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CORPOREIDADE E VELHICE: CONSIDERAÇÕES E IMPLICAÇÕES
Já premido por seu pulso Quero romper com meu corpo, quero
de inquebrantável rigor, enfrentá-lo, acusá-lo, por abolir minha
não mais que dantes era: essência, mas ele sequer me escuta e
com volúpia dirigida, Vai pelo rumo oposto.
saio a bailar com meu corpo.
Carlos Drummond de Andrade, poeta que sempre dedicou especial atenção ao corpo
(há predominância de erotismo nas últimas obras), em As Contradições do Corpo, tematiza,
como indica o título, o confronto entre a aparência e a essência, o conflito entre o desejo e o
instinto, a tensão entre interior e exterior, o embate entre prazer e dor. Em outras palavras,
permite refletir com intensidade sobre questões referentes à estrutura humana, que
dialeticamente reúne na intencionalidade, a corporeidade, sua relação com o mundo, o
sujeito e o objeto e, principalmente, o sentido da existência e a significação da expressão
viva da presença expressiva, do ato que comunica, do movimento que se transforma em
linguagem.
O poeta sugere a todos uma reflexão a respeito da exacerbada importância que a boa
e sensual aparência, a imagem pessoal ocupa nesse tempo (soma de paradoxos) atual que,
indubitavelmente, supervaloriza as imagens. Transmite a concepção de corporeidade
vinculada à idéia de transcendência, indivisibilidade (construção de um EU uno),
espacialidade, temporalidade, enfim, de totalidade humana. É nessa visão unificadora do
homem que a Educação Física deve fortalecer seus ideais educacionais, a fim de garantir a
vivência plena da corporeidade inserida na totalidade da existência humana.
Pretende-se, nesse momento, após a reflexão sobre o corpo no processo histórico e
filosófico, bem como sobre as relações de poder e interesses que legitimam projetos
econômicos e políticos que ocorrem na sociedade e que irão influenciar o seu significado,
abordar a questão do corpo como construção cultural, resultante das relações do homem em
um determinado contexto social. Nesse contexto o homem interage de forma dinâmica e
recíproca, visto que ao mesmo tempo em que atua na realidade, transformando-a, esta
exerce decisiva influência sobre ele. Os determinismos culturais ditam normas e fixam
ideais nas dimensões intelectuais, afetiva, moral e física. Esses ideais indicam à educação o
que deve ser atingido no processo de socialização (representação social).
Na trajetória histórica da humanidade, os fatos demonstram, por um lado, que o
corpo foi sempre um objeto de exaustiva atenção e fascinação, tendo sido adornado,
acarinhado, e, às vezes, na busca de idéias mais elevadas, mutilado ou debilitado
(Giddens, 1993, p.42), isto é, foi interpretado desde como carne pecadora até como espírito
divino. Por outro lado, existia a intenção clara e objetiva de sempre desprezar o corpo,
violentá-lo, marginalizá-lo, como um objeto desprezível que não poderia aproximar-se das
realidades justas, nem perfeitas. O corpo, na verdade, sempre foi uma ameaça ao poder do
próprio homem, pois ele é a concretude da existência temporal e espacial e exerce papel
fundamental na percepção e no contato com o mundo. É por meio do corpo que todas as
manifestações (desejos, anseios e necessidades) são apreendidas pelos outros. Ele é a força
expressiva da capacidade de interagir com o mundo, no sentido de transcender os limites
extrinsecamente articulados, cuja intenção é manter o controle social.
É importante, pois, que se estude o corpo/movimento na sua cultura, já que o
mesmo não possui uma linguagem única, mas utiliza diferentes formas comunicativas que
vão concretizar sua vida e as suas formas de comportar-se corporalmente. A Educação
Física, nesse sentido, para poder lidar com essas diferentes linguagens corporais, segundo
Bruhns (1995), precisa compreender e construir conhecimentos sobre a essência cultural
dessas diferentes linguagens, que se manifestam de diversas formas. Assim, a Educação
Física repensada para cultivar e cultuar a corporeidade, conforme Santin (1993), precisará
inspirar-se no impulso sensível, na harmonia musical, nos ideais de beleza e nos valores
estéticos, livres de qualquer coerção e valorizando ao máximo o movimento espontâneo e
criativo (p.68).
As idéias sobre o corpo foram modificando-se, decisivamente, a partir dos
conhecimentos advindos das ciências modernas. Na verdade, elas não se preocuparam
diretamente com o corpo, visto que, para os homens, foram apenas transferidos os
conhecimentos obtidos em estudos experimentais com animais. A princípio, o modelo de
corpo era fornecido pela ciência dominante, que era a mecânica, e, como conseqüência, o
corpo humano passou a ser visualizado como máquina. Em seguida, com o surgimento das
chamadas ciências da vida (biologia e suas especialidades), o corpo deixa sua visão
maquínica e passa a ser pensado como ser orgânico, capaz de realizar e garantir, por sua
própria especificidade e função, a sobrevivência do homem.
Assim, por muito tempo, o corpo foi estudado como organismo vivo, como coisa
fragmentada, passando a ser um objeto submetido ao controle e à manipulação científica.
Submetido a rígidos modelos teóricos (esquema cartesiano), os dados eram coletados
mediante testes padronizados, e seus resultados eram codificados em categorias numéricas
que sugerem a descrição dos sujeitos através de um perfil prescrito em tabelas de
correlação. Essa abordagem se preocupa em servir-se de hipóteses explicativas dos fatos,
utilizando-se de operações lógicas universalmente aceitas (Kunz, 1991), desconsiderando,
assim, as possíveis variáveis em torno do fenômeno. Com isso, ao reduzir o objeto
pesquisado, nega também suas relações com o meio social. Siebert (1995) complementa
afirmando que as pesquisas empírico-analíticas, utilizando-se de princípios das ciências
exatas e naturais, tentam aplicá-las às ciências humanas, abordando o particular e único,
em favor do generalizável e reaplicável (p.23).
A física moderna foi utilizada para explicar o corpo do homem anatômica e
fisiologicamente movido pela ação da causalidade eficiente, como uma máquina que
produz efeito por si só, sem a ação direta do desejo, da vontade (Chauí, 1987). Essa
concepção mecanicista do mundo continua fundamentando a maioria das ciências,
exercendo decisiva influência nas diferentes dimensões da vida.
A ciência, de forma sistêmica, tenta tudo explicar e, assim, torna-se legitimadora da
racionalidade, negando todas as questões relacionadas à subjetividade por considerar não-
científico tudo o que não se pode demonstrar/comprovar sistemicamente. Essa sede
deliberada pelo controle racional e o aviltamento do mundo sensível tornaram a vida
empobrecida. A imagem fisicalista do positivismo empobreceu o mundo humano e, em seu
absoluto exclusivismo, deformou a realidade: reduziu o mundo real a uma única dimensão
e sob um único aspecto, à dimensão da extensão e das relações quantitativas (Kosik, 1985,
p.24). O universo físico reduzido apenas a elementos mensuráveis, como quer o
pensamento científico, dificulta a compreensão do homem, das dinâmicas qualitativas e
sensíveis do mundo natural.
Segundo Santin (1993), pode-se aceitar que o universo seja uma máquina cujo
funcionamento pode ser analisado ou descrito a partir da razão lógico-matemática, mas que
a dinâmica dos seres vivos e, de modo muito particular, os mistérios da vida humana
possam ser tratados da mesma maneira torna-se muito difícil de ser admitido, caso se
queira preservar o fato humano (p.57).
Essa maneira positivista de ver o homem e o seu corpo, imersa numa situação
concreta e histórica, teve grande influência na Educação Física, que passou a utilizar os
conhecimentos médico-científicos como a bioquímica e a biomecânica com intenção de
sempre aprimorar o rendimento e a performance dos atletas. O comportamento do
indivíduo, nesse sentido, é entendido como produto do treinamento que pode ser medido,
previsto e controlado, dentro do modelo positivista de produção do conhecimento. Esse
modelo acaba por determinar a concepção mecanicista da vida em relação à saúde e às
prescrições de exercícios físicos aconselhados para a melhoria da qualidade de vida dos
indivíduos. A qualidade de vida pensada dessa forma está diretamente relacionada às
questões biologicizadas do corpo em termos de saúde (bem-estar físico) ou em termos de
expectativa de vida prolongada. Nesse sentido, vale lembrar a situação dos idosos, que
atualmente vivem por mais tempo, mas não necessariamente com qualidade de vida. De
que vale viver por mais tempo sem poder viver os prazeres que a vida oferece? Se para
aproveitar o tempo livre precisa-se de rendimentos, como poderão os velhos viverem esse
tempo? E o lugar da ludicidade, do divertimento?
O que vem ocorrendo na atualidade é o desdobramento do corpo em diferentes
corpos. É a dicotomia estabelecida entre o corpo que pensa e o corpo que faz, na tentativa
de simplificar e clarear os fenômenos. Por um lado, está o corpo biológico (composto por
células, hormônios, neurônios, moléculas de DNA), que na aparência demonstra desgaste,
que sofre involução, aquele corpo que a ciência concebe como uma somatória de órgãos e
funções e confronta o sujeito com um interior feito de pedaços sobre o qual ele nada sabe.
Os destinos do corpo, nesse caso, se situam fora dos desejos, das sensações, das
percepções. Por outro lado, encontra-se o outro corpo, veículo e origem de prazer,
instrumento do sensível que sempre pode evoluir na procura de satisfação. É um corpo
carregado de subjetividade feita de representação, imaginação, simbolização. Este deverá
ser incentivado a sentir, a se sensibilizar com a aproximação do outro, com a interação
entre pares, com o convívio natural e gradual com o meio (corpo social).
Essa posição adotada pelas ciências ilumina certas vias de entendimento de um dado
fenômeno (menos tangível), mas, por outro lado, uma compreensão real e total da realidade
humana fica comprometida e, como conseqüência, tem-se uma consciência fragmentada de
corpo. É preciso promover a dissolução da dicotomia impregnada em nossa civilização para
a compreensão do corpo como uma totalidade de tudo aquilo que o homem vê, percebe,
sente, vive em relação aos significados que se configuram na circularidade das vivências
como experiência de vida.
Ao longo de todo o tempo, na evolução histórica do processo de civilização, os
homens se habituaram, tanto pela crença religiosa, como pela ciência, pelo chamado
pensamento ocidental, a estabelecer uma diferença entre a alma e corpo, matéria e espírito,
relacionando-os de modo hierárquico e com supremacia do espírito. Desse modo, pelos
resquícios da educação autoritária, religiosa e familiar que ensinou aos homens a melhor
maneira de se comportar para que sejam aceitos na sociedade, os indivíduos são levados a
negar sua própria natureza humana de ter desejo e prazer. A incorporação do hábito faz
com que os homens neguem em si o que não pode ser revelado para o social. O controle
exterior transformou-se em autocontrole. O comportamento é desvinculado do meio no qual
ele se manifesta e é produzido. O sujeito reduz-se a um mero executor de movimentos
padronizados e o corpo é visto, analisado e compreendido como objeto que deve ser
regulado, manipulado, disciplinado, com normatização do prazer, com objetivos explícitos
de obter corpos obedientes e produtivos observando o máximo de rapidez e o máximo de
eficácia.
Foucault teve grande preocupação em estudar questões referentes ao corpo, bem
como as interferências socioculturais que ele sofre. O autor analisa o poder (coisa
enigmática, ao mesmo tempo visível, presente e oculta, investida em toda parte) em sua
positividade, como relação constituinte de determinadas ações e formas de expressão
corporal, e não apenas como algo que normatiza, reprime e nega.
O desenvolvimento das pesquisas desse autor contribuiu de forma decisiva na
compreensão do corpo numa visão privada e também histórica. Partindo dessas análises,
fica evidente que cada gesto, por mais simples e óbvio que seja, assim como os cuidados
corporais criados pela medicina ou mesmo pela própria moda, são historicamente datados.
Assim, pode-se perceber que os desejos e os sentimentos e a possibilidade de se sentir
sujeito do próprio corpo não podem transcender os valores determinantes da conduta
humana. Essas dimensões deixam de ter seu caráter natural e espontâneo, em função do
poder e do saber cultural.
Foucault (1987) afirma que muitas culturas e civilizações tradicionais fomentaram
as artes da sensibilidade erótica, mas apenas a sociedade ocidental desenvolveu uma ciência
corporal com intenção de produzir discursos sobre o corpo com enfoque na sexualidade.
Para isso, criou um sistema único de verdade1 (característico da modernidade) sobre o
corpo baseado em conhecimentos da área médica, da demografia e da pedagogia. A
confissão, nesse sistema de verdade, passou a ser um dos rituais mais importantes para
homens e mulheres livrarem o corpo de qualquer desvio de conduta (pecado) que pudesse
comprometer a sociedade. Segundo o próprio autor, foi a igreja, na Contra-Reforma que
decidiu implementar a prática da confissão regular, intensificando o processo doutrinário,
tanto de atos e pensamentos, como de fantasias e desejos. Nesse pensamento, todos os
detalhes relativos ao sexo deveriam ser examinados, construindo, assim, a preocupação
moderna – o desejo sexual.
Para Foucault (1979) o poder disciplinar exerce um controle minucioso das
operações do corpo. Ele o realiza através da elaboração temporal do ato, da correlação de
um gesto específico com o corpo que o produz e, finalmente, através da articulação do
corpo com o objeto a ser manipulado. Pode-se dizer, assim, que a disciplina mantém poder
e este é utilizado para manutenção e dominação. Essa forma de poder, diferente, do poder
exercido pelo Estado (mas a ele articulado) é denunciada pelo autor, como também o modo
de produção capitalista, que, perversamente, oprime os corpos por meio do poder
disciplinar.
Foucault (1977) demonstra nos escritos para o século XVII como essa forma
específica de poder era exercida sobre os corpos no período clássico, nos mais diversos
estabelecimentos sociais, como escolas, hospitais, prisões, fabricas, quartéis, com o
objetivo de controlá-los, sujeitá-los e, de forma coercitiva, impor-se sobre o espaço e o
tempo, estipulando os regulamentos para o comportamento corporal. O poder disciplinar,
para o autor, fabrica assim,
1 Por verdade Foucault (1979) não quer dizer o conjunto das coisas verdadeiras a descobrir ou
fazer aceitar, mas o conjunto de regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos específicos de poder, entendendo-se que não se trata de um combate em favor da verdade, mas em torno do estatuto da verdade e do papel econômico-político que ela desempenha (p.13). A verdade, para o autor, deve ser entendida como um conjunto de procedimentos regulados para a produção, a lei, a repartição, a circulação e o funcionamento dos enunciados. A verdade está circularmente ligada a sistemas de poder, que a produzem e a apoiam, e a efeitos que ela induz e que a reproduzem. Regime de verdade (ibid.).
corpos submissos e exercitados, corpos ’dóceis’. A disciplina aumenta
as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas
mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em uma palavra: ela
dissocia o poder do corpo, faz dele por um lado ‘aptidão’, uma ‘capacidade’ que
ela procura aumentar; e inverte por outro lado a energia, a potência que poderia
resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita. Se a exploração
econômica separa a força e o produto do trabalho, digamos que a coerção
disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e
uma dominação acentuada (p.127).
Esse controle disciplinar era operado mais sobre o processo de atividades do que
sobre seus resultados. O corpo não era tratado como uma unidade indissociável, ao
contrário, era visto como coisa mecânica, do qual, por meio do movimento corporal
sistematizado, deves-se-ia obter o maior rendimento econômico, eficácia e organização
interna. Não é difícil perceber que o protótipo do homem cartesiano poderia ser enquadrado
como homem-máquina, descrito anátomo-fisiologicamente em seus mínimos detalhes e
controlado técnica e politicamente por um número desmedido de padrões reguladores da
ação desses corpos.
Assim, o corpo visto e vivido como máquina é freqüentemente violentado em suas
múltiplas possibilidades de produzir uma subjetividade mais rica e potencializadora da
vida. As atividades do homem dominado pelo sistema se restringem a algumas ações
padronizadas e socialmente reconhecidas como experiências morais, éticas e culturais
pertinentes. Esse poder disciplinar sobre o corpo revela o caráter controlador das reações
afetivas que podem fluir dos movimentos espontâneos e da potencialidade criativa dos
indivíduos.
Os “corpos dóceis” recebiam, em nome da utilidade e do dever com a nação, uma
disciplina, que metodologicamente os condicionava para a manutenção da força, noção
minuciosa do espaço, controle do tempo e, certamente, o controle do seu tempo no espaço.
A dominação dos corpos, diferentemente da escravidão, se fundamenta numa relação de
apropriação explícita dos corpos, enquanto aquela é sutil. O objetivo dessa forma de poder
é tornar os homens eficientes como força de trabalho, utilizando ao máximo suas forças em
termos de utilidade econômica, o que serve à manutenção e expansão do sistema
capitalista, e, ao mesmo tempo, diminuindo sua capacidade de revolta e resistência,
tornando-os dóceis em termos políticos (Gonçalves, 1994, p.24).
Para Foucault (1979), em todas as instâncias a sociedade exerce poder através de
valores históricos e culturais determinantes de condutas e comportamentos e, ainda, através
de sistemas de submissão, produzindo indivíduos alienados que interagem e relacionam-se
num sistema hierarquizado. Esse poder controlador do comportamento está fixado em
valores e habilidades prescritas em modelos sistêmicos e objetivos. O homem passa a
subjetivar-se como ser de produção, sendo o corpo seu instrumento principal. Cada
indivíduo internaliza essa doutrina disciplinar e passa por todas as etapas do curso de vida,
punindo e vigiando a si próprio, com um sentimento de culpa, caso fuja ao controle. Por
outro lado, se se permite o si-mesmo que escapa a se revelar, poderia apresentar em nossa
integridade, sem fragmentos, sem máscaras, pois na atualidade a alma moderna aprisiona o
corpo e aponta a forma correta de atuação como devir corporal. Assim, o autor aborda o
assunto:
Esta alma real e incorpórea não é absolutamente substância; é o elemento
onde se articulam os efeitos de um certo tipo de poder e a referência de um saber, a
engrenagem pela qual as relações de poder dão lugar a um saber possível, e o saber
reconduz e reforça os efeitos do poder. Sobre essa realidade – referência, vários
conceitos foram construídos e campos de análises foram demarcados: psique,
subjetividade, personalidade, consciência, etc,; sobre ela técnicas e discursos científicos
foram edificados; a partir dela, valorizaram-se as reivindicações morais do
humanismo. Mas não devemos nos enganar: a alma, a ilusão dos teólogos, não foi
substituída por um homem real, objeto de saber, de reflexão filosófica ou de intervenção
técnica. O homem de que nos falam e que nos convidam a liberar já é em si mesmo o
efeito de uma sujeição bem mais profunda que ele. Uma “alma” o habita e o leva a
existência, que é ela mesma uma peça no domínio exercido pelo poder sobre o corpo. A
alma, efeito e instrumento de uma anatomia política; a alma, prisão do corpo (p.31-32).
Em Vigiar e Punir, Focault descreve o surgimento das técnicas de confissão como
um dos mecanismos que operou o deslocamento do limiar de individuação na modernidade.
Esses corpos dóceis, ao longo da história, foram aprendendo, por intermédio de brutais
adestramentos, a não valorizar a sua natureza, visualizando-a como algo negativo,
distanciado do bem e do justo, interiorizando essa constante vigilância. As formas
específicas de comportar-se são incorporadas pelos indivíduos e se transformam em hábitos
(apagamento da origem do gesto), configurando-se assim em atitudes e comportamentos
viáveis e ações necessárias para manutenção da vida em sociedade.
Para Marilena Chauí (1990), esse conjunto de normas, valores, permissões e
imposições é histórica e culturalmente estabelecido para manter e controlar os homens e
essas proibições são interiorizadas a partir de vivências sociais e educacionais. Por outro
lado, essas proibições podem ser refutadas, porque, quando transgredidas, são
acompanhadas de sentimento de dor, sofrimento e, fundamentalmente, culpa que desejamos
ocultar.
O discurso da Educação Física que trata o comportamento humano dentro de
padrões de rendimento e performance, aproximando-o ao padrão ideal, desconsidera a
essência do movimento em detrimento da mera repetição mecânica dos exercícios físicos,
não permitindo, dessa forma, que a dinâmica totalizadora e aberta da relação dialética do
homem com seu mundo, que a cada momento se redefine e se estrutura, se efetive de forma
natural. Essa visão esquece que, criando-se o hábito, apaga-se a memória histórica, a
cultura do corpo, a tradição do movimento, sua expressividade, a linguagem e sua
liberdade. Essa via de adequação dos instintos do homem para conviver em sociedade é
fundamentada em princípios antiéticos, na medida em que o corpo não é o meio e nem
deverá ser considerado como tal para atingir um fim.
O aparato produtivo, com seu caráter totalitário, além de determinar os
comportamentos, atitudes e habilidades, também determina as necessidades e aspirações
dos indivíduos. Segundo Gonçalves (1994), as falsas necessidades (necessidades
produzidas pela sociedade e que fogem ao controle do indivíduo), que passam a integrar a
estrutura da personalidade, perdendo suas raízes históricas, garantem a permanência do
trabalho alienado e geram a violência e a miséria (p.26). Usar o corpo humano como um
meio para se atingir um fim (produção) não foi uma tarefa tão difícil, já que este, como
colocado anteriormente, foi adestrado ao longo de sua história, suprimindo seus desejos,
suas emoções e sua espontaneidade em nome da civilização.
Quanto mais se aproxima do final o século XIX, mais o corpo funcional vai se
associando às necessidades de ser rentável e produtivo. Médicos, moralistas, empresários,
entre outros, vão convocar homens e mulheres de todas as classes sociais, para
aumentarem, custe o que custar, as suas forças, ou seja, incrementar os graus de energia
corporal, a ponto de torná-los competentes, hábeis e eficazes. No século XX, as
proposições deliberadas no século anterior ganham força e com persistência formulam
ideais de corpo - uma máquina de funcionalidade ímpar e de produção rentável, ou seja,
extraordinária fórmula comprometida com o saber, o produzir e, sobretudo, saber
transformar a realidade através do rendimento do corpo. Configura-se hoje, de forma mais
visível, um movimento cambiante desse corpo construído em meio a tantos discursos,
instituições e corporeidade, entre individualidade e coletividade, natureza e cultura,
internalidade e exterioridade, privado e público, real e irreal. Segundo Villaça (1999), na
atualidade, instala-se uma busca de controle e sentido, na tentativa de contornar o
imponderável e a incerteza que, provém das transformações por que passam as oposições
[...] no contato com as revoluções advindas das tecnologias e seus desdobramentos nos
diversos campos do saber (p.71).
Esses valores antiéticos perduram na sociedade contemporânea e, assim,
valorizando o corpo que o social impõe aos seus sujeitos, ataca e fere a consciência idosa
que, sem armas para lutar, não encontra caminhos para continuar sobrevivendo em meio a
tão contraditório e perverso universo social. Esses homens e mulheres têm consciência de
que nada produzem (nos termos do capital), bem como seus corpos não são mais um ideal
de beleza, segundo as demandas do mercado de ilusões capitalistas, pelo contrário, nele é
possível descobrir mais uma obscura brecha, por onde escorre o fluxo dos desejos nas mais
diferentes conotações. A sociedade do produto esquece que o mesmo homem que pensa e
faz também sente, tem emoções, sensações, pode intuir e trabalhar condignamente, sem ser
explorado como força de trabalho.
Ao tentar intervir nessa ordem, a elaboração produtiva individual é liderada por um
paradigma social da subjetividade, que, seguindo os ditames da ordem capitalística como
matriz de subjetividade modelizadora, serializante, homogeneizante, cria um obstáculo nos
processos que originariam a diferença e a singularização. Essas subjetividades são
incorporadas ao longo do tempo e deixam marcas patentes que podem perdurar e ser
apresentadas em toda a sua concretude (meu corpo já é velho, meu corpo é duro, eu não sei
dançar, não consigo cantar, não tenho jeito para isto, etc.)
No corpo estão estampadas as marcas dessa subjetividade, na qual valores éticos e
estéticos estão distanciados da realidade concreta e os desejos, os anseios, a criação e os
processos de diferenciação não têm espaço. Esse é o corpo emoldurado pelo sistema social
que adota a ordem capitalística de subjetividade dominante. Por outro lado, encontra um
outro corpo que aponta as fantasias desejantes, a fluidez do sensível, a sede pelo prazer,
enfim a quebra da marcante presença racional. Nesses dois planos de sustentação e
valorização, o corpo, não controlando as mais significativas manifestações do sensível, vive
em permanente conflito existencial. O que parece evidente é que esse dualismo ainda
persiste, com alguns contornos e disfarces, mesmo porque o corpo continua a serviço de um
ideal de desempenhos, performances, um elemento de dominação política, social e
econômica, de supremacia ideológica.
Falar do homem como ser corpóreo é falar de um corpo que traz em si implícita a
questão da sexualidade (subjetividade encarnada), pois o corpo é sempre um corpo
sexuado. Esse fenômeno não pode ser pensado de forma isolada ou periférica, pois está
vinculado profundamente à afetividade e ao homem e, portanto, à integridade existencial.
Na psicanálise freudiana, Merleau-Ponty (1971) encontra uma representação significativa
para a questão da sexualidade porque descobrem nas funções que se acreditava como
puramente corporais, um movimento dialético de reintegrar a sexualidade no ser humano
(p.168).
Voltando a Foucault (1980), em se tratando da questão da corporeidade e da
sexualidade, ele chama a atenção para o controle que a sociedade mantém sobre o sexo,
através de discursos e práticas sociais que normatizam atos, valores, desejos e atitudes com
a intenção de estruturar as relações e estabelecer as técnicas de poder (fenômeno repressivo
e mobilizador), que visam a integração e o controle social mais eficiente da sexualidade. A
sexualidade, afirma Giddens (1993), é uma elaboração social que opera dentro dos campos
do poder e, não simplesmente um conjunto de estímulos biológicos que encontram ou não
uma liberação direta (p.33). Nesses moldes, certamente os corpos tornam-se um foco do
poder disciplinar, como denuncia Foucault. Esse poder, supostamente produz corpos
dóceis, controlados e regulados em suas atividades, em vez de, espontaneamente atuarem
sobre os impulsos do próprio desejo. Giddens (1993), acrescenta, ainda, que o corpo torna-
se um portador visível da auto-identidade, estando cada vez mais integrado nas decisões
individuais do estilo de vida (p.42). O projeto reflexivo do Eu, como afirma o autor, é
próprio da experiência contemporânea que redefine as intimidades e a construção das
identidades. Por isso, ele situa a responsabilidade pelo desenvolvimento e pela aparência
corporal ao próprio sujeito que adota um estilo de vida, em meio a uma profusão de
recursos.
Foucault (1980) considera a sexualidade como uma experiência prazerosa e o corpo
como o instrumento que leva ao prazer. A capacidade de sentir prazer não depende da
vontade ou de uma decisão, mas é algo que está intimamente ligado à verdadeira essência
de todos os homens e mulheres. Entretanto, os discursos sobre a sexualidade não
ultrapassam o nível da informação técnica, defendida dentro das especificidades etárias, de
forma precária, perigosa, a ser constantemente vigiada. A imagem corpórea, que
corresponde ao fato de reconhecer o próprio corpo, aceitando-o e vivendo-o com sua
caracterização de virilidade ou feminilidade, pode ser um trunfo para os sujeitos mais
velhos, porque tudo que representa uma ameaça à identidade corpórea pode interferir na
expressividade dos comportamentos sexuais.
Para Hutz (1986), entre os tabus e preconceitos que recobrem a velhice, aqueles
referentes à sexualidade são os mais perversos. Constata-se que a sociedade continua
estranhando as manifestações de sexualidade dos mais velhos e estes, por ignorância, no
sentido de desconhecer, adotam posturas também estereotipadas, passando a ver a atividade
sexual como algo que deve ser recoberto de preconceitos e tabus. A repressão sexual, para
Chauí (1990), pode ser considerada como um conjunto de permissões, interdições, normas,
leis, regras, valores estabelecidos pelo sistema cultural e histórico para manter e controlar a
prática da sexualidade, concebida pela sociedade como uma torrente impetuosa e cheia de
perigos. A pessoa idosa dobra-se ao ideal convencional. Teme o escândalo e o ridículo. A
fórmula mais perfeita de repressão é o auto-convencimento, isto é, a internalização de
obrigações de decência e de castidade, normas estas, que passam a ser vividas pelos
sujeitos, sem, contudo, estes observarem o significado profundo que a sexualidade
desempenha no relacionamento interpessoal. Os idosos, sem perceberem, incorporam esses
ideais sociais que, por sua vez, coisificam e banalizam as relações afetivas entre os idosos,
impondo-lhes um sentimento de culpa e vergonha dos próprios desejos. As pessoas idosas
recusam-se a ser, aos próprios olhos, um velho lúbrico, uma velha devassa. Defendem-se
das pulsões sexuais, a ponto de rechaçá-las para o inconsciente.
A tendência atual sobre o corpo, o seu cultivo e os inúmeros investimentos sobre a
corporalidade estão em evidência. A corporeidade é a forma de o homem ser-no-mundo e
essa afirmação não implica uma negação da transcendência e imortalidade do espírito, mas,
sobretudo, implica na afirmação determinista de que é impossível a existência do homem
no mundo sem o corpo. O corpo é o veículo do ser-no-mundo, e ter um corpo é, para uma
pessoa viva, juntar-se a um mundo definido, confundir-se com alguns projetos e engajar-se
continuamente neles (Merleau-Ponty, 1971, p.24).
É por intermédio do corpo, como já foi dito, que o homem se presentifica no
mundo. O corpo é [...] a construção de possibilidade da coisa (idem. 1989, p.202). O corpo
é presença que, ao mesmo tempo, revela e esconde, recebe e expressa a maneira de ser-no-
mundo de cada indivíduo e é essa ambigüidade que permite a produção da
intersubjetividade. Através da Einfüehlung (empatia) é que se pode captar a interioridade
do Outro, que também é exterioridade, pela visibilidade de seu corpo e a própria vida do
Outro só me é dada com seu comportamento (ibid. p.200). Pelo efeito de uma eloquência
singular do corpo visível, a Einfüehlung vai do corpo ao espírito (ibid. p.197). Sabe-se,
sem que haja réplica possível, que aquele homem ali vê, que meu mundo sensível é também
dele na tomada do espetáculo por seus olhos (ibid. p.198). É, por isso que o corpo, pode ser
entendido como um lugar de expressão e comunicação. Tem uma linguagem corporal, que
desvela, por meio da exterioridade, toda a nossa interioridade (pensamentos, sentimentos,
sensações) que podem revelar a intenção da situação do momento, bem como a história
pessoal de cada indivíduo. Para Merleau-Ponty (1991), essa ação à distância da linguagem,
vai ao encontro das significações sem as tocar. Essa eloquência que as designa de maneira
peremptória sem jamais as transformar em palavras nem fazer cessar o silêncio da
consciência são eminentes da intencionalidade corporal (p.94). A demonstração da
corporalidade faz conhecer a sociedade à qual pertence, porque o corpo carrega um
distintivo cultural que, inevitavelmente, denuncia e expressa sua origem social por meio de
comportamentos corporais e demonstração de seus sentimentos e valores apriorísticos. A
linguagem corporal é expressada simbolicamente por toda a extensão do corpo, passando
pelo riso, olhar, lábios, mãos, posturas, gestos. Por carregar em si uma intencionalidade
significativa, permite a compreensão do Outro, sem a intermediação do pensamento, a
decodificação do sentido do gesto, da expressão facial, de seus sentimentos e, enfim, de sua
posição no mundo. Ser-no-mundo com o corpo significa dizer que o indivíduo está aberto
ao mundo, está em sintonia, em troca recíproca com o meio, significando ao mesmo tempo
poder vivenciar o corpo na intimidade do EU – sua flexibilidade, elasticidade, beleza,
movimento, dor, prazer, cansaço, alegria, recolhimento e contemplação. Ser-no-mundo com
o corpo significa poder correr o risco de vivenciá-lo com limitações, pois pode-se fragilizar
diante de determinadas situações que ameaçam sua integridade. Ser-no-mundo com o corpo
significa a presença viva que se manifesta e se expressa por intermédio de ações e
sentimentos. Ser-no-mundo com o corpo significa movimento, movimento que se
transforma em gesto e, portanto, comunica e expressa uma linguagem própria. Significa
poder apropriar-se do mundo, das coisas e dos outros criando o novo. Ser-no-mundo com o
corpo significa a presença viva, temporalidade que se concretiza, primeiramente, por um
crescer de possibilidades, ao atuar no mundo, e depois, progressivamente, por uma
consciência das limitações que o ciclo de nossa vida corporal nos impõe (Gonçalves, 1994,
p.103). Ser-no-mundo com o corpo significa ter que conviver com uma constante ameaça
de definhamento pela doença e de extinção pela morte. A doença, o fracasso, a dor e o
sofrimento revelam uma outra dimensão do corpo, lembrando a todo instante que, além de
se ter um corpo (originalmente biológico), implica em compreender que somos um corpo
que, por sua vez, recusa-se a reduzir todo o vivido a um corpo objeto. Nesses momentos de
existência o corpo parece recusar-se a ser uma máquina, um objeto, pretensamente
observável e passível de ser construído a partir das determinações da consciência ou da
razão soberana. É a partir da abertura sensível do corpo ao mundo e aos outros que o
conhecimento de si, dos outros e do corpo no mundo se constrói. O corpo, assim, não é
apenas um objeto a ser treinado, mas é, sobretudo, um sujeito que ensina a si próprio e faz
os homens serem o que realmente são. Recusar-se a reconhecer a linguagem expressiva
desse corpo próprio e desejante significa negar a compreensão unitária do homem,
visualizando mais o corpo objeto do qual se espera eficiência, produção e saúde.
A experiência do corpo próprio revela sempre uma unidade: unidade espacial e
temporal, unidade intersensorial e unidade sensório-motora. Essa totalidade humana não
pode ser explicada apenas em termos fisiológicos, tendo em vista as múltiplas experiências
vivenciadas pelo corpo que não se reduzem a um conhecimento específico, pronto e
acabado. O homem em movimento habita o espaço e o tempo não é um espaço objetivo,
mas um espaço circundante que forma com o corpo em movimento uma totalidade. Esse
movimento corporal sem prévia representação consciente é sempre intencional e as
sensações dos diferentes sentidos favorecem a percepção integral do objeto. No caso da
pessoa idosa, as atitudes corporais não só refletem seu estado interior, mas também o
resultado de uma vida toda. Ressente-se das limitações tanto em nível estético como
orgânico e suas sensações negativas são externadas pela rejeição ao próprio corpo,
julgando-o feio, inábil, frágil e incapaz. È menosprezado, assim, o evoluir natural do ciclo
de vida, que é fundamentalmente estar corporalmente vivo e saudável. Esse corpo dever
ser, segundo Moreira (1992), compreendido não como objeto com características distintas
dos demais objetos, mas entendido como fonte de experiências significantes, como veículo
de comunicação com o mundo, ou, mais precisamente, corpo como expressão possível do
ser-no-mundo (p.40).
A experiência do corpo próprio, se for compreendida como uma unidade
transparente, com sentido e significado expresso na corporeidade, pode mostrar que as
oposições clássicas de corpo-mente, emocional-racional, biológico-psicológico, natureza-
cultura são construções passíveis de serem desconstruídas, por isso não há necessidade de
ter uma oposição radical entre corpo vivido/próprio/desejante e o corpo construído/objeto,
porque todos os homens/mulheres vivem uma situação cambiante e tensa entre tais
possibilidades de experiência. A idéia de um corpo construído, em uma sociedade
capitalista, passa pelo modelo de um corpo-instrumento, que é criado de acordo com as
necessidades do momento histórico, mas não é, necessariamente o corpo vivido (relação do
corpo próprio com o mundo, com os outros e consigo mesmo). A forma como a sociedade
trata seus elementos reflete a sua concepção de criança, homem/mulher, adulto e de velhice
e revela um modelo de corpo construído, que em tudo deve responder às vontades da
consciência. Assim, nesse período da vida, o indivíduo, por não exercer, supostamente, suas
funções de forma efetiva no processo de produção, é relegado ao ostracismo, diluindo seu
sentido social ao retirar-se da vida privada.
Não só o processo de produção aliena o corpo, mas também o processo de consumo.
A transformação da experiência do corpo com o mercado é evidenciada quando, durante o
capitalismo de produção, o corpo entra no mercado como força de trabalho e, atualmente,
também como força de consumo. O homem contemporâneo é direcionado pelo consumo e,
o corpo entra no mercado como capacidade de consumir e ser consumido. O consumo passa
a ser pensado como atividade que provoca prazer e os sujeitos passam a seguir mais o
discurso da sociedade com seus determinismos culturais do que os interesses e necessidades
próprias. A esse respeito Villaça (1999) afirma que a vasta utilização de recursos
tecnológicos disponíveis na atualidade aumenta a polarização e o distanciamento entre os
indivíduos tornados desvalidos pelo próprio processo moderno de individualização e
privatização. Segundo a autora, os velhos que se agrupam sob a etiqueta da Terceira Idade
são os que, embora não mais ativos, dispõem de renda para serem consumidores, atores
sociais. Ao contrário, os que não são produtores e os inúteis como consumidores são
pessoas que a economia, com sua lógica de suscitar e satisfazer necessidades, dispensa
(p.76).
Alain Touraine (1998) sugere a compreensão do sujeito contemporâneo a partir do
seu desempenho na sociedade como ator social, em constante negociação entre as heranças
pessoais, familiares, religiosas e étnicas. O sujeito, para ele, é a combinação de atividade
racional, identidade cultural e pessoal, não sendo mais o sujeito universalista. O sujeito
passa, nessa perspectiva, a ser entendido, não na visão particular, individualista ou de
isolamento, nem como campo para a sujeição às regras ditadas pela cultura de massa, nem
comunitarismo e descaracterização global, nem razão instrumental ou cultura unitária.
Villaça (1999) acrescenta se referindo aos velhos: Nesse movimento de subjetivação
necessitam-se manter os velhos e daí a importância de um trânsito social o mais liberado e
a luta por sua atuação fora do protecionismo de poder hegemônico ou do comunitarismo e
de qualquer tipo de isolacionismo e diferença (p.78).
O processo de produção para inserir seu produto no mercado utiliza-se de
mecanismos publicitários para divulgá-lo e vendê-lo. A indústria cultural, por intermédio
dos meios de comunicação, utiliza-se do corpo para promover mediações generalizadas
que, na verdade, modelam o imaginário social, criam e introjetam uma micropolítica das
relações dos homens com o mundo, dos homens entre si e de cada um consigo mesmo.
A onda do corpo vem se avolumando a cada dia e novos projetos publicitários estão
sendo cada vez mais acionados para divulgar produtos relacionados ao bem-estar dos
indivíduos, sempre associados a um corpo saudável, belo e jovem. Há, também a
valorização do corpo sensual vinculado a produtos que sugerem fantasias eróticas,
alargando expectativas relacionadas a prazeres carnais. As propagandas anunciam
movimentos típicos de determinadas modalidades esportivas, em novos espaços que
sugerem mais aventura. Projetam não um corpo trabalhado socialmente, mas um corpo
questionado e proposto na tensão entre o risco e o prazer, bem próximo ao que era possível
verificar no surgimento histórico das práticas esportivas, que desde a década de 50 já
implementavam novos esportes. Segundo Vaz (1999), a sociedade disciplinar resgatou os
esportes olímpicos; afinal pensava-se o corpo como energia e fonte de movimento: mais
alto, mais rápido e mais longe (p.170).
Numa atuação mais ampla, o sistema publicitário usa o corpo para divulgar as mais
diversas formas e fórmulas de se obter um corpo. Os modelos de corpo vêm sempre
emoldurados pelos conceitos de beleza, sensualidade e saúde. Não há como negar a
velocidade com que hoje circulam as imagens retratando as diversas crises de comunicação
global, e entre elas está a valorização do corpo e o modo de se apresentar, na busca
implacável de uma identidade social. Segundo Villaça (1999), diante do enfraquecimento
dos paradigmas que orientam o projeto moderno de cunho essencialista, a moda se oferece,
como arquivo e vitrine do ser/parecer, sugerindo comportamentos e atitudes, fabricando
selfs performáticos por meio de sutis recriações dos conceitos de verdade, de bem e de belo
(p.57).
A moda do corpo está em evidência, e com ela o modelo do corpo jovem, bonito,
atlético, devidamente condicionado pelas mais diferentes técnicas corporais, as quais
sugerem um corpo saudável. A moda veiculada pelos meios de comunicação fabrica perfis
corporais que atingem os consumidores transformando os valores juvenis no ideal de vida
para todas as idades. O mundo que é internalizado é o da juventude, do consumo, do
descartável, da individualidade, do ritmo acelerado e do tecnológico. Esse ideário social se
apresenta aos indivíduos com o objetivo de atingir o modelo de felicidade, uma prática
capaz de mudar nosso destino.
Como Codo e Senne (1985) registram, nunca se falou tanto no corpo como hoje.
Nas últimas décadas, há uma crescente e difusa atenção, inclusive entre as pessoas idosas,
aos tratamentos estéticos que visam rejuvenescer o corpo. A todo o momento uma nova
academia de ginástica é inaugurada, novas técnicas de alongamentos, musculação, práticas
de saúde alternativas, estética corporal são introduzidas no mercado, transformando os
gestos em pura mercadoria de consumo. A corpolatria, como os autores explicam, é um
processo responsável pela cisão do homem consigo mesmo, produzido pela relação
homem/capital. Cada vez mais criam-se novas formas de terapias corporais como a
antiginástica, a bio-dança, a bioenergética, a eutonia, entre outras que são criadas na busca
de descobrir a conscientização corporal. Multiplica-se a literatura a respeito da saúde
fisiológica, da sexualidade e da beleza estética do corpo. O gesto espontâneo e expressivo
deixa de ter sentido, quando se prevê o ser humano ideal, carente de ação. Para essa nova
moda do corpo, surgem inúmeros modelos que devem ser incorporados pelos indivíduos,
indo desde modalidades radicais e indumentárias esportivas, até cosméticos e
medicamentos energéticos ou mesmo alimentos naturais.
A moda vem atrelada às novas descobertas das tecnologias biomédicas que propõem
mecanismos tecnológicos para delinear e regrar o corpo, reduzir a distância entre o que
quer o pensamento e o quer o corpo (moderadores de apetite, óleo sem colesterol ou sem
caloria, margarina light, drogas para controlar a impotência sexual, angústia, insônia, etc).
Esse procedimento estende para o indivíduo a duração do pensamento no corpo como
matéria que deve ser moldada e treinada, objetivando a performance física.
Desse modo, o corpo como movimento passa a ter um ordenamento racional, o qual,
exercendo controle externo e desconhecido ao homem, determina suas ações, idéias e
desejos. Ao homem é imposto um modelo de corpo que é, ao mesmo tempo, produtor e
consumidor. O mecanismo social e totalitário implementado pelo capitalismo busca, por
interesses lucrativos, evidenciar os desejos do corpo e, com isso, torná-los fonte de lucro a
serviço da economia. Os desejos são transformados em necessidades que a produção e o
comércio programam para garantir o progresso e o capital. Segundo Siebert (1995), em
todas as formas de cultura, inclusive na corporal,
a tecnologia proporciona igualmente a grande racionalização da falta de
liberdade do homem e demonstra a impossibilidade técnica de ser autônomo, de
determinar pessoalmente a sua vida. Essa falta de liberdade não surge de forma
irracional nem como política, mas antes como sujeição ao aparelho técnico,
intensificando a produtividade do trabalho (p.31).
Tal fenômeno coloca o homem de hoje diante das seguintes questões: por que razão
se desenvolveu, mais especificamente na última década, a chamada cultura da
corporeidade? Haveria espaço para a corporeidade idosa, nessa sociedade que valoriza o
progresso e a perfeição através da tecnologia? O velho, sem poder articular a construção do
próprio corpo, seria simplesmente excluído? Essas são questões que merecem uma urgente
reflexão seguida de ações pertinentes.
Ao falar do corpo como objeto de consumo torna-se necessário analisar o contexto,
uma dada realidade, porque os modos de apropriação que sujeitam as representações
corporais são evidenciados nas práticas sociais cotidianas de acordo com os agenciamentos
no mercado de consumo.
Marcel Mauss (1974) defendeu a idéia de que o indivíduo possui uma consciência
própria, empreendendo trabalhos coletivos tomados por uma representação ou por uma
emoção coletiva. Para o autor, o homem é um ser particular dotado de uma consciência que
permite uma mediação entre o nível social e o nível pessoal. Salienta, ainda, a necessidade
de se considerar a totalidade do ser humano. Para ele o homem nunca pode ser dividido em
faculdades.
No fundo, o corpo, alma, sociedade, tudo se mistura. Os fatos que nos
interessam não são fatos especiais de tal ou qual parte da mentalidade; são fatos de
uma ordem muito complexa, a mais complexa que se possa imaginar. São aqueles para
os quais proponho a denominação de fenômenos de totalidade, em que não apenas o
grupo toma parte, como ainda, pelo grupo, todas as personalidades, todos os indivíduos
na sua integridade moral, social, mental e, sobretudo, corporal ou material (p.198).
Marcel Mauss (1974) mostrou a importância do conceito de técnica corporal,
procurando enfocar a compreensão cultural do corpo humano, no sentido de desnaturalizar
a extensão corpórea. Para o autor, a sociedade em qualquer lugar sempre desenvolveu
modos eficazes de trabalhar o corpo do homem em função das necessidades emergentes do
corpo social. Nesse estudo, ele afirma ser o corpo humano, os movimentos corporais, as
atitudes, os comportamentos individuais, cada pequeno gesto, elementos tradutores de uma
sociedade ou cultura, portanto toda técnica corporal é fruto de aprendizagens e de
mimetismos formais ou inconscientes. Cada sociedade exerce influência sobre o corpo de
seus sujeitos impondo-lhes ações que são operacionalizadas com base em técnicas
corporais: posturas, técnicas esportivas, forma de se alimentar, vestuário, movimentação no
caminhar, ao falar, entre outras formas.
Mauss (1974) define técnica corporal como sendo as maneiras como os homens e
mulheres, sociedade por sociedade e de maneira tradicional e eficaz, sabem servir-se de
seus corpos. Não há técnica e tampouco transmissão se não há tradição (p.217). Dessa
forma, o autor elevou o corpo humano ao nível de fato social, podendo, portanto, ser
pensado em termos de tradição a ser transmitida através de gerações. Para ele, as ações
corporais devem ser compreendidas como parte de uma tradição social, da mesma maneira
que os rituais religiosos, as obras de arte, a linguagem.
O autor afirma ainda que, tanto na pessoa que aprende o gesto tradicional, quanto no
seu imitador, podem-se encontrar, a todo momento, os componentes
fisiopsicossociológicos. Estes atos são mais ou menos habituais e mais ou menos antigos
na vida do indivíduo e na história da sociedade. [...] Vamos mais longe: uma das razões
pelas quais essas séries podem ser montadas mais facilmente no indivíduo é, precisamente,
o fato de serem montadas pela e para a autoridade social (p.231).
O que é mais importante nesse enfoque é que ele permite o estudo e a compreensão
do corpo e do movimento humano como expressões simbólicas, uma vez que toda prática
social tem uma tradição que é passada às gerações por meio de símbolos. Evidente se torna,
portanto, que o conjunto de posturas e movimentos corporais constitui um aglomerado de
valores e princípios culturais disseminados socialmente, constituindo as especificidades de
cada povo ou de cada região ou local. Há uma dinâmica recíproca entre corpo e sociedade,
e isso significa dizer que, se se atuar no corpo, conseqüentemente se estará atuando sobre a
sociedade que, necessariamente, deverá estar envolvendo o corpo.
A Educação Física, nesse sentido, atuando tanto de forma educativa, recreativa,
quanto reabilitadora ou expressiva, deve ser pensada num contexto mais amplo e unificador
(sujeito/corpo/sociedade), e, sobretudo, não dar demasiado valor ao corpo como matéria a
ser treinada, disciplinada e tornada obediente. A prática da Educação Física deve
preocupar-se com o desenvolvimento de atividades portadoras de expressões
(gestuais/comunicativas) que tragam no seu bojo conteúdos simbólicos, relativos à vida dos
indivíduos.
Nesse ponto, é importante também ressaltar o valor das atividades físicas para os
indivíduos de mais idade pela sua influência benéfica em minimizar a degeneração
provocada pelo envelhecimento e estimular funções essenciais do organismo e as funções
do aparelho locomotor. Também deve ser alvo de preocupação a forma como esses sujeitos
são encaminhados para a prática de atividades físicas, que, longe de visarem o desempenho
técnico e a performance, devem dar oportunidades para a ampliação de novas perspectivas,
ou modos peculiares de visualizar as situações vivenciadas no presente, não se esquecendo
de valorizar as experiências originárias, com um retorno positivo ao passado. Deve-se,
portanto, desenvolver atividades concretas com sentido e significado próximos às ações já
vividas pelos sujeitos, a fim de proporcionar uma forma atual de participação coletiva, em
direção àquilo que se pretende ser agora, no tempo presente.
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