files.wordpress.com/2014/09/zizek-slavoj-org-um-mapa-da-ideologia.pdf/.
Acesso em: 5/8/2020. Texto em inglês: “a discordance between what people are effectively doing and what
they think they are doing - ideology consists in the very fact that people “do not know what they are really
doing -” (ŽIŽEK, S., 1995, p.192). 12 Texto em inglês: “only in the harshness of their working conditions, which often bordered on cruelty. In
general, they were poorly paid and underfed, kept in endless debt by merciless bosses, and always exposed
to illness and risks” (CARIÑO & MONTEFORTE, 2009, p.54).
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limitados no mundo industrial”13. De fato, as condições de trabalho da maioria dos
trabalhadores modernos - incluindo os usuários do LEM - estavam muito longe das
pequenas oficinas intensivas em mão-de-obra descritas nos painéis certos, que estavam
desaparecendo quando M III foi publicado (DAUNTON, 2007).
A dimensão da justiça do primeiro espírito do capitalismo é baseada na ideologia
do progresso, na crença na evolução histórica através de estágios de desenvolvimento
histórico (BAUMAN & BRIGGS, 2003; HOBSBAWM, 1996). Ao transformar as
fronteiras espaciais em cronológicas, “selvagens e canibais no espaço foram convertidos
em orientais primitivos e exóticos no tempo”14, um movimento que envolve (des)locar
alguns habitantes como “anacronismos vivos, pessoas que pertenciam a épocas
anteriores”15. A “fantasia do antropólogo” - a crença de que, “embora saibamos que essas
pessoas existem aqui e agora, também as consideramos existentes no passado - na
verdade, é nosso próprio passado”16, e desempenha um papel fundamental na justificativa
da exploração das terras e habitantes das colônias.
A composição dos cartões, cujos painéis laterais devem ser lidos da esquerda para
a direita, já sugere significados relacionados a “velho” e “novo”, “antes” e “depois”17,
que tomados pelo seu valor de face, referem-se à ordem em que as atividades
representadas foram realizadas. Entretanto, outros significados são introduzidos
estrategicamente: os participantes da esquerda são representados em um ambiente natural,
compartilhando o mesmo habitat que as fontes dos materiais, até se misturando a ele; eles
realizam suas tarefas usando métodos e ferramentas ancestrais (La corne, L'albâtre) - ou
nenhuma ferramenta (L'ivoire). As tarefas que realizam parecem não exigir habilidades
específicas: em L'ivoire, as presas dos elefantes já estão caídas no chão, prontas para
serem apanhadas; em L'écaille, as tartarugas estão na superfície e presas fáceis para o
grupo de caçadores. Até La nacre, que mostra um aparelho mecânico, não mostra os
trabalhadores que o usam. De fato, algumas dessas atividades —como pescar e caçar em
13 Texto em inglês “leaving colonialism aside, political rights were severely limited in the industrial world”
(FRIEDEN, J. A., 2012, p.24). 14 Texto em inglês: “savages and cannibals in space were converted into primitives and exotic Orientals in
time” (MIGNOLO, 1988, p.35). 15 Texto em inglês: “living anachronisms, people who belonged in earlier times” (HINDESS, 2008, p.201). 16 Texto em inglês: [The] “anthropologist’s fantasy” [- the belief that] “although we know that these people
exist here and now, we also consider them to exist in the past [ - ] in fact, to be our own past” (RIEDER,
2008, p.31). 17 Texto em inglês: “old” and “new”, “before” and “after” (KRESS & VAN LEEUWEN, 2006).
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lugares exóticos, que aparecem em quatro das seis cartas deste conjunto— seriam
(algumas ainda são) consideradas atividades relaxantes, até passatempos para os
burgueses. Em contraste, os participantes à direita são representados em uma oficina,
vestindo aventais ou roupas ocidentais, cercados por instrumentos modernos e operando
máquinas sofisticadas —isto é, representadas como tendo acesso a novas tecnologias e
usando-as para criar cada artefato. O uso de diferentes paletas (cores vivas para
representar uma paisagem tropical e seus habitantes à esquerda, uma paleta suave para as
atividades internas à direita) reforça o contraste entre Primitivos e Modernos.
Os rótulos que acompanham uma imagem servem para orientar a interpretação
dos leitores (BARTHES, 1978), concentrando sua atenção em elementos específicos. No
M III, diferentes critérios foram utilizados para rotular os painéis direito e esquerdo,
reforçando ainda mais a diferença entre as tarefas executadas pelos primitivos e pelos
trabalhadores modernos. As etiquetas do lado direito nomeiam consistentemente as
atividades realizadas pelos trabalhadores com os instrumentos representados, chamando
a atenção para o hábil uso da tecnologia pelo trabalhador: sciage de bois (serragem de
madeira); palissage et sertissage (tecelagem e endurecimento); aplatissage
(achatamento); découpage (corte); e taillage (escultura). Por outro lado, apenas duas das
atividades à esquerda - chasse à tortue [caça às tartarugas] e pêche [pesca] - são
explicitamente mencionadas - embora sem nenhuma referência à maneira como as tarefas
são executadas. À esquerda, os nomes das localizações - carrière [pedreira] - as fontes
do material -bûffles [búfalos] - o participante que executa a tarefa -pêcheur [pescador].
O caso do L'ivoire é particularmente interessante, pois o rótulo -transport [transporte] -
refere-se a uma atividade apenas tangencialmente relacionada à obtenção de marfim.
A dimensão do estímulo está relacionada ao impacto positivo do progresso na vida
das pessoas e à promessa de uma vida mais esclarecida, saudável e próspera, com acesso
a novos produtos de consumo, o impacto de novos meios de comunicação possibilitados
pelas descobertas científicas e suas aplicações. Os principais aspectos da aventura
capitalista estão representados em M III. A liberação geográfica é sugerida pelas imagens
nos painéis da esquerda, onde céu azul, sol, vegetação exuberante e fauna exótica sugerem
lugares distantes (para o leitor-alvo), novos territórios anexados aos impérios coloniais e
que recentemente se tornaram conhecidos para o público em geral através de exposições,
livros didáticos e palestras públicas. As vantagens das novas tecnologias também estão
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presentes nos instrumentos e máquinas mostrados nos painéis do lado direito, usados para
criar materiais exóticos em itens de luxo que pertencem a famílias ocidentais modernas e
abastadas. Finalmente, o ícone do produto anunciado, LEM, que promete refeições
nutritivas para aqueles que não podiam pagar fontes caras de proteína sugere o papel da
ciência na nova sociedade capitalista.
No entanto, o elemento central do capitalismo burguês, o consumidor, está
visivelmente ausente nos textos selecionados. Os principais participantes humanos, ações
e eventos relacionados ao consumo dos artefatos representados nos painéis centrais são
estrategicamente omitidos. Os principais participantes omitidos são os burgueses, os
beneficiários dos itens representados no painel central superior; eles são “ricos,
milionários e vivem uma vida de alto padrão; sua riqueza lhes permite possuir o que os
outros desejam, objetos valiosos, itens de luxo, produtos de luxo”18. Entre esses itens de
luxo, valorizados por sua qualidade e exclusividade (BOLTANSKI & THEVENOT,
2006), estão os fãs (La Nacre), espetáculos (L'écaille) e estatuetas (L'ivoire, L'albâtre),
que pertencem a um mundo onde o valor é colocado no desejo gerado pelos produtos de
consumo (BOLTANSKI & THRVENOT, 2006). Esses artefatos são representados de
maneira a desviar a atenção do leitor de seus consumos e consumidores: eles são
descontextualizados, ou seja, mostrados fora do ambiente físico em que seriam usados -
como parte do vestuário de alguém ou como parte de uma coleção de artefatos
semelhantes em uma casa burguesa - e eles nem mesmo são nomeados nos rótulos que
acompanham a imagem. Dessa forma, os únicos protagonistas da narrativa desenvolvida
em cada cartão são os trabalhadores e as atividades envolvidas na produção de um artefato
feito com um material exótico: uma vez concluído o artefato, a história termina. Até os
rótulos que nomeiam cada cartão desviam a atenção do leitor do objeto em si, e, de
maneira consistente com o título da série, em relação aos materiais empregados na
elaboração.
O discurso constrói as pessoas por meio de suposições, em sua maioria
estereotipadas, sobre participantes representados e interativos, facilitando as relações de
identificação entre ambos. Focar a composição de um texto
18
Texto em inglês: “rich, millionaires, and they live the high life; their wealth allows them to own what
others want, valuable objects, luxury items, upscale products” (BOLTANSKI & THEVENOT, 2006,
p.195).
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…é uma maneira de chamar a atenção para as posições de leitura
‘inscritas’ nos textos. Ele também destaca a cumplicidade do leitor ativo
na produção de significado, chamando a atenção para os recursos que
um leitor precisa trazer para um texto, a fim de compreendê-lo19.
O foco de M III no trabalho e nos trabalhadores parece fortalecer a identificação
do público-alvo como membro desse grupo, com a burguesia sendo apontada como o
outro; no entanto, uma análise de como os elementos representacionais são combinados
no texto selecionado revela que não é esse o caso. De fato, dois critérios diferentes - que
podem ser amplamente rotulados como classe social (trabalhadores e burgueses) e estágio
de desenvolvimento (primitivos e modernos) - são usados para identificar os participantes
representados, que se envolvem em diferentes relações, dependendo da dimensão do
espírito do capitalismo representado.
TEXTUALIZAÇÂO
Dimensão Relações de igualdade Relações de desigualdade
Justiça Trabalhadores primitivos/
Trabalhadores modernos Trabalhadores/burguesia
Segurança Trabalhadores modernos/
trabalhadores primitivos
Estimulação Trabalhadores modernos/
burgueses Primitivos / Modernos
Tabela 1 –Textualização
Enquanto a segurança da fala é expressa por meio do estabelecimento de uma
relação de simetria entre os trabalhadores, representada como um grupo homogêneo em
oposição à burguesia (plano de fundo) e recontextualizada como a figura patriarcal de um
regime anterior, a justiça é construída sobre uma relação de assimetria entre trabalhadores
primitivos e trabalhadores modernos. A estimulação é construída sobre uma relação de
assimetria entre os primitivos (representados à esquerda) e os modernos - um grupo que
inclui trabalhadores modernos e burgueses - que são representados como tendo acesso às
vantagens do progresso - a tecnologia no caso da trabalhadores e os artefatos no caso da
burguesia.
19 Texto em inglês: “…is one way of bringing attention to the reading positions ‘inscribed’ in texts. It also
highlights the active reader’s ‘complicity’ in producing meaning, by drawing attention to the resources that
a reader needs to bring to a text in order to make sense of it” (TALBOT, 2007, p.46).
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Conclusão
Eventos comunicativos fazem parte de eventos sociais e culturais com dimensões
econômicas, políticas e sociais. Os discursos de um espírito do capitalismo são
dialeticamente inculcados como identidades ou modos de ser e encenados como práticas
sociais, que são em parte semióticas e em parte extra-semióticas. Como Robbins aponta,
“em algum momento de suas vidas, praticamente todo mundo desempenha o papel de
consumidor, trabalhador ou capitalista”20: comprando bens e serviços, trabalhando por
salários ou investindo em bancos, planos de pensão, educação etc., esperando lucrar.
Essas atividades - todas presentes no texto selecionado - são parte integrante da
“sociedade capitalista com a qual a maioria de nós está familiarizada e cujos símbolos,
bens e práticas literalmente saturam nossa vida cotidiana, bem como os bens culturais que
consumimos”21. Materializados em textos como os cartões de Liebig, os discursos do
capitalismo burguês envolvem seus usuários em uma cadeia de ações desencadeada -
mesmo antes de serem presenteados com o cartão - pela compra de um pote de LEM, o
ato original de consumo que dá lugar a outras práticas tipicamente capitalistas,
particularmente as de negociar - trocar, comprar ou vender os cartões de acordo com um
valor fixado pela oferta / demanda - e colecioná-los, em um ciclo interminável, uma vez
que a conclusão de um conjunto é apenas um pequeno passo para concluir toda a coleção,
uma perspectiva improvável enquanto a empresa continuasse a emitir novos cartões.
Para alguns atores sociais, no entanto, essas práticas envolvem itens de consumo
de luxo, ações e títulos de empresas lucrativas e artefatos exóticos coletados em terras
distantes. Para outros, eles envolvem tokens - neste caso, os cartões colecionáveis, mas
também outras formas de cultura disponibilizadas graças às possibilidades de reprodução
mecânica (BENJAMIN, 2000, p.221-254)22. Essa diferença entre quem consome o token
e quem tem acesso à coisa real não é questionada pelos discursos do capitalismo que
analisamos no texto selecionado; pelo contrário, a presença do símbolo oculta a ausência
20 Texto em inglês: “at some point in their lives, virtually everyone plays the roles of consumer, laborer, or
capitalist” (ROBBINS, R. H., 2014, p.2) 21 Texto em inglês: “the capitalist society with which most of us are familiar and whose symbols, goods,
and practices literally saturate our everyday lives as well as the cultural goods we consume” (LIPSCHUTZ,
2010, p.5). 22 BENJAMIN, W. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. In: ADORNO, T. et al. Teoria
da Cultura de massa. Trad. de Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Paz e Terra, 2000. p.221-254.
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do objeto, reforçando a crença de que em um regime capitalista todos têm acesso aos
benefícios do progresso; uma vez que eram todos “‘brancos’ por natureza e pertenciam a
uma comunidade racial imaginada que ultrapassava a idade, o sexo e a classe social”23.
Outros discursos promocionais do século XIX, principalmente para produtos de
sabão e higiene, já haviam recorrido ao que Hund & Pickering (2013) chamam de
“racismo de mercadorias”24, representações radicalizadas que serviam tanto para
generalizar estereótipos culturais quanto para “afirmar posições ideológicas consolidadas
por meio de interesses econômicos e políticos específicos”25. Por intermédio dessa versão
do racismo, “as classes mais baixas obtiveram participação na raça-mestre e, dessa forma,
foram definitivamente integradas nos domínios da branquitude”26. Assim,
independentemente da classe social, os brancos - nesse caso os que pertencem ao mundo
moderno - adquirem a identidade central do capitalismo, a dos consumidores. Ao
obscurecer a diferença entre usuários - e, portanto, questões de desigualdade de classe—
os discursos do capitalismo burguês de M III são inculcados como uma identidade
comum, um modo de ser baseado na identificação racial, e não na classe social. A
identificação racial foi um elemento central para a consolidação do capitalismo burguês,
uma vez que “aqueles que não estavam equipados com capital econômico e cujo capital
cultural era limitado por seu status social, poderiam, assim, acumular menos capital
simbólico racista”27.
As práticas colonialistas que fizeram da LEMCO um empreendimento lucrativo
foram temas frequentes nos cartões promocionais, promovendo uma narrativa pintada de
branco (HUND & PICKERING, 2013), onde a invenção de Liebig da fórmula do LEM
convergiu com a descoberta de Giebert do Uruguai como um ambiente adequado para a
produção do LEM. Contudo, as matérias-primas para o extrato de carne de Liebig foram
obtidas por meio dos mesmos processos e relações descritos em M III; se o extrato de
carne foi produzido em contextos bastante diferentes das oficinas idealizadas descritas
23 Texto em inglês: “‘white’ by nature and belonged to an imagined racial community which overrode age,
gender and social class” (HUND & PICKERING, 2013, p.10). 24 Texto em inglês: “commodity racism” (HUND, W. D. & PICKERING, M., 2013). 25 Texto em inglês: “assert ideological positions that are consolidated through specific economic and
political interests” (HUND, W. D. & PICKERING, M., 2013, p.12). 26 Texto em inglês: “the lower classes were granted membership in the master race and in this way they
were definitively integrated in the realms of whiteness” (HUND, W. D. & PICKERING, 2013, p.13). 27 Texto em inglês: “those who were not equipped with economic capital and whose cultural capital was
limited by their social status, thus could leastwise accumulate racist symbolic capital” (HUND, W. D. &
PICKERING, M., 2013, p.59).
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em M III, o mesmo ocorreu com os ambientes de trabalho da grande maioria dos
trabalhadores no início do século XX.
Neste artigo, me propus a explorar como os discursos do capitalismo burguês são
introduzidos em um conjunto de cartões promocionais da LEMCO. Uma análise crítica
mostra como os textos promocionais do início do século XX, que gozavam de grande
popularidade como ferramentas educacionais, podem justificar a desigualdade econômica
e a violência colonialista, ocultando a sujeição dos trabalhadores ocidentais à burguesia,
promovendo uma identificação racial questionável pela qual os trabalhadores ocidentais
faziam parte do grupo privilegiado de mestres, brancos ou colonizadores que
personificavam o progresso.
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Traduzido por Jamile Pastucjaki jamilepast@gmail.com
Recebido em 06/03/2020
Aprovado em 13/09/2020
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