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Revista da Associao Nacional dos Programas de Ps-Graduao em Comunicao
Da cozinha sala de estar: um olhar sobre a gastronomia
no jornalismo cultural brasileiro
Renata Maria do Amaral1 Universidade Federal de Pernambuco
reamaral@gmail.com
Resumo: Destinado a apresentar os resultados da dissertao de mestrado Gastronomia: prato do dia do jornalismo cultural, este artigo apresenta um mapeamento do jornalismo gastronmico, inserido no contexto do jornalismo cultural brasileiro contemporneo. Optamos por centrar a anlise nos gneros crtica e crnica, por serem bastante freqentes no jornalismo cultural, em quatro veculos de circulao nacional. Observamos que as crnicas apresentaram duas caractersticas comuns aos veculos Claudia Cozinha e Carta Capital: a interatividade e a narrativa. Verificamos que a crnica se caracteriza como um espao da subjetividade, em que o narrador busca interagir com o leitor. J as crticas no apresentaram estratgias comuns Folha de S.Paulo e Gula, exceto pela titulao descritiva. As crticas so exemplos do jornalismo de servio, que oferece informaes para usufruto do leitor.
Palavras-chave: jornalismo gastronmico; jornalismo cultural; gneros jornalsticos
Abstract: This article aims to present the results of the dissertation Gastronomy: cultural journalism todays special, in which we started a mapping of gastronomical journalism into the context of Brazilian contemporary cultural journalism. We studied four publications and decided to focus the investigation in review and chronicle genres, as they are very usual in cultural journalism. We noticed that both chronicles sections in Claudia Cozinha and Carta Capital had two properties in common: interaction and narrative structure. Chronicles are distinguished as a place of subjectivity, where the narrator interacts with the reader and tries to start a dialogue with him. The reviews did not present strategies shared by Folha de S.Paulo and Gula, except for descriptive titles. Critics are part of what is called service journalism, in which the writer offers information that can be actually used by the readers.
Keywords: gastronomical journalism; cultural journalism; journalistic genres
1 Mestre em Comunicao pela UFPE.
www.compos.com.br/e-compos Abril de 2006 - 2/21
Revista da Associao Nacional dos Programas de Ps-Graduao em Comunicao
Rsum: Destin prsenter les rsultats de la dissertation du mastre Gastronomie: plat du jour du journalisme culturel, cet article prsente un aperu du journalisme gastronomique insr dans le contexte du journalisme culturel brsilien contemporain. Nous avons opt pour centrer notre analyse dans les genres critique et chronique, puisqu'ils sont assez frquents dans le journalisme culturel, dans quatre vhicules de circulation nationale. Nous avons observ que les chroniques ont prsent deux caractristiques communes aux vhicules Claudia Cozinha et Carta Capital: l'interactivit et la narrative. Nous avons vrifi que la chronique est caractrise comme un espace pour la subjectivit, o le narrateur cherche interagir avec le lecteur. Par contre, les critiques n'ont pas prsent de stratgies communes dans le journal Folha de S.Paulo et dans le magazine Gula, sauf pour les titres descriptifs. Les critiques sont des exemples de journalisme de service qui offre des informations pour l'usufruit du lecteur.
Mots cls: journalisme gastronomique; journalisme culturel; genres journalistiques
Resumen: Este artculo presenta los resultados de la tesina de mster Gastronoma: plato del da del periodismo cultural, que trae un panorama del periodismo gastronmico en el contexto del periodismo cultural brasileo contemporneo. Decidimos analizar los gneros crtica y crnica, que son muy frecuentes en el periodismo cultural, en cuatro publicaciones nacionales. Verificamos que las crnicas tienen dos puntos comunes a los magazines Claudia Cozinha e Carta Capital: la interactividad e la narracin. La crnica surge como un hogar de la subjetividad, en que el narrador intenta interaccionar con el lector. Las crticas, por su turno, solo tuvieron como estrategia comn al peridico Folha de S.Paulo e al magazine Gula la titulacin descriptiva. Las crticas son ejemplos del periodismo de servicio, cuyas informaciones son efectivamente utilizadas por los lectores.
Palabras clave: periodismo de gastronoma; periodismo cultural; gneros de periodismo
www.compos.com.br/e-compos Abril de 2006 - 3/21
Revista da Associao Nacional dos Programas de Ps-Graduao em Comunicao
Introduo
O jornalismo gastronmico um dos temas do jornalismo cultural que mais
vem crescendo no Brasil, juntamente com a importncia da prpria gastronomia. O
assunto deixou de ser perifrico para se tornar comum em jornais e revistas. Em vez
de freqentar apenas as sees de receitas das publicaes femininas, como
antigamente, a gastronomia agora figura como assunto recorrente em publicaes de
todos os tipos, voltadas para pblicos variados. Nosso objetivo principal com este
artigo, que resume os resultados da pesquisa de mestrado Gastronomia: prato do dia
do jornalismo cultural, apresentar um mapeamento do jornalismo gastronmico,
inserido no contexto do jornalismo cultural brasileiro contemporneo. Partimos da
observao de que a crescente importncia desse tema na imprensa constitui um
fenmeno que se d paralelamente a uma valorizao do assunto na sociedade em
geral.
Optamos por centrar a anlise nos gneros crtica e crnica, por serem
bastante presentes no jornalismo cultural. Em seguida, demos incio coleta de
dados, que compreendeu todo o material publicado durante o ano de 2004 nas sees
de crtica Gula Indica Restaurantes (Revista Gula) e Mundo Gourmet (Folha de
S.Paulo) e de crnica P na Cozinha (Claudia Cozinha) e Refogado (Carta
Capital), num total de 145 textos. Como nossa inteno era dar incio explorao
sobre o tema, optamos por selecionar publicaes bem diversas para anlise. Duas
delas so revistas especializadas no assunto: enquanto a Gula tem um perfil refinado,
a Claudia Cozinha apresenta matrias e receitas mais cotidianas, mas vale ressaltar
que esse direcionamento vem mudando e que a revista est procurando se adequar
para atender tambm ao pblico gourmet. Os outros dois objetos do corpus no
tratam somente de gastronomia pelo contrrio, so veculos de temtica ampla que
discorrem sobre o tema na seo cultural. O jornal Folha de S.Paulo vem aumentando
o espao para o assunto em suas pginas: durante os dois anos de nossa explorao, a
seo dedicada ao tema quadruplicou de tamanho. J a revista Carta Capital
apresenta uma coluna fixa de crnicas sobre gastronomia.
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Um ponto essencial deve ser frisado: o critrio que utilizamos para
escolher os dois veculos cujas crticas analisamos aqui o jornal Folha de S.Paulo e a
revista Gula foi a garantia do anonimato dos jornalistas. Em ambas as empresas, os
crticos freqentam os restaurantes avaliados sem se identificar e pagam sua conta,
como qualquer cliente. Essa atitude pode parecer um detalhe insignificante, mas na
verdade garante ao crtico liberdade e certeza de que no ser tratado de forma
diferenciada por estar avaliando o estabelecimento. comum, em outros jornais e
revistas, que os jornalistas visitem restaurantes aps serem convidados, sendo
inclusive recebidos pelos donos dos estabelecimentos ou pelos chefs de cozinha. Em
geral, tais convites so intermediados por assessorias de imprensa, que ajudam a
promover a imagem dos seus clientes.
Depois de selecionadas as crticas e crnicas, partimos para a leitura
do corpus e a escolha do arcabouo terico. Todos os textos foram lidos atentamente
em busca de seus aspectos recorrentes. Nossa aposta era que esses aspectos, por sua
vez, seriam os indicadores das principais caractersticas dos dois gneros no campo
da gastronomia. Essa decupagem inicial resultou numa lista de seis categorias
lingstico-discursivas que passaram a direcionar nosso olhar analtico sobre o
corpus textual. Essas categorias so as seguintes: narrativa, titulao, interatividade,
intertextualidade, ironia e metfora. Como algumas delas so estudadas
preferencialmente pela Lingstica Textual, outras pela Lingstica Cognitiva, outras
pela Pragmtica, outras ainda pela Anlise do Discurso, decidimos no restringir o
aparato terico de anlise a uma s corrente terica, optando por utilizar teorias que
a nosso ver melhor serviriam para abordar o objeto de pesquisa.
Aps a delimitao das categorias tericas que orientam o nosso
estudo, selecionamos, levando em considerao a diviso dos textos por gnero e por
veculo, exemplos significativos para compor a anlise. importante frisar que
utilizamos o critrio da predominncia, ou seja, a freqncia com que as categorias
aparecem em cada gnero e veculo, no intuito de apreender quais as caractersticas
mais marcantes das crticas e crnicas e, assim, ter um mapeamento de como se
configura o texto do jornalismo gastronmico. Antes de efetuar o estudo dos textos
propriamente ditos, realizamos uma breve discusso sobre cada um dos veculos, a
partir da bibliografia consultada e de entrevistas com crticos, cronistas e editores.
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A crtica e a crnica no jornalismo cultural
Acreditamos que importante deixar claros os conceitos de crtica e crnica
que utilizamos. Quais as caractersticas da crtica como gnero? A crtica o gnero
jornalstico opinativo que analisa e avalia trabalho intelectual ou desempenho (Novo
Manual da Redao, 1992). Sempre traz a assinatura de seu autor e deve ser bem
fundamentada. Alm disso, no deve conter acusao de ordem pessoal. Lembre-se:
o objeto da crtica a obra ou desempenho, no a pessoa (Novo Manual da Redao,
1992:66).
Seria a gastronomia um objeto digno de ser criticado? Para responder a essa
pergunta, recorremos introduo de Philip French coletnea de crticas de cinema
de Pauline Kael, que ajudou a mudar a natureza e o status da crtica de cinema no
mundo de lngua inglesa. Transformou-a em uma atividade emocionante, vital e
essencial, um dilogo com nossa poca e cultura (French, 2000:13). Quando Kael
comeou a publicar suas anlises em jornais, o cinema era tido como uma arte menor
e s ento comeava a ser objeto de apreciao crtica:
Naquela noite, fizeram-se as perguntas de sempre sobre a funo da crtica e a responsabilidade do crtico, embora provavelmente fosse a ltima vez que algum em Nova York perguntou se a crtica de cinema podia ser uma atividade to importante quanto a de outras artes (French, 2000:12).
O papel da crtica na consolidao dos produtos culturais destacado por
Melo (2003), que verifica a relao entre fontes de receita publicitria e a ao dos
jornalistas dos suplementos:
Seu [da crtica] mbito de ao contempla os produtores tradicionais, como a literatura e o livro, a msica e as artes plsticas, o teatro e a dana, mas atribui nfase aos novos produtos da indstria cultural que constituem fonte segura de receita publicitria: a televiso, o cinema, a msica, e at mesmo o esporte, a gastronomia e a publicidade (grifos nossos) (Melo, 2003:138).
A crnica o segundo gnero que analisaremos dentro do jornalismo
cultural sobre gastronomia. Sua definio varia de pas para pas no Brasil, toma
ares de relato potico do real, situado na fronteira entre a informao de atualidade
e a narrao literria (Melo, 2003:155), enquanto na maior parte do mundo se
caracteriza como um relato cronolgico. Aqui, os fatos so apenas um mote ou
pretexto. A crnica se caracteriza pela ligao com o cotidiano e a crtica social
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dissimulada nos meandros da poeticidade do texto. A informalidade e a despretenso
podem esconder crticas severas:
Se a crnica de costume se valia do real (fatos ou idias do momento) simplesmente como deixa ou como inspirao para um relato potico ou para uma descrio literria, a crnica moderna assume a palpitao e a agilidade de um jornalismo em mutao. Ele figura no corpo do jornal no como objeto estranho, mas como matria inteiramente ligada ao esprito da edio noticiosa (Melo, 2003:155).
Para Melo (2002), a crnica se aproxima da literatura, mas no alcana o
nvel de um romance ou uma poesia. Com isso, o autor no quer depreciar o gnero,
mas ressaltar suas peculiaridades, como a simplicidade, a efemeridade e o tom
audacioso. Outro fator que influi para o maior cuidado na elaborao das crnicas
que os cronistas so considerados colaboradores em relao aos profissionais da
redao. Normalmente no freqentam a sala de redao; enviam seus textos
(Guaraciaba, 1992:87). No cabe ao cronista entrevistar nenhum personagem, mas
observar anonimamente e expor suas impresses.
Na relao ntima e companheira que estabelece com o leitor, o cronista
acaba ganhando ares de amigo. Em certos momentos, principalmente neste mundo
de solitrios em que vivemos, o cronista periga de se tornar quase algum da
famlia. Ou, se bobear, um amante (Menezes, 2002:168). Descontados os exageros,
certo que ler uma crnica em meio a inmeras notcias d um toque de sabor
apreciao diria do jornal. Para continuar nas metforas gastronmicas, fechamos
esta seo citando Galeno (2002):
Texto e sabor so ingredientes que devero constar na mesa de todos. Ser dirio no significa estar preso ao presente e mera reproduo enfadonha dos dias. Mesmo que a origem da palavra jornal, do latim diurnalis (dirio) se relacione ao cotidiano, ao contar dos dias, ao narrar dos acontecimentos (Galeno, 2002:107-108).
A crnica no jornalismo gastronmico
Como dissemos anteriormente, optamos por estudar separadamente
crnicas e crticas sobre gastronomia a fim de melhor analisar suas caractersticas
particulares. Alm disso, procuramos observar as estratgias mais utilizadas por cada
um dos quatro veculos do corpus separadamente.
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Na anlise das crnicas, encontramos como caractersticas lingstico-
discursivas comuns aos dois veculos em questo Claudia Cozinha e Carta Capital
a interatividade e a narrativa. Ambas as caractersticas so fortemente relacionadas
ao tom subjetivo e intimista desse gnero textual: a interatividade sugere um dilogo
com o leitor e a narrativa o tipo textual mais usado por quem deseja contar
histrias. Tais categorias apontam para a crnica como um espao da subjetividade.
Ao lado desses recursos presentes nos dois veculos, encontramos outros peculiares a
cada revista. Na seo Refogado, da Carta Capital, a ironia a caracterstica mais
marcante do conjunto de textos. J na seo P na Cozinha, da Claudia Cozinha, a
cronista lana mo da intertextualidade como inspirao para contar suas histrias.
Para compreender melhor a escolha por tais recursos, importante abordar
a histria de cada uma das revistas. A Claudia Cozinha filha da revista Claudia, que
est no mercado de publicaes femininas desde 1961. Teve incio como um
suplemento encartado em 1965, com o nome de Jornal da Cozinha, e virou uma
revista independente em 2000. A Claudia Cozinha j teve circulao mensal, em
seguida bimestral e, no perodo de realizao desta pesquisa, voltou a chegar s
bancas todos os meses. Em todo esse tempo, muita coisa mudou. possvel
acompanhar a evoluo do perfil da revista Claudia Cozinha por seus slogans mais
recentes, publicados logo abaixo do ttulo da publicao: de A nica revista brasileira
que testa todas as receitas em sua cozinha experimental, em 2000, e do semelhante,
mas algo simplificado, Todas as receitas testadas e com fotos, em 2004, ao novo O
prazer da gastronomia na sua vida, em 2005, a Claudia Cozinha parece estar
ampliando seu pblico. Na ltima reforma grfica e editorial, incluiu indicaes de
vinhos para todas as receitas, o que indica um refinamento da antiga leitora
interessada apenas em prendas domsticas. As portas esto tambm mais abertas ao
pblico masculino basta observar que se procura no mais usar a expresso
leitora, no feminino.
Perfil bem diverso da Carta Capital. Mais conhecida pela abordagem crtica
de temas polticos e econmicos, a revista publica em todas as suas edies uma
seo de crnicas sobre gastronomia chamada Refogado, a cargo do cronista e
publicitrio Marcio Alemo. Publicada pela Editora Confiana, a revista tem
periodicidade semanal e foi fundada em 1994 pelo jornalista italiano Mino Carta, que
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havia passado por revistas como Veja e Isto e tinha como meta criar um semanrio
crtico e independente.
Passemos, agora, a tratar da categoria da narrativa. Convencionalmente,
esse tipo textual contm os seguintes momentos: exposio, introduo ou
apresentao (apresentao dos fatos e personagens), complicao ou
desenvolvimento (trecho em que se desenvolve o conflito e se conquista a ateno do
leitor), clmax (ponto mximo do conflito) e desfecho, desenlace ou concluso
(soluo dos conflitos, de forma boa ou m). Gancho (1997) considera que as
crnicas, por serem textos hbridos entre a literatura e o jornalismo, no raro
apresentam narrativa incompleta.
Gomes (1994) considera que os textos jornalsticos se baseiam em relatos
com fatos hierarquicamente ordenados. A narrativa, assim, est cada vez mais
presente nos meios de comunicao como maneira de atrair o leitor. A autora
especifica de que forma a clssica estrutura da narrativa proposta por Labov e
Waletzky (ver referncias complementares) se apresenta no jornalismo: o resumo
seria composto pelos ttulos e subttulos, a orientao equivaleria ao lide, a
complicao abrangeria o fato propriamente dito, a avaliao seria marcada pelo
ponto de vista do narrador e a resoluo seria o desfecho da histria (considerada
rara no jornalismo, porque em geral as histrias se encontram em andamento). As
partes da narrativa, no entanto, podem vir imbricadas e s vezes so difceis de
identificar com clareza.
Exemplifiquemos a narrativa na crnica Comida de cachorro, publicada na
edio de maro/abril da Claudia Cozinha. Observemos o seguinte trecho:
Agora os cachorros comem rao e parece que gostam. H anos comiam o msculo da sopa. Eu me lembro de ir ao Rio passar as frias na casa de uma tia chique. Na poca o prato da moda eram metades de chuchu recheadas com passas. E um dia no que a tia me pegou, depois de recusar a iguaria, salivando, de olho na comida do Rex?
pela divertida histria de quando a narradora, ainda garota, tinha inveja da
comida do cachorro de sua tia rica que a cronista compe o texto para falar que o
msculo bovino est em voga nas grandes cozinhas hoje. A narrativa parte essencial
das crnicas, uma vez que podem remeter a situaes na vida cotidiana para
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comentar fatos da atualidade como o lanamento do livro de um chef sobre
msculo, nesse exemplo. Aqui, a estrutura narrativa cumpre o papel de transportar o
leitor para a infncia da narradora, ajudando-o a compreender porque ela d tanta
importncia iguaria.
J na Carta Capital, notamos que a narrativa, em geral irnica,
freqentemente culmina em uma espcie de moral da histria, ou seja, em um
recurso que apresenta uma posio mais sria, em oposio ao restante do texto,
baseado no humor calcado na ironia.
Outra caracterstica marcante das crnicas analisadas a
interatividade. Durante muito tempo, esse aspecto foi estudado como um fenmeno
exclusivo da fala. No entanto, deve ficar claro que a interatividade uma
propriedade geral de todo e qualquer uso da lngua e no de uma das modalidades
de uso. Pois ningum escreve/fala sem ter em mente um leitor/ouvinte (Marcuschi,
1999:2). No estamos falando, ento, de marcas de oralidade, mas de indcios de
destinao de um texto escrito/falado a um leitor/ouvinte real ou imaginrio.
Tannen (1989) enfatiza que no existe interao sem envolvimento.
Para tanto, relaciona o segundo termo a uma linha de pesquisa voltada para a
conversao como produo compartilhada. Estratgias de envolvimento constituem
regularidades evidenciadas na configurao das formas de expresso utilizadas pelo
sujeito tanto na modalidade oral quanto na escrita. A idia de envolvimento foi
proposta inicialmente por Chafe (1985), que o classificou em trs tipos: envolvimento
do falante consigo mesmo ou auto-envolvimento (evidenciado pela presena de
pronomes de primeira pessoa e possessivos correspondentes e referncias
comunicao do processo mental do falante), envolvimento do falante com o ouvinte
(ocorre mediante o emprego de pronomes de segunda pessoa, citao do nome do
ouvinte, respostas a questes formuladas pelo interlocutor, uso de marcadores
conversacionais e expresses formulaicas que explicitem interao) e envolvimento
do falante com o assunto (pelo uso de vocabulrio expressivo, redundncias e
exageros do falante, introduo do presente histrico, uso do discurso direto e
emprego de partculas adverbiais modalizadoras). Todos esses recursos indicam a
presena da interatividade.
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Para exemplificar tal aspecto, selecionamos trechos do texto Gosto no se
discute, pesquisa-se, publicado na Carta Capital em 18 de fevereiro, lembrando que
o recurso tambm freqente na Claudia Cozinha. A crnica trata das pesquisas
realizadas antes do lanamento de novos produtos. Vejamos alguns exemplos de
como os trs diferentes tipos de envolvimento surgem e deixam explcito o uso de
recursos de interatividade (os grifos so nossos):
Auto-envolvimento Pronomes e verbos em 1 pessoa
Processo mental
Alm de Jesus, arrisco dizer que, hoje, s a pesquisa salva.
Afirmo, e creio que no erro, que muitos restaurantes poderiam melhorar de maneira assustadora se decidissem fazer uma pesquisa.
Envolvimento falante/ouvinte
Pronomes e verbos em 2 pessoa
Simulao de dilogo direto com o leitor
Marcadores conversacionais
No sei se voc j se deu conta de que tudo na vida melhorou de maneira espetacular.
Vai me dizer que voc acredita que o cozinheiro decide por um novo produto e o coloca nas lojas?
Um supermercado freqentado exclusivamente por gourmets, por crticos, por profundos conhecedores das artes culinrias? Qual o qu!
Envolvimento falante/assunto
Exageros e redundncias
Vocabulrio expressivo
Discurso direto
Ele seu predileto, mesmo que no seja. Voc adora aquele produto, mesmo detestando-o.
A pesquisa um instrumento que tem bases cientficas slidas e irrefutveis.
E se voc, fascinado com a vida, no teve tempo ainda de parar e pensar por que e como tudo ficou to melhor?, vou lhe explicar.
Depois de tratar dos aspectos comuns s crnicas das duas revistas,
passemos s estratgias individuais. Na Claudia Cozinha, comum a
intertextualidade, que ocorre quando os textos apresentam indcios da voz do outro
em seu interior. Para entender de que forma a voz do outro entra no discurso,
devemos remeter noo de intertextualidade cunhada por Kristeva (1974), segundo
a qual todo enunciado inerentemente intertextual. Em outras palavras, a autora se
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baseou na teoria do dialogismo de Bakhtin para frisar que todo texto permeado por
outros, de forma implcita ou explcita. O fato de ser orientado para algum seja o
interlocutor ou um leitor imaginrio tambm constitutivo da dialogicidade de
todos os discursos, aspecto diretamente ligado interatividade:
Toda palavra comporta duas faces. Ela determinada tanto pelo fato de que procede de algum, como pelo fato de que se dirige para algum. Ela constitui justamente o produto da interao do locutor e do ouvinte. Toda palavra serve de expresso a um em relao ao outro (Bakhtin, 1995[1929]:113).
Chama-se intertextualidade a aplicao da teoria do dialogismo ao campo da
Teoria Literria, especialmente em virtude dos j citados estudos de Kristeva. Para a
autora, qualquer texto construdo como um mosaico de citaes, mesmo que o
autor no saiba disso:
Todo texto se constri como um mosaico de citaes, todo texto absoro e transformao de um outro texto. Em lugar da noo de intersubjetividade, instala-se a de intertextualidade e a linguagem potica l-se pelo menos como dupla (Kristeva, 1974:63-64).
Para observar uma manifestao da intertextualidade no texto jornalstico
sobre gastronomia, partimos da anlise de trecho do texto Toda comida
afrodisaca, da Claudia Cozinha do bimestre de janeiro/fevereiro. a histria de
uma personagem que chama para o primeiro encontro, em sua casa, um pretendente
que havia conhecido apenas por carta ou telefone. Ao ver que o rapaz no tem
nenhum atrativo fsico, planeja encontrar uma maneira de faz-lo ir embora o quanto
antes at que ele entra na cozinha e revela seus dotes culinrios:
Os cheiros invadindo a casa toda, a boca salivando, a amiga viu o stiro se transmutar em belo heri, e ela j o queria com todas as suas foras e feromnios.
A autora afirma que o personagem se transmutou de stiro em heri,
remetendo a figuras tradicionais da mitologia grega: enquanto o stiro era tido como
uma assustadora divindade de ps de cabra e chifres que habitava os bosques, o heri
tinha como representante principal a figura de Hrcules filho do deus Juno com a
mortal Alcmena, cumpriu todos os chamados Doze Trabalhos de Hrcules, incluindo
matar um leo com as prprias mos e vencer o gigante Anteu (Bulfinch, 1999). Ou
seja, de um ser de aparncia bizarra, tornou-se o responsvel por salvar a moa com
todas as honrarias.
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A Carta Capital, por sua vez, destaca-se pelo uso constante da ironia, um tipo
particular de humor em que o enunciador se volta contra a prpria enunciao. Tal
recurso exige conhecimento prvio de dois discursos distintos para compreenso,
uma vez que a ambigidade essencial do discurso irnico est em aceitar
simultaneamente seus sentidos literal e figurado. Dois discursos fazem parte da
composio irnica e cabe memria discursiva do receptor fazer a ligao entre a
significao dita literal e a significao irnica pretendida pelo locutor:
diferentemente da mentira, em que a simulao pretende se passar por verdade, o
engano irnico se oferece para que o receptor o adivinhe ou perceba como engano
(Brait, 1996:81). importante destacar que a ironia uma estratgia poderosa de
argumentao e que o discurso irnico propositalmente ambivalente.
Apresentamos um trecho do texto A macr e a depr, da Carta Capital, em
11 de fevereiro, no qual o narrador visita uma mdica macrobiota e se surpreende
com suas avaliaes sobre sua sade:
Busquei na memria e acredito no juro que devo ter lido em algum momento de minha vida alguns relatos de portadores dos mais hediondos cnceres que se arrependiam profundamente por ter comido arroz integral que ficara na panela por 43, 45 e at por 50 minutos.
Trata-se de uma resposta mdica macrobiota, que afirmou que o arroz
integral deve ser cozido durante cronometrados 40 minutos. O autor ironiza sobre as
possveis conseqncias de deixar o gro cozinhando durante mais tempo, incluindo
doenas diversas. A ironia est justamente na improbabilidade de o arroz caus-las e
na falta de racionalidade da exigncia da mdica.
Por fim, importante perceber como se comporta a titulao nas crnicas do
corpus. Frisamos que falar de titulao adentrar um tema ainda pouco explorado
nos estudos do texto jornalstico. No encontramos material especfico sobre
titulao de crticas, crnicas ou de outros gneros prprios do jornalismo opinativo,
mas ainda assim optamos por abordar essa questo, por haver observado que os
ttulos apresentam caractersticas interessantes a nossa anlise.
Ao tratar da estrutura da notcia na imprensa, van Dijk (1996) chama de
sumrio a seo que engloba a manchete e o lide. Juntos, tais elementos formam uma
espcie de resumo da notcia. Para o autor, a estrutura temtica e o esquema da
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notcia ajudam o processo cognitivo de organizao da informao na memria,
assim como seu uso e posterior recordao. Os conhecimentos prvios do leitor so
requisitados na hora da interpretao da informao. Enquanto os ttulos de matrias
e reportagens primam pela objetividade, os ttulos de crticas e crnicas, assim como
de outros gneros do jornalismo opinativo, no se encaixam em regras fixas e podem
fazer uso de recursos variados para chamar a ateno do leitor.
De fato, a titulao das crnicas da Claudia Cozinha e da Carta Capital
apresentou grande diversidade de estratgias. Na primeira, temos ttulos como
Comida de cachorro (humor) e Simplifique a vida, de setembro/outubro
(interatividade). Na segunda, h exemplos como Gosto no se discute, pesquisa-se
(trocadilho), de 18 de fevereiro, melhor a gente dar um tempo (coloquialidade),
de 4 de fevereiro, Prescrevo uma sugesto (interatividade), de 16 de junho, e
Humildade, ainda que tarde (intertextualidade, em uma referncia aos dizeres da
bandeira mineira Liberdade ainda que tarde), de 25 de fevereiro. Tais recursos so
utilizados para seduzir e envolver o leitor.
A crtica no jornalismo gastronmico
Ao contrrio do que aconteceu na anlise das crnicas, na observao das
crticas no encontramos aspectos comuns s sees Mundo Gourmet, da Folha de
S.Paulo, e Gula Indica Restaurantes, da Gula. Ao contrrio, as crticas dos dois
veculos apresentam fortes distines: enquanto o jornal prima pelo uso da ironia e
da narrativa (especialmente como um recurso de contextualizao dos restaurantes),
na revista os recursos da interatividade e da metfora sobressaem.
Acreditamos que tais diferenas no ocorrem por acaso: o pblico-alvo da
Gula o gourmet, enquanto a Folha de S.Paulo voltada para uma audincia bem
mais ampla assim, cabe ao crtico apresentar em que contexto os restaurantes se
inserem por meio da narrativa. A Gula, por supor que o seu leitor tem conhecimentos
sobre gastronomia, dispensa explicaes detalhadas sobre pratos e restaurantes,
dialogando com o leitor de igual para igual.
Consideramos essencial, assim, oferecer um breve histrico das duas
publicaes. De acordo com o Novo Manual da Redao (1992), a Folha nasceu em
1921sob o nome Folha da Noite. Quatro anos depois, surgiu o vespertino Folha da
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Manh. Em 1931, ambos foram comprados por trs empresrios. A empresa adquiriu
seu nome atual Folha da Manh S/A em 1945. Aos dois jornais anteriores,
juntou-se a Folha da Tarde, em 1949. O caderno cultural Ilustrada, onde hoje se
encontra a seo de gastronomia, comeou a circular em 1958 (Folha Online, s.d.). Os
trs jornais se fundiram na atual Folha de S.Paulo em 1960. Foi apenas na dcada de
1980, no entanto, que a Folha de S.Paulo se tornou o dirio de maior circulao no
pas.
A seo que analisamos traz crticas de restaurantes, que mesclam a
objetividade da descrio das casas e a subjetividade da opinio sobre o local e os
pratos. Ao final, todos os textos trazem uma ficha tcnica com cotao de preos
(expressa em cifres, que podem variar de um a quatro), avaliao (expressa em
estrelas ou falta delas para expressar ruim, regular, bom, timo e excelente),
endereo, telefone, horrio de funcionamento e faixa de preos das entradas, pratos
principais e sobremesas, com os valores dos itens mais baratos e mais caros do menu
em cada uma das trs sees.
A revista Gula, por sua vez, especializada em alimentao, mas tem um
perfil diametralmente oposto ao da Claudia Cozinha. O pblico leitor no parece ser
composto por donas de casa, mas por pessoas que gostam de cozinhar e fazem isso
por hobby, no por obrigao. Criada em junho de 1992 e considerada a revista mais
importante do pas sobre o assunto, a Gula traz uma seo especializada em crticas
de estabelecimentos: a Gula Indica, que se subdivide em Restaurantes, Miscelnea
(sobre especialidades), Agenda e Bar. Rio de Janeiro e So Paulo so as cidades mais
comumente avaliadas, mas h excees. Alguns preciosismos so adotados, como o
uso de termos nas suas lnguas de origem (aqui o plural de pizza no pizzas, mas
pizze, por exemplo). De um modo geral, o lxico especfico e costuma dispensar
explicaes, uma vez que est subentendido que o leitor da revista j est habituado
ao tema da gastronomia e ao seu vocabulrio usual.
Como comum nas crticas, h uma ficha tcnica com informaes sobre o
local: nome, endereo, telefone, comida, ambiente (desmembrado nos itens
decorao e conforto em agosto de 2004), rudo (introduzido no mesmo ms), carta
de vinhos, bar, horrio, preo, carto de crdito e valor do manobrista. Tudo
descrito com adjetivos, item por item. O preo varia de um a cinco cifres, segundo o
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gasto mdio de uma pessoa em refeio com couvert, prato principal e sobremesa,
sem bebida.
Iniciemos nossa anlise pela Folha. A ironia freqente na seo Mundo
Gourmet, como podemos ver na crtica publicada em 15 de janeiro:
A febre da cozinha japonesa na cidade no acaba nunca. A tal ponto que nem sequer preciso ter japoneses (ou seus descendentes) nos seus restaurantes... O Sass Sushi, aberto em setembro no Itaim Bibi, um exemplo. Nasceu de uma escola de culinria japonesa montada pelo engenheiro Alexandre Saber (o Sass), de 31 anos. A escola agora funciona dentro do restaurante, que ele montou com o amigo e ex-aluno Juliano Valese, 26, que tambm j dava aulas na escola. Nenhum deles remotamente japons, como se v. (...) A impresso reforada pela presena, no cardpio, de boa oferta de sushis adolescentes (como chamo aqueles enrolados cheios de ingredientes de influncia americana e nomes engraadinhos), e pelo sistema de rodzio que vigora noite (junto com o servio la carte).
O restaurante japons, mas nenhum de seus donos remotamente
japons, como se v. Ou seja, a casa quer parecer ser algo que no de fato. O tom
irnico se completa com o comentrio sobre os sushis adolescentes, aqueles
enrolados cheios de ingredientes de influncia americana e nomes engraadinhos,
isto , com receitas bem diversas das encontradas nos restaurantes japoneses
tradicionais.
A narrativa marca presena na seo, em geral como uma maneira de
contextualizar o restaurante no cenrio paulistano, como podemos observar no texto
Costela 30 Horas traz a So Paulo a fartura do interior, de 10 de junho, sobre um
restaurante de Sorocaba que acaba de se instalar na capital:
O proprietrio o mesmo: Osmar Migliorini, que h 15 anos abriu sua primeira casa e l dissemina a fama da costela lentamente assada. A idia de vir para So Paulo foi lanada por um cliente que h 11 anos freqentava sua casa, o arquiteto Marcos Cardoso, agora seu scio na capital.
Consideramos que tal recurso tem funo primordialmente didtica: por se
tratar de um jornal de grande circulao, convm esclarecer para o leitor que pode
ser iniciado no circuito gastronmico da cidade ou no de onde surgiu aquele
restaurante. Em outros casos observados, a narrativa serve para contar como veio um
prato, por exemplo.
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Lembramos aqui que o autor usa o espao no jornal no apenas para criticar
um determinado restaurante, mas tambm para apresentar ao leitor questes mais
amplas ligadas ao setor da gastronomia. Em outro texto, o autor dedica mais que a
metade do espao a uma discusso sobre as vantagens e desvantagens do sistema de
atendimento self-service. Alm de servirem como introduo s crticas dos
restaurantes, trechos como esse cumprem a funo de debater temas diversos
relacionados gastronomia, fazendo o leitor pensar sobre o assunto e, ao mesmo
tempo, envolvendo-o para ler o restante do texto.
Passemos anlise da revista Gula, onde se destacam a interatividade e as
metforas. Exemplifiquemos a primeira caracterstica na crtica Jantar quase
secreto, publicada em fevereiro:
Se voc do tipo que adora descobrir cantinhos, tome nota. (...) O salmo marinado com endvias e pimenta-rosa e o peito de pato com mel e limo, que provei, corresponderam s expectativas - e olha que fiz contagem regressiva desde o dia em que liguei para reservar mesa. (...) Mrcia prefere no divulgar o endereo e continuar acreditando na clientela que descobre o Chez Marcianita pelo boca-a-boca. Ento, fica entre ns!
Como podemos notar, a interatividade aqui aparece em tom de dilogo
ntimo com o leitor como se o crtico fosse um amigo que estivesse fornecendo
dicas preciosas de algo que no se deve perder. Narrativas breves como O salmo
marinado com endvias e pimenta-rosa e o peito de pato com mel e limo, que provei,
corresponderam s expectativas - e olha que fiz contagem regressiva desde o dia em
que liguei para reservar mesa, com explorao de recursos como o uso da primeira
pessoa do singular e da linguagem coloquial, indicam o clima de intimidade entre
autor e leitor. A autora fornece dicas, no incio do texto, e ainda pede segredo, no
final, com o uso da expresso coloquial Fica entre ns!, como se estivesse de fato
dialogando com o leitor.
Outra forte presena nas crnicas da revista a metfora. Usamos aqui a
definio de Lakoff e Johnson (1980), para quem as metforas, em vez de serem
meros recursos retricos, permeiam a vida cotidiana e o modo de percepo humano,
ajudando a definir a realidade do nosso entorno sem que nos demos conta. As
metforas em que a relao entre o objeto designado e a palavra usada para
design-lo de semelhana no so, para esses autores, somente uma questo de
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linguagem, mas de estruturao de processos mentais. A metfora, ento, deixa de
ser uma simples figura de linguagem e passa a ser uma maneira de conhecer o mundo
no de forma apenas lgica, mas primordialmente criativa. Marcuschi (1978)
lembra que as expresses metafricas acabam por suprir um campo que as palavras
no conseguem abarcar apenas com seus significados ditos literais.
Expresses como por exemplo a recepo foi fria ou o dia est triste dizem muito mais do que se quisssemos obter, com o mesmo efeito cognitivo, este contedo emotivo ou subjetivo atravs de descries (literais) (Marcuschi, 1978: 9-10).
Apresentamos abaixo alguns exemplos de metfora no texto Bistrot na
Granja, publicado em agosto na Gula:
triste imaginar um futuro sem a buclica regio da Granja Viana, no vizinho municpio de Cotia, um enclave de silncio e verde na fronteira oeste da cidade. Infelizmente, o risco existe - j que tantos outros tesouros de nosso entorno sucumbiram frente ao incontrolvel crescimento de So Paulo. J temos razo suficiente, portanto, para, vez por outra, enfrentar os 13 quilmetros que nos separam do pequeno paraso e revisitar a Granja com a alma de turista, leve e remoada. O Felix Bistrot que ali funciona h sete anos insinua ares de renovao. (...) Nos bastidores, no entanto, a orquestra requer ainda peque-nos ajustes, para torn-la mais uniforme.
Verificamos a presena de certas metforas que, de to comuns, chegam a
passar despercebidas pelo olhar do senso comum o caso de termos como
tesouros e paraso. Vamos nos ater, no entanto, ao trecho que se refere cozinha
como bastidores e equipe como orquestra. Metforas desse tipo so comuns na
revista. Podemos defender que se trata de um sinal que a Gula trata a cozinha como
arte. A equipe deve funcionar em plena harmonia, como uma orquestra, sem falhas,
para trazer dos bastidores, a cozinha, a obra de arte final, tratada como uma
verdadeira estrela.
Aproveitamos ainda tal exemplo para ressaltar mais uma vez que os crticos
da revista Gula lanam mo de adjetivao farta em suas descries, ao contrrio do
que faz o crtico da Folha de S.Paulo, Josimar Melo, ao optar por imprimir maior
objetividade aos seus textos. Acreditamos, assim, que haja uma poltica editorial na
Gula que influencie no estilo das crticas, pois existe uniformidade estilstica apesar
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de se tratar de uma equipe de autores e no de uma autoria nica, como no caso do
jornal.
Por fim, voltemos nossas atenes para a titulao das duas sees. Ao
contrrio do que acontece com as crnicas, observa-se aqui uma forte predominncia
de descries objetivas. Percebemos que os ttulos destacam assuntos como a comida,
o local, o preo e o chef, sendo estes dois ltimos menos freqentes. Na Folha de
S.Paulo, temos ttulos como Pinus oferece uma cozinha simples e bem pensada
(nfase comida), de 20 de maio, Emilia Romagna tem filial tranqila na Granja
Viana (nfase ao local), de 11 de maro, MoriSushi traz resultado condizente com o
preo (nfase ao preo), de 25 de maro, e Lola Bistr traz amostra da nova gerao
de chefs (nfase ao chef), de 8 de janeiro. Na Gula, h exemplos como Italiano
encantador (comida), em setembro, Francs no Itaim (local), em outubro, Bom e
barato (preo), em outubro, e Revelao de talento (chef), em julho.
Consideraes finais
Esperamos, com este trabalho, ter alcanado nosso objetivo de dar incio s
exploraes do jornalismo gastronmico brasileiro e, ainda, a novos estudos sobre o
jornalismo cultural. Para tanto, decidimos focar nosso estudo na crtica e na crnica
de gastronomia.
As crnicas apresentaram duas caractersticas comuns aos veculos Claudia
Cozinha e Carta Capital: a interatividade e a narrativa. O primeiro aspecto tenta uma
aproximao com o leitor, enquanto o segundo representa o tipo textual ideal para
contar as histrias to tpicas do gnero em questo.
Na seo de crnicas P na Cozinha, da revista Claudia Cozinha,
verificamos que a interatividade se assemelha a uma conversa com o leitor, o que
gera uma sensao de intimidade que reforada pelo uso da narrativa em tom
confessional. Essa construo de laos afetivos entre leitor e cronista casa com o
perfil da revista, voltado para donas de casa s voltas com os desafios do cotidiano.
Observamos ainda a presena da intertextualidade como mote para a cronista contar
histrias ligadas ao cotidiano.
A seo Refogado, da Carta Capital, por sua vez, tem como diferencial a
ironia. Aqui, ela aparece como uma estratgia que permeia a narrativa e diversas
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vezes descamba em um tipo de moral da histria, em que o autor deixa de lado esse
recurso para fechar o texto com uma observao sria.
Em ambas as sees, as titulaes das crnicas se mostraram ricas em
expedientes como humor, duplo sentido, trocadilhos, coloquialidade, ironia,
metfora, intertextualidade e interatividade. Assim, mesmo antes de comear a ler o
texto, o leitor se v envolvido e estimulado a continuar a leitura.
De modo geral, podemos concluir que a crnica se caracteriza como um
espao da subjetividade, em que o narrador interage com o leitor e com ele busca
dialogar. Essa conversa se d no mbito da cozinha como local de sociabilidade e
convvio.
As crticas no apresentaram estratgias comuns aos dois veculos, exceto na
titulao. Os ttulos costumam ser descritivos, enfatizando objetivamente fatores
como a comida ou o ambiente de determinado restaurante e deixando claro o que
est por vir. Excetuando-se esse ponto, cada um dos veculos estudados segue
caminhos lingstico-discursivos bem distintos.
A ironia marcante nos textos da coluna Mundo Gourmet, do jornal Folha
de S.Paulo. Tambm recorrente o uso da narrativa, mas com funo diversa daquela
das crnicas: aqui, ela serve para contextualizar os novos restaurantes no cenrio
paulistano, indicando quem so seus donos e chefs e de onde vieram. No h uso
exacerbado de adjetivos na seo. O autor d preferncia a um estilo mais tcnico e
descritivo a fim de deixar as escolhas para o leitor.
Finalmente, na seo de crticas Gula Indica Restaurantes, da revista Gula,
a interatividade surge para que o crtico se aproxime do leitor, fornecendo dicas e
sugestes de pratos, numa postura diversa da que apresenta o crtico da Folha de
S.Paulo. Ao que parece, a idia tratar o leitor de igual para igual, pois supe-se que
se trata de algum com algum conhecimento gastronmico. Um ponto interessante
o uso de metforas ligadas arte como elenco (para pratos) e orquestra (para
chefs). Ser porque a revista prima pela defesa da gastronomia elevada ao status de
arte?
Em relao s crticas, percebemos um predomnio do chamado jornalismo
de servio, em que o jornalista busca oferecer informaes de maneiras distintas
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em cada veculo, certo para que o leitor possa usufruir delas em sua vida. Cada
uma das crticas vem acompanhada de uma ficha tcnica com os dados de cada casa,
para facilitar a tarefa do leitor.
Por fim, consideramos importante mencionar que temas tidos como
menores, como a gastronomia, acabam gerando grande curiosidade nos leitores e se
tornando maiores e mais importantes, numa equao que envolve leitores,
jornalistas, veculos de comunicao e anunciantes. Os meios de comunicao
interferem na formao do pblico e este passa a demandar mais informao sobre o
tema da a importncia de os pesquisadores em Comunicao estarem atentos a
fenmenos como esse.
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