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Anais Eletrnicos do III Seminrio Dimenses da Poltica na Histria: Culturas Polticas, Redes Sociais e Relaes de Poder
Juiz de Fora 30 novembro a 02 de dezembro de 2010
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Silvana Mota Barbosa Alexandre Mansur Barata
Jefferson Cano Maria Fernanda Vieira Martins
(Organizadores)
Anais Eletrnicos do III Seminrio Dimenses da Poltica na Histria: Culturas Polticas, Redes Sociais e Relaes de Poder
Juiz de Fora
2011
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Comisso Organizadora:
Ncleo de Estudos em Histria Social da Poltica Profa. Silvana Mota Barbosa (UFJF)
Prof. Alexandre Mansur Barata (UFJF) Profa. Maria Fernanda Vieira Martins (UFJF)
Prof. Jefferson Cano (UNICAMP)
Promoo:
Ncleo de Estudos em Histria Social da Poltica
Apoio:
Programa de Ps-Graduao em Histria da UFJF Departamento de Histria da UFJF
Instituto de Cincias Humanas UFJF FAPEMIG
Observao: A adequao tcnico-lingustica dos textos de responsabilidade dos autores.
Seminrio Dimensoes da Poltica na Historia: Culturas Polticas, Redes Sociais e Relaes de Poder (2 : 2010 nov 30; dez 01-02 : Juiz de Fora, MG)
Anais Eletrnicos / III Seminrio Dimenses da Poltica na Historia: Culturas Polticas, Redes Sociais e Relaes de Poder ; Silvana Mota Barbosa, Alexandre Mansur Batata, Maria Fernanda Vieira Martins, Jefferson Cano, organizadores. 403 p. 1. Historiografia Congressos. I. Barbosa, Silvana Mota. II. Barata, Alexandre Mansur. III. Cano, Jefferson. IV. MARTINS, Maria Fernanda Vieira. V. Titulo.
CDU 981
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SUMRIO
Apresentao
Comunicaes de Pesquisa
Andr Alexandre Guimares Couto - Letras em Jogo: a Imprensa Esportiva Carioca no incio da dcada de 1930
Andr Pereira Guiot - O PSDB e a contrarreforma neoliberal nos anos 90
Bruna Melo dos Santos - Hiplito da Costa: uma figura ambgua ou mal interpretada?
Camila Pereira Martins - Cultura poltica em Juiz de Fora na Primeira Repblica: as Associaes de Ofcio e suas festas
Carla Beatriz de Almeida - O Supremo Tribunal de Justia como objeto e o uso da prosopografia como mtodo
Carlos Leonardo Kelmer Mathias e Jonathas de Freitas Santos - Uma hierarquia fluda: notas acerca de algumas redes de reciprocidade formadas entre as capitanias de Minas Gerais e do Rio de Janeiro, 1711 1756
Eder da Silva Ribeiro - Os conselheiros do Imperador D. Pedro I: formao e afirmao de um grupo homogneo
Elaine Leonara de Vargas Sodr - Quando a deusa cega serve a dois senhores A magistratura brasileira entre o poder estatal e o poder local (1833-1871)
Fabiana Aparecida de Almeida - Opinio pblica e patrimnio cultural: as mudanas de perspectiva
Fbio Francisco de Almeida Castilho - Movimento separatista no Sul de Minas: as aspiraes de um movimento inslito
Fernanda Fioravante - Redes de poder: alianas e governabilidade no processo de implantao do poder rgio nas Minas, c. 1711 c. 1750
Filipe Queiroz de Campos - Associativismo imigrante: Pantaleone Arcuri e os italianos na cidade de Juiz de Fora
Gislene Edwiges de Lacerda - Memrias estudantis: o movimento
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estudantil juizforano durante a transio democrtica (1974 1984)
Jefferson Jos Queler - Golpista antes de ensaiar o golpe?: consideraes sobre a polmica da renncia de Jnio Quadros Presidncia da Repblica
Jos Leandro Peters - Reflexos de uma disputa nacional: a repercusso da agresso imagem de Nossa Senhora Aparecida nos peridicos de Juiz de Fora.
Loque Arcanjo Jnior - Francisco Curt Lange e o modernismo musical no Brasil (1930-1946): identidade nacional, poltica e dilogos musicais sobre a nao
Luiz Fernando Rodrigues Lopes - Negcios, irmandade e vizinhana: as sociabilidades dos Familiares do Santo Ofcio de Guarapiranga (1753-1801)
Marcos Antonio Tavares da Costa - As Foras Armadas e a projeo do poder poltico brasileiro para alm de nossas fronteiras: um estudo comparativo entre a 2 Guerra Mundial e as Misses de Paz da ONU.
Maria Elisa Ribeiro Delfim - Apontamentos sobre a elite poltica sanjoanense (1808-1822)
Mariana Eliane Teixeira - A contribuio do conceito de Cultura Poltica ao debate sobre a construo da imagem do imigrante ideal
Mateus da Rocha Reis - Propostas para extinguir a escravido: uma anlise das obras de Benjamin Fontana e Maria Josephina
Nittina Anna Arajo Bianchi Botaro - A participao dos mdicos na poltica de sade brasileira: consideraes sobre a participao desses profissionais no sistema suplementar de sade brasileiro
Pablo Rodrigues Marques - Manifestaes ilustradas no Rio de Janeiro dos vice-reis: As agremiaes cientfico-literrias
Pedro Paulo Aiello Mesquita - As relaes de poder na Companhia Petropolitana de Tecidos (1873-1945)
Priscila da Costa Pinheiro - O sentimento ptrio e as associaes de imigrantes portugueses na Corte (1860-1882)
Priscila Musquim Alcntara - A influncia da Escola de Engenharia de Porto Alegre na trajetria poltica de Yddo Fiza.
Raimundo Csar de Oliveira Mattos - A cultura poltica no oitocentos no Vale do Paraba Fluminense o caso de Manoel Antonio Esteves em Valena
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Raquel Barroso Silva - Leitora: o papel da mulher nas crnicas de Frana Jnior
Renato Joo de Souza - Culturas polticas: desafios e potencialidades
Srgio Augusto Vicente - Sob os conselhos do Estado: uma anlise dos pareceres do Conselho de Estado sobre os estatutos de associaes cientficas, literrias e de instruo erigidas na capital do Imprio brasileiro (1860-1882)
Tarcsio de Souza Gaspar - Boatos e Murmuraes nas Minas da segunda metade do sculo XVIII: opinio pblica e inconfidncias
Teresa Cristina de Souza Cardoso Vale - Justia Eleitoral e consolidao democrtica: um estudo histrico
Tiago Almeida Zebende - O Quinto Imprio no Segundo Reinado: as idias de Patroni, um filsofo profeta.
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APRESENTAO
O III Seminrio Dimenses da Poltica na Histria: Culturas Polticas, Redes Sociais e
Relaes de Poder - promovido pelo Ncleo de Estudos em Histria Social da Poltica (NEHSP),
da Universidade Federal de Juiz de Fora, em conjunto com o Programa de Ps-graduao em
Histria da mesma universidade (PPGHIS UFJF) -, reuniu entre os dias 30/11 e 02 de
dezembro de 2010 no campus da Universidade Federal de Juiz de Fora, aproximadamente,
200 estudiosos em diferentes nveis de formao, desde alunos de graduao e ps-graduao
a pesquisadores com reconhecida experincia na rea, para o debate em torno de um campo
que vem se consolidando e cuja relevncia vem sendo cada vez mais reconhecida para os
estudos histricos: as dimenses da poltica.
Na sua terceira edio, o Seminrio Dimenses da Poltica na Histria contou como eixo
temtico estruturador dos debates, nas diferentes atividades ocorridas, as relaes de
continuidade e as imbricaes permanentes e simultneas entre redes e trajetrias, entre
autoridades e instituies governativas e a sociedade, entre o pblico e o privado, entre o
central e o regional, entre a prtica poltica e os interesses econmicos individuais ou
coletivos.
Acreditamos que a realizao desse evento atingiu plenamente os objetivos
pretendidos, isto , a promoo do intercmbio acadmico e a extroverso dos resultados das
pesquisas vinculadas ao Ncleo de Estudos em Histria Social da Poltica (NEHSP).
Comisso Organizadora resta agradecer o apoio recebido do Departamento de Histria da
UFJF, do Programa de Ps-Graduao em Histria da UFJF, da Direo da Faculdade de Letras
UFJF e da FAPEMIG.
Comisso Organizadora Ncleo de Estudos em Histria Social da Poltica
Silvana Mota Barbosa Alexandre Mansur Barata
Maria Fernanda Vieira Martins Jefferson Cano
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COMUNICAES DE PESQUISA
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Letras em Jogo:
a Imprensa Esportiva Carioca no incio da dcada de 1930
Andr Alexandre Guimares Couto
O incio da dcada de 1930 pode ser considerado como um marco da imprensa
esportiva. Tal observao se justifica por alguns fatores importantes. A imprensa em geral e,
particularmente, a esportiva, desde o sculo XIX, se fez presente no cotidiano da sociedade e
procurou trazer informaes a respeito das prticas desportivas e da prpria formao de
uma cultura identitria da populao atingida, mesmo que seguindo, fortemente, os padres
burgueses, cuja origem vinha da Europa.
Todavia, a forma de criar representaes coletivas por meio do esporte sofreu uma
srie de modificaes ao longo das primeiras dcadas do sculo XX e criou um campo
especfico de atuao da imprensa. Alm disto, foi construda, tambm, uma forma especfica
de escrever neste perodo e esta estava ligada s novas tcnicas de produo literria que a
conjuntura histrica do modernismo trazia discusso.
Neste ponto de reflexo, utilizo o trabalho da autora Flora Sussekind que analisa,
dentre outras questes, as transformaes tcnicas ocorridas no incio do sculo XX e o
quanto estas influenciaram a produo cultural. Desta forma, destaco nesta autora a seguinte
questo:
No se trata mais de investigar apenas como a literatura representa a tcnica, mas como, apropriando-se de procedimentos caractersticos fotografia, ao cinema, ao cartaz, transforma-se a prpria tcnica literria. Transformao em sintonia com mudanas significativas nas formas de percepo e na sensibilidade dos habitantes das grandes cidades brasileiras ento. 1
Desta forma, entendemos que o esporte estava intimamente ligado ao nascimento
destas novas formas de percepo e sensibilidade, s quais Sussekind cita em seu trabalho.
Porm, esta onda moderna de percepo das novas representaes sociais e da prpria
forma de reinventar a escrita literria, alm de um outro olhar para a relao do homem com
a tecnologia, principalmente devido aquisio pelos jornais de novos equipamentos
1 SUSSEKIND, Flora. O Cinematgrafo das Letras Literatura, Tcnica e Modernizao no Brasil. So Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 16.
10
tecnolgicos, no foi uma unanimidade. Longe disso, vrios escritores, inclusive alguns j
prestigiados pela imprensa e pela sociedade, se mostraram refratrios a esta nova realidade.
Diante destas questes, podemos compreender que a imprensa esportiva, no incio da
dcada de 1930, acompanhava este novo ritmo dinmico, gil e moderno que j vinha sendo
construdo em anos anteriores e que agora chegava ao seu pice. Uma linguagem curta e
rpida nas pginas dos jornais esportivos, alm de imagens que pudessem se transformar no
retrato fiel do dinamismo do jogo, tornou-se caractersticas das matrias jornalsticas.
Para conquistar um pblico leitor e interessado nos esportes, cuja prpria vida nos
grandes centros urbanos passara por transformaes de ritmos; agora mais acelerado e
pulsante como a prtica desportiva, surgia um jornal, cujo objetivo era se consolidar no
mercado editorial e que pudesse dar conta de um imaginrio urbano (e suburbano) centrado
no esporte. Desta forma, o Jornal dos Sports se tornaria um jornal esportivo, um veculo dirio
de comunicao, e, principalmente, um vido defensor da prtica dos esportes entre a
populao carioca, como veremos na anlise de alguns textos editoriais do mesmo.
No entanto, cabem, inicialmente, algumas consideraes acerca do surgimento do
prprio jornal, a fim de entendermos a lgica de construo de um novo veculo de
comunicao na dcada de 1930.
Seu primeiro proprietrio foi o jornalista Argemiro Bulco, um importante
administrador de jornais da poca. Depois de dirigir durante muito tempo o Rio Sportivo,
Argemiro Bulco planejou fortalecer a impressa esportiva no mercado, ao aumentar a
periodicidade dos impressos (at ento o Rio Sportivo chegava s bancas apenas duas vezes
por semana). Por volta de 1930, Bulco props sociedade a Ozas Mota, dono das oficinas
onde eram impressos os jornais. Desta forma, em 13 de maro de 1931, o Jornal dos Sports foi
fundado com um ativo de seis contos de ris.
Bulco e Mota permaneceram como donos do Jornal dos Sports at outubro de 1936,
data em que Mrio Filho e Roberto Marinho comprariam o JS. O jornal seguia os padres da
poca, impresso em preto e branco, possuindo poucas pginas. Inicialmente, a edio diria
era composta por quatro pginas, apesar de alguns problemas que, invariavelmente,
ocorriam. Um dos problemas era quando os trabalhadores grficos, impedidos pelo sindicato
de trabalharem aos domingos, impossibilitavam que a edio de segunda-feira chegasse aos
11
leitores.2 Suas medidas eram em formato de pgina inteira, divergindo do modelo tablide. As
fotografias eram comuns em seu corpo, porm, em muitas edies ainda eram privilegiadas as
poses estticas de jogadores e dirigentes, apesar de existirem tambm algumas fotos dos
eventos esportivos, como as partidas de futebol, por exemplo.
O logotipo do nome do jornal dava um tom de pluralidade esportiva, pois apresentava
figuras de homens praticando vrias modalidades esportivas, sem, no entanto, hierarquiz-
las. As figuras, que se entrelaavam com as letras do ttulo do jornal (uma criao artstica
interessante e uma novidade grfica para a poca), eram do mesmo tamanho e representavam
vrios esportes. Estavam presentes, em ordem de apresentao, o lanamento de disco, o
levantamento de peso, o tnis, o futebol, o golfe, a natao, o remo, a corrida (atletismo), o
boxe e o hipismo.
Desta forma, o jornal anunciava seu objetivo: o de privilegiar qualquer prtica que se
identificasse com o esporte e com o corpo, mesmo que no houvesse ainda uma identificao
com a cultura nacional, como o golfe, por exemplo. Outros esportes tambm no cabiam nesta
classificao, mas eram olmpicos, e mereciam destaque numa publicao que pretendia ser a
voz dos esportes.
O destaque no corpo do jornal, todavia, era voltado para o futebol, os jogos organizados
pela ligas e associaes esportivas, os campeonatos oficiais e os criados por agremiaes
menores e suburbanas. Os jornalistas tinham muito material quando da visita de times e
selees estrangeiras ao Brasil e vice-versa, alm dos embates entre clubes paulistas e
cariocas.
No entanto, era uma constante, em toda edio, a existncia de notcias e informes
sobre outros esportes, especialmente o turfe, os esportes aquticos (remo e natao), o boxe e
o atletismo. As colunas principais do jornal eram o seu editorial, intitulado Crticas e
Suggestes; a coluna intitulada Turf, que dava conta das apostas, resultados e sugestes
neste esporte j consolidado na sociedade carioca; e a ltimas Notcias, que, pelo ttulo, pode
ser interpretada de duas maneiras: a de que era publicada na ltima pgina do jornal e/ou de
que pretendia trazer notcias e informaes recentes, atualizadas, recm-apuradas pelos
reprteres. O jornal utilizava um grande nmero de palavras de origem inglesa, como, por
exemplo, football, match, record, principalmente ao tratar do futebol.
2 Posteriormente, este problema seria resolvido com acordos trabalhistas e a vigilante tutela do Estado getulista.
12
Nos crditos do jornal, em seu incio, aparecia somente o nome de seu proprietrio: o
de Argemiro Bulco (como Diretor), o que nos leva a entender que o peridico j nascera a
partir de uma viso personalista de um jornalista engajado numa causa especfica: a da
divulgao e valorizao dos esportes. Bulco no era um simples empresrio das
comunicaes, pois j havia iniciado um empreendimento semelhante: o Rio Sportivo. Era,
sobretudo, um especialista, que almejava vencer no mercado editorial a partir de uma certa
clarividncia empresarial: a ideia de que os esportes vendiam e poderiam vender muito mais
jornais. Cabia, portanto, em sua trajetria, a iniciativa de lanar um dirio.
Logo a seguir dos crditos, vinha o endereo do jornal, situado na R. So Jos, 79,
centro do Rio de Janeiro, como praticamente todos os demais peridicos da poca. O valor de
cada edio, no seu incio, era de 100 ris na capital e de 200 ris nos demais estados. As
assinaturas, informadas desde a sua primeira edio, eram no valor de 10$ (trimestral), 18$
(semestral) e 30$ (anual), para o Brasil e 18$, 35$ e 60$, respectivamente, para o exterior.
Sabendo da dificuldade em ter informaes financeiras sobre o custo de vida e os valores
monetrios de um outro perodo histrico, procurei estabelecer comparaes, cruzando
dados fornecidos pelo prprio jornal. Por exemplo, uma das propagandas frequentes neste
peridico era a de restaurantes, como a do Restaurante do Alexandre, situado poca, na Rua
Sete de Setembro, n 174. No anncio da edio de n 3 do dia 16 de maro de 1931, o
estabelecimento informava que a refeio tinha o custo de 600 ris (avulsa) ou 27$ (20
refeies).3 Desta forma, podemos concluir que o valor de venda avulsa do JS era seis vezes
menor do que o valor de uma refeio em um restaurante no centro da cidade. Seguramente,
para uma anlise mais detalhada, nos faltam algumas informaes mais precisas, como a
qualidade da refeio e o tipo de restaurante em questo, ou seja, se era frequentado por
classes mais ricas ou mais populares. De qualquer forma, esta comparao j nos fornece uma
pista de que o preo da edio do jornal no era caro, apesar de ser um empreendimento
audacioso e, em se tratando da especialidade esportiva, transitava em um mundo de
efemeridade empresarial, apesar de sua importncia cultural e social.
Quanto ao contedo editorial do jornal, vamos compreender quais eram os principais
temas de debate que o JS se props a discutir em seus editoriais inaugurais.
3 Jornal dos Sports. Rio de Janeiro: n 03, 16 de maro de 1931.
13
Na edio n 02, de 16/03/1931, o JS criticava a legislao existente para a prtica de
futebol entre os clubes. Este conjunto de regulamentos, criado pela Associao Metropolitana
de Esportes Athleticos (AMEA), agremiao que reunia os clubes de futebol e organizava
campeonatos oficiais, ainda era, mesmo no incio da dcada de 1930, rigoroso com as prticas
comerciais que j existiam, principalmente envolvendo clubes e jogadores.
No caso, a questo central era em relao transferncia de jogadores para outros
clubes, que, segundo a legislao vigente, determinava que os atletas tivessem que ficar no
perodo mnimo de dois anos, pelo menos, no segundo quadro do novo clube at poder ser
utilizado no primeiro quadro. Cabe explicar que o segundo quadro era formado por jogadores
mais jovens, ainda em experincia, ou por reservas que no tinham qualidade tcnica para
jogar no primeiro quadro. O Jornal dos Sports, contrrio diviso dos jogadores em grupos,
julgando-a como indutora para a criao de um esporte menos dinmico, informava em seu
editorial:
(...) Que se exija do jogador transferido um anno de permanncia no segundo quadro, at certo ponto se tolera e h razes que podem, em alguns casos justificar a medida. No nos parece cabvel que se imponha a um jogador que se no adaptou num novo club a condio de figurar dois annos no segundo quadro, (...) hypothese de outra transferencia. Isto tirar o estmulo dos jogadores e negar-lhes o direito de ascender, de elevar-se ao quadro principal.4
Apesar dos clubes pertencerem AMEA, e, juntos, organizarem campeonatos e
regulamentos, em muitos casos, no respeitavam o que havia sido acordado em atas e
reunies das associaes. Se era importante organizar e planejar enquanto grupo, no dia-a-dia
prevalecia o interesse maior de cada clube.
O impedimento de transferncia imediata de jogadores ainda era um resqucio das
dcadas anteriores, quando se buscava garantir que o futebol s pudesse ser praticado pela
elite, os considerados legtimos sportsmen. Tornar este esporte comercivel era uma chaga
que deveria ser abominada no meio dos esportes amadores.
No entanto, no incio da dcada de 1930, os clubes j mantinham vrios jogadores
contratados, apesar da proibio vigente quanto ao profissionalismo, e a transferncia se
4 As Inscries dos Amadores na AMEA. In: Jornal dos Sports. Rio de Janeiro: n 02, 16 de maro de 1931. Coluna Crticas e Suggestes. p. 2. Optamos, ao citar o texto do JS, por manter a grafia original, com o objetivo de preservar a linguagem da poca e suas formas de expresso.
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tornava uma consequncia real para esta nova relao clubes-jogadores. No por acaso, o
amadorismo no futebol dos grandes clubes findaria oficialmente em 1933.
O JS, ento, apesar de declarar suas ressalvas, apoiava um futebol mais dinmico e
moderno e, para tanto, era necessrio atualizar a legislao esportiva com a realidade dos
novos tempos.
Se a rigidez e o comprometimento com o passado elitista eram alvos de crtica do
jornal, esta no estava relacionado com a obrigatoriedade de um associativismo esportivo.
Muito pelo contrrio, em seu editorial do dia 18/03/1931, na edio n 4, intitulado
Precisamos de entidades especializadas!, o jornal reclamava da falta de entidades
comprometidas com os esportes no Rio de Janeiro.5 O JS chega a falar de uma grande
defasagem em relao ao estado de So Paulo e at de outros pases. Para o jornal, era muito
importante que estas entidades pudessem dar uma ateno maior s diversas modalidades de
prticas desportivas que estavam sendo exercidas no Rio de Janeiro. Cita ainda o atletismo
como principal vtima da falta de estmulo e recursos e diz que alguns pessimistas acreditam
que os demais esportes (exceo ao futebol) podero sucumbir em nossa cidade.
Desta forma, de maneira um tanto quanto dramtica, o jornal compreendia que a
prtica de esportes deveria passar por um modelo de organizao, com criao de entidades e
associaes, com regras e legislaes especficas, mesmo que estas viessem a sofrer crticas do
prprio JS e da sociedade. Mais do que valorizar a disseminao do esporte pelos subrbios
cariocas e pelas classes menos favorecidas, era preciso, sobretudo, organizao, disciplina e
um mnimo de planejamento para que pudesse se desenvolver.
O jornal construiu um discurso de defensor dos esportes, procurando, na maior parte
das vezes, exigir e solicitar iniciativas do poder pblico, mas sempre, valorizando a qualidade
inata do povo brasileiro. As qualidades naturaes que possuem os brasileiros so apontadas
como matria-prima de grandes e possveis resultados. Sobre este ponto, podemos interpret-
lo, tambm, como a tentativa do jornal em falar quase sempre em nome da nao, quando se
tratar de iniciativas e projetos dos esportes cariocas; no caso, o progresso no aumento das
competies esportivas.
O JS, desta forma, tentava dar conta de srie variada de modalidades esportivas, apesar
de o grande apelo estar voltado para o futebol. O jornal valorizava a essncia dos esportes,
5 Precisamos de entidades especializadas! In: Jornal dos Sports. Rio de Janeiro: n 04, 18 de maro de 1931. Coluna Crticas e Suggestes. p. 2.
15
sempre informando os leitores por meio do uso de ideias de progresso, desenvolvimento,
beleza e emoo. Tais palavras seriam frequentes nas reportagens e editoriais do jornal.
Voltar-se para uma vida moderna, segundo o jornal, era adotar o esporte como prtica
fundamental para o homem e o dinamismo desta nova modernidade poderia ser belo e, acima
de tudo, emocionante. A racionalidade da tecnologizao do meio urbano, por conta dos
avanos nas reas de transporte, comunicaes, urbanizao e mundo do trabalho, no
contrastava com o discurso em busca da emoo encontrada nos esportes. Pelo contrrio,
mais do que um paradoxo, era um casamento ideal, uma composio adequada, um
relacionamento ntimo, que o homem encontrava em seu dia-a-dia. O quanto mais depressa o
brasileiro pudesse reconhecer esta nova integrao, mais rpido se desenvolveria.
A questo da valorizao da brasilidade voltaria a ser destacada no editorial do dia
22/03/1931. Nesta edio o JS exaltava uma histria recente dos esportes aquticos
brasileiros, quando o Brasil possua uma hegemonia na Amrica Latina. Faz meno, inclusive,
aos Jogos Latino-Americanos ocorridos em 1922: opportuno lembrar que as nossas
victorias em water polo foram obtidas por scores elevadissimos, que tornaram inadmissvel
qualquer duvida sobre a nossa superioridade.6
Todavia, no incio da dcada de 1930 (no caso, 1931), o JS criticava a atuao brasileira
diante dos adversrios sul-americanos, informado que o Brasil havia perdido o posto para
Argentina e Chile: Ou os nossos sports aquaticos entraram num perodo de declnio ou os
nossos vizinhos progrediram de modo excepcional, de forma tal que no nos foi possvel
acompanhal-os.7 No entanto, o tom ufanista e nacionalista daria conta da continuao da
posio do jornal diante deste problema: No nos interessa pesquizar, no momento, as
causas que nos impossibilitaram de seguir os argentinos e chilenos, na sua brilhante ascenso,
no nos restando duvida que ella no deve ser atribuda incapacidade dos nossos
homens.8
O jornal procura transitar entre a crtica do desempenho dos atletas brasileiros, porm
sem questionar a sua qualificao, valorizando ao mximo o esforo de nossos homens, o
que era um smbolo da prpria ideia de representao da brasilidade nos esportes.
6 Os brasileiros no Campeonato Sul Americano de Remo. In: Jornal dos Sports. Rio de Janeiro: n 06, 22 de maro de 1931. Coluna Crticas e Suggestes. p. 2. 7 Ibidem. 8 Ibidem.
16
Ainda neste editorial, ocorre um breve informe sobre o Campeonato Sul-Americano de
Remo, ocorrido no Uruguai (nas guas histricas do Rio do Prata). E, mais uma vez, a apelao
ao sentimento nacionalista verificada quando o jornal informa que:
Maiores no poderiam ser as esperanas que depositamos nos remadores brasileiros. Aqui, ficamos confiantes em que os nossos destemidos patricios tudo sabero fazer para elevar o renome do Remo Brasileiro. Elles podero perder, mas antes esgotaro as suas ultimas energias, com o pensamento voltado para a Patria distante.9
A competio sul-americana de remo informada como sendo um momento perfeito
para que o Brasil reassumisse o trono dos esportes aquticos no continente. Mais do que um
torneio, era a chance de elevar o nome da ptria brasileira e de sua gente. Se, hoje,
relativamente fcil percebemos isto, ao longo da histria recente brasileira, em momentos de
Copa do Mundo de futebol, naquele momento, no o era.10 No por acaso, as palavras Remo
Brasileiro e Patria esto destacadas no texto com letras maisculas, pois o jornal queria criar
uma identificao direta entre as mesmas. Para o JS, naquele momento, a Patria estava
sendo representada pelos remadores, suas armas eram as ps de remo, e o palco da batalha
era o Rio do Prata.
Se no passado recente, os brasileiros derramaram seu sangue neste rio, agora, era hora
do suor e das ltimas energias destes representantes da ptria, heris da construo da
brasilidade esportiva. Tendo a expectativa de vitria merecido a ateno do JS, o que no dizer
da confirmao da mesma, o que publicado em 23/03/1931, na primeira pgina do jornal:
Salve, brasileiros! Estuante de patriotismo, sentindo vibrar em ns, a alma heroica do nosso povo, regosijamo-nos immensamente, hontem. Sentimos, como nunca, o orgulho de ser brasileiros, de haver nascido ao abrigo dessa Patria grandiosa de predestinados! A pujana de uma raa privilegiada de homens fortes, evidenciou-se, hontem, ainda uma vez. Nas aguas remansosas do Prata, duas guarnies nossas, triumpharam com quanta galhardia, como maior no era possivel. Numa competio em que a vitalidade de nossa raa se comprovou, os Brasileiros conquistaram as honrarias da victoria, em duas das tres provas em que competiram. O vigor dos nossos musculos, synthetizado nas nossas representaes, sobrepujou, com brilhantismo inexcedivel, os seus competidores. Duas guarnies nossas, impellindo com excepcional ardor, os seus barcos,
9 Ibidem. 10 Outras manifestaes semelhantes podem ser destacada no perodo da Primeira Repblica, como a disputa e a conquista dos Campeonatos Sul-Americanos de Futebol de 1919 e 1922.
17
olhos postos na Patria distante, onde os coraes palpitavam ansiosos, singraram as aguas, celeres, sem conhecer esmorecimento e, lindamente, attingiram a meta gloriosa da victoria. Brasileiros! Homens que venceram! Brasileiros! Remadores que elevaram o nome da Patria! Jornal dos Sports, interpretando o sentimento do nosso povo, sauda-vos com effuso! (...)11
O jornal que defendera os atletas brasileiros na vspera da competio, festejaria a
vitria da ptria (sempre impressa com letra maiscula, assim como Brasileiros), com esta
primeira pgina digna de qualquer intelectual ufanista. Palavras interessantes como
predestinados e guarnies nos chama a ateno. A primeira por se tratar de uma forma
de expressar uma qualidade da nao brasileira: a de anteviso do sucesso, a de um povo que
tem e ter tudo para dar certo, apesar das dificuldades. A segunda, por fazer referncia,
mesmo que leve, a um estado de luta, de guerra, de defesa da ptria.
Vrias outras palavras e expresses enaltecem a vitria brasileira, de forma
nacionalista, como galhardia, orgulho, alma heroica, brilhantismo inexcedivel, etc.
Outras so usadas para a construo de um discurso comprometido com a emoo, como
coraes palpitantes, singraram as aguas, meta gloriosa da victoria. O texto do JS chama
o leitor a participar da vitria e tornando-o mais do que um espectador, um participante
tambm do resultado maior. A ptria, ento, valorizada ao seu extremo, e, levava-se em
conta, que a conjuntura poltica brasileira remontava a um Estado de reconstruo, de criao
ou reafirmao de uma identidade nacional.
Cabe analisar tambm o uso da palavra raa (usada por duas vezes) para chamar a
ateno e para valorizar a formao do tipo brasileiro, um povo miscigenado e voltado para
vitrias cada vez maiores. A fora de nosso povo (raa privilegiada de homens fortes)
estaria, dentre outras origens, na nossa mistura, na capacidade de adaptao (assim foi com a
assimilao do futebol ingls e, depois, elitista das classes mais ricas), na natureza de
desenvolver grandes resultados por meio da prtica dos esportes.
O jornal, todavia, acreditava que ainda existia um fosso separando o sucesso que os
esportes alcanava na populao e o interesse dos dirigentes polticos pelo assunto, j que
nesta mesma edio lembrava, em seu editorial, sobre a importante visita do prncipe de
Galles ao Brasil. O JS exaltava esta visita e identificava neste governante um ideal de dirigente,
11 Os brasileiros campees sul-americanos de remo. In: Jornal dos Sports. Rio de Janeiro: n 07, 23 de maro de 1931. p. 1.
18
assim com em outros, todos europeus), por conta de seu apreo pela prtica desportiva.
Segundo o jornal,
Nota-se na quase totalidade dos nossos dirigentes, uma accentuada ogerisa pelos sports. Indivduos rachiticos, enfesados, anmicos, alguns at intellectualmente, no supportam aquelles cuja robustez physica se faz notar, aquelles que se tornam merecedores de applausos pelas suas manifestaes de vitalidade.12
O JS, nesta passagem de seu editorial, enfatiza a visita de um governante europeu s
terras brasileiras, porm, mas do que um exerccio de colunismo social, a grande motivao
do peridico, ao retratar tal fato, se deu por conta da crtica ao comportamento dos dirigentes
polticos brasileiros diante da importncia que os esportes adquiriu nos ltimos anos.
As palavras do jornal, inclusive, denota um discurso eugnico, ao citar as capacidades
fsicas e intelectuais dos polticos brasileiros. Ser raqutico e anmico, por exemplo,
impediriam estes dirigentes de enxergar a beleza e os valores morais, alm dos resultados
saudveis para o corpo humano, que os esportes poderiam trazer para a nossa sociedade.
Comportamento poltico e caracterstica fsica se misturam neste argumento de
valorizar a prtica esportiva e cobrar mais atitude e interferncia positiva na organizao dos
esportes no Brasil.
Em resumo, o que temos, ento, nesse casamento entre imprensa e esportes, a
possibilidade de alcanar novos espaos simblicos e culturais de atuao de uma sociedade
que se prope moderna, no apenas em termos tecnolgicos e industriais, mas no
entendimento e na construo de um mundo mais frentico, dinmico e ditado por um outro
ritmo. Um ritmo onde a relao tempo e espao j no era mais a mesma, onde os esportes
teriam, definitivamente, a partir de ento, um locus privilegiado na mentalidade cultural do
carioca e do brasileiro.
Um casamento mltiplo, a bem da verdade, se levarmos em conta as diversas faces da
imprensa (grande, pequena, jornal-empresa, especializada ou no) com as vrias
manifestaes e modalidades esportivos (principalmente, no incio do sculo XX, o turfe, o
remo e o futebol). Portanto, esta aliana renderia filhos prsperos com o nascimento de uma
identidade coletiva, forjada a partir de uma viso de sociedade mais moderna, gil, dinmica,
saudvel e, por certo, esportiva. A imprensa ao noticiar este novo nicho de interesse do
12 Uma lio expressiva ministrada pelo prncipe de Galles aos nossos governantes. In: Jornal dos Sports. Rio de Janeiro: n 07, 23 de maro de 1931. P. 2. Coluna Crticas e Suggestes.
19
pblico (leitor ou no), criava, ento, um campo de publicizao de cdigos e valores que
identificavam os esportes e o prprio modelo de indivduo desta sociedade.
Enfim, o Jornal dos Sports, no incio da dcada de 1930, largava na frente dos demais
peridicos e adotava um discurso em tom de campanhas diversas, porm tendo a sade, os
esportes, a educao e a prpria formao de povo brasileiro, como temas relevantes.
20
O PSDB e a contrarreforma neoliberal nos anos 1990 1
Andr Pereira Guiot 2
As reflexes trazidas pelo presente trabalho tm como principal objetivo submeter
anlise os documentos do Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB) entre os anos de
1988 e 2002. A elaborao, divulgao e implementao do programa partidrio trazia, desde
sua fundao, aspectos pertinentes contrarreforma neoliberal de tipo terceira via3 para a
realidade brasileira. Veremos como o partido se credenciava, diante da crise orgnica da
dcada de 80, como organizador do consenso entre as fraes das classes dominantes e a
execuo de suas demandas na sociedade poltica (rgos, agncias e aparelhos de Estado)
durante os anos 90.
Para dar conta de tais rearranjos, o programa neoliberal de tipo terceira via
peessedebista atravessou trs fases bem ntidas, distintas e complementares: de 1988 a 1994
temos a formulao e a divulgao da ideologia neoliberal; no primeiro governo FHC (1995 a
1998) assistimos edificao e implantao das bases deste modelo e, finalmente, no segundo
governo FHC (1999-2002) o refinamento e a ampliao daquilo que j tinha sido
estrategicamente debatido, analisado e implementado nos perodos anteriores, isto , tratou-
se de fincar as bases da hegemonia neoliberal da terceira via atravs da proposta de
radicalizao ou democratizao da democracia.
A proposta deste trabalho o de abordar cada uma dessas fases atravs do exame dos
documentos do PSDB.
1 - A construo da ideologia neoliberal no PSDB (1988-1994)
1 Este trabalho fruto da dissertao de mestrado defendida em 2006 no Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal Fluminense (PPGH-UFF), intitulado Um moderno Prncipe para a burguesia brasileira: o PSDB (1988-2002). 2 Mestre em Histria pela Universidade Federal Fluminense (UFF). 3 O neoliberalismo de terceira via uma expresso cunhada pelo Coletivo de Estudos de Poltica Educacional da Fiocruz para assinalar a diferenciao entre o neoliberalismo ortodoxo e sua redefinio pensada por Anthony Giddens, socilogo e intelectual orgnico do trabalhismo ingls. Uma refinada anlise do programa do neoliberalismo da terceira via encontra-se em NEVES (2005).
21
Apesar da diversidade de tendncias4 no interior do PSDB e ao contrrio do que se
convencionou acreditar, as publicaes do partido apontavam para uma orientao
programtica no de cunho social-democrata mais nitidamente alinhada aos principais temas
da agenda neoliberal. A adoo do iderio neoliberal pelo PSDB no se iniciou somente a
partir de 1995, momento da insero dos peessedebistas na sociedade poltica (agncias,
rgos e aparelhos do Estado) atravs da eleio de Fernando Henrique Cardoso para a
Presidncia da Repblica. A construo de um projeto que buscava a formao (ainda que
embrionria) de um consenso neoliberal de terceira via para o pas estava presente nos
documentos do partido desde seus primeiros momentos.
O tema do neoliberalismo guarda extensa literatura acadmica, como sabemos.
Adotaremos aqui, em resumo, a perspectiva de Dcio Saes. Conforme sua elaborao, o
neoliberalismo inaugura uma nova etapa na correlao de foras entre Estado, capital e
trabalho. Corrodas as bases da acumulao keynesiana, o Estado neoliberal lana mo de trs
polticas estatais especficas: a) polticas desregulamentadoras, isto , reduo reguladora e
disciplinadora do Estado no terreno da economia e das relaes de trabalho; b) polticas de
privatizao, ou seja, desestatizao de empresas produtoras de servios e bens pblicos e c)
polticas de abertura da economia ao capital internacional, eliminando as reservas de mercado
e o protecionismo econmico.5
Mas, quais elementos nos possibilitam afirmar que o PSDB trazia orientaes
pertencentes ao projeto neoliberal no momento imediatamente posterior sua fundao?
Para responder essa questo, examinaremos alguns documentos partidrios tendo como foco
a contrarreforma do Estado brasileiro. Com base nessa anlise, refletiremos tambm sobre o
carter supostamente social-democrata do partido.
1.1 - O novo papel do Estado
Os contornos do iderio neoliberal j podiam ser percebidos no programa partidrio
(elaborado por Fernando Henrique Cardoso e Jos Serra) em 1988. Nele notamos claramente
que no se tratava de uma proposta social-democrata clssica, tampouco de cunho
4 No momento de sua fundao (junho de 1988), no PSDB coexistiam correntes ideolgicas bastante distintas, segundo sua auto-definio: os social-democratas, os liberais progressistas, os socialistas-democrticos e, finalmente, os democratas-cristos (Cf. PSDB, 1989a, p. 20). 5 SAES, 2001, p. 82.
22
socialista democrtico. Assim, por exemplo, o nascimento do PSDB se comprometeria com
um iderio simples e claro de reformas (...) contra um Estado no qual a argamassa do
passado teima em resistir renovao.6
As reformas ditas inadiveis definiam-se contra um Estado vulnervel s presses
corporativistas, por sua organicidade paternalista, patrimonialista, de natureza
cartorial, tragado por prticas clientelistas e fisiolgicas. Afirmava o programa que as
reformas desejadas no viro como doao providencial de um Estado forte ou de uma chefia
autocrtica, mas sim como resultado do livre exerccio das presses e da negociao dos
conflitos no mbito da sociedade civil.7
A social-democracia desloca, portanto, o eixo da opo entre estado ou privado do plano ideolgico [...] para um plano objetivo: importantes so as condies que devem ser criadas para o funcionamento da economia. A gesto predadora, patrimonialista, e a corrupo podem existir no setor estatal ou no privado. Em ambos so condenveis. O mercado competitivo o antdoto para esses males.8
O PSDB recuperava as crticas populares a alguns problemas do Estado (burocratismo,
cartoralismo, clientelismo, fisiologismo, etc.) e elaborava propostas para atac-las, mas
subordinando-as s percepes especficas das fraes das classes hegemnicas.
A valorizao da eficincia, envolvendo uma ampla reforma do setor pblico, no
deveria abdicar da democratizao das decises. Em linhas gerais, tal concepo se refere
quilo que em outros documentos os peessedebistas chamam de desprivatizao do Estado,
isto , do afastamento de interesses privados e corporativos incrustados na administrao
pblica em prol de genunos mecanismos de controle pblico, concomitante a uma completa
profissionalizao e reformulao dos servios pblicos que visem a sua racionalizao.
Racionalizao essa agregada lgica da eficincia e da competitividade, prpria do
mercado, e ao elogio da eficcia das associaes da sociedade civil na implementao de
polticas sociais, pressuposto central do neoliberalismo da terceira via.
Desta maneira, a privatizao do Estado significaria, nos primeiros documentos do
PSDB, o concubinato entre a burocracia e o interesse privado, tpico do Estado varguista, e/ou
6 PSDB, 1989b. 7 Ibidem. 8 CARDOSO, 1990a, p. 25.
23
a ao das foras corporativistas que constituem empecilhos para a universalizao das
conquistas sociais.9 Em Cardoso, encontramos a seguinte afirmao:
Inaceitvel a privatizao do estado, que na Amrica Latina ocorre em grandes propores. Isto , atravs de alianas que em outras circunstncias eu chamei de anis burocrticos , partes da burocracia estatal [...] so enfeudadas a interesses privados. [...] As interligaes entre a burocracia estatal e o interesse privado so enormes e frequentemente fazem-se em detrimento do interesse pblico.10
privatizao do Estado os peessedebistas opunham a desprivatizao, isto , o
aumento do controle democrtico sobre a gesto estatal para torn-la sensvel ao interesse
pblico. Em seu iderio, tratava-se de livrar o Estado das amarras burocrticas,
corporativistas e clientelistas atravs do cumprimento de um programa de reformas apto em,
por um lado, tornar pblicas e transparentes as aes do Estado e, por outro, criar
mecanismos que buscassem a competitividade - e, por conseguinte, a eficincia- por meio da
venda do setor produtivo estatal ao capital privado (desestatizao).
Estava claro que, para o PSDB, desprivatizar significava convencer amplos setores
sociais da necessidade de quebrar a resistncia e a capacidade dos setores organizados em
lutar por um projeto redistributivista no Brasil, desqualificando tambm qualquer
organizao sindical combativa do funcionalismo pblico que, capitaneados pela CUT, era
apresentada como corporativa, burocratizada, ineficiente e, por isso, predadora do bem
comum. Isso nos d a certeza de que desprivatizar o Estado, para o PSDB, significava
depur-lo de qualquer contedo popular e universalizante em favor dos interesses e demandas
de alguns setores do capital. A busca era pelo interesse comum, mas dos setores empresariais,
especialmente dos banqueiros.
Interessante observar que, j nesse momento, o controle democrtico na
desprivatizao do Estado seria impulsionado por uma sociedade civil genrica,
pretensamente destituda de clivagens de classe, apresentando-se como uma esfera pblica
homognea que visaria atender ao interesse comum. Isto se revela na seguinte passagem:
No mundo de hoje, os freios e contrapesos democrticos so exercidos cada vez mais por entidades que no so propriamente estatais nem
9 Ibidem, p. 21. 10 Ibidem, p. 25.
24
privadas: associaes de consumidores e de defesa do meio ambiente, a opinio pblica, universidades, igrejas, comunidades locais, etc. com a participao dessas entidades nas decises que a social-democracia conta, antes de tudo, para garantir a subordinao do poder econmico sociedade.11
O chamamento atuao sociedade civil, vista como autnoma tanto do mercado
quanto do Estado, precisava tambm diferenciar-se da participao orientada por foras
polticas ponderveis da esquerda que, segundo os peessedebistas, reduzem a participao
popular ao movimentismo, ao assemblesmo e ao basismo.12
O desafio para o Brasil, segundo o partido, passava pela necessidade de atacar com
firmeza a reforma das estruturas do Estado.13 Deve ficar claro que no se objetivava pr em
prtica uma reforma superficial, contingente, restrita, mas de impor uma reestruturao
profunda da mquina do Estado.14
O Estado assumia, nas formulaes iniciais do iderio peessedebista, um papel distinto:
nas suas funes macroeconmicas, deixaria de ser o principal agente da poupana forada e
da acumulao de capital e se restringiria a planejar e executar mecanismos capazes de
sustentar um novo padro de acumulao capitalista. J na rea social se destinaria a
complementar o mercado, isto , organizar e gerenciar uma rede de servios bsicos ao
atendimento das demandas fundamentais da populao, abandonando seu papel de produtor
de bens e servios pblicos. Os investimentos privados, a ao concorrencial do mercado e as
formas de organizao da sociedade civil indicavam a forma e o contedo de um novo projeto
de hegemonia burguesa no Brasil. Assim, a nova social-democracia
[...] afirma a superioridade do mercado na coordenao da economia mas no dispensa a ao complementar do Estado na rea social e na promoo da cincia e tecnologia, prope a adoo de novas formas participativas de trabalho nas empresas, dispe-se a administrar e julga-se capaz de administrar melhor o capitalismo do que os prprios capitalistas.15
11 CARDOSO, 1990b. 12 CARDOSO, 1990a, Op.cit. p. 31. 13 PSDB, 1989b, op. cit. 14 Ibidem. 15 PEREIRA, 1990, p. 44-45.
25
O desmonte das funes pblicas estatais voltadas para o suprimento das carncias nas
reas sociais e o elogio privatizao de largos setores produtivos controlados pelo Estado
revela a estratgia neoliberal peessedebista j em seus primrdios.
1.2 - Social-democrata ou neoliberal?
Um exame mais apurado nos documentos do partido nos revela que, diante da situao
de crise, o PSDB se deslocou em peso para procurar contemplar as diversas demandas das
fraes e setores das classes dominantes que desejavam a estabilidade econmica e a
continuidade da poltica neoliberal iniciada por Collor (com os ajustes necessrios), bem
como a apassivao dos movimentos sociais.
Torna-se profcuo, para deixar mais claro, ler o trecho abaixo, retirado de uma palestra
de FHC, em 1999, que mostra como se engajava, precocemente, o projeto do partido ao
neoliberalismo:
No programa do PSDB, h uma parte em que se discute o capital estrangeiro. Foi o primeiro partido que discutiu a necessidade do capital estrangeiro, pois a viso dominante, at ento, era: capital estrangeiro igual a imperialismo. O imperialismo quer impedir o nosso desenvolvimento, logo somos contra. Ns conclumos a necessidade da participao do capital estrangeiro [...]. E j ento, nos anos 80, reconhecemos que era preciso privatizar [...]. O que importa que ns tivemos coragem de ir contra tabus. [...]. Nesse contexto, julgamos que era fundamental valorizar a empresa privada na busca da competitividade. Palavras que no se usavam, era o perodo da substituio de importaes [...]. Leiam o discurso do Mrio Covas sobre choque de capitalismo. Leiam e vejam se o que estou dizendo est ou no dito l.16
Ora, de que forma podemos afirmar que o PSDB apresentava postulaes da social-
democracia clssica? Sua aproximao com o neoliberalismo original, orgnica,
programtica. Alis, o partido estava extremamente afinado com os pressupostos de seus
congneres europeus, j em fins dos anos 80. O que se seguiu foi o aprimoramento contnuo
do projeto e, no ps-94, sua consolidao, implementao, refinamento e ampliao.
Decisivamente, tratava-se, ento, de um partido com a denominao social-democrata, mas
cujo contedo programtico incorporava os principais temas econmicos neoliberais. Em
16 PSDB, 2000, p. 23-24.
26
outras palavras, alm de no ser social-democrata pelo seu contedo programtico no o
tambm porque, de fato, faltava a ele a base de classe social-democrata que a classe
trabalhadora: ora, o partido nunca constituiu qualquer vnculo com a classe trabalhadora e,
portanto, at mesmo sua denominao social-democrata fica comprometida.
Preferimos entender que a configurao da programtica neoliberal peessedebista se
forjou nas correlaes de foras travadas no seio da sociedade civil. Ou seja, a fertilidade das
propostas do PSDB se deveu, em grande medida, s demandas j postas pelas organizaes do
empresariado (nacional, internacional ou associado) num contexto de uma crise orgnica17
no final dos anos 80. A debilidade e o refluxo crescente das associaes da sociedade civil
ligadas aos setores populares j no incio dos anos 90 por um lado, seguida de importantes
vitrias do projeto neoliberal em pleno vapor nos pases centrais por outro, constituram
motivaes fundamentais para que o PSDB varresse de seu horizonte poltico qualquer
contedo social-democrata e aprimorasse novas formas de dominao, aprofundando o novo
padro de acumulao capitalista no Brasil. Foi ento que assumiu seu efetivo papel o de
formulador e implementador de uma plataforma poltica unificadora dos setores
empresariais, tornando-se um dos intelectuais coletivos da burguesia.
2 - Edificando e implementando o projeto (1995-1998)
Torna-se necessrio, nesse momento, analisarmos a construo e implementao do
projeto neoliberal de terceira via na sociedade poltica (rgos, agncias e aparelhos do
Estado). Focaremos, entretanto, um aspecto especfico: o projeto da contrarreforma do
Estado. Caracterizava-se como uma das principais frentes de batalha a ser vencida pelas aes
das classes e fraes de classes dominantes modernizantes, as quais foram
programaticamente capitaneadas, na estrutura partidria que se apresentava, pelo PSDB.
Os documentos partidrios do PSDB, quando avaliavam o Estado brasileiro, apontavam
para um diagnstico unnime: o esgotamento do modelo de desenvolvimento baseado na
industrializao protegida, isto , de substituio de importaes que, se se mostrara vivel
desde os anos 30, tornara-se um obstculo na alocao eficaz de recursos a partir dos anos 70.
17 Retomando Gramsci, Bianchi (2002, p. 28-37) assevera que uma crise orgnica quando afeta o conjunto das relaes sociais sendo a condensao das suas contradies. A coincidncia de uma crise de acumulao do capital com o acirramento da luta (intra e inter) classes, propicia a sua ecloso.
27
A extenuao do modelo de interveno estatal teria gerado uma crise fiscal do Estado
oriunda, em grande medida, da crise dos seus mecanismos de financiamento, feitos atravs do
endividamento externo e tambm da emisso de dinheiro ou ttulos, o que gerava inflao.
Tais condicionamentos fariam com que o papel do Estado enquanto produtor de bens e
prestador de servios estivesse deteriorado. Em Mos Obra Brasil, Cardoso afirma que
neste modelo, no caber mais ao Estado um papel de produtor exclusivo de bens e servios,
mas de normatizador e neutralizador das distores do mercado, assim como de agente
coordenador de investimentos.18
No havia alternativa, segundo os peessedebistas, para solucionar o problema da crise
do Estado se no fossem adotadas medidas realistas e inadiveis, tais como: a)
ajustamento fiscal duradouro; b) reformas econmicas orientadas para o mercado; c) reforma
da previdncia social; d) inovao dos instrumentos de poltica social (via setor pblico no-
estatal); e) a reforma do aparelho do Estado.19
A estabilizao econmica (dada atravs do controle da inflao e do dficit pblico)
garantiria o aval necessrio para a mudana de rumo. Condio indispensvel tambm seria a
adoo de uma poltica macroeconmica que compreendesse a abertura da economia, a
desregulamentao e a privatizao.20 A globalizao dos circuitos econmicos impunha,
segundo os peessedebistas, a necessidade de uma insero inteligente e competitiva da
economia nacional no mundo. Ela era entendida como um fato social inequvoco que
oferecia riscos e oportunidades. Como dela no podemos fugir, os peessedebistas afirmavam
a necessidade de o pas ocupar um papel de primeiro plano no cenrio internacional ou
fracassarmos como nao.21
Uma nova revoluo nos modos de produzir e comerciar transformou o mundo, criando a necessidade de adaptar as economias nacionais s novas tecnologias, aos novos produtos e globalizao das relaes econmicas. Por demasiado tempo, ficamos presos ao velho modelo [...] quando o mundo j estava obtendo benefcios inquestionveis de uma etapa de abertura e de desregulamentao.22
18 CARDOSO, 1994, p. 73. 19 BRASIL, 1995, p. 11. 20 CARDOSO, 1994, op. cit., p. 21. 21 PSDB, 2001, p. 7-8. 22 CARDOSO, 1994, op. cit., p. 260-261.
28
Deste modo, a reforma do Estado reduziria seu papel de executor ou prestador direto
de servios mantendo-se, entretanto, no papel de regulador e provedor ou promotor destes,
principalmente dos servios sociais em educao e sade. Estes seriam essenciais para o
desenvolvimento tendo em vista que envolvem investimento em capital humano.23
Diante das tarefas impostas pela programtica neoliberal, os peessedebistas
convenciam-se da necessidade de redefinir as bases do financiamento estatal capazes de
reformar e desenvolver o complexo de infra-estrutura que garantiria o salto para o
desenvolvimento com justia social. No h dvidas de que para o cumprimento de tal
empreitada era preciso, de fato, contar com a ao positiva por parte do governo. Assim, o
Estado atuaria diretamente nas privatizaes, na mobilizao de suas reservas e na captao
internacional de recursos. Portanto, se fazia urgente realizar a reforma do Estado,
aparelhando o setor pblico para, de um lado, exercer o papel de articulador na captao de
recursos internos e externos e, de outro, para estabelecer claramente o papel do governo na
regulao dessas atividades, para assegurar qualidade, competio e tarifas adequadas na
concesso de servios pblicos.24
Os contrarreformistas neoliberais assinalavam tambm a presena de uma crise de
gesto administrativa no interior do aparelho do Estado. Essa crise seria analisada por eles
em trs dimenses: 1) a dimenso institucional-legal, relacionada aos obstculos de ordem
legal para o alcance de uma maior eficincia do aparelho do Estado; 2) a dimenso cultural,
definida pela coexistncia de valores patrimonialistas e principalmente burocrticos com os
novos valores gerenciais e modernos e 3) a dimenso gerencial, associada s prticas
administrativas.25
A dimenso gerencial ou dimenso-gesto apresentada como a reforma concreta do
aparelho do Estado.26 Objetivava, dentre outros propsitos, fincar as bases de um novo tipo
de neoliberalismo o da terceira via. O germe desse modelo estava precocemente definido
nos seus documentos iniciais. O desafio, neste momento, era o de aprofundar e refinar as
novas modalidades de imposio e obteno do consenso neoliberal no Brasil, redefinindo e
legitimando suas formas de ao.
23 BRASIL, 1995, op. cit. 24 CARDOSO, 1994, p. 27. 25 BRASIL, 1995, op. cit., p. 25. 26 Ibidem, p. 54.
29
Para tanto, foi fundamental o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado,
confeccionado no interior do Ministrio da Administrao e Reforma do Estado (MARE), sob a
liderana de Bresser Pereira. Ele distinguia trs formas de propriedade: a privada, a estatal e a
pblica no-estatal. O mago da reforma do Estado, ou melhor, a ossatura do projeto
neoliberal de tipo terceira via no Brasil consubstanciava-se na formulao e utilizao da
propriedade pblica no-estatal a setores do aparelho do Estado, redefinindo novas relaes
entre Estado e sociedade. Desta maneira,
[...] reformar o Estado significa transferir para o setor privado as atividades que podem ser controladas pelo mercado. Da a generalizao dos processos de privatizao de empresas estatais. Neste plano, entretanto, salientaremos um outro processo to importante quanto, e que no est to claro: a descentralizao para o setor pblico no-estatal da execuo de servios que no envolvem o exerccio do poder de Estado, mas devem ser subsidiados pelo Estado, como o caso dos servios de educao, sade, cultura e pesquisa cientfica. Chamaremos a esse processo de publicizao.27
O Plano Diretor definia a propriedade pblica no-estatal como sendo constituda
pelas organizaes sem fins lucrativos, que no so propriedade de nenhum indivduo ou
grupo e esto orientadas diretamente para o atendimento do interesse pblico.28 Segundo o
Plano, para o setor no-exclusivo do Estado (universidades, hospitais, creches, entidades de
assistncia aos carentes, centros de pesquisa, bibliotecas, museus, orquestras sinfnicas,
oficinas de arte, emissoras de rdio e televiso educativa ou cultural), a propriedade ideal a
ser adotada era a pblica no-estatal. A publicizao se referia ao que antes, como vimos, os
peessedebistas chamavam de controle democrtico, nomeado na nova fase de controle
social. claro que isso no se restringia troca de termos, mas primordialmente ao
refinamento do projeto.
O estmulo criao e ampliao do setor pblico no-estatal foi feito principalmente
atravs da construo de um novo marco legal, contribuindo para os novos contornos da
hegemonia burguesa no Brasil. As leis que compunham o escopo geral da contrarreforma do
Estado alteraram o aparato regulatrio da relao entre Estado e sociedade civil. O MARE foi o
organismo estatal responsvel tanto pela formulao das emendas constitucionais a serem
27 Ibidem, p. 12-13. 28 Ibidem, p. 43.
30
aprovadas pelo Legislativo quanto pela articulao dos demais aparelhos estatais
notadamente o Programa Comunidade Solidria.
A concepo do Comunidade Solidria j constava na proposta de governo Mos
obra Brasil mas, de fato, o aprimoramento de seu papel (seus princpios e diretrizes) foi
melhor elucidado no programa de 1998, o Avana Brasil. O balano de suas aes durante o
primeiro mandato de FHC (1995-1998) tambm estava exposto no referido programa:
Inovadora, de parte a parte, tambm a experincia de participar de parcerias Estado-Sociedade [...]. Neste sentido, o xito das numerosas parcerias incentivadas pelo Programa Comunidade Solidria demonstra que administradores pblicos e cidados dos mais diferentes estratos podem pensar e agir juntos, identificando o que cada qual faz melhor e somando esforos pelo progresso social. [...] A principal lio destes quatro anos consiste justamente na descoberta de que a parceria permitiu ampliar e no reduzir os montantes a serem destinados rea social.29
O alicerce de depurao do projeto social-democrata era o de legitimar as novas
formas de obteno do consenso bradando uma suposta ampliao do espao pblico para
alm das fronteiras estatais. Isso significava que organismos pblicos no-estatais (ONGs,
instituies filantrpicas, fundaes e associaes) que no visam ao lucro mas que se
sustentavam com recursos estatais - alm de serem considerados mais eficazes na execuo
dos servios pblicos do que o Estado (uma vez que trazem prticas de gesto prximas as
do setor privado) foram elevados s formas genunas de promoo de uma suposta
radicalizao ou democratizao da democracia, que teve maior flego no segundo governo
FHC.
3 - Refinando, aprofundando e ampliando o projeto (1999-2002)
Como vimos, a gnese da propalada ideia de parceria entre Estado-sociedade, mesmo
que no se apresentasse nestes termos, j estava esboada nos documentos prematuros do
partido. O captulo V da proposta de governo Mos obra Brasil, de 1994, intitulado A
parceria Estado-Sociedade veio, em certa medida, consolidar e aprofundar o que j estava
anunciado anteriormente. Dizia a proposta que
29 CARDOSO, 1998, p. 292.
31
[...] necessrio reformar o Estado: aprofundar a democratizao, acelerar o processo de descentralizao e desconcentrao e, sobretudo, ampliar e modificar suas formas de relacionamento com a sociedade, definindo novos canais de participao e criando formas novas de articulao entre o Estado e a sociedade. Caber, em primeiro lugar, criar novos canais de participao e de controle pblico, alm de dinamizar os j existentes, multiplicando as experincias de gesto multilateral e desprivatizando o Estado, isto , libertando a administrao governamental dos interesses particulares que hoje a aprisionam. Caber, em segundo lugar, dinamizar, apoiar e promover a multiplicao de espaos de negociao de conflitos, onde interesses divergentes possam ser representados e solues negociadas possam ser buscadas, em benefcio do interesse pblico. Caber, em terceiro lugar, definir e apoiar formas novas de parceria [...] entre o Estado e a sociedade [...].30
Neste mbito, a fase do segundo mandato de FHC (1999-2002) correspondeu fina flor
do projeto neoliberal da terceira via no Brasil, qual seja, o da radicalizao da democracia.
No trouxe inflexes ao projeto original: ao contrrio, correspondeu sua sofisticao,
aprofundamento e ampliao.
Nos documentos peessedebistas radicalizar a democracia significava possibilitar o
celebrado controle social. Segundo eles, devia-se abandonar a iluso do Estado como nico
provedor do bem-estar e abrir as portas participao coletiva na construo da sociedade do
bem-estar.31 O desafio era promover uma nova diviso de trabalho entre poder pblico e
cidadania, no sentido de incentivar a participao, a solidariedade e o senso de
responsabilidade social de todos os brasileiros.32
A tica da solidariedade, tratada como fruto de uma nova cultura cvica, deveria
estar a servio da formao de novas modalidades de parceria entre sociedade e Estado, de
forma que os cidados tornar-se-iam menos dependentes de governos.33 A suposta
democratizao da sociedade caminharia em direo a sua radicalizao. Estaria em vigor
um processo libertador, movido por novos atores, sujeitos sociais, movimentos polticos,
organizaes no governamentais, uma verdadeira exploso de associativismo popular, de
30 CARDOSO, 1994, op. cit., p. 208-209, grifos nossos. 31 CARDOSO, 1998, op. cit., p. 270. 32 Ibidem, p. 271. 33 CARDOSO, 1997b, p. 13-14.
32
iniciativas comunitrias e experincias de um voluntariado vidas por possibilitar solues
concretas na complementao das polticas pblicas, em especial nas reas sociais.34
Estamos diante inequivocamente de um projeto societrio que buscava enquadrar o
conjunto das foras sociais de cunho popular s novas formas de dominao, explorao e
expropriao capitalista. Revelava-se claramente a preocupao em difundir o iderio
neoliberal de terceira via com o intuito de transformar os largos setores subalternos em
participantes e colaboradores.
Preocupava ao partido o provvel potencial de protesto ou insubmisso das camadas
subalternizadas capaz de forjar um projeto contra-hegemnico ao bloco do poder dominante.
Seu iderio precisava balizar uma plataforma pedaggica de convencimento na qual, ainda
que reconhecidas as classes sociais, fossem dissolvidas as formas de organizao popular que
enfatizassem o conflito entre elas.
Ora, como falar, hoje, com nitidez, de explorao do capitalista, de realizao da mais-valia, no sentido clssico do marxismo, se uma parcela importante dos trabalhadores comea a se tornar scia do Capital? Sem dvida, h grupos especficos de trabalhadores que souberam construir melhores formas de acesso ao Capital justamente porque foram capazes de se organizar de forma moderna.35
Verifica-se, assim, a importncia de um partido poltico como o PSDB na formao de
um novo bloco histrico que, juntamente com outros aparelhos privados de hegemonia,
divulgava a ao voluntria e fraterna, defensora do bem-comum, em prol das aspiraes das
fraes de classe que compunham o projeto. Nesse sentido, se produzia a convico de que as
formas de pactuao, negociao e conciliao entre o capital e o trabalho no somente eram
possveis (porque suas rivalidades encontram-se em fatores histricos que no mais existem)
mas, sobretudo, cruciais na formatao de um novo projeto em que todos pudessem ser
beneficiados, com a condio de abandonarem qualquer expectativa anti-capitalista.
Ainda em plena vigncia, estas estratgias de repolitizao da poltica educam para a
sedimentao de um consenso ativo e apresentam a sociedade civil como agente autnomo e
segmentado das classes sociais. A sociedade civil concebida como uma esfera de colaborao
e parcerias, um espao de virtuosidades e de ausncia de opresso e dominao. Desta
maneira, a suposta homogeneizao dos interesses e das prticas coletivas pressupe uma
34 PSDB, 2001, op. cit., p. 21. 35 CARDOSO, 1997b, op. cit., p. 17.
33
despolitizao da sociedade civil, a qual, de um lado, corrobora para que as conscincias das
classes trabalhadoras permaneam no nvel elementar do econmico-corporativo e, do outro,
desloca-se o eixo da militncia social do conflito de classes para estratgias participativas e
colaboracionistas com o capital, desmantelando ou refuncionalizando seus prprios aparelhos
privados de hegemonia em favor da coeso social.36
Assim como a sociedade civil aparece como portadora de uma imparcialidade, as
referncias a ela nos documentos peessedebistas nos mostram que, ao credenci-la como
agente do novo modelo, a considera tambm separada, ou melhor, fora do Estado. Desta
forma, o pblico no-estatal aparece como entidade autnoma do mercado e do Estado
supostamente um Terceiro Setor. O que realmente revelador o fato de esta sociedade
civil plasmada, homognea, autnoma e despolitizada, assume o papel de novo agente histrico
da transformao em lugar das classes sociais.
A frmula radicalizao da democracia encobre com o vu da terceira via sua
verdadeira face neoliberal: de atribuir sociedade a (auto)responsabilizao pela execuo e
financiamento das polticas sociais, ao mesmo tempo em que desresponsabiliza o Estado de
suas atribuies mais candentes.
O PSDB perfilava-se como de terceira via porque se preocupava com o grau de
estabilidade poltico-social, isto , com a coeso social necessria continuidade do projeto
e, no horizonte, do prprio capitalismo. Da a nfase em mecanismos participativos, nos
controles sociais, na radicalizao da democracia, na publicizao, ou seja, no refino e
ampliao da prpria noo modernizao, cujo teor no se referia somente ao mercado ou
ao Estado, mas ao conjunto do tecido social.
Portanto, o neoliberalismo peessedebista de tipo terceira via conduziu um processo de
ampliao seletiva do Estado capitalista. Ampliou (e no restringiu) na medida em que o
prprio projeto possibilitou que novas organizaes da sociedade civil ligadas aos setores
empresariais pudessem participar das discusses e decises estatais. Foi seletiva porque
excluiu as organizaes da sociedade civil ligadas s causas populares, seja retirando-lhes os
direitos conquistados, seja expropriando-lhes ideologicamente, isto , repolitizando suas
prticas e disposies tericas.
36 NEVES, 2005 e FONTES, 2005, p. 117.
34
Referncias Bibliogrficas
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_____. Declarao Programtica do Partido da Social Democracia Brasileira documento preliminar para discusso interna. ITV, Braslia: maio de 2001.
35
Hiplito Jos da Costa:
Uma figura ambgua ou mal interpretada?
Bruna Melo dos Santos
Esse estudo tem como objetivo fazer um esboo da trajetria de vida de Hiplito Jos
da Costa, redator e editor do Correio Braziliense. Este personagem conta com pelo menos duas
biografias bastante conhecidas, que por sinal, os bigrafos disputam entre si o pioneirismo de
t-lo biografado. No entanto, a primazia de tal feito, diga-se de passagem, em solo brasileiro1,
parece no recair sobre nenhum dos dois, isto , nem Mecenas Dourados e nem Carlos Rizzini
2, mas sim todos os louros e glria devem ir para: Francisco Incio Marcondes Homem de
Mello, mais conhecido como Baro Homem de Mello advogado, historiador, cartgrafo,
poltico, professor e scio do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, onde ingressara no
ano de 1859.
Homem de Mello escreveu a primeira biographia de Hiplito cinqenta anos aps a
morte do redator. O escrito foi publicado no ano de 1872 pela Revista do Instituto Histrico e
Geogrfico Brasileiro, com o ttulo Biographia dos brasileiros illustres por armas, letras,
virtudes, etc. Hyppolito Jos da Costa Pereira.3 Na tentativa frustrada de fazer um esboo sobre
a vida de Hiplito, Baro Homem de Mello se limitou a descrever trechos do Correio
Braziliense, e, tambm, da Narrativa da Perseguio.
As poucas linhas em que escreveu sobre o redator do Correio, Homem de Mello fez
rasgados elogios a sua atuao no cenrio poltico luso-brasileiro, momentos antes da
independncia do Brasil, e reconheceu que Hiplito ainda no havia recebido as honras que
merecia por ter contribudo para a liberdade de seus compatriotas. Apresentou seu
Mestranda do Programa de Ps-Graduao de Histria na linha de Poltica e Cultura da Universidade do Estado do Rio e Janeiro (UERJ), bolsista CAPES. 1Trs dcadas aps a morte de Hiplito da Costa, o jornalista, e desafeto de Hiplito, Jos Liberato Freire de Carvalho, principal redator de O Investigador Portuguez, foi o primeiro a escrever a biografia do redator do Correio Braziliense. Para mais informaes ler o texto Os bigrafos de Hiplito da Costa. Jogo de Espelhos. Antonio F. Costella. . In: DINES, Alberto (ed.). Hiplito Jos da Costa e o Corrreio Braziliense. Estudos. V. 30, tomo 1, So Paulo/Braslia, Imprensa Oficial/Correio Braziliense, 2002. 2 DOURADO, Mecenas. Hiplito da Costa e o Correio Braziliense. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exrcito, 1957. RIZZINI, Carlos. Hiplito da Costa e o Correio Braziliense. Edio ilustrada. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1957. 3MELLO, Francisco Ignacio Marcondes Homem de. Biographia de Hyppolito Jos da Costa Pereira. In: Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, 1872.
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biografado como um publicista eminente, que, na poca agitada da independncia, armado da
clera do patriotismo, intimou metrpole os direitos da oprimida colnia do Brasil.4
Pioneirismo parte obvio que no se pode desprezar a distncia temporal, terica e
metodolgica entre a biografia, ainda com ph, escrita por Baro Homem de Melo em 1871 e a
biografia escrita por Mecenas Dourados e Carlos Rizzini, que coincidentemente saram luz
no ano de 1957. Vale pontuar que no sculo XIX, a Histria recebeu a sua patente de cincia, e
com isso a biografia passou a se pautar mais nos documentos a fim de caminhar na mesma
direo de cientificidade, agora, exigida pela Histria. A fim de situar a diferena entre a
escrita biogrfica do Baro Homem de Melo dos demais bigrafos citados, cabe destacar os
trs paradigmas definidos por Daniel Madelnat5 biografia clssica que abarca o perodo da
antiguidade ao sculo XVIII; a biografia romntica que est circunscrita do final do sculo
XVIII ao inicio do XX; e, por fim, a biografia moderna. importante ressaltar que Madelnat
no tratava esses paradigmas como algo imvel, muito pelo contrrio, essa diviso foi apenas
uma chave que ele utilizou para melhor analisar as misturas e complexidades do uso do
biogrfico.
Assim, a biografia escrita por Homem de Melo situa-se no segundo paradigma, isto , a
biografia romntica, que narrada nos mnimos detalhes, fortemente documentada tendo
como fonte: cartas, dirios e tudo mais que registrasse as aes do indivduo. Enquanto as
demais que foram produzidas na segunda metade do sculo XX esto circunscritas no
paradigma da biografia moderna, que nasceu da crise de valores que afetou o sistema do
humanismo, do cristianismo e da cincia, tendo como resultado a ruptura com o pensamento
racionalista/cientificista, com a tradio crist e com o humanismo Greco-Latino.
O debate em torno da laicizao do mundo, onde os homens no necessitavam mais das
idias de Deus para agir no mundo, afetou a escrita da histria. A maneira de conceber o
sujeito foi modificada, agora o individuo deve e pode ser considerado objeto de estudo. A
biografia moderna estabelece parceria com o romance que privilegia uma narrativa entendida
como histria de vida, que est relacionada com as figuraes do tempo. Esse tipo de biografia
a que prevalece at hoje, na qual o biografado passa por um processo de humanizao, onde
suas imperfeies e incertezas tambm so narradas, rompendo, dessa forma, com a
4 MELLO, Homem de. Op.Cit. 5 MADELNAT, Daniel. La biographie. Paris: PUF, 1984
37
concepo herica que era normalmente atribuda ao biografado, uma vez que ele deveria
servir como exemplo.
A trajetria de vida de Hiplito da costa que ser tratada neste estudo dar conta do
lado humano do redator, que como qualquer pessoa tem suas imperfeies, suas incertezas e
ambigidades. Uma dentre as inmeras ambigidades que cercam a figura do redator do
Correio Braziliense, diz respeito a sua nacionalidade. O prprio Hiplito da Costa considerava
o Brasil como sua terra natal, e no primeiro nmero do Correio isto fica evidente ao afirmar
que est escrevendo para os seus compatriotas Levado desses sentimentos de Patriotismo, e
desejando aclamar meus compatriotas, sobre os fatos polticos civis, e literrios da Europa,
empreendi este projeto [...]6 ; apesar deste auto-reconhecimento, Hiplito no considerado
brasileiro por alguns historiadores e jornalistas, que o acusam de ser um falso dolo do
jornalismo brasileiro, j que nem brasileiro ele era. Nelson Werneck Sodr refora essas
acusaes e enumera alguns motivos que descredenciam Hiplito do rol da histria da
imprensa brasileira.7
O infortnio de ter nascido na colnia do Sacramento local em que viveu at os 3 anos
de idade, mudando-se com seus pais para o Rio Grande do Sul, onde viveu at os 14 anos de
idade, quando partiu para Lisboa a fim de iniciar os estudos superiores como era, em via de
regra, o destino dos jovens de famlias mais abastadas do cenrio luso-brasileiro deu
margem para que a nacionalidade de Hiplito da Costa fosse questionada, assim, como
tambm, foi questionado o status do Correio Braziliense como sendo o primeiro peridico
brasileiro. O historiador Joo Paulo G.Pimenta corrobora com esses questionamentos ao
relatar que o Correio:
sempre foi redigido e editado em Londres, por um editor nascido na Colnia do Sacramento, territrio que acabou por pertencer definitivamente Repblica Oriental do Uruguai [...] foi necessrio considervel malabarismo conceitual para que se acreditasse ser o Correio Braziliense o primeiro peridico brasileiro.8
No entanto, para outros autores, o fato do jornal ser redigido em Londres foi uma
estratgia para que Hiplito, longe dos olhos e garras da censura, pudesse expor e denunciar
6 Correio Braziliense. vol.1, n01, setembro de 1808, p. 03 7 SODR, Nelson Werneck. Histria da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1966. 8 PIMENTA, Joo Paulo G. Nas origens da imprensa Luso-Americana: O periodismo da provncia Cisplatina (1821-1822). In: Histria e Imprensa. NEVES, Lucia Maria Bastos P., MOREL, Marco & FERREIRA, Tania Maria Bessone da C.(org.) Rio de Janeiro: Faperj, 2006.
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tudo aquilo que julgasse importante, mesmo quando o assunto fosse desagradvel para a
Corte portuguesa. Argumentam que se o Correio fosse redigido em territrio luso-brasileiro
teria, com toda certeza, sofrido influncias do Rei e do clero, tal como acontecia com as
gazetas que circulavam por aqui. Por exemplo, a Gazeta Idade dOuro do Brasil, publicada pela
primeira vez em 1811, na Bahia, pelo redator Manuel Antonio da Silva Serva, precisou seguir
inmeras regras para que fosse liberada sua circulao como, por exemplo, fazer
consideraes sobre o amor ao soberano e religio, divulgar as noticias polticas sem fazer
nenhuma reflexo sobre o assunto, divulgar escritos ministeriais e econmicos, etc.9
Outra questo, um tanto quanto duvidosa, paira sobre o personagem Hiplito da Costa
e diz respeito a to desejada e defendida liberdade de imprensa almejada pelo redator, que
depois de ter ficado cerca de dois anos nos Estados Unidos e presenciado a circulao dos
journais, e, sobretudo, do pensamento poltico, livre de qualquer censura, encantou-se pela
atividade da imprensa, a qual passaria exercer poucos anos depois, atravs da redao e
edio do Correio Braziliense, que tinha como misso, no s, a divulgao de noticiais, mas,
tambm, como observou Isabel Lustosa informar os brasileiros do que se passava no mundo,
para influir sobre seus espritos direcionando-os no sentido das idias liberais, para chamar a
ateno para o carter daninho do absolutismo ou de qualquer forma de despotismo.10
Nos Estados Unidos, Hiplito circulou entre homens influentes, que tinham o poder de
interferir nos negcios de Estado por meio do combate poltico na esfera da opinio pblica,
os chamados homens de imprensa, grupo social a qual logo passaria a pertencer. Como
redator, Hiplito encontrou lugar no campo da Repblica das Letras, onde os homens letrados
surgiram com uma misso poltica e pedaggica de difundir idias, com o intuito de informar e
formar a opinio pblica.
A viagem aos Estados Unidos foi um marco na vida do futuro redator, que ficou
espantosamente admirado com a cultura poltica de liberdade que era to cara ao mundo
luso-brasileiro. Nem mesmo o modelo de governo da Repblica americana lhe atraiu tanto,
tambm no poderia mesmo, j que Hiplito sempre foi um monarquista ferrenho. Sua
fascinao estava na livre circulao das idias que encontravam lugar dentro de espaos
pblicos, diga-se de passagem, a liberdade era tanta que tinha espao at mesmo para a
9 Para maiores informaes sobre a gazeta Idade dOuro do Brasil ver SILVA, Maria Beatriz Nizza. A Idade douro do Brasil e as formas de sociabilidade baianas. In: Histria e Imprensa. NEVES, Lucia Maria Bastos P., MOREL, Marco & FERREIRA, Tania Maria Bessone da C. (org.). Rio de Janeiro: Faperj, 2006. 10 LUSTOSA, Isabel. O nascimento da imprensa brasileira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.p.17
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exposio das intimidades dos polticos que se agrediam atravs das pginas dos jornais. Vale
ressaltar que o cenrio norte-americano, que recebeu Hiplito da Costa, estava em plena
campanha poltica e a imprensa, nesse contexto, tinha ampla participao na agitao das
campanhas, assim, como serviam de instrumento para propaganda dos partidos polticos.
A liberdade de expresso, a liberdade de imprensa to defendida por Hiplito parece
no ter sido uma constante em seu jornal, isso o que afirma alguns historiadores que acusam
Hiplito da Costa de ter vendido sua pena para a Coroa Portuguesa, que teria feito a
proposta de financiar quinhentos exemplares de cada edio com a condio do redator no
pesar mo ao escrever acerca da administrao de D. Joo VI. No entanto, segundo Carlos
Rizzini, tudo indica que Hiplito no teria aceitado a oferta, seno a Corte do Rio de Janeiro
no teria patrocinado o lanamento do jornal o Investigador Portugus na Inglaterra, que tinha
como misso defender os interesses do governo luso-brasileiros das tintas do redator do
Correio Braziliense.11 Se considerarmos o papel de Rizzini como bigrafo de Hiplito e
levarmos em considerao o tema recorrente entre os bigrafos que a empatia e o desejo
de fazer justia,12 poderemos por em dvida essa defesa de Rizzini, mas essa no a inteno
desse estudo.
Por outro lado, segundo Srgio Goes de Paula e Patricia de Souza Lima, no contexto
histrico da poca, era bastante comum que os peridicos fossem patrocinados devido ao
elevado custo de manuteno. Assim, devido a grande dificuldade de Hiplito da Costa para
manter a circulao do Correio, ao que tudo indica, recebeu ajuda financeira da maonaria e
do governo ingls, mas precisamente do duque de Sussex. No entanto, pode se afirmar,
segundo os autores supracitados, que at meados do sculo XIX no existia uma imprensa
independente e todos os jornais eram porta-vozes de partidos, grupos econmicos ou de
pessoas, que arcavam com os seus custos. Sendo assim, era de se esperar que o Correio
Braziliense, tambm, fosse patrocinado. Nesse caso, as acusaes feitas a Hiplito da Costa no
procede, tendo em vista que esse era o caminho natural dos jornais no comeo do
oitocentos.13
11 RIZZINI, Carlos. Hiplito da Costa e o Correio Braziliense. Edio ilustrada. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1957. 12 ARNAUD, Claude, apud DOSSE, Franois. O Desafio Biogrfico: escrever uma vida. Traduo Gilson Csar Cardoso de Souza. So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 2009, p.15 13 PAULA, Srgio Gos de Paula e LIMA, Patricia de Souza. Os paradoxos da liberdade. In: Alberto Dines (ed.). Hiplito Jos da Costa e o Corrreio Braziliense. Estudos. V. 30, tomo 1, So Paulo/Braslia, Imprensa Oficial/Correio Braziliense, 2002. p. 111-159.
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Desse modo, importante ressaltar, que ao aceitar o financiamento, o redator do
Correio teve que fazer algumas concesses, mas em momento algum deixou de expor em seu
jornal tudo aquilo que se propunha, desde a publicao do primeiro nmero, em outras
palavras, no abriu mo do carter civilizador e continuou na luta pelos princpios que
defendia, dentre eles a extino gradual e prudente da escravido.
O carter abolicionista de Hiplito tambm alvo de criticas de muitos autores que
sofrem de sndrome anti-Hiplito como pontuou Alberto Dines14. A posio adotada pelo
redator do Correio diante desse atraso social de uma nao que se queria livre deu origem as
interpretaes de que seria Hiplito um abolicionista s avessas, j que ele no estava to
preocupado com a questo humanitrias, mas sim com os prejuzos que a economia luso-
brasileira poderia ter amargado caso as estruturas da escravido fosse ceifada de uma hora
para outra.
Nesse sentido, importante perceber que Hiplito era um monarquista assumido e,
obviamente, se preocupava com a economia do Imprio, assim, sendo o trabalho escravo as
mos e os ps da economia, nada mais seguro do que promover o fim da escravido de
maneira cautelosa, a fim de manter o bem-estar econmico da colnia portuguesa e do
Imprio. Esse discurso, um tanto quanto, conservador rendeu a Hiplito algumas criticas,
pois a adeso do Correio a causa abolicionista de inicio se limitou a publicao dos atos oficias
sobre a escravido, e algumas anlises sobre os textos como, por exemplo, o Correio
Braziliense publicou na integra o Alvar sobre o commercio da escravatura expedido em 1814
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