View
215
Download
0
Category
Preview:
Citation preview
1
HISTÓRIA, MEMÓRIA E PSICANÁLISE: DO TESTEMUNHO À
REPARAÇÃO DAS VÍTIMAS E FAMILIARES QUE SOFRERAM COM A
VIOLÊNCIA PERPETRADA PELA DITADURA CIVIL-MILITAR NO RIO
GRANDE DO SUL
ANA LÚCIA MARQUES RAMIRES
1
UNILASALLE/RS
ana.lucia.ramires@hotmail.com
Tudo o que é chamado hoje de memória não é, portanto, memória,
mas já é história. Tudo o que é chamado de clarão de memória é a
finalização de seu desaparecimento no fogo da história. A necessidade
de memória é uma necessidade de história. (NORA, 1981, p. 14).
1 INTRODUÇÃO
Ao final da Segunda Guerra Mundial o poderio político e econômico dos países
da Europa Ocidental cedeu lugar ao estabelecimento de uma nova ordem mundial
polarizada em torno da defesa do capitalismo pelos Estados Unidos e do socialismo pela
União Soviética. A disputa pela hegemonia entre estas potências originou a Guerra Fria.
Desta forma, o Terceiro Mundo (conjunto de países da América, África e Ásia) foi
1 Este artigo foi elaborado pelos participantes do Grupo do Testemunho (Projeto Clínicas do Testemunho
na Sigmund Freud Associação Psicanalítica - SIG em Porto Alegre – RS) sendo de autoria de: 1 - Alexei
Conte Indursky: Psicólogo, Mestre e Doutorando pela Universidade Paris VII, Denis-Diderot, Centre de
recherches en psychanalyse, médecine et sociétés (CRPMS). Integrante da equipe do Clínicas do
Testemunho (Sigmund Freud). 2 - Ana Lúcia Marques Ramires: Graduada/Licenciada em História pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e Mestre em Memória Social e Bens Culturais
pelo UNILASALLE /Canoas Atua como professora de História na Educação Básica nas redes pública e
privada. 3 – Bárbara de Souza Conte. Psicanalista, Doutora em Psicologia pela Universidade Autônoma
de Madri. Membro Pleno da Sigmund Freud Associação Psicanalítica e Coordenadora do Projeto Clínicas
do Testemunho. 4 - Carlos Augusto Piccinini: Psicólogo e Mestre em Psicologia Social e Institucional
pela UFRGS. 5 - Francisco Carvalho Júnior: Graduado em História pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul –UFRGS. Historiador do Núcleo de Pesquisa em História/NPH, do Departamento de
História e PPG em História. Especialista em História do Rio Grande do Sul pela UFRGS. Atualmente
coordena com o Prof. Enrique Serra Padrós o Projeto” Vozes contra o silêncio: resistência e
sobrevivência no Cone Sul da segurança nacional”. 6 - Maria Luiza Castilhos Flores Cruz, Psicóloga
Clínica da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre, com formação em Psicologia Social, Saúde
Coletiva e Trabalho na Sociedade Brasileira. Autora do livro “Elvis, Che, Meu Pai e o Golpe de 64” que
narra memórias de sua família acerca da prisão de seu pai durante o golpe de 1964. 7- Marilia Benevenuto
Chidichimo: Advogada, Graduada em Ciências Jurídicas e Sociais pela UNISINOS- Universidade do
Vale do rio dos Sinos, em São Leopoldo. Atua na área cível, com experiência em indenização política na
esfera administrativa.
O referido projeto foi proposto pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça e visa proporcionar
espaços de discussão e escuta psicanalítica para as pessoas que foram vítimas ou testemunhas de
violações de direitos durante a ditadura civil-militar.
2
dividido em áreas de influências dessas potências, passando a ser palco de tensões e
enfrentamento em âmbito político, ideológico e militar.
Uma das consequências mais nefastas da extensão da Guerra Fria na América
Latina foi o surgimento das ditaduras de Segurança Nacional no Brasil, na Argentina,
no Chile e no Uruguai, capitaneadas pelos Estados Unidos. De acordo com Padrós
(2005), nas décadas de sessenta e setenta do século XX, ocorreu no sul deste continente
“uma intensa radicalização do processo de luta de classes”, através de propostas
políticas “reformistas/nacionalistas e até socialistas, tendo por referência a Guerra do
Vietña, a Revolução Cubana e “a trajetória revolucionária de Che Guevara.” (PADRÓS,
2005, p.22-23). Para esse autor em termos econômicos as ditaduras viabilizaram o
atrelamento dos interesses burgueses locais com capital internacional e em termos
políticos os objetivos eram visíveis: combater os movimentos revolucionários, impondo
uma “ordem interna disciplinadora de segurança e estabilidade”(PADRÓS, 2005, p.21-
22), com o fim do pluripartidarismo e das eleições. O resultado desses anos de chumbo,
de extrema violência contra pessoas e instituições foi a imposição de “uma cultura do
medo” que dificulta “a redemocratização posterior, numa “espécie de democracia
imperfeita e inconclusa.” (PADRÓS, 2005, p. 22). Para Vizentini (1998) as ditaduras
citadas foram orientadas pela Doutrina de Segurança Nacional e com o apoio dos
Estados Unidos foram responsáveis pelas “torturas, assassinatos e desaparecimentos,
instituindo o terrorismo de estado como regra política.” (VIZENTINI, 1998, p.131).
Pollak (1989) considera que há um momento na transição do totalitarismo para a
democracia, onde as memórias subterrâneas (marginalizadas) quebram o silêncio,
espalhando-se pela sociedade provocando reivindicações e a revisão do passado. No que
tange especialmente à inconclusão da democracia brasileira, tendo passado mais de
meio século da instalação daquele período de terror, o tema ditadura e violência
(silenciado mas não esquecido) tem sido apropriado por diferentes segmentos sociais,
como as vítimas e familiares da violência de Estado, pesquisadores, movimentos de
direitos humanos, comissões da Verdade e de Anistia, entre outros e assim, as demandas
relativas às questões sobre história, memória e reparação deste período histórico têm
ocupado centralidade no sentido da busca pela verdade e justiça. BAUER(2011), ao
criticar a posição do ex-presidente Lula em relação à ditadura, ressalta o papel
apaziguador, brando e omisso do Estado brasileiro frente às graves violações de direitos,
3
destacando a urgência de políticas públicas neste sentido. A autora salienta que há uma
necessidade de se “elaborar políticas públicas de memória e reparação e, assim,
combater as sequelas do terrorismo e da cultura do medo.” (BAUER, 2011, p. 2-3).
O presente artigo apresenta sucintamente uma aproximação entre história,
memória e psicanálise, a partir do trabalho desenvolvido no Grupo do Testemunho, o
qual faz parte do Projeto Clínicas do Testemunho da Sigmund Freud Associação
Psicanalítica (SIG) em Porto Alegre (RS) em convênio com a Comissão de Anistia. O
referido grupo é formado por vítimas e familiares afetados pela violência de estado
durante a ditadura civil-militar (1964-1985). Os membros do citado grupo são
profissionais que atuam nas áreas da Educação, Direito, História, Memória e Psicanálise
e organizaram coletivamente este artigo no intuito de contribuir com o debate histórico,
indicando alguns temas transversais discutidos nos encontros semanais do Grupo do
Testemunho e apresentar como desenvolve-se na prática os processos simultâneos de
construção da memória social e reparação dos danos causados pelo regime de exceção.
2 HISTÓRIA, MEMÓRIA E PSICANÁLISE
Estabelecer relações entre história, memória e psicanálise consiste em um
desafio que passa por diferentes sistemas epistemológicos. Contudo, o trabalho no
Grupo do Testemunho tem mostrado que juntos estes campos oportunizam narrativas
para minimizar o sofrimento de vítimas e familiares acometidos por violência de estado.
Se a memória é esta capacidade vulnerável de lembrar, armazenar e perceber,
num tempo e num espaço carregados de significados, a história é a reconstrução sempre
problemática e incompleta do passado que não existe mais; assim demandando análise e
crítica. É das memórias porém, como operação intelectual, que a história se alimenta
(Otto, 2012). Especialmente diante das disputas entre as memórias subterrâneas dos
excluídos e a memória oficial legitimada pelo Estado, a história oral pode ser
instrumento essencial para a construção e problematização da(s) verdade(s) e do que
será lembrado no futuro.
Perde-se de vista a possibilidade de um acesso a uma memória pura, ou ao
destino do acontecimento real, quando então temos uma verdade que só pode ser
4
acessada pela verdade narrativa. Quando Bohleber (2007), analisa a dinâmica da
recordação resgata a importância da reconstrução da memória. O fato de ser seletiva,
fragmentada, filtrada pelo que tem significado para nós, nos impede o acesso a um
conteúdo intacto, às vezes encontrando-se profundamente alterado. Recordar a história
de vida cumpre então um papel essencial na reconstrução de forças terapêuticas,
especialmente diante de situações críticas de alta comoção psíquica como já estudado
nos efeitos do pós-guerra e Holocausto.
Mandelbaum (2011), mostra a psicanálise como instrumento hermenêutico que
colabora na elucidação dos fenômenos sociais embora não substitua o lugar da
consciência histórica. A memória “é uma Babel, diz ele, tanto em seu sentido
macroscópico quanto em sua dimensão microscópica, ao nível da história familiar de
cada um” (MANDELBAUM, 2011, p. 28). O homem é produto psíquico de uma
regressão infinita de histórias familiares em que nada se suprime. “Toda história
familiar carrega também silêncios, pontos de suspensão, hifens e mutismos”, dizia o
autor (MANDELBAUM, 2011, p. 33) - o que quer dizer que na tentativa de suprimir
um conteúdo pode apenas silenciar, isolar, sem evitar que continue operando sobre a
realidade psíquica e social e ainda, com certeza de forma amplificada, no novelo das
ideias das gerações familiares.
Pode-se dizer que o sujeito é uma elaboração sobre suas origens e que também
não há memória pura, embora rememorar seja um ato único, singular e subjetivo. De
outra parte, a impossibilidade da evocação fiel à verdade dos fatos não pode ser
entendida sem outro ensinamento de profundo significado que Freud(1996)nos deixou:
o que se viveu nunca desaparece da memória, ou seja do inconsciente, pois esquecer
nunca significa a completa eliminação.
3 O TESTEMUNHO NAS PERSPECTIVAS JURÍDICA, HISTÓRICA E DA
MEMÓRIA SOCIAL
Na busca pela verdade e por justiça frente a violações de direitos ocorridas
durante a ditadura civil-militar brasileira, o testemunho é um dos principais meios
utilizados nas áreas do direito, história e memória social. Partindo destes campos, se faz
5
oportuno refletir sobre o conceito, as formas, o ambiente e a subjetividade implícita no
ato de testemunhar, destacando também, o papel do testemunho na pesquisa histórica e
na elaboração da memória social do período histórico em questão.
No âmbito do direito, prestar um testemunho perante a justiça implica na busca
pela verdade - dizer a verdade, nada mais que a verdade. A narrativa é tomada,
sobretudo, como um ato no qual o sujeito, uma vez nele engajado, poderá ser requerido
a repeti-lo sob o preço de atestar o valor de verdade esperado. A figura da testemunha
na condição de álibi da verdade relatada é assim investida da necessidade de que, ao
repetir seu depoimento, ela conte uma mesma história, relate a mesma cena, ateste da
verdade que permanecerá a mesma com o passar do tempo. O depoimento jurídico pode
sustentar assim as provas materiais que são encontradas durante uma investigação. Estas
por si só podem carregar uma evidência incontestável sobre um fato: DNA, arquivos,
documentos, vídeos e fotos. No entanto, como comenta Jacques Derrida (1996), existe
uma heterogeneidade com relação à evidência material e ao testemunho: nós clamamos
pela versão daquele que estava lá para atestar a materialidade da prova. Tal
convocatória atesta igualmente que as condições de recepção de um depoimento são tão
fundamentais para sua realização, quanto o relato em si. Estar investido ou não de um
lugar desde onde a verdade pode emergir é fundamental para a elaboração de sua
vivência e sua possível transmissão. A partir dessa constatação, gostaríamos de
sustentar um distanciamento do testemunho daquele da prova jurídica.
O conceito de testemunho, realizado pelo sujeito afetado pela violência
totalitária, coloca-se assim como um conceito-limite. Ele tanto pode ser facilmente
absorvido por discursos jurídicos, sociológicos e psicológicos que alegam da
improcedência de uma vítima depor enquanto testemunha contra seu algoz, quanto
investir o sujeito testemunho em uma posição de fixidez subjetiva, cujos efeitos de
vitimização não são raros.
Com relação à parcialidade do testemunho, é importante sublinhar que a posição
de testemunho coaduna-se sempre às condições sociais de recepção de uma
comunidade, nas quais a realização de julgamentos e a consequente
responsabilização/publicização dos crimes cometidos são de suma importância para o
reconhecimento do sofrimento dos testemunhos. Basta lembrar do enorme esforço
empregado contra o negacionismo da Shoah, no qual o julgamento de Eichmann serviu
6
como a guinada decisiva para a criação de uma política de memória, onde pela primeira
vez inúmeras vítimas foram escutadas durante e após o processo (Rousso, 2011).
Quanto aos efeitos subjetivos do testemunhar, estamos convictos da importância
de um acompanhamento junto a tais circunstâncias tão importantes de nossa atualidade.
Todos sobreviventes passam por uma dupla injunção ao saírem da situação de
assujeitamento ao outro a qual estavam submetidos. Por um lado, uma necessidade
visceral de tudo falar para que o vivido, por mais insensato que seja, não fique relegado
a um delírio privado, cuja desrealização acomete o sujeito em sua própria certeza de
existência. Por outro, a vontade de tudo silenciar para que a dor vivida nos tempos de
tortura, cárcere, perseguição possa sair de cena, como se o silêncio pudesse carregar
consigo o apaziguamento de uma memória sitiada, que não permite mais espaço para
qualquer outra lembrança não contaminada por tais eventos. Doravante essa dupla
injunção colocará o sujeito na delicada questão sobre qual a boa distância tomar frente a
tais memórias.
Regine Waintrater (2003), em seu livro Sair do genocídio, no qual trabalha com
testemunhos de sobreviventes da Shoah e de Ruanda, propõe pensar duas formas de
testemunho. Uma na qual realiza-se uma transmissão viva e outra na qual dá-se uma
transmissão morta da experiência. Esta última caracterizar-se-ia pela posição fixa em
que o ouvinte é colocado frente ao relato. Na transmissão morta o testemunho ocuparia
a posição do depoente, típico do paradigma da prova jurídica. Ali o discurso segue
sempre um mesmo caminho, atesta as mesmas cenas nas quais o sujeito está sempre na
mesma posição frente a seu enunciado. Um dever de memória se impõe ao testemunho!
Já na transmissão viva, a autora alega que o ouvinte ou receptor do relato tem acesso
direto ao processo de pensamento e de elaboração psíquica da testemunha. Muitas
sessões podem se seguir para que esta possa dizer de um acontecimento, ou ainda, que
ela possa colocar-se numa outra posição frente ao evento traumático sem reviver a
situação de despedaçamento psíquico como outrora. Ao recontar sua história o
testemunho assume o risco de modificar-se a si mesmo, na medida em que ele pode
escutar a sua própria voz narrando o inefável. De acordo com nossa experiência, ambas
posições estão em permanente tensão.
Sobre o trabalho com o testemunho na pesquisa histórica e no processo de
elaboração da memória social da ditadura civil-militar cabe ressaltar que as pessoas-
7
fonte constituem a metodologia utilizadas nas entrevistas realizadas no Projeto” Vozes
contra o silêncio: resistência e sobrevivência no Cone Sul da segurança nacional”, a qual está
embasada na história oral. Estas entrevistas devidamente autorizadas pelas pessoas-
fonte são posteriormente disponibilizadas para pesquisa no Núcleo de Pesquisa em
História da UFRGS.
Quanto a subjetividade implícita na palavra, consideramos que esta não é um
problema, ao contrário, ela é próprio enriquecimento do testemunho pela inclusão de
variáveis que de outra maneira não seria possível. Ouvir o outro, participar da
elaboração de sua narrativa, ter a capacidade/oportunidade de perceber as alteridades,
ações, indagações, entre outras questões, daquele que narra, torna possível uma maior
aproximação do objeto de estudo. O processo de constatar e contrastar as informações, o
trabalho da memória, é fundamental para a compreensão de um determinado período
histórico e suas injunções na vida dos protagonistas e da sociedade brasileira.
Em se tratando de “narrativa política”, isto se torna mais evidente ou mais
perceptível por tratarmos com pessoas que extrapolam o cotidiano da maioria da
população pois têm uma ação concreta a desempenhar: desenvolver a dimensão política
do social a fim de que resulte numa modificação radical e substantiva do mesmo. E
mais, estas pessoas-fonte acabam, como não bastasse suas vivências de enfrentamento
ao regime brutal da ditadura, deparando-se com a lógica perversa de serem, ao mesmo
tempo, testemunhos e depoentes diante da justiça. O cuidado nessa relação, mais a cargo
da justiça de transição, pode se transformar numa tênue lâmina na sua interpretação, ora
da pessoa-fonte testemunha, ora da pessoa-fonte depoente militante. A narrativa daí
resultante é tensa e reveladora.
Durante a pesquisa a atenção dada ao diálogo com a pessoa-fonte que
testemunha torna-se mais refinada, queremos ou pretendemos apreender na palavra do
outro o momento fugaz, rápido, da lembrança para aí ancorarmos a nossa investigação.
Ao trabalharmos com história oral de vida e com a memória, a narrativa torna-se
fundamental, pois já não apenas conversamos sobre algo acontecido como pretendemos
um reviver crítico sobre ações determinadas. Reviver algo é fundamental para que haja
informação mas, principalmente, comunicação, pois o ato de comunicar é uma relação
interativa entre sujeitos que provoca modificações no pensar, na produção de
conhecimento e na prática de nossas vidas.
8
Também é necessário percebermos as alteridades que são manifestadas ou
percebidas no decorrer de uma entrevista. Questões como; “o que eu faria nesta
situação?”, enquanto uma pessoa narra um determinado fato ou acontecimento, revela
que eu me perceba não somente como distinto, enquanto aquele que formula a pergunta,
porém como igual enquanto vivencio experiências semelhantes como pessoa numa
conjuntura histórica determinada. Ressaltamos a relação dialógica que, além de ser
essencial, pressupõe a situação de entrevista, pois aquela, no momento em que contribui
para as modificações do ato comunicativo que marca uma narrativa faz também com
que transpareçam as diferenças, as contradições que estão subjacentes na relação
dialógica estabelecida entre pesquisador e pessoa fonte. Contradições e diferenças
importantes pois, seja enquanto indivíduos “individualizados” – numa perspectiva
psicológica, por ex., constantemente contrastados em suas emoções, afetividades,
situações existenciais, etc. – seja como indivíduos socializados, essas contradições
apontam que somos desiguais, que existem diferenças e são importantes. Reiteramos a
importância da utilização da fonte oral constituindo um documento e suas implicações
na pesquisa histórica, ao desvelar na relação do pesquisador e entrevistado situações de
um contexto histórico/político/social.
4 O PROJETO CLÍNICA DO TESTEMUNHO
A Sigmund Freud Associação Psicanalítica integra desde janeiro de 2013, o
Projeto Clínicas do Testemunho. Proposto pelo Ministério de Justiça/ Comissão de
Anistia, visa promover, conforme edital público: núcleos de atenção psicológica aos
afetados pela violência de Estado – anistiados políticos, anistiando e familiares - no
período abrangido pela Lei 10.559/02 (entre os anos de 1946 a 1988); capacitação de
profissionais e formulação de insumos de referência para aproveitamento profissional
múltiplo (produção escrita, visual).
A Sigmund Freud Associação Psicanalítica é uma instituição de formação e
transmissão da psicanálise e se alia neste projeto em suas propostas fundamentais: o
direito à verdade e à justiça. O direito à verdade é o resgaste do vivido sob a forma de
testemunho, de narrativa, construção da memória individual e coletiva silenciadas na
9
transição política do governo brasileiro. O direito à justiça é a via de quebrar o
silenciamento indispensável ao caminho da responsabilização.
O Projeto Clínicas do Testemunho é composto das atividades de Capacitação,
Conversas Públicas e atendimento individual e em grupo.
Na perspectiva da Capacitação promove-se o conhecimento da temática da
violência de Estado na história de nosso país, as formas de cuidado e escuta das pessoas
que vivem o efeito do trauma e a sensibilização de profissionais e agentes de saúde da
rede pública da região metropolitana de Porto Alegre que trabalham com pessoas
afetadas pela violência.
Nas chamadas Conversas Públicas, tornamos públicas nossas propostas e,
através de discussões teóricas, de filmes, de peças de teatro que retratam vivências dos
efeitos da tortura, dos desaparecimentos forçados e do exílio, abrimos espaços para que
os sujeitos vençam resistências e deem lugar a palavra, de experiências muitas vezes
recalcadas ou silenciadas por muitos anos. Reparação psíquica e resgate histórico são
fundamentais para que novas histórias sejam escritas e que se fortaleça o compromisso
de rescrever a história da ditadura civil militar no Brasil.
Oferecemos, através do Clínicas do Testemunho, Atendimento psíquico
individual e realizamos Grupos de Testemunho que visam oferecer espaço de
testemunho coletivo, criando coletivamente reconstituição de memória e partilhamento
das experiências.
5 ASPECTOS JURÍDICOS DA REPARAÇÃO
O Tratado de Viena e o Estatuto de Roma, que tratam acerca dos direitos humanos,
bem como os artigos 1º, inciso III; 4º, inciso II; 5º, inciso III da Constituição da República,
são os principais fundamentos para que se busque a responsabilização penal, civil e
administrativa a fim de punir os agentes do Estado e indenizar aqueles que foram afetados
pelos crimes de terrorismo perpetrados pelos agentes da ditadura civil-militar.
O Brasil, embora signatário do Estatuto de Roma, adotado em 17 de julho de 1998,
em Roma, na Itália, conforme Decreto nº 4.388, de 25 de setembro de 2002 insiste em
reconhecer a prescrição desses fatos praticados durante a ditadura, sem se comprometer a
dar andamento ao que pactuou. Assim, conforme o referido Estatuto precisaria adotar a
posição de imprescritibilidade em relação a esses delitos.
10
Diferentemente do que ocorre em relação aos chamados atos comum, os crimes
denominados de lesa-humanidade são específicos e devem assim ser tratados. Na vigência
do regime totalitário, a repressão não permite o acesso à Justiça, bem como o próprio
Estado omite as provas de que necessitam os interessados na reparação dos danos sofridos.
O instituto da prescrição penal tem como um de seus fundamentos o decurso do
tempo, já que este faz com que se percam as provas acerca do fato, bem como leva ao seu
esquecimento. Nos crimes de lesa-humanidade, aqueles praticados durante regimes de
exceção, ocorre o contrário; a punição apenas pode se iniciar após o encerramento do
regime e o decurso do tempo reforça a necessidade de punir, pois é aí que as provas e a
possibilidade de acesso aos arquivos do Estado começam a surgir, não obstante deva o
interessado buscá-las.
Esses são os fundamentos penais pelos quais esses delitos devem ser punidos na
seara criminal.
Na esfera administrativa, no âmbito do Estado do Rio Grande do Sul, foi editada a
Lei Estadual 11.042/97, atualizada pela Lei 11.815/02, as quais serviram como parâmetro
para o ingresso de ações contra o Estado do Rio Grande do Sul (a partir do ano de 1997 até
o ano de 2002), de pessoas que foram presas e torturadas e que por esses motivos restaram
sequelas físicas e psíquicas. Naquela ocasião foi instituída a Comissão Especial de
Indenização com a incumbência de julgar as solicitações de reparação. A Lei previa um teto
máximo de indenização no valor de trinta mil reais àqueles que provassem com todos os
documentos e provas testemunhais de que dispunham a prisão e maus-tratos por parte dos
agentes públicos em órgãos públicos de responsabilidade do Estado.
Em sede Federal, foi editada a Lei 10.559/02 que criou a Comissão de Anistia para
a concessão da anistia aos cidadãos que tiveram seus direitos fundamentais violados, por
motivos exclusivamente políticos, bem como a reparação patrimonial aos anistiados, na
falta desses aos seus cônjuges ou seus sucessores. Compreendendo ainda a reintegração aos
cargos públicos e a contagem de tempo de serviço àqueles que foram afastados por motivos
ideológicos, assim como a conclusão de cursos escolares interrompidos entre os anos de
1946 e 1988.
O requerente deve buscar as provas junto aos órgãos públicos, comprovando
prisões, perseguições ideológicas, sequestros, banimento e exílio políticos e todo e qualquer
ato abusivo praticado por agentes do Estado que com objetivos escusos e métodos
11
desumanos feriram seus direitos elementares de cidadão, podendo, para tanto, juntar
documentos, declarações escritas, arrolar testemunhas e produzir prova pericial.
Já, na esfera cível, deve o legitimado ajuizar a competente demanda, com
fundamento no art. 5º, incisos X e XLIII e art. 37, §6º, da Constituição da República, arts
43, 186, 927 e 943 do Código Civil Brasileiro. Levando-se em consideração que a
responsabilidade do Estado é objetiva, portanto, cabe ao requerente apenas comprovar o ato
ilícito, o nexo causal e o resultado, sem perquirir a culpa do Estado.
Além disso, resta afastada a prescrição, principalmente pela natureza indisponível
dos direitos fundamentais. Ademais, consoante a Lei Civil, não apenas aqueles que foram
vítimas diretas, mas também seus filhos e netos têm interesse processual e legitimidade ad
causam para o ajuizamento das demandas. Basta que se ingresse em juízo, por meio de
petição cujos requisitos estão no art. 282 do Código de Processo Civil, presentes as
condições da ação: possibilidade jurídica do pedido, legitimidade para agir e interesse
processual.
No sentido do texto, lição de Tadeu Rover, publicada no site Consultor Jurídico,
verbis:
“E nessa indenização incluem-se também os herdeiros daqueles
que foram perseguidos, torturados e mortos. Interesse processual - No que se refere à possibilidade de o
perseguido propor ação de indenização por dano moral já tendo
requerido benefícios da Comissão de Anistia administrativamente
— o que configuraria falta de interesse processual — o relator
assinala que o fundamento jurídico da ação é a responsabilidade
civil extracontratual do Estado (artigo 37, parágrafo 6º da
Constituição Federal), aliada à garantia constitucional de reparação
do dano moral decorrente da prisão da vítima do regime militar. Nesse contexto, o direito fundamental à reparação por dano moral,
garantido pela Constituição Federal de 1988, artigo 5º, V e X não
pode ser suprimido nem cerceado por ato normativo
infraconstitucional, tampouco pela interpretação da regra de
direito, sob pena de inconstitucionalidade. Nem tampouco a Lei
10.559/2002 proibiu a acumulação da reparação econômica com
indenização por dano moral, ante a diversidade de fundamentos e
finalidade”, complementou. Além disso, o relator afirmou que a Súmula 37 do STJ permite a
acumulação de indenizações por dano moral e material oriundos do
mesmo fato. Por último, concluiu apontando que a parte tem o
direito de requerer em juízo indenização mais favorável do que
aquela concedida administrativamente. Os danos foram inúmeros, decorrentes do sofrimento de quem foi
privado de sua liberdade e submetido a sessões de tortura física e
12
psíquica, causando-lhe inúmeras violações nos direitos da
personalidade, à sua honra subjetiva e objetiva, culminando com
atingimento de sua imagem, sua dignidade”, explicou Nery
Júnior...” (ROVER, 2014, p.1). Importa frisar que aos cidadãos anistiados não se impede, como referido, a busca da
reparação na esfera judicial, tanto em relação aos danos materiais, como morais. E nessa
indenização incluem-se também os herdeiros daqueles que foram perseguidos, torturados e
mortos.
6 ASPECTOS TERAPÊUTICOS DA REPARAÇÃO
Historizar para a psicanálise é retranscrever marcas psíquicas no campo
simbólico e sair do âmbito do sofrimento privado em direção a dimensão social que ele
implica. Dar esse passo em direção ao ato de narrar e de testemunhar implica o desejo e
a coragem para que a verdade do sujeito emerja e possibilite recomposição psíquica.
Nesta perspectiva, memória e esquecimento fazem parte da constituição da
pessoa e trabalhamos em psicanálise com os registros que são lembrados e os que ficam
como esquecidos, com o excesso do traumático que tem que ser diminuído, fixado,
descarregado e, então, representado.
A esses registros chamamos Experiência no sentido que Benjamin (1994)
atribuiu. Experiência – Erfahrung – que vem do radical fahr – usado no antigo alemão
no sentido literal de percorrer, de atravessar uma região durante uma viagem. O
percurso do vivido e seu legado confere autoridade na narrativa e recuperar essa
trajetória é o sentido de arquivo. A memória supõe uma temporalidade inscrita como
arquivo e que se opõe ao registro rompido.
Quando as fronteiras estão rompidas a orientação da vida desnorteia-se, por isso
o lembrar e o esquecer das histórias da vida, produz experiência. Mas quando se está
frente ao horror, a intensidade, o percurso é outro. Blanchot (2001) nos indica que o
olhar para o terror se situa em um excesso ou de evitação (não poder olhar e o
pensamento se paralisa) ou de fascinação (que implica captura). Rumos que torna o
lembrar borrado ou não sabido. Na especificidade da psicanálise a escuta e o acesso à
fala são as possibilidades encontradas de temporalizar a experiência da violência de
Estado que marca a vivência traumática de sujeitos e de seus familiares e dá lugar à
memória e ao esquecimento.
13
No campo social, quando ocorre um fato social violento há também o
borramento. O motivo deste borramento é exatamente o horror frente a violência do
ocorrido e a consequente não compreensão histórica do fato. Quebra-se o nexo
estruturante. É o mal de arquivo, feliz expressão de Derrida (2001), fruto da
destrutividade interna da pulsão de morte e dos estados de violência, que aspiram a
dissolução e destituição do lugar de sujeito, a partir de atos de crueldade.
Tanto no âmbito do subjetivo como no do social temos em comum afirmar a
verdade da experiência, da impressão subjetiva do vivido. Ao ouvirmos um sujeito no
relato de sua experiência, abrimos o caminho para que a fala transmita a impressão do
vivido. Ao ser possível essa transmissão recuperamos uma memória, um arquivo que é
ao mesmo tempo subjetivo e social. Estamos frente ao sujeito, que abre caminhos de
recomposição simbólica quando retraduz as marcas psíquicas do vivido, e se reinscreve
como sujeito social mediante possibilidades coletivas de identificações. Ao se inscrever
como sujeito, reinscreve o social: há elaboração psíquica e recupera-se memória
coletiva.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Narrar e testemunhar abrem a condição da fala, lugar privilegiado que a
psicanálise oferece. A palavra exclui a destruição, a descarga repetitiva. Restitui um
lugar e sentido do sujeito na história individual e coletiva.
Este é o cenário e o campo onde a análise incide e o psicanalista pode se colocar
como aquele que escuta e devolve um lugar de reflexão e de direção da fala em um
duplo sentido: que o próprio sujeito se ouça e que seja ouvido, para de novo tomar
contato com o horror que o assombra desde um outro tempo e que insiste em uma
tentativa de compreensão.
Ao longo de nosso trabalho nos Grupos de Testemunho notamos que é a partir
das relações grupais, entre pares, que novas possibilidades de testemunhar sobre os fatos
do passado podem se configurar. Aquilo que outrora era silenciado, individualizado,
mantido sob a vergonha de um segredo familiar incomunicável, pode ser compartilhado
com outras pessoas que viveram situações similares de violência. O tempo de
testemunhar fica assim atravessado por uma lógica tanto subjetiva, quanto coletiva,
onde entre o dever de memória e a vontade de fazer calar, se instauram outros recursos e
estéticas para fazer falar aquilo que foi silenciado em nossa justiça de transição. Disto
depreendemos uma linha de base sobre o trabalho com testemunhos: estes são sempre
14
uma co-criação, onde a posição do sujeito frente ao vivido é constantemente re-
fabricada, a medida em que as condições sociais de recepção e de escuta de seu relato
são possibilitadas. Importante de sublinhar assim o protagonismo dos participantes dos
Grupos de Testemunho uma vez que não são tomados como pacientes no grupo, mas
sujeitos em vias de fabricação permanente de narrativas sobre suas próprias
experiências vividas, borradas, interrompidas, e, sempre que possível, reinventadas.
Verdade, justiça e ética são as vias a serem trilhadas não só na responsabilização
dos graves crimes cometidos, mas também para solidificar o Estado de Direito e a
inconclusa democracia brasileira. Diante disto, há uma urgência pelas demandas de
memórias e de reparação, as quais são tão necessárias como o conhecimento histórico
dos fatos silenciados pela transição política pactuada. Quando alunos em sala de aula
nos perguntam se “esta historinha de tortura durante a ditadura civil-militar foi
realmente verdade”, ou ainda, quando há banalização ou apologia à violência é preciso
que sejamos pontuais, argumentando que conhecer e lembrar os fatos daquele período
são formas preventivas de evitar a violência e um importante exercício de cidadania.
REFERÊNCIAS
BAUER, C.S. As políticas de memória e de esquecimento sobre as ditaduras argentina e
brasileira através das rememorações dos golpes civil-militares. In: Simpósio Nacional
de História (26. São Paulo : 2011) . [Anais]São Paulo: ANPUH, 2011. p. 2-3.
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994.
BLANCHOT, M. A conversa infinita. A palavra plural. São Paulo: Escuta, 2001.
BOHLEBER, W. Recordação, trauma e memória coletiva: a luta pela recordação em
Psicanálise. Revista Brasileira de Psicanálise, São Paulo, v.41, n. 1, mar. 2007.
DERRIDA, J. Mal de Arquivo. Uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 2001.
DERRIDA, J.; STIEGLER, B. Echographies de la télévision. Paris: Galilée, Débats,
1996.
FREUD, S. Além do princípio de prazer, psicologia de grupo e outros trabalhos. In:
______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de S. Freud. Rio
de Janeiro: Imago, 1968. v.18.
MANDELBAUM, B. Sobre o campo da psicologia social. Psicologia USP, São Paulo,
v. 23, n. 1, p. 15-43, 2012.
15
NORA, P. Entre Memória e História. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados
em História e do Departamento de História da PUC-SP, São Paulo, p. 14, 1981.
OTTO, C. Nos rastros da memória. Florianópolis: NUP/CED/UFSC, 2012.
PADRÓS, E.S. Como el Uruguay no hay... Terror de Estado e Segurança Nacional –
Uruguai (1968-1985): do Pachecato a Ditadura Civil-Militar. Porto Alegre: UFRGS,
2005. 433 f. Tese (Programa de Pós-Graduação em História) – Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005.
POLLAK, M. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos — Revista da
Associação de Pesquisa e Documentação Histórica, v. 3, n. 2, p. 5, 1989.
ROVER, Tadeu. Herdeiro pode receber indenização devida à vítima da ditadura. In:
CONSULTOR Jurídico. Cidade, 2014 p.1. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2014-abr-
16/herdeiro-receber-indenizacao-devida-vitima-ditadura-militar.
ROUSSO, H. Juger Eichmann/ Jerusalem, 1961. Stipa, Montreuil, 2011.
VIZENTINI, P.F. História do Século XX. Porto Alegre: Novo Século, 1998.
WAINTRATER, R. Sortir du génocide. Temoignage et survivance. Paris: Pétite
bibliothèque-payot, 2003.
Recommended