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Ficha de Leitura
O meu nome é Lucy Barton
de Elizabeth Strout
Publicação: 2016
Grupo de Leitores da Biblioteca Municipal de Carnaxide
Dinamização: Josefina Melo
14 de janeiro 2019
Sinopse
Pode o amor entre uma mãe e uma filha ser um círculo de contornos obscuros, que
nem circunstâncias extremas o podem redimir? Lucy Barton recupera numa cama de
hospital duma operação ao apêndice com complicações inesperadas. Os seus dias
monótonos são inesperadamente invadidos pela mãe, que não vê há 5 anos. Desde
que abandonou a casa de uma infância miserável. Rumou então a Nova Iorque, terra
de oportunidades, símbolo tão definitivamente americano, onde cruzou o casamento
com a literatura. Durante cinco dias que a mãe passa, sem dormir, à cabeceira da filha,
a emoção e o sofrimento são como um rosário de um passado que as atormenta,
rolado conta a conta entre a tensão das pontes vãs que tentam criar. Como diz uma
das personagens “Esta é a história de uma mãe que ama a sua filha. De modo
imperfeito. Porque todos nós amamos de forma imperfeita.”
Palavras-chave
SOLIDÃO, MATERNIDADE, ESCRITA, POBREZA, AMOR
Tempo e espaço
Amgash, IIinóis, anos 60 e 70, Nova Iorque, 1980-2000 (?)
Personagens
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LUCY
Oriunda de uma família de aves raras, que cheirava mal, mesmo na pequena vila de
Amgash, no Ilinóis, onde habitavam outras famílias pobres. Viviam isolados na
companhia dos milheirais e plantações de soja que se estendiam até ao horizonte e
jantavam muitas vezes pão com melaço. Os livros que lia na biblioteca da escola,
aquecida, faziam-na sentir menos sozinha, e decide ser escritora para ajudar os outros
a sentirem-se, também eles, menos sozinhos. Foram também os livros que a ajudaram
a ter boas notas e a conseguir uma bolsa para ir para a universidade, seu bilhete de
fuga da miséria e da solidão, o primeiro sabor que provou na vida.
MÃE
Trata a filha pela alcunha Wizzle e nunca lhe diz que a ama, apenas lhe diz que ela não
pode chorar. Frequentemente e sem aviso, batia nos filhos, impulsiva e
vigorosamente, quando estes eram crianças. É costureira e apesar da grande pobreza
em que vivem tem soutiens, cintas, um cinto de ligas e vários pares de sapatos de salto
alto para emprestar às suas clientes durante as provas de costura.
MÉDICO
Judeu de maxilar protuberante, com uma tristeza suave a pesar-lhe sobre os ombros,
cujos avós e tias haviam sido mortos nos campos de concentração, casado com quatro
filhos adultos. Lucy amou-o, e à sua tristeza graciosa, durante muitos anos.
MARIDO
William é filho de um prisioneiro de guerra alemão enviado para os campos de cultivo
da batata, no Maine, motivo pelo qual nunca foi aceite pelo pai de Lucy. Detesta
hospitais por isso raramente visita uma única vez a mulher durante as cinco semanas
que ela fica internada no hospital.
IRMÃO
O mais velho dos três filhos do casal aos 36 anos ainda vive com os pais, lê livros
infantis e passa a noite com qualquer animal que vá ser morto no dia seguinte.
VICKY
Irmã mais velha tem cinco filhos ainda está zangada com a mãe por os colegas terem
feito pouco dela da escola devida às condições miseráveis em que vivia.
PAI
Trabalhava com maquinaria agrícola, embora fosse frequentemente despedido por
discutir com o patrão e voltasse depois a ser contratado por ser competente.
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CHRISTINA e BECKA
Filhas de Lucy
Jeremy amigo de Lucy, alto, magro, cabelo escuro e rosto intenso, Jeremy é francês e
aristocrata abdica de tudo para viver na América e decide a meio da vida tornar-se
psicanalista.
Sarah Payne escritora, elegante, cabelo cinza bem cuidado. Cresceu num pomar
degradado numa pequena vila do New Hampshire, e escreve com tendência para a
compaixão sobre pessoas que trabalham duramente no campo, e que sofrem, mas que
também têm momentos felizes.
Molla sueca, dez anos mais velha que Lucy, e sua única amiga além de Jeremy.
Excertos
Por exemplo, como é que se aprende que é indelicado perguntar a um casal por que
motivo não tem filhos? Como se põe a mesa? Como sabemos que estamos a mastigar
com a boca aberta se nunca ninguém nos disse? Já agora, como sabemos que aspecto
temos, se o único espelho em casa é muito pequeno e fica por cima do lava-loiça, ou se
nunca ninguém nos disse que somos bonitas, se, em vez disso, quando os nossos seios
se desenvolvem, a nossa mãe nos diz que começamos a parecer-nos com uma das
vacas do celeiro dos Peterson? (p .16)
Mas os livros trouxeram-me coisas. É aqui que quero chegar. Fizeram-me sentir menos
só. E eu pensei: vou escrever e as pessoas não vão sentir-se tão sós! (p. 26)
A solidão foi o primeiro sabor que provei na vida, e esteve sempre lá, escondida nas
frestas da minha boca para mo recordar. (p. 40)
Sonhava não ter frio, ter lençóis lavados, toalhas lavadas, um lavatório que funcionava
e uma cozinha soalheira. Entrava no paraíso deste modo. E depois, chegava o frio, e o
sol punha-se, e o meu choro recomeçava, primeiro como um soluço e, em seguida com
mais força. E depois o meu pai aparecia, destrancava a porta e, por vezes, levava-me
ao colo. (p. 54)
4
As pessoas vão criticá-la por combinar a pobreza e os maus-tratos. Que expressão tão
estúpida, «maus-tratos», que expressão estúpida e convencional, mas as pessoas dirão
que há pobreza sem maus-tratos, e você nunca vai responder a nada. Nunca defenda a
sua obra. Esta é uma história sobre amor, você sabe disso. Esta é a história de um
homem que viveu todos os dias da sua vida atormentado por coisas que fez na guerra.
Esta é a história de uma mulher que ficou com ele, porque era o que a maioria das
mulheres fazia naquela geração, e que entra no quarto de hospital da filha e fala
compulsivamente sobre os casamentos malogrados de toda a gente e que não sabe,
não tem a menor ideia, do que está a fazer. Esta é a história de uma mãe que ama a
sua filha. De modo imperfeito. Porque todos nós amamos de forma imperfeita. Mas se
der por si a proteger seja quem for neste trabalho, lembre-se: não está a fazê-lo bem.
(p. 93)
Nota biográfica sobre a autora
Elizabeth Strout, nasceu em 1956 em Portland, Maine. Publicou o primeiro livro, Amy
and Isabelle, em 1998. Dez anos depois ganhou o Prémio Pulitzer Ficção com um livro
de contos, Olive Kitteridge. Em 2018 publicou o livro de contos Tudo é possível, onde
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retorna a Amgash, Illinois, cidade rural ficcionada no seu livro anterior, O meu nome é
Lucy Barton, e que Barak Obama incluiu na sua lista de melhores livros de 2017. Os
seus contos foram publicados em inúmeras revistas, entre as quais The New Yorker e
O: The Oprah Magazine. Lecciona no Mestrado de Belas-Artes na Universidade de
Queens em Charlotte, Carolina do Norte, e vive na cidade de Nova Iorque.
Outros títulos no catálogo das bibliotecas de Oeiras
Olive Kitteridge (contos) 2010
Entrevistas e recensões
Entrevista de Isabel Lucas no Ípsilon
https://www.publico.pt/2016/09/10/culturaipsilon/noticia/eu-nao-sou-lucy-barton-
1743308
Eu não sou Lucy Barton
Elizabeth Strout quer falar de classes sociais na América. Criou Lucy Barton, escritora
com passado de pobreza e exclusão. É a protagonista de O Meu Nome é Lucy Barton e
em comum com Strout tem os livros, a solidão e o facto de ser branca.
Qualquer coisa podia ter nascido daquela imagem. Foi no dia anterior a esta conversa.
Uma mulher, talvez com 75, 80 anos, o cabelo preso num coque, a andar na rua com
bengala e saltos altos, muito finos. “Acho que vinha da igreja e seguia para um
restaurante. Era hora de almoço. Fiquei embevecida a olhar para ela. Ia sozinha,
caminhava devagar, mas segura”, conta Elizabeth Strout quando se lhe pergunta como
nasce um livro. “No princípio são sempre pelas personagens. Não é uma ideia. Pode
ser uma imagem, uma voz que começa a soar e que depois persigo. E continua assim,
comigo a absorver a rua, a ouvir conversas, gestos, em expressões que vejo. Tudo
serve para ir tornando essas personagens verdadeiras’.”
É o início de uma tarde de Primavera e o sol entra quase directo na sala virada a sul do
andar alto onde vive Elizabeth Strout em Manhattan. Esteve a escrever até há pouco.
O portátil continua aberto na mesa de refeições, e no chão, junto a uma poltrona
branca, há um monte de folhas A4 cheias de anotações.
Escreve por ali, rodeada de livros, quadros e de uma paisagem típica do Upper East
Side de Manhattan: uma nesga do rio East, mesmo ali ao lado, os tons ocre dos prédios
e o verde das árvores, babysitters a passear crianças em carrinhos, alguém a correr na
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rua. “Acho que me levou anos até saber como escrever frases; demorei anos a
aprender este ofício e a ouvir nelas alguma coisa que soasse a verdadeiro”, começa
por dizer esta mulher que publicou o primeiro livro em 1998, quase com 43 anos, e
escreve todos os dias desde os 13.
Uma admiradora de Alice Munro e William Trevor que em 2009 ganhou o Pulitzer para
ficção com Olive Kitteridge (Casa das Letras, 2010), colecção de histórias que
funcionam como um todo e com acção em pequenas vilas da costa do Maine. O livro
seria adaptado a uma série da HBO com o mesmo título e protagonizada por Frances
McDermond.
Continua Strout: “Em ficção é preciso fazer sentido emocionalmente e é difícil
consegui-lo. Há muitos escritores a conseguir isso de forma certinha, mas e a emoção?
O Hemingway dizia: ‘vá levanta-te e escreve a frase verdadeira que conheces’. Durante
anos pensei nisso. O que é a frase verdadeira que eu sei? Não conseguia entender, mas
ia tentando, escrevia, escrevia, todos os dias até perceber, distinguir: esta é uma frase
verdadeira e esta não. Mas foi só pela imersão no trabalho, todos os dias.”
Para Elizabeth Strout, chegar à frase verdadeira não é muito diferente de conseguir
criar uma personagem verdadeira ou à tal verdade emocional. Fala disto quando se lhe
pergunta como nasceu Lucy, a protagonista de O Meu Nome é Lucy Barton, o seu mais
recente romance que acaba de ser publicado em Portugal e a confirma como uma
eficaz contadora de histórias.
Lucy é uma escritora como Elizabeth, com um grande conhecimento da solidão. “No
resto somos diferentes. Não vale a pena tentar encontrar mais pontos em comum do
que aqueles que qualquer escritor põe de seu no que escreve”, afirma sobre a
tentação do leitor em procurar semelhanças sempre que um escritor cria outro
escritor na ficção. “Eu não sou Lucy Barton”, diz Strout a sorrir, brincando com o
sentido da frase. Ela quer dizer justamente o contrário do que Flaubert disse a
propósito de Madame Bovary (Bovary sou eu). “Eu escrevo ficção. Sei que há sempre
alguma coisa de mim em cada personagem, homem ou mulher, porque eu sou o ponto
de partida do que escrevo, porque só me conheço a mim. Mas eu escrevo ficção e
sempre escrevi ficção. Se as pessoas procurarem quem sou eu, a ficção é o que sou.” E
a ficção é ela porque nela está sempre a sua perspectiva sobre o mundo. “Só
conseguimos ver as coisas a partir do nosso ponto de vista, mesmo quando queremos
ver o nosso contrário. É sempre, sempre, a partir de nós. Mas a ficção é um desses
raros momentos, se ela for bem feita, em que o escritor pode ser outra pessoa, mas
muito brevemente”, diz.
Elizabeth Strout nasceu em Portland, no Maine, filha de um professor universitário e
de uma professora de liceu. Filha única, cresceu numa casa onde “não se acreditava na
televisão”, rodeada de livros e sem vizinhos por perto. “Sim, cresci muito sozinha, mas
era uma solidão diferente da de Lucy”, a rapariga do Midwest que vivia com a família
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numa garagem, jantava pão com melaço, cheirava mal e aprendia o básico da vida
íntima ou social imitando o comportamento dos que ia encontrando nos livros. “Por
exemplo, como é que se aprende que é indelicado perguntar a um casal por que
motivo não tem filhos? Como se põe a mesa? Como sabemos que estamos a mastigar
de boca aberta se nunca ninguém nos disse? Já agora, como sabemos que aspecto
temos, se o único espelho em casa é muito pequenino e fica por cima do lava-louça, ou
se nunca ninguém nos disse que somos bonitas, se, em vez disso, quando os nossos
seios se desenvolve, a nossa mãe nos diz que começamos a parecer-nos com uma das
vacas do celeiro dos Pedersons?” Esta é a voz de Lucy.
“É a primeira vez que escrevo usando a primeira pessoa”, refere Elizabeth Strout.
“Quando comecei não sabia que Lucy Barton iria ser escritora. Não escrevo de seguida,
do início até ao fim. Tinha cerca de um terço do material quando me apercebi de que
ela talvez devesse ser uma escritora e eu não queria isso. Quem é que quer ler acerca
de escritores? Não acho que seja muito interessante. Mas ela saia da escola e lia livros
porque a faziam sentir-se menos só. Foi uma pista para mim”, revela. E além de Lucy,
escritora, criou Sarah Payne, outra escritora, referência para a primeira, no que,
confessa, se tornou uma espécie de jogo arriscado com muitos espelhos. É Sarah quem
diz a Lucy e a todos os que a ouvem num curso de escrita: “Vocês só vão ter uma
história.” Funcionou para Lucy como a frase de Hemingway para Elizabeth. E depois,
acrescenta ainda Payne: “Vão escrever uma história de muitas maneiras. Nunca se
preocupem com a história. Só têm uma.”
A história de Elizabeth Strout é a de uma americana, branca que está interessada em
falar dos problemas de classe no seu país. “Este é o grande tema de que todos
parecem fugir. E com ele vêm muitos outros, incluindo o de raça. Não se pode falar de
discriminação racial sem falar de classe”, afirma.
Em criança, os livros de Elizabeth estavam em casa e os de Lucy na biblioteca da
escola, onde ela ficava depois das aulas para fugir ao frio da garagem. “Sempre
detestei ter frio. Há elementos que determinam os trilhos escolhidos, e
frequentemente conseguimos encontrá-los ou identificá-los com rigor, mas já tenho
pensado em como eu ficava até mais tarde na escola, onde fazia calor, só para estar
quente.”
Da história de Lucy vamos sabendo a partir do momento em que a encontramos na
cama de um hospital de Manhattan, nos anos 1980, a reconstituir o que foi a sua vida
até aí. Lucy é uma escritora que naquele momento tenta que a sua própria história lhe
faça sentido e que reconstitui a partir das suas memórias e das histórias e que lhe traz
a mãe, uma mulher pobre e austera do Illinóis. Não se viram durante anos, sempre
tiveram uma relação baseada na contenção afectiva e no silêncio e ela agora senta-se
ao seu lado, dormitando à noite na mesma cadeira onde passa os dias e confrontando-
a com outras memórias.
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Elizabeth Strout explora a primeira pessoa numa narrativa que se constrói a partir do
presente a olhar o passado. As hesitações, as falhas de memória, a sequência cortada
pela dispensa de seguir uma cronologia são essenciais a um livro que se estrutura
justamente nisso, jogando com elipses, e que ganha força sobretudo por isso.
“Quando me apercebi de que podia começar com uma mulher mais velha a olhar para
trás isso ajudou-me. Eu queria estar na cabeça da personagem, mas se isso fosse no
presente poderia ser muito confuso, estar tão dentro que cansasse. Mas se eu tivesse
este ‘isto aconteceu há muitos anos’ criava uma distância confortável e ficava mais
fácil ao leitor conseguir acompanhar a voz dela, que era uma voz única a que eu tinha
de estar muito atenta”, refere.
E o seu papel, diz, foi seguir essa voz em confronto com o passado que, apesar de
muito duro, não lhe conseguiu corromper uma espécie de pureza. “Foi isso que me
seduziu nela”, continua Elizabeth Strout, sobre aquela mulher que passa várias
semanas no hospital, separada do marido e das duas filhas pequenas, tendo por única
companhia um séquito de médicos e enfermeiras, que tentam perceber o que ela tem,
e a mãe que nunca lhe disse que a amava. Só lhe disse que nunca podia chorar.
“Nós éramos aves raras, a nossa família, mesmo naquela pequena vila de Amgash,
Illinóis, onde havia outras habitações em ruína e a precisar de pintura e persianas ou
jardins, sem qualquer beleza que se visse.” É outra vez Lucy Barton que vai ganhando
corpo ao ritmo da corrente das suas memórias de exclusão social, abuso familiar,
privação — material e afectiva — e a tal solidão que lhe conferiu identidade, enquanto
o leitor se interroga sobre a sua doença e a tensão se centra naquela relação com a
mãe, especulando sobre a reconciliação. “Dizer mentiras e desperdiçar comida eram
coisas que davam sempre castigo. Fora isso, volta e meia e sem aviso prévio, os meus
pais — e habitualmente a minha mãe, e na presença do meu pai — batiam-nos de
forma impulsiva e com vigor, como me parece que algumas pessoas devem ter
suspeitado, pela nossa pele manchada e pelas nossas expressões taciturnas.”
Lucy pensa isto enquanto a mãe está em frente a ela, envelhecida, a contar episódios
mais ou menos burlescos sobre os vizinhos, os familiares, os irmãos de Lucy. Nesses
momentos em que vai à infância de Lucy, à tensão entre mãe e filha, Strout é mais
eficaz do que quando fala de literatura também pelas vozes das suas personagens.
Como se Lucy não precisasse de ser escritora para ser eficaz. Mas apesar disso, o facto
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de Lucy ser escritora continua a ser um bom recurso. Naquela cama de hospital ela
está a escrever a sua própria história, a única, e tem de ser o mais verdadeira possível.
https://rizzenhas.com/2016/09/resenha-meu-nome-e-lucy-barton-de-elizabeth-
strout/
Lucy Barton tem complicações durante uma cirurgia e tem que passar alguns dias em
observação, internada num hospital em Nova York. Da janela ela observa o edifício
Chrysler, imagem constante em suas noites insones e solitárias, em que pensa nas
duas filhas pequenas – se sentem sua falta, se seu marido está dando conta de cuidar
das duas – e no trabalho deixado de lado momentaneamente por conta da saúde. Lucy
Barton é escritora. No momento da cirurgia e da internação, está publicando seus
primeiros textos em revistas renomadas. Mas a Lucy Barton que conta esta história já
tem uma obra consolidada, e o que ela pretende aqui é relembrar cinco dias
específicos de sua internação que acabou durando bem mais do que ela previa: os
cinco dias em que recebeu a visita de sua mãe. Este é Meu nome é Lucy Barton, livro
de Elizabeth Strout que esteve entre os indicados do Man Booker Prize deste ano
(tradução de Sara Grünhagen), mas não chegou a ser finalista do prêmio.
Há anos Lucy não via sua mãe. Sua presença no quarto do hospital foi uma feliz
surpresa, mas que também amedrontadora. Ela não fazia ideia do motivo da mãe estar
ali (depois soube que seu marido ligou para a sogra e pediu que fosse visitá-la, pois ele
tinha pavor de hospitais), e nem o que a mãe pensava do lugar onde estava, da vida
que a filha vinha levando tão longe dela. Lucy e sua mãe são bem diferentes, e apesar
dela notar algo familiar, uma sensação aconchegante vinda do passado, ela também
sente que não está conectada com a mãe, assim como nunca se conectou muito à
família após deixar a cidadezinha do interior onde cresceu. E assim a Lucy dos dias
atuais explica essa relação não conflituosa, mas complicada, entre mãe e filha, em que
constrói um relato sobre identidade, seu lugar no mundo e a importância das pessoas.
Com relatos fragmentados, que misturam a narrativa da visita da mãe, a da infância e
adolescência de Lucy e a de sua vida de escritora, Strout vai contando como ela foi
várias pessoas ao mesmo tempo, e como se sentiu deslocada em todos esses
momentos. Lucy nasceu em uma família pobre, que morava afastada da cidade, no
interior de Illinois. O pai trabalhava no campo e a mãe era costureira, e é marcante
para ela o lugar miserável em que vivia: se vestia com trapos, as crianças na escola
diziam que ela tinha um cheiro diferente, mesmo cheiro que sentiam na sua casa
quando suas mães iam até a mãe de Lucy para que consertasse suas roupas. Strout
também insinua no texto alguns momentos traumatizantes da infância de Lucy (algo
envolvendo a criança trancada numa camionete com uma cobra), e outras coisas
referentes ao seu pai que não são explicadas com detalhes, ficando apenas na
suposição do leitor. Mas ela detalha bem os sentimentos de Lucy quanto à sua
identidade e origem.
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Lucy, claro, se refugiava nos livros que conseguia pegar na escola. A leitura é, até certo
ponto, uma das coisas que tem em comum com a mãe, que costumava pegar livros na
biblioteca quando ainda havia uma para frequentar. Lucy tentava ao máximo ficar na
escola – tanto para ler mais quanto para adiar o momento de voltar para a casa gelada.
Esse hábito lhe rendeu boas notas que a fizeram se destacar para uma professora, que
a incentivou a se inscrever para a universidade. Carta de aceitação recebida e bolsa
concedida, finalmente Lucy sai de casa e parte para o mundo, para o lugar onde
julgava pertencer.
Só que a origem de Lucy é bem diferente da dos seus colegas. Strout não se alonga nos
tempos de faculdade – Meu nome é Lucy Barton é, aliás, um livro bem curto –, mas
deixa claro o quanto ela não se encaixava entre aquelas pessoas: não entendia suas
referências, não se vestia como suas colegas, considerava fútil aquilo que as pessoas
davam tanto valor – como as roupas caras de um de seus professores, com quem
manteve um relacionamento. Lucy sente o choque cultural de ter crescido com poucos
recursos e ir parar num lugar onde as pessoas sempre tiveram privilégios que ela
nunca teve, e se achavam superiores por isso. A própria Lucy, às vezes, procurava
motivos para se sentir superior a eles, para não ser rebaixada por causa da infância
pobre. Lucy fingia bem pertencer a tudo aquilo, mas no fundo sabia que aquele
também não era seu lugar, que não era plenamente aceita.
Por isso, ao se reencontrar com a mãe anos depois, Lucy vivencia uma espécie de
constrangimento. Ela chega, em alguns momentos, a subestimar a inteligência da mãe,
que aproveita as visitas para contar as suas histórias: o que aconteceu com as pessoas
da cidadezinha, as fofocas do lugar, comentar alguma coisa que estivesse passando na
TV do hospital ou que tivesse lido numa revista, e que não compreende direito porque
aquilo faz parte da realidade da cidade grande e dos endinheirados. Lucy, enquanto
ouve, observa a mãe e tenta decifrar o que ela está sentindo ao estar ali, tenta
identificar aquilo que une as duas para entender como ela, vindo daquela mulher e
tendo a mesma criação que seus irmãos tiveram, enveredou por um caminho tão
diferente. Criou para si uma vida tão distinta da de sua família.
E foi nisso que o livro me pegou. Eu não venho de uma família tão pobre quanto a de
Lucy, mas eu cresci num ambiente diferente desse em que vivo agora, um lugar onde
ninguém mais da minha família habita. O fato de eu estar nesse lugar tão distante
deles não significa que eu sou melhor do que eles, e o fato das pessoas com quem
convivo hoje terem crescido num lugar com muito mais recursos e oportunidades não
fazem delas melhores do que eu. É basicamente essa a questão de Meu nome é Lucy
Barton: você segue um caminho diferente daquele que todos os que você conhece
tomaram, você passa a vida inteira tentando se encaixar num grupo e sente que não
consegue porque não veio do mesmo lugar que eles e é menos aceita por isso. Mas
você não é inferior a eles, e sua família, por mais diferente que seja a vida que
escolheram seguir (ou “aceitar”) também não são.
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Tudo isso Lucy Barton pensa, e tenta entender, nestes dias que passa com a mãe. Suas
conversas saem com dificuldade, mas há vários momentos em que o ambiente fica
leve enquanto a mãe fala e ela apenas ouve, agradecida pela sua presença, sentindo
que, apesar da distância e da falta de comunicação, há amor entre as duas. Lucy é
escritora, é mãe, é esposa, mas também é a filha e a irmã que compartilhou o início de
sua vida com aquelas pessoas que definiram o seu caráter. Meu nome é Lucy Barton
consegue, com uma história breve e simples, explorar muito bem os sentimentos e a
ligação profunda entre mãe e filha, que não se quebra apesar das realidades
diferentes.
Blog deusmelivro
http://deusmelivro.com/mil-folhas/o-meu-nome-e-lucy-barton-elizabeth-strout-21-11-
2016/
“Nós éramos aves raras, a nossa família.”
Diz-se na gíria popular que “mãe é mãe”, mas a verdade é que, muitas vezes, a relação
entre mãe e filha pode ser algo semelhante às relações entre Estados Unidos da
América e União Soviética durante o período da guerra fria. Em “O meu nome é Lucy
Barton” (Alfaguara, 2016), Elizabeth Strout observa à lupa uma não-relação entre mãe
e filha, mostrando o imenso fosso que se abre perante pessoas que deveriam estar, de
alguma forma, próximas.
Lucy Barton está numa cama de hospital, a recuperar de uma cirurgia ao apêndice que
correu mal. Os dias correm vazios, as visitas do marido e das filhas são parcas – a
relação amorosa está por arames -, mas tudo se transforma quando a mãe, que Lucy
não vê há muitos anos, surge para se sentar à cabeceira da cama. Cinco anos em que
não existiu sequer uma visita, fosse para Lucy visitar a casa onde cresceu ou a mãe vir
a Nova Iorque conhecer as netas.
Durante os cinco dias em que a mãe passa à sua cabeceira, começam por falar de
coisas tão banais quanto os vizinhos da infância e os destinos de cada um, mas aos
poucos a tinta das paredes familiares vai-se descascando, revelando-nos a vida de Lucy
enquanto criança e adolescente: uma infância de pobreza e provação, o ser olhada na
escola como vinda de uma família que cheirava mal, os jantares de pão e melaço, as
tareias da mãe, uma casa sem televisão, jornais, livros ou revistas. Uma vida que
terminou quando, depois de fazer da biblioteca local a sua casa, ingressou na
Universidade com uma bolsa integral, descobrindo na literatura uma tábua de auto-
salvação:
“Mas os livros trouxeram-me coisas. É aqui que quero chegar. Fizeram-me sentir
menos só. E eu pensei: vou escrever e as pessoas não vão sentir-se tão sós.”
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A escrita navega magicamente entre um diário de uma adolescente e as profundezas
do mais íntimo da alma humana, num livro essencial que nos mostra o lado mais cruel
do amor. E que é, essencialmente, um retrato da literatura enquanto salvação e ferida,
um acto de se ser implacável, uma forma de superação individual. Um livro que Sarah
Payne, a personagem escritora que dará um curso frequentado por Lucy, irá descrever
de forma arguta a meio do livro, apontando com isso a essência da escrita:
“As pessoas vão criticá-la por combinar a pobreza e os maus-tratos. Que expressão tão
estúpida, «maus-tratos», que expressão estúpida e convencional, mas as pessoas dirão
que há pobreza sem maus-tratos, e você nunca vai responder a nada. Nunca defenda a
sua obra. Esta é uma história sobre amor, você sabe disso. Esta é a história de um
homem que viveu todos os dias da sua vida atormentado por coisas que fez na guerra.
Esta é a história de uma mulher que ficou com ele, porque era o que a maioria das
mulheres fazia naquela geração, e que entra no quarto de hospital da filha e fala
compulsivamente sobre os casamentos malogrados de toda a gente e que não sabe,
não tem a menor ideia, do que está a fazer. Esta é a história de uma mãe que ama a
sua filha. De modo imperfeito. Porque todos nós amamos de forma imperfeita. Mas se
der por si a proteger seja quem for neste trabalho, lembre-se: não está a fazê-lo bem.“
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