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AS REPERCUSSÕES SUBJETIVAS ORIUNDAS DO INGRESSO DE UM USUÁRIO NO PROGRAMA DE PROTEÇÃO
Autor: Marcelo Moraes Moreira
Orientadora: Anelise Pereira Sihler
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU EM DIREITOS HUMANOS: PROTEÇÃO E ASSISTÊNCIA A VÍTIMAS E COLABORADORES DA JUSTIÇA.
UCB VIRTUAL
MARCELO MORAES MOREIRA
AS REPERCUSSÕES SUBJETIVAS ORIUNDAS DO INGRESSO DE UM USUÁRIO
NO PROGRAMA DE PROTEÇÃO
Monografia apresentada ao Programa de Pós-
Graduação Lato Sensu em Direitos Humanos:
Proteção e Assistência a Vítimas e a
Colaboradores da Justiça da Universidade
Católica de Brasília, como requisito parcial
para obtenção do Certificado de Especialista
em Direitos Humanos.
Orientadora: Professora Anelise Pereira Sihler,
Graduada em Pedagogia, Pós-graduada em
Psicologia e Mestra em Tecnologia da
Informação e Comunicação em EaD.
Belém
2009
Dedico este trabalho a todas as pessoas envolvidas
com o sistema de proteção PROVITA:
representantes dos Conselhos Deliberativos,
integrantes das Entidades Gestoras, Equipes
Técnicas e de Monitoramento, Parceiros/as da
Rede Solidária e especialmente aos Usuários/as
dessa política, que são indubitavelmente o nosso
ponto de partida e de chegada.
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus pela oportunidade da vida.
Aos meus pais pela educação propiciada, pelos ensinamentos e pelo afeto sincero.
A todas as pessoas da SDDH pela rica convivência e apoio.
Aos colegas da Equipe Técnica do PROVITA/PA pelas fantásticas trocas de experiências e
conhecimento.
Aos colegas da Equipe de Monitoramento pela grande aprendizagem técnica e política. Ao
Paulo pela dedicada companhia e cuidados constantes.
E especialmente a todos os/as usuários/as do PROVITA pelas surpreendentes e incessantes
lições de vidas passadas nessa uma década de atividade profissional.
“não me preocupo tanto com novas formas de
subjetividade, mas com novas formas de
sociabilidade, porque é nelas que uma
subjetividade é modelada e plasmada”
Marilena Chauí.
RESUMO
MOREIRA, Marcelo Moraes: As Repercussões Subjetivas Oriundas do Ingresso de um
Usuário no Programa de Proteção. 2009. 40 pág. Monografia apresentada ao Programa de
Pós-Graduação Lato Sensu em Direitos Humanos: Proteção e Assistência a Vítimas e a
Colaboradores da Justiça da Universidade Católica de Brasília, 2009.
O presente trabalho aborda as repercussões subjetivas que se originam quando do ingresso das
pessoas (denominados usuários) no programa de proteção à testemunha ameaçada –
PROVITA. Elementos como a morosidade da justiça em apurar as denúncias realizadas pelas
testemunhas e a longa permanência dos usuários no programa, a qual muitas vezes resulta no
estabelecimento de uma relação de dependência com essa política de proteção, corroborada
pela vivência excessiva sob rígidas regras de segurança, são enfatizados nessa discussão para
que se facilite o entendimento sobre as novas formas de pensar, de sentir e de agir no mundo
que essas pessoas experimentam. A descrição sobre o funcionamento do programa e o modo
como alguns dos seus procedimentos interferem no gozo pleno dos direitos humanos, também
são objetos de investigação dessa pesquisa.
Palavras-chave: Subjetividade. Saúde Mental. Direitos Humanos. Proteção à Testemunha.
Justiça.
ABSTRACT
MOREIRA, Marcelo Moraes. The subjective repercussions from a user in ingress protection program. 2009. 40 page. Monograph presented to post-graduate programme Lato Sensu in human rights: protection and assistance to victims and collaborators of Justice of the Catholic University of Brasilia, 2009. This work covers the subjective impact that originate at the ingress of people (users) in the protection program threatened witness – PROVITA. Factors such as the length of Justice in clearing the complaints made by witnesses and the long stay of users in the programme, which often results in the establishment of a dependency relationship with this policy of protection, corroborated by experiencing excessive under strict security rules are emphasized in this discussion to facilitate understanding of the new ways of thinking, feeling and act in the world these people experience. The description on the functioning of the programme and how some of its procedures interfere in full enjoyment of human rights, are also research that search objects.
Keywords: Subjectivity. Mental Health. Human Rights. Protection of witness. Justice.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................... 8
OBJETIVOS .............................................................................................................................................. 11
JUSTIFICATIVA ........................................................................................................................................ 11
QUESTÕES-PROBLEMAS .............................................................................................................. 12
REVISÃO DA LITERATURA ............................................................................................................ 13
CAPÍTULO I: O Programa brasileiro de Proteção às Testemunhas Ameaçadas e os Direitos Humanos
................................................................................................................................................................ 13
CAPÍTULO II: Saúde mental versus morosidade da justiça .................................................................... 19
CAPÍTULO III: O processo de inserção social e a superação da tutela do modelo de proteção ............ 22
CAPÍTULO IV: As repercussões subjetivas produzidas pelo PROVITA ................................................... 26
METODOLOGIA .......................................................................................................................... 31
DISCUSSÃO DOS RESULTADOS .................................................................................................... 32
CONCLUSÃO .............................................................................................................................. 36
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................................... 38
9
Introdução:
Este tema é bastante pertinente quando reconhecemos a necessidade de
investigar os reflexos do modelo de proteção adotado pelo PROVITA na saúde
mental dos usuários. Esperamos, de fato, conseguir desenvolve-lo e propor algumas
contribuições ao acompanhamento técnico de usuários deste programa.
Saúde mental não deve ser entendida como simplesmente a ausência ou
prevenção da doença mental ou sob qualquer outra forma excessivamente limitada
(que classifica, categoriza, individualiza, etc.), mas enquanto uma concepção mais
ampla e contextualizada, que inclua qualidade de vida emocional, as relações macro
e micropolíticas de um indivíduo e todas as interações deste com o mundo.
O PROVITA foi criado em 1996, com o propósito primeiro de resguardar os
testemunhos relevantes e imprescindíveis ao deslinde de crimes hediondos e de
grandes repercussões. Este Programa existe, hoje, em dezoito unidades da
federação e mobiliza uma rede de parceiros constituída por ONGs defensoras de
Direitos Humanos, conselhos de classes profissionais, sindicatos de várias
categorias, lideranças de movimentos sociais, dentre outros. Além da luta contra a
impunidade, as várias formas de violência e a contribuição para o implemento da
justiça, o programa busca também a inserção e a autonomia social, a fim de oferecer
condições de independência aos usuários quando de sua saída do Programa, pela
provisoriedade da proteção de acordo com o que rege a Lei 9.807/99, que
regulamenta o PROVITA.
Ora, para oferecer proteção eficaz, a estratégia primeira adotada pelo referido
programa é o remanejamento imediato dos denunciantes do local onde ocorreu o
fato delituoso, ou seja, saída do local com o qual geralmente se tem criada uma forte
identidade. Obviamente, os usuários experimentam uma perda significativa neste
processo, posto que sua história de vida reconhecida, sua cultura e a convivência
com sua família expandida, lhes são bruscamente ceifadas em nome da segurança
e em caráter provisório. Sim, porque tão logo os fatos sejam apurados, os
denunciados sejam adequadamente punidos e o risco cesse, estas pessoas poderão
“retornar” à normalidade de suas vidas. Infelizmente, na prática, o processo não é
tão fluente assim.
10
É importante informar que o que determina a colocação dos usuários numa
das redes estaduais componentes do Sistema de Proteção é o elemento segurança.
Outras características também são observadas como: hábitos, preferências,
adaptação a condições climáticas diferentes a que estão acostumados, etc. Mas não
é possível permitir ao usuário que a sua opinião ou desejo seja integralmente
considerado, pois a segurança e a preservação da sua vida é que devem
majoritariamente nortear os procedimentos adotados. Desta forma, não é possível,
por exemplo, concordar com a vontade do usuário em ser abrigado numa
comunidade onde ele tenha vínculos familiares ou de amizade, os quais por sua vez
tenham ligação com pessoas do local onde ocorreram os fatos denunciados e com
as ameaças.
Podemos inferir que a saúde mental dessas pessoas tem correlação direta
com alguns elementos no processo de proteção, a exemplo da morosa apuração
dos fatos, visto que o “marco” da mudança abrupta de suas vidas é a denúncia que
realizam judicialmente que, de certa forma, “cerceará” sua dinâmica de vida por um
longo período e a perda de autonomia em razão de um processo de dependência do
usuário com o programa.
No processo de triagem dessa política de proteção, isto é, nos primeiros
contatos entre os possíveis usuários e os membros das equipes, surgem aspectos
que devem ser minuciosamente trabalhados a fim de que se estabeleçam os
parâmetros dessa relação que durará todo o período de proteção. Transparência,
ética, confiança, nível de interação, respeito à diversidade e principalmente o
exercício do poder que transversaliza tal relação, são elementos que, quando
corretamente identificados, podem indicar o melhor caminho para a execução de
uma proteção realmente eficaz. O desafio é priorizar análises contextuais do outro
(usuário) e de si (equipe técnica), e descobrir tais aspectos.
Ora, tanto a descrença na justiça quanto a hipotrofia da capacidade autônoma
dos usuários gera dificuldades enormes para se alcançar êxito na proteção. Neste
ponto, podem ser observadas algumas mudanças em certos conceitos que os
protegidos têm construídos antes de seu ingresso no PROVITA.
Segundo Deleuze (1994 apud Brasil, 2002, p. 157), “um acontecimento é
aquilo que movimenta, altera, interrompe o fluxo da história, produz diferenças”. Ou
11
seja, não é um simples episódio, mas algo que promove mudanças, que tem a
capacidade de transformar, de criar novas formas de ser, a partir de um sentido
novo.
Obviamente, ninguém sai incólume dessa experiência (de ser protegido).
Novas subjetividades surgem a partir de fatos tão marcantes vividos em anos de
proteção. A restrição de uma série de direitos das testemunhas sob proteção, em
nome da vida (um dos direitos mais fundamentais), também pode gerar frustração,
pessimismo, comprometer a resiliência das pessoas e provocar a desistência
deliberada e intempestiva do Programa, o que pode expô-las aos riscos gerados por
sua denúncia.
De acordo com Vera Vital Brasil (2002) “Subjetividades são modos variados
de viver, pensar, sentir, perceber, agir no mundo, em permanente mutação. A
subjetividade é produzida e modelada no registro do social através de processos
históricos”. Nesta perspectiva, é interessante considerar o entendimento sobre
territórios existenciais, enquanto espaços/configurações constituídos por vários
componentes da vida de uma pessoa como suas relações sociais, sua cultura, seu
meio ambiente, sua maneira de ser, construindo assim uma existência. Desta
maneira, entrar em um programa de proteção com esta dinâmica significa construir e
desconstruir territórios sistematicamente. Segundo o dizer de Guattari (1986), “o
desmanchamento de territórios existenciais constituídos (desterritorialização) e a sua
recomposição a partir de novos códigos (reterritorialização) servem para possibilitar
transformações e construir histórias de vida”.
Estes conceitos devem contribuir para o embasamento de um tema complexo
e importante como este, considerando seus desdobramentos no acompanhamento
qualificado dos usuários, bem como sua interferência para o processo da proteção.
12
Objetivo Geral:
Identificar subjetividades produzidas nos usuários que ingressam no
Programa de Proteção e, assim, nortear o acompanhamento técnico propondo a
revisão de procedimentos e estratégias, a fim de auxiliar os protegidos na superação
das dificuldades e do sofrimento psíquico inerentes à dinâmica da proteção.
Objetivos Específicos:
1. Promover o aprimoramento técnico enquanto um processo sistemático para o
atendimento qualificado das demandas cotidianas apresentadas pelos usuários.
2. Facilitar o processo de adaptação, bem como de inserção social dos protegidos,
propiciando um atendimento que valorize a autonomia e a gradativa independência
dos usuários pelo Programa.
Justificativa:
O acompanhamento técnico de usuários sob a proteção do PROVITA se
revela como complexa tarefa, vez que condições externas e internas, objetivas e
subjetivas interferem continuamente às estratégias de intervenção que visam facilitar
o processo de adaptação, dificultando sobremaneira sua execução.
Partindo-se de um obrigatório distanciamento do local onde os indivíduos
mantêm forte identidade, o resultado inevitável (variando apenas em sua
intensidade) é o sofrimento psíquico. As perdas materiais e subjetivas são uma
conseqüência certa desse quadro e a sua superação impõe às equipes técnicas o
desenvolvimento de estratégias, a partir do desvelamento de aspectos subjacentes,
dos novos paradigmas criados e das subjetividades produzidas.
A falta de cumprimento do objetivo principal, qual seja a efetivação da justiça
e a quebra do ciclo de impunidade vigente, e a ausência do Estado na forma de
políticas públicas limitadas e ineficientes, contribuem sobremaneira para o
recrudescimento do sofrimento advindo de toda essa situação. Constitui-se um
enorme paradoxo a indevida apuração das denúncias ou a provisoriedade da
proteção com a aposta de que a inserção social se dará num contexto tão adverso
de inexistentes serviços públicos suficientes a tal processo.
Desta maneira, a intenção é oferecer subsídios a constante avaliação e
revisão das intervenções técnicas e, assim, contribuir para a qualificação do
13
acompanhamento de usuários acolhidos e, conseqüentemente, do modelo PROVITA
de proteção.
Questões-problemas:
1. O andamento processual, onde figuram testemunhas sob ameaça, não possui a
celeridade necessária se considerarmos as expectativas negativas, principalmente
de quem aguarda (usuário do programa) a conclusão do processo para re-estabilizar
a sua vida, isto é, para retomar sua rotina, tida como tranqüila. Esta situação,
denúncia versus morosidade, claramente paradoxal, certamente mobilizará os
sujeitos envolvidos em sua saúde mental, chocando-se com alguns de seus
paradigmas e concepções.
Este quadro em análise suscita um problema: Tal situação pode gerar descrença no
sistema judiciário? No Programa de Proteção? No Estado como um todo?
2. Outro elemento citado à proposta deste estudo pode ser descrito como um
processo de perda gradativa de autonomia e, conseqüente, expansão de uma
relação de dependência. Em que pese o acompanhamento técnico ir à contramão
desse movimento, muitos usuários percebem que a responsabilidade sobre suas
vidas não está mais em suas mãos, mas na de terceiros, pois o Estado,
“representado” pelas equipes técnicas, surge como o garantidor e provedor
exclusivo de suas necessidades (de ordem econômica, psicológica e social). Este
processo de dependência às vezes é inconsciente, mas outras vezes não, pois pode
ser uma atitude de manipulação e até acomodação.
Então identificamos outro problema: Por que o Estado é visto como um ente
tutelador pelo usuário? De que forma o modelo de proteção do PROVITA contribui
para essa percepção?
14
Revisão da literatura
Capítulo I: O Programa brasileiro de Proteção às Testemunhas Ameaçadas e
os Direitos Humanos
O programa de proteção as testemunhas no Brasil surgiu em 1996 a partir da
pressão e investimento de uma sociedade civil organizada exausta em suas
tentativas de contribuir para a efetivação da justiça. É que sem a retaguarda
necessária ninguém se dispunha, à época, em testemunhar. Logo, este fato
contribuía sobremaneira para o recrudescimento da impunidade, além de entravar
processos judiciais por falta de testemunhos relevantes.
Então, baseada em experiências exitosas de países da Europa e da América
do Norte, a sociedade civil apresentou uma proposta – criteriosamente adaptada à
realidade brasileira – ao Estado (Ministério da Justiça) que encampou a idéia e hoje
já são 18 unidades da federação que executam regularmente programas estaduais
de proteção.
Além da participação efetiva da sociedade civil na execução da proteção, o
fato do PROVITA estar baseado nas diretrizes dos Direitos Humanos, coloca esse
programa em posição diferenciada dos diversos existentes no globo, inclusive na
América Latina, pois é o modelo recomendado pela ONU para criação de programas
dessa natureza. Trata-se indubitavelmente de um modelo mais democrático e que
permite um maior exercício do controle social, pois dispõe à sociedade civil uma
participação mais ampliada e direta. A concepção de Direitos Humanos na qual se
pretende assentar essa política de proteção está bem definida na proposição de
Carbonari (2006):
Direitos humanos, além de se constituírem em horizonte ético reconhecido por diferentes culturas, constitui-se também em conteúdo político capaz de potencializar ações e congregar esforços em vista de traduzir para o cotidiano da humanidade, em sua pluralidade e diversidade históricas, as condições para fazer com que a dignidade humana seja ponto de partida inarredável e princípio orientador das ações.
O Programa possui como marco legal a Lei Federal nº 9.807/99 e o Decreto
3.518/00. Ademais, a Constituição brasileira e o Código Penal e Processual Penal,
15
além de inúmeras leis estaduais1, também constituem os instrumentos legais que
legitimam o programa de proteção as testemunhas.
Sucintamente, as medidas protetivas consistem na retirada da testemunha e
familiares (se for o caso) do local onde ocorreram os fatos delituosos e em
providenciar sua(s) inserção em comunidades seguras, contudo, distantes da terra
natal. Estes núcleos são acompanhados por profissionais que monitoram o processo
de adaptação nesses novos espaços, atentando para o chamamento da justiça, já
que sua denúncia é imprescindível para o deslinde de crimes de grande monta.
Os casos sob acompanhamento podem ser classificados em estaduais,
federais e permutas. Os primeiros representam as demandas geradas por cada
Estado, ou seja, referem-se às denúncias locais. Os segundos ocorrem no território
de Estados que não possuem programa de proteção. Essas situações são
devidamente analisadas e encaminhadas a alguma rede, conforme a intervenção de
instâncias nacionais componentes do Sistema PROVITA2. Mais adiante falaremos
especificamente dessas instâncias. A última categoria refere-se à cooperação mútua
entre as redes estaduais de proteção, o que, aliás, é uma excelente estratégia de
segurança, devido às “continentais” dimensões do território brasileiro. Desta forma,
promove-se o intercâmbio de testemunhas entre as regiões nacionais e aumenta-se
a margem de segurança/proteção às mesmas.
Para garantir esse funcionamento o PROVITA possui uma estrutura que
garante o exercício da parceria entre o Estado e a sociedade civil organizada, por
meio de instâncias com papéis e objetivos definidos.
A CENTRAL Nacional, instância responsável pela organização e
monitoramento dos casos federais e das permutas exerce um dos papéis mais
estratégicos do Sistema, pois é responsável pela Identificação da rede estadual que
acolherá, mais apropriadamente, os núcleos sob proteção. Este trabalho exige
habilidade para entrecruzar informações – necessidades dos usuários versus as
condições estruturais de cada rede – para, desse modo, facilitar o processo de
adaptação.
1 A exceção do programa de proteção sul-matogrossense, todos os demais programas possuem legislação
estadual. 2 Chamarei assim o conjunto das 18 redes estaduais de proteção e as demais instâncias como Conselhos
Deliberativos, CGPT, Equipe Central, de Monitoramento, etc.
16
O trabalho da CENTRAL, principalmente a execução do programa federal de
proteção (que cuida dos casos federais), não pode ser exercido sem a interação
com outra importante instância que é a Coordenação Geral de Proteção as
Testemunhas – CGPT. A CGPT está inserida na Secretaria Especial de Direitos
Humanos da Presidência da República – SEDH/PR e tem dentre outras atribuições,
coordenar o Sistema PROVITA, a equipe de monitoramento (esta em conjunto com
a Sociedade Civil), além de obter e repassar informações sobre andamentos
processuais dos casos em proteção e sobre os familiares dos usuários em seus
locais de origem.
Outra instância que desempenha importante tarefa nessa estrutura é a Equipe
Nacional de Monitoramento, a qual é formada por técnico/as oriundos de programas
estaduais e que apresentam destaque e acúmulo no desempenho de suas
atividades, além de outros critérios específicos. Suas funções incluem a fiscalização
e supervisão dos procedimentos técnicos e, ainda, a difusão de boas práticas, a
partir do intercâmbio de intervenções exitosas no âmbito do Sistema.
Finalmente os Conselhos Deliberativos são colegiados constituídos por
instituições de segurança pública e justiça, secretarias estaduais, além de entidades
de Direitos Humanos. Têm como função precípua a análise dos pedidos de ingresso
ou de exclusão de testemunhas. Mas também, tem a responsabilidade de
acompanhar a adaptação, via relatório técnico, dos casos em proteção e, ainda,
determinar os tetos para gastos com os protegidos.
Obviamente, toda essa estrutura que visa primordialmente a segurança dos
usuários, impele estas pessoas a viverem sob rigorosas regras de segurança, o que
produz um claro cerceamento em suas vidas. Ou seja, o modelo de funcionamento
do programa brasileiro de proteção a testemunhas, em nome da vida e da
preservação da integridade física, restringe alguns direitos previstos na Declaração
de 1948.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, a Constituição
Federal de 1988 (a chamada “Constituição Cidadã”), além dos pactos internacionais
sobre os direitos civis e políticos e sobre os direitos econômicos, sociais e culturais
(ambos de 1966 e ratificados pelo governo brasileiro em 1992), “ditam” as regras
sociais, no sentido de legislar sobre a ordem, os relacionamentos nos espaços
17
coletivos e a interação entre os cidadãos e o Estado. Na prática dos deveres e no
usufruto dos direitos, estes documentos servem como importantes balizadores de
uma ampla organização social.
A partir de alguns artigos da Declaração Universal é possível identificar como
a dinâmica do PROVITA, paradoxalmente à sua proposta basilar, limita e interfere o
gozo pleno dos direitos dos usuários:
“Ninguém será sujeito a interferência na sua vida privada, na sua família,
no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques a sua honra e
reputação. Todo homem tem direito à proteção da lei contra tais
interferências ou ataques” (Art. 12). É inviolável o sigilo da correspondência
e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas,
salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei
estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal
(Art. 5º, Inciso XII, CF/88). O monitoramento da vida pessoal e social dos
usuários, as visitas domiciliares freqüentes e a leitura de correspondências
(recebidas e enviadas) são atividades cotidianas das equipes que
acompanham os usuários, inclusive com previsão dessa atividade em Termo
de Compromisso assinado pelos protegidos no seu ingresso. Obviamente que
tais medidas representam a manutenção da segurança e visam controlar os
contatos e preservar o sigilo quanto à localização das redes de proteção.
Entretanto, por mais pedagógico que seja o investimento técnico no
esclarecimento da importância de tais ações, elas não deixam de ser
invasivas e desconfortantes para os usuários.
“Todo o homem tem direito à liberdade de locomoção e residência
dentro das fronteiras de cada Estado” (Art. 13). É livre a locomoção no
território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da
lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens (Art.5º, Inciso XV,
CF/88). A limitação sobre o livre trânsito de pessoas sob proteção também é
uma medida restritiva, contudo necessária à preservação da vida. Os usuários
não podem sair de seus locais de proteção (cidade) sem a prévia consulta e
avaliação das equipes técnicas, pois uma exposição desnecessária, além de
fragilizar a segurança, pode resultar no imediato remanejamento para um
novo local, o que por sua vez representa novo rompimento com os laços
18
sociais já estabelecidos e no surgimento de crise, comum aos processos de
mudanças abruptas.
“Todo o homem tem o direito de tomar parte no governo de seu país
diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos”
(Art. 21, Inciso I). A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e
pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei
(Art.14, CF/88). Infelizmente, o exercício do voto é vetado para quem está
sob ameaça e em proteção, devido à possibilidade de rastreamento por parte
dos algozes. Parece muito contraditório se investir maciçamente em conquista
de cidadania e promoção social e, por outro lado, a cada novo pleito eleitoral
impedir os usuários de exercerem seu direito de participar da escolha de
nossos governantes. Todavia, mais uma vez, o aspecto segurança à vida é
imperativo neste processo, já que através do domicílio eleitoral e da votação
regular nas eleições, é possível identificar a rede de proteção e, assim,
ameaçar a integridade física dos protegidos.
“Todo o homem tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a
condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o
desemprego” (Art. 23, Inciso I). É livre o exercício de qualquer trabalho,
ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei
estabelecer (Art.5º, Inciso XIII, CF/88). Outro grande nó do programa de
proteção a testemunhas é a limitação no exercício de atividade laborativa
formal com o devido registro em carteira profissional, devido à possibilidade
de localização pelo número do Programa de Integração Social – PIS/PASEP
(contribuição social de natureza tributária), a partir do acesso do cadastro de
qualquer agência da caixa econômica federal. Este processo é mais simples
do que se imagina, já que pelo número do Cadastro de Pessoa Física é
possível identificar o registro profissional, caso o usuário tenha sua carteira
assinada. Esta é mais uma contradição que precisa de uma intervenção
estratégica para assegurar a sigilosidade desse cadastro, vez que um dos
aspectos fundamentais que caracterizam um processo de autonomia
ordenado é a conquista de um trabalho formal, regular, que ofereça ao
trabalhador/trabalhadora um salário sistemático, além dos demais benefícios
necessários à sua manutenção e a de sua família.
19
Ao que transparece nessa correlação entre o que preconiza a Declaração de
1948 e a Constituição Federal de 1988 com o modus operandi do PROVITA, não há
outra maneira conhecida de se preservar a ameaçada integridade física dos
usuários, senão sob essa indelével dinâmica de proteção. É neste contexto adverso
e, digamos, alucinante, que as equipes precisam espraiar o seu saber e lançarem-se
aos desafios impostos. Primeiro virá o desafio técnico de uma atuação dentro da
perspectiva da interdisciplinaridade, para que se atinja, a partir do entrecruzamento
das ciências participantes do processo, um novo entendimento que indique o
caminho das intervenções e resoluções.
Em seguida, porém tão indispensável quanto, a abordagem do usuário para
além das questões exclusivamente sociais, mas na sua totalidade, buscando o
rompimento com o ciclo de submissão e passividade que o tornam tão frágil nas
suas relações com o mundo. Isto é, pretende-se o gozo da cidadania, no sentido
proposto pelo Professor Coutinho (1994):
É a capacidade conquistada por alguns indivíduos, ou (no caso de uma democracia efetiva) por todos os indivíduos, de se apropriarem dos bens socialmente criados, de atualizarem todas as potencialidades de realização humana abertas pela vida, a social em cada contexto historicamente determinado.
20
Capítulo II: Saúde mental versus morosidade da justiça.
Falar sobre saúde mental é abordar um complexo tema. Relacioná-lo a
fatores como a lentidão da justiça torna-o ainda mais complexo. É importante nortear
essa discussão a partir de algumas concepções, a fim de dar base à relação da
saúde mental com o programa de proteção.
Na conceituação da OMS, saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social que não se caracteriza unicamente pela ausência de doenças. Singer (1987) acredita que esta formulação inclui as circunstâncias econômicas, sociais e políticas, como também a discriminação social, religiosa ou sexual; as restrições aos direitos humanos de ir e vir, de exprimir livremente o pensamento... Este conceito reconhece como paradoxal alguém ser reconhecido com saúde mental, quando é afetado por pobreza extrema, discriminação ou repressão. O autor argumenta que, nesse sentido, a formulação da OMS relaciona a saúde da pessoa com o atendimento de suas necessidades e as possibilidades do sistema sócio-econômico e sociopolítico em atendê-las.
Assim, a doença não resulta apenas de uma contradição entre o homem e o meio natural, mas também, necessariamente, da contradição entre a pessoa e o meio social. Pensar a questão da saúde mental é, antes de tudo, pensar sobre o homem e sobre sua condição de “ser” e “estar-no-mundo”. Aristóteles, precursor da psicologia, definiu o homem como um ser racional, destinado a viver em sociedade. Diz Mounier que o primeiro movimento que revela um ser humano, na primeira infância, é um movimento em direção ao outro. Essa necessidade de relação com outros é descrita por Fromm (1981) como um imperativo do qual depende a saúde mental dos homens. As concepções filosóficas de Marx (1986) definem o homem como um conjunto das relações sociais, tendo como atividade vital o trabalho. Para o autor, o conceito de homem sadio baseia-se na liberdade e independência, sendo, ao mesmo tempo, ativo, relacionado e produtivo (FILHA, et al., 2003).
Diante do descrito acima, começamos a correlacionar os rebatimentos do
modelo de proteção do PROVITA na saúde mental dos usuários. Em que pese a
clara necessidade em preservar a vida, enquanto um dos direitos mais
fundamentais, o processo de proteção não é tranqüilo.Talvez a fase inicial da
proteção descreva um pouco a complexidade a que nos referimos.
Os usuários quando ingressam na proteção precisam utilizar “estórias de
cobertura” (algo que proteja sua identidade) que justifiquem a sua chegada numa
nova comunidade. Afinal, trata-se de um “forasteiro” com sotaque e hábitos
diferentes das pessoas daquele local, então, o que ele faz aqui?
Esta estratégia distancia e limita as interações sociais, pois é arriscado
manter intimidade com as pessoas originárias em função do risco de ser desvelada
sua real condição (testemunha protegida). Ademais, fica difícil construir relações
21
estáveis e sadias se, aprioristicamente, estas tem um limite imposto pelo fator
segurança, onde não há total independência para se envolver com as pessoas.
É essencial que se traga para essa discussão aspectos norteadores da
intervenção profissional, a fim de que as estratégias tenham embasamento técnico
adequado e sustentem atendimentos qualificados.
Segundo a abordagem proposta por Regina Benevides (2002a, p. 174-175),
fica óbvia a necessidade de primar por análises técnicas criteriosas e contextuais:
Em primeiro lugar, cabe lembrar que o termo saúde mental vem, na maior parte das vezes, atrelado à idéia de promoção de saúde mental. Tal noção, veiculada por muito tempo e ainda hoje presente no cenário das práticas psi, está associada à uma concepção de prevenção da doença mental. Para prevenir é necessário que se tenha uma definição do que é certo ou errado, do que é doente ou são, normal ou patológico, tornando possível estabelecer medidas de prevenção da doença mental e, conseqüentemente, promoção de saúde mental. Isto pressupõe uma espécie de lista de características a serem atingidas em menor ou maior grau, menor ou maior quantidade de itens. Observe-se que os termos – saúde e doença – são apresentados como pólos de uma linha contínua em que quantidades de distúrbios podem ser mensurados e qualificados segundo seu grau de periculosidade e desagregação mental [...] se o profissional acredita numa concepção de saúde mental como a que delineamos acima, em que padrões já pré-definidos estipulam comportamentos normais X anormais, etc., as técnicas de que se servirá estarão voltadas para uma investigação sobre o indivíduo, sua história, sua estrutura mental, a configuração de sua família... enfim, fatores referidos ao sujeito.... No campo das práticas psi, os efeitos dessas assertivas implementaram uma visão positivista, classificatória e despolitizada, anistórica, reafirmando a dicotomia indivíduo/coletivo implantada.
Desta maneira, a prática das equipes técnicas deve considerar o contexto no
qual está inserido esse indivíduo, a partir da dinâmica de proteção imposta e sob
uma condição que o vulnerabiliza, a fim de que se façam análises mais precisas de
uma determinada realidade. Um relato deve ser ouvido como um enunciado
sociopolítico, produzido num determinado período e não como um processo
individual e que mobiliza um sujeito em seu sistema pessoal de valores.
Assim, qual deve ser o rebatimento da falta de apuração devida das
denúncias que representam o marco da mudança brusca na vida dos usuários?
Considerada como uma ação que contribui para um sentimento de desesperança, a
morosidade da justiça fomenta a impunidade e desperta nos usuários
questionamentos quanto à credibilidade do Poder Judiciário. Segundo o Relatório do
Tribunal de Contas da União (2005, p.38) “o sistema de justiça não dá a devida
prioridade para os processos que envolvem testemunhas protegidas (pois) a matéria
22
não está regulamentada no ordenamento jurídico [...] Para priorizar tais processos,
seria preciso que o Código de Processo Penal contivesse dispositivo específico”.
Muitas testemunhas protegidas denunciam violências que sofreram e, por
esta razão, têm clara a expectativa de resolução de seus processos. A lentidão
judiciária brasileira tornou-se uma cultura no âmbito do Poder Judiciário e da
sociedade como um todo. Os excessivos números de processos em detrimento do
déficit no número de magistrados, além de vários recursos e medidas jurídicas que
muitas vezes são utilizadas para postergar prazos, carentes de uma reforma
imediata, são os principais responsáveis pelo emperramento processual, fato que
dificulta sobremaneira o implemento da justiça e torna mais verossímil um velho dito
popular que diz que “a única justiça certa é a divina, pois a dos homens é falha”.
Informações como esta devem levar a refletir sobre a carga de sofrimento
psíquico e o culto a total descrença na justiça que deve compor o imaginário dos
usuários, até porque estes são diretamente atingidos por este processo perverso de
omissão e negligência judiciária.
Benvenuto (2005, p.19) sintetiza bem este pensamento quando afirma que:
O Poder Judiciário brasileiro está passando por um momento de turbulências, em que estão sendo apontados, entre outras, sua ineficiência e sua distância dos setores sociais mais necessitados. Num contexto de globalização acirrada em que todas as prioridades públicas se voltam ao cumprimento das metas econômicas, o que está sendo questionado é o papel do judiciário enquanto garantidor dos direitos de todos os cidadãos, levando em consideração sua construção histórica como instituição protetora dos direitos das faixas mais elitistas da sociedade.
Como utilizar os mecanismos de proteção e promoção de direitos humanos já
conquistados considerando estes fatos? O objetivo primeiro da proteção às
testemunhas no Brasil é a efetivação da justiça e a luta conta a impunidade, a partir
do resguardo da prova testemunhal. Sobre este aspecto, os ministérios públicos
estadual e federal, além do tribunal de justiça, são constantemente acionados para o
cumprimento de seu papel. Inclusive, via representantes destas instituições no
Conselho Deliberativo do PROVITA, as equipes técnicas cobram atualizações
jurídicas por meio de inúmeros documentos (relatórios, ofícios, tabelas jurídicas,
etc.).
23
Capítulo III: O processo de inserção social e a superação da tutela do modelo
de proteção.
Inicialmente, faz-se necessário definir o que as equipes técnicas classificam
como “inserção social”. Viver de forma autônoma pressupõe aprioristicamente,
atividade laborativa remunerada e adaptação à dinâmica da comunidade na qual se
está inserido. Para o cumprimento desses critérios é necessário investimento
técnico. Qualificar profissionalmente os usuários, motivá-los à retomada de seus
estudos, encaminhá-los para os serviços públicos que promovam o desenvolvimento
social do cidadão, via aprendizagem técnica e, ainda, tentar incluí-los em políticas
locais de habitação, contribuem para o alcance da autonomia social e,
posteriormente, para a independência total do programa tão logo sejam efetivamente
desligados do programa. Este conjunto de ações e características formatam a idéia
de inserção social que as equipes estaduais diuturnamente intentam propiciar aos
usuários do PROVITA.
Também é necessário considerar aspectos subjetivos que transversalmente
perpassam o processo de inserção, pois a maioria do público protegido pelo
PROVITA advém de classes sociais baixas e, portanto, é essencial que se
considerem as dificuldades de acesso à educação, ao desenvolvimento de
habilidades e as diversas violações de direitos na sua história, fato que exigirá um
investimento técnico específico e mais pormenorizado. É importante, ainda,
considerar o desejo dos usuários, já que se não houver a compreensão do usuário
sobre o processo de autonomia – talvez porque não perceba sua importância – não
será possível garantir sua aderência a tal proposta e, logo, o processo pode ser
inviabilizado. Sem a devida atenção a estas questões as equipes tendem ao
insucesso.
De maneira sintética, pode-se dizer que o programa protege uma prova
testemunhal. Entretanto, esta “prova” é uma vida humana, e como tal, precisa ser
atendida em todas as suas necessidades: sociais, culturais, econômicas e etc. Não
podemos nos esquecer que a permanência no PROVITA é provisória e quando esta
se encerrar, como e aonde o usuário irá se manter? Desta forma as organizações
não-governamentais que gerenciam o acompanhamento dos usuários, preocupam-
se com a reparação e/ou promoção dos direitos destes.
24
Para tal, estas entidades buscam oferecer subsídios que promovam a
inserção social do usuário do PROVITA. O conjunto de ações descrito anteriormente
(retomada e/ou a conclusão de estudos dos usuários, a sua qualificação profissional
e etc.) precisa obviamente da retaguarda de políticas públicas, dos serviços
oferecidos por instituições privadas e da cooperação de organizações não
governamentais parceiras, para assegurar sua efetivação. Assim, a mobilização de
redes de serviços estatais e redes sociais darão a retaguarda essencial ao tão
almejado processo de inserção dos usuários sob proteção. Obviamente, a relação
da sociedade civil com o Estado, no caso da gestão do PROVITA não está de
acordo com os princípios que caracterizam uma parceria de fato, a partir de uma
ordem paritária e horizontal. Trata-se de uma relação historicamente tensa e não
seria diferente na concretização desse programa.
Aqui é necessário lembrar que o lugar ocupado pela sociedade civil no
PROVITA dá-se em função de uma enorme lacuna deixada pelo Estado. Ora, se o
Estado constitui-se como o principal violador de Direitos Humanos – quer
diretamente, pela ação de agentes de segurança envolvidos nos crimes
denunciados e/ou em ameaças às testemunhas, quer “indiretamente” a partir da
ação morosa da justiça ou de serviços públicos ineficientes – a sociedade civil
organizada surge, então, como o ente com mais legitimidade e credibilidade para
conduzir o acompanhamento dos usuários sob ameaça.
Logo, percebemos que se trata de um trabalho árduo. Outro elemento
dificultador refere-se ao contexto circundante do processo de proteção. Afinal, os
usuários estão abrigados em cidades brasileiras que por sua vez, estão expostas às
mazelas que bem conhecemos: políticas públicas insuficientes, violência urbana
crescente, altos índices de desemprego. Ademais, devemos considerar a relação
entre o competitivo mercado de trabalho versus a baixa escolaridade/qualificação e
pouca experiência profissional comprovada dos usuários. Algumas vezes, a inserção
(verdadeiramente autônoma) não é alcançada. Ou seja, neste acompanhamento vão
surgindo as dificuldades, resultantes principalmente de uma história de vida
ordinariamente violada em seus direitos.
Desta forma, com um acompanhamento técnico mais ampliado (para além do
simples resguardo da “prova testemunhal”) se pretende dar a atenção necessária ao
que preconizam os diversos documentos formulados à adequada manutenção da
25
dignidade humana. Estamos falando da necessidade de se investir num trabalho
embasado técnica e politicamente, de cunho educativo, pedagógico mesmo, com
fins de promoção social e de cidadania, como tão bem nos esclarece Demo:
No fenômeno da exclusão social, a substância mais característica é política, não propriamente econômica, já que, mais que não ter, está em jogo não ser. A exclusão mais comprometedora não é aquela ligada ao acesso precário a bens materiais, mas aquela incrustada na repressão do sujeito, tendo como resultado mais deletério a subalternidade” (1988, p. 106, grifo nosso).
Outro aspecto interessante que deve ser considerado no planejamento da
intervenção refere-se ao que pode ser descrito como um processo de perda
gradativa de autonomia e, conseqüente, expansão de uma relação de dependência.
Os técnicos buscam contrapor esse movimento, porém muitos usuários delegam ao
Estado a responsabilidade sobre suas vidas, talvez por acreditarem que esse ente é
seu devedor, em função de sua contribuição com a justiça. Também, não se pode
negar que esta dependência pode ser gerada pela equipe técnica, refém de um ciclo
do “tudo deve atender, suprir, obter, satisfazer...”, colocando (ou cristalizando) os
usuários na condição de desvalidos, submissos e incapazes. São extremos
perigosos, mas ainda bastante presentes na relação entre equipes e usuários.
Parece que o modelo de proteção também, subseqüentemente,
institucionaliza os usuários, pois de certa maneira há certa padronização das ações
habituais e controle, em função do cerceamento imposto pelo conjunto de normas de
segurança que constitui o modo da proteção.
De maneira sintética, este é um conceito proposto pela enciclopédia virtual
Wikipédia (2009) sobre Instituição Total:
É aquela que controla ou busca controlar a vida dos indivíduos a ela submetidos substituindo todas as possibilidades de interação social por "alternativas" internas. O conjunto de efeitos causados pelas instituições totais nos seres humanos é chamado de institucionalização (grifo nosso).
Este termo surge na Inglaterra no período pós-revolução industrial, com o
advento de uma série de instituições que ascenderam para atender a demanda de
inúmeras categorias/classes vulneráveis, geradas pelas mudanças sociais
desordenadas e econômicas daquele período. Então, foram criadas ou ampliadas
instituições de educação, saúde, assistência social, abrigos. Ou seja, orfanatos,
manicômios, asilos, dentre outras. Algumas características das denominadas
instituições totais como desrespeitos aos direitos humanos, cerceamento de
26
liberdade e confisco de objetos pessoais, rigorosas regras disciplinares, modelo de
gestão baseados na hierarquia e punição, etc., podem dar a idéia de quais são os
possíveis desdobramentos à saúde mental dos internos dessas organizações. Desta
forma, parece existir uma correlação (ou uma pré-disposição) entre a proposta de
proteção do PROVITA e o sofrimento ou dificuldades conseqüentes desse processo.
Não se trata de mera especulação pessimista, mas de apresentar elementos para
nortear intervenções técnicas mais eficientes e contextualizadas, considerando os
desafios descritos no acompanhamento técnico de testemunhas ameaçadas.
27
Capítulo IV: As repercussões subjetivas produzidas pelo PROVITA.
Ao chegar ao capítulo final do presente trabalho, noto que falar sobre as
subjetividades produzidas nos usuários que aderem ao Programa de Proteção, é
uma atividade difícil, pois não se trata de tema de simples descrição. Entretanto,
percebo que ao longo dos outros capítulos este assunto foi bastante abordado
quando discorri sobre a saúde mental dos usuários e o seu processo de inserção
social.
Sabemos que o sujeito se constitui, se constrói em sua interação com o
mundo circundante, sendo que experiências semelhantes podem produzir variadas
sensações/percepções/apreensões dependendo de quem as sofre. Reforçando essa
observação, Almeida (2002) nos alerta, baseada nas suas pesquisas sobre Violência
e Subjetividade que “um primeiro ponto a ser discutido refere-se às formas de
apreensão das distintas modalidades de violência por diferentes sujeitos. Mais do
que isto: é preciso tematizar a possibilidade destas formas de violência produzirem
determinados sujeitos (p. 45)”
Tedesco (2006) em sua pesquisa sobre a prática clínica e os processos de
subjetivação, descreve o seguinte:
[...] falar de subjetividade é falar de uma maquínica, de um processo de produção dirigido à geração de modos de existências, ou seja, modos de agir, de sentir, de dizer o mundo. É analisar um processo de produção que tem a si mesmo, o sujeito, como produto. Precisamos entender a subjetividade ao mesmo tempo como processo e produto. Como produto reencontramos a noção de sujeito, objeto de estudo das ciências humanas, figura cujos limites são delineados por regularidades garantidas por princípios gerais de funcionamento. No entanto, lembrados por Scherér (1998) concordamos que „seria um erro não reconhecer que esta forma regular corresponde apenas a um instante único da subjetividade, um momento de um processo maior, uma fase de uma atividade contínua de produção de si (p. 64).
Isto é, não é possível entender esse conceito se não considerarmos o sujeito
em sua totalidade, de forma ampliada, seu movimento constante e sua localização
num contexto, pois “o eu, a identidade é produto das interações de corpo e da
consciência com o mundo, o que por sua vez é conseqüência da relação dialética
histórica entre objetividade e subjetividade num contexto social (Maheirie, 2002)”.
É imprescindível para esse trabalho lembrarmos que o ambiente onde o
usuário do programa de proteção está inserido é visto como hostil, principalmente
pelo fato do mesmo não manter nenhuma identidade com o local e por experimentar
28
inúmeras perdas (materiais e imateriais). Ser remanejado de sua cidade natal e
alijado da convivência das pessoas que compõem seu circulo familiar e social é uma
idéia extremamente desconfortante. Essa nova dinâmica de vida, delimitada por
regras de segurança, parecem afunilar a vida dos usuários, acanhando-a em sua
amplitude e impondo uma rotina diferenciada.
Como os profissionais das equipes poderão planejar um
atendimento/acompanhamento ante a esse contexto e a partir dessa realidade de
perda criada pelo modelo de proteção PROVITA? É óbvio que não se pode incorrer
numa abordagem aos usuários enquanto “vítimas” irremediáveis de um sistema
perverso, pois é necessário considerar a vida pregressa dos que ingressam na
proteção, afinal a permanência no Programa não representa toda a gama de
experiências vividas na sua existência.
Para que se inicie esse tracejamento do atendimento é interessante citar o
que, com muita propriedade, coloca Piovesan quando se refere à necessidade de
reconstrução do valor dos Direitos Humanos, face às atrocidades da 2ª grande
guerra: “Diante da ruptura, há a necessidade de reconstrução (2004, p.44)”. Então,
esse seria o primeiro passo a ser (digamos) investido pelos profissionais que
compõem as equipes técnicas, ou seja, a capacidade de superação do ser humano.
O acompanhamento técnico intenta dar o suporte necessário, facilitando a inserção
social e a ressignificação do episódio de violência que culminou com o ingresso do
usuário no PROVITA, de acordo com os estudos da Psicóloga Regina Benevides
(op. cit.):
[...] a reorganização da vida do usuário (por ele próprio) e a reconstrução de seus novos territórios existenciais – estes se referem à maneira de ser do sujeito, ao corpo, ao meio ambiente, ou seja, a todos os componentes que desenham uma existência – através da dimensão de alteridade encontrada no plano do coletivo, a qual nos força constantemente à abertura para outros modos de experimentar a realidade (2002b, p. 217).
Ou seja, é necessário identificar os desejos dos usuários. O que pretendem?
O que preferem? Quais possibilidades sua capacidade de superação lhes sugere? É
sabido que o desejo humano coloca o homem em movimento constante,
transcendendo-o desde sua origem, por tratar-se do impulso ao que não se possui
ou ao que não se é. E como é difícil coincidir o que se busca com o fato alcançado,
o ser humano continua nesse processo sistematicamente por toda a sua vida.
Portanto, esse movimento deve ser considerado pelas equipes técnicas.
29
Outro paradigma quebrado e que, conseqüentemente, constitui-se como
elemento gerador de novas subjetividades refere-se à lentidão da justiça na
apuração das denúncias das testemunhas ameaçadas. Ora, falar de combate à
impunidade é falar de promoção de direitos humanos e, obviamente, isto deve ser
concretizado por meio da efetivação da justiça.
Contudo, trato aqui de um poder judiciário historicamente moroso e que não
vem correspondendo a sua função essencial. Em um artigo intitulado “A crise do
judiciário no Brasil”, o sociólogo José Eduardo Faria (2005) nos afirma o seguinte:
[...] Considerado o mais atrasado poder da república, ele é visto como um inepto prestador de um serviço essencial por parte da sociedade. É visto ainda, pelos demais poderes, como uma instituição perdulária e insensível ao equilíbrio das finanças públicas, porque seus gastos com obras de discutível utilidade e suas sentenças, além de comprometer uma política econômica voltada a dar estabilidade monetária e bloquear iniciativas governamentais, travariam a reforma do Estado. [...] A „crise da justiça‟ se traduz pela ineficiência com que o judiciário desempenha três funções básicas a instrumental, a política e a simbólica (Santos et. al., 1996). Pela primeira função, o Judiciário é o principal locus de resolução dos conflitos. Pela segunda, ele exerce um papel decisivo como mecanismo de controle social, fazendo cumprir direitos e obrigações, reforçando estruturas de poder e assegurando a integração da sociedade. Pela terceira, dissemina sentido de eqüidade e justiça na vida social, socializa as expectativas dos atores na interpretação da ordem jurídica e calibra os padrões vigentes de legitimidade na vida pública (p. 23-24, grifos nossos).
Na realidade, a idéia aqui é confrontar funções idealizadas com a realidade
vigente. Entretanto, tais constatações não devem colocar a justiça numa posição de
total falência, até porque a intenção é encontrar formas de superação das
dificuldades existentes. Outrossim, não é possível imaginar uma sociedade sem um
ordenamento jurídico, tampouco acreditar pretensamente em civilidade sem o
amparo e a vigilância da instituição justiça.
Na história do programa de proteção, os tribunais de justiça estaduais sempre
figuraram entre as instituições mais ausentes das reuniões sistemáticas produzidas
pelos Conselhos Deliberativos, conforme informação da Equipe Nacional de
Monitoramento. Ademais, sua participação nas discussões sobre os reflexos do
emperramento processual sempre foram aspectos centrais das capacitações
nacionais, por representar um grande nó ao desenvolvimento e eficácia da proteção,
vez que no cotidiano do acompanhamento técnico, fica óbvio que o que
sustenta/mantém os usuários no programa de proteção não é a ação processual a
30
qual estão vinculados, mas a sensação de segurança que experimentam. Ou seja,
pode-se constatar que a credibilidade no trabalho do Judiciário é mínima.
O advogado Gustavo Ungaro, que já foi gerente nacional do PROVITA nos
anos 1999/2000, fez a seguinte citação num artigo sobre o Programa: “[...] o
sentimento de que pessoas não são punidas quando lesam outras, por exemplo, ou
a convicção de que nada acontecerá se houver a prática de um crime – pode
comprometer a confiança na justiça (2001, p. 42)”
Tal descrença motiva as pessoas a se apegarem demasiadamente à proteção
do PROVITA, inclusive crendo que seu testemunho faz do Estado um devedor seu,
o que resulta numa dependência quase total do aparato estatal para sua
sobrevivência. Isto sugere que os usuários também barganham com a justiça, numa
relação utilitária, exatamente como se sentem quando o andamento processual de
suas denúncias simplesmente não caminha.
Para ratificar esta afirmação, trago para essa discussão uma observação de
Almeida (2001, P. 12), onde a autora descreve que o rompimento abrupto no curso
da vida dos usuários dessa política de proteção os coloca ante aos novos elementos
que precisam ser adotados para garantia da continuidade de suas histórias: “é a
partir da dor como geradora de um lugar social, que esses sujeitos, ao se
confrontarem com situações-limite, buscam negociar suas novas condições de vida,
passam a contrair novas relações que atravessarão novas culturas”.
Quanto ao aspecto tutelador dessa proteção – que a meu ver fomenta uma
relação de dependência, a qual aniquila a autonomia das testemunhas ameaçadas –
este também constitui-se em nova subjetividade que permeará a vida dos usuários,
não só durante a proteção efetiva, mas os acompanhará por muito tempo em suas
trajetórias.
O modelo de proteção cria essa condição de incapacidade parcial, por vários
elementos: 1) as regras de segurança não permitem o livre acesso ao trabalho
formal; 2) muitas vezes a aquisição de documentação (por exemplo, carteira de
habilitação) não pode ser realizada; 3) há restrições de atendimentos em unidades
públicas de saúde no caso de procedimentos mais complexos, como exames
especializados ou cirurgias; 4) é vedada a livre participação em certames para vagas
em cargos públicos. Enfim, esse rol poderia ser bastante extenso, porém já é
31
possível alcançar a idéia central de limitações de direitos em função da preservação
da integridade física dos usuários, posto que quaisquer ações que identifiquem o
nome da testemunha num banco de dados ou cadastro, bem como denuncie sua
localização geográfica são radicalmente proibidas. As restrições listadas acima são,
para a maioria dos cidadãos brasileiros, atividades cotidianas e imprescindíveis para
garantir autonomia econômica, social e emocional. Como os usuários do PROVITA
podem ao mesmo tempo construir independência sem ferir a segurança? Este
desafio é enfrentado diuturnamente pelas equipes técnicas que exploram diversas
estratégias de intervenção, criam projetos sócio-político-pedagógicos e, ainda,
consideram a carga de habilidades (ou de deficiências), aptidões, identidades e
expectativas dos usuários, além de contarem com a retaguarda de uma ampla rede
de parceiros solidários, a fim de garantirem (ou ao menos pretenderem) o
cumprimento de um processo de inserção e autonomização social.
32
Metodologia:
A presente pesquisa será encaminhada baseada em análises documentais e
bibliográficas pertinentes à temática suscitada, em acordo ao que tão bem nos
esclarece Salomon (1999) sobre pesquisa bibliográfica: “É o conjunto de obras
derivadas sobre determinado assunto, escritas por vários autores, em épocas
diversas, utilizando todas ou parte das fontes”. Assim, como o programa de proteção
é uma política relativamente nova, mas que já possui um significativo material escrito
produzido, é possível analisar tais documentos, correlacionando-os com a
experiência profissional desenvolvida em uma década no PROVITA/PARÁ.
Trata-se de uma pesquisa com abordagem qualitativa – a partir da definição
proposta por Denzin and Lincoln (1994; apud Creswell, 1998, p. 14): “Pesquisa
qualitativa tem vários focos, envolvendo a interpretação numa abordagem natural do
assunto. [...] o pesquisador estuda as coisas em seus ambientes naturais, tentando
dar sentido ou interpretar um fenômeno do jeito que as pessoas o vêem”. Baseado
nessa concepção, este trabalho parte da análise da relação indissociável entre a
subjetividade humana e o mundo objetivo e, visa a interpretação de fenômenos
produzidos nessa interação, buscando revelar seus significados.
A opção por esta modalidade de pesquisa deve-se pela dificuldade em
quantificar o objeto em foco e pela facilidade de acesso à significativa documentação
produzida em anos de acompanhamento/atendimento de usuários do PROVITA.
São inúmeros os textos, relatórios técnicos e artigos que abordam em seu
bojo, dentre outras questões, o modo como os protegidos percebem sua condição e
se colocam ante a dinâmica imposta pelo atual modelo de proteção às testemunhas
no Brasil.
Dessa forma, o universo pesquisado será a documentação produzida pela
equipe técnica do PROVITA/PA em 10 anos de efetivo exercício e na bibliografia
científica sobre as teorias que sustentam essa pesquisa como, subjetividade
humana, saúde mental e Direitos Humanos.
33
Discussão dos Resultados:
Sabemos que o programa de proteção as testemunhas, em nome da
preservação da integridade física, remaneja os usuários para local distante de sua
terra natal e, para mantê-los sob proteção, restringe aos mesmos alguns direitos a
fim de garantir-lhes segurança. Tais ações, obviamente, influenciam/interferem no
modo como essas pessoas sentem e percebem o mundo.
O argumento para este trabalho baseia-se na tentativa de desvelar aspectos
subjacentes dos usuários na sua relação com o PROVITA e com as equipes
técnicas que os acompanham. É no meio dessa complexa dimensão humana que
tentarei trazer comentários que contribuam para a discussão acerca da temática.
Por tratar-se de uma pesquisa qualitativa, com análise documental e
bibliográfica (além da vivência profissional enquanto membro da equipe técnica do
PROVITA/PARÁ) os resultados ou constatações serão analisados a partir do que
propõem as questões-problemas, quais sejam: morosidade da justiça, tutela do
Estado e as conseqüências dessas situações na saúde mental dos protegidos.
Quanto ao aspecto jurídico suscitado, pode-se constatar que a descrença no
judiciário é um fato junto aos usuários quando estes ficam sob proteção por um
tempo médio bem acima do prazo legal de 2 anos, conforme preconiza a Lei Federal
9.807/99 em seu art. 11. Ora, a permanência prolongada dá-se também pela
ausência de uma movimentação processual célere, satisfatória. Os usuários
descredibilizam a justiça porque vêem em sua denúncia (testemunho) o marco que
determinou uma mudança brusca e avassaladora em suas vidas, mas apesar disso,
não são priorizadas pelo sistema judiciário.
Trata-se de um processo que lhes traz, em algum grau, sofrimento psíquico.
Pode-se perceber, portanto, que há comprometimento no grau de resiliência dos
usuários, em virtude da lentidão da justiça.
Nos domínios das ciências humanas e da saúde, o conceito de resiliência faz referência à capacidade do ser humano responder de forma positiva às situações adversas que enfrenta, mesmo quando estas comportam risco potencial para sua saúde e/ou seu desenvolvimento. Esta capacidade é considerada por alguns autores como uma competência individual que se constrói a partir das interações entre o sujeito, a família e o ambiente. (Silva, et. al., 2003).
34
Obviamente, nem todos que experimentam situações calamitosas e negativas
ou que crescem em ambientes adversos necessariamente desenvolverão problemas
emocionais. A psicologia reconhece que o ser humano tem grande capacidade de
adaptação e de superação de dificuldades. Contudo, a desvalorização da denúncia
de uma testemunha que sofre perdas materiais e imateriais com essa ação,
logicamente reverbera na estrutura emocional desse indivíduo, desencadeando
quadros de adoecimento como, depressão, estresse pós-traumático e até surtos
psicóticos; além disso, quadros de dependência alcoólica e de outras drogas
também tendem a se agravar com a mudança súbita que os usuários são
submetidos.
Outra conseqüência da falta de efetivação de justiça é o recrudescimento do
sentimento de impunidade. Esta constatação alinha-se com o pensamento de
Bekerman (2000, p. 110 apud Mourão, 2002, p. 55) “a impunidade produz
subjetividade”:
A autora aponta, não uma correlação, mas uma justaposição entre impunidade e violação de direitos humanos, como „faces da mesma moeda‟, constituindo um sistema perverso cujo núcleo seria um Estado não cumpridor de seu papel. Os crimes de poder (e de seus agentes), instalados nesse contexto de impunidade – por meio de novos e inúmeros aparatos de controle – seriam sustentados e legitimados, em última análise, pelo próprio poder.
Quando o tempo legal não é respeitado e os usuários não percebem um
andamento processual adequado, com o razoável cumprimento dos prazos, ocorre
também uma tendência à acomodação e à submissão de uma tutela do Estado que
“ora exerce sua proteção”, fato que culmina num dificultoso processo de autonomia
social e futura independência do Programa.
Não existe um estudo quantitativo sobre o número de usuários que
conseguem encampar um grau de autonomia que o desvencilhe economicamente
do PROVITA dentro desse prazo, mas o acompanhamento técnico, o qual é objeto
de análise constante seja nas reuniões semanais de planejamento das equipes seja
nas capacitações nacionais anuais, nos fornece dados empíricos que apontam um
alto índice de dependência da maioria dos usuários com os recursos financeiros
dispensados pelo programa e com a equipe que os acompanha.
Os usuários recebem um subsídio financeiro mensal, que deveria servir como
uma complementação de suas rendas. Todavia, a maioria não consegue exercer
35
atividade laborativa remunerada, por vários fatores tais como: falta de qualificação
profissional, riscos à segurança, acomodação, dentre outras. O fator acomodação
(que é que nos interessa nessa discussão) resulta, em grande parte, do período
excessivamente prolongado de permanência no PROVITA, fruto da morosidade
judicial, e que faz um claro contraponto à provisoriedade do processo de proteção,
característica que deveria funcionar como um estímulo à busca da autonomização
dos usuários, por demarcar o prazo para a cessação da proteção e do repasse de
recursos. Assim, o programa parece desvirtuar-se de sua essência, sendo que o
destaque recai sobre o seu aspecto assistencial, o qual deveria ser, ordinariamente,
secundário nesse processo, pois como nos adverte Demo (2002) “É este o drama da
assistência: fabrica beneficiários, ou, pelo menos, confirma a situação de
beneficiário. Na dialética contrária e complexa entre assistência e emancipação, esta
começa a surgir quando se consegue dispensar a ajuda”.
Ademais, outra faceta do descumprimento de papel da justiça sobre os
usuários é a “herança” da institucionalização, enquanto um processo experimentado
por pessoas que são submetidos ao controle excessivo de instituições nas quais
estão inseridos. Simbolicamente, o PROVITA cria “grades de proteção”, que são
formas de controle sobre os protegidos, por meio de rígidas regras de segurança em
nome da preservação da vida, enquanto bem maior. Ora, a submissão a uma
dinâmica diferenciada por um período maior do que o necessário (ou o suportável),
também é um dos saldos de um sistema judiciário deficitário, do qual dependem os
usuários desse programa.
É preciso registrar também que, apesar de minoritariamente, existem ótimas
experiências exitosas, frutos de intervenções técnicas qualificadas, onde usuários
são beneficiados por ações transformadoras em suas vidas. Com o aprimoramento
profissional, muitas famílias de protegidos ascendem socialmente, tornando-se
empreendedoras de pequenos negócios comerciais, porém grandes em matéria de
promoção social e de fortalecimento da cidadania. Outros se tornam ferrenhos
defensores dos direitos humanos, talvez por se “impregnarem” com essa temática, a
partir da vivência constante com os diversos movimentos sociais que compõem e
sustentam a estrutura da rede solidária de proteção. Há ainda os que apreendem a
importância dos estudos, dos cuidados com a saúde pessoal e coletiva, do respeito
36
à diversidade humana e os demais valores solidários que contribuem para a
instauração de uma sociedade verdadeiramente mais democrática.
Pode-se concluir que os efeitos do não cumprimento dos objetivos do
PROVITA, quais sejam a efetivação da justiça e a desconstrução de uma vigente
“cultura” de impunidade, além do aspecto tutelador gerado pelo Estado quando não
cumpre com sua atribuição histórica de administrador dos deveres e direitos dos
cidadãos, são preocupantes. Contudo, reitero que é importante lembrar que essa
percepção não deve significar a falência do PROVITA, pois como já destacado ao
longo desse trabalho, seus objetivos e ações intentam atender a uma demanda
coletiva nobre, reclamando arraigadamente respeito e valorização da dignidade
humana.
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Conclusão
É óbvio o fato de que subjetividades negativas são criadas a todo o instante
em nossas vidas. Temos a demonização do mulçumanismo gerada pela campanha
impetrada pelo governo Norte Americano à época dos atentados terroristas de 11 de
setembro de 2001; a criação de figuras como “os perigosos opositores subversivos”
nos “anos de chumbo”; o mito das “classes perigosas” que apregoa que
marginalidade está associada à pobreza e à raça negra; e atualmente, nos
deparamos com a moderna campanha de criminalização dos movimentos sociais,
encampada principalmente pela mídia, que nos faz lembrar o que acertadamente
coloca Cecília Coimbra “a mídia produz subjetividade por meio de esquemas
dominantes de significação e interpretação do mundo (2001, grifo nosso)”.
De acordo com a proposição inicial desse trabalho, acredito que as questões-
problemas suscitadas e que nortearam as discussões desse estudo foram bastante
debatidas. Elementos como o processo de perdas de referências, experimentado
pelos usuários a partir do seu remanejamento; o modelo tutelador de proteção que
gera dependência e dificulta a autonomia social e econômica dos mesmos; além da
recorrente lentidão do Judiciário, são indubitavelmente questões que
transversalizam a dinâmica de vida das pessoas sob proteção, determinando novas
formas de perceber e de sentir o mundo.
As novas subjetividades criadas a partir da experiência de ingressar no
PROVITA e a quebra e construção de novos paradigmas nesse processo são
colocadas principalmente com uma referência negativa. São oriundas de situações,
e episódios até traumatizantes, pois advém da violência que os usuários denunciam
ou pela negligência estatal em acolhê-los adequadamente, fatos que se desdobram
em significativo sofrimento.
Entretanto, não se trata, porém, com essa discussão de sugerir a inviabilidade
dessa política de proteção e assistência a vítimas e testemunhas, mas de propor o
enfrentamento de suas fragilidades, com o fito de superá-las.
É possível que o país promova a revisão legislativa necessária para auxiliar
no desemperramento da máquina judiciária e, ainda, fortaleça suas políticas
públicas, a fim de garantir a inclusão social cidadã das centenas de pessoas que se
dispõem a colaborar para o advento de uma justiça mais eficiente, com reflexos
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altamente positivos para toda a sociedade brasileira. Ora, mobilizar o Sistema de
Justiça e de Segurança Pública, enquanto entes responsáveis por alavancar
estratégias e ações que confrontem o crescente índice de violência vigente e o
perverso ciclo de silenciamento e impunidade bastante difuso na sociedade
brasileira atual, tornam o PROVITA um poderoso instrumento nesse processo.
Seria imperdoável se não se comentasse também sobre os avanços desse
programa: Inúmeras vidas protegidas; famílias assistidas em suas necessidades
materiais e sociais; atuação técnica interdisciplinar a partir do diálogo entre a
Psicologia, o Serviço Social e o Direito; a apreensão pelos usuários de valores
cidadãos e de direitos antes desconhecidos; mobilizações de várias instituições
públicas e não governamentais em torno de nobres objetivos comuns (combate à
violência e efetivação da justiça). Além disso, a garantia de participação efetiva e
sistemática da Sociedade Civil Organizada é uma proposta inovadora em nível
mundial junto a programas dessa natureza, posto que a ONU faz referências
positivas ao programa brasileiro e, inclusive, recomenda esse modelo a países da
América Latina que pretendem criar programas de proteção, principalmente por seu
aspecto democrático e por nunca ter registrado nenhuma perda de vida humana que
lhe é confiada à proteção.
É importantíssimo que se destaquem dois aspectos bastante positivos
alcançados pelo PROVITA ao longo de 13 anos de existência em nosso país:
primeiro é o de vir cumprindo com a proposição de uma ampla discussão acerca dos
direitos humanos. Isto pode ser constatado nos seminários transnacionais, nas
legislações específicas criadas, dentre outras atividades. O segundo reside na
construção de uma rede solidária que reúne parceiros bastante credibilizados na
área e que apesar de sua “invisibilidade”, auxiliam potencialmente na difusão da
cultura de combate à impunidade e realização da justiça em nosso país.
Para concluir, é interessante trazer para o texto a afirmação de Paoli (1997, p.
250): “[...] esses direitos (humanos) supõem a consideração da violência como
intrinsecamente ligada a uma política ampla, que se imprime na forma administrativa
do governo, nas relações de desigualdade e conflito, nos indivíduos, nas
mentalidades, nas heranças históricas”.
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