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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
CENTRO DE HUMANIDADES
MESTRADO ACADÊMICO DE FILOSOFIA
Benedito Augusto da Silva Neto
A FORMAÇÃO DO HOMEM PARA A SOBERANIA POPULAR COMO
PRINCÍPIO DE DIREITO POLÍTICO EM JEAN-JACQUES ROUSSEAU
Fortaleza
2011
BENEDITO AUGUSTO DA SILVA NETO
A FORMAÇÃO DO HOMEM PARA A SOBERANIA POPULAR COMO
PRINCÍPIO DE DIREITO POLÍTICO EM JEAN-JACQUES ROUSSEAU
Dissertação apresentada ao Curso de
Mestrado Acadêmico de Filosofia do Centro
de Humanidades-CH da Universidade
Estadual do Ceará-UECE, como requisito
para a obtenção do título de Mestre em
Filosofia.
Orientador: Prof. Dr. Regenaldo Rodrigues
da Costa.
Fortaleza – Ceará
2011
Título A Formação do Homem para a Soberania Popular como
Princípio de Direito Político em Jean-Jacques Rousseau
Autor Benedito Augusto da Silva Neto
Professor Orientador Prof.Dr. Regenaldo Rodrigues da Costa
Exame de Qualificação 23 de fevereiro de 2011
Defesa da Dissertação 29 de abril de 2011
Conceito obtido Satisfatório
Nota 8,5
Banca Examinadora
Presidente Prof.Dr. Regenaldo Rodrigues da Costa (UECE)
______________________________________
1º Examinador Prof.Dr. Odilio Alves Aguiar (UFC)
_______________________________________
2º Examinador Prof.Dr.João Emiliano Fortaleza de Aquino (UECE)
_______________________________________
Fortaleza, Ceará
29 de abril de 2011
3
In Memoriam:
Raimundo Iberalto da Silva;
Raimundo Ramos de Liro;
Raimundo Iberalto da Silva Neto;
Anízio Martins de Liro Neto.
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus, como o grande arquiteto do universo, por toda a inspiração.
À minha família, pela compreensão e o incentivo ao longo de toda a minha
pesquisa.
Aos professores do Mestrado, em especial ao meu orientador o Prof. Dr.
Regenaldo Rodrigues da Costa, pela valiosa orientação.
Aos meus colegas e a todos os colaboradores do Curso, pelo companheirismo.
O homem nasce livre, e por toda a parte
encontra-se a ferros. O que se crê senhor
dos demais não deixa de ser mais escravo
do que eles.
Jean-Jacques Rousseau.
RESUMO
Como exórdio da antropologia política de Rousseau, apontamos na sua obra, “Discurso
sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens”, um problema
geral e grave que o homem adquiriu para si, através do processo civilizatório, que foi
tornar-se um ser corrompido. Com a proposta educacional de Rousseau, através da
sua obra o “Emílio, ou Da Educação”, percebemos que a intenção do autor é de formar
o homem através de etapas, ou seja, um tipo de educação para cada fase de sua vida,
iniciando-se com o desenvolvimento natural dos sentidos, partindo-se em seguida para
a formação moral, e logo após a educação política que autorizará o homem a viver em
sociedade. A redenção para o problema do homem civilizado, denunciado a partir da
obra o “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens”,
começa a ser solucionado com a formação do homem no “Emílio”, para exercer a sua
cidadania a partir do projeto de Estado ideal planejado por Rousseau na sua obra o
“Contrato Social”, em que busca a solução viável através da construção de uma
sociedade justa por meio do pacto social, elaborado pelo povo soberano. Demonstrada
a interligação entre essas três obras de Rousseau como fontes preponderantes do seu
projeto político, concluímos que Rousseau pretendeu formar o homem para a cidadania
para viver no jugo de suas próprias leis, provenientes da vontade geral soberana,
fundamentadas no seu “Contrato Social”, que busca gerar no âmago da sociedade a
liberdade a partir da igualdade, como forma de aplicação da justiça social.
Palavras-chave: Corrompido. Educação política. Pacto Social. Soberano. Liberdade.
Igualdade.
RÉSUMÉ
En s‟appuyant sur l‟antropologie politique de Rousseau, on remarque dans son oeuvre
“Discours sur l'origine et les fondements de l'inégalité parmi les hommes”, celle-ci parmi
les hommes, une situation grave, um procès de civilizateur qui a corrompu les hommes.
Rousseau a eu une proposition de l‟éducation dans son oeuvre “Émile” dont l‟objectif
était de former l‟homme par les trois étapes, c‟est-à-dire, une sorte d‟éducation à
chaque moment de sa vie, au début, le développement naturel des sens, ensuite une
formation morale , enfin, l‟éducation politique par laquelle l‟homme est devenu un Être
sociable. Le résultaf en ce qui concerne l‟homme civilisé a été présenté dans l‟oeuvre
“Discours sur l'origine et les fondements de l'inégalité parmi les hommes”, la solution
pour la formation de l‟homme dans “Émile” pour exercer la citoyenneté à partir du projet
de l‟État, selon Rousseau, idéal dans son oeuvre, “Le Contrat Social” dans laquelle il
cherche la vraie solution pour la construction d‟une société équitable pour le peuple
souverain. Les trois oeuvies de Rousseau étraient reliées par des sources
préponderantes de son projet politique. On admet que Rousseau avait l‟intention de
former l‟homme pour la citoyenneté, pour assujettissement de ses propres lois qui
préviennent de la volonté souveraine, présentées avec profondeur dans le “Contrat
Social” qui recherche au plus profond de la société, la liberté à partir de l‟égalité
comme une manière d‟application de la justice sociale.
Mots-clé: Corrompu. Éducation politique. Pacte social. Souverain. Liberté. Égalité.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 9
1 A GENEALOGIA MÍTICA DO HOMEM EM ROUSSEAU. ........................................... 13
1.1 Estado de natureza ou estado pré-cívico ............................................................. 13
1.2 Estado cívico ........................................................................................................ 21
1.3 O abismo entre o homem natural e o homem civilizado – o significado da
desigualdade .............................................................................................................. 28
2 A FORMAÇÃO DO HOMEM PARA A SOBERANIA POPULAR. ................................. 35
2.1 As relações físicas com os outros seres .............................................................. 36
2.2 Relações morais com os outros homens .............................................................. 44
2.3 Relações civis com os outros concidadãos .......................................................... 47
3 O PACTO SOCIAL LIBERTÁRIO E A FORMAÇÃO DA SOCIEDADE LEGÍTIMA ...... 58
3.1 A formação como resgate do corpo social............................................................ 59
3.2 A transformação moral e política da sociedade capitaneada pela soberania
popular ........................................................................................................................ 65
3.3 Razão normativa: justiça e liberdade como possibilidades para a justiça social . 73
CONCLUSÃO ................................................................................................................. 80
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 85
INTRODUÇÃO
Cumpre destacar, preliminarmente, que o presente trabalho de pesquisa é
embasado na teoria social e política do pensador suíço erradicado na França, Jean-
Jacques Rousseau.
Nomeamos como matrizes de pesquisa as suas obras de escol, na seguinte
sequência: o “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os
homens”, “Emílio, ou Da Educação”, e a sua obra de direito político, o “Contrato
Social”.
Buscamos, com isso, elaborar, da forma mais clara possível, a interligação das
três obras, sem esquecermos, contudo, o pensamento político do autor expresso nas
suas outras obras de igual interesse: “Projeto de constituição para a Córsega” e suas
“Considerações sobre o governo da Polônia e sua reforma projetada.”.
Alavancamos a ideia de que Rousseau pretende, a partir das obras: “Discurso
sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens”, “Emílio, ou Da
Educação”, e o “Contrato Social”, elaborar o seu projeto político de formação do
homem para exercer o status de cidadão no seu Estado ideal.
Em primeiro lugar, com o “Discurso sobre a origem e os fundamentos da
desigualdade entre os homens”, Rousseau encetou uma leitura da civilização que se
formou ao longo dos tempos, através de uma análise histórico-descritiva e hipotética,
inclusive servindo-se da narrativa de viajantes e descobridores, da época, de terras
além-mar. Com isso, revelou que os homens em um determinado estágio da civilização
viviam num estado de natureza predispostos à virtude, porém, com o advento do
progresso, surgiu o estado cívico, que tornou a corrupção a marca do caráter desse
homem. A partir desse diagnóstico, que aponta o mal-estar da civilização e, portanto, a
10
guerra de todos contra todos no seio dessa sociedade corrompida, é que Rousseau
apresenta o seu projeto pedagógico para a salvação do homem na sociedade.
Assim, é no “Emílio, ou Da Educação”, que Rousseau traça de forma detalhada a
formação moral e política do homem, para transformá-lo em cidadão, sujeito de direitos
e deveres. Nessa obra é ressaltada a predisposição da bondade original do homem
para servir de base para a educação negativa de Rousseau1, que privilegia nos
primeiros anos de vida o desenvolvimento dos sentidos de seu educando. Dividindo em
etapas etárias o seu projeto pedagógico, Rousseau assinala que a educação negativa
termina com o início da formação moral, e finalmente conclui o seu projeto com a
educação política, ao apresentar um compêndio da sua obra, o “Contrato Social”.
Finalmente, com o “Contrato Social”, o ciclo se fecha, para que Rousseau
apresente a sua solução para os infortúnios da sociedade, já que o seu educando está
preparado para viver no seu Estado ideal. Essa assertiva se concretiza perfeitamente,
pois Rousseau dirá – como demonstraremos no decorrer do trabalho – que essas
obras se interligam.
1 De acordo com Marques (2005), Rousseau explicou a sua “educação negativa” em particularidade ao
Arcebispo de Paris, Christophe d‟Beaumont (um dos seus mais ferrenhos críticos da época), através de sua famosa “Carta à Beaumont”: “Se o homem é bom por sua natureza, como creio haver demonstrado, segue-se que assim permanece enquanto nada que lhe seja estranho o altere. E se os homens são maus, como se deram ao trabalho de me ensinar, segue-se que sua maldade chega-lhes de outro lugar; cerre-se, pois, a entrada ao vício e o coração humano será sempre bom. Com base nesse princípio, estabeleço a educação negativa como a melhor, ou antes, a única educação boa; faço ver como toda educação positiva, não importa como seja conduzida, segue um caminho oposto a seu objetivo, e mostro como se tende para o mesmo objetivo e como se chega a ele pelo caminho que tracei. Denomino educação positiva aquela que pretende formar o espírito antes da idade e dar à criança um conhecimento dos deveres do homem. Chamo de educação negativa aquela que procura aperfeiçoar os órgãos, instrumentos de nosso conhecimento, antes de nos dar esses próprios conhecimentos e nos preparar para a razão pelo exercício dos sentidos. A educação negativa não é ociosa, muito ao contrário. Não produz virtudes, mas evita os vícios; não ensina a verdade, mas protege do erro. Ela prepara a criança para tudo o que pode conduzi-la à verdade, quando estiver em condições de entendê-la, e ao bem, quando estiver em condições de amá-lo” (ROUSSEAU apud MARQUES, 2005, p. 57).
11
O Estado idealizado por Rousseau é constituído a partir de um pacto social que
surge através da vontade geral e representa o interesse comum do povo. Em razão
disso, a Soberania é exercida de forma restrita por esse mesmo povo, que vai traçar os
destinos do Estado. Por acreditar apenas na democracia direta e, portanto, ser contra a
representatividade política, Rousseau compreende que o poder soberano deve ser
exercido apenas pelos cidadãos que elaborarão as suas próprias leis. Para o autor, a
liberdade e a igualdade estão presentes na estrutura política de seu Estado, e,
portanto, surge como a finalidade de todo o sistema de legislação.
Em razão de tudo isso, na busca de perquirir de forma mais profunda o
conhecimento das obras em destaque, observando sempre o seu cunho político,
desenvolvemos a presente dissertação. Nessa esteira de raciocínio, dividimos o
estudo em três capítulos:
No primeiro capítulo, trataremos da tese hipotética de Rousseau acerca da
genealogia do homem – uma antropologia política –, que testifica as origens do
indivíduo, partindo do estado de natureza, onde prevalece a bondade natural humana,
até a formação do homem social, o qual foi de forma artificial moldado pela sociedade
civil emergente. Destacaremos também nesse ponto o abismo que se formou entre o
homem natural e o homem civilizado contaminado pela corrupção, e o significado da
desigualdade resultante dessa transformação, que se apresenta com um caráter social
nocivo.
No segundo capítulo, apresentaremos a obra pedagógica de Rousseau, voltada
para a formação do homem para a soberania popular. Demonstraremos que, na sua
obra o “Emílio”, o autor, ao privilegiar inicialmente o desenvolvimento dos sentidos do
educando, permite ao seu pupilo uma relação direta com tudo o que acontece ao seu
redor, relegando nesse momento a educação tradicional, em nome de um
desenvolvimento natural, sem que haja qualquer interferência do educador. A
formação moral será também objeto de ênfase, a partir do aprendizado dos princípios
12
éticos que devem nortear a sociedade idealizada pelo autor. Finalizaremos esse
capítulo delineando a educação política como preparação do educando e/ou do homem
para a proposta do Estado ideal rousseauniano.
No terceiro capítulo, descreveremos o Estado ideal de Rousseau, a partir do
pacto social, que acolherá o individuo instruído a partir da sua proposta pedagógica,
como forma de resgate do copo social. Abordaremos os conceitos de soberania,
liberdade, igualdade, e de justiça social, como peças fundamentais, pertencentes à
base da estrutura política do Estado ideal de Jean-Jacques Rousseau.
Por fim, concluímos o trabalho enfatizando que as obras ora estudadas fazem
parte do projeto político de Rousseau para a aplicação da justiça social, posto que seu
objetivo seja construir uma sociedade justa e igualitária.
1 A GENEALOGIA MÍTICA DO HOMEM EM ROUSSEAU
Com base na ideia da evolução da civilização, Rousseau buscou explicar a
origem da desigualdade entre os homens. Assim, para ele, no abismo existente entre o
estado natural, ou pré-cívico, e o cívico, está a raiz dos males que afligem a
humanidade.
Pela ilação, podemos afirmar que o autor pretende, por meio de conclusões
hipotéticas e bem elaboradas acerca da evolução da sociedade ao longo dos tempos,
desnudar a natureza humana, permitindo-nos encarar o grotesco caos de interações
heterogêneas que foram produzidas pela civilização.
Isso nos leva a presumir de forma enfática que o homem criou para si, diga-se de
passagem, uma nova morada pífia, à custa de algo que poderíamos chamar de
escassez gerada no absoluto, em nome de um consumismo desenfreado de bens
finitos. Nesse desiderato, a partir da leitura de Rousseau, somos levados a pensar que
os bens infinitos, dentre eles a compaixão, que caracteriza o estado de natureza, ou
pré-cívico, teriam sido sufocados em nome da civilização.
1.1 Estado de natureza ou estado pré-cívico
Com base no estudo desenvolvido, podemos perceber que um dos principais
elementos da estrutura da teoria política normativa, e dos princípios filosóficos do
direito político moderno em Rousseau, reside inicialmente nas relações entre natureza
e sociedade. Reputamos presente a raiz de todo o pensamento do autor em suas
primeiras obras de escol, que lançaram luzes na formação do seu ideal político, como
seu discurso “Sobre as Ciências e as Artes”, denominado de Primeiro Discurso, e
14
“Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens”, intitulado de
Segundo Discurso.
A partir da leitura do “Segundo Discurso”, que será a fonte primordial de estudo
nesse primeiro capítulo, podemos perceber a influência das ciências naturais e
históricas na formação das ideias de Rousseau, que traçou, de forma hipotética, uma
verdadeira antropologia política do homem.
Rousseau (1978b, p. 243) afirma que a natureza “manda em todos os animais”, e
eles lhe obedecem. Porém, o homem “considera-se livre para concordar ou resistir” ao
que dita essa mesma natureza. E é, sobretudo, na consciência dessa liberdade que,
segundo o autor, se mostra a espiritualidade da alma humana, uma vez que a força
física não responde por todos os atos humanos:
[...] a força física de certo modo explica o mecanismo dos sentidos e a
formação das ideias, mas no poder de querer, ou antes, de escolher e
no sentimento desse poder só se encontram atos puramente espirituais
que de modo algum serão explicados pelas leis mecânicas.
Tomando por base as notas de Rousseau, em especial a inserida na letra “b” no
final do seu Segundo Discurso, é possível percebermos o quanto o pensador valoriza a
natureza e a considera como fonte inesgotável e inspiradora de sabedoria que, se bem
direcionada, pode proporcionar o autoconhecimento. Portanto, o homem, enquanto um
ser natural, deveria voltar esse saber dado pela natureza, para a sua própria
interioridade e descobri-se a partir dele:
[...] raramente nos utilizamos desse sentido interior que nos reduz às
nossas verdadeiras dimensões e que distingue de nós tudo que não
nos pertence. No entanto, é desse sentido que devemos utilizar-nos se
desejarmos conhecer-nos; somente por ele poderemos julgar-nos
(ROUSSEAU, 1978b, p. 286).
Para Rousseau (1978b), a personalidade do homem foi alterada ao longo dos
tempos por uma série de causas sempre renovadas, que influenciaram na
15
descaracterização de sua personalidade simples, dando lugar a uma delirante. Sendo
assim, destaca o autor no prefácio do “Segundo Discurso”, para se conhecer os
homens é necessário saber como ele era na sua forma original e sua odisseia através
dos tempos, para no momento seguinte detectarmos a fonte das desigualdades entre
eles.
A figura do “homem selvagem” ou “natural”, idealizada por Rousseau, é a
tentativa desesperada de encontrar uma saída para as mazelas criadas pelo ser
humano no seio da sociedade emergente. O exemplo do “bom selvagem” é posto
nessa perspectiva como um instrumento de salvação através da utilização das forças
da natureza, aproveitando-se do modelo do que é divino, natural, piedoso e apático na
existência do homem natural.2
2 Só, desocupado e sempre próximo do perigo, o homem selvagem deve gostar de dormir e ter o sono
leve, como os animais que, pensando pouco, dormem, por assim dizer, todo o tempo em que não estão pensando. Constituindo a própria conservação quase sua única preocupação, as faculdades mais exercitadas deverão ser aquelas cujo objetivo principal seja o ataque e a defesa, quer para subjugar a presa, quer para defender-se de tornar-se a de um outro animal; os órgãos que só se aperfeiçoam pela lassidão e pela sensualidade devem, ao contrário, permanecer num estado de grosseria que deles excluirá qualquer delicadeza; ficando seus sentidos, nessa direção, divididos, terá o tato e o gosto de uma rudez extrema, e a vista, a audição e o olfato de uma enorme sutileza. É esse o estado animal em geral e também, de acordo com os relatos dos viajantes, o da maioria dos povos selvagens. O homem selvagem, abandonado pela natureza unicamente ao instinto, ou ainda, talvez, compensado do que lhe falta por faculdades capazes de a princípio supri-lo e depois elevá-lo muito acima disso, começará, pois, pelas funções puramente animais. Perceber e sentir será seu primeiro estado, que terá em comum com todos os outros animais; querer e não querer, desejar e temer, serão as primeiras e quase as únicas operações de sua alma, até que novas circunstâncias nela determinem novos desenvolvimentos. Apesar do que dizem os moralistas, o entendimento humano muito deve às paixões, que, segundo uma opinião geral, lhe devem também muito. É pela sua atividade que nossa razão se aperfeiçoa; só procuramos conhecer porque desejamos usufruir e é impossível conceber por que aquele, que não tem desejos ou temores, dar-se-ia a pena de raciocinar. As paixões, por sua vez, encontram sua origem em nossas necessidades e seu progresso em nossos conhecimentos, pois só se pode desejar ou temer as coisas segundo as ideias que delas se possa fazer ou pelo simples impulso da natureza; o homem selvagem, privado de toda espécie de luzes, só experimenta as paixões desta última espécie, não ultrapassando, pois, seus desejos a suas necessidades físicas. Os únicos bens que conhece no universo são a alimentação, uma fêmea e o repouso; os únicos males que teme, a dor e a fome. Digo a dor e não a morte, pois jamais o animal saberá o que é morrer, sendo o conhecimento da morte e de seus terrores uma das primeiras aquisições feitas pelo homem ao distanciar-se da condição animal (ROUSSEAU, 1978b, p. 242 - 244).
16
Na sua descrição do “homem selvagem”, Rousseau assevera inexistir uma
vontade premeditada de abandonar essa condição. De acordo com o pensador, o
“homem natural” vive em sintonia plena com a natureza, e não sente necessidade de
mudar seus hábitos simples. Segundo Rousseau (1978b, p. 245), nesse estado nada
agita a alma humana, e ele “entrega-se unicamente ao sentimento da existência atual
sem qualquer ideia do futuro, ainda que próximo, e seus projetos, limitados como suas
vistas, dificilmente se estendem até o fim do dia”. De forma um tanto quanto romântica,
ele descreve a simplicidade uníssona entre homem e natureza.
Para Rousseau (1978b, p. 251), o coração do “homem selvagem” sempre está em
paz, pois as faculdades que possui potencialmente não lhe permitem viver em lamúria.
Assim, o “homem natural” encontra unicamente no instinto toda a condição necessária
para viver. Nele, não existe qualquer espécie de relação moral ou de deveres comuns
entre os homens. Dessa forma, esses homens não poderiam ser “nem bons nem maus
ou possuir vícios e virtudes”.
A piedade, de acordo com o pensador, é um traço característico do homem no
estado de natureza, sendo, pois, um sentimento inato. Posto que o ser humano seja
afeito à piedade, ele não vive em estado de guerra, mas de bondade. Destarte, o
homem nasce bom, e a compaixão caracteriza-se como a sua única virtude natural. Ela
é o “movimento puro da natureza, anterior a qualquer reflexão” (ROUSSEAU, 1978b, p.
253). Sendo assim, a misericórdia natural do homem não necessita da razão para se
manifestar; ela é algo que exsurge naturalmente.
Por representar um sentimento natural, que, “no estado de natureza, ocupa o
lugar das leis, dos costumes e da virtude”, a piedade, segundo Rousseau (1978b, p.
254) concorre para a conservação de toda a espécie, uma vez que, pela atuação desse
sentimento, ninguém se sentirá tentado a subtrair do mais fraco algo que é essencial
para o seu sustento. Nesse seara destaca o pensador:
17
Ela nos faz, sem reflexão, socorrer aqueles que vemos sofrer; [...]
ninguém sentir-se tentado a desobedecer à sua doce voz; ela impedirá
qualquer selvagem robusto de tirar a uma criança fraca ou a um velho
enfermo a subsistência adquirida com dificuldade, desde que ele
mesmo possa encontrar a sua em outra parte; ela, em lugar dessa
máxima sublime da justiça raciocinada – Faze a outrem o que desejas
que façam a ti -, inspira a todos os homens esta outra máxima de
bondade natural, bem menos perfeita, mas talvez mais útil do que a
precedente – Alcança teu bem com o menor mal possível para outrem.
(Destaque original).
Concluindo a saga do “homem selvagem”, Rousseau finalmente nos apresenta
um quadro geral da vivência do homem natural, ao dispor que, no estado de natureza,
com as paixões caracterizadas de forma imperceptível, os homens eram mais
tendenciosos a se defender do mal que poderiam receber do que tentados a fazê-lo ao
seu próximo. Não conheciam a vaidade, a consideração, a estima ou o desprezo.
Também não possuíam a noção do teu e do meu, nem tampouco qualquer noção de
justiça. A imaginação que vinga gloriosa na alma do homem social está ausente no
coração selvagem.
A natureza produz a leveza dos impulsos humanos de forma singular, e o “homem
natural” entrega-se a ela com prazer, sem qualquer escolha ou resistência. Bastando-
se a si mesmo, condutor de luzes desse estado, só sentia suas verdadeiras
necessidades a partir daquilo que acreditava ter interesse de perceber. Sem educação
e nem progresso, a criatura confunde-se com o criador.
Segundo Rousseau (1978b, p. 255-258), a desigualdade é quase nula no estado
de natureza, pois estão presentes nesta a simplicidade e a uniformidade da vida animal
– os homens vivem da mesma maneira e reproduzem exatamente as mesmas ações.
Estão, portanto, expurgados os laços de servidão do estado de natureza, pois que a
dependência mútua dos homens e a necessidade recíproca que os unificam são
fatores alheios ao “homem natural”. O autor concilia a “bondade natural” com o que ele
resolveu chamar de “amor de si mesmo”.
18
O “amor de si mesmo” (amor de soi) é um conceito que tem a finalidade de
explicar o comportamento das criaturas animadas, em especial os seres humanos. No
“Segundo Discurso”, Rousseau explica que o “amor-próprio” difere do “amor de si
mesmo”, vez que este representa um verdadeiro sentimento natural, como o amor, a
gentileza e a beneficência, que obriga a todos os animais a cuidar de sua própria
preservação e que, em decorrência disso, cria no homem humanidade e virtude. Nas
notas no final do “Segundo Discurso”, especificamente na letra “o”, Rousseau (1978b,
p. 306-307) torna manifesto o conceito de “amor de si mesmo”:
Não se deve confundir o amor-próprio com o amor de si mesmo; são
duas paixões bastante diferentes tanto pela sua natureza quanto pelos
seus efeitos. O amor de si mesmo é um sentimento natural que leva
todo animal a velar pela própria conservação e que, no homem dirigido
pela razão e modificado pela piedade, produz a humanidade e a
virtude.
Na obra Emílio, ou Da Educação, Rousseau testifica que o “amor de si mesmo”
corresponde à fonte de nossas paixões e à origem de todas as outras. O pensador a
classifica como uma: “paixão primitiva, inata, anterior a todas as outras e de que todas
as outras não passam, em certo sentido, de modificações” (ROUSSEAU, 2004, p. 288).
O “amor de si mesmo”, de acordo com ele, nasce com o homem, que o carregará por
toda a sua vida.
Rousseau (2004, p. 288) destaca que a maioria das modificações que ocorrem
nesse sentimento têm causas estranhas, “sem as quais elas jamais ocorreriam”. Essas
mudanças são nocivas ao homem, pois diante delas ele se vê fora da natureza e entra
em contradição consigo mesmo. O amor de si, ao contrário, é sempre bom, está dentro
da ordem e zela por ela continuamente. Nesse contexto, diz o pensador: “é preciso,
portanto, que nos amemos para nos conservarmos, é preciso que nos amemos mais do
que qualquer outra coisa, e, por uma consequência imediata do mesmo sentimento,
amamos o que nos conserva”.
19
Dessumimos que, para Rousseau (2004), as paixões doces e afetuosas nascem
completamente do “amor de si”. Logo, se o “amor de si mesmo” de uma criatura a
coloca em confronto com outra, esse conflito seria necessariamente breve, pois não
serviria para fins de retaliação, já que estaria presente nesse aspecto a compaixão,
que é uma característica inata no homem natural, servindo de suporte para uma melhor
convivência com os outros. O “amor de si mesmo” não pretende sobrepor-se a outrem,
como forma de superioridade pessoal.
Dent (1996), ao analisar o tema, assevera que para Rousseau fazem parte do
“amor de si mesmo” duas outras faculdades benéficas que distinguem os seres
humanos dos animais: o livre-arbítrio e a perfectibilidade. O livre-arbítrio é posto como
algo para controlar os impulsos considerados nocivos, a fim de resguardar a conduta
humana. A perfectibilidade contribui para a evolução do homem, ou seja, para um
aperfeiçoamento pessoal, no momento em que este toma consciência que pode
manipular o seu meio ambiente com a finalidade do progresso da humanidade.
Segundo Dent (1996), Rousseau também louva o sentimento de autoestima do
indivíduo a partir do “amor de si mesmo”, sem, contudo, enfatizar o sentimento de
ascendência de um homem sobre o outro.
No “Segundo Discurso” Rousseau (1978b, p. 243) alerta que a perfectibilidade é
também uma maldição, fonte de nossos vícios, na medida em que o homem tem a
possibilidade de sustentar condições sociais que são nocivas para si mesmo, tornando-
o com o tempo um tirano de si e da natureza. Nesse duplo aspecto da perfectibilidade,
ela pode abrir caminhos para o vício e o erro, embora sem ela tampouco possa existir
virtude ou sabedoria. Com essas considerações, o autor pretende criar, a partir do
sentimento de consciência de si – através da construção do ser moral –, o fundamento
para que o homem venha a praticar ações virtuosas, com a finalidade do
reconhecimento do outro como um ser livre e isonômico.
20
Para Dent (1996, p. 37-39), o estado de natureza foi uma condição imaginada
pela maioria dos filósofos políticos como um marco inicial na tentativa de justificar a
criação de um Estado ideal, com um mínimo de garantia para a convivência
harmoniosa dos homens. Porém, segundo o autor, não há um consenso em torno do
conceito desse estado de natureza, sob o ponto de vista da doutrina política do
contratualismo.
Nesse contexto, Dent (1996) observa que Rousseau, assim como os demais
pensadores de seu tempo, também fundamentou o seu pensamento político-jurídico a
partir do seu conceito de “estado de natureza”, para servir de base para o resgate das
virtudes naturais do homem e como subsídio em prol de uma sociedade ideal.
Assim, de acordo com Dent (1996, p. 130), é em Rousseau que o “estado de
natureza”, como podemos observar nas passagens supra, refere-se a uma condição
pré-social do homem (condição hipotética), em que este manteria as suas
características originais de um ser pacífico, de vida simples, a partir da influência
primordial do seu meio ambiente.
Segundo o comentador supracitado, no “Segundo Discurso” de Rousseau, o “bom
selvagem” é aquele homem que habita o “estado de natureza”, que é imaginado como
um ser dócil, inocente, estranho à vaidade, deferência, estima e desdém. Não possuía
a ideia de “meu” e “teu”, não almejava o sentimento de vingança, pois não o conhecia,
nem tinha a noção de justiça; antes, possuía como principal característica a inclinação
para a virtude.
Dent (1996), no entanto, faz um alerta sobre a intenção de Rousseau no que se
refere ao “homem natural”, pois não pretende transformá-lo num verdadeiro homem
selvagem, ou restringi-lo no seio de uma floresta, ao contrário, a partir dessa origem
natural e razoável do homem, busca verdadeiramente que ele se torne um ser sensato
21
nas cidades, já que é possível viver em sociedade, desde que fiel a essa natureza
humana tão dignificante.
Com isso, no entendimento de Dent (1996, p. 131-132), Rousseau quer registrar a
sua marca teórica com a bondade natural do homem, e sua perversão e corrupção pela
sociedade. Assim, a tese do “amor de si mesmo”, considerado o amor primordial de
que defluem todas as outras paixões com certas modificações, está inserido, como já
foi visto, no decantado “estado de natureza” proposto pela teoria rousseauniana.
Nesse pensar, o homem no “estado de natureza” é não só motivado pelo “amor de
si mesmo”, mas também é piedoso, tem capacidade para a perfectibilidade e exercício
do livre-arbítrio. Em sua essência, o “homem natural” é dotado de uma integridade
básica que, segundo Rousseau, produz uma disposição inata para fazer o bem,
produzindo de forma consequente o seu bem-estar, o qual resplandece interagindo no
trato com os outros indivíduos (DENT, 1996).
1.2 Estado cívico
Para atingir o “estado cívico”, o homem, segundo Rousseau (1978b, p. 230),
passou por algumas adversidades, e até fatos alheios à sua vontade, que o
transformaram ao longo dos tempos no “homem artificial ou social”. A proposta original
do autor é que deixemos de lado todos os trabalhos científicos a respeito da evolução
humana para, a partir de uma meditação sobre as primeiras e mais simples operações
acerca da alma, chegarmos, como já foi visto, a dois princípios anteriores à razão: a
perfectibilidade e a compaixão.
A perfectibilidade, que no “estado de natureza” se colocava a favor do bem-estar
e da conservação do homem, no estado cívico produz outro efeito. Aqui, ela desponta
como algo maléfico. É a partir da tese sobre os efeitos maléficos da perfectibilidade no
22
“estado cívico”, que Rousseau define o quadro moral do homem civil, conforme
podemos depreender na letra “i” das notas no final do “Segundo Discurso”.
Para o pensador, o homem em sociedade, diferentemente do “homem natural”,
busca primeiramente atender a suas necessidades, e depois que consegue satisfazê-
las, passa a buscar o supérfluo, as delícias, as riquezas, os súditos e os escravos.
Nesse contexto, ele vive numa procura sem fim, na qual acaba por degradar-se. Não
há nesse estado, segundo Rousseau (1978b, p. 291-292), “um momento de descanso”.
Na segunda parte da obra “Discurso sobre a origem e os fundamentos da
desigualdade entre os homens”, Rousseau passa a analisar a história do declínio do
homem. Para o autor, esse aspecto decadencial e corrupto da natureza humana se
deu a partir do progresso, no contexto das necessidades mais emergentes dos
indivíduos, que se transmitiram de geração em geração, até se chegar à última fase do
“estado de natureza”, que é a propriedade privada, fundadora da sociedade civil.
Para Rousseau (1978b), o primeiro olhar lançado sobre si mesmo, a produção de
ferramentas, a fabricação de utensílios e a articulação de uma linguagem comum, foi
condicionante para o progresso humano. Porém, na medida em que houve um aumento
populacional, multiplicaram-se também os trabalhos, culminando com a primeira
revolução, que estabeleceu o surgimento da família como uma pequena sociedade.
Com a fixação dos grupos de famílias na terra, os homens aproximaram-se para
formarem, em cada região, uma nação particular, com os mesmos costumes, porém
sem regulamentos e leis, mas apenas contando com o mesmo modo de vida. A
passagem do “estado de natureza” para o “estado cívico” causou uma grande
transformação no agir humano, ocasionando uma verdadeira evolução da sociedade.
Nessa ocasião, ressalta o autor, aparecem os primeiros deveres de civilidade e os
vícios da corrupção social. (ROUSSEAU, 1978b).
23
Porém, para Rousseau (1978b, p. 264), essa evolução se deu de forma
escalonada, posto que no período de desenvolvimento do homem ocorreu uma posição
média (juventude do mundo) entre o “estado de natureza” e o “estado cívico” (que
suporta o “amor próprio”), reputada pelo autor como a época mais feliz e a mais
duradoura, a exemplo dos selvagens, que foram encontrados quase todos nesse
período.
Com o surgimento da propriedade e do trabalho, uma nova revolução se iniciou, e
os frutos do labor conduziram inevitavelmente o homem ao estado cívico. Segundo
Rousseau (1978b), isso aconteceu a partir do aparecimento da metalurgia e da
agricultura, no entanto, esses elementos deram causa à degradação humana, in verbis:
“Para o poeta foram o ouro e a prata, mas para o filósofo foram o ferro e o trigo que
civilizaram os homens e perderam o gênero humano.” (ROUSSEAU, 1978b, p. 265).
A partir do “estado cívico”, Rousseau traça um novo perfil do homem social, já
com todas as suas faculdades desenvolvidas3:
Aí estão todas as qualidades naturais postas em ação, estabelecidos a
posição e o destino de cada homem, não somente quanto à quantidade
dos bens e o poder de servir ou de ofender, mas também quanto ao
espírito, à beleza, à força e à habilidade, quanto aos méritos e aos
talentos e, sendo tais qualidades as únicas que poderiam merecer
consideração, precisou desde logo tê-las ou afetar possuí-las. Para
proveito próprio, foi preciso mostrar-se diferente do que na realidade se
era. Ser e parecer tornaram-se duas coisas totalmente diferentes.
Dessa distinção resultaram o fausto majestoso, a astúcia enganadora e
todos os vícios que lhes formam o cortejo. Por outro lado, o homem, de
livre e independente que antes era, devido a uma multidão de novas
necessidades, passou a estar sujeito, por assim dizer, a toda a
natureza e, sobretudo, a seus semelhantes dos quais num certo sentido
se torna escravo, mesmo quando se torna senhor: rico, tem
necessidade de seus serviços; pobre, precisa de seu socorro, e a
mediocridade não o coloca em situação de viver sem eles. É preciso,
3 Eis, pois, todas as nossas faculdades desenvolvidas, a memória e a imaginação em ação, o amor-
próprio interessado, a razão em atividade, alcançando o espírito quase que o termo da perfectibilidade de que é suscetível. (ROUSSEAU, 1978b, p. 267).
24
pois, que incessantemente procure interessá-los pelo seu destino e
fazer com que achem, real ou aparentemente, residir o lucro deles em
trabalharem para o seu próprio. Isso faz com que seja falso e artificioso
para com uns, e, para com outros, imperativo e duro, e o coloca na
contingência de iludir a todos aqueles de que necessita, quando não
pode fazer-se temer por eles ou não considera de seu interesse ser-
lhes útil. Por fim, a ambição devoradora, o ardor de elevar sua fortuna
relativa, menos por verdadeira necessidade do que para colocar-se
acima dos outros, inspira a todos os homens uma negra tendência a
prejudicarem-se mutuamente, uma inveja secreta tanto mais perigosa
quanto, para dar seu golpe com maior segurança, frequentemente usa
a máscara da bondade; em uma palavra, há, de um lado, concorrência
e rivalidade, de outro, oposição de interesses e, de ambos, o desejo
oculto de alcançar lucros a expensas de outrem. Todos esses males
constituem o primeiro efeito da propriedade e o cortejo inseparável da
desigualdade nascente (ROUSSEAU, 1978b, p. 267).
O “amor-próprio” (amour-propre), a que alude Rousseau no trecho de sua obra
supra, tem um significado importante na medida em que a explicação mais aceita do
termo reside no fato de que, logo que um ser humano estabelece qualquer tipo de
relação ou associação com o seu semelhante, isso provoca imediatamente nele um
sentimento de superioridade, que pode ser entendido como poder arbitrário e
despótico, no sentido de impor submissão ao outro, cuja injunção provoca uma
sensação de prazer e condição de primazia nesses relacionamentos (DENT, 1996).
Nesse aspecto, essa relação humana é permeada por desejos de dominação,
alimentada pela deferência e subordinação. A contraposição entre o “amor próprio” e o
“amor de si mesmo” é óbvia segundo o pensamento do autor, uma vez que o primeiro
apresenta-se como enganoso e ilusório e o segundo contribui para a serenidade do
homem. Assim, o “amor próprio” é fonte de corrupção e sofrimento pessoais, e também
de perversidade social. Rousseau conclui que a maldade moral é antinatural
(crueldade, rancor, e a cobiça) e se origina a partir de influências externas (DENT,
1996).
Vemos que a ideia de Rousseau, de que o homem é bom por natureza (amor de
si mesmo), realça a sua perspectiva de que, em contato com a sociedade, ou seja, em
25
associação com os outros, esse mesmo homem se corrompe, na medida em que
coloca obrigatoriamente em destaque o “amor-próprio”, louvando a sua influência. Isso
se deflui a partir da afirmação de que o ser humano moderno4, ou seja, o homem
social, vive em profundo conflito consigo mesmo e com os seus semelhantes (DENT,
1996).
De acordo com Dent (1996), apesar de o “amor próprio” surgir a partir da
associação humana, Rousseau nos apresenta quase que um antídoto a essa situação
calamitosa do homem social, pretendendo resgatá-lo dessa condição de predador
artificial, com uma proposta de sociedade construída a partir do benefício de todos –
transformando cada indivíduo numa parte de um todo maior – sustentada, como
veremos logo mais, por uma “vontade geral” que gera liberdade e igualdade,
habilitando-os a agirem harmonicamente no seio social, através da proposta contida na
perspectiva de suas obras Emilio, ou Da Educação, e Contrato Social.
Na visão de Rousseau, com a sociedade nascente, a partir dos avanços já
colacionados, surge a guerra de todos contra todos, de usurpações apoiadas
unicamente num direito precário e abusivo, adquirido apenas pela força. Com isso, o
homem foi conduzido inevitavelmente ao seio da sociedade civil, passando a conviver
numa luta entre ricos e pobres.
Nesse contexto, segundo Rousseau (1978b, p. 268), nasceram a dominação de
uns sobre os outros, a servidão, a violência e os roubos. Os ricos utilizavam-se do
braço escravo para subjulgar e dominar seus vizinhos, numa busca incessante pelo
poder. O pensador assim se expressa sobre esse momento:
Os ricos, de sua parte, nem bem experimentaram o prazer de dominar,
logo desdenharam todos os outros e, utilizando seus antigos escravos
para submeter outros, só pensaram em subjugar e dominar seus
4 No contexto desse trabalho, o homem moderno está inserido dentro da proposta do Iluminismo.
26
vizinhos, como aqueles lobos famintos que, uma vez comendo carne
humana, recusam qualquer outro alimento e só querem devorar
homens.
Essa dominação, no entanto, não tinha como suporte apenas o poder financeiro,
mas sustentava-se também na força física ou na necessidade. Assim, esses elementos
serviam de justificativa para o rompimento da igualdade reinante no estado natural e
afirmação do estado cívico, no qual a incipiente justiça era insuficiente para controlar a
desordem instalada, in verbis:
Assim, os mais poderosos ou os mais miseráveis, fazendo de suas
forças ou de suas necessidades uma espécie de direito ao bem alheio,
equivalente, segundo eles, ao de propriedade, seguiu-se à rompida
igualdade a pior desordem; assim as usurpações dos ricos, as
extorsões dos pobres, as paixões desenfreadas de todos, abafando a
piedade natural e a voz ainda fraca da justiça, tornaram os homens
avaros, ambiciosos e maus (ROUSSEAU, 1978b, p. 268).
Diante da inércia da justiça, destaca o pensador, “ergueu-se entre o direito do
mais forte e o do primeiro ocupante um conflito perpétuo que terminava em combate e
assassinatos”. Nesse contexto, a embrionária sociedade foi colocada em estado de
guerra. A incapacidade de retroceder ao estado natural e renunciar aos males
advindos com as novas conquistas levou o homem “às portas da ruína por não
trabalhar senão para sua vergonha, abusando das faculdades que o dignificam”
(ROUSSEAU, 1978b, p. 268).
Conforme Rousseau (1978b), na tentativa de se remediar tal situação, foi
encetado entre os homens um pacto social, que garantisse certa estabilidade na
incipiente sociedade. Na assertiva do autor, o homem foi ao encontro de seus grilhões
ao aderir a um pacto aparentemente libertário, porém, de cunho tendencioso. Com
isso, ele não se desvencilhou de seu jugo, ao tempo em que promoveu a paz social,
legitimou a propriedade privada, e na sequência ratificou as desigualdades já
existentes. Portanto, esse Estado emergente de aparência libertária foi fruto de um
pacto social enganoso.
27
A sociedade, a princípio, constituiu-se somente de algumas convenções
gerais que todos os particulares se comprometeram a observar e das
quais a comunidade se tornou fiadora perante cada um deles. Foi
necessário que a experiência demonstrasse como uma tal constituição
era fraca e como os infratores podiam facilmente evitar a acusação ou
o castigo das faltas, das quais somente o público deveria ser
testemunha e juiz; foi preciso que se iludisse a lei de mil modos, que os
inconvenientes e as desordens se multiplicassem continuamente para
que, por fim, se pensasse em confiar a particulares a perigosa custódia
da autoridade pública e se delegasse a magistrados o cuidado de fazer
observar as deliberações do povo (ROUSSEAU, 1978b, p. 271).
Em um pequeno comentário acerca da formação do corpo político, Rousseau
descreve no final do seu “Segundo Discurso” o que seria o prenúncio da tese esboçada
em sua obra, Contrato Social:
Sem entrar, nesse momento, nas pesquisas que ainda restam por fazer
sobre a natureza fundamental de qualquer governo, limito-me, seguindo
a opinião comum, a considerar aqui o estabelecimento do corpo político
como um verdadeiro contrato entre o povo e os chefes que escolhe,
contrato pelo qual as duas partes se obrigam à observância das leis
nele estipuladas e que formam os liames de sua união. Tendo o povo,
quanto às relações sociais, reunido todas as suas vontades numa só,
tornam-se todos os assuntos, sobre os quais essa vontade se exprime,
outras tantas leis fundamentais que obrigam todos os membros do
Estado sem exceção, regulamentando uma delas a escolha e o poder
dos magistrados encarregados de zelar pela execução das outras.
Esse poder se estende a quanto possa manter a constituição, sem
chegar a mudá-la (ROUSSEAU, 1978b, p. 275).
A obra de Rousseau não é apenas de cunho político, mas também moral, pois,
conforme já foi visto, o autor entende que a moral só se revelará no “estado cívico”.
Com isso, é evidente que a política está intrinsecamente ligada à moral. Ele apregoa
na obra Emílio: “É preciso estudar a sociedade pelos homens, e os homens pela
sociedade; quem quiser tratar separadamente a política e a moral nada entenderá de
nenhuma das duas.” (ROUSSEAU, 2004, p. 325).
O projeto de Rousseau reflete a sua busca pela natureza e/ou essência humana a
partir de uma reforma pedagógica e política, com a finalidade de revolucionar a
sociedade.
28
1.3 O abismo entre o homem natural e o homem civilizado – o
significado da desigualdade5
Antes de retornarmos a análise do “Segundo Discurso” no aspecto da
desigualdade, queremos apontar outras características encontradas sobre o tema a
partir do “Primeiro Discurso”. A tese de Rousseau nessa obra é tanto política quanto
moral, e denuncia o comprometimento interior dos homens com a aparência quando
destaca que as necessidades são o “fundamento da sociedade, [...] constituem seu
deleite”. Nessa seara, destaca o pensador, o amor sincero à condição de escravos se
sobrepõe ao sentimento de liberdade original:
Enquanto o Governo e as leis atendem à segurança e ao bem-estar
dos homens reunidos, as ciências, as letras e as artes, menos
despóticas e talvez mais poderosas, estendem guirlandas de flores
sobre as cadeias de ferro de que estão eles carregados, afogam-lhes o
sentimento dessa liberdade original para a qual pareciam ter nascido,
5 A desigualdade entre os homens é um tema bastante presente no pensamento ético e político de
Rousseau. Na gênese de suas ideias, segundo Dent (1996), podemos destacar como a primeira obra importante da sua maturidade, que aborda também o tema político, o ensaio denominado “Discurso sobre as ciências e as artes”, ou “Primeiro Discurso”, redigido em 1749, e publicado no ano seguinte (Un discours sur les sciences et les arts), com o qual obteve o primeiro lugar do concurso proposto pela Academia de Dijon, com a seguinte indagação: “O restabelecimento das ciências e das artes terá contribuído para aprimorar os costumes?”. De acordo com Dent (1996) Rousseau responde de forma negativa ao investigar a essência da infelicidade humana na vida social. Aponta a sociabilidade como a grande causa da corrupção entre os homens, que ao mesmo tempo, produzia injustiças e sofrimentos. Defende que as artes e as ciências prosperaram com frequência em sociedades que estavam na linha do declínio moral. Ao contrário, a moral mantinha o seu vigor em sociedades com pouca erudição. Ele vê, como fatores que incorporam a substância do vigor moral, a lealdade para com a pátria, a coragem para a sua defesa e a aplicação à vocações úteis. Ainda segundo Dent (1996), Rousseau reafirma que, nas sociedades mais avançadas, em que prospera a ociosidade, as pessoas obstinadas pelos seus méritos sentem a necessidade premente de exibir-se, e ao mesmo tempo impressionar os outros. Nessas sociedades, o aprendizado não tem por finalidade a busca do amor à verdade, mas apenas para adquirir notoriedade. Porém, Rousseau não repudia as produções dos verdadeiros gênios, como Newton e Descartes, vez que, segundo ele, esses mestres não buscavam a reputação e/ou exibicionismo em detrimento da verdade. Assim, os temas centrais do pensamento rousseauniano, como: a virtude republicana, o amor à pátria, o desejo de servir ao seu semelhante, a repulsa ao luxo, à ostentação e ao exibicionismo, bem como a perversão de atividades em nome da vontade de obter reputação e odiosa distinção, serão sempre abordados com realce como a base para o desenvolvimento de suas ideias nas principais obras (DENT, 1996).
29
fazem com que amem sua escravidão e formam assim o que se chama
povos policiados (ROUSSEAU, 1978a, p. 334).
O pensador deixa evidente a importância do cultivo da aparência quando tece
considerações acerca das prisões erguidas pelo homem para dar resposta às
necessidades que ele próprio criou:
A necessidade levantou os tronos; as ciências e as artes os
fortaleceram. Potências da terra, amai os talentos e protegei aqueles
que os cultivam. Povos policiados, cultivai-os; escravos felizes, vós
lhes deveis esse gosto delicado e fino com que vos excitais, essa
doçura de caráter e essa urbanidade de costumes, que tornam tão
afável o comércio entre vós, em uma palavra: a aparência de todas as
virtudes, sem que se possua nenhuma delas (ROUSSEAU, 1978a, p.
335).
O tema da desigualdade já começa a despontar no “Primeiro Discurso”6 de
Rousseau, quando ele denuncia que tal instituto foi incorporado entre os homens pela
supervalorização dos talentos, em detrimento das virtudes: “De onde nascem todos
esses abusos senão da funesta desigualdade introduzida entre os homens pelo
privilégio dos talentos e pelo aviltamento das virtudes?”. Nessa seara aduz o
pensador:
6 De acordo Falabretti (2009) o “Primeiro Discurso” guarda também sua importância, sobretudo, ao
considerar a crítica à alienação involuntária e à moralidade da aparência. Rousseau, segundo o autor em tela, comparece com censuras ferrenhas às instituições políticas de sua época, em especial ao sistema de educação, artes e ciências e ao comportamento moral vigente naqueles tempos. É a partir da análise de um grande número de acontecimentos históricos com o timbre da dissimulação e a consequente ausência da igualdade, e da liberdade, que deságuam na falta de transparência nas relações humanas, é que Rousseau vai repelir a conduta dos homens em sociedade, e a corrupção nas instituições, com essa visão pessimista da história (FALABRETTI, 2009). Dando importância a esses fatos, Rousseau constata que a história da humanidade está predestinada à degeneração, pois que é a própria história da corrupção dos homens – é o movimento negativo da história em que se destaca a aparência, ou seja, a moral da aparência. É necessário, alerta Falabretti (2009), destacar, porém, que o pensador não pretende afirmar que os homens em si são maus. A pedra de toque para a solução dessa questão estaria no exame da natureza dessa corrupção, em termos de se aquilatar se seria algo inerente ao próprio homem, ou um processo de transformação. Quanto a esse detalhe, Rousseau somente formulará o seu ideal de natureza humana, a partir do seu “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens” (Segundo Discurso). O “Primeiro Discurso” não pretende testemunhar como os homens eram ou deviam ser, mas apenas mostrar com clareza o que atualmente eles são e como vivem – como estão moldados internamente ao vício da sua sociabilidade abjeta (FALABRETTI, 2009).
30
Aí está o efeito mais evidente de todos os nossos estudos, a mais
perigosa de suas consequências. Não se pergunta mais a um homem
se ele tem probidade, mas se tem talento; nem de um livro se é útil,
mas se é bem escrito. As recompensas são prodigalizadas ao engenho
e fica sem glórias a virtude. Há mil prêmios para os belos discursos,
nenhum para as belas ações (ROUSSEAU, 1978a, p. 348).
Como um prenúncio das teses do “Segundo Discurso”, reportamo-nos a uma das
respostas dadas por Rousseau às objeções dirigidas a seu “Primeiro Discurso”, em
especial à refutação feita pelo rei da Polônia, o Duque de Lorena: Estanislau I
Leszczinsk (1682-1766), que, dentre muitos comentários, afirmara que o autor em tela
não havia sido claro quanto à ordem dos elos da corrente da causalidade em face da
cultura intelectual e do declínio moral da sociedade. Ao que este respondeu:
Eis como apresentaria essa genealogia. A primeira fonte do mal é a
desigualdade: da desigualdade saíram as riquezas, uma vez que as
palavras rico e pobre são relativas e em todas as partes em que os
homens forem iguais não haverá ricos nem pobres. Das riquezas
nasceram o luxo e a ociosidade; do luxo nasceram as belas-artes e, da
ociosidade, as ciências (ROUSSEAU, 1978a, p. 386).
Na obra “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os
homens”, Rousseau amplia a perspectiva histórica, aprofundando a sua análise
hipotética sobre o tema da antropologia política. Sendo assim, o pensador dá vazão,
conforme ele mesmo deixa claro, a certa misantropia ao narrar o progresso da
humanidade.
Com esse aporte à sua teoria política, não podemos deixar de registrar uma das
passagens da sua última obra, totalmente biográfica, denominada “Os devaneios do
caminhante solitário”, com o formato de dez “caminhadas”, em que Rousseau descreve
seus pensamentos e sentimentos, sem farisaísmo, com o toque de melancolia, em que
assim descreveu na “sétima caminhada”:
Enquanto os homens foram meus irmãos, fiz projetos de felicidade
terrena; sendo esses projetos sempre relativos ao todo, eu só podia ser
feliz com a felicidade pública; a ideia de uma alegria particular apenas
tocou meu coração quando vi meus irmãos procurando a sua em minha
31
desgraça. Para não odiá-los, foi preciso fugir-lhes; assim, me
refugiando junto à mãe comum, procurei em seus braços escapar dos
golpes de seus filhos, me tornei solitário ou, como dizem, insociável e
misantropo, porque a mais selvagem solidão me parece preferível à
companhia dos maus, que só se alimentam de traições e de ódio
(ROUSSEAU, 2008a, p. 93).
Feitos esses esclarecimentos, lembramos que, no prefácio do “Segundo
Discurso”, Rousseau admite que o mais útil e o menos avançado de todos os
conhecimentos humanos parece ser a ciência que o homem tem sobre si mesmo. Com
isso, reafirma o elemento fundador de sua tese sobre o “estado de natureza”, qual seja:
que se prime pelas informações acerca da saga humana. Percebemos, pois, que,
através de conjecturas, o pensador tende a demonstrar que o homem sofreu ao longo
do tempo grandes influências externas, que interferiram na sua bondade natural,
transformando-o em mentor das desigualdades que construiu para si. Assim, não é
sem surpresa que denota que o homem transformou-se no flagelo do próprio homem:
Como a estátua de Glauco, que o tempo, o mar e as intempéries
tinham desfigurado de tal modo que se assemelhava mais a um animal
feroz do que a um deus, a alma humana, alterada no seio da sociedade
por milhares de causas sempre renovadas, pela aquisição de uma
multidão de conhecimentos e de erros, pelas mudanças que se dão na
constituição dos corpos e pelo choque contínuo das paixões, por assim
dizer, mudou de aparência a ponto de tornar-se quase irreconhecível e,
em lugar de um ser agindo sempre por princípios certos e invariáveis,
em lugar dessa simplicidade celeste e majestosa com a qual seu autor
a tinha marcado, não se encontra senão o contraste disforme entre a
paixão que crê raciocinar e o entendimento delirante (ROUSSEAU,
1978b, p. 227).
Explorando a essência desse indivíduo quase incognoscível, e a espiritualidade
desse ser, defendendo os critérios éticos acima de todos os valores, com o firme
propósito da busca da verdadeira lei natural, separando o que há de original e de
artificial na natureza do homem, Rousseau então verbaliza:
O que há de mais cruel ainda é que, todos os progressos da espécie
humana distanciando-a incessantemente de seu estado primitivo,
quanto mais acumulamos novos conhecimentos, tanto mais afastamos
os meios de adquirir o mais importante de todos: é que, num certo
32
sentido, à força de estudar o homem, tornamo-nos incapazes de
conhecê-lo (ROUSSEAU, 1978b, p. 227).
Rousseau (1978b, p. 228) alerta que através dessas mudanças sucessivas da
constituição humana, é que devemos procurar a gênese da desigualdade entre os
homens:
É fácil de ver que nessas mudanças sucessivas da constituição
humana é que se deve procurar a origem primeira das diferenças que
distinguem os homens, os quais, na opinião comum, naturalmente tão
iguais entre si quanto o eram os animais de cada espécie antes que
várias causas físicas tivessem introduzido em algumas espécies as
variedades que nelas notamos.
Essas mudanças, para o pensador, nem se deram a um só tempo e nem de
maneira semelhante em todos os indivíduos. Segundo Rousseau (1978b, p. 228), cada
pessoa, a seu tempo, foi “se aperfeiçoando” ou “se deteriorando” e “adquirindo várias
qualidades, boas ou más, que de modo algum eram inerentes à sua natureza”. Eis,
portanto, o “que determinou entre os homens a primeira fonte de desigualdade.”
Rousseau (1978b, p. 225) admite na espécie humana dois tipos de desigualdade,
quais sejam: a desigualdade natural ou física e a desigualdade moral ou política. A
primeira “consiste na diferença das idades, da saúde, das forças do corpo e das
qualidades do espírito e da alma”; a segunda, “pode-se chamar de desigualdade moral
ou política, porque depende de uma espécie de convenção e que é estabelecida ou,
pelo menos, autorizada pelo consentimento dos homens”.
Para o autor, é inútil questionar qual a fonte da desigualdade natural, posto que
“a resposta estaria enunciada na simples definição da palavra”. Também é
inconcebível se buscar uma ligação entre ambas, pois seria levantar questões que
envolvem juízos de valores (ROUSSEAU, 1978b, p. 225).
33
Fortes (1989) destaca que, para Rousseau, a desigualdade é a primeira fonte do
mal na civilização. Ele lembra que o pensador a considera como um fato não natural,
ou seja, “ela não é autorizada pela lei natural”, mas fruto da evolução da sociedade.
Assim, é correto afirmar que, no “estado de natureza”, o homem não mantém relações
de desigualdade com o seu próximo.
Destarte, tomando por base o pensamento de Rousseau, Fortes (1989, p. 43)
destaca que a desigualdade foi socialmente produzida no percurso da evolução
histórica da civilização. Segundo o comentador, a partir da leitura de Rousseau, “é até
possível marcar o momento de sua aparição e determinar sua causa com precisão”.
Para Fortes (1989), o que fez Rousseau no seu “Segundo Discurso” foi um
esboço da gênese da desigualdade, mostrando como, pouco a pouco, ela se formou e
se incorporou na sociedade, dessecando suas diferentes etapas, desde a sua origem,
perpassando por suas diversas fases, e mostrando “como tudo isso se relaciona com
os demais fatos e fenômenos característicos da vida em sociedade” (FORTES, 1989, p.
43).
Rousseau (1978b, p. 263) destaca que a estima pública foi o primeiro passo tanto
para a desigualdade quanto para o vício, pois, na medida em que a sociedade evoluiu,
a cobiça também cresceu e o homem começou a olhar o outro “e a desejar ser ele”.
Esse fenômeno desencadeou a valorização da estima pública. Com isso, nascem de
um lado a vaidade e o desprezo, e, de outro, a vergonha e a inveja.
Rousseau, em seu empenho de conhecer as raízes da desigualdade traça, pari
passu, a marcha de sua institucionalização na civilização. Segundo o pensador,
podemos encontrar nas leis o primeiro termo que institui as diferenças entre os
homens, uma vez que elas se fizeram presentes para conservar suas aquisições ao
longo do tempo. O segundo foi a criação dos magistrados, dando para os homens um
34
Governo. A cristalização das desigualdades se dá, por fim, com o despotismo, que
assegura o surgimento do senhor e do escravo:
Se seguirmos o processo da desigualdade nessas diferentes
revoluções, verificaremos ter constituído seu primeiro termo o
estabelecimento da lei e do direito de propriedade; a instituição da
magistratura, o segundo; sendo o terceiro e último a transformação do
poder legítimo em poder arbitrário. Assim, o estado de rico e de pobre
foi autorizado pela primeira época; o de poderoso e de fraco pela
segunda; e, pela terceira, o de senhor e escravo, que é o último grau
da desigualdade e o termo em que todos os outros se resolvem, até
que novas revoluções dissolvam completamente o Governo ou o
aproximem da instituição legítima (ROUSSEAU, 1978b, p. 277).
Portanto, segundo o pensador, o último grau da desigualdade ergue-se a partir da
desordem da sociedade artificial e/ou civil criada pelo homem.
Passada a etapa do segundo Discurso, em que Rousseau diagnostica o indivíduo
como um animal celerado no seio da sociedade civil que ele criou para si mesmo, é
chegada a hora de transformar o homem. Essa transformação se dá através da
proposta de educação para a formação do novo cidadão, o qual ficará imune à
perversão, conforme é mostrado no Contrato Social. Nessa perspectiva, o autor
privilegia a soberania como fonte inesgotável da igualdade e liberdade do ser.
2 A FORMAÇÃO DO HOMEM PARA A SOBERANIA POPULAR
Nesse capítulo analisaremos, de forma sucinta a obra Emílio, ou Da Educação
(Émile, ou De l‟éducation), por entendermos que ela, à medida que prima pela
preparação do homem para exercer a sua soberania no seio da novel sociedade, se
constitui numa base para a compreensão do Contrato Social. Nessa perspectiva,
Rousseau considerou, principalmente: as relações físicas com os outros seres, as
morais com os homens e as civis com os concidadãos. Esse entendimento pode ser
depreendido da leitura do Livro V, que trata das viagens de Emílio7. Nele, o pensador
revela de forma clara o método que deve ser empregado para a formação do homem
para a soberania popular.
Na doutrina rousseauniana, de acordo com Bervique (2004, p. 1), existem três
fontes de educação: a natureza, os homens e as coisas. A primeira consiste no
desenvolvimento interno das faculdades e dos órgãos – “a educação vem de dentro
para fora; a educação dos homens consiste em ensinar o uso desse desenvolvimento;
e a educação das coisas é o ganho da própria experiência sobre os objetos que afetam
cada indivíduo”. Segundo a autora:
[...] as três educações são necessárias para levar à perfeição; mas,
como a educação dos homens depende de nós, a das coisas depende
7 Emílio é um menino rico, sadio, robusto, órfão (ou entregue pelos pais a um preceptor, porque eles só
poderiam educar o filho dentro da ordem vigente, justamente o que se queria evitar), de inteligência comum e que, bem orientado por Jean-Jacques, iria promover a reforma da sociedade. Rousseau orientou a educação de Emílio no sentido de fazê-lo, antes de tudo, um homem. O estado ideal, pretendido por Rousseau, não poderá ser atingido, entretanto, se Emílio ficar exposto às más influências da sociedade corrupta, pois, vivendo no meio do vício, não haverá possibilidade de seu coração conservar-se puro. Impossível levá-lo da bondade natural à prática da virtude, se ficar exposto à maldade adquirida pelos homens no contato com a coletividade injusta, dominada pelo intelectualismo, pela política e pela moral convencionais. Além disso, não há liberdade verdadeira na sociedade; ela só existe na natureza. Para evitar o cercear da liberdade humana, que anula qualquer tentativa de desenvolvimento harmonioso do homem, pois faz com que se desintegrem e degenerem suas tendências primitivamente boas, faz-se necessário separar o discípulo da sociedade e fazer da natureza sua única educadora e mestra. (BERVIQUE, 2004, p.1).
36
em parte e a da natureza é independente, o preceptor tem a obrigação
de orientar as duas primeiras para esta última (ROUSSEAU, 1968, p.
11 apud BERVIQUE, 2004, p.1).
De acordo com Bervique (2004, p.1), pela leitura da obra, podemos observar que
“há nessa concepção de educação geral uma profunda diferença da educação da
época”. Dessa forma, cada capítulo do “Emílio”, que se divide no total de 05 (cinco)
Livros, nomeará as respectivas idades que farão parte de determinadas etapas de
desenvolvimento do homem. Veja-se de forma detalhada cada uma dessas fases de
formação.
2.1 As relações físicas com os outros seres
Rousseau (2004) afirma que as primeiras condições do homem ao nascer são a
miséria e a fraqueza. Com isso, seus primeiros sons reduzem-se à queixa e ao choro.
Desse choro nasce a primeira relação do homem com tudo o que o cerca. Nesse
sentido, assegura o pensador, é que se inicia o primeiro elo da longa cadeia de que é
formada a ordem social, tendo início o processo de interação homem/mundo.
Para Rousseau (2004, p. 15), na construção desse processo de interação do
homem com o mundo, a educação ocupa um lugar de destaque; por isso, a instrução
da criança se inicia já nos primeiros dias de seu nascimento, quando ela começa a
agir, a fazer uso de seus órgãos, e dos seus sentidos. Nesse sentido, aduz:
“Começamos a nos instruir quando começamos a viver; nossa educação começa junto
conosco; nosso primeiro preceptor é a nossa ama de leite”. Porém, essa educação
segue etapas determinadas pela idade, e cada momento da vida da criança
corresponde a um ciclo educativo.
Cabral (2011, p.1), analisando o projeto educacional de Rousseau, classifica a
educação proposta pelo pensador em quatro períodos, a saber:
37
1. O primeiro período vai de 0 a 5 (zero a cinco) anos, correspondendo
a uma vida puramente física, apta a fortificar o corpo sem forçá-lo;
período espontâneo e orientado graças, notadamente, ao aleitamento
materno;
2. O segundo período vai de 5 aos 12 (cinco a doze) anos e é aquele
no qual a criança desenvolve seu corpo e seu caráter no contato com
as realidades naturais, sem intervenção ativa de seu preceptor;
3. O preceptor intervém mais diretamente no terceiro período, que vai
de 12 a 15 (doze a quinze) anos, período no qual o jovem se inicia,
essencialmente pela experiência, à geografia e à física, ao mesmo
tempo em que aprende uma profissão manual ou ofício;
4. Dos 15 aos 20 (quinze aos vinte) anos compreende-se o quarto
período, em que o homem floresce para a vida moral, religiosa e social.
De acordo com Cabral (2011), este é o modelo básico de educação que
Rousseau propõe para substituir a educação tradicional que, em nome da civilização e
do progresso, obriga os homens a desenvolverem na criança a formação apenas do
intelecto em detrimento da educação física, do caráter moral e da natureza própria de
cada indivíduo. Porém, no contexto do trabalho ora desenvolvido, adotaremos apenas
três períodos educacionais: o primeiro, que vai de 0 a 5 anos; o segundo, de 5 aos 12
anos; e, o terceiro, a partir dos 12 anos até a idade adulta, quando o educando já se
tornou um homem e passa a viver em sociedade.
O primeiro ciclo, ou período, da educação tem início no âmbito familiar, numa
educação doméstica, seguindo sempre a marcha da natureza, visando à formação de
um homem virtuoso, preservando o máximo possível suas qualidades naturais, para
que ele não transgrida seus princípios em nome dos vícios e da imoralidade da
sociedade corrompida. À medida que a criança cresce e aumentam suas capacidades
físicas e intelectuais, aumentará também seu nível do conhecimento.
Assim, à medida que o ser sensitivo se torna ativo, desenvolve seu sentido
sinestésico e “passa a ter discernimento proporcional às suas forças; e é somente com
a força que excede aquela de que precisa para conservar-se que se desenvolve nele a
faculdade especulativa própria para empregar esse excesso de força em outros usos”.
Nesse contexto, tem-se o exercício contínuo do corpo e dos sentidos, os quais são
38
instrumentos da inteligência e devem fazer parte da formação da criança, com a
finalidade de ensiná-la a pensar. Nesse sentido aduz o pensador:
Quereis, então, cultivar a inteligência de vosso aluno; cultivai as forças
que ela deve governar. Exercitai de contínuo seu corpo; tornai-o
robusto e sadio, para torná-lo sábio e razoável; que ele trabalhe, aja,
corra e grite, esteja sempre em movimento; que seja homem pelo vigor,
e logo o será pela razão. (ROUSSEAU, 2004, p. 137)
Essa formação, porém, não é encontrada nos livros; ela é fruto das experiências
diárias da criança. Nesse contexto, Rousseau (2004, p. 148) alerta para a necessidade
de se dispensar especial atenção aos aprendizados adquiridos pelos sentidos, pois,
“como tudo o que entra no entendimento humano vem pelos sentidos, a primeira razão
do homem é sensitiva; é ela que serve de base para a intelectual”; e, no momento
seguinte, destaca: “nossos primeiros mestres de filosofia são nossos pés, nossas
mãos, nossos olhos”. Dessa forma, “as primeiras faculdades que se formam e se
aperfeiçoam no indivíduo são os sentidos”. Portanto, ressalta o pensador, deveríamos
cultivá-las, pois “são elas que nos ensinam a bem julgar.” (ROUSSEAU, 2004, p. 160).
Portanto, para Rousseau (2004, p. 127-128), nessa fase, o uso de leitura pelo
educando pode, perfeitamente, ser descartado, a fim de que ele obtenha uma formação
prática. Nesse sentido, destaca:
Sem estudar nos livros, a espécie de memória que uma criança pode
ter não permanece por isso ociosa. Tudo o que ela vê, tudo o que ouve
a impressiona e ela lembra; guarda em si mesma o registro das ações e
das palavras dos homens, e tudo o que a rodeia é o livro no qual, sem
perceber, ela enriquece continuamente sua memória, enquanto espera
que seu juízo possa aproveitá-lo.
Nesse contexto, Rousseau (2004, p. 72-73) defende a humanização da educação
da criança sem as superficialidades da tradicional, que quer torná-la adulta antes do
tempo. Na verdade, ele clama pelo amor à infância e pela preservação da natureza do
infante, na medida em que alerta para a necessidade de se “favorecer as brincadeiras,
seus prazeres, seu amável instinto” e “amar a infância”:
39
Quem de vós não teve alguma vez saudade dessa época em que o riso
está sempre nos lábios, e a alma está sempre em paz? Por que quereis
retirar desses pequenos inocentes o gozo de um tempo tão curto que
se lhes foge, e de um bem tão precioso, de que não poderiam abusar?
Por que quereis encher de amargura e de dores esses primeiros anos
tão velozes, que não mais voltarão para eles, assim como não voltarão
para vós? Não fabriqueis remorsos para vós mesmos retirando os
poucos instantes que a natureza lhes dá. Assim que eles puderem
sentir o prazer de existir, fazei com que o gozem; fazei com que, a
qualquer hora que Deus os chamar, não morram sem ter saboreado a
vida.
Destarte, nessa segunda fase da vida, embora ela ofereça muitos perigos e as
experiências marquem o homem para sempre, de acordo com o pensador, ainda deve
vigorar a educação natural. Esse é o momento em que a criança começa a falar e
acaba a infância. Aqui, ela deve tomar as primeiras lições de coragem, para suportar
as dores do corpo e aprender o significado do sofrimento. Nesse sentido, aduz
Rousseau (2004, p. 70):
É nessa idade que se tomam as primeiras lições de coragem e,
suportando sem pavor as dores leves, aprende-se aos poucos a
suportar as grandes.
Longe de estar atento a evitar que Emílio se machuque, eu ficaria muito
aborrecido se ele nunca se ferisse e crescesse sem conhecer a dor.
Sofrer é a primeira coisa que ele deverá, e a que ele terá maior
necessidade de saber.
Para além de uma filosofia do sofrimento, o que o pensador busca com essa
afirmativa é nos despertar para a importância das experiências vividas pela criança,
que resultarão em conquistas adquiridas a partir de sua formação natural, que, por
intermédio da “educação negativa”, a tornarão um novo ser humano, um novo sujeito
social, que deve se relacionar em paz com a sociedade. Bervique (2004, p. 1), tecendo
considerações acerca do que Rousseau convencionou chamar de “educação negativa”,
aduz:
Deve-se entender a concepção rousseauniana de educação negativa,
não como uma ociosidade perniciosa, mas como o aproveitamento das
ocasiões e do tempo para evitar que os vícios se implantem na criança,
que ela adquira maus hábitos, ou conceitos e noções falsas.
40
O que caracteriza a “educação negativa”, portanto, é a formação natural do
homem. Uma educação que deve oferecer as bases do amplo processo formativo,
capaz de preparar a criança para tornar-se progressivamente um futuro homem,
livremente submetido à vontade geral republicana. Nesse sentido, afirma no Livro I, do
Emílio: “Para formar esse homem raro, que temos de fazer? Muito, sem dúvida: impedir
que algo seja feito” (ROUSSEAU, 2004, p. 14).
Assim, não se deve ensinar a virtude ou a verdade, mas preservar o coração do
vício e o espírito do erro. Os ensinamentos apreendidos nessa fase, segundo o
pensador, exercerão influência até bem próximo ao início da vida adulta, quando só
nesta ocasião o homem aprenderá a viver em sociedade, com base nos princípios de
Direito Político.
Destarte, no início do Livro I, a fim de guiar a primeira educação do seu
educando, Rousseau evidencia o uso da bondade natural da criança a partir de um
ensinamento de acordo com a “natureza”. É o começo da “educação negativa”, que
rechaça a tradicional com os seus vícios sociais, que não respeita etapas.
Numa importante passagem do Livro I, Rousseau demonstra claramente o mérito
da natureza e da educação para a formação da criança e, consequentemente, do
homem. No entanto, ele lembra que a educação é um hábito advindo da natureza
humana, que é comandada pela razão. Sendo assim, ao se fazer referência ao
processo educacional de Emílio, questões pertinentes à natureza humana e à
sociedade não poderiam ser afastadas.
Deste modo, a questão do “homem natural” é de extrema relevância quando se
pensa numa educação de acordo com a natureza. Até porque seu objetivo maior é
formar um homem civil, que viverá numa sociedade na qual a liberdade e a igualdade
serão uma constante, ou seja, ela não pretende lançar no mundo um cidadão
corompido pelas instituições. Nesse sentido, aduz Bervique (2004, p. 1):
41
Rousseau considera impossível formar o homem e o cidadão ao
mesmo tempo, porque as instituições formais da sociedade são
incompatíveis com a natureza e o cidadão é um indivíduo artificial. Por
isso, Emílio será educado para ser homem e não cidadão, para viver na
humanidade e não nesta ou naquela sociedade. Ou, em outras
palavras, Emílio será um homem natural preparado para viver em
estado social. Depois de ser educado de maneira correta pela natureza,
Emílio será levado a viver em sociedade, para receber dela o que lhe
faltar e para agir no sentido de restaurá-la.
Ao nos depararmos com a afirmação rousseauniana de que “é preciso optar entre
fazer um homem ou um cidadão, pois não se podem fazer os dois ao mesmo tempo”,
percebemos que o pensador resgata mais uma vez seu programa de educação, o qual
enfatiza que ela deve seguir, conforme já apontamos anteriormente, as diversas fases
da vida do educando (de acordo com a sua idade), sem suprimir nem antepor etapas,
sob pena de tornar o ser um mero instrumento da educação tradicional, que o torna
antecipadamente num adulto com os vícios da sociedade que o corrompe. Portanto, a
educação de acordo com a natureza terá o seu limite quando o ente estiver pronto para
a vida adulta, momento em que será também desde logo inserido na formação política.
(ROUSSEAU, 2004, p. 11).
Nesse ponto, mister que se ressalte, entendemos que as etapas de formação
proposta por Rousseau, ao definir e, portanto, diferençar o homem natural do homem
civil, são uma antecipação de sua tese acerca do contrato social na teoria do Direito
Político. Senão, vejamos:
O homem natural é tudo para si mesmo; é a unidade numérica, o inteiro
absoluto, que só se relaciona consigo mesmo ou com seu semelhante.
O homem civil é apenas uma unidade fracionária que se liga ao
denominador, e cujo valor está em sua relação com o todo, que é o
corpo social. As boas instituições sociais são as que melhor sabem
desnaturar o homem, retirar-lhe sua existência absoluta para dar-lhe
uma relativa, e transferir o eu para a unidade comum, de sorte que
cada particular já não se julgue como tal, e sim como uma parte da
unidade, e só seja perceptível no todo. (ROUSSEAU, 2004, p. 11-12).
42
Dito isto, retornemos à questão anterior, na qual Rousseau (2004, p. 32) assevera
que é a partir da educação natural que o homem se prepara para enfrentar as
adversidades da vida. De acordo com o pensador, “a educação natural deve tornar um
homem próprio para todas as condições humanas”, e essa formação só é conseguida
no campo, longe das cidades, abismos da espécie humana.
A socialização, assim, desponta como algo pernicioso, pois, para o pensador,
quanto mais os homens se reúnem, mais eles se corrompem. Rousseau (2004, p. 43)
assevera que: “de todos os animais, o homem é aquele que menos pode viver em
rebanho”; por tal motivo, “as doenças do corpo, assim como os vícios da alma, são o
efeito infalível dessa associação muito numerosa”. A perniciosidade dessa convivência
consiste no fato de que, ao comparar-se demasiadamente com os outros e ao deixar-se
guiar pela representação e fingimento dos sentimentos, o ser humano constrói uma
pseudoautenticidade, perdendo-se a si mesmo.
Essa análise reforça o papel da educação que, neste contexto, torna-se
indispensável para prevenir, no coração humano, a depravação que nasce do alto
índice de artificialidade das novas necessidades gestadas pela sua sociabilidade.
Porém, somente a educação natural tem a capacidade de evitar esse caos. Assim,
mais tarde, quando já houver a formação do indivíduo, ou a consolidação de uma
espécie de alicerce educacional, deve-se inseri-lo na vida em sociedade, momento em
que, supostamente, ele estará pronto para conviver com a degeneração e a corrupção
próprias do estado civil, sem se deixar contaminar. É o momento da terceira fase da
educação.
A terceira fase do ciclo da educação trata prioritariamente da relação entre as
pessoas e, de modo especial, de suas questões morais. Portanto, uma educação
propriamente moral começa mais tarde, só no período da adolescência. Nessa fase,
Rousseau (2004, p. 211) aponta a chegada da força na criança, que consegue
43
ultrapassar os seus desejos. É dessa forma que ele apresenta o terceiro estado da
infância:
Embora até a adolescência todo o curso da vida seja um tempo de
fraqueza, há um momento na duração desta primeira idade em que,
tendo o progresso das forças ultrapassado o das necessidades, o
animal que cresce, ainda absolutamente fraco, torna-se relativamente
forte. Nem todas as suas necessidades estando desenvolvidas, suas
forças atuais são mais do que suficientes para satisfazer as que possui.
Como homem, ele seria fraquíssimo; como criança, é muito forte.
Rousseau esclarece que essa fase “é o tempo dos trabalhos, da instrução, dos
estudos”. Esse fato, no entanto, advém da necessidade da própria natureza da criança,
não sendo, portanto, uma imposição do preceptor. Nesse aprendizado, não se trata de
saber o que existe, mas apenas o que é útil para o educando; firma-se a fase da
educação útil. Passa-se da lei da necessidade para a utilidade (ROUSSEAU, 2004, p.
213).
Embora nessa fase se valorize a educação útil, caracterizada pelo contato com a
ciência através das experiências, dos estudos especulativos (com o uso de aparelhos
inventados para facilitar o desenvolvimento das pesquisas cientificas), Rousseau
(2004) não descuida da importância da educação de acordo com a natureza. Afinal,
fazendo uso de um dos sentidos, através da observação generalizada dos fatos, em
conjunto com o conhecimento científico, o educando obtém o sucesso almejado.
Assim, segundo Rousseau (2004, p. 265), o limitado conhecimento político que a
criança possui permite que o educador o direcione para uma profissão:
Quero absolutamente que Emílio aprenda uma profissão. Uma
profissão honesta, pelo menos, direis? O que significa essa expressão?
Não é honesta toda profissão que seja útil ao público? Não quero que
ele seja bordador, nem dourador, nem envernizador, como o fidalgo de
Locke; não quero que ele seja nem músico, nem comerciante, nem
fazedor de livros. Com exceção dessas profissões e das outras que se
lhes assemelham, escolha a que quiser; não pretendo incomodá-lo em
nada. Prefiro que seja sapateiro a poeta; prefiro que pavimente as
estradas a que faça flores de porcelana. Mas, direis, os arqueiros, os
44
espiões, os carrascos são pessoas úteis. Só depende do governo que
não o sejam.
Outro aspecto que deve dirigir a vida do educando é o pertinente à previdência.
Rousseau (2004, p. 232) explica que a lei da necessidade, sempre renascente no
coração humano, “cedo ensina o homem a fazer o que não gosta para prevenir um mal
que lhe desagradaria ainda mais. Este é o uso da previdência, e da previdência bem
ou mal ordenada nasce toda a sabedoria ou toda miséria humana”.
Finalmente, terminadas as etapas da aprendizagem, é hora do educando viver em
sociedade:
Dir-me-ão que estou saindo da natureza, mas não creio. Ela escolhe os
seus instrumentos e os afina, não pela opinião, mas pela necessidade.
Ora, as necessidades mudam conforme a situação dos homens. Há
muita diferença entre o homem natural que vive no estado de natureza
e o homem natural que vive no estado de sociedade. Emílio não é um
selvagem ao ser relegado aos desertos: é um selvagem feito para
morar nas cidades. É preciso que saiba encontrar nelas o necessário,
tirar partido dos habitantes e viver, senão como eles, pelo menos com
eles (ROUSSEAU, 2004, p. 277-278).
Porém, segundo Rousseau (2004), as fases do aprendizado não se encerram
aqui, posto que o homem seja um ser social e, portanto, deva aprender viver em
sociedade. Inicia-se, pois, um novo momento, no qual o programa de formação
proposto pelo pensador retém como supedâneo a idade da razão e das paixões. É o
período em que o homem sai da infância por obra da própria natureza.
2.2 Relações morais com os outros homens
É a partir do estudo do “amor de si” e do “amor-próprio”, que Rousseau (2004)
adentra na análise do “ser moral”, ou seja, pensa as relações humanas tendo como
base as paixões. No entanto, adverte o pensador, elas são limitadas, e instrumentos de
45
nossa liberdade. Surgem, entretanto, por apropriação dos homens, outras paixões que
subjugam e destroem a natureza humana.
O tema das paixões é igualmente ampliado para o “amor-próprio”, conceito já
aventado por Rousseau no “segundo Discurso”. Ao nosso deslinde, percebemos que o
amor-próprio exsurge a partir do contato do educando com a sociedade, quando ele
começa a se comparar com os outros e a se escravizar por força de necessidades
emergentes dessa influência social.
Nesse contexto, Rousseau (2004, p.289-290) deixa claro que a influência do meio
social produz nos homens as paixões odientas e irascíveis, que principiam com o “amor
próprio”. Assim, de acordo com o pensador, “o que torna o homem essencialmente bom
é ter poucas necessidades e pouco se comparar com os outros; o que o torna
essencialmente mau é ter muitas necessidades e dar muita atenção à opinião.”
Desse processo, começam a aflorar os sentimentos, e logo em seguida as noções
do bem e do mal. Ele pretende, com isso, conduzir a sensibilidade do educando a fim
de mantê-lo em contato com as paixões próprias da sociabilidade, como o amor, a
amizade e as primeiras sementes da humanidade.
Dessa forma, Rousseau (2004, p. 303) afirma que o sentimento de compaixão
nasce a partir do desenvolvimento dos sentidos, em que o educando começa a “sentir-
se em seus semelhantes, a comover-se com suas queixas e a sofrer com as suas
dores”.
Assim a compaixão (piedade), para Rousseau (2004, p.304), é o primeiro
sentimento relativo que sensibiliza o coração humano a partir dos ditames da natureza,
o qual deverá guiar a criança por toda a sua jornada junto à sociedade. Nesse sentido,
é preciso sensibilizar o educando de que existem pessoas semelhantes a ele que
sofrem o que ele sofreu, e outras que também podem passar pelos mesmos percalços.
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A proposta é a saída de si para identificar-se com o outro que sofre. Para alimentar
essa inclinação nascente e natural, o autor aconselha que se estimulem no educando
“a bondade, a humanidade, a comiseração, a beneficência, todas as paixões atraentes
e doces que agradam naturalmente os homens.”, impedindo “que nasçam a inveja, a
cobiça, o ódio, todas as paixões repugnantes e cruéis, que, por assim dizer, tornam a
sensibilidade não somente nula, mas negativa, e fazem o tormento de quem as
experimenta.”
Dent (1996), comentando a compaixão em Rousseau, ressalta que o pensador a
coloca como uma das formas benéficas de convivência em sociedade. Assim,
diferentemente das relações movidas por combatividade, competitividade e
agressividade, as decorrentes da compaixão são pacíficas e primam pela ajuda mútua.
Para o comentador, o tema é essencial no pensamento de Rousseau, pois pretende
fundamentar a possibilidade de relações cooperativas no seio da sociedade.
Nessa fase da formação, Rousseau (2004) ministra as lições fundamentais que o
seu educando deve seguir, a fim de conviver melhor com os homens. Fiel a sua
vocação humanista, o autor afirma que a primeira delas é o respeito à própria espécie
humana. O educando deve aprender a amar todos os homens, mesmo aqueles que de
alguma forma o menosprezam. Convém estimular no coração do jovem a bondade,
como um dos primeiros movimentos da natureza, para que ela possa se expandir até
seus semelhantes. Também deve prevalecer o desinteresse de se afirmar em
determinada classe social, pois é recomendável que ele se reconheça em todas. A
todos esses movimentos, deve-se acrescentar o mínimo possível de interesse pessoal,
rechaçando toda a forma de rivalidade, glória e sentimentos de comparação que
nutrem no indivíduo o sentimento de ódio.
Dimana também do programa educativo de Rousseau (2004) privilegiar a
formação do educando a partir da observação da experiência dos homens em suas
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interações ao longo dos tempos. Com o estudo da história, ressalta, ele aprenderá a ler
o coração do homem.
É a partir da história que as ações dos homens são reveladas, o que permite a
sua análise através dos fatos. O pensador (2004, p.328) assinala que “para conhecer
os homens, é preciso vê-los agir. Suas próprias palavras ajudam-nos a apreciá-los,
pois, comparando o que fazem com o que dizem, vemos ao mesmo tempo o que são e
o que querem parecer; quanto mais se disfarçam, melhor os conhecemos”.
Portanto, é necessário, ao ser em formação, aprender em primeiro lugar a
conhecer os homens, depois lhe será apresentado o mundo, pois, caso contrário,
estaríamos corrompendo-o: “Mostrar-lhe o mundo antes que ele conheça os homens
não é formá-lo, é corrompê-lo; não é instruí-lo, é enganá-lo“ (ROUSSEAU, 2004, p.
302).
Esse conhecimento, ressaltamos, se dará na observação. O educando conhecerá
os homens de longe, como mero espectador, observando-os de forma imparcial, em
outros tempos nos meandros da história. Portanto, não precisará do auxilio da ciência
para perceber os movimentos do homem em seu habitat natural.
No entanto, Rousseau adverte, isso se daria apontando as falhas e a previdência
que se deve ter nesse tipo de aprendizado, dada a observação falível do historiador
e/ou observador.
Nesse passo, o educando deve observar os fatos históricos, como já se disse,
com imparcialidade. Rousseau (2004), por isso, alerta que esse tipo de estudo tem
seus inconvenientes. A primeira dificuldade começa em poder julgar os nossos
semelhantes com equidade. Outra reside no interesse da história em mostrar os
homens mais pelo lado mau do que pelo bom. Isso acontece particularmente ao se
enfatizarem as revoluções, as catástrofes e a saga dos povos que se destroem. De
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acordo com o autor, os governos mais prósperos são aqueles de que menos se fala.
Nesse padrão, “só sabemos o mal; dificilmente o bem marca época. Só os maus são
célebres, os bons são esquecidos ou ridicularizados: eis como a história, assim como a
filosofia , calunia sem cessar o gênero humano.” (ROUSSEAU, 2004, p.328).
Continua o autor, em digressão sobre o tema, acenando que os fatos, tais como
descritos pelos historiadores, mudam de acordo com os seus interesses, assumem as
formas dos seus preconceitos. A ignorância ou a parcialidade destroem o rumo da
verdade real dos fatos. Isso acontece, em especial, em virtude do ponto de vista que
assume cada historiador ao ampliar ou limitar algumas circunstâncias que se
relacionam a ele. Nessa perspectiva, para Rousseau (2004), os piores historiadores
são aqueles que julgam através dos olhos dos outros.
Com o estudo da história, o educando terá igualmente a oportunidade de
deparar-se com diversas culturas e com isso perceberá o homem em seu intento na
sociedade. Rousseau (2004, p.331-332) acrescenta que a história mostra muito mais
as ações do que propriamente os homens. Por isso é preciso perquirir, quando da
análise dos fatos, não só o caráter do homem em particular, mas “examiná-lo também
na multidão”.
Após a formação moral do educando, segundo Rousseau (2004), é preciso
orientá-lo para compreender o significado da religião. Tratando-se de dogma religioso,
não deve haver qualquer interferência do preceptor quanto à opção da crença. No
entanto, o jovem deve ser inspirado a escolher aquela a que seja conduzido pelo
melhor emprego da razão.
Rousseau (2004) expressa algumas reflexões sobre a religião através do que
resolveu denominar de “Profissão de Fé do Vigário Saboiano”. Nela, o pensador
aconselha a tomar como norte, para um melhor entendimento da religião, que o
educando consulte a sua própria luz interior a partir das convicções do coração.
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No entanto, na compreensão do pensador, é plausível aceitar que uma vontade
move o Universo e ainda a natureza. É assim que Rousseau (2004, p.384) apresenta o
seu primeiro e exemplar artigo de fé, professando que, apesar de assistirmos à ação e
à reação das forças da natureza interagirem entre si, devemos sempre volver a uma
espécie de “vontade como primeira causa.”
Na passagem seguinte, Rousseau (2004, p. 390) expõe os seus sentimentos
acerca do significado de Deus:
Lembra sempre que não estou ensinando meu sentimento, mas estou
expondo-o. Que a matéria seja eterna ou criada, que haja um princípio
passivo ou não, sempre é certo que o todo é uno e anuncia uma
inteligência única; pois nada vejo que não esteja ordenado ao mesmo
sistema e que não concorra para o mesmo fim, qual seja, a
conservação do todo na ordem estabelecida. O ser que quer e que
pode, o ser ativo por si mesmo, o ser, enfim, qualquer que seja ele, que
move o universo e ordena todas as coisas, chamo-o Deus. Junto a
esse nome as ideias de inteligência, de potência, de vontade, que
reúne, e mais a de bondade, que é uma consequência necessária das
primeiras; mas nem por isso conheço melhor o ser a que dei esse
nome; ele se furta igualmente aos meus sentidos e ao meu
entendimento; quanto mais penso nele, mais me confundo; sei com
toda a certeza que ele existe, e que existe por si mesmo; sei que minha
existência é subordinada à sua e que todas as coisas que conheço
estão absolutamente no mesmo caso. Percebo Deus por toda parte em
suas obras; sinto-o em mim, vejo-o por toda parte ao meu redor; mas
assim que quero contemplá-lo em si mesmo, assim que quero procurar
onde ele está, o que ele é, qual a sua substância, ele me escapa e meu
espírito perturbado nada mais percebe.
Huisman (2002, p. 160), analisando a questão religiosa em Rousseau, destaca
que, para o pensador: “Deus é anunciado por um „sentimento interior‟ e manifesta-se
„em suas obras‟”.
Rousseau (2004, p. 396) explica que o homem é o senhor do seu destino; ele é
livre em suas ações: “Se o homem é ativo e livre, ele age por si mesmo. Tudo o que faz
livremente não entra no sistema ordenado da providência e não lhe pode ser
imputado.” Com isso, o bem e o mal são de autoria do próprio homem, e a sua
50
consciência é que deve orientá-lo para as virtudes. Nessa visão do autor, a
providência, portanto, não é a responsável pelos atos dos homens aqui na terra, já que
estes são possuidores do livre-arbítrio.
Também nesse contexto, o educando aprenderá o significado de justiça.
Rousseau (2004, p. 353-398) já havia enfatizado que “de todas as virtudes a justiça é a
que mais concorre para o bem comum dos homens.” Reafirmando essa asserção, ele
ratifica que: “Onde tudo está bem, nada é injusto. A justiça é inseparável da bondade;
ora, a bondade é o efeito necessário de uma potência sem limite e do amor de si,
essencial a todo ser que sente”.
Já que a consciência deve orientar o homem para a prática das virtudes a partir
da sua vontade racional, Rousseau (2004) deixa claro que ela é a voz da alma. Nunca
engana, pois possui a vocação natural de nortear o homem em suas decisões.
Segundo o autor, isso ocorre porque existe um princípio inato de justiça no fundo das
almas, com a qual julgamos todas as ações mundanas como boas ou más.
A partir dessa ótica, Rousseau (2004, p.406) adiciona ao seu sistema educacional
um tipo de moral da consciência, que consiste em formar um juízo analítico sobre todas
as ações que são praticadas pelo homem. Diz o autor que “se a bondade moral é
conforme a nossa natureza, o homem só pode ser são de espírito ou bem constituído
na medida em que é bom”.
Aponta Rousseau (2004, p. 411) que a razão é a chave para o conhecimento do
bem: “Conhecer o bem não é amá-lo; o homem não tem um conhecimento inato do
bem; mas assim que a sua razão faz com que o conheça, sua consciência leva-o a
amá-lo: é este sentimento que é inato”.
Com essas questões sobre a teologia, incluindo uma crença na bondade natural
do homem, na justiça e na moral da consciência, Rousseau (2004) professa a religião
51
natural a partir do significado desses temas, que são a tônica de suas obras sobre
educação e política. O autor preleciona que as maiores ideias da divindade são
provenientes apenas da razão. Compreender a religião natural é observar o espetáculo
da natureza, ouvir a voz interior que emana do coração.
Obedecendo ao ciclo pedagógico proposto por Rousseau (2004, p.483), é o
momento do educando pautar as suas relações com os indivíduos através da ética,
tendo em mente a igualdade e a justiça. Ele esclarece que a primeira violação tolerada
leva à prática de outra, e esse consentimento só termina na ruína de toda a ordem
estabelecida. O pensador adverte que “é pela desordem da primeira idade que os
homens degeneram e que os vemos tornarem-se o que hoje são. Vis e covardes em
seus próprios vícios, têm somente almas pequenas, porque seus corpos gastos cedo
se corromperam.”
Pelos comentários de Simpson (2009), quando em contato com a sociedade, o
educando terá a oportunidade de aprimorar os seus conhecimentos a partir da
aquisição de uma educação mais sofisticada. Assim, ele deve desenvolver o gosto pela
arte, seu exame das condutas morais se torna mais perspicaz, aprende sobre os
clássicos da literatura e a escrever com desenvoltura.
Como foi bem observado pelo referido comentador, neste estágio, o educando
também terá contato mais direto com a leitura, em especial dos livros agradáveis, que
lhe proporcionará a análise do discurso mundano.
Observamos, até o momento, que Rousseau privilegiou a sua “educação
negativa” desde a mais tenra idade do educando. Chega, portanto, o momento da
formação política do ser.
52
2.3 Relações civis com os outros concidadãos
O último ciclo da educação proposto por Rousseau faz referência à formação
política que leva em conta a convivência do indivíduo no seio de uma família. Nesse
contexto, o autor ressalta a importância da criação do núcleo familiar para o surgimento
de uma nova sociedade, idealizada a partir do Contrato Social.
Fiel à tese da formação moral, o autor constitui o caráter do educando e discorre
sobre a educação de sua companheira tendo como base a natureza virtuosa. Os
arroubos da convivência familiar colocam o jovem aprendiz exposto aos riscos da
perda de autocontrole.
Nessa fase do aprendizado, Rousseau entende ser essencial que o educando
mantenha a formação sobre a natureza, que o acompanhará por toda a sua vida, e
acrescenta a isso os conhecimentos sobre a base da ordem civil.
Diante do exposto, percebemos que o autor parte do pressuposto de que a
natureza trabalha em prol da constituição do bom cidadão, contribuindo com a
formação de laços familiares visando a uma correta convenção social.
Rousseau (2004, p. 556) reitera a sua convicção de consolidar a integridade
moral e pessoal do educando, ao tratar igualmente sobre a formação religiosa da
mulher, a partir do sentimento interior. Esse sentimento deve pautar a conduta “que
nos manda sermos todos justos, que nos amemos uns aos outros, que sejamos bons e
misericordiosos, que honremos nossos compromissos com todos, mesmo com nossos
inimigos e os seus.” Esses dogmas, e outros semelhantes inspirados na voz do
coração, segundo o autor, são os que importa ensinar à juventude, e persuadir todos
os cidadãos.
53
No contexto da educação, segundo Rousseau (2004, p.655), o autodomínio sobre
os desejos e, portanto, o controle dos afetos, é essencial para a convivência em
sociedade, uma das mais ardentes provas de superação para se estabelecer relações
com outros indivíduos. Nessa ótica, o autor esclarece que, apesar de a formação do
educando ter sido pautada a partir de fundamentos morais, ela não é invulnerável por
inteiro. Preso às afeições que adquiriu ao longo da formação, o jovem deve aprender o
significado da superação e do autodomínio:
Sabes sofrer e morrer; sabes suportar a lei da necessidade no que diz
respeito aos males físicos, mas ainda não impuseste leis aos apetites
do teu coração, e é de nossos afetos, bem mais do que de nossas
necessidades, que nasce a perturbação de nossa vida. Nossos desejos
são amplos, nossa força é quase nula. Por seus desejos, o homem
depende de mil coisas, e por si mesmo de nada depende, nem mesmo
de sua própria vida; quanto mais aumenta suas afeições, mais
multiplica seus sofrimentos. Tudo apenas passa pela terra; tudo o que
amamos mais cedo ou mais tarde nos deixará, ligamo-nos a tudo o que
amamos como se devesse durar eternamente.
Porém, o autor reafirma que é sempre necessário obedecer à formação de cada
uma das etapas da vida do educando, ou seja, da infância, passando pela
adolescência, até a idade adulta, já que uma maneira de viver não exclui a outra, pois
que “cada idade tem suas molas que a fazem mover-se, mas o homem é sempre o
mesmo” (ROUSSEAU, 2004, p. 636).
Como um primeiro passo para a formação política do educando, Rousseau (2004)
prioriza a importância das viagens, como forma de se obter conhecimento sobre a
cultura de outros países. O pensador esclarece que, antes que o seu educando se
torne chefe de família e, portanto, membro do Estado como um verdadeiro cidadão
cônscio dos seus deveres na ordem civil, ele deve conhecer todos os lugares em que
se pode habitar, para que tire suas conclusões e escolha o lugar para viver de forma
mais adequada.
54
Rousseau (2004, p. 672-673) acrescenta que o educando deve “começar por
estudar a natureza do governo em geral, as diversas formas de governo e finalmente o
governo particular sob o qual nasceu, para saber se lhe convém viver nele.” Para se
conhecer melhor os governos tal como existem, Rousseau ensina que deve haver uma
conjunção de estudos dos princípios do direito político com o direito positivo dos
governos estabelecidos.
Dando seguimento aos ensinamentos políticos ao educando, Rousseau (2004, p.
680) vai afirmar a sua concepção de contrato social. Para o autor, esse contrato é a
base para a formação de toda a sociedade civil. É nas suas condições que se deve
procurar entender a natureza da sociedade que ele forma. O seu conteúdo é definido
pelo pensador da seguinte maneira: “Cada um de nós põe em comum seus bens, sua
pessoa, sua vida e toda a sua potência, sob a suprema direção da vontade geral, e
recebemos em bloco cada membro como parte indivisível do todo.” (Destaque original).
Na lição do autor, com esse modo de ser, forma-se um corpo moral e coletivo no
lugar da pessoa particular de cada contratante. Rousseau (2004) então define essa
pessoa pública como corpo político, que também é chamado de Estado. Esse
organismo político, quando em atividade, é o poder soberano. No que se refere aos
seus membros, quando considerados de forma coletiva, recebem o nome de povo. E
chamam-se em particular de cidadãos, quando participantes da autoridade soberana.
O pensador ratifica a sua ideia de contrato social, asseverando que o ato de
associação traz em seu bojo um compromisso recíproco entre todos os participantes,
na medida em que cada indivíduo, também estabelecendo um contrato consigo mesmo,
torna-se duplamente vinculado ao pacto. Dessume-se, dessa condição, que não pode
haver outra lei fundamental, além daquela estipulada através do pacto social.
O conceito de pacto social é ampliado em Rousseau (2004, p.682), ao afirmar que
nele encontramos a causa de todo o funcionamento da máquina política. Isso ocorre
55
porque o povo em bloco como soberano é o mentor de toda a destreza para o
funcionamento do corpo político. Sem essa condição, replica o autor, os compromissos
assumidos seriam tirânicos e sujeitos aos maiores abusos. Assim, “tendo os
particulares se submetido apenas ao soberano e não passando a autoridade soberana
da vontade geral, veremos como cada homem, ao obedecer ao soberano, só obedece
a si e como somos mais livres no pacto social do que no estado de natureza”.
O direito de propriedade e o direito de soberania têm suas características próprias
no âmbito do contrato social. Quanto à propriedade, Rousseau (2004) assegura que o
fundamento desse direito exsurge a partir da própria autoridade soberana. Portanto, o
direito de propriedade é considerado inviolável e sagrado enquanto direito individual.
Tornando-se, no entanto, comum, a todos os cidadãos, ele fica submetido à vontade
geral, que tem o poder de anulá-lo.
Atinente à elaboração das leis no campo de ação do contrato social, Rousseau
(2004, p. 683) certifica que todo o povo deve legislar sobre todo o povo, sem nenhuma
divisão nesse ponto de vista. Assim, “o objeto sobre o qual se legisla é geral e a
vontade que legisla também é geral”.
Portanto, já que o povo representa a própria soberania, os atos do soberano
significam os atos da vontade geral. Nesse passo, ela só pode manifestar-se através
de leis que possuem um objeto geral, que deve se referir a todos os membros do
Estado. Rousseau (2004, p. 683) também alerta que o soberano (povo) “nunca tem o
poder de estabelecer algo sobre um objeto particular”.
Nesse aspecto, dada a importância do Estado, em que se devem também decidir
coisas particulares, Rousseau (2004) esclarece que todos os atos do soberano só
podem corresponder a atos da vontade geral, que são leis. As decisões acerca das
questões particulares são resolvidas através de atos determinantes ou de governo com
fundamento naquelas leis já estabelecidas pela vontade geral.
56
Rousseau (2004) demonstra a necessidade de o Estado possuir uma espécie de
corpo intermediário entre os súditos e o soberano, para que não degenere em
despotismo ou anarquia. Esse grupo de pessoas atuaria no sentido de dinamizar o
pacto, ficando encarregado da administração pública, da execução das leis e da
conservação da liberdade civil e política.
Segundo o autor, os membros do corpo intermediário são denominados de
magistrados ou reis, e também governadores. A todo o corpo composto pelas pessoas
reunidas, chama-se príncipe, e quando em ação, tomando decisões políticas,
caracteriza-se como governo.
O pensador explica que, a partir desse corpo intermediário, o magistrado deve
receber as ordens provenientes do soberano, e em seguida transmiti-las ao povo.
Rousseau (2004) alerta, porém, que, na hipótese de surgir uma desordem nessa regra,
o Estado arruinado cairá na anarquia.
Para orientar melhor o seu educando, Rousseau (2004, p. 688) lhe apresenta
algumas formas de governo, como a democracia, a aristocracia e a monarquia,
conforme seu particular conceito:
Para fixar a seguir essa diversidade de formas em denominações mais
precisas, observaremos em primeiro lugar que o soberano pode confiar
a guarda do governo a todo o povo ou à maior parte do povo, de modo
que haja mais cidadãos magistrados do que cidadãos simples
particulares.
Dá-se o nome de democracia a essa forma de governo.
Ou então ele pode encerrar o governo nas mãos de um menor número
de cidadãos, havendo assim mais simples cidadãos do que
magistrados, e essa forma tem o nome de aristocracia.
Finalmente, ele pode concentrar todo o governo nas mãos de um único
magistrado. Essa terceira forma é a mais comum e se chama
monarquia ou governo real.
Discorrendo ainda sobre o tema, destaca o autor (2004, p.688) que a democracia
pode abranger todo o povo ou mesmo limitar-se à sua metade. Quanto à aristocracia,
57
ela “pode limitar-se da metade do povo até os menores grupos”. Rousseau defende,
porém, que existe um ponto em comum entre as formas de governo, em que cada uma
confunde-se com a seguinte, justificando com isso que, sob as três formas,
democracia, aristocracia e monarquia, o governo será capaz de tantas formas quantos
forem os cidadãos que o Estado possuir. Com isso, se as referidas formas forem
combinadas, um grande número de formas mistas surgirá, podendo, ainda, na
sequência, ser multiplicadas. Ao nosso aporte, o pensador pretende com essas
considerações dizer que as formas de governo devem seguir a vocação de cada povo,
a depender da administração de cada Estado.
Rousseau (2004, p. 692) enfatiza que, para um melhor aprendizado sobre o gênio
e os costumes de uma nação, é necessário se estudar as províncias mais afastadas.
Segundo o pensador, é lá que os bons e os maus efeitos do governo revelam-se de
forma mais evidente. Nesse sentido, ressalta: “É nas províncias afastadas, onde há
menos movimento e menos comércio, onde os estrangeiros viajam menos, cujos
habitantes deslocam-se menos, mudam menos de riqueza e de condição, que devemos
ir estudar o gênio e os costumes de uma nação”.
Rousseau (2004) deduz ao seu educando que, em geral, existem duas regras
simples para avaliar a boa qualidade relativa dos governos. A primeira delas, ele
qualifica pelo povoamento do Estado. Nessa condição, o mais pobre dos Estados será
o mais governado. A segunda exigência reside na regular distribuição da população,
quando os habitantes devem estar espalhados de forma uniforme por todo o território.
Depreendemos da leitura do programa pedagógico de Rousseau, que ele
pretende em primeiro lugar formar o homem, para em seguida cultivar a sua educação
política, preparando-o para a proposta constante de sua obra, Contrato Social,
conforme veremos a seguir.
58
3 O PACTO SOCIAL LIBERTÁRIO E A FORMAÇÃO DA SOCIEDADE
LEGÍTIMA
Antes de adentrarmos no tema da vida política do “Contrato Social” de Rousseau,
reputamos ser de necessidade premente lembrar que, de acordo com Derathé (2009),
a formação intelectual e moral do homem, na perspectiva rousseauniana, é uma
consequência da vida social.
Do ponto de vista do referido comentador, na obra Contrato Social, Rousseau
denomina de Estado a sociedade política organizada, chama de Soberania a
autoridade suprema no Estado ou o poder Legislativo, de Soberano o povo, ou seja,
aquele que detém essa autoridade, e de Governo todos aqueles que estão investidos
no poder executivo, na obrigação de cumprir as diretrizes do poder soberano.
Derathé (2009, p.554) testifica que a concepção de Soberano em Rousseau
adquire um sentido mais preciso do que em seus antecessores:
Rousseau dá à palavra soberano um sentido mais preciso e mais
restrito do que seus predecessores. Sua Concepção da soberania o
leva a fazer uma diferença entre o soberano, que é o autor das leis, e o
magistrado ou o príncipe, que assegura sua execução. (Destaques
originais).
Segundo Camus et al (2010), Rousseau defende o princípio de soberania popular
como fundamento do estado de direito. Portanto, de acordo com a linha contratualista
rousseauniana, a soberania tem origem puramente humana, já que a autoridade
política é proveniente unicamente de uma convenção. Com isso, no seu modelo
político, ele atribui a soberania ao povo, que o exerce através da vontade geral. Nessa
linha de raciocínio, o Contrato Social é uma reflexão sobre o direito político.
59
3.1 A formação como resgate do corpo social
No “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os
homens”, ficou evidenciado que na evolução humana ocorreram transformações que se
ampliaram com as necessidades prementes de sobrevivência e a convivência de todos
no meio social. Com isso, o homem produziu para si a desigualdade, e a corrupção civil
foi algo inevitável.
Rousseau concluiu que a vontade individual teria perdido a sua credibilidade, ao
fornecer o produto de uma sociedade que escraviza o próximo em benefício de poucos.
Assim, já no “Segundo Discurso”, conforme anteriormente analisado, encontramos
certo fragmento do que seria a sua obra de direito político, o prenúncio da sua tese no
Contrato Social, que fundamenta como algo superior a vontade geral ou o pacto social.
A expressão “vontade geral” foi usada pela primeira vez no artigo Da economia
política que é um desdobramento da tese mestra da “soberania”, analisada com
particularidade no Contrato Social. Rousseau (1958, p. 288) discorre desde logo sobre
a importância da “vontade geral”, que no interior da sociedade é a fonte das leis, a
regra do justo e do injusto. O enunciado testifica o seguinte:
O corpo político é, pois, também, um ser moral que possui uma
vontade; essa vontade geral, que tende sempre à conservação e ao
bem-estar do todo e de cada parte, e que constitui a fonte das leis, é
para todos os membros do Estado, em relação a si próprios e a ele, a
regra do justo e do injusto.
É ainda proposto no artigo Da economia política o dever de se investir na
constituição do homem virtuoso para a formação do cidadão, visando a fortalecer o
poder social:
Não é suficiente dizer aos cidadãos – sede bons; é preciso ensiná-los a
ser. O próprio exemplo, que a esse respeito constitui a primeira lição,
não representa o único meio a empregar-se; o amor à pátria constitui o
meio mais eficaz, pois, como já disse, todo o homem é virtuoso quando
60
sua vontade particular em tudo se encontra de acordo com a vontade
geral e de bom grado desejamos aquilo que desejam as pessoas que
amamos (ROUSSEAU, 1958, p. 296).
A educação pública é também uma preocupação central na obra de Rousseau,
segundo o comentador Vieira (1997, p.108). O projeto político do pensador é, antes de
tudo, pedagógico. Destacamos essa proposição ao analisarmos suas obras Emilio, o
Projeto de Constituição para a Córsega e as suas Considerações sobre o Governo da
Polônia e sua Reforma Projetada, em que o autor ressalta como aspecto fundamental a
formação do cidadão de qualquer República.
No torque entre educação e política, a sequência das intenções do pensador é
clara. Isso ocorre especialmente ao observarmos a obra Emílio, ou Da Educação, na
qual notamos um compêndio de algumas ideias contidas no Contrato Social.
Nessa obra, conforme anteriormente salientado, Rousseau fundamentou a defesa
da natureza como início da formação do homem, através de sua proposta de
“educação negativa”, que privilegia o dom natural existente em cada ser, possibilitando
o seu desenvolvimento espontâneo apenas pela razão. É em suas relações com os
outros indivíduos que, segundo o pensador, o educando terá a oportunidade de
conhecer o seu ser moral, que estará também em formação. Nessa linha, a constituição
do homem é privilegiada a partir das virtudes naturais, como a compaixão.
Fazendo certa ponte para a formação política, a obra em comento anuncia um
homem probo e que por isso deverá adquirir conhecimentos nessa área para viver de
forma digna em sociedade, com respeito ao próximo. Nesse contexto, a constituição do
educando figura como um tipo de educação doméstica e/ou individual, a fim de garantir
a igualdade e a liberdade no seio do estado civil, anunciado por Rousseau no seu
Contrato Social.
61
O Emílio, segundo Simpson (2009), reacendeu a chama do pensamento de
Rousseau, dando expressão mais completa à tese essencial sobre a “bondade natural
do homem”. De acordo com o comentador, o pensador imprime na obra um objetivo
mais abstrato e filosófico, com a preocupação de mostrar como a sua composição da
bondade natural pode ser harmonizada com a imoralidade de muitos, o que significaria
dizer que Rousseau defende uma teoria da natureza humana e da sociedade.
Simpson (2009), analisando a obra supracitada, destaca que ela segue a análise
do desenvolvimento do caráter humano, demonstrando que os problemas do homem
são causados pelas próprias instituições humanas, e não por algo no mundo natural ou
mesmo um inevitável defeito na própria natureza humana. Na linha da bondade natural,
o Emílio descreve uma educação de acordo com a natureza, com o objetivo de cultivar
a bondade natural do educando, para torná-lo uma pessoa feliz, boa para si e para os
outros.
No seu Projeto de Constituição para a Córsega (Projet de constitution pour la
Corse), redigido em 1764, a educação, respeitante à formação do homem para exercer
o seu status de cidadão, não deixa de ser igualmente uma prioridade. Ao final da
guerra dos Trinta Anos, a Europa estava loteada em Estados, dependências e
domínios, e essa condição política da época favoreceu o que caracterizaria a Era do
Absolutismo (ROUSSEAU, 1962).
A ilha de Córsega, colocada sob o domínio da República de Gênova, sem a
outorga da sua população, era a imagem de tantos outros territórios europeus que não
toleravam o poder de seus governantes impostos por tratados. A vocação da liberdade
falou mais alto aos corsos com aspiração ao autogoverno, na oportunidade em que o
seu chefe nacional Pasquale Paoli autorizou o seu enviado especial, Matteo
Buttafuoco, a pedir a Rousseau que elaborasse um projeto de Constituição
(ROUSSEAU, 1962). O seu Projeto de Constituição para a Córsega, entretanto, nunca
62
foi concluído, e o seu fragmento foi encontrado entre os papéis inéditos à data da
morte do pensador.
Encontramos, na obra, um Prólogo seguido por cinco parágrafos fragmentários
que encerram a Primeira Parte, anunciando a Segunda, denominada fragmentos
esparsos, que não permite uma análise bem sistemática, contudo, não tira a
importância dessa porção final do manuscrito.
O Prólogo inicia discorrendo acerca da formação da nação, tema que interessa ao
presente trabalho. Nesse sentido, ressalta o autor:
Tudo resulta de separar-se demasiado duas coisas inseparáveis: o
corpo que governa e o corpo que é governado. Na instituição primitiva,
esses dois corpos não são mais que um; só pelo abuso da instituição
separam-se.
Os mais sábios, atendendo em tal caso às relações de conveniência,
formam o governo para a nação. Há, no entanto, algo melhor a fazer –
formar a nação para o governo (ROUSSEAU, 1962, p. 191).
Rousseau (1962, p. 232) finaliza a sua obra política para a Córsega, através das
ideias defendidas no seu Contrato Social: “Nobre povo, não desejo dar-vos leis
artificiais e sistemáticas inventadas por homens, mas tão-só conduzir-vos às leis da
natureza e da ordem, que governam o coração e de modo algum tiranizam as
vontades.”
Segundo Fortes (1982), na obra de Rousseau Considerações sobre o Governo da
Polônia e sua Reforma Projetada (considérations sur le gouvernement de Pologne), o
pensador propõe a governantes e governados como se deve intervir politicamente nas
sociedades historicamente organizadas para incorporarem os ideais do seu Contrato
Social. Veremos, entre outras sugestões ao povo polonês, a preocupação de Rousseau
com a formação do homem, para a cidadania, com atenção destacada para a educação
pública.
63
De acordo com Fortes (1982), a Polônia do Século XVIII, que ainda mantinha uma
estrutura feudal, era uma nação de grandes dimensões, na qual os burgueses e
camponeses não possuíam participação na vida política. Já contando com o apoio das
autoridades francesas, o conde polonês Wielhorski, representante dos nobres
insurretos poloneses da “Confederação” de Bar, que mantinham uma revolta armada
contra o próprio rei da Polônia – Stanislas Poniatowski, vem ao encontro de Rousseau,
que ao término de seis meses apresenta ao seu interlocutor o projeto de reforma para a
Polônia em quinze pequenos capítulos.
Nesse contexto, assegura Fortes (1982), nasce uma nova obra-prima de política,
diferente das especulações abstratas, já que o ensaio fora elaborado a partir de uma
conjuntura real e específica. Essas Considerações, destaca o comentador, obra de
circunstância, apresenta-se como um complemento indispensável ao pensamento
político contido no Contrato Social.
Ao lado da proposta de transformação das estruturas políticas da Polônia, outra
proposição de Rousseau (1982, p. 36) que nos interessa no momento é o aspecto
fundamental da educação, sem a qual nenhuma reforma da legislação teria a
competente efetividade. O objetivo central é formar cidadãos que se identifiquem com
o todo político a partir da elaboração de suas próprias leis, colocando-as acima dos
interesses que possuem na condição de indivíduos naturais:
Eis aqui o artigo importante. É a educação que deve dar às almas a
forma nacional e dirigir de tal forma suas opiniões e seus gostos, que
elas sejam patriotas por inclinação, por paixão, por necessidade. Uma
criança, abrindo os olhos, deve ver a pátria e até à morte não deve ver
mais nada além dela. Todo verdadeiro republicano sugou com o leite
de sua mãe o amor de sua pátria, isto é, das leis e da liberdade. Esse
amor faz toda sua existência; ele não vê nada além da pátria e só vive
para ela; assim que está só, é nulo; a partir do momento em que não
tem mais pátria, não existe mais; e se não está morto, é pior do que
isso.
64
A educação nacional só cabe aos homens livres; só eles têm uma
existência comum e estão verdadeiramente ligados pela Lei.8
Rousseau (1978c) reafirma a necessidade da educação para a formação política
ao elaborar a divisão das leis no seu Contrato Social, pois no momento em que
relaciona a categoria final destas, aponta uma espécie de instância da lei lato sensu,
como ele mesmo afirma, uma “quarta espécie”.
A “quarta espécie de lei” é a mais importante de todas na ótica do pensador, pois
está gravada nos corações dos cidadãos. Ela dá forma ao caráter e atitude dos
indivíduos através dos usos e costumes como aspecto habitual, e da opinião, como
condição racional da moral praticada de forma intensa pelos homens no trato diário:
A essas três espécies de leis, junta-se uma quarta, a mais importante
de todas, que não se grava nem no mármore, nem no bronze, mas nos
corações dos cidadãos; que faz a verdadeira constituição do Estado;
que todos os dias ganha novas forças; que, quando as outras leis
envelhecem ou se extinguem, as reanima ou as supre, conserva um
povo no espírito de sua instituição e insensivelmente substitui a força
da autoridade pela do hábito.
Refiro-me aos usos e costumes e, sobretudo, à opinião, essa parte
desconhecida por nossos políticos, mas da qual depende o sucesso de
todas as outras; parte de que se ocupa em segredo o grande
Legislador, enquanto parece limitar-se a regulamentos particulares que
não são senão o arco da abóbada, da qual os costumes, mais lentos
para nascerem, formam por fim a chave indestrutível (ROUSSEAU,
1978c, p. 69).
8 “C‟est ici l‟article important. C‟est l‟éducation qui doit donner aux âmes la forme nationale, et diriger
tellement leurs opinions et lurs gouts, qu‟elles soient patriotes par inclination, par passion, par nécessité. Un enfant, en ouvrant les yeux, doit voir la patrie, et jusqu‟à la mort ne doit plus voir qu‟elle. Tout vrai républicain suça avec le lait de sa mère l‟amour de sa patrie, c‟est-à-dire, des lois et de la liberté. Cet amour fait toute son existence; il ne voit que la patrie, il ne vit que pour elle; sitôt qu‟il est seul, il est nul; sitôt qu‟il n‟a plus de patrie, il n‟est plus, et s‟il n‟est pas mort, il est pis.L‟éducation nationale n‟appartient qu‟aux hommes libres; il n‟y a qu‟eux qui aient une existence commune et qui soient vraiment liés par la Loi.” (ROUSSEAU, Jean-Jacques. Considerações sobre o Governo da Polônia e sua Reforma Projetada. Opus citatum, p.133).
65
Portanto, na opinião de comentadores como Dent (1996), o programa educacional
de Rousseau visa enfatizar os meios pelos quais as pessoas poderiam viver a melhor
vida para si mesmos, em total harmonia com o seu próximo, em sociedade e no Estado.
Sobressai da obra Emílio uma preleção do modo como uma pessoa pode encontrar, ou
obter, um lugar na sociedade sem sofrer a alienação ou a corrupção9 pessoal que isso
envolve.
Com essas considerações, demonstramos a influência da educação política na
consciência do homem, na proposta rousseauniana, visando à formação de uma nova
sociedade com respeito à igualdade e à liberdade.
3.2 A transformação moral e política da sociedade capitaneada pela
soberania popular
Rousseau demonstrou, através do Discurso sobre a origem e os fundamentos da
desigualdade entre os homens, os percalços de um “estado civil” que se originou do
“estado de natureza” e evoluiu para a desigualdade entre os indivíduos, em nome da
corrupção que se instalou no seio daquela sociedade.
Com a obra Emílio, tendo como pano de fundo o sentimento de piedade e da
perfectibilidade irmanada com uma moral adquirida através da formação, o limite final
para a instrução do homem estaria focado na formação política para a consecução de
um novo “ser”, liberto de todo o preconceito e corrupção, participando da liberdade civil
9 “Do ponto de vista da teoria política, a corrupção já era um tema tratado pelos escritos dos primeiros
filósofos gregos. Mas, antes destes, já temos relatos de corrupção política nos primórdios da civilização. “As tentativas de compreendê-la e buscar as suas causas também vêm de longa data. Na verdade, a reflexão sobre a corrupção política está presente em todos os autores que trataram da mudança das formas de governo.” (MARTINS, José Antônio. Corrupção. São Paulo: Globo, 2008, p.25).
66
com o seu próximo. O ideal político de Rousseau está, portanto, nessa proposta de
uma nova sociedade, através do pacto social de indivíduos livres e iguais.
Com essas considerações, é o momento de entendermos como funciona o projeto
político ideal de Rousseau, a partir dos seus princípios de direito político. Vale
lembrarmos que o direito natural é repudiado pelo pensador a partir do momento em
que ele defende que o Estado só pode surgir através da vontade geral, dos integrantes
do pacto social.
O capítulo I, do Livro Primeiro do Contrato Social, traz uma expressão vinculada
ao segundo Discurso, que demonstra no pensador a firme convicção da importância
capital do conhecimento da vida política no estudo do homem: “O homem nasce livre, e
por toda a parte encontra-se a ferros. O que se crê senhor dos demais, não deixa de
ser mais escravo do que eles.” (ROUSSEAU, 1978c, p, 22).
Como já alertamos anteriormente, Rousseau (1978c, p. 22-23) nega o direito
natural como fundador do Estado, ao asseverar que: “A ordem social, porém, é um
direito sagrado que serve de base a todos os outros. Tal direito, no entanto, não se
origina da natureza: funda-se, portanto, em convenções”. Esses acordos, conforme
deduzimos da leitura do Contrato Social, nada mais são senão a proposta de Rousseau
da sociedade organizada, através da permissão de todos que se unem para a
realização do bem comum.
A ideia de núcleo familiar proposta no Emílio é fortificada por Rousseau no
Contrato Social, ao abordar o tema das primeiras sociedades. Ele apresenta a família
como um núcleo convencional que serve de uma espécie de gênese para a sua
proposta de uma nova sociedade, visando a garantir os seus atributos naturais de
amor, conservação e o cuidado que se deve ter com o próximo:
67
A mais antiga de todas as sociedades, e a única natural, é a família;
ainda assim só se prendem os filhos ao pai enquanto dele necessitam
para a própria conservação. Desde que tal necessidade cessa, desfaz-
se o liame natural. Os filhos, isentos da obediência que devem ao pai, e
este, isento dos cuidados que deve aos filhos, voltam todos a ser
igualmente independentes. Se continuam unidos, já não é natural, mas
voluntariamente, e a própria família só se mantém por convenção.
Essa liberdade comum é uma consequência da natureza do homem.
Sua primeira lei consiste em zelar pela própria conservação, seus
primeiros cuidados são aqueles que se deve a si mesmo, e, assim que
alcança a idade da razão, sendo o único juiz dos meios adequados
para conservar-se, torna-se, por isso, senhor de si.
A família é, pois, se assim se quiser, o primeiro modelo das sociedades
políticas: o chefe é a imagem do pai; o povo, a dos filhos, e todos,
tendo nascido iguais e livres, só alienam sua liberdade em proveito
próprio (ROUSSEAU, 1978c, p. 23-24).
A fim de construir a sua concepção de convenção voltada para a formação do
Estado, Rousseau (1978c, p. 25-26) repudia “o direito do mais forte”, afirmando com
isso que a relação entre os homens se torna impura ao se admitir a transformação da
força em direito e a obediência em dever. A escravidão é, assim, repelida pelo
pensador, que sustenta que nenhum homem tem o poder de mando sobre os seus
semelhantes, já que a força não pode produzir qualquer direito entre eles. Atento a
essas convicções, Rousseau de forma conclusiva enuncia que as convenções são o
alicerce de toda a autoridade legítima existente entre os homens.
Vemos que a ideia do indivíduo isolado dos outros, com interesse privado, de
mando sobre os seus semelhantes, é recusada por Rousseau através da sua teoria
política. Em nossa compreensão, o “estado civil” ideal de Rousseau deve sobrevir de
uma organização social plena e convicta de seus direitos individuais.
Para entendermos melhor a perspectiva rousseauniana sobre a convenção e/ou
contrato, tomaremos como base Dent (1996), que localiza nas obras, Emílio e Contrato
Social, dois contextos diferentes sobre o assunto: o primeiro, menos significativo,
contém a ideia de troca contratual como estrutura para regular e coordenar a atividade
humana; o segundo, mais significativo, advém do próprio “Contrato Social”, como elo
68
que reúne várias pessoas num corpo civil, como o vínculo de união comum adstrito a
um corpo de leis. (1996, p.83).
A ideia de uma liberdade convencional através do pacto social é a raiz, podemos
assim dizer, da proposta de Rousseau (1978c) para a formação de uma sociedade
mais justa.
Dessa forma, com o implemento da convenção, ocorre apenas a transformação da
liberdade natural irrestrita em liberdade convencional. Com isso, Rousseau (1978c, p.
31-32) deseja legitimar a sociedade política, preservando a igualdade e a liberdade
entre todos, especialmente na tomada de decisões do corpo político:
Suponhamos os homens chegando àquele ponto em que os obstáculos
prejudiciais à sua conservação no estado de natureza sobrepujam, pela
sua resistência, as forças de que cada indivíduo dispõe para manter-se
nesse estado. Então, esse estado primitivo já não pode subsistir, e o
gênero humano, se não mudasse de modo de vida, pereceria.
Ora, como os homens não podem engendrar novas forças, mas
somente unir e orientar as já existentes, não têm eles outro meio de
conservar-se senão formando, por agregação, um conjunto de forças,
que possa sobrepujar a resistência, impelindo-as para um só móvel,
levando-as a operar em concerto.
Essa soma de forças só pode nascer do concurso de muitos; sendo,
porém, a força e a liberdade de cada indivíduo os instrumentos
primordiais de sua conservação, como poderia ele empenhá-los sem
prejudicar e sem negligenciar os cuidados que a si mesmo deve? Essa
dificuldade, reconduzindo ao meu assunto, poderá ser enunciada como
segue:
„Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e
os bens de cada associado com toda a força comum, e pela qual cada
um, unindo-se a todos, só obedece, contudo a si mesmo,
permanecendo assim tão livre quanto antes‟. Esse, o problema
fundamental cuja solução o contrato social oferece (Destaque original).
E continua o autor:
Enfim, cada um dando-se a todos não se dá a ninguém e, não existindo
um associado sobre o qual não se adquira o mesmo direito que se lhe
cede sobre si mesmo, ganha-se o equivalente de tudo que se perde, e
maior força para conservar o que se tem.
69
Se separar-se, pois, do pacto social aquilo que não pertence à sua
essência, ver-se-á que ele se reduz aos seguintes termos: „Cada um de
nós põe em comum sua pessoa e todo o seu poder sob a direção
suprema da vontade geral, e recebemos, enquanto corpo, cada
membro como parte indivisível do todo‟ (ROUSSEAU, 1978c, p. 33)
(Destaque original).
Nessa linha do pensamento, a passagem do “estado de natureza” para o “estado
civil” ocasiona uma mudança no homem, substituindo na sua conduta o instinto pela
justiça, momento em que também dá às suas ações uma moralidade que antes não
existia. A razão nesse ponto também venceria as suas inclinações naturais. Com isso,
o que se ganha com o contrato social é a liberdade civil e a propriedade de tudo o que
se possui (ROUSSEAU, 1978c).
Rousseau esclarece no bojo do seu Contrato Social que essa pessoa pública, que
se forma pela união de todas as outras, recebe o nome de república ou de corpo
político, o qual é chamado por seus membros de Estado quando passivo, e soberano
quando ativo. Ainda nessa seara, destaca o autor: “Quanto aos associados, recebem
eles, coletivamente, o nome de povo e se chamam, em particular, cidadãos, enquanto
partícipes da autoridade soberana, e súditos enquanto submetidos às leis do Estado”
(ROUSSEAU, 1978c, p. 33-34).
Portanto, o soberano é o corpo político investido no poder que lhe conferiu o
pacto social:
Ora, o soberano, sendo formado tão-só pelos particulares que o
compõem, não visa nem pode visar a interesse contrário ao deles, e,
consequentemente, o poder soberano não necessita de qualquer
garantia em face de seus súditos, por ser impossível ao corpo desejar
prejudicar a todos os seus membros, e veremos, logo a seguir, que não
pode também prejudicar a nenhum deles em particular. O soberano,
somente por sê-lo, é sempre aquilo que deve ser.
[...]
Considerando a pessoa moral que constitui o estado como um ente de
razão, porquanto não é um homem, ele desfrutará dos direitos do
cidadão sem querer desempenhar os deveres de súdito – injustiça cujo
progresso determinaria a ruína do corpo político.
70
A fim de que o pacto social não represente, pois, um formulário vão,
compreende ele tacitamente este compromisso, o único que poderá dar
força aos outros: aquele que recusar obedecer à vontade geral a tanto
será constrangido por todo um corpo, o que não significa senão que o
forçarão a ser livre, pois é essa a condição que, entregando cada
cidadão à pátria, o garante contra qualquer dependência pessoal. Essa
condição constitui o artifício e o jogo de toda a máquina política, e é a
única a legitimar os compromissos civis, os quais, sem isso, se
tornariam absurdos, tirânicos e sujeitos aos maiores abusos
(ROUSSEAU,1978c, p. 35-36).
Nesse ponto, pretendemos ressaltar algumas considerações sobre a soberania,
conforme passamos a expender.
Segundo Rousseau (1978c, p. 46-47), a vontade geral é algo intrínseco à
soberania popular e legitima os compromissos civis, ao passo que a vontade de todos
diz respeito ao interesse privado, e é o somatório das vontades particulares: “Há
comumente muita diferença entre a vontade de todos e a vontade geral. Esta se prende
somente ao interesse comum; a outra, ao interesse privado e não passa de uma soma
das vontades particulares”.
A soberania, sendo o exercício da vontade geral, não pode ser alienada, ou seja,
o soberano como um ser coletivo só pode ser representado por si mesmo. Dessa
forma, a vontade geral não pode ser transmitida:
A primeira e a mais importante consequência decorrente dos princípios
até aqui estabelecidos é que só a vontade geral pode dirigir as forças
do Estado de acordo com a finalidade de sua instituição, que é o bem
comum, porque, se a oposição dos interesses particulares tornou
necessário o estabelecimento das sociedades, foi o acordo desses
mesmos interesses que o possibilitou. O que existe de comum nesses
vários interesses forma o liame social e, se não houvesse um ponto em
que todos os interesses concordassem, nenhuma sociedade poderia
existir. Ora, somente com base nesse interesse comum é que a
sociedade deve ser governada.
Afirmo, pois, que a soberania, não sendo senão o exercício da vontade
geral, jamais pode alienar-se, e que o soberano, que nada é senão um
ser coletivo, só pode ser representado por si mesmo. O poder pode
transmitir-se; não porém a vontade (ROUSSEAU,1978c, p. 43-44).
71
A partir dessas colocações de Rousseau, é correto afirmarmos que a vontade
geral surge como a mais transcendente questão do Contrato Social. pois que ela serve
para validar toda a legislação produzida a partir do corpo político. Sua importância se
faz notar no quarto e último livro do Contrato Social: “O cidadão consente todas as leis,
mesmo as aprovadas contra sua vontade e até aquelas que o punem quando ousa
violar uma delas. A vontade constante de todos os membros do Estado é a vontade
geral: por ela é que são cidadãos e livres” (ROUSSEAU,1978c, p. 120).
Outro aspecto importante da soberania, segundo o pensador, consiste em ela ser
indivisível, pelo fato de já ser inalienável. Sua indivisibilidade resulta do próprio
conceito de vontade geral, que é transmitida por todo o corpo político. Uma vontade
que parte de todos e se aplica a todos. Assim, para Rousseau (1978c), é o poder
soberano que produz a lei.
Rousseau (1978c), com base na tese da bondade natural, portanto, na condição
de que o homem nasce bom, afirma que a vontade geral é sempre certa e tem uma
tendência incessante para promover o bem comum. Para o pensador, a vontade geral
tem o firme propósito de sempre acertar. Assim, jamais se pode corromper o povo,
porém, é frequente que o enganem, e só nessa condição é que seria passível de erro.
Acerca dos limites da soberania, Rousseau (1978c) partiu do mesmo traço
conceitual desse poder supremo, para o fim de justificar os seus limites. Como sói
acontecer no pensamento político do pensador, o pacto social, realizado com a
finalidade de formar o corpo político, dá a este um poder absoluto sobre todos os seus
membros e a condição de elaborar a legislação que direcionará os rumos da sociedade
civil. O soberano é que determinará qual a parte que cada um de seus membros
alienará de seu poder, de seus bens e da própria liberdade, cujo uso será de interesse
da comunidade. Com isso, afirma Rousseau (1978c, p. 48-50) que o poder soberano
não pode ultrapassar os limites das convenções gerais:
72
Relativamente a quanto, pelo pacto social, cada um aliena de seu
poder, de seus bens e da própria liberdade, convém-se em que
representa tão-só aquela parte de tudo isso cujo uso interessa à
comunidade. É preciso convir, também, em que só o soberano pode
julgar dessa importância.
[...] Enquanto os súditos só estiverem submetidos a tais convenções,
não obedecem a ninguém, mas somente à própria vontade, e perguntar
até onde se estendem os direitos respectivos do soberano e dos
cidadãos é perguntar até que ponto estes podem comprometer-se
consigo mesmos, cada um perante todos e todos perante cada um.
Continua o autor:
Vê-se por aí que o poder soberano, por mais absoluto, sagrado e
inviolável que seja, não passa nem pode passar dos limites das
convenções gerais, e que todo o homem pode dispor plenamente do
que lhe foi deixado, por essas convenções, de seus bens e de sua
liberdade, de sorte que o soberano jamais tem o direito de onerar mais
a um cidadão do que a outro, porque, então, tornando-se particular a
questão, seu poder não é mais competente. (ROUSSEAU, 1978c, p.
50-51).
Rousseau defende uma questão interessante no seu Contrato Social, que ainda
hoje é motivo de polêmica: o direito de vida e de morte que possui o Estado sobre o
cidadão. Por defender essa condição, ele reafirma que pelo fato de o contrato social ter
a finalidade de conservar todos os contratantes: “Quem deseja conservar sua vida à
custa dos outros, também deve dá-la por eles quando necessário” (ROUSSEAU,
1978c, p. 51).
O pensador também assume uma característica radical quando assegura que, se
o Estado determina que o cidadão deve morrer, essa vontade deve ser concretizada,
vez que a vida passa a ser um dom condicional desse mesmo Estado. Rousseau
(1978c) tem o mesmo ponto de vista em relação à pena de morte aos criminosos
condenados, pois que estes deixam de ser membros do Estado, podendo ser isolados
pelo exílio como infratores do pacto social, ou pela pena de morte, como inimigos
públicos. Poderá ocorrer, no entanto, uma rara exceção quando se tratar da aplicação
de graça ou isentar um culpado da pena através da mão do soberano.
73
Finalmente, sobre as características da soberania, Rousseau afirma que há uma
espécie de exceção, em que se faz necessário suspender a autoridade do soberano
por determinado período de tempo. O pensador acredita que, dada a inflexibilidade das
leis que as impedem de acompanhar o ritmo dos acontecimentos sociais, em certos
casos, elas podem se tornar nocivas ao corpo político, causando sérios riscos de
perecimento do Estado.
Nessa linha, só a gravidade dos fatos é que pode autorizar a alteração da ordem
pública, podendo-se suspender a eficácia da lei quando se tratar unicamente do caso
de salvação da pátria. Para esse fim, Rousseau (1978c) admite a figura do “ditador”,
que é uma espécie de chefe supremo e administrador temporário, que não se
assemelha em nada com a figura do ditador da modernidade. Rousseau alerta, porém,
que a suspensão da autoridade do soberano (ou autoridade legislativa) não implica a
eliminação da vontade geral.
3.3 Razão normativa: justiça e liberdade como possibilidades para a
justiça social
Os temas da justiça e da liberdade serão analisados na perspectiva do
pensamento político de Rousseau, levando em conta a moldura da tríade que até então
serviu de espeque para a nossa argumentação filosófico-política: Discurso sobre a
origem e os fundamentos das desigualdades entre os homens, Emílio e, em especial,
Contrato Social. Como apoio didático fundamental, retornamos obrigatoriamente ao
conceito de soberania, para justificar a razão normativa do Estado como ente moral
formado para a obtenção do bem comum.
Como já visto, em Rousseau (1978c), a vida do Estado consiste na união de todos
os seus membros com a finalidade de sua própria conservação, sendo este revestido
de uma força universal voltada para mover e dispor os seus participantes da maneira
74
mais proveitosa a todos. Portanto, o Estado ideal de Rousseau surge a partir do pacto
social, que forma o corpo político com poder absoluto sobre todos os seus membros, e
que, quando dirigido pela vontade geral, ganha o nome de soberania. Dessa forma, o
pensador expõe a origem do Estado e o fundamento do seu poder político.
Dent (1996, p. 149), comentando sobre a justiça em Rousseau, afirma que não é
encontrado um conceito geral sobre esse instituto nas obras do pensador. Porém, é
perceptível em seus trabalhos literários o que ele entendia serem os requisitos básicos
de justiça. Assim, as regras de justiça são provenientes de Deus e estão inseridas na
consciência de cada indivíduo, podendo-se admitir a criação do direito positivo para
submissão à vontade desses requisitos. Segundo o comentador em foco, esses
requisitos pedem: “que ninguém seja prejudicado em sua vida, liberdade, posses ou
personalidade moral, seja por deliberada má vontade, ou por negligência ou
indiferença”.
Ainda de acordo com o Dent (1996), para Rousseau, granjear justiça para todos
os participantes do pacto social é a finalidade principal da associação civil. A vontade
geral, ao atuar de forma abrangente, propicia justiça para todos, tendo em vista a sua
competência para a elaboração das leis e a participação de cada indivíduo como
partícipe do poder soberano. Rousseau (1978c, p. 53-54) declara que toda justiça vem
de Deus, e que existe uma justiça universal vinda da razão que deve ser aplicada de
forma isonômica. No entanto, admite que deve haver uma lei elaborada pela sociedade
civil para o cumprimento dos deveres dos cidadãos:
Toda a justiça vem de Deus, que é a sua única fonte; se soubéssemos,
porém, recebê-la de tão alto, não teríamos necessidade nem de
governo, nem de leis. Há, sem dúvida, uma justiça universal emanada
somente da razão; tal justiça, porém, deve ser recíproca para ser
admitida entre nós.
Considerando-se humanamente as coisas, as leis da justiça, dada a
falta de sanção natural, tornam-se vãs para os homens; só fazem o
bem do mau e o mal do justo, pois este as observa com todos, sem que
ninguém as observe com ele. São, pois, necessárias convenções e leis
para unir os direitos aos deveres, e conduzir a justiça a seu objetivo.
75
No estado de natureza, no qual tudo é comum, nada devo àqueles a
quem nada prometi; só reconheço como de outrem aquilo que me é
inútil. Isso não acontece no estado civil, no qual todos os direitos são
fixados pela Lei.
A justiça social em Rousseau (1978c) é algo intrínseco ao seu “Contrato Social”.
Esse fato é percebido ao analisarmos que a vontade de cada componente do pacto
social, ao revelar-se como vontade geral, mantido o seu nível de igualdade, busca a
efetivar o interesse comum, para formar um corpo livre e soberano em suas decisões
para o benefício de todos.
O tema da justiça em Rousseau (1978c, p. 53) também é circundado pela questão
da legislação, ou seja, a elaboração e a atuação da Lei no âmbito do Contrato Social.
Para o pensador, deve-se dar movimento e vontade ao corpo político através da
legislação:
Pelo pacto social demos existência e vida ao corpo político. Trata-se,
agora, de lhe dar, pela legislação, movimento e vontade, porque o ato
primitivo, pelo qual esse corpo se forma e se une, nada determina
ainda daquilo que deverá fazer para conservar-se.
O conceito de Lei em Rousseau (1978c, p. 55) é bastante amplo, vez que reúne a
universalidade da vontade como fonte do poder soberano:
Baseando-se nessa idéia, vê-se logo que não se deve mais perguntar a
quem cabe fazer as leis, pois são atos da vontade geral, nem se o
príncipe está acima das leis, visto que é membro do Estado; ou se a Lei
poderá ser injusta, pois ninguém é injusto consigo mesmo, ou como se
pode ser livre e estar sujeito às leis, desde que estas não passam de
registros de nossas vontades.
[...].
As leis não são, propriamente, mais do que as condições da
associação civil. O povo, submetido às leis, deve ser o seu autor. Só
àqueles que se associam cabe regulamentar as condições da
sociedade.
Para Rousseau (1978c, p.66), o maior de todos os bens consiste da estrutura
Estatal, e reside na finalidade dos sistemas de legislação, resumindo-se em dois
76
objetivos principais, que são a liberdade e a igualdade. “A liberdade, porque qualquer
dependência particular corresponde a outro tanto de força tomada ao corpo do Estado,
e a igualdade, porque a liberdade não pode subsistir sem ela.”
Com a finalidade de dar a melhor forma possível ao ordenamento jurídico do
Estado, Rousseau (1978c, p. 68-69) estabelece uma divisão das Leis, distinguindo-as
em quatro classes: a) a primeira classe é composta pelas leis políticas, ou
fundamentais, que se caracterizam pela ação do corpo político “agindo sobre si
mesmo, isto é, a relação do todo com o todo, ou do soberano com o Estado”; b) a
segunda são as leis civis, que correspondem à relação “dos membros entre si ou com o
corpo inteiro”10
; c) a terceira são as leis criminais, que se caracterizam pela
desobediência à pena e “instituem menos uma espécie particular de leis do que a
sanção de todas as outras”; e, d) as leis consuetudinárias, que compõem a quarta
espécie de leis e faz a verdadeira constituição do Estado.
Ao tratar sobre os poderes do Estado, Rousseau (1978c) descreve as funções do
legislativo e do executivo. Como já visto, de acordo com o pensador, o poder legislativo
pertence ao povo, que em seu nome elabora as leis, através da vontade geral como ato
de soberania popular. O poder executivo, que só desempenha atos particulares, não
pode exercer uma ação generalizada como legislador ou soberano, não possuindo por
isso mesmo a alçada da lei.
Rousseau (1978c) denomina de Governo o agente instituído para o fim de servir
de comunicação entre o Estado e o soberano, e que reúna e ponha em prática as
determinações da vontade geral. Nesse aspecto, por possuir o exercício legítimo do
10
No primeiro caso, deverá ser pequena, e, no segundo, “tão grande quanto possível, de modo que cada cidadão se encontre em perfeita independência de todos os outros e em uma excessiva dependência da pólis”. (ROUSSEAU, 1978c, p. 68-69).
77
poder executivo, faz o papel de intermediário entre os súditos e o soberano, com o
encargo de execução das leis, e cuidando para que as liberdades civil e política não se
degenerem. De forma bem peculiar, o pensador denomina os membros desse corpo
governamental de magistrados, reis ou governantes. E o corpo, em sua totalidade,
encarregado dessa administração, qualifica de príncipe.
Com o poder soberano exercido diretamente pelo povo, e na qualidade de ser o
único a elaborar as leis do Estado, Rousseau (1978c) deixa claro que é contra a
representatividade política. Com isso, o pensador defende de forma fundamentada e
radical, à luz da soberania popular, a democracia direta, afastando os riscos da
representatividade. Se a representatividade adquirisse maior fôlego como condição
para o funcionamento do Estado, na visão de Rousseau (1978c, p. 106-109),
estaríamos diante do declínio do homem público:
A soberania não pode ser representada pela mesma razão por que não
pode ser alienada, consiste essencialmente na vontade geral e a
vontade absolutamente não se representa. É ela mesma ou é outra,
não há meio-termo. Os deputados do povo não são, nem podem ser
seus representantes; não passam de comissários seus, nada podendo
concluir definitivamente. É nula toda lei que o povo diretamente não
ratificar; em absoluto não é lei.
[...].
Não sendo a Lei mais do que a declaração da vontade geral, claro é
que, no poder legislativo, o povo não possa ser representado, mas tal
coisa pode e deve acontecer no poder executivo, que não passa da
força aplicada à Lei.
Rousseau (1978c, p. 114) é bastante preciso em sua fundamentação política, ao
esquadrinhar acerca da legislação, afirmando que todas as leis elaboradas pelo poder
soberano estão passiveis de revogação, inclusive a que firmou o pacto social, “se
todos os cidadãos se reunissem para, de comum acordo, romper esse pacto”.
O pensador cria em seu arcabouço legislativo duas figuras interessantes e bem
distintas uma da outra, a saber: o Legislador e o Tribunato. O Legislador não possui
78
similitude com a soberania popular, ou seja, não tem a competência para efetivar as
leis. Nem pratica atos de magistratura.
Rousseau (1978c) traça inicialmente os atributos do Legislador como um “ser”
quase sobrenatural, devendo ser uma pessoa que tenha o dom de captar as melhores
regras para o bom desenvolvimento das sociedades, com uma inteligência superior e
que conhecesse bem todas as paixões humanas, porém, sem obter contato com as
mesmas. Alguém que percebesse com clareza todos os problemas comuns do homem
em sociedade. A sua finalidade é atuar como uma espécie de guia para fazer aflorar na
consciência de todos os indivíduos o espírito social. Ele pode servir, ainda, como um
orientador para a elaboração das leis.
Depreende-se, pela leitura do “Contrato Social”, que o Tribunato é uma espécie
de Ministério Público hodierno. Rousseau (1978c) o qualifica como uma magistratura
particular independente, que não participa de qualquer outro corpo político do Estado.
Não pertence ao poder legislativo ou executivo. Dessa forma, a necessidade da
existência do Tribunato, reside inicialmente quando estão de certa forma abaladas as
partes constitutivas do Estado.
O Tribunato figura, pois, como um defensor das leis e do poder legislativo. Serve
igualmente para proteger o soberano contra o Governo, e também para sustentar o
Governo contra o povo. Finalmente, destaca o pensador: “o tribunato sabiamente
equilibrado representa o mais firme apoio de uma boa constituição”. Outra questão
diretamente vinculada à teoria política de Rousseau, e que chama a atenção para a
força que contrato social exerce sobre o indivíduo em torná-lo totalmente dependente
do Estado, é a sua ideia de religião civil. Vejamos como Rousseau a define:
Deixando de parte, porém, as considerações políticas, voltemos ao
direito e fixemos os princípios sobre este importante ponto. O direito,
que o pacto social dá ao soberano sobre os seus súditos, não
ultrapassa, como já o disse, os limites da utilidade pública. Os súditos,
portanto, só devem ao soberano contas de suas opiniões enquanto
79
elas interessam à comunidade. Ora, importa ao Estado que cada
cidadão tenha uma religião que o faça amar seus deveres; os dogmas
dessa religião, porém, não interessam nem ao Estado nem a seus
membros, a não ser enquanto se ligam à moral e aos deveres que
aquele que a professa é obrigado a obedecer em relação a outrem.
Quanto ao mais, cada um pode ter as opiniões que lhe aprouver, sem
que o soberano possa tomar conhecimento delas, pois, como não
chega sua competência ao outro mundo, nada tem a ver com o destino
dos súditos na vida futura, desde que sejam bons cidadãos nesta vida.
(ROUSSEAU, 1978c, p. 143).
Essa profissão de fé, entretanto, está para além de dogmas religiosos; é, no dizer
do pensador, algo “puramente civil”, que se destina a fins sociais. Senão, vejamos:
Há, pois, uma profissão de fé puramente civil, cujos artigos o soberano
tem de fixar, não precisamente como dogmas de religião, mas como
sentimentos de sociabilidade sem os quais é impossível ser bom
cidadão ou súdito fiel. Sem poder obrigar ninguém a crer neles, pode
banir do Estado todos os que neles não acreditarem, pode bani-los não
como ímpios, mas como insociáveis, como incapazes de amar
sinceramente as leis, a justiça, e de imolar, sempre que necessário, sua
vida a seu dever. Se alguém, depois de ter reconhecido esses dogmas,
conduzir-se como se não cresse neles, deve ser punido com a morte,
pois cometeu o maior de todos os crimes – mentiu às leis.
Os dogmas da religião civil devem ser simples, em pequeno número,
enunciados com precisão, sem explicações ou comentários. A
existência da Divindade poderosa, inteligente, benfazeja, previdente e
provisora; a vida futura; a felicidade dos justos; o castigo dos maus; a
santidade do contrato social e das leis – eis os dogmas positivos.
Quanto aos dogmas negativos, limito-os a um só: a intolerância, que
pertence aos cultos que excluímos (ROUSSEAU, 1978c, p. 143-144).
Rousseau (1978c, p. 27) declara textualmente ter estabelecido os verdadeiros
princípios do direito político e fundado o Estado em sua base, sendo recorrente por
isso, e central na sua obra, a homogeneidade existente entre igualdade e liberdade.
É significante quando ele anuncia que “renunciar à liberdade é renunciar à qualidade
de homem, aos direitos da humanidade, e até aos próprios deveres.” Daí a sua
preocupação em idealizar um Estado em que todos fossem iguais perante a Lei, e
livres, na medida em que renunciam o seu poder individual em prol de todos os que
compõem o poder soberano.
CONCLUSÃO
A partir de seus dois primeiros Discursos: Discurso sobre as ciências e as artes e
o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens,
Rousseau efetua uma crítica severa da sociedade desigual e injusta de seu tempo.
Com isso, podemos afirmar que essa forte tendência está vinculada aos ideais
iluministas, numa época em que a França era um país de predominância agrícola, com
pouca atividade industrial, cujo quadro de miséria entre artesãos e pequenos
proprietários rurais (camponeses) foi aumentando na medida em que a burguesia
caminhava para um quadro de ascensão econômica, refletida pelos seus interesses na
agricultura, com a compra de terras, com a participação dos nobres, que
aperfeiçoavam a exploração de suas propriedades, e dos intelectuais desejosos de
mudanças radicais. É fato, também, que este quadro injusto tinha amparo na
legislação, em cuja promulgação os camponeses não tiveram qualquer participação.
Esse panorama do processo civilizatório, da propriedade privada, legislação
tendenciosa com a formação dos governos despóticos, seria a matriz inicial do discurso
de Rousseau.
A visão que Rousseau tem da história humana, pensamos, é marcada por certo
pessimismo, ou seja, os benefícios do progresso sempre atraem alguma perda
inevitável. Assim, há quem o denomine de misantropo.
Pela análise prática do seu pensamento, percebemos que, quanto mais os
homens se distanciam de suas origens, mais infelizes se tornam. Desde os seus
primeiros textos, Rousseau tenta guiar os homens na busca da compreensão do que é
a verdadeira natureza humana.
A sua obra de importância no aspecto pedagógico-político, Emílio, ou Da
Educação, serviu como uma espécie de alicerce que contribuiu para a formação moral
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e política do homem, a fim de justificar a sociedade ideal criada por Rousseau a partir
da sua obra política, Contrato Social.
Rousseau considerou o estado de natureza uma condição pré-social do homem,
que é refletida em seu próprio caráter. Assim sendo, as características do meio
ambiente causariam grande influência em sua personalidade. Outro aspecto abordado
pelo pensador é o de que o homem no estado de natureza é motivado pelo amor de si
mesmo; é suscetível de piedade, e tem a capacidade para a perfectibilidade e para o
exercício do livre-arbítrio. Nesse estado, o homem manteria suas características mais
puras em contato com o seu habitat, que é a natureza. O estado cívico apontado no
Discurso da desigualdade é aquele em que o homem caminhou para a sua própria
decadência, sendo a causa principal da desigualdade entre os homens.
Ao analisarmos o pensamento rousseauniano, entendemos que o pensador
admite que sejam utilizados, na consecução do estado cívico ideal, valores
compreendidos no estado de natureza (paixões naturais), a fim de aperfeiçoar a
sociedade emergente.
Nessa altura, é preciso alertarmos que o Discurso sobre a desigualdade é uma
obra que foi elaborada a partir das conjecturas do autor, quiçá baseada na observação
da sociedade de seu tempo.
Como um segundo tipo de fundamento, por assim dizer, em obediência à ordem
cronológica em que foram publicadas as obras de Rousseau, com o fito de alcançar a
completude de nossas pesquisas, Emílio, ou Da Educação aponta em Rousseau a
preparação do indivíduo desde a sua mais tenra idade até atingir a maioridade
(maturidade), culminando com a formação moral e política do homem.
Desvendamos pontos positivos na pedagogia de Rousseau, como a formação
moral para o respeito da dignidade humana, a preparação para a vida política e o
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núcleo familiar entre Emílio e Sofia, como supedâneo para fortalecer os vínculos
sociais. Porém, discordamos da sua proposta de “educação negativa”, ao pretender
que a criança seja guiada, em sua formação inicial, apenas pelos seus sentidos, até os
catorze anos de idade.
Justificamos nosso posicionamento, fundamentando no fato de que o homem não
pode ser tratado como uma máquina, ou colocado dentro de uma fórmula matemática,
como um ser limitado em suas emoções, e também não pode ser adestrado como se
fosse um animal irracional, ou seja, elevado à categoria de mero indivíduo autômato.
Os fatos psíquicos são uma construção em que todos participam, em uma
ambiência em que a subjetividade vai sendo construída a partir das experiências, mas
que pode muito bem ser complementada com a chamada “educação positiva”
(educação tradicional), tão bem definida por Rousseau na carta ao Arcebispo de Paris
Christophe de Beaumont.
Aportando no Contrato Social, de Rousseau, podemos afirmar que a noção de
liberdade é central no seu pensamento. Em sua teoria, ela representa algo inato no
indivíduo. A liberdade ideal almejada por Rousseau é aquela que nasce
verdadeiramente a partir de uma sociedade em que os homens estão dispostos a abrir
mão do direito de agir de forma individual em troca dessa liberdade ideal, que estaria
conforme as leis que os convenentes impõem a si mesmos, em nome do interesse
comum.
A partir da noção dessa liberdade, Rousseau enfatiza a importância da
elaboração de um pacto social, que é firmado pela vontade geral, que, como já foi dito,
corresponde ao interesse comum voltado para a legitimação da origem da lei justa e
eficiente para a formação do Estado ideal. A soberania, nessa estrutura, avulta dessa
vontade geral que emana do povo, a qual corresponde ao poder legislativo,
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responsável pela elaboração das leis. Dessa forma, Rousseau defende a democracia
direta, relegando a representatividade política.
Nesse ponto, o pensador não explica de forma clara quais são todas as cláusulas
de sua convenção coletiva, logo, já seria muito difícil obrigar e/ou forçar o cidadão a
obedecer à vontade geral. Acreditamos também ser bastante inviável reunir uma
multidão de pessoas a fim de legislar em causa própria sem que isso interferisse na
vida pessoal e familiar do citadino.
É questionável, igualmente, a sua proposta radical de religião civil, ou profissão
de fé puramente civil, elaborada pelo soberano sem fixar precisamente dogmas de
religião, mas tão-somente para representar sentimentos de sociabilidade. Entendemos
ser contraditória com alguns de seus posicionamentos humanistas.
Ora, Rousseau busca uma sociedade igualitária, fundada nos sentimentos
naturais mais sublimes, como o respeito ao próximo, e a compaixão que desperta em
nós a solidariedade com a infelicidade e o sofrimento de outrem. Mas, a contrario
sensu, defende uma religião civil criada a partir do seu Estado ideal, que deve banir da
sociedade todo aquele que não acreditar nos ditos artigos de fé.
Encontramos uma maior gravidade acerca do assunto, quando Rousseau diz
textualmente que se, depois de ter reconhecido esses artigos, alguém se comporta
como se não cresse neles, deve ser punido com a morte.
Porém, é necessário que se diga que Rousseau, ao contrário do seu Discurso
sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, não pretende
discutir no Contrato Social uma antropologia política, ou a origem histórica da
sociedade humana. A sua produção política não corresponde a uma realidade aferível
empiricamente. Consiste na elaboração de um Estado democrático ideal, por isso, com
base igualitária, que de forma incontestável serviu para embasar constituições de
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democracias futuras. Hodiernamente, justifica-se revisitar o pensamento de Rousseau
para compreender melhor a vida social e política humana, que é a que se propõe essa
produção.
Torna-se perceptível que Rousseau, no seu Discurso sobre a origem e os
fundamentos da desigualdade entre os homens, aponta o mal social causado pelo
progresso da civilização, e a partir do Emilio, ou Da Educação, dá a sua contribuição
para a formação do homem, visando constituí-lo como cidadão para habitar a sua
sociedade ideal, a partir dos princípios do direito político estabelecidos pelo Contrato
Social. Assim, a vontade geral é uma verdadeira catarse do estado cívico descrito no
seu Segundo Discurso, em que os homens são escravos de suas próprias
dissimulações, sob o manto perpétuo da aparência.
Rousseau, em busca da transparência e como um dos precursores do
romantismo, privilegia a voz do coração através dos sentimentos, da consciência e da
compaixão, encadeados num alicerce firme para fortalecer a razão moral. No entanto,
diante do obstáculo do pernicioso movimento humano que identificou e ao mesmo
tempo diagnosticou de forma conjectural, não traiu os seus sentimentos mais sublimes
de esperança para o redimensionamento da sociedade dos homens. Ele nos faz um
convite, e ao mesmo tempo nos irmana através da providência, no sentido de que a
compaixão é um exercício espiritual, uma energia dinâmica, e quem a pratica coloca
em movimento as forças da natureza (do universo).
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