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FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS
ANDREIA APARECIDA D‟MOREIRA ARRUDA
OS QUILOMBOLAS:
DEMOCRACIA E CULTURALISMO COMO
RESPEITO À DIFERENÇA
POUSO ALEGRE - MG
2013
ANDREIA APARECIDA D‟MOREIRA ARRUDA
OS QUILOMBOLAS:
DEMOCRACIA E CULTURALISMO COMO
RESPEITO À DIFERENÇA
Dissertação apresentada como exigência parcial
para a obtenção do título de Mestre em Direito ao
programa de Pós-Graduação da Faculdade de
Direito do Sul de Minas
Orientador: Prof. Dr. José Luiz Quadros de
Magalhães.
FDSM - MG
2013
FICHA CATALOGRÁFICA
Arruda, Andreia Aparecida D‟Moreira.
Os Quilombolas: Democracia e culturalismo como respeito à diferença/
Andreia Aparecida D‟Moreira Arruda. Pouso Alegre-MG: FDSM, 2013.
87p.
Orientador: José Luiz Quadros de Magalhães.
Dissertação – Faculdade de Direito do Sul de Minas, Mestrado em Direito.
1. Direitos e Garantias Fundamentais. 2. Os Quilombolas. I. Magalhães,
José Luiz Quadros de. II. Faculdade de Direito do Sul de Minas. Mestrado em
Direito. III. Título.
CDU
ANDREIA APARECIDA D‟MOREIRA ARRUDA
OS QUILOMBOLAS:
DEMOCRACIA E CULTURALISMO COMO RESPEITO À DIFERENÇA
FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS
Data da aprovação: 19 /04 /2013.
Banca Examinadora
__________________________________________________
Prof. Dr. José Luiz Quadros de Magalhães
Orientador
Faculdade de Direito do Sul de Minas
________________________________________________
Prof. Dr. Alexandre Mello Franco Bahia
Faculdade de Direito do Sul de Minas
______________________________________________
Profa. Dra. Marinella Machado Araújo
PUC MINAS
Pouso Alegre - MG
2013
Dedico este trabalho ao meu marido Luiz
Celso, meus dois meninos Nixon e Luiz Celso
Filho e a meus pais João e Ana, os quais sem
medir esforços doaram-se à minha causa.
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente a Deus, pois o que seria de mim sem a fé que tenho n‟Ele, e que
devido a seu amor absoluto e incondicional proporcionou-me o ontem para lembrar, o amanhã
para lutar e o hoje para aprender.
Agradeço ao meu orientador Profº Dr. José Luiz Quadros de Magalhães, a quem não posso
deixar de ressaltar meu respeito e admiração.
Agradeço a todos os professores desta Instituição pelos momentos agradabilíssimos de
aprendizado.
De maneira especial ao meu amado marido Luiz Celso, pelas longas horas de compreensão,
crítica e amor, o que me fez seguir sempre norteada nesta nova empreitada acadêmica. Pelo
ombro amigo nas horas de medo e incerteza, e pelo abraço confortante, nas horas de
conquista.
Aos meus amados filhos Nixon e Luiz Celso Filho, por se constituírem diferentemente
enquanto pessoas, igualmente belos e admiráveis em essência; estímulos que me
impulsionaram a buscar novos conhecimentos a cada novo dia, oferecendo-me forças. Ainda
meu agradecimento por terem aceitado se privar de minha companhia devido aos estudos,
concedendo a mim a possibilidade de mais essa conquista.
A meus pais protetores, que sempre me apoiaram e me amaram verdadeiramente.
À minha avó “Mila” que sempre em espírito me inspirou.
À companhia e à amizade de minha irmã de coração Mayra Frison, e minhas amigas amadas
Ana Paula e Ana Carla.
Às palavras de incentivo e coragem dos demais colegas, em especial Thiago Alves e Carol
Borges.
Ao impulso e auxílio de meus queridos companheiros de trabalho Maria do Socorro, minha
Mestra, Regiane Marcondes, o esteio e Mário Moura, o grande camarada.
Enfim, a todos que de maneira direta ou indireta contribuíram, mesmo que tenha sido com um
simples gesto, para a realização deste trabalho, que só foi possível diante de uma grande luta e
de muita luz de um “povo inteiro”. Salve!
“Minha terra é lá bem longe,
Das bandas de onde o sol vem;
Esta terra é mais bonita,
Mas à outra eu quero bem.”
Castro Alves
A canção do africano
RESUMO
ARRUDA, Andreia Aparecida D‟Moreira. Os Quilombolas: Culturalismo e Democracia
como respeito à diferença. 2013. 87f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de
Direito do Sul de Minas. Programa de Pós Graduação em Direito, Pouso Alegre, 2013.
O principal objetivo do presente projeto é discutir, a mantença da cultura dos Povos
Quilombolas, que buscam o respeito às suas diferenças e a manutenção do seu direito à
diversidade, dentro do Estado Democrático de Direito. Ao tratar do tema do direito à
diferença dos Povos Quilombolas na modernidade, compreendemos que este direito trata de
uma conquista que surge contra um sistema moderno uniformizador e homogeneizador, que
se mostra sempre à espreita de temas como o preconceito e a negação do outro. Com isso, o
estudo desse direito à diferença nos leva a perguntar se existe um paradigma posto pelo
Estado e pelo sistema jurídico que seria considerado o padrão. Em contínua indagação, é
necessário ainda buscarmos entender quais são então os Direitos dos Povos Quilombolas, que
se apresentam em tensão com a questão da igualdade, adquirindo a forma de coletivo ao
mesmo tempo em que também se mostra como um direito individual. Tratar com igualdade
sem querer transformar, seria um contrapeso a fim de manter a relação adequada da aplicação
do Direito, nesse Estado Moderno que se traduz por sua diversidade.
Palavras-chave: Igualdade. Democracia. Diferença. Identidade. Quilombolas.
ABSTRACT
ARRUDA, Andreia Aparecida D‟Moreira.The Quilombolas: Democracy as culturalism and
respect for difference. 2013. 87f. Dissertation in Law – Faculdade de Direito do Sul de Minas.
Graduate Program in Law Pouso Alegre, 2013.
The main objective of this project is to discuss, the maintenance of culture Peoples
Quilombolas, seeking respect for their differences and maintain your right to diversity within
the democratic state. In addressing the issue of the right to difference in the modernity of
Peoples Quilombolas, we understand that this right it is an achievement that arises against a
modern standardizing and homogenizing, which shows always on the lookout for issues such
as prejudice and denial of the other. Thus, the study of this right to difference leads us to ask
whether there is a paradigm set by the state and the legal system should be considered the
standard. In quest continues, you must still seek to understand which are then Quilombolas
Peoples Rights, which are in tension with the issue of equality, acquiring the form of
collective while it also shows how an individual right. Dealing with equality unintentionally
turn, would be a balance in order to maintain the proper relationship of the application of
law in the modern state which is reflected in its diversity.
Keys words: Equality.Democracy.Difference.Identity. Quilombolas.
LISTA DE SIGLAS
ABA Associação Brasileira de Antropologia
ADCT Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
ADI Ação Direta de Inconstitucionalidade
CF/88 Constituição Federal de 1988
EC Emenda Constitucional
INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
MDA Ministério do Desenvolvimento Agrário
MNU Movimento Negro Unificado
MNUCDR Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial
PFL Partido da Frente Liberal
PNC Plano Nacional de Cultura
UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...............................................................................................................
1 OS QUILOMBOS BRASILEIRO ..............................................................................
1.1 A chegada do negro no Brasil......................................................................................
1.2 O que representam os Quilombos................................................................................
1.3 Breve histórico sobre os Quilombos............................................................................
1.4 Os Quilombos no Estado Democrático de Direito.......................................................
1.5 A formação dos Quilombos brasileiros.......................................................................
2 ESTIGMAS E AFRONTA A ALTERIDADE...........................................................
2.1 Do racismo e do preconceito.......................................................................................
2.2 Reconhecer a Diversidade...........................................................................................
2.3 O ideal hegemônico.....................................................................................................
2.4 O processo de universalização no Brasil.....................................................................
3 DIVERSIDADE CULTURAL: IDENTIDADE E DIFERENÇA.............................
3.1 Brasil e o Quilombola: a realidade e lutas contemporâneas .......................................
CONSIDERAÇÕES FINAIS .........................................................................................
REFERÊNCIAS ..............................................................................................................
ANEXO ............................................................................................................................
11
17
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11
INTRODUÇÃO
Durante todo o processo de colonização e expansão de países que tiveram seus
indígenas suprimidos por uma ”maioria” dominadora, ou seja, segundo Souza Cruz (2009),
por aqueles que eram portadores do discurso ideológico de reprodução do poder que atendem
a interesses socioeconômicos, vivenciaram-se fortes tensões nos relacionamentos humanos. A
ideia de uma “maioria” dominadora, segundo Magalhães (2012), tem como exemplo a
tradição uniformizadora e hegemônica comandada por uma visão europeia. Não obstante,
também as relações políticas tanto internas quanto internacionais, apesar de representarem
claramente essa expansão das colônias e de seu conteúdo, aparecem vivendo certa tensão
nesse cenário. A violência nesses casos pode ser institucionalizada através de atos de
manipulação e de dominação de certa minoria.
Essa expansão e o conceito de modernismo propõem um modelo padrão e homogêneo
de povos e suas culturas, a fim de que as tensões entre os humanos sejam reduzidas ou ao
menos que não tomem um rumo tão devastador, capaz de gerar maiores atrocidades.
É essencial entender, segundo Maria Costa Neves Machado(2010) que a diferença
cultural aparece no papel principal porque estabelece entre as pessoas uma relação complexa,
vivida através de conflitos que tentam, de alguma forma, “indicar eventuais soluções, no
sentido de garantir reconhecimento e o respeito dos grupos considerados culturalmente
diversos”, como é o caso dos povos quilombolas, seres humanos escravizados, remanescentes
dos antigos Quilombos.
Ao tratar de temas que ultrapassam fronteiras culturais, deparamos com a realidade do
fator da exclusão e da invisibilidade social, como foi sabiamente examinado por Jessé de
Souza(2010). O modelo proposto de hegemonia serve como armadura que seleciona os seus
iguais e exclui os seus diferentes. Existe ainda outra categoria de “considerados desiguais” ou
simplesmente minorias reconhecidas pelo ato de tentarem absorver o paradigma, e assim,
simbioticamente, poderem tornar-se menos diferentes, porém, não iguais. Os conceitos de
dominação que levam à diferenciação de raças, pessoas, enfim, geralmente se apresentam
distorcidos diante do mito da democracia racial, uma expressão atribuída a Gilberto Freyre,
que aborda o assunto apenas pelo enfoque de diferenciação de classe social, que com o tempo
deixaria de existir. O tema vai além. Os Quilombolas hoje sofrem não só com a diferenciação
de sua classe social, mas dos preconceitos e de fatores que se iniciaram, como dito acima,
com ideais europeus, de existência de uma raça ou cultura superior e/ou dominante.
12
Mesmo sem haver como definir o conceito de raça e assim segregar os povos de
acordo com o apurado, este conceito estreita-se, segundo D‟Adesky (2009), do ponto de vista
da genética a qual “é contudo desprovida de conteúdo ou valor científico, não sendo um
conceito operacional capaz de ser submetido a sistemas de classificação universal”. A cultura
é tomada aqui como o ponto de partida e o diferencial, a fim de analisar a possível submissão
dos culturalmente minorizados aos considerados culturalmente dominantes, sob o império da
ideologia utópica e seus mitos com relação aos Quilombolas e os entraves legais e
constitucionais que atravessam os limites do individual e do coletivo desses povos.
De posse da expressão multiculturalismo é que podemos perceber, segundo D‟Adesky
(2009), “que a luta pela igualdade entre as diversas culturas de uma nação não fomenta a
perpetuação das diferenças em outros níveis que separam grupos e povos, ao contrário,
procura igualar as culturas no sentido que as diferenças existentes entre elas não seja o
principal motivo para justificar, no seio das sociedades pluriétnicas, as mais variadas formas
de desigualdades sociais.
Assim, a diferença entre pessoas resume-se na singularidade que distingue cada ser
humano individual, em face de sua raça, sexo, cor, religião e nacionalidade. As sociedades
têm sua identidade construída através de fenômenos marcados por essa diferença individual,
expressa através da diversidade cultural, que se apresenta de maneira coletiva. Segundo Maria
Costa Neves Machado (2010, p. 45), “o direito à diferença cultural é abordado a partir da
tensão existente entre um tratamento jurídico igualitário e um tratamento jurídico diferenciado
para certos grupos visando ao reconhecimento de sua diversidade cultural”.
Nesse ambiente de debates a figura dos Povos Quilombolas assume uma imagem
atrelada à luta organizada no Brasil, como forma de resistência à intolerância e ao
preconceito, bem como à necessidade de reconhecê-los em suas diferenças, respeitando suas
diversidades culturais como povos que fizeram parte da constituição nacional, e garantir-lhes
que o idealismo democrático possa oferecer-lhes políticas igualitárias, porém direcionadas às
suas reais necessidades e às suas peculiaridades. O desafio é mostrar ao conjunto
plurinacional, o reconhecimento adequado da pessoa e da imagem coletiva do negro
(D‟ADESKY, 2009). Assim, a convivência multicultural deverá refletir o ideal da
democracia, onde os Quilombolas, bem como outras minorias culturais e étnicas, sejam
legitimados como sujeitos de direitos e garantias individuais.
Os Quilombolas aparecem na busca pela legitimidade de sua identidade e do respeito
pela sua forma de se organizar, ou seja, de sua comunidade a qual ao longo do século XX (e
em outros tempos também) através de movimentos sociais e movimentos culturais
13
contestadores tentam afirmar sua diversidade num espaço que é público e que não mais aceita
padronização. Movimentos que até hoje, de uma maneira globalizada, tentam atenuar políticas
e atitudes de exclusão. Por exemplo, desses movimentos, podemos destacar um fato
contemporâneo que expressa essa luta, que é o caso das terras devolutas existentes em alguns
estados e que estão de posse dos territórios quilombolas, e, por isso,devem ser referenciados e
a seus ocupantes deve ser reconhecida a propriedade definitiva dessas terras, a fim de fazer
valer efetivamente o disposto no art.68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias,
que assegura “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas
terras o reconhecimento à propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos
respectivos.” Além de determinar o direito de propriedade das comunidades remanescentes de
quilombo ao seu território, o art. 68 anunciou uma forma específica de propriedade que tem
em seu cerne o caráter coletivo, com o intuito de que sejam preservadas a cultura e as práticas
típicas desses povos.
Considerar os Quilombolas como “diferentes”, por seu aparato histórico, ou por suas
características sociais e/ou culturais e étnicas, vai de encontro com o ideal democrático de
igualdade (HANNA ARENDT, 1989). Porém, não se pode olvidar o fato de que, segundo
muito bem explica Maria Costa Neves Machado (2010, p. 19), devem ser levadas em
consideração “a observação e promoção dos direitos humanos e as liberdades fundamentais,
respeitando a autodeterminação dos povos”.
A discussão sobre o caráter multicultural das nações, suas peculiaridades e
necessidades, sem infringir o direito à individualidade, faz surgir a necessidade de ampliação
de conteúdo nas políticas que regulamentam a aplicação de direitos. O modelo ocidental deixa
de ser viável a nível universal como também se observa a necessidade de um direito adequado
à realidade dos propostos ideais democráticos. Trazer à normatividade essas lutas nascidas da
vontade do reconhecimento de igualdade e do direito a se manterem diferentes não é o
suficiente para oferecer aos Quilombolas a dignidade transverberada nas garantias
constitucionais. Para isso a aplicação efetiva de ações políticas institucionais dentro da própria
nação e de extensão internacional dessas ações deve ser viável ao asseguramento das
diferenças culturais e identitárias dos Quilombolas.
A democracia contemporânea utiliza-se do Direito para inaugurar a integração social
apresentando-se como aparato transitável a fim de pacificar os conflitos decorrentes das lutas
pelo multiculturalismo, pela afirmação étnica de povos, do próprio respeito à diferença e da
legitimação das lutas identitárias; porém, isso deve ser feito de forma que não haja o
14
deslocamento da competência política apenas para o jurídico, mas uma questão que envolva
todas as ciências sociais.
Por isso, a questão que envolve a formação do Estado moderno deve ser trazida à tona
desde a sua criação, a partir do século XV, onde, por uma questão de vontade soberana, a
ideia de um poder unificador, organizado e hierarquizado internamente, se fazia fortemente
presente em seus ideais, sob a fundamentação da criação de uma identidade nacional por
sobre as identidades (ou podemos falar mesmo em nacionalidades) preexistentes, para que
pudesse ser reformulada através da ideia de um Estado contemporâneo democrático. Este
Estado Democrático, então, poderia ser construído, diferente de sua gênese, através do reforço
da existência, reconhecimento e respeito das diversas identidades grupais (MAGALHÃES,
2012).
A antiga história da humanidade, onde as minorias eram eliminadas, absorvidas ou
discriminadas, não deve mais afrontar os princípios que dizem respeito à dignidade humana. É
nesse cenário moderno, democrático que os ideais multiculturalistas e o respeito à diversidade
social ganham destaque e suma importância, pois é a partir dessa integração que se poderão
construir bases teóricas que permitirão o pleno reconhecimento, a proteção e a promoção dos
direitos fundamentais dos Quilombolas, considerados grupos minoritários.
O presente trabalho analisa a ruptura do conceito de Estado moderno e o surgimento
do modelo de um Estado contemporâneo e multiétnico que tenha como principal arcabouço a
democracia como aparato a garantir e tornar viável o direito à diversidade cultural dos Povos
Quilombolas, bem como efetivar a garantia de seus direitos individuais enquanto cidadãos
nacionais, e, claro, reconhecendo o respeito às suas diferenças.
A fim de atingir o objetivo geral, outros objetivos específicos foram suscitados para a
análise de alguns pontos necessários à estrutura do trabalho.
No que constitui basicamente o conceito de diversidade e de diferença no Direito
moderno?
O conceito de diferença implica em perguntar: diferente de que ou de quem?
E ao se reconhecer o direito à diferença de minorias isso implica dizer que ainda
existe um padrão posto pelo Estado e pelo sistema jurídico? Qual o padrão?
Como se dá o surgimento de novos direitos e como isso influencia na proteção de
direitos difusos e coletivos?
15
Como incorporar dentro da ideia do Estado Democrático de Direito e do próprio ideal
democrático a questão do multiculturalismo, a fim de garantir o respeito e o digno
tratamento dos Povos Quilombolas?
É importante ainda analisar até que ponto a definição de igualdade individual pode ser
estendida ao grupo dos Quilombolas, e se isso lhes é possível ou lhes convém. Quais os
passos para a emancipação dos Povos Quilombolas e seus ideais coletivos e a conquista do
efetivo respeito a sua cultura? Por isso a análise e a reflexão racional de que o Estado é
formado por diversidades de povos e culturas, e que a diferença e a diversidade não possam
vir a ser fatores que obstruam os ideais democráticos e do estabelecimento do Estado
Moderno em todos os seus aspectos, devem ser também analisadas.
Em assim sendo, propõe-se verificar a importância do reconhecimento da cultura dos
Quilombolas, visando à preservação de sua diversidade cultural, e, por sua vez, garantir a sua
proteção em termos constitucionais e democráticos. Também, preocupar-se com essa
preservação e posterior reconhecimento e com o que acontece dentro das democracias liberais
construídas sobre alicerces de igualdade como referencial, e comas demandas que têm por
base a questão da raça, da etnia, do gênero etc., qualquer que seja a identificação cultural
reivindicada.
Os Quilombolas são um grupo que clama pelo reconhecimento e respeito de seus
direitos, pela mantença de sua cultura e principalmente pela afirmação de sua identidade e da
valoração e respeito de suas diferenças.
A questão metodológica adotada consiste em pesquisa bibliográfica, de análise
pragmática, realizada em livros, artigos e materiais eletrônicos, com o intuito de basear a
discussão em foco. O trabalho foi estruturado em três capítulos:
O primeiro capítulo-Os Quilombos Brasileiros- traz um breve histórico sobre a
chegada do negro no Brasil, formação dos Quilombos e sua conceituação e o que representa
sua figura dentro do Estado Democrático de Direito.
No segundo capítulo -Estigmas e a afronta à alteridade- o texto aborda os aspectos
pilares do presente trabalho quais sejam: A questão do racismo no Brasil e sua intrusão na
diversidade cultural desses povos e como se instala o racismo dentro de uma sociedade; a
necessidade do reconhecimento da diversidade para haver, ou não, um referencial
estigmatizador; os ideais hegemônicos e o processo de universalização no Brasil; para, enfim,
buscar-se o conceito de democracia cultural, baseada na formação das identidades dos
Quilombos e seus sujeitos, a questão do reconhecimento destes ou da negação, as políticas
que falam do reconhecimento e do respeito às diferenças culturais e como são introduzidas na
16
democracia liberal. Depois de estabelecidos os parâmetros que norteiam a forma como se dá o
reconhecimento às diferenças, bem como as formas que estabelecem as ações igualitárias em
prol do reconhecimento, são os fatores mantenedores da ideia de multiculturalismo como
fomentador do respeito à diversidade.
No terceiro e último capítulo -Diversidade cultural: identidade e diferenças -
analisar-se-á a posição cotidiana dos Quilombos sob a égide da Constituição Federal de 1988
(CF/88) e de que forma é posta a proteção à diversidade cultural e suas garantias, de forma a
respeitar as diferenças, de que maneira e até que ponto as políticas de afirmação podem
trabalhar sobre a questão.Um exemplo é o que ocorreu em 20 de outubro de 2010, com o
advento do Estatuto da Igualdade Racial, que estabeleceu diretrizes para a garantia de
oportunidades à população negra brasileira. Considerado importante ferramenta na construção
de condições para a promoção da igualdade racial, o documento possibilita a correção de
disparidades históricas, no que se refere aos direitos ainda não plenamente desfrutados por
essa população discriminada.
A luta dos afro descendentes atravessou muitos séculos, até ver estabelecida a garantia
do acesso à participação política e aos direitos constitucionais. O próprio Estatuto levou
praticamente uma década para ser aprovado, o que demonstra cabalmente este fato.
Como complemento, a fim de ilustrar o quadro contemporâneo sobre o tema discorre-
se sobre o Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), da CF/88,
que se encontra ameaçado por ideais e políticas preconceituosas e discriminatórias à sua
efetivação,e ainda, faz-se uma breve explanação sobre o disposto no Decreto 4.887 de 2003
que possui um liame que nos reporta à ideia de pluralismo, democracia e dignidade da pessoa
humana estampados na CF/88.
Por fim, a reflexão sobre a questão de como conviver com a diferença e a diversidade
a partir de um parâmetro democraticamente viável e aplicado à realidade, sem, contudo,
invadir o espaço coletivo de uma cultura diversa.
17
1 OS QUILOMBOS BRASILEIROS
1.1 A chegada do Negro ao Brasil
Os negros escravos que vieram para o Brasil saíram de vários pontos do continente
africano: da costa ocidental, entre o Cabo Verde e o da Boa Esperança; da costa oriental, de
Moçambique; e mesmo de algumas regiões do interior. Por isso, possuíam os mais diversos
estágios de civilização. O grupo mais importante introduzido no Brasil foi o sudanês, que dos
mercados de Salvador se espalhou por todo o Recôncavo. Desses negros, os mais notáveis
foram os iorubas ou nagôs e os geges, seguindo-se os minas. Em semelhante estágio de
cultura encontravam-se também dois grupos de origem berbere-etiópica, e de influência
muçulmana, os fulas e os mandês. Mais atrasados do que o grupo sudanês estavam os dos
grupos da cultura chamada banto, os angolas, os congos ou cabindas, os benguelas e os
moçambiques. Os bantos foram introduzidos em Pernambuco, de onde seguiram até Alagoas;
no Rio de Janeiro, de onde se espalharam por Minas e São Paulo; e no Maranhão, atingindo
daí o Grão-Pará. Ainda no Rio de Janeiro e em Santa Catarina foram introduzidos os
camundás, camundongos e os quiçamãs.
Instalados aqui, faz-se referência a essas “identidades étnicas e as correspondentes
heranças culturais como confrontantes em relações desiguais cujas raízes remontam ao
período colonial” (D‟ABESKY, 2009, p. 43). A existência de práticas racistas no Brasil e a
exclusão social dos afro descendentes são fundamentadas por conceitos históricos.
A prática escravista do negro no Brasil visava transformar os seres humanos chamados
escravos em mercadorias negociáveis de acordo com as regras mercantilistas vigentes. Assim,
para justificar a “coisificação” dos negros, os países mercantilistas e a própria Igreja Católica
aduziam que os negros não poderiam ser considerados humanos, pois não tinham alma,
podendo ser transacionados de maneira natural.
A ideia de que o negro não passava de coisa era condição jurídica do Brasil colonial e
imperial, que seguia a mesma norma do Direito Romano.
O modelo jurídico predominante durante os primeiros dois séculos de colonização
foi, por sua vez, marcado pelos princípios e pelas diretrizes do Direito Alienígena –
aquele modelo usado na Europa – o qual se mostrou segregador e separatista com a
população nativa-, revelando por si só as intenções e o verdadeiro anseio da
estrutura elitista do poder (WOLKMER, 1994).
18
Na verdade o objetivo da colonização nada mais era que ocupar o novo chão e de
forma predatória explorar os bens e, ainda, submeter nativos à força dos estabelecidos.
Segundo Claudio Valentim Cristiani, citado em Wolkmer (2011, p. 429), “a construção de
uma cultura e identidade nacionais, por conseguinte, nunca foi uma empreitada levada a sério
no Brasil.”
Essa condição que o negro assumiu, aqui no Brasil, segundo Norbert Elias, de
ousiders, representava a condição de arrancados de sua nação e jogados simplesmente em
senzalas, gerando a desconstrução de suas raízes; porém,não há de se olvidar que esse
desligamento das origens culturais dos negros de fato nunca ocorreu, pois em nossa
identidade nacional percebe-se muito de suas culturas.
Historicamente a trajetória do negro no Brasil confunde-se com a própria evolução
histórico-social do país, que, segundo a concepção de Caio Prado Junior, citado em Wolkmer
(2011), “constitui-se fato circunstancial absolutamente divorciado de evolução natural da
civilização ocidental”.
Com o advento da independência brasileira, a ordem jurídica passa a ser dominada
pelos grandes latifundiários, que se constituíam num grupo conservador, que também obtinha
o poder político. Foram esses homens no poder que consolidaram a escravidão como
fundamento do sistema socioeconômico predominante no Brasil daquela época. O trabalho
escravo se revestia na razão de seu prestígio e riqueza, que não se dava tão somente pela
lavoura, mas também pelo tráfico de negros.
A sociedade constituída sob o dogma patriarcal e escravocrata (FREIRE,1981)
ensejava do constituinte a expertise de elaborar um projeto de Constituição Nacional, que
poderia ou não atribuir ao negro a sua inclusão social e cidadania. Surge, no artigo 6º, inciso I,
da Constituição Imperial, outorgada em 25 de março de 1824, uma lei favorável à condição
escrava que prescrevia que seriam cidadãos apenas aqueles nascidos no Brasil, quer sejam
ingênuos ou libertos. É nesse primeiro texto constitucional que se vislumbra a divisão social
dos habitantes do país. Aqui se forma uma sociedade de cidadãos e negros escravizados.
Porém, a escravidão manteve-se segura pelo texto constitucional de 1824, que, mesmo não
dispondo expressamente neste sentido, vale-se do artifício de assegurar a defesa absoluta do
direito de propriedade (WELLING, citado em WOLKMER, p. 472).
Nesse contexto de propriedade e na ausência de codificação civil própria, continuavam
vigentes no Brasil independente as Ordenações Filipinas, que condicionavam os negros à
condição de res (coisa), aos quais era atribuída a incapacidade para os atos da vida civil, mera
propriedade do senhor e despossuído de quaisquer direitos civis ou políticos. Porém,no campo
19
penal com a edição do Código Criminal de 1830 e do Código de Processo Criminal de 1832, o
escravo que cometesse conduta tipificada como crime respondia plenamente pelos seus atos,
sendo considerado imputável, e por ser propriedade do senhor, era permitida a aplicação de
penas corporais cruéis e desumanas.
A incongruência era gigantesca. Por um lado o negro era coisa, de outro era passível
de ser punido. Essa dupla condição civil do escravo feria até mesmo a Constituição do
Império de 1824, pois esta reconhecia os direitos civis de todos os cidadãos brasileiros,
diferenciando-os apenas, do ponto de vista dos direitos políticos, em função de suas posses.
(HOLANDA, 1963).
Ademais, nunca interessou para a sociedade elitizada do Brasil a discussão sobre o
instituto da escravidão, que era um dos mais importantes aparatos econômicos do país. Se
deixasse às custas dos proprietários rurais, jamais haveria, em tese, o fim da escravidão
naquela sociedade estamentada (WOLKMER, p. 452).
Foi aí que no início do século XIX o governo inglês passou a pressionar Portugal e
outras nações escravistas para que interrompessem o tráfico negreiro. Na verdade a Inglaterra
não proibiu o tráfico por motivos humanitários e sim capitalistas.Como Portugal investiu no
tráfico de escravos em sua colônia, “a Inglaterra temia que o Brasil tivesse o mesmo fim que o
Norte Americano, pois eles tinham conhecimentos que o tráfico de escravos era algo muito
lucrativo, eles não queriam perde a mina que era a colônia de Portugal”(Gloriasantos‟s Blog).
Após 1822, condicionou-se o próprio reconhecimento da independência do Brasil a
um tratado, assinado em 23 de novembro de 1826, que tornava ilegal, a partir de março de
1830, o comércio internacional de negros africanos.
Como surgiu uma crise na lavoura de açúcar e o esgotamento das minas, a extinção da
escravidão parecia certa, e foi tão somente por isso que D. Pedro I aceitou o tratado ratificado
pelo Parlamento.
Porém, inesperadamente houve o crescimento da agricultura cafeeira, que exigia
também grande quantidade de trabalhadores. Sem respeitar o acordo, os escravos continuaram
sendo desembarcados, “clandestinamente”, nas costas brasileiras.
O cenário escravocrata, além de desumano, tornara-se prática ilegal, forma de
enriquecimento ilícito de barões. Já em agosto de 1845, a Bill Aberden autorizou a marinha de
guerra inglesa a prender e a tratar, de acordo com o diploma de 1826, os tumbeiros brasileiros
como navios piratas. O parlamento, temendo ver os portos nacionais bloqueados, votou, em
setembro de 1850, a Lei Eusébio de Queirós, que proibia e reprimia o tráfico de escravos.
20
Agora, sem sustentação para abastecer o tráfico, parecia que a escravidão estava
realmente por terminar.
Logo em seguida, no ano de 1871, a Lei do Ventre Livre ou Rio Branco, declarou
livres os filhos de mulher escrava que nascessem a partir daquela data. Mas, a legitimação da
oficialização da compra da alforria pelo escravo era apenas medida que intencionava controlar
essa questão, e não, ver extinta de verdade essa condição subumana.
Também merece destaque a Lei dos Sexagenários, de 1885, que concedia a liberdade
ao escravo com idade acima de 65 anos. Porém, também mantinha seu caráter político como
promotor de campanhas abolicionistas.
Não é tão real estudar a existência de legislação própria para regular as relações de
escravos e senhores, porém é mister destacar que, dentre as lutas empreendidas em busca da
liberdade pelos escravos, pode-se citar direitos não escritos que se consolidaram pelo mero
reconhecimento das autoridades., como por exemplo as ações de liberdade impetradas por
escravos.
Essas ações muito representam no contexto histórico, pois assumem um caráter de
instrumentos jurídicos da resistência escrava. Ficou conhecida como “Efeitos” da Lei Feijó, a
lei promulgada em 1831, que declarava livres todos os escravos que entrassem no Brasil a
partir daquela data. Esses efeitos foram usados desde a segunda metade do séc. XIX por
escravos, advogados, magistrados, parlamentares e jornalistas que investiram nos meios legais
a partir da ideia de que todos aqueles africanos importados após a lei estavam no país
ilegalmente. Foi também uma tentativa legitimada de combater a sociedade escravista. Porém,
acabou servindo, mais tarde, em 1880, como parâmetro de incorporação à campanha
abolicionista, de interesse político.
Feita essa retrospectiva histórica da escravidão no Brasil, aparece aqui o Direito
formal, como se patrocinado por um Estado que lutava sempre para se afirmar,contradizendo
um direito que deveria ser estabelecido para tentar inteirar aquela nova sociedade que surgia e
que trazia em seu contexto diferentes grupos de indivíduos, de interesses distintos. Talvez a
diversidade ainda não assombrasse os olhos do legislador da época, ou por medo do outro, ou
por individualismo e negação da diferença.
Acredita-se que aqui esteja a gênese da intolerância ao diferente. A exclusão dos então
renegados. De nada adiantou o embate entre concepções, que se desenvolveu no direito
nacional naquele período, pois, na verdade, em momento algum da história houve realmente a
preocupação com a diversidade de cultura e de povos.
21
Por isso, hoje, é necessário ressuscitar a história e ampará-la nos dispositivos
constitucionais, para que não caia no esquecimento o escravo, que não era apenas um agente
passivo do direito, mas cidadão brasileiro, a base de uma sociedade econômica e que até hoje
está à espreita das garantias fundamentais e da dignidade de sua valoração humana.
1.2 O que representam os Quilombos
Os Quilombos representam uma das maiores expressões de luta organizada no Brasil,
como forma de resistência ao sistema colonial-escravista, onde suas atuações incluem
questões estruturais, em diferentes momentos histórico-culturais do país, levando em
consideração a liderança e a orientação político-ideológica de africanos escravizados e
descendentes de africanos nascidos no Brasil.
O processo de colonização e escravidão no Brasil durou mais de 300 anos, sendo o
último país do mundo a abolir a escravidão, o que ocorreu através de uma lei que incluiu os
ex-escravizados numa sociedade que não oferecia condições mínimas de sobrevivência.
Quilombo é um movimento amplo e permanente que se caracteriza pelas seguintes
dimensões: vivência de povos africanos que se recusavam à submissão, à
exploração, à violência do sistema colonial e do escravismo; formas associativas que
se criavam em florestas de difícil acesso, com defesa e organização socioeconômica
e política própria; sustentação da continuidade africana através de genuínos grupos
de resistência política e cultural (NASCIMENTO, 1980, p.32).
A colonização teve início no século XVI, quando os africanos escravizados se
engajaram num combate firme contra a condição de escravizados, o que ocorria em diversos
núcleos de resistência. Nesse cenário destacam-se os quilombos: República de Palmares,
Revolta dos Alfaiates, Balaiada, Revolta dos Malês, entre tantos outros núcleos que ainda
continuam no pós-abolição, numa luta em oposição às consequências da escravidão, buscando
a liberdade que sempre lhes foi negada (NASCIMENTO, 1980).
De uma forma geral os quilombos são compostos por africanos de diferentes grupos
étnicos, que se juntam como forma de resistir a uma determinação política que sempre buscou
separá-los de tudo o que significasse expressão identitária de um povo, como sua língua,
família, costumes, religiões e tradições. Essas expressões são retomadas em todos os
momentos da resistência quilombola, na reinvenção de políticas e estratégias de luta pela
liberdade, sempre com postura crítica, indo contra a postura do colonizador, do escravocrata e
do imperialista. Assim, os núcleos de resistência têm continuidade e interagem com os
22
quilombos através de suas tradições, valores, costumes, mitologias, rituais, formas
organizativas, organização familiar, assim como a experiência de socialização.
As comunidades quilombolas ainda são desconhecidas na sociedade contemporânea,
onde idealizações folclóricas ainda povoam o ideário daqueles que não conhecem de fato o
que vem a ser um quilombo. No entanto, esse desconhecimento é prejudicial para a
consecução dos direitos e garantias deste povo, pois não há entre os quilombolas a intenção de
se apartarem do contexto social, pelo contrário, existe um ideal oposto, que visa àintegração
cada vez maior das comunidades quilombolas com a sociedade como um todo.
1.3 Breve histórico sobre os Quilombos
De acordo com Reis (1996) a palavra quilombo e/ou kilombo vem de Mbundu, de
origem africana, que teve origem na sociedade primitiva formada de jovens africanos e
guerreiros Mbundu – dos Imbangala. A escravidão sempre esteve acompanhada de
resistência, onde sob a ameaça do chicote, o escravo negociava espaços de autonomia, fazia
corpo mole no trabalho, quebrava ferramentas, incendiava plantações, agredia senhores e
feitores, e rebelava-se de forma individual ou coletiva. Dentre as muitas formas de resistência
pode-se considerar a mais típica da escravidão, as fugas e formação de grupos de escravos
fugidos. As fugas originaram a formação de vários grupos nas Américas, com diferentes
nomes: na Espanha: Palenques, Cumbes; na Inglaterra, Maroons; na França, grand
Marronage e petit Marronage, e no Brasil, Quilombos e Mocambos e seus membros:
Quilombolas, Calhambolas ou Mocambeiros.
No Brasil, são realizados estudos por diferentes profissionais, como educadores,
sociólogos, antropólogos, historiadores e juristas, que buscam critérios para denominar a luta
quilombola: comunidades negras rurais, terras de pretos, remanescentes de comunidades de
quilombos, que hoje são chamados de Comunidades Remanescentes de Quilombos, que nos
remetem à compreensão de serem estes os descendentes dos primeiros habitantes da terra,
trabalhadores rurais que ali solidificam sua residência habitual e permanecem
emocionalmente vinculados a ela (LINHARES, 2002).
Ainda segundo o mesmo autor, os debates em torno destas designações passam a
ganhar sentido, sobretudo, para efeito de medidas legais, jurídicas ou definição de direitos
sociais, econômicos, políticos para os quilombolas e seus descendentes, como por exemplo,
direito à legalização da terra, à moradia, à educação, à saúde e ao lazer.
23
As comunidades quilombolas são grupos sociais e possuem uma identidade étnica que
os distingue do restante da sociedade.Por isso,desenvolveram práticas de resistência na
manutenção e reprodução de seus modos de vida. São comunidades caracterizadas por uma
grande diversidade de processos, tanto durante a vigência do sistema escravocrata, que por
mais de 300 anos subjugou os negros trazidos da África para o Brasil, quanto após sua
abolição no século XIX, quando passaram a enfrentar desigualdades que ainda se arrastam até
o presente século (BRASIL, 2007b).
O primeiro conceito de quilombo surgiu em 1970, com uma definição pautada na ideia
de fuga, no estabelecimento de uma quantidade mínima de “fugidos” e no recesso das matas.
No Brasil, os quilombos surgiram durante o período escravocrata, onde por um tempo
resistiram aos negros fugidos. A partir de 1888, com a abolição da escravatura, a prática da
escravidão tornou-se ilegal no país, e, no entanto, os quilombos continuaram a ser fundados,
constituindo-se um fator de grande importância, permanecendo até os dias de hoje (LIMA;
SILVA; MARTINS, 2011).
Os quilombos são considerados grupos de resistência, não ao escravismo, mas diante
das dificuldades encontradas num país que nunca lhes concedeu possibilidades e vida digna.
Continuam válidas as palavras de Gama (2006, p. 4):
Não podendo também restringir o direito de propriedade somente aos descendentes
de comunidades que se formaram antes da escravidão, esse evento, como se sabe,
pôs termo, formalmente,à escravidão. Entretanto, apesar das grandes conquistas
adquiridas com a resistência dos quilombos, os negros continuaram sofrendo toda
sorte de opressão - o que, de certa forma, ocorre nos dias atuais -, tais como:
exclusão social, discriminação racial, oportunidades desiguais e etc. Os ex-escravos,
nesse contexto, não possuindo nenhum recurso financeiro para iniciar uma nova vida
e não enxergando outra alternativa, uniram-se e, como já ressaltado, formaram novas
comunidades mesmo após a abolição. Nessa fase, a resistência não era mais contra a
escravidão em si, que se tornou ilegal, mas sim ao ranço escravocrata que ainda
permanecia impregnado na sociedade. Assim, devemos concluir como beneficiados
também os descendentes das comunidades que se formaram após o advento da
abolição.
A principal característica das comunidades quilombolas se define por sua identidade,
que é marcada pela experiência vivida e as versões compartilhadas de sua trajetória comum,
que foi sendo construída a partir de vivências e valores partilhados. Outra característica
marcante das comunidades quilombolas é a prática do sistema de uso comum de suas terras,
sendo concebidas por elas como um espaço coletivo e indivisível, ocupado e explorado por
meio de regras consensuais aos diversos grupos familiares que compõem as comunidades,
com relações orientadas pela solidariedade e ajuda mútua (BRASIL, 2007b).
24
De acordo com o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, o
conceito de remanescentes das comunidades de quilombo refere-se
aos indivíduos, agrupados em maior ou menor número, que pertençam ou
pertenciam a comunidades, que, portanto, viveram, vivam ou pretendam ter vivido
na condição de integrantes delas como repositório das suas tradições, cultura, língua
e valores, historicamente relacionados ou culturalmente ligados ao fenômeno
sociocultural quilombola (BRASIL, 2007a).
Existe uma luta dos quilombolas pela implementação de seus direitos territoriais, o
que representa o reconhecimento do fracasso da realidade jurídica estabelecida pela “Lei das
Terras”, que sempre buscou moldar a sociedade brasileira na perspectiva da propriedade
privada de terras. A noção de terra coletiva, como são tratadas as terras de comunidades
quilombolas, desestabiliza o modelo de sociedade baseado na propriedade privada,
considerada a única forma de acesso e uso da terra. A partir do momento em que o Estado
passa a pensar pela perspectiva privada da terra, exclui vários outros usos e relações com o
território, o que acaba incluindo também pessoas ou grupos, como acontece como os povos
indígenas e as comunidades quilombolas (BRASIL, 2007b).
Ao tratar-se do uso da terra, assim como todo o século XIX foi estampado por uma
gama de transformações de cunho econômico, essas transformações também incidiram
diretamente nas tradições que antes vinculavam a posse de terras enquanto símbolo de
distinção social. O avanço da economia capitalista tinha um caráter cada vez mais mercantil,
onde a terra deveria ter um uso integrado à economia, tendo seu potencial produtivo
explorado ao máximo. Em consequência dessa nova prática econômica, percebemos que
diversas nações discutiram juridicamente as funções e os direitos sobre esse bem.
No Brasil, os sesmeiros e posseiros realizavam a apropriação de terras aproveitando-se
de brechas legais que não definiam bem o critério de posse das terras. Depois da
independência, alguns projetos de lei tentaram regulamentar essa questão buscando critérios
mais claros. No entanto, somente em 1850, a chamada Lei 601 ou Lei de Terras apresentou
novos critérios com relação aos direitos e deveres dos proprietários de terra.
A nova lei surgiu em um “momento oportuno”, quando o tráfico negreiro passou a ser
proibido em terras brasileiras. A atividade, que representava uma grande fonte de riqueza,
teria de ser substituída por uma economia onde o potencial produtivo agrícola fosse bem
explorado. Ao mesmo tempo, ela responde ao projeto de incentivo à imigração que deveria
ser financiada com a dinamização da economia agrícola, regularizando-se o acesso à terra
frente aos novos campesinos assalariados.
25
Dessa maneira, ex-escravos e estrangeiros teriam que enfrentar enormes restrições
para galgar a condição de pequeno e médio proprietário. Com a referida lei, nenhuma nova
sesmaria poderia ser concedida a um proprietário de terras, porque dali em diante a forma de
acesso à terra reconhecida legalmente era apenas por meio de ocupação das mesmas. E as
chamadas “terras devolutas”, que não tinham dono e não estavam sob a égide do Estado,
poderiam ser obtidas somente por meio da compra junto ao governo.
A partir de então, uma série de documentos forjados começaram a aparecer para
garantir e ampliar a posse de terras daqueles que há muito já a possuíam. Aquele que se
interessasse em, algum dia, desfrutar da condição de fazendeiro deveria dispor de grandes
quantias para obter um terreno. Dessa maneira, “a Lei de Terras transformou a terra em
mercadoria no mesmo tempo em que garantiu a posse da mesma aos antigos latifundiários”
(SOUSA, 2009).
Sob a égide do conceito da terra e de seu valor, faz-se necessário conhecer melhor a
forma de organização quilombola, assim como seus alicerces gerais, levando em consideração
sua organização social, econômica e cultural. Por isso, é preciso considerar as especificidades
que circundam cada comunidade e estudá-las para entender sua organização. Mesmo levando
em conta sua distinção, elas estão ligadas pelo elo humano-sentimental, ou seja, um
sentimento de pertencimento.
Para Marques e Malcher (2009, p. 23),
O conhecimento científico sobre as comunidades quilombolas permite chegar a uma
conclusão de fundamental importância jurídica: os quilombos não se constituíram de
uma única maneira. Deve-se, portanto, ter muita atenção ao instrumental a ser
utilizado para se pensar esse fenômeno, múltiplo na sua origem, não homogêneo em
sua constituição e manifestação histórica. Posturas passadistas, envelhecidas e
estereótipos baseados em modelos preconcebidos e generalizações de pouca
significação não se prestam à análise de um fenômeno de tão ricas perspectivas
históricas como foram os quilombos.
1.4 Os Quilombolas no Estado Democrático de Direito
O Estado Democrático de Direito surgiu após a promulgação da Constituição Federal
de 1988, onde a democracia no Brasil se mostrou através de um caráter relevante no
desenvolvimento teórico, em âmbito político, social e econômico, tudo isso em uma
sociedade baseada me igualdade, liberdade, diversidade cultural, pluralismo jurídico-político,
participação e cidadania. Foi um importante nascer de um Estado voltado para a construção da
26
cidadania e promoção dos direitos fundamentais, com base no princípio da dignidade da
pessoa humana.
Quando se fala em direito derivado do poder constituinte é necessário ressaltar as
bases sociais que o fundamentam, onde:
[...] o processo social de afirmação étnica, referido aos chamados quilombolas, não
se desencadeia necessariamente a partir da Constituição de 1988 uma vez que ela
própria é resultante de intensas mobilizações, acirrados conflitos e lutas sociais que
impuseram as denominadas terras de preto, mocambos, lugar de preto e outras
designações que consolidaram de certo modo diferentes modalidades de
territorialização das comunidades remanescentes de quilombos. Neste sentido a
Constituição consiste mais no resultado de um processo de conquistas de direitos e é
sob este prisma que se pode assegurar que a Constituição de 1988 estabelece uma
clivagem na história dos movimentos sociais, sobretudo daqueles baseados em
fatores étnicos (ALMEIDA, 2006, p. 33, nota 21).
Nesse cenário democrático brasileiro situam-se as comunidades remanescentes de
quilombo, num caminho de lutas pela defesa de seus interesses, na busca pela inclusão nas
relações democráticas e a concretização dos seus direitos fundamentais, como: o
reconhecimento da manifestação cultural diferenciada, a defesa dos recursos naturais
existentes nas suas terras e o direito à terra e sua efetiva proteção (MARQUES; MALCHER,
2009).
A Constituição da República Federativa do Brasil é composta por um grande rol de
preocupações sociais, como, por exemplo, a construção de uma sociedade livre,justa e
solidária, a garantia de um desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza, assim como a
redução das desigualdades sociais e regionais, promovendo o bem de todos, no combate ao
preconceito de origem, raça, sexo, cor e idade, ou quaisquer outras formas de discriminação
(BARROSO, 2005).
Na opinião de Habermas (1997) a presente constituição pode ser considerada analítica,
dirigente, sendo pautada na necessidade de assegurar um mundo menos desigual. Abandonou-
se uma época onde os direitos básicos eram suprimidos. Assim, vem à tona um vasto rol de
direitos, considerados democráticos e que necessitam ser concretizados, delimitados e
aplicados.
Habermas explica que uma norma só é aceita como direito positivo a partir do
momento em que ela obtém força através de um procedimento juridicamente válido, sendo a
validade social das normas do Direito, determinada pelo grau em que as mesmas conseguem
impor-se, ao passo que a legitimidade das normas jurídicas se mede pela resgatabilidade
discursiva de sua pretensão de validade normativa. Sendo assim, no pensamento de
27
Habermas, uma norma tornar-se jurídica no momento em que ela é elaborada por um
procedimento jurídico, tem validade social quando ela é aceita de fato pelos afetados pela
norma, ou seja, quando os cidadãos aceitam tal norma, e é legítima apenas quando o conteúdo
desta forma advém da discussão do seu conteúdo pela sociedade. Assim,
pode-se diferenciar a legitimidade da legalidade, e a legitimidade da validade social:
a legitimidade é um procedimento diverso da legalidade (validade jurídica) e diverso
da validade social. A legitimidade de uma norma independe do fato de ela se impor
no meio social. O direito como instrumento do poder do Estado se impõe a toda a
sociedade. O direito emanado pelo poder jurídico estatal e o direito legal. Ocorre que
o direito estatal não consegue fundar sua legitimidade apenas na legalidade, visto
que os procedimentos sãodiversos (HABERMAS, 2003, p. 51).
Assim,é necessário verificar como a sociedade vai legitimar o direito estatal. Para
Habermas o direito positivado corre o risco de perder seu poder de integração social se a
legalidade não for criada buscando a legitimidade, sendo esta ideia de legitimidade baseada
em um princípio de autolegislação. Neste sentido, a legitimidade das normas vai advir de um
processo legislativo que se apoia na soberania do povo para a construção de um processo
legislativo democrático (HABERMAS, 2003, p. 14-115).
A legitimidade do direito nasce da participação do povo soberano na construção do
ordenamento jurídico, ou seja, na participação do povo no processo legislativo, que quando
feito desta forma, pode denominar-se democrático. É o princípio de democracia que vai trazer
legitimidade para uma normatização legítima do direito, em um processo de normatização
discursiva, onde os membros livres e iguais de uma sociedade estabelecida livremente vão
praticar uma espécie de autolegislação para a construção desse ordenamento. O ordenamento
jurídico legítimo nasce então da discussão entre os membros da sociedade em um processo
democrático de elaboração das normas. Desta forma, “o princípio da democracia, além de
estabelecer um processo legítimo de normatização, deve ser visto também como uma meta
para orientar a produção do medium do direito” (HABERMAS, 2003, p. 146), visto o respeito
aos princípios democráticos na elaboração das normas e de sua importância para construção
de um ordenamento constituído legitimamente por aquele princípio.
O procedimento democrático, assim, constrói um ordenamento jurídico que respeita as
próprias normas de democracia, além de salvaguardar a autonomia privada e pública dos
cidadãos, contemplando os direitos fundamentais que os cidadãos são obrigados a se atribuir
mutuamente, caso queiram regular sua convivência com os meios legítimos do direito
positivo. Percebe-se assim que no pensamento de Habermas, as normas que são elaboradas
através do princípio da democracia devem positivar normas que continuem a proteger esse
28
princípio democrático, além da autonomia pública e privada dos cidadãos assim como os
direitos fundamentais.
Sem o respeito à autonomia do cidadão e aos direitos fundamentais, que são os
pilares de um ordenamento e de uma constituição, não é possível se construir um
ordenamento legítimo. Para tanto se concebe uma norma, ou ordenamento, ou uma
constituição, legítimos apenas quando estes advêm de um processo legislativo
democrático e que positive normas que respeitem este princípio, além dos direitos
fundamentais e das autonomias dos cidadãos (HABERMAS, 2003, p. 150).
Essa concepção de um estado normatizado de acordo com o real social traz à tona
outra questão,a modernidade, que de acordo com o mesmo autor (Habermans), insere em seus
pressupostos a filosofia de que os indivíduos pertencem à sociedade como os membros de
uma coletividade, como parte de um todo que se constitui através da ligação de suas partes.
Para Müller (2004, p. 26) o povo citado nas constituições deve ser todo o povo,
considerado enquanto sujeito de direitos fundamentais. Assim, todo o povo passa a ser
contemplado pelas normas jurídicas positivadas em um texto constitucional, onde todos
ajudaram a construir a sociedade, a partir das diferentes formas de vida e que devem legitimar
a Constituição, sendo que a Constituição em si é uma tarefa para o poder constituinte que, no
“pleno sentido do termo, maciço e real, não mais metafísico, seria o poder do povo de
constituir-se”.
As dificuldades enfrentadas pelos remanescentes de quilombos refletem o tratamento
de exclusão dispensado a eles, como práticas racistas, discriminatórias e manipuladoras que
exemplificam a postura produzida pelos “donos do poder”, um poder legitimado por discursos
autoritários e preconceituosos, presentes nos textos constitucionais (MÜLLER, 2003).
Através do sistema democrático de direito contemporâneo, elaborado num país que
adota a Constituição como o conjunto de normas jurídicas supremas, o povo é concebido
como o titular do poder legítimo, e, assim, escolhe seus representantes para que elaborem as
regras e tracem os objetivos políticos e sociais, que passam a ser estampados na Carta
Constitucional (VIEIRA, 2003).
Segundo Guetti (2003) a relação entre o povo e seus representantes pode ser
trabalhada de diversas maneiras, como se ocorresse um mandato, onde o representante estaria
vinculado à realização de suas propostas feitas na esfera de comunicação anterior à eleição, ou
até mesmo através de uma autorização em branco, onde o mesmo estaria desvinculado de suas
propostas, dentre outras várias alternativas.
29
Ao conceber o Estado, através da representatividade popular, justifica a razoável
obediência ao direito, levando em consideração que são os indivíduos que indicam os
representantes para elaborarem as normas, os objetivos e os padrões de condutas a ser
seguidos, com a obrigação de respeitá-las, o que está vinculado a um aspecto meramente
formal da teoria democrática (HABERMAS, 1995).
Diante disso, está disposto na CF/88 em seu art. 5°: “Todos são iguais perante a lei,
sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes
no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade” (BRASIL, 2007a, p. 9).
De acordo com Gonçalves (2010), além de garantir a todos a igualdade e a liberdade, a
Constituição Federal dispõe de outros inúmeros direitos e garantias fundamentais, presentes
em seus artigos, tratando-se de uma estrutura que garante direitos fundamentais de todos os
cidadãos no Estado Democrático de Direito.
É impossível conceber e comandar um Estado sem o povo, muito menos um Estado
de Direito, sem algumas garantias fundamentais dos direitos subjetivos de seu povo. Por isso,
a construção da cidadania se dá a partir da afirmação da identidade de um povo, o que não
pode ser confundido com um processo de massificação, e nem com a supressão da
subjetividade e identidade de um agrupamento específico (GONÇALVES, 2010).
Assim, podem-se destacar alguns parâmetros para a construção de um Estado que se
pretenda ser um Estado de Direito:
Em 1988, o Brasil promulgou uma nova Constituição, depois de mais de duas
décadas de um regime autoritário. Em reação à experiência do governo arbitrário e a
um passado de injustiças e desigualdades sociais, a nova Constituição foi tecida sob
os princípios do devido processo legal, da democracia e dos direitos fundamentais.
Sua carta de direitos garante direitos civis, políticos, sociais e econômicos, incluindo
os direitos de grupos vulneráveis como os indígenas, os negros, os idosos e as
crianças. Esses direitos recebem uma proteção especial e não podem ser abolidos
nem por intermédio de emendas constitucionais. O Brasil é hoje parte das principais
convenções internacionais de direitos humanos, e essas têm um efeito direto sobre o
sistema jurídico brasileiro. Portanto, todas as garantias substantivas e procedimentos
da Carta Internacional de Direitos Humanos são parte do sistema jurídico
brasileiro (VIEIRA, 2008, p. 205).
A cidadania e a dignidade da pessoa humana são fundamentos do Estado Democrático
de Direito, presentes na Constituição da República, art. 1º, II e III, o que indica que um
Estado que não garante os direitos subjetivos não pode ser considerado um Estado
de Direito. Só se pode falar de povo ativo, quando seus direitos são respeitados, o que na
prática pode ainda parecer uma metáfora ideologicamente abstrata (MÜLLER, 2003).
30
Assim, é preciso salientar alguns dispositivos da Seção II:
Da Cultura:
Art.215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso
às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das
manifestações culturais.
§ 1° O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-
brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.
[...]
§ 3° A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando
ao desenvolvimento cultural do país e à integração das ações do poder público que
conduzem à:
defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro;
produção, promoção e difusão de bens culturais;
formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas
dimensões;
IV- democratização do acesso aos bens de cultura;
V- valorização da diversidade étnica e regional.
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e
imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à
identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade
brasileira, nos quais se incluem:
I- as formas de expressão;
II- os modos de criar, fazer e viver;
III- as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV- as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às
manifestações artístico-culturais;
V- os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,
arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
§1° O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o
patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância,
tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação;
[...]
§5° Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências
históricas dos antigos quilombos (BRASIL, 2007a, p. 58-59).
Vale citar também que a autonomia é o elemento de existência de um quilombo, sendo
o principal fator que une a comunidade, ou seja, a verdadeira essência de um quilombo, o que
envolve seu modo de vida, sua subsistência, sua cultura, o que sempre foi oprimido, onde os
quilombos passaram a ter um caráter de resistência, no combate às opressões sociais
existentes (D‟ADESKY, 2009).A prática de sua cultura é fator imprescindível para conquista
dessa autonomia.
Ainda de acordo com o mesmo autor, o quilombola está ligado ao quilombo pela
vontade de resistir, sendo que o conceito antropológico nos fala que um quilombola é
identificado por sua árvore genealógica que o remete a sua comunidade, o que envolve uma
questão de descendência e reminiscência, que se constitui como um elo, que une o quilombola
ao quilombo.
31
A identidade de outra pessoa como pertencente a um grupo étnico implica
compartilhamento de critérios de avaliação e julgamento. Logo, isso leva à aceitação
de que os dois estão fundamentalmente “jogando o mesmo jogo” e isto significa que
existe entre eles um determinado potencial de diversificação e de expansão de seus
relacionamentos sociais que pode recobrir de forma eventual todos os setores
diferentes de atividade. De outro modo, uma dicotomização dos outros [...] como
membros de outro grupo étnico, implica que se reconheçam limitações na
compreensão comum, diferente de critérios de julgamentos, de valor e de ação, e
uma restrição da interação (D‟ADESKY, 2009, p. 39).
É necessário ressaltar ainda que a cultura pode ser entendida como forma de vida, que
é compartilhada pelas pessoas, e está presente na sua organização em um dado momento
histórico. Por isso, a cultura pode representar um conjunto de significados que todos
compartilham, envolvendo práticas e ações individuais e coletivas. A ordem constitucional
tem o papel de proteger a cultura, o que inclui a proteção de todas as normas que são
compartilhadas pelos indivíduos, preterindo este elemento cultual como sua própria
identidade individual e coletiva de uma sociedade (D‟ADESKY, 2009).
De acordo com Elias (1994), essa identidade do coletivo não tem apenas uma função
individual, mas também exerce uma importante função social, dando a cada indivíduo um
passado que se estende muito além de seu passado pessoal, permitindo que coisas das pessoas
que são do passado continuem a viver no presente. Essas unidades, povos, tribos, ou qualquer
outro nome que é dado a esses conjuntos de povos, não têm apenas a função de sobrevivência
no sentido mais óbvio da palavra. Não podem ser consideradas unidades únicas de
sobrevivência, pois as pessoas que fazem parte delas costumam gozar de um nível
relativamente elevado de segurança física, proteção contra a violência e amparo na doença e
na velhice. Esse cenário envolve também uma continuidade da tradição, pois a filiação a esses
grupos concede ao indivíduo uma oportunidade de sobrevivência que vai além da existência
física real, resultando numa sobrevivência na cadeia de gerações.
Sem dúvida, a continuidade de um grupo de sobrevivência pode se expressar na
continuidade de sua língua, na transmissão das lendas, da história, da música e de muitos
outros valores culturais, sendo umas das funções de sobrevivência desse grupo. Na memória
de um grupo atual, a sobrevivência de um grupo passado tem uma função de memória
coletiva, a saber:
Enquanto nenhum sentimento de identidade pessoal, nenhum sentimento-nós for
associado à unidade de ordem superior, o desvanecimento ou desaparecimento do
grupo-nós de ordem inferior há de se afigurar como uma ameaça de morte, uma
destruição coletiva, como uma perda de sentido no mais alto grau (ELIAS, 1994,
p.182).
32
Sem dúvida, a valorização da diversidade étnica e as medidas protetivas do patrimônio
cultural brasileiro, assim como a preservação da identidade do povo formador do processo
civilizatório, surgem como medidas de legitimação do Estado Constitucional, dando
oportunidades importantes de afirmação e perpetuação da “identidade-nós”, o que os valoriza
enquanto sujeitos de direitos, em seus direitos culturais, tornando-se fundamental para a
sobrevivência de grupos étnicos, culturais, como os quilombolas.
É preciso acrescentar ainda a importância que a titulação das áreas remanescentes de
quilombo adquire enquanto espaço referencial, elementos do complexo cultural negro
africano. Porém, não se pode considerar que as comunidades quilombolas sejam nichos
culturais autônomos, como se fossem pedaços da África no Brasil, como setores do
Movimento Negro, como eram compreendidos no final da década de 1970, mas que esse
processo de territorialização e busca pelo direito de continuação de sua cultura, ritos,
costumes, entre outros, de africanos escravizados ou de seus descendentes em comunidades
quilombolas, possibilitou a elaboração de modos específicos de reprodução cultural, que são
baseados em uma relação da ancestralidade com os contextos históricos em que se
desenvolveram (MOURA, 2007).
Os quilombolas não podem ser reduzidos mecanicamente à categoria “pobres” e
tratados com os automatismos de linguagem que os classificam como “carentes”, de
“baixa renda” ou na “linha de indigência”. Insistir nisso significa uma despolitização
absoluta. Afinal, as comunidades remanescentes de quilombos não são o “reinado da
necessidade” nem tampouco um conjunto de “miseráveis”, já que os quilombolas se
constituíram enquanto sujeitos, dominando essa necessidade e instituindo um
“reinado de autonomia e liberdade” (ALMEIDA, 2006, p. 11).
1.5 A formação dos Quilombos brasileiros
Segundo dados do INCRA, até o ano de 2008, o Governo brasileiro, através do
Programa Brasil Quilombola, certificou 1.342 comunidades como comunidades quilombolas.
Como se demonstrou, os quilombos ou mocambos existiram desde a época colonial e
seus moradores eram chamados de quilombolas, calhambolas ou mocambeiros, e sua
formação reforça o ideal de liberdade, uma vez que esta não era uma condição fácil de ser
conseguida, pois seu almejo significava viver sendo perseguido não apenas como um escravo
fugido, mas como criminoso (SILVA, 2007).
O Quilombo dos Palmares, o mais conhecido da história brasileira, na verdade foi um
quilombo formado no século XVII, na Serra da Barriga, região entre os estados de Alagoas e
Pernambuco. Como a maioria dos Quilombos,estava localizado em local de difícil acesso,
33
porém seus aquilombados conseguiram formar dentro da comunidade uma estrutura estatal
com independência econômica e sociocultural, assim como era nos antigos reinos
africanos.Por se tratar de uma organização capaz de oferecer aos seus as condições sociais de
existência, calcula-se que Palmares chegou a possuir uma população de 30 mil
pessoas.Depois de Palmares, qualquer pequeno grupo de escravizados fugitivos que fosse
encontrado nas matas passou a ser considerado quilombo e, como tal, precisava ser destruído.
Essa definição de quilombo nada mais tinha que a intenção de acabar com a resistência
escrava antes que pudessem prosperar e fomentar os ideais para outros remanescentes,
evitando que outros escravizados fugidos viessem a constituir um quilombo das proporções de
Palmares, o que poderia vir a afetar e ameaçar toda a ordem escravocrata da colônia
(GOMES, 1995).
Mesmo não havendo outro Quilombo com as mesmas estruturas de Palmares, o
quilombismo marcou a sua presença até a Abolição e causou muitos incômodos às
autoridades e aos senhores.
Muito tempo depois, após um grande episódio de lutas e resistências, após a
promulgação da Constituição de 1988, às comunidades negras foi dada outra interpretação ao
termo “quilombo”, não sendo este mais representação de luta e resistência ao cativeiro, mas
sim como morada e sobrevivência da família negra em pequenas comunidades, onde seus
valores culturais eram preservados (SILVA, 2007).
Mesmo surgidas após a abolição da escravatura, algumas Comunidades Quilombolas
tiverem sua origem ainda na época da escravidão, através da posse de terras devolutas, da
compra ou recebimento de doação de um pedaço de terra por ex-escravos. Essa é uma
situação marcante em relação aos Quilombos atuais, ou seja, a afronta que sofrem por parte de
fazendeiros os quais se denominam proprietários das terras ocupadas por essas comunidades,
o que acaba por envolver disputas pelos seus limites.
Nesse sentido, a CF/88 trouxe à tona a importância de se discutir o tema das
Comunidades Quilombolas. O ressurgimento da relevância do tema trouxe algumas confusões
entre o que era o quilombo escravo e as comunidades quilombolas atuais, levando a esclarecer
o que era “comunidade remanescente de quilombo”, e a Associação Brasileira de
Antropologia (ABA)elaborou um parecer em 1994. O referido parecer esclarecia que
o termo não se refere a resíduos ou resquícios arqueológicos de ocupação temporal
ou de comprovação biológica e tampouco não se trata de grupos isolados ou de uma
população estritamente homogênea. Da mesma forma nem sempre foram
constituídos a partir de movimentos insurrecionais ou rebelados, mas, sobretudo,
consistem em grupos que desenvolveram práticas de resistência na manutenção e
34
reprodução de seus modos de vida característicos num determinado lugar (SILVA,
2007).
Por sua vez, as diretrizes suscitadas no parecer da ABA foram contempladas no
Decreto 4.887/2003, que estabelece critérios para a titulação das terras quilombolas.Dessa
forma, lemos no site da Fundação Cultural Palmares que o que define uma Comunidade
Quilombola é sua autoclassificação:
O Decreto 4.887, de 20 de novembro de 2003, em seu artigo 2º, considera os
remanescentes das comunidades dos quilombos, os grupos étnico-raciais, segundo
critérios de auto atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações
territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra, relacionada com a
resistência à opressão histórica sofrida.
Porém, outra característica que não foge aos Quilombos do Brasil é que as terras
ocupadas pelas Comunidades Quilombolas são permeadas por questões culturais e históricas,
o que as diferencia dos movimentos pela reforma agrária, onde a relação com a terra é,
sobretudo,econômica. As Comunidades Quilombolas atuais são detentoras de uma genuína
cultura afro-brasileira, marcada pela resistência, vivência comunitária e manutenção das
tradições (GOMES, 1995).
35
2 ESTIGMAS E A AFRONTA À ALTERIDADE
2.1 Do Racismo e preconceito
A Constituição de 1988 foi pensada como um mero ideal principiológico regulador da
sociedade em geral, apartada de exclusivismos.Segundo D‟Adesky(2009), ela pressupõe a
unidade da espécie humana e também a exigência de uma comunicação universal,que
expressa em direito não exclui as diferenças culturais. Ao contrário, as incorpora ao propor
defendê-las. O século XX traz um farto cenário de tramas para a erradicação totalitária de
grupos étnicos e culturais particulares, em nome de um modelo homogêneo. Contudo, a
Constituição brasileira parece ir contra a corrente. Mesmo optando por uma posição de
aceitação implícita,de proteção explícita das culturas, ela não deixa de resguardar o sentido
das reivindicações étnicas, notadamente o princípio de um antirracismo diferencialista como o
que é defendido pelo Movimento Negro.
A partir dessa observação de D‟Adesky, necessário se faz, para o início do tema,
delimitar, já que a Constituição principia essa comunicação universal, tratando do conceito de
raça e racismo e suas derivações, como o preconceito, a discriminação e os estereótipos
raciais atribuídos às populações negras. Necessárias se fazem essas definições para que haja a
compreensão sobre a questão do racismo e sua constituição histórica na formação da
identidade da população afrodescendente brasileira.
Delinear os conceitos de raça e racismo no Brasil nos remete a uma imensa gama de
concepções relacionadas a perspectivas teóricas e ideológicas diferentes. Daí, necessário se
faz explicitar os pressupostos teóricos que norteiam esta reflexão, que tem como objetivo
demonstrar ou não a existência de raças (GUIMARÃES, 1995).
A definição de “raça” torna-se muito controvertida ao se debater como sinônimo da
definição de etnia, o que aqui se considera diverso. Frota-Pessoa (1996, p. 29-30) alerta para a
inviabilidade da substituição do termo raça por etnia, ou grupo étnico, “pois estes termos
indicam as semelhanças culturais dentro de uma população, ou o conjunto de suas
características culturais e genéticas”. Em sua definição, o conceito de raça é compreendido
por populações que diferem significativamente na frequência de seus traços genéticos. Para
este autor,
A diversidade genética existente entre pessoas de uma mesma raça deixa claro que é
um termo coletivo. O nome „raça‟ designa uma população e não um dos indivíduos
36
que integra tal população... raça é sempre uma população heterogênea, definida por
suas frequências gênicas, que diferem das de outra população (FROTA-PESSOA,
1996, p. 31).
Ao considerar raça como um tipo referenciado a partir de características fenotípicas
das pessoas, o conceito de raça, nessa análise mais geral, trata de determinados traços, ou
marcas físicas, percebidos como características predominantes, partilhados por membros de
um mesmo grupo.
Porém, mesmo com essa definição, a ideia que se tem é de cunho biológico e
evolucionista, que pode induzir ao caráter hierarquizante de raça, em que,sob o ponto de vista
genético, a ideia de raça é de qualquer valor e conteúdo científico. Entretanto, a análise de
Pierre André Taguieff, citado por Jacques D‟Adesky (2001, p. 45-46), abre um janela por
onde se pode observar a importância da manutenção desse conceito de raça, pois é esta a
classificação usual identificada pela população. Continuando, para Taguieff, o homem comum
tem formas próprias de percepção e classificação social. Ele não percebe seus vizinhos com os
olhos do espírito científico dos geneticistas, ele classifica e tipifica os indivíduos de acordo
com suas características perceptíveis e, mais particularmente, visíveis fenotipicamente.
Para compor os pilares que fundamentam o estudo do racismo em nossa sociedade, o
conceito de raça assume outra roupagem que não a genética ou evolucionista, mas, numa
perspectiva política e sociológica. A conceituação de raça introduz a prática social e política
dos sujeitos negros, enfatizando o caráter ideológico da discriminação racial. Por isso, quando
se discute a integração do negro na sociedade brasileira, o conceito de raça e o uso deste é o
mais cabível de forma que consegue dar ênfase ao racismo que nele acontece. Para Gomes
(1995, p. 49), cientistas sociais
usam-no com uma nova interpretação, que se baseia na dimensão social e política do
referido termo. E, ainda, usam-no porque a discriminação racial e o racismo na
sociedade brasileira se dão, não apenas devido aos aspectos culturais dos
representantes de diversas etnias, mas também devido à relação que se faz entre
estes aspectos e os atributos socialmente observáveis dos pertencentes às mesmas.
Como, por exemplo, podemos citar comentários como: „umbanda é suja porque é
coisa de negro‟; „cabelo do negro é ruim e do branco é bom‟, entre outros.
Por sua vez, após discorrer sobre a questão da conceituação de raça, que mais se
adequasse à proposta deste trabalho, aparece a categoria “etnia” num ponto de vista diverso da
categoria “raça”.
Para Gomes (1995, p. 49),
37
etnia, então, seria um conceito mais amplo que o de raça, na medida em que ele
consegue tratar a dimensão cultural e histórica dos povos estudados. No caso da
cultura negra, ela nos permite estudar a diversidade e o resgate da ancestralidade, já
que nos remete à ascendência africana do negro brasileiro e suas dimensões culturais
presentes nos seus descendentes, que constituem nosso povo.
A etnia ainda é um aspecto das relações de grupos sociais que se consideram
culturalmente distintos entre si, porém que mantêm um mínimo de interação social
(GUIMARÃES, 1995).
Aqui a explicação de que raça e etnia não são consideradas como sinônimas é
reforçada por Ferreira (2000, p. 50): “Membros de grupos raciais diferentes podem pertencer
a um mesmo grupo étnico e membros de grupos étnicos distintos podem pertencer a um
mesmo grupo racial”. Ferreira acrescenta dando como
exemplo disso a própria população africana trazida para o Brasil em condição de
escrava. Pertenciam a uma mesma raça, com características fenotípicas semelhantes
– a negra – no entanto, podemos classificá-los em três grandes grupos étnicos
culturais distintos: os sudaneses, os islâmicos e congo-angolês.
No mesmo sentido, a própria população européia também tinha características
fenotípicas semelhantes e variadas distinções étnicas.
Feitas essas explanações passa-se então a analisar o cerne deste capítulo, ou seja, o
conceito de “racismo” e sua disposição através da história da ideologia racial brasileira,
adaptada das teorias racistas da Europa, do século XIX, que se baseava fundamentalmente na
ideia da superioridade racial branca. Essa ideia fomenta a ideologia da existência de raças
superiores e inferiores e ainda da hierarquização entre grupos humanos. Sobre isso aduz Silva
(2007, p. 77): “O racismo acentua atributos positivos do grupo que se acha superior e
atributos negativos do que é inferiorizado, retira a humanidade do grupo racial em posição de
inferioridade, transforma as diferenças em desigualdades”.
Com grande propriedade Cunha Jr. (1992, p. 149) define o racismo como “uma prática
que reproduz na consciência social falsos valores e duvidosas verdades, o que torna os
resultados da própria ação a comprovação dessas verdades falseadas”.
Pode-se aduzir o conjunto reiterado de discriminações e ideologias justificadas com os
considerados “diferentes”, ou diferentes por si sós, a que alude o racismo. Com isso reflete-se
que o racismo no Brasil, de fato, remonta a todo um arcabouço histórico que representa a
supressão de uma categoria, no trabalho em comento, da população negra, de maneira estrita
representada pelos Quilombolas, denominada como subordinada e inferior.
38
Despontando o conceito de racismo, resta a conceituação do termo preconceito, o qual
atrelado intimamente aos ideais racistas, não passa de julgamento preconcebido, sem
ponderação, sobre uma pessoa ou grupo, baseado na intolerância, ódio irracional ou aversão
(CAVALLEIRO, 2000).
Segundo Munanga (1998), o preconceito racial no Brasil tem sua racionalidade
embutida na ideologia e supremacia racial e no próprio processo de aquisição da teoria de raça
do senso comum.
Embora se registre a existência de muitos ideais igualitários, a sociedade moderna não
se olvida de, mesmo que implicitamente, caracterizar o branco como o homem cordial, que
seria aquele que receberia todos de braços abertos cultuando a indiferenciação de raças. É
outro modo de se negar a existência da diversidade de outras raças.
Transcorridos mais de 100 anos da “Abolição da Escravatura” e da instauração da
República, muitos negros (representados pelo estigma de “minoria”) não são considerados
cidadãos completos. A Abolição da Escravidão no Brasil não se preocupou com a instalação
de política de inserção social dos negros, criou na verdade nos afrodescendentes a necessidade
de se organizarem em grupos diversos, marginalizados, existentes, porém, invisíveis dentro da
ordem social. É dessa forma, pautados pela solidariedade grupal, que surge a afirmação de
uma identidade coletiva, que assume o caráter primordial à formação da identificação de cada
indivíduo do grupo (D‟ADESKY, 2009, p. 49).
O autor aponta que para considerarmos as diferenças e diversidades é necessário um
conceito fundamental de raça, e não havendo esse conceito, apenas a ideia de um ser
indeterminado, fechado, exclusivo e extremamente ambíguo, também não haveria qualquer
justificava para os ideais separatistas e racistas, pois se assim for, a questão do pluralismo
étnico tende a tornar-se de somenos importância dentro de um Estado Democrático de
Direito,onde na verdade o que há é uma sociedade multifacetada.
O pluralismo étnico, segundo D‟Adesky (2009), constitui-se de conceitos de
identidade étnica, raça e nação, e essa é a justificativa para a preservação multicultural dos
povos. Os negros, como pessoas indispensáveis à formação do que hoje se apresenta como
nação brasileira em seu sentido social, jurídico e político, de nenhuma forma podem viver
isolados e tampouco como cidadãos indignos que não podem ser alcançados pelo direito de
ser diferente e ter essa diversidade respeitada, iguais em todos os seus direitos constitucionais.
O século XX mostra um cenário regado de histórias que demonstram a luta do negro
contra o preconceito racial, pelo reconhecimento de sua diversidade, pelo respeito enquanto
cidadão brasileiro. Diferentes não poderiam ser os Povos Quilombolas, os quais, como
39
afrodescendentes, remanescentes de quilombos, escravos e cidadãos constituintes do Estado
Democrático, travam uma grande luta contra o preconceito, e, principalmente, idealizam o
direito à diversidade, o direito à diferença individual.
Atualmente, cento e setenta e oito comunidades estão formalmente referidas como
remanescentes das comunidades dos quilombos no Sistema de Informações das
Comunidades afro-brasileiras (SICAB) na página da Fundação Cultural Palmares,
setenta delas já tituladas segundo levantamento do Centro de Geografia e
Cartografia Aplicada (Ciga) da UNB. [...] Se não são necessariamente descendentes
de antigos acampamentos de escravos fugidos, escondidos nas matas desde o tempo
do Brasil monárquico, de onde afinal surgiram os novos quilombos? Como os mais
críticos tendem a ressaltar, eles têm claramente uma origem recente nas demandas
por garantia de direitos à posse coletiva de terras, apresentadas por colonos e
posseiros negros tradicionais, a partir do apoio de novos aliados, nos quais a Pastoral
da Terra da Igreja Católica, os movimentos negros, a Associação Brasileira de
Antropologia e alguns outros atores da sociedade civil brasileira pós-
redemocratização ocuparam papel especial. Por outro lado, há claramente também
uma origem remota, fortemente ancorada na formação de um campesinato formado
por escravos libertos e seus descendentes no contexto da desagregação da escravidão
e de sua abolição no Brasil, que permite tais grupos reivindicarem-se como
comunidades tradicionais e reivindicarem-se como quilombolas(MATOS, 2005 e
2006, p. 104-111).
Assim, esta característica de ainda formação de Quilombos em plena era moderna se
deve ao fato de o Brasil ter sido o último país a abolir a escravidão, e mesmo sendo apenas
um fato histórico e longínquo, acabou deixando profundas marcas na sociedade brasileira. A
luta contra o racismo existe, e está mais que presente na atualidade, seja qual for sua forma de
acontecer.
2.2 Reconhecer a diversidade
O fato de mundializar os espaços geográficos do mundo globalizado através da ideia
de uma sociedade homogênea não obsta a realidade de que várias comunidades, assim como
os Quilombolas, lutam para manterem seus costumes e tradições e o respeito à sua identidade
e diversidade.
Ao estarem em território brasileiro os colonizadores europeus, a população indígena e
os escravos africanos foram os primeiros responsáveis pela disseminação cultural no Brasil.
Em seguida, os outros imigrantes contribuíram também para essa diversidade cultural que
necessita de respeito e reconhecimento, sem, contudo,querer homogeneizá-los por qualquer
critério de universalismo.
Esta forma de uniformização sob a ótica de uma globalização cultural apresenta-se, a
priori, como característica do Estado moderno, que, por sua vez, tende a uniformizar-se a fim
40
de estabelecer o que o próprio Estado julga ser sua principal característica, que é a existência
de um poder que centralize e adote um padrão. Com isto surge o fenômeno da rejeição à
diversidade não posta nesse processo de globalização cultural. .
O projeto universalista encontra-se em crise devido à necessidade de apresentação de
novos atores sociais e novos modelos políticos, jurídicos, que possam coadunar com essa
nova realidade moderna, que, segundo Sergio Paulo Rouanet(2001, p. 9), não passa de uma
crise civilizatória.
O projeto civilizatório da modernidade tem como ingredientes principais os
conceitos de universalidade,individualidade e autonomia. A universalidade significa
que ele visa todos os seres humanos independente de barreiras nacionais, étnicas ou
culturais. A individualidade significa que esses seres humanos são considerados
como pessoas concretas e não como integrantes de uma coletividade e que se atribui
valor ético positivo à sua crescente individualização. A autonomia significa que
esses seres humanos individualizados são aptos a pensarem por si mesmos, sem a
tutela da religião ou da ideologia, a agirem no espaço público e a adquirirem pelo
seu trabalho os bens e serviços necessários à sobrevivência material.
A questão se transforma na necessidade de superar os modelos da modernidade que se
apresenta com bases racionalistas e universalistas, incapaz de reconhecer a diversidade. Não
está havendo uma coesão entre o que se espera do real e o que realmente é, e assim
compomos uma fórmula desestabilizadora da realidade moderna. Aparece aqui uma
verdadeira construção irreal, onde pessoas constroem suas “realidades”. O que baliza esse
sistema não hábil é sua ideologia, pois mesmo em distorção com os fatos reais que o
compõem, este ainda pode dizer estar latente na sua existência simplesmente como ideia. Está
demonstrada uma das causas cabais da violência nos dias de hoje: a negação do outro, ou seja,
a abstração em reconhecer o outro como pessoa. Negar o outro, e o direito deste outro
diferente a exercer sua diversidade cultural, mostra por sua vez “uma resposta coerente ao
impasse multicultural que necessita ser profundamente reformulado” (SEMPRINI, 1999, p.
160-161).
Imperando o reconhecimento do poder do Estado, segundo seus ideais,unificado e
centralizado, este se torna responsável por manter a uniformização de valores e padrões
comportamentais, o que faz surgir o binômio “nós x eles”, solidificado através de instituições
encarregadas de construir uma identidade nacional, que faz, cria e ampara o projeto narcisista
dessa identidade, que é fator preponderante na qualificação da modernidade. A Europa
instituída de uma história linear foi a peça propulsora para se engendrar a ideia de uma
hegemonia ideológica ocidental. Justifica-se, ainda, essa ideia apresentando o conceito de que
as culturas se encontram em estágios diversos de evolução, o que dá legitimidade às culturas
41
consideradas mais desenvolvidas para intervirem nas culturas consideradas menos
desenvolvidas. Padronizar, uniformizar e homogeneizar são verbalizações próprias da
centralização do poder do Estado Moderno (MAGALHÃES, 2012).
2.3 O ideal de hegemônico
O fenômeno da homogeneização exige que compreendamos o enorme poder que a
uniformização do mundo exerce a fim de suprimir outras filosofias, outras ciências e outras
formas de viver e sentir o mundo. Só compreendendo a autopoiese dos seres em que os têm
seus próprios referenciais e se autorreproduzem,tudo que se encontra do lado externo do
mundo na verdade sempre esteve dentro de nós mesmos, o que quer dizer que isso serve de
instrumento para que possamos interpretar e traduzir a realidade onde as coisas acontecem. A
tradução do mundo não poderá ser feita tão somente com as bases históricas e conservadoras
da modernidade. Deve ir além. Além de uma única verdade que possa inviabilizar o uso de
expressões como dogmas, fundamentalismos e intolerâncias(MAGALHÃES, 2012).
Mesmo assim, a ideia hegemônica europeia não deixa de existir, amparada por uma
ideologia que defende a despolitização do mundo, afim de que o poder hegemônico (de negar
o diverso, o outro) mantenha-se sempre na hegemonia. Assim,explica Slavoj Zizek citado em
Magalhães (2012), que a política é expressão dos Direitos Humanos, uma vez que sendo
preceitos históricos são também políticos, e só a política pode garantir um diálogo entre os
espaços de convivência social, sem preocupar-se com hegemonias. Porém, se ratarmos os
Direitos humanos como meramente naturais quem poderá sacralizá-los? Continua Slavoj,
afirmando que essa é uma das justificativas que a própria figura hegemônica constrói na
modernidade, para justificar sua hegemonia e a supremacia de uma cultura sobre as demais.
A figura da cultura hegemônica cega os olhos para a convivência com o diferente.
Deixamos de perceber e compreender a diversidade, devido a essa modernidade, que se
autojustifica, que nega a diversidade e não apresenta um sistema em que possamos inter-
relacionar o moderno com o diverso.
A modernidade tenta incorporar em sua essência a característica peculiar da diferença
como sendo esta um mero direito. Nas palavras de Boaventura de Souza Santos (2002)
atribui-se à modernidade um pensamento de caráter divisor, uma linha limítrofe, um abismo,
na verdade, que classifica os homens em humanos e subumanos. Dessa maneira, essa mesma
modernidade busca não comprometer os princípios humanos por práticas desumanas, mesmo
havendo esta diferenciação.
42
Essa diferenciação não intersecta as duas espécies, de maneira que uma não atinge a
outra. Boaventura explica que havendo a negação do outro lado da linha os princípios
constitutivos se tornam nada mais que práticas hegemônicas, onde poderemos encontrar certa
civilidade jurídica e política, praticada somente de um lado da linha; e como não é praticada
do outro lado, não poderá existir. Não existindo, não pode ser considerada transgressão a
princípios humanos, haja vista não tratar de humanos. Santos (2002) aduz que a justificativa
fundamentada da negação está amparada no fato de que nesse conceito de modernidade tudo é
possível, tudo se torna possível pormenorizando o seu grau lesivo.
E ao considerarmos os processos e estratégias de encobrimento de dominações que a
modernidade nos propõe, isso nos ajuda a compreender o processo de ascensão européia e seu
monopólio filosófico e epistemológico de rebaixamento e encobrimento da diversidade e do
considerado diferente.
O direito à diferença como tal se resume no simples aparato de que aquele que foge
aos padrões pré-instituídos, ou até mesmo já estabelecidos, apenas é aceito e tolerado. Sob
essa ótica, tentamos estabelecer qual o paradigma a ser considerado, a fim de que possamos
identificar o diferente. Diante da importância do termo paradigma, necessário se faz explicá-
lo.Segundo Thomas Khun (2003, p. 13),“esses são realizações científicas universalmente
reconhecidas que durante algum tempo fornecem problemas e soluções modelares para uma
comunidade de praticante de uma ciência”. Continua Khun (2003, p. 13):”Não sendo os
paradigmas existentes capazes de resolver os novos problemas, necessário se faz uma
reformulação paradigmática e renovar os instrumentos”.
Ao observar as elementares do Estado moderno e sua explicação,de acordo com
Magalhães(2012), a modernidade começa a ser fortemente questionada pela própria realidade
social que a ampara, e que apresenta um cenário dicotômico de relações reais, diárias, dos
conflitos, dos movimentos sociais, de pessoas que finalmente começam a enxergar aquilo que
esteve invisível até então. Assim sendo, os paradigmas que se tornaram inválidos devido a
emergências de novas teorias, devem ser reformulados, e ao tempo em que os antigos
paradigmas são negados, aparece simultaneamente a aceitação do outro (KHUN, 2003).
Negar a diferença tornou-se o ingrediente principal para o fenômeno da violência na
modernidade. O não reconhecimento do outro, como se este estivesse além da linha limítrofe,
e a ideologia de uniformização começam a ser questionados com força no decorrer do século
XX. Já na segunda metade do século XX os então chamados direitos de diversidade começam
a ser reconhecidos. É bem verdade que esse reconhecimento se apresenta singular, pois
apenas é identificado no plano individual. Com o advento do século XXI e suas cabais
43
transformações sociais, culturais, políticas e econômicas, o reconhecimento dos direitos à
diversidade passa a se firmar também no plano coletivo (MAGALHÃES, 2012).
A transição de paradigmas ocorre na reconstrução de conceitos e princípios que
indicarão novos métodos e objetivos a serem usados. Todas essas mudanças de conceitos e
valores podem representar a superação do que até agora era considerado moderno, e que
trouxe como principal consequência esse caráter de violência, principalmente a violência
caracterizada como preconceitos.
É um processo longo, que caminha em passos lentos. Muito tempo ainda será
necessário. E é sobre as ruínas do passado que uma sociedade justa, igual na imensa
diversidade de cada singularidade coletiva que se constitui um ser humano, solidária, diversa,
plural, não violenta, consensual e não hegemônica que deverá ser construída.
Atravessar os quinhentos anos de modernidade não se apresenta como tarefa fácil, ao
contrário. Pode ser, diante do risco de rupturas e quebras de paradigmas, que o diverso passe a
ser aceito apenas como o diferente ou que se enquadre o diferente que pode ser igualado, e
que continuará tão somente a ser tolerado. Essa concepção é totalmente distinta da verdadeira
essência da diversidade enquanto processo individual e coletivo. O diferente aceito é
simplesmente engendrado como um diferente tolerado ao lado de um padrão de normalidade
pré-estabelecido. Com isso, o direito à igualdade em geral servirá apenas para os igualados
(MAGALHÃES, 2012).
A proposta é totalmente diversa: “O direito à diversidade, que pode surgir a partir do
reconhecimento do direito de ser diferente, não é uma conquista moderna, mas sim, a própria
superação da modernidade” (MAGALHÃES, 2012).
Passamos a perceber que não é o reconhecimento do direito à diferença como tentativa
de conviver com o diferente, mantendo o padrão, e, portanto, mantendo a uniformização
necessária para manter o Estado Moderno e sua criação, o capitalismo moderno, que
esperamos com essa consciência da complexidade do planeta. A ideia é o reconhecimento da
diversidade individual e coletiva como superação da modernidade, do próprio Estado
moderno e suas peculiaridades, e do capitalismo.
O modo como ocorrerão esses processos de transformação social pode ser
diversificado: talvez com o aprofundamento das contradições que levaram ao reconhecimento
do direito dos considerados diferentes como direito individual tomado na devida cautela para
que essa conquista não seja absorvida pelos artefatos modernos, ou até mesmo com a
conquista dos direitos à diversidade enquanto direitos coletivos.
Para Boaventura(2002, p. 51),
44
isso é considerado a diversidade epistemológica, que supera essa modernidade, e
que deve ser pensada como fundamento de um direito internacional, mas não
somente com caracteres europeus, mas sim plural que possa ir além da visão
moderna uniformizadora que encobre diversidades de povos e culturas reveladoras
de um mundo amplificado e mais extenso.
Para que a sociedade possa responder a essas novas metas, o direito internacional
aparece como precursor de um ideal que não pode mais se fundamentar em uma matriz
jurídica essencialmente européia. Tem que se tornar consensual e plural, para que sua
concretização não seja interpelada por maiorias ou minorias hegemônicas. O novo modelo
ainda deve conceber a ideia de liberdade atrelada pura e simplesmente a um elevado grau de
solidariedade e de igualdade social, direcionados pelo combate às desigualdades, para o
desenvolvimento econômico e o respeito aos novos valores emergentes, que já apontavam
também para uma nova dimensão de direitos difusos.
A visão de mundialização e/ou globalização passa também por transformações a partir
da ideia de observação atual dos arredores do mundo: vemos que a progressiva
interdependência das relações está configurando, de fato, a formação de um novo âmbito de
interesse geral, que se situa em fronteiras transnacionais e que começam a se concretizar de
maneira muito intensa na defesa dos direitos humanos. Assim, a aceitação dos direitos
humanos torna-se viável com auxílio dos instrumentos estatais modernos da democracia.
Os primeiros sinais de mudanças sugerem uma nova compreensão do direito, que
possa efetivamente fornecer respostas ao novo aparato de situações geradas pelos novos
cenários transnacionais. Primeiramente, a superação de construções teóricas da modernidade,
e a assimilação, a priori, do período que virá e conviverá com o atual.
De toda essa discussão nasce outra ramificação qual seja a possibilidade da efetiva
proteção do direito que passa não só a ser de interesse jurídico, mas também tem a ver com a
diversidade cultural no âmbito internacional, já que a proposta de ruptura com o modelo
moderno propõe providências e visões universalistas e multiculturalistas dos Direitos
Humanos.
Ao contrário do universalismo posto por Khun, o que se deseja na realidade é destacar
sob a ideia de universalizar a não transformação das práticas sociais e culturais em ideias
homogêneas, pois se assim fosse estaríamos caindo no mesmo contexto que tentamos superar.
Não é isso. Referimo-nos à realidade de viabilizar, através do diálogo intercultural, o respeito
a princípios comuns por todos os povos, a suas tradições e crenças, sem olhá-los como
diferentes e tampouco tentarmos torná-los iguais ou compatíveis.
45
2.4 O processo de universalização no Brasil
No Brasil, o processo de universalização teve início com a chegada dos colonizadores
europeus, que gerou vários conflitos de ordem biológica, ecológica, econômica e social e
étnico-cultural,sendo esta última caracterizada pela imposição aos colonizados de uma etnia
nova,que foi se unificando na língua, na cultura e nos costumes (RIBEIRO, 1996, p.30).
Mesmo com políticas públicas e leis que tinham a intenção de integrar os povos como
cidadãos sujeitos de direitos em todos os seus aspectos, o estado de guerra apresentado pelos
europeus continuou, haja vista o não reconhecimento de seus direitos coletivos, bem como ao
reclamá-los perdiam não só a visibilidade, com também a vida (SOUZA FILHO, 2003, p. 78).
O reconhecimento das diferenças de grupos sociais no Brasil desde sua formação só
vem reforçar a ideia de universalização, que num primeiro momento, segundo Darcy Ribeiro
(1996), pode identificar uma identidade coletiva nacional, porém,não aquela identidade pela
qual lutam as comunidades brasileiras, como os Quilombolas. Continua Ribeiro dizendo que,
ao contrário, há na verdade por parte dessas comunidades o reconhecimento a partir de uma
identidade própria, que é coletiva no reconhecimento de direitos da sua cultura diferenciada, e
não somente quando essa coletividade estiver integrada ou assimilada a um conceito de
universalização de outras culturas. “A identidade de um povo ou de uma cultura aponta para
um conjunto de costumes, comportamento, valores, obras e para elementos socioculturais,
como a língua e a religião. A identidade é constituída sob a diferença” (PAVIANI, 2004).
Quando esse conceito adquire a forma de ideais homogeneizadores, acontece o
fenômeno que D‟Adesky (2009, p. 38) conceituou como nacionalismo xenófobo e extremista
com consequências negativas.
Sob essa perspectiva, em havendo a tensão entre a nacionalidade e a etnicidade como
pressupostos da identidade nacional, é necessário perceber que as nações modernas, segundo
D‟Adesky (2009), se distanciam da nacionalidade, porque a importância real é dada apenas à
ideia de etnia e raça. O autor aponta um equívoco, pois “não se é cidadão de uma etnia, mas
cidadão de uma nação” (D‟ADESKY, 2009, p. 61).
Nestes novos tempos, sob a ótica da sociedade brasileira que hoje se apresenta,ao
implantarmos a ideia de sociedade multicultural encontramos um cenário de contraste com as
políticas de identidade, uma vez que o multiculturalismo se baseia na comunicação entre as
culturas, sendo necessário para a afirmação da democracia o reconhecimento do pluralismo de
interesses, seguidos das múltiplas opiniões e dos valores. Também devemos observar o fato
de que mesmo que identifiquemos uma população que seja parcialmente definida por uma
46
cultura, é necessário cautela para que o poder político, que age a seu favor e de seus
interesses, não passe a exercer autoridade sobre ela, pois daí aparece o fenômeno do domínio
da comunidade e não somente o domínio da cultura, onde a busca pela identidade pode ser de
tal forma autoritária e política, que passa a intervir nas garantias dos direitos humanos.
A busca pela afirmação da identidade e a busca pelos direitos coletivos e seu devido
reconhecimento constitucional vêm representadas por várias lutas em favor da garantia da
diversidade cultural. Para Touraine (1997), “uma democracia deve ser activa para resistir aos
constantes movimentos de inferiorização do diferente”.A proposta se estende ao campo da
possível convivência geral.
47
3 DIVERSIDADE CULTURAL: IDENTIDADE E DIFERENÇA
Considerar a diversidade dos povos e culturas existente, cada qual com seu passado
histórico, social, filosófico e cultural, como um organismo dentro de um sistema, faz nascer a
necessidade da construção de um Estado plural. Porém, não se pode desconsiderar que o
maior algoz é o próprio Estado que tenta eliminar ou subestimar diferenças. A realidade social
do mundo hoje, dentro desse processo dinâmico de globalização que vem apresentando
modelos substanciais e de grandes mudanças em todos os aspectos que envolvem os seres
humanos, não torna estranho o fato de se estar reformulando e aperfeiçoando uma gama de
conceitos, valores e princípios sobre situações, que anteriormente jamais foram suscitadas ou
consideradas de maior importância.
Para este estudo, dentre tantos conceitos que devem ser revistos, devido à sua
necessidade de explanação, destacam-se a diferença e a identidade, conceitos que vêm sendo
exaustivamente debatidos na teoria social,através de abordagens diversas e divergentes,
tornando a discussão em torno desses temas, um campo fértil e de fácil proliferação para a
formulação de análises e reflexões que,embora discordantes entre si, muito têm contribuído
para o aprofundamento dessas questões. Esses temas têm pertinência relevante,pois se trata de
elementares que devem compor a temática da situação dos Povos Quilombolas,considerados
diferentes, porém atores de direito e que devem ser respeitados por sua diversidade cultural, o
aparato para o qual se destinam os ideais democráticos.
O conceito de cultura, apesar de admitir vários significados, para Paviani (2004) ela
“não pode ser entendida com algo individual, mas sim uma obra coletiva, e de comunicação
com os outros.” Com isso, podemos aludir que essa diversidade cultural se torna um direito
integrante dos direitos humanos, que devem, por sua vez, garantir que a diferença que gera a
diversidade cultural seja tutelada e habilmente aplicada segundo deliberações constitucionais
e leis, que protejam o estranhamento a essa diversidade.
Para adentrar no binômio “diversidade e diferença” é necessário, explicá-lo
primeiramente. Touraine (1999, p. 29) define ser
a tarefa de a democracia contemporânea assegurar ao indivíduo a fruição de sua
dupla dimensão social (de igual, perante a lei, e de diverso, ante o social). Essa
valorização do ator social só é possível pela superação dos modelos clássicos de
democracia, divididos nas vertentes revolucionárias e liberais, que, apesar das
divergências, expressam o ideal da „política das luzes‟para a qual o progresso social
só é possível pela eliminação dos atores conscientes e organizados.
48
O processo para a constituição de um modelo de sociedade é formado por vários
elementos, dentre eles a identidade, que se apresenta como fundamental para a convivência na
diversidade. A substância dessa identidade é construída através de elementos adquiridos ao
longo da história cultural e está diretamente relacionada a referenciais coletivos de adesão a
um grupo, e à forma como o processo cultural deste grupo é reconhecido. Para Gomes (1995),
a identidade só pode ser usada como um recurso para reconhecimento ou identificação de um
nós coletivo. Esse nós se refere a uma igualdade num sistema de categorias. Trata-se na
verdade da reafirmação cultural de uma categoria baseada em suas semelhanças.
Os Quilombolas, segundo Gomes (1995),ao conceituar identidade têm em sua origem
africana os seus valores culturais e humanos, e, dentro de uma sociedade que nega a
diferença, passam a ser vistos com qualidades negativas. E é esse olhar precipitado e
preconceituoso que atua na identidade da pessoa negra,sua condição de ex-escravizado,
remetida ao seu passado, e aos estigmas de inferioridade e desqualificação, fundados nos
preconceitos atribuídos a suas características físicas, referenciadas na cor da pele.
Mas não é com essa afirmação negativa e extremista do termo identidade que a
garantia de ser diverso poderá ser respeitada nos âmbitos sociais e políticos.O conceito revela
que a concepção de identidade a ser defendida é aquela que desperta o desejo de que grupos
étnicos, como os Quilombolas, continuem a viver e a manter sua cultura,não como protesto, a
não se renderem ao processo de assimilação, mas com o intuito de serem identificados como
peça importante e necessária ao cenário social mundializado; e mais, para promover a
diversidade cultural das nações. Atribuindo a importância do reconhecimento da identidade,
Touraine (1997, p. 286) diz que o conceito de diferença confere à democracia um papel
fundamental, qual seja o do reconhecimento da igualdade entre os indivíduos.
A percepção da complexidade das organizações sociais e da realidade que se dá diante
da diversidade cultural existente traz à tona o questionamento de Touraine (1997), o qual
crítica a sociedade contemporânea para introduzir sua discussão sobre a democracia, cuja base
é a luta por direitos situando os movimentos sociais culturais, cuja fonte são os sujeitos, como
componentes indissociáveis do processo democrático, principal aparato para a criação do
mundo por uma diversidade de sujeitos, com capacidade de organização e de negociação de
interesses e de valores divergentes, e de reconhecer o outro como portador dos mesmos
direitos e prerrogativas.
Nesse diapasão do conceito de diversidade, deve-se observar a reflexão sobre o
reconhecimento do outro como portador de direitos, também indissociáveis a uma sociedade
democrática, fundada na representação plural dos interesses e de garantia.
49
É só pelo reconhecimento e aceitação das diferenças culturais que as divergências que
surgiram ao longo da construção da modernidade poderão ser movidas para o campo do
Direito que por sua função prima deverá habilitar a harmonia entre os indivíduos, nesse
cenário plurinacional. O mundo jurídico precisa estar direcionado para instigar o Direito a
interpretar esse fato em conformidade à realidade social, afastando-se, portanto, da
dogmatização do mundo jurídico ocidental.
Os direitos culturais como dimensões apresentadas aos direitos humanos devem ser
respeitados, pois se revestem como primordiais à formação de uma estrutura social mais
estável para a formação de reconstrução da modernidade. Essa diversidade cultural, como
veio se construindo dentro da história político-social do Ocidente durante longos anos,
facetado por antigos problemas, sugere a existência de políticas culturais que estejam em
consonância com cada realidade institucional e social. Por isso, a importância de se construir
políticas públicas voltadas para a garantia do direito à cultura.
A CF/88 inova quando trata a cultura como direito, nos conteúdos dos artigos que
comprometem o Estado à realização de ações relativas ao patrimônio e à produção cultural, ao
dispor do princípio da colaboração da comunidade – participação – e, depois, na Emenda
Constitucional (EC) que instituiu o Plano Nacional de Cultura (PNC) e nas iniciativas de
emendas apresentadas e ainda não votadas, dos anos 2000. Estas, por sua vez, almejam
diferentes objetivos determinados politicamente, como democratização do acesso,
democratização da cultura ou da política.
Antes de interpretar a CF/88 são necessárias considerações a respeito da cultura como
objeto de política e como parte do direito. Para isto os itens seguintes fazem quatro
movimentos de aproximação ao problema. Mostram que o conceito de cultura não é
meramente descritivo, mas que, além de semanticamente indexado à história, articula-se com
questões políticas e morais, relacionando-se com a questão do pluralismo, com a
democratização do Estado, com a formação de políticas culturais e com princípios de
organização mais amplos das instituições sociais.
Segundo Hannah Arendt, citada no livro de Machado (2010, p. 1.210), “a igualdade
em dignidade e direitos dos seres humanos não pode ser apenas um dado, mas algo que tenha
sido construído da própria convivência coletiva”. Continua dizendo que “a pluralidade
humana só poderá ser manifestada e as diferenças entendidas se a comunidade estiver disposta
a garantir sua ação e seu discurso no espaço público”.
Para haver o reconhecimento da cultura das mais diversificadas comunidades, é
necessário saber lidar com diferenças e respeitar a identidade própria de um grupo humano
50
em um território e num determinado período, integrando as pessoas em um ambiente que diz
respeito tão somente à variedade e convivência de ideias, características ou elementos
diferentes entre si.
Esse fenômeno de multiculturalismo teve origem nos países nos quais a diversidade
cultural é vista como problema na construção da unidade nacional. Segundo Gonçalves e
Silva (2004), as sociedades que criam a tensão multicultural são aquelas monoculturais
baseadas num referencial étnico em que as categorias internas definidoras desse caráter não se
reconhecem como diversas. A história se desenvolve em países que têm dificuldade em lidar
com a diferença e em que haja conflitos marcados por discriminações étnicas, preconceitos de
todos os âmbitos e grupos culturais dominados por um grupo culturalmente dominante.
Nascido nas democracias liberais, o multiculturalismo apresenta-se como um instituto
ético e norteador dos grupos aos quais foi negada a manutenção de sua cultura de origem em
nome de uma cultura dominante. Segundo Silvério (1999) citado na obra de Machado (2010,
p. 138), este assume diante da luta um caráter de “reformulação da própria memória histórica,
da identidade nacional, da representação individual e social e da política da diferença”.
O Brasil onde o multiculturalismo não institucionalizado é diferente dos EUA, nunca
se observou uma adesão efetiva pelas universidades, a não ser pelos próprios segmentos
sociais culturalmente dominados, de ações afirmativas em busca de reconhecimento da
diferença e respeito a elas. Gonçalves e Silva citado em Machado (2010, p. 139) acredita que
o fenômeno de inércia pode ser explicado pelo fato de que grupos étnicos ou discriminados no
Brasil, embora muitas das vezes não sendo minoria no conjunto populacional, se encontram
em desvantagem quanto à representação ou de representantes em favor de suas causas.
Já na Primeira República institui-se a busca por uma identidade coletiva para o Brasil,
voltada para a cultura branca hegemônica. Apenas na década de 1930 é que os negros e sua
cultura foram reconhecidos como elementares na fundação da sociedade brasileira. Freyre
(1977), citado na obra de D‟Adesky (2009, p. 68), colaciona: “A mistura de raças existentes
no Brasil estava longe de ser explosiva. Para ele esse era um processo indispensável para
intermediar a adaptação do homem branco nos trópicos e constituía a prova de que os luso-
brasileiros não tinham preconceitos raciais”.
Continua o mesmo autor aludindo:
Através da ideia do padrão ético-jurídico do regime republicano vigente do Brasil
consoante às relações entre brancos e negros o chamado “mito da democracia racial,
na sociedade brasileira, já na primeira metade do século XX, constrói seus pilares
durante o processo de consolidação da própria ordem social, logo após a escravidão,
51
onde na verdade apenas estaria sacramentando a condição de subordinado daquela
minoria, configurada”.
D‟Adesky (2009, 170) complementa relacionando a “omissão de brancos e do receio
de negros que tentavam esquecer as memórias da senzala para se igualarem aos brancos, sem
ao menos reivindicarem a valorização de sua identidade negra”.
Sob esse parâmetro social as entidades de defesa dos negros começam, já na primeira
metade do século XX, a discutira questão da inclusão destes.Segundo Amaral (2011), elas
fazem surgir o embrião da discussão do multiculturalismo no Brasil. Essas entidades
reclamavam direitos iguais para os negros, e a sociedade brasileira deveria dispensar-lhes
tratamento igual ao que era reservado ao imigrante europeu, ideia que iniciou a
problematização do mito da democracia racial diante de ideais hegemônicos, representadas
pelo ideal de branqueamento que privilegia sempre a cultura branca dominante no Brasil em
detrimento da cultura afro-brasileira. Negar a outra raça também desvalorizava o negro na
dignidade de suas heranças históricas e culturais, derivando dessa ideia a discriminação e
dominação cultural, pois mesmo quando a contribuição cultural dos negros à matriz nacional
brasileira é reconhecida, destaca-se a cultura ocidental como sendo a melhor (D‟ADESKY,
2010, p. 2).
Em 1931, a classe média brasileira, composta por negros, alavanca o ideal de
integração do negro à sociedade brasileira por meio da assimilação à cultura branca
hegemônica, o que acabou em 1937 sem em nada contribuir para a construção de uma
identidade negra diferenciada. Já em 1945 a Convenção Nacional do Negro Brasileiro
exaltava os valores ocidentais e ao adotar o modelo de referência simbólico da sociedade dos
brancos dominante poderia, por sua vez, conceituar uma identidade coletiva para os negros.
(AMARAL, 2011).
Há registros de lutas desde a resistência da negritude africana que foi trazida para o
Brasil pelos navios negreiros para viverem na escravidão e, mesmo nessas condições, a luta
continuou. Desde então, a cada momento, até os dias atuais, novas pessoas vão se
identificando, se unindo e fortalecendo o movimento de resistência, de luta e de orgulho do
pertencimento ao povo negro.
Politicamente, essa dimensão de resistência pode ser verificada ao longo da história do
Brasil, contada por Munanga e Gomes (2006), como na Revolta da Chibata em 1910, na
organização da Frente Negra Brasileira em 1931, no surgimento do Teatro Experimental do
Negro em 1944.
52
Nas décadas de 40 e 50, com o aparecimento das primeiras intervenções efetivas dos
negros, surgem duas correntes engajadas no processo de conscientização dos negros
brasileiros chamadas de teoria da negritude e teoria culturalista (MACHADO, 2010, p. 145).
Continuando, a mesma autora contemplou um discurso proletário sobre a teoria da negritude,
onde seus militantes eram guiados por suas experiências étnicas, e, por outro lado, a teoria
culturalista enfatizava a valoração da cultura negra, sem exploração do trabalho, sem,
contudo, privá-lo do determinismo econômico. Naquele tempo o mito da democracia racial
serviu de óbice para o reconhecimento da ampla existência do racismo entre os brasileiros.
O pano de fundo daquela sociedade era a elite branca que se fazia acreditar em nome
da defesa e da paz social.Com o discurso de se manter a paz e a ordem social evitando tensões
raciais mais rígidas, incompreensivas e autoritárias, propunham aos negros e mulatos que
estes deveriam ser preparados para o exercício da vida civil, de forma que a raça dominante
assumisse uma postura paternalista benéfica para esses negros e mulatos (AMARAL, 2011).
Se os negros e mulatos se mostrassem mais coesos com os padrões brancos, mais inseridos na
sociedade seriam, e mesmo diante da dizimação da ideia de democracia racial, havia ainda a
tentativa de construir teoricamente a identidade brasileira nacional. Para o negro e o mulato
que queriam acreditar serem brancos deparou-se a própria negação da condição de negros
(SOUZA, 2010).
Essa atitude fortemente questionada por Munanga; Gomes (2006, p. 55)expõe os
pontos de maiores tensões, na busca de afirmação da identidade afro-brasileira, que se via
presa em parâmetros que reduziam a identidade do outro a sua cor que,por sua vez, não era
assumida pela maioria, haja vista um ideal de branqueamento; ainda a indiferença a uma
cultura até certo ponto expropriada que nem sempre era assumida pelos próprios negros
mestiços.
No Brasil, durante o regime militar o fator cor sequer existia nas estatísticas nacionais,
pois se tratava de um regime que visava impedir que as desigualdades raciais ganhassem
visibilidade nas estatísticas oficiais. A ideia de um povo mestiço como patrimônio nacional
foi exaustivamente veiculada nos meios de comunicação. Pretendia-se na verdade uma
harmoniosa convivência inter-racial, uma vez que a simples menção à cor da pele das pessoas
era interpretada como um sinal de preconceito.
A busca pelo reconhecimento da dignidade humana, que se confunde, em nível
individual, com a dignidade do cidadão e o reconhecimento da dignidade do grupo, ao final,é
a busca do reconhecimento da igualdade e da diversidade cultural afro-brasileira, diante da
figura europeia institucionalizada ao longo da história, e estreada por movimentos negros
53
constituindo a pedra fundamental das lutas raciais, ou seja, cria um laço identitário individual
que acaba fortalecendo a identidade coletiva (D‟ADESKY, 2009, p. 157).
As várias expressões de valorização, orgulho e presença deste povo, que busca a
autoafirmação, começam a fazer parte do dia a dia das pessoas.
Foi só em 1978 que militantes negros, ao conceberem suas ações pelo reconhecimento
à sua diversidade, criaram o Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial
(MNUCDR), que mais tarde passou a se chamar apenas Movimento Negro Unificado (MNU).
Segundo a historiadora Amaral (2011),esse movimento tinha como ideal contestar a “ideia de
uma democracia racial brasileira”, adotada pelos militares na década de 1970.Talvez tenha
sido esta a principal característica desse movimento, pois contribuiu para a organização da
militância em prol do respeito à diversidade, e para convencer os grupos de esquerda da
importância e especificidade da questão racial na sociedade brasileira.
Sob esse aspecto vale a pena citar D‟Adesky (2009, p. 157):
A busca do reconhecimento da identidade tanto individual quanto coletiva
cita um questionamento dos negros sobre si mesmos e também enquanto
sujeitos de sua história e de sua cultura–portanto, sobre sua
responsabilidade política no presente e no futuro.
O momento do aparecimento do MNU também coincide historicamente com o
movimento de redemocratização do país – para a integração do negro na sociedade brasileira
e o reforço nas lutas referidas às questões raciais. O destaque da luta étnico-racial abrangera,
ainda, a luta contra a forma como os negros foram incursos na nacionalidade brasileira, além
de ressaltar a importância e o valor de sua cultura. Em épocas de reivindicações de todos os
âmbitos contra o regime militar, as exigências das frentes negras foram atendidas mesmo
antes da redemocratização, já em 1982, onde aparece a participação de negros na política por
meio da criação de núcleos e organismos estatais nas áreas de cultura, legislação e ação
executiva (MACHADO, 2010, p. 149).
Os movimentos multiculturalistas no Brasil tiveram semelhança com a gênese dos
movimentos dos EUA, denominados “ações afirmativas”, os quais influenciaram o próprio
Brasil, a partir da década de 1970. As ações afirmativas na verdade eram políticas que
observavam as minorias e os grupos culturalmente dominados que eram mantidos fora da
universidade em razão da discriminação imposta pela maioria branca, já que a introdução de
um negro nesse espaço era inadmissível, e afirmativamente as ações esperavam que a
universidade fosse como uma alavanca para a integração social dos grupos marginalizados. O
54
ponto frágil dessas políticas também chamadas de políticas de “discriminação positiva”
estaria exatamente na possibilidade de contrariar o princípio do tratamento igualitário, com a
precípua e única função de ser a expressão de uma política corretiva, distributiva e
abstratamente igualitária (D‟ADESKY, 2009, p. 206).
A discriminação positiva como ponto fraco dessas ações antirraciais e
multiculturalistas pode gerar tensões no seio da sociedade quando aplicadas
simultaneamente aos princípios da igualdade e da equidade, sob o conceito de serem
antagônicos e não complementares. A compreensão das políticas de afirmação é de que são
universais, portanto,iguais para todos, e se não forem suficientes para solucionar fenômenos
como o racismo, ou outras formas de intolerância, podem e devem conjugar-se com medidas
específicas pensadas e formuladas para corrigir, reduzir ou compensar as desigualdades
particulares. A ação afirmativa conduz a buscar uma dimensão mais exigente da igualdade, e
não, de forma alguma, a renunciá-la (D‟ADESKY, 1999).
As várias conotações dos movimentos multiculturalistas nos anos 80 e 90 foram
defendidas por representantes de minorias culturais com o único escopo de combater a
continuidade do padrão edificado de exclusão e estigmatização de grupos marginalizados.
Esses movimentos evidenciam a busca pela identidade e pelo reconhecimento dos indivíduos
e dos grupos nas sociedades multiculturais. Contudo, as políticas afirmativas, baseadas no
ideal constitucional devem ser neutras diante das diferenças, pois objetivam o bem-estar de
todos por meio de medidas que não levam em consideração as distinções de raça, cor, sexo,
religião.
Podemos perceber isto diante dos acontecimentos vividos entre o final do século
passado e início do século XXI, em que é possível constatar este fato através de
vários instrumentos/aspectos relacionados ou direcionados às pessoas negras. Entre
eles, podemos citar: o aparecimento de revistas, de livros, de teses de doutorado, de
dissertações de mestrados e de grupos de pesquisas; o visual dos cabelos trançados;
a produção de cosméticos para pele negra e, no vestuário, a estampa de camisas com
slogan que valorizam a população negra.
Porém, diferentemente do que revelam essas expressões positivas que levantam a
autoestima do negro e da negra, podemos constatar, e muito efetivamente, que a vida
dessas pessoas continua de menor valor para a sociedade. São constantes as
pesquisas realizadas, publicando reportagens, por exemplo, com o seguinte título:
“Os negros e negras estão menos presentes nas escolas, apresentam médias de anos
de estudo inferiores e taxas de analfabetismo bastante superior”.
A situação da pessoa negra, no tocante a sua valorização, reconhecimento, direito,
inclusão social e educacional, entre outros aspectos, é proclamada e oficializada em
documentos mundiais e nacionais considerados relevantes para o convívio das
pessoas em sociedade.
Destacamos, como um destes documentos de relevância social, a Declaração
Universal dos Direitos Humanos, anunciada pela Organização das Nações Unidas
(ONU) em 1948 e proclamada mundialmente, ao apresentar no Artigo 2º que: “Toda
pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta
55
Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça,cor, sexo, língua,
religião [...] ou qualquer outra condição” (REIS, 2009).
Sobre a cultura negra também considerada diferenciada a Constituição de 1988 trouxe,
em seus Art. 215 e 216, a livre manifestação cultural de povos minoritários culturalmente
como os indígenas e os afrodescendentes valorizando sua cultura como patrimônio cultural
brasileiro.
A questão do multiculturalismo, ou da diversidade cultural dentro de um país
representa o início da construção de identidades de grupos, em sociedades plurais, uma vez
que sejam representados e garantidos de maneira individual e coletiva. Desta feita o norte
tomado pela discussão do multiculturalismo e suas fontes de formação é o de gerar mudanças
na sociedade culturalmente plurais que se apresentam como homogêneas e uniculturais
(MACHADO, 2009, p. 159). Por isso,na apreciação do debate acerca da identidade e seu
reconhecimento no universo multiculturalista, num primeiro momento deve ser observada a
formação da identidade individual e dos grupos a que pertence esse indivíduo.
Feito este comentário, é de bom alvitre fazer uma análise do citado Art. 216 da CF/88.
Patrimônio Cultural engloba uma gama de bens materiais e imateriais que se referem
diretamente à identidade, à memória e à história dos atores que compuseram e que compõem
o cenário nacional, sem exceção. Segundo Souza Filho (2005), a Constituição Federal de
1988 introduziu uma minuciosa diferença quando não vincula o ato de tombamento à
memória cultural brasileira. A preservação e o respeito coexistem pelo fato de ser memória.
Por isso, preocupou-se o enunciador constituinte em aludir tantas vezes a bens “de
valor cultural”, como o faz no art. 23, incisos III e IV, da Constituição de 1988, assim como
pretende “assegurar” o “respeito a valores culturais”, de que fala no art. 210, ou incentivar a
“produção e o conhecimento de bens e valores culturais”, referidos no § 3º do artigo 216.
Importante salientar que quem atribui valor às coisas é o ser humano. Desse modo, construída
a realidade segundo a qual a cultura é um tema associado a formas de existência tão elevadas,
como as acima verificadas, permaneceu no texto da Constituição Federal de 1988 um
imaginário social resultante de compacta formação ideológica, herdeiro de uma tessitura
jurídica e social trançada em preto e branco. As chamadas “formas de expressão” e os “modos
de criar, fazer e viver”, associados à ideia de etnia, estreitam ainda mais os laços entre a noção
de povo e o conceito de cultura. Daí, falar-se em “cultura popular”, “cultura indígena”,
“cultura afro-brasileira” e cultura “de outros grupos participantes do processo civilizatório
nacional” (CASCUDO, 2004, p. 39).
56
Sobre a importância da cultura e seu papel fundamental na formação social, histórica e
econômica de um Estado, enumeramos também como sendo um de seus elementos
formadores a ideia de patrimônio material que nada mais é que a representação da identidade
de um povo, ou seja,a parte intangível de sua memória, e que é representada por leis que
reafirmam essa preocupação em manter a diversidade, respeitar as diferenças e manter a
equidade entre os seres. Por exemplo, o Decreto 3.551/2000 que institui o Registro de Bens
Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro e cria o
Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, onde em seu Artigo 1º, parágrafo 1º, mostra a
importância com a continuidade histórica das diversas culturas no solo nacional.
Art. 1o Fica instituído o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que
constituem patrimônio cultural brasileiro.
§ 1o Esse registro se fará em um dos seguintes livros:
I - Livro de Registro dos Saberes, onde serão inscritos conhecimentos e modos de
fazer enraizados no cotidiano das comunidades;
II - Livro de Registro das Celebrações, onde serão inscritos rituais e festas que
marcam a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de
outras práticas da vida social;
III - Livro de Registro das Formas de Expressão, onde serão inscritas manifestações
literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas;
IV - Livro de Registro dos Lugares, onde serão inscritos mercados, feiras,
santuários, praças e demais espaços onde se concentram e reproduzem práticas
culturais coletivas.
Com o escopo de proteger o patrimônio várias declarações e convenções foram
adotadas, e em âmbito internacional, a Organização das Nações Unidas para a Educação,
Ciência e Cultura (UNESCO).
Em 1972 foi aprovada a Convenção sobre a Proteção do Patrimônio Cultural e
Natural que já em seu artigo 1 define o que é “patrimônio cultural”:
ART 1 - os monumentos: obras arquitetônicas, esculturas ou pinturas monumentais,
objetos ou estruturas arqueológicas, inscrições, grutas e conjuntos de valor universal
excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência,
- os conjuntos: grupos de construções isoladas ou reunidas, que, por sua arquitetura,
unidade ou integração à paisagem, têm valor universal excepcional do ponto de vista
da história, da arte ou da ciência,
- os sítios: obras do homem ou obras conjugadas do homem e da natureza, bem
como áreas, que incluem os sítios arqueológicos, de valor universal excepcional do
ponto de vista histórico, estético, etnológico ou antropológico.
Em 2001 a UNESCO aprovou a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural;
em 2003,a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial; em 2005,a
Proteção e a Promoção da Diversidade de Expressões Culturais, afirmando que “a diversidade
57
cultural é uma característica essencial da humanidade, e que [...] constitui patrimônio comum
da humanidade, a ser valorizado e cultivado em benefício de todos”. E no seu Artigo 4, define
a diversidade cultural:
Diversidade Cultural
"Diversidade cultural” refere-se à multiplicidade de formas pelas quais as culturas
dos grupos e sociedades encontram sua expressão. Tais expressões são transmitidas
entre e dentro dos grupos e sociedades. A diversidade cultural se manifesta não
apenas nas variadas formas pelas quais se expressa, se enriquece e se transmite o
patrimônio cultural da humanidade mediante a variedade das expressões culturais,
mas também através dos diversos modos de criação, produção, difusão, distribuição
e fruição das expressões culturais, quaisquer que sejam os meios e tecnologias
empregados.
Neste trabalho tentou-se demonstrar a importância da valorização da diversidade
cultural, em particular dos Povos Quilombolas, de sorte que estes possam encontrar
sustentabilidade no ideal democrático, que por sua vez, segundo Touraine (2009), deve estar
preparado para essa emersão de sociedades mundializadas,na perspectiva de uma nova visão
de mundo. Não é possível descartar o fato que os Direitos Humanos, por estarem ligados à
ideia de universalização, põem a necessidade do diálogo intercultural (SANTOS, 2003, p.
443).
Este capítulo, ao tratar da temática sobre a diversidade cultural, focada na forma de
vida de quilombos no Brasil, não teve só a intenção de mostrar ações afirmativas a favor da
preservação da cultura destes e do respeito a suas diferenças,mas de tratá-los como dignos
cidadãos brasileiros que são. Também se intencionou colocar o Estado no seu local de
responsável na revisão de suas políticas e ações sociais, para com esses quilombos e seus
habitantes, que na linha da história sempre sofreram opressão, negação pelos outros, negação
até por iguais a eles mesmos, e que não encontram em que se apoiar para buscar a preservação
de seu patrimônio, que pertence, hoje, a essa multiculturalidade, expressão da democracia.
3.1 Brasil e o Quilombola: realidade e lutas contemporâneas
À luz de um Estado que se volta para a construção da cidadania a fim de promover os
direitos fundamentais, a partir de 1988, com a promulgação da Constituição Federal do Brasil,
surge o Estado Democrático de Direito, representado por uma sociedade apoiada em ideais de
igualdade, liberdade, diversidade cultural, participação de todos e cidadania. Como o
epicentro da discussão observa as Comunidades Quilombolas dentro deste Estado de Direito,
o objetivo do capítulo é mostrar uma ação onde a luta para a efetivação do direito
58
constitucional dos Quilombolas, garantido no Art. 68 da ADCT, por motivos preconceituosos
e de não aceitação do outro como diferente, encontra-se acuado sem poder ser apreciado.
Antes, é necessário fazer alusão ao que é o Estado Democrático de Direito e como este
se posiciona diante da organização social. Trata-se de um Estado caracterizado pela
Democracia, e que segundo Moraes (2005, p. 17)deve reger-se por normas democráticas, com
eleições periódicas e pelo voto popular, bem como o respeito das autoridades públicas aos
direitos e garantias fundamentais, proclamados no caput do artigo, que adotou, igualmente,o
parágrafo único, o denominado princípio democrático, ao afirmar que “todo poder emana do
povo, que o exerce por meio de seus representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta
Constituição”.
Também é um Estado ligado às matrizes do direito que distribui suas competências de
poderes moldando-se à democracia. Segundo Canotilho (2002, p. 231), “o Estado é limitado
pelo direito e o poder político estatal legitimado pelo povo. O direito é o direito interno do
Estado; o poder democrático é o poder do povo que reside no território ou pertence ao
Estado”.
Outra característica no Estado Democrático de Direito é o papel que a legalidade
ocupa, “assumindo um caráter geral e abstrato que através da coerção regulamenta a ação
social, sem obstar o seu livre desenvolvimento, atuando como ator principal o próprio
indivíduo”(STRECK; MORAIS, 2010, p. 102). Percebe-se não apenas tratar-se de Estado que
prioriza sua estrutura como sendo a lei, mas que, também implica em obediência aos
princípios fundamentais que dão garantias aos cidadãos. Essa é a garantia oferecida pelo
Estado Democrático de Direito, pois enquanto a lei não possui pode ser mudada, os princípios
inerentes ao Estado e as pessoas são imutáveis, haja vista constituírem os fundamentos do
próprio Estado.
Aparecem nesse cenário democrático Comunidades Quilombolas, que segundo foi
referenciado em capítulos anteriores, lutam pela defesa de seus interesses, para alcançarem
seu lugar de direito nas relações democráticas e efetivar seus direitos fundamentais, como o
reconhecimento da diversidade cultural, do direito a serem diferentes e respeitados como
todos e os direitos atinentes às suas propriedades.
Segundo Wolkmer (1994) a classe quilombola representa aquela que luta balizada,
principalmente, no reconhecimento do pluralismo e valorização de sua memória cultural, onde
se abre um leque para que se exercite a cidadania étnica, sem limitá-los ou diferenciá-los
dentro do uma sociedade considerada dominante.
59
Angariado pela perspectiva da formação de um Estado-Étnico onde é dada grande
relevância à manutenção das inúmeras formas socioculturais, o Direito reveste-se de
responsabilidade ímpar, pois se coloca na posição de fomentador de políticas públicas e ações
sociais bem como normas editadas a fim de reconhecer que o multiculturalismo é a garantia
de Estado diverso onde a Democracia respeita e garante o direito a ser diferente. Desmistifica-
se a ideia de um discurso hegemônico em relação a culturas tradicionais de povos,
descaracterizando as diferenças a partir do momento em que se respeitam e reconhecem as
particularidades de cada um (SANTOS,2006).
No Brasil, a Constituição Federal demonstra no preâmbulo do Art. 68 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias, instrumentalizada pelo Decreto Federal nº
4.887,que outorga competência ao Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e ao
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária(INCRA), para o procedimento
administrativo de identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das
terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do
Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.Trouxe consigo muitas das reivindicações
feitas pelo movimento quilombola, sendo considerado um avanço, pois ultrapassa a simples
regularização do local de moradia onde esteja situada a comunidade indo além do tradicional
modo de uso da terra, para a valoração e o reconhecimento de acordo com os costumes e as
tradições de cada grupo ou comunidade étnica, externando a proteção dos direitos dos povos
tradicionais. O processo de jurisdicionalização pode ser entendido, em uma sociedade
democrática e em um estado democrático de direito, como um modo profícuo de ampliação e
efetivação da cidadania. No entanto, para que, de fato,se cumpra esse papel é necessário que
tal jurisdicionalização opere dentro de uma hermenêutica, de um pluralismo e de um
constitucionalismo intercultural.
Trata-se de grande benefício e avanço na questão quilombola no Brasil, de maneira
que contribuiu para se enxergar a realidade de um estado pluriétnico e multicultural, ao
garantir-lhes o direito a um território. Por outro lado, demonstrou ainda não haver o respeito
às diferenças desses povos ao estabelecer diretrizes sobre a titulação e garantia do referido
direito.
Porém, o Decreto Federal 4.887/2003, ao reconhecer territórios quilombolas, e
regulamentar procedimentos para identificação desses territórios, é alvo de uma Ação Direta
de Inconstitucionalidade - ADI 3239 - proposta pelo Partido da Frente Liberal (PFL), hoje
atual Democratas (DEM),o qual aduz que o critério de autoatribuição para a titulação do
quilombola é inconstitucional, pois, ao outorgar títulos de terras de maneira definitiva
60
necessitando apenas da autotitulação do território como sendo quilombola, poder-se-ia abrir
precedentes para atitudes de má-fé, onde qualquer um poderia intitular-se quilombola devido
a tratar-se de conceito lacônico e subjetivo. Em sua argumentação pela admissibilidade da
inconstitucionalidade do Decreto 4.887/2003,o Democratas apela para uma análise mais
formalista da Constituição ao alegar impossibilidade de edição de regulamento autônomo para
tratar da questão, haja vista o princípio constitucional da legalidade; também argui sobre a
inconstitucionalidade do uso da desapropriação, prevista no art. 13 do Decreto 4.887/03, bem
como do pagamento de qualquer indenização aos detentores de títulos incidentes sobre as
áreas quilombolas, tendo em vista o fato de que o próprio constituinte já teria operado a
transferência da propriedade das terras dos seus antigos titulares para os remanescentes dos
quilombos. A referida ADI ainda aprecia teses como a invalidade da caracterização das terras
quilombolas como aquelas utilizadas para “reprodução física, social, econômica e cultural do
grupo étnico” (art. 2º, § 2º do Decreto 4.887/03) – conceito considerado excessivamente
amplo – bem como a impossibilidade do emprego de “critérios de territorialidade indicados
pelos remanescentes das comunidades de quilombos” para medição e demarcação dessas
terras (art. 2º, § 3º), pois isto sujeitaria o procedimento administrativo aos indicativos
fornecidos pelos próprios interessados.
Em suma a ADI proposta pelos Democratas alega vício de inconstitucionalidade no
Decreto 4887/2003, mas reconhece a validade do Decreto 3.912/2001 ao não
questionar a sua inconstitucionalidade. Ocorre que do ponto de vista constitucional
não existe diferença entre estes Decretos, existe uma diferença de alcance político e
social dos referidos Decretos. Sendo o Decreto de 2003 mais abrangente, bem
fundamentado e claro em sua finalidade. De forma que os Democratas buscam a
inconstitucionalidade de um Decreto que o Partido discorda por motivos meramente
políticos-ideológicos (MARQUES, 2012).
Corroboram ainda com esta ideia de amplitude de conceitos aqueles que acreditam que
para que haja objetividade no conceito de quilombola, são necessários estudos genealógicos
antropológicos de maneira sistematizada, a fim de que adotado este modelo, a concessão de
titulação coletiva definitiva a uma comunidade quilombola não despertaria qualquer dúvida.
Revela-se esta ideia contrária aos preceitos de um Estado Democrático de Direito, porque
tenta criar métodos homogêneos para proteger comunidades culturalmente diversificadas por
toda a extensão territorial do Brasil.
Ao contrariar o Decreto e principalmente o Art. 65 do ADCT e o que preceituam os
Arts. 215e 216 da Constituição Federal, contraria-se também a busca de se promover políticas
públicas afirmativas a fim de que estas estejam voltadas para a preservação da cultura
61
tradicional dos grupos que formaram a sociedade brasileira, em suas diversificadas formas de
viver e expressar. E um caminho retrógrado pode ser vislumbrado se considerar-se o Decreto
4.887/2003 inconstitucional, assim como propõe a ADI 3.239, pois com sua declaração de
inconstitucionalidade, deparar-se-ia com formas rigorosas para a titulação dos quilombos
através de exigências impossíveis e descabidas prescritas no Decreto antecessor de nº.
3.921/2001, que cria empecilhos à concretização dos direitos quilombolas retirando destes o
direito de autorreferência.
Em havendo, em qualquer momento reconhecimento de inconstitucionalidade de um
Decreto que foi balizado em padrões do multiculturalismo, elemento garantidor da aplicação
da Democracia que reconhece e respeita os considerados diferentes, colocaria por terra a
necessidade íntima das comunidades quilombolas de proteger e defender sua cultura e sua
diversidade. Observa-se, ainda, uma afronta à dignidade da pessoa humana, pois apenas
aquele que pertence a um determinado grupo pode dizer quem realmente é, mantendo
explícito o direito de lutar pelo reconhecimento e respeito a sua diversidade podendo conviver
socialmente com autonomia no que se refere à sua organização cultural e social.
Os argumentos suscitados na ADI 3239 carecem de alicerce constitucional sólido para
que sejam aceitos dentro do modelo do Estado Democrático de Direito, e o que realmente se
mostra inconstitucional é o escopo do pedido da referida ação.
Busca-se a igualdade material para com esses povos, e o respeito à sua diversidade
com os mesmos convivendo em nosso meio, mantendo vivas as raízes que descartam o ideal
de igualdade formal, dispensando a ideia de homogeneização. Nesse sentido, Santos (2005,
p.26) expõe seu posicionamento:
[...] salientar a necessidade democrática de garantia do direito à pertença cultural e à
diversidade, que implica relações étnicas e raciais – raça aqui como um conceito
sociológico, inundado de categorias culturais e históricas.A busca pela igualdade,
então, resulta também na busca pela diferença- o direito de ser igual quando a
diferença inferioriza e o direito de ser diferente quando a igualdade descaracteriza e,
assim, igualmente leva à interiorização.
Admitir critérios complexos para caracterizar a identidade pessoal ou grupal dos
Povos Quilombolas é admitir outra forma de marginalizá-los, ignorá-los em sua dignidade de
autoatribuição e negar-lhes direitos e garantias. Homogeneizar não é pressuposto de validade
do Estado para com esses povos, e sim atuar por meio de políticas inclusivas balizadas em
padrões democráticos, como é bem colocado por Santos (2005, p. 27), o qual observa que as
62
políticas estatais devem estar atreladas ao respeito por toda diferença, que uma vez observado
destituirá qualquer tentativa de universalização de direitos subjetivos.
63
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A sobrevivência do legado quilombola é mais uma dentre as inúmeras lutas que
envolveram a história pelo reconhecimento do direito à diversidade cultural dentro de uma
sociedade estamentada com padrões homogeneizados.
Os quilombos, surgidos no período escravocrata do Brasil, e que sobreviveram a todas
as mudanças sociais e políticas, encontram dificuldades quanto à possibilidade de uma vida
digna para que possam se estabelecer e ter suas diferenças respeitadas e aceitas, pois sofreram
um processo de exclusão, marginalização e ocultamento durante todo um ciclo histórico e
agora reaparecem nas discussões políticas na década de 1980 e,posteriormente, na
Constituição Federal de 1988, que vem assegurando, alavancando uma gama de outras
garantias assim como o reconhecimento da posse de suas terras.
A ideia europeia sobre a existência de raça superior ou que todos deveriam ser
homogenizadamente portadores de uma igualdade formal negando a própria diferença e a
diferença do outro, foi construída também sobre os quilombos, enxergando-os como uma
condição do passado, negada pela própria sociedade, sem direito à sua plena identidade,
transformando-os em paradigmas para a negação social.
Ter a identidade reconhecida e suas diferenças respeitadas assume um papel
fundamental para o próprio indivíduo, o qual se enxerga dentro do processo cultural que
otimiza a identidade individual e coletiva como tendo esta lugar garantido nos sistemas de
representação que na verdade se dá através da manifestação cultural, que por sua vez faz com
que a terra, o seu território, assuma o caráter de fonte vital de sobrevivência de suas tradições
e costumes.
Segundo R. Ledrut (D‟ADESKY, 2009), a identidade particular do membro de um
grupo é criada ao se olhar para o outro,e submeter quilombos a uma imagem homogeneizada
fará com que sua própria imagem seja aquilo que estarão vendo e não aquilo que realmente
são. Esse fenômeno afronta o princípio da dignidade da pessoa humana, pois, segundo
Emanuel Lévinas(2006),fere o conceito de alteridade, uma vez que o indivíduo já não mais
será capaz de dizer se pertence à comunidade em que vive, perdendo suas raízes e esquecendo
seu lastro cultural.
De modo geral os negros sempre foram vistos como inferiores e, em consequência
disto, foi permitido o atraso para que os mesmos conquistassem os direitos enquanto cidadãos
e até mesmo como pessoas. Ao tentar quebrar estigmas sociais o Estado Democrático de
64
Direito assume a responsabilidade de desconstruir ideais de homogeneização e de
padronização através de uma política democraticamente respaldada em ideais de inclusão
social que colocam o quilombola no desenvolvimento econômico e social, a fim de ser
possível provê-los com infraestruturas básicas para a sobrevivência, auxiliando no
reconhecimento e legitimação dos seus territórios e para a manutenção e reprodução da sua
identidade e da sua sobrevivência. Respeitar a cultura desses povos é o primeiro passo para o
amadurecimento da pluriconvivência; compreender a sua luta por sua identidade e reconhecer,
de uma vez por todas, a sua necessidade e direito, para que, uma vez inseridos na sociedade
multicultural, os remanescentes de quilombo possam dar continuidade à afirmação da sua
identidade que se encontra em processo de consolidação.
65
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