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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS‐GRADUAÇÃO LÓGICA E METAFÍSICA
Gustavo Arja Castañon
CONSTRUTIVISMO SOCIAL: A CIÊNCIA SEM SUJEITO E SEM MUNDO
Rio de Janeiro
Agosto de 2009
II
Gustavo Arja Castañon
CONSTRUTIVISMO SOCIAL: A ciência sem sujeito e sem mundo
Um volume
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós‐Graduação Lógica e Metafísica do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Filosofia (Lógica e Metafísica).
Orientador: Alberto Oliva
Rio de Janeiro, 2009.
III
Gustavo Arja Castañon
CONSTRUTIVISMO SOCIAL: A ciência sem sujeito e sem mundo
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós‐Graduação Lógica e Metafísica do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Filosofia (Lógica e Metafísica).
Aprovada por:
________________________ (Alberto Oliva, Doutor, Universidade Federal do Rio de Janeiro)
________________________ (Antonio Augusto Passos Videira, Doutor, Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
________________________ (Marco Antonio Caron Ruffino, Doutor, Universidade Federal do Rio de Janeiro)
Rio de Janeiro, 03 de agosto de 2009.
IV
Dedico esta dissertação a Nathalie, meu amor, que ao viver ao meu lado faz com que eu me sinta em casa
neste mundo insano e sem valores.
V
Agradeço aqui,
A meu orientador Alberto Oliva, amigo mais antigo do que gostaria de confessar, que nunca se furtou ao trabalho a ele confiado e me ajudou
competente e generosamente na pesquisa para esta dissertação;
A meu professor Marco Ruffino, que teve sobre mim influência marcante no curso que ora completo, e que por suas ótimas aulas e estilo direto me
ajudou decisivamente a desembarcar na filosofia analítica;
Ao professor Antonio Augusto Passos Videira, que aceitou o convite para participar desta banca sem qualquer conhecimento prévio de meu
trabalho;
Ao Programa de Pós‐graduação em Lógica e Metafísica, que me ofereceu todas as condições necessárias para a conclusão de meu curso sem abrir mão do projeto de construção de uma pós‐graduação com padrões de exigência muito superiores aos usualmente encontrados na filosofia
brasileira;
A meus pais, sem os quais não estaria aqui hoje e com os quais tenho convivido tão pouco nos últimos seis anos de estudos interruptos;
E a minha esposa Nathalie, que tem enfrentado a falta de viagens e lazer que minha sucessão de empreitadas acaba também lhe impondo, sempre
com compreensão, ajuda e amor.
VI
Rien n’est plus dangereux qu’une idée, quand on n’a qu’une idée.
Alain
VII
RESUMO CASTAÑON, Gustavo Arja. Construtivismo Social: A ciência sem sujeito e sem mundo. Rio de Janeiro, 2009. Dissertação (Mestrado em Filosofia: Lógica e Metafísica) – Programa de Pós‐graduação Lógica e Metafísica, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.
Esta dissertação avalia o construtivismo social, abordagem filosófica associada
ao strong programme da sociologia da ciência. Os problemas específicos investigados são o da validade de sua classificação como forma de construtivismo e de sua pretensão de fazer da sociologia a única metaciência legítima. A investigação é filosófica e baseia‐se em pesquisa bibliográfica. Para a avaliação dos problemas propostos, começa por um sucinto inventário dos principais tipos de construtivismo contemporâneo (kantiano, piagetiano, radical, lógico, construcionismo social e socioconstrutivismo), concluindo por sua definição como tese epistemológica que defende a rejeição ao objetivismo, que a mente impõe formas prévias à experiência e que nossas teorias sobre o mundo são construções hipotético‐dedutivas. Além disso, conclui que não há implicação necessária entre o construtivismo e o idealismo. Em seguida, avalia as teses do construtivismo social começando por idéias de seus principais precursores, Wittgenstein, Kuhn e Feyerabend. Identifica suas teses ontológicas principais reconhecendo‐as como a maior fonte de dispersão no movimento, que se divide acerca delas em ao menos duas correntes gerais: um ʹconstrutivismo social epistêmicoʹ e um ʹconstrutivismo social ontológicoʹ, este último, uma variante de idealismo. Já suas teses epistemológicas principais são classificadas como variantes de relativismo, objetivismo sociológico e cientificismo anti‐positivista. Com base nesta descrição, o construtivismo social é criticado com alguns argumentos originais em duas linhas principais. Primeiro por tratar‐se, a despeito de seu cientificismo, simplesmente de mais uma abordagem em filosofia da ciência totalmente dependente das teses filosóficas de seus precursores, além de não usar em nenhum momento, como propugna, métodos científicos adequados para o teste de suas hipóteses. Segundo por não ser, apesar do uso do termo, um construtivismo, uma vez que defende um sujeito passivo na relação com o objeto do conhecimento, consistindo num estranho tipo de objetivismo, no qual o mundo físico não tem papel. Conclui‐se que esta abordagem se afastou profundamente da tradição filosófica construtivista, uma vez que renuncia à idéia de sujeito construtor de suas cognições em prol de uma sociedade que as causa. Além disso, o construtivismo social não só não tem qualquer semelhança com a investigação científica, como sequer pode ser considerado uma teoria filosófica consistente, pois reedita antigas auto‐refutações relativistas e cientificistas, usa de forma descuidada a linguagem e beira em alguns momentos ao irracionalismo.
DESCRITORES: CONSTRUTIVISMO SOCIAL, CONSTRUTIVISMO, FILOSOFIA DA CIÊNCIA, SOCIOLOGIA DA CIÊNCIA.
VIII
ABSTRACT CASTAÑON, Gustavo Arja. Construtivismo Social: A ciência sem sujeito e sem mundo. Rio de Janeiro, 2009. Dissertação (Mestrado em Filosofia: Lógica e Metafísica) – Programa de Pós‐graduação Lógica e Metafísica, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.
This dissertation evaluates the social constructivism, a philosophical approach
associated to the strong programme of sociology of science. The specific problems investigated are those about the validity of its classification as a kind of constructivism and of its pretension of making sociology the unique legitimate metascience. This is a philosophical investigation based on a bibliographical research. For the evaluation of the proposed problems, it begins with a succinct inventory of the contemporary constructivism main variants (kantian, piagetian, radical, logical, social constructionism and socioconstructivism), concluding by its definition as a epistemological thesis that defends the rejection to objectivism, that the mind imposes previous forms to the experience and that our theories on the world are hypothetical‐deductive constructions. Moreover, it concludes that there isnʹt necessary implication between constructivism and idealism. Soon after, evaluates the thesis of social constructivism begining with the ideas of its main precursors, Wittgenstein, Kuhn and Feyerabend. The dissertation identifies its main ontologicals thesis recognizing them as the greatest cause of division on the movement, which is divided in at least two general tendencies: a ʹepistemic social constructivismʹ and a ʹontological social constructivismʹ, this one, an variant of idealism. Its main epistemologicals thesis are classified as variants of relativism, sociological objectivism and anti‐positivist scientificism. Based on this description, social constructivism is criticized with some original arguments in two main lines. First for being itself, in spite of its scientificism, just one more approach in philosophy of science totally dependent of the philosophical thesis of its precursors, besides it doesn’t use in any moment, as it proposes, adequate scientific methods for the test of its hypotheses. Second for not being, in spite of its use of the term, a constructivism, once it defends a passive subject in the relation with the object of knowledge, consisting in a strange kind of objectivism, in which the physical world doesnʹt have role. It concludes that this approach has moved itself away from constructivist philosophical tradition, once it renounces to the idea of a building subject of his cognitions in behalf of a society that causes them. Moreover, the social constructivism doesnʹt have any similarity with scientific investigation, as also it cannot be considered a consistent philosophical theory, because re‐edits old relativists and scientificists auto‐refutations, uses language in a neglected way and in some moments comes closer to irrationalism.
KEY‐WORDS: SOCIAL CONSTRUCTIVISM, CONSTRUCTIVISM, PHILOSOPHY OF SCIENCE, SOCIOLOGY OF SCIENCE.
IX
SUMÁRIO
1. – Introdução 01
2. – Construtivismo 10
2.1. – Construtivismo em Kant 12
2.2. – Construtivismo em Piaget 19
2.3. – Outros Construtivismos contemporâneos 26
2.3.1 – Construtivismo Radical 27
2.3.2 – Construcionismo Social 34
2.3.3 – Socioconstrutivismo 41
2.3.4 – Construtivismo Lógico 47
2.4. – Definição de Construtivismo 54
3. – Construtivismo Social 62
3.1. – Caracterização geral 63
3.2. – Idéias antecedentes em Filosofia da Ciência 71
3.2.1 – Wittgenstein e a dissolução linguística da epistemologia 71
3.2.2 – Kuhn e a sociologização da epistemologia 79
3.2.3 – Feyerabend e a anarquização da epistemologia 89
3.3. – Construtivismo Social e Ontologia 100
3.3.1. – O que existe para o construtivismo social? 100
3.3.2. – Construção social de quê? 107
3.3.3. – O Construtivismo Social Ontológico 117
3.4. – Construtivismo Social e Epistemologia 126
3.4.1. – É possivel conhecer algo sobre o mundo? 127
3.4.2. – O que é e como se legitima o conhecimento? 133
3.4.3. – O problema do relativismo 137
3.4.4. – Qual é a relação entre o sujeito e o objeto? 143
3.4.5. – Qual é o método científico de investigação da ciência? 154
X
4. – Avaliação crítica do Construtivismo Social 161
4.1. – Uma filosofia da ciência sem filosofia 162
4.1.1. – A circularidade da pretensão cientificista 162
4.1.2. – Não existe descritivismo puro 166
4.1.3. – Mais do mesmo: CS é a Nova Filosofia da Ciência 168
4.2. – Uma investigação sem método 171
4.3. – Um construtivismo sem sujeito 180
4.4. – Uma ciência sem mundo 185
4.5. – Um conhecimento sem verdade 198
5. – Conclusão 208
Referências Bibliográficas 217
1
Capítulo 1
Introdução
O tema abordado aqui é o do construtivismo social contemporâneo, conjunto
de teses filosóficas associadas ao strong programme da sociologia da ciência. Os
problemas específicos investigados sobre o tema são o da validade de duas teses
dessa abordagem. A primeira é sua alegação de que é uma abordagem construtivista,
a segunda sua pretensão de fazer da sociologia não só uma disciplina metacientífica,
como ainda a única reconstrução metacientífica legítima.
Esta investigação é de natureza filosófica e se baseia em fontes primárias e
secundárias selecionadas através de pesquisa bibliográfica conduzida principalmente
nas bases de dados SSCI e Philosopherʹs Index. Sua necessidade se dá uma vez que
nos últimos anos assistimos a uma proliferação da utilização do termo construtivismo,
não somente na filosofia, mas também na psicologia, educação, neurociência, lógica,
matemática e, particularmente, sociologia. Não há, até hoje, nenhuma pesquisa em
larga escala de todas essas alegações de construtivismo (ROCKMORE, 2005),
2
portanto, nenhum consenso sobre a definição do termo pode ser alcançado de forma
completa. No entanto, se o tomamos em seu significado tradicional – posição que
defende o papel ativo do sujeito na sua relação com o objeto do conhecimento e na
construção de suas estruturas cognitivas e representações da realidade – vemos que
diversas posições autodenominadas ‘construtivistas’ assumem teses que contrariam
o espírito original dessa tradição filosófica. Assistimos hoje, sob o abrigo do termo
‘construtivismo’, uma multiplicação de posições que identificam essa tese com o anti‐
realismo, atacando o pressuposto do realismo ontológico que está na base do
pensamento científico moderno. Algumas dessas posições inclusive consideram o
sujeito um elemento passivo do processo de “construção” do conhecimento.
Esta dissertação realiza uma investigação dos pressupostos filosóficos de uma
das mais influentes utilizações contemporâneas do termo, o Construtivismo Social de
Barry Barnes e David Bloor, também denominado às vezes socioconstrutivismo ou tese
forte da sociologia da ciência, assim como rastrear suas origens filosóficas. Atualmente,
outras influentes utilizações do termo são efetuadas pela epistemologia genética de
Jean Piaget (o construtivismo piagetiano), pelo construcionismo social (abordagem
pós‐moderna da psicologia social), pelo construtivismo radical (tese filosófica que
espalha sua influência por setores da educação, psicoterapia e neurociência), pelo
socioconstrutivismo (abordagem da psicologia social e do desenvolvimento) e pelo
construtivismo lógico. No entanto, estas utilizações só serão abordadas nesta
investigação a título de delimitação do conceito geral de construtivismo e
diferenciação em relação ao construtivismo social.
3
A visão tradicional do conhecimento científico o concebe como produto de
uma atividade de investigação que só aceita dois tipos de veredicto: o da lógica e o
da experiência. O construtivismo social representa uma aberta e radical oposição a
essa visão, e questiona o pressuposto de que a ciência possui uma racionalidade
intrínseca para atribuir‐lhe o estatuto de uma construção social como qualquer outra.
Uma vez que esta espécie de relativismo exerce influência cada vez maior nos meios
acadêmicos brasileiros, particularmente nos cursos de pedagogia, faz‐se necessária
uma investigação pormenorizada de seus pressupostos. O sociologismo e o
historicismo característicos do construtivismo social, que é uma variante da filosofia
pós‐moderna, disseminam a idéia de que são as relações de poder e os interesses
políticos que determinam a aceitação ou a rejeição de teorias científicas. A questão
aqui é, portanto, definir se a análise filosófica pode determinar a racionalidade da
investigação científica, reconstruindo‐a epistemicamente, ou se este papel caberia aos
estudos voltados para a identificação dos aspectos políticos e sociais desta atividade.
1.1 – Delimitação do Problema
Os problemas específicos a serem objeto de investigação filosófica dentro do
tema escolhido podem ser definidos através de duas perguntas: P1) O construtivismo
social é construtivista? P2) O construtivismo social pode ser formulado como uma
metaciência consistente?
4
Podem‐se ainda desmembrar os problemas acima com as perguntas: P1a)
Como definir construtivismo? P1b) Qual o papel do sujeito no processo de
construção do conhecimento para o construtivismo social? P1c) O que, para esta
abordagem, se pode conhecer?
Em segundo lugar temos que perguntar: P2a) A imagem de ciência oferecida
pelo construtivismo social é consistente? P2b) A pretensão de independência em
relação à filosofia da ciência que apresenta o construtivismo social é sustentável
filosoficamente?
Assim, a análise desses problemas passa por três questões intermediárias
fundamentais, que determinarão a seqüência lógica do desenvolvimento da
dissertação:
Primeira, o que é construtivismo e quais são suas raízes filosóficas? Ou seja,
qual é a história filosófica da elaboração deste conceito? Aqui, particularmente, se
procurará estabelecer o conceito de construtivismo com o qual trabalharemos na
dissertação e responder se há uma implicação necessária entre o construtivismo e o
idealismo.
Segunda, quais são as abordagens filosóficas ou teóricas contemporâneas que
usam o termo ‘construtivismo’ para se identificarem? Em que sentido elas se
afirmam construtivistas? Que posições assumem frente ao realismo ontológico, à
relação com o objeto do conhecimento e à atividade do sujeito?
5
Terceira, quais são as teses adotadas pelo construtivismo social? Quais são
suas posições ontológicas e epistemológicas? Como se distingue de outras alegações
de construtivismo contemporâneas?
Assim, se estabelecerão as condições necessárias para a formulação de uma
resposta aos dois problemas investigados pela dissertação, o do caráter construtivista
e o da consistência do construtivismo social.
1.2 – Hipóteses
As hipóteses que serão investigadas aqui referentes aos problemas primários e
secundários acima propostos são, começando pela hipótese geral, as seguintes:
O construtivismo social é simplesmente mais uma abordagem em filosofia da
ciência derivada de idéias surgidas da obra do segundo Wittgenstein e de Thomas
Kuhn e Paul Feyerabend. Não pode ser considerada construtivista, pois defende uma
imagem de sujeito passiva na relação com o objeto do conhecimento, se constituindo
num tipo de objetivismo, e em suas versões mais radicais, num estranho caso de
idealismo sem sujeito. A renúncia à concepção construtivista de sujeito construtor de
suas cognições em prol de uma sociedade que constrói os sistemas de crenças,
caracteriza uma posição que, utilizando‐se do termo construtivismo, se afastou
profundamente dessa tradição filosófica.
Esta hipótese geral é sustentada por três hipóteses auxiliares:
6
Primeira: Apesar de encontrarmos traços precursores do construtivismo na
filosofia socrático‐platônica, assim como em autores como Epicteto ou ainda Vico, o
construtivismo é tese característica da filosofia contemporânea, sendo derivado da
obra de Kant. É um equívoco grave a construção artificial de supostas polaridades
entre realismo e construtivismo e entre objetivismo e relativismo. De fato, as polaridades
existentes são as estabelecidas entre objetivismo e construtivismo (em relação à
questão da origem do conhecimento), realismo e idealismo (em relação à questão da
natureza do objeto), e criticismo e relativismo (em relação à questão da possibilidade
do conhecimento). Com base nestas posições, devem ser avaliadas todas as
reivindicações de construtivismo filosófico, que se define necessariamente pela
rejeição ao objetivismo, mas pode oscilar entre o realismo e o idealismo, e entre o
criticismo e o relativismo.
Segunda: o construtivismo depende de uma concepção ativa de sujeito do
conhecimento, como construtor primeiro de intuições sensíveis e depois de hipóteses
causais. Assim, considera‐se o construtivismo social como não‐construtivista, uma
vez que dissolve o conceito de sujeito ativo no processo de construção do
conhecimento. Assim, tanto a primeira quanto a segunda hipótese auxiliar afirmam
que não há vinculação necessária entre construtivismo e idealismo.
Terceira: o construtivismo social é inconsistente por tentar colocar no âmbito
da sociologia as questões epistemológicas relativas à sua própria validade. Ainda, em
sua vertente mais radical que rejeita o realismo ontológico, o construtivismo social
faz das concepções socialmente construídas da realidade a única e própria realidade,
7
afastando‐se assim dos limites da sociologia do conhecimento tradicional e entrando
no terreno do pós‐modernismo. Além disso, esta corrente se sustenta flagrantemente
em concepções derivadas das obras de Wittgenstein, Kuhn e Feyerabend, sendo,
portanto, dependente da filosofia da ciência e incapaz de erigir‐se como a disciplina
metacientífica auto‐suficiente.
1.3 – Estrutura da dissertação
No capítulo dois, que se segue a esta introdução, serão definidas as teses
ontológicas e epistemológicas centrais do construtivismo contemporâneo. Será
exposta a origem das teses construtivistas contemporâneas em Kant e na abordagem
que introduziu o termo no século XX, a Epistemologia Genética de Jean Piaget.
Posteriormente, serão avaliados os usos contemporâneos do termo pelo
construtivismo radical, construcionismo social (que não se deve confundir com o
construtivismo social), socioconstrutivismo e construtivismo lógico. Finalmente, com
base nas posições investigadas, será estabelecido o que há de comum entre as
correntes e que, desse modo, poderia caracterizar de um modo menos controverso o
construtivismo como um todo.
No capítulo três serão apresentadas as principais teses do construtivismo
social, com especial ênfase nas ontológicas e epistemológicas. Começa com uma
sumária contextualização e apresentação conceitual do construtivismo social, para
8
logo depois abordar algumas idéias de Wittgenstein, Kuhn e Feyerabend que tiveram
influência fundamental na configuração filosófica da corrente. Os dois últimos itens
do capítulo serão dedicados a uma avaliação cuidadosa das teses ontológicas e
epistemológicas do construtivismo social, buscando estabelecer o que pode ser dito
de consensual e o que há de divergência entre as correntes e principais proponentes
do autodenominado “strong programme”.
No quarto capítulo apresentarei cinco críticas gerais ao construtivismo social,
das quais duas pretendem ter o caráter de críticas originais. A primeira diz respeito
ao fato de que, apesar de se apresentar como ciência da ciência e crítico da filosofia, o
construtivismo social nada mais é que outra filosofia da ciência; só que inconsistente
e praticada sem rigor algum. A segunda diz respeito ao fato de que os métodos
usados pelo construtivismo social para investigar cientificamente a ciência não são
científicos e são incapazes de testar alegações acerca de relações de causa e efeito,
fato este que aparentemente nunca foi abordado na literatura sobre o strong
programme. A terceira é a de que o construtivismo social não é estrito senso uma
variante de construtivismo, não faz parte dessa tradição do pensamento ocidental,
pois não existe, para esta abordagem, um sujeito ativo. A quarta, é que ela defende
uma das teses mais descabidas da história da filosofia da ciência, a de que o mundo
não faz diferença na obtenção de conhecimento científico. Por fim, abordarei
novamente o problema do relativismo e da definição de conhecimento adotada por
essa vertente, criticando as consequências de se rejeitar a verdade como ideal
normativo.
9
Por fim concluo a dissertação recapitulando os motivos que me levam a
acreditar que as hipóteses expostas nesta introdução foram bem fundamentadas,
além de chamar a atenção para os potenciais efeitos práticos danosos do
construtivismo social.
10
Capítulo 2
Construtivismo
Neste capítulo serão definidas as teses centrais do construtivismo
contemporâneo, com o objetivo de estabelecer o quanto o Construtivismo Social as
assume. Para tal, serão avaliados os principais usos contemporâneos do termo a fim
de esclarecer como se posicionam em relação a três questões. A primeira é ontológica:
Q1) Existem objetos independentes da mente humana? À posição que dá uma
resposta afirmativa a esta questão chamaremos realismo ontológico, e uma resposta
negativa, idealismo.
A segunda e terceira a se averiguar é como as abordagens construtivistas se
posicionam quanto às questões epistemológicas: Q2) É possível conhecer algo sobre
os objetos que existem independentemente da mente?; Q3) Qual é a relação entre o
sujeito e o objeto do conhecimento? Quanto à Q2, as respostas serão classificadas em
três posições: dogmatismo (é possível conhecer o objeto em si mesmo), criticismo (é
possível conhecer o modo como os objetos afetam nossas representações sensíveis) e
11
ceticismo (não é possível conhecer nada sobre os objetos reais). As respostas à Q3
serão classificadas como objetivistas (o objeto determina em nós as representações
que temos dele) ou construtivistas (nós construímos nossas representações do
objeto).
Será evitado durante a dissertação, na construção de argumentos próprios, o
uso dos termos realismo e idealismo para quaisquer outras posições que não as
ontológicas, sejam epistemológicas, semânticas ou axiológicas. Procurarei
fundamentar a hipótese de que grande parte da confusão que cerca a utilização do
termo ‘construtivismo’ é devida a utilização dos termos ‘realismo’ e ‘idealismo’ em
sentido epistemológico (é possível ou não o conhecimento acerca de objetos reais) e
semântico (a verdade é ou não uma relação objetiva entre o mundo e a linguagem).
Começaremos pela exposição da origem das teses construtivistas
contemporâneas em Kant e pela abordagem que introduziu o termo no século XX, a
Epistemologia Genética de Jean Piaget. Posteriormente, avaliaremos os usos
contemporâneos do termo sucessivamente na abordagem do construtivismo radical,
construcionismo social (que não se deve confundir com a tese forte da sociologia da
ciência, o construtivismo social, objeto desta dissertação que não será abordado neste
capítulo), socioconstrutivismo e construtivismo lógico. Finalmente, com base nas
posições investigadas, será estabelecido o que há de comum entre as correntes e que
portanto poderia caracterizar de um modo menos controverso o construtivismo
como um todo.
12
2.1 – Construtivismo em Kant
O termo ‘construtivismo’ tem origem no verbo latino struere, que significa
organizar, dar estrutura. Assim, desde sua origem esta palavra assume
implicitamente a existência de um sujeito que organiza. A diferença é clara quando a
comparamos com o verbo ‘formar’, ou quando comparamos o termo ‘construção’
com o termo ‘formação’. Uma estrutura que se forma, não pressupõe um sujeito que
a organiza. Uma estrutura que se constrói, pressupõe a atividade de um sujeito.
Ainda que muitas vezes encontremos referências ao suposto caráter precursor
da filosofia de Sócrates em relação ao construtivismo, ou ainda de Epicteto, de Vico,
ou até da teoria platônica da hipótese superior, para uma correta compreensão desta
corrente de pensamento na filosofia contemporânea é necessário recorrer à obra de
Immanuel Kant.
A inversão do sentido da relação entre sujeito e objeto presente na obra de
Kant é usualmente (BROUWER, 1983; HACKING, 1999; MAHONEY, 2004;
PHILLIPS, 1995; RYCHLAK, 1999; ROCKMORE, 2005; VON GLASERSFELD, 1984;)
considerada a raiz do construtivismo contemporâneo. Tradicionalmente, a filosofia
ocidental pensava o conhecimento como uma determinação do sujeito cognoscente
pelo objeto conhecido. Kant (2001) apresenta o processo de conhecimento como a
organização ativa por parte do sujeito do material disperso e fragmentário que nos é
fornecido pelos sentidos, impondo a este as formas da sensibilidade e as categorias
do entendimento. Ou seja, para o construtivismo, o sujeito constrói suas
13
representações dos objetos, e não recebe passivamente impressões causadas por
estes. O sujeito para o construtivismo é proativo, é foco de atividade do universo, e
não um recipiente passivo de estímulos do ambiente.
O construtivismo só pode ser adequadamente compreendido a partir da idéia
que Kant chamou de “grande luz” e que de fato condicionou toda produção
filosófica posterior à sua obra. Esta é a distinção entre fenômeno e númeno. Para
Kant, o conhecimento sensível não nos revela as coisas como são, e sim, como
aparecem para o sujeito. Por isso nos dão acesso a fenômenos. Já o conhecimento
intelectivo é faculdade de representar aqueles aspectos das coisas que, por sua
própria natureza, não podem ser captados por meio dos sentidos, os númenos. São
conceitos do intelecto, por exemplo, os de possibilidade, existência, necessidade e
semelhança, que não derivam dos sentidos.
Assim, o que conhecemos do mundo são fenômenos, não númenos. Conhecemos
o aparecer das coisas para nossa consciência, não a essência daquilo que acreditamos
estar fora de nós: ‘fenômeno’, ordinariamente, significa ‘aparição’. Isso não implica,
obviamente, que não há um mundo lá fora, mas somente que não temos acesso ao
que este mundo é em si mesmo. As classificações corriqueiras de Kant como idealista
são equivocadas e foram de resto contestadas pelo próprio. Nos “Prolegômenos” ele
reapresenta sua posição sobre a questão do idealismo de forma inequívoca:
O idealismo consiste na afirmação de que não existem outros seres excepto os seres pensantes; as restantes coisas, que julgamos perceber na intuição, seriam apenas representações nos seres pensantes a que não corresponderia, na realidade, nenhum objecto exterior. Eu, pelo
14
contrário, afirmo: são‐nos dadas coisas como objectos dos nossos sentidos e a nós exteriores, mas nada sabemos do que elas possam ser em si mesmas; conhecemos unicamente os seus fenômenos, isto é, as representações que em nós produzem, ao afectarem os nossos sentidos. Por conseguinte, admito que fora de nós há corpos, isto é, coisas que , embora nos sejam totalmente desconhecidas quanto ao que possam ser em si mesmas, conhecemos mediante as representações que o seu efeito sobre a nossa sensibilidade nos procura, coisas a que damos o nome de um corpo, palavra essa que indica apenas o fenômeno deste objecto que nos é desconhecido, mas nem por isso, menos real. Pode a isto chamar‐se idealismo? É precisamente o seu oposto. (KANT, 2003, p.58)
Para Kant (2001), nossa mente tem uma estrutura dada, que enquadra os
dados da experiência em suas formas e categorias a priori. Desta forma, só podemos
conhecer em si mesmos aqueles conceitos que são resultado de uma especulação
racional.
E é na busca pela condição de possibilidade da ciência matemática que o
termo ‘construção’ começa a ser utilizado em Kant. Para ele, a ciência em geral se
basearia num tipo de juízo que a um só tempo acrescenta algo de novo ao sujeito
(sintético) e também não depende da experiência, ou seja, é universal e necessário (a
priori): este é o juízo sintético a priori. Todo Prolegômenos e toda Crítica da Razão Pura
gravitam em torno deste problema central. Encontrar o fundamento do
conhecimento, para Kant, é explicar como são possíveis juízos sintéticos a priori.
Os juízos sintéticos a priori unem a aprioridade, ou seja, universalidade e
necessidade, com a fecundidade, ou seja, a sinteticidade. Exemplos seriam as
operações aritméticas, os juízos da geometria (como por exemplo, todo triângulo tem
sua área calculada em função de sua base multiplicada por sua altura e dividida por
15
dois) e os juízos da física (em todas as mudanças do mundo físico a quantidade de
matéria permanece invariada). Nestes conceitos, ultrapassamos o conceito de
triângulo ou de matéria para acrescentar‐lhes a priori algo que não pensávamos nele.
Assim temos três tipos de juízos, e três fundamentos diferentes para eles. A
verdade ou falsidade de um juízo analítico a priori é determinada pelo princípio da
identidade e da não‐contradição uma vez que o sujeito e o predicado se equivalem,
ou seja, pela lógica. A verdade ou falsidade de um juízo sintético a posteriori é
determinada pela experiência sensível. Por fim, temos que responder qual é o
fundamento do juízo sintético a priori.
Para Kant (2003), é a capacidade de construção que torna possível o juízo
sintético a priori, e portanto, a matemática. Esta precisa ter como fundamento uma
intuição pura, “na qual ela possa representar todos os seus conceitos in concreto e, no
entanto, a priori, ou, como se diz, construí‐los” (KANT, 2003, p. 48). Quando
demonstramos um teorema em geometria, compreendemos que não devemos seguir
passo a passo aquilo que se vê na figura nem nos apegarmos ao simples conceito
desta para apreender suas propriedades. O que devemos fazer é pensar e
representar, por nossos próprios conceitos, o objeto geométrico em questão, ou seja,
construí‐lo. Construindo este objeto, podemos saber com segurança alguma coisa a
priori (independentemente da experiência), pois sabemos não atribuir a este objeto
senão aquilo que nós próprios colocamos nele:
16
Aquele que primeiro demonstrou o triângulo isósceles (fosse ele Tales ou como quer que se chamasse) teve uma iluminação; descobriu que não tinha que seguir passo a passo o que via na figura, nem o simples conceito que dela possuía, para conhecer, de certa maneira, as suas propriedades; que antes deveria produzi‐la, ou construí‐la, mediante o que pensava e o que representava a priori por conceitos e que para conhecer, com certeza, uma coisa a priori nada devia atribuir‐lhe senão o que fosse consequência necessária do que nela tinha posto, de acordo com o conceito. (KANT, 2001, 17)
Mas e quanto aos objetos presentes no mundo? Afirma Kant (2001) na Crítica
que a razão vê só aquilo que ela própria produz segundo seu projeto, e que, com os
princípios dos seus juízos ela deve estar à frente e obrigar a natureza a responder às
suas perguntas. Caso contrário, se feitas ao acaso e sem um plano prévio, nossas
observações não reconheceriam nem se ligariam entre si, portanto, não construiriam
relações que unissem estes fenômenos na forma de leis. A razão procura na natureza
o que põe nela, e necessita de um plano, ou seja, uma hipótese prévia:
...a razão só entende o que produz segundo seus próprios planos; que ela tem que tomar a dianteira com princípios, que determinam os seus juízos segundo leis constantes e deve forçar a natureza a responder suas indagações em vez de se deixar guiar por esta; de outro modo, as observações feitas ao acaso, realizadas sem plano prévio, não se ordenam segundo a lei necessária, que a razão procura e de que necessita. A razão, tendo por um lado os seus princípios, únicos a poderem dar aos fenômenos concordantes a autoridade de leis e, por outro, a experimentação, que imaginou segundo estes princípios, deve ir ao encontro da natureza, para ser por esta ensinada, é certo, mas não na qualidade de aluno que aceita tudo o que o mestre afirma, antes na de juiz investido nas suas funções, que obriga as testemunhas a responder aos quesitos que lhes apresenta. Assim, a própria Física tem que agradecer a revolução, tão proveitosa, do seu modo de pensar unicamente à idéia de procurar na natureza (e não imaginar), de acordo com o que a razão nela pos, o que nela deverá aprender e que por si só não alcançaria saber... (KANT, 2001, p.18)
17
Nesta passagem, Kant nos apresenta o que será posteriormente a essência do
construtivismo e da revolução que ele provoca. Até então, se havia tentado explicar o
conhecimento supondo que era o objeto (quer empírico, quer ideal como idéias
inatas) que determinava, num sujeito passivo, uma representação de si mesmo. Kant
inverteu estes papéis, afirmando que não é o sujeito que, conhecendo, descobre as
leis do objeto, mas sim, ao contrário, que é o objeto, quando é conhecido, que se
adapta às leis do sujeito que o conhece. Ou seja, é o sujeito, na atividade de
representar o objeto, que o enquadra, ativamente, nas formas a priori de sua mente,
construindo a representação deste:
Até hoje admitia‐se que o nosso conhecimento se devia regular pelos objetos; porém, todas as tentativas, para descobrir a priori, mediante conceitos, algo que ampliasse nosso conhecimento, malogravam‐se com este pressuposto. Tentemos, pois, uma vez, experimentar se não se resolverão melhor as tarefas da metafísica, admitindo que os objetos se deveriam regular pelo nosso conhecimento, o que assim já concorda melhor com o que desejamos, a saber, a possibilidade de um conhecimento a priori desses objetos, que estabeleça algo sobre eles antes de nos serem dados. (...) Se a intuição [dos objetos] tivesse que se guiar pela natureza dos objetos, não vejo como deles se poderia conhecer algo a priori; se, pelo contrário, o objeto (enquanto objeto dos sentidos) se guiar pela natureza da nossa faculdade de intuição, posso perfeitamente representar essa possibilidade. (KANT, 2001, p.21‐22)
Assim podemos indicar dois sentidos em que o termo ‘construção’ é usado em
relação à filosofia kantiana. O primeiro, mais básico e original, é o que ocorre em
nossas intuições empíricas e, por exemplo, nos é lembrado por Longuenesse (1998),
que indica que nossas representações dos objetos empíricos são construídos de forma
automática, pelas estruturas inatas de nossa mente. Neste sentido, a mente consciente
18
é obrigada a construir representações do mundo que obedeçam estas leis. Boghossian
(2006) chama este modelo de cookie‐cutter, pois a mente recortaria o material caótico
dos sentidos impondo‐o limites de acordo com suas formas inatas.
O segundo, mais geral e superficial, indica o processo autônomo de construção
de hipóteses sobre a natureza para posterior teste experimental de sua validade, que
vimos na última citação de Kant. Novamente Longuenesse (1998) afirma que para
Kant os conceitos empíricos são dados a posteriori, pois construídos a partir de
representações singulares.
A “revolução copernicana na filosofia” de Kant teve vários desdobramentos,
gerando interpretações construtivistas idealistas (como as de Fichte, Schelling e
Schopenhauer), pragmatistas (como a de Hans Vaihinger) e realistas (como a de Karl
Popper). Schopenhauer (1950) afirma na primeira frase de O Mundo como Vontade e
Representação: “O mundo é uma representação minha.”. Hans Vaihinger (1924), em A
Filosofia do “como‐se”, defende que nossas teorias seriam ficções conscientes cujo
objetivo não é alcançar a verdade sobre o mundo, e sim, orientar nossas ações
eficientemente, pragmaticamente. Karl Popper, que dá o nome à escola filosófica
fundada por ele de Racionalismo Crítico em homenagem ao criticismo kantiano, julga
(POPPER, 1977) sua filosofia uma interpretação realista da filosofia kantiana.
Resumindo a posição kantiana em relação às questões investigadas aqui,
podemos afirmar que ela dá as respostas do realismo, criticismo e construtivismo.
19
2.2 – Construtivismo em Piaget
Jean Piaget, através do desenvolvimento de sua Epistemologia Genética, foi
aquele que introduziu o termo ‘construtivismo’ no século XX (VON GLASERSFELD,
1998), em sua obra Logique et connaissance scientifique, de 1967. A Epistemologia
Genética é a tentativa efetuada por Piaget (1973) de abordar cientificamente algumas
questões da teoria do conhecimento através da investigação da gênese das estruturas
cognitivas do sujeito, problema central de sua obra. Aceitando a distinção de Leibniz
entre verdades de razão e verdades de fato, Piaget distingue conhecimento formal de
conhecimento empírico. As afirmações das ciências formais não obtêm seu valor de
verdade através de observações empíricas; são verdades necessárias e universais. Já
as afirmações das ciências empíricas adquirem seu valor de verdade em função da
possibilidade de serem verificadas à luz dos fatos que enunciam. Esses dois tipos de
conhecimento são irredutíveis. Assim sendo, as verdades de fato não podem ser
alcançadas por algum tipo de dedução lógica a priori já que são contingentes, nem as
verdades formais podem ser alcançadas a partir da experiência empírica, pois são
necessárias. No entanto, apesar dessa irredutibilidade, os fenômenos físicos podem
ser representados e inclusive antecipados por modelos matemáticos. Mas de onde
vêm esses dois tipos de conhecimento?
As respostas tradicionais a esta pergunta são as empiristas e as racionalistas.
Para o empirismo, que defende aquilo a que posições construtivistas se referem
geralmente como ‘objetivismo’, a origem do conhecimento estaria na realidade; o
20
objeto “imporia” suas formas de manifestação a uma mente encarada como um
receptáculo passivo. Para o racionalismo, o conhecimento é inato e sua evolução seria
apenas atualização de estruturas pré‐formadas. Piaget postula a terceira resposta
possível, que é a construtivista. Para ele, a construção do conhecimento exige uma
interação necessária entre o sujeito que conhece e o objeto conhecido. É o sujeito que,
ativo e a partir da ação, constrói suas representações de mundo interagindo com o
objeto do conhecimento. A diferença principal do construtivismo piagetiano para o
construtivismo kantiano é que para Piaget, além das representações dos objetos, nós
construímos também as próprias estruturas da mente através das quais
posteriormente construiremos as representações dos objetos.
Piaget (1979) desenvolve um modelo de desenvolvimento cognitivo
construtivista, ricamente sustentado por dados empíricos, que apresenta o sujeito
como artífice principal, através da sua ação no mundo, de suas próprias estruturas
cognitivas. Dois dos conceitos principais de Piaget, que esclarecem a forma como ele
explicava o processo de construção do conhecimento por parte do sujeito, são os de
assimilação e acomodação. Quando uma criança ou qualquer pessoa tem uma
experiência que não se coaduna com seus esquemas e teorias, ela primeiramente
tenta assimilar essa experiência em seus esquemas existentes. No entanto, se ela
percebe que suas explicações e predições são repetidamente desmentidas pela
experiência, prevalece a tendência de o esquema se modificar de modo a acomodar‐se
a essa nova informação. É fundamental perceber aqui o papel do ambiente no
processo de construção do conhecimento. Ao se opor às expectativas do esquema
21
para o funcionamento do mundo, a informação que vem do ambiente se revela como
independente da vontade e das crenças do sujeito do conhecimento. Piaget,
claramente, é um realista. De forma semelhante a Popper (1975), ele acredita que o
mundo vai moldando nossos esquemas quando os desmente seguidamente, exigindo
uma nova acomodação.
Muitos autores que se consideram ligados à tradição construtivista confundem
o construtivismo, que é uma tese epistemológica, com o idealismo, que é uma tese
ontológica. O construtivismo nos oferece uma resposta para como obtemos
conhecimento. O idealismo e o realismo nos oferecem respostas sobre a natureza
daquilo que conhecemos. Como o construtivismo rejeita o objetivismo, tipicamente
muitos autores acabam concluindo que essa rejeição equivale a uma rejeição ao
realismo, o que é um equívoco. É o que observa Held (1998, p.194) quando afirma
que os construcionistas sociais (uma das correntes a serem avaliadas neste capítulo)
tipicamente presumem que um processo de conhecimento ativo por parte do sujeito,
que está implícito no próprio termo ‘construcionismo’, necessita de uma ontologia
anti‐realista para se sustentar. Discordando desta interpretação, ela lembra que a
própria epistemologia genética de Piaget é uma forma de construtivismo que se
baseia numa ontologia e epistemologia realistas, ao mesmo tempo em que defende a
possibilidade de acesso racional do sujeito a uma realidade objetiva e independente.
Se por um lado a definição de Piaget como realista é clara e não‐problemática,
não podemos dizer o mesmo em relação à definição de sua posição acerca do
inatismo. Por mais que para Piaget não devamos falar em estruturas inatas, isto está
22
tão distante quanto possível da crença num sujeito passivo, construído pelo seu
ambiente. Para Piaget, somos ativos quando interpretamos a experiência para
assimilá‐la aos nossos esquemas e teorias, e também somos ativos quando mudamos
nossos esquemas e teorias de forma a acomodarem‐se à realidade. Um sujeito ativo é
o centro da teoria piagetiana, o que a opõe totalmente – como veremos adiante – à
nova teoria ambientalista contemporânea, o construtivismo social. Mas nesse sujeito
não encontraríamos nenhuma estrutura inata:
Cinquenta anos de experiências fizeram‐nos saber que não existem conhecimentos resultantes de um registro simples de observações, sem uma estruturação devida às atividades do sujeito. Mas também não existem (no homem) estruturas cognitivas a priori ou inatas: só o funcionamento da inteligência é hereditário e só engendra estruturas por uma organização de ações sucessivas exercidas sobre objetos. Daqui resulta que uma epistemologia conforme os dados da psicogênese não poderia ser empirista nem pré‐formista, mas consiste apenas num construtivismo, com a elaboração contínua de operações e de estruturas novas. O problema central é, então, compreender como se efetuam estas criações e porque, visto resultarem de construções não pré‐determinadas, se podem tornar logicamente necessárias, durante o desenvolvimento. (PIAGET, 1987, p.51)
Nesta passagem, Piaget evita a palavra inato, e usa em seu lugar hereditário e
pré‐formista, alternando a defesa e o ataque à existência de algo inato no ser humano.
Apesar disso, esta passagem mostra que é evidente a necessidade de ao menos se
postular algo como “o funcionamento da inteligência” geral como inato. O problema,
como enfatizaram Jerry Fodor (1987) e Noam Chomsky (1987), dois dos maiores
defensores do inatismo contemporâneo, é que nenhum construtivista define
23
claramente, de forma a tornar falsificável, o que seria tal “mecanismo geral de
inteligência”. Piaget o resume aos mecanismos de assimilação e acomodação.
Um dos mais conhecidos argumentos de Piaget contra o empirismo é aquele
no qual ele mostra que o objetivismo assenta‐se sobre a idéia de cópia. Se para
conhecer precisamos copiar, para copiar antes precisamos conhecer o que se copia, o
que seria um paradoxo. Como apontei anteriormente (CASTAÑON, 2007), esta
crítica poderia ser falsa em relação ao empirismo na medida em que ele defende uma
espécie de impressão passiva fixada na mente do sujeito pelo objeto (como se dá, por
exemplo, com um filme numa fotografia ou com uma fita magnética cassete numa
gravação). Mas provavelmente esta crítica não é falsa em relação ao próprio
construtivismo piagetiano.
Fodor (1987) afirma que é surpreendente ver Piaget afirmar que alguém pode
aprender um novo conceito através da ação motora. Como ele bem lembra ao
resgatar um antigo argumento platônico, não podemos aprender um conceito novo a
não ser que tenhamos antes a capacidade de aprendê‐lo, seja porque o esquecemos e
ao aprender lembramos (e neste caso já o tínhamos), seja porque o hipotetizamos (e
neste caso de alguma forma já o tínhamos ao menos em potência).
Na verdade, não se pode, em nenhuma forma de construtivismo, prescindir de
alguma estrutura ou capacidade inata (CASTAÑON, 2007). Excluindo a posição de
Fodor (1975) que é radicalmente inatista, a divergência entre o inatismo cognitivista e
o construtivismo piagetiano – como entre Chomsky (1987) e Piaget (1987) – é
predominantemente de grau: ambos reconhecem os processos de construção e a
24
existência de instâncias inatas. O problema se torna então determinar qual é o nível
de elaboração das estruturas e capacidades com as quais seres humanos nascem, e o
quanto das habilidades desenvolvidas é fruto de maturação biológica: estaríamos
determinando então o que e o quanto é fruto de construção.
Como afirmou Piatelli‐Palmarini (1987), o núcleo duro do programa de pesquisa
racionalista ou “chomskyano”, consiste em não atribuir qualquer estrutura intrínseca
ao ambiente:
“Só existem leis de ordem provindo do interior; quer dizer, toda a estrutura ligada à percepção, quer seja de fonte biológica, cognitiva ou outra, é imposta ao ambiente pelo organismo e não extraída deste. As leis desta ordem são concebidas como relativas à espécie, invariáveis através das épocas, dos indivíduos e das culturas.” (1987: 32)
Mas como podemos intuitivamente perceber, o texto acima poderia ser
atribuído tanto ao construtivismo piagetiano como ao inatismo, porque o que
distingue os dois é uma questão de ênfase, não de natureza. É possível haver
inatismo sem construtivismo, sem que isto se revele incoerente (embora pouco
verossímil). Mas é impossível haver construtivismo coerente sem algum tipo de
inatismo, em relação a um estágio inicial a partir do qual ou contra o qual
construímos nosso conhecimento, ou ainda sem pressupor um inatismo potencial,
condicional, em relação às capacidades de determinado organismo em obter
estruturas e conteúdos. Nosso conhecimento pode ser em parte, ou na maior parte,
construído, mas isto implica potencial genético para tal.
25
Mas Piaget era fortemente construtivista, e rejeitava qualquer posição inatista
pré‐formista. Em um argumento célebre, Piaget (1987b) parte dos pressupostos
evolucionistas do inatismo para justificar a existência de capacidade de construção de
novas estruturas cognitivas. Em resumo, se supusermos que todas as estruturas
cognitivas humanas são inatas e em última instância inscritas no programa genético
de um indivíduo, como poderemos explicá‐las? O inatismo tem que responder sobre
os mecanismos gerais que permitiram a um programa genético de tal ordem ter se
reunido. Para Piaget (1987b), o processo de mutação aleatória defendido pelos
neodarwinistas além de ineficiente, ainda não possui explicação, e condenaria as
estruturas inatas da razão a uma condição contingente, quando seu caráter distintivo
é a necessidade. Trabalhando sobre este ponto, Hillary Putnam (1987) afirma que
Chomsky deliberadamente afasta a questão posta por Piaget sobre o que poderia ser
a evolução de um modelo inato de linguagem. Como ele chegou evolutivamente a
ser o que é? Defendendo a posição de Piaget, ele afirma que uma resposta possível é:
a linguagem primitiva foi fruto de uma invenção, efetuada por um membro da
espécie fora do comum. Como esta trazia vantagens evolutivas óbvias, foi utilizada
por todos aqueles membros da espécie que foram capazes de adquirir seus
rudimentos, isto fez com que aqueles de lóbulos esquerdos maiores fossem
progressivamente selecionados, procriavam, e assim por diante. Qualquer coisa que
não existe no programa, lembra Piaget (1987), tornou‐se tal por auto‐organização e
auto‐regulação.
26
Ou seja, para Piaget (1987), tem de haver no processo de evolução da vida
reunião de características ou auto‐organização sem a ajuda de programas genéticos,
senão seríamos forçados a admitir que tudo o que existe no código genético do
homem estava presente nos primeiros vírus e protozoários:
Se estas [as bases da lógica e da matemática] fossem pré‐formadas, isto significaria, pois, que o bebê, ao nascer, já possuiria virtualmente tudo o que Galois, Cantor, Hilbert, Bourbaki ou MacLane puderam atualizar depois. E como o homenzinho é ele próprio uma resultante, seria preciso remontar aos protozoários e aos vírus para localizar o foco do “conjunto dos possíveis. (PIAGET, 1987, p.53‐54)
Piaget, assim como Kant, é essencialmente realista, criticista e construtivista.
Mas a despeito da introdução do termo ‘construtivismo’ no século XX (VON
GLASERSFELD, 1998) efetuada por ele e de sua herança kantiana, este termo foi
apropriado por formas contemporâneas de idealismo e relativismo. É o que
passaremos a ver agora.
2.3 – Outros construtivismos contemporâneos
O construtivismo contemporâneo teve desdobramentos nas ciências formais,
humanas e aplicadas, indo muito além dos limites da epistemologia genética. Da
matemática à lógica, da psicologia à sociologia, da educação à psicoterapia e à
neurociência. Aqui serão descritas sumariamente as principais correntes
27
contemporâneas que fazem uso do termo, com o objetivo de estabelecer como elas se
posicionam em relação às questões levantadas no início do capítulo e identificar, se
existirem, características em comum entre elas que permitam definir o
construtivismo como um todo, assim como diferenciar o construtivismo social destas
outras derivações ou utilizações do termo.
2.3.1. Construtivismo Radical
Uma das principais correntes do construtivismo contemporâneo é o
Construtivismo Radical, defendido por teóricos como Ernst von Glasersfeld, Paul
Watzlawick e Heinz von Foerster. O construtivismo radical é uma abordagem ao
problema do conhecimento que parte do pressuposto de que este não é nada mais do
que uma construção que fazemos com base nos dados subjetivos de nossa
experiência. Nós viveríamos somente no mundo que construímos, e não teríamos
nenhuma base objetiva para de nossas próprias construções. Assim, se o sujeito é
quem determina absolutamente o objeto dentro da relação de conhecimento; ou seja,
se o que nós chamamos de realidade é somente aquilo que construímos como tal,
nossas construções acerca do mundo não sofrem a influência de um mundo externo
objetivo e independente. Em outras palavras, o construtivismo radical é uma forma
contemporânea de solipsismo, sendo um tipo especial de idealismo. Esta avaliação é
também compartilhada com Efran e Fauber (1997), que sustentam que esta corrente
é idealista, não se preocupando com a natureza última da realidade.
Diferentemente dos “construtivismos sociais”, esta abordagem de fato se mantém fiel
28
à tese do sujeito construtor de suas representações, mas como seu próprio nome
indica, de forma radicalmente fiel, o que a leva a consequências muito distintas das
suas homônimas sociais.
Apesar de possuir influência pouco relevante na filosofia da ciência, assim
como nas neurociências (MATURANA e VARELA, 1987), e de ter sua influência na
psicologia restrita a um pequeno campo da psicoterapia (NEIMEYER, 1997;
CASTAÑON, 2005), o construtivismo radical tem incontestável influência na
pedagogia contemporânea, na qual o nome de Ernst von Glasersfeld ocupa lugar
proeminente. Glasersfeld (1998) pode ser visto como propondo uma interpretação
solipsista radical do pensamento de Piaget. Ele afirma que a idéia‐chave de Piaget
seria que o “que chamamos de conhecimento” não tem como propósito a produção
de representações de uma realidade independente, mas somente uma função de
adaptação ao meio‐ambiente. Glasersfeld interpreta o pensamento piagetiano como
um “irrevogável rompimento” (1998, p. 19) com a tradição epistemológica da
civilização ocidental, e afirma que segundo Piaget não deveríamos mais buscar
atingir o que ele chama de “visão do mundo real”. Como tipicamente se vê em
autores pós‐modernos, Glasersfeld recorre de forma superficial e equivocada à Física
Quântica para “provar” de que tal coisa seria impossível. Ele acredita que quando
Piaget fala em interação, “isso não implica um organismo que interage com objetos
como eles realmente são, mas antes, um sujeito cognitivo que está lidando com
estruturas perceptivas e conceituais anteriormente construídas” (VON
GLASERSFELD, 1998, p.21). A tradução desta afirmação é que Glasersfeld parece de
29
fato acreditar que Piaget defende que os sujeitos não têm acesso a uma realidade
independente de suas próprias mentes. Em texto anterior, no entanto, ele não
demonstra convicção sobre a posição ontológica de Piaget (VON GLASERSFELD,
1984, p. 25), quando afirma que esta é um tanto “ambígua”, e que às vezes Piaget dá
a impressão de estar comprometido com o realismo metafísico. Glasersfeld tem
obviamente todo o direito de defender a posição que bem entender, mas não parece
razoável interpretar a obra de um autor contra suas próprias palavras. Afirmar que a
posição piagetiana é construtivista radical consiste em grave equívoco.
Pode parecer difícil aceitar que é realmente um idealismo solipsista o que os
construtivistas radicais querem afirmar com sua proposta epistemológica. Vamos
então seguir os argumentos de Glasersfeld e Foerster expostos em obra de referência
da corrente, “The Invented Reality”, editado por Paul Watzlawick, para entender
melhor o que os levam a adotar esta tese. Criticando o que chama de ‘realismo
metafísico’, que ele identifica com uma de suas conseqüências, a adoção da teoria da
verdade como correspondência (que denomino aqui ‘realismo semântico’, seguindo
Niiniluoto, 1999), Glasersfeld (1984) usa uma de suas costumeiras metáforas para
distinguir a noção de conhecimento ‘match’ da de conhecimento ‘fit’ (que poderíamos
respectivamente traduzir neste contexto por algo como “igualar” versus “encaixar”
ou “ajustar”). Quando vemos uma declaração de conhecimento como algo que tenta
se igualar ao objeto real, teríamos uma adesão ao realismo metafísico (1984, p.21); no
entanto, quando com a palavra ‘conhecimento’ pretendemos nos reportar somente a
30
algo que “se ajusta” (“something fits”) ao objeto real temos em mente uma relação
diferente entre uma proposição e a realidade:
A key fits if it opens the lock. The fit describes a capacity of the key, not of the lock. Thanks to professional burglars we know only too well that there are many keys that are shaped quite differently from our own but which nevertheless unlock our doors. (p. 21)
Para Glasersfeld, este é o sentido que a palavra ‘fit’ recebe no darwinismo e
neo‐darwinismo. Uma teoria, assim como uma mudança genética aleatória num
organismo, sobrevive se servir bem na solução de uma situação que é um obstáculo
para alcançar uma meta. Nada disso implicaria uma grande diferença entre o que
defende o construtivismo radical e o que defende o racionalismo crítico de Popper. O
critério de verdade como correspondência estaria simplesmente sendo trocado por
uma concepção pragmática de conhecimento e verdade. O trecho transcrito a seguir
da mesma obra poderia ser atribuído inadvertidamente a Campbell ou a Popper sem
dificuldades:
If we take seriously the evolutionary way of thinking, it could never be that organisms or ideas adapt to reality, but that reality, by limiting what is possible, inexorably annihilates what is not fit to live. In phylogenesis, as in the history of ideas, ‘natural selection’ does not in any positive sense select the fittest, the sturdiest, the best, or the truest, but it functions negatively, in that it simply lets die whatever does not pass the test (VON GLASERSFELD, 1984, p.22)
No entanto, o construtivismo radical não fica somente nesta defesa de um
pragmatismo evolucionista. Duas posições claras, uma epistemológica, outra
ontológica, o distinguem das pressuposições tradicionais do construtivismo filosófico
31
de Kant, Piaget ou Popper. A primeira é a negação de que há progresso no
conhecimento ou, particularmente, do conceito popperiano de verossimilhança. Não
há como escolher dentre duas teorias que “servem” para abrir uma porta, qual das
duas é mais “semelhante” à fechadura. Uma teoria que funciona não nos daria
nenhuma pista sobre como o mundo objetivo é, somente daria o conhecimento de um
caminho viável para atingir uma meta. O conhecimento ordenaria e organizaria
somente o mundo constituído por nossa própria experiência. A diferença para a
teoria popperiana da verossimilhança que hoje tem em Ilkka Niiniluoto (1999) seu
representante mais sofisticado, é que para o racionalismo crítico a quantidade de
previsões bem e mal sucedidas de uma teoria, se comparada com a quantidade das
feitas por outra teoria que igualmente serve para atingir uma meta, oferece um
critério racional para se escolher a mais verossimilhante. Para o construtivismo
radical, não existe meio de estabelecer a melhor entre duas teorias que “servem” para
atingir uma meta, o que faz dele uma forma de relativismo, e até de ceticismo, que o
afasta do criticismo.
A segunda posição distintiva do construtivismo radical, a ontológica, afirma
que de fato o objeto do conhecimento é construído por nossa mente.
Epistemologicamente, não temos qualquer acesso a um mundo externo à nossa
experiência. Apesar de não negar nem afirmar a existência de uma “realidade”
independente de nossa mente, o construtivismo radical nega qualquer tipo de acesso
hipotético a esta. Mesmo considerando que o mundo “real” dá sinais de sua
32
existência ao não se comportar de acordo com nossos esquemas construídos, nega
(contraditoriamente) que ele tenha papel na construção do conhecimento:
This means that the ‘real’ world manifests itself exclusively there where our constructions break down. But since we can describe and explain these breakdowns only in the very concepts that we have used to build the failing structures, this process can never yield a picture of a world which we could hold responsible for their failure. (VON GLASERSFELD, 1984, p.39)
Von Foerster (1984) tenta defender a mesma posição baseado em alguns
resultados selecionados do início da maré neurocientífica, interpretados em termos
cibernéticos. Ele propõe interpretar a cognição como um processo recursivo infinito
de computação (p.48), uma “infinite recursion” de descrições de descrições, sem
referência a uma realidade independente. Interpreta aspectos de fenômenos
sensoriais e perceptivos como o ponto cego, o escotoma, a interpretação auditiva de
palavras repetidas e a transdução visual como evidências de impenetrabilidade do
sistema nervoso central. Um de seus argumentos, derivado de Varela e Maturana
(1987), indica que, uma vez que temos muito mais receptores sensoriais voltados
para dentro do organismo do que para fora, na razão de 100 para 1, somos em igual
medida mais receptivos a mudanças no ambiente interno do que no externo.
Mas como sair do solipsismo estéril a que parece estar condenada esta
posição? Von Foerster oferece um argumento inconsistente, ancorado no que ele
denomina ‘princípio da relatividade’. Por conta de sua estranha formulação, julgo
adequada sua transcrição integral:
33
According to the Principle of Relativity which rejects a hypothesis when it does not hold for two instances together, although it holds for each instance separately (Earthlings and Venusians may be consistent in claiming to be in the center of the universe, but their claims fall to pieces if they should, ever get together), the solipsistic claim falls to pieces when besides me I invent another autonomous organism. However, it should be noted that since the Principle of Relativity is not a logical necessity, nor is it a proposition that can be proven to be either true or false, the crucial point to be recognized here is that I am free to choose either to adopt this principle or to reject it. If I reject it, I am the center of the universe, my reality are my dreams and my nightmares, my language is monologue, and my logic monologic. If I adopt it, neither me nor the other can be the center of the universe. As in the heliocentric system, there must be a third that is the central reference. It is the relation between Thou and I, and this relation is IDENTITY: Reality = Community (VON FOERSTER, 1984, p.59‐60)
Assim vemos que a suposta saída do solipsismo apontada por Foerster ocorre
quando o sujeito do conhecimento “inventa outro organismo autônomo”, o que,
acompanhado da adesão ao princípio da relatividade, cria uma “realidade” para
além da prisão solipsista (a qual, curiosamente, não é o mundo, inimigo número um
do construtivismo radical, mas essa comunidade inventada na mente do sujeito do
conhecimento). Aqui percebemos que Foerster preferiria ceder antes ao
construtivismo social do que ao realismo crítico, mas de forma alguma consegue
fugir ao solipsismo.
Como afirmado anteriormente (CASTAÑON, 2005), se vivemos na prisão
solipsista de nossas próprias mentes, como os construtivistas radicais poderiam nos
tentar convencer a adotar sua própria teoria? Como poderiam defender algo que eles
próprios sequer podem dizer que seja verdadeiro para pessoas que não
compartilham das mesmas “estruturas cognitivas”? Em outras palavras, se eles não
34
podem defender que sua teoria é melhor que as outras, se ela como as outras
somente “se encaixa”, “serve”, porque devem aceitá‐la aqueles que, em seus
constructos – tão úteis quanto os deles – acreditam que sua teoria é uma aproximação
da verdade melhor do que a deles?
Claramente construtivista, idealista ou cético com relação à ontologia e à
epistemologia, o construtivismo radical se torna radical justamente quando dá o salto
que separa a epistemologia construtivista da metafísica idealista, assumindo crenças
extremas sobre o que é nosso objeto de conhecimento e sobre a inacessibilidade de
um mundo real que não passa para esta abordagem de uma hipótese sem
importância.
2.3.2. Construcionismo Social
Construcionismo Social (e não construtivismo social) é o nome que passou a
designar o movimento de crítica à Psicologia Social “modernista” que tem sua
principal referência teórica em Kenneth Gergen. Em dois artigos que hoje são
referências básicas do movimento, “Social Psychology as History” de 1973, e “The Social
Constructionist Movement in Modern Psychology”, de 1985, Gergen (1973, 1985) traçou
os fundamentos e o panorama dessa abordagem da Psicologia Social, que se baseia
em três grandes pressupostos: O primeiro é que a realidade é dinâmica, não
possuindo qualquer tipo de essência ou leis imutáveis. A segunda é que o
conhecimento é somente uma construção social, baseado em comunidades
linguísticas. A terceira é que o conhecimento tem consequências sociais, e que são
35
estas que devem determinar se ele é válido ou não. O construcionismo social ataca
todos os pressupostos filosóficos da ciência moderna, como o otimismo
epistemológico, o realismo ontológico, o método empírico de investigação da
realidade, a regularidade do objeto e o progresso científico (CASTAÑON, 2001).
Para os autores que se inserem nesta “virada pós‐moderna” da psicologia
social, esses princípios básicos da received view não só são negados como substituídos
por seus opostos. Kendall & Michael (1997) avaliam que esse movimento “pós‐
moderno” na psicologia social possui quatro características teóricas básicas. A
primeira é a tentativa de dissolver o objeto tradicional da psicologia, substituindo a
realidade da mente e do comportamento pelas convenções e recursos linguísticos que
“constroem socialmente” o mundo. A segunda é o abandono da busca por
propriedades universais na pesquisa psicológica e a adoção da reflexão histórica e
contextual na psicologia. A terceira é a marginalização do método e sua classificação
como um truque retórico. A quarta seria o abandono da grande narrativa do
progresso da ciência rumo a uma verdade objetiva para a adoção de uma concepção
de conhecimento como fragmentário e contingente histórica e socialmente. Como
afirma Zuriff (1998), a essência da posição ontológica do construcionismo social é a
proposição de que não há realidade objetiva a ser descoberta; seres humanos
constroem o conhecimento. Held (1998) acrescenta a isso o termo “socialmente”. Para
o construcionismo social nós construímos teorias a respeito do funcionamento do
mundo através da interação social.
36
Esta posição foi reiteradamente defendida por Kenneth Gergen (1985, 1992,
1994) em seus argumentos anti‐representacionistas. Por representacionismo Gergen
(1994) entende a doutrina que defende existir ou poder existir uma relação estável
entre as palavras e o mundo que elas representariam. Adotando os argumentos de
Wittgenstein (1975) e Richard Rorty (1989), Gergen (1985, 1994) defende que a
linguagem nao passa de um conjunto de convenções. O significado não deriva da
referência que fazem aos objetos; não se baseia no processo mental ou em entes
ideais. O significado é produzido através do contato social com outros habitantes da
cultura na qual se está inserido. Fora da linguagem não há ponto de apoio objetivo
nem independente do pensamento; portanto, a linguagem não representa nada fora
dela mesma, é auto‐referente; estritamente falando, não há linguagem independente
de múltiplos jogos de linguagem atrelados a diferentes formas de vida. Assim, para o
construtivismo social (SHOTTER, 1992) nossas teorias socialmente construídas não
nos aproximam de uma descrição mais acurada do “mundo como ele é”. Isso
acarreta em algum grau envolvimento com alguma forma de anti‐realismo, seja no
sentido ontológico, seja no sentido epistemológico (ou seja, ceticismo), uma vez que
não há ou não se pode atingir a realidade objetiva, independente do sujeito do
conhecimento.
Held (1998, p.198) classifica duas posições ontológicas dentro do
construcionismo social, uma “mais radical” e outra “menos radical”. A versão
ontologicamente “mais radical” desse movimento entende que o sujeito constrói o
conhecimento através da linguagem e com nada mais que ela; sendo assim, a
37
linguagem se constitui na realidade mesma para o sujeito. Não existe realidade para
além da linguagem construída no sujeito em suas interações sociais. Essas
manifestações de anti‐realismo ontológico estão presentes basicamente nos autores
deste movimento mais influenciados pelo desconstrucionismo de Jacques Derrida;
dos quais dois representativos são Paul Richer (1992) e John Shotter (1992).
Contrastando com a posição acima, teríamos a tese ontológica “menos radical”
de alguns outros autores como Gergen (1985, 1992) e Donald Polkinghorne (1992),
que consideram que a teoria construída sobre os objetos do conhecimento através da
linguagem, intermedeia a relação entre o sujeito e o mundo de forma impermeável,
de modo que a realidade objetiva, independente do sujeito, pode até existir, mas é
inacessível. Aqui, apesar de não aderir a um estrito anti‐realismo ontológico, vemos o
construcionismo social endossando um ceticismo ontológico e epistemológico.
Rom Harré (1989) é um dos construcionistas sociais mais representativos e
mais preocupados com a questão ontológica. Ele afirma ter pretendido desenvolver
uma ontologia que pudesse escapar do dilema anti‐realista exposto acima. Harré
(1989, p.440) assume o pressuposto de que existem duas realidades humanas
distintas, ambas investigáveis cientificamente. Uma é fisiológica, a natureza biológica
do ser humano e seus “sistemas de interação molecular”. A outra é nossa “natureza
social” como elementos de uma rede de “interações simbólicas mediadas”. Para ele, a
Psicologia precisa tratar os processos fisiológicos e as interações sociais como
38
ocorrentes em realidades independentes, reconhecendo que sua posição consiste
num novo dualismo.
Assim, para a natureza biológica do homem, crê Harré (op. cit.), o tratamento
das pessoas como indivíduos seria adequado. Mas para a natureza social esse
tratamento seria inadequado, pois as pessoas não seriam mais do que “nós numa rede,
nódulos numa estrutura, elementos num coletivo” (1989, p.440). Ele defende que,
tomados de um ponto de vista biológico, indivíduos podem ter propriedades únicas,
como átomos isolados, mas tomados coletivamente, os atributos de uma pessoa
somente podem existir em virtude de suas relações com outras.
Harré (1989) sabe que esta é uma ontologia radical. Ele pretende, ao adotá‐la,
se opor ao que denomina “ontologia cartesiana”, que seria a ontologia das ciências
cognitivas. Enquanto a ontologia do construcionismo social de Harré define o objeto
da psicologia como sendo as interações sociais, a “ontologia cartesiana” proporia que
existe uma substância mental, onde se dão os processos psicológicos. Uma conclusão
possível diante dos argumentos expostos é a de que a ontologia proposta por Harré
nega a existência da mente humana como entidade real. Isto se pode depreender da
estranha afirmação feita por ele em outra obra (1984), de que “devemos começar com
o pressuposto de que o local primário dos processos psicológicos (em ambos os
sentidos temporal e lógico) é coletivo antes que individual” (1984, p. 4 e 5).
Gergen (1989) também defende que o construcionismo social é outra revolução
em curso na psicologia, que se contraporia ao cognitivismo e à sua ontologia e
39
epistemologia, que se comprometeria com os princípios de uma metafísica dualista
cartesiana, onde a mente deve funcionar como espelho do mundo. Gergen (1989)
formula sua versão para uma “revolução epistemológica” na psicologia, o que ele
chama de “epistemologia social”, partindo do princípio de que o local do
conhecimento não é mais visto como sendo a mente individual, mas sim os padrões
das narrativas sociais. Ele procura explicar esta afirmação argumentando que ao
abandonarmos o foco de nossa concentração na mente e no mundo e o dirigirmos
para o problema da relação entre as palavras e o mundo, mudaríamos também a
atenção antes dirigida às “proposições em nossa cabeça” (p.471) para as proposições em
nossa linguagem escrita e falada. Partindo do pressuposto de que a linguagem não é
privada, mas por definição deve, sendo social, permitir a comunicação, Gergen
acredita poder concluir que as proposições de conhecimento não são conquistas da
mente individual, mas produtos sociais.
Podemos dizer com John Maze (2001), que o construcionismo social é na
verdade um desconstrucionismo, incapaz de afirmar qualquer coisa a respeito de
qualquer coisa em virtude de seu anti‐representacionismo e seu argumento de que o
“objetivismo” (que ele confunde com o realismo) é inerentemente autoritário. Uma
das muitas contradições internas desta abordagem se dá quando, embora aceite que
toda teoria epistemológica coerente deva valer para si mesma, o construcionismo
social nega que qualquer assertiva possa ser verdadeira, assim como nega existir
realidades independentes a serem referidas por essas assertivas. No entanto, trata
40
dos discursos como tendo existência objetiva e assume que sua própria assertiva
sobre o discurso é verdadeira. Para uma extensa avaliação das contradições desta
abordagem, remeto a meu estudo anterior “Psicologia Pós‐moderna?” (CASTAÑON,
2007b).
Se tomamos por posições ontológicas e epistemológicas do construtivismo as
vistas em Kant e Piaget, podemos afirmar que o construcionismo social está muito
longe de fazer parte desta tradição filosófica. O realismo é por ele rejeitado tanto em
termos epistemologicos quanto ontológicos. Mesmo a definição da abordagem como
idealista fica comprometida pela estranha posição acerca do sujeito, que a
compromete mais ainda em relação ao construtivismo tradicional. No
construcionismo social, o sujeito está totalmente dissolvido na rede de relações
linguísticas na qual está inserido e que o constrói, e não é construída por ele. Caso
considerássemos esta corrente construtivista, estaríamos diante de um caso bizarro
de construtivismo sem mundo nem sujeito, onde quem constrói são as redes
linguísticas ou jogos de linguagem (Rychlak, 1999), que se tornam assim entidades
autônomas de sentido questionável e aspectos quase místicos. Se o que há para
conhecer é só a linguagem e a linguagem constrói o sujeito, poderíamos classificar
essa abordagem até mesmo como objetivista. Se não há mundo ou não há mundo a
conhecer, cética. O caráter construtivista do construcionismo social precisa ser bem
clarificado para não dar azo a confusões reconstrutivas.
41
2.3.3. Socioconstrutivismo
O Socioconstrutivismo é uma abordagem da psicologia contemporânea, com
ênfase na psicologia do desenvolvimento, que tem recebido denominações variadas,
algumas vezes ‘Socioculturalismo’, outras ‘Construtivismo Social’. Com o objetivo de
diferenciá‐lo da abordagem da sociologia do conhecimento que é objeto desta
dissertação, escolhemos aqui para designá‐lo o termo ‘socioconstrutivismo’.
James Wertsch (1998) define como objetivo da abordagem socioconstrutivista
da Psicologia a explicação das relações entre o funcionamento da mente humana e as
situações culturais, institucionais e históricas nas quais este funcionamento ocorre.
Esta abordagem rejeita a noção de que o local da obtenção do conhecimento é o
indivíduo, adotando uma das reivindicações básicas do strong programme, o
construtivismo social, que é a de que o conhecimento é uma construção social.
Ainda segundo Wertsch (1998), podemos afirmar os dois conceitos básicos
definidores da pesquisa socioconstrutivista são os de ação humana e de mediação. Para
ele, o objeto da pesquisa socioconstrutivista é a ação humana. Mas essa ação para
Wertsch e os socioconstrutivistas pode ser externa bem como interna, assim como
pode ser conduzida por grupos ou indivíduos. Esta abordagem pretende se
contrastar com outras unidades que encontramos na psicologia, como atitudes de
descrição e interpretação, conceitos, estruturas linguísticas e de conhecimento, entre
outras. No entanto, a verdade, como reconhece o próprio Wertsch (1998), é que:
“...uma das coisas que se torna clara na categoria da ação é que ela parece ser um
tanto ‘incerta’” (1998, p.60). Essa incerteza faria com que muitas vezes aqueles
42
pesquisadores que a adotam como objeto de pesquisa se percam, e acabem adotando
outras categorias correlatas.
A abordagem socioconstrutivista é desenvolvida basicamente a partir da obra
do psicólogo russo Lev Vygotsky, enfatizada em seus aspectos histórico‐culturalistas.
Vygotsky, influenciado por Marx e Spinoza, tentou encontrar uma resposta de
caráter nuclear para as funções psicológicas superiores humanas que evitasse o
dualismo mente‐corpo. Acreditou realizar esta tarefa aplicando o materialismo
histórico ao estudo do desenvolvimento do homem, pretendendo explicar a
consciência mediante a história da consciência, a conduta mediante a história da
conduta, e assim por diante.
O modelo de aprendizagem de Lev Vygotsky (1984) representa uma
alternativa “marxista” na psicologia à concepção construtivista piagetiana centrada
no indivíduo. Para o autor russo, o desenvolvimento biológico e psicológico dos
primatas superiores mantém um corte qualitativo com o desenvolvimento humano
infantil: as funções psicológicas naturais que caracterizariam aqueles e as funções
psicológicas superiores, que apareceriam no ser humano. Para ele, a psicologia havia,
até sua época, reduzido os processos psicológicos complexos aos elementares (por
exemplo, ao reflexo ou à conexão estímulo‐resposta) e as funções psicológicas
superiores às naturais (por exemplo a memória simbólica à memória natural). Isso
quando não foram, ao contrário, consideradas espirituais e não‐determinadas pela
evolução e pela história. Para Vygotsky, as funções psicológicas superiores são fruto
do desenvolvimento cultural, não do biológico.
43
Coll, Palacios & Marchesi (1996) nos mostram que, partindo do modelo
dominante na psicologia soviética, a reflexologia pavloviana, Vygotsky constrói um
modelo em que o homem controla estímulo (E) e resposta (R) ativamente, impondo‐
lhes sua “vontade” e criando um sistema complexo. Ele pretende desvelar as
características dessas funções psicológicas superiores partindo da investigação do
que denomina condutas vestigiais. Estas últimas seriam condutas primitivas,
características dos primórdios da espécie, que ainda podemos encontrar na conduta
do ser humano atual. Segundo Vygotsky (1984), elas nos explicariam o grande passo
que representa a superação das funções psicológicas básicas, sem precisar extrapolar
as leis biopsicológicas da conduta animal.
A conduta de que Vygotsky se serve para seu argumento é a do mecanismo
externo de memória, que pode ser encontrado em culturas com diferentes graus de
sofisticação. O nó no lenço ou a troca de anel para outro dedo, com o objetivo de se
lembrar posteriormente de alguma tarefa, são exemplos típicos. Um estímulo A, aqui
e agora, leva‐me a dar uma resposta apropriada se eu a situo em outro lugar e
momento. Uma pessoa a qual desejo fazer o favor me pede emprestando, aqui e
agora, um livro que tenho em casa. Dessa forma, para poder realizar o empréstimo,
teria antes que me lembrar do pedido em outro contexto, em minha residência.
Assim, depois de haver pegado o livro, posso realizá‐lo quando fosse vê‐la em outra
ocasião.
No exemplo acima, o sujeito cria uma resposta material e psicológica ao
mesmo tempo, aqui e agora (X), que se constitui em uma conexão física e mental com
44
outra ocasião, em que a resposta apropriada será possível. Essa conexão pode ser um
nó no lenço, trocar o anel de dedo, uma anotação na agenda: qualquer coisa que,
percebida na situação apropriada, vai conectá‐la com o que motivou a formação
desse sinal. Vygotsky denominou esta conexão física e mental ‘instrumento
psicológico’. Este último é todo objeto cujo uso serve para ordenar e reposicionar
externamente a informação, de modo que o sujeito possa escapar da prisão do aqui e
agora. Falando em termos de psicologia da memória, é toda pista de recuperação
deliberadamente associada a uma informação que queremos recuperar no futuro. O
instrumento psicológico pode ser tanto o nó no lenço como a moeda corrente, um
sinal de trânsito, e, acima de tudo, os sistemas de signos; o conjunto de instrumentos
fonéticos, gráficos, táteis que constituímos como grande sistema de mediação
instrumental, ou seja, a linguagem.
Coll et. al. (1996) afirmam que Vygotsky encontra, com essas idéias sobre as
funções psicológicas mais primitivas, algumas características especificas das funções
psicológicas superiores humanas. A primeira delas é que essas funções permitem
superar o condicionamento do meio e possibilitam a reversibilidade de estímulos e
respostas de maneira indefinida. A segunda é que elas supõem o uso de
intermediários externos, os instrumentos psicológicos. A terceira é que implicam um
processo de mediação, através de instrumentos psicológicos, cujo objetivo é
modificar a nós mesmos: assim como instrumentos físicos modificam o meio físico,
instrumentos psicológicos alterariam diretamente nossa mente.
45
Assim Vygotsky (1984) afirma que é dessa forma que as funções psicológicas
superiores se formam através da atividade prática e instrumental. Para ele a
mediação instrumental converge para outro processo de mediação que a torna
possível, e sem a qual o homem não haveria desenvolvido a representação externa
com instrumentos: a mediação social. Esta última diferiria da instrumental por ser além
de instrumental também interpessoal. É este processo de mediação social que o
psicólogo russo define em sua lei da dupla formação dos processos psicológicos
(VYGOTSKY, 1984):
No desenvolvimento cultural da criança, toda função aparece duas vezes: primeiro em nível social e, mais tarde, em âmbito individual: primeiro entre pessoas ‐ interpsicológica ‐ e depois, no interior da própria criança ‐ intrapsicológica. Isto pode ser aplicado igualmente à atenção voluntária, à memória lógica e à formação de conceitos. Todas as funções superiores se originam como relações entre seres humanos. (pp. 93‐94)
Vygotsky nega que a atividade interna e externa do homem sejam idênticas
ou, ao contrário, totalmente desconectadas. Para ele, sua conexão é genética ou
evolutiva: os processos externos são transformados para gerar processos internos. O
nome que deu a este processo de transformação foi processo de interiorização. Assim,
segundo Vygotsky, as funções psicológicas superiores humanas são transmitidas, dos
adultos que já as possuem para os novos indivíduos em desenvolvimento. E essa
transmissão é produzida mediante a interatividade da criança com adultos ou outras
crianças.
46
Em “Formação Social da Mente”, Vygotsky distingue quatro posições básicas na
Psicologia a respeito do relacionamento entre desenvolvimento e aprendizagem.
Comparando estas concepções de desenvolvimento e aprendizagem, Vygotsky se
distancia da posição de Piaget, que segundo ele atribuiria à maturação papel
fundamental no desenvolvimento. Vygotsky concentra sua pesquisa na busca de
explicar o desenvolvimento humano como desenvolvimento social da criança. Este
desenvolvimento social é a aquisição, por parte dela, dos sistemas e estratégias
sociais de mediação‐representação.
Esta tese é oposta a de Piaget (1975), que vê o desenvolvimento das estruturas
cognitivas como necessário para possibilitar a aprendizagem. Podemos perceber aqui
a oposição entre uma concepção individualista e outra sociologista em psicologia,
assim como no construtivismo. Para Piaget a transmissão social é necessária para o
desenvolvimento das funções cognitivas, mas não suficiente, porque a ação social é
ineficaz sem assimilação ativa da criança, o que pressupõe instrumentos operatórios
adequados. Podemos perceber aqui que o fulcro da oposição entre os dois teóricos é
o papel que cada um deles atribui ao sujeito no processo de construção do
conhecimento. Enquanto que em Vygotsky o processo é atribuído à mediação social,
em Piaget este é atribuído à ação do sujeito no mundo e sua consequente elaboração
e reelaboração de esquemas.
A abordagem socioconstrutivista tem em comum com o construtivismo social
a convicção de que o conhecimento é uma produção social. No entanto, apesar de
suas indefinições ontológicas, não se pode afirmar que essa abordagem não adote um
47
tipo de realismo ontológico e algumas crenças a respeito da regularidade de alguns
aspectos do funcionamento psíquico humano. Na verdade, o materialismo implícito
nas abordagens socioconstrutivistas impede uma adesão à ontologia pós‐moderna.
Além disso, o socioconstrutivismo é epistemologicamente otimista, adotando
metodologias experimentais que pretendem ser capazes de estabelecer um
conhecimento que, apesar de ser construído socialmente, se refere a realidades que
têm existência objetiva, o que permite caracterizá‐lo como criticista. Sua posição
como construtivista é que, curiosamente, fica comprometida. Todo conhecimento
seria obtido através de interação social, e não de interação com o mundo. Apesar de o
sujeito ter um papel ativo na interação social, a natureza desta interação é, talvez até
deliberadamente, obscura. Essa obscuridade não foi, no entanto, suficiente para
salvar Vygotsky das acusações oficiais de ‘idealismo’ que recebeu do governo
soviético, e que o condenaram, junto com sua obra, ao banimento por muitos anos,
levando‐o inclusive precocemente à morte.
2.3.4. Construtivismo Lógico
O Construtivismo Lógico, mais conhecido como intuicionismo, é uma
abordagem da lógica que surgiu dentro da filosofia da matemática, no bojo dos
esforços do início do século XX em busca dos fundamentos da disciplina. Seu
principal proponente foi Luitzen Brouwer (1881‐1966) e teve como expoentes Arend
Heyting e Michael Dummett. Também aqui, Brouwer (1983, p.78) reconhece em Kant
48
a primeira forma de construtivismo matemático, na qual tempo e espaço são
tomados por formas de pensamento inerentes à razão humana.
O construtivismo matemático ganhou força quando os dois principais
programas filosóficos de fundamentação da matemática colapsaram (DUMMETT,
1977, p.2) ao se depararem com demonstrações de sua incompletude. O primeiro, o
logicismo de Frege, encontrou seu obstáculo intransponível na descoberta do
paradoxo de Russell; o segundo, o formalismo de Hilbert, foi refutado com o
segundo teorema da incompletude de Gödel.
Em matemática, o construtivismo defende que objetos matemáticos são
construções mentais que ocorrem numa forma de pensamento pré‐linguística, o que
leva Brouwer (1984b) a recusar qualquer tentativa de limitar a matemática à
capacidade expressiva de qualquer linguagem, natural ou formalizada. Afirma que
para provar a existência de um objeto matemático é preciso demonstrar que há ao
menos uma forma de construí‐lo através de uma sequência finita de operações
mentais. Demonstrar que sua inexistência implica contradição, como na matemática
tradicional, não seria prova suficiente de sua existência, pois ele não teria sido
encontrado com esta operação. Assim, o que define uma posição construtivista em
matemática é esta tese epistemológica, acerca da forma de obtenção do conhecimento
matemático:
Hence the platonistic picture is of a realm of mathematical reality, existing objectively and independently of our knowledge, which renders our statements true or false. On an intuitionistic view, on the other hand, the only thing which can make a mathematical statement
49
true is a proof of the kind we can give: not indeed, a proof in a formal system, but an intuitively acceptable proof, that is, a certain kind of mental construction. (DUMMETT, 1977, p. 7)
O construtivismo matemático tem sido correntemente tomado como sinônimo
de sua mais famosa corrente, o intuicionismo, que esta sim, defende não só o
construtivismo como método de prova, mas também a construção mental como a
natureza de todo objeto matemático. É importante destacar que o construtivismo
matemático não depende de uma ontologia idealista para ser adotado, e é totalmente
compatível também com uma visão realista da matemática.
O intuicionismo matemático se destaca como corrente do construtivismo
matemático em função principalmente da tese ontológica de que objetos matemáticos
não têm realidade transcendente: são construções do pensamento humano. A
assunção desta tese ontológica juntamente com a tese epistemológica construtivista
da matemática, leva à consequência de que o ato de estabelecimento do
conhecimento lógico e matemático é um ato de construção, não de descoberta. Na
lógica e matemática clássicas, denominadas pelo programa intuicionista de
“platonistas”, se considera que objetos matemáticos existem de forma independente
do pensamento humano, o que implica uma forma de realismo lógico e matemático.
Se objetos lógicos e matemáticos existem de forma independente da mente humana,
seu conhecimento depende de um ato de descoberta. Mas para o intuicionista,
objetos matemáticos são construídos pelos seres humanos. A matemática é uma
50
atividade puramente mental, e os objetos matemáticos não existem de maneira
independente de atos de pensamento humanos:
...to a platonist, a mathematical theory relates to some external realm of abstract objects, to an intuitionist it relates to our own mental operations: mathematical objects themselves are mental constructions, that is, objects of thought not merely in the sense that they are thought about, but in the sense that, for them, esse est concipi. They exist only in virtue of our mathematical activity, which consists in mental operations, and have only those properties which they can be recognized by us as having. (DUMMETT, 1977, p. 7)
Nem sempre, no entanto a opção ontológica intuicionista é afirmada de forma
tão clara e inequívoca. Em texto no qual trata dos fundamentos filosóficos do
programa, seu principal sistematizador, Arend Heyting, coloca o problema
ontológico do intuicionismo desta forma:
...we do not attribute an existence independent of our thought, i.e., a transcendental existence, to the integers or to any other mathematical objects. Even though it might be true that every thought refers to an object conceived to exist independently of it, we can nevertheless let this remains an open question. In any event, such an object need not to be completely independent of human thought. Even if they should be independent of individual acts of thought, mathematical objects are by their very nature dependent of human thought. Their existence is guaranteed only insofar as they can be determined by thought. (HEYTING, 1983, p.53)
Este trecho é bem ilustrativo da hesitação ontológica que caracteriza o
construtivismo na filosofia da lógica e da matemática, assim como em todas as suas
outras áreas de influência. Neste, Heyting tenta suavizar o radicalismo da posição
ontológica intuicionista, mas aparentemente não nos sentimos mais esclarecidos com
51
a tentativa. Começa com uma negação categórica da existência transcendente de
objetos matemáticos, o que parece determinar uma opção clara pelo idealismo. Na
frase seguinte, assume que a existência independente de objetos concebidos deve
permanecer uma questão em aberto, o que parece conduzir a um ceticismo regional.
Depois defende a posição estranha de que os objetos podem ser independentes de
atos individuais de pensamento, mas não de pensamento humano, o que consistiria
num estranho caso de idealismo sem sujeito. Por fim, volta ao porto seguro de todo
construtivismo lógico, que é a tese epistemológica de que só podemos garantir a
existência de um objeto matemático quando podemos determiná‐lo por um número
finito de atos de pensamento.
Aqui é fundamental destacar aspecto que é muito importante para a estrutura
do argumento desta dissertação: é perfeitamente concebível que para um realista
lógico e matemático o método de prova seja construtivo porque esta construção
poderia levar à descoberta de um objeto matemático com existência independente e
real. A tese epistemológica do construtivismo lógico não leva necessariamente à tese
ontológica do intuicionismo, assim como a epistemologia construtivista não implica
uma ontologia idealista. Stephen Kleene é, por exemplo, um lógico construtivista que
adota uma perspectiva realista do intuicionismo. De forma semelhante, Ilkka
Niiniluoto (1992), partindo da idéia popperiana de mundo três, apresentou uma
outra forma de conciliar o construtivismo e o realismo em matemática..
O construtivismo matemático faz uso do construtivismo lógico ou
intuicionismo lógico, que se distingue da lógica tradicional fundamentalmente pela
52
rejeição da lei do terceiro excluído. É sempre importante, no entanto, lembrar que
isto significa dizer simplesmente que no construtivismo a lei do terceiro excluído
deixa de ser considerada um axioma, mas continua válida para operações com
conjuntos finitos.
A diferença para a matemática clássica é que nesta se pode demonstrar a
existência de um objeto simplesmente demonstrando que a inexistência deste objeto
implicaria uma contradição, ou seja, se valendo da lei do terceiro excluído. Brouwer
(1984b, p.91) enuncia assim a forma dessa lei na matemática: “Every assignment t of a
property to a mathematical entity can be judged, i.e. either proved or reduced to absurdity”. O
intuicionismo rejeita essa lei fundamental da lógica e matemática clássica porque o
seu uso não oferece um método de construção do objeto “demonstrado” e, uma vez
que não acredita numa existência transcendente dos objetos matemáticos, se não
temos explicitada uma forma de construí‐lo mentalmente em um número finito de
passos, então não temos motivos para assumir sua existência como demonstrada.
Também no que diz respeito à lógica, uma das principais diferenças entre a
intuicionista e a clássica diz respeito à rejeição deste axioma. Mas outras diferenças
importantes são bem gritantes, como a defesa pelo intuicionismo lógico de uma visão
oposta ao programa logicista fregeano. O intuicionista nega que a lógica fundamente
a matemática, defendendo que primeira simplesmente resume os esquemas de
raciocínio utilizados na segunda. Em outras palavras, para o intuicionismo é a
matemática que é o fundamento da lógica, não o contrário.
53
Mas voltemos à questão da rejeição pela lógica intuicionista do axioma do
terceiro excluído. Esta rejeição deriva da transformação no intuicionismo do
significado dos operadores lógicos (VAN DALEN, 1980, p. 166). Partindo da tese de
que o valor de verdade de uma proposição só pode ser estabelecida se temos uma
prova para ela, e de que por prova se quer dizer uma construção matemática, não
dedução, que estabeleça a verdade da proposição, nesta abordagem os operadores
passam a representar diferentes necessidades de processos de provas para os termos
que estão relacionados. Assim, uma disjunção nada mais é que uma indicação que a
verdade daquela proposição depende de uma prova construtiva da existência de um
dos termos, e uma conjunção a indicação de que a verdade da proposição depende
de uma prova construtiva da existência de ambos os termos.
Assim, se temos determinadas proposições, como a conjectura de Goldbach
(todo número par é igual à soma de dois números primos ímpares), para as quais não
podemos (até o momento) encontrar provas nem de sua verdade nem de sua
falsidade, não poderíamos afirmar nem que g, nem que g. Logo, para o
intuicionismo, não poderíamos tampouco afirmar g V g, pois não temos como provar
nenhum dos termos. É uma consequência, sem dúvida, bastante contra‐intuitiva de
se admitir como válidos os pressupostos epistemológicos do programa intuicionista.
Retomando as questões colocadas no início do capítulo, podemos sintetizar a
posição ontológica do construtivismo lógico como variável, mas de forma
predominante, idealista regional (no caso do intuicionismo). Também regionalmente
é dogmático, pois pressupõe que a construção do objeto matemático permite um
54
conhecimento absoluto sobre ele. Por fim, é obviamente construtivista no que diz
respeito a relação entre o sujeito e o objeto matemático.
2.4 – Definição de Construtivismo
Joseph Rychlak, filósofo da psicologia contemporâneo, declaradamente adepto
do construtivismo filosófico, afirma (1999) que, desafortunadamente, o termo
construtivismo é usualmente empregado em dois sentidos básicos, o que provoca
uma grande confusão em discussões teóricas (p.383). O primeiro é o que considera
construção o processo de associação de partes separadas para a formação de algo. Esse
processo dispensa a presença de um sujeito que constrói e, para Rychlak, é o sentido
com o qual o construtivismo social usa o termo. O segundo sentido do termo, que é
aquele por ele aceito, é o da tradição kantiana e piagetiana. Para Piaget, construção
indica o processo de criação mental de algo, incluindo conceitos, interpretações,
deduções e análises. Esta acepção do termo pressupõe a existência de um sujeito
ativo e construtor de suas cognições. Como afirma Sismondo (1993), a metáfora da
‘construção’ vem da geometria, quando matemáticos gregos construíam figuras
geométricas a partir de poucos pontos e instrumentos: “we think of constructing as a
process involving active rather than passive movements, and often goal‐directed ones”
(p.520).
Para estabelecer o conceito de construtivismo que será adotado aqui, é preciso
responder a alguns problemas fundamentais relacionados a ele. O primeiro é a
posição do construtivismo acerca da realidade. Para alguns autores como Von
55
Glasersfeld (1998) ou Watzlavick (1984), na raiz da contenda epistemológica entre o
“objetivismo” e o construtivismo está a questão da natureza da realidade. Para
posições “modernas” objetivistas a realidade seria concebida como objetiva, externa e
independente do sujeito do conhecimento, além de passível de ser descoberta em
alguns de seus aspectos pela ciência. Para o que eles chamam de construtivismo a
ciência cria, ela própria, a realidade no curso de sua prática. A pergunta então é de se
a realidade existe de forma independente dos sujeitos ou os sujeitos criam a
realidade. Defendo (CASTAÑON, 2007) que esta é uma falsa questão, fruto da
confusão de setores pós‐modernos do construtivismo entre as teorias validadas sobre
a realidade (o conhecimento), a verdade e a própria realidade. Defendo também
nesta dissertação que a mesma falsa questão é fruto também da confusão entre
realismo ontológico e realismo epistemológico (se é que é adequado o uso do termo
aqui), que defenderia que podemos conhecer algo sobre as coisas em si mesmas
(NIINILUOTO, 1999).
O construtivismo filosófico oferece uma resposta nova para a antiga questão
da origem do conhecimento e sua relação com a realidade. Para o construtivismo
refletido nas obras de Piaget (1973) ou de Popper (1975), nós criamos hipóteses sobre
o real, e apesar de nossa relação com o real se dar através destas hipóteses, esta
relação existe, pois através da resistência de nossas sensações em se comportarem
como nossas hipóteses preveem, a realidade se mostra independente destas últimas
influenciando aquelas. As hipóteses que são justificadas por uma metodologia aceita
passamos a considerar conhecimento, porém, conhecimento provisório. Assim, para
56
o construtivismo derivado da tradição kantiana o sujeito não constrói a realidade,
constrói suas representações da realidade.
O construtivismo tradicional é realista e defende o sujeito epistêmico como a
fonte de todas as representações da realidade. Mas o realismo ontológico não define
o construtivismo, pois é comum a praticamente todas as doutrinas sobre o
conhecimento. O que define o construtivismo é a tese original de Kant de que é o
objeto que se adapta à mente do sujeito, e não o contrário. Num sentido mais geral e
de segunda ordem, é a tese epistemológica de que construímos hipóteses sobre o
funcionamento da realidade e as testamos através das predições de como vão se
suceder nossas sensações.
Os dois sentidos de construtivismo, de primeira e de segunda ordem,
assumidos como essenciais à sua definição, eliminam de seu campo tanto o
construcionismo social como o construtivismo social, que, como exporei nesta
dissertação, defende uma estranha espécie de anti‐objetivismo sem sujeito e, em sua
versão mais radical, também sem objeto, no qual tudo o que existe são as formas
culturais estruturadas pela linguagem.
De forma complementar podemos também definir construtivismo através de
sua oposição conceitual ao objetivismo. Se podemos encontrar algo comum a todas as
correntes que se autodenominam construtivistas é a rejeição ao que denominam
‘objetivismo’. As formas “sociais” do construtivismo, no entanto, rejeitam o
objetivismo através de sua rejeição tanto da “natureza” quanto do “sujeito”,
57
parecendo implicitamente assumir que a rejeição ao objetivismo é suficiente para se
caracterizarem como construtivistas.
Podemos definir ‘objetivismo’ como a posição filosófica que defende que o
objeto determina no sujeito a representação que este tem dele. Ou seja, para o
objetivismo, o objeto é algo dado, com uma estrutura que é de alguma forma imposta
ao sujeito na relação de conhecimento, e as representações que temos do mundo,
mesmo que não idênticas ao objeto, são determinadas em nós por ele. Não se pode,
portanto, como fazem muitos autodenominados construtivistas, confundir
objetivismo com a solução pré‐epistemológica para o problema da relação sujeito‐
objeto, que considera as representações mentais cópias perfeitas do mundo externo
(CASTAÑON, 2007). Nem o empirismo filosófico defendia esta tese. Mesmo Locke
(1952) já distinguia nas qualidades dos objetos que nos eram dados pelos sentidos o
que seriam suas qualidades primárias de suas qualidades secundárias. Só as
primeiras (como a extensão, solidez ou movimento) pertenceriam ao objeto,
enquanto as segundas (como a cor, sabor ou cheiro) pertenceriam à mente do sujeito,
não tendo existência objetiva (só subjetiva). Assim, esta existência subjetiva não se
assemelharia às propriedades que estão nos corpos e que as produziram.
Da mesma forma, não podemos confundir o objetivismo com o realismo. O
objetivismo é uma das possíveis posições epistemológicas derivadas do realismo
ontológico. Outra é o criticismo, que defende que nossas representações se referem a
objetos que têm existência independente de nossa mente, e que de alguma forma
influenciam as nossas teorias sobre eles. Com o progressivo abandono do objetivismo
58
observado na filosofia pós‐kantiana, o tipo de realismo defendido na filosofia
contemporânea é geralmente comprometido com uma posição epistemológica crítica,
e paga de uma forma ou de outra seu tributo a Kant. Referirei‐me nesta dissertação a
esta espécie de realismo como ‘realismo crítico’, deixando claro, no entanto, não me
referir ao tipo de posição que também reivindicou esta denominação e que foi
defendida no volume coletivo “Essays in Critical Realism” (DRAKE et alli, 1920).
Como exemplo de posição simultaneamente realista, criticista e construtivista temos
o tipo de realismo crítico defendido por Popper e desenvolvido por Ilkka Niiniluoto,
que defende (NIINILUOTO, 1999) a teoria do realismo crítico científico. Para Popper
(1975b), nossas teorias sobre a realidade são construídas por nós, e condicionam
nosso olhar e interpretação sobre ela. Condicionam, porém, não determinam.
Quando nos deparamos com um erro, ou seja, quando nossas teorias sobre a
realidade são seguidamente contraditadas por observações que não se adaptam a
elas, acabamos por modificar nossas teorias e representações do mundo de forma a
adaptá‐las à experiência. Assim, nossas teorias, apesar de condicionarem nossa
experiência da realidade, não a determinam. É ao falharem em predizer a sucessão de
sensações que teremos, que nossas teorias provam que não são a realidade mesma.
Já para Niiniluoto (1999), que elabora vigorosa defesa do realismo em sua obra
Critical Scientific Realism, o realismo crítico se posiciona ontológica, semântica,
epistemológica e axiologicamente, e pode‐se definir pelas teses:
59
‐ At least part of reality is ontologically independent of human minds. ‐ Truth is a semantical relation between language and reality. Its meaning is given by a modern (Tarskian) version of the correspondence theory, and its best indicator is given by systematic enquiry using the methods of science. ‐ The concepts of truth and falsity are in principle applicable to all linguistic products of scientific enquiry, including observation reports, laws and theories. In particular, claims about the existence of theoretical entities have a truth value. ‐ Truth (together with some other epistemic utilities) is an essential aim of science. ‐ Truth is not easily accessible or recognizable, and even our best theories can fail to be true. Nevertheless, it is possible to approach the truth, and to make rational assessments of such cognitive progress (NIINILUOTO, 1999, p.10).
O racionalismo crítico (POPPER, 1975; WATKINS, 1984; ANDERSON, 1994;
NIINILUOTO, 1999) é um exemplo típico de filosofia construtivista – pois acredita
que o processo de conhecimento parte da atividade do indivíduo, do sujeito, que
constrói, não a realidade mesma, mas suas teorias e hipóteses sobre ela – e realista,
pois considera que é a realidade, estável e independente do sujeito, que constrange e
julga as hipóteses e teorias deste último sobre ela. Evidentemente, o racionalismo
crítico de forma alguma é objetivista, pois considera que nossas crenças e teorias não
são cópias fiéis da realidade nem provocadas por ela, mas somente modelos
simplificados daquela que de tempos em tempos são falsificados e exigem a
construção de um novo modelo por parte do sujeito.
Ao recapitular as posições construtivistas apresentadas aqui, podemos
estabelecer que, em relação à Q1, sobre a existência ou não de objetos independentes
da mente, Kant, Piaget, o socioconstrutivismo e o racionalismo crítico se posicionam
60
com o realismo; enquanto o construcionismo social, o construtivismo radical e o
intuicionismo se posicionam com formas de idealismo.
Em relação à Q2, sobre a possibilidade do conhecimento de aspectos dos
objetos do mundo, Kant, Piaget, o socioconstrutivismo e o racionalismo crítico se
posicionam com o criticismo, o intuicionismo e o construtivismo lógico não se
aplicam ao problema, e o construtivismo radical e o construcionismo social são
claramente céticos.
Em relação à Q3, sobre a origem do conhecimento, Kant, Piaget, o
socioconstrutivismo, o racionalismo crítico, o intuicionismo, o construtivismo lógico
em geral e o construtivismo radical são claramente construtivistas no sentido
limitado e prévio em que usamos o termo, como a posição que defende o papel ativo
do sujeito na construção de suas representações do objeto. Já o construcionismo
social em hipótese nenhuma é claro em relação ao que é o sujeito, o objeto e a relação
entre eles.
Assim, mesmo com a indefinição do construcionismo social (que de resto não
adota o termo ‘construtivismo’ mas sim ‘construcionismo’) podemos definir o
construtivismo como uma tese epistemológica, e não ontológica, pois o que o
caracteriza não é a posição acerca da natureza do objeto do conhecimento, e sim a
posição acerca do processo de obtenção do conhecimento. Sintetizando, define‐se
aqui construtivismo pelas teses:
a) As representações (intuições sensíveis) que temos da realidade são
condicionadas pela estrutura de nossa mente, e construídas por ela;
61
b) num segundo nível, as hipóteses que construímos sobre como o objeto
funciona podem ser alteradas e substituídas voluntariamente tão logo a sucessão de
intuições sensíveis que esperávamos não se manifestem e portanto as hipóteses em
questão se revelem inadaptadas ao objeto;
c) O objetivismo é uma tese equivocada, pois o objeto não determina
completamente em um sujeito supostamente passivo as representações que este tem
dele;
Assim, podemos concluir destas teses que, se tratando de tese epistemológica,
o construtivismo se divide em vertentes ontológicas realistas e idealistas, pois não
assume posição unitária acerca da natureza do objeto do conhecimento.
A partir desta definição de construtivismo, vamos agora avaliar o quanto o
construtivismo social se encontra aderido a ela.
62
Capítulo 3
Construtivismo Social
Neste capítulo serão apresentadas as principais teses do construtivismo social,
com especial ênfase às ontológicas e às epistemológicas. Os resultados alegadamente
empíricos desta abordagem não são objeto desta dissertação, portanto, quando
mencionados, só o serão como ilustração de conseqüências ou fundamentos
filosóficos. Começaremos com uma sumária contextualização e apresentação
conceitual do construtivismo social, para logo depois abordarmos algumas idéias de
Ludwig Wittgenstein, Thomas Kuhn e Paul Feyerabend que tiveram influência
fundamental na configuração filosófica da corrente. Os dois últimos itens do capítulo
serão dedicados a uma avaliação cuidadosa das teses ontológicas e epistemológicas
do construtivismo social, buscando estabelecer o que pode ser dito de consensual e o
que há de divergência entre as correntes e principais proponentes do
autodenominado “strong programme”.
63
3.1. – Caracterização geral do Construtivismo Social
O construtivismo social é uma abordagem da sociologia que se resume
essencialmente em um conjunto de pressupostos filosóficos e diretrizes políticas a
serem aplicadas à disciplina da sociologia do conhecimento. Seu ancestral sociológico
é Karl Mannheim, pioneiro da disciplina que defendia a tese de que a distinção entre
conhecimento e crença pessoal é meramente o endosso coletivo dado as crenças do
primeiro tipo. No entanto, Mannheim não cedeu à tentação do sociologismo, uma
vez que acreditava que forças sociais determinavam toda ideação humana, exceto os
conceitos físico‐matemáticos (MANNHEIM, 1971). Esta restrição rendeu duras
críticas por parte de David Bloor, que acusou Mannheim abertamente de falta de
“nervos” (1991, p.11) para assumir o que Bloor acha inevitável, ou seja, que toda
ideação humana é causada socialmente, portanto, deve ser objeto da sociologia.
A expressão ‘construção social’, surge da obra de Peter Berger e Thomas
Luckmann (1973), The Social Construction of Reality, de 1966. Este auto denominado
tratado sobre sociologia do conhecimento exerceu grande influência sobre a
psicologia social e a sociologia contemporânea. Um de seus pontos principais hoje é
considerado senso comum: o fato de instituições serem construídas socialmente e
terem realidade independente de nossa vontade particular (ver Searle, 1995).
Instituições existem porque uma parcela significativa da sociedade acredita que elas
existem, e age de acordo com sua existência. Isso não faz delas entes menos reais: não
64
podemos individualmente fazê‐las desaparecer não acreditando nelas ou não
desejando sua existência, porque muitas outras pessoas acreditam nelas e agem como
se elas existissem. Assim, precisamos agir como se elas existissem, o que reforça a
existência destas instituições. Esta lição fundamental desse livro clássico forneceu o
modelo de construção social que posteriormente o construtivismo social aplicaria a
praticamente tudo, não apenas às instituições.
A reivindicação principal de Berger e Luckmann (1973) é a de que a “realidade”
é construída socialmente. Definem ‘realidade’ como a qualidade pertencente a
fenômenos que reconhecemos ter um ser independente de nossa própria volição, e o
conhecimento como a certeza de que os fenômenos são reais e possuem
características específicas. Eles esclarecem que usam esses termos fora de seu
significado estrito. Eles o usam com o sentido do que o homem comum julga como
real e como conhecimento. É uma análise, portanto, não do conhecimento, mas de
suas representações sociais, das concepções de conhecimento construídas pelo
homem comum, independentemente de sua adequação à realidade. Afirmam
claramente Berger & Luckmann: “incluir as questões epistemológicas concernentes à
validade do conhecimento sociológico na sociologia do conhecimento é de certo
modo o mesmo que procurar empurrar o ônibus em que estamos viajando” (1973,
p.27). Com isso, eles não se afastam do princípio tradicional que afirma não estar a
sociologia habilitada a definir a natureza da ciência ou do conhecimento, mas
somente a investigar como estes conceitos são aceitos, concebidos ou operados.
65
No entanto, é precisamente isso o que faz o construtivismo social ao crer ter
colocado no âmbito da sociologia as questões epistemológicas relativas à sua própria
validade. Esta abordagem surge de um grupo de sociólogos da universidade de
Edimburgo, em meados dos anos setenta, que liderados por Barry Barnes e David
Bloor lançam o programa forte da sociologia da ciência. São marcos fundadores deste
programa as obras Scientific Knowledge and Sociological Theory, de 1974, e Knowledge
and Social Imagery, de 1976 (BLOOR, 1991).
Entre as principais diferenças do “strong programme” em relação ao trabalho
que era efetuado em sociologia do conhecimento antes de seu surgimento está a
convicção de que pertencem ao âmbito da própria sociologia as questões
epistemológicas relativas à sua própria validade como ciência, além da concentração
do foco de estudo no conhecimento científico, em detrimento de todas as outras
alegações de conhecimento.
Como afirma Oliva (2003), enquanto as filosofias da ciência tradicionais se
comprometiam com a universalização dos métodos das ciências naturais, as
epistemologias “heterodoxas” passaram a acalentar a pretensão que os próprios
Berger e Luckmann consideraram contraditória: a de explicar a racionalidade das
ciências, incluindo as naturais, recorrendo às ciências sociais, em especial à
sociologia. Isso constitui uma grande inversão: uma disciplina altamente questionada
em sua cientificidade passa a querer explicar a condição de cientificidade de
disciplinas como a física. Oliva (2003, 2005) defende que essa mudança radical nas
pretensões da sociologia não decorre de nenhuma mudança causada pelo
66
desenvolvimento interno da disciplina, e sim das novas concepções epistemológicas
surgidas da “Nova Filosofia da Ciência”, particularmente, das idéias de Thomas
Kuhn e Paul Feyerabend.
Para Bloor (1991), o programa forte é essencialmente um conjunto de quatro
requerimentos metodológicos desenvolvidos para os sociólogos do conhecimento
científico: causalidade, imparcialidade, simetria e reflexividade.
Talvez a tese mais característica do construtivismo social seja a da simetria.
Esta consiste na crença, expressa originalmente na obra referência de Barry Barnes
(1974), de que os sociólogos devem tratar e investigar todas as crenças sobre a
natureza e a sociedade da mesma forma, considerando que tanto as crenças
alegadamente “corretas” ou “científicas” quanto as “incorretas” ou “não‐científicas”
são derivadas das mesmas fontes, estão sujeitas às mesmas causas, e, portanto,
submetidas às mesmas formas de explicação sociológica. Como crenças verdadeiras
não teriam uma credibilidade intrínseca maior que crenças falsas, sua aceitação
depende das mesmas espécies de forças sociais que produzem a eventual aceitação
de crenças falsas. Isto leva ao princípio complementar de imparcialidade, que prega a
necessidade de o investigador colocar em suspenso suas crenças pessoais quanto à
falsidade ou veracidade última das crenças que ele está investigando.
A terceira diretriz que caracteriza o construtivismo social é sua demanda por
explicações sociológicas causais, não meramente descritivas, a qual Bloor (1991)
denomina ‘causalidade’. Assim o “strong programme” não aceita uma produção
descritiva ou interpretativa, sua meta é produzir explicações sociológicas de caráter
67
causal sobre o que provoca e sustenta uma disciplina científica e seu alegado corpo
de conhecimento. Isso não significa para Bloor (1991) que somente causas de
natureza social determinam a construção do conhecimento. Para ele um dos
pressupostos básicos do construtivismo social é o de que sistemas de crenças são
propriedades de entidades biológicas que interagem umas com as outras e com seu
ambiente natural.
Como veremos neste trabalho, este é um ponto de divisão no construtivismo
social, que se expandiu para além do programa forte da escola de Edimburgo. Ele
varia desde a posição supostamente moderada, mas imprecisa, do strong programme
de Bloor ou Barnes sobre o papel do sujeito e do mundo natural no processo de
construção do conhecimento até as posições mais extremas de Steve Woolgar (1988),
Harry Collins (1981), Lynn Nelson (1993) ou do primeiro Bruno Latour (LATOUR &
WOOLGAR, 1986), que defendem abertamente que o conhecimento é totalmente
construído socialmente e que aquilo que chamamos de fatos naturais são na verdade
produtos da atividade científica.
As declarações de Barnes e Bloor em defesa do realismo de sua posição, que
geralmente surgem como respostas a críticos do strong programme, são na verdade
postas em dúvida por outras ao longo de sua obra, como veremos nesta dissertação.
Mesmo depois de mais de trinta anos da publicação de suas obras fundamentais,
literalmente dezenas de críticos de peso como Thomas Kuhn (2003), Larry Laudan
(1981), Mário Bunge (1991, 1992), Ilkka Niiniluoto (1999), Alan Sokal (2001), André
Kukla (2000) entre muitos outros continuam, apesar das respostas e replicações de
68
ambos, ininterruptamente a acusar sua posição de idealismo, ainda que geralmente
de um “idealismo epistemológico” (ceticismo). No mínimo, tal nível de possível
incompreensão, que se estenderia até a colegas da Universidade de Edimburgo
simpáticos ao projeto geral do strong programme como o sociólogo Stephen Kemp
(2005), indica um alto grau de imprecisão ontológica de sua posição, mesmo mais de
trinta anos depois de sua primeira formulação.
Por fim, temos a proclamação do princípio de reflexividade, que segundo Bloor
(1991) indica a necessidade de sociólogos do conhecimento não reivindicarem uma
posição de segunda ordem em relação ao conhecimento científico, ou dito com suas
palavras, um ponto de vista transcendente para justificar suas alegações. Bloor (1991)
afirma que nenhuma teoria sociológica do conhecimento é aceitável a menos que seja
aplicável a si mesma, assim, as crenças do construtivismo social são também elas
causadas socialmente. Acreditam os construtivistas sociais que a mera proclamação
deste princípio pode livrá‐los do problema da auto‐refutação. Abordaremos de novo
este problema no subitem dedicado à epistemologia do strong programme.
Podemos neste momento ampliar a definição provisória dada no início do
capítulo sintetizando fundamentalmente o construtivismo social como uma
abordagem filosófica sobre a sociologia que se apresenta como programa de pesquisa
empírica, tendo como essência a tese de que as crenças científicas têm causas sociais.
Nascida do programa forte em sociologia da ciência, ela se expandiu para além das
fronteiras da Escócia, gerando abordagens mais radicais ontologicamente, como o
que denominaremos aqui “construtivismo social ontológico”, de Woolgar, Collins e
69
Nelson, o programa do construtivismo social material, de Karin Knorr‐Cetina (1981),
e também o campo de estudos sociológicos da construção social de sistemas
tecnológicos, começado por Trevor Pinch e Wiebe Bijker (1987).
Além destes, num “capítulo” à parte, ainda podemos citar as abordagens
mutantes e hesitantes de Bruno Latour, que começando no programa forte, se tornou
famoso lançando com Woolgar o construtivismo social ontológico (LATOUR &
WOOLGAR, 1986 [1979]), transitou por uma posição que pretendia investigar
antropologicamente a ciência interpretando cientistas como maquiavélicos atores de
redes sociais lutando para acumular recursos financeiros de pesquisa (LATOUR,
1987, 1992), e por fim voltou à cena com uma estranha posição ontológica que
pretende refundar todo o pensamento ocidental abolindo a oposição sujeito‐objeto e
afirmando que natureza e sociedade são ambas causa e efeito uma da outra
(LATOUR, 1999, 2000).
Deixando de lado as posições menos compreensíveis e mais instáveis do
movimento, podemos apresentar o construtivismo social como defensor das teses
assim sintetizadas por Oliva (2003): primeira, a renúncia à enunciação de um critério
de cientificidade, de demarcação entre ciência e não‐ciência. A segunda, a rejeição da
subordinação do teórico ao observacional, sustentada pela crença de que é
impossível separar minimamente o componente teórico do observacional. A terceira
é a rejeição do “objetivismo”, que segundo esta abordagem seria a crença de que os
resultados da ciência são determinados pela natureza, para substituí‐lo pela crença
de que os resultados da ciência são predominantemente fruto de “interação social”.
70
A quarta é a concessão de primazia à história da ciência para julgar a ciência e suas
pretensões de conhecimento, que não poderiam ser a‐históricas. A quinta é a
inversão do naturalismo: em vez de a ciência natural ser modelo de ciência, é à
sociologia que é dado o poder de explicar ciências maduras como a física, que são
tradicionalmente vistas como modelos de cientificidade. A sexta é a adoção da tese
kuhniana da incomensurabilidade dos paradigmas, que abordaremos no próximo
subitem. A sétima, por fim, é a rejeição da idéia de progresso científico e de
superioridade epistêmica da pesquisa científica em comparação com outras
modalidades de saber.
O construtivismo social afirma que a ciência não é um modo de produção de
conhecimento superior aos outros, e que a distinção entre contexto de justificação e
contexto de descoberta é artificial. A posição epistemológica tradicional afirma que a
produção da pesquisa (contexto de descoberta) pode ser explicada em termos do
ambiente sócio‐cultural em que a pesquisa se dá, mas a sua validação, a aferição do
valor epistêmico dela (contexto de justificação), é determinada por critérios lógicos e
empíricos que em nada dependem do contexto social. Esses critérios é são
questionados por sua suposta a‐historicidade e falha universalidade por Kuhn e
Feyerabend, cujos argumentos são endossados e reescritos pelo construtivismo
social. Este último julga tais critérios tão condicionados pelo ambiente sócio‐cultural
como as teorias científicas, já que no fim das contas, estes critérios também seriam
teorias. Para abordarmos adequadamente este debate nos próximos itens, vamos
71
então antes avaliar a fonte filosófica de onde, realmente, brotou esta abordagem
sociológica (ou filosófica sociologista) do problema do conhecimento científico.
3.2. – Idéias antecedentes em Filosofia da Ciência
3.2.1 –Wittgenstein e a dissolução lingüística da epistemologia
Ludwig Wittgenstein foi um filósofo efetivamente profundo e peculiar. A
peculiaridade a que me refiro aqui é bastante conhecida: encontramos em sua obra
duas fases nas quais seu pensamento se divide de forma radical. O “primeiro
Wittgenstein”, como se tornou conhecida a primeira fase de sua obra, se apresenta
como um filósofo que defende a existência de uma realidade plenamente
significativa independente dos sujeitos cognoscentes, e que julga ser tarefa daqueles
que buscam conhecimento dessa realidade descrevê‐la da forma mais lógica e
semanticamente rigorosa possível. Para Richard Rorty (1989) sua teoria figurativa
sobre a realidade é um exemplo de filosofia fundacional “modernista” que defende
que a mente reflete a natureza.
É o mesmo Rorty (1989), confessadamente profundo devedor de Wittgenstein,
que credita à segunda metade da obra deste pensador a maior responsabilidade pelo
enfraquecimento da estrutura epistemológica da modernidade. O “segundo
72
Wittgenstein” rechaça completamente os pressupostos “modernistas” assumidos na
primeira fase de seu pensamento. Sua obra “Investigações Filosóficas” talvez seja a
mais importante precursora do pensamento pós‐moderno. Wittgenstein (1975) se
dedica na segunda fase de sua obra a desmantelar seus primeiros conceitos de
atomismo lógico e da teoria como representação da realidade. Rechaça as noções de
que os elementos referenciais da linguagem devam se reportar a objetos, de que as
proposições atômicas devam se constituir de maneira tal que sua verdade ou
falsidade determina o valor de verdade do enunciado composto, de que a estrutura
da linguagem logicamente perfeita espelha a estrutura da realidade e de que todas as
linguagens são intertraduzíveis quando presas ao uso referencial.
Wittgenstein (1975) defende que o pensamento não se separa das palavras que
são usadas para expressá‐lo. Ele chega a essa conclusão através de sua teoria social
da mente que por sua vez se deriva de sua teoria social do significado. Esta afirma
que não existe nada parecido com uma linguagem privada. Para ele, a idéia de que a
linguagem e o pensamento começam por experiências privadas é um dos erros
filosóficos mais fundamentais. A linguagem é produto de convenções. O significado
não se baseia nos objetos, no processo mental ou em entes ideais. Adquire‐se através
do contato social com outros habitantes da cultura em questão.
À experiência comum a todos os seres humanos de um momento no qual
parece que os pensamentos se desenvolvem com uma rapidez muito além de nossa
capacidade de expressá‐los, Wittgenstein (1975) opõe o argumento de que
compreendemos de golpe um pensamento da mesma forma que podemos tomar
73
nota dele e resumi‐lo em poucas palavras. Ele insiste que fora da linguagem não há
ponto de apoio objetivo nem independente. O pensamento não seria nada mais que
uma atividade que usa signos adquiridos durante o processo de socialização.
Outra idéia básica do pensamento do segundo Wittgenstein (1975) é a de que
realidades significantes são criações humanas sem nenhuma preocupação formal
primária com o que a natureza dessas criações possa ser. As realidades particulares
que qualquer sujeito cria dependem da participação do sujeito nos processos sociais
de experiências que efetivamente abranjam um ou mais “jogos de linguagem”. Esse é
um conceito que Wittgenstein (1975) usa para abranger em uma determinada cultura
“o conjunto da linguagem e das atividades com as quais está interligada” (p.16). Com a
linguagem, podemos fazer as coisas mais variadas, as funções que as palavras podem
assumir não se reduzem à referencial.
Os jogos de linguagem são inúmeros, porque são inúmeros os tipos diferentes
de emprego de tudo o que chamamos sinais, palavras, proposições. E essa
multiplicidade não é algo fixo ou dado de uma vez por todas: novos tipos de
linguagem, novos jogos lingüísticos surgem continuamente, enquanto outros
envelhecem e são esquecidos. Falar uma língua faz parte necessariamente de uma
forma de vida:
“Quantas espécies de frases existem? Afirmação, pergunta e comando, talvez? – Há inúmeras de tais espécies: inúmeras espécies diferentes de emprego daquilo que chamamos de “signo”, “palavras”, “frases”. E essa pluralidade não é nada fixo, um dado para sempre; mas novos tipos de linguagem, novos jogos de linguagem, como poderíamos dizer, nascem e outros envelhecem e
74
são esquecidos. (Uma imagem aproximada disto pode nos dar as modificações da matemática.) O termo “jogo de linguagem’ deve aqui salientar que o falar da linguagem é uma parte de uma atividade ou de uma forma de vida”. (WITTGENSTEIN, 1975, §23)
Para Wittgenstein, esses jogos de linguagem determinam essencialmente a
realidade experimentada pelos sujeitos. Perguntar qual é a verdadeira natureza da
realidade é efetuar uma falsa questão, pois descrições da realidade só são possíveis
mediantes um dado jogo de linguagem.
Assim, para o que nos interessa particularmente nesta dissertação, a atividade
científica tal qual é concebida tradicionalmente é diretamente atingida. Não existe
observação experimental ou mensurada que não seja ela própria uma sensação, um
estado privado de consciência do cientista. Diz Wittgenstein sobre este problema:
Mas seria também pensável uma linguagem na qual alguém pudesse, para uso próprio, anotar ou exprimir suas vivências interiores – seus sentimentos, seus estados de espírito? – Não podemos fazer isto em nossa linguagem costumeira? – Acho que não. As palavras desta linguagem devem referir‐se àquilo que apenas o falante pode saber; às suas sensações imediatas, privadas. Um outro pois, não pode compreender esta linguagem. (WITTGENSTEIN, 1975, §243)
Wittgenstein ilustra a tese da incomunicabilidade do estado mental e da
natureza essencialmente social da linguagem através do seu famoso dilema do inseto
na caixa. O significado dos termos não é dado, diz Wittgenstein, por estados mentais
referentes a sensações, mas por “jogos de linguagem” que emergem das relações
sociais. Não podemos saber se o ‘vermelho’ que aparece para mim é o ‘vermelho’ que
aparece para outrem. Portanto, convencionaríamos dentro de determinado jogo de
75
linguagem que tipos de ações são eficientemente coordenadas pelo uso da palavra
‘vermelho’, e nada mais. É também famosa a exortação que Wittgenstein fazia a seus
alunos em Cambridge, quando dizia que não devemos nos perguntar sobre o
significado de uma palavra, e sim sobre o seu uso. O ‘inseto’ de Wittgenstein são
nossos estados mentais (o termo é ‘beetle’):
Ora, alguém me diz, a seu respeito, saber apenas a partir de seu próprio caso o que sejam dores! – Suponhamos que cada um tivesse uma caixa e que dentro dela houvesse algo que chamamos de ‘besouro’. Ninguém pode olhar dentro da caixa do outro; e cada um diz que sabe o que é um besouro apenas por olhar o seu besouro – Poderia ser que cada um tivesse algo diferente em sua caixa. Sim, poderíamos imaginar que uma tal coisa se modificasse continuamente. – Mas, e se a palavra ‘besouro’ tivesse um uso para estas pessoas? – Neste caso, não seria o da designação de uma coisa. A coisa na caixa não pertence, de nenhum modo, ao jogo de linguagem nem mesmo como um algo: pois a caixa também poderia estar vazia. – Não, por meio desta coisa na caixa, pode‐se ‘abreviar’; seja o que for, é suprimido. Isto significa: quando se constrói a gramática da expressão da sensação segundo o modelo de ‘objeto e designação’ então o objeto cai fora de consideração, como irrelevante. (WITTGENSTEIN, 1975, §293)
O referente, portanto, é irrelevante. Ele é uma ficção, como diz Daniel
Robinson (1985) sobre Wittgenstein, não ontológica, mas gramatical. É claro que
Wittgenstein acredita na existência das sensações que seriam os referentes das
palavras. Mas o problema aqui não é o da existência do objeto, e sim o de sua
referência. Se um termo é inteligível, seu referente deve ser público. Assim, termos
que descrevem sensações privadas têm seu significado estabelecido pelos padrões de
comportamento associados inicialmente a eles (como gritos e choro à ‘dor’), aos
76
quais, com o tempo, eles virão a substituir. O problema é que essa posição elimina o
aspecto especificamente psicológico de todos os comportamentos humanos, da
mesma forma como o behaviorismo o faz. Porque a questão psicológica continua a
ser se determinadas palavras que buscam expressar estados psicológicos
efetivamente o expressam, ou seja, a questão é sobre o que de fato existe
psicologicamente.
Outro problema é que a posição de Wittgenstein acaba resultando em
reducionismo lingüístico, uma vez que ao insistir na tese de que devemos basear os
modelos psicológicos e sua linguagem estritamente nos comportamentos
inicialmente associados às palavras, ele ainda assim está falando de experiências
internas. Ora, não existe observação de um comportamento que não seja ele próprio
uma sensação, e como tal, um estado privado de consciência do cientista, um besouro
na caixa.
Quando se soma a estes problemas o da radicalização das insinuações de
Wittgenstein, efetuada por autores construtivistas sociais, de que o pensamento se
resume à linguagem, entramos numa infinita casa de espelhos onde cada palavra
reflete outras palavras sem nunca se referir diretamente a um significado percebido
como estado subjetivo. Desta forma, o conhecimento se tornaria impermeável às
experiências sensoriais puras, às intuições sensíveis, pois estas sempre seriam
experimentadas através dos óculos da linguagem socialmente construída. Não parece
um quadro nada verossímil da experiência humana.
77
Seguindo as teses de Wittgenstein, não temos como obter definições de termos
teóricos através de termos observacionais. Os termos teóricos têm seu significado
determinado pelo uso que têm no enunciado em que ocorrem e pela estrutura da
teoria como um todo. O próprio processo de teste de hipóteses não se referiria jamais
a uma asserção individual, mas a teorias vistas como totalidades, e em última análise
a todo conhecimento científico, o que faz o holismo semântico se transformar em
holismo metodológico: não são hipóteses isoladas que são testadas em experimentos,
mas sim redes inteiras de suposições. Se uma bactéria não se comportou como era
esperado depois de entrar em contato com uma substância química, não é só a
hipótese de influência bacteriológica da substância que está sendo testada, mas toda
a rede de suposições químicas, biológicas, ópticas (do microscópio utilizado) que não
funcionou como o esperado. Dessa forma, o mundo não daria a palavra final sobre a
teoria que iria prevalecer. E foi assim que a tese da construção lingüística dos fatos
abriu caminho para que o construtivismo social defendesse a tese de que tudo na
ciência, inclusive o conteúdo de suas teorias, é construção social.
A filosofia da linguagem se tornou no século XX uma disciplina central para a
elucidação da racionalidade científica. O atomismo referencialista do primeiro
Wittgenstein está na base de muitas das mais importantes teses defendidas pelo
positivismo lógico, enquanto que o holismo semântico de autores como Quine e o
segundo Wittgenstein dá sustentação às teses de autores como Thomas Kuhn e Paul
Feyerabend, e diretamente ao construtivismo social (Bloor, 1983, 1997a). A adoção da
78
teoria do significado como uso por esses autores leva, necessariamente, à tese da
incomensurabilidade dos paradigmas.
Para o holismo semântico as partes de um discurso não têm em si mesmas
significado. Quine, seguindo a tese de Pierre Duhem, sintetiza esta perspectiva na
sentença: “o todo da ciência é a unidade de significância empírica”. A implicação
epistemológica dessa tese é a de que diante de qualquer evidência empírica
desfavorável, qualquer teoria pode ser salva de refutação através de uma hipótese ad
hoc. Filosofias da ciência que adotam essa tese costumam, como aponta Oliva (2005),
negligenciar a especificação dos mecanismos por meio dos quais se atribui ao todo a
capacidade de gerar e reproduzir significados, sustentando que todo sistema
explicativo é indecomponível e as crenças científicas, formando um todo, evoluem
juntas e se reforçam mutuamente.
Isso acaba implicando a tese da incomensurabilidade dos paradigmas, pois, ao
considerar que o significado de uma lei ou conceito depende do uso que têm no
interior da totalidade do conhecimento científico, se fazem altamente problemáticas
as comparações entre sistemas explicativos gerados por formas de vida totalmente
diversas. Mesmo quando empregam o mesmo vocabulário básico, não haveria
compartilhamento do mesmo significado na mecânica clássica e na teoria da
relatividade. Os significados dos termos derivam do papel que têm no enunciado e
os significados dos enunciados da função que desempenham no interior das teorias
concebidas como totalidades irredutíveis às partes. As teses de Wittgenstein de que
“o significado de uma palavra é seu uso” e “sentenças têm o mesmo sentido quando
79
têm o mesmo uso” irão propiciar o surgimento dos pensamentos que veremos a
partir de agora.
3.2.2 – Kuhn e a sociologização da epistemologia
Talvez o autor mais fundamental para entendermos as teses do construtivismo
social seja Thomas Kuhn. Sua obra A Estrutura das Revoluções Científicas, publicada
pela primeira vez em 1963, é a mais importante precursora do “strong programme”,
muito embora o próprio Kuhn tenha rechaçado este programa classificando‐o de
relativista e desconstrucionista (KUHN, 2003). O importante para entendermos a
influência do pensamento de Kuhn sobre o construtivismo social como um todo é a
sua idéia de que diferentes teorias gerais aceitas generalizadamente sobre o universo
e o método científico, os paradigmas, são incomparáveis entre si, irredutíveis a
qualquer elemento em comum (pois não o teriam), são incomensuráveis.
Assim, vamos definir os termos da questão. Na primeira versão surgida do
conceito, na introdução de sua obra, Kuhn define paradigmas como “as realizações
científicas universalmente reconhecidas que, durante um tempo, fornecem
problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma
ciência” (1991, p.13).
Poderíamos dizer que o sentido predominante do termo ‘paradigma’ na
Estrutura das Revoluções Científicas é o de uma espécie de teoria ampliada formada por
leis universalmente aceitas, métodos compartilhados pela grande maioria da
comunidade científica, regras para avaliação de teorias e formulações de problemas e
80
idéias metafísicas universalmente compartilhadas das quais não se tem consciência.
Como vemos, num sentido estrito, o termo paradigma pode ser usado para se referir
a uma quantidade muito restrita de teorias gerais. Talvez mesmo só o aristotelismo e
o modelo newtoniano de ciência e universo tenham um dia se encaixado nesta
descrição.
No entanto Kuhn na mesma obra às vezes parece usar o conceito de
paradigma num sentido mais restrito, direcionado a um único campo da ciência.
Neste caso, poderíamos considerar a teoria copernicana como exemplo de um antigo
paradigma da astronomia, assim como a teoria newtoniana como um antigo
paradigma da Física. Kuhn foi muito criticado por pensadores como Margareth
Masterman (1974) por ter usado o termo paradigma de modo vago e um tanto confuso
(Masterman contou vinte e dois sentidos diferentes para o termo na obra A Estrutura
das Revoluções Científicas).
Em obra de 1977, Kuhn aceita as críticas de Mastermann e de outros autores e
torna explícito os dois únicos sentidos nos quais gostaria que o termo ‘paradigma’
fosse utilizado: o de matriz disciplinar e o de exemplar. Matriz disciplinar seria o
conjunto de crenças compartilhadas por um grupo de praticantes especialistas de
uma disciplina específica que inclui: generalizações simbólicas, modelos metafísicos,
valores epistemológicos, metodologia e exemplos‐padrão de problemas resolvidos. Já
o exemplar seria um sentido mais estrito do termo paradigma, é um subconjunto da
matriz disciplinar e refere‐se aos exemplos‐padrão de problemas resolvidos que os
cientistas encontram nos laboratórios de estudantes e livros‐texto. Podemos definir
81
que a partir daqui usarei o termo ‘paradigma’ no sentido do que Kuhn (1977)
denominou matriz disciplinar.
Para compreender adequadamente a tese da incomensurabilidade dos
paradigmas é ainda importante compreender a visão de Kuhn sobre o
desenvolvimento científico. O empreendimento científico para Kuhn é constituído de
duas fases gerais. A ciência normal e a ciência extraordinária. Por ciência normal, Kuhn
entende uma fase homogênea da ciência, onde o crescimento do saber é cumulativo.
A ciência é neste período uma atividade baseada no pressuposto de que a
comunidade científica sabe como é o mundo; é um empreendimento que:
Parece ser uma tentativa de forçar a natureza a encaixar‐se dentro dos limites preestabelecidos e relativamente inflexíveis fornecidos pelo paradigma. A ciência normal não tem como objetivo trazer à tona novas espécies de fenômeno; na verdade, aqueles que não se ajustam aos limites do paradigma freqüentemente nem são vistos. (KUHN, 1991, p. 45)
Na fase da ciência normal, as práticas teóricas e experimentais são regidas
pelas regras ou princípios do paradigma vigente, e não os podem contradizer. Vista
dessa maneira, a ciência normal assemelha‐se a uma resolução de quebra‐cabeças: as
soluções admissíveis para os problemas científicos (que são estes mesmos também
definidos pelo paradigma) estão restringidas como numa palavra‐cruzada ou num
puzzle. Para Kuhn (1991), os princípios do paradigma vigente são semelhantes às
regras de um jogo, com a diferença de que em um jogo as regras são todas explícitas,
e seu caráter meramente convencional e arbitrário é óbvio. Já nos paradigmas,
82
embora as regras sejam convencionais e arbitrárias, esse caráter não é explícito e,
portanto, muitas vezes não é consciente.
O sucesso e a longevidade desse tipo de fase do empreendimento científico
dependem da habilidade e perseverança da comunidade científica para defender que
seus pressupostos sobre o universo estão corretos. Quando surgem novidades no
campo experimental que não são explicáveis pela estrutura conceitual e axiomática
em vigor, elas são num primeiro momento alvo do obsessivo e sistemático exame e
investigação dos mais hábeis membros dessa comunidade, e num segundo momento,
simplesmente postas de lado à espera de novos instrumentos de medida ou teorias
paralelas e integradas que possam explicá‐las.
Para ele, quando esses novos fatos – que subvertem pressupostos básicos do
sistema conceitual em vigor – sobrevivem ao ataque sistemático da comunidade
científica, à criação de novos e mais refinados aparelhos, e começam a se cercar de
outros fatos empíricos que as corroboram, é reconhecida uma anomalia no sistema.
Estas aparecem depois de uma exploração extensa das possibilidades das teorias e
práticas experimentais delimitadas pelos princípios e regras do paradigma vigente.
É assim que a ciência normal, que não seria um empreendimento dirigido para
novidades, se torna eficaz em provocá‐las. Quanto mais aumenta o conteúdo
informativo de uma teoria, mais ela se arrisca a ser falseada. Com efeito, quanto mais
se diz, mais se está arriscado a errar. Essas anomalias a princípio são marginalizadas,
e só abalam a solidez dos paradigmas que não estão dando conta de sua existência
quando aparece uma nova teoria geral, candidata a paradigma, capaz de explicá‐las.
83
Abre‐se então o período da ciência extraordinária. O paradigma dominante e
seus pressupostos são postos em dúvida, surgem outras propostas de paradigma
investindo sobre o dominante, e então se suavizam as normas que governam a
pesquisa normal. O acúmulo de anomalias provoca uma perda de confiança dos
cientistas na teoria que haviam abraçado. A busca agora é por um novo paradigma, e
a crise resultante disso só findará quando conseguir erguer‐se esse novo paradigma,
onde as anomalias antes encontradas sejam resolvidas e os dados obtidos através do
paradigma anterior reintegrados em uma nova rede de relações, abrindo‐se um novo
período de ciência normal, ad infinitum.
Revolução científica para Kuhn (1991) é, portanto, a substituição de um
paradigma que, tendo acumulado um número de anomalias suficientes, gerou as
condições necessárias para o surgimento de um novo paradigma que dê conta destas.
É um momento de evolução não‐linear da história de uma ciência.
Para Kuhn, quando entramos num período de crise científica, ou seja, de crise
da ciência normal, só o podemos superar de três maneiras. A primeira é incorporar
as anomalias ao paradigma com pequenas alterações em suas teorias. A segunda é
deixar a anomalia de lado, desde que ela não esteja interferindo na resolução de
outros problemas ou de objetivos tecnológicos. A terceira é a revolução científica, ou
seja, a mudança de paradigma.
Segundo Kuhn, no momento do conflito de paradigmas, seus respectivos
partidários os defendem com base em argumentos extraídos dos próprios
paradigmas. Cai‐se assim inevitavelmente numa circularidade, pois se toma como
84
pressuposto os princípios do próprio paradigma em sua defesa. Para Kuhn,
paradigmas sucessivos dizem coisas diferentes acerca do universo e de seus objetos,
eles são ontologicamente irredutíveis um ao outro, eles são incomensuráveis. Isso quer
dizer que para Kuhn, nas revoluções científicas as mudanças de paradigma não são
realizadas a partir de regras metodológicas com fundamento na racionalidade
interna do sistema científico:
Existem razões intrínsecas pelas quais a assimilação, seja de um novo tipo de fenômeno, seja de uma nova teoria científica, devam exigir a rejeição de um paradigma mais antigo? Observe‐se primeiramente que se existem tais razões elas não derivam da estrutura lógica do empreendimento científico. (KUHN, 1991, p. 129)
Uma vez que Kuhn altera todo conjunto fundamental de termos para
descrição do empreendimento científico, caracterizando‐os de forma vaga, ele acaba
por enfraquecer logicamente o método hipotético‐dedutivo da ciência moderna, o
que faz David Stove acusá‐lo de tornar impossível uma tradução lógica estrita do
processo de investigação científica:
Once you mix the history with the logic of science, the possibilities of such sabotage [of logical expressions] are limitless; and almost every possibility has been realized. Recall for example Kuhn’s willingness to dissolve even the strongest logical expressions into sociology about what scientists regard as decisive arguments; recall that the logical expressions most important to him (namely the positive “solves the problem of”, and the negative “is an anomaly for”) are weak ones, and are therefore easily sabotaged; recall his express and repeated assertion that what constitutes solution of a problem is paradigm‐relative; and you will see that his entire philosophy of science is actually an engine for the mass‐destruction of all logical expressions
85
whatever: a ‘final solution’ to the problem of the logic of science. (Stove, 2001, p.72‐73)
Embora Kuhn alegue que defende a racionalidade como característica do
empreendimento científico, ele o faz somente em sua forma instrumental em relação
aos pressupostos do paradigma vigente, interna ao sistema, no contexto de uma
ciência normal. Mas mesmo essa racionalidade interna é minada pelo
enfraquecimento lógico que suas teses causam. Além disso, enumera vários motivos
que levam cientistas a adotar um novo paradigma, como reorganização gestáltica do
quadro conceitual e factual, interesse e pressão política ou mesmo fé, no sentido de
acreditar que o novo paradigma será capaz de responder, no futuro, a uma série de
perguntas e problemas, sabendo somente que o paradigma antigo não conseguiu
responder a algumas. Assim, podemos dizer que Kuhn é anti‐racionalista porque
nega que a razão tenha jurisdição sobre aquilo que é a questão mais importante do
empreendimento científico: a revolução científica e suas mudanças estruturais. Ele
não reconhece o empreendimento científico como uma empreitada teleológica em
direção à verdade. Para ele o desenvolvimento científico se dá a partir de algo (os
estágios primitivos de desenvolvimento), e não em direção a algo (a verdade).
É aqui que Kuhn sai do campo da descrição sociológica e se aventura no
campo da filosofia propriamente dita, estabelecendo a grande fissura da filosofia da
ciência contemporânea: a tese da incomensurabilidade dos paradigmas. O que Kuhn
quer dizer quando defende que dois paradigmas são incomensuráveis, é que é
impossível justificar racionalmente nossa preferência por uma teoria em relação a
86
outras teorias de paradigmas rivais. Não temos como comparar teorias de diferentes
paradigmas de um mesmo ponto de vista, como medi‐las com a mesma escala.
Esta impossibilidade de comparação racional entre duas teorias viria do fato
de que entre dois paradigmas diferentes existiriam distinções radicais, os conceitos
não seriam os mesmos: massa, por exemplo, para Newton significaria uma coisa e
para Einstein outra diferente. Isso requereria portanto um sistema de tradução dos
termos de uma teoria para a outra, como meio para efetuar uma comparação. Mas
como não existe uma linguagem neutra para além de paradigmas particulares, esta
tradução seria impossível.
A forma de interpretar os fenômenos e o que é um fato relevante ou não
também muda, e, principalmente, mudariam os métodos para avaliação das teorias.
É como se a comunidade científica estivesse jogando um jogo, com suas próprias
regras, e parte desta comunidade resolvesse mudar de jogo, com novas regras. Sendo
as regras de cada jogo diferentes, como podemos julgar a pontuação de um jogador
de basquete com as regras do tênis, e vice‐versa? Não dá para comparar as
performances, porque os diferentes grupos não concordam com uma regra de
comparação. Teria sido mais ou menos o que aconteceu quando Galileu acreditava
ter provado através de observações pelo telescópio que havia luas em Júpiter. A
observação empírica não foi aceita como prova contra a demonstração dedutiva
especulativa, porque nas regras do jogo aristotélico, demonstrações racionais valiam
mais que evidências empíricas. Para Galileu ao contrário, especulações racionais
acerca do mundo jamais poderiam se sobrepor a dados empíricos sobre este. Assim,
87
não teríamos como comparar racionalmente as duas teorias, porquanto o julgamento
de qual seguir se tornaria uma questão a ser decidida por critérios extra‐racionais.
Outro problema para Kuhn (1991) é que quando ocorre uma mudança de
paradigma, há sempre ganhos e perdas na capacidade de explicação e previsão.
Contra o princípio da verossimilhança do racionalismo crítico, Kuhn afirma que uma
nova teoria explica alguns fatos novos que a teoria antiga não explica, mas esta
geralmente continua a explicar fatos que a nova não teria como explicar. Assim, não
se justificaria afirmar que uma teoria é como projeto explicativo superior à outra.
Por fim, diante de toda esta gama de dificuldades, os cientistas acabariam
recorrendo a critérios particulares para comparar teorias e paradigmas concorrentes,
entre os quais estariam a simplicidade, o poder preditivo, a abrangência, a
abordagem de problemas considerados importantes ou solução de problemas
tecnológicos candentes. Mas como cada cientista confere pesos diferentes para cada
um destes critérios, a babel estaria definitivamente instalada. É por isso que Kuhn
acredita que fatores políticos e ou propagandísticos importam muito mais na hora da
escolha entre dois paradigmas concorrentes do que critérios lógico‐empíricos.
Alguns anos depois, em “Reflections on my critics”, Kuhn (1974) revê o
radicalismo desta posição, aceitando as críticas feitas a sua tese por alguns
racionalistas críticos. Neste artigo Kuhn admite que nem todos os conceitos mudam
de significado de um paradigma para outro, e que como restam intersecções
conceituais e empíricas entre teorias, no fim das contas, elas poderiam ser
88
comparadas à luz de uma base comum, elas poderiam ser co‐mensuradas. Mas esta
revisão de sua teoria veio tarde.
Em O Caminho desde a Estrutura, Kuhn (2003) tentou pela derradeira vez se
desvencilhar dos indesejados seguidores afirmando a necessidade de se defenderem
os conceitos de verdade e conhecimento do relativismo pós‐moderno que ele atribuía
ao construtivismo social. Chegou a declarar (p.139) que se incluía “entre aqueles que
consideram absurdas as alegações do programa forte: um exemplo de desconstrução
desvairada”:
Interesses, política, poder e autoridade sem dúvida desempenham um papel significativo na vida científica e em seu desenvolvimento. Mas a forma que os estudos da ‘negociação’ tomaram, como indiquei, tornou difícil perceber o que mais também pode desempenhar papel relevante. De fato, a forma mais extrema desse movimento, denominada por seus proponentes o ‘programa forte’, tem sido geralmente entendida como a defesa de que poder e interesses são tudo que há. A própria natureza, seja lá o que for isso, parece não ter papel algum no desenvolvimento das crenças a seu respeito. O falar de evidência, da racionalidade das asserções extraídas dela e da verdade ou probabilidade dessas asserções foi visto como simplesmente a retórica atrás da qual a parte vitoriosa esconde seu poder. O que passa por conhecimento científico torna‐se, então, apenas, a crença dos vitoriosos. (KUHN, 2003, p. 139)
Mas nada disso mudou o fato de que suas idéias, particularmente a da
incomensurabilidade (que ele de fato abandonou em grande parte em seus últimos
escritos), se tornaram, como havia previsto Popper (1974, p. 56), o baluarte do
irracionalismo de nossa época. Isto aconteceu porque os paradigmas no contexto do
pensamento kuhniano referem‐se a modelos de mundo construídos de uma forma
que impede que, em última análise, sejam julgados por uma realidade objetiva.
89
Assim, a considerável aceitação das teses heterodoxas de Kuhn foi
fundamental para a propagação de enfoques cada vez mais externalistas no
pensamento epistemológico (OLIVA, 2005), que advogam a tese da determinação da
cientificidade de teorias por critérios externos à lógica da investigação científica. O
construtivismo social, ao considerar esta filosofia “pós‐positivista” como a grande
vencedora do debate epistemológico, passou a invocá‐la como a fonte decisiva de
argumentos a favor do relativismo epistêmico, e a interpretou de forma bem mais
radical do que Kuhn desejaria. Ela foi recebida por autores como Barry Barnes (1982)
como o ponto de partida de um novo enfoque sociológico sobre a ciência, já que
provia o indispensável fundamento epistemológico a uma abordagem sociológica
que pretendia explicar a ciência no que tem de essencial: sua cognitividade.
Apesar de ter lutado a vida inteira contra o rótulo de relativista, Thomas Kuhn
foi mal‐sucedido nesta luta. Sua situação piorou quando seguidores da sua versão
original da incomensurabilidade dos paradigmas resolveram levar esta tese às
últimas conseqüências. Este foi o caso de Paul Feyerabend (1989), criador do auto‐
denominado “anarquismo epistemológico” que marcou o lance mais radical do jogo
irracionalista na filosofia da ciência.
3.2.3 – Feyerabend e a anarquização da epistemologia
Antes de tudo é importante pontuar que não se pretende aqui examinar o
conjunto da obra de Paul Feyerabend, mas somente analisar aquele seu texto que
ilustra melhor as teses relativistas que foram incorporadas pelo construtivismo
90
social. Em Contra o Método, de 1975, ele lança seu anarquismo epistemológico,
defendendo que a metodologia científica é na verdade o grande fator de entrave ao
progresso da ciência e levando o movimento de revisão da filosofia da ciência
tradicional ao seu ponto mais radical.
Esta obra pretende ser a defesa de uma revolução permanente em ciência, que
implica na visão da regra metodológica como sendo sempre reacionária. Seu ataque
às regras, como sintetiza Oliva (1990), se dá com base em três teses. Primeira, a de
que a história demonstra que os mais autênticos progressos do conhecimento
contrariam de uma ou de outra maneira todas as metodologias até hoje propostas.
Não haveria uma só regra que embora plausível e bem fundada deixasse de ser
violada em algum momento. Segunda, a de que há um grande descompasso entre o
que propõem as regras e o que efetivamente fazem os cientistas. Terceira, a de que
todas as metodologias teriam deficiências de fundamentação, daí inferindo que só o
vale‐tudo é capaz de manter‐se. Sustenta estas teses com interpretações de exemplos
históricos que indicariam que as regras se constituem, em momentos decisivos da
ciência, em autênticos entraves à marcha do conhecimento.
Feyerabend (1989) afirma em outro ponto de sua obra que seu objetivo não é o
de substituir um conjunto de regras por outro com o mesmo perfil dos cânones
tradicionais. Seu objetivo seria, antes, o de convencer o leitor de que todas as
metodologias, inclusive as mais óbvias, têm limitações. No entanto, esta segunda
formulação é um truísmo. Neste movimento vemos uma característica típica da
filosofia pós‐moderna: afirmações grandiloqüentes e propagandísticas, que levam a
91
conseqüências absurdas, lançam seu autor na moda filosófica do momento; assim
que refutadas, são geralmente seguidas de retificações em obscuros artigos‐resposta,
retificações estas que no entanto levam a posições comuns e sem interesse filosófico
algum. Este é um movimento parecido com o que André Kukla (2000, p.X) denomina
o pecado filosófico do “reverse switcheroos”: difundir a versão forte de uma tese, e
assim que seus problemas forem apontados de forma cabal, recuar para uma versão
fraca da mesma tese, fingindo que era essa versão fraca que se tinha em mente o
tempo todo.
Feyerabend (1989) afirma que há circunstâncias em que é aconselhável
introduzir, elaborar e defender hipóteses ad hoc, hipóteses que se colocam em
contradição com resultados experimentais aceitos e estabelecidos, hipóteses de
conteúdo explicativo mais reduzido que o da hipótese existente e até hipóteses
contraditórias porque:
Os que tomam do rico material da história, sem a preocupação de empobrecê‐lo para agradar aos seus baixos instintos, a seu anseio de segurança intelectual (que se manifesta como desejo de clareza, precisão, ‘objetividade’, ‘verdade’), esses vêem claro que só há um princípio que pode ser defendido em todas as circunstâncias e todos os estágios do desenvolvimento humano: É o princípio: tudo vale. (FEYERABEND, 1989, P.34)
Para ele, só tem chance de sucesso na dura empreitada científica o pesquisador
que esteja disposto a se comportar como um “oportunista brutal” (1989, p. 19) que
não se prenda à filosofia nenhuma e adote a diretriz mais profícua para a qual a
ocasião aponte. A adesão a novas idéias tem de ser conseguida por meios não‐
92
racionais, como a propaganda, a emoção, as hipóteses ad hoc e os preconceitos de
toda a espécie. Isso tudo é necessário até que se disponha de ciências auxiliares, fatos
e argumentos que transformem a fé em conhecimento bem fundado. Teorias só se
tornariam claras depois de terem sido usadas por longo tempo várias das partes
incoerentes que as compõem. Nesse contexto se torna importante o aparecimento de
uma nova classe secular dotada de nova visão e acentuado desprezo pela ciência das
escolas. Mesmo porque, segundo Feyerabend, não é na razão que reside a força
argumentativa máxima de uma teoria nem seu valor intrínseco, mas sim na sua
capacidade de influenciar pessoas.
Só recorrer a teorias alternativas quando a teoria ortodoxa já foi refutada seria
botar o carro adiante dos bois: para ele a evidência capaz de refutar uma teoria
muitas vezes só é revelada por uma teoria alternativa incompatível. Por isso o
princípio da proliferação de Feyerabend (1989) defende que o cientista deve adotar
metodologia pluralista. Já que a construção teórica é criação explicativa e os fatos são
especificados pelos próprios pressupostos interpretativos, só sairíamos dessa
circularidade através da confecção do maior número possível de teorizações, já que a
multiplicação de diferentes óticas teóricas ampliaria o universo de fatos testadores da
teoria por nós patrocinada. Além do mais, certos “fatos” refutadores só se
identificariam a partir da elaboração de alteridades explicativas, não sendo possível
sequer percebê‐los como fatos, segundo ele, a partir do referencial teórico dominante.
Assim sendo, tudo é justificável para conseguir a diversificação, a proliferação de
93
teorias, até mesmo a força e a intervenção política nas ciências que se tornaram
“rígidas e intolerantes” (p.69), como foi feito na China de Mao Tsé Tung (p.464).
Esse ataque ao ideal empirista de ciência equipara epistemologicamente todas
as modalidades de alegação de conhecimento, incluido o mito. Feyerabend (1989)
centra sua análise na rejeição às distinções clássicas entre contexto da descoberta e
contexto da justificação, entre linguagem observacional e linguagem teórica, e entre
ciência e metafísica/mito. Essa postura parte do fato de que a ciência não conhece
fatos nus: os fatos de que tomamos conhecimento são vistos como fatos porque uma
série de pressupostos observacionais recortou a massa de percepções de determinada
forma, e não de outra. Bem até aí, nada de novo. Mas partindo da tese de que não há
fatos que possam ser descritos independentemente de uma teoria, Feyerabend (1989)
postula não haver domínio observacional autônomo. Assim, se não há verdade
objetiva a alcançar, sequer verossimilhança, não há como comparar duas teorias na
busca de uma mais próxima da verdade, pois são esquemas conceituais e factuais
incomensuráveis. Aqui Feyerabend pretende demonstrar a insustentabilidade da
velha distinção entre linguagem teórica e linguagem observacional.
Assim como Feyerabend (1989) quer abolir a distinção entre termos teóricos e
termos observacionais, quer também abolir a distinção entre contexto de justificação
e contexto de descoberta. Diz que nenhuma dessas distinções tem papel na prática
científica, uma vez que o contexto da justificação também pertenceria ao domínio da
construção, da criatividade, que pode validar uma teoria com critérios que venha a
94
desenvolver. Dessa forma, a fronteira entre a criação e descoberta e o contexto de sua
prova e validação perante os fatos ficaria dissolvida.
Com base nestes argumentos, uma vez que “a ciência é uma das muitas
formas de pensamento desenvolvidas pelo homem e não necessariamente a melhor”
(1989, p. 447), ele introduz uma questão que parece se revelar a maior de suas
motivações teóricas (assim como parece ser também a da maioria dos autores
construtivistas sociais): a crítica ao poder social especial do discurso científico. Tenta
fazer de sua obra um libelo pela separação entre Estado e ciência:
Como a aceitação e a rejeição de ideologias devem caber ao indivíduo, segue‐se que a separação entre Estado e a Igreja há de ser complementada por uma separação entre o Estado e a ciência, a mais recente, mais agressiva e mais dogmática instituição religiosa. Tal separação será, talvez, a única forma de alcançarmos a humanidade de que somos capazes, mas que jamais concretizamos.” (FEYERABEND, 1989, p.454)
Feyerabend (1989) afirma que não há porque os objetivos da ciência devam
restringir as vidas, os pensamentos e a educação dos integrantes de uma sociedade
livre, uma vez que a ciência não tem autoridade maior que qualquer outra forma
cultural. Ataca a atitude de conferir à ciência uma “lógica” própria que lhe concede
um poder especial, socialmente exorbitante. Deve‐se separar estado e ciência. Além
do mais, afirma Feyerabend, a ciência moderna se impôs a seus oponentes, não os
convenceu. A ciência dominou os mais ignorantes pela força, e não através de
argumentos racionais (p.450). Afirma com revolta que apesar dos esforços da
desrazão a ciência continua a reinar soberana, porque seus praticantes são incapazes
95
de tolerar ideologias diferentes e usam a força para impor seus desejos. Reclama que
a maneira como aceitamos ou rejeitamos teorias científicas não é democrática. Não há
votação sobre as teorias científicas que são ensinadas a nossos filhos, porque os
cientistas não as submetem à votação (p. 456).
Por isso e por tudo o que ele crê ter demonstrado sobre o discurso científico, a
ciência se equipara ao mito. As conquistas tecnológicas da ciência moderna (como a
ida à Lua) são exageradas pela ideologia cientificista, tribos primitivas possuíam um
sistema de saber próprio, capazes às vezes de coisas de que a ciência é incapaz:
Por certo que [na idade da pedra] não houve excursões coletivas à Lua, mas indivíduos isolados, desprezando grandes perigos que lhes ameaçavam a alma e a sanidade mental elevaram‐se de esfera a esfera e finalmente encararam Deus em todo Seu esplendor, enquanto outros homens se transformavam em animais para depois readquirir a figura humana. (FEYERABEND, 1989, P.463)
Afirma que a ciência é a “mais desprezível forma de escravidão intelectual e
institucional” (p.454), e que deveríamos numa sociedade ideal contar com cientistas
escravos voluntários que seriam bem tratados para nos dar pílulas, gás, bombas
atômicas e refeições congeladas (p.454). Por fim classifica a filosofia da ciência de
“disciplina espúria” (p. 455). Crê que devemos lutar politicamente para evitar que a
identificação de eventuais superioridades da explicação científica acabe por dotá‐la
de poderes sociais especiais, nos conclamando ao final de sua obra:
Cabe aos cidadãos da sociedade livre aceitar o chauvinismo da ciência sem contraditá‐la ou subjugá‐la pela força oposta da ação geral. Ação geral foi utilizada contra a ciência pelos comunistas chineses na década de 1950 e voltou a ser usada, em circunstâncias
96
muito diversas, por algumas pessoas que se opunham à teoria da evolução, na Califórnia da década de 1970. Acompanhemos esses exemplos e livremos a sociedade do aperto estrangulador da Religião verdadeira e Única. (FEYERABEND, 1989, p. 464)
O estudante da “espúria disciplina” da filosofia da ciência que se depara com
a obra de filosofia da ciência de Feyerabend percebe imediatamente que está diante
de uma provocação filosófica, não de uma teoria filosófica. Mas mesmo entendida
como uma provocação, sua obra é excessivamente confusa e incongruente. A
debilidade básica dessa “epistemologia”, da qual decorre a maioria das outras
incongruências, parte do dilema, apresentado por Oliva (1990), entre propor
alternativas epistemológicas superiores às regras metodológicas já formuladas ou se
opor a toda e qualquer epistemologia. Essa contradição é dissimulada com uma
alternância confusa, durante toda a obra, entre essas duas posições, aparentemente
com o objetivo de evitar as conclusões desagradáveis deriváveis de qualquer uma
delas, se consideradas em separado.
Existem outras incongruências sérias em sua obra. A rejeição de Feyerabend à
metodologia em si, é uma delas. Ao formulá‐la, como observou Oliva (1990), ele a
justifica recorrendo ao método de indução que diz incompetente, apoiando‐se
pobremente em uns poucos exemplos históricos. Como ele pode afirmar que o fato
de que seriam falhas todas as metodologias que a epistemologia tenha formulado até
hoje pode determinar que todas as metodologias que venham a ser criadas tenham
que apresentar falhas? Em outra incoerência, vemos que enquanto algumas vezes
acusa a razão e o método como travadores do progresso, em outras afirma que o
97
progresso não existe porque as teorias científicas são incomensuráveis. Feyerabend
não se decide, durante toda a sua argumentação, entre acusar a razão de obstáculo ao
progresso humano apresentando‐se como seu defensor, ou acusá‐la de criadora do
mito do progresso, apresentando‐se como seu desmascarador. O que importa o
tempo todo, ao que parece, é acusar a razão de alguma coisa.
Uma última crítica (em virtude do espaço aqui dedicado) pretendo dirigir ao
princípio da proliferação. Uma vez que a construção teórica é criação explicativa e o
ponto de vista cria o objeto, Feyerabend (1989) afirma que o ideal a perseguir é o do
confronto entre perspectivas diferentes e não o modelo tradicional que testa a teoria
com base nos “fatos pertinentes”. Se os fatos são especificados pelos próprios
pressupostos interpretativos, só saímos dessa circularidade através da confecção do
maior número possível de teorizações, já que a multiplicação de diferentes óticas
teóricas vai ampliar o universo de fatos testadores da teoria por nós patrocinada. Mas
de que valem novas teorias se os sistemas interpretativos serão outros e, portanto,
outros serão os objetos abordados? O princípio da proliferação só seria defensável
segundo Oliva (1990), na hipótese de uma ordem epistêmica superior às duas versões
alternativas, onde elas pudessem ser confrontadas. Pois se as teorias são
incomensuráveis, o princípio de proliferação não serve para nada.
Em suma: o anarquismo epistemológico de Feyerabend é tão cheio de
incongruências e aporias, que leva quem sobre ele se debruça com olhar benevolente
a pensar que toda sua obra pode não passar de uma mera peça de publicidade, um
trabalho de animação cultural, concluindo que suas confusões e contradições podem
98
ser uma brincadeira com vistas a provocar as convicções racionalistas do leitor ao
martelar teses manifestamente irracionalistas. Uma disposição menos favorável, no
entanto, pode levar o leitor a concluir simplesmente que a obra é um exercício de
mera desonestidade intelectual, como ele próprio insinua (1989):
Tenha‐se sempre em mente que as demonstrações e a retórica usada não expressam profundas convicções minhas. Apenas mostram como é fácil, através de um recurso ao racional, iludir as pessoas e conduzi‐las ao nosso bel‐prazer. Um anarquista é como um agente secreto que participa do jogo da Razão para solapar a autoridade da Razão (Verdade, Honestidade, Justiça e assim por diante) (p. 43)
Rejeitando o critério de demarcação, recusando a legitimidade de toda e
qualquer regra metodológica, a distinção entre linguagem teórica e observacional
(tese da imbricação entre ambas), a distinção entre contexto da descoberta e contexto
da justificação e a noção de progresso dada a incomensurabilidade das teorias,
Feyerabend se tornou um autor influente. Todas essas radicalizações, algumas de
teses defendidas por Thomas Kuhn, foram incorporadas, como veremos, pelo
construtivismo social em seu ataque à epistemologia tradicional. No entanto, o nome
de Feyerabend, desgastado pela forma pouco coerente como expõe suas idéias, é
muito pouco citado pelos autores do strong programme.
Nas páginas que nos levaram até aqui foi apresentada boa parte dos mais
importantes ataques que o século XX testemunhou contra a epistemologia tradicional
99
antes do construtivismo social. Larry Laudan (1990) define desta forma os objetivos
do tipo de epistemologia que se tornou o alvo do irracionalismo contemporâneo:
A search for incorrigible givens from each the rest of knowledge could be derived; A commitment to given advice about how to improve knowledge; and the identification of criteria for recognizing when one had a bona fide knowledge claim. (LAUDAN, p.134)
De fato a maioria de nós, afirma Laudan, concorda que o primeiro objetivo
deve ser abandonado. O problema é que construtivistas sociais como Barnes e Bloor,
e epistemólogos naturalistas como Quine defendem a questionável tese de que o
descarte do programa fundacionalista implica também o abandono dos outros dois
objetivos, o que de fato caracterizaria o fim da busca dos meios pelos quais se dá a
validação do conhecimento. O próprio Quine (1969, p.87) reconhece que a perda do
status de filosofia primeira pela epistemologia desencadeou uma onda de niilismo
epistemológico.
Vistas as mais importantes teses filosóficas nas quais se baseia, e que são
anteriores historicamente ao seu surgimento, a partir dos dois próximos capítulos,
vamos investigar em mais detalhes o tipo de atividade que o construtivismo social
pretende estabelecer em lugar da epistemologia tradicional.
100
3.3. – Construtivismo Social e Ontologia
Neste item abordarei fundamentalmente as teses e posições ontológicas do
construtivismo social. Digo ‘fundamentalmente’ porque no interior desta corrente é
pouco natural a distinção entre teses ontológicas e epistemológicas.
Começaremos por investigar como o construtivismo social se posiciona sobre
a mais básica das questões, a Q1 da caracterização geral do segundo capítulo: existem
objetos independentes da mente humana? Em seguida, abordaremos uma complexa
questão que se coloca ao construtivismo social: do que existe, o que é fruto de
construção social e o que não é? Que tipos de objetos são construídos? Por fim,
veremos que quando a resposta dada à questão acima é a de que os próprios fatos
são construídos, estamos diante de uma cisão irremediável no movimento. É em
virtude destas questões ontológicas e de suas várias e confusas teses, que o
construtivismo social se fragmentou, restando somente como identidade comum
algumas posições epistemológicas fortemente heterodoxas.
3.3.1. O que existe para o construtivismo social?
Grande parte da dificuldade em se separar teses ontológicas e epistemológicas
no construtivismo social vem do uso da própria palavra ‘construção’. Palavras
terminadas com o morfema ‘ção’ na nossa língua carregam grande ambiguidade,
podendo denotar tanto o processo de chegar a algo como o produto desse processo
(produção pode se referir ao processo de produzir ou ao produto, inflexão ao
101
processo de inverter uma tendência ou ao resultado dessa inversão e assim por
diante). Assim, quando alguém fala na ‘construção social’ da moeda, pode estar se
referindo a um estudo tanto do processo de construir uma moeda nacional (e nesse
caso o estudo tem um caráter mais histórico) quanto de um produto final, uma
moeda (e nesse caso o estudo tem um caráter mais sistêmico).
Para tornar o quadro ainda mais complexo, quando um construtivista social
afirma que um objeto (como quarks) é construído socialmente, ele pode estar
afirmando que a) as crenças generalizadas socialmente sobre quarks são socialmente
construídas; b) as crenças científicas sobre quarks são socialmente construídas,
inclusive o conceito de quark; c) os fatos sobre quarks são socialmente construídos;
ou ainda d) os quarks mesmos são socialmente construídos. Claro que podemos
esperar também que, às vezes, surja alguma opção diversa e mais estranha que
alguma das quatro acima.
No entanto há algo comum a todas essas abordagens ontológicas, e é uma tese
epistêmica: o tipo de dados empíricos que pode fundamentalmente ser alcançado
quando falamos de (a) crenças, são suas expressões verbais, quando falamos de (b)
conhecimento científico, são o conjunto de proposições publicadas que expressam as
observações e leis admitidas como reais, quando falamos de (c) fatos, são somente as
descrições linguísticas de observações. Assim, temos aqui mais um ponto de
dispersão do construtivismo social, pois da versão social da tese kantiana de
inacessibilidade da coisa‐em‐si que está na origem do relativismo e ceticismo
epistemológicos presentes em todo o campo pode‐se avançar, e autores como Latour,
102
Woolgar e Collins o fazem, para a tese ontológica de que tudo o que existe é o
discurso (ou como diziam Latour e Woolgar (1986) em “Laboratory Life” sob a
influência de Jacques Derrida: inscriptions). É curioso ver que em seu limite extremo,
estas posições autodenominadas construtivistas chegam às mesmas teses
desconstrucionistas de Derrida:
There is no sense in which we can claim that the phenomenon (...) has an existence independent of its means of expression (…) There is no object beyond discourse (…) the organization of discourse is the object. Facts and objects in the world are inescapably textual constructions. (WOOLGAR, 1988, p. 73)
Como vemos, o construtivismo social neste ponto faz uso das teses de autores
como Wittgenstein, Kuhn e Feyerabend contra as bases atomistas e referencialistas
que a filosofia da ciência tradicional identificava na ciência moderna, o que é crucial
para o estabelecimento de sua versão social da ciência. Ao adotar como o faz Bloor
(1983, 1997a) a tese wittgensteiniana do significado como uso no interior de um jogo
de linguagem particular, termos científicos passam a ser considerados fruto do jogo
de linguagem específico à ciência e de suas negociações sociais; e os termos
observacionais, que não teriam como prescindir desses óculos lingüísticos sociais,
não são capazes de sair dessa redoma pois afinal de contas também são entidades
linguísticas cujo significado será dado pelo uso naquele contexto social.
Há algo implícito nas teses construtivistas sociais que é plenamente assumido
pelo seu congênere psicológico, o construcionismo social: a tese da relatividade
linguística de Benjamin Whorf (1979), que afirma que o pensamento se resume à
103
linguagem e que portanto diferentes linguagens constrangem diferentemente o que
podemos ou não podemos perceber. Tal tese não é somente filosófica, ela tem
consequências testáveis muito simples e já foi refutada experimentalmente de forma
extensa e diversificada (Cf. CASTAÑON, 2001). Esta visão da linguagem é
dependente da tradição do behaviorismo linguístico impulsionada a partir da obra
de Wittgenstein e implica uma visão passiva de sujeito e empobrecida dos processos
cognitivos humanos, além de se mostrar alienada dos resultados da neurociência
contemporânea.
É necessário no entanto dizer que, apesar de Bloor (1983) assumir esta tese em
sua obra, ele recentemente começou a apresentar a disposição de se afastar da
relatividade linguística (BARNES, BLOOR E HENRY, 1996), ao admitir que a
percepção sensorial pode ser um processo mental humano altamente modular e
relativamente independente dos filtros lingüísticos. Exploraremos este problema no
item seguinte, dedicado a questões epistemológicas.
Por hora, o que importa é lembrar que Kuhn e Feyerabend assumem
implicitamente esta tese ao se comprometerem com o pressuposto de que no
processo de construção de conhecimento fazemos uso de uma linguagem particular
que carrega consigo os constrangimentos e hipóteses ontológicas implícitas de uma
visão particular de mundo, de uma forma de vida. Partindo disso, o construtivismo
social ontológico dá o passo que decreta que se a linguagem é um produto social, e
tudo o que chamamos de fatos, observações, teorias e leis científicas são comunicados
104
e negociados unicamente através de uma linguagem, então fatos, observações, teorias
e leis científicas são construções meramente linguísticas de natureza social.
Quando Berger & Luckmann (1973) cunharam o termo ‘construção social’, eles
tinham em mente um objeto do tipo a acima mencionado, isto é, crenças
compartilhadas sobre a realidade. Na verdade, não pretendiam sequer estudar
sociologicamente o processo de obtenção de conhecimento científico, mas somente as
crenças compartilhadas por setores da sociedade sobre o que é e como funciona a
realidade, ou seja, o que é tido como conhecimento. Barnes e Bloor, ao lançarem o
programa forte em sociologia da ciência tinham pretensões do tipo b. Eles queriam
investigar e estabelecer quais são os processos sociais que levam ao estabelecimento
de uma crença científica compartilhada pela comunidade científica relevante, e esses
processos seriam seu objeto primário de estudo. A ambição última do strong
programme é o estabelecimento de leis causais de formação das crenças científicas,
assim, suas proposições sobre o tema serão avaliadas no subitem dedicado às suas
teses epistemológicas. Mas essa ambição não altera a crença básica sobre o que são
seus dados primários e o que sustenta a estabilidade das observações, e não é o
“mundo” do realismo ontológico tradicional:
There is indeed truth in the conviction that knowledge and science depends on something outside of mere belief. But that outside force which sustains it is not transcendent. There is indeed something in which sustains it is not transcendent. (…) What is ‘outside’ knowledge; what is greater than it; what sustains it, is of course, society itself. (BLOOR, 1991, p. 82)
105
Por mais que Bloor se explique, e o tem feito seguidamente desde a publicação
de Knowledge and Social Imagery, é muito difícil ver onde sua posição difere da de
Harry Collins, que argumentando em prol da tese da ilimitada flexibilidade
interpretativa dos dados empíricos declara que “the natural world has a small or non‐
existent role in the construction of scientific knowledge” (COLLINS, 1981, p.05)
Apesar de declarações de efeito como a de Collins, poucos membros do
construtivismo social aceitam a qualificação de idealistas. Estes protestos, em virtude
de seu caráter conflitante em relação a outras teses importantes da abordagem, não
são muito levados em consideração por seus principais críticos, como Mário Bunge
(1992), que considera que para o construtivismo social construtivismo é a rejeição da
visão de que os fatos naturais são independentes da atividade humana, dos
processos sociais, e de que a realidade que as teorias científicas descrevem é
independente de nossos pensamentos e compromissos teóricos. As comunidades
científicas, imersas em uma rede lingüística e cultural, construiriam não apenas suas
explicações dos fatos, mas os próprios fatos.
Mas como afirma Niiniluoto (1999, p.261), a posição do construtivismo social
não é idealista em sentido estrito, ontológico: poderíamos falar no máximo de um
“idealismo metodológico”. Seguidamente Bloor (1983, 1991, 1999, 2007) declara ser o
strong programme aderido a um monismo materialista, sendo assim, não existe
natureza e sociedade, mas uma sociedade que faz parte da natureza:
106
The Strong Program is part of a naturalistic and causal enterprise. From the standpoint of the Strong Program, society itself is part of nature. The word ‘natureʹ refers to the all‐encompassing, material system in which human animals and the entire pattern of their interactions, and all the products and consequences of these interactions, have their allotted place. To talk about society explaining nature, when it is but one part of nature, is incoherent. Knowledge itself is just one more natural phenomenon. (BLOOR, 1999, p.87)
De fato, não se pode dizer que o programa forte é idealista, mesmo porque
sequer considera o papel da mente individual na construção do social, antes,
considera que a linguagem é que constrói a ilusão da mente individual (Bloor, 1983).
Não é a subjetividade o que existe, é o mundo físico e nele os sistemas de sinais
físicos que constituem os jogos de linguagem. Mas apesar de não ser idealista estrito
senso, a abordagem é francamente oposta àquilo que Niiniluoto (1999) classifica de
realismo epistemológico, seja ele dogmático ou crítico. Por considerar nula ou
próxima de nula, e de nenhuma forma direta, a influência do mundo na formação
das crenças científicas, o construtivismo social decreta que, por uma questão
metodológica, na hora de procurarmos explicar a causa de crenças científicas,
deveríamos desconsiderar metodologicamente o mundo e nos concentrarmos nas
determinantes sociais da crença. Ou seja, o programa forte é cético acerca da
obtenção de conhecimento aproximadamente verdadeiro sobre o mundo.
Em sua última tentativa de dar uma forma canônica ao strong programme,
Barnes, Bloor & Henry (1996) publicaram Scientific Knowledge: a sociological analysis,
onde entre outras coisas, voltam a tentar defender a tese forte das reiteradas
acusações de esposar um idealismo que contraria o espírito empirista e realista da
107
ciência moderna. De maneira inequívoca, se colocam contra a abordagem sociológica
idealista do conhecimento científico, que “denies the existence of an external world and
gives no role to experience in the generation of knowledge and belief” (p.76, 202). O
problema é que não indicam claramente, como veremos no próximo item do
capítulo, a forma como o mundo interferiria na formação de nossas crenças. Além
disso, raros são os autores construtivistas sociais que em algum momento de suas
carreiras afirmaram diretamente a inexistência do mundo físico, e dos que o fizeram
houve quem não tardasse a retificar suas afirmações (LATOUR, 2000).
Assim podemos dizer que, de maneira geral, autores construtivistas sociais se
alternam entre o realismo ontológico e o ceticismo ontológico, mas dificilmente se
declaram idealistas, qualificação que costuma a ser a eles atribuída por seus muitos
críticos. No entanto, são céticos quanto à possibilidade de se estabelecer
conhecimento de aspectos da realidade, e relativistas quanto aos critérios de
avaliação de crenças científicas. Logo, não é muito significativo declararem
benevolentemente que acreditam na existência do mundo, quando sua existência não
faz, para eles, a menor diferença epistêmica.
3.3.2. Construção social de quê?
Ok, há um mundo lá fora, pelo menos nos concedem os principais
proponentes do strong programme. Mas o que está lá fora? Se a ciência moderna é tão
interpretativa quanto a filosofia e se todo pensamento depende da linguagem, então
não temos acesso ao objeto do conhecimento nem mesmo indiretamente. Então, a
108
ciência não descobre. Mas se ela não é capaz de descobrir aspectos do objeto
independentes da consciência, que tipo de conhecimento temos sobre ele? O
construtivismo social dá a este beco sem saída epistemológico uma resposta
ontológica: conhecemos o objeto que é construído socialmente. Mas o que afinal de
contas isso quer dizer? Ele não existe de forma independente? Da mente individual,
sim.
Tudo hoje em dia parece ser construído socialmente, a julgar pelos títulos dos
artigos e livros de sociologia. Há dez anos Ian Hacking, filósofo originalmente
simpático às teses do strong programme, publicou um dos livros atualmente mais
influentes e citados no debate sobre o construtivismo social: o The Social Construction
of What?. Diz nas linhas iniciais de seu prefácio que a expressão ‘construção social’
teve seu uso tão difundido, generalizado e confundido, que hoje é pouco mais que
um código. Se você usa a expressão favoravelmente é porque se considera um
radical, se usa desfavoravelmente, se declara alguém racional, razoável e respeitável
(HACKING, 1999, p.VII).
Em uma pesquisa informal no sistema de busca da biblioteca de sua
instituição, Hacking (1999) encontra e lista mais de trinta obras com título contendo
“Social construction of X”ou “Constructing X” nos vinte anos anteriores a 1999. Isto
sem levar em consideração as obras encontradas sob o título “Inventing X”, também
geralmente associadas ao movimento. Do óbvio ao surpreendente, tudo é tido como
socialmente construído pela abordagem majoritária da sociologia contemporânea: da
109
autoria à doença, do nacionalismo Zulu à realidade, da natureza às mulheres
refugiadas.
A expressão ‘construção social’, à qual Hacking (1999, p.3) reputa atualmente
a condição de “células cancerosas” que se replicam sem controle, começou a ser
usada num contexto muito específico da construção social do conhecimento (Berger
& Luckmann, 1973) e se generalizou após ser aplicada à investigação do que seria a
construção social do conhecimento científico, no âmbito do programa forte da
sociologia da ciência.
Hoje, Hacking defende que seu uso vem acompanhado de uma atitude de
revolta ou inconformidade com a realidade, ou ao menos com a forma determinista,
naturalista ou inevitável com que determinados objetos são apresentados pela ciência
ou pela cultura em geral. Ao escrever sobre a “construção social de X”, um autor
tende a sustentar que:
(1) X need not have existed, or need not be at all as it is. X, or X as it is at present, is not determined by the nature of things; it is not inevitable. Very often they go further, and urge that: (2) X is quite bad as it is. (3) We would be much better off if X were done away with, or at least radically transformed. (HACKING, 1999, p.6)
Assim, por exemplo, se um sociólogo ou historiador resolve investigar o que
ele alega ser a construção social do gênero (como fizeram Lorber e Farrell (1991)), o
objetivo da investigação provavelmente é demonstrar que (1) o gênero sexual não é
algo determinado pela natureza das coisas, a existência de gêneros sexuais não é
110
inevitável. A categorização de seres humanos em dois únicos tipos foi trazida à
existência pela confluência de forças sociais, interesses, eventos históricos e sociais
que poderiam, todos eles, terem sido diferentes, pois são contingentes. Por exemplo,
o que parece natural, poderia ter sido gerado por interesses moralizantes e
repressores de alguma espécie.
Geralmente quem despende muito tempo e esforço para justificar a afirmação
de que ‘gênero’ é uma construção social, é porque julga que o conceito, a idéia de
gênero, não só é de natureza puramente social sem necessária base biológica como (2)
é de alguma forma nefasta para um determinado grupo (as mulheres, os
homossexuais, os transexuais) e que (3) deveria ser eliminado ou radicalmente
transformado, pois estaríamos melhores sem este tipo de conceito ao menos da forma
como ele está posto atualmente.
Mais do que isso, Hacking (1999) identifica uma precondição de interesse (não
pressuposto) para a eleição de um tema como objeto de análise construtivista social:
“(0) In the present state of affairs, X is taken for granted; appears to be inevitable” (p.12). Ou
seja, não é alvo de interesse de um sociólogo a construção social de algo que é
evidentemente uma construção social. Provavelmente não nos depararemos numa
bancada de sociologia com o livro “A Construção Social do Partido dos
Trabalhadores” ou ainda sobre “A Construção Social do Plano Real”. Esses seriam
objetos desinteressantes de análise. O que interessa a um construtivista social é eleger
algo consensualmente tido como inevitável e natural, como quarks (Pickering, 1984),
fatos (Latour & Woolgar, 1979) ou natureza (Eder, 1996), e mostrar através de
111
interpretações de dados empíricos como este algo é, na verdade, resultado de uma
construção contingente de natureza social.
John Searle, diante da proliferação descontrolada da expressão ‘construção
social’, resolveu entrar no debate e produziu um dos livros mais esclarecedores sobre
o tema, o The Construction of Social Reality, de 1995. Nesta obra, Searle trata da
“construção da realidade social” ao invés da “construção social da realidade”.
Reafirmando enfaticamente o realismo ontológico e a teoria da verdade como
correspondência, Searle procura discriminar as características de todo um domínio
de fatos objetivos que são, efetivamente, construídos socialmente, particularmente as
instituições. Searle (1995) argumenta pela completa inadequação de se atribuir a
objetos do mundo físico a mesma natureza de objetos institucionais e contratuais
(como uma moeda, um congresso, um estado nacional) estes últimos se mostram
claramente dependentes dos processos históricos e sociais que os criaram e os
sustentam. Por tudo isso, obviamente o livro de Searle não se filia ao construtivismo
social, pois o que este último pretende é estender os domínios da sociologia para
objetos ou aspectos de objetos generalizadamente considerados independentes de
processos sociais.
Assim, a preocupação original do construtivismo social é com o conjunto de
crenças justificadas socialmente como conhecimento científico, particularmente, das
ciências naturais. O projeto original de Barry Barnes e David Bloor tinha o objetivo de
aplicar a sociologia à explicação da formação de crenças científicas, mas o discurso
baseado em abordagem empírica de estudos de casos para justificar alegações de
112
construções que eles estabeleceram se generalizou para temas muito diversos dos
originalmente eleitos pela escola de Edimburgo. Hoje, segundo Hacking, temos três
espécies de coisas que encontramos socialmente construídas nas obras contrutivistas
sociais: objetos, idéias e o que Hacking (1999, p.21) denomina elevator words.
Objetos são coisas que estão no mundo, como pessoas, estados, condições,
práticas, ações, comportamentos, classes, experiências, relações, objetos materiais,
substâncias e partículas fundamentais. Seguindo a terminologia de Searle (1995),
podemos dizer que alguns desses objetos são ontologicamente subjetivos mas
epistemologicamente objetivos. Uma prática como o salário, por exemplo, é
ontologicamente subjetiva porque depende da existência de seres humanos e de suas
instituições para existir, mas é epistemologicamente objetiva porque você pode saber
de forma nada subjetiva se seu dinheiro foi depositado no dia do pagamento.
O segundo tipo de coisa alegadamente construída socialmente pela
abordagem são idéias: conceitos, crenças, atitudes e teorias. Elas obviamente não são
abordadas pelo construtivismo social como idéias privadas, mas somente como
idéias compartilhadas por algum grupo social. Por fim, temos as “elevator words”,
denominadas assim por mudarem a ordem do discurso filosófico (levar a questões de
segunda ordem o problema discutido) e implicar questões de reflexividade (como
‘verdade’, ‘fatos’, ‘realidade’ ou ‘conhecimento’). Estas palavras são usadas para
dizer coisas acerca de objetos e idéias, portanto, são classificadas à parte, mas
obviamente não escapam de ser atacadas pela abordagem.
113
Sergio Sismondo (1993) procurou responder uma pergunta parecida com a de
Hacking em seu artigo “Some Social Constructions”, que se tornou o mais citado no
Social Sciences Citation Index sobre construtivismo social. Este ótimo trabalho procura,
através de uma disposição positiva em relação aos social studies, classificar os tipos de
construtivismo social em função do que significa para cada um deles a metáfora da
construção. Assim, ele identifica quatro usos diferentes da metáfora:
(a) the construction, through the interplay of actors, of institutions, including knowledge, methodologies, fields, habits, and regulative ideals; (b) the construction by scientists of theories and accounts, in the sense that these are structures that rest upon bases of data and observations; (c) the construction, through material intervention, of artifacts in the laboratory; and (d) the construction, in the neo‐Kantian sense, of the objects of thought and representation (SISMONDO, 1993, p.516)
O primeiro uso como já vimos, foi o dado por Berger & Luckmann (1973), o
segundo, o dado pelo strong programme. Mas dois novos usos do termo construção
surgem aqui. O terceiro uso é na verdade um uso bem concreto do termo, e se refere
ao que chamaremos construtivismo social material, formulado principalmente por
Karin Knorr‐Cetina. Knorr‐Cetina (1981) chama nossa atenção para o fato de que
laboratórios científicos costumam a ser vistos como lugares onde idéias são testadas e
algumas vezes geradas. Mas em sua opinião eles na verdade são,
predominantemente, lugares onde coisas são feitas (construídas) e feitas para
funcionar. Em sua visão pragmática do que realmente aconteceria em um
laboratório, ela nos apresenta o que seria uma progressiva seleção do que funciona
através do uso daquilo que funcionou no passado e parece que funciona no presente.
114
Ou seja, o laboratório não é um lugar onde se testa a natureza, a ‘natureza’ estaria
altamente excluída deste ambiente pré‐fabricado (construído) de aparelhos,
substâncias purificadas, bactérias isoladas e condições ambientais artificialmente
controladas.
Assim Cetina usa o termo ‘construção’ em dois sentidos. Primeiro o material
visto acima, e ilustrado pela passagem:
In the laboratory scientists operate upon (and within) a highly preconstructed artificial reality (…) but the source materials with which scientists work are also preconstructed. Plant and assay rats are specially grown and selectively bred. Most of the substances and chemicals used are purified and are obtained from the industry which serves the science or from other laboratories (…) In short, nowhere in the laboratory we find the ‘nature’ or ‘reality’ which is so crucial to the descriptivist interpretation of inquiry: To the observer from the outside world, the laboratory displays itself as a site of action from which ‘nature’ is as much as possible excluded rather than included. (KNORR‐CETINA, 1981, p.119).
O segundo sentido no qual ela usa o termo construção é em relação à segunda
categoria de Sismondo (e de Hacking): o que nós construímos em ciência são
modelos científicos, modelos que precisam ser adequados ao fenômeno. Ela discorda
que a atividade científica é uma atividade de descoberta da verdade, e o que o
sociólogo estuda é o processo de construção de modelos que funcionam: “theories are
like the cocoons left behind when practice is abstracted from the conduct of inquiry”
(KNORR‐CETINA, 1979, p.370).
Assim, Cetina está interessada em investigar não somente estes produtos
subjetivos da atividade científica (as teorias), mas também seus produtos (ou
115
construções) materiais: as técnicas, os ambientes materiais, os aparelhos, as
substâncias sintetizadas, enfim, toda uma categoria de objetos “artificiais” e
construídos. Ela se interessa particularmente em descrever cientistas atuando em um
mundo que eles próprios construíram: o do laboratório, não a natureza.
Parecem teses e objetivos razoáveis. O problema começa quando entendemos
que para Knorr‐Cetina essa construção material dos ambientes, objetos e aparelhos
com os quais a ciência trabalha, constrói os fatos científicos, que para ela, nada tem a
ver com a realidade não construída. Não é razoável ignorar o fato óbvio de que a
matéria prima de que são feitos todos os objetos construídos pela atividade científica
vem de uma natureza não‐construída, e que o laboratório onde eles são testados faz
parte da natureza não‐construída, que enfim, tudo o que existe materialmente é
natureza e continua nela.
No entanto esta não é razão suficiente para considerar, como o faz Kukla
(2000, veremos adiante), Knorr‐Cetina aderida a um construtivismo social metafísico.
O próprio Kukla no primeiro capítulo de sua obra reconhece que Knorr‐Cetina é
realista no mesmo sentido em que Kant é realista, e que Michael Devitt (1991)
denomina ironicamente “fig‐leaf realism”: onde se admite que existe a coisa
independentemente da mente humana mas se nega a possibilidade de obter
conhecimento absoluto de qualquer de suas propriedades. É Karin quem se
pronuncia: “a constructivist interpretation of knowledge is not to be confused with an
idealist ontology” (KNORR‐CETINA, 1979, p.369)
116
Mas a abordagem construtivista social de Knorr‐Cetina é cética quanto à
obtenção de conhecimento da natureza. Os objetos alegadamente “construídos” são
objetos materiais construídos de fato, e não metaforicamente. Os fatos a respeito
deles que são provocados (a manipulação experimental) pelos cientistas em seus
laboratórios são também, neste sentido, não naturais. É isso que ela quer dizer
quando afirma, ai sim metaforicamente, que os cientistas constroem a realidade sobre
a qual constroem teorias. Neste sentido podemos conceder que fatos científicos são
construídos sem cair num idealismo ontológico.
Já Paul Boghossian (2006) considera que existem três teses básicas no
construtivismo social sobre o que é construído socialmente. Uma delas é a da
construção social da justificação, que defende que fatos da forma “informação x justifica
crença y” não são independentes de nós e de nosso contexto social, antes, tais fatos
são construídos de forma a refletir nossos interesses e necessidades contingentes.
Outra é a da construção social da explicação racional, que defende nunca ser possível
explicar porque nós acreditamos no que acreditamos somente em virtude de termos
tomado conhecimento de uma evidência relevante, nossas necessidades contingentes
e interesses sempre contam entre as causas de uma crença. Estas duas teses, o
relativismo epistêmico e a causalidade social da crença serão abordadas no próximo
item dedicado às posições epistemológicas do construtivismo social. Mas há para
Boghossian uma terceira alegação geral de construção social, a construção social dos
fatos, que postula que o mundo que procuramos entender e conhecer não é o que é de
forma independente de nós e de nosso contexto social, todos os fatos são construídos
117
socialmente de uma forma que reflete nossos interesses e necessidades contingentes.
É esta alegação ontológica radical que avaliaremos agora.
3.3.3. O Construtivismo Social Ontológico
O que dizer da tese da construção social dos fatos? Ela é o mesmo que o uso
metafórico ‘d’ de Sismondo (1993)? Existem autores no construtivismo social que
realmente esposam alguma forma de idealismo neo‐kantiano e consideram que o
objeto do conhecimento, o objeto real e independente, é construído socialmente?
Consideremos esta passagem famosa:
Like scientists themselves, we do not use the notion of reality to account for the stabilization of a statement, because this reality is formed as consequence of this stabilization. We do not wish to say that facts do not exist nor that there is no such thing as reality. In this simple sense our position is not relativist. Our point is that “out‐there‐ness” is a consequence of scientific work rather than its cause. (LATOUR & WOOLGAR, 1986, p.180)
O que será que Latour e Woolgar querem dizer aqui por ‘fato’? Em sua obra
marco “Laboratory Life”, de 1979, encontramos a vaga descrição de uma contradição
entre sentidos atribuídos à palavra. O primeiro sentido, derivado de breve análise
etimológica, lembra a origem latina da palavra em factum, que por sua vez deriva do
particípio passado de facere, ou fazer. Ou seja, isso é suficiente para que eles afirmem
que fatos são feitos. O segundo sentido é o de que ‘fato’ se refere a uma entidade
independentemente objetiva que “by reason of its ‘out there‐ness’ cannot be modified at
will and is not susceptible to change under any circumstances” (LATOUR & WOOLGAR,
118
1986, p.174). Poderíamos portanto pensar que os autores acreditam que há dois tipos
de significados para ‘fatos’ e estão se referindo somente ao primeiro. Mas não é esse
o caso. O caso é que eles acham que só existe o primeiro tipo de fato.
Ordinariamente, entendemos por fato algo que é o caso, um determinado
estado de coisas que é relatado por uma proposição verdadeira. Fato portanto é
aquilo que torna verdadeira uma sentença, e não a sentença que corresponde
adequadamente à realidade: esta última é uma verdade, que se refere a um fato. Se
afirmo que a cor desta folha é branco, não é a afirmação que é o fato em questão (ela
é um outro fato), mas esta afirmação se faz verdadeira por causa do fato de que
percebemos as ondas eletromagnéticas refletidas pela folha como branco.
Poderíamos dizer que fato é uma parcela da realidade.
Em filosofia da ciência e metodologia científica, o termo ‘fato’ se reveste de
uma centralidade ainda maior. Quando nos referimos a um “fato científico”, estamos
na verdade nos referindo àquilo que gera uma objetiva, verificável e reproduzível
observação, que pode confirmar e refutar teorias e hipóteses, criadas para explicar
uma coleção de fatos. Assim, apesar do uso imprudente e impreciso da palavra,
temos que lembrar que um fato científico é um estado de coisas no mundo externo,
independente de mentes individuais. No entanto, muitas vezes encontramos o termo
‘fato’ usado para referir‐se às assertivas que descrevem fatos.
Boghossian (2006) acredita que é aqui que o que ele chama de fact‐
constructivism se confunde com uma tese bem menos controversa, a da relatividade
social das descrições. Isto segundo Boghossian “a faz parecer a seus proponentes
119
bem menos implausível” (p.29). Para esta tese, o esquema que adotamos para
descrever o mundo depende do esquema que achamos útil adotar, e o esquema que
achamos útil adotar depende de nossas necessidades contingentes e interesses
sociais.
É portanto o sentido de “assertivas que descrevem fatos” que geralmente é
assumido pelo construtivismo social quando afirma que “fatos” são construídos
socialmente. Uma vez que este não acredita na nossa capacidade de ter acesso
independente da linguagem a qualquer aspecto da realidade objetiva, não é
surpreendente que autores como Latour, Woolgar e ainda Andy Pickering acabem
em algum momento assumindo a consequência necessária dessa tese: “fatos” (no
caso, as assertivas sobre observações objetivas e verificáveis), seriam socialmente
construídos, e uma vez construídos, determinariam o que observamos e percebemos
na natureza. A passagem a seguir sustenta minha interpretação:
While the agonistic process [de estabilização dos fatos] is raging, modalities are constantly added, dropped, inverted, or modified. Once the statement begins to stabilize, however, an important change takes place. The statement becomes a split entity. On the one hand, it is a set of words which represents a statement about an object. On the other hand, it corresponds to an object in itself which takes on a life of its own. Before long, more and more reality is attributed to the object and less and less to the statement about the object. Consequently, an inversion takes place: the object becomes the reason why the statement was formulated in the first place. At the onset of stabilization, the object was the virtual image of the statement; subsequently, the statement becomes the mirror image of the reality ‘out there’. (LATOUR & WOOLGAR, 1986, p.176‐177)
120
Podemos explicar esta posição melhor através do conceito dos autores de
“inscription device”, ou aparelhos produtores de inscrições (no sentido de Derrida
(1973) de sinais físicos gráficos linguísticos):
An inscription device is any item of apparatus or particular configuration of such items which can transform a material substance into a figure or diagram which is directly usable by one of the members of the office space (LATOUR & WOOLGAR, 1986, p.51)
Dando um passo além de Knorr‐Cetina, Latour e Woolgar chamam a atenção
para o fato de que no ambiente pré‐construído de um laboratório contemporâneo, as
conversas e “negociações” giram principalmente em torno das “inscrições” (tabelas,
gráficos, números, imagens) geradas pelos inscription devices (predominantemente
computadores de todo tipo), e cada vez menos em torno das substâncias materiais
reais que tiveram algo a ver com sua geração. Usando o conceito de Bachelard de
“phenomenotechnique”, afirmam que a realidade com a qual a ciência lida é totalmente
construída artificialmente pelo uso destes aparelhos, e somente tem a aparência de
fenômeno real porque foi construída através de técnicas materiais.
Mas afirmar isso não é tão simples. O mesmo Ian Hacking que consideramos
acima era, em 1988, um entusiasta do construtivismo social ontológico proposto por
Latour e Woolgar, e escreveu um artigo apologético de “Laboratory Life” quase tão
citado quanto o mesmo: “The participant irrealist at large in the laboratory”. Nele,
oferece uma boa descrição da confusão ontológica de Latour e Woolgar:
121
There seems to be an air of trivial paradox here. Has not the hypothalamus of the higher vertebrates been secreting this substance ever since the animals came into being? Has it not always been a fact that this substance has a certain structure, a structure that became known in the laboratories of Texas and Louisiana? Latour and Woolgar do not say that something in the hypothalamus changed in 1969. But they think that what logicians would call the modality and tense structure of assertions of fact is misunderstood. Let F be a relatively timeless fact, say the fact that TRH has such and such a chemical structure. The official view would be: before 1969 one was not entitled to assert, categorically, that F is a fact, nor that F has always been a fact. But since then we know enough to be justified in asserting that F is a fact and has always been so. Latour and Woolgar say no: Only after 1969 and a particular series of laboratory events, exchanges and negotiations did F become a fact, and only after 1969 did it become true that F was always a fact. The grammar of our language prevents us from saying this. Our very grammar has conditioned us toward the timeless view or facts. (HACKING, 1988, p.281‐82)
Tal posição implica uma contradição, e não se trata de uma incapacidade
expressiva de nossa gramática. A contradição é que, dado que a produção de fatos
pela ciência é contingente, podemos produzir no ponto do tempo T1 o fato X0,
pretendendo que ele, a partir de T1 tenha sido sempre verdadeiro. No momento T2,
posterior a T1, a contingência da produção científica pode nos levar a construir o fato
¬X0, e isso implicaria que ele também sempre existiu. Mas como X0 e ¬X0 podem ser
verdadeiros ao mesmo tempo? Como pergunta André Kukla (2000, p.111), autor do
argumento acima, não seria mais simples postular que diferentes gerações de
cientistas em diferentes sociedades simplesmente tinham crenças e perspectivas
diferentes acerca do mesmo e único mundo independente? Porque alguém precisa
defender as teses ontológicas que Latour e Woolgar defendem? O construtivismo
social certamente não precisa.
122
Steve Woolgar, depois da colaboração com Latour, seguiu caminho solo e
assumiu plenamente seu idealismo em “Science: The Very Idea”, de 1988. As teses de
Woolgar expostas nesta obra serão consideradas mais amiúde no próximo item, por
tratarem predominantemente de questões relativas a reflexividade da sociologia da
ciência (ciência aplicada à ciência precisa ser aplicada à ela própria), e à relação entre
sujeito e objeto de conhecimento. Mas sobre este último tópico é necessário dizer aqui
que Woolgar considera que existe uma direção tradicional em que é considerado o
processo de conhecimento, que parte do objeto para a representação dele, e do
mundo natural para o conhecimento científico. O que ele propõe é a resolução do
dilema típico da sociologia da ciência, que é o de considerar que o mundo existe mas
que o conhecimento é causado socialmente, invertendo a direção do processo do
conhecimento. Ou seja, solução para Woolgar é afirmar que as representações é que
constroem os objetos.
Era de se esperar que Woolgar classificasse toda epistemologia tradicional
como objetivista, no sentido que o objeto altera as representações que fazemos dele.
Para Woolgar, isso é falso porque os objetos são inacessíveis para nós sem
representações, não temos acesso independente a eles. Mas no que isso implica sua
“reversão de direção”, ficamos sem saber. Mais sofrível é seu segundo “argumento”,
ou justificativa, ou interpretação para sustentar seu idealismo. Ele é baseado em sua
interpretação de dois estudos de caso, um deles sobre o descobrimento das Américas.
Sua interpretação é que a variação de interpretações sobre o que foi descoberto em
123
diferentes redes sociais mina a tese da existência objetiva de características no objeto
descrito. É o que lemos por exemplo nesta passagem:
Crucially, this variation undermines the standard presumption about the existence of the object prior to its discovery. The argument is not just that social networks mediate between the object and observational work done by participants. Rather, the social network constitutes the object (or lack of it). The implication for our main argument is the inversion of the presumed relationship between representation and object; the representation gives rise to the object. (WOOLGAR, 1988, p.65)
Steven Weinberg faz uma interessante observação sobre essas estranhas
posições. Ele suspeita que o alvo do construtivismo social não é o mundo lá fora, mas
algo um pouco diferente: “the issue is not the belief in objective reality itself, but the belief
in the reality of the laws of nature” (op. cit. HACKING, 1999, p.88). A questão seria não
a realidade ontológica dos objetos, mas das leis que os governam. Para o
construtivismo, e digo construtivismo em geral, seria sempre possível haver uma
multiplicidade de teorias e leis que governariam determinado fenômeno, ou fato.
Mas Weinberg constata que não existe nenhuma teoria alternativa, ou qualquer
multiplicidade de leis, e que não parece que seja possível criar essas leis alternativas
que dêem conta dos mesmos fenômenos que as equações de Maxwell dão. E isso,
mesmo depois de tanto tempo do aparecimento dessas leis. Tal fato dá a ele a forte
convicção de que as equações de Maxwell são objetivamente verdadeiras. Atacar essa
convicção não é possível pela criação de novas teorias que dêem conta dos mesmos
fatos (se nem os físicos são criativos a este ponto, não seria sensato esperar tamanha
124
criatividade naturalista de construtivistas sociais), logo, a estratégia deles para
manter a crença de que o mundo é instável é afirmar que os fatos são construções e
poderiam ser outros (claro, eles não oferecem outros). Ou seja, o alvo é o
determinismo natural, que quer se substituir por um determinismo social.
Mario Bunge (1994, p.39) acredita que os praticantes da nova sociologia da
ciência têm revivido a velha tese idealista de que o sujeito constrói a realidade em
vez de explorá‐la e descobri‐la, com a única diferença que em vez do sujeito agora é o
grupo, é a sociedade a responsável por essa construção. Para ele, os construtivistas
sociais são incapazes de distinguir os fatos dos enunciados e teorias que criamos
sobre os fatos. Como consequência necessária disso, o conceito de verdade objetiva é
descartado, a sociedade constrói suas verdades enquanto negocia seu discurso sobre
o mundo. Assim uma instituição que quer “impor” seu discurso sobre o mundo
como melhor que os outros, a ciência, torna‐se uma ideologia autoritária e
instrumento de poder político para os cientistas e aqueles que se interessam por seu
discurso. Em suma, para Bunge não resta dúvida: o construtivismo social é idealista e
relativista. Mas como vimos, esta avaliação de idealismo não pode se aplicar ao
movimento como um todo.
Vimos várias posições do construtivismo social, através de autores‐chave do
movimento que são legítimos representantes destas diferentes concepções de
construção. Estas posições ontológicas variam desde um realismo sem consequência
epistêmica até o mais estranho tipo de idealismo social.
125
Diante dessa cisão, a partir deste momento da dissertação passarei a me referir
a duas correntes gerais, mesmo que com várias nuances internas, do construtivismo
social. Esta diferença geral é baseada na resposta dada a Q1 sobre o construtivismo.
A primeira denominarei construtivismo social epistêmico (CSE), tanto do programa
forte, de Barry Barnes, David Bloor e John Henry, como do construtivismo social
material de Karin Knorr‐Cetina. É epistêmico porque nesta corrente o que é
construído são modelos e crenças científicas, e o mundo lá fora é assumido como
independente. A segunda denominarei construtivismo social ontológico (CSO),
professada por, entre outros, o primeiro Latour, Steve Woolgar, Andy Pickering e
Henry Collins. É ontológico porque de formas diferentes, este autores afirmam que o
que é construído é o mundo, não representações. Quando quiser me referir à
abordagem como um todo, usarei simplesmente o termo ‘construtivismo social’.
Eis o que André Kukla (2000) diz sobre o CSO, diferenciando‐a do relativismo
epistemológico que é comum a todo construtivismo social (ressalva feita à minha
exclusão de Knorr‐Cetina da posição, já justificada):
There’s no contradiction in saying that belief in X is warranted relative to the methods and assumptions of S1 [society one], and that belief in not‐X is warranted relative to the methods and assumptions of S2. But (metaphysical) constructivism isn’t merely an epistemic thesis. Latour, Woolgar, Collins, Pinch, Knorr‐Cetina, Ashmore, Pickering, etc., don’t regard the social negotiations relating to a scientific hypothesis as merely providing epistemic warrants for certain beliefs. The negotiations supposedly turn the hypothesis (or its negation) into a fact. But then the problem of the two societies needs an answer. We can’t simply say that negotiations in S1 turn X into a fact and that negotiations in S2 turn not‐X into a fact, and leave it at that – for how can X and not‐X both be facts? (KUKLA, p.91)
126
Uma explicação possível para essa posição é a confusão entre fatos e assertivas
sobre fatos. O CSO estaria somente afirmando que fatos científicos (para eles
assertivas sobre observações controladas) seriam socialmente construídos. Embora
seja uma tese altamente questionável e dependente de outras teses altamente
questionáveis, não leva ao absurdo da conclusão de que o mundo físico lá fora é
construído socialmente.
Mas quero concluir este item chamando a atenção para o fato de que minha
definição de construtivismo como tese epistemológica e não ontológica mais uma vez
se mostrou consistente com outra abordagem auto‐alegada construtivista. Como
vimos, tanto posições realistas como idealistas podem ser encontradas em alegações
de construtivismo social, o que portanto, não o define como movimento. São as teses
epistemológicas que veremos no próximo item que determinam sua identidade.
3.4. – Construtivismo Social e Epistemologia
Neste item descreveremos as teses epistemológicas do construtivismo social
como um todo, tendo por base as duas questões epistemológicas das três questões
formuladas no segundo capítulo que tem guiado nossa comparação entre as
diferentes alegações de construtivismo: Q2) É possível conhecer algo sobre os objetos
que existem independentemente da mente? E Q3) Qual é a relação entre o sujeito e o
127
objeto do conhecimento? No primeiro sub‐item, investigaremos a resposta cética da
abordagem à questão dois. No segundo subitem, analisaremos o tipo de
conhecimento e epistemologia que o construtivismo social pretende afirmar contra a
concepção tradicional de epistemologia. No terceiro, examinaremos o problema do
relativismo típico da abordagem. No quarto subitem, avaliaremos sua posição
quanto à Q3, defendendo tese de que não há praticamente papel algum reservado ao
sujeito no processo de construção do conhecimento de acordo com o construtivismo
social, o que fundamenta uma das hipóteses deste trabalho de que a abordagem não
é, estrito senso, construtivista. Por fim, uma vez que esta abordagem alega ser um
programa de pesquisa empírica científico, descreveremos o que ela alega serem os
procedimentos metodológicos científicos que usa para investigar a ciência.
3.4.1. É possivel conhecer algo sobre o mundo?
Bruno Latour tem razão quando afirma (1999) que o construtivismo social
trabalha sob a tese kantiana da inacessibilidade da coisa‐em‐si. Mas para Kant, o
mundo constrangia nossas crenças sobre ele na medida em que nossas intuições
sensíveis nem sempre se sucediam de acordo com nossas previsões ou expectativas.
Essa posição, que classificamos aqui de criticismo, confere ao mundo um papel
determinante na construção e escolha de nossas crenças sobre ele.
Quando avaliamos a posição do construtivismo social acerca da crença na
possibilidade de obtenção de conhecimento de algum aspecto de um mundo
128
independente de nossas mentes, temos que dar duas respostas, em virtude das
diferentes posições ontológicas vistas no item anterior.
No que tange ao construtivismo social ontológico, a resposta é clara:
evidentemente não. Para autores como Steve Woolgar (1988) e Lynn Nelson (1993), o
“mundo” que conhecemos é o mundo que construímos, e nesse sentido não temos
qualquer acesso a um mundo independente. Kukla (2000) apresenta o conjunto de
crenças que leva o CSO ao ceticismo. Começam por proclamar que a natureza não
cumpre nenhum papel em nossas decisões epistêmicas. Depois, repetem o slogan de
que não há fatos naturais não‐construídos, o que quer dizer na verdade a tese de
origem wittgensteiniana de que as sentenças não têm conteúdo empírico
determinado. Assim, a natureza não pode de fato constranger ninguém a aceitar ou
rejeitar determinada asserção. Como afirma Oliva (2005), nessa visão a própria
natureza da linguagem impediria que o “mundo independente” fosse invocado,
como árbitro, em nossas práticas epistêmicas. Logo, ceticismo.
Mas e o construtivismo social epistêmico, é de alguma forma diferente nesta
questão? Na verdade, a única diferença é a falta do slogan de que não há fatos
naturais não‐construídos, e a presença de declarações de que “a natureza importa”.
Essas declarações são no entanto incoerentes com a tese da subdeterminação dos
fatos e do auto‐referencialismo. Em uma das muitas vezes que tentou defender o
strong programme da acusação (desta vez de Latour, 1999, em fase de ataque ao
idealismo) de que o mundo não tem papel em seu modelo de conhecimento, Bloor
129
(1999) oferece o argumento que, por ser um dos mais claros que ele produziu sobre
este aspecto obscuro da posição da corrente, merece ser transcrito:
Imagine some prominent macroobject that is a salient feature of the environment of two observers. Call the object X and the observers O1 and O2. After inspection, O1 declares that X belongs to class C1, while after the same kind of inspection O2 puts it in class C2. They agree it cannot truly be both, so each thinks the other is wrong. Why do they classify differently? The underdetermination thesis says that in these circumstances their encounters with X are insufficient to explain this difference. Something else, something about O1 and O2 themselves, is needed for the explanation. Now, is this the thesis that the observation of X ‘makes no difference’? (…) Clearly not. The general difference made by the presence of X is that, in appropriate circumstances, it is capable of prompting acts of classification and, in this case, giving rise to the disagreement between O1 and O2. If the object were absent there would be no occasion for disagreement or, if there were a disagreement, it would be precipitated by other causes and would arise by another route. We can at least say that it would not be this dispute between them. So the object makes a difference even though, in the above scenario, it cannot explain the other difference about divergent classification. (BLOOR, 1999, p.133‐34)
A tradução da explicação acima é que o objeto X faz diferença para o
conhecimento porque se ele não tivesse surgido não haveria versões sobre ele! Ou
seja, a diferença que importa, epistêmica, X não pode ajudar a resolver: ele não pode
oferecer subsídios independentes sequer para resolver uma divergência sobre como
classificá‐lo. Razões epistemicas isoladamente não causariam nunca crenças sobre o
mundo, tudo o que acreditamos seria causado ao menos em parte por interesses e
processos sociais. É uma tese estranha, que realmente parece motivada por interesses
de natureza social. Como pergunta Boghossian (2006, p.113), “Couldn’t my seeming to
see the cat on the roof fully explain why I believe that the cat is on the roof on some occasion?”
130
O fato é que Bloor não pode reservar outro papel para o mundo que não o de
ocasião de controvérsia. Se ele diz que X pode resolver a diferença, então o social
perde a condição causal exclusiva e o programa forte vira fraco. Se ele aponta os
diferentes sujeitos como a origem da diferença, por sua atividade interpretativa
particular livre, então da mesma forma o social perde o caráter determinante na
aceitação da crença. Se o sujeito é passivo e o objeto não determina a crença, ele tem
que explicar com base na sociedade a diferença de interpretação do dado empírico,
que sim, faz diferença porque provoca a ocasião de interpretação, mas não determina
o resultado, o conteúdo dela. Até Bruno Latour ironiza, com sagacidade, a posição de
Bloor:
I agree: we are interested in differences. Now, I want someone to explain to me what it is for an object to play a role if it makes no difference. On a stage, when someone or something is said to play a role, and even an ‘important’, a ‘crucial’, a ‘decisive’ role—which would be necessary to counteract the charge of idealism—it has to produce differences. (LATOUR, 1999, p.117)
Claro, a diferença que o objeto tem que produzir é entre diferentes
interpretações dele, não entre o nada e o seu aparecimento. Diante de tudo isso, pode
parecer óbvio que Bloor se coloca contra a objetividade do conhecimento científico,
mas...
Does it say that truly objective knowledge is impossible? Emphatically it does not. What was proposed (…) was a sociological theory of objectivity. If objectivity had been held to be non‐existent there would have been no need to develop a theory to account for it. Nor is this a way of saying that objectivity is an illusion. It is real but
131
its nature is totally different from what may have been expected. (BLOOR, 1991, p.160)
Essa é uma estrutura de evasiva tipicamente pós‐moderna. Ao ser acusado de
defender que X não existe, nega defender esta posição com retórica enfática, depois
declara que sim, acredita em ‘X’, o termo, mas com um significado novo, totalmente
diferente do original.
Essas afirmações e desmentidos podem exasperar mesmo o leitor mais
paciente da literatura construtivista social, caso ele não seja um membro do clube
social em questão. O que intriga nisso não é a posição de Bloor, mas como ele pode
querer nos fazer acreditar que o mundo importa para o CSE, e continuar durante
anos a replicar com argumentos como estes apresentados acima aqueles que acusam
o programa forte de não deixar lugar pro mundo na explicação científica.
Para todo o construtivismo social os conceitos e os esquemas de classificação
são artifícios humanos que não espelham espécies naturais, e as teorias e hipóteses
sobre o funcionamento das coisas nada mais são que o fruto de processos de
negociação e intercâmbio linguístico no contexto de determinadas formas de vida.
Não faz sentido portanto a atividade epistêmica de distinguir entre conceitos
construídos que representam adequadamente a realidade dos igualmente
construídos que se revelam ineptos. Essa inaptidão é na verdade também construída
pelo fracasso do conceito ou teoria nos processos de negociação social que
estabeleceram os conceitos e teorias aceitos. A inaptidão de uma teoria ou conceito é
a consequência, e não a causa do resultado de uma investigação científica. O
132
problema pragmático desta tese é simples. Como observa Oliva (2005), isso não
esclarece por que determinadas teorias são acolhidas sob a alegação de que são mais
bem‐sucedidas que outras no enfrentamento de certos problemas.
Steven Kemp é outro com o qual Bloor se envolveu em um de seus longos
debates sobre a natureza do strong programme. Mas Kemp (2005, 2007) ofereceu três
argumentos pelos quais o construtivismo social deva ser considerado um programa
cético (ou idealista epistemológico) que considero de fato uma resposta definitiva à
questão. No primeiro, (KEMP, 2005) ele lembra que de acordo com o construtivismo
social, conceitos que são auto‐referentes em caráter são definidos como fazendo
referência somente a outros usos de conceitos (BLOOR, 1997b). Essa limitação na
auto‐referência implica que se conceitos são auto‐referentes em caráter, eles não
podem ser referentes externamente. Logo, não pode haver conexão genuína entre
conceitos científicos e realidade.
Em segundo lugar (KEMP, 2007), a defesa de uma versão radical da tese da
subdeterminação da teoria pela observação significa que qualquer teoria pode ser
reivindicada como instrumentalmente bem sucedida, não importa que tipo de
evidência empírica surja. Logo, o mundo não decide nossas crenças. A passagem de
Barnes abaixo ilustra este tipo de defesa radical generalizada na abordagem:
It had long been recognized that theories constituted an important part of verbal culture of science. But theories are human inventions or constructs which go beyond the facts, and any specific body of accepted facts is formally compatible with any number of theories. (BARNES & EDGE, 1982, p. 66)
133
Em terceiro lugar, a missão de explicar a credibilidade de teorias científicas
sem referência à racionalidade científica que o programa forte se atribui, ou seja, a
crença de que não há critérios racionais universais que possam guiar a obtenção de
conhecimento, significa que não há como se obter conhecimento válido, teorias são
escolhidas por questões políticas e sociológicas: ceticismo.
3.4.2. O que é e como se legitima o conhecimento?
Como afirma Oliva (2005), a crise contemporânea do observacionalismo
gerada por teses como as de Wittgenstein e Kuhn minou a crença central da ciência
moderna de que a experiência é a única fonte capaz de prover os conteúdos, a
estabilidade referencial, com base nos quais se produz significado cognitivo. O
construtivismo social, ao esposar a tese feyerabendiana extremada de que não há
como distinguir minimamente a dimensão teórica da observacional, faz da ciência
uma atividade interpretativa de natureza social. Se o significado de uma observação
é função de sua localização numa rede de hipóteses e de inferências não é a
observação que leva à teoria, e sim o inverso. Se a teoria é vista como
subdeterminada pelos fatos, então várias teorias igualmente plausíveis são possíveis,
toda eventual falsificação é protegida com hipóteses ad hoc, e a escolha entre elas é
feita com base em interesses políticos, econômicos, religiosos... relativismo.
Então, o que é conhecimento? Por certo o conceito platônico de crença
verdadeira justificada tem que ser descartado, porque verdades sobre o mundo
134
seriam inalcançáveis e justificativa universal não existe, tudo é doxa. O trecho abaixo
de Bloor é representativo do que encontramos por todo o movimento:
The appropriate definition of knowledge will therefore be rather different from that of either the layman or the philosopher. Instead of defining it as true belief – or perhaps, justified true belief – knowledge for the sociologist is whatever people confidently hold to and live by. In particular the sociologist will be concerned with beliefs which are taken for granted or institutionalized, or invested with authority by groups of people. (BLOOR, 1991, p.5)
Ou seja, a diferença do conhecimento para a mera crença não é a adequação ao
real ou um critério racional e empírico de validação, mas o endosso coletivo: a crença
é individual, conhecimento é crença coletivamente compartilhada. É conveniente e
interessante para sociólogos: eliminam‐se os aspectos físicos, psicológicos e lógicos
do conhecimento e tudo o que sobra é sociologia. Se o sujeito não cria, o mundo não
constrange e a lógica não elimina, então o trabalho epistemológico se resume a
explicar que fatores sociais causaram o abandono ou insucesso coletivo de algumas
crenças e o endosso coletivo de outras: epistemologia é sociologia.
A sociologia do conhecimento científico tem como projeto explicar com base
em investigações empíricas o conhecimento como um fenômeno natural causado,
particularmente o conhecimento aceito socialmente como cientifico. Como ele alcança
esse status? Tudo o que resta é mapear como ele é transmitido, como se estabiliza,
como é criado, como se generaliza, como se mantém, como é organizado e dividido
em disciplinas, e assim por diante. Barnes & Edge acreditam que, mesmo antes de
135
toda a investigação empírica do campo começar a ser levada à cabo, já sabiam a
resposta sobre o motivo real da autoridade social da ciência:
Cognitive authority and political authority are inextricably intertwined: the recognition of technical expertise, of whatever kind, is fraught with political significance. Needless to say, this has much to do with why strict hierarchies of cognitive authority are maintained in all societies, and why heavily idealized conceptions of science are insistently propagated in ours. (BARNES & EDGE, 1982, p. 9)
Assim, para o construtivismo social, a superioridade explicativa que se atribui
à ciência nada mais seria, como afirma Oliva (2005), “que uma forma ilusória de
racionalizar seu poder instrumental: apregoa‐se ser obra da razão o que nela é
socialmente construído” (p.114). Uma vez que não é possível o estabelecimento
absoluto de métodos epistemicamente superiores que façam a ciência superior, a
sociologia assume a tarefa de identificar as causas que a fazem parecer superior.
Hacking (1999) enumera algumas destas “fontes externas de estabilização das
explicações científicas” (p.90) tais como a adequação política, a inserção numa rede
de agentes de reputação, a reputação estabelecida de seus proponentes, a quantidade
de experts e resultados citados na publicação da pesquisa e interesses econômicos.
As várias correntes do construtivismo social acreditam que se conhecimento
não é o que se justifica, mas sim o que se aceita coletivamente, a filosofia da ciência
não tem utilidade. O trabalho é descrever a investigação científica real e explicar a
(determinar as causas da) crença, não justificá‐la: o erro do filósofo é se dedicar a
determinar o estatuto epistemológico da crença:
136
Nearly all of these accounts of science are very heavily idealized, and represent the various utopias o four philosophers and epistemologists rather than what actually goes on in those places which we customarily call science laboratories. In contrast, the present need is for a general description which treats the beliefs and practices of scientists in a completely down‐to‐earth, matter‐of‐fact way, simply as a set of visible phenomena. (BARNES & EDGE, 1982, p. 3)
Todas as crenças têm que ser igualmente explicadas com base em suas causas
sociais, independentemente de sua adequação última à realidade, pois todas as
crenças, verdadeiras ou não, têm os mesmo tipos de causas, e por tudo o que vimos
no primeiro subitem, são igualmente verossímeis. Crenças verdadeiras não têm uma
credibilidade intrínseca maior que crenças falsas. Barnes e Bloor (1982, p. 27) afimam
que “for the relativist there is no sense attached to the idea that some standards or beliefs are
really rational as distinct from being locally accepted as such”.
Esse é o conceito de simetria proposto pelo programa forte, que postula que
sociólogos têm que se dedicar tanto ao estudo e explicação das crenças aceitas quanto
das rejeitadas, de forma a adquirir um entendimento adequado do problema geral da
diferença na credibilidade social das duas. Ele é complementado pelo de
imparcialidade, que simplesmente recomenda que se mantenham em suspenso suas
próprias crenças acerca de quais das crenças em estudo correspondem e quais não
correspondem à realidade.
Justificar uma crença como racional seria uma forma subrreptícia de tentar
livrá‐la da determinação causal, como se crenças racionais tivessem uma origem
diferente das outras, não causadas: seria anti‐naturalismo. Bloor (1991) chama este
137
princípio de ‘causalidade’, mais um dos quatro princípios filosóficos (que ele chama
de requerimentos metodológicos) do programa forte. Ou seja, para esta abordagem,
justificar uma crença com base em sua intrínseca adequação aos padrões lógicos e
empíricos da ciência moderna seria contra o espírito da ciência naturalista. Esse tipo
de justificação seria psicologista, o que quer dizer para Bloor que a tese de que um
sujeito pode aderir a uma crença por razões, contraria a imagem de um mundo onde
só operam causas. A questão aqui é o determinismo radical, não o naturalismo.
3.4.3. O problema do relativismo
Os princípios acima evidenciam o relativismo da abordagem e levantam
automaticamente a questão da auto‐refutação que está implicada em qualquer versão
desta milenar tese filosófica. Bloor estava ciente disso desde os primeiros passos do
strong programme, e deu uma solução retórica ao problema: enunciou a contradição
como um novo princípio filosófico, a chamou de requerimento metodológico e
passou trinta anos a repetindo como se fosse uma vantagem a todas as críticas de
auto‐refutação que se dirigiram contra o programa. O princípio em questão, o quarto
de seus requerimentos originais, é o da reflexividade.
Bloor (1991) chama de reflexividade a crença de que sociólogos do
conhecimento não podem reivindicar para si nenhum acesso a um ponto de vista
transcendental, de segunda ordem, nem se colocar em posição especial ou
privilegiada epistemologicamente para justificar suas próprias crenças. Ou seja,
138
nenhuma teoria sociológica do conhecimento é aceitável a menos que seja aplicável a
si mesma. Ele reconhece que tal requerimento rende acusações de auto‐refutação,
pois se as próprias proposições supostamente científicas dos sociólogos não têm
qualquer privilégio epistemológico sobre outras e são socialmente determinadas e
justificadas, porque alguém precisaria adotá‐las?
Bloor (1991) acredita que o relativismo do programa é uma força, não uma
fraqueza. Para ele, relativismo é o oposto do absolutismo, e seria a crença de que não
existem justificações absolutas para nenhuma alegação de conhecimento. O fato de
que todas as justificações acabam por se sustentar em algo injustificável tomado
como certo é o suficiente para sua conclusão de que o relativismo é a única posição
epistemológica possível. É claro que ele não considera que exista algo diferente do
que os extremos da dicotomia relativismo‐absolutismo. Deve ser por isso que evoca a
autoridade de Popper para se defender da acusação de relativismo (que ele diz em
outros momentos que é uma força):
Who charges Popper’s theory with relativism? Indeed, when this charge is pressed against the sociology of knowledge doesn’t it frequently come from those who are impressed by that philosophy? And yet the sociology of science can easily formulate the essentials of its own standpoint in the terms of that philosophy. All knowledge, the sociologist could say, is conjectural and theoretical. Nothing is absolute and final. Therefore all knowledge is relative to the local situation of the thinkers who produce it (…) What are all those factors other than naturalistic determinants of belief which can be studied sociologically and psychologically? (BLOOR, 1991, p.159)
Não é surpreendente que Bloor não compreenda o fato de o programa forte
ser atacado por popperianos e pelo próprio Popper, já que ele parece não
139
compreender a teoria da ciência popperiana. Para esta, o conhecimento científico
pode ser relativo à situação dos “pensadores” que o produzem, mas porque ele é
relativo às evidências empíricas a que eles têm acesso. No entanto, a teoria da
verossimilhança (Popper, 1975b), em qualquer lugar e época, permite aos cientistas
locais a escolha da melhor teoria entre as concorrentes em face das evidências
empíricas disponíveis e refutações tentadas. Ela postula que devemos optar pela
teoria que, em face das evidências reproduzíveis, prevê mais e erra menos, e seria um
critério racional universal, prescritivo, independente do que a sociedade aceite ou
não. Além disso, novas teorias e hipóteses para Popper não são causadas
socialmente, elas são criações de mentes individuais que trazem elementos inéditos à
cultura. O que isso pode ter a ver com o strong programme? Bloor acha que tudo (1991,
p.159): “To see all knowledge as conjectural and fallible is really the most extreme form of
philosophical relativism”.
O problema é que a afirmação acima não reflete o pensamento de Popper. Ele
não vê todo conhecimento como conjectural e falível, só o conhecimento acerca do
mundo empírico. Isso não se estende à lógica, que permite estabelecer um critério
racional para decidir entre duas teorias dado um conjunto de crenças acerca de dados
empíricos tomados como verdadeiros. A crença científica pode ser relativa. A
proposição observacional considerada também. Mas a racionalidade da escolha
naquele momento histórico, depois de o conjunto de observações X ser tomado como
verdadeiro, não é.
140
Afirma ainda Bloor (1991, p.159) que um sociólogo pode referendar a tese
popperiana de que o que torna científico o conhecimento não é a verdade de suas
conclusões e sim as regras procedurais, os padrões e as convenções intelectuais aos
quais ele se conforma. Mais uma vez isso não é verdade. A regra procedural geral em
questão é para Popper universal e nada tem a ver com convenções intelectuais ou
normas arbitrárias geradas no seio de um “jogo de linguagem” ou de uma “forma de
vida”. Popper, definitivamente, não é um relativista, não é ele a fonte de suas teses,
não é a ele que Bloor pode recorrer.
Mas é claro que não há solução fácil para este problema, nem a posição
popperiana é imune a críticas. Essa passagem de Bloor, depois de mais de 30 anos de
respostas às críticas ilustra o amadurecimento de sua posição e alguns problemas
reais que surgem quando se abandona uma postura prescritiva acerca da ciência e se
tenta descrever como de fato ela funciona:
To understand the historian’s procedure, consider the reasoning that might take place in the context of a scientific dispute. All the opposing scientists would typically advance evidence and reasons but: (a) the opposed parties would frequently make different selections from the range of facts that might have been cited, and (b) they often put different interpretations on the same experimental or observational outcomes and often attached different degrees of significance to facts even when their interpretation was the same. Furthermore (c) the terms of the debate could themselves be seen as historically contingent and neither compelling nor necessary. For the historians, then, the deployment of reason by the scientists posed a problem, and the answer to the problem was neither obvious nor provided by the scientists themselves. The problem was: why do the proffered reasons typically convince some scientist but not other scientists? (BLOOR, 2007, p.218)
141
Para o relativismo, ao contrário de Popper, não existem critérios universais de
racionalidade que determinem o que deva ser a metodologia científica. Como afirma
Oliva (2005, p.111), “Não há Tribunal Epistêmico Superior que se sobreponha às
rotinas das práticas e dos praticantes”. Esse tipo de argumento não pode ser
sustentado pela filosofia popperiana, mas sim pela kuhniana, como já indiquei nesta
dissertação. É para Kuhn que não há padrão acima do assentimento da comunidade
relevante, que todas as justificações só o são relativamente a um paradigma.
Bloor (1991) argumenta que o relativismo não implica que nunca há razões
para se aceitar o que alguém diz, mas que todas as razões são locais e contingentes.
Ele acredita que sua posição não é auto‐refutada, pois o argumento de que suas
próprias razões seriam locais e contingentes é consistente com sua crença básica. Ao
contrário, a acusação de auto‐refutação decorreria do pressuposto absolutista de que
as únicas razões adequadas são as absolutas, o que implicaria uma petição de
princípio para o que ele denomina absolutismo.
Devemos aqui ainda chamar a atenção para o fato de que o construtivismo
social não é relativista somente em virtude da tese da causação social das crenças.
Este é somente o segundo dos dois sentidos apontados por Alan Nelson (1994). Pelo
menos no que tange ao CSO e sua tese da construção social dos fatos científicos que
vimos no item anterior, ele é relativista em ao menos mais um sentido:
The philosophical constructivism defended in these works is relativistic in two senses. First, there is an ontological relativism about entities and processes. We are not to think of the phenomena studied by scientists as the inevitable manifestations of objectively
142
existing entities and processes; instead, theoretical entities and processes are constituted or constructed by scientists post hoc. After scientists agree on a theoretical description of what the facts are, they might adopt a realistic attitude toward what that theory talks about, but the reality of these things is no part of the explanation of why they end up with the beliefs and the theory that they do. (NELSON, 1994, p. 535)
Bem, a posição do CSO tem problemas maiores que seu relativismo. Collins
(1983, p. 99), um de seus principais proponentes, defende que mesmo na mais pura
ciência, os debates só chegam ao fim quando são empregados meios que não
costumam ser caracterizados como estritamente científicos. É claro que essa é uma
posição irracionalista. Mas como é comum no campo, depois de criticado Collins se
apressa em afirmar que não queria dizer o que disse, ou que não quer a consequência
necessária de sua tese:
A loss of confidence in the scientific enterprise is a disaster that we cannot afford. For all its fallibility, science is the best institution for generating knowledge about the natural world that we have. (COLLINS, 1985, p. 165)
É a melhor? Sob que critérios? E se todo o trabalho do strong programme visa
enfraquecer a posição privilegiada do discurso científico na sociedade e sua própria
racionalidade, como se pode esperar que um eventual sucesso deste projeto não
acarrete a perda de confiança no empreendimento científico? Ou será que a
equiparação do valor epistêmico da ciência às teorias aborígenes sobre o universo ou
às teses integralistas de organização social não acarretaria perda de confiança em
suas explicações? Consideremos estas duas incríveis passagens de Latour (1983),
143
onde ele sintetiza o que “aprendeu” depois de sua estada de dois anos em um
laboratório assistindo e descrevendo uma pesquisa cujo resultado deu o Nobel a seus
dois autores:
Now that field studies of laboratory practice are starting to pour in, we are beginning to have a better picture of what scientists do inside the walls of these strange places called “laboratories”. (…) The result, to summarize it in one sentence, was that nothing extraordinary and nothing “scientific” was happening inside the sacred walls of these temples. (LATOUR, 1983, p.141) …the moment sociologists walked into laboratories and started checking all these theories about the strength of science, they just disappeared. Nothing special, nothing extraordinary, in fact nothing of any cognitive quality was occurring there. (LATOUR, 1983, p.160)
O artigo onde estes trechos foram publicados, tem o título de “Give Me a
Laboratory and I Will Raise the World”. Bem, a sorte para (o segundo) Collins é não só
que ninguém dará um laboratório a Latour, mas também que a abordagem do
construtivismo social ontológico à sociologia do conhecimento parece, como irei
apresentar aqui, estar condenada a uma retumbante irrelevância científica.
3.4.4. Qual é a relação entre o sujeito e o objeto?
Neste subitem avaliaremos uma questão fundamental para os objetivos da
dissertação. É o problema do posicionamento do construtivismo social quanto à
relação entre o sujeito e o objeto do conhecimento. Por tudo o que vimos até aqui
sobre as teses ontológicas e epistemológicas desta abordagem, seria perfeitamente
justificável afirmar que, dados seus princípios de causalidade e simetria, assim como
144
seu estrito determinismo e sociologismo, não há praticamente papel algum reservado
ao sujeito no processo de construção do conhecimento de acordo com o
construtivismo social. Ou seja, o construtivismo social não é um construtivismo, pelo
menos em função da definição a que chegamos no segundo capítulo. Mas muito mais
ainda pode ser esclarecido sobre como esta abordagem entende a relação sujeito‐
objeto do conhecimento.
Há um silêncio ensurdecedor na retórica construtivista social. Fala‐se o tempo
todo de crenças, às vezes como se elas fossem só o que existe, algumas vezes se fala
até de um mundo que seria construído na atividade científica: mas nunca se fala
sobre o sujeito da crença nem sobre o sujeito da ação científica. Ao contrário, se falam
em crenças sociais e construção social da ciência, como se houvesse sociedade sem
sujeitos, ou no mínimo, sem entidades biológicas individualizadas.
Slezak (1994) identifica a origem deste silêncio na tese de Bloor de que há um
conflito entre dois modelos de explicação para o comportamento humano: o que o
último chama de ‘teleológico’ e o causal. ‘Teleológico’ para Bloor não é simplesmente
o comportamento movido por razões e direcionado à metas, mas também a evocação
de razões, da racionalidade, da lógica e da evidência empírica como razões de uma
crença científica ou de uma decisão científica. Em contraste, o modelo “naturalista”,
verdadeiramente científico, seria o causal, que para ele é sinônimo de sociológico, já
que em última análise não haveria outra fonte determinante de causalidade no que
tange o comportamento individual. Isso é o máximo das considerações psicológicas
que Bloor realiza na sua primeira versão do strong programme:
145
Does not individual experience, as a matter of fact, take place within a framework of assumptions, standards, purposes and meanings which are shared? Society furnishes the mind of the individual with these things and also provides the conditions whereby they can be sustained and reinforced. (BLOOR, 1991, p.15)
A meta do construtivismo social é identificar as condições que causam estados
de crença considerados conhecimento científico em grupos sociais. Seus estudos de
caso sempre levam à interpretação de que crenças têm causas sociais, não causas
psicológicas, como se isso não estivesse implicado desde o início em suas “diretrizes
metolológicas”. Mas como observa Oliva (2005, p.268), “para dar plausibilidade à
tese de que as razões não determinam a aceitação ou rejeição das teorias científicas é
preciso recorrer a razões”. É isso o que o construtivismo social faz para tentar
modificar nossas crenças, mas com isso se põe em conflito com a ciência
contemporânea. A moderna ciência cognitiva indica claramente, por resultados
acumulados em uma série de campos de aderência metodológica inquestionável à
ciência moderna (inteligência artificial, psicologia cognitiva, neurociência) e aos
padrões tradicionais da racionalidade ocidental, que a psicologia desponta,
preservada a condição fundante da epistemologia, como mais elucidativa acerca da
obtenção de crenças científicas (e quaisquer outras), que a sociologia. Processos
cognitivos individuais surgem para a própria ciência como mais importantes que os
condicionamentos ou determinantes sociais.
Bloor, nos afterwords escritos para a segunda edição de sua obra fundadora,
quebra o silêncio sobre a questão da ciência cognitiva para responder à críticas, como
146
as de Laudan (1981) e Slezak (1989), sobre este problema. O resultado são declarações
superficiais onde eventualmente concede algum papel às entidades biológicas no
processo de obtenção do conhecimento:
The only sociologists to be upset by it would be those foolish enough to deny the need for a background theory about individual cognitive process. I take it as evident that you could have no social structures without neural structures. Cognitive science, of the type described, is a study of just that background of ‘natural rationality’ that advocates of the strong programme take for granted. (…)The correct position for the sociologist to take is that, while a theory of our individual reasoning capacities is necessary to an account of knowledge, it is not sufficient (BLOOR, 1991, p. 168)
Essa alegação é suficientemente menos forte do que a formulação original, que
lançou o strong programme na moda sociológica. Estamos aqui diante de mais um
caso de “reverse switcheroos” (Kukla, 2000). Como ressalva Slezak (1994), a atual
versão de Bloor de que simplesmente existem “social aspects of knowledge” é um
truísmo sobre o qual ninguém prestaria atenção, muito menos criticaria com tanta
veemência, e mal lembra a tese forte original. Mas logo no mesmo texto Bloor volta a
sua real preocupação, que é garantir um espaço político central para a sociologia.
Ressalta que a sociedade teria prioridade ontológica sobre as entidades biológicas
que a constituem, e a sociologia prioridade epistemológica sobre a ciência cognitiva:
The sociologists thus have a subject matter that exists over and above that of the cognitive scientists whose work has been cited against them. The former, but not the latter, study how a collective representation of the world is constituted out of individual representations (BLOOR, 1991, p. 169)
147
Como poderia uma “representação coletiva” existir que não em várias mentes
individuais? Está óbvio que o que quer que seja o sujeito, ou a entidade biológica que
compõe grupos sociais, para o construtivismo social este é concebido como uma
entidade passiva e meramente respondente. Como ironiza Latour:
I have never said that Bloor was an idealist but that his position was an elaboration on that of Kant with the only difference—due to Durkheim’s emendation—being that the Ego had been replaced by a sui generis society (LATOUR, 1999, p.116)
Esta é também a opinião de Phillips (1995), que em artigo que analisa as várias
formas de construtivismo afirma:
Members of the ʺstrong programʺ in sociology of knowledge (…) – who are working on the origin of the public bodies of knowledge known as the disciplines, especially the sciences – can be read as being far from the ʺnature as templateʺ view, but also as being far from the ʺindividual creation of knowledgeʺ view; when in their least compromising mood, they hold the view that sociopolitical processes can account fully for the form taken by the bodies of knowledge codified as the various disciplines. (PHILLIPS, 1995, p.08)
Mas de onde vem o modelo implícito de ser humano assumido aqui? Ele não
é, na verdade, tão implícito assim. Barry Barnes foi o primeiro a identificar a
negligência da sociologia em fornecer um modelo do papel do sujeito no processo de
construção do conhecimento. Em artigo de 1976, ele postula uma disposição indutiva
natural no ser humano, semelhante ao condicionamento operante skinneriano,
baseado na autoridade psicológica de Mary Hesse. Ele afirma explicitamente (p.116)
148
que sua posição se alinha a uma orientação estritamente materialista e mecanicista,
caracterizando o ser humano como uma máquina de aprender.
Anos depois, Barnes (1983) desenvolve sua posição no artigo intitulado
caracteristicamente “Social life as bootstrapped induction”. O termo ‘bootstrapp’,
literalmente tira ou correia de bota, aqui é usado no sentido da característica
expressão idiomática americana: “to raise oneself by one’s own bootstrapps”, e pretende
ilustrar sua posição de que a sociedade não é construída por agentes, mas em algo
como o famoso vôo do Barão de Munchausen, se constrói a si mesma. A vida
psicológica é retratada neste artigo como sendo nada além de uma construção
hipotética para retratar o funcionamento de uma máquina simples de associação de
padrões. Nele, é defendida uma visão, já anacrônica na época, de percepção humana
como sendo um processo de associação automática entre um “input” sensorial e uma
forma, um padrão armazenado internamente. Esse foi o grande esforço de Barnes em
tornar a sociologia do conhecimento compatível com a nova ciência cognitiva.
Bloor (1983) trata desta questão em considerável maior profundidade em uma
obra importante para a configuração teórica do construtivismo social, “Wittgenstein:
A Social Theory of Knowledge”. Como é óbvio, ele recorre novamente à filosofia para
tentar sustentar melhor seus pressupostos problemáticos, e novamente a
Wittgenstein. Faz suas as palavras deste (BLOOR, 1983, p.6) de que explicações que
postulam a existência de estados mentais estão infectadas pela doença do
psicologismo, e que nada é mais equivocado do que dizer que significado é uma
atividade mental (p.7). Para o naturalismo que ele postula, isso seria absurdo:
149
From a naturalistic standpoint our social life and higher mental processes are the outgrowth of simpler patterns of animal interaction and response. Any satisfactory theory must do justice to the new orders of fact that emerge without losing sight of the matrix of connections and continuities. (BLOOR, 1983, p. 172)
Assim como as idéias de Wittgenstein resultaram no behaviorismo lingüístico
(Ryle, 1968), as idéias sobre o sujeito de Bloor, ao seguir Wittgenstein chegaram ao
behaviorismo de Skinner. Bloor recorre ao abandonado projeto behaviorista de
explicação da aquisição da linguagem como exemplo da materialização científica da
visão de Wittgenstein. Para ele, Skinner (1975) desenvolveu no Verbal Behavior uma
teoria científica da linguagem similar a que Wittgenstein teria desenvolvido se
tivesse a isso se dedicado (BLOOR, 1983, p.52).
Bloor acredita que pode explicar todo o processo humano de aquisição de
crenças e linguagem em termos de condicionamento operante, e para entender o
processo precisamos somente entender como uma comunidade verbal maneja e
constrói uma agenda de reforçamento. Chega a endossar a opinião de Skinner de que
aquilo que chamamos consciência é simplesmente uma forma de reagir ao próprio
comportamento, um produto social (BLOOR, 1983, p.53‐54). Ian Hacking (1999)
observa que o self (que é diferente de consciência) é um dos objetos prediletos pelos
estudos construtivistas sociais, que procuram apresentá‐lo como um produto social, e
não construção individual ou menos ainda objeto natural. Bloor ainda tem outros
nomes para este alvo prioritário de desconstrução, adversário natural de uma visão
sociologista de mundo: ‘ego’ ou ainda ‘mente’.
150
This is the part of ourselves that is often assumed to be known most intimately. It seems to be the location and source of our identity and individuality. There is therefore a sense in which this is the keep of the individualist’s castle. (BLOOR, 1983, p.50)
Slezak (2000) apelida o construtivismo social de “behaviorismo renascido”
(p.20). Para ele, a conexão causal entre idéias e contexto social proposta por ele não é
nada mais que uma versão sociológica da teoria estímulo‐resposta do behaviorismo
skinneriano. Slezak vê o ataque frontal de Bloor ao poder explanatório de estados
mentais como uma parte fundamental da sua defesa de uma alternativa sociológica
radical à explicação da ciência. O problema é que isso deixa seu programa muito
dependente das teses wittgensteinianas, e quando elas entram em conflito com
resultados da ciência cognitiva, a sociologia da ciência entra por tabela.
Como exemplo, Slezak (2000) cita a tese psicologicamente anacrônica da
rejeição da existência de estados mentais como imagens, como estando trinta anos
atrasada em relação à ciência, e ele está certo. Desde o estudo clássico de Roger
Shepard (Shepard & Metzler, 1971), uma enorme quantidade de evidências
(experimentais, não de estudos de caso) se acumularam de que seres humanos
pensam também através de imagens, ao ponto de hoje termos inclusive algumas leis
(do tipo das que o construtivismo social não possui nenhuma) de imagética que
conseguem prever com exatidão a diferença de tempo entre respostas que o mesmo
sujeito dá a diferentes problemas visuais (Sternberg, 2008; Eysenck & Keane, 2007).
Eu mesmo tenho conduzido uma pesquisa que construiu um programa para replicar
151
o experimento original de Shepard com alunos como sujeitos experimentais, porque
ele é hoje um clássico da psicologia cognitiva.
Mas este não é o único anacronismo de Bloor, como aponta Slezak (2000). Ele
ignora o fato de que a tese de aprendizagem verbal de Skinner (1975) é uma tese
filosoficamente frágil e cientificamente refutada, e tenta fundamentar o strong
programme com esta. Ignora as críticas dirigidas a ela pela importante resenha de
Chomsky (1967) que nunca foi sequer respondida por Skinner, mesmo tendo se
tornado generalizadamente reconhecida como um dos maiores motivos da rápida
decadência do movimento behaviorista e ascensão das ciências cognitivas. Se dirige
(BLOOR, 1983, p.191) às referidas teses de Chomsky como sendo simplesmente a
crítica “padrão” ao behaviorismo, numa nota de rodapé de duas linhas. Tudo isso
leva Slezak a afirmar que:
Bloor’s failure to indicate the magnitude and import of these developments is comparable to defending Creationism today by dismissing the Origin of Species as merely “fashionable” and failing to let one’s readers know anything of modern biology founded on Darwin’s theory. (SLEZAK, 2000, p.20)
Como afirma Slezak (2000), não deveria constituir surpresa o recrutamento da
teoria psicológica behaviorista para defender o sociologismo do programa forte, uma
vez que o behaviorismo nega um papel explicativo aos estados mentais internos e
portanto está em oposição diametral ao que Bloor chama de ponto de vista
teleológico:
152
If scientific beliefs are to be construed as the causal effects of an external stimulus, they are precisely analogous to Skinnerian “respondents” or “operants” and, therefore, science is the result of conditioning. In short, the deep insight of radical social constructivism is that Isaac Newton’s Principia is to be explained just like a rat’s bar‐pressing in response to food pellets. Bloor’s recent protest that his views are entirely consistent with cognitive science cannot be taken seriously (…). (SLEZAK, 2000, p. 21)
Slezak está certo. Na verdade, nada substancial mudou em trinta anos nas
teses de Barnes e Bloor à respeito do papel do sujeito na construção do conhecimento.
E o motivo é simples, como Barnes explica em outro artigo com título anedótico
sobre o problema do sujeito na sociologia, “Agency as red hering in social theory”:
“Agency” stands for the freedom of the contingently acting subject over and against the constraints that are thought to derive from enduring social structures. To the extent that human beings have agency, they may act independently of and in opposition to structural constraints, and/or may (re)constitute social structures through their freely chosen actions. To the extent that they lack agency, human beings are conceived of as automata, following the dictates of social structures and exercising no choice in what they do. (LOYAL & BARNES, 2001, p.507)
E novamente Bloor:
An alternative strategy, more in keeping with the Strong Program, would be to adopt an approach loosely derived from the empiricist tradition. The sociologist needs to have a grasp of what the agents under study are responding to, that is, what aspects of the world have been disclosed to them in their experience, and what predicament they take themselves to be in. If we can isolate the ‘stimulusʹ then perhaps we can begin the task of explaining the ‘responseʹ. Of course, the real concern will not be with individual, psychological responses as such, but with those responses as mediated by a collective understanding, with its shared traditions and conventions. (BLOOR, 1999, p.90)
153
E ainda ambos, em tentativa conjunta de responder aos problemas
acumulados em trinta anos de strong programme, ainda recorrendo ao behaviorismo:
Sociologists should be willing to acknowledge the existence and the causal relevance of the physical environment when they study the growth of knowledge. And having acknowledged this, they should acknowledge also the ability of individual human beings to monitor the physical environment and learn about it. Individual animals learn directly from experience. The psychologist’s rat pushes the lever and looks to the arrival of a food pellet. (BARNES, BLOOR & HENRY, 1996, p.76)
A crença na nulidade do papel do sujeito na obtenção do conhecimento é
generalizada no construtivismo social, até no ontológico, que não defende que
indivíduos constroem o mundo, mas que a sociedade o constrói. Veja o que diz sobre
isso a “epistemóloga feminista” Lynn Nelson:
In suggesting that it is communities that construct and acquire knowledge, I do not mean (or ʺmerelyʺ mean) that what comes to be recognized or ʺcertifiedʺ as knowledge is the result of collaboration between, consensus achieved by, political struggles engaged in, negotiations undertaken among, or other activities engaged in by individuals who, as individuals, know in some logically or empirically ʺpriorʺ sense. (…) My arguments suggest that the collaborators, the consensus achievers, and, in more general terms, the agents who generate knowledge are communities and subcommunities, not individuals. (NELSON, 1993, p. 124)
Creio que está suficientemente fundamentada acima a principal parte do
argumento que demonstra uma das hipóteses defendidas nesta dissertação, qual seja,
a de que o construtivismo social não é construtivista, sendo uma forma de
objetivismo. Em qualquer autor auto‐denominado construtivista social, nós
154
encontramos a mesma resposta à Q3 desta dissertação, sobre a relação entre sujeito e
objeto do conhecimento. E essa relação é de absoluta passividade. O sujeito não é
nada mais que um histórico de reforçamento, um conjunto de associações estímulo‐
resposta verbais. O sujeito é construído pelo conhecimento, não o constrói:
Everyone has been assuming that knowledge is to be analyzed into two ingredients: one furnished by the object, the other by the knowing subject. Theories of knowledge are just the stories we tell about how these two supposed ingredients are to be identified, how they interact, and in what proportions. Some will lay great stress on the complexity of the knowing subjectʹs contributions; others will see it as a passive receptacle, or like a blank sheet waiting to be written on. Some accounts of knowledge will treat the subject as an individual mind; others will identify it as a group or a culture. Obviously, for a committed sociologist, the ultimate knowing subject will be social in character, in short, ‘societyʹ. (BLOOR, 1999, p.83)
3.4.5. Qual é o método científico de investigação da ciência?
Enfim chegamos ao último item de nossa caracterização do construtivismo
social, e ele diz respeito à questão metodológica. Já que esta abordagem da sociologia
do conhecimento se apresenta como um programa de pesquisa empírica, destinado a
aplicar a ciência ao estudo da ciência e descartar o anacronismo apriorista da
epistemologia, é fundamental que se defina o que esta abordagem entende por
metodologia científica capaz de estabelecer as relações causais que constituem, afinal
de contas, a diretriz programática número um do strong programme.
Quando Bloor fala em metodologia, ele na verdade apresenta um conjunto de
pressupostos filosóficos que chama de requerimentos metodológicos para o estudo
155
sociológico da ciência, são os princípios já vistos da causalidade, simetria,
imparcialidade e reflexividade. Alguns destes têm remotamente o formato de
sugestões metodológicas, mas são na verdade um conjunto de petições de princípio.
O sociólogo deve pressupor que toda crença tem uma causa e não razões, deve
estudar ambas as crenças tanto aceitas quanto rejeitadas, levantar o juízo acerca da
verdade ou falsidade última das crenças, e considerar que tudo isso também se aplica
a suas próprias crenças e sua própria disciplina. Mas nada disso diz como o sociólogo
deve investigar seu objeto, que padrões ele deve seguir na observação e tratamento
dos dados e muito menos como ele poderia testar hipóteses causais (cujo
estabelecimento o programa forte diz que em última análise é o seu objetivo).
Não é só Bloor que parece considerar metodologia somente como análise de
pressupostos filosóficos e diretrizes gerais de uma disciplina. Bruno Latour em
“Science in action”, seu livro declaradamente dedicado à metodologia, resume toda
sua obra em um quadro sinótico na seção de apêndices, que tem como título “Latour’s
Rules of Method”. Peço ao leitor a permissão para a transcrição integral do quadro,
para que não reste dúvida de que não houve uma seleção tendenciosa. Eis o que são
as regras do método científico com o qual Latour espera elucidar as verdadeiras
causas do surgimento e aceitação da teoria da relatividade de Einstein ou a da
descoberta do hormônio TRH:
Rule 1 We study science in action and not ready made science or technology; to do so, we either arrive before the facts and machines are blackboxed or we follow the controversies that reopen then. (Introduction)
156
Rule 2 To determine the objectivity or subjectivity of a claim the efficiency or perfection of a mechanism, we do not look for their intrinsic qualities but at all the transformations they undergo later in the hands of others. (Chapter 1) Rule 3 Since the settlement of a controversy is the cause of Nature’s representation, not its consequence; we can never use this consequence, Nature, to explain how and why a controversy has been settled. (Chapter 2) Rule 4 Since the settlement of a controversy is the cause of Society’s stability, we cannot use Society to explain how and why a controversy has been settled. We should consider symmetrically the efforts to enroll human and non‐human resources. (Chapter 3) Rule 5 We have to be as undecided as the various actors we follow as to what technoscience is made of; every time an inside/outside divide is built, we should study the two sides simultaneously and make the list, no matter how long and heterogeneous, of those who do work. (Chapter 4) Rule 6 Confronted with the accusation of irrationality, we look neither at what rule of logic has been broken, nor at what structure of society could explain the distortion, but to the angle and direction of the observer’s displacement, and to the length of the network thus being built (Chapter 5) Rule 7 Before attributing any special quality to the mind or to the method of people, let us examine first the many ways through which inscriptions are gathered, combined, tied together and sent back. Only if there is something unexplained once the networks have been studied shall we start to speak of cognitive factors. (Chapter 6) (LATOUR, 1987, p.258)
O leitor mais familiarizado com os métodos quantitativos de investigação que
são a essência mesmo da ciência moderna, e que tem uma vaga noção dos inúmeros
procedimentos‐padrão que são usados para controlar variáveis, recolher dados,
eliminar interferências e tratar estatisticamente os resultados pode não estar
entendendo bem o que está acontecendo aqui. Mas é simples. A sociologia nunca usa
o método experimental, e usa muito raramente qualquer método descritivo típico da
ciência moderna, geralmente, quando usa, executa levantamentos de dados seguidos
de estudos estatísticos de correlação. Isto porque diante da impossibilidade de
157
conduzir experimentos sociológicos, tudo o que resta é estabelecer empiricamente
correlações entre fatores sociológicos (como no famoso estudo de Durkheim sobre o
suicídio).
Mas o método de levantamento de dados, até onde eu pude investigar para
esta dissertação, jamais foi aplicado ao estudo sociológico do conhecimento científico
no âmbito do construtivismo social. Ao contrário, para estudar a aplicação dos
métodos nomotéticos da ciência moderna, a sociologia do conhecimento lança mão
de métodos idiográficos de dois campos não‐científicos: a história e a antropologia.
Da história, utiliza o estudo de caso baseado em recolhimento de documentos e
testemunhos, da antropologia, utiliza o método da observação participante, nos
termos de Knorr‐Cetina (1983), estudos etnográficos do trabalho científico.
Esta é a ciência que estuda a ciência para o strong programme. Levantamento de
dados históricos e sua interpretação hermenêutica, e participação em laboratórios
durante a produção real de conhecimento científico, levantando todo tipo de dados
supostamente sem prévia interpretação ou pré‐concepção, ‘outsiders’ fazendo
observação participante na estranha tribo dos cientistas e testemunhando seu
comportamento bizarro.
Trinta anos de estudos de casos e observações participantes realmente
geraram uma grande massa de dados empíricos e suas interpretações. Algumas das
mais célebres são os estudos históricos de Steve Shapin (1994) sobre a Frenologia, de
Elisabeth Potter (1993) sobre a lei dos gases de Boyle, e de Latour (1988) sobre a teoria
da relatividade de Einstein. Entre as mais célebres observações participantes do
158
construtivismo social estão as de Latour & Woolgar (1986) sobre a descoberta do
TRH e de Andy Pickering (1984) sobre quarks.
Alguns dos resultados “científicos” destes estudos. Elisabeth Potter (1993)
concluiu através de seu estudo histórico da lei dos gases de Boyle que o
conhecimento de que o gás tem peso foi determinado por considerações de gênero e
classe social. Robert Boyle era um puritano, e portanto contra a liberação das
mulheres de seu papel doméstico convencional, e sua consciência de classe era
sustentada pelo mecanicismo. Portanto partiu para derrotar a posição holista e
organicista de Hermes, Paracelsus e Campanella, pois esta era advogada pela plebe e
predominantemente por mulheres. Potter conclui que o trabalho de Boyle teve
implicações diretas para as mulheres daquele período histórico. Foi mais um caso de
chauvinismo da ciência patriarcalista ocidental.
Já Steve Shapin (1994) demonstrou que a disputa sobre a frenologia na Escócia
do século XIX foi uma questão de disputa de classe. Os defensores da frenologia
vinham da classe média, portanto interessados em encontrar conhecimento prático
capaz de orientar e legitimar os propósitos de reformas sociais igualitárias, enquanto
seus oponentes vinham de círculos acadêmicos da elite escocesa. A estrutura da
explicação de Shapin é apresentada assim por Niiniluoto (1999):
The members of the community C belong to social class S. The members of S have the social interest I. The members of C believed that theory T would promote interest I. Therefore, the members of C believed in theory T. (NIINILUOTO, 1999, p.255)
159
E é claro, temos a celebre explicação de Latour sobre o que realmente está por
trás de teoria da relatividade, avaliada pelos físicos Alan Sokal e Jean Bricmont (2001)
no já clássico “Fashionable Nonsense”: a busca obsessiva de poder e controle por parte
de Einstein. Mas como estamos falando de Latour, o mais apropriado é sempre a
transcrição literal:
However, it is only when the enunciator’s gain is taken into account that the difference between relativism and relativity reveals its deeper meaning. (…) It is the enunciator that has the privilege of accumulating all the descriptions of all the scenes he has delegated observers to. The above dilemma boils down to a struggle for the control of privileges, for the disciplining of docile bodies, as Foucault would have said. (LATOUR, 1988, p.15) Who is going to benefit from sending all these delegated observers to the embankment, trains, rays of light, sun, nearby stars, accelerated lifts, the confines of cosmos? If relativity is right, only one of them (that is, the enunciator, Einstein or some other physicist) will be able to accumulate in one place (his laboratory, his office) the documents, reports and measurements sent back by all his delegates. (LATOUR, 1988, p.23)
Estes são alguns de muitos resultados dos estudos sociológicos sobre a ciência.
Talvez, diante de alguns destes, alguns pesquisadores do strong programme devessem
cogitar que há algo errado com a metodologia que produz semelhantes conclusões.
Veremos isso no próximo capítulo. Mas é claro que entre os reticentes não poderia
estar Bruno Latour. De fato, ele está muito convencido do valor das suas, como
podemos inferir desta afirmação:
Did we teach Einstein anything? No matter how presumptuous the question seems to be, it is the necessary counterpart of this more equal status the method requests. My claim would be that, without the enunciator’s position (hidden in Einstein’s account), and without
160
the notion of centers of calculation, Einstein’s own technical argument is ununderstandable. (LATOUR, 1988, p.35)
É por estas e muitas outras que afirma Slezak (2000):
Based on their own experience, it is not difficult to see why Latour and Woolgar might arrive at the conclusion that science is a more or less arbitrary construction and negotiation with fictions and that “nothing of any cognitive quality was occurring” in scientific laboratories. (SLEZAK, 2000, p.26)
Concluímos portanto este capítulo atribuindo ao construtivismo social a
defesa de teses realistas e idealistas em ontologia, e céticas e objetivistas em
epistemologia. Em vista das várias teses apresentadas neste capítulo, vamos
finalmente apresentar detalhadamente as críticas a esta abordagem indicadas desde a
introdução desta dissertação.
161
Capítulo 4
Avaliação crítica do Construtivismo Social
Neste capítulo apresentarei cinco críticas gerais ao construtivismo social, das
quais duas pretendem ter o caráter de críticas originais. A primeira diz respeito ao
fato de que, apesar de se apresentar como ciência da ciência e crítico da filosofia, o
construtivismo social nada mais é que outra filosofia da ciência; só que inconsistente
e praticada sem rigor. A segunda diz respeito ao fato de que os métodos usados pelo
construtivismo social para investigar cientificamente a ciência não são científicos, são
incapazes de testar alegações acerca de relações de causa e efeito, fato este que
aparentemente nunca foi abordado na literatura sobre o strong programme. A terceira,
alegada aqui desde o início da dissertação, é a de que o construtivismo social não é
estrito senso uma variante de construtivismo, não faz parte dessa tradição do
pensamento ocidental, pois não existe, para esta abordagem, um sujeito ativo. A
quarta, é que ela defende uma das teses mais descabidas da história da filosofia da
ciência, a de que o mundo não faz diferença na obtenção de conhecimento científico.
162
Por fim, abordarei novamente o problema do relativismo e da definição de
conhecimento adotada por essa vertente, criticando as consequências de se rejeitar a
verdade como ideal normativo.
4.1. – Uma filosofia da ciência sem filosofia
Apesar de se apresentar como uma disciplina científica, o programa forte da
sociologia da ciência é fundamentalmente um manifesto metacientífico. Ao rejeitar a
filosofia como campo legítimo de inquérito sobre a natureza da ciência, acaba
apresentando suas alegações de maneira inconsistente, alegando serem fruto de
investigação empírica. Esta característica faz do conjunto de idéias que professa uma
filosofia da ciência praticada sem o rigor da filosofia.
4.1.1. A circularidade da pretensão cientificista
O strong programme é só um caso particular de uma patologia que acomete a
filosofia desde a ascensão cultural irresistível da ciência moderna: o cientificismo. De
tempos em tempos a cultura antifilosófica se manifesta proclamando a caducidade
da filosofia e a necessidade de eliminá‐la em prol de uma vigência universal do
modelo científico de investigação. É comum se propor sua substituição por alguma
disciplina específica como mostram os casos do psicologismo e fisicalismo. Os
163
reducionismos capitaneados por um ‘ismo’ são uma das marcas da tradição
genericamente rotulável de (neo)positivista.
O novo aqui é que uma corrente que se declara antipositivista tenha incorrido
no mesmo tipo de ingenuidade filosófica que já malogrou tantas vezes. A
ingenuidade é não perceber que qualquer discurso que visa a obter conhecimento
sobre uma forma de obter conhecimento é um discurso de segunda ordem, e como
tal, dependente de pressupostos filosóficos acerca de conceitos como ‘verdade’,
‘conhecimento’, ‘realidade’, ‘justificação’. Alguma coisa deve estar errada em uma
disciplina altamente questionada em sua cientificidade, que não apresentou até hoje
uma única lei geral aplicável a processos sociológicos, declarar a prioridade
epistemológica da ciência, principalmente quando a ciência em questão é a
sociologia. E há. Como veremos no próximo item, aquilo que eles chamam de ciência
(1) que investiga a ciência (2) é na verdade um conjunto de métodos históricos e
antropológicos (1) estudando experimentos (2). Mas, a história é ciência moderna?
Como não é, não temos ciência estudando a ciência. Pelo menos, não temos a ciência
moderna, que é o suposto objeto de interesse do construtivismo social, estudando a
ciência moderna.
É banal que em qualquer investigação científica tenhamos de partir, no
mínimo de forma implícita e irrefletida, de alguma concepção de ciência, e que esta
última não tenha sido estabelecida cientificamente. O próprio Bloor parece ter
perfeita consciência disso quando afirma: “Of one thing we can be sure: nobody can
develop any position in a wholly presuppositionless way” (BLOOR, 1999, p.91).
164
O construtivismo social, ao negar à filosofia da ciência o papel de reconstruir a
atividade científica, assume de forma tácita uma teoria geral da cientificidade. Na
verdade, como toda forma de cientificismo, o que temos aqui é a desconfiança ou
mesmo ódio em relação à razão e à racionalidade transferida à filosofia, através do
discurso filosófico de descrença na capacidade da filosofia de produzir
conhecimento. A partir daí, se propõe que estudos sobre a ciência sejam conduzidos
de forma científica, pressupondo‐se filosoficamente que só a ciência produz
conhecimento:
To think about the nature of knowledge is at once to immerse oneself in an abstract and obscure enterprise. To ask questions of the sort which philosophers address to themselves is usually to paralyze the mind (BLOOR, 1991, p.52)
Talvez Bloor não tenha suportado o peso de se fazer perguntas sobre a
natureza do conhecimento, pois tudo o que ele apresenta é uma filosofia descuidada,
uma vez que não conduz estudos de campo. Não é para menos. Tudo o que de mais
importante se tem dito sobre a ciência, o tem dito a filosofia. Invariavelmente, e isso
já inclui o programa forte da sociologia da ciência, as diferentes versões de
cientificismo se revelaram com o tempo superficiais e alienadas da ciência real, como
foi o caso do psicologismo do fim do século XIX e do fisicalismo do positivismo
lógico. Em todas elas, se provaram facilmente a presença implícita de uma filosofia
da ciência rústica (como mostraremos aqui) e ingênua, geralmente similar a um
empirismo simplista como o professado por Newton, que repetia que não elaborava
165
hipóteses. É por isso que Niiniluoto (1991) acredita que devamos tratar os
construtivistas sociais como colegas filósofos.
Qualquer teoria que se volte ao objeto da própria ciência ou conhecimento faz
um discurso de segunda ordem, que não pode extrair sua fundamentação de lugar
nenhum que não a filosofia. É claro que a este discurso de segunda ordem, que
define o que é ciência, não pode se atribuir o estatuto de ciência. Como afirma Oliva:
Estudar a ciência demanda o uso de conceitos e categorias que não se localizam no mesmo plano do discurso de primeira ordem da pesquisa científica. Tarefas como a de definir a cientificidade, identificar as formas de interação entre fatos e teoria e buscar fundamentação para os modelos explicativos não têm como ser realizadas de modo científico. (OLIVA, 2005, p.45)
Bloor reclama deste tipo de crítica. Afirma que “if sociology could not be applied
in a thorough‐going way to scientific knowledge it would mean that science could not
scientifically know itself” (BLOOR, 1991, p.46). Mas é óbvio que não pode. E se
pudesse, a sociologia não seria a disciplina científica mais adequada para isso.
Esta disputa entre sociologia e filosofia não é nada mais que o reflexo
sociológico de polêmicas internas da filosofia da ciência. Oliva (2005) argumenta que
este confronto não se dá, como nos tentam fazer crer os sociólogos, entre o
apriorismo e a ciência empírica. É, na verdade uma luta entre epistemologias
internalistas e externalistas. Epistemologia internalista é aquela que acredita que a
decisão entre teorias científicas é totalmente interna à lógica de investigação
científica, se concentrando na identificação dos atributos lógicos e empíricos das
166
teorias. Epistemologia externalista é aquela que atribui a escolha de teorias científicas
a causas externas à lógica e às evidências empíricas, como interesses de grupos ou
classes e mecanismos sociais gerais
4.1.2. Não existe descritivismo puro
Isto nos leva à problemática da contraposição entre descritivismo e
prescritivismo. Na verdade, toda a argumentação do strong programme parte da
admissão implícita da tese de que a pergunta que deve ser feita sobre a ciência é
sobre o que é, de fato, a ciência. Esta não é, no entanto, a questão da filosofia. A
filosofia não se dirige a questões de fato, contingentes, estas são realmente tarefas da
ciência. A filosofia se dirige a questões de razão. A tarefa da filosofia é apresentar o
que deveria ser a investigação científica para se conseguir teorias com a melhor
qualidade possível sobre o mundo, não investigar o que anda sendo feito de fato nos
laboratórios.
Não é que questões de fato não interessem ao filósofo, é que elas não são o que
distingue seu objeto de investigação. Ele pode prescindir de questões de fato. O
mesmo não acontece com uma abordagem descritiva da ciência. Ela se dedica a
descrever questões de fato sobre a ciência, mas não pode, como acreditam alguns
ingênuos descritivistas, prescindir de questões de razão e pressupostos apriorísticos
acerca da ciência. Afinal de contas, de que forma a) abordariam adequadamente seu
objeto e b) saberiam o que procuram? O descritivismo que ingenuamente acredita
não partir de posições aprioristas, fica na verdade escravo da racionalidade ou da
167
prática em uso, do que é nomeado científico por determinada sociedade, que pode
ser desde investigações em aceleradores de partículas até rituais vodoos.
O construtivismo social não é nada além de uma abordagem da ciência que se
assume como descritivista, mas que sequer logra mostrar como a ciência de fato é,
como é realmente praticada. Tacitamente estipula o que a ciência é para justificar
suas próprias teses com fatos escolhidos de acordo com suas próprias necessidades
metacientíficas. O construtivismo social acusa indevidamente a filosofia da ciência
de, ao recorrer a uma lógica da ciência, desconsiderar a ciência real. Mas não se pode
acusar uma disciplina de não abordar algo para o qual não é feita, e para o qual não
tem competência metodológica. Filosofia da ciência não é história da ciência, não é
psicologia da ciência e também não é, não pode ser, e não tem como ser substituída
por uma sociologia da ciência. Propor que a história da ciência substitua a filosofia da
ciência é propor que ciência é aquilo que foi chamado de ciência ao longo da história.
Propor que a sociologia da ciência substitua a filosofia da ciência é propor que ciência
é aquilo que se assume como ciência hoje. Nenhuma das duas abordagens pode
substituir o papel da filosofia de apontar como a ciência pode ser melhor praticada.
Mas como aponta Stove (2001, p.22), o que origina o irracionalismo epistêmico
característico do construtivismo social é a recusa em distinguir o descritivo do
prescritivo, que tem sua origem na recusa da distinção entre contexto de descoberta e
de justificação. Como não há critérios de justificação a prescrever, os que são usados
têm de ser descritos como qualquer outro fator de tipo contingente. Esta abordagem
herda e usa, neste ponto, todas as teses da Nova Filosofia da Ciência como se
168
tivessem sido provadas, mas não reconhece que parte, como uma espécie de a priori,
desta base epistemológica.
4.1.3. Mais do mesmo: construtivismo social é a Nova Filosofia da Ciência
Este argumento é o centro da obra de Oliva (2005), que defende que a nova
sociologia da ciência só se tornou possível pela disseminação nas ciências sociais das
teses da Nova Filosofia da Ciência que expusemos nesta dissertação, notadamente as
de Kuhn e Feyerabend. Para ele, “toda argumentação do Programa Forte nada mais
faz que traduzir para a linguagem sociológica as conclusões a que chegaram as
filosofias da ciência autoproclamadas pós‐positivistas”. (OLIVA, 2005, p.251):
...as profundas diferenças subsistentes entre os Programas Fraco e Forte em sociologia da ciência não devem ser creditadas a mudanças de enfoque causadas por transformações na dinâmica interna – inovações teóricas ou introdução de novas técnicas de pesquisa – de produção do conhecimento sociológico. Mesmo porque despontam como totalmente dependentes da adoção de divergentes modelos epistemológicos. A sociologia só deixa de adstringir seus estudos à gênese dos produtos científicos quando passa a ser municiada por argumentos epistemológicos heterodoxos que desqualificam distinções entre, por exemplo, contexto da descoberta e contexto da justificação, observação e teoria. (OLIVA, 2005, p.225)
É a repetição de um movimento antigo e conhecido, céticos geralmente negam
que exista epistemologia ou que ela diga algo relevante, e recorrem a ela em seus
debates o tempo todo para defender suas teses, como observaram Nola & Sankey
(2000). O truque do construtivismo social é negligenciar questões relativas à
metodologia e sua fundamentação acusando‐as de falsas questões, com base na
169
suposição de que todo e qualquer pensamento é socialmente determinado. Ao
mesmo tempo, usa métodos primitivos e ingênuos como se fossem procedimentos
naturais da racionalidade que julga não‐natural. Mas se procedimentos
metodológicos não são mais que convenções de determinado grupo social, não há
razão para outros grupos sociais que não possuem as mesmas convenções levarem
em consideração seus resultados.
Se, como quer o neo‐wittgensteinismo presente no construtivismo social, toda
e qualquer regra científica é expressão de uma forma de vida, o que cabe fazer é
procurar identificar as causas que levam os cientistas a escolher uma teoria em
detrimento de outra. Mas isso se aplica também, até pelo princípio da reflexividade,
ao próprio construtivismo social: quais são os interesses que determinam a escolha
de suas teorias? Eles parecem óbvios, mas abordaremos isto no último item do
capítulo.
O projeto de estabelecer cientificamente os eventuais determinantes sociais
das crenças científicas se revela extremamente frágil tão logo percebamos que as
supostas teorias sociológicas causais do conhecimento não têm nem a mais remota
semelhança na aparência e desempenho com as poderosas teorias físicas, químicas e
biológicas que este projeto tenta sociologizar:
Como pode a sociologia com sua cientificidade questionada ‐ a ponto de Poincaré (1912, p. 12‐3) afirmar que “cada tese sociológica propõe um método novo (...) o que faz com que a sociologia seja a ciência com o maior número de métodos e o menor número de resultados” ‐ ambicionar explicar as outras ciências? (OLIVA, 2005, p.17)
170
Para contornar este fato duro, o construtivismo social como sempre apela à
retórica proclamando a tese feyerabendiana de que todas as formas de teorização e
metodologias se equivalem; desse modo, se exime das necessárias demonstrações de
adequação aos fatos que tanto cobra da filosofia. O problema é que a ciência vive do
negócio da explicação e previsão acurada dos fatos, e que a evidência histórica a qual
a sociologia do conhecimento alega recorrer demonstra reiteradamente que o método
experimental é o melhor para se alcançar esse fim. Se o projeto da sociologia da
ciência é o de ser a ciência da ciência, precisa testar empiricamente suas hipóteses
causais, e não interpretar retroativamente dados históricos selecionados ad hoc nem
proclamar, aberta ou tacitamente, princípios epistemológicos professados por
Wittgenstein, Kuhn e Feyerabend como se fossem resultados empíricos.
Mas como mostra Larry Laudan (1981) o programa forte foi mal‐sucedido – e
continua assim até hoje – na determinação de qualquer mecanismo causal ou lei para
sustentar as pretensões científicas de suas teses. No fundo o programa forte:
is not a sociological theory, in any costumary sense of that term. It specifies no detailed causal or functional mechanisms and no laws. It is, rather, a meta‐sociological manifesto. It lays down certain very general characteristics which any adequate sociology of knowledge should possess. (LAUDAN, 1981, p.174)
Enfim, o programa forte nada mais é que uma filosofia praticada em versão
sociológica de maneira descuidada, cheia de teses controversas que tentam passar
por científicas, isto é, portadoras da condição de ciência da ciência. É, para tomarmos
171
a expressão de Laudan (1981), “a pseudociência da ciência”. Uma filosofia da ciência,
afinal de contas, mas sem o rigor analítico e linguístico que a boa filosofia exige.
4.2. – Uma investigação sem método
A pretensão de ser uma ciência que explica o que é essencialmente a ciência é,
portanto, inconsistente, num nível muito primário. Mas há outra questão que ainda
não foi levantada quanto a esta pretensão, e que merece ser apresentada aqui. Como
apontou Laudan (1981), Bloor (e isso se estende a todo construtivismo social) não nos
fornece uma definição do que distinguiria a investigação científica da não‐científica,
mesmo porque isso explicitaria uma de suas incoerências (a de querer estabelecer
cientificamente que a ciência não tem valor epistêmico superior).
Para Laudan (1981), isto nos tiraria a condição de avaliar a alegação de que o
programa forte é científico. Creio, no entanto, que Laudan se equivoca neste ponto.
Na falta de uma definição explícita, resta‐nos uma forma objetiva de avaliar esta
alegação. Se Bloor, como vimos, reiteradamente afirma que o método da sociologia
da ciência é o mesmo que o das ciências naturais, e que sua inovação é aplicar a
ciência ao estudo de si mesma, temos que avaliar esta alegação à luz dos padrões
metodológicos das disciplinas que o strong programme investiga.
172
O construtivismo social afirma que se deve produzir um conhecimento
científico sobre a ciência. Mas o que esta abordagem da sociologia faz é aplicar
métodos idiográficos, estranhos à ciência moderna, ao estudo de procedimentos
conduzidos por métodos nomotéticos, tipicamente empregados pela ciência
moderna. Utiliza métodos qualitativos para estudar métodos quantitativos. Estuda
casos únicos para extrair conclusões universais. Ou seja, não aplica métodos
científicos à ciência, ou dito mais especificamente, não aplica a ciência moderna, que
é a fonte da reputação do termo ‘ciência’, ao estudo da ciência moderna, que é o
objeto de seu interesse.
O programa forte quer estabelecer, através de investigação científica, as leis
causais que regem a construção social do conhecimento científico. Mas aquela ciência
que ele afirma estudar, como a física dos estudos de Latour (1988) e Pickering (1984)
ou a bioquímica do estudo de Latour & Woolgar (1986), só aceita como método capaz
de estabelecer uma relação causal o experimento, por causa da rigorosa estrutura
dedutiva de seu inquérito. Evidentemente, o strong programme nunca produziu um
experimento sociológico. Como então pretendem estabelecer cientificamente uma
relação de causa e efeito?
A sociologia da ciência, que alega descrever a ciência real, deve saber que o
processo geral de investigação científica tradicional – praticado na física, química,
biologia e psicologia – tem quatro etapas. A primeira é a do problema, cujo objetivo é a
descrição do fenômeno investigado da melhor e mais precisa maneira possível. Nesta
etapa entram em cena os métodos descritivos, como os estudos de casos (no plural), as
173
observações naturalistas e os levantamentos de dados. A segunda ordem é a da
hipótese; aqui o objetivo é a construção de um modelo ou elaboração de uma hipótese
causal. Tradicionalmente, nesta etapa da investigação científica, principalmente nas
ciências sociais, os procedimentos adotados são de natureza lógico‐matemática, e
tomam a forma de estudos de correlação. Estes só podem ser aplicados a uma massa de
dados quantitativos padronizados recolhidos por levantamentos de dados ou
estudos ex post facto. Na etapa da investigação científica em que o objetivo da
pesquisa é o teste de uma hipótese ou modelo, a ciência moderna conta com dois
métodos de validade diferenciada: o provisório estudo quase‐experimental e o método
experimental, “supremo tribunal” da investigação científica. Neste, uma previsão
sobre o comportamento de um fenômeno é feita e o mesmo é provocado de forma
controlada de forma a testar a previsão. A última ordem de objetivos dos métodos de
pesquisa é a crítica; nesta etapa final da investigação, busca‐se a análise do alcance,
validade e significância dos resultados obtidos no teste. Os procedimentos aqui
podem ser de dois tipos. Um concerne aos instrumentos de análise estatística,
notadamente o teste de hipótese, que possibilitam o estabelecimento da significância
estatística dos resultados do experimento. O outro tipo é a análise do metodologista
quanto à adequação do desenho, execução do experimento e alcance da conclusão.
O Estudo de casos é geralmente confundido com o estudo de caso único e às
vezes tomado mesmo por seu sinônimo. No entanto, duas características marcantes
podem distinguir estes dois procedimentos de pesquisa. O primeiro é o objetivo de
cada um. O segundo a quantidade de técnicas e procedimentos que cada método está
174
autorizado a lançar mão. O estudo de caso único é um estudo idiográfico e
qualitativo. Seu objetivo é a descrição minuciosa e completa de um fenômeno único
qualquer, geralmente um fenômeno social ou quadro psicopatológico. Este fenômeno
é geralmente de especial relevância, como uma patologia desconhecida ou evento
histórico de grandes implicações. Já o estudo de casos, que geralmente é baseado em
vários estudos de caso único diferentes (mas não necessariamente), tem como
objetivo a identificação de padrões presentes em vários casos particulares de um
determinado fenômeno. Ele se insere, portanto, em um processo mais amplo de
investigação que tem como objetivo final o estabelecimento da frequência e
quantidade da presença de determinadas variáveis associadas ao fenômeno
investigado. Em última análise, seu objetivo não é o registro de um caso único, mas
ser uma etapa da busca de leis científicas que sejam válidas universalmente; um
processo nomotético de investigação.
O estudo de casos pode lançar mão de uma série de procedimentos de coleta
de dados, como documentação, pesquisa histórica, observação naturalista,
entrevistas e assim por diante, mas seja como for a coleta, ela precisa ser
padronizada. Portanto, podemos perceber que estudos de casos são sempre feitos
com objetivos gerais. Apesar da evidente fragilidade das conclusões que podemos
alcançar com tais pesquisas, não podemos esquecer que estas possuem elevada
validade ecológica (relativa ao contexto real onde de fato se dão os fenômenos
investigados) e são fonte riquíssima de informações para elaborarmos hipóteses de
pesquisa. Mas elas não têm uma estrutura que permita sequer estabelecer
175
matematicamente a probabilidade da existência de uma relação qualquer entre duas
variáveis. Que dirá uma relação causal.
São os estudos de correlação que permitem estabelecer, ao menos, a
probabilidade da existência de uma relação real entre duas variáveis. A análise
correlacional não tem como objetivo a descrição pura e simples do problema (como
nos métodos descritivos) nem o teste de uma hipótese (como no caso do método
experimental). Seu objetivo final não é o estabelecimento de uma relação causal, mas
a construção de um modelo ou hipótese causal. São mais bem compreendidos como
fazendo parte do esforço de criação de hipóteses que ocorre na segunda etapa do
processo geral de investigação científica, através da aplicação de análises estatísticas
a uma massa de dados recolhida de maneira quantitativa e padronizada.
Estabelecer estatisticamente a correlação entre duas variáveis (como interesse
econômico definido operacionalmente e crença científica definida operacionalmente)
significa somente provar que, se os dados padronizados recolhidos são reais, então a
variável 1 (interesse econômico x) está co‐relacionada com a variável 2 (crença
científica y), num determinado nível de significância (tem w de probabilidade de a
co‐incidência das alterações nos valores das variáveis ter ocorrido ao acaso): elas
variam conjuntamente. Não podemos no entanto, com base nestes dados, apontar
qual a direção desta relação: se x causa y, se y causa x ou se um terceiro fator z causa
ambos x e y. Ainda temos uma quarta possibilidade de relação, que é a
retroalimentativa, onde x varia y e a variação de y provoca mais variação de x.
Podemos chamar metaforicamente esta característica do estudo de correlação de
176
“efeito Tostines”. Ser mais fresquinho pode causar vender mais, vender mais pode
causar ser mais fresquinho, ser mais barato pode causar ser mais fresquinho e vender
mais ou, ainda, pode haver uma relação retroalimentativa onde ser mais fresquinho
causa vender mais que causa ser mais fresquinho que causa vender mais ad infinitum.
Assim, ao determinar a relação entre um interesse x e uma crença y (como
construtivistas sociais presumem que exista), poderiam ser formuladas quatro
hipóteses de relação causal (por exemplo, é perfeitamente concebível, diga‐se de
passagem mais verossímil, que uma crença y cause o interesse x do que o contrário,
alegado pelo construtivismo social). Estas hipóteses, no entanto, precisam ser
testadas por um delineamento de pesquisa experimental, o que, caso não seja
possível por limitações éticas ou metodológicas, deixa ao menos as hipóteses
surgidas desta maneira em melhores condições que as surgidas da pura especulação
sobre resultados de estudos de caso único meramente descritivos. Mas em hipótese
nenhuma um cientista estaria autorizado metodologicamente a afirmar que
estabeleceu a probabilidade de uma destas relações ser verdadeira.
A ciência que o strong programme alega fazer e que de fato é o seu objeto de
estudo, só reconhece como teste de uma hipótese causal e, portanto motivo suficiente
para afirmação de que a crença em sua existência é uma crença científica, o método
experimental. Este é dependente de três fatores fundamentais: o controle das
variáveis relevantes para o problema investigado, a livre manipulação da variável
independente (a que se supõe ser a causa do efeito investigado) e o uso de amostras
representativas e aleatoriamente distribuídas. Ou seja, um experimento controla as
177
variáveis que não estão envolvidas na relação, manipula o fator que supõe ser a causa
de um efeito provocando seu surgimento ou variação de intensidade, e mede o efeito
dessa manipulação na variável que chamamos de dependente. Controlar, provocar e
medir a consequência. É isso o que faz a ciência moderna, aquela que Woolgar e
Latour (1986) viram em ação na bioquímica e que Pickering (1984) viu em ação na
física. Logo, não temos esta ciência que está sendo estudada pelo construtivismo
social investigando ela própria.
Se o construtivismo social ainda se valesse de estudos de correlação,
poderíamos dizer que ele poderia vir a estabelecer a probabilidade de uma
determinada crença y estar relacionada a determinado interesse x. Isso, no entanto,
não o autorizaria a concluir que o interesse x causa a crença y, pois possuir crenças y
poderiam causar o interesse x. Mas sabemos que nem isso faz a sociologia da ciência.
Na verdade, ela não promove nem estudos de casos, somente estudos de caso único,
que, estrito senso, é um método qualitativo idiográfico que quando vemos associado
à ciência moderna tem um caráter puramente exploratório, do começo da primeira
fase geral que tem o objetivo de descrever o fenômeno.
Mesmo como estudo idiográfico, a sociologia da ciência oferece interpretações
retroativas de esparsos estudos históricos, diga‐se de passagem, interpretações
muitas vezes bizarras. Para cada uma destas interpretações retroativas, podemos
apresentar inumeráveis interpretações diferentes, e com certeza, algumas bem mais
convincentes. Na ânsia de relativizar os resultados da ciência moderna, Barnes &
Edge afirmam:
178
It had long been recognized that theories constituted an important part of verbal culture of science. But theories are human inventions or constructs which go beyond the facts, and any specific body of accepted facts is formally compatible with any number of theories. (BARNES & EDGE, 1982, p. 66)
A diferença é que na ciência moderna, uma teoria tem que prever os fatos
antes de seu acontecimento. No construtivismo social ela é retroativa. Mas se
podemos criar em tese (o que é raríssimo na história da ciência) duas teorias que
aparentemente prevêem a mesma quantidade de fatos, podemos criar de fato
infinitas teorias que expliquem fatos que já aconteceram. Porque então teríamos que
aceitar as que são produzidas pelo strong programme? É o que afirma Nelson:
The RCA [Rationalist Counterfactual Argument] is similarly capable of supporting rationalist accounts; in fact, it is virtually impossible that there not be a retrospective account that renders scientific decisions uniquely rational. The failure of constructivism to overcome rationalism on its own terms is a result of its inability to elicit uncontroversial empirical, inductive arguments from case studies. (NELSON, 1994, p.546).
Mas não é só. Uma vez que a “metodologia” do strong programme tem a
maioria das vezes como resultado conclusões polêmicas e inverossímeis como as que
vimos em Latour (1988), Potter (1993) e Shapin (1994), não seria o caso de questionar
a validade da “metodologia” empregada?
And if this ‘result’ were correct – e.g. there are only sociological differences between modern medical laboratories, Zande magic and Renaissance astrology – would not that undermine the credibility of the empirical studies of science as well? (NIINILUOTO, 1999, p.270)
179
O que quer que seja o construtivismo social, não se justifica encará‐lo como
resultado da investigação científica, em nenhum de seus aspectos e teses. Na
verdade, ele é completamente estranho ao espírito de controle, manipulação e
medição da ciência moderna. Tampouco oferece a seus praticantes qualquer tipo de
orientação especificamente metodológica de pesquisa para proporcionar a
padronização e análise estatística dos dados própria da ciência moderna.
Poderia se objetar à argumentação acima com a alegação de que a ciência
moderna é uma realização social e histórica e como tal seus princípios são
construídos socialmente, enquanto a sociologia da ciência parte de outro modelo de
ciência. Mas esta objeção tem dois problemas. Primeiro, não é isso que afirma Bloor
(1991), nem que ambiciona o strong programme. Para ele, a sociologia da ciência é um
empreendimento científico do mesmo tipo que a física: “The search for laws and theories
in the sociology of science is absolutely identical in its procedure with that of any other
science” (BLOOR, 1991, p.21). Segundo, se não se trata da mesma concepção de
ciência, não se pode afirmar como o faz o construtivismo social que nele temos a
ciência investigando a ciência. O que temos é a concepção de ciência x investigando a
concepção de ciência y.
Assim, a relação de causa e efeito entre fatores sociais e crenças científicas, ou
crenças de qualquer espécie, nunca poderia ter sido respaldada cientificamente com
o tipo de pesquisa que faz a sociologia da ciência, ou seja, o estudo de caso histórico
ou com observação participante. É claro que, desta forma, nunca foi e nunca será
estabelecida qualquer lei com capacidade preditiva (o que distingue leis científicas de
180
formulações meramente especulativas) sobre o surgimento ou desaparecimento de
crenças científicas como resultado de tal ou qual fator social. Nem sequer poderiam
ter estabelecido quaisquer leis que prevejam uma correlação entre determinados
fatores sociais e o conteúdo das explicações científicas.
Assim sendo o projeto científico do programa forte, podemos dizer trinta e
cinco anos depois de sua formulação, era muito fraco, e redundou em um completo
fracasso científico, apesar de seu sucesso social disciplinar. Mas talvez para seus
defensores e praticantes, esta última realização seja tudo o que conta.
4.3. – Um construtivismo sem sujeito
É sempre importante lembrar que o ‘sujeito’ ao qual estamos nos referindo
aqui é o sujeito do conhecimento. Quando o construtivismo afirma que a ciência é
uma construção, é necessário determinar quem é o sujeito da construção. Quem
constrói. Pois se algo simplesmente é formado, sem um agente que organiza e
estrutura os elementos que estão se combinando, temos que chamar tal coisa de
‘formação’ e não de ‘construção’. É por isso que nos referimos a uma formação
geológica e a uma construção egípcia. A primeira, se formou. A segunda, foi
construída por sujeitos ativos orientados a metas. Não falamos da “construção do
Pão de Açucar” (a não ser que seja sobre um supermercado da rede) nem da
181
“formação da Torre Eifel”. Como afirma Boghossian (2006), dizer que algo foi
construido é dizer simplesmente que isto não estava ali para ser descoberto, mas antes
que precisou ser feito, trazido à existência pela atividade intencional de alguém em
dado ponto no tempo.
Não importa determinar se a construção é uma atividade individual ou um
empreendimento coletivo. Afirmar que a Torre Eifel é uma construção social não é
nada mais que afirmar que ela foi construída por um conjunto determinado de
sujeitos individuais. Cada parafuso daquela torre foi colocado ali por um operário,
que organizou ou montou as partes daquela construção segundo um plano e uma
meta. Quanto ao conhecimento científico, o mesmo se aplica. Afirmar que o
conhecimento científico é uma construção social não deveria significar nada mais do
que dizer que ele é o conjunto de dados recolhidos por muitos, e idéias criadas em
mentes individuais ou articuladas em mentes individuais. Esse mau uso da metáfora
da construção, aplicada a alegações de formações sem sujeito, é que leva Hacking a
afirmar (1999, p.49‐50) que a metáfora da construção é uma metáfora morta.
Não há uma entidade mística chamada sociedade, para além do conjunto de
sujeitos individuais e suas crenças que a construíram e a mantém. Parafraseando o
psicólogo Floyd Allport, podemos dizer que é ocioso falar em crenças sociais, pois
sociedades não possuem sistema nervoso central. Bloor (1991, p. 168) reconhece isso
(como vimos no item 3.4.4 desta dissertação), ao afirmar que não pode haver
estruturas sociais sem estruturas neurais.
182
Mas assim sendo, seria a psicologia, e não a sociologia, a disciplina mais
adequada para o entendimento do processo de aquisição de crenças científicas. Mas
isso a ciência cognitiva já sabe e faz há mais de cinqüenta anos. A diferença é que faz
sem as ingênuas pretensões cientificistas do construtivismo social. O que é difícil
aqui é entender exatamente qual poderia ser o objeto de investigação da sociologia
do conhecimento, uma vez que conhecimento científico nada mais é que um conjunto
de crenças possuídas por várias mentes individuais.
A crença de que a sociedade constrói o conhecimento, adotada pelo
construtivismo social, é baseada na tese de que a linguagem é um produto social. Se
ela é um produto social, passa a ser responsável por ela mesma e por tudo o que nela
se constrói: sociologismo. Todos os padrões de existência e conhecimento são sociais.
Só a sociedade existe em si, é a nova causa sem causa, é o novo Deus desse bizarro
tipo de idealismo marxista, desse círculo vicioso de uma “matrix” sem
“programador”, dessa casa de espelhos sem ninguém para olhar para eles.
Como o conhecimento é expresso através da linguagem e transmitido através
dela, se conclui que ele se reduz a linguagem. Mas estas consequências só seriam
necessárias se o pensamento humano se reduzisse à linguagem. Se as classificações
de objetos e as crenças sobre seu funcionamento sofrem influência direta das
interações entre o sujeito e o objeto do conhecimento, sem intermediação da
linguagem, então a linguagem não poderia ser totalmente auto‐referencial.
É claro que, como vimos no subitem 3.4.4, a tese de que a linguagem
determina o pensamento e condiciona a sensação e a percepção é uma tese
183
anacrônica cientificamente e filosoficamente insustentável. Caso se concedesse que
fosse possível que nossas crenças sejam diretamente afetadas por estímulos
sensoriais, e que só posteriormente usemos a linguagem para expressar aspectos
dessas experiências sensoriais e mudanças em nossas crenças, então não haveria
sustentação para a tese do construtivismo social, pois fontes externas à linguagem
estariam impondo mudanças em mentes individuais. É aqui que o construtivismo
social se agarra com força às teses de Wittgenstein, ou ainda às suas radicalizações
em Ryle (1968), que defende não haver conteúdo mental ou representação mental.
Mas como se relaciona esta mente individual com seus objetos de
conhecimento? Como vimos no segundo capítulo, podemos classificar as respostas à
essa pergunta, a despeito de suas variações, em duas grandes categorias: o
construtivismo e o objetismo. Para o primeiro, a representação do objeto do
conhecimento é predominantemente construção da mente individual, uma idéia
construida de acordo com a estrutura prévia da mente. Para o segundo, a
representação não é construída pelo sujeito, mas produzida pelo objeto através dos
órgãos sensoriais numa mente predominantemente passiva.
Como quer o construtivismo social, há dois modelos de explicação das
crenças, os racionais e os causais. A questão é que como observa Oliva (2005), a
justificação epistêmica de uma crença científica pode ser também a explicação causal
de por que é aceita; mas o inverso não se sustenta. O estabelecimento da causa de
uma crença não a justifica como conhecimento, nunca. Pois o que justifica um
conhecimento é uma evidência reproduzível da adequação de uma crença a parcela
184
do mundo ao qual ela se refere. A dicotomia razão‐causa equivale à dicotomia
construtivismo‐objetivismo. A alegação de que adquirimos conhecimento em função
de uma decisão pela adoção de uma crença em virtude de razões apresentadas a seu
favor é um processo ativo, só sustentado por uma visão epistemológica
construtivista. Já a alegação de que adquirir conhecimento equivale ao surgimento de
uma crença causada por um fator externo ao sujeito, seja físico ou social, é sustentada
por uma visão epistemológica objetivista.
Por todo o exposto acima, e por todo o argumento apresentado no subitem
3.4.4, podemos concluir que, tomando por construtivismo a definição dada no
segundo capítulo desta dissertação, o construtivismo social não é um construtivismo.
A estrutura do argumento pode ser resumida como se segue:
Se por construtivismo entendermos o conjunto das teses definidas no capítulo
dois:
a) As representações (intuições sensíveis) que temos da realidade são
condicionadas pela estrutura de nossa mente, e construídas por ela;
b) num segundo nível, as hipóteses que construímos sobre como o objeto
funciona podem ser alteradas e substituídas voluntariamente tão logo a sucessão de
intuições sensíveis que esperávamos não se manifestem e, portanto, as hipóteses em
questão se revelem inadaptadas ao objeto;
c) O objetivismo é uma tese equivocada, pois o objeto não determina
completamente em um sujeito supostamente passivo as representações que este tem
dele;
185
E como, de acordo com o subitem 3.4.4., podemos afirmar que o
construtivismo social defende que:
aʹ) As representações que temos da realidade são causadas por processos
sociais e estímulos sensoriais;
bʹ) num segundo nível, as hipóteses que temos sobre como o objeto funciona
são condicionadas pela linguagem e causadas socialmente;
cʹ) O sujeito individual não é o agente do conhecimento, mas sim a sociedade
ou algo indefinido como o “sujeito social”;
Então o construtivismo social não é um construtivismo.
Não é aceitável, nem para a mais simples análise etimológica, conceber um
construtivismo sem sujeito. A apropriação do termo ‘construtivismo’ e adoção da
denominação ‘construtivismo social’ (que não se deve a Barnes nem a Bloor), assim
como a utilização da metáfora da construção, comum a todo o campo, é só mais um
indício da verdadeira tendência desconstrucionista à la Derrida desta abordagem, e
de seu descompromisso com a clareza e o rigor.
4.4. – Uma ciência sem mundo
Como mostrado no item 3.3 desta dissertação, a posição do construtivismo
social quanto ao papel do mundo na investigação científica varia. A proclamação de
186
sua existência se faz acompanhar, como ocorre no programa forte tradicional, da
ressalva de que é incapaz de determinar a escolha de uma das teorias formuláveis
sobre o que é o caso. E, chega ao extremo da proclamação de que ele próprio é uma
construção social (no construtivismo social ontológico). É como resume a frase de
Collins: “the natural world has a small [CSE] or non‐existent [CSO] role in the construction
of scientific knowledge” (COLLINS, 1981, p.05)
Como citado no mesmo item desta dissertação, Bloor declara (1991, p.160) que
existe algo objetivo que garante certa estabilidade no conhecimento científico, mas
esse algo não é o mundo físico como se costumava pensar: é a sociedade. Ele, no
entanto, reiteradamente afirma que não está com querendo dizer que não há algo
independente como o mundo físico lá fora. O problema é que segundo Bloor (1999),
essa realidade independente não garante a uniformidade das crenças científicas sobre
o mundo, uma vez que dois cientistas diferentes podem chegar a crenças diferentes a
partir das mesmas observações, das mesmas evidências empíricas. Com isso, apesar
de reiteradamente afirmar que o mundo conta para a causação das crenças
científicas, nos poucos textos em que, diretamente acuado pelos críticos, Bloor
formula qual seria esse papel, ele se revela pífio: “The general difference made by the
presence of X is that, in appropriate circumstances, it is capable of prompting acts of
classification“ (BLOOR, 1999b, p. 134)
Isso significa que, para Bloor, tudo o que um objeto faz quando de alguma
forma afeta nossos órgãos dos sentidos, é provocar o ato de seu enquadramento
linguístico em alguma categoria. Ele nada tem a dizer de decisivo sobre as diferentes
187
interpretações e teorias sobre seu comportamento. Em outras palavras, todo papel do
objeto para o programa forte é o de ser ocasião para se tornar objeto de disputa. Até
Latour, em sua última fase, ironiza a falta de coragem de Bloor para admitir seu
ceticismo ou, como classifica Niiniluoto (1999), “idealismo epistemológico”:
When David gives the example of the electron, we clearly see where the problem resides: Once we realize this [that Millikan believes in the electron and that Ehrenhaft does not believe in it] the electron ‘itself’ drops out of the story because it is a common factor behind two different responses, and it is the cause of the difference that interests us. I agree: we are interested in differences. Now, I want someone to explain to me what it is for an object to play a role if it makes no difference. On a stage, when someone or something is said to play a role, and even an ‘important’, a ‘crucial’, a ‘decisive’ role—which would be necessary to counteract the charge of idealism— it has to produce differences. (LATOUR, 1999, p.117)
São de fato inócuas as reiteradas tentativas de Bloor de defender o strong
programme das acusações de que este último desconecta os conceitos da realidade,
quando a única influência que Bloor concede aos objetos é a de estimular os sentidos
dos cientistas provocando processos automáticos de classificação que, diga‐se de
passagem, foram também construídos socialmente e são auto‐referentes.
Como afirma Kemp (2005), ao conceber os conceitos das ciências naturais
como auto‐referenciais em caráter, Bloor elimina a ligação entre os conceitos e a
realidade. É fato que Bloor (1997b) defende que para o strong programme conceitos de
caráter auto‐referencial são definidos como fazendo referência apenas a outros usos
de conceitos. Assim, Kemp conclui que se conceitos auto‐referenciais em caráter não
188
podem ser externamente referentes, então não pode haver qualquer conexão genuína
entre os conceitos e a realidade.
Em outro texto, Kemp (2007) lembra que Bloor não pode conceder nenhum
papel mais substancial à influência que a interação direta com os objetos físicos tem
em suas classificações porque, ao fazê‐lo, comprometeria a tese de que a adequação
de conceitos científicos é totalmente derivada de processos sociais auto‐referenciais:
“If concept–reality interactions had some important role in determining the validity of
classifications, then the rightness of these classifications would not be self‐referential”
(KEMP, 2007, p.245). Com isso, concluo eu, comprometeria uma de suas principais
metas desde o lançamento do strong programme: a de dar à sociologia um papel
relevante entre as ciências.
Vários problemas graves são gerados uma vez que adotemos a tese da auto‐
referência dos conceitos científicos. Bloor (1991) sempre reconheceu, como se isso
eliminasse o problema da auto‐refutação, que o princípio da reflexividade implica
que a crença na causação social deve ser ela mesma socialmente causada, e que seu
significado se refere somente a usos de outros conceitos. Mas como demonstra Kukla
(2000), num argumento que pretende ser uma refutação do strong programme, se toda
crença é socialmente causada, então a crença C’ de que toda crença C é socialmente
causada deve ter sido ela mesma socialmente causada, e a crença C’’ de que C’ foi
socialmente causada deve ter sido causada socialmente e assim sucessivamente,
gerando o problema da regressão infinita. Como lembra Kukla, o que faz a regressão
infinita ser um problema insolúvel é que ela requer para a criação de alguma coisa
189
um montante infinito de trabalho. Ou seja, para que C fosse socialmente causada,
seria necessária a causação de um número infinito de crenças. Logo, C não seria
possível. Mas se já é fato que C existe, então a tese de que ela requer uma quantidade
infinita de trabalho para ser feita tem que ser falsa. Logo, a tese de que todas as
crenças são causadas socialmente é falsa. Kukla dá um exemplo bem concreto da
questão:
There are no tricky logical steps or exotic metaphysical claims about the infinite involved. It’s really a very down‐to‐earth dilemma. Suppose, for instance, that someone claims that he has always rung a bell before performing any action. If this were true, then he would have had to ring a bell before imparting this information to us. Moreover, since the ringing of the bell was itself an action, he would have had to ring a bell before the last ring, and so on. (…) this is the mundane fact that establishes that what he told us can’t have been the truth: he didn’t ring the bell infinitely many times; therefore it’s not the case that he has rung a bell before performing any action. (KUKLA, 2000, p.72‐73).
Talvez seja desnecessário lembrar que isso acaba atingindo duplamente o
construtivismo social ontológico, pois além de ele defender a tese epistemológica da
causação social das crenças, defende a tese ontológica da construção social dos fatos.
Mas se todo fato é construído, então o fato F’ de que o fato F foi construído deve ter
sido ele mesmo construído socialmente, o fato F’’ de que F’ foi construído deve ter
sido construído socialmente e assim sucessivamente.
Não é só isso. A defesa da subdeterminação radical das teorias pelas
observações significa a defesa de que qualquer teoria pode ser declarada
instrumentalmente bem sucedida, não importa o que o mundo diga sobre ela, ou dito
190
mais precisamente, não importando que tipo de evidência apareça. Ou seja, mesmo
que abandonássemos a questão da auto‐referência, a tese da subdeterminação das
teorias implica a crença de que uma teoria nunca é abandonada por causa de
evidências empíricas, mas somente por causa de interesses políticos, sociais,
econômicos ou religiosos.
É claro que isso não explica porque nos curvamos a crenças que não
gostaríamos que fossem verdadeiras. Não foram as evidências que, a despeito da
oposição de todo poder temporal e religioso do ocidente, fizeram com que a
comunidade científica acabasse adotando a teoria copernicana contra a teoria
ptolomaica? Não é mais fácil se atribuir a relativa estabilidade do uso das palavras
referentes ao mundo físico, em vez de a longos processos de negociação e interação
social, às características relativamente estáveis que o objeto físico traz para os
encontros com o sujeito?
Além disso, se o processo de inquérito científico não é ele mesmo nada mais
do que o produto de processos sociais sem referência externa à natureza do mundo e
à de nossa mente além de sem submissão a crivos lógicos, suas conclusões têm o
mesmo valor que as obtidas em qualquer outro domínio. A sociologia da ciência se
apresenta como a disciplina científica adequada para determinar o que a ciência é.
Mas sendo, ela própria, uma construção social, assim como também sua pretensão de
ser ciência, e aquilo que ela afirma que é ciência, a sua postulação de validade
científica ou de sua condição especial de investigação em relação à ciência fica
fragilizada. Assim, tudo o que defende tem o mesmo valor que as alegações
191
contrárias de seus adversários, ou ainda que qualquer outra. Porque então
deveríamos aceitar esta pretensão do strong programme, já que a maioria da
comunidade científica não a aceita?
Por fim, o problema mais óbvio com abordagens relativistas como o
construtivismo social, não é, de fato, fruto de inconsistência interna. É um singelo fato
empírico. Se todas as modalidades de crença têm as mesmas fontes de causalidade,
como podemos explicar o variado sucesso explicativo e prático delas? Dito
objetivamente, se todas as crenças científicas são fruto de mera construção social, o que
pode ser responsável pelo incrível sucesso empírico delas comparado ao sucesso mais
modesto (ou fracasso completo) de outras modalidades de crença? Como diz Putnam, o
sucesso da ciência seria um milagre se nossas teorias não fossem ao menos
aproximadamente verdadeiras. Sem que a natureza constranja nossas crenças, como
elas podem tornar‐se bem‐sucedidas em antecipar o que ocorrerá nela? É importante
pontuar que não se trata aqui de explicar a estabilidade das crenças científicas, mas sim
sua eficácia preditiva. Como afirma Oliva (2005), “o sucesso em persuadir pessoas pode
ter uma base exclusivamente social, mas a capacidade de antecipar e controlar
fenômenos, não”.
É claro, a não ser que se considere que a suposta prisão linguística da mente é
impermeável a estímulos provocados pelo objeto. A crença de que estamos nos curando
de um câncer, ou que estamos voando a 12000 metros sobre o oceano em direção à
Europa pode ser, não fruto da ação real do conhecimento científico, mas fruto de
construção social...
192
O tipo de crença acima expressa fica de fato abonado tão logo passemos do
“idealismo” epistemológico (ceticismo) do CSE para o idealismo ontológico do CSO.
Invertendo o pressuposto básico da ciência moderna de que todo conhecimento
científico é fruto da descoberta de fatos e invenção de teorias, o CSO postula a tese de
que não há descoberta, tudo é construído. Por algum momento, é conveniente deixar de
lado a necessidade de análise interna das teses, para lembrarmos o nível do absurdo
com o qual estamos lidando aqui. Autores como Woolgar, Collins, Lynn Nelson ou o
primeiro Latour afirmam que o mundo que é objeto da ciência, é construído por ela.
Para eles (WOOLGAR, 1988, p.65‐67) objetos como pulsares não existem antes de sua
“descoberta” (ou estabelecimento científico), mas são construídos ou “constituídos”
por práticas representacionais e “redes sociais”. Este tipo de afirmação é equivalente a
declarações que, em outro contexto, como uma entrevista inicial em hospital
psiquiátrico, são tomadas como fortes indícios de esquizofrenia.
Não podemos negar que, filosoficamente, o CSO oferece uma solução para o
problema que o CSE enfrenta em explicar o sucesso das teorias científicas em prever e
controlar eventos empíricos: as teorias constroem os eventos. O singelo problema com
esta tese é que se trata de uma tese absurda e completamente inverossímil.
Como afirma Kukla (2000, p.105), de acordo com o CSO, a construção de fatos
sobre o mundo natural segue o mesmo modelo de construção dos fatos sociais, tais
como o dinheiro, as convenções sociais, os significados das palavras, e assim por
diante. Há, porém, uma diferença radical entre a construção do dinheiro e a
construção do TRH do estudo de Woolgar & Latour (1986). No primeiro caso, o
193
construtor e a construção são contemporâneos. O dinheiro não existia antes da
atividade social que o constituiu e se deixássemos de acreditar em seu valor para
trocas e parássemos de usá‐lo (como na República de Weimar), o dinheiro deixaria
de existir. Mas em relação à construção do TRH, Latour e Woolgar não podem dizer
que uma nova substância começou a existir no hipotálamo no ano em que foi
descoberta (construída). O que se tornou “verdadeiro” (conhecido) em 1969 é o fato
de que TRH existia pelo menos há tanto tempo quanto hipotálamos. Nesse caso, o
construtor e o construído têm datas diferentes. Este fenômeno não ocorre nos casos
de construção dos fatos sociais.
Como já apontamos no capítulo três, esta tese é contraditória. Kukla (2000,
p.111) mostra que podemos construir no ponto T1 do tempo o fato X0, pretendendo
que ele, a partir de T1 tenha sido sempre verdadeiro. No momento T2, posterior a T1,
a contingência da produção científica pode nos levar a construir o fato ¬X0, e isso
implicaria que ele também sempre existiu. Mas como X0 e ¬X0 podem ser
verdadeiros ao mesmo tempo? Contradição. Como afirma Kukla, se você concluir
que um dos dois fatos não pode ser construído, então existem fatos independentes.
Além desta violação do princípio da não‐contradição, que também identifica,
Boghossian (2006) aponta dois problemas. O primeiro é o que posso aqui denominar
“causação retroativa”. É um truísmo sobre a maioria dos objetos e fatos de que
falamos (como montanhas, girafas e lagos) que sua existência antecede a nossa. A
tese da construção social dos fatos implica numa bizarra forma de causalidade para
trás, onde a causa (nossa atividade) vem depois do efeito (montanhas).
194
O segundo problema ele chama de conceptual competence, e é analítico. Para
Boghossian (2006, p.39), mesmo que supuséssemos que o universo só existe enquanto
existirmos, ainda é parte do conceito mesmo de “elétron” que estas coisas que caem
sob este conceito não foram construídas por nós. De acordo com a posição padrão da
física de partículas, elétrons estão entre os blocos fundamentais da matéria. Eles
constituem os objetos que vemos e com os quais interagimos, inclusive nossos
próprios corpos, portanto não poderiam ser construídos por nós. Se nós insistimos
em afirmar que eles são construídos por nossas descrições deles, estamos não
somente afirmando algo falso, mas conceitualmente incoerente, como se não
tivéssemos compreendido o que um elétron deveria ser.
Como afirma Searle (2000), os ataques ao realismo no construtivismo social
não são motivados por argumentos, porque todos estes são “obviamente débeis”.
Para ele, estes ataques são motivados por uma vontade de potência:
Nas universidades, principalmente em várias disciplinas das ciências humanas, parte‐se do princípio de que, se um mundo real não existe, então a ciência natural repousa sobre a mesma base das ciências humanas. Ambas lidam com interpretações sociais, não com realidades independentes. Partindo desse princípio, formas de pós‐modernismo, desconstrucionismo e assim por diante são desenvolvidas com facilidade, já que foram completamente desvinculadas das enfadonhas amarras e limites de ter de enfrentar o mundo real. Se o mundo real é apenas uma invenção – uma interpretação social destinada a oprimir os elementos marginalizados da sociedade – então vamos nos livrar do mundo real e construir o mundo que queremos. Esta, acredito, é a verdadeira força psicológica em ação por trás do anti‐realismo no final do século XX. (SEARLE, 2000, p.27)
Ou ainda:
195
Se toda realidade é uma ‘construção social’, então somos nós que estamos no poder, e não o mundo. A motivação profunda para a negação do realismo não é este ou aquele argumento, mas uma vontade de potência, um desejo de controle, e um ressentimento profundo e duradouro. Esse ressentimento tem uma longa história e aumentou no final do século XX devido a um grande ressentimento e ódio em relação às ciências naturais. (SEARLE, 2000, p. 39)
Gostaria, no entanto, de me concentrar em várias consequências absurdas de
ordem prática desse disparate. Uma delas é apontada por Niiniluoto (1999, p.274). Se
é literalmente verdadeiro que os cientistas constroem os fatos que investigam e
estabelecem após longos processos de negociação social, então podemos afirmar que
o Doutor Robert Gallo é o responsável por todas as infecções causadas pelo vírus
HIV antes (já que sua existência passou a ser verdadeira somente depois de usa
construção) e depois de sua construção social (não descoberta). Também é fácil
concluirmos a partir daí que cientistas não deviam mais se dedicar a descobrir
(construir) novos vírus e bactérias, ou procurar prever terremotos, nem rastrear
asteróides candidatos a se chocar contra a Terra.
Da mesma forma, a educação se transforma em um processo de arruinar
mentes infantis. Considere‐se esta afirmação feita em livro de pedagogia brasileiro
caracteristicamente intitulado A produção do conhecimento em aula: “Um indivíduo que
vem ao mundo encontra uma realidade já construída, isto é, um conjunto de
conhecimentos estabelecidos, estruturados, institucionalizados e legitimados”
(MORETO, 2002, p.18). Não é difícil perceber porque professores atualmente tem
196
tanta dificuldade em distinguir conhecimento de realidade, assim como crença
compartilhada de verdade. Como podemos depreender do título do livro, o
conhecimento sobre a órbita de Vênus ou a estrutura química do dióxido de sódio
deve ser produzida nas salas de aulas brasileiras, sem telescópio ou laboratório
químico disponíveis. Mas provavelmente Moreto não estava pensando nisso quando
deu o título em questão. Ele estava pensando numa produção (variante de
construção) social do conhecimento, algum tipo de assembléia democrática onde os
alunos decidiriam pelo voto se a órbita de Vênus está mais próxima do sol que a
órbita de Marte. Como Catherine Fosnot, que declara que numa sala de aula regida
pela concepção construtivista (a dela): “as idéias são aceitas como verdade apenas à
medida que fazem sentido para a comunidade e, assim, alcançam o nível de ‘tidas‐
como‐partilhadas’” (FOSNOT, 1998, p.47). Podemos concluir com isso que se para
seus alunos não faz sentido que dois corpos se atraiam a distância então está
construído socialmente que isto é falso, ao menos para aquela comunidade, que
então teria sido deixada na Idade Média. Que tipo de educação é essa que não
pretende preparar o aluno para compreender e lidar melhor com uma realidade que
existe e possui uma estrutura independente de suas crenças e desejos? Não é
coincidência a educação brasileira ser, em termos relativos às verbas despendidas, a
pior do mundo, uma verdadeira fábrica de analfabetos funcionais, indigentes
matemáticos e pessoas sem traço de pensamento crítico ou abstrato.
Em pior situação fica a política. Nossos deputados e senadores parecem bem
inclinados a defender a construção social da realidade no congresso nacional. Se o
197
resultado da negociação de uma CPI for a de que nunca houve atos secretos no
senado, então eles nunca terão existido. Sokal & Bricmont (2001) narram uma história
passada na Índia, onde a “ultrapassada e autoritária” obra do Iluminismo nunca se
completou. Nela, um político foi aconselhado a entrar em seu escritório pelo portão
voltado para o leste, de forma a acabar com seus problemas. Mas um outro problema
foi gerado por esse conselho: a entrada leste estava bloqueada por uma favela. Ele,
então, mandou demolir a favela. A diferença é que nestes tempos, a esquerda não
apareceu para protestar contra a demolição, muito menos contra a superstição na
qual se baseou a ação, pois ela está infestada com este tipo de relativismo. Como
protestar contra um conhecimento, ou seja, uma crença amplamente partilhada
naquela cultura? No terceiro mundo, os políticos não hesitam em recorrer ao
conhecimento científico diante de um problema sério, afirmam Sokal & Bricmont
(2001), como uma doença potencialmente fatal, e ao mesmo tempo simulam acreditar
em superstições locais, estimulando a população a ficar presa à sua ignorância.
Mas os absurdos não param aí. Como afirma Newton (1997), se os fatos são
construídos através e durante sua investigação, podemos concluir que quando
detetives se dedicam a estabelecer a autoria de um assassinato, eles constroem a
autoria através da investigação. Assim, ao encontrar DNA de um criminoso debaixo
das unhas da vítima eles estariam construindo a autoria do crime. Ou seja, o
assassino é um constructo social, o acusado é culpado por definição da investigação e
do julgamento. Por mais cínico e desonesto intelectualmente que alguém seja, se
fosse confrontado com o problema de um assassinato do qual estivesse sendo
198
injustamente acusado, não se curvaria ao fato de que simplesmente perdeu a
negociação social em torno da questão da autoria do crime e, portanto, a partir deste
momento, passou a ser verdade que é o assassino. Desonesto intelectualmente talvez,
por simular acreditar nisso, mas assassino não: mesmo um construtivista social
ontológico não negaria nesta situação a existência de uma realidade independente e
subjacente ao ato cometido por alguém cuja identidade a polícia deveria tentar
descobrir, não construir. Não é muito mais simples assumir que as crenças
compartilhadas acerca da autoria do assassinato são construídas socialmente e em
interação com o mundo, mas a realidade da ação criminosa não?
4.5. – Um conhecimento sem verdade
A estória acima pode parecer somente um exemplo hipotético radical, mas não
é tanto assim. Sokal & Bricmont (2001, p.103‐4) narram um caso ocorrido na Bélgica
onde uma série de assassinatos de crianças causou comoção nacional e revolta pela
inépcia da polícia. Uma sessão pública, transmitida ao vivo em rede nacional, foi
convocada para examinar os erros cometidos pela investigação policial. Nela, um
policial e uma juíza foram acareados e interrogados sobre a entrega de um arquivo‐
chave, com o policial jurando ter feito a entrega à juíza e a juíza jurando jamais a ter
recebido. No dia seguinte, entrevistado por um jornal, um antropólogo afirmou que
199
não existia uma verdade única sobre o caso, apenas verdades relativas a grupos
maiores ou menores de pessoas. Portanto, concluiu ele, ambos estariam contando a
sua verdade.
Afirmar que existem “várias verdades”, por definição, implica que devem
existir “várias realidades”, o que é racionalmente inaceitável. Enquanto somente
alguns antropólogos, sociólogos e filósofos (além dos psicopatas) professarem este
tipo de relativismo selvagem, não estaremos em perigo. Mas o que aconteceria a uma
sociedade se o carteiro que entrega sua correspondência, o bancário que recebe seu
depósito e a babá que toma conta dos seus filhos passassem a acreditar, de fato, que
“verdade” é nada mais que uma crença compartilhada por um grupo maior ou
menor de pessoas? Esta crença, tomada ao pé da letra e generalizada, só poderia
conduzir ao caos e à selvageria, com grupos sociais diversos afirmando “verdades”
opostas sobre os mesmos fatos sem critério algum para decidir entre eles. Mas a
verdade, a verdade em sentido bem tradicional, é que não há ninguém que acredite
de fato nisso fora dos hospitais psiquiátricos. Não conhecemos grupos sociais que se
reúnam para construir coletivamente o fato de que voam ao se jogar do nono andar.
Isto nos leva à última crítica que pretendo aqui formular ao construtivismo
social, e que diz respeito à completa desconstrução do significado tradicional do
termo ‘conhecimento’. Desde o Teeteto até Russell, a filosofia ocidental aceitou a
definição platônica de conhecimento como “crença verdadeira justificada”. Mas o
construtivismo social ao utilizar o termo ‘conhecimento’, na verdade está se referindo
a outra coisa. Como vimos no item 3.4 desta dissertação, para o construtivismo social
200
conhecimento é “crença socialmente aceita”, uma crença tomada por certa ou
institucionalizada, ou ainda investida de autoridade por grupos de pessoas (BLOOR,
1991, p.5).
Prestando atenção nesta nova definição de conhecimento, percebemos o que
mais, além do mundo e do sujeito, foi sacrificado no altar da sociologia: a verdade. A
justificação de conhecimento não vem do crivo da lógica ou de um método especial,
mas do crivo político de um grupamento social. Que tipo de conhecimento é esse
onde o ser humano constrói suas representações unicamente através de suas
interações sociais, sem nenhuma influência diferencial vinda do contato com uma
realidade objetiva que independe tanto dele quanto dessas interações? Este
conhecimento é conhecimento de que?
A adoção do conceito de verdade como ideal regulador é uma das fronteiras
que colocam a ciência moderna e a filosofia de um lado e a sociologia construtivista
social de outro. A epistemologia tradicional faz deste conceito sua meta, seu ideal,
enquanto o programa forte da sociologia da ciência o encara como mera ficção ou
ideologia. Ao fazê‐lo, evidentemente, desemboca no relativismo, que nada mais é
que a crença de que não há verdades objetivas e universais. É o que defendem Barnes
& Bloor (1982, p. 27) em passagem já citada neste trabalho, ao afirmarem que as
crenças não se diferenciam quanto às causas de sua credibilidade, e que para o
relativista (título reivindicado por eles) a idéia de que alguns padrões ou crenças são
realmente racionais e vão além da aceitação local não tem sentido.
201
Do truísmo de que os sistemas de crenças variam de época para época, de
contexto para contexto, de um grupo social para outro, eles passam em seu
argumento non sequitur à conclusão de que nada é transcontextual, tudo se explica
pela posição de quem pensa e age. Bloor também afirma em outra obra:
It [science] does not need any ultimate metaphysical sanction to support it or make it possible. There need be no such thing as Truth, other then conjectural, relative truth, any more than there need be absolute moral standards rather than locally accepted ones. If we can live with moral relativism, we can live with cognitive relativism. (BLOOR, 1991, p. 159)
A passagem acima ilustra um erro bem comum. Relativistas costumam
confundir conhecimento e verdade. Não existe verdade conjectural, verdade é a
adequação de uma proposição a um aspecto da realidade. O que existe é
conhecimento conjectural. Mas este não é simplesmente um problema abstrato. Bloor
afirma que podemos viver tanto com o relativismo moral quanto com o relativismo
epistêmico. O problema é que não podemos viver nem com uma coisa nem com
outra, a não ser quando estas crenças são professadas por um grupo muito restrito da
sociedade. Conviver com o relativismo epistêmico e moral é fácil quando só meia
dúzia de antropólogos, sociólogos e filósofos defendem que quarks são construções
sociais, que a medicina voodoo e a ocidental tem o mesmo valor epistêmico ou que é
moralmente aceitável o apedrejamento de homossexuais e a amputação de clitóris em
alguns países mulçulmanos. Mas como já expus aqui, se este tipo de crença,
202
realmente, se espalhasse por todos os estratos da sociedade, nada poderia advir disto
que não a completa dissolução social.
É claro que os construtivistas sociais não se vêem desta forma. Eles não
pensam no princípio da reflexividade quando querem nos convencer de que, de fato,
seu empreendimento epistemológico é superior aos outros, e sua descrição da ciência
é mais próxima da realidade que as “descrições idealizadas” da filosofia da ciência.
Enquanto os construtivistas sociais negam qualquer privilégio epistemológico
especial à ciência se comparada à intuição metafísica ou à narrativa do mito, eles
reclamam implicitamente para si próprios um plano epistemológico superior a partir
do qual julgam a ciência. Mas quando isto é apontado como inconsistente, eles se
escondem atrás da mera enunciação do princípio da reflexividade. Como afirma
Niiniluoto (1999), há aqui uma dramática diferença em suas descrições da ciência em
dois níveis. Como método do sociólogo da ciência, a última é um empreendimento
implicitamente tomado como expressão de uma racionalidade natural, capaz de
obter conhecimento de nível superior (por exemplo em relação à filosofia da ciência),
à moda do velho empirismo indutivista. Mas como objeto de estudo, a ciência é um
fenômeno social, cujos métodos e conclusões sobre o mundo são relativos a interesses
sociais e causados por fatores sociais: “It seems as if Bloor is assuming the objectivity of
science in order to prove that science is not objective” (NIINILUOTO, 1999, p.254).
É a velha e banal contradição do relativismo. A ela estão condenados todos
aqueles que abandonam o conceito de verdade como ideal regulador desde
Protágoras, a quem, diga‐se de passagem, o construtivismo social não agregou muita
203
coisa nova. Afirma‐se que a verdade (não o conhecimento) tem validade limitada a
um grupamento sócio‐histórico, ou seja, que não há verdade universalmente válida,
mas esta própria afirmação é falsa analiticamente. Se definimos como verdadeira
uma asserção sobre a realidade objetiva que em sua estrutura e conteúdo reflete a
parcela da realidade à qual busca se referir, então uma verdade só existe se existe
universalmente para todos os indivíduos, uma vez que a realidade objetiva é a
mesma para todos os indivíduos.
Mas outras contradições decorrem desta curta declaração. Se a verdade tem
validade limitada a um grupamento sócio‐histórico, ou seja, se não há verdade
universalmente válida, então esta própria declaração tem sua validade limitada a um
grupo sócio‐histórico. Mas ela se pretende universal e pretende referir‐se a uma
realidade objetiva: em todos os lugares, grupos e tempos a verdade é que a verdade é
relativa a um lugar, grupo e tempo. Como coloca Thomas Nagel:
Suponhamos, para tomar um exemplo extremo, que fôssemos convidados a acreditar que nossos raciocínios lógicos, matemáticos e empíricos, constituem a manifestação de hábitos de pensamento historicamente contingentes e culturalmente localizados e que não têm maior validade para além disso. De um lado, isso aparenta ser um pensamento a respeito de como as coisas realmente são e, de outro, nega que sejamos capazes de tais pensamentos. Qualquer reivindicação radical e universal desse tipo precisaria estar apoiada num argumento poderoso, mas a própria reivindicação parece privar‐nos da capacidade para esse tipo de argumento. (NAGEL, 1998, p. 22‐23)
Ainda podemos extrair uma terceira contradição que decorre da curta
sentença que estamos considerando aqui. Se a verdade é válida somente para
204
determinado grupamento social, para o grupo R, do relativista, é fato que ¬v (não há
verdade universal). Mas eu poderia, pertencendo à mesma realidade que o grupo R,
ser membro de um grupamento social diverso do relativista, o grupo D (dogmático),
onde é fato que v (há verdade universal). Assim, se a verdade para o grupo R é que
cada grupo tem sua verdade, e se ambas as proposições sendo verdadeiras se
referem à mesma realidade, eles tem que aceitar como igualmente verdadeiro o que é
verdade para R e o que é verdade para D sobre o mesmo aspecto do mundo. Logo, R
teria que aceitar como verdadeiras as proposições ¬v (não há verdade universal) e v
(há verdade universal para aqueles que acreditam em verdade universal).
O dilema real, pragmático (além de lógico), em que um relativista está
mergulhado é resumido por Boghossian (2006) da seguinte forma: se ele afirma que
sua tese é válida universalmente, ele se auto‐refuta, e ninguém o leva a sério; se
afirma que sua tese é válida relativamente a seu grupo social, os outros não tem
motivos para considerar o que ele diz, pois não fazem parte de seu grupo social.
É claro que nenhuma destas formas de argumento é nova. De fato, elas vêm
sendo repetidos com variações desde Platão. Isso indica que há algo errado aqui, pois
é também desde Platão que os relativistas continuam as ignorando. Como observa
Kukla (2000, p.127), alguém, certamente, está sofrendo algum distúrbio psíquico. O
problema é que não sabemos quem, se os “dogmáticos” ou os relativistas.
Será que nenhum destes argumentos demonstra uma contradição? Se não, não
sei mais qual é o significado do termo. Ou talvez eles demonstrem contradições, mas
como para os construtivistas sociais a própria lógica é uma construção relativa,
205
minha preocupação com a consistência deve ser resultado da reacionária ortodoxia
coercitiva autoritária que esta disciplina (a lógica) exerce sobre a livre expressão do
pensamento (ou da falta dele). O que está acima obviamente deveria ser uma piada.
Mas não é. Kukla (2000) denomina esta consequência do construtivismo social
‘construtivismo lógico’ (o que é bastante inadequado por gerar confusão com o
intuicionismo). Se você responde a demonstração de uma contradição afirmando que
a lógica que usei no argumento é ela própria uma construção social, o resultado está
além do relativismo. O resultado é irracionalismo. Como lembra Kukla, um
irracionalista acha que as próprias regras da argumentação são negociáveis, então
quando ele está perdendo o jogo, simplesmente muda as regras. É como se ele
estivesse jogando uma partida de xadrez na qual, quando as coisas começam a ir mal,
ele pudesse, a seu turno, mudar as regras de movimento das peças: “What are you
going to acuse irrationalists of? Irrationality? The only way to defeat logical constructivists is
to shoot them.” (KUKLA, 2000, p.123)
Porque estes argumentos não parecem oferecer grandes conflitos psicológicos
para o relativista? Não é porque a maioria deles se considere irracionalista. Em meu
julgamento, é porque a maioria confunde conhecimento e verdade. Não distinguem
claramente, ao menos em seu discurso, uma crença justificada da proposição ideal
que reflete adequadamente um aspecto da realidade. Na verdade, na maioria das
vezes não acreditam nem na capacidade representativa da linguagem. Mas neste
caso, não poderiam falar em verdade. Podemos dizer que R conhece que ¬v e que D
conhece que v, sem problema aparente nenhum (embora continue a haver problema,
206
se conhecimento se define como crença verdadeira justificada); e dizer que R crê que
¬v é verdadeiro e que D crê que v é verdadeiro, finalmente, sem problema real
algum. Mas um relativista não está interessado em proposições moderadas.
O fato é que, para além da consequência lógica, o relativista acredita que sua
posição reflete uma situação objetiva, e, portanto, válida para todos os sujeitos
pensantes. A consequência prática e política é que quem não aceita sua posição é
qualificado como autoritário e reacionário, e a organização política da sociedade
sofre efeitos altamente nefastos. Uma sociedade livre e uma ciência livre, só podem
florescer onde o conceito de verdade é adotado como ideal regulador tanto em
termos morais quanto epistêmicos. A alternativa a isso é necessariamente
conhecimento baseado em tradições, onde prevalece a “verdade” do mais forte. O
construtivismo social rejeita a tese de que as teorias deveriam ser avaliadas em
termos de consistência lógica e evidência empírica. Em seu lugar, quer instaurar uma
alternativa “epistemológica” que reivindica que a cientificidade de uma teoria é
função única e exclusiva de negociações sociais entre interesses de toda ordem.
No entanto, abandonando a evidência empírica e a consistência lógica como
critérios de escolha entre teorias, o construtivismo social abre a porta para a aceitação
de jogos de poder e intimidação política como mecanismos inerentes à ciência, como,
aliás, já o tinha feito Feyerabend. Ao rejeitar os conceitos tradicionais de
conhecimento e verdade, o construtivismo social converte a ciência em política,
inaugurando uma forma de justificação de crenças muito mais autoritária do que
qualquer coisa que pudessem denominar ‘objetivismo’. É evidente que quando
207
adotamos uma teoria o fazemos porque a julgamos preferível à outra. À que, no
entanto, podem os construtivistas sociais recorrer para alegar a superioridade
intelectual de sua abordagem? À política? Ao poder? À propaganda? À força bruta?
Para esta “epistemologia social” uma teoria não precisa ser sequer internamente
consistente, precisa somente ser aceita por uma comunidade científica. Assim, uma
comunidade científica que sirva a certos interesses políticos pode afirmar como
proposições científicas teorias sem nenhum compromisso com a lógica ou a validade
empírica.
Mas nada disso importa, para eles, não há verdade, e para alguns, até a
realidade é construção social. Como coloca Slezak sobre o livro de Latour & Woolgar:
A measure of the perversity of this work is the fact that in the new edition of their book, Latour and Woolgar tell us that laboratory studies such as their own should, after all, not be understood as providing a closer look at the actual production of science at the workbench, as everyone had thought. This view would be “both arrogant and misleading”, and would presume they had some “privileged access to the ‘real truth’ about science” which emerged from a more detailed observation of the technical practices. Instead, Latour and Woolgar explain that their work “recognizes itself as the construction of fictions about fiction constructions”. (SLEZAK, 2000, p.26‐27)
208
Conclusão
As conclusões a que esta investigação chegou quanto aos dois problemas
principais investigados foram que o construtivismo social não é parte da tradição
construtivista da filosofia ocidental, e que também não é formulado, nem como
metaciência consistente, nem sequer como ciência consistente.
A tese de que o construtivismo social não é um construtivismo foi sustentada
em primeiro lugar por um trabalho de definição das teses centrais desta abordagem
filosófica. No segundo capítulo foram avaliados os principais usos contemporâneos
do termo, através da apresentação das teses centrais do construtivismo kantiano,
construtivismo piagetiano, construtivismo radical, construcionismo social,
socioconstrutivismo e construtivismo lógico. Foram estabelecidas as posições destas
abordagens em relação a três questões. Uma ontológica: Q1) Existem objetos
independentes da mente humana? E duas epistemológicas: Q2) É possível conhecer
algo sobre os objetos que existem independentemente da mente?; e Q3) Qual é a
relação entre o sujeito e o objeto do conhecimento?
209
Assim os diferentes construtivismos foram classificados em relação a suas
respostas às questões Q1 (realistas ou idealistas), Q2 (dogmáticos, criticistas ou
céticos) e Q3 (objetivistas e construtivistas). Buscou‐se fundamentar a hipótese de
que grande parte da confusão que cerca a utilização do termo ‘construtivismo’ é
devida à utilização dos termos ‘realismo’ e ‘idealismo’ em sentido epistemológico (é
possível ou não o conhecimento acerca de objetos reais).
Ao recapitular as posições construtivistas apresentadas, estabeleci que se pode
definir o construtivismo como uma abordagem epistemológica, e não ontológica,
pois o que o caracteriza não é a posição acerca da natureza do objeto do
conhecimento, e sim a posição acerca do processo de obtenção do conhecimento. Esta
abordagem epistemológica é resumida essencialmente pelas teses:
a) As representações (intuições sensíveis) que temos da realidade são
condicionadas pela estrutura de nossa mente, e construídas por ela;
b) num segundo nível, as hipóteses que construímos sobre como o objeto
funciona podem ser alteradas e substituídas voluntariamente tão logo a sucessão de
intuições sensíveis que esperávamos não se manifestem e, portanto, as hipóteses em
questão se revelem inadaptadas ao objeto;
c) O objetivismo é uma tese equivocada, pois o objeto não determina em um
sujeito supostamente passivo as representações que este tem dele;
Conclui também a dissertação que, em se tratando de tese epistemológica, o
construtivismo se divide em vertentes ontológicas realistas e idealistas, pois não
assume posição unitária acerca da natureza do objeto do conhecimento.
210
No terceiro capítulo, foram apresentadas as principais teses do construtivismo
social, com especial ênfase às ontológicas e às epistemológicas, e ficou estabelecido o
que pode ser dito de consensual e o que há de divergência entre as correntes e
principais proponentes deste movimento. Foram apresentadas igualmente algumas
idéias de Wittgenstein, Kuhn e Feyerabend que julgo terem tido influência
fundamental na configuração filosófica da abordagem aqui criticamente analisada.
Em relação à Q1 do segundo capítulo, concluímos que quando a resposta dada
por alguns membros da abordagem é a de que os próprios fatos são construídos, se
está diante de uma cisão irremediável no movimento, só restando como identidade
comum algumas posições epistemológicas fortemente heterodoxas. Podemos
pragmaticamente dividir a abordagem em duas grandes linhas, que denominei
construtivismo social epistemológico e construtivismo social ontológico. A primeira é
cética em relação ao conhecimento do mundo empírico. A segunda é de fato
idealista, muito embora, trate‐se de um caso muito especial e inconsistente de
idealismo sem sujeito.
Aqui também, a hipótese defendida no capítulo dois se mostrou coerente com
o resultado da pesquisa: a definição de construtivismo como tese epistemológica e
não ontológica também se estende a esta abordagem auto‐alegada construtivista.
Tanto posições realistas quanto idealistas podem ser encontradas em alegações de
construtivismo social, o que, portanto, não o define como movimento.
O que define o construtivismo social são suas teses epistemológicas, como
vimos no item 3.4. Neste item foi estabelecido que o construtivismo social como um
211
todo dá a resposta cética à Q2, e que defende tese de que não há praticamente papel
algum reservado ao sujeito no processo de construção do conhecimento, o que
fundamenta uma das hipóteses deste trabalho de que a abordagem não é, estrito
senso, construtivista.
Como apresentado, o construtivismo social pode se apresentar em sua forma
realista (CSE) ou idealista (CSO) em ontologia, mas como um todo é cético e
objetivista em suas teses epistemológicas. Só que seu ceticismo toma a forma de
relativismo, e seu objetivismo é uma bizarra variante de objetivismo sem mundo
natural, onde o objeto em questão é a sociedade.
Com base nisso, o construtivismo social foi criticado seguindo‐se cinco linhas
de argumento. As duas primeiras fundamentam a resposta dada por este trabalho
quanto à consistência do projeto do strong programme (projeto sociológico berço da
abordagem filosófica do construtivismo social) de ser a metaciência fundamental.
A primeira crítica é a de que ele não é nada além de uma versão sociológica da
Nova Filosofia da Ciência e de algumas idéias de Wittgenstein, totalmente
dependente de teses heterodoxas geradas em debates internos à filosofia da ciência
que ele afirma substituir, apesar de apresentar‐se como uma metaciência proposta
como uma ciência empírica da ciência. Pode, nesse particular, ser visto como uma
versão pós‐moderna do velho cientificismo positivista.
A segunda crítica, que pretendo original e complementa o argumento da
inconsistência deste projeto sociologista, é a de que a afirmação do construtivismo
social de que sua abordagem é uma investigação científica da ciência é falsa, uma vez
212
que não usa os métodos da ciência que estuda para investigá‐la. A utilização de
métodos idiográficos é estranha às ciências naturais, e não habilita cientificamente o
investigador a estabelecer relações de causa e efeito com poder preditivo. O método
que garante à ciência moderna seu elevado poder para estabelecer relações causais é
o experimental, e qualquer alegação de estabelecimento científico de leis causais com
poder preditivo não pode prescindir do teste com base em experimentos.
A terceira linha de argumentação, também com pretensões de originalidade, é
a de que o construtivismo social em hipótese nenhuma é um construtivismo, uma
vez que reserva à mente humana um papel passivo em relação à sociedade, que a
constrói e constitui. O construtivismo social rejeita todas as três teses filosóficas que
caracterizam o construtivismo, e usa a metáfora da construção fora do sentido
tradicional do termo que pede por um sujeito que constrói e não que é formado.
A quarta crítica geral chama a atenção para o absurdo de se considerar que o
mundo empírico não faz diferença para a escolha das crenças científicas, assim como
para as consequências inusitadas de se sustentar tal tese. Fundamentalmente, o
problema fundamental com ela é explicar como a ciência pode ser tão eficiente em
prever a sucessão de nossas experiências em determinadas situações.
Por fim, a dissertação alerta sobre a ressurreição do relativismo e o abandono
da verdade como ideal regulador, apesar das banais contradições desta tese e de sua
evidente e inevitável ligação com a dissolução de padrões éticos e epistemológicos na
sociedade.
213
Diante de tantas inconsistências, o leitor poderia estar se perguntando
justamente porque alguém deveria perder tempo estudando e dissertando sobre o
construtivismo social. Eu particularmente apresento quatro motivos. O primeiro é
que, a despeito da severidade das críticas que se possa fazer a suas teses filosóficas,
vários dos estudos de casos promovidos pela sociologia da ciência são relevantes, e
ajudam a lançar luz sobre os fatores extra‐racionais que influem de fato (e não
deveriam influir) na disputa entre teorias científicas. O segundo é que inconsistências
têm que ser expostas, caso contrário continuam despercebidas por incautos. O
terceiro é que o construtivismo, como um todo, é uma das abordagens filosóficas
mais importantes e influentes de nosso tempo, e está sendo confundido e denegrido
com a falsa alegação do construtivismo social de fazer parte dessa tradição filosófica.
Por fim, é que nossas escolas e faculdades de pedagogia estão infestadas com essas
teses algumas vezes confusas, outras absurdas e em certos casos, irracionais. O
esclarecimento desta confusão entre as várias alegações de construtivismo é vital
para a distinção de teses piagetianas e vygotskyanas das concepções sociologistas
que (des)norteiam várias das teorias pedagógicas populares no terceiro mundo.
É claro que a preocupação não é defender a ciência moderna. O impacto do
construtivismo social no prestígio social e nas práticas metodológicas reais da física,
química e biologia é equivalente ao impacto de uma mosca contra uma parede de
concreto: devastador, para a mosca. O físico Alan Sokal (1996) ficou mundialmente
famoso por humilhar o construtivismo social e boa parte da filosofia francesa
contemporânea através de uma paródia de artigo, intitulado Transgressing the
214
boundaries: Toward a transformative hermeneutics of quantum gravity, submetido ao
periódico Social Text, bíblia dos social studies. Se o título é ridículo, o artigo é um
aglomerado de frases sem sentido, argumentos non sequitur e citações de
“autoridades” pós‐modernas. É uma peça humorística cínica e refinada, misturando
física contemporânea e matemática com as afirmações absurdas que construtivistas
sociais e filósofos, geralmente franceses, fazem utilizando os termos destas ciências.
Mas apesar disso, o artigo não só foi aceito como publicado numa edição especial da
revista, acompanhado de loas dos editores à entrada da física na era pós‐moderna.
Publicado, Sokal revelou a piada.
Este evento não marcou a refutação do construtivismo social ou o descarte da
filosofia francesa contemporânea. Ele só mostrou a todos o nível de impostura
linguística, filosófica e científica ao qual chegamos. Ele mostrou que o rei estava nu,
há muito tempo. Da mesma forma, nenhuma obra que possa ser escrita será capaz de
fazer a maioria dos construtivistas sociais mudarem de opinião, pelo menos,
publicamente. A questão não é racional, é política. A maioria sofre de um distúrbio
comportamental que Kukla (2000, p.123) denominou ‘Montypythonesque logic’, que
consiste na única regra de negar o que quer que seu oponente diga. Se alguém diz
que eles afirmaram que x é ¬x, eles afirmam “não, não afirmei”. Mostrando‐se o
texto, eles dizem “não era isso que quis dizer, era y”. Se alguém afirma então “mas y
é contraditório”, eles afirmam “não, não é”, e assim indefinidamente.
A caravana da ciência moderna vai continuar a passar porque, a despeito do
avanço do relativismo e do irracionalismo em alguns círculos, ela é a cada dia
215
praticada com um otimismo epistemológico maior, ancorada em resultados
espetaculares acumulados nos últimos trezentos anos. A diferença abissal entre o
otimismo e a reputação epistêmica da ciência entre a população e os próprios
cientistas, e o pessimismo epistemológico dos sociólogos e de certos filósofos, só
serve para ilustrar mais uma vez a enorme alienação destes últimos. No negócio
científico das explicações causais, seu fracasso é completo.
O sucesso da dessa nova sociologia da ciência é político‐acadêmico, não
científico. Isto se dá como apontou Searle (2000) porque a idéia de que tudo é uma
construção social, de que não existe mundo real, é libertadora para muitos,
fornecendo um discurso para a racionalização do ódio e rancor em relação às ciências
naturais. Entre estes se encontram todo um conjunto de praticantes de disciplinas
imaturas cientificamente e relegadas a um segundo plano acadêmico e social, como a
antropologia, a sociologia e a análise literária. Cavalgando os instrumentos retóricos
do construtivismo social muitos se lançam numa cruzada para minar o poder social
dos cientistas naturais e fortalecer o próprio.
Mas não só setores da academia bebem desta fonte. Boghossian (2006) lembra
que o medo do conhecimento é natural em culturas minoritárias que defendem teses
ou crenças míticas que a ciência revela falsas. Movimentos políticos pós‐colonialistas,
nacionalistas e fundamentalistas, assim como o multiculturalismo, encontram no
construtivismo social recursos para proteger culturas “oprimidas” pela razão e a
ciência. Como afirmou Hacking (1999, p.67), “What is true is that many science‐haters
216
and know‐nothings latch on to constructionism as vindicating their impotent hostility to the
sciences. Constructivism provides a voice for that rage against reason”.
Além disso, um tipo de desejo muito ancestral se manifesta de novo através
das teses do construtivismo social. É o desejo de não ser responsável sequer pela
própria mente e pelas próprias crenças. É o desejo de se livrar daquilo que para
alguns é um verdadeiro flagelo: a responsabilidade pessoal. Isso é buscado através
da adesão ao mesmo tipo de crença defendida por Trasímaco na República, com a
diferença que o valor em questão agora não é só o da justiça, mas o da verdade. E
verdade, para estas pessoas, é o que aqueles que interessam dizem que é verdade.
O relativismo é um dogmatismo de um dogma só. Mais ainda, ele é o mais
primário e estreito dos dogmatismos, pois elimina até a possibilidade de se aderir a
novos dogmas. Como disse Alain, nada é mais perigoso que uma idéia, quando só se
tem uma idéia. Quando aqueles que só têm uma idéia, falsa, repetida para tudo, são
acadêmicos, professores e pedagogos, o perigo para o futuro de uma sociedade
aumenta exponencialmente.
Minha esperança é que este trabalho e os frutos que dele ainda possa vir a
espalhar dêem uma pequena contribuição para o esclarecimento e o resgate da
respeitabilidade do termo ‘construtivismo’, assim como para a evidenciação de
inconsistências nas teses defendidas por esta forma pós‐moderna de objetivismo e
cientificismo, que usa a denominação de ‘construtivismo social’.
217
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