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LIBERDADE RELIGIOSA UMA QUESTAtildeO DE TOLERAcircNCIA OU
RESPEITO
RELIGIOUS LIBERTY A M A T T E R OF T O L E R A N C E O R RESPECT
Maria Costa Neves Machado
Resumo Neste artigo satildeo examinadas duas possiacuteveis abordagens filosoacuteficas que ordenamentos juriacutedicos de democracias liberais podem adotar quando se trata de solucionar problemas juriacutedicos envolvendo questotildees religiosas a toleracircncia ou o respeito Assim na primeira parte eacute realizada u m a anaacutelise criacutetica sobre a diferenccedila entre o princiacutepio da toleracircncia e o do respeito no que se refere ao tratamento legal de questotildees de consciecircncia A seguir a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no ordenamento juriacutedico brasileiro eacute examinada com a finalidade de verificar qual desses dois princiacutepios eacute adotado Finalmente conclui-se que o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio do respeito pela faculdade dos indiviacuteduos de buscarem a finalidade uacuteltima da vida sendo o Estado obrigado a fornecer condiccedilotildees adequadas para as pessoas exercerem tal faculdade autonomamente de modo que todos os indiviacuteduos entrem no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais
Palavras-Chave Liberdade religiosa Liberdade de culto Toleracircncia Respeito Acomodaccedilatildeo
Abstract This paper analyzes two different philosophical approaches that legal systems of liberal democracies can adopt in order to address problems related to religious matters tolerance and respect Thus in the first part of this paper the conceptual difference between the tolerance principie and the respect principie conceming legal issues involving conscience matters is examined Then the mies conceming religious liberty in the Brazilian legal system are analyzed for the purpose of verifying which of these two principies is adopted Finally this article concludes that the Brazilian legal system adopts the principie of respect for the faculty to search for the ultimate end of life and that the State has the duty to provide adequate conditions for individuais to autonomously exercise such faculty so that ali citizens can participate in the public sphere on equal conditions
Keywords Religious liberty Freedom of worship Toleration Respect Accommodation
Este artigo com pequenas modificaccedilotildees foi apresentado em junho de 2009 para conclusatildeo de The law andphilosophy workshop toleration and religious liberty (set2008-mai2009) coordenado por Martha Nussbaum e Brian Leiter na University of Chicago Law School Advogada mestra em Direitos Humanos pela Universidade de Satildeo Paulo (2008) e mestra em Direito (LLM) pela University of Chicago Law School (2009) Email mariacnmachadouspbr
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1 Introduccedilatildeo
Haacute duas possiacuteveis abordagens que sistemas juriacutedicos de democracias liberais
podem adotar quando se trata de solucionar problemas juriacutedicos envolvendo questotildees
religiosas a toleracircncia ou o respeito Enquanto alguns autores argumentam que para lidar
c o m questotildees religiosas se deve aplicar o princiacutepio da toleracircncia1 outros sustentam que
este natildeo eacute suficiente para garantir a dignidade humana e que se faz necessaacuterio respeitar as
crenccedilas e praacuteticas religiosas dos indiviacuteduos2
Inicialmente para examinar essa questatildeo a diferenccedila entre o princiacutepio da
toleracircncia e o do respeito eacute criticamente analisada (item 2) Posteriormente o ordenamento
juriacutedico brasileiro eacute estudado com a finalidade de verificar se as leis brasileiras estatildeo de
acordo com o princiacutepio do respeito ou da toleracircncia quando se trata de questotildees envolvendo
liberdade religiosa (item 3) Finalmente conclui-se que o ordenamento juriacutedico brasileiro
adota o princiacutepio do respeito pela faculdade dos indiviacuteduos de buscarem a finalidade
uacuteltima da vida (item 4)
2 Toleracircncia ou respeito
Para comparar os dois princiacutepios que podem orientar a soluccedilatildeo de conflitos
juriacutedicos envolvendo questotildees religiosas e m democracias liberais eacute importante definir de
u m lado o conceito de toleracircncia e de outro o de respeito
D e acordo com Brian Leiter eacute possiacutevel falar e m u m genuiacuteno princiacutepio de
toleracircncia
quando u m grupo (denominado grupo dominante) desaprova ativamente o que outro grupo (denominado grupo desfavorecido) acredita ou pratica quando o grupo dominante possui agrave sua disposiccedilatildeo os meios para de forma eficaz e confiante alterar ou acabar com as crenccedilas ou praacuteticas do grupo desfavorecido e ainda assim o grupo dominante reconhece que existem razotildees morais ou epistemoloacutegicos (ou seja razotildees pertencentes ao conhecimento ou agrave verdade) para permitir que o gmpo desfavorecido continue com suas crenccedilas ou praacuteticas (LEITER 2009 p 6)3
Cf por exemplo R A Z Joseph Autonomy toleration and the harm principie In GAVISON Ruth (Ed) Contemporary legalphilosophy the influence of H L A Hart com permissatildeo da Oxford University Press Brian Leiter Why tolerate religion manuscrito natildeo publicado pelo autor Simon Blackburn Religion and respect manuscrito natildeo publicado pelo autor Leslie Green On being tolerated University of Oxford Faculty of Law Legal Studies Research Paper Series Working Paper No 142008 entre outros Cf por exemplo BIELEFELDT Heiner Filosofia dos direitos humanos fundamentos de u m ethos de liberdade universal Satildeo Leopoldo Unisinos 2000 e N U S S B A U M Martha C Liberty of Conscience In D E F E N S E of Americas Tradition of Religious Equality N e w York Basic Books 2008 entre outros Traduccedilatildeo livre da autora where one group (call it the dominant group) actively disapproves of what
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Neste sentido o autor apresenta trecircs argumentos para a toleracircncia de opiniotildees
e praacuteticas religiosas os quais estatildeo divididos e m duas grandes classes argumentos morais
e epistemoloacutegicos
O primeiro argumento moral examinado eacute deontoloacutegico ilustrado pelo
pensamento de John Rawls de acordo com o qual a toleracircncia eacute uma consequumlecircncia do
princiacutepio da igual liberdade de consciecircncia (cf LEITER 2009 7-8) O segundo argumento
moral analisado eacute consistente com a tradiccedilatildeo utilitarista D e acordo com este argumento
a toleracircncia eacute necessaacuteria para maximizar o bem estar humano que resultaria da garantia
de u m espaccedilo privado onde os indiviacuteduos poderiam livremente decidir o que acreditar e
como viver (LEITER 2009 9)
Adicionalmente aos argumentos morais Leiter apresenta baseado nas
ideacuteias de John Stuart Mill argumentos epistemoloacutegicos para a toleracircncia E m termos
gerais estes argumentos focam na importacircncia da toleracircncia para o conhecimento e para
a descoberta da verdade As principais suposiccedilotildees desses argumentos satildeo que a verdade
contribui agrave valiosa finalidade moral da utilidade e que a toleracircncia de crenccedilas e praacuteticas
divergentes contribui para o conhecimento da verdade (LEITER 2009 IO)4
Leiter conclui - apoacutes examinar se a religiatildeo eacute especial do ponto de vista do
princiacutepio da toleracircncia (cf Leiter 2009 14-26) - que os argumentos mencionados acima
para a toleracircncia justificam a proteccedilatildeo legal da liberdade de consciecircncia que abrange a
toleracircncia de crenccedilas religiosas Entretanto o autor entende que natildeo haacute nenhuma razatildeo
moral para destacar questotildees religiotildees das demais questotildees de consciecircncia a fim de lhe dar
proteccedilatildeo legal especial (cf LEITER 2009 32)
D e acordo com Joseph Raz haacute u m argumento para a toleracircncia que decorre
da suposiccedilatildeo - que ele natildeo aceita - que para os governos respeitarem a autonomia
individual esses natildeo devem adotar nenhuma concepccedilatildeo sobre a vida boa Neste sentido
o respeito pela autonomia dos indiviacuteduos requereria u m princiacutepio de toleracircncia que exige
a exclusatildeo de ideais da poliacutetica E m outras palavras a toleracircncia e m estados liberais
requereria o anti-perfectionismo (cf R A Z 1987 155-156) Entretanto o autor entende
que o princiacutepio da toleracircncia baseado na autonomia individual fornece a fundaccedilatildeo moral
another group (call it the disfavored group) believes or does where that dominant group has the means at its disposal to effectively and reliably change or end the disfavored groups believes or practices and yet still the dominant group acknowledges that there are moral or epistemic reasons (that is reasons pertaining to knowledge or truth) to permit the disfavored group to keep on believing and doing what it does A esse respeito Celso Lafer com base no pensamento de Norberto Bobb io entende que a toleracircncia pode ser sustentanda tanto pelo criteacuterio eacutetico do respeito pela singularidade do Outro quanto pela avaliaccedilatildeo epistemoloacutegica de qual a verdade natildeo eacute una mas tem muacuteltiplas faces (LAFER 2007) Para entender a visatildeo de Bobbio sobre a toleracircncia vide B O B B I O Norberto Toleracircncia e verdade Elogio da serenidade e outros escritos morais Traduccedilatildeo de Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo Paulo UNESP 2002 p 149-155
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para o princiacutepio do dano - que eacute considerado a uacutenica base para o uso de poder coercitivo
pela lei - natildeo para o anti-perfectionismo
Raz argumenta que u m compromisso c o m a autonomia envolve o
compromisso com o pluralismo moral ( R A Z 1987 157)5 que de acordo com o autor
deve ser compreendido como a visatildeo de que haacute vaacuterias formas e vaacuterios estilos de vida
que exemplificam virtudes diferentes e que satildeo incompatiacuteveis ( R A Z 1987 159)6 Ele
sustenta que
o pluralismo moral competitivo do tipo que eacute necessaacuterio para o respeito pela autonomia gera conflitos entre pessoas que buscam valiosas mas incompatiacuteveis formas de vida Dada a necessidade de tomar disponiacuteveis tais formas de vida a fim de garantir a autonomia faz-se necessaacuterio restringir as accedilotildees e as atitudes das pessoas em tais conflitos por meio do princiacutepio da toleracircncia O dever de tolerar eacute u m aspecto do dever de respeito pela autonomia (RAZ 1987 165)7
Assim de acordo com Raz a fim de respeitar a autonomia individual eacute
necessaacuterio adotar u m princiacutepio de toleracircncia que consista na
restriccedilatildeo de uma atividade provavelmente indesejaacutevel ao seu receptor ou de uma inclinaccedilatildeo de assim agir que eacute em si mesma moralmente valiosa e que eacute baseada em um desagrado ou em u m antagonismo dessa pessoa ou de uma caracteriacutestica de sua vida refletindo u m julgamento de que esses representam limitaccedilotildees ou deficiecircncias no outro com a finalidade de deixar que o outro tenha sua maneira ou para que ele ganhe ou mantenha alguma vantagem (Como indicado a mim por P M S O Hacker a compaixatildeo eacute agraves vezes u m exemplo especial de toleracircncia U m indiviacuteduo pode tolerar a partir da compaixatildeo) (RAZ 1987 163)89
Traduccedilatildeo livre da autora a commitment to autonomy entails commitment to moral pluralism Traduccedilatildeo livre da autora there are various forms and styles of life which exemplify different virtues and which are incompatible Traduccedilatildeo livre da autora competitive moral pluralism ofthe kind which is required by respect for autonomy generates conflicts between people pursuing valuable but incompatible forms of life Given the necessity to make those forms of life available in order to secure autonomy there is a need to curb peoples actions and their attitudes in those conflicts by principies of toleration The duty of toleration is an aspect ofthe duty of respect for autonomy Traduccedilatildeo livre da autora the curbing of an activity likely to be unwelcome to its recipient or of an inclination so to act which is in itself morally valuable and which is based on a dislike or an antagonism of that person or of a feature of his life reflecting a judgment that these represent limitations or deficiencies in him in order to let that person have his way or in order for him to gain or keep some advantage (As pointed out to m e by P M S Hacker mercy is sometimes a special case of toleration One can tolerate out of mercy) Nesse sentido Raz argumenta que a [t]oleracircncia implica na supressatildeo ou na contenccedilatildeo de uma inclinaccedilatildeo ou desejo de perseguir molestar causar dano ou reagir de uma maneira indesejada a uma pessoa (RAZ 1987 162) (traduccedilatildeo livre da autora [tjoleration implies the suppression or containment of an inclination or desire to persecute harass harm or react in an unwelcome way to a person)
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Tambeacutem sustentando a abordagem da toleracircncia - em oposiccedilatildeo agrave abordagem
do respeito - Simon Blackburn argumenta que natildeo haacute nenhuma razatildeo para que algueacutem
respeite u m sistema de crenccedilas que esta pessoa natildeo compartilhe (cf B L A C K B U R N 2009
1) Ele entende que a palavra respeito pode significar a simples ausecircncia de interferecircncia
mas que tambeacutem pode significar admiraccedilatildeo reverecircncia ou deferecircncia (cf B L A C K B U R N
2009 2) De acordo com estes niacuteveis o autor afirma que as pessoas podem respeitar
outras pessoas que possuam crenccedilas falsas ou irracionais somente num sentido miacutenimo de
toleracircncia10 U m a vez que noacutes reconhecemos aquelas crenccedilas como falsas ou irracionais
natildeo eacute possiacutevel respeitaacute-las pelo menos natildeo como decorrecircncia do fato de que algueacutem
acredita nelas (cf B L A C K B U R N 2009 3 e 7) E m conformidade com Blackburn
acreditar numa crenccedila falsa natildeo concede a ningueacutem o direito ao respeito Na medida em que eu natildeo posso compartilhar de sua crenccedila eu natildeo tenho nenhuma razatildeo para respeitaacute-lo por acreditar nela - pelo contraacuterio na verdade (BLACKBURN 2009 16)
O autor argumenta que eacute inconsistente com qualquer concepccedilatildeo apropriada
de crenccedila - a qual implica que haacute u m contraste entre certo e errado - pensar que essa eacute
uma questatildeo exclusivamente pessoal e que qualquer crenccedila eacute tatildeo boa quanto qualquer
outra N a verdade ele nega que crenccedilas estejam livres de controle normativo e que a
desigualdade entre crenccedilas seja uma violaccedilatildeo de direitos de uma pessoa Para ele ningueacutem
por u m momento acredita nesta igualdade promiacutescua de crenccedilas na vida quotidiana
( B L A C K B U R N 2009 3)12
Parece que Blackburn estaacute criticando uma concepccedilatildeo de respeito para
crenccedilas religiosas que signifique a admiraccedilatildeo de todas as crenccedilas apenas porque elas
satildeo detidas por uma pessoa Entretanto o respeito requerido pela liberdade religiosa natildeo
corresponde a u m sentimento de admiraccedilatildeo pelas crenccedilas e praacuteticas religiosas especiacuteficas
as quais noacutes podemos natildeo compartilhar mas a u m respeito pela capacidade potencial de
todos os seres humanos de fazerem escolhas autonomamente conforme seraacute demonstrado
pela abordagem de Martha Nussbaum
O problema fundamental com o princiacutepio da toleracircncia eacute que este deixa
o tolerado desconfortaacutevel em pelo menos trecircs maneiras (cf G R E E N 2008 4-8) C o m o
demonstrado por Leslie Green a toleracircncia eacute limitada e m seu escopo eacute incompleta e
10 Para o autor existe tambeacutem uma graduaccedilatildeo de respeito referente a pessoas que possuem crenccedilas falsas no sentido de que respeitamos mais algumas pessoas das quais discordamos do que outras (cf B L A C K B U R N 2009 6)
11 Traduccedilatildeo livre da autora holding a false belief does not give anyone a title to respect Insofar as I cannot share your belief I have no reason to respect you for holding it - quite the reverse in fact
12 Traduccedilatildeo livre da autora nobody for a moment believes in this promiscuous equality of belief in everyday life
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parcial e pode ser considera principalmente c o m o questatildeo de descriminalizaccedilatildeo de
condutas1314 M a s natildeo somente o escopo do princiacutepio da toleracircncia pode estar errado
seus fundamentos tambeacutem podem u m princiacutepio de toleracircncia pode ser adotado por razotildees
morais suspeitas15 Aleacutem disso se u m princiacutepio de toleracircncia for sustentado da maneira
errada - aqueles que toleram deixam claro que prefeririam natildeo ser tolerantes - aqueles
que satildeo tolerados podem tambeacutem sentir-se desconfortaacuteveis ( G R E E N 2008 6-7)16
Entretanto m e s m o que u m sistema legal pudesse construir u m princiacutepio de
toleracircncia que superasse as falhas mencionadas acima aqueles que satildeo tolerados ainda se
sentiriam desconfortaacuteveis porque seria sempre melhor se natildeo tivessem que ser tolerados
e sujeitados ao poder de toleracircncia de outra pessoa ( G R E E N 2008 6-7)n Nesse sentido
Green sustenta que
Quem quer viver da graccedila e do favor dos poderosos Isto eacute especialmente verdadeiro quando tolerados natildeo tecircm nenhum poder similar sobre seus toleradores A esse respeito a toleracircncia compartilha algo com outras relaccedilotildees desejaacuteveis mas assimeacutetricas como oferecer misericoacuterdia ou sentir piedade que pode tambeacutem ser incocircmoda para seus
13 E m relaccedilatildeo agrave toleracircncia de minorias sexuais Leslie Green ressalta que exceto pela descriminalizaccedilatildeo
haacute pouca evidecircncia que a natildeo-conformidade sexual seja amplamente tolerada nos Estados Unidos onde
eleiccedilotildees ainda podem ser perdidas ou ganhas dependendo da questatildeo a respeito do que fazer sobre gays e
onde e m aacutereas como direito do trabalho e de famiacutelia minorias sexuais continuam a vivenciar tratamento
duro atualmente raro em democracias liberais (GREEN 2008 5) (traduccedilatildeo livre da autora apart from
decriminalization there is slim evidence that sexual non-conformity is widely tolerated in the United States
where elections can still be won or lost on the issue of what to do about the gays and where in aacutereas from
employment to family law sexual minorities continue to experience harsh treatment now rare in liberal
democracies) 14 Natildeo obstante o autor alerta que a descriminalizaccedilatildeo de condutas pode natildeo resultar da adoccedilatildeo de u m princiacutepio
de toleracircncia - faz-se necessaacuterio examinar as razotildees pelas quais determinada conduta foi descriminalizada
(cf G R E E N 2008 5) 15 Por exemplo o autor afirma que seria preocupante se u m governo tolerasse o ato de fumar porque seus
atuaacuterios descobriram que fumantes morrem mais cedo o suficiente para aumentar o saldo liacutequido da
previdecircncia (traduccedilatildeo livre da autora) Ademais ele menciona que se a homossexualidade eacute tolerada
somente porque e na medida e m que existem outras condutas mais seriamente erradas para reprimir gays
americanos justamente sentiriam u m mal-estar (cf G R E E N 2008 6) (traduccedilatildeo livre da autora) 16 Identificando tambeacutem os problemas decorrentes do princiacutepio da toleracircncia Miguel Reale Juacutenior (2008
176) com base nas ideacuteias de Javier Lucas afirma que a retoacuterica da toleracircncia natildeo acolhe a criaccedilatildeo de uma
cultura fruto do diaacutelogo intercultural e ignora os problemas de inclusatildeo do diferente para se estabelecer a
igualdade na diversidade Nesse sentido Reale Juacutenior defende que o conceito liberal de toleracircncia deve
ser complementado com o conceito social de solidariedade destacando que solidariedade significa natildeo
apenas aceitaccedilatildeo da diferenccedila mas como realccedila Judith Martins-Costa uma aceitaccedilatildeo qualificada de cunho
normativo pela qual se admite que o diferente pode receber maior tutela ou tutela especiacutefica que atenda agrave
sua diferenccedila concreta como membro da comunidade ( R E A L E JUacuteNIOR 2008 176-177) 17 E m 1791 Thomas Paine notou que toleracircncia natildeo eacute o oposto de intoleracircncia mas a sua imitaccedilatildeo Ambos
satildeo despotismos U m assume para si o direito de reter a liberdade de consciecircncia e o outro de concedecirc-la
(paine 1791) Madison tambeacutem chamou a atenccedilatildeo das pessoas para o fato de que a palavra toleracircncia era
muito relutante sugerindo benevolecircncia legislativa ao inveacutes de direito ( N U S S B A U M 2008 90) (traduccedilatildeo livre da autora)
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receptores E quando noacutes consideramos as pessoas natildeo como mocircnadas mas como membros de grupos minoritaacuterios entatildeo o fato da toleracircncia pode ser um lembrete infeliz da distribuiccedilatildeo de poder social (GREEN 2008 IO)18
Assim o princiacutepio da toleracircncia reflete tambeacutem a diferenccedila de poder entre
tolerados e toleradores E isto causa mais u m a vez desconforto nos tolerados no sentido
de que estes precisam contar com a benevolecircncia dos poderosos quando o poder eacute exercido
e quando a conduta do tolerado eacute julgada pelos poderosos (cf G R E E N 2008 8-12)
Green entende que entre as trecircs maneiras que geralmente satildeo chamadas
para complementar o princiacutepio da toleracircncia quais sejam aceitaccedilatildeo19 reconhecimento20
e compreensatildeo21 a uacuteltima eacute a adequada O autor assinala que u m a melhor compreensatildeo
pode ampliar a toleracircncia pode fazer com que as pessoas tenham menos m aacute vontade
pode mudar a disposiccedilatildeo para a toleracircncia incentivando pessoas a revisitar julgamentos
e pode tambeacutem ser u m a boa maneira de evitar razotildees erradas para a toleracircncia Essa
complementaccedilatildeo pode deixar aqueles que satildeo tolerados mais confortaacuteveis porque eles
sabem que os toleradores estatildeo fazendo esforccedilos de boa-feacute para compreender C o m o
consequumlecircncia os tolerados sentem que satildeo considerados como parte da convivecircncia
humana (cf G R E E N 2008 21) Green conclui que
Compreender o que a conduta reprovada significa para o agente e como se encaixa em uma vida humana pode fazer-nos revisitar e agraves vezes revisar aquele julgamento Pode complementar a toleracircncia pode tomar-nos toleradores melhores especialmente quando nos daacute uma ideacuteia do que eacute estar na extremidade afiada de uma vareta Esse tipo da compreensatildeo deixa espaccedilo para discordacircncias em torno de valores e deixa espaccedilo para correccedilatildeo de erros Natildeo
18 Traduccedilatildeo livre da autora W h o wants to live by grace and favor ofthe powerful This is especially true when the tolerated have no similar power over their tolerators In this respect toleration shares something with other desirable but asymmetric relations like offering mercy or taking pity which can also be uncomfortable for their recipients And when w e consider people not as monads but as members of minority groups then the fact of toleration may be an unhappy reminder ofthe social distribution of power
19 Se o princiacutepio da toleracircncia fosse complementado pela aceitaccedilatildeo aqueles que praticam atos ou possuem crenccedilas que satildeo toleradas podem (i) assumir abertamente suas praacuteticas e crenccedilas sem que lhes seja imposta nenhuma consequumlecircncia adversa ou (ii) demandar acomodaccedilatildeo para suas praacuteticas e crenccedilas (cf G R E E N 2008 12-15)
20 Se o princiacutepio da toleracircncia fosse complementado pelo reconhecimento praacuteticas e crenccedilas seriam toleradas de bom grado ateacute por aqueles que pensam que tais praacuteticas e crenccedilas satildeo supersticiosas sexistas etc e aqueles que toleram veriam os tolerados como eles mesmos se vecircem Nesse sentido reconhecimento exige natildeo apenas que os valores do tolerado sejam compartilhados pelos toleradores mas que a identidade do tolerado seja reconhecida (cf G R E E N 2008 15-19)
21 Se o princiacutepio da toleracircncia fosse complementado pelo entendimento toleradores deveriam tentar recriar ou capturar na medida do possiacutevel o sentido que accedilotildees e siacutembolos tecircm para seus agentes (GREEN 2008 20-25) (traduccedilatildeo livre da autora attempt to capture or recreate to the extent that w e can the meanings that acts and symbols have for their agents)
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Xrdiz a aceitaccedilatildeo ou o reconhecimento Mas o esforccedilo para compreender afirma nossa convivecircncia com os objetos de nossa toleracircncia Sem isso a toleracircncia eacute mais pobre - e mais dura - do que precisaria ser (GREEN 2008 27)22
Embora Green reconheccedila as principais falhas do princiacutepio da toleracircncia
parece que sua complementaccedilatildeo por u m a atitude compreensiva como sugerida pelo autor
ainda natildeo eacute suficiente para garantir a igualdade entre cidadatildeos e para proteger a dignidade
humana em democracias liberais
Tambeacutem criticando a abordagem da toleracircncia Heiner Bielefeldt argumenta
que a crise normativa resultante do pluralismo cultural deve ser endereccedilada pelo
reconhecimento de tal pluralismo natildeo pela sua toleracircncia C o m o afirmado por Bielefeldt
o problema da toleracircncia eacute que aqueles que tecircm o poder de tolerar tambeacutem tecircm o poder
de natildeo tolerar e aqueles que consideram que tem o poder para tolerar pretendem julgar
as questotildees de consciecircncia O autor sustenta que somente apoacutes a superaccedilatildeo dos conceitos
tradicionais de toleracircncia o pluralismo religioso e poliacutetico natildeo seraacute considerado uma perda
infeliz do centralismo religioso e da cosmovisatildeo da sociedade tradicional O pluralismo
religioso e poliacutetico seratildeo entatildeo considerados uma expressatildeo da responsabilidade autocircnoma
dos seres humanos que desejam ser respeitados e m suas convicccedilotildees e ter direitos iguais
(cf BIELEFELDT 2000 50)
D o mesmo modo Martha Nussbaum argumenta e m favor do princiacutepio
do respeito pela consciecircncia (Respect-Conscience Principie)23 de acordo com o qual
a esfera puacuteblica deve respeitar os diferentes comprometimentos religiosos de todos os
cidadatildeos e deve garantir u m espaccedilo onde os cidadatildeos possam agir consistentemente com
suas consciecircncias de forma que todos os cidadatildeos possam entrar no espaccedilo puacuteblico em
condiccedilotildees iguais ( N U S S B A U M 2008 22-23)
Nussbaum entende que tal princiacutepio natildeo requer a aprovaccedilatildeo de
reivindicaccedilotildees teoloacutegicas e eacuteticas de nenhuma religiatildeo pela esfera puacuteblica ou por cidadatildeos
individualmente (cf N U S S B A U M 2008 23) Neste sentido ela sustenta que o [r]
espeito por concidadatildeos natildeo significa dizer ou acreditar que suas visotildees religiosas estatildeo
corretas ou mesmo que todas as religiotildees satildeo caminhos vaacutelidos ao entendimento da vida
( N U S S B A U M 2008 23)24 Assim ela conclui que
Traduccedilatildeo livre da autora Understanding what the disapproved conduct means for the agent and how it fits into a human life may make us revisit and sometimes revise that judgment It may supplement torelation it may make us better tolerators especially when it gives us a grasp of what it is to be at the sharp end of a particular stick That kind of understanding leaves room for disagreement in value and room for correction of error It does not bring acceptance or recognition But the effort to understand affirms our fellowship with the objects of our toleration Without that toleration is poorer - and harder - than it need to be A autora expressamente afirma sua preferecircncia pelo termo respeito ao inveacutes do termo toleracircncia porque entende que o uacuteltimo eacute muito fraco e relutante (cf N U S S B A U M 2008 24) Traduccedilatildeo livre da autora [r]espect for fellow citizens does not mean saying or believing that their religious
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O princiacutepio do respeito pela consciecircncia significa apenas respeitaacute-los como
seres humanos com suas proacuteprias escolhas para fazer em mateacuterias religiosas e u m direito
de fazer livremente essas escolhas ( N U S S B A U M 2008 23)25
Assim eacute a faculdade de buscar a finalidade uacuteltima da vida que tem valor e
que deve ser respeitada independentemente de os indiviacuteduos a estarem usando de forma
boa ou ruim Esta abordagem natildeo implica que encontrar a finalidade uacuteltima da vida tem
valor intriacutenseco como resultado as visotildees ceacuteticas e anti-metafiacutesicas tambeacutem merecem ser
respeitadas ( N U S S B A U M 2008 168-169)
D e acordo com Nussbaum o Estado natildeo deve endossar nenhuma religiatildeo
ou a natildeo religiatildeo sobre a religiatildeo E m consequumlecircncia nenhuma indicaccedilatildeo puacuteblica de acordo
ou desacordo devem ser feitos As instituiccedilotildees puacuteblicas natildeo devem ter conteuacutedo religioso
- embora a autora assuma que teratildeo conteuacutedo eacutetico - porque elas devem ser fundadas
em princiacutepios tais como o igual respeito que todos os cidadatildeos podem compartilhar
independentemente de sua religiatildeo ( N U S S B A U M 2008 23)
Cumpre notar que essa abordagem natildeo implica uma visatildeo poacutes-modernista26
de completa relatividade de valores Nesse sentido Nussbaum esclarece que o princiacutepio
do respeito pela consciecircncia natildeo implica que todas as religiotildees e visotildees da vida devem
ser (igualmente) respeitadas pelo governo ( N U S S B A U M 2008 24)27 Se uma visatildeo
contradiz ou ameaccedila as fundaccedilotildees da ordem constitucional e a igualdade dos cidadatildeos
a comunidade pode razoavelmente se opor e desfavorecer tal visatildeo (cf N U S S B A U M 2008 24)
Assim na linha exposta por Nussbaum embora como regra geral crenccedilas
e praacuteticas religiosas devam ser respeitadas algumas accedilotildees e discursos natildeo faratildeo jus a
igual respeito e tratamento se ameaccedilarem os mais importantes valores da comunidade
poliacutetica sendo certo que Estados democraacuteticos liberais devem regular e limitar tais accedilotildees
e discursos
Alguns autores sugeriram limites a serem impostos por Estados democraacuteticos
liberais Nussbaum por exemplo entende que
views are correct or even that ali religions are valid routes to understanding life Traduccedilatildeo livre da autora The Respect-Conscience Principie just means respecting them as human beings with their own choices to make in religious matters and a right to make those choices freely Embora natildeo haja consenso sobre seu conteuacutedo o termo poacutes-modernismo foi definido a partir de seu uso por Jean Baudrillard Jean-Franccedilois Lyotard Fredric Jameson entre outros e eacute utilizado aqui para designer o contexto histoacuterico e socioloacutegico particular caracterizado pelo paradigma da transiccedilatildeo da modernidade que comeccedilou no final do seacuteculo X X As principais caracteriacutesticas do paradigma poacutes-moderno satildeo a ausecircncia de consenso o fim das metanarrativas e de qualquer pretensatildeo de teorias universais (cf BITTAR 2005 96) Para uma visatildeo socioloacutegica mais detalhada do poacutes-modernismo confira Gisela B Taschner A poacutes-modernidade e a sociologia in Revista USP Satildeo Paulo Coordenadoria de Comunicaccedilatildeo Social (CCS) da Universidade de Satildeo Paulo n 42 junago 1999 p 6-19 Traduccedilatildeo livre da autora does not imply that ali religions and views of life must be (equally) respected by the government
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752 Maria Costa Neves Machado
Se as pessoas buscam torturar crianccedilas ou escravizar minorias citando sua religiatildeo como sua razatildeo deve-se resistir a suas reivindicaccedilotildees mesmo que elas possam ser sinceras Se eles simplesmente falam em favor da escravidatildeo ou da tortura sua liberdade de expressatildeo deve ser protegida ateacute o ponto em que o discurso se transforme em uma ameaccedila Eles natildeo poderatildeo entretanto apresentar suas ideacuteias na esfera poliacutetica em bases iguais com outras ideacuteias uma vez que a Constituiccedilatildeo (no caso da escravidatildeo) e a lei criminal (no caso da tortura) proiacutebem as praacuteticas que eles recomendam (NUSSBAUM 2008 24)28
D e acordo com Juumlrgen Habermas as sociedades multiculturais somente
podem tolerar tradiccedilotildees que aceitem a discordacircncia razoaacutevel que ele chama de tradiccedilotildees
natildeo-fundamentalistas Habermas entende que somente as formas de vida tolerantes que
aceitam a discordacircncia razoaacutevel satildeo capazes de coexistir com o reconhecimento dos
membros de culturas diferentes ( H A B E R M A S 1994 151)29 D e m o d o similar Marcelo
Neves argumenta que a intoleracircncia eacutetnica e o fuacutendamentalismo religioso satildeo contra o
pluralismo requerido pela esfera puacuteblica e devem ser juriacutedica e politicamente restringidos
(NEVES 2006 136 222 223 e Neves 2000 41)
Para Miguel Reale Juacutenior o reconhecimento de setores diferentes da
sociedade (tais como minorias eacutetnicas ou classes especiais de pessoas) de seus direitos
e de suas especificidades - a partir do avanccedilo do conceito liberal de toleracircncia para o
conceito social de solidariedade - bem como a assunccedilatildeo da responsabilidade por sua
integraccedilatildeo social natildeo importa e m abrir m atilde o de valores essenciais da pessoa humana
afirmados e conquistados ao longo do processo histoacuterico ( R E A L E JUacuteNIOR 2008
177) Sustentando que pluralismo natildeo significa arbitrismo no sentido de aceitaccedilatildeo de
qualquer organizaccedilatildeo social Reale Juacutenior idem ibidem) destaca que o pluralismo deve
ser limitado pelas conquistas essenciais acerca da dignidade humana conquistas essas que
satildeo historicamente impostergaacuteveis
C o m u m a abordagem diferente Will Kymlicka sustenta que os liberais
deveriam tentar acomodar grupos natildeo liberais desde que estes natildeo estejam buscando o
apoio da sociedade como u m todo e natildeo queiram impor seus valores a outros grupos Para
Traduccedilatildeo livre da autora [i]f people seek to torture children or to enslave minorities citing their religion as their reason their claims must be resisted even though they m a y be sincere If they simply talk in favor of slavery or torture their freedom to speak must be protected up to the point at which speech becomes a threat They will not however be able to present their ideas in the political sphere on an equal basis with other ideas since the Constitution (in the case of slavery) and the criminal law (in the case of torture) forbid the practices they recommend
Para u m a visatildeo completa sobre o entendimento de Habermas a respeito de toleracircncia religiosa vide Juumlrgen Habermas Entre naturalismo e religiatildeo estudos filosoacuteficos traduccedilatildeo de Flaacutevio Beno Siebeneichler Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 2007 especialmente Item IV - Toleracircncia p 279-392
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 753
o autor a maioria das pessoas entende que se u m a minoria nacional estaacute oprimindo outros
grupos u m a intervenccedilatildeo contra a agressatildeo eacute justificaacutevel Entretanto se a minoria somente
visa guiar sua comunidade de acordo com princiacutepios natildeo liberais e natildeo estaacute interessada e m
estabelecer regras para outros grupos ou e m privar esses outros grupos de seus recursos
parece errado impor valores liberais (cf K Y M L I C K A 1997 154-155) Assim Kymlicka
adota u m a visatildeo de acordo com a qual a toleracircncia liberal deve proteger os direitos dos
indiviacuteduos de discordar de seus grupos assim como o direito dos grupos de natildeo serem
perseguidos pelo Estado enquanto que o poder de grupos natildeo liberais de restringir a
liberdade de seus membros e o poder de Estados natildeo liberais de restringir a liberdade de
culto devem ser limitados
Neste item foram examinados (i) a diferenccedila entre o princiacutepio da toleracircncia
e o princiacutepio do respeito no que se refere agrave liberdade religiosa e (ii) os limites para a
adoccedilatildeo do princiacutepio do respeito por democracias liberais A partir dessa anaacutelise o
ordenamento juriacutedico brasileiro e a regulaccedilatildeo da liberdade religiosa seratildeo estudados no
item subsequente
3 Liberdade religiosa no Brasil
A regulaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil eacute examinada neste item com
o intuito de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia
ou do respeito Satildeo analisados os dispositivos da Constituiccedilatildeo Federal que tratam
da liberdade religiosa quais sejam aqueles relacionados ao livre exerciacutecio de cultos
religiosos agrave proteccedilatildeo aos locais de culto e suas liturgias (art 5o inc VI) agrave garantia de
prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa a pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva
(art 5o inc VII) agrave acomodaccedilatildeo juriacutedica e m razatildeo de imperativo de consciecircncia (art 5o
inc VIII) agrave vedaccedilatildeo ao estabelecimento de religiatildeo pelo Estado (art 19) e ao ensino
religioso facultativo (art 210) bem como a legislaccedilatildeo federal relacionada O estudo ora
realizado natildeo pretende analisar de forma exaustiva as leis estaduais anaacutelise esta que
quando realizada serve apenas para ilustrar a aplicaccedilatildeo das normas constitucionais
O dispositivo central da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil de
1988 que serve de base para a proteccedilatildeo da liberdade religiosa eacute seu art 5o o qual estabelece
que [t]odos satildeo iguais perante a lei sem distinccedilatildeo de qualquer natureza garantindo-se
aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Paiacutes a inviolabilidade do direito agrave vida
agrave liberdade agrave igualdade agrave seguranccedila e agrave propriedade Os dispositivos constitucionais
examinados a seguir visam a garantir a observacircncia da liberdade religiosa que se
apresenta como u m dos aspectos da liberdade e m sentido lato a qual eacute constitucionalmente
assegurada a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no Paiacutes
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31 Livre exerciacutecio de cultos religiosos e vedaccedilatildeo ao estabelecimento de religiatildeo
O inciso VI do art 5o da Constituiccedilatildeo Federal determina que eacute inviolaacutevel
a liberdade de consciecircncia e de crenccedila sendo assegurado o livre exerciacutecio dos cultos
religiosos e garantida na forma da lei a proteccedilatildeo aos locais de culto e a suas liturgias
Diferentemente do texto atual a Constituiccedilatildeo brasileira de 1967
expressamente limitava e m seu art 150 paraacutegrafo 5 o exerciacutecio da liberdade religiosa
aos cultos que natildeo contrariassem a ordem puacuteblica e os bons costumes D e acordo com
Celso Ribeiro Bastos embora a atual Constituiccedilatildeo omita o requisito de observacircncia da
ordem puacuteblica e dos bons costumes estaacute impliacutecito no ordenamento juriacutedico brasileiro
que os direitos devem ser exercidos de modo que natildeo prejudiquem os direitos de outras
pessoas e em consonacircncia com os valores eacuteticos e morais e m que se funda a sociedade
brasileira independentemente de quatildeo difiacutecil possa ser para os tribunais definirem quais
satildeo esses valores que estatildeo evoluindo constantemente (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989
52) E m sentido diverso do entendimento de Bastos Manuel Gonccedilalves Ferreira Filho
entende que em razatildeo da omissatildeo da Constituiccedilatildeo os cultos religiosos satildeo garantidos
inclusive contra eventuais limitaccedilotildees baseadas na ordem puacuteblica e nos bons costumes (cf
F E R R E I R A FILHO 1990 33) A interpretaccedilatildeo de Ferreira Filho parece mais adequada
uma vez que os legisladores constitucionais omitiram intencionalmente a exigecircncia da
observacircncia da ordem puacuteblica e dos bons costumes Dessa forma os tribunais brasileiros
natildeo podem limitar o exerciacutecio da liberdade religiosa invocando a ordem puacuteblica ou os
bons costumes
U m a questatildeo muito polecircmica sobre o exerciacutecio da liberdade de culto
e sua limitaccedilatildeo no Brasil eacute relacionada agrave caracterizaccedilatildeo do crime de curandeirismo
previsto no art 284 do Coacutedigo Penal30 Enquanto alguns autores por exemplo Magalhatildees
Noronha sustentam que uma praacutetica religiosa que pretenda curar sem tiacutetulo ou habilitaccedilatildeo
apropriada seja enquadrada como curandeirismo ( N O R O N H A 1968 107) outros
autores como Francisco de Assis Toledo argumentam que os rituais espiacuteritas e os rituais de
todas as outras religiotildees tais como o Catolicismo o Protestantismo ou Budismo embora
possam visar agrave cura ou agrave diminuiccedilatildeo do sofrimento de pessoas doentes nunca poderatildeo ser
considerados u m crime (cf T O L E D O 1986 100-101) Francisco de Assis Toledo parece
estar certo e m sua interpretaccedilatildeo do crime curandeirismo uma vez que ele leva a seacuterio a
Artigo 284 Exercer o curandeirismo
I - prescrevendo ministrando ou aplicando habitualmente qualquer substacircncia
II - usando gestos palavras ou qualquer outro meio
III - fazendo diagnoacutesticos
Pena - detenccedilatildeo de seis meses a dois anos
Paraacutegrafo uacutenico - Se o crime eacute praticado mediante remuneraccedilatildeo o agente fica tambeacutem sujeito agrave multa
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 755
garantia constitucional da liberdade de religiatildeo Atualmente o poder judiciaacuterio no Brasil
entende que os rituais espiacuteritas relacionados agrave cura de pessoas doentes natildeo podem ser
considerados curandeirismo sendo constitucionalmente protegidos como u m tipo de
culto31
Cumpre notar que durante o periacuteodo do Impeacuterio no Brasil havia uma
liberdade religiosa sem liberdade de culto somente o culto catoacutelico era reconhecido como
livre Outras religiotildees somente podiam celebrar seus cultos na esfera domeacutestica sendo
proibido todo o templo fora do lar para outras religiotildees (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989
50 e C R E T E L L A JUacuteNIOR 1992 252)
Essa abordagem inicial da liberdade religiosa no ordenamento juriacutedico
brasileiro pode ser explicada como consequumlecircncia de nosso passado colonial U m a das
justificaccedilotildees ideoloacutegicas subjacentes agrave colonizaccedilatildeo do Brasil por Portugal - e de outros
paiacuteses da Ameacuterica Latina pela Espanha - era relacionada agrave catequizaccedilatildeo dos povos
indiacutegenas C o m o resultado o catolicismo foi a religiatildeo oficial ateacute o fim do periacuteodo
imperial32
A esse respeito vale notar com Faacutebio Konder Comparato (2001 312) que
natildeo haacute autecircntica liberdade de crenccedila e de opiniatildeo num Estado que adota u m a religiatildeo
oficial As pressotildees de toda a sorte - poliacuteticas econocircmicas e profissionais - contra os natildeo
seguidores da religiatildeo de Estado tornam essa liberdade ilusoacuteria C o m efeito as religiotildees
indiacutegenas e africanas e seus valores foram negados durante grande parte da histoacuteria do
Brasil e ainda hoje haacute na sociedade brasileira preconceito contra tais religiotildees33
Exemplificativamente destaque-se que e m 1985 o Supremo Tribunal
Federal arquivou a Representaccedilatildeo n 959-PB que questionava u m a lei do Estado da
Paraiacuteba de 1966 de acordo com a qual os cultos africanos deveriam obter u m a licenccedila
preacutevia para iniciar suas atividades Tal licenccedila seria concedida se entre outras exigecircncias
o responsaacutevel pelos cultos pudesse provar sua idoneidade moral e perfeitas condiccedilotildees de
sauacutede mental conforme documentado e m relatoacuterio psiquiaacutetrico A accedilatildeo arquivada com
STF R H C 62240SP rei Min Francisco Rezek 2a Turma 13121984 DJ 02081985 p 12046 e STJ H C 1498RJ rei Min Luiz Vicente Cernicchiaro 6a Turma j 18121992 DJ 1 de 16081993 p 15994 Cf tambeacutem FERREIRA Pinto Comentaacuterios agrave constituiccedilatildeo brasileira Satildeo Paulo Saraiva 1989 p 71 C o m efeito Celso Lafer nos lembra que incumbia ao imperador antes de ser proclamado jurar manter a religiatildeo catoacutelica cabendo-lhe em contrapartida entre as suas atribuiccedilotildees nomear bispos e prover os benefiacutecios eclesiaacutesticos bem como conceder ou negar beneplaacutecitos a atos da Santa Feacute (cf Constituiccedilatildeo de 1824 art 5o 102 paraacutegrafos 2o e 14 103) (LAFER 2007) Note-se que a negaccedilatildeo dos valores africanos e de uma identidade africana no Brasil abrangendo a esfera religiosa tem suas origens na chegada dos escravos africanos desde o seacuteculo XVI A relaccedilatildeo entre os povos africanos e a sociedade colonial foi caracterizada pela conversatildeo compulsoacuteria dos escravos agrave religiatildeo de seus donos e pela perseguiccedilatildeo daqueles que insistissem na manutenccedilatildeo das praacuteticas ancestrais (DADESKY 2005 51-52)
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base no fato de que a lei e m questatildeo havia sido modificada e m 1977 tendo sido excluiacuteda
a exigecircncia da licenccedila preacutevia
A separaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja foi estabelecida no Brasil somente
durante a Repuacuteblica pelo Decreto n 119-A datado de 7 de janeiro de 1890 de autoria
de Rui Barbosa (cf L A F E R 2007) que proibiu a intervenccedilatildeo do governo federal e dos
estados e m questotildees religiosas e estabeleceu a liberdade de culto34 Desde entatildeo o Brasil
eacute u m estado laico A separaccedilatildeo entre Estado e Igreja na Constituiccedilatildeo de 1988 estaacute prevista
no art 19
Eacute vedado agrave Uniatildeo aos Estados ao Distrito Federal e aos Municiacutepios (i) estabelecer cultos religiosos ou igrejas subvencionaacute-los embaraccedilar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relaccedilotildees de dependecircncia ou alianccedila ressalvada na forma da lei a colaboraccedilatildeo de interesse puacuteblico ()
Consequentemente o Estado brasileiro eacute indiferente agraves vaacuterias igrejas que
podem ser livremente formadas como entidades legais O Estado deve ser absolutamente
neutro sendo proibida a discriminaccedilatildeo entre igrejas para beneficiaacute-las ou prejudicaacute-las
Tambeacutem natildeo pode impor nenhum ocircnus indevido agrave formaccedilatildeo de igrejas N a realidade haacute
mesmo u m incentivo constitucional para sua formaccedilatildeo que resulta da imunidade tributaacuteria
a que fazem jus ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 50-51)35
Observe-se que a colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico mencionada no Artigo
19 para natildeo infringir a proibiccedilatildeo de estabelecimento de religiatildeo pelo Estado natildeo pode
ocorrer em u m campo fundamentalmente religioso (cf F E R R E I R A FILHO 1990 144
C R E T E L L A JUacuteNIOR 1992 1179 e L A F E R 2007) N atildeo obstante essa disposiccedilatildeo tem
implicaccedilotildees muito complexas quando se trata de sua execuccedilatildeo como eacute possiacutevel estabelecer
a colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico entre o Estado e u m a determinada igreja sem favorecer
u m a religiatildeo sobre a outra36 Ademais essa disposiccedilatildeo levanta u m problema similar ao que
resulta da assistecircncia religiosa a pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva e do
ensino religioso facultativo e m escolas conforme detalhado abaixo eacute possiacutevel na praacutetica
ensinar religiatildeo prestar assistecircncia religiosa e estabelecer esquemas de colaboraccedilatildeo
Esse decreto nunca foi expressamente revogado Cf lthttpslegislacaoplanaltogovbrLEGISLA LegislacaonsffraWebOpenFrameSetampFrame=frmWeb2ampSrc=2FLEGISLA2FLegislacaonsf2Fvi wTodos2Fbea39c8e0e484811032569fa005afab43FOpenDocument26Highlight3Dl2C26Auto Framedgt Acesso em 3 abr 2009
Cumpre notar que a Lei n 8245 datada de 18 de outubro de 1991 conforme alterada estabelece que o contrato de locaccedilatildeo de imoacuteveis utilizados por entidades religiosas devidamente registradas bem como por hospitais unidades sanitaacuterias oficiais asilos estabelecimentos de sauacutede e de ensino autorizados e fiscalizados pelo Poder Puacuteblico somente poderaacute ser rescindido em determinadas situaccedilotildees Para uma criacutetica sobre a exceccedilatildeo relacionada agrave colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico vide C R E T E L L A JUacuteNIOR 19921180
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 757
no interesse puacuteblico sem favorecer u m a determinada religiatildeo e sem violar o art 19 da
Constituiccedilatildeo
32 Garantia de assistecircncia religiosa em estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva
A Constituiccedilatildeo brasileira garante a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa a
pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva abrangendo presos militares e
pacientes hospitalizados (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 54) D e acordo com o inciso
VII do art 5o da Constituiccedilatildeo eacute assegurada nos termos da lei a prestaccedilatildeo de assistecircncia
religiosa nas entidades civis e militares de internaccedilatildeo coletiva O caraacuteter laico do Estado
brasileiro natildeo eacute afetado por esta disposiccedilatildeo u m a vez que o Estado natildeo eacute obrigado a
prestar assistecircncia religiosa e as entidades religiosas eacute que iratildeo prestaacute-la (cf M A R T I N S e
B A S T O S 1989 51 e 54 e F E R R E I R A FILHO 1990 34)
Neste sentido a Lei n 7210 de 11 de julho de 1984 que trata da execuccedilatildeo
penal estabelece e m seu art 10 que o Estado deve prestar assistecircncia aos presos e internados
incluindo os egressos objetivando prevenir o crime e orientar o retorno agrave convivecircncia e m
sociedade Tal assistecircncia consistiraacute de acordo com o art 11 e m assistecircncia material
agrave sauacutede juriacutedica educacional social e religiosa D e fato o art 41 estabelece que tais
assistecircncias satildeo direitos dos presos
D e acordo com o art 24 a assistecircncia religiosa com liberdade de culto
seraacute prestada aos presos e aos internados permitindo-se-lhes a participaccedilatildeo nos serviccedilos
organizados no estabelecimento penal bem como a posse de livros de instruccedilatildeo religiosa
O primeiro paraacutegrafo deste artigo estabelece que haveraacute local apropriado para os cultos
religiosos no estabelecimento penal o segundo paraacutegrafo dispotildee que nenhum preso ou
internado poderaacute ser obrigado a participar de atividade religiosa
Adicionalmente a Lei n 9982 de 14 de julho de 2000 que trata da prestaccedilatildeo
de assistecircncia religiosa e m estabelecimentos prisionais civis e militares e e m entidades
hospitalares puacuteblicas e privadas garante e m seu art Io o acesso aos religiosos de todas
as confissotildees aos hospitais da rede puacuteblica ou privada bem como aos estabelecimentos
prisionais civis ou militares para dar atendimento religioso aos internados desde que
em c o m u m acordo com estes ou com seus familiares no caso de doentes que jaacute natildeo mais
estejam no gozo de suas faculdades mentais Vale notar que nos termos do art 2o os
religiosos chamados a prestar assistecircncia nas entidades definidas no art Io deveratildeo e m
suas atividades acatar as determinaccedilotildees legais e normas internas de cada instituiccedilatildeo
hospitalar ou penal a fim de natildeo pocircr e m risco as condiccedilotildees do paciente ou a seguranccedila do
ambiente hospitalar ou prisional
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Duas disposiccedilotildees dessa lei foram vetadas pelo Presidente37 A primeira
disposiccedilatildeo estabelecia que a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa natildeo seria permitida se de
acordo com o hospital ou a prisatildeo houvesse risco de vida ou sauacutede para o internado ou
para o religioso O Presidente justificou esse veto argumentando que a transferecircncia do
processo decisoacuterio relativo agrave prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa aos hospitais ou prisotildees
excluindo-se o paciente ou preso bem como suas famiacutelias era contraacuterio aos incisos VI
e VII do art 5o da Constituiccedilatildeo Ademais o Presidente sustentou que a precauccedilatildeo que
motivou o dispositivo vetado jaacute estaacute assegurada pelo art 2 o da lei e m questatildeo
A segunda disposiccedilatildeo vetada pelo Presidente determinava que o interno teria
direito a pelo menos u m a visita semanal de religiosos da confissatildeo religiosa que professe
O Presidente justificou esse veto argumentando que a periodicidade das visitas deveria ser
determinada pela autoridade local levando e m consideraccedilatildeo as particularidades regionais
os usos e costumes Aleacutem disso o Presidente sustentou que era inadequado tratar hospitais
e prisotildees da mesma forma tendo e m vista as circunstacircncias especiacuteficas de cada instituiccedilatildeo
Havia tambeacutem a preocupaccedilatildeo de que o nuacutemero miacutenimo de visitas estabelecido por lei se
tornasse o nuacutemero maacuteximo permitido na praacutetica
33 Acomodaccedilatildeo em razatildeo de imperativo de consciecircncia
Nos termos do inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo ningueacutem seraacute privado
de direitos por motivo de crenccedila religiosa ou de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica salvo se as
invocar para eximir-se de obrigaccedilatildeo legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestaccedilatildeo
alternativa fixada e m lei Esse inciso entre outras coisas estaacute relacionado ao serviccedilo
militar obrigatoacuterio estabelecido pelo art 143 da Constituiccedilatildeo O paraacutegrafo Io deste artigo
dispotildee que agraves Forccedilas Armadas compete na forma da lei atribuir serviccedilo alternativo aos
que e m tempo de paz apoacutes alistados alegarem imperativo de consciecircncia entendendo-
se como tal o decorrente de crenccedila religiosa e de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica para se
eximirem de atividades de caraacuteter essencialmente militar 38
Esse eacute u m dos casos de acomodaccedilatildeo existentes no ordenamento juriacutedico
brasileiro relacionado agrave crenccedila religiosa ou agraves convicccedilotildees filosoacuteficas ou poliacuteticas Para
buscar proteccedilatildeo constitucional de mo d o a natildeo participar do serviccedilo militar compulsoacuterio
e m tempos de paz faz-se necessaacuterio provar comprometimento com ideacuteias natildeo beligerantes
a ser demonstrado por atitudes passadas que estejam e m consonacircncia com tal ideal
( M A R T I N S e B A S T O S 1989 56) Note-se que eacute possiacutevel ser excluiacutedo de atividades
essencialmente militares mas poderatildeo ser impostos serviccedilos alternativos que consistam em
57 Cf Mensagem de Veto n 960 de 14 de julho de 2000 Disponiacutevel em lthttpswwwplanaltogovbr
ccivil_03leisMensagem_Veto2000Mv0960-00htmgt Acesso em 13 fev 2009 i8 Esse dispositivo constitucional foi regulamentado pela Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 759
atividades administrativas de assistecircncia filantroacutepicas ou produtivas39 jaacute que a obrigaccedilatildeo
de servir ao Paiacutes natildeo eacute excluiacuteda ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 211) Cumpre notar que da
reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia natildeo pode resultar a privaccedilatildeo de direitos exceto
se a pessoa tambeacutem se recusar a prestar serviccedilo alternativo natildeo essencialmente militar
Nessas circunstacircncias a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo aplicaacutevel natildeo satildeo inteiramente claras
sobre as consequumlecircncias legais da recusa Alguns autores entendem que nesse caso a pessoa
que se recusou a prestar serviccedilos alternativos poderia ser privada de direitos (FERREIRA
FILHO 1994 34 e 81 e M A R T I N S e B A S T O S 1989 212)40
Constata-se aqui o que parece ser u m a grande incoerecircncia no ordenamento
juriacutedico brasileiro Enquanto e m tempos de paz as pessoas podem reivindicar imperativo
de consciecircncia para evitar serviccedilos essencialmente militares quando o Estado declara
guerra nenhum cidadatildeo poderaacute invocar crenccedilas religiosas ou convicccedilotildees filosoacuteficas ou
poliacuteticas com a finalidade de natildeo participar do serviccedilo militar41 C o m o resultado durante
o periacuteodo mais adequado e apropriado para expressar desacordo com guerras e ideais
beligerantes as pessoas natildeo tem direito de reivindicar imperativo de consciecircncia para natildeo
participar do serviccedilo militar na hipoacutetese de a Constituiccedilatildeo ser interpretada literalmente
Outro caso de acomodaccedilatildeo relacionado a crenccedilas religiosas que vale ser
mencionado eacute o uso terapecircutico do chaacute Ayahuasca em rituais religiosos A partir de
1985 o governo brasileiro comeccedilou a estudar os aspectos sociais e culturais referentes
ao uso de tal chaacute E m 23 de novembro de 2006 o Grupo Multidisciplinar de Trabalho do
Comitecirc Nacional Antidrogas do Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas42
emitiu seu relatoacuterio final reconhecendo que o uso do chaacute Ayahuasca deveria ser limitado
a rituais religiosos e m locais autorizados pela direccedilatildeo das entidades que fazem uso de
tal chaacute sendo proibido seu uso em conjunto com substacircncia ilegais Atualmente o uso
do chaacute Ayahuasca e m conformidade com as normas aplicaacuteveis eacute assegurado com base
na garantia constitucional da liberdade de consciecircncia e de crenccedila e do livre exerciacutecio de
cultos religiosos Ademais a legitimidade do uso religioso da Ayahuasca foi ratificada
como rica e ancestral manifestaccedilatildeo cultural que exatamente pela relevacircncia de seu valor
Os serviccedilos alternativos podem ser prestados e m organizaccedilotildees militares da ativa e e m oacutergatildeos de formaccedilatildeo de reservas das Forccedilas Armadas ou em oacutergatildeos subordinados aos Ministeacuterios Civis mediante convecircnios entre estes e os Ministeacuterios Militares Cf sectsect 2o e 3o do art 3o da Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991 N o entanto parece-nos que o serviccedilo militar obrigatoacuterio natildeo estaacute de acordo com os princiacutepios que norteiam a Constituiccedilatildeo no sentido de que serviccedilos alternativos natildeo deveriam ser impostos Contudo a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo Ives Granda Martins sustenta que e m tempos de guerra todos os cidadatildeos tecircm iguais deveres perante o Paiacutes (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 212) Discordamos totalmente deste posicionamento porque uma das formas mais eficazes de expressar desacordo com guerras e ideais beligerantes eacute durante o periacuteodo de guerra quando as pessoas que natildeo concordam poderiam recusar-se a prestar serviccedilos militares Contudo conforme mencionado acima a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo O Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas - S I S N A D foi instituiacutedo pela Lei n 11343 de 23 de agosto de 2006
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7(gt(l Maria Costa Neves Machado
histoacuterico antropoloacutegico e social eacute credora da proteccedilatildeo do Estado nos termos do art
2o caput da Lei n 1134306 e do art 215 sect1deg da C F 43 que dispotildee que [o] Estado
protegeraacute as manifestaccedilotildees das culturas populares indiacutegenas e afro-brasileiras e das de
outros grupos participantes do processo civilizatoacuterio nacional44
Eacute de se notar tambeacutem o recente caso no Estado de Satildeo Paulo de acomodaccedilatildeo
religiosa previsto na Lei Estadual n 13541 de 7 de maio de 2009 Tal lei proiacutebe o consumo
de cigarros cigarrilhas charutos cachimbos ou de qualquer outro produto fumiacutegeno
derivado ou natildeo do tabaco e m ambientes de uso coletivo puacuteblicos ou privados Contudo
nos termos do art 6o da referida lei essa natildeo se aplica aos locais de culto religioso em que
o uso de produto fumiacutegeno faccedila parte do ritual O u seja trata-se de mais u m caso em que
uma lei geral eacute excetuada para acomodar praacuteticas relacionadas agrave liberdade de religiatildeo e
de culto
Diferentemente das situaccedilotildees envolvendo serviccedilo militar obrigatoacuterio
o chaacute Ayahuasca e rituais religiosos que envolvem o uso de produtos fumiacutegenos foi
negada acomodaccedilatildeo quando da reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia no contexto
de frequumlecircncia escolar no Estado de Satildeo Paulo E m opiniatildeo escrita por Ada Pellegrini
Grinover publicada e m 25 de outubro de 2002 o Conselho Estadual de Educaccedilatildeo do
Estado de Satildeo Paulo entendeu que estudantes que fossem membros da Igreja Adventista
do Seacutetimo Dia estariam obrigados a frequumlentar as aulas durante o periacuteodo compreendido
entre 1800 horas de sexta-feira e 1800 de saacutebados de acordo com a Lei n 9394 de 20
de dezembro de 1996 conforme alterada embora tal frequumlecircncia seja contraacuteria agraves suas
praacuteticas religiosas u m a vez que natildeo haacute prestaccedilatildeo alternativa estabelecida em lei para tal
escusa de consciecircncia conforme fixado pelo inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo45
Adicionalmente aos casos de acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de
consciecircncia o inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo tambeacutem jaacute foi invocado para proteger
os direitos dos professores do Estado de Rio de Janeiro contra lei estadual que estabeleceu
que somente os professores credenciados pela autoridade religiosa competente estaratildeo
autorizados a ministrar as aulas de ensino religioso e m escolas puacuteblicas estaduais Para
compreender a Accedilatildeo Direta de Inconstitucionalidade - A D I N n 326804 que ainda natildeo
foi decidida pela Suprema Corte faz-se necessaacuterio analisar as disposiccedilotildees legais aplicaacuteveis
relacionadas ao ensino religioso no Brasil
Cf Relatoacuterio Final do Grupo Multidisciplinar de Trabalho disponiacutevel entre outros siacutetios em lthttp wwwsantodaimeorgcomunidadenoticiasrelfinal_conadhtmgt Acesso em 4 mar 2009 e lthttpwww ayahuascabrasilorgindexphpop=legisl01gt Acesso em 4 mar 2009 A acomodaccedilatildeo relacionada ao uso do chaacute Ayahuasca para fins religiosos nos Estados Unidos foi decidida pela Suprema Courte em Gonzales v O Centro Espirita Beneficente Uniatildeo do Vegetal 546 US 418 (2006) Cf Parecer C E E No 4422002 - C E S - Aprovado em 23102002 Disponiacutevel em lthttpwwwceesp spgovbrParecerespa_442_02htmgt Acesso em 4 mar 2009
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 761
34 Ensino religioso facultativo
Nos termos do art 210 da Constituiccedilatildeo [sjeratildeo fixados conteuacutedos miacutenimos
para o ensino fundamental de maneira a assegurar formaccedilatildeo baacutesica c o m u m e respeito aos
valores culturais e artiacutesticos nacionais e regionais O paraacutegrafo Io desse Artigo dispotildee
que [o] ensino religioso de matriacutecula facultativa constituiraacute disciplina dos horaacuterios
normais das escolas puacuteblicas de ensino fundamental
Nesse sentido o art 33 da Lei n 9394 de 22 de julho de 1997 conforme
alterada determina que o respeito agrave diversidade cultural religiosa do Brasil eacute assegurado
no ensino religioso sendo proibida qualquer forma de proselitismo O primeiro paraacutegrafo
desse Artigo dispotildee que [o]s sistemas de ensino regulamentaratildeo os procedimentos para a
definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso e estabeleceratildeo as normas para a habilitaccedilatildeo
e admissatildeo dos professores Ademais de acordo com o segundo paraacutegrafo do referido
Artigo [o]s sistemas de ensino ouviratildeo entidade civil constituiacuteda pelas diferentes
denominaccedilotildees religiosas para a definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso46
D e modo a observar a proibiccedilatildeo constitucional de estabelecimento de
religiatildeo o ensino religioso e m escolas natildeo pode consistir no ensino de u m a religiatildeo
determinada Nesse sentido a previsatildeo constitucional tem por finalidade dar oportunidade
a estudantes que estatildeo e m idade de formaccedilatildeo de personalidade de ter acesso a informaccedilotildees
de modo que no futuro eles possam livremente escolher adotar ou natildeo adotar u m a religiatildeo
(cf S C H E R K E R K E W I T Z 2002 60)47
Levando e m consideraccedilatildeo esses dispositivos a A D I N n 326804 foi
ajuizada pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo com o intuito de
declarar que a Lei n 3459 aprovada pela Assembleacuteia Legislativa do Estado do Rio de
Janeiro e m 14 de setembro de 2000 eacute inconstitucional u m a vez que estabeleceu que (i)
religiatildeo seria ensinada na forma confessional (ii) o conteuacutedo do ensino religioso seria
atribuiccedilatildeo de diversas autoridades religiosas e (iii) apenas professores credenciados pela
autoridade religiosa competente poderiam ensinar religiatildeo e m escolas oficiais
A Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo argumenta que o
ensino religioso na forma confessional viola o art 210 da Constituiccedilatildeo que estabelece que
os valores culturais seratildeo respeitados quando do estabelecimento dos conteuacutedos miacutenimos
para o ensino fundamental e o art 33 da Lei Federal n 939497 que determina que o
ensino religioso respeitaraacute a diversidade cultural do Brasil
Cumpre notar que nos termos do art 21 do Decreto-Lei n 4244 de 9 de abril de 1942 o programa e o regime didaacutetico do ensino religioso deveria ser determinado pela autoridade religiosa De acordo com Alexandre de Moraes para que a regulamentaccedilatildeo e a execuccedilatildeo desta disposiccedilatildeo natildeo sejam inconstitucionais faz-se necessaacuterio que toda e qualquer religiatildeo possa ser ensinada nas escolas puacuteblicas O autor entende que na praacutetica isso eacute absolutamente impossiacutevel (cf M O R A E S 2003 1984-1985)
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762 Maria Costa Neves Machado
Adicionalmente a confederaccedilatildeo sustenta que a disposiccedilatildeo de acordo
com a qual o conteuacutedo do ensino religioso eacute u m a atribuiccedilatildeo das diversas autoridades
religiosas contraria o art 33 da Lei Federal n 939497 que estabelece diferentes padrotildees
para a definiccedilatildeo do conteuacutedo do ensino religioso E m conformidade com tal lei federal
os sistemas de ensino devem ouvir entidades civis de diversas religiotildees para definir
o conteuacutedo do ensino religioso A violaccedilatildeo eacute demonstrada com base no fato de que o
conceito de autoridade religiosa - que implica u m a estrutura administrativa e hieraacuterquica
como aquelas presentes nas Igrejas Catoacutelicas Presbiterianas e Judaicas - natildeo eacute parte da
tradiccedilatildeo de algumas religiotildees que tem origem Evangeacutelica ou afro-brasileira
A A D I N ainda natildeo foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal De qualquer
forma os argumentos apresentados pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores em
Educaccedilatildeo - e pelos vaacuterios amicus curiae admitidos no processo - parecem ser coerentes
com a Constituiccedilatildeo Federal e aptos a derrubar a Lei Estadual n 3459
N o Estado de Satildeo Paulo o ensino religioso previsto no art 33 da Lei n
939497 foi regulamentado na Deliberaccedilatildeo do Conselho Estadual de Educaccedilatildeo - CEE
n 162001 com fundamento na Indicaccedilatildeo C E E n 07 aprovada e m 25 de julho de 2001
de acordo com a qual o ensino religioso deve ser enfocado na perspectiva constitucional
de promoccedilatildeo da cidadania e da dignidade especialmente na funccedilatildeo social da educaccedilatildeo
e m geral de modo que deve ser enfatizada a reflexatildeo sobre a cidadania e as praacuteticas a ela
pertinentes Assumindo que natildeo haacute conhecimento futuro e vida sem a competecircncia de
conviver com as diferenccedilas a Indicaccedilatildeo C E E n 072001 reconhece que satildeo bem-vindos
todos os projetos educacionais (aiacute se podendo incluir o ensino religioso) que visam direta
ou indiretamente o trabalho comunitaacuterio a conscientizaccedilatildeo da responsabilidade pessoal
e social e que estimulem e restaurem os valores humanos de compromisso moral e eacutetico
auxiliando a compreensatildeo do h o m e m e o autoconhecimento Nesse sentido de acordo com
referida indicaccedilatildeo o ensino religioso nas escolas deve antes de tudo fundamentar-se nos
princiacutepios da cidadania e do entendimento do outro Assim o C E E recomendou que o
ensino religioso fosse tratado como tema transversal por meio da implementaccedilatildeo de uma
proposta de abordagem filosoacutefica que permitisse a reflexatildeo sobre valores e princiacutepios eacuteticos e
o conhecimento da histoacuteria das religiotildees Tambeacutem no Estado de Satildeo Paulo a implementaccedilatildeo
do ensino religioso foi arduamente debatida e criticada especialmente em razatildeo da
problemaacutetica questatildeo do estabelecimento de religiatildeo vedado pela Constituiccedilatildeo de 198848
Vide entre outros GIUMBELLI Emerson Ensino religioso em escolas puacuteblicas no Brasil notas de pesquisa Debates do N E R (UFRGS) v 14 p 50-68 2009 CURY Carlos Roberto Jamil Ensino religioso na escola puacuteblica o retorno de uma polecircmica recorrente Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 27 p 183-213 setdez 2004 LUI Janayna de Alencar Entre crentes e pagatildeos ensino religioso em Satildeo Paulo Cadernos de Pesquisa v 37 n 131 p 333-349 maioago 2007 R A N Q U E T A T JUacuteNIOR Ceacutesar Do confessional ao plural uma anaacutelise sobre o novo modelo de ensino religioso nas escolas brasileiras Revista Diaacutelogo Educaccedilatildeo Curitiba v 8 n 23 p 289-305 janabr 2008
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 763
Neste item a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil foi examinada
com a finalidade de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota u m princiacutepio de
toleracircncia ou de respeito As normas relacionadas agrave garantia da liberdade de consciecircncia
e de crenccedila bem como ao livre exerciacutecio de cultos religiosos agrave proteccedilatildeo dos locais de
adoraccedilatildeo agrave proibiccedilatildeo do estabelecimento de religiatildeo agrave garantia de assistecircncia religiosa
e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva agrave acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de
consciecircncia e ao ensino religioso facultativo todas foram analisadas de modo que fosse
possiacutevel concluir se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia ou
do respeito
D e acordo com tal anaacutelise o ordenamento juriacutedico brasileiro parece tratar a
religiatildeo e m conformidade com o princiacutepio do respeito Isso porque pessoas religiosas e natildeo
religiosas podem entrar no espaccedilo puacutebico e m iguais condiccedilotildees sendo que a faculdade de
buscar a finalidade uacuteltima da vida eacute respeitada pelo Estado Nesse sentido o ordenamento
juriacutedico brasileiro garante a liberdade de consciecircncia e de crenccedila o livre exerciacutecio de
cultos religiosos e a proteccedilatildeo dos locais de adoraccedilatildeo Adicionalmente enquanto de u m
lado nenhuma religiatildeo pode ser estabelecida pelo Estado pessoas religiosas podem
reivindicar imperativo de consciecircncia bem como receber assistecircncia religiosa e ensino
religioso se essa for a sua escolha
Isso demonstra que todos os indiviacuteduos de acordo com o ordenamento
juriacutedico brasileiro devem entrar no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais e que o Estado eacute
obrigado a fornecer condiccedilotildees para que pessoas religiosas e natildeo religiosas possam buscar
a finalidade uacuteltima da vida se essa for sua escolha respeitando e m todos os indiviacuteduos a
faculdade de realizar tal busca
4 Conclusatildeo
Inicialmente foi examinada neste artigo a diferenccedila entre o princiacutepio da
toleracircncia e o princiacutepio do respeito no que se refere ao tratamento legal de questotildees de
consciecircncia Posteriormente a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no ordenamento
juriacutedico brasileiro foi analisada com a finalidade de verificar qual desses dois princiacutepios eacute
adotado Finalmente conclui-se que o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio
do respeito pela faculdade dos indiviacuteduos de buscar pela finalidade uacuteltima da vida sendo o
Estado obrigado a garantir condiccedilotildees adequadas para as pessoas exercerem tal faculdade
de acordo com suas escolhas autocircnomas de modo que todos os indiviacuteduos possam entrar
no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais
Satildeo Paulo dezembro de 2010
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IM Maria Costa Neves Machado
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744 Maria Costa Neves Machado
1 Introduccedilatildeo
Haacute duas possiacuteveis abordagens que sistemas juriacutedicos de democracias liberais
podem adotar quando se trata de solucionar problemas juriacutedicos envolvendo questotildees
religiosas a toleracircncia ou o respeito Enquanto alguns autores argumentam que para lidar
c o m questotildees religiosas se deve aplicar o princiacutepio da toleracircncia1 outros sustentam que
este natildeo eacute suficiente para garantir a dignidade humana e que se faz necessaacuterio respeitar as
crenccedilas e praacuteticas religiosas dos indiviacuteduos2
Inicialmente para examinar essa questatildeo a diferenccedila entre o princiacutepio da
toleracircncia e o do respeito eacute criticamente analisada (item 2) Posteriormente o ordenamento
juriacutedico brasileiro eacute estudado com a finalidade de verificar se as leis brasileiras estatildeo de
acordo com o princiacutepio do respeito ou da toleracircncia quando se trata de questotildees envolvendo
liberdade religiosa (item 3) Finalmente conclui-se que o ordenamento juriacutedico brasileiro
adota o princiacutepio do respeito pela faculdade dos indiviacuteduos de buscarem a finalidade
uacuteltima da vida (item 4)
2 Toleracircncia ou respeito
Para comparar os dois princiacutepios que podem orientar a soluccedilatildeo de conflitos
juriacutedicos envolvendo questotildees religiosas e m democracias liberais eacute importante definir de
u m lado o conceito de toleracircncia e de outro o de respeito
D e acordo com Brian Leiter eacute possiacutevel falar e m u m genuiacuteno princiacutepio de
toleracircncia
quando u m grupo (denominado grupo dominante) desaprova ativamente o que outro grupo (denominado grupo desfavorecido) acredita ou pratica quando o grupo dominante possui agrave sua disposiccedilatildeo os meios para de forma eficaz e confiante alterar ou acabar com as crenccedilas ou praacuteticas do grupo desfavorecido e ainda assim o grupo dominante reconhece que existem razotildees morais ou epistemoloacutegicos (ou seja razotildees pertencentes ao conhecimento ou agrave verdade) para permitir que o gmpo desfavorecido continue com suas crenccedilas ou praacuteticas (LEITER 2009 p 6)3
Cf por exemplo R A Z Joseph Autonomy toleration and the harm principie In GAVISON Ruth (Ed) Contemporary legalphilosophy the influence of H L A Hart com permissatildeo da Oxford University Press Brian Leiter Why tolerate religion manuscrito natildeo publicado pelo autor Simon Blackburn Religion and respect manuscrito natildeo publicado pelo autor Leslie Green On being tolerated University of Oxford Faculty of Law Legal Studies Research Paper Series Working Paper No 142008 entre outros Cf por exemplo BIELEFELDT Heiner Filosofia dos direitos humanos fundamentos de u m ethos de liberdade universal Satildeo Leopoldo Unisinos 2000 e N U S S B A U M Martha C Liberty of Conscience In D E F E N S E of Americas Tradition of Religious Equality N e w York Basic Books 2008 entre outros Traduccedilatildeo livre da autora where one group (call it the dominant group) actively disapproves of what
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 745
Neste sentido o autor apresenta trecircs argumentos para a toleracircncia de opiniotildees
e praacuteticas religiosas os quais estatildeo divididos e m duas grandes classes argumentos morais
e epistemoloacutegicos
O primeiro argumento moral examinado eacute deontoloacutegico ilustrado pelo
pensamento de John Rawls de acordo com o qual a toleracircncia eacute uma consequumlecircncia do
princiacutepio da igual liberdade de consciecircncia (cf LEITER 2009 7-8) O segundo argumento
moral analisado eacute consistente com a tradiccedilatildeo utilitarista D e acordo com este argumento
a toleracircncia eacute necessaacuteria para maximizar o bem estar humano que resultaria da garantia
de u m espaccedilo privado onde os indiviacuteduos poderiam livremente decidir o que acreditar e
como viver (LEITER 2009 9)
Adicionalmente aos argumentos morais Leiter apresenta baseado nas
ideacuteias de John Stuart Mill argumentos epistemoloacutegicos para a toleracircncia E m termos
gerais estes argumentos focam na importacircncia da toleracircncia para o conhecimento e para
a descoberta da verdade As principais suposiccedilotildees desses argumentos satildeo que a verdade
contribui agrave valiosa finalidade moral da utilidade e que a toleracircncia de crenccedilas e praacuteticas
divergentes contribui para o conhecimento da verdade (LEITER 2009 IO)4
Leiter conclui - apoacutes examinar se a religiatildeo eacute especial do ponto de vista do
princiacutepio da toleracircncia (cf Leiter 2009 14-26) - que os argumentos mencionados acima
para a toleracircncia justificam a proteccedilatildeo legal da liberdade de consciecircncia que abrange a
toleracircncia de crenccedilas religiosas Entretanto o autor entende que natildeo haacute nenhuma razatildeo
moral para destacar questotildees religiotildees das demais questotildees de consciecircncia a fim de lhe dar
proteccedilatildeo legal especial (cf LEITER 2009 32)
D e acordo com Joseph Raz haacute u m argumento para a toleracircncia que decorre
da suposiccedilatildeo - que ele natildeo aceita - que para os governos respeitarem a autonomia
individual esses natildeo devem adotar nenhuma concepccedilatildeo sobre a vida boa Neste sentido
o respeito pela autonomia dos indiviacuteduos requereria u m princiacutepio de toleracircncia que exige
a exclusatildeo de ideais da poliacutetica E m outras palavras a toleracircncia e m estados liberais
requereria o anti-perfectionismo (cf R A Z 1987 155-156) Entretanto o autor entende
que o princiacutepio da toleracircncia baseado na autonomia individual fornece a fundaccedilatildeo moral
another group (call it the disfavored group) believes or does where that dominant group has the means at its disposal to effectively and reliably change or end the disfavored groups believes or practices and yet still the dominant group acknowledges that there are moral or epistemic reasons (that is reasons pertaining to knowledge or truth) to permit the disfavored group to keep on believing and doing what it does A esse respeito Celso Lafer com base no pensamento de Norberto Bobb io entende que a toleracircncia pode ser sustentanda tanto pelo criteacuterio eacutetico do respeito pela singularidade do Outro quanto pela avaliaccedilatildeo epistemoloacutegica de qual a verdade natildeo eacute una mas tem muacuteltiplas faces (LAFER 2007) Para entender a visatildeo de Bobbio sobre a toleracircncia vide B O B B I O Norberto Toleracircncia e verdade Elogio da serenidade e outros escritos morais Traduccedilatildeo de Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo Paulo UNESP 2002 p 149-155
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746 Maria Costa Neves Machado
para o princiacutepio do dano - que eacute considerado a uacutenica base para o uso de poder coercitivo
pela lei - natildeo para o anti-perfectionismo
Raz argumenta que u m compromisso c o m a autonomia envolve o
compromisso com o pluralismo moral ( R A Z 1987 157)5 que de acordo com o autor
deve ser compreendido como a visatildeo de que haacute vaacuterias formas e vaacuterios estilos de vida
que exemplificam virtudes diferentes e que satildeo incompatiacuteveis ( R A Z 1987 159)6 Ele
sustenta que
o pluralismo moral competitivo do tipo que eacute necessaacuterio para o respeito pela autonomia gera conflitos entre pessoas que buscam valiosas mas incompatiacuteveis formas de vida Dada a necessidade de tomar disponiacuteveis tais formas de vida a fim de garantir a autonomia faz-se necessaacuterio restringir as accedilotildees e as atitudes das pessoas em tais conflitos por meio do princiacutepio da toleracircncia O dever de tolerar eacute u m aspecto do dever de respeito pela autonomia (RAZ 1987 165)7
Assim de acordo com Raz a fim de respeitar a autonomia individual eacute
necessaacuterio adotar u m princiacutepio de toleracircncia que consista na
restriccedilatildeo de uma atividade provavelmente indesejaacutevel ao seu receptor ou de uma inclinaccedilatildeo de assim agir que eacute em si mesma moralmente valiosa e que eacute baseada em um desagrado ou em u m antagonismo dessa pessoa ou de uma caracteriacutestica de sua vida refletindo u m julgamento de que esses representam limitaccedilotildees ou deficiecircncias no outro com a finalidade de deixar que o outro tenha sua maneira ou para que ele ganhe ou mantenha alguma vantagem (Como indicado a mim por P M S O Hacker a compaixatildeo eacute agraves vezes u m exemplo especial de toleracircncia U m indiviacuteduo pode tolerar a partir da compaixatildeo) (RAZ 1987 163)89
Traduccedilatildeo livre da autora a commitment to autonomy entails commitment to moral pluralism Traduccedilatildeo livre da autora there are various forms and styles of life which exemplify different virtues and which are incompatible Traduccedilatildeo livre da autora competitive moral pluralism ofthe kind which is required by respect for autonomy generates conflicts between people pursuing valuable but incompatible forms of life Given the necessity to make those forms of life available in order to secure autonomy there is a need to curb peoples actions and their attitudes in those conflicts by principies of toleration The duty of toleration is an aspect ofthe duty of respect for autonomy Traduccedilatildeo livre da autora the curbing of an activity likely to be unwelcome to its recipient or of an inclination so to act which is in itself morally valuable and which is based on a dislike or an antagonism of that person or of a feature of his life reflecting a judgment that these represent limitations or deficiencies in him in order to let that person have his way or in order for him to gain or keep some advantage (As pointed out to m e by P M S Hacker mercy is sometimes a special case of toleration One can tolerate out of mercy) Nesse sentido Raz argumenta que a [t]oleracircncia implica na supressatildeo ou na contenccedilatildeo de uma inclinaccedilatildeo ou desejo de perseguir molestar causar dano ou reagir de uma maneira indesejada a uma pessoa (RAZ 1987 162) (traduccedilatildeo livre da autora [tjoleration implies the suppression or containment of an inclination or desire to persecute harass harm or react in an unwelcome way to a person)
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 141
Tambeacutem sustentando a abordagem da toleracircncia - em oposiccedilatildeo agrave abordagem
do respeito - Simon Blackburn argumenta que natildeo haacute nenhuma razatildeo para que algueacutem
respeite u m sistema de crenccedilas que esta pessoa natildeo compartilhe (cf B L A C K B U R N 2009
1) Ele entende que a palavra respeito pode significar a simples ausecircncia de interferecircncia
mas que tambeacutem pode significar admiraccedilatildeo reverecircncia ou deferecircncia (cf B L A C K B U R N
2009 2) De acordo com estes niacuteveis o autor afirma que as pessoas podem respeitar
outras pessoas que possuam crenccedilas falsas ou irracionais somente num sentido miacutenimo de
toleracircncia10 U m a vez que noacutes reconhecemos aquelas crenccedilas como falsas ou irracionais
natildeo eacute possiacutevel respeitaacute-las pelo menos natildeo como decorrecircncia do fato de que algueacutem
acredita nelas (cf B L A C K B U R N 2009 3 e 7) E m conformidade com Blackburn
acreditar numa crenccedila falsa natildeo concede a ningueacutem o direito ao respeito Na medida em que eu natildeo posso compartilhar de sua crenccedila eu natildeo tenho nenhuma razatildeo para respeitaacute-lo por acreditar nela - pelo contraacuterio na verdade (BLACKBURN 2009 16)
O autor argumenta que eacute inconsistente com qualquer concepccedilatildeo apropriada
de crenccedila - a qual implica que haacute u m contraste entre certo e errado - pensar que essa eacute
uma questatildeo exclusivamente pessoal e que qualquer crenccedila eacute tatildeo boa quanto qualquer
outra N a verdade ele nega que crenccedilas estejam livres de controle normativo e que a
desigualdade entre crenccedilas seja uma violaccedilatildeo de direitos de uma pessoa Para ele ningueacutem
por u m momento acredita nesta igualdade promiacutescua de crenccedilas na vida quotidiana
( B L A C K B U R N 2009 3)12
Parece que Blackburn estaacute criticando uma concepccedilatildeo de respeito para
crenccedilas religiosas que signifique a admiraccedilatildeo de todas as crenccedilas apenas porque elas
satildeo detidas por uma pessoa Entretanto o respeito requerido pela liberdade religiosa natildeo
corresponde a u m sentimento de admiraccedilatildeo pelas crenccedilas e praacuteticas religiosas especiacuteficas
as quais noacutes podemos natildeo compartilhar mas a u m respeito pela capacidade potencial de
todos os seres humanos de fazerem escolhas autonomamente conforme seraacute demonstrado
pela abordagem de Martha Nussbaum
O problema fundamental com o princiacutepio da toleracircncia eacute que este deixa
o tolerado desconfortaacutevel em pelo menos trecircs maneiras (cf G R E E N 2008 4-8) C o m o
demonstrado por Leslie Green a toleracircncia eacute limitada e m seu escopo eacute incompleta e
10 Para o autor existe tambeacutem uma graduaccedilatildeo de respeito referente a pessoas que possuem crenccedilas falsas no sentido de que respeitamos mais algumas pessoas das quais discordamos do que outras (cf B L A C K B U R N 2009 6)
11 Traduccedilatildeo livre da autora holding a false belief does not give anyone a title to respect Insofar as I cannot share your belief I have no reason to respect you for holding it - quite the reverse in fact
12 Traduccedilatildeo livre da autora nobody for a moment believes in this promiscuous equality of belief in everyday life
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748 Maria Costa Neves Machado
parcial e pode ser considera principalmente c o m o questatildeo de descriminalizaccedilatildeo de
condutas1314 M a s natildeo somente o escopo do princiacutepio da toleracircncia pode estar errado
seus fundamentos tambeacutem podem u m princiacutepio de toleracircncia pode ser adotado por razotildees
morais suspeitas15 Aleacutem disso se u m princiacutepio de toleracircncia for sustentado da maneira
errada - aqueles que toleram deixam claro que prefeririam natildeo ser tolerantes - aqueles
que satildeo tolerados podem tambeacutem sentir-se desconfortaacuteveis ( G R E E N 2008 6-7)16
Entretanto m e s m o que u m sistema legal pudesse construir u m princiacutepio de
toleracircncia que superasse as falhas mencionadas acima aqueles que satildeo tolerados ainda se
sentiriam desconfortaacuteveis porque seria sempre melhor se natildeo tivessem que ser tolerados
e sujeitados ao poder de toleracircncia de outra pessoa ( G R E E N 2008 6-7)n Nesse sentido
Green sustenta que
Quem quer viver da graccedila e do favor dos poderosos Isto eacute especialmente verdadeiro quando tolerados natildeo tecircm nenhum poder similar sobre seus toleradores A esse respeito a toleracircncia compartilha algo com outras relaccedilotildees desejaacuteveis mas assimeacutetricas como oferecer misericoacuterdia ou sentir piedade que pode tambeacutem ser incocircmoda para seus
13 E m relaccedilatildeo agrave toleracircncia de minorias sexuais Leslie Green ressalta que exceto pela descriminalizaccedilatildeo
haacute pouca evidecircncia que a natildeo-conformidade sexual seja amplamente tolerada nos Estados Unidos onde
eleiccedilotildees ainda podem ser perdidas ou ganhas dependendo da questatildeo a respeito do que fazer sobre gays e
onde e m aacutereas como direito do trabalho e de famiacutelia minorias sexuais continuam a vivenciar tratamento
duro atualmente raro em democracias liberais (GREEN 2008 5) (traduccedilatildeo livre da autora apart from
decriminalization there is slim evidence that sexual non-conformity is widely tolerated in the United States
where elections can still be won or lost on the issue of what to do about the gays and where in aacutereas from
employment to family law sexual minorities continue to experience harsh treatment now rare in liberal
democracies) 14 Natildeo obstante o autor alerta que a descriminalizaccedilatildeo de condutas pode natildeo resultar da adoccedilatildeo de u m princiacutepio
de toleracircncia - faz-se necessaacuterio examinar as razotildees pelas quais determinada conduta foi descriminalizada
(cf G R E E N 2008 5) 15 Por exemplo o autor afirma que seria preocupante se u m governo tolerasse o ato de fumar porque seus
atuaacuterios descobriram que fumantes morrem mais cedo o suficiente para aumentar o saldo liacutequido da
previdecircncia (traduccedilatildeo livre da autora) Ademais ele menciona que se a homossexualidade eacute tolerada
somente porque e na medida e m que existem outras condutas mais seriamente erradas para reprimir gays
americanos justamente sentiriam u m mal-estar (cf G R E E N 2008 6) (traduccedilatildeo livre da autora) 16 Identificando tambeacutem os problemas decorrentes do princiacutepio da toleracircncia Miguel Reale Juacutenior (2008
176) com base nas ideacuteias de Javier Lucas afirma que a retoacuterica da toleracircncia natildeo acolhe a criaccedilatildeo de uma
cultura fruto do diaacutelogo intercultural e ignora os problemas de inclusatildeo do diferente para se estabelecer a
igualdade na diversidade Nesse sentido Reale Juacutenior defende que o conceito liberal de toleracircncia deve
ser complementado com o conceito social de solidariedade destacando que solidariedade significa natildeo
apenas aceitaccedilatildeo da diferenccedila mas como realccedila Judith Martins-Costa uma aceitaccedilatildeo qualificada de cunho
normativo pela qual se admite que o diferente pode receber maior tutela ou tutela especiacutefica que atenda agrave
sua diferenccedila concreta como membro da comunidade ( R E A L E JUacuteNIOR 2008 176-177) 17 E m 1791 Thomas Paine notou que toleracircncia natildeo eacute o oposto de intoleracircncia mas a sua imitaccedilatildeo Ambos
satildeo despotismos U m assume para si o direito de reter a liberdade de consciecircncia e o outro de concedecirc-la
(paine 1791) Madison tambeacutem chamou a atenccedilatildeo das pessoas para o fato de que a palavra toleracircncia era
muito relutante sugerindo benevolecircncia legislativa ao inveacutes de direito ( N U S S B A U M 2008 90) (traduccedilatildeo livre da autora)
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 749
receptores E quando noacutes consideramos as pessoas natildeo como mocircnadas mas como membros de grupos minoritaacuterios entatildeo o fato da toleracircncia pode ser um lembrete infeliz da distribuiccedilatildeo de poder social (GREEN 2008 IO)18
Assim o princiacutepio da toleracircncia reflete tambeacutem a diferenccedila de poder entre
tolerados e toleradores E isto causa mais u m a vez desconforto nos tolerados no sentido
de que estes precisam contar com a benevolecircncia dos poderosos quando o poder eacute exercido
e quando a conduta do tolerado eacute julgada pelos poderosos (cf G R E E N 2008 8-12)
Green entende que entre as trecircs maneiras que geralmente satildeo chamadas
para complementar o princiacutepio da toleracircncia quais sejam aceitaccedilatildeo19 reconhecimento20
e compreensatildeo21 a uacuteltima eacute a adequada O autor assinala que u m a melhor compreensatildeo
pode ampliar a toleracircncia pode fazer com que as pessoas tenham menos m aacute vontade
pode mudar a disposiccedilatildeo para a toleracircncia incentivando pessoas a revisitar julgamentos
e pode tambeacutem ser u m a boa maneira de evitar razotildees erradas para a toleracircncia Essa
complementaccedilatildeo pode deixar aqueles que satildeo tolerados mais confortaacuteveis porque eles
sabem que os toleradores estatildeo fazendo esforccedilos de boa-feacute para compreender C o m o
consequumlecircncia os tolerados sentem que satildeo considerados como parte da convivecircncia
humana (cf G R E E N 2008 21) Green conclui que
Compreender o que a conduta reprovada significa para o agente e como se encaixa em uma vida humana pode fazer-nos revisitar e agraves vezes revisar aquele julgamento Pode complementar a toleracircncia pode tomar-nos toleradores melhores especialmente quando nos daacute uma ideacuteia do que eacute estar na extremidade afiada de uma vareta Esse tipo da compreensatildeo deixa espaccedilo para discordacircncias em torno de valores e deixa espaccedilo para correccedilatildeo de erros Natildeo
18 Traduccedilatildeo livre da autora W h o wants to live by grace and favor ofthe powerful This is especially true when the tolerated have no similar power over their tolerators In this respect toleration shares something with other desirable but asymmetric relations like offering mercy or taking pity which can also be uncomfortable for their recipients And when w e consider people not as monads but as members of minority groups then the fact of toleration may be an unhappy reminder ofthe social distribution of power
19 Se o princiacutepio da toleracircncia fosse complementado pela aceitaccedilatildeo aqueles que praticam atos ou possuem crenccedilas que satildeo toleradas podem (i) assumir abertamente suas praacuteticas e crenccedilas sem que lhes seja imposta nenhuma consequumlecircncia adversa ou (ii) demandar acomodaccedilatildeo para suas praacuteticas e crenccedilas (cf G R E E N 2008 12-15)
20 Se o princiacutepio da toleracircncia fosse complementado pelo reconhecimento praacuteticas e crenccedilas seriam toleradas de bom grado ateacute por aqueles que pensam que tais praacuteticas e crenccedilas satildeo supersticiosas sexistas etc e aqueles que toleram veriam os tolerados como eles mesmos se vecircem Nesse sentido reconhecimento exige natildeo apenas que os valores do tolerado sejam compartilhados pelos toleradores mas que a identidade do tolerado seja reconhecida (cf G R E E N 2008 15-19)
21 Se o princiacutepio da toleracircncia fosse complementado pelo entendimento toleradores deveriam tentar recriar ou capturar na medida do possiacutevel o sentido que accedilotildees e siacutembolos tecircm para seus agentes (GREEN 2008 20-25) (traduccedilatildeo livre da autora attempt to capture or recreate to the extent that w e can the meanings that acts and symbols have for their agents)
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750 Maria Costa Neves Machado
Xrdiz a aceitaccedilatildeo ou o reconhecimento Mas o esforccedilo para compreender afirma nossa convivecircncia com os objetos de nossa toleracircncia Sem isso a toleracircncia eacute mais pobre - e mais dura - do que precisaria ser (GREEN 2008 27)22
Embora Green reconheccedila as principais falhas do princiacutepio da toleracircncia
parece que sua complementaccedilatildeo por u m a atitude compreensiva como sugerida pelo autor
ainda natildeo eacute suficiente para garantir a igualdade entre cidadatildeos e para proteger a dignidade
humana em democracias liberais
Tambeacutem criticando a abordagem da toleracircncia Heiner Bielefeldt argumenta
que a crise normativa resultante do pluralismo cultural deve ser endereccedilada pelo
reconhecimento de tal pluralismo natildeo pela sua toleracircncia C o m o afirmado por Bielefeldt
o problema da toleracircncia eacute que aqueles que tecircm o poder de tolerar tambeacutem tecircm o poder
de natildeo tolerar e aqueles que consideram que tem o poder para tolerar pretendem julgar
as questotildees de consciecircncia O autor sustenta que somente apoacutes a superaccedilatildeo dos conceitos
tradicionais de toleracircncia o pluralismo religioso e poliacutetico natildeo seraacute considerado uma perda
infeliz do centralismo religioso e da cosmovisatildeo da sociedade tradicional O pluralismo
religioso e poliacutetico seratildeo entatildeo considerados uma expressatildeo da responsabilidade autocircnoma
dos seres humanos que desejam ser respeitados e m suas convicccedilotildees e ter direitos iguais
(cf BIELEFELDT 2000 50)
D o mesmo modo Martha Nussbaum argumenta e m favor do princiacutepio
do respeito pela consciecircncia (Respect-Conscience Principie)23 de acordo com o qual
a esfera puacuteblica deve respeitar os diferentes comprometimentos religiosos de todos os
cidadatildeos e deve garantir u m espaccedilo onde os cidadatildeos possam agir consistentemente com
suas consciecircncias de forma que todos os cidadatildeos possam entrar no espaccedilo puacuteblico em
condiccedilotildees iguais ( N U S S B A U M 2008 22-23)
Nussbaum entende que tal princiacutepio natildeo requer a aprovaccedilatildeo de
reivindicaccedilotildees teoloacutegicas e eacuteticas de nenhuma religiatildeo pela esfera puacuteblica ou por cidadatildeos
individualmente (cf N U S S B A U M 2008 23) Neste sentido ela sustenta que o [r]
espeito por concidadatildeos natildeo significa dizer ou acreditar que suas visotildees religiosas estatildeo
corretas ou mesmo que todas as religiotildees satildeo caminhos vaacutelidos ao entendimento da vida
( N U S S B A U M 2008 23)24 Assim ela conclui que
Traduccedilatildeo livre da autora Understanding what the disapproved conduct means for the agent and how it fits into a human life may make us revisit and sometimes revise that judgment It may supplement torelation it may make us better tolerators especially when it gives us a grasp of what it is to be at the sharp end of a particular stick That kind of understanding leaves room for disagreement in value and room for correction of error It does not bring acceptance or recognition But the effort to understand affirms our fellowship with the objects of our toleration Without that toleration is poorer - and harder - than it need to be A autora expressamente afirma sua preferecircncia pelo termo respeito ao inveacutes do termo toleracircncia porque entende que o uacuteltimo eacute muito fraco e relutante (cf N U S S B A U M 2008 24) Traduccedilatildeo livre da autora [r]espect for fellow citizens does not mean saying or believing that their religious
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 751
O princiacutepio do respeito pela consciecircncia significa apenas respeitaacute-los como
seres humanos com suas proacuteprias escolhas para fazer em mateacuterias religiosas e u m direito
de fazer livremente essas escolhas ( N U S S B A U M 2008 23)25
Assim eacute a faculdade de buscar a finalidade uacuteltima da vida que tem valor e
que deve ser respeitada independentemente de os indiviacuteduos a estarem usando de forma
boa ou ruim Esta abordagem natildeo implica que encontrar a finalidade uacuteltima da vida tem
valor intriacutenseco como resultado as visotildees ceacuteticas e anti-metafiacutesicas tambeacutem merecem ser
respeitadas ( N U S S B A U M 2008 168-169)
D e acordo com Nussbaum o Estado natildeo deve endossar nenhuma religiatildeo
ou a natildeo religiatildeo sobre a religiatildeo E m consequumlecircncia nenhuma indicaccedilatildeo puacuteblica de acordo
ou desacordo devem ser feitos As instituiccedilotildees puacuteblicas natildeo devem ter conteuacutedo religioso
- embora a autora assuma que teratildeo conteuacutedo eacutetico - porque elas devem ser fundadas
em princiacutepios tais como o igual respeito que todos os cidadatildeos podem compartilhar
independentemente de sua religiatildeo ( N U S S B A U M 2008 23)
Cumpre notar que essa abordagem natildeo implica uma visatildeo poacutes-modernista26
de completa relatividade de valores Nesse sentido Nussbaum esclarece que o princiacutepio
do respeito pela consciecircncia natildeo implica que todas as religiotildees e visotildees da vida devem
ser (igualmente) respeitadas pelo governo ( N U S S B A U M 2008 24)27 Se uma visatildeo
contradiz ou ameaccedila as fundaccedilotildees da ordem constitucional e a igualdade dos cidadatildeos
a comunidade pode razoavelmente se opor e desfavorecer tal visatildeo (cf N U S S B A U M 2008 24)
Assim na linha exposta por Nussbaum embora como regra geral crenccedilas
e praacuteticas religiosas devam ser respeitadas algumas accedilotildees e discursos natildeo faratildeo jus a
igual respeito e tratamento se ameaccedilarem os mais importantes valores da comunidade
poliacutetica sendo certo que Estados democraacuteticos liberais devem regular e limitar tais accedilotildees
e discursos
Alguns autores sugeriram limites a serem impostos por Estados democraacuteticos
liberais Nussbaum por exemplo entende que
views are correct or even that ali religions are valid routes to understanding life Traduccedilatildeo livre da autora The Respect-Conscience Principie just means respecting them as human beings with their own choices to make in religious matters and a right to make those choices freely Embora natildeo haja consenso sobre seu conteuacutedo o termo poacutes-modernismo foi definido a partir de seu uso por Jean Baudrillard Jean-Franccedilois Lyotard Fredric Jameson entre outros e eacute utilizado aqui para designer o contexto histoacuterico e socioloacutegico particular caracterizado pelo paradigma da transiccedilatildeo da modernidade que comeccedilou no final do seacuteculo X X As principais caracteriacutesticas do paradigma poacutes-moderno satildeo a ausecircncia de consenso o fim das metanarrativas e de qualquer pretensatildeo de teorias universais (cf BITTAR 2005 96) Para uma visatildeo socioloacutegica mais detalhada do poacutes-modernismo confira Gisela B Taschner A poacutes-modernidade e a sociologia in Revista USP Satildeo Paulo Coordenadoria de Comunicaccedilatildeo Social (CCS) da Universidade de Satildeo Paulo n 42 junago 1999 p 6-19 Traduccedilatildeo livre da autora does not imply that ali religions and views of life must be (equally) respected by the government
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752 Maria Costa Neves Machado
Se as pessoas buscam torturar crianccedilas ou escravizar minorias citando sua religiatildeo como sua razatildeo deve-se resistir a suas reivindicaccedilotildees mesmo que elas possam ser sinceras Se eles simplesmente falam em favor da escravidatildeo ou da tortura sua liberdade de expressatildeo deve ser protegida ateacute o ponto em que o discurso se transforme em uma ameaccedila Eles natildeo poderatildeo entretanto apresentar suas ideacuteias na esfera poliacutetica em bases iguais com outras ideacuteias uma vez que a Constituiccedilatildeo (no caso da escravidatildeo) e a lei criminal (no caso da tortura) proiacutebem as praacuteticas que eles recomendam (NUSSBAUM 2008 24)28
D e acordo com Juumlrgen Habermas as sociedades multiculturais somente
podem tolerar tradiccedilotildees que aceitem a discordacircncia razoaacutevel que ele chama de tradiccedilotildees
natildeo-fundamentalistas Habermas entende que somente as formas de vida tolerantes que
aceitam a discordacircncia razoaacutevel satildeo capazes de coexistir com o reconhecimento dos
membros de culturas diferentes ( H A B E R M A S 1994 151)29 D e m o d o similar Marcelo
Neves argumenta que a intoleracircncia eacutetnica e o fuacutendamentalismo religioso satildeo contra o
pluralismo requerido pela esfera puacuteblica e devem ser juriacutedica e politicamente restringidos
(NEVES 2006 136 222 223 e Neves 2000 41)
Para Miguel Reale Juacutenior o reconhecimento de setores diferentes da
sociedade (tais como minorias eacutetnicas ou classes especiais de pessoas) de seus direitos
e de suas especificidades - a partir do avanccedilo do conceito liberal de toleracircncia para o
conceito social de solidariedade - bem como a assunccedilatildeo da responsabilidade por sua
integraccedilatildeo social natildeo importa e m abrir m atilde o de valores essenciais da pessoa humana
afirmados e conquistados ao longo do processo histoacuterico ( R E A L E JUacuteNIOR 2008
177) Sustentando que pluralismo natildeo significa arbitrismo no sentido de aceitaccedilatildeo de
qualquer organizaccedilatildeo social Reale Juacutenior idem ibidem) destaca que o pluralismo deve
ser limitado pelas conquistas essenciais acerca da dignidade humana conquistas essas que
satildeo historicamente impostergaacuteveis
C o m u m a abordagem diferente Will Kymlicka sustenta que os liberais
deveriam tentar acomodar grupos natildeo liberais desde que estes natildeo estejam buscando o
apoio da sociedade como u m todo e natildeo queiram impor seus valores a outros grupos Para
Traduccedilatildeo livre da autora [i]f people seek to torture children or to enslave minorities citing their religion as their reason their claims must be resisted even though they m a y be sincere If they simply talk in favor of slavery or torture their freedom to speak must be protected up to the point at which speech becomes a threat They will not however be able to present their ideas in the political sphere on an equal basis with other ideas since the Constitution (in the case of slavery) and the criminal law (in the case of torture) forbid the practices they recommend
Para u m a visatildeo completa sobre o entendimento de Habermas a respeito de toleracircncia religiosa vide Juumlrgen Habermas Entre naturalismo e religiatildeo estudos filosoacuteficos traduccedilatildeo de Flaacutevio Beno Siebeneichler Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 2007 especialmente Item IV - Toleracircncia p 279-392
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 753
o autor a maioria das pessoas entende que se u m a minoria nacional estaacute oprimindo outros
grupos u m a intervenccedilatildeo contra a agressatildeo eacute justificaacutevel Entretanto se a minoria somente
visa guiar sua comunidade de acordo com princiacutepios natildeo liberais e natildeo estaacute interessada e m
estabelecer regras para outros grupos ou e m privar esses outros grupos de seus recursos
parece errado impor valores liberais (cf K Y M L I C K A 1997 154-155) Assim Kymlicka
adota u m a visatildeo de acordo com a qual a toleracircncia liberal deve proteger os direitos dos
indiviacuteduos de discordar de seus grupos assim como o direito dos grupos de natildeo serem
perseguidos pelo Estado enquanto que o poder de grupos natildeo liberais de restringir a
liberdade de seus membros e o poder de Estados natildeo liberais de restringir a liberdade de
culto devem ser limitados
Neste item foram examinados (i) a diferenccedila entre o princiacutepio da toleracircncia
e o princiacutepio do respeito no que se refere agrave liberdade religiosa e (ii) os limites para a
adoccedilatildeo do princiacutepio do respeito por democracias liberais A partir dessa anaacutelise o
ordenamento juriacutedico brasileiro e a regulaccedilatildeo da liberdade religiosa seratildeo estudados no
item subsequente
3 Liberdade religiosa no Brasil
A regulaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil eacute examinada neste item com
o intuito de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia
ou do respeito Satildeo analisados os dispositivos da Constituiccedilatildeo Federal que tratam
da liberdade religiosa quais sejam aqueles relacionados ao livre exerciacutecio de cultos
religiosos agrave proteccedilatildeo aos locais de culto e suas liturgias (art 5o inc VI) agrave garantia de
prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa a pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva
(art 5o inc VII) agrave acomodaccedilatildeo juriacutedica e m razatildeo de imperativo de consciecircncia (art 5o
inc VIII) agrave vedaccedilatildeo ao estabelecimento de religiatildeo pelo Estado (art 19) e ao ensino
religioso facultativo (art 210) bem como a legislaccedilatildeo federal relacionada O estudo ora
realizado natildeo pretende analisar de forma exaustiva as leis estaduais anaacutelise esta que
quando realizada serve apenas para ilustrar a aplicaccedilatildeo das normas constitucionais
O dispositivo central da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil de
1988 que serve de base para a proteccedilatildeo da liberdade religiosa eacute seu art 5o o qual estabelece
que [t]odos satildeo iguais perante a lei sem distinccedilatildeo de qualquer natureza garantindo-se
aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Paiacutes a inviolabilidade do direito agrave vida
agrave liberdade agrave igualdade agrave seguranccedila e agrave propriedade Os dispositivos constitucionais
examinados a seguir visam a garantir a observacircncia da liberdade religiosa que se
apresenta como u m dos aspectos da liberdade e m sentido lato a qual eacute constitucionalmente
assegurada a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no Paiacutes
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754 Maria Costa Neves Machado
31 Livre exerciacutecio de cultos religiosos e vedaccedilatildeo ao estabelecimento de religiatildeo
O inciso VI do art 5o da Constituiccedilatildeo Federal determina que eacute inviolaacutevel
a liberdade de consciecircncia e de crenccedila sendo assegurado o livre exerciacutecio dos cultos
religiosos e garantida na forma da lei a proteccedilatildeo aos locais de culto e a suas liturgias
Diferentemente do texto atual a Constituiccedilatildeo brasileira de 1967
expressamente limitava e m seu art 150 paraacutegrafo 5 o exerciacutecio da liberdade religiosa
aos cultos que natildeo contrariassem a ordem puacuteblica e os bons costumes D e acordo com
Celso Ribeiro Bastos embora a atual Constituiccedilatildeo omita o requisito de observacircncia da
ordem puacuteblica e dos bons costumes estaacute impliacutecito no ordenamento juriacutedico brasileiro
que os direitos devem ser exercidos de modo que natildeo prejudiquem os direitos de outras
pessoas e em consonacircncia com os valores eacuteticos e morais e m que se funda a sociedade
brasileira independentemente de quatildeo difiacutecil possa ser para os tribunais definirem quais
satildeo esses valores que estatildeo evoluindo constantemente (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989
52) E m sentido diverso do entendimento de Bastos Manuel Gonccedilalves Ferreira Filho
entende que em razatildeo da omissatildeo da Constituiccedilatildeo os cultos religiosos satildeo garantidos
inclusive contra eventuais limitaccedilotildees baseadas na ordem puacuteblica e nos bons costumes (cf
F E R R E I R A FILHO 1990 33) A interpretaccedilatildeo de Ferreira Filho parece mais adequada
uma vez que os legisladores constitucionais omitiram intencionalmente a exigecircncia da
observacircncia da ordem puacuteblica e dos bons costumes Dessa forma os tribunais brasileiros
natildeo podem limitar o exerciacutecio da liberdade religiosa invocando a ordem puacuteblica ou os
bons costumes
U m a questatildeo muito polecircmica sobre o exerciacutecio da liberdade de culto
e sua limitaccedilatildeo no Brasil eacute relacionada agrave caracterizaccedilatildeo do crime de curandeirismo
previsto no art 284 do Coacutedigo Penal30 Enquanto alguns autores por exemplo Magalhatildees
Noronha sustentam que uma praacutetica religiosa que pretenda curar sem tiacutetulo ou habilitaccedilatildeo
apropriada seja enquadrada como curandeirismo ( N O R O N H A 1968 107) outros
autores como Francisco de Assis Toledo argumentam que os rituais espiacuteritas e os rituais de
todas as outras religiotildees tais como o Catolicismo o Protestantismo ou Budismo embora
possam visar agrave cura ou agrave diminuiccedilatildeo do sofrimento de pessoas doentes nunca poderatildeo ser
considerados u m crime (cf T O L E D O 1986 100-101) Francisco de Assis Toledo parece
estar certo e m sua interpretaccedilatildeo do crime curandeirismo uma vez que ele leva a seacuterio a
Artigo 284 Exercer o curandeirismo
I - prescrevendo ministrando ou aplicando habitualmente qualquer substacircncia
II - usando gestos palavras ou qualquer outro meio
III - fazendo diagnoacutesticos
Pena - detenccedilatildeo de seis meses a dois anos
Paraacutegrafo uacutenico - Se o crime eacute praticado mediante remuneraccedilatildeo o agente fica tambeacutem sujeito agrave multa
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 755
garantia constitucional da liberdade de religiatildeo Atualmente o poder judiciaacuterio no Brasil
entende que os rituais espiacuteritas relacionados agrave cura de pessoas doentes natildeo podem ser
considerados curandeirismo sendo constitucionalmente protegidos como u m tipo de
culto31
Cumpre notar que durante o periacuteodo do Impeacuterio no Brasil havia uma
liberdade religiosa sem liberdade de culto somente o culto catoacutelico era reconhecido como
livre Outras religiotildees somente podiam celebrar seus cultos na esfera domeacutestica sendo
proibido todo o templo fora do lar para outras religiotildees (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989
50 e C R E T E L L A JUacuteNIOR 1992 252)
Essa abordagem inicial da liberdade religiosa no ordenamento juriacutedico
brasileiro pode ser explicada como consequumlecircncia de nosso passado colonial U m a das
justificaccedilotildees ideoloacutegicas subjacentes agrave colonizaccedilatildeo do Brasil por Portugal - e de outros
paiacuteses da Ameacuterica Latina pela Espanha - era relacionada agrave catequizaccedilatildeo dos povos
indiacutegenas C o m o resultado o catolicismo foi a religiatildeo oficial ateacute o fim do periacuteodo
imperial32
A esse respeito vale notar com Faacutebio Konder Comparato (2001 312) que
natildeo haacute autecircntica liberdade de crenccedila e de opiniatildeo num Estado que adota u m a religiatildeo
oficial As pressotildees de toda a sorte - poliacuteticas econocircmicas e profissionais - contra os natildeo
seguidores da religiatildeo de Estado tornam essa liberdade ilusoacuteria C o m efeito as religiotildees
indiacutegenas e africanas e seus valores foram negados durante grande parte da histoacuteria do
Brasil e ainda hoje haacute na sociedade brasileira preconceito contra tais religiotildees33
Exemplificativamente destaque-se que e m 1985 o Supremo Tribunal
Federal arquivou a Representaccedilatildeo n 959-PB que questionava u m a lei do Estado da
Paraiacuteba de 1966 de acordo com a qual os cultos africanos deveriam obter u m a licenccedila
preacutevia para iniciar suas atividades Tal licenccedila seria concedida se entre outras exigecircncias
o responsaacutevel pelos cultos pudesse provar sua idoneidade moral e perfeitas condiccedilotildees de
sauacutede mental conforme documentado e m relatoacuterio psiquiaacutetrico A accedilatildeo arquivada com
STF R H C 62240SP rei Min Francisco Rezek 2a Turma 13121984 DJ 02081985 p 12046 e STJ H C 1498RJ rei Min Luiz Vicente Cernicchiaro 6a Turma j 18121992 DJ 1 de 16081993 p 15994 Cf tambeacutem FERREIRA Pinto Comentaacuterios agrave constituiccedilatildeo brasileira Satildeo Paulo Saraiva 1989 p 71 C o m efeito Celso Lafer nos lembra que incumbia ao imperador antes de ser proclamado jurar manter a religiatildeo catoacutelica cabendo-lhe em contrapartida entre as suas atribuiccedilotildees nomear bispos e prover os benefiacutecios eclesiaacutesticos bem como conceder ou negar beneplaacutecitos a atos da Santa Feacute (cf Constituiccedilatildeo de 1824 art 5o 102 paraacutegrafos 2o e 14 103) (LAFER 2007) Note-se que a negaccedilatildeo dos valores africanos e de uma identidade africana no Brasil abrangendo a esfera religiosa tem suas origens na chegada dos escravos africanos desde o seacuteculo XVI A relaccedilatildeo entre os povos africanos e a sociedade colonial foi caracterizada pela conversatildeo compulsoacuteria dos escravos agrave religiatildeo de seus donos e pela perseguiccedilatildeo daqueles que insistissem na manutenccedilatildeo das praacuteticas ancestrais (DADESKY 2005 51-52)
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base no fato de que a lei e m questatildeo havia sido modificada e m 1977 tendo sido excluiacuteda
a exigecircncia da licenccedila preacutevia
A separaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja foi estabelecida no Brasil somente
durante a Repuacuteblica pelo Decreto n 119-A datado de 7 de janeiro de 1890 de autoria
de Rui Barbosa (cf L A F E R 2007) que proibiu a intervenccedilatildeo do governo federal e dos
estados e m questotildees religiosas e estabeleceu a liberdade de culto34 Desde entatildeo o Brasil
eacute u m estado laico A separaccedilatildeo entre Estado e Igreja na Constituiccedilatildeo de 1988 estaacute prevista
no art 19
Eacute vedado agrave Uniatildeo aos Estados ao Distrito Federal e aos Municiacutepios (i) estabelecer cultos religiosos ou igrejas subvencionaacute-los embaraccedilar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relaccedilotildees de dependecircncia ou alianccedila ressalvada na forma da lei a colaboraccedilatildeo de interesse puacuteblico ()
Consequentemente o Estado brasileiro eacute indiferente agraves vaacuterias igrejas que
podem ser livremente formadas como entidades legais O Estado deve ser absolutamente
neutro sendo proibida a discriminaccedilatildeo entre igrejas para beneficiaacute-las ou prejudicaacute-las
Tambeacutem natildeo pode impor nenhum ocircnus indevido agrave formaccedilatildeo de igrejas N a realidade haacute
mesmo u m incentivo constitucional para sua formaccedilatildeo que resulta da imunidade tributaacuteria
a que fazem jus ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 50-51)35
Observe-se que a colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico mencionada no Artigo
19 para natildeo infringir a proibiccedilatildeo de estabelecimento de religiatildeo pelo Estado natildeo pode
ocorrer em u m campo fundamentalmente religioso (cf F E R R E I R A FILHO 1990 144
C R E T E L L A JUacuteNIOR 1992 1179 e L A F E R 2007) N atildeo obstante essa disposiccedilatildeo tem
implicaccedilotildees muito complexas quando se trata de sua execuccedilatildeo como eacute possiacutevel estabelecer
a colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico entre o Estado e u m a determinada igreja sem favorecer
u m a religiatildeo sobre a outra36 Ademais essa disposiccedilatildeo levanta u m problema similar ao que
resulta da assistecircncia religiosa a pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva e do
ensino religioso facultativo e m escolas conforme detalhado abaixo eacute possiacutevel na praacutetica
ensinar religiatildeo prestar assistecircncia religiosa e estabelecer esquemas de colaboraccedilatildeo
Esse decreto nunca foi expressamente revogado Cf lthttpslegislacaoplanaltogovbrLEGISLA LegislacaonsffraWebOpenFrameSetampFrame=frmWeb2ampSrc=2FLEGISLA2FLegislacaonsf2Fvi wTodos2Fbea39c8e0e484811032569fa005afab43FOpenDocument26Highlight3Dl2C26Auto Framedgt Acesso em 3 abr 2009
Cumpre notar que a Lei n 8245 datada de 18 de outubro de 1991 conforme alterada estabelece que o contrato de locaccedilatildeo de imoacuteveis utilizados por entidades religiosas devidamente registradas bem como por hospitais unidades sanitaacuterias oficiais asilos estabelecimentos de sauacutede e de ensino autorizados e fiscalizados pelo Poder Puacuteblico somente poderaacute ser rescindido em determinadas situaccedilotildees Para uma criacutetica sobre a exceccedilatildeo relacionada agrave colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico vide C R E T E L L A JUacuteNIOR 19921180
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 757
no interesse puacuteblico sem favorecer u m a determinada religiatildeo e sem violar o art 19 da
Constituiccedilatildeo
32 Garantia de assistecircncia religiosa em estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva
A Constituiccedilatildeo brasileira garante a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa a
pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva abrangendo presos militares e
pacientes hospitalizados (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 54) D e acordo com o inciso
VII do art 5o da Constituiccedilatildeo eacute assegurada nos termos da lei a prestaccedilatildeo de assistecircncia
religiosa nas entidades civis e militares de internaccedilatildeo coletiva O caraacuteter laico do Estado
brasileiro natildeo eacute afetado por esta disposiccedilatildeo u m a vez que o Estado natildeo eacute obrigado a
prestar assistecircncia religiosa e as entidades religiosas eacute que iratildeo prestaacute-la (cf M A R T I N S e
B A S T O S 1989 51 e 54 e F E R R E I R A FILHO 1990 34)
Neste sentido a Lei n 7210 de 11 de julho de 1984 que trata da execuccedilatildeo
penal estabelece e m seu art 10 que o Estado deve prestar assistecircncia aos presos e internados
incluindo os egressos objetivando prevenir o crime e orientar o retorno agrave convivecircncia e m
sociedade Tal assistecircncia consistiraacute de acordo com o art 11 e m assistecircncia material
agrave sauacutede juriacutedica educacional social e religiosa D e fato o art 41 estabelece que tais
assistecircncias satildeo direitos dos presos
D e acordo com o art 24 a assistecircncia religiosa com liberdade de culto
seraacute prestada aos presos e aos internados permitindo-se-lhes a participaccedilatildeo nos serviccedilos
organizados no estabelecimento penal bem como a posse de livros de instruccedilatildeo religiosa
O primeiro paraacutegrafo deste artigo estabelece que haveraacute local apropriado para os cultos
religiosos no estabelecimento penal o segundo paraacutegrafo dispotildee que nenhum preso ou
internado poderaacute ser obrigado a participar de atividade religiosa
Adicionalmente a Lei n 9982 de 14 de julho de 2000 que trata da prestaccedilatildeo
de assistecircncia religiosa e m estabelecimentos prisionais civis e militares e e m entidades
hospitalares puacuteblicas e privadas garante e m seu art Io o acesso aos religiosos de todas
as confissotildees aos hospitais da rede puacuteblica ou privada bem como aos estabelecimentos
prisionais civis ou militares para dar atendimento religioso aos internados desde que
em c o m u m acordo com estes ou com seus familiares no caso de doentes que jaacute natildeo mais
estejam no gozo de suas faculdades mentais Vale notar que nos termos do art 2o os
religiosos chamados a prestar assistecircncia nas entidades definidas no art Io deveratildeo e m
suas atividades acatar as determinaccedilotildees legais e normas internas de cada instituiccedilatildeo
hospitalar ou penal a fim de natildeo pocircr e m risco as condiccedilotildees do paciente ou a seguranccedila do
ambiente hospitalar ou prisional
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Duas disposiccedilotildees dessa lei foram vetadas pelo Presidente37 A primeira
disposiccedilatildeo estabelecia que a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa natildeo seria permitida se de
acordo com o hospital ou a prisatildeo houvesse risco de vida ou sauacutede para o internado ou
para o religioso O Presidente justificou esse veto argumentando que a transferecircncia do
processo decisoacuterio relativo agrave prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa aos hospitais ou prisotildees
excluindo-se o paciente ou preso bem como suas famiacutelias era contraacuterio aos incisos VI
e VII do art 5o da Constituiccedilatildeo Ademais o Presidente sustentou que a precauccedilatildeo que
motivou o dispositivo vetado jaacute estaacute assegurada pelo art 2 o da lei e m questatildeo
A segunda disposiccedilatildeo vetada pelo Presidente determinava que o interno teria
direito a pelo menos u m a visita semanal de religiosos da confissatildeo religiosa que professe
O Presidente justificou esse veto argumentando que a periodicidade das visitas deveria ser
determinada pela autoridade local levando e m consideraccedilatildeo as particularidades regionais
os usos e costumes Aleacutem disso o Presidente sustentou que era inadequado tratar hospitais
e prisotildees da mesma forma tendo e m vista as circunstacircncias especiacuteficas de cada instituiccedilatildeo
Havia tambeacutem a preocupaccedilatildeo de que o nuacutemero miacutenimo de visitas estabelecido por lei se
tornasse o nuacutemero maacuteximo permitido na praacutetica
33 Acomodaccedilatildeo em razatildeo de imperativo de consciecircncia
Nos termos do inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo ningueacutem seraacute privado
de direitos por motivo de crenccedila religiosa ou de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica salvo se as
invocar para eximir-se de obrigaccedilatildeo legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestaccedilatildeo
alternativa fixada e m lei Esse inciso entre outras coisas estaacute relacionado ao serviccedilo
militar obrigatoacuterio estabelecido pelo art 143 da Constituiccedilatildeo O paraacutegrafo Io deste artigo
dispotildee que agraves Forccedilas Armadas compete na forma da lei atribuir serviccedilo alternativo aos
que e m tempo de paz apoacutes alistados alegarem imperativo de consciecircncia entendendo-
se como tal o decorrente de crenccedila religiosa e de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica para se
eximirem de atividades de caraacuteter essencialmente militar 38
Esse eacute u m dos casos de acomodaccedilatildeo existentes no ordenamento juriacutedico
brasileiro relacionado agrave crenccedila religiosa ou agraves convicccedilotildees filosoacuteficas ou poliacuteticas Para
buscar proteccedilatildeo constitucional de mo d o a natildeo participar do serviccedilo militar compulsoacuterio
e m tempos de paz faz-se necessaacuterio provar comprometimento com ideacuteias natildeo beligerantes
a ser demonstrado por atitudes passadas que estejam e m consonacircncia com tal ideal
( M A R T I N S e B A S T O S 1989 56) Note-se que eacute possiacutevel ser excluiacutedo de atividades
essencialmente militares mas poderatildeo ser impostos serviccedilos alternativos que consistam em
57 Cf Mensagem de Veto n 960 de 14 de julho de 2000 Disponiacutevel em lthttpswwwplanaltogovbr
ccivil_03leisMensagem_Veto2000Mv0960-00htmgt Acesso em 13 fev 2009 i8 Esse dispositivo constitucional foi regulamentado pela Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 759
atividades administrativas de assistecircncia filantroacutepicas ou produtivas39 jaacute que a obrigaccedilatildeo
de servir ao Paiacutes natildeo eacute excluiacuteda ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 211) Cumpre notar que da
reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia natildeo pode resultar a privaccedilatildeo de direitos exceto
se a pessoa tambeacutem se recusar a prestar serviccedilo alternativo natildeo essencialmente militar
Nessas circunstacircncias a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo aplicaacutevel natildeo satildeo inteiramente claras
sobre as consequumlecircncias legais da recusa Alguns autores entendem que nesse caso a pessoa
que se recusou a prestar serviccedilos alternativos poderia ser privada de direitos (FERREIRA
FILHO 1994 34 e 81 e M A R T I N S e B A S T O S 1989 212)40
Constata-se aqui o que parece ser u m a grande incoerecircncia no ordenamento
juriacutedico brasileiro Enquanto e m tempos de paz as pessoas podem reivindicar imperativo
de consciecircncia para evitar serviccedilos essencialmente militares quando o Estado declara
guerra nenhum cidadatildeo poderaacute invocar crenccedilas religiosas ou convicccedilotildees filosoacuteficas ou
poliacuteticas com a finalidade de natildeo participar do serviccedilo militar41 C o m o resultado durante
o periacuteodo mais adequado e apropriado para expressar desacordo com guerras e ideais
beligerantes as pessoas natildeo tem direito de reivindicar imperativo de consciecircncia para natildeo
participar do serviccedilo militar na hipoacutetese de a Constituiccedilatildeo ser interpretada literalmente
Outro caso de acomodaccedilatildeo relacionado a crenccedilas religiosas que vale ser
mencionado eacute o uso terapecircutico do chaacute Ayahuasca em rituais religiosos A partir de
1985 o governo brasileiro comeccedilou a estudar os aspectos sociais e culturais referentes
ao uso de tal chaacute E m 23 de novembro de 2006 o Grupo Multidisciplinar de Trabalho do
Comitecirc Nacional Antidrogas do Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas42
emitiu seu relatoacuterio final reconhecendo que o uso do chaacute Ayahuasca deveria ser limitado
a rituais religiosos e m locais autorizados pela direccedilatildeo das entidades que fazem uso de
tal chaacute sendo proibido seu uso em conjunto com substacircncia ilegais Atualmente o uso
do chaacute Ayahuasca e m conformidade com as normas aplicaacuteveis eacute assegurado com base
na garantia constitucional da liberdade de consciecircncia e de crenccedila e do livre exerciacutecio de
cultos religiosos Ademais a legitimidade do uso religioso da Ayahuasca foi ratificada
como rica e ancestral manifestaccedilatildeo cultural que exatamente pela relevacircncia de seu valor
Os serviccedilos alternativos podem ser prestados e m organizaccedilotildees militares da ativa e e m oacutergatildeos de formaccedilatildeo de reservas das Forccedilas Armadas ou em oacutergatildeos subordinados aos Ministeacuterios Civis mediante convecircnios entre estes e os Ministeacuterios Militares Cf sectsect 2o e 3o do art 3o da Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991 N o entanto parece-nos que o serviccedilo militar obrigatoacuterio natildeo estaacute de acordo com os princiacutepios que norteiam a Constituiccedilatildeo no sentido de que serviccedilos alternativos natildeo deveriam ser impostos Contudo a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo Ives Granda Martins sustenta que e m tempos de guerra todos os cidadatildeos tecircm iguais deveres perante o Paiacutes (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 212) Discordamos totalmente deste posicionamento porque uma das formas mais eficazes de expressar desacordo com guerras e ideais beligerantes eacute durante o periacuteodo de guerra quando as pessoas que natildeo concordam poderiam recusar-se a prestar serviccedilos militares Contudo conforme mencionado acima a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo O Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas - S I S N A D foi instituiacutedo pela Lei n 11343 de 23 de agosto de 2006
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7(gt(l Maria Costa Neves Machado
histoacuterico antropoloacutegico e social eacute credora da proteccedilatildeo do Estado nos termos do art
2o caput da Lei n 1134306 e do art 215 sect1deg da C F 43 que dispotildee que [o] Estado
protegeraacute as manifestaccedilotildees das culturas populares indiacutegenas e afro-brasileiras e das de
outros grupos participantes do processo civilizatoacuterio nacional44
Eacute de se notar tambeacutem o recente caso no Estado de Satildeo Paulo de acomodaccedilatildeo
religiosa previsto na Lei Estadual n 13541 de 7 de maio de 2009 Tal lei proiacutebe o consumo
de cigarros cigarrilhas charutos cachimbos ou de qualquer outro produto fumiacutegeno
derivado ou natildeo do tabaco e m ambientes de uso coletivo puacuteblicos ou privados Contudo
nos termos do art 6o da referida lei essa natildeo se aplica aos locais de culto religioso em que
o uso de produto fumiacutegeno faccedila parte do ritual O u seja trata-se de mais u m caso em que
uma lei geral eacute excetuada para acomodar praacuteticas relacionadas agrave liberdade de religiatildeo e
de culto
Diferentemente das situaccedilotildees envolvendo serviccedilo militar obrigatoacuterio
o chaacute Ayahuasca e rituais religiosos que envolvem o uso de produtos fumiacutegenos foi
negada acomodaccedilatildeo quando da reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia no contexto
de frequumlecircncia escolar no Estado de Satildeo Paulo E m opiniatildeo escrita por Ada Pellegrini
Grinover publicada e m 25 de outubro de 2002 o Conselho Estadual de Educaccedilatildeo do
Estado de Satildeo Paulo entendeu que estudantes que fossem membros da Igreja Adventista
do Seacutetimo Dia estariam obrigados a frequumlentar as aulas durante o periacuteodo compreendido
entre 1800 horas de sexta-feira e 1800 de saacutebados de acordo com a Lei n 9394 de 20
de dezembro de 1996 conforme alterada embora tal frequumlecircncia seja contraacuteria agraves suas
praacuteticas religiosas u m a vez que natildeo haacute prestaccedilatildeo alternativa estabelecida em lei para tal
escusa de consciecircncia conforme fixado pelo inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo45
Adicionalmente aos casos de acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de
consciecircncia o inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo tambeacutem jaacute foi invocado para proteger
os direitos dos professores do Estado de Rio de Janeiro contra lei estadual que estabeleceu
que somente os professores credenciados pela autoridade religiosa competente estaratildeo
autorizados a ministrar as aulas de ensino religioso e m escolas puacuteblicas estaduais Para
compreender a Accedilatildeo Direta de Inconstitucionalidade - A D I N n 326804 que ainda natildeo
foi decidida pela Suprema Corte faz-se necessaacuterio analisar as disposiccedilotildees legais aplicaacuteveis
relacionadas ao ensino religioso no Brasil
Cf Relatoacuterio Final do Grupo Multidisciplinar de Trabalho disponiacutevel entre outros siacutetios em lthttp wwwsantodaimeorgcomunidadenoticiasrelfinal_conadhtmgt Acesso em 4 mar 2009 e lthttpwww ayahuascabrasilorgindexphpop=legisl01gt Acesso em 4 mar 2009 A acomodaccedilatildeo relacionada ao uso do chaacute Ayahuasca para fins religiosos nos Estados Unidos foi decidida pela Suprema Courte em Gonzales v O Centro Espirita Beneficente Uniatildeo do Vegetal 546 US 418 (2006) Cf Parecer C E E No 4422002 - C E S - Aprovado em 23102002 Disponiacutevel em lthttpwwwceesp spgovbrParecerespa_442_02htmgt Acesso em 4 mar 2009
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34 Ensino religioso facultativo
Nos termos do art 210 da Constituiccedilatildeo [sjeratildeo fixados conteuacutedos miacutenimos
para o ensino fundamental de maneira a assegurar formaccedilatildeo baacutesica c o m u m e respeito aos
valores culturais e artiacutesticos nacionais e regionais O paraacutegrafo Io desse Artigo dispotildee
que [o] ensino religioso de matriacutecula facultativa constituiraacute disciplina dos horaacuterios
normais das escolas puacuteblicas de ensino fundamental
Nesse sentido o art 33 da Lei n 9394 de 22 de julho de 1997 conforme
alterada determina que o respeito agrave diversidade cultural religiosa do Brasil eacute assegurado
no ensino religioso sendo proibida qualquer forma de proselitismo O primeiro paraacutegrafo
desse Artigo dispotildee que [o]s sistemas de ensino regulamentaratildeo os procedimentos para a
definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso e estabeleceratildeo as normas para a habilitaccedilatildeo
e admissatildeo dos professores Ademais de acordo com o segundo paraacutegrafo do referido
Artigo [o]s sistemas de ensino ouviratildeo entidade civil constituiacuteda pelas diferentes
denominaccedilotildees religiosas para a definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso46
D e modo a observar a proibiccedilatildeo constitucional de estabelecimento de
religiatildeo o ensino religioso e m escolas natildeo pode consistir no ensino de u m a religiatildeo
determinada Nesse sentido a previsatildeo constitucional tem por finalidade dar oportunidade
a estudantes que estatildeo e m idade de formaccedilatildeo de personalidade de ter acesso a informaccedilotildees
de modo que no futuro eles possam livremente escolher adotar ou natildeo adotar u m a religiatildeo
(cf S C H E R K E R K E W I T Z 2002 60)47
Levando e m consideraccedilatildeo esses dispositivos a A D I N n 326804 foi
ajuizada pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo com o intuito de
declarar que a Lei n 3459 aprovada pela Assembleacuteia Legislativa do Estado do Rio de
Janeiro e m 14 de setembro de 2000 eacute inconstitucional u m a vez que estabeleceu que (i)
religiatildeo seria ensinada na forma confessional (ii) o conteuacutedo do ensino religioso seria
atribuiccedilatildeo de diversas autoridades religiosas e (iii) apenas professores credenciados pela
autoridade religiosa competente poderiam ensinar religiatildeo e m escolas oficiais
A Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo argumenta que o
ensino religioso na forma confessional viola o art 210 da Constituiccedilatildeo que estabelece que
os valores culturais seratildeo respeitados quando do estabelecimento dos conteuacutedos miacutenimos
para o ensino fundamental e o art 33 da Lei Federal n 939497 que determina que o
ensino religioso respeitaraacute a diversidade cultural do Brasil
Cumpre notar que nos termos do art 21 do Decreto-Lei n 4244 de 9 de abril de 1942 o programa e o regime didaacutetico do ensino religioso deveria ser determinado pela autoridade religiosa De acordo com Alexandre de Moraes para que a regulamentaccedilatildeo e a execuccedilatildeo desta disposiccedilatildeo natildeo sejam inconstitucionais faz-se necessaacuterio que toda e qualquer religiatildeo possa ser ensinada nas escolas puacuteblicas O autor entende que na praacutetica isso eacute absolutamente impossiacutevel (cf M O R A E S 2003 1984-1985)
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762 Maria Costa Neves Machado
Adicionalmente a confederaccedilatildeo sustenta que a disposiccedilatildeo de acordo
com a qual o conteuacutedo do ensino religioso eacute u m a atribuiccedilatildeo das diversas autoridades
religiosas contraria o art 33 da Lei Federal n 939497 que estabelece diferentes padrotildees
para a definiccedilatildeo do conteuacutedo do ensino religioso E m conformidade com tal lei federal
os sistemas de ensino devem ouvir entidades civis de diversas religiotildees para definir
o conteuacutedo do ensino religioso A violaccedilatildeo eacute demonstrada com base no fato de que o
conceito de autoridade religiosa - que implica u m a estrutura administrativa e hieraacuterquica
como aquelas presentes nas Igrejas Catoacutelicas Presbiterianas e Judaicas - natildeo eacute parte da
tradiccedilatildeo de algumas religiotildees que tem origem Evangeacutelica ou afro-brasileira
A A D I N ainda natildeo foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal De qualquer
forma os argumentos apresentados pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores em
Educaccedilatildeo - e pelos vaacuterios amicus curiae admitidos no processo - parecem ser coerentes
com a Constituiccedilatildeo Federal e aptos a derrubar a Lei Estadual n 3459
N o Estado de Satildeo Paulo o ensino religioso previsto no art 33 da Lei n
939497 foi regulamentado na Deliberaccedilatildeo do Conselho Estadual de Educaccedilatildeo - CEE
n 162001 com fundamento na Indicaccedilatildeo C E E n 07 aprovada e m 25 de julho de 2001
de acordo com a qual o ensino religioso deve ser enfocado na perspectiva constitucional
de promoccedilatildeo da cidadania e da dignidade especialmente na funccedilatildeo social da educaccedilatildeo
e m geral de modo que deve ser enfatizada a reflexatildeo sobre a cidadania e as praacuteticas a ela
pertinentes Assumindo que natildeo haacute conhecimento futuro e vida sem a competecircncia de
conviver com as diferenccedilas a Indicaccedilatildeo C E E n 072001 reconhece que satildeo bem-vindos
todos os projetos educacionais (aiacute se podendo incluir o ensino religioso) que visam direta
ou indiretamente o trabalho comunitaacuterio a conscientizaccedilatildeo da responsabilidade pessoal
e social e que estimulem e restaurem os valores humanos de compromisso moral e eacutetico
auxiliando a compreensatildeo do h o m e m e o autoconhecimento Nesse sentido de acordo com
referida indicaccedilatildeo o ensino religioso nas escolas deve antes de tudo fundamentar-se nos
princiacutepios da cidadania e do entendimento do outro Assim o C E E recomendou que o
ensino religioso fosse tratado como tema transversal por meio da implementaccedilatildeo de uma
proposta de abordagem filosoacutefica que permitisse a reflexatildeo sobre valores e princiacutepios eacuteticos e
o conhecimento da histoacuteria das religiotildees Tambeacutem no Estado de Satildeo Paulo a implementaccedilatildeo
do ensino religioso foi arduamente debatida e criticada especialmente em razatildeo da
problemaacutetica questatildeo do estabelecimento de religiatildeo vedado pela Constituiccedilatildeo de 198848
Vide entre outros GIUMBELLI Emerson Ensino religioso em escolas puacuteblicas no Brasil notas de pesquisa Debates do N E R (UFRGS) v 14 p 50-68 2009 CURY Carlos Roberto Jamil Ensino religioso na escola puacuteblica o retorno de uma polecircmica recorrente Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 27 p 183-213 setdez 2004 LUI Janayna de Alencar Entre crentes e pagatildeos ensino religioso em Satildeo Paulo Cadernos de Pesquisa v 37 n 131 p 333-349 maioago 2007 R A N Q U E T A T JUacuteNIOR Ceacutesar Do confessional ao plural uma anaacutelise sobre o novo modelo de ensino religioso nas escolas brasileiras Revista Diaacutelogo Educaccedilatildeo Curitiba v 8 n 23 p 289-305 janabr 2008
R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010
Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 763
Neste item a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil foi examinada
com a finalidade de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota u m princiacutepio de
toleracircncia ou de respeito As normas relacionadas agrave garantia da liberdade de consciecircncia
e de crenccedila bem como ao livre exerciacutecio de cultos religiosos agrave proteccedilatildeo dos locais de
adoraccedilatildeo agrave proibiccedilatildeo do estabelecimento de religiatildeo agrave garantia de assistecircncia religiosa
e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva agrave acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de
consciecircncia e ao ensino religioso facultativo todas foram analisadas de modo que fosse
possiacutevel concluir se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia ou
do respeito
D e acordo com tal anaacutelise o ordenamento juriacutedico brasileiro parece tratar a
religiatildeo e m conformidade com o princiacutepio do respeito Isso porque pessoas religiosas e natildeo
religiosas podem entrar no espaccedilo puacutebico e m iguais condiccedilotildees sendo que a faculdade de
buscar a finalidade uacuteltima da vida eacute respeitada pelo Estado Nesse sentido o ordenamento
juriacutedico brasileiro garante a liberdade de consciecircncia e de crenccedila o livre exerciacutecio de
cultos religiosos e a proteccedilatildeo dos locais de adoraccedilatildeo Adicionalmente enquanto de u m
lado nenhuma religiatildeo pode ser estabelecida pelo Estado pessoas religiosas podem
reivindicar imperativo de consciecircncia bem como receber assistecircncia religiosa e ensino
religioso se essa for a sua escolha
Isso demonstra que todos os indiviacuteduos de acordo com o ordenamento
juriacutedico brasileiro devem entrar no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais e que o Estado eacute
obrigado a fornecer condiccedilotildees para que pessoas religiosas e natildeo religiosas possam buscar
a finalidade uacuteltima da vida se essa for sua escolha respeitando e m todos os indiviacuteduos a
faculdade de realizar tal busca
4 Conclusatildeo
Inicialmente foi examinada neste artigo a diferenccedila entre o princiacutepio da
toleracircncia e o princiacutepio do respeito no que se refere ao tratamento legal de questotildees de
consciecircncia Posteriormente a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no ordenamento
juriacutedico brasileiro foi analisada com a finalidade de verificar qual desses dois princiacutepios eacute
adotado Finalmente conclui-se que o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio
do respeito pela faculdade dos indiviacuteduos de buscar pela finalidade uacuteltima da vida sendo o
Estado obrigado a garantir condiccedilotildees adequadas para as pessoas exercerem tal faculdade
de acordo com suas escolhas autocircnomas de modo que todos os indiviacuteduos possam entrar
no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais
Satildeo Paulo dezembro de 2010
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 745
Neste sentido o autor apresenta trecircs argumentos para a toleracircncia de opiniotildees
e praacuteticas religiosas os quais estatildeo divididos e m duas grandes classes argumentos morais
e epistemoloacutegicos
O primeiro argumento moral examinado eacute deontoloacutegico ilustrado pelo
pensamento de John Rawls de acordo com o qual a toleracircncia eacute uma consequumlecircncia do
princiacutepio da igual liberdade de consciecircncia (cf LEITER 2009 7-8) O segundo argumento
moral analisado eacute consistente com a tradiccedilatildeo utilitarista D e acordo com este argumento
a toleracircncia eacute necessaacuteria para maximizar o bem estar humano que resultaria da garantia
de u m espaccedilo privado onde os indiviacuteduos poderiam livremente decidir o que acreditar e
como viver (LEITER 2009 9)
Adicionalmente aos argumentos morais Leiter apresenta baseado nas
ideacuteias de John Stuart Mill argumentos epistemoloacutegicos para a toleracircncia E m termos
gerais estes argumentos focam na importacircncia da toleracircncia para o conhecimento e para
a descoberta da verdade As principais suposiccedilotildees desses argumentos satildeo que a verdade
contribui agrave valiosa finalidade moral da utilidade e que a toleracircncia de crenccedilas e praacuteticas
divergentes contribui para o conhecimento da verdade (LEITER 2009 IO)4
Leiter conclui - apoacutes examinar se a religiatildeo eacute especial do ponto de vista do
princiacutepio da toleracircncia (cf Leiter 2009 14-26) - que os argumentos mencionados acima
para a toleracircncia justificam a proteccedilatildeo legal da liberdade de consciecircncia que abrange a
toleracircncia de crenccedilas religiosas Entretanto o autor entende que natildeo haacute nenhuma razatildeo
moral para destacar questotildees religiotildees das demais questotildees de consciecircncia a fim de lhe dar
proteccedilatildeo legal especial (cf LEITER 2009 32)
D e acordo com Joseph Raz haacute u m argumento para a toleracircncia que decorre
da suposiccedilatildeo - que ele natildeo aceita - que para os governos respeitarem a autonomia
individual esses natildeo devem adotar nenhuma concepccedilatildeo sobre a vida boa Neste sentido
o respeito pela autonomia dos indiviacuteduos requereria u m princiacutepio de toleracircncia que exige
a exclusatildeo de ideais da poliacutetica E m outras palavras a toleracircncia e m estados liberais
requereria o anti-perfectionismo (cf R A Z 1987 155-156) Entretanto o autor entende
que o princiacutepio da toleracircncia baseado na autonomia individual fornece a fundaccedilatildeo moral
another group (call it the disfavored group) believes or does where that dominant group has the means at its disposal to effectively and reliably change or end the disfavored groups believes or practices and yet still the dominant group acknowledges that there are moral or epistemic reasons (that is reasons pertaining to knowledge or truth) to permit the disfavored group to keep on believing and doing what it does A esse respeito Celso Lafer com base no pensamento de Norberto Bobb io entende que a toleracircncia pode ser sustentanda tanto pelo criteacuterio eacutetico do respeito pela singularidade do Outro quanto pela avaliaccedilatildeo epistemoloacutegica de qual a verdade natildeo eacute una mas tem muacuteltiplas faces (LAFER 2007) Para entender a visatildeo de Bobbio sobre a toleracircncia vide B O B B I O Norberto Toleracircncia e verdade Elogio da serenidade e outros escritos morais Traduccedilatildeo de Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo Paulo UNESP 2002 p 149-155
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746 Maria Costa Neves Machado
para o princiacutepio do dano - que eacute considerado a uacutenica base para o uso de poder coercitivo
pela lei - natildeo para o anti-perfectionismo
Raz argumenta que u m compromisso c o m a autonomia envolve o
compromisso com o pluralismo moral ( R A Z 1987 157)5 que de acordo com o autor
deve ser compreendido como a visatildeo de que haacute vaacuterias formas e vaacuterios estilos de vida
que exemplificam virtudes diferentes e que satildeo incompatiacuteveis ( R A Z 1987 159)6 Ele
sustenta que
o pluralismo moral competitivo do tipo que eacute necessaacuterio para o respeito pela autonomia gera conflitos entre pessoas que buscam valiosas mas incompatiacuteveis formas de vida Dada a necessidade de tomar disponiacuteveis tais formas de vida a fim de garantir a autonomia faz-se necessaacuterio restringir as accedilotildees e as atitudes das pessoas em tais conflitos por meio do princiacutepio da toleracircncia O dever de tolerar eacute u m aspecto do dever de respeito pela autonomia (RAZ 1987 165)7
Assim de acordo com Raz a fim de respeitar a autonomia individual eacute
necessaacuterio adotar u m princiacutepio de toleracircncia que consista na
restriccedilatildeo de uma atividade provavelmente indesejaacutevel ao seu receptor ou de uma inclinaccedilatildeo de assim agir que eacute em si mesma moralmente valiosa e que eacute baseada em um desagrado ou em u m antagonismo dessa pessoa ou de uma caracteriacutestica de sua vida refletindo u m julgamento de que esses representam limitaccedilotildees ou deficiecircncias no outro com a finalidade de deixar que o outro tenha sua maneira ou para que ele ganhe ou mantenha alguma vantagem (Como indicado a mim por P M S O Hacker a compaixatildeo eacute agraves vezes u m exemplo especial de toleracircncia U m indiviacuteduo pode tolerar a partir da compaixatildeo) (RAZ 1987 163)89
Traduccedilatildeo livre da autora a commitment to autonomy entails commitment to moral pluralism Traduccedilatildeo livre da autora there are various forms and styles of life which exemplify different virtues and which are incompatible Traduccedilatildeo livre da autora competitive moral pluralism ofthe kind which is required by respect for autonomy generates conflicts between people pursuing valuable but incompatible forms of life Given the necessity to make those forms of life available in order to secure autonomy there is a need to curb peoples actions and their attitudes in those conflicts by principies of toleration The duty of toleration is an aspect ofthe duty of respect for autonomy Traduccedilatildeo livre da autora the curbing of an activity likely to be unwelcome to its recipient or of an inclination so to act which is in itself morally valuable and which is based on a dislike or an antagonism of that person or of a feature of his life reflecting a judgment that these represent limitations or deficiencies in him in order to let that person have his way or in order for him to gain or keep some advantage (As pointed out to m e by P M S Hacker mercy is sometimes a special case of toleration One can tolerate out of mercy) Nesse sentido Raz argumenta que a [t]oleracircncia implica na supressatildeo ou na contenccedilatildeo de uma inclinaccedilatildeo ou desejo de perseguir molestar causar dano ou reagir de uma maneira indesejada a uma pessoa (RAZ 1987 162) (traduccedilatildeo livre da autora [tjoleration implies the suppression or containment of an inclination or desire to persecute harass harm or react in an unwelcome way to a person)
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 141
Tambeacutem sustentando a abordagem da toleracircncia - em oposiccedilatildeo agrave abordagem
do respeito - Simon Blackburn argumenta que natildeo haacute nenhuma razatildeo para que algueacutem
respeite u m sistema de crenccedilas que esta pessoa natildeo compartilhe (cf B L A C K B U R N 2009
1) Ele entende que a palavra respeito pode significar a simples ausecircncia de interferecircncia
mas que tambeacutem pode significar admiraccedilatildeo reverecircncia ou deferecircncia (cf B L A C K B U R N
2009 2) De acordo com estes niacuteveis o autor afirma que as pessoas podem respeitar
outras pessoas que possuam crenccedilas falsas ou irracionais somente num sentido miacutenimo de
toleracircncia10 U m a vez que noacutes reconhecemos aquelas crenccedilas como falsas ou irracionais
natildeo eacute possiacutevel respeitaacute-las pelo menos natildeo como decorrecircncia do fato de que algueacutem
acredita nelas (cf B L A C K B U R N 2009 3 e 7) E m conformidade com Blackburn
acreditar numa crenccedila falsa natildeo concede a ningueacutem o direito ao respeito Na medida em que eu natildeo posso compartilhar de sua crenccedila eu natildeo tenho nenhuma razatildeo para respeitaacute-lo por acreditar nela - pelo contraacuterio na verdade (BLACKBURN 2009 16)
O autor argumenta que eacute inconsistente com qualquer concepccedilatildeo apropriada
de crenccedila - a qual implica que haacute u m contraste entre certo e errado - pensar que essa eacute
uma questatildeo exclusivamente pessoal e que qualquer crenccedila eacute tatildeo boa quanto qualquer
outra N a verdade ele nega que crenccedilas estejam livres de controle normativo e que a
desigualdade entre crenccedilas seja uma violaccedilatildeo de direitos de uma pessoa Para ele ningueacutem
por u m momento acredita nesta igualdade promiacutescua de crenccedilas na vida quotidiana
( B L A C K B U R N 2009 3)12
Parece que Blackburn estaacute criticando uma concepccedilatildeo de respeito para
crenccedilas religiosas que signifique a admiraccedilatildeo de todas as crenccedilas apenas porque elas
satildeo detidas por uma pessoa Entretanto o respeito requerido pela liberdade religiosa natildeo
corresponde a u m sentimento de admiraccedilatildeo pelas crenccedilas e praacuteticas religiosas especiacuteficas
as quais noacutes podemos natildeo compartilhar mas a u m respeito pela capacidade potencial de
todos os seres humanos de fazerem escolhas autonomamente conforme seraacute demonstrado
pela abordagem de Martha Nussbaum
O problema fundamental com o princiacutepio da toleracircncia eacute que este deixa
o tolerado desconfortaacutevel em pelo menos trecircs maneiras (cf G R E E N 2008 4-8) C o m o
demonstrado por Leslie Green a toleracircncia eacute limitada e m seu escopo eacute incompleta e
10 Para o autor existe tambeacutem uma graduaccedilatildeo de respeito referente a pessoas que possuem crenccedilas falsas no sentido de que respeitamos mais algumas pessoas das quais discordamos do que outras (cf B L A C K B U R N 2009 6)
11 Traduccedilatildeo livre da autora holding a false belief does not give anyone a title to respect Insofar as I cannot share your belief I have no reason to respect you for holding it - quite the reverse in fact
12 Traduccedilatildeo livre da autora nobody for a moment believes in this promiscuous equality of belief in everyday life
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748 Maria Costa Neves Machado
parcial e pode ser considera principalmente c o m o questatildeo de descriminalizaccedilatildeo de
condutas1314 M a s natildeo somente o escopo do princiacutepio da toleracircncia pode estar errado
seus fundamentos tambeacutem podem u m princiacutepio de toleracircncia pode ser adotado por razotildees
morais suspeitas15 Aleacutem disso se u m princiacutepio de toleracircncia for sustentado da maneira
errada - aqueles que toleram deixam claro que prefeririam natildeo ser tolerantes - aqueles
que satildeo tolerados podem tambeacutem sentir-se desconfortaacuteveis ( G R E E N 2008 6-7)16
Entretanto m e s m o que u m sistema legal pudesse construir u m princiacutepio de
toleracircncia que superasse as falhas mencionadas acima aqueles que satildeo tolerados ainda se
sentiriam desconfortaacuteveis porque seria sempre melhor se natildeo tivessem que ser tolerados
e sujeitados ao poder de toleracircncia de outra pessoa ( G R E E N 2008 6-7)n Nesse sentido
Green sustenta que
Quem quer viver da graccedila e do favor dos poderosos Isto eacute especialmente verdadeiro quando tolerados natildeo tecircm nenhum poder similar sobre seus toleradores A esse respeito a toleracircncia compartilha algo com outras relaccedilotildees desejaacuteveis mas assimeacutetricas como oferecer misericoacuterdia ou sentir piedade que pode tambeacutem ser incocircmoda para seus
13 E m relaccedilatildeo agrave toleracircncia de minorias sexuais Leslie Green ressalta que exceto pela descriminalizaccedilatildeo
haacute pouca evidecircncia que a natildeo-conformidade sexual seja amplamente tolerada nos Estados Unidos onde
eleiccedilotildees ainda podem ser perdidas ou ganhas dependendo da questatildeo a respeito do que fazer sobre gays e
onde e m aacutereas como direito do trabalho e de famiacutelia minorias sexuais continuam a vivenciar tratamento
duro atualmente raro em democracias liberais (GREEN 2008 5) (traduccedilatildeo livre da autora apart from
decriminalization there is slim evidence that sexual non-conformity is widely tolerated in the United States
where elections can still be won or lost on the issue of what to do about the gays and where in aacutereas from
employment to family law sexual minorities continue to experience harsh treatment now rare in liberal
democracies) 14 Natildeo obstante o autor alerta que a descriminalizaccedilatildeo de condutas pode natildeo resultar da adoccedilatildeo de u m princiacutepio
de toleracircncia - faz-se necessaacuterio examinar as razotildees pelas quais determinada conduta foi descriminalizada
(cf G R E E N 2008 5) 15 Por exemplo o autor afirma que seria preocupante se u m governo tolerasse o ato de fumar porque seus
atuaacuterios descobriram que fumantes morrem mais cedo o suficiente para aumentar o saldo liacutequido da
previdecircncia (traduccedilatildeo livre da autora) Ademais ele menciona que se a homossexualidade eacute tolerada
somente porque e na medida e m que existem outras condutas mais seriamente erradas para reprimir gays
americanos justamente sentiriam u m mal-estar (cf G R E E N 2008 6) (traduccedilatildeo livre da autora) 16 Identificando tambeacutem os problemas decorrentes do princiacutepio da toleracircncia Miguel Reale Juacutenior (2008
176) com base nas ideacuteias de Javier Lucas afirma que a retoacuterica da toleracircncia natildeo acolhe a criaccedilatildeo de uma
cultura fruto do diaacutelogo intercultural e ignora os problemas de inclusatildeo do diferente para se estabelecer a
igualdade na diversidade Nesse sentido Reale Juacutenior defende que o conceito liberal de toleracircncia deve
ser complementado com o conceito social de solidariedade destacando que solidariedade significa natildeo
apenas aceitaccedilatildeo da diferenccedila mas como realccedila Judith Martins-Costa uma aceitaccedilatildeo qualificada de cunho
normativo pela qual se admite que o diferente pode receber maior tutela ou tutela especiacutefica que atenda agrave
sua diferenccedila concreta como membro da comunidade ( R E A L E JUacuteNIOR 2008 176-177) 17 E m 1791 Thomas Paine notou que toleracircncia natildeo eacute o oposto de intoleracircncia mas a sua imitaccedilatildeo Ambos
satildeo despotismos U m assume para si o direito de reter a liberdade de consciecircncia e o outro de concedecirc-la
(paine 1791) Madison tambeacutem chamou a atenccedilatildeo das pessoas para o fato de que a palavra toleracircncia era
muito relutante sugerindo benevolecircncia legislativa ao inveacutes de direito ( N U S S B A U M 2008 90) (traduccedilatildeo livre da autora)
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 749
receptores E quando noacutes consideramos as pessoas natildeo como mocircnadas mas como membros de grupos minoritaacuterios entatildeo o fato da toleracircncia pode ser um lembrete infeliz da distribuiccedilatildeo de poder social (GREEN 2008 IO)18
Assim o princiacutepio da toleracircncia reflete tambeacutem a diferenccedila de poder entre
tolerados e toleradores E isto causa mais u m a vez desconforto nos tolerados no sentido
de que estes precisam contar com a benevolecircncia dos poderosos quando o poder eacute exercido
e quando a conduta do tolerado eacute julgada pelos poderosos (cf G R E E N 2008 8-12)
Green entende que entre as trecircs maneiras que geralmente satildeo chamadas
para complementar o princiacutepio da toleracircncia quais sejam aceitaccedilatildeo19 reconhecimento20
e compreensatildeo21 a uacuteltima eacute a adequada O autor assinala que u m a melhor compreensatildeo
pode ampliar a toleracircncia pode fazer com que as pessoas tenham menos m aacute vontade
pode mudar a disposiccedilatildeo para a toleracircncia incentivando pessoas a revisitar julgamentos
e pode tambeacutem ser u m a boa maneira de evitar razotildees erradas para a toleracircncia Essa
complementaccedilatildeo pode deixar aqueles que satildeo tolerados mais confortaacuteveis porque eles
sabem que os toleradores estatildeo fazendo esforccedilos de boa-feacute para compreender C o m o
consequumlecircncia os tolerados sentem que satildeo considerados como parte da convivecircncia
humana (cf G R E E N 2008 21) Green conclui que
Compreender o que a conduta reprovada significa para o agente e como se encaixa em uma vida humana pode fazer-nos revisitar e agraves vezes revisar aquele julgamento Pode complementar a toleracircncia pode tomar-nos toleradores melhores especialmente quando nos daacute uma ideacuteia do que eacute estar na extremidade afiada de uma vareta Esse tipo da compreensatildeo deixa espaccedilo para discordacircncias em torno de valores e deixa espaccedilo para correccedilatildeo de erros Natildeo
18 Traduccedilatildeo livre da autora W h o wants to live by grace and favor ofthe powerful This is especially true when the tolerated have no similar power over their tolerators In this respect toleration shares something with other desirable but asymmetric relations like offering mercy or taking pity which can also be uncomfortable for their recipients And when w e consider people not as monads but as members of minority groups then the fact of toleration may be an unhappy reminder ofthe social distribution of power
19 Se o princiacutepio da toleracircncia fosse complementado pela aceitaccedilatildeo aqueles que praticam atos ou possuem crenccedilas que satildeo toleradas podem (i) assumir abertamente suas praacuteticas e crenccedilas sem que lhes seja imposta nenhuma consequumlecircncia adversa ou (ii) demandar acomodaccedilatildeo para suas praacuteticas e crenccedilas (cf G R E E N 2008 12-15)
20 Se o princiacutepio da toleracircncia fosse complementado pelo reconhecimento praacuteticas e crenccedilas seriam toleradas de bom grado ateacute por aqueles que pensam que tais praacuteticas e crenccedilas satildeo supersticiosas sexistas etc e aqueles que toleram veriam os tolerados como eles mesmos se vecircem Nesse sentido reconhecimento exige natildeo apenas que os valores do tolerado sejam compartilhados pelos toleradores mas que a identidade do tolerado seja reconhecida (cf G R E E N 2008 15-19)
21 Se o princiacutepio da toleracircncia fosse complementado pelo entendimento toleradores deveriam tentar recriar ou capturar na medida do possiacutevel o sentido que accedilotildees e siacutembolos tecircm para seus agentes (GREEN 2008 20-25) (traduccedilatildeo livre da autora attempt to capture or recreate to the extent that w e can the meanings that acts and symbols have for their agents)
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750 Maria Costa Neves Machado
Xrdiz a aceitaccedilatildeo ou o reconhecimento Mas o esforccedilo para compreender afirma nossa convivecircncia com os objetos de nossa toleracircncia Sem isso a toleracircncia eacute mais pobre - e mais dura - do que precisaria ser (GREEN 2008 27)22
Embora Green reconheccedila as principais falhas do princiacutepio da toleracircncia
parece que sua complementaccedilatildeo por u m a atitude compreensiva como sugerida pelo autor
ainda natildeo eacute suficiente para garantir a igualdade entre cidadatildeos e para proteger a dignidade
humana em democracias liberais
Tambeacutem criticando a abordagem da toleracircncia Heiner Bielefeldt argumenta
que a crise normativa resultante do pluralismo cultural deve ser endereccedilada pelo
reconhecimento de tal pluralismo natildeo pela sua toleracircncia C o m o afirmado por Bielefeldt
o problema da toleracircncia eacute que aqueles que tecircm o poder de tolerar tambeacutem tecircm o poder
de natildeo tolerar e aqueles que consideram que tem o poder para tolerar pretendem julgar
as questotildees de consciecircncia O autor sustenta que somente apoacutes a superaccedilatildeo dos conceitos
tradicionais de toleracircncia o pluralismo religioso e poliacutetico natildeo seraacute considerado uma perda
infeliz do centralismo religioso e da cosmovisatildeo da sociedade tradicional O pluralismo
religioso e poliacutetico seratildeo entatildeo considerados uma expressatildeo da responsabilidade autocircnoma
dos seres humanos que desejam ser respeitados e m suas convicccedilotildees e ter direitos iguais
(cf BIELEFELDT 2000 50)
D o mesmo modo Martha Nussbaum argumenta e m favor do princiacutepio
do respeito pela consciecircncia (Respect-Conscience Principie)23 de acordo com o qual
a esfera puacuteblica deve respeitar os diferentes comprometimentos religiosos de todos os
cidadatildeos e deve garantir u m espaccedilo onde os cidadatildeos possam agir consistentemente com
suas consciecircncias de forma que todos os cidadatildeos possam entrar no espaccedilo puacuteblico em
condiccedilotildees iguais ( N U S S B A U M 2008 22-23)
Nussbaum entende que tal princiacutepio natildeo requer a aprovaccedilatildeo de
reivindicaccedilotildees teoloacutegicas e eacuteticas de nenhuma religiatildeo pela esfera puacuteblica ou por cidadatildeos
individualmente (cf N U S S B A U M 2008 23) Neste sentido ela sustenta que o [r]
espeito por concidadatildeos natildeo significa dizer ou acreditar que suas visotildees religiosas estatildeo
corretas ou mesmo que todas as religiotildees satildeo caminhos vaacutelidos ao entendimento da vida
( N U S S B A U M 2008 23)24 Assim ela conclui que
Traduccedilatildeo livre da autora Understanding what the disapproved conduct means for the agent and how it fits into a human life may make us revisit and sometimes revise that judgment It may supplement torelation it may make us better tolerators especially when it gives us a grasp of what it is to be at the sharp end of a particular stick That kind of understanding leaves room for disagreement in value and room for correction of error It does not bring acceptance or recognition But the effort to understand affirms our fellowship with the objects of our toleration Without that toleration is poorer - and harder - than it need to be A autora expressamente afirma sua preferecircncia pelo termo respeito ao inveacutes do termo toleracircncia porque entende que o uacuteltimo eacute muito fraco e relutante (cf N U S S B A U M 2008 24) Traduccedilatildeo livre da autora [r]espect for fellow citizens does not mean saying or believing that their religious
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 751
O princiacutepio do respeito pela consciecircncia significa apenas respeitaacute-los como
seres humanos com suas proacuteprias escolhas para fazer em mateacuterias religiosas e u m direito
de fazer livremente essas escolhas ( N U S S B A U M 2008 23)25
Assim eacute a faculdade de buscar a finalidade uacuteltima da vida que tem valor e
que deve ser respeitada independentemente de os indiviacuteduos a estarem usando de forma
boa ou ruim Esta abordagem natildeo implica que encontrar a finalidade uacuteltima da vida tem
valor intriacutenseco como resultado as visotildees ceacuteticas e anti-metafiacutesicas tambeacutem merecem ser
respeitadas ( N U S S B A U M 2008 168-169)
D e acordo com Nussbaum o Estado natildeo deve endossar nenhuma religiatildeo
ou a natildeo religiatildeo sobre a religiatildeo E m consequumlecircncia nenhuma indicaccedilatildeo puacuteblica de acordo
ou desacordo devem ser feitos As instituiccedilotildees puacuteblicas natildeo devem ter conteuacutedo religioso
- embora a autora assuma que teratildeo conteuacutedo eacutetico - porque elas devem ser fundadas
em princiacutepios tais como o igual respeito que todos os cidadatildeos podem compartilhar
independentemente de sua religiatildeo ( N U S S B A U M 2008 23)
Cumpre notar que essa abordagem natildeo implica uma visatildeo poacutes-modernista26
de completa relatividade de valores Nesse sentido Nussbaum esclarece que o princiacutepio
do respeito pela consciecircncia natildeo implica que todas as religiotildees e visotildees da vida devem
ser (igualmente) respeitadas pelo governo ( N U S S B A U M 2008 24)27 Se uma visatildeo
contradiz ou ameaccedila as fundaccedilotildees da ordem constitucional e a igualdade dos cidadatildeos
a comunidade pode razoavelmente se opor e desfavorecer tal visatildeo (cf N U S S B A U M 2008 24)
Assim na linha exposta por Nussbaum embora como regra geral crenccedilas
e praacuteticas religiosas devam ser respeitadas algumas accedilotildees e discursos natildeo faratildeo jus a
igual respeito e tratamento se ameaccedilarem os mais importantes valores da comunidade
poliacutetica sendo certo que Estados democraacuteticos liberais devem regular e limitar tais accedilotildees
e discursos
Alguns autores sugeriram limites a serem impostos por Estados democraacuteticos
liberais Nussbaum por exemplo entende que
views are correct or even that ali religions are valid routes to understanding life Traduccedilatildeo livre da autora The Respect-Conscience Principie just means respecting them as human beings with their own choices to make in religious matters and a right to make those choices freely Embora natildeo haja consenso sobre seu conteuacutedo o termo poacutes-modernismo foi definido a partir de seu uso por Jean Baudrillard Jean-Franccedilois Lyotard Fredric Jameson entre outros e eacute utilizado aqui para designer o contexto histoacuterico e socioloacutegico particular caracterizado pelo paradigma da transiccedilatildeo da modernidade que comeccedilou no final do seacuteculo X X As principais caracteriacutesticas do paradigma poacutes-moderno satildeo a ausecircncia de consenso o fim das metanarrativas e de qualquer pretensatildeo de teorias universais (cf BITTAR 2005 96) Para uma visatildeo socioloacutegica mais detalhada do poacutes-modernismo confira Gisela B Taschner A poacutes-modernidade e a sociologia in Revista USP Satildeo Paulo Coordenadoria de Comunicaccedilatildeo Social (CCS) da Universidade de Satildeo Paulo n 42 junago 1999 p 6-19 Traduccedilatildeo livre da autora does not imply that ali religions and views of life must be (equally) respected by the government
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752 Maria Costa Neves Machado
Se as pessoas buscam torturar crianccedilas ou escravizar minorias citando sua religiatildeo como sua razatildeo deve-se resistir a suas reivindicaccedilotildees mesmo que elas possam ser sinceras Se eles simplesmente falam em favor da escravidatildeo ou da tortura sua liberdade de expressatildeo deve ser protegida ateacute o ponto em que o discurso se transforme em uma ameaccedila Eles natildeo poderatildeo entretanto apresentar suas ideacuteias na esfera poliacutetica em bases iguais com outras ideacuteias uma vez que a Constituiccedilatildeo (no caso da escravidatildeo) e a lei criminal (no caso da tortura) proiacutebem as praacuteticas que eles recomendam (NUSSBAUM 2008 24)28
D e acordo com Juumlrgen Habermas as sociedades multiculturais somente
podem tolerar tradiccedilotildees que aceitem a discordacircncia razoaacutevel que ele chama de tradiccedilotildees
natildeo-fundamentalistas Habermas entende que somente as formas de vida tolerantes que
aceitam a discordacircncia razoaacutevel satildeo capazes de coexistir com o reconhecimento dos
membros de culturas diferentes ( H A B E R M A S 1994 151)29 D e m o d o similar Marcelo
Neves argumenta que a intoleracircncia eacutetnica e o fuacutendamentalismo religioso satildeo contra o
pluralismo requerido pela esfera puacuteblica e devem ser juriacutedica e politicamente restringidos
(NEVES 2006 136 222 223 e Neves 2000 41)
Para Miguel Reale Juacutenior o reconhecimento de setores diferentes da
sociedade (tais como minorias eacutetnicas ou classes especiais de pessoas) de seus direitos
e de suas especificidades - a partir do avanccedilo do conceito liberal de toleracircncia para o
conceito social de solidariedade - bem como a assunccedilatildeo da responsabilidade por sua
integraccedilatildeo social natildeo importa e m abrir m atilde o de valores essenciais da pessoa humana
afirmados e conquistados ao longo do processo histoacuterico ( R E A L E JUacuteNIOR 2008
177) Sustentando que pluralismo natildeo significa arbitrismo no sentido de aceitaccedilatildeo de
qualquer organizaccedilatildeo social Reale Juacutenior idem ibidem) destaca que o pluralismo deve
ser limitado pelas conquistas essenciais acerca da dignidade humana conquistas essas que
satildeo historicamente impostergaacuteveis
C o m u m a abordagem diferente Will Kymlicka sustenta que os liberais
deveriam tentar acomodar grupos natildeo liberais desde que estes natildeo estejam buscando o
apoio da sociedade como u m todo e natildeo queiram impor seus valores a outros grupos Para
Traduccedilatildeo livre da autora [i]f people seek to torture children or to enslave minorities citing their religion as their reason their claims must be resisted even though they m a y be sincere If they simply talk in favor of slavery or torture their freedom to speak must be protected up to the point at which speech becomes a threat They will not however be able to present their ideas in the political sphere on an equal basis with other ideas since the Constitution (in the case of slavery) and the criminal law (in the case of torture) forbid the practices they recommend
Para u m a visatildeo completa sobre o entendimento de Habermas a respeito de toleracircncia religiosa vide Juumlrgen Habermas Entre naturalismo e religiatildeo estudos filosoacuteficos traduccedilatildeo de Flaacutevio Beno Siebeneichler Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 2007 especialmente Item IV - Toleracircncia p 279-392
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 753
o autor a maioria das pessoas entende que se u m a minoria nacional estaacute oprimindo outros
grupos u m a intervenccedilatildeo contra a agressatildeo eacute justificaacutevel Entretanto se a minoria somente
visa guiar sua comunidade de acordo com princiacutepios natildeo liberais e natildeo estaacute interessada e m
estabelecer regras para outros grupos ou e m privar esses outros grupos de seus recursos
parece errado impor valores liberais (cf K Y M L I C K A 1997 154-155) Assim Kymlicka
adota u m a visatildeo de acordo com a qual a toleracircncia liberal deve proteger os direitos dos
indiviacuteduos de discordar de seus grupos assim como o direito dos grupos de natildeo serem
perseguidos pelo Estado enquanto que o poder de grupos natildeo liberais de restringir a
liberdade de seus membros e o poder de Estados natildeo liberais de restringir a liberdade de
culto devem ser limitados
Neste item foram examinados (i) a diferenccedila entre o princiacutepio da toleracircncia
e o princiacutepio do respeito no que se refere agrave liberdade religiosa e (ii) os limites para a
adoccedilatildeo do princiacutepio do respeito por democracias liberais A partir dessa anaacutelise o
ordenamento juriacutedico brasileiro e a regulaccedilatildeo da liberdade religiosa seratildeo estudados no
item subsequente
3 Liberdade religiosa no Brasil
A regulaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil eacute examinada neste item com
o intuito de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia
ou do respeito Satildeo analisados os dispositivos da Constituiccedilatildeo Federal que tratam
da liberdade religiosa quais sejam aqueles relacionados ao livre exerciacutecio de cultos
religiosos agrave proteccedilatildeo aos locais de culto e suas liturgias (art 5o inc VI) agrave garantia de
prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa a pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva
(art 5o inc VII) agrave acomodaccedilatildeo juriacutedica e m razatildeo de imperativo de consciecircncia (art 5o
inc VIII) agrave vedaccedilatildeo ao estabelecimento de religiatildeo pelo Estado (art 19) e ao ensino
religioso facultativo (art 210) bem como a legislaccedilatildeo federal relacionada O estudo ora
realizado natildeo pretende analisar de forma exaustiva as leis estaduais anaacutelise esta que
quando realizada serve apenas para ilustrar a aplicaccedilatildeo das normas constitucionais
O dispositivo central da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil de
1988 que serve de base para a proteccedilatildeo da liberdade religiosa eacute seu art 5o o qual estabelece
que [t]odos satildeo iguais perante a lei sem distinccedilatildeo de qualquer natureza garantindo-se
aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Paiacutes a inviolabilidade do direito agrave vida
agrave liberdade agrave igualdade agrave seguranccedila e agrave propriedade Os dispositivos constitucionais
examinados a seguir visam a garantir a observacircncia da liberdade religiosa que se
apresenta como u m dos aspectos da liberdade e m sentido lato a qual eacute constitucionalmente
assegurada a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no Paiacutes
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754 Maria Costa Neves Machado
31 Livre exerciacutecio de cultos religiosos e vedaccedilatildeo ao estabelecimento de religiatildeo
O inciso VI do art 5o da Constituiccedilatildeo Federal determina que eacute inviolaacutevel
a liberdade de consciecircncia e de crenccedila sendo assegurado o livre exerciacutecio dos cultos
religiosos e garantida na forma da lei a proteccedilatildeo aos locais de culto e a suas liturgias
Diferentemente do texto atual a Constituiccedilatildeo brasileira de 1967
expressamente limitava e m seu art 150 paraacutegrafo 5 o exerciacutecio da liberdade religiosa
aos cultos que natildeo contrariassem a ordem puacuteblica e os bons costumes D e acordo com
Celso Ribeiro Bastos embora a atual Constituiccedilatildeo omita o requisito de observacircncia da
ordem puacuteblica e dos bons costumes estaacute impliacutecito no ordenamento juriacutedico brasileiro
que os direitos devem ser exercidos de modo que natildeo prejudiquem os direitos de outras
pessoas e em consonacircncia com os valores eacuteticos e morais e m que se funda a sociedade
brasileira independentemente de quatildeo difiacutecil possa ser para os tribunais definirem quais
satildeo esses valores que estatildeo evoluindo constantemente (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989
52) E m sentido diverso do entendimento de Bastos Manuel Gonccedilalves Ferreira Filho
entende que em razatildeo da omissatildeo da Constituiccedilatildeo os cultos religiosos satildeo garantidos
inclusive contra eventuais limitaccedilotildees baseadas na ordem puacuteblica e nos bons costumes (cf
F E R R E I R A FILHO 1990 33) A interpretaccedilatildeo de Ferreira Filho parece mais adequada
uma vez que os legisladores constitucionais omitiram intencionalmente a exigecircncia da
observacircncia da ordem puacuteblica e dos bons costumes Dessa forma os tribunais brasileiros
natildeo podem limitar o exerciacutecio da liberdade religiosa invocando a ordem puacuteblica ou os
bons costumes
U m a questatildeo muito polecircmica sobre o exerciacutecio da liberdade de culto
e sua limitaccedilatildeo no Brasil eacute relacionada agrave caracterizaccedilatildeo do crime de curandeirismo
previsto no art 284 do Coacutedigo Penal30 Enquanto alguns autores por exemplo Magalhatildees
Noronha sustentam que uma praacutetica religiosa que pretenda curar sem tiacutetulo ou habilitaccedilatildeo
apropriada seja enquadrada como curandeirismo ( N O R O N H A 1968 107) outros
autores como Francisco de Assis Toledo argumentam que os rituais espiacuteritas e os rituais de
todas as outras religiotildees tais como o Catolicismo o Protestantismo ou Budismo embora
possam visar agrave cura ou agrave diminuiccedilatildeo do sofrimento de pessoas doentes nunca poderatildeo ser
considerados u m crime (cf T O L E D O 1986 100-101) Francisco de Assis Toledo parece
estar certo e m sua interpretaccedilatildeo do crime curandeirismo uma vez que ele leva a seacuterio a
Artigo 284 Exercer o curandeirismo
I - prescrevendo ministrando ou aplicando habitualmente qualquer substacircncia
II - usando gestos palavras ou qualquer outro meio
III - fazendo diagnoacutesticos
Pena - detenccedilatildeo de seis meses a dois anos
Paraacutegrafo uacutenico - Se o crime eacute praticado mediante remuneraccedilatildeo o agente fica tambeacutem sujeito agrave multa
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 755
garantia constitucional da liberdade de religiatildeo Atualmente o poder judiciaacuterio no Brasil
entende que os rituais espiacuteritas relacionados agrave cura de pessoas doentes natildeo podem ser
considerados curandeirismo sendo constitucionalmente protegidos como u m tipo de
culto31
Cumpre notar que durante o periacuteodo do Impeacuterio no Brasil havia uma
liberdade religiosa sem liberdade de culto somente o culto catoacutelico era reconhecido como
livre Outras religiotildees somente podiam celebrar seus cultos na esfera domeacutestica sendo
proibido todo o templo fora do lar para outras religiotildees (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989
50 e C R E T E L L A JUacuteNIOR 1992 252)
Essa abordagem inicial da liberdade religiosa no ordenamento juriacutedico
brasileiro pode ser explicada como consequumlecircncia de nosso passado colonial U m a das
justificaccedilotildees ideoloacutegicas subjacentes agrave colonizaccedilatildeo do Brasil por Portugal - e de outros
paiacuteses da Ameacuterica Latina pela Espanha - era relacionada agrave catequizaccedilatildeo dos povos
indiacutegenas C o m o resultado o catolicismo foi a religiatildeo oficial ateacute o fim do periacuteodo
imperial32
A esse respeito vale notar com Faacutebio Konder Comparato (2001 312) que
natildeo haacute autecircntica liberdade de crenccedila e de opiniatildeo num Estado que adota u m a religiatildeo
oficial As pressotildees de toda a sorte - poliacuteticas econocircmicas e profissionais - contra os natildeo
seguidores da religiatildeo de Estado tornam essa liberdade ilusoacuteria C o m efeito as religiotildees
indiacutegenas e africanas e seus valores foram negados durante grande parte da histoacuteria do
Brasil e ainda hoje haacute na sociedade brasileira preconceito contra tais religiotildees33
Exemplificativamente destaque-se que e m 1985 o Supremo Tribunal
Federal arquivou a Representaccedilatildeo n 959-PB que questionava u m a lei do Estado da
Paraiacuteba de 1966 de acordo com a qual os cultos africanos deveriam obter u m a licenccedila
preacutevia para iniciar suas atividades Tal licenccedila seria concedida se entre outras exigecircncias
o responsaacutevel pelos cultos pudesse provar sua idoneidade moral e perfeitas condiccedilotildees de
sauacutede mental conforme documentado e m relatoacuterio psiquiaacutetrico A accedilatildeo arquivada com
STF R H C 62240SP rei Min Francisco Rezek 2a Turma 13121984 DJ 02081985 p 12046 e STJ H C 1498RJ rei Min Luiz Vicente Cernicchiaro 6a Turma j 18121992 DJ 1 de 16081993 p 15994 Cf tambeacutem FERREIRA Pinto Comentaacuterios agrave constituiccedilatildeo brasileira Satildeo Paulo Saraiva 1989 p 71 C o m efeito Celso Lafer nos lembra que incumbia ao imperador antes de ser proclamado jurar manter a religiatildeo catoacutelica cabendo-lhe em contrapartida entre as suas atribuiccedilotildees nomear bispos e prover os benefiacutecios eclesiaacutesticos bem como conceder ou negar beneplaacutecitos a atos da Santa Feacute (cf Constituiccedilatildeo de 1824 art 5o 102 paraacutegrafos 2o e 14 103) (LAFER 2007) Note-se que a negaccedilatildeo dos valores africanos e de uma identidade africana no Brasil abrangendo a esfera religiosa tem suas origens na chegada dos escravos africanos desde o seacuteculo XVI A relaccedilatildeo entre os povos africanos e a sociedade colonial foi caracterizada pela conversatildeo compulsoacuteria dos escravos agrave religiatildeo de seus donos e pela perseguiccedilatildeo daqueles que insistissem na manutenccedilatildeo das praacuteticas ancestrais (DADESKY 2005 51-52)
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base no fato de que a lei e m questatildeo havia sido modificada e m 1977 tendo sido excluiacuteda
a exigecircncia da licenccedila preacutevia
A separaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja foi estabelecida no Brasil somente
durante a Repuacuteblica pelo Decreto n 119-A datado de 7 de janeiro de 1890 de autoria
de Rui Barbosa (cf L A F E R 2007) que proibiu a intervenccedilatildeo do governo federal e dos
estados e m questotildees religiosas e estabeleceu a liberdade de culto34 Desde entatildeo o Brasil
eacute u m estado laico A separaccedilatildeo entre Estado e Igreja na Constituiccedilatildeo de 1988 estaacute prevista
no art 19
Eacute vedado agrave Uniatildeo aos Estados ao Distrito Federal e aos Municiacutepios (i) estabelecer cultos religiosos ou igrejas subvencionaacute-los embaraccedilar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relaccedilotildees de dependecircncia ou alianccedila ressalvada na forma da lei a colaboraccedilatildeo de interesse puacuteblico ()
Consequentemente o Estado brasileiro eacute indiferente agraves vaacuterias igrejas que
podem ser livremente formadas como entidades legais O Estado deve ser absolutamente
neutro sendo proibida a discriminaccedilatildeo entre igrejas para beneficiaacute-las ou prejudicaacute-las
Tambeacutem natildeo pode impor nenhum ocircnus indevido agrave formaccedilatildeo de igrejas N a realidade haacute
mesmo u m incentivo constitucional para sua formaccedilatildeo que resulta da imunidade tributaacuteria
a que fazem jus ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 50-51)35
Observe-se que a colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico mencionada no Artigo
19 para natildeo infringir a proibiccedilatildeo de estabelecimento de religiatildeo pelo Estado natildeo pode
ocorrer em u m campo fundamentalmente religioso (cf F E R R E I R A FILHO 1990 144
C R E T E L L A JUacuteNIOR 1992 1179 e L A F E R 2007) N atildeo obstante essa disposiccedilatildeo tem
implicaccedilotildees muito complexas quando se trata de sua execuccedilatildeo como eacute possiacutevel estabelecer
a colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico entre o Estado e u m a determinada igreja sem favorecer
u m a religiatildeo sobre a outra36 Ademais essa disposiccedilatildeo levanta u m problema similar ao que
resulta da assistecircncia religiosa a pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva e do
ensino religioso facultativo e m escolas conforme detalhado abaixo eacute possiacutevel na praacutetica
ensinar religiatildeo prestar assistecircncia religiosa e estabelecer esquemas de colaboraccedilatildeo
Esse decreto nunca foi expressamente revogado Cf lthttpslegislacaoplanaltogovbrLEGISLA LegislacaonsffraWebOpenFrameSetampFrame=frmWeb2ampSrc=2FLEGISLA2FLegislacaonsf2Fvi wTodos2Fbea39c8e0e484811032569fa005afab43FOpenDocument26Highlight3Dl2C26Auto Framedgt Acesso em 3 abr 2009
Cumpre notar que a Lei n 8245 datada de 18 de outubro de 1991 conforme alterada estabelece que o contrato de locaccedilatildeo de imoacuteveis utilizados por entidades religiosas devidamente registradas bem como por hospitais unidades sanitaacuterias oficiais asilos estabelecimentos de sauacutede e de ensino autorizados e fiscalizados pelo Poder Puacuteblico somente poderaacute ser rescindido em determinadas situaccedilotildees Para uma criacutetica sobre a exceccedilatildeo relacionada agrave colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico vide C R E T E L L A JUacuteNIOR 19921180
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 757
no interesse puacuteblico sem favorecer u m a determinada religiatildeo e sem violar o art 19 da
Constituiccedilatildeo
32 Garantia de assistecircncia religiosa em estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva
A Constituiccedilatildeo brasileira garante a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa a
pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva abrangendo presos militares e
pacientes hospitalizados (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 54) D e acordo com o inciso
VII do art 5o da Constituiccedilatildeo eacute assegurada nos termos da lei a prestaccedilatildeo de assistecircncia
religiosa nas entidades civis e militares de internaccedilatildeo coletiva O caraacuteter laico do Estado
brasileiro natildeo eacute afetado por esta disposiccedilatildeo u m a vez que o Estado natildeo eacute obrigado a
prestar assistecircncia religiosa e as entidades religiosas eacute que iratildeo prestaacute-la (cf M A R T I N S e
B A S T O S 1989 51 e 54 e F E R R E I R A FILHO 1990 34)
Neste sentido a Lei n 7210 de 11 de julho de 1984 que trata da execuccedilatildeo
penal estabelece e m seu art 10 que o Estado deve prestar assistecircncia aos presos e internados
incluindo os egressos objetivando prevenir o crime e orientar o retorno agrave convivecircncia e m
sociedade Tal assistecircncia consistiraacute de acordo com o art 11 e m assistecircncia material
agrave sauacutede juriacutedica educacional social e religiosa D e fato o art 41 estabelece que tais
assistecircncias satildeo direitos dos presos
D e acordo com o art 24 a assistecircncia religiosa com liberdade de culto
seraacute prestada aos presos e aos internados permitindo-se-lhes a participaccedilatildeo nos serviccedilos
organizados no estabelecimento penal bem como a posse de livros de instruccedilatildeo religiosa
O primeiro paraacutegrafo deste artigo estabelece que haveraacute local apropriado para os cultos
religiosos no estabelecimento penal o segundo paraacutegrafo dispotildee que nenhum preso ou
internado poderaacute ser obrigado a participar de atividade religiosa
Adicionalmente a Lei n 9982 de 14 de julho de 2000 que trata da prestaccedilatildeo
de assistecircncia religiosa e m estabelecimentos prisionais civis e militares e e m entidades
hospitalares puacuteblicas e privadas garante e m seu art Io o acesso aos religiosos de todas
as confissotildees aos hospitais da rede puacuteblica ou privada bem como aos estabelecimentos
prisionais civis ou militares para dar atendimento religioso aos internados desde que
em c o m u m acordo com estes ou com seus familiares no caso de doentes que jaacute natildeo mais
estejam no gozo de suas faculdades mentais Vale notar que nos termos do art 2o os
religiosos chamados a prestar assistecircncia nas entidades definidas no art Io deveratildeo e m
suas atividades acatar as determinaccedilotildees legais e normas internas de cada instituiccedilatildeo
hospitalar ou penal a fim de natildeo pocircr e m risco as condiccedilotildees do paciente ou a seguranccedila do
ambiente hospitalar ou prisional
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Duas disposiccedilotildees dessa lei foram vetadas pelo Presidente37 A primeira
disposiccedilatildeo estabelecia que a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa natildeo seria permitida se de
acordo com o hospital ou a prisatildeo houvesse risco de vida ou sauacutede para o internado ou
para o religioso O Presidente justificou esse veto argumentando que a transferecircncia do
processo decisoacuterio relativo agrave prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa aos hospitais ou prisotildees
excluindo-se o paciente ou preso bem como suas famiacutelias era contraacuterio aos incisos VI
e VII do art 5o da Constituiccedilatildeo Ademais o Presidente sustentou que a precauccedilatildeo que
motivou o dispositivo vetado jaacute estaacute assegurada pelo art 2 o da lei e m questatildeo
A segunda disposiccedilatildeo vetada pelo Presidente determinava que o interno teria
direito a pelo menos u m a visita semanal de religiosos da confissatildeo religiosa que professe
O Presidente justificou esse veto argumentando que a periodicidade das visitas deveria ser
determinada pela autoridade local levando e m consideraccedilatildeo as particularidades regionais
os usos e costumes Aleacutem disso o Presidente sustentou que era inadequado tratar hospitais
e prisotildees da mesma forma tendo e m vista as circunstacircncias especiacuteficas de cada instituiccedilatildeo
Havia tambeacutem a preocupaccedilatildeo de que o nuacutemero miacutenimo de visitas estabelecido por lei se
tornasse o nuacutemero maacuteximo permitido na praacutetica
33 Acomodaccedilatildeo em razatildeo de imperativo de consciecircncia
Nos termos do inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo ningueacutem seraacute privado
de direitos por motivo de crenccedila religiosa ou de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica salvo se as
invocar para eximir-se de obrigaccedilatildeo legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestaccedilatildeo
alternativa fixada e m lei Esse inciso entre outras coisas estaacute relacionado ao serviccedilo
militar obrigatoacuterio estabelecido pelo art 143 da Constituiccedilatildeo O paraacutegrafo Io deste artigo
dispotildee que agraves Forccedilas Armadas compete na forma da lei atribuir serviccedilo alternativo aos
que e m tempo de paz apoacutes alistados alegarem imperativo de consciecircncia entendendo-
se como tal o decorrente de crenccedila religiosa e de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica para se
eximirem de atividades de caraacuteter essencialmente militar 38
Esse eacute u m dos casos de acomodaccedilatildeo existentes no ordenamento juriacutedico
brasileiro relacionado agrave crenccedila religiosa ou agraves convicccedilotildees filosoacuteficas ou poliacuteticas Para
buscar proteccedilatildeo constitucional de mo d o a natildeo participar do serviccedilo militar compulsoacuterio
e m tempos de paz faz-se necessaacuterio provar comprometimento com ideacuteias natildeo beligerantes
a ser demonstrado por atitudes passadas que estejam e m consonacircncia com tal ideal
( M A R T I N S e B A S T O S 1989 56) Note-se que eacute possiacutevel ser excluiacutedo de atividades
essencialmente militares mas poderatildeo ser impostos serviccedilos alternativos que consistam em
57 Cf Mensagem de Veto n 960 de 14 de julho de 2000 Disponiacutevel em lthttpswwwplanaltogovbr
ccivil_03leisMensagem_Veto2000Mv0960-00htmgt Acesso em 13 fev 2009 i8 Esse dispositivo constitucional foi regulamentado pela Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 759
atividades administrativas de assistecircncia filantroacutepicas ou produtivas39 jaacute que a obrigaccedilatildeo
de servir ao Paiacutes natildeo eacute excluiacuteda ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 211) Cumpre notar que da
reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia natildeo pode resultar a privaccedilatildeo de direitos exceto
se a pessoa tambeacutem se recusar a prestar serviccedilo alternativo natildeo essencialmente militar
Nessas circunstacircncias a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo aplicaacutevel natildeo satildeo inteiramente claras
sobre as consequumlecircncias legais da recusa Alguns autores entendem que nesse caso a pessoa
que se recusou a prestar serviccedilos alternativos poderia ser privada de direitos (FERREIRA
FILHO 1994 34 e 81 e M A R T I N S e B A S T O S 1989 212)40
Constata-se aqui o que parece ser u m a grande incoerecircncia no ordenamento
juriacutedico brasileiro Enquanto e m tempos de paz as pessoas podem reivindicar imperativo
de consciecircncia para evitar serviccedilos essencialmente militares quando o Estado declara
guerra nenhum cidadatildeo poderaacute invocar crenccedilas religiosas ou convicccedilotildees filosoacuteficas ou
poliacuteticas com a finalidade de natildeo participar do serviccedilo militar41 C o m o resultado durante
o periacuteodo mais adequado e apropriado para expressar desacordo com guerras e ideais
beligerantes as pessoas natildeo tem direito de reivindicar imperativo de consciecircncia para natildeo
participar do serviccedilo militar na hipoacutetese de a Constituiccedilatildeo ser interpretada literalmente
Outro caso de acomodaccedilatildeo relacionado a crenccedilas religiosas que vale ser
mencionado eacute o uso terapecircutico do chaacute Ayahuasca em rituais religiosos A partir de
1985 o governo brasileiro comeccedilou a estudar os aspectos sociais e culturais referentes
ao uso de tal chaacute E m 23 de novembro de 2006 o Grupo Multidisciplinar de Trabalho do
Comitecirc Nacional Antidrogas do Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas42
emitiu seu relatoacuterio final reconhecendo que o uso do chaacute Ayahuasca deveria ser limitado
a rituais religiosos e m locais autorizados pela direccedilatildeo das entidades que fazem uso de
tal chaacute sendo proibido seu uso em conjunto com substacircncia ilegais Atualmente o uso
do chaacute Ayahuasca e m conformidade com as normas aplicaacuteveis eacute assegurado com base
na garantia constitucional da liberdade de consciecircncia e de crenccedila e do livre exerciacutecio de
cultos religiosos Ademais a legitimidade do uso religioso da Ayahuasca foi ratificada
como rica e ancestral manifestaccedilatildeo cultural que exatamente pela relevacircncia de seu valor
Os serviccedilos alternativos podem ser prestados e m organizaccedilotildees militares da ativa e e m oacutergatildeos de formaccedilatildeo de reservas das Forccedilas Armadas ou em oacutergatildeos subordinados aos Ministeacuterios Civis mediante convecircnios entre estes e os Ministeacuterios Militares Cf sectsect 2o e 3o do art 3o da Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991 N o entanto parece-nos que o serviccedilo militar obrigatoacuterio natildeo estaacute de acordo com os princiacutepios que norteiam a Constituiccedilatildeo no sentido de que serviccedilos alternativos natildeo deveriam ser impostos Contudo a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo Ives Granda Martins sustenta que e m tempos de guerra todos os cidadatildeos tecircm iguais deveres perante o Paiacutes (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 212) Discordamos totalmente deste posicionamento porque uma das formas mais eficazes de expressar desacordo com guerras e ideais beligerantes eacute durante o periacuteodo de guerra quando as pessoas que natildeo concordam poderiam recusar-se a prestar serviccedilos militares Contudo conforme mencionado acima a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo O Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas - S I S N A D foi instituiacutedo pela Lei n 11343 de 23 de agosto de 2006
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7(gt(l Maria Costa Neves Machado
histoacuterico antropoloacutegico e social eacute credora da proteccedilatildeo do Estado nos termos do art
2o caput da Lei n 1134306 e do art 215 sect1deg da C F 43 que dispotildee que [o] Estado
protegeraacute as manifestaccedilotildees das culturas populares indiacutegenas e afro-brasileiras e das de
outros grupos participantes do processo civilizatoacuterio nacional44
Eacute de se notar tambeacutem o recente caso no Estado de Satildeo Paulo de acomodaccedilatildeo
religiosa previsto na Lei Estadual n 13541 de 7 de maio de 2009 Tal lei proiacutebe o consumo
de cigarros cigarrilhas charutos cachimbos ou de qualquer outro produto fumiacutegeno
derivado ou natildeo do tabaco e m ambientes de uso coletivo puacuteblicos ou privados Contudo
nos termos do art 6o da referida lei essa natildeo se aplica aos locais de culto religioso em que
o uso de produto fumiacutegeno faccedila parte do ritual O u seja trata-se de mais u m caso em que
uma lei geral eacute excetuada para acomodar praacuteticas relacionadas agrave liberdade de religiatildeo e
de culto
Diferentemente das situaccedilotildees envolvendo serviccedilo militar obrigatoacuterio
o chaacute Ayahuasca e rituais religiosos que envolvem o uso de produtos fumiacutegenos foi
negada acomodaccedilatildeo quando da reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia no contexto
de frequumlecircncia escolar no Estado de Satildeo Paulo E m opiniatildeo escrita por Ada Pellegrini
Grinover publicada e m 25 de outubro de 2002 o Conselho Estadual de Educaccedilatildeo do
Estado de Satildeo Paulo entendeu que estudantes que fossem membros da Igreja Adventista
do Seacutetimo Dia estariam obrigados a frequumlentar as aulas durante o periacuteodo compreendido
entre 1800 horas de sexta-feira e 1800 de saacutebados de acordo com a Lei n 9394 de 20
de dezembro de 1996 conforme alterada embora tal frequumlecircncia seja contraacuteria agraves suas
praacuteticas religiosas u m a vez que natildeo haacute prestaccedilatildeo alternativa estabelecida em lei para tal
escusa de consciecircncia conforme fixado pelo inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo45
Adicionalmente aos casos de acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de
consciecircncia o inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo tambeacutem jaacute foi invocado para proteger
os direitos dos professores do Estado de Rio de Janeiro contra lei estadual que estabeleceu
que somente os professores credenciados pela autoridade religiosa competente estaratildeo
autorizados a ministrar as aulas de ensino religioso e m escolas puacuteblicas estaduais Para
compreender a Accedilatildeo Direta de Inconstitucionalidade - A D I N n 326804 que ainda natildeo
foi decidida pela Suprema Corte faz-se necessaacuterio analisar as disposiccedilotildees legais aplicaacuteveis
relacionadas ao ensino religioso no Brasil
Cf Relatoacuterio Final do Grupo Multidisciplinar de Trabalho disponiacutevel entre outros siacutetios em lthttp wwwsantodaimeorgcomunidadenoticiasrelfinal_conadhtmgt Acesso em 4 mar 2009 e lthttpwww ayahuascabrasilorgindexphpop=legisl01gt Acesso em 4 mar 2009 A acomodaccedilatildeo relacionada ao uso do chaacute Ayahuasca para fins religiosos nos Estados Unidos foi decidida pela Suprema Courte em Gonzales v O Centro Espirita Beneficente Uniatildeo do Vegetal 546 US 418 (2006) Cf Parecer C E E No 4422002 - C E S - Aprovado em 23102002 Disponiacutevel em lthttpwwwceesp spgovbrParecerespa_442_02htmgt Acesso em 4 mar 2009
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 761
34 Ensino religioso facultativo
Nos termos do art 210 da Constituiccedilatildeo [sjeratildeo fixados conteuacutedos miacutenimos
para o ensino fundamental de maneira a assegurar formaccedilatildeo baacutesica c o m u m e respeito aos
valores culturais e artiacutesticos nacionais e regionais O paraacutegrafo Io desse Artigo dispotildee
que [o] ensino religioso de matriacutecula facultativa constituiraacute disciplina dos horaacuterios
normais das escolas puacuteblicas de ensino fundamental
Nesse sentido o art 33 da Lei n 9394 de 22 de julho de 1997 conforme
alterada determina que o respeito agrave diversidade cultural religiosa do Brasil eacute assegurado
no ensino religioso sendo proibida qualquer forma de proselitismo O primeiro paraacutegrafo
desse Artigo dispotildee que [o]s sistemas de ensino regulamentaratildeo os procedimentos para a
definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso e estabeleceratildeo as normas para a habilitaccedilatildeo
e admissatildeo dos professores Ademais de acordo com o segundo paraacutegrafo do referido
Artigo [o]s sistemas de ensino ouviratildeo entidade civil constituiacuteda pelas diferentes
denominaccedilotildees religiosas para a definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso46
D e modo a observar a proibiccedilatildeo constitucional de estabelecimento de
religiatildeo o ensino religioso e m escolas natildeo pode consistir no ensino de u m a religiatildeo
determinada Nesse sentido a previsatildeo constitucional tem por finalidade dar oportunidade
a estudantes que estatildeo e m idade de formaccedilatildeo de personalidade de ter acesso a informaccedilotildees
de modo que no futuro eles possam livremente escolher adotar ou natildeo adotar u m a religiatildeo
(cf S C H E R K E R K E W I T Z 2002 60)47
Levando e m consideraccedilatildeo esses dispositivos a A D I N n 326804 foi
ajuizada pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo com o intuito de
declarar que a Lei n 3459 aprovada pela Assembleacuteia Legislativa do Estado do Rio de
Janeiro e m 14 de setembro de 2000 eacute inconstitucional u m a vez que estabeleceu que (i)
religiatildeo seria ensinada na forma confessional (ii) o conteuacutedo do ensino religioso seria
atribuiccedilatildeo de diversas autoridades religiosas e (iii) apenas professores credenciados pela
autoridade religiosa competente poderiam ensinar religiatildeo e m escolas oficiais
A Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo argumenta que o
ensino religioso na forma confessional viola o art 210 da Constituiccedilatildeo que estabelece que
os valores culturais seratildeo respeitados quando do estabelecimento dos conteuacutedos miacutenimos
para o ensino fundamental e o art 33 da Lei Federal n 939497 que determina que o
ensino religioso respeitaraacute a diversidade cultural do Brasil
Cumpre notar que nos termos do art 21 do Decreto-Lei n 4244 de 9 de abril de 1942 o programa e o regime didaacutetico do ensino religioso deveria ser determinado pela autoridade religiosa De acordo com Alexandre de Moraes para que a regulamentaccedilatildeo e a execuccedilatildeo desta disposiccedilatildeo natildeo sejam inconstitucionais faz-se necessaacuterio que toda e qualquer religiatildeo possa ser ensinada nas escolas puacuteblicas O autor entende que na praacutetica isso eacute absolutamente impossiacutevel (cf M O R A E S 2003 1984-1985)
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762 Maria Costa Neves Machado
Adicionalmente a confederaccedilatildeo sustenta que a disposiccedilatildeo de acordo
com a qual o conteuacutedo do ensino religioso eacute u m a atribuiccedilatildeo das diversas autoridades
religiosas contraria o art 33 da Lei Federal n 939497 que estabelece diferentes padrotildees
para a definiccedilatildeo do conteuacutedo do ensino religioso E m conformidade com tal lei federal
os sistemas de ensino devem ouvir entidades civis de diversas religiotildees para definir
o conteuacutedo do ensino religioso A violaccedilatildeo eacute demonstrada com base no fato de que o
conceito de autoridade religiosa - que implica u m a estrutura administrativa e hieraacuterquica
como aquelas presentes nas Igrejas Catoacutelicas Presbiterianas e Judaicas - natildeo eacute parte da
tradiccedilatildeo de algumas religiotildees que tem origem Evangeacutelica ou afro-brasileira
A A D I N ainda natildeo foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal De qualquer
forma os argumentos apresentados pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores em
Educaccedilatildeo - e pelos vaacuterios amicus curiae admitidos no processo - parecem ser coerentes
com a Constituiccedilatildeo Federal e aptos a derrubar a Lei Estadual n 3459
N o Estado de Satildeo Paulo o ensino religioso previsto no art 33 da Lei n
939497 foi regulamentado na Deliberaccedilatildeo do Conselho Estadual de Educaccedilatildeo - CEE
n 162001 com fundamento na Indicaccedilatildeo C E E n 07 aprovada e m 25 de julho de 2001
de acordo com a qual o ensino religioso deve ser enfocado na perspectiva constitucional
de promoccedilatildeo da cidadania e da dignidade especialmente na funccedilatildeo social da educaccedilatildeo
e m geral de modo que deve ser enfatizada a reflexatildeo sobre a cidadania e as praacuteticas a ela
pertinentes Assumindo que natildeo haacute conhecimento futuro e vida sem a competecircncia de
conviver com as diferenccedilas a Indicaccedilatildeo C E E n 072001 reconhece que satildeo bem-vindos
todos os projetos educacionais (aiacute se podendo incluir o ensino religioso) que visam direta
ou indiretamente o trabalho comunitaacuterio a conscientizaccedilatildeo da responsabilidade pessoal
e social e que estimulem e restaurem os valores humanos de compromisso moral e eacutetico
auxiliando a compreensatildeo do h o m e m e o autoconhecimento Nesse sentido de acordo com
referida indicaccedilatildeo o ensino religioso nas escolas deve antes de tudo fundamentar-se nos
princiacutepios da cidadania e do entendimento do outro Assim o C E E recomendou que o
ensino religioso fosse tratado como tema transversal por meio da implementaccedilatildeo de uma
proposta de abordagem filosoacutefica que permitisse a reflexatildeo sobre valores e princiacutepios eacuteticos e
o conhecimento da histoacuteria das religiotildees Tambeacutem no Estado de Satildeo Paulo a implementaccedilatildeo
do ensino religioso foi arduamente debatida e criticada especialmente em razatildeo da
problemaacutetica questatildeo do estabelecimento de religiatildeo vedado pela Constituiccedilatildeo de 198848
Vide entre outros GIUMBELLI Emerson Ensino religioso em escolas puacuteblicas no Brasil notas de pesquisa Debates do N E R (UFRGS) v 14 p 50-68 2009 CURY Carlos Roberto Jamil Ensino religioso na escola puacuteblica o retorno de uma polecircmica recorrente Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 27 p 183-213 setdez 2004 LUI Janayna de Alencar Entre crentes e pagatildeos ensino religioso em Satildeo Paulo Cadernos de Pesquisa v 37 n 131 p 333-349 maioago 2007 R A N Q U E T A T JUacuteNIOR Ceacutesar Do confessional ao plural uma anaacutelise sobre o novo modelo de ensino religioso nas escolas brasileiras Revista Diaacutelogo Educaccedilatildeo Curitiba v 8 n 23 p 289-305 janabr 2008
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 763
Neste item a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil foi examinada
com a finalidade de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota u m princiacutepio de
toleracircncia ou de respeito As normas relacionadas agrave garantia da liberdade de consciecircncia
e de crenccedila bem como ao livre exerciacutecio de cultos religiosos agrave proteccedilatildeo dos locais de
adoraccedilatildeo agrave proibiccedilatildeo do estabelecimento de religiatildeo agrave garantia de assistecircncia religiosa
e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva agrave acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de
consciecircncia e ao ensino religioso facultativo todas foram analisadas de modo que fosse
possiacutevel concluir se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia ou
do respeito
D e acordo com tal anaacutelise o ordenamento juriacutedico brasileiro parece tratar a
religiatildeo e m conformidade com o princiacutepio do respeito Isso porque pessoas religiosas e natildeo
religiosas podem entrar no espaccedilo puacutebico e m iguais condiccedilotildees sendo que a faculdade de
buscar a finalidade uacuteltima da vida eacute respeitada pelo Estado Nesse sentido o ordenamento
juriacutedico brasileiro garante a liberdade de consciecircncia e de crenccedila o livre exerciacutecio de
cultos religiosos e a proteccedilatildeo dos locais de adoraccedilatildeo Adicionalmente enquanto de u m
lado nenhuma religiatildeo pode ser estabelecida pelo Estado pessoas religiosas podem
reivindicar imperativo de consciecircncia bem como receber assistecircncia religiosa e ensino
religioso se essa for a sua escolha
Isso demonstra que todos os indiviacuteduos de acordo com o ordenamento
juriacutedico brasileiro devem entrar no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais e que o Estado eacute
obrigado a fornecer condiccedilotildees para que pessoas religiosas e natildeo religiosas possam buscar
a finalidade uacuteltima da vida se essa for sua escolha respeitando e m todos os indiviacuteduos a
faculdade de realizar tal busca
4 Conclusatildeo
Inicialmente foi examinada neste artigo a diferenccedila entre o princiacutepio da
toleracircncia e o princiacutepio do respeito no que se refere ao tratamento legal de questotildees de
consciecircncia Posteriormente a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no ordenamento
juriacutedico brasileiro foi analisada com a finalidade de verificar qual desses dois princiacutepios eacute
adotado Finalmente conclui-se que o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio
do respeito pela faculdade dos indiviacuteduos de buscar pela finalidade uacuteltima da vida sendo o
Estado obrigado a garantir condiccedilotildees adequadas para as pessoas exercerem tal faculdade
de acordo com suas escolhas autocircnomas de modo que todos os indiviacuteduos possam entrar
no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais
Satildeo Paulo dezembro de 2010
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IM Maria Costa Neves Machado
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746 Maria Costa Neves Machado
para o princiacutepio do dano - que eacute considerado a uacutenica base para o uso de poder coercitivo
pela lei - natildeo para o anti-perfectionismo
Raz argumenta que u m compromisso c o m a autonomia envolve o
compromisso com o pluralismo moral ( R A Z 1987 157)5 que de acordo com o autor
deve ser compreendido como a visatildeo de que haacute vaacuterias formas e vaacuterios estilos de vida
que exemplificam virtudes diferentes e que satildeo incompatiacuteveis ( R A Z 1987 159)6 Ele
sustenta que
o pluralismo moral competitivo do tipo que eacute necessaacuterio para o respeito pela autonomia gera conflitos entre pessoas que buscam valiosas mas incompatiacuteveis formas de vida Dada a necessidade de tomar disponiacuteveis tais formas de vida a fim de garantir a autonomia faz-se necessaacuterio restringir as accedilotildees e as atitudes das pessoas em tais conflitos por meio do princiacutepio da toleracircncia O dever de tolerar eacute u m aspecto do dever de respeito pela autonomia (RAZ 1987 165)7
Assim de acordo com Raz a fim de respeitar a autonomia individual eacute
necessaacuterio adotar u m princiacutepio de toleracircncia que consista na
restriccedilatildeo de uma atividade provavelmente indesejaacutevel ao seu receptor ou de uma inclinaccedilatildeo de assim agir que eacute em si mesma moralmente valiosa e que eacute baseada em um desagrado ou em u m antagonismo dessa pessoa ou de uma caracteriacutestica de sua vida refletindo u m julgamento de que esses representam limitaccedilotildees ou deficiecircncias no outro com a finalidade de deixar que o outro tenha sua maneira ou para que ele ganhe ou mantenha alguma vantagem (Como indicado a mim por P M S O Hacker a compaixatildeo eacute agraves vezes u m exemplo especial de toleracircncia U m indiviacuteduo pode tolerar a partir da compaixatildeo) (RAZ 1987 163)89
Traduccedilatildeo livre da autora a commitment to autonomy entails commitment to moral pluralism Traduccedilatildeo livre da autora there are various forms and styles of life which exemplify different virtues and which are incompatible Traduccedilatildeo livre da autora competitive moral pluralism ofthe kind which is required by respect for autonomy generates conflicts between people pursuing valuable but incompatible forms of life Given the necessity to make those forms of life available in order to secure autonomy there is a need to curb peoples actions and their attitudes in those conflicts by principies of toleration The duty of toleration is an aspect ofthe duty of respect for autonomy Traduccedilatildeo livre da autora the curbing of an activity likely to be unwelcome to its recipient or of an inclination so to act which is in itself morally valuable and which is based on a dislike or an antagonism of that person or of a feature of his life reflecting a judgment that these represent limitations or deficiencies in him in order to let that person have his way or in order for him to gain or keep some advantage (As pointed out to m e by P M S Hacker mercy is sometimes a special case of toleration One can tolerate out of mercy) Nesse sentido Raz argumenta que a [t]oleracircncia implica na supressatildeo ou na contenccedilatildeo de uma inclinaccedilatildeo ou desejo de perseguir molestar causar dano ou reagir de uma maneira indesejada a uma pessoa (RAZ 1987 162) (traduccedilatildeo livre da autora [tjoleration implies the suppression or containment of an inclination or desire to persecute harass harm or react in an unwelcome way to a person)
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 141
Tambeacutem sustentando a abordagem da toleracircncia - em oposiccedilatildeo agrave abordagem
do respeito - Simon Blackburn argumenta que natildeo haacute nenhuma razatildeo para que algueacutem
respeite u m sistema de crenccedilas que esta pessoa natildeo compartilhe (cf B L A C K B U R N 2009
1) Ele entende que a palavra respeito pode significar a simples ausecircncia de interferecircncia
mas que tambeacutem pode significar admiraccedilatildeo reverecircncia ou deferecircncia (cf B L A C K B U R N
2009 2) De acordo com estes niacuteveis o autor afirma que as pessoas podem respeitar
outras pessoas que possuam crenccedilas falsas ou irracionais somente num sentido miacutenimo de
toleracircncia10 U m a vez que noacutes reconhecemos aquelas crenccedilas como falsas ou irracionais
natildeo eacute possiacutevel respeitaacute-las pelo menos natildeo como decorrecircncia do fato de que algueacutem
acredita nelas (cf B L A C K B U R N 2009 3 e 7) E m conformidade com Blackburn
acreditar numa crenccedila falsa natildeo concede a ningueacutem o direito ao respeito Na medida em que eu natildeo posso compartilhar de sua crenccedila eu natildeo tenho nenhuma razatildeo para respeitaacute-lo por acreditar nela - pelo contraacuterio na verdade (BLACKBURN 2009 16)
O autor argumenta que eacute inconsistente com qualquer concepccedilatildeo apropriada
de crenccedila - a qual implica que haacute u m contraste entre certo e errado - pensar que essa eacute
uma questatildeo exclusivamente pessoal e que qualquer crenccedila eacute tatildeo boa quanto qualquer
outra N a verdade ele nega que crenccedilas estejam livres de controle normativo e que a
desigualdade entre crenccedilas seja uma violaccedilatildeo de direitos de uma pessoa Para ele ningueacutem
por u m momento acredita nesta igualdade promiacutescua de crenccedilas na vida quotidiana
( B L A C K B U R N 2009 3)12
Parece que Blackburn estaacute criticando uma concepccedilatildeo de respeito para
crenccedilas religiosas que signifique a admiraccedilatildeo de todas as crenccedilas apenas porque elas
satildeo detidas por uma pessoa Entretanto o respeito requerido pela liberdade religiosa natildeo
corresponde a u m sentimento de admiraccedilatildeo pelas crenccedilas e praacuteticas religiosas especiacuteficas
as quais noacutes podemos natildeo compartilhar mas a u m respeito pela capacidade potencial de
todos os seres humanos de fazerem escolhas autonomamente conforme seraacute demonstrado
pela abordagem de Martha Nussbaum
O problema fundamental com o princiacutepio da toleracircncia eacute que este deixa
o tolerado desconfortaacutevel em pelo menos trecircs maneiras (cf G R E E N 2008 4-8) C o m o
demonstrado por Leslie Green a toleracircncia eacute limitada e m seu escopo eacute incompleta e
10 Para o autor existe tambeacutem uma graduaccedilatildeo de respeito referente a pessoas que possuem crenccedilas falsas no sentido de que respeitamos mais algumas pessoas das quais discordamos do que outras (cf B L A C K B U R N 2009 6)
11 Traduccedilatildeo livre da autora holding a false belief does not give anyone a title to respect Insofar as I cannot share your belief I have no reason to respect you for holding it - quite the reverse in fact
12 Traduccedilatildeo livre da autora nobody for a moment believes in this promiscuous equality of belief in everyday life
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parcial e pode ser considera principalmente c o m o questatildeo de descriminalizaccedilatildeo de
condutas1314 M a s natildeo somente o escopo do princiacutepio da toleracircncia pode estar errado
seus fundamentos tambeacutem podem u m princiacutepio de toleracircncia pode ser adotado por razotildees
morais suspeitas15 Aleacutem disso se u m princiacutepio de toleracircncia for sustentado da maneira
errada - aqueles que toleram deixam claro que prefeririam natildeo ser tolerantes - aqueles
que satildeo tolerados podem tambeacutem sentir-se desconfortaacuteveis ( G R E E N 2008 6-7)16
Entretanto m e s m o que u m sistema legal pudesse construir u m princiacutepio de
toleracircncia que superasse as falhas mencionadas acima aqueles que satildeo tolerados ainda se
sentiriam desconfortaacuteveis porque seria sempre melhor se natildeo tivessem que ser tolerados
e sujeitados ao poder de toleracircncia de outra pessoa ( G R E E N 2008 6-7)n Nesse sentido
Green sustenta que
Quem quer viver da graccedila e do favor dos poderosos Isto eacute especialmente verdadeiro quando tolerados natildeo tecircm nenhum poder similar sobre seus toleradores A esse respeito a toleracircncia compartilha algo com outras relaccedilotildees desejaacuteveis mas assimeacutetricas como oferecer misericoacuterdia ou sentir piedade que pode tambeacutem ser incocircmoda para seus
13 E m relaccedilatildeo agrave toleracircncia de minorias sexuais Leslie Green ressalta que exceto pela descriminalizaccedilatildeo
haacute pouca evidecircncia que a natildeo-conformidade sexual seja amplamente tolerada nos Estados Unidos onde
eleiccedilotildees ainda podem ser perdidas ou ganhas dependendo da questatildeo a respeito do que fazer sobre gays e
onde e m aacutereas como direito do trabalho e de famiacutelia minorias sexuais continuam a vivenciar tratamento
duro atualmente raro em democracias liberais (GREEN 2008 5) (traduccedilatildeo livre da autora apart from
decriminalization there is slim evidence that sexual non-conformity is widely tolerated in the United States
where elections can still be won or lost on the issue of what to do about the gays and where in aacutereas from
employment to family law sexual minorities continue to experience harsh treatment now rare in liberal
democracies) 14 Natildeo obstante o autor alerta que a descriminalizaccedilatildeo de condutas pode natildeo resultar da adoccedilatildeo de u m princiacutepio
de toleracircncia - faz-se necessaacuterio examinar as razotildees pelas quais determinada conduta foi descriminalizada
(cf G R E E N 2008 5) 15 Por exemplo o autor afirma que seria preocupante se u m governo tolerasse o ato de fumar porque seus
atuaacuterios descobriram que fumantes morrem mais cedo o suficiente para aumentar o saldo liacutequido da
previdecircncia (traduccedilatildeo livre da autora) Ademais ele menciona que se a homossexualidade eacute tolerada
somente porque e na medida e m que existem outras condutas mais seriamente erradas para reprimir gays
americanos justamente sentiriam u m mal-estar (cf G R E E N 2008 6) (traduccedilatildeo livre da autora) 16 Identificando tambeacutem os problemas decorrentes do princiacutepio da toleracircncia Miguel Reale Juacutenior (2008
176) com base nas ideacuteias de Javier Lucas afirma que a retoacuterica da toleracircncia natildeo acolhe a criaccedilatildeo de uma
cultura fruto do diaacutelogo intercultural e ignora os problemas de inclusatildeo do diferente para se estabelecer a
igualdade na diversidade Nesse sentido Reale Juacutenior defende que o conceito liberal de toleracircncia deve
ser complementado com o conceito social de solidariedade destacando que solidariedade significa natildeo
apenas aceitaccedilatildeo da diferenccedila mas como realccedila Judith Martins-Costa uma aceitaccedilatildeo qualificada de cunho
normativo pela qual se admite que o diferente pode receber maior tutela ou tutela especiacutefica que atenda agrave
sua diferenccedila concreta como membro da comunidade ( R E A L E JUacuteNIOR 2008 176-177) 17 E m 1791 Thomas Paine notou que toleracircncia natildeo eacute o oposto de intoleracircncia mas a sua imitaccedilatildeo Ambos
satildeo despotismos U m assume para si o direito de reter a liberdade de consciecircncia e o outro de concedecirc-la
(paine 1791) Madison tambeacutem chamou a atenccedilatildeo das pessoas para o fato de que a palavra toleracircncia era
muito relutante sugerindo benevolecircncia legislativa ao inveacutes de direito ( N U S S B A U M 2008 90) (traduccedilatildeo livre da autora)
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 749
receptores E quando noacutes consideramos as pessoas natildeo como mocircnadas mas como membros de grupos minoritaacuterios entatildeo o fato da toleracircncia pode ser um lembrete infeliz da distribuiccedilatildeo de poder social (GREEN 2008 IO)18
Assim o princiacutepio da toleracircncia reflete tambeacutem a diferenccedila de poder entre
tolerados e toleradores E isto causa mais u m a vez desconforto nos tolerados no sentido
de que estes precisam contar com a benevolecircncia dos poderosos quando o poder eacute exercido
e quando a conduta do tolerado eacute julgada pelos poderosos (cf G R E E N 2008 8-12)
Green entende que entre as trecircs maneiras que geralmente satildeo chamadas
para complementar o princiacutepio da toleracircncia quais sejam aceitaccedilatildeo19 reconhecimento20
e compreensatildeo21 a uacuteltima eacute a adequada O autor assinala que u m a melhor compreensatildeo
pode ampliar a toleracircncia pode fazer com que as pessoas tenham menos m aacute vontade
pode mudar a disposiccedilatildeo para a toleracircncia incentivando pessoas a revisitar julgamentos
e pode tambeacutem ser u m a boa maneira de evitar razotildees erradas para a toleracircncia Essa
complementaccedilatildeo pode deixar aqueles que satildeo tolerados mais confortaacuteveis porque eles
sabem que os toleradores estatildeo fazendo esforccedilos de boa-feacute para compreender C o m o
consequumlecircncia os tolerados sentem que satildeo considerados como parte da convivecircncia
humana (cf G R E E N 2008 21) Green conclui que
Compreender o que a conduta reprovada significa para o agente e como se encaixa em uma vida humana pode fazer-nos revisitar e agraves vezes revisar aquele julgamento Pode complementar a toleracircncia pode tomar-nos toleradores melhores especialmente quando nos daacute uma ideacuteia do que eacute estar na extremidade afiada de uma vareta Esse tipo da compreensatildeo deixa espaccedilo para discordacircncias em torno de valores e deixa espaccedilo para correccedilatildeo de erros Natildeo
18 Traduccedilatildeo livre da autora W h o wants to live by grace and favor ofthe powerful This is especially true when the tolerated have no similar power over their tolerators In this respect toleration shares something with other desirable but asymmetric relations like offering mercy or taking pity which can also be uncomfortable for their recipients And when w e consider people not as monads but as members of minority groups then the fact of toleration may be an unhappy reminder ofthe social distribution of power
19 Se o princiacutepio da toleracircncia fosse complementado pela aceitaccedilatildeo aqueles que praticam atos ou possuem crenccedilas que satildeo toleradas podem (i) assumir abertamente suas praacuteticas e crenccedilas sem que lhes seja imposta nenhuma consequumlecircncia adversa ou (ii) demandar acomodaccedilatildeo para suas praacuteticas e crenccedilas (cf G R E E N 2008 12-15)
20 Se o princiacutepio da toleracircncia fosse complementado pelo reconhecimento praacuteticas e crenccedilas seriam toleradas de bom grado ateacute por aqueles que pensam que tais praacuteticas e crenccedilas satildeo supersticiosas sexistas etc e aqueles que toleram veriam os tolerados como eles mesmos se vecircem Nesse sentido reconhecimento exige natildeo apenas que os valores do tolerado sejam compartilhados pelos toleradores mas que a identidade do tolerado seja reconhecida (cf G R E E N 2008 15-19)
21 Se o princiacutepio da toleracircncia fosse complementado pelo entendimento toleradores deveriam tentar recriar ou capturar na medida do possiacutevel o sentido que accedilotildees e siacutembolos tecircm para seus agentes (GREEN 2008 20-25) (traduccedilatildeo livre da autora attempt to capture or recreate to the extent that w e can the meanings that acts and symbols have for their agents)
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Xrdiz a aceitaccedilatildeo ou o reconhecimento Mas o esforccedilo para compreender afirma nossa convivecircncia com os objetos de nossa toleracircncia Sem isso a toleracircncia eacute mais pobre - e mais dura - do que precisaria ser (GREEN 2008 27)22
Embora Green reconheccedila as principais falhas do princiacutepio da toleracircncia
parece que sua complementaccedilatildeo por u m a atitude compreensiva como sugerida pelo autor
ainda natildeo eacute suficiente para garantir a igualdade entre cidadatildeos e para proteger a dignidade
humana em democracias liberais
Tambeacutem criticando a abordagem da toleracircncia Heiner Bielefeldt argumenta
que a crise normativa resultante do pluralismo cultural deve ser endereccedilada pelo
reconhecimento de tal pluralismo natildeo pela sua toleracircncia C o m o afirmado por Bielefeldt
o problema da toleracircncia eacute que aqueles que tecircm o poder de tolerar tambeacutem tecircm o poder
de natildeo tolerar e aqueles que consideram que tem o poder para tolerar pretendem julgar
as questotildees de consciecircncia O autor sustenta que somente apoacutes a superaccedilatildeo dos conceitos
tradicionais de toleracircncia o pluralismo religioso e poliacutetico natildeo seraacute considerado uma perda
infeliz do centralismo religioso e da cosmovisatildeo da sociedade tradicional O pluralismo
religioso e poliacutetico seratildeo entatildeo considerados uma expressatildeo da responsabilidade autocircnoma
dos seres humanos que desejam ser respeitados e m suas convicccedilotildees e ter direitos iguais
(cf BIELEFELDT 2000 50)
D o mesmo modo Martha Nussbaum argumenta e m favor do princiacutepio
do respeito pela consciecircncia (Respect-Conscience Principie)23 de acordo com o qual
a esfera puacuteblica deve respeitar os diferentes comprometimentos religiosos de todos os
cidadatildeos e deve garantir u m espaccedilo onde os cidadatildeos possam agir consistentemente com
suas consciecircncias de forma que todos os cidadatildeos possam entrar no espaccedilo puacuteblico em
condiccedilotildees iguais ( N U S S B A U M 2008 22-23)
Nussbaum entende que tal princiacutepio natildeo requer a aprovaccedilatildeo de
reivindicaccedilotildees teoloacutegicas e eacuteticas de nenhuma religiatildeo pela esfera puacuteblica ou por cidadatildeos
individualmente (cf N U S S B A U M 2008 23) Neste sentido ela sustenta que o [r]
espeito por concidadatildeos natildeo significa dizer ou acreditar que suas visotildees religiosas estatildeo
corretas ou mesmo que todas as religiotildees satildeo caminhos vaacutelidos ao entendimento da vida
( N U S S B A U M 2008 23)24 Assim ela conclui que
Traduccedilatildeo livre da autora Understanding what the disapproved conduct means for the agent and how it fits into a human life may make us revisit and sometimes revise that judgment It may supplement torelation it may make us better tolerators especially when it gives us a grasp of what it is to be at the sharp end of a particular stick That kind of understanding leaves room for disagreement in value and room for correction of error It does not bring acceptance or recognition But the effort to understand affirms our fellowship with the objects of our toleration Without that toleration is poorer - and harder - than it need to be A autora expressamente afirma sua preferecircncia pelo termo respeito ao inveacutes do termo toleracircncia porque entende que o uacuteltimo eacute muito fraco e relutante (cf N U S S B A U M 2008 24) Traduccedilatildeo livre da autora [r]espect for fellow citizens does not mean saying or believing that their religious
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 751
O princiacutepio do respeito pela consciecircncia significa apenas respeitaacute-los como
seres humanos com suas proacuteprias escolhas para fazer em mateacuterias religiosas e u m direito
de fazer livremente essas escolhas ( N U S S B A U M 2008 23)25
Assim eacute a faculdade de buscar a finalidade uacuteltima da vida que tem valor e
que deve ser respeitada independentemente de os indiviacuteduos a estarem usando de forma
boa ou ruim Esta abordagem natildeo implica que encontrar a finalidade uacuteltima da vida tem
valor intriacutenseco como resultado as visotildees ceacuteticas e anti-metafiacutesicas tambeacutem merecem ser
respeitadas ( N U S S B A U M 2008 168-169)
D e acordo com Nussbaum o Estado natildeo deve endossar nenhuma religiatildeo
ou a natildeo religiatildeo sobre a religiatildeo E m consequumlecircncia nenhuma indicaccedilatildeo puacuteblica de acordo
ou desacordo devem ser feitos As instituiccedilotildees puacuteblicas natildeo devem ter conteuacutedo religioso
- embora a autora assuma que teratildeo conteuacutedo eacutetico - porque elas devem ser fundadas
em princiacutepios tais como o igual respeito que todos os cidadatildeos podem compartilhar
independentemente de sua religiatildeo ( N U S S B A U M 2008 23)
Cumpre notar que essa abordagem natildeo implica uma visatildeo poacutes-modernista26
de completa relatividade de valores Nesse sentido Nussbaum esclarece que o princiacutepio
do respeito pela consciecircncia natildeo implica que todas as religiotildees e visotildees da vida devem
ser (igualmente) respeitadas pelo governo ( N U S S B A U M 2008 24)27 Se uma visatildeo
contradiz ou ameaccedila as fundaccedilotildees da ordem constitucional e a igualdade dos cidadatildeos
a comunidade pode razoavelmente se opor e desfavorecer tal visatildeo (cf N U S S B A U M 2008 24)
Assim na linha exposta por Nussbaum embora como regra geral crenccedilas
e praacuteticas religiosas devam ser respeitadas algumas accedilotildees e discursos natildeo faratildeo jus a
igual respeito e tratamento se ameaccedilarem os mais importantes valores da comunidade
poliacutetica sendo certo que Estados democraacuteticos liberais devem regular e limitar tais accedilotildees
e discursos
Alguns autores sugeriram limites a serem impostos por Estados democraacuteticos
liberais Nussbaum por exemplo entende que
views are correct or even that ali religions are valid routes to understanding life Traduccedilatildeo livre da autora The Respect-Conscience Principie just means respecting them as human beings with their own choices to make in religious matters and a right to make those choices freely Embora natildeo haja consenso sobre seu conteuacutedo o termo poacutes-modernismo foi definido a partir de seu uso por Jean Baudrillard Jean-Franccedilois Lyotard Fredric Jameson entre outros e eacute utilizado aqui para designer o contexto histoacuterico e socioloacutegico particular caracterizado pelo paradigma da transiccedilatildeo da modernidade que comeccedilou no final do seacuteculo X X As principais caracteriacutesticas do paradigma poacutes-moderno satildeo a ausecircncia de consenso o fim das metanarrativas e de qualquer pretensatildeo de teorias universais (cf BITTAR 2005 96) Para uma visatildeo socioloacutegica mais detalhada do poacutes-modernismo confira Gisela B Taschner A poacutes-modernidade e a sociologia in Revista USP Satildeo Paulo Coordenadoria de Comunicaccedilatildeo Social (CCS) da Universidade de Satildeo Paulo n 42 junago 1999 p 6-19 Traduccedilatildeo livre da autora does not imply that ali religions and views of life must be (equally) respected by the government
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Se as pessoas buscam torturar crianccedilas ou escravizar minorias citando sua religiatildeo como sua razatildeo deve-se resistir a suas reivindicaccedilotildees mesmo que elas possam ser sinceras Se eles simplesmente falam em favor da escravidatildeo ou da tortura sua liberdade de expressatildeo deve ser protegida ateacute o ponto em que o discurso se transforme em uma ameaccedila Eles natildeo poderatildeo entretanto apresentar suas ideacuteias na esfera poliacutetica em bases iguais com outras ideacuteias uma vez que a Constituiccedilatildeo (no caso da escravidatildeo) e a lei criminal (no caso da tortura) proiacutebem as praacuteticas que eles recomendam (NUSSBAUM 2008 24)28
D e acordo com Juumlrgen Habermas as sociedades multiculturais somente
podem tolerar tradiccedilotildees que aceitem a discordacircncia razoaacutevel que ele chama de tradiccedilotildees
natildeo-fundamentalistas Habermas entende que somente as formas de vida tolerantes que
aceitam a discordacircncia razoaacutevel satildeo capazes de coexistir com o reconhecimento dos
membros de culturas diferentes ( H A B E R M A S 1994 151)29 D e m o d o similar Marcelo
Neves argumenta que a intoleracircncia eacutetnica e o fuacutendamentalismo religioso satildeo contra o
pluralismo requerido pela esfera puacuteblica e devem ser juriacutedica e politicamente restringidos
(NEVES 2006 136 222 223 e Neves 2000 41)
Para Miguel Reale Juacutenior o reconhecimento de setores diferentes da
sociedade (tais como minorias eacutetnicas ou classes especiais de pessoas) de seus direitos
e de suas especificidades - a partir do avanccedilo do conceito liberal de toleracircncia para o
conceito social de solidariedade - bem como a assunccedilatildeo da responsabilidade por sua
integraccedilatildeo social natildeo importa e m abrir m atilde o de valores essenciais da pessoa humana
afirmados e conquistados ao longo do processo histoacuterico ( R E A L E JUacuteNIOR 2008
177) Sustentando que pluralismo natildeo significa arbitrismo no sentido de aceitaccedilatildeo de
qualquer organizaccedilatildeo social Reale Juacutenior idem ibidem) destaca que o pluralismo deve
ser limitado pelas conquistas essenciais acerca da dignidade humana conquistas essas que
satildeo historicamente impostergaacuteveis
C o m u m a abordagem diferente Will Kymlicka sustenta que os liberais
deveriam tentar acomodar grupos natildeo liberais desde que estes natildeo estejam buscando o
apoio da sociedade como u m todo e natildeo queiram impor seus valores a outros grupos Para
Traduccedilatildeo livre da autora [i]f people seek to torture children or to enslave minorities citing their religion as their reason their claims must be resisted even though they m a y be sincere If they simply talk in favor of slavery or torture their freedom to speak must be protected up to the point at which speech becomes a threat They will not however be able to present their ideas in the political sphere on an equal basis with other ideas since the Constitution (in the case of slavery) and the criminal law (in the case of torture) forbid the practices they recommend
Para u m a visatildeo completa sobre o entendimento de Habermas a respeito de toleracircncia religiosa vide Juumlrgen Habermas Entre naturalismo e religiatildeo estudos filosoacuteficos traduccedilatildeo de Flaacutevio Beno Siebeneichler Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 2007 especialmente Item IV - Toleracircncia p 279-392
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 753
o autor a maioria das pessoas entende que se u m a minoria nacional estaacute oprimindo outros
grupos u m a intervenccedilatildeo contra a agressatildeo eacute justificaacutevel Entretanto se a minoria somente
visa guiar sua comunidade de acordo com princiacutepios natildeo liberais e natildeo estaacute interessada e m
estabelecer regras para outros grupos ou e m privar esses outros grupos de seus recursos
parece errado impor valores liberais (cf K Y M L I C K A 1997 154-155) Assim Kymlicka
adota u m a visatildeo de acordo com a qual a toleracircncia liberal deve proteger os direitos dos
indiviacuteduos de discordar de seus grupos assim como o direito dos grupos de natildeo serem
perseguidos pelo Estado enquanto que o poder de grupos natildeo liberais de restringir a
liberdade de seus membros e o poder de Estados natildeo liberais de restringir a liberdade de
culto devem ser limitados
Neste item foram examinados (i) a diferenccedila entre o princiacutepio da toleracircncia
e o princiacutepio do respeito no que se refere agrave liberdade religiosa e (ii) os limites para a
adoccedilatildeo do princiacutepio do respeito por democracias liberais A partir dessa anaacutelise o
ordenamento juriacutedico brasileiro e a regulaccedilatildeo da liberdade religiosa seratildeo estudados no
item subsequente
3 Liberdade religiosa no Brasil
A regulaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil eacute examinada neste item com
o intuito de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia
ou do respeito Satildeo analisados os dispositivos da Constituiccedilatildeo Federal que tratam
da liberdade religiosa quais sejam aqueles relacionados ao livre exerciacutecio de cultos
religiosos agrave proteccedilatildeo aos locais de culto e suas liturgias (art 5o inc VI) agrave garantia de
prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa a pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva
(art 5o inc VII) agrave acomodaccedilatildeo juriacutedica e m razatildeo de imperativo de consciecircncia (art 5o
inc VIII) agrave vedaccedilatildeo ao estabelecimento de religiatildeo pelo Estado (art 19) e ao ensino
religioso facultativo (art 210) bem como a legislaccedilatildeo federal relacionada O estudo ora
realizado natildeo pretende analisar de forma exaustiva as leis estaduais anaacutelise esta que
quando realizada serve apenas para ilustrar a aplicaccedilatildeo das normas constitucionais
O dispositivo central da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil de
1988 que serve de base para a proteccedilatildeo da liberdade religiosa eacute seu art 5o o qual estabelece
que [t]odos satildeo iguais perante a lei sem distinccedilatildeo de qualquer natureza garantindo-se
aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Paiacutes a inviolabilidade do direito agrave vida
agrave liberdade agrave igualdade agrave seguranccedila e agrave propriedade Os dispositivos constitucionais
examinados a seguir visam a garantir a observacircncia da liberdade religiosa que se
apresenta como u m dos aspectos da liberdade e m sentido lato a qual eacute constitucionalmente
assegurada a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no Paiacutes
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31 Livre exerciacutecio de cultos religiosos e vedaccedilatildeo ao estabelecimento de religiatildeo
O inciso VI do art 5o da Constituiccedilatildeo Federal determina que eacute inviolaacutevel
a liberdade de consciecircncia e de crenccedila sendo assegurado o livre exerciacutecio dos cultos
religiosos e garantida na forma da lei a proteccedilatildeo aos locais de culto e a suas liturgias
Diferentemente do texto atual a Constituiccedilatildeo brasileira de 1967
expressamente limitava e m seu art 150 paraacutegrafo 5 o exerciacutecio da liberdade religiosa
aos cultos que natildeo contrariassem a ordem puacuteblica e os bons costumes D e acordo com
Celso Ribeiro Bastos embora a atual Constituiccedilatildeo omita o requisito de observacircncia da
ordem puacuteblica e dos bons costumes estaacute impliacutecito no ordenamento juriacutedico brasileiro
que os direitos devem ser exercidos de modo que natildeo prejudiquem os direitos de outras
pessoas e em consonacircncia com os valores eacuteticos e morais e m que se funda a sociedade
brasileira independentemente de quatildeo difiacutecil possa ser para os tribunais definirem quais
satildeo esses valores que estatildeo evoluindo constantemente (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989
52) E m sentido diverso do entendimento de Bastos Manuel Gonccedilalves Ferreira Filho
entende que em razatildeo da omissatildeo da Constituiccedilatildeo os cultos religiosos satildeo garantidos
inclusive contra eventuais limitaccedilotildees baseadas na ordem puacuteblica e nos bons costumes (cf
F E R R E I R A FILHO 1990 33) A interpretaccedilatildeo de Ferreira Filho parece mais adequada
uma vez que os legisladores constitucionais omitiram intencionalmente a exigecircncia da
observacircncia da ordem puacuteblica e dos bons costumes Dessa forma os tribunais brasileiros
natildeo podem limitar o exerciacutecio da liberdade religiosa invocando a ordem puacuteblica ou os
bons costumes
U m a questatildeo muito polecircmica sobre o exerciacutecio da liberdade de culto
e sua limitaccedilatildeo no Brasil eacute relacionada agrave caracterizaccedilatildeo do crime de curandeirismo
previsto no art 284 do Coacutedigo Penal30 Enquanto alguns autores por exemplo Magalhatildees
Noronha sustentam que uma praacutetica religiosa que pretenda curar sem tiacutetulo ou habilitaccedilatildeo
apropriada seja enquadrada como curandeirismo ( N O R O N H A 1968 107) outros
autores como Francisco de Assis Toledo argumentam que os rituais espiacuteritas e os rituais de
todas as outras religiotildees tais como o Catolicismo o Protestantismo ou Budismo embora
possam visar agrave cura ou agrave diminuiccedilatildeo do sofrimento de pessoas doentes nunca poderatildeo ser
considerados u m crime (cf T O L E D O 1986 100-101) Francisco de Assis Toledo parece
estar certo e m sua interpretaccedilatildeo do crime curandeirismo uma vez que ele leva a seacuterio a
Artigo 284 Exercer o curandeirismo
I - prescrevendo ministrando ou aplicando habitualmente qualquer substacircncia
II - usando gestos palavras ou qualquer outro meio
III - fazendo diagnoacutesticos
Pena - detenccedilatildeo de seis meses a dois anos
Paraacutegrafo uacutenico - Se o crime eacute praticado mediante remuneraccedilatildeo o agente fica tambeacutem sujeito agrave multa
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 755
garantia constitucional da liberdade de religiatildeo Atualmente o poder judiciaacuterio no Brasil
entende que os rituais espiacuteritas relacionados agrave cura de pessoas doentes natildeo podem ser
considerados curandeirismo sendo constitucionalmente protegidos como u m tipo de
culto31
Cumpre notar que durante o periacuteodo do Impeacuterio no Brasil havia uma
liberdade religiosa sem liberdade de culto somente o culto catoacutelico era reconhecido como
livre Outras religiotildees somente podiam celebrar seus cultos na esfera domeacutestica sendo
proibido todo o templo fora do lar para outras religiotildees (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989
50 e C R E T E L L A JUacuteNIOR 1992 252)
Essa abordagem inicial da liberdade religiosa no ordenamento juriacutedico
brasileiro pode ser explicada como consequumlecircncia de nosso passado colonial U m a das
justificaccedilotildees ideoloacutegicas subjacentes agrave colonizaccedilatildeo do Brasil por Portugal - e de outros
paiacuteses da Ameacuterica Latina pela Espanha - era relacionada agrave catequizaccedilatildeo dos povos
indiacutegenas C o m o resultado o catolicismo foi a religiatildeo oficial ateacute o fim do periacuteodo
imperial32
A esse respeito vale notar com Faacutebio Konder Comparato (2001 312) que
natildeo haacute autecircntica liberdade de crenccedila e de opiniatildeo num Estado que adota u m a religiatildeo
oficial As pressotildees de toda a sorte - poliacuteticas econocircmicas e profissionais - contra os natildeo
seguidores da religiatildeo de Estado tornam essa liberdade ilusoacuteria C o m efeito as religiotildees
indiacutegenas e africanas e seus valores foram negados durante grande parte da histoacuteria do
Brasil e ainda hoje haacute na sociedade brasileira preconceito contra tais religiotildees33
Exemplificativamente destaque-se que e m 1985 o Supremo Tribunal
Federal arquivou a Representaccedilatildeo n 959-PB que questionava u m a lei do Estado da
Paraiacuteba de 1966 de acordo com a qual os cultos africanos deveriam obter u m a licenccedila
preacutevia para iniciar suas atividades Tal licenccedila seria concedida se entre outras exigecircncias
o responsaacutevel pelos cultos pudesse provar sua idoneidade moral e perfeitas condiccedilotildees de
sauacutede mental conforme documentado e m relatoacuterio psiquiaacutetrico A accedilatildeo arquivada com
STF R H C 62240SP rei Min Francisco Rezek 2a Turma 13121984 DJ 02081985 p 12046 e STJ H C 1498RJ rei Min Luiz Vicente Cernicchiaro 6a Turma j 18121992 DJ 1 de 16081993 p 15994 Cf tambeacutem FERREIRA Pinto Comentaacuterios agrave constituiccedilatildeo brasileira Satildeo Paulo Saraiva 1989 p 71 C o m efeito Celso Lafer nos lembra que incumbia ao imperador antes de ser proclamado jurar manter a religiatildeo catoacutelica cabendo-lhe em contrapartida entre as suas atribuiccedilotildees nomear bispos e prover os benefiacutecios eclesiaacutesticos bem como conceder ou negar beneplaacutecitos a atos da Santa Feacute (cf Constituiccedilatildeo de 1824 art 5o 102 paraacutegrafos 2o e 14 103) (LAFER 2007) Note-se que a negaccedilatildeo dos valores africanos e de uma identidade africana no Brasil abrangendo a esfera religiosa tem suas origens na chegada dos escravos africanos desde o seacuteculo XVI A relaccedilatildeo entre os povos africanos e a sociedade colonial foi caracterizada pela conversatildeo compulsoacuteria dos escravos agrave religiatildeo de seus donos e pela perseguiccedilatildeo daqueles que insistissem na manutenccedilatildeo das praacuteticas ancestrais (DADESKY 2005 51-52)
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base no fato de que a lei e m questatildeo havia sido modificada e m 1977 tendo sido excluiacuteda
a exigecircncia da licenccedila preacutevia
A separaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja foi estabelecida no Brasil somente
durante a Repuacuteblica pelo Decreto n 119-A datado de 7 de janeiro de 1890 de autoria
de Rui Barbosa (cf L A F E R 2007) que proibiu a intervenccedilatildeo do governo federal e dos
estados e m questotildees religiosas e estabeleceu a liberdade de culto34 Desde entatildeo o Brasil
eacute u m estado laico A separaccedilatildeo entre Estado e Igreja na Constituiccedilatildeo de 1988 estaacute prevista
no art 19
Eacute vedado agrave Uniatildeo aos Estados ao Distrito Federal e aos Municiacutepios (i) estabelecer cultos religiosos ou igrejas subvencionaacute-los embaraccedilar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relaccedilotildees de dependecircncia ou alianccedila ressalvada na forma da lei a colaboraccedilatildeo de interesse puacuteblico ()
Consequentemente o Estado brasileiro eacute indiferente agraves vaacuterias igrejas que
podem ser livremente formadas como entidades legais O Estado deve ser absolutamente
neutro sendo proibida a discriminaccedilatildeo entre igrejas para beneficiaacute-las ou prejudicaacute-las
Tambeacutem natildeo pode impor nenhum ocircnus indevido agrave formaccedilatildeo de igrejas N a realidade haacute
mesmo u m incentivo constitucional para sua formaccedilatildeo que resulta da imunidade tributaacuteria
a que fazem jus ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 50-51)35
Observe-se que a colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico mencionada no Artigo
19 para natildeo infringir a proibiccedilatildeo de estabelecimento de religiatildeo pelo Estado natildeo pode
ocorrer em u m campo fundamentalmente religioso (cf F E R R E I R A FILHO 1990 144
C R E T E L L A JUacuteNIOR 1992 1179 e L A F E R 2007) N atildeo obstante essa disposiccedilatildeo tem
implicaccedilotildees muito complexas quando se trata de sua execuccedilatildeo como eacute possiacutevel estabelecer
a colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico entre o Estado e u m a determinada igreja sem favorecer
u m a religiatildeo sobre a outra36 Ademais essa disposiccedilatildeo levanta u m problema similar ao que
resulta da assistecircncia religiosa a pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva e do
ensino religioso facultativo e m escolas conforme detalhado abaixo eacute possiacutevel na praacutetica
ensinar religiatildeo prestar assistecircncia religiosa e estabelecer esquemas de colaboraccedilatildeo
Esse decreto nunca foi expressamente revogado Cf lthttpslegislacaoplanaltogovbrLEGISLA LegislacaonsffraWebOpenFrameSetampFrame=frmWeb2ampSrc=2FLEGISLA2FLegislacaonsf2Fvi wTodos2Fbea39c8e0e484811032569fa005afab43FOpenDocument26Highlight3Dl2C26Auto Framedgt Acesso em 3 abr 2009
Cumpre notar que a Lei n 8245 datada de 18 de outubro de 1991 conforme alterada estabelece que o contrato de locaccedilatildeo de imoacuteveis utilizados por entidades religiosas devidamente registradas bem como por hospitais unidades sanitaacuterias oficiais asilos estabelecimentos de sauacutede e de ensino autorizados e fiscalizados pelo Poder Puacuteblico somente poderaacute ser rescindido em determinadas situaccedilotildees Para uma criacutetica sobre a exceccedilatildeo relacionada agrave colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico vide C R E T E L L A JUacuteNIOR 19921180
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 757
no interesse puacuteblico sem favorecer u m a determinada religiatildeo e sem violar o art 19 da
Constituiccedilatildeo
32 Garantia de assistecircncia religiosa em estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva
A Constituiccedilatildeo brasileira garante a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa a
pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva abrangendo presos militares e
pacientes hospitalizados (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 54) D e acordo com o inciso
VII do art 5o da Constituiccedilatildeo eacute assegurada nos termos da lei a prestaccedilatildeo de assistecircncia
religiosa nas entidades civis e militares de internaccedilatildeo coletiva O caraacuteter laico do Estado
brasileiro natildeo eacute afetado por esta disposiccedilatildeo u m a vez que o Estado natildeo eacute obrigado a
prestar assistecircncia religiosa e as entidades religiosas eacute que iratildeo prestaacute-la (cf M A R T I N S e
B A S T O S 1989 51 e 54 e F E R R E I R A FILHO 1990 34)
Neste sentido a Lei n 7210 de 11 de julho de 1984 que trata da execuccedilatildeo
penal estabelece e m seu art 10 que o Estado deve prestar assistecircncia aos presos e internados
incluindo os egressos objetivando prevenir o crime e orientar o retorno agrave convivecircncia e m
sociedade Tal assistecircncia consistiraacute de acordo com o art 11 e m assistecircncia material
agrave sauacutede juriacutedica educacional social e religiosa D e fato o art 41 estabelece que tais
assistecircncias satildeo direitos dos presos
D e acordo com o art 24 a assistecircncia religiosa com liberdade de culto
seraacute prestada aos presos e aos internados permitindo-se-lhes a participaccedilatildeo nos serviccedilos
organizados no estabelecimento penal bem como a posse de livros de instruccedilatildeo religiosa
O primeiro paraacutegrafo deste artigo estabelece que haveraacute local apropriado para os cultos
religiosos no estabelecimento penal o segundo paraacutegrafo dispotildee que nenhum preso ou
internado poderaacute ser obrigado a participar de atividade religiosa
Adicionalmente a Lei n 9982 de 14 de julho de 2000 que trata da prestaccedilatildeo
de assistecircncia religiosa e m estabelecimentos prisionais civis e militares e e m entidades
hospitalares puacuteblicas e privadas garante e m seu art Io o acesso aos religiosos de todas
as confissotildees aos hospitais da rede puacuteblica ou privada bem como aos estabelecimentos
prisionais civis ou militares para dar atendimento religioso aos internados desde que
em c o m u m acordo com estes ou com seus familiares no caso de doentes que jaacute natildeo mais
estejam no gozo de suas faculdades mentais Vale notar que nos termos do art 2o os
religiosos chamados a prestar assistecircncia nas entidades definidas no art Io deveratildeo e m
suas atividades acatar as determinaccedilotildees legais e normas internas de cada instituiccedilatildeo
hospitalar ou penal a fim de natildeo pocircr e m risco as condiccedilotildees do paciente ou a seguranccedila do
ambiente hospitalar ou prisional
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Duas disposiccedilotildees dessa lei foram vetadas pelo Presidente37 A primeira
disposiccedilatildeo estabelecia que a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa natildeo seria permitida se de
acordo com o hospital ou a prisatildeo houvesse risco de vida ou sauacutede para o internado ou
para o religioso O Presidente justificou esse veto argumentando que a transferecircncia do
processo decisoacuterio relativo agrave prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa aos hospitais ou prisotildees
excluindo-se o paciente ou preso bem como suas famiacutelias era contraacuterio aos incisos VI
e VII do art 5o da Constituiccedilatildeo Ademais o Presidente sustentou que a precauccedilatildeo que
motivou o dispositivo vetado jaacute estaacute assegurada pelo art 2 o da lei e m questatildeo
A segunda disposiccedilatildeo vetada pelo Presidente determinava que o interno teria
direito a pelo menos u m a visita semanal de religiosos da confissatildeo religiosa que professe
O Presidente justificou esse veto argumentando que a periodicidade das visitas deveria ser
determinada pela autoridade local levando e m consideraccedilatildeo as particularidades regionais
os usos e costumes Aleacutem disso o Presidente sustentou que era inadequado tratar hospitais
e prisotildees da mesma forma tendo e m vista as circunstacircncias especiacuteficas de cada instituiccedilatildeo
Havia tambeacutem a preocupaccedilatildeo de que o nuacutemero miacutenimo de visitas estabelecido por lei se
tornasse o nuacutemero maacuteximo permitido na praacutetica
33 Acomodaccedilatildeo em razatildeo de imperativo de consciecircncia
Nos termos do inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo ningueacutem seraacute privado
de direitos por motivo de crenccedila religiosa ou de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica salvo se as
invocar para eximir-se de obrigaccedilatildeo legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestaccedilatildeo
alternativa fixada e m lei Esse inciso entre outras coisas estaacute relacionado ao serviccedilo
militar obrigatoacuterio estabelecido pelo art 143 da Constituiccedilatildeo O paraacutegrafo Io deste artigo
dispotildee que agraves Forccedilas Armadas compete na forma da lei atribuir serviccedilo alternativo aos
que e m tempo de paz apoacutes alistados alegarem imperativo de consciecircncia entendendo-
se como tal o decorrente de crenccedila religiosa e de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica para se
eximirem de atividades de caraacuteter essencialmente militar 38
Esse eacute u m dos casos de acomodaccedilatildeo existentes no ordenamento juriacutedico
brasileiro relacionado agrave crenccedila religiosa ou agraves convicccedilotildees filosoacuteficas ou poliacuteticas Para
buscar proteccedilatildeo constitucional de mo d o a natildeo participar do serviccedilo militar compulsoacuterio
e m tempos de paz faz-se necessaacuterio provar comprometimento com ideacuteias natildeo beligerantes
a ser demonstrado por atitudes passadas que estejam e m consonacircncia com tal ideal
( M A R T I N S e B A S T O S 1989 56) Note-se que eacute possiacutevel ser excluiacutedo de atividades
essencialmente militares mas poderatildeo ser impostos serviccedilos alternativos que consistam em
57 Cf Mensagem de Veto n 960 de 14 de julho de 2000 Disponiacutevel em lthttpswwwplanaltogovbr
ccivil_03leisMensagem_Veto2000Mv0960-00htmgt Acesso em 13 fev 2009 i8 Esse dispositivo constitucional foi regulamentado pela Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 759
atividades administrativas de assistecircncia filantroacutepicas ou produtivas39 jaacute que a obrigaccedilatildeo
de servir ao Paiacutes natildeo eacute excluiacuteda ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 211) Cumpre notar que da
reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia natildeo pode resultar a privaccedilatildeo de direitos exceto
se a pessoa tambeacutem se recusar a prestar serviccedilo alternativo natildeo essencialmente militar
Nessas circunstacircncias a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo aplicaacutevel natildeo satildeo inteiramente claras
sobre as consequumlecircncias legais da recusa Alguns autores entendem que nesse caso a pessoa
que se recusou a prestar serviccedilos alternativos poderia ser privada de direitos (FERREIRA
FILHO 1994 34 e 81 e M A R T I N S e B A S T O S 1989 212)40
Constata-se aqui o que parece ser u m a grande incoerecircncia no ordenamento
juriacutedico brasileiro Enquanto e m tempos de paz as pessoas podem reivindicar imperativo
de consciecircncia para evitar serviccedilos essencialmente militares quando o Estado declara
guerra nenhum cidadatildeo poderaacute invocar crenccedilas religiosas ou convicccedilotildees filosoacuteficas ou
poliacuteticas com a finalidade de natildeo participar do serviccedilo militar41 C o m o resultado durante
o periacuteodo mais adequado e apropriado para expressar desacordo com guerras e ideais
beligerantes as pessoas natildeo tem direito de reivindicar imperativo de consciecircncia para natildeo
participar do serviccedilo militar na hipoacutetese de a Constituiccedilatildeo ser interpretada literalmente
Outro caso de acomodaccedilatildeo relacionado a crenccedilas religiosas que vale ser
mencionado eacute o uso terapecircutico do chaacute Ayahuasca em rituais religiosos A partir de
1985 o governo brasileiro comeccedilou a estudar os aspectos sociais e culturais referentes
ao uso de tal chaacute E m 23 de novembro de 2006 o Grupo Multidisciplinar de Trabalho do
Comitecirc Nacional Antidrogas do Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas42
emitiu seu relatoacuterio final reconhecendo que o uso do chaacute Ayahuasca deveria ser limitado
a rituais religiosos e m locais autorizados pela direccedilatildeo das entidades que fazem uso de
tal chaacute sendo proibido seu uso em conjunto com substacircncia ilegais Atualmente o uso
do chaacute Ayahuasca e m conformidade com as normas aplicaacuteveis eacute assegurado com base
na garantia constitucional da liberdade de consciecircncia e de crenccedila e do livre exerciacutecio de
cultos religiosos Ademais a legitimidade do uso religioso da Ayahuasca foi ratificada
como rica e ancestral manifestaccedilatildeo cultural que exatamente pela relevacircncia de seu valor
Os serviccedilos alternativos podem ser prestados e m organizaccedilotildees militares da ativa e e m oacutergatildeos de formaccedilatildeo de reservas das Forccedilas Armadas ou em oacutergatildeos subordinados aos Ministeacuterios Civis mediante convecircnios entre estes e os Ministeacuterios Militares Cf sectsect 2o e 3o do art 3o da Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991 N o entanto parece-nos que o serviccedilo militar obrigatoacuterio natildeo estaacute de acordo com os princiacutepios que norteiam a Constituiccedilatildeo no sentido de que serviccedilos alternativos natildeo deveriam ser impostos Contudo a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo Ives Granda Martins sustenta que e m tempos de guerra todos os cidadatildeos tecircm iguais deveres perante o Paiacutes (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 212) Discordamos totalmente deste posicionamento porque uma das formas mais eficazes de expressar desacordo com guerras e ideais beligerantes eacute durante o periacuteodo de guerra quando as pessoas que natildeo concordam poderiam recusar-se a prestar serviccedilos militares Contudo conforme mencionado acima a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo O Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas - S I S N A D foi instituiacutedo pela Lei n 11343 de 23 de agosto de 2006
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7(gt(l Maria Costa Neves Machado
histoacuterico antropoloacutegico e social eacute credora da proteccedilatildeo do Estado nos termos do art
2o caput da Lei n 1134306 e do art 215 sect1deg da C F 43 que dispotildee que [o] Estado
protegeraacute as manifestaccedilotildees das culturas populares indiacutegenas e afro-brasileiras e das de
outros grupos participantes do processo civilizatoacuterio nacional44
Eacute de se notar tambeacutem o recente caso no Estado de Satildeo Paulo de acomodaccedilatildeo
religiosa previsto na Lei Estadual n 13541 de 7 de maio de 2009 Tal lei proiacutebe o consumo
de cigarros cigarrilhas charutos cachimbos ou de qualquer outro produto fumiacutegeno
derivado ou natildeo do tabaco e m ambientes de uso coletivo puacuteblicos ou privados Contudo
nos termos do art 6o da referida lei essa natildeo se aplica aos locais de culto religioso em que
o uso de produto fumiacutegeno faccedila parte do ritual O u seja trata-se de mais u m caso em que
uma lei geral eacute excetuada para acomodar praacuteticas relacionadas agrave liberdade de religiatildeo e
de culto
Diferentemente das situaccedilotildees envolvendo serviccedilo militar obrigatoacuterio
o chaacute Ayahuasca e rituais religiosos que envolvem o uso de produtos fumiacutegenos foi
negada acomodaccedilatildeo quando da reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia no contexto
de frequumlecircncia escolar no Estado de Satildeo Paulo E m opiniatildeo escrita por Ada Pellegrini
Grinover publicada e m 25 de outubro de 2002 o Conselho Estadual de Educaccedilatildeo do
Estado de Satildeo Paulo entendeu que estudantes que fossem membros da Igreja Adventista
do Seacutetimo Dia estariam obrigados a frequumlentar as aulas durante o periacuteodo compreendido
entre 1800 horas de sexta-feira e 1800 de saacutebados de acordo com a Lei n 9394 de 20
de dezembro de 1996 conforme alterada embora tal frequumlecircncia seja contraacuteria agraves suas
praacuteticas religiosas u m a vez que natildeo haacute prestaccedilatildeo alternativa estabelecida em lei para tal
escusa de consciecircncia conforme fixado pelo inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo45
Adicionalmente aos casos de acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de
consciecircncia o inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo tambeacutem jaacute foi invocado para proteger
os direitos dos professores do Estado de Rio de Janeiro contra lei estadual que estabeleceu
que somente os professores credenciados pela autoridade religiosa competente estaratildeo
autorizados a ministrar as aulas de ensino religioso e m escolas puacuteblicas estaduais Para
compreender a Accedilatildeo Direta de Inconstitucionalidade - A D I N n 326804 que ainda natildeo
foi decidida pela Suprema Corte faz-se necessaacuterio analisar as disposiccedilotildees legais aplicaacuteveis
relacionadas ao ensino religioso no Brasil
Cf Relatoacuterio Final do Grupo Multidisciplinar de Trabalho disponiacutevel entre outros siacutetios em lthttp wwwsantodaimeorgcomunidadenoticiasrelfinal_conadhtmgt Acesso em 4 mar 2009 e lthttpwww ayahuascabrasilorgindexphpop=legisl01gt Acesso em 4 mar 2009 A acomodaccedilatildeo relacionada ao uso do chaacute Ayahuasca para fins religiosos nos Estados Unidos foi decidida pela Suprema Courte em Gonzales v O Centro Espirita Beneficente Uniatildeo do Vegetal 546 US 418 (2006) Cf Parecer C E E No 4422002 - C E S - Aprovado em 23102002 Disponiacutevel em lthttpwwwceesp spgovbrParecerespa_442_02htmgt Acesso em 4 mar 2009
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 761
34 Ensino religioso facultativo
Nos termos do art 210 da Constituiccedilatildeo [sjeratildeo fixados conteuacutedos miacutenimos
para o ensino fundamental de maneira a assegurar formaccedilatildeo baacutesica c o m u m e respeito aos
valores culturais e artiacutesticos nacionais e regionais O paraacutegrafo Io desse Artigo dispotildee
que [o] ensino religioso de matriacutecula facultativa constituiraacute disciplina dos horaacuterios
normais das escolas puacuteblicas de ensino fundamental
Nesse sentido o art 33 da Lei n 9394 de 22 de julho de 1997 conforme
alterada determina que o respeito agrave diversidade cultural religiosa do Brasil eacute assegurado
no ensino religioso sendo proibida qualquer forma de proselitismo O primeiro paraacutegrafo
desse Artigo dispotildee que [o]s sistemas de ensino regulamentaratildeo os procedimentos para a
definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso e estabeleceratildeo as normas para a habilitaccedilatildeo
e admissatildeo dos professores Ademais de acordo com o segundo paraacutegrafo do referido
Artigo [o]s sistemas de ensino ouviratildeo entidade civil constituiacuteda pelas diferentes
denominaccedilotildees religiosas para a definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso46
D e modo a observar a proibiccedilatildeo constitucional de estabelecimento de
religiatildeo o ensino religioso e m escolas natildeo pode consistir no ensino de u m a religiatildeo
determinada Nesse sentido a previsatildeo constitucional tem por finalidade dar oportunidade
a estudantes que estatildeo e m idade de formaccedilatildeo de personalidade de ter acesso a informaccedilotildees
de modo que no futuro eles possam livremente escolher adotar ou natildeo adotar u m a religiatildeo
(cf S C H E R K E R K E W I T Z 2002 60)47
Levando e m consideraccedilatildeo esses dispositivos a A D I N n 326804 foi
ajuizada pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo com o intuito de
declarar que a Lei n 3459 aprovada pela Assembleacuteia Legislativa do Estado do Rio de
Janeiro e m 14 de setembro de 2000 eacute inconstitucional u m a vez que estabeleceu que (i)
religiatildeo seria ensinada na forma confessional (ii) o conteuacutedo do ensino religioso seria
atribuiccedilatildeo de diversas autoridades religiosas e (iii) apenas professores credenciados pela
autoridade religiosa competente poderiam ensinar religiatildeo e m escolas oficiais
A Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo argumenta que o
ensino religioso na forma confessional viola o art 210 da Constituiccedilatildeo que estabelece que
os valores culturais seratildeo respeitados quando do estabelecimento dos conteuacutedos miacutenimos
para o ensino fundamental e o art 33 da Lei Federal n 939497 que determina que o
ensino religioso respeitaraacute a diversidade cultural do Brasil
Cumpre notar que nos termos do art 21 do Decreto-Lei n 4244 de 9 de abril de 1942 o programa e o regime didaacutetico do ensino religioso deveria ser determinado pela autoridade religiosa De acordo com Alexandre de Moraes para que a regulamentaccedilatildeo e a execuccedilatildeo desta disposiccedilatildeo natildeo sejam inconstitucionais faz-se necessaacuterio que toda e qualquer religiatildeo possa ser ensinada nas escolas puacuteblicas O autor entende que na praacutetica isso eacute absolutamente impossiacutevel (cf M O R A E S 2003 1984-1985)
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762 Maria Costa Neves Machado
Adicionalmente a confederaccedilatildeo sustenta que a disposiccedilatildeo de acordo
com a qual o conteuacutedo do ensino religioso eacute u m a atribuiccedilatildeo das diversas autoridades
religiosas contraria o art 33 da Lei Federal n 939497 que estabelece diferentes padrotildees
para a definiccedilatildeo do conteuacutedo do ensino religioso E m conformidade com tal lei federal
os sistemas de ensino devem ouvir entidades civis de diversas religiotildees para definir
o conteuacutedo do ensino religioso A violaccedilatildeo eacute demonstrada com base no fato de que o
conceito de autoridade religiosa - que implica u m a estrutura administrativa e hieraacuterquica
como aquelas presentes nas Igrejas Catoacutelicas Presbiterianas e Judaicas - natildeo eacute parte da
tradiccedilatildeo de algumas religiotildees que tem origem Evangeacutelica ou afro-brasileira
A A D I N ainda natildeo foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal De qualquer
forma os argumentos apresentados pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores em
Educaccedilatildeo - e pelos vaacuterios amicus curiae admitidos no processo - parecem ser coerentes
com a Constituiccedilatildeo Federal e aptos a derrubar a Lei Estadual n 3459
N o Estado de Satildeo Paulo o ensino religioso previsto no art 33 da Lei n
939497 foi regulamentado na Deliberaccedilatildeo do Conselho Estadual de Educaccedilatildeo - CEE
n 162001 com fundamento na Indicaccedilatildeo C E E n 07 aprovada e m 25 de julho de 2001
de acordo com a qual o ensino religioso deve ser enfocado na perspectiva constitucional
de promoccedilatildeo da cidadania e da dignidade especialmente na funccedilatildeo social da educaccedilatildeo
e m geral de modo que deve ser enfatizada a reflexatildeo sobre a cidadania e as praacuteticas a ela
pertinentes Assumindo que natildeo haacute conhecimento futuro e vida sem a competecircncia de
conviver com as diferenccedilas a Indicaccedilatildeo C E E n 072001 reconhece que satildeo bem-vindos
todos os projetos educacionais (aiacute se podendo incluir o ensino religioso) que visam direta
ou indiretamente o trabalho comunitaacuterio a conscientizaccedilatildeo da responsabilidade pessoal
e social e que estimulem e restaurem os valores humanos de compromisso moral e eacutetico
auxiliando a compreensatildeo do h o m e m e o autoconhecimento Nesse sentido de acordo com
referida indicaccedilatildeo o ensino religioso nas escolas deve antes de tudo fundamentar-se nos
princiacutepios da cidadania e do entendimento do outro Assim o C E E recomendou que o
ensino religioso fosse tratado como tema transversal por meio da implementaccedilatildeo de uma
proposta de abordagem filosoacutefica que permitisse a reflexatildeo sobre valores e princiacutepios eacuteticos e
o conhecimento da histoacuteria das religiotildees Tambeacutem no Estado de Satildeo Paulo a implementaccedilatildeo
do ensino religioso foi arduamente debatida e criticada especialmente em razatildeo da
problemaacutetica questatildeo do estabelecimento de religiatildeo vedado pela Constituiccedilatildeo de 198848
Vide entre outros GIUMBELLI Emerson Ensino religioso em escolas puacuteblicas no Brasil notas de pesquisa Debates do N E R (UFRGS) v 14 p 50-68 2009 CURY Carlos Roberto Jamil Ensino religioso na escola puacuteblica o retorno de uma polecircmica recorrente Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 27 p 183-213 setdez 2004 LUI Janayna de Alencar Entre crentes e pagatildeos ensino religioso em Satildeo Paulo Cadernos de Pesquisa v 37 n 131 p 333-349 maioago 2007 R A N Q U E T A T JUacuteNIOR Ceacutesar Do confessional ao plural uma anaacutelise sobre o novo modelo de ensino religioso nas escolas brasileiras Revista Diaacutelogo Educaccedilatildeo Curitiba v 8 n 23 p 289-305 janabr 2008
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 763
Neste item a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil foi examinada
com a finalidade de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota u m princiacutepio de
toleracircncia ou de respeito As normas relacionadas agrave garantia da liberdade de consciecircncia
e de crenccedila bem como ao livre exerciacutecio de cultos religiosos agrave proteccedilatildeo dos locais de
adoraccedilatildeo agrave proibiccedilatildeo do estabelecimento de religiatildeo agrave garantia de assistecircncia religiosa
e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva agrave acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de
consciecircncia e ao ensino religioso facultativo todas foram analisadas de modo que fosse
possiacutevel concluir se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia ou
do respeito
D e acordo com tal anaacutelise o ordenamento juriacutedico brasileiro parece tratar a
religiatildeo e m conformidade com o princiacutepio do respeito Isso porque pessoas religiosas e natildeo
religiosas podem entrar no espaccedilo puacutebico e m iguais condiccedilotildees sendo que a faculdade de
buscar a finalidade uacuteltima da vida eacute respeitada pelo Estado Nesse sentido o ordenamento
juriacutedico brasileiro garante a liberdade de consciecircncia e de crenccedila o livre exerciacutecio de
cultos religiosos e a proteccedilatildeo dos locais de adoraccedilatildeo Adicionalmente enquanto de u m
lado nenhuma religiatildeo pode ser estabelecida pelo Estado pessoas religiosas podem
reivindicar imperativo de consciecircncia bem como receber assistecircncia religiosa e ensino
religioso se essa for a sua escolha
Isso demonstra que todos os indiviacuteduos de acordo com o ordenamento
juriacutedico brasileiro devem entrar no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais e que o Estado eacute
obrigado a fornecer condiccedilotildees para que pessoas religiosas e natildeo religiosas possam buscar
a finalidade uacuteltima da vida se essa for sua escolha respeitando e m todos os indiviacuteduos a
faculdade de realizar tal busca
4 Conclusatildeo
Inicialmente foi examinada neste artigo a diferenccedila entre o princiacutepio da
toleracircncia e o princiacutepio do respeito no que se refere ao tratamento legal de questotildees de
consciecircncia Posteriormente a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no ordenamento
juriacutedico brasileiro foi analisada com a finalidade de verificar qual desses dois princiacutepios eacute
adotado Finalmente conclui-se que o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio
do respeito pela faculdade dos indiviacuteduos de buscar pela finalidade uacuteltima da vida sendo o
Estado obrigado a garantir condiccedilotildees adequadas para as pessoas exercerem tal faculdade
de acordo com suas escolhas autocircnomas de modo que todos os indiviacuteduos possam entrar
no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais
Satildeo Paulo dezembro de 2010
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 141
Tambeacutem sustentando a abordagem da toleracircncia - em oposiccedilatildeo agrave abordagem
do respeito - Simon Blackburn argumenta que natildeo haacute nenhuma razatildeo para que algueacutem
respeite u m sistema de crenccedilas que esta pessoa natildeo compartilhe (cf B L A C K B U R N 2009
1) Ele entende que a palavra respeito pode significar a simples ausecircncia de interferecircncia
mas que tambeacutem pode significar admiraccedilatildeo reverecircncia ou deferecircncia (cf B L A C K B U R N
2009 2) De acordo com estes niacuteveis o autor afirma que as pessoas podem respeitar
outras pessoas que possuam crenccedilas falsas ou irracionais somente num sentido miacutenimo de
toleracircncia10 U m a vez que noacutes reconhecemos aquelas crenccedilas como falsas ou irracionais
natildeo eacute possiacutevel respeitaacute-las pelo menos natildeo como decorrecircncia do fato de que algueacutem
acredita nelas (cf B L A C K B U R N 2009 3 e 7) E m conformidade com Blackburn
acreditar numa crenccedila falsa natildeo concede a ningueacutem o direito ao respeito Na medida em que eu natildeo posso compartilhar de sua crenccedila eu natildeo tenho nenhuma razatildeo para respeitaacute-lo por acreditar nela - pelo contraacuterio na verdade (BLACKBURN 2009 16)
O autor argumenta que eacute inconsistente com qualquer concepccedilatildeo apropriada
de crenccedila - a qual implica que haacute u m contraste entre certo e errado - pensar que essa eacute
uma questatildeo exclusivamente pessoal e que qualquer crenccedila eacute tatildeo boa quanto qualquer
outra N a verdade ele nega que crenccedilas estejam livres de controle normativo e que a
desigualdade entre crenccedilas seja uma violaccedilatildeo de direitos de uma pessoa Para ele ningueacutem
por u m momento acredita nesta igualdade promiacutescua de crenccedilas na vida quotidiana
( B L A C K B U R N 2009 3)12
Parece que Blackburn estaacute criticando uma concepccedilatildeo de respeito para
crenccedilas religiosas que signifique a admiraccedilatildeo de todas as crenccedilas apenas porque elas
satildeo detidas por uma pessoa Entretanto o respeito requerido pela liberdade religiosa natildeo
corresponde a u m sentimento de admiraccedilatildeo pelas crenccedilas e praacuteticas religiosas especiacuteficas
as quais noacutes podemos natildeo compartilhar mas a u m respeito pela capacidade potencial de
todos os seres humanos de fazerem escolhas autonomamente conforme seraacute demonstrado
pela abordagem de Martha Nussbaum
O problema fundamental com o princiacutepio da toleracircncia eacute que este deixa
o tolerado desconfortaacutevel em pelo menos trecircs maneiras (cf G R E E N 2008 4-8) C o m o
demonstrado por Leslie Green a toleracircncia eacute limitada e m seu escopo eacute incompleta e
10 Para o autor existe tambeacutem uma graduaccedilatildeo de respeito referente a pessoas que possuem crenccedilas falsas no sentido de que respeitamos mais algumas pessoas das quais discordamos do que outras (cf B L A C K B U R N 2009 6)
11 Traduccedilatildeo livre da autora holding a false belief does not give anyone a title to respect Insofar as I cannot share your belief I have no reason to respect you for holding it - quite the reverse in fact
12 Traduccedilatildeo livre da autora nobody for a moment believes in this promiscuous equality of belief in everyday life
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parcial e pode ser considera principalmente c o m o questatildeo de descriminalizaccedilatildeo de
condutas1314 M a s natildeo somente o escopo do princiacutepio da toleracircncia pode estar errado
seus fundamentos tambeacutem podem u m princiacutepio de toleracircncia pode ser adotado por razotildees
morais suspeitas15 Aleacutem disso se u m princiacutepio de toleracircncia for sustentado da maneira
errada - aqueles que toleram deixam claro que prefeririam natildeo ser tolerantes - aqueles
que satildeo tolerados podem tambeacutem sentir-se desconfortaacuteveis ( G R E E N 2008 6-7)16
Entretanto m e s m o que u m sistema legal pudesse construir u m princiacutepio de
toleracircncia que superasse as falhas mencionadas acima aqueles que satildeo tolerados ainda se
sentiriam desconfortaacuteveis porque seria sempre melhor se natildeo tivessem que ser tolerados
e sujeitados ao poder de toleracircncia de outra pessoa ( G R E E N 2008 6-7)n Nesse sentido
Green sustenta que
Quem quer viver da graccedila e do favor dos poderosos Isto eacute especialmente verdadeiro quando tolerados natildeo tecircm nenhum poder similar sobre seus toleradores A esse respeito a toleracircncia compartilha algo com outras relaccedilotildees desejaacuteveis mas assimeacutetricas como oferecer misericoacuterdia ou sentir piedade que pode tambeacutem ser incocircmoda para seus
13 E m relaccedilatildeo agrave toleracircncia de minorias sexuais Leslie Green ressalta que exceto pela descriminalizaccedilatildeo
haacute pouca evidecircncia que a natildeo-conformidade sexual seja amplamente tolerada nos Estados Unidos onde
eleiccedilotildees ainda podem ser perdidas ou ganhas dependendo da questatildeo a respeito do que fazer sobre gays e
onde e m aacutereas como direito do trabalho e de famiacutelia minorias sexuais continuam a vivenciar tratamento
duro atualmente raro em democracias liberais (GREEN 2008 5) (traduccedilatildeo livre da autora apart from
decriminalization there is slim evidence that sexual non-conformity is widely tolerated in the United States
where elections can still be won or lost on the issue of what to do about the gays and where in aacutereas from
employment to family law sexual minorities continue to experience harsh treatment now rare in liberal
democracies) 14 Natildeo obstante o autor alerta que a descriminalizaccedilatildeo de condutas pode natildeo resultar da adoccedilatildeo de u m princiacutepio
de toleracircncia - faz-se necessaacuterio examinar as razotildees pelas quais determinada conduta foi descriminalizada
(cf G R E E N 2008 5) 15 Por exemplo o autor afirma que seria preocupante se u m governo tolerasse o ato de fumar porque seus
atuaacuterios descobriram que fumantes morrem mais cedo o suficiente para aumentar o saldo liacutequido da
previdecircncia (traduccedilatildeo livre da autora) Ademais ele menciona que se a homossexualidade eacute tolerada
somente porque e na medida e m que existem outras condutas mais seriamente erradas para reprimir gays
americanos justamente sentiriam u m mal-estar (cf G R E E N 2008 6) (traduccedilatildeo livre da autora) 16 Identificando tambeacutem os problemas decorrentes do princiacutepio da toleracircncia Miguel Reale Juacutenior (2008
176) com base nas ideacuteias de Javier Lucas afirma que a retoacuterica da toleracircncia natildeo acolhe a criaccedilatildeo de uma
cultura fruto do diaacutelogo intercultural e ignora os problemas de inclusatildeo do diferente para se estabelecer a
igualdade na diversidade Nesse sentido Reale Juacutenior defende que o conceito liberal de toleracircncia deve
ser complementado com o conceito social de solidariedade destacando que solidariedade significa natildeo
apenas aceitaccedilatildeo da diferenccedila mas como realccedila Judith Martins-Costa uma aceitaccedilatildeo qualificada de cunho
normativo pela qual se admite que o diferente pode receber maior tutela ou tutela especiacutefica que atenda agrave
sua diferenccedila concreta como membro da comunidade ( R E A L E JUacuteNIOR 2008 176-177) 17 E m 1791 Thomas Paine notou que toleracircncia natildeo eacute o oposto de intoleracircncia mas a sua imitaccedilatildeo Ambos
satildeo despotismos U m assume para si o direito de reter a liberdade de consciecircncia e o outro de concedecirc-la
(paine 1791) Madison tambeacutem chamou a atenccedilatildeo das pessoas para o fato de que a palavra toleracircncia era
muito relutante sugerindo benevolecircncia legislativa ao inveacutes de direito ( N U S S B A U M 2008 90) (traduccedilatildeo livre da autora)
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receptores E quando noacutes consideramos as pessoas natildeo como mocircnadas mas como membros de grupos minoritaacuterios entatildeo o fato da toleracircncia pode ser um lembrete infeliz da distribuiccedilatildeo de poder social (GREEN 2008 IO)18
Assim o princiacutepio da toleracircncia reflete tambeacutem a diferenccedila de poder entre
tolerados e toleradores E isto causa mais u m a vez desconforto nos tolerados no sentido
de que estes precisam contar com a benevolecircncia dos poderosos quando o poder eacute exercido
e quando a conduta do tolerado eacute julgada pelos poderosos (cf G R E E N 2008 8-12)
Green entende que entre as trecircs maneiras que geralmente satildeo chamadas
para complementar o princiacutepio da toleracircncia quais sejam aceitaccedilatildeo19 reconhecimento20
e compreensatildeo21 a uacuteltima eacute a adequada O autor assinala que u m a melhor compreensatildeo
pode ampliar a toleracircncia pode fazer com que as pessoas tenham menos m aacute vontade
pode mudar a disposiccedilatildeo para a toleracircncia incentivando pessoas a revisitar julgamentos
e pode tambeacutem ser u m a boa maneira de evitar razotildees erradas para a toleracircncia Essa
complementaccedilatildeo pode deixar aqueles que satildeo tolerados mais confortaacuteveis porque eles
sabem que os toleradores estatildeo fazendo esforccedilos de boa-feacute para compreender C o m o
consequumlecircncia os tolerados sentem que satildeo considerados como parte da convivecircncia
humana (cf G R E E N 2008 21) Green conclui que
Compreender o que a conduta reprovada significa para o agente e como se encaixa em uma vida humana pode fazer-nos revisitar e agraves vezes revisar aquele julgamento Pode complementar a toleracircncia pode tomar-nos toleradores melhores especialmente quando nos daacute uma ideacuteia do que eacute estar na extremidade afiada de uma vareta Esse tipo da compreensatildeo deixa espaccedilo para discordacircncias em torno de valores e deixa espaccedilo para correccedilatildeo de erros Natildeo
18 Traduccedilatildeo livre da autora W h o wants to live by grace and favor ofthe powerful This is especially true when the tolerated have no similar power over their tolerators In this respect toleration shares something with other desirable but asymmetric relations like offering mercy or taking pity which can also be uncomfortable for their recipients And when w e consider people not as monads but as members of minority groups then the fact of toleration may be an unhappy reminder ofthe social distribution of power
19 Se o princiacutepio da toleracircncia fosse complementado pela aceitaccedilatildeo aqueles que praticam atos ou possuem crenccedilas que satildeo toleradas podem (i) assumir abertamente suas praacuteticas e crenccedilas sem que lhes seja imposta nenhuma consequumlecircncia adversa ou (ii) demandar acomodaccedilatildeo para suas praacuteticas e crenccedilas (cf G R E E N 2008 12-15)
20 Se o princiacutepio da toleracircncia fosse complementado pelo reconhecimento praacuteticas e crenccedilas seriam toleradas de bom grado ateacute por aqueles que pensam que tais praacuteticas e crenccedilas satildeo supersticiosas sexistas etc e aqueles que toleram veriam os tolerados como eles mesmos se vecircem Nesse sentido reconhecimento exige natildeo apenas que os valores do tolerado sejam compartilhados pelos toleradores mas que a identidade do tolerado seja reconhecida (cf G R E E N 2008 15-19)
21 Se o princiacutepio da toleracircncia fosse complementado pelo entendimento toleradores deveriam tentar recriar ou capturar na medida do possiacutevel o sentido que accedilotildees e siacutembolos tecircm para seus agentes (GREEN 2008 20-25) (traduccedilatildeo livre da autora attempt to capture or recreate to the extent that w e can the meanings that acts and symbols have for their agents)
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Xrdiz a aceitaccedilatildeo ou o reconhecimento Mas o esforccedilo para compreender afirma nossa convivecircncia com os objetos de nossa toleracircncia Sem isso a toleracircncia eacute mais pobre - e mais dura - do que precisaria ser (GREEN 2008 27)22
Embora Green reconheccedila as principais falhas do princiacutepio da toleracircncia
parece que sua complementaccedilatildeo por u m a atitude compreensiva como sugerida pelo autor
ainda natildeo eacute suficiente para garantir a igualdade entre cidadatildeos e para proteger a dignidade
humana em democracias liberais
Tambeacutem criticando a abordagem da toleracircncia Heiner Bielefeldt argumenta
que a crise normativa resultante do pluralismo cultural deve ser endereccedilada pelo
reconhecimento de tal pluralismo natildeo pela sua toleracircncia C o m o afirmado por Bielefeldt
o problema da toleracircncia eacute que aqueles que tecircm o poder de tolerar tambeacutem tecircm o poder
de natildeo tolerar e aqueles que consideram que tem o poder para tolerar pretendem julgar
as questotildees de consciecircncia O autor sustenta que somente apoacutes a superaccedilatildeo dos conceitos
tradicionais de toleracircncia o pluralismo religioso e poliacutetico natildeo seraacute considerado uma perda
infeliz do centralismo religioso e da cosmovisatildeo da sociedade tradicional O pluralismo
religioso e poliacutetico seratildeo entatildeo considerados uma expressatildeo da responsabilidade autocircnoma
dos seres humanos que desejam ser respeitados e m suas convicccedilotildees e ter direitos iguais
(cf BIELEFELDT 2000 50)
D o mesmo modo Martha Nussbaum argumenta e m favor do princiacutepio
do respeito pela consciecircncia (Respect-Conscience Principie)23 de acordo com o qual
a esfera puacuteblica deve respeitar os diferentes comprometimentos religiosos de todos os
cidadatildeos e deve garantir u m espaccedilo onde os cidadatildeos possam agir consistentemente com
suas consciecircncias de forma que todos os cidadatildeos possam entrar no espaccedilo puacuteblico em
condiccedilotildees iguais ( N U S S B A U M 2008 22-23)
Nussbaum entende que tal princiacutepio natildeo requer a aprovaccedilatildeo de
reivindicaccedilotildees teoloacutegicas e eacuteticas de nenhuma religiatildeo pela esfera puacuteblica ou por cidadatildeos
individualmente (cf N U S S B A U M 2008 23) Neste sentido ela sustenta que o [r]
espeito por concidadatildeos natildeo significa dizer ou acreditar que suas visotildees religiosas estatildeo
corretas ou mesmo que todas as religiotildees satildeo caminhos vaacutelidos ao entendimento da vida
( N U S S B A U M 2008 23)24 Assim ela conclui que
Traduccedilatildeo livre da autora Understanding what the disapproved conduct means for the agent and how it fits into a human life may make us revisit and sometimes revise that judgment It may supplement torelation it may make us better tolerators especially when it gives us a grasp of what it is to be at the sharp end of a particular stick That kind of understanding leaves room for disagreement in value and room for correction of error It does not bring acceptance or recognition But the effort to understand affirms our fellowship with the objects of our toleration Without that toleration is poorer - and harder - than it need to be A autora expressamente afirma sua preferecircncia pelo termo respeito ao inveacutes do termo toleracircncia porque entende que o uacuteltimo eacute muito fraco e relutante (cf N U S S B A U M 2008 24) Traduccedilatildeo livre da autora [r]espect for fellow citizens does not mean saying or believing that their religious
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 751
O princiacutepio do respeito pela consciecircncia significa apenas respeitaacute-los como
seres humanos com suas proacuteprias escolhas para fazer em mateacuterias religiosas e u m direito
de fazer livremente essas escolhas ( N U S S B A U M 2008 23)25
Assim eacute a faculdade de buscar a finalidade uacuteltima da vida que tem valor e
que deve ser respeitada independentemente de os indiviacuteduos a estarem usando de forma
boa ou ruim Esta abordagem natildeo implica que encontrar a finalidade uacuteltima da vida tem
valor intriacutenseco como resultado as visotildees ceacuteticas e anti-metafiacutesicas tambeacutem merecem ser
respeitadas ( N U S S B A U M 2008 168-169)
D e acordo com Nussbaum o Estado natildeo deve endossar nenhuma religiatildeo
ou a natildeo religiatildeo sobre a religiatildeo E m consequumlecircncia nenhuma indicaccedilatildeo puacuteblica de acordo
ou desacordo devem ser feitos As instituiccedilotildees puacuteblicas natildeo devem ter conteuacutedo religioso
- embora a autora assuma que teratildeo conteuacutedo eacutetico - porque elas devem ser fundadas
em princiacutepios tais como o igual respeito que todos os cidadatildeos podem compartilhar
independentemente de sua religiatildeo ( N U S S B A U M 2008 23)
Cumpre notar que essa abordagem natildeo implica uma visatildeo poacutes-modernista26
de completa relatividade de valores Nesse sentido Nussbaum esclarece que o princiacutepio
do respeito pela consciecircncia natildeo implica que todas as religiotildees e visotildees da vida devem
ser (igualmente) respeitadas pelo governo ( N U S S B A U M 2008 24)27 Se uma visatildeo
contradiz ou ameaccedila as fundaccedilotildees da ordem constitucional e a igualdade dos cidadatildeos
a comunidade pode razoavelmente se opor e desfavorecer tal visatildeo (cf N U S S B A U M 2008 24)
Assim na linha exposta por Nussbaum embora como regra geral crenccedilas
e praacuteticas religiosas devam ser respeitadas algumas accedilotildees e discursos natildeo faratildeo jus a
igual respeito e tratamento se ameaccedilarem os mais importantes valores da comunidade
poliacutetica sendo certo que Estados democraacuteticos liberais devem regular e limitar tais accedilotildees
e discursos
Alguns autores sugeriram limites a serem impostos por Estados democraacuteticos
liberais Nussbaum por exemplo entende que
views are correct or even that ali religions are valid routes to understanding life Traduccedilatildeo livre da autora The Respect-Conscience Principie just means respecting them as human beings with their own choices to make in religious matters and a right to make those choices freely Embora natildeo haja consenso sobre seu conteuacutedo o termo poacutes-modernismo foi definido a partir de seu uso por Jean Baudrillard Jean-Franccedilois Lyotard Fredric Jameson entre outros e eacute utilizado aqui para designer o contexto histoacuterico e socioloacutegico particular caracterizado pelo paradigma da transiccedilatildeo da modernidade que comeccedilou no final do seacuteculo X X As principais caracteriacutesticas do paradigma poacutes-moderno satildeo a ausecircncia de consenso o fim das metanarrativas e de qualquer pretensatildeo de teorias universais (cf BITTAR 2005 96) Para uma visatildeo socioloacutegica mais detalhada do poacutes-modernismo confira Gisela B Taschner A poacutes-modernidade e a sociologia in Revista USP Satildeo Paulo Coordenadoria de Comunicaccedilatildeo Social (CCS) da Universidade de Satildeo Paulo n 42 junago 1999 p 6-19 Traduccedilatildeo livre da autora does not imply that ali religions and views of life must be (equally) respected by the government
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752 Maria Costa Neves Machado
Se as pessoas buscam torturar crianccedilas ou escravizar minorias citando sua religiatildeo como sua razatildeo deve-se resistir a suas reivindicaccedilotildees mesmo que elas possam ser sinceras Se eles simplesmente falam em favor da escravidatildeo ou da tortura sua liberdade de expressatildeo deve ser protegida ateacute o ponto em que o discurso se transforme em uma ameaccedila Eles natildeo poderatildeo entretanto apresentar suas ideacuteias na esfera poliacutetica em bases iguais com outras ideacuteias uma vez que a Constituiccedilatildeo (no caso da escravidatildeo) e a lei criminal (no caso da tortura) proiacutebem as praacuteticas que eles recomendam (NUSSBAUM 2008 24)28
D e acordo com Juumlrgen Habermas as sociedades multiculturais somente
podem tolerar tradiccedilotildees que aceitem a discordacircncia razoaacutevel que ele chama de tradiccedilotildees
natildeo-fundamentalistas Habermas entende que somente as formas de vida tolerantes que
aceitam a discordacircncia razoaacutevel satildeo capazes de coexistir com o reconhecimento dos
membros de culturas diferentes ( H A B E R M A S 1994 151)29 D e m o d o similar Marcelo
Neves argumenta que a intoleracircncia eacutetnica e o fuacutendamentalismo religioso satildeo contra o
pluralismo requerido pela esfera puacuteblica e devem ser juriacutedica e politicamente restringidos
(NEVES 2006 136 222 223 e Neves 2000 41)
Para Miguel Reale Juacutenior o reconhecimento de setores diferentes da
sociedade (tais como minorias eacutetnicas ou classes especiais de pessoas) de seus direitos
e de suas especificidades - a partir do avanccedilo do conceito liberal de toleracircncia para o
conceito social de solidariedade - bem como a assunccedilatildeo da responsabilidade por sua
integraccedilatildeo social natildeo importa e m abrir m atilde o de valores essenciais da pessoa humana
afirmados e conquistados ao longo do processo histoacuterico ( R E A L E JUacuteNIOR 2008
177) Sustentando que pluralismo natildeo significa arbitrismo no sentido de aceitaccedilatildeo de
qualquer organizaccedilatildeo social Reale Juacutenior idem ibidem) destaca que o pluralismo deve
ser limitado pelas conquistas essenciais acerca da dignidade humana conquistas essas que
satildeo historicamente impostergaacuteveis
C o m u m a abordagem diferente Will Kymlicka sustenta que os liberais
deveriam tentar acomodar grupos natildeo liberais desde que estes natildeo estejam buscando o
apoio da sociedade como u m todo e natildeo queiram impor seus valores a outros grupos Para
Traduccedilatildeo livre da autora [i]f people seek to torture children or to enslave minorities citing their religion as their reason their claims must be resisted even though they m a y be sincere If they simply talk in favor of slavery or torture their freedom to speak must be protected up to the point at which speech becomes a threat They will not however be able to present their ideas in the political sphere on an equal basis with other ideas since the Constitution (in the case of slavery) and the criminal law (in the case of torture) forbid the practices they recommend
Para u m a visatildeo completa sobre o entendimento de Habermas a respeito de toleracircncia religiosa vide Juumlrgen Habermas Entre naturalismo e religiatildeo estudos filosoacuteficos traduccedilatildeo de Flaacutevio Beno Siebeneichler Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 2007 especialmente Item IV - Toleracircncia p 279-392
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 753
o autor a maioria das pessoas entende que se u m a minoria nacional estaacute oprimindo outros
grupos u m a intervenccedilatildeo contra a agressatildeo eacute justificaacutevel Entretanto se a minoria somente
visa guiar sua comunidade de acordo com princiacutepios natildeo liberais e natildeo estaacute interessada e m
estabelecer regras para outros grupos ou e m privar esses outros grupos de seus recursos
parece errado impor valores liberais (cf K Y M L I C K A 1997 154-155) Assim Kymlicka
adota u m a visatildeo de acordo com a qual a toleracircncia liberal deve proteger os direitos dos
indiviacuteduos de discordar de seus grupos assim como o direito dos grupos de natildeo serem
perseguidos pelo Estado enquanto que o poder de grupos natildeo liberais de restringir a
liberdade de seus membros e o poder de Estados natildeo liberais de restringir a liberdade de
culto devem ser limitados
Neste item foram examinados (i) a diferenccedila entre o princiacutepio da toleracircncia
e o princiacutepio do respeito no que se refere agrave liberdade religiosa e (ii) os limites para a
adoccedilatildeo do princiacutepio do respeito por democracias liberais A partir dessa anaacutelise o
ordenamento juriacutedico brasileiro e a regulaccedilatildeo da liberdade religiosa seratildeo estudados no
item subsequente
3 Liberdade religiosa no Brasil
A regulaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil eacute examinada neste item com
o intuito de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia
ou do respeito Satildeo analisados os dispositivos da Constituiccedilatildeo Federal que tratam
da liberdade religiosa quais sejam aqueles relacionados ao livre exerciacutecio de cultos
religiosos agrave proteccedilatildeo aos locais de culto e suas liturgias (art 5o inc VI) agrave garantia de
prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa a pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva
(art 5o inc VII) agrave acomodaccedilatildeo juriacutedica e m razatildeo de imperativo de consciecircncia (art 5o
inc VIII) agrave vedaccedilatildeo ao estabelecimento de religiatildeo pelo Estado (art 19) e ao ensino
religioso facultativo (art 210) bem como a legislaccedilatildeo federal relacionada O estudo ora
realizado natildeo pretende analisar de forma exaustiva as leis estaduais anaacutelise esta que
quando realizada serve apenas para ilustrar a aplicaccedilatildeo das normas constitucionais
O dispositivo central da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil de
1988 que serve de base para a proteccedilatildeo da liberdade religiosa eacute seu art 5o o qual estabelece
que [t]odos satildeo iguais perante a lei sem distinccedilatildeo de qualquer natureza garantindo-se
aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Paiacutes a inviolabilidade do direito agrave vida
agrave liberdade agrave igualdade agrave seguranccedila e agrave propriedade Os dispositivos constitucionais
examinados a seguir visam a garantir a observacircncia da liberdade religiosa que se
apresenta como u m dos aspectos da liberdade e m sentido lato a qual eacute constitucionalmente
assegurada a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no Paiacutes
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31 Livre exerciacutecio de cultos religiosos e vedaccedilatildeo ao estabelecimento de religiatildeo
O inciso VI do art 5o da Constituiccedilatildeo Federal determina que eacute inviolaacutevel
a liberdade de consciecircncia e de crenccedila sendo assegurado o livre exerciacutecio dos cultos
religiosos e garantida na forma da lei a proteccedilatildeo aos locais de culto e a suas liturgias
Diferentemente do texto atual a Constituiccedilatildeo brasileira de 1967
expressamente limitava e m seu art 150 paraacutegrafo 5 o exerciacutecio da liberdade religiosa
aos cultos que natildeo contrariassem a ordem puacuteblica e os bons costumes D e acordo com
Celso Ribeiro Bastos embora a atual Constituiccedilatildeo omita o requisito de observacircncia da
ordem puacuteblica e dos bons costumes estaacute impliacutecito no ordenamento juriacutedico brasileiro
que os direitos devem ser exercidos de modo que natildeo prejudiquem os direitos de outras
pessoas e em consonacircncia com os valores eacuteticos e morais e m que se funda a sociedade
brasileira independentemente de quatildeo difiacutecil possa ser para os tribunais definirem quais
satildeo esses valores que estatildeo evoluindo constantemente (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989
52) E m sentido diverso do entendimento de Bastos Manuel Gonccedilalves Ferreira Filho
entende que em razatildeo da omissatildeo da Constituiccedilatildeo os cultos religiosos satildeo garantidos
inclusive contra eventuais limitaccedilotildees baseadas na ordem puacuteblica e nos bons costumes (cf
F E R R E I R A FILHO 1990 33) A interpretaccedilatildeo de Ferreira Filho parece mais adequada
uma vez que os legisladores constitucionais omitiram intencionalmente a exigecircncia da
observacircncia da ordem puacuteblica e dos bons costumes Dessa forma os tribunais brasileiros
natildeo podem limitar o exerciacutecio da liberdade religiosa invocando a ordem puacuteblica ou os
bons costumes
U m a questatildeo muito polecircmica sobre o exerciacutecio da liberdade de culto
e sua limitaccedilatildeo no Brasil eacute relacionada agrave caracterizaccedilatildeo do crime de curandeirismo
previsto no art 284 do Coacutedigo Penal30 Enquanto alguns autores por exemplo Magalhatildees
Noronha sustentam que uma praacutetica religiosa que pretenda curar sem tiacutetulo ou habilitaccedilatildeo
apropriada seja enquadrada como curandeirismo ( N O R O N H A 1968 107) outros
autores como Francisco de Assis Toledo argumentam que os rituais espiacuteritas e os rituais de
todas as outras religiotildees tais como o Catolicismo o Protestantismo ou Budismo embora
possam visar agrave cura ou agrave diminuiccedilatildeo do sofrimento de pessoas doentes nunca poderatildeo ser
considerados u m crime (cf T O L E D O 1986 100-101) Francisco de Assis Toledo parece
estar certo e m sua interpretaccedilatildeo do crime curandeirismo uma vez que ele leva a seacuterio a
Artigo 284 Exercer o curandeirismo
I - prescrevendo ministrando ou aplicando habitualmente qualquer substacircncia
II - usando gestos palavras ou qualquer outro meio
III - fazendo diagnoacutesticos
Pena - detenccedilatildeo de seis meses a dois anos
Paraacutegrafo uacutenico - Se o crime eacute praticado mediante remuneraccedilatildeo o agente fica tambeacutem sujeito agrave multa
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garantia constitucional da liberdade de religiatildeo Atualmente o poder judiciaacuterio no Brasil
entende que os rituais espiacuteritas relacionados agrave cura de pessoas doentes natildeo podem ser
considerados curandeirismo sendo constitucionalmente protegidos como u m tipo de
culto31
Cumpre notar que durante o periacuteodo do Impeacuterio no Brasil havia uma
liberdade religiosa sem liberdade de culto somente o culto catoacutelico era reconhecido como
livre Outras religiotildees somente podiam celebrar seus cultos na esfera domeacutestica sendo
proibido todo o templo fora do lar para outras religiotildees (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989
50 e C R E T E L L A JUacuteNIOR 1992 252)
Essa abordagem inicial da liberdade religiosa no ordenamento juriacutedico
brasileiro pode ser explicada como consequumlecircncia de nosso passado colonial U m a das
justificaccedilotildees ideoloacutegicas subjacentes agrave colonizaccedilatildeo do Brasil por Portugal - e de outros
paiacuteses da Ameacuterica Latina pela Espanha - era relacionada agrave catequizaccedilatildeo dos povos
indiacutegenas C o m o resultado o catolicismo foi a religiatildeo oficial ateacute o fim do periacuteodo
imperial32
A esse respeito vale notar com Faacutebio Konder Comparato (2001 312) que
natildeo haacute autecircntica liberdade de crenccedila e de opiniatildeo num Estado que adota u m a religiatildeo
oficial As pressotildees de toda a sorte - poliacuteticas econocircmicas e profissionais - contra os natildeo
seguidores da religiatildeo de Estado tornam essa liberdade ilusoacuteria C o m efeito as religiotildees
indiacutegenas e africanas e seus valores foram negados durante grande parte da histoacuteria do
Brasil e ainda hoje haacute na sociedade brasileira preconceito contra tais religiotildees33
Exemplificativamente destaque-se que e m 1985 o Supremo Tribunal
Federal arquivou a Representaccedilatildeo n 959-PB que questionava u m a lei do Estado da
Paraiacuteba de 1966 de acordo com a qual os cultos africanos deveriam obter u m a licenccedila
preacutevia para iniciar suas atividades Tal licenccedila seria concedida se entre outras exigecircncias
o responsaacutevel pelos cultos pudesse provar sua idoneidade moral e perfeitas condiccedilotildees de
sauacutede mental conforme documentado e m relatoacuterio psiquiaacutetrico A accedilatildeo arquivada com
STF R H C 62240SP rei Min Francisco Rezek 2a Turma 13121984 DJ 02081985 p 12046 e STJ H C 1498RJ rei Min Luiz Vicente Cernicchiaro 6a Turma j 18121992 DJ 1 de 16081993 p 15994 Cf tambeacutem FERREIRA Pinto Comentaacuterios agrave constituiccedilatildeo brasileira Satildeo Paulo Saraiva 1989 p 71 C o m efeito Celso Lafer nos lembra que incumbia ao imperador antes de ser proclamado jurar manter a religiatildeo catoacutelica cabendo-lhe em contrapartida entre as suas atribuiccedilotildees nomear bispos e prover os benefiacutecios eclesiaacutesticos bem como conceder ou negar beneplaacutecitos a atos da Santa Feacute (cf Constituiccedilatildeo de 1824 art 5o 102 paraacutegrafos 2o e 14 103) (LAFER 2007) Note-se que a negaccedilatildeo dos valores africanos e de uma identidade africana no Brasil abrangendo a esfera religiosa tem suas origens na chegada dos escravos africanos desde o seacuteculo XVI A relaccedilatildeo entre os povos africanos e a sociedade colonial foi caracterizada pela conversatildeo compulsoacuteria dos escravos agrave religiatildeo de seus donos e pela perseguiccedilatildeo daqueles que insistissem na manutenccedilatildeo das praacuteticas ancestrais (DADESKY 2005 51-52)
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base no fato de que a lei e m questatildeo havia sido modificada e m 1977 tendo sido excluiacuteda
a exigecircncia da licenccedila preacutevia
A separaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja foi estabelecida no Brasil somente
durante a Repuacuteblica pelo Decreto n 119-A datado de 7 de janeiro de 1890 de autoria
de Rui Barbosa (cf L A F E R 2007) que proibiu a intervenccedilatildeo do governo federal e dos
estados e m questotildees religiosas e estabeleceu a liberdade de culto34 Desde entatildeo o Brasil
eacute u m estado laico A separaccedilatildeo entre Estado e Igreja na Constituiccedilatildeo de 1988 estaacute prevista
no art 19
Eacute vedado agrave Uniatildeo aos Estados ao Distrito Federal e aos Municiacutepios (i) estabelecer cultos religiosos ou igrejas subvencionaacute-los embaraccedilar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relaccedilotildees de dependecircncia ou alianccedila ressalvada na forma da lei a colaboraccedilatildeo de interesse puacuteblico ()
Consequentemente o Estado brasileiro eacute indiferente agraves vaacuterias igrejas que
podem ser livremente formadas como entidades legais O Estado deve ser absolutamente
neutro sendo proibida a discriminaccedilatildeo entre igrejas para beneficiaacute-las ou prejudicaacute-las
Tambeacutem natildeo pode impor nenhum ocircnus indevido agrave formaccedilatildeo de igrejas N a realidade haacute
mesmo u m incentivo constitucional para sua formaccedilatildeo que resulta da imunidade tributaacuteria
a que fazem jus ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 50-51)35
Observe-se que a colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico mencionada no Artigo
19 para natildeo infringir a proibiccedilatildeo de estabelecimento de religiatildeo pelo Estado natildeo pode
ocorrer em u m campo fundamentalmente religioso (cf F E R R E I R A FILHO 1990 144
C R E T E L L A JUacuteNIOR 1992 1179 e L A F E R 2007) N atildeo obstante essa disposiccedilatildeo tem
implicaccedilotildees muito complexas quando se trata de sua execuccedilatildeo como eacute possiacutevel estabelecer
a colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico entre o Estado e u m a determinada igreja sem favorecer
u m a religiatildeo sobre a outra36 Ademais essa disposiccedilatildeo levanta u m problema similar ao que
resulta da assistecircncia religiosa a pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva e do
ensino religioso facultativo e m escolas conforme detalhado abaixo eacute possiacutevel na praacutetica
ensinar religiatildeo prestar assistecircncia religiosa e estabelecer esquemas de colaboraccedilatildeo
Esse decreto nunca foi expressamente revogado Cf lthttpslegislacaoplanaltogovbrLEGISLA LegislacaonsffraWebOpenFrameSetampFrame=frmWeb2ampSrc=2FLEGISLA2FLegislacaonsf2Fvi wTodos2Fbea39c8e0e484811032569fa005afab43FOpenDocument26Highlight3Dl2C26Auto Framedgt Acesso em 3 abr 2009
Cumpre notar que a Lei n 8245 datada de 18 de outubro de 1991 conforme alterada estabelece que o contrato de locaccedilatildeo de imoacuteveis utilizados por entidades religiosas devidamente registradas bem como por hospitais unidades sanitaacuterias oficiais asilos estabelecimentos de sauacutede e de ensino autorizados e fiscalizados pelo Poder Puacuteblico somente poderaacute ser rescindido em determinadas situaccedilotildees Para uma criacutetica sobre a exceccedilatildeo relacionada agrave colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico vide C R E T E L L A JUacuteNIOR 19921180
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no interesse puacuteblico sem favorecer u m a determinada religiatildeo e sem violar o art 19 da
Constituiccedilatildeo
32 Garantia de assistecircncia religiosa em estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva
A Constituiccedilatildeo brasileira garante a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa a
pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva abrangendo presos militares e
pacientes hospitalizados (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 54) D e acordo com o inciso
VII do art 5o da Constituiccedilatildeo eacute assegurada nos termos da lei a prestaccedilatildeo de assistecircncia
religiosa nas entidades civis e militares de internaccedilatildeo coletiva O caraacuteter laico do Estado
brasileiro natildeo eacute afetado por esta disposiccedilatildeo u m a vez que o Estado natildeo eacute obrigado a
prestar assistecircncia religiosa e as entidades religiosas eacute que iratildeo prestaacute-la (cf M A R T I N S e
B A S T O S 1989 51 e 54 e F E R R E I R A FILHO 1990 34)
Neste sentido a Lei n 7210 de 11 de julho de 1984 que trata da execuccedilatildeo
penal estabelece e m seu art 10 que o Estado deve prestar assistecircncia aos presos e internados
incluindo os egressos objetivando prevenir o crime e orientar o retorno agrave convivecircncia e m
sociedade Tal assistecircncia consistiraacute de acordo com o art 11 e m assistecircncia material
agrave sauacutede juriacutedica educacional social e religiosa D e fato o art 41 estabelece que tais
assistecircncias satildeo direitos dos presos
D e acordo com o art 24 a assistecircncia religiosa com liberdade de culto
seraacute prestada aos presos e aos internados permitindo-se-lhes a participaccedilatildeo nos serviccedilos
organizados no estabelecimento penal bem como a posse de livros de instruccedilatildeo religiosa
O primeiro paraacutegrafo deste artigo estabelece que haveraacute local apropriado para os cultos
religiosos no estabelecimento penal o segundo paraacutegrafo dispotildee que nenhum preso ou
internado poderaacute ser obrigado a participar de atividade religiosa
Adicionalmente a Lei n 9982 de 14 de julho de 2000 que trata da prestaccedilatildeo
de assistecircncia religiosa e m estabelecimentos prisionais civis e militares e e m entidades
hospitalares puacuteblicas e privadas garante e m seu art Io o acesso aos religiosos de todas
as confissotildees aos hospitais da rede puacuteblica ou privada bem como aos estabelecimentos
prisionais civis ou militares para dar atendimento religioso aos internados desde que
em c o m u m acordo com estes ou com seus familiares no caso de doentes que jaacute natildeo mais
estejam no gozo de suas faculdades mentais Vale notar que nos termos do art 2o os
religiosos chamados a prestar assistecircncia nas entidades definidas no art Io deveratildeo e m
suas atividades acatar as determinaccedilotildees legais e normas internas de cada instituiccedilatildeo
hospitalar ou penal a fim de natildeo pocircr e m risco as condiccedilotildees do paciente ou a seguranccedila do
ambiente hospitalar ou prisional
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Duas disposiccedilotildees dessa lei foram vetadas pelo Presidente37 A primeira
disposiccedilatildeo estabelecia que a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa natildeo seria permitida se de
acordo com o hospital ou a prisatildeo houvesse risco de vida ou sauacutede para o internado ou
para o religioso O Presidente justificou esse veto argumentando que a transferecircncia do
processo decisoacuterio relativo agrave prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa aos hospitais ou prisotildees
excluindo-se o paciente ou preso bem como suas famiacutelias era contraacuterio aos incisos VI
e VII do art 5o da Constituiccedilatildeo Ademais o Presidente sustentou que a precauccedilatildeo que
motivou o dispositivo vetado jaacute estaacute assegurada pelo art 2 o da lei e m questatildeo
A segunda disposiccedilatildeo vetada pelo Presidente determinava que o interno teria
direito a pelo menos u m a visita semanal de religiosos da confissatildeo religiosa que professe
O Presidente justificou esse veto argumentando que a periodicidade das visitas deveria ser
determinada pela autoridade local levando e m consideraccedilatildeo as particularidades regionais
os usos e costumes Aleacutem disso o Presidente sustentou que era inadequado tratar hospitais
e prisotildees da mesma forma tendo e m vista as circunstacircncias especiacuteficas de cada instituiccedilatildeo
Havia tambeacutem a preocupaccedilatildeo de que o nuacutemero miacutenimo de visitas estabelecido por lei se
tornasse o nuacutemero maacuteximo permitido na praacutetica
33 Acomodaccedilatildeo em razatildeo de imperativo de consciecircncia
Nos termos do inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo ningueacutem seraacute privado
de direitos por motivo de crenccedila religiosa ou de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica salvo se as
invocar para eximir-se de obrigaccedilatildeo legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestaccedilatildeo
alternativa fixada e m lei Esse inciso entre outras coisas estaacute relacionado ao serviccedilo
militar obrigatoacuterio estabelecido pelo art 143 da Constituiccedilatildeo O paraacutegrafo Io deste artigo
dispotildee que agraves Forccedilas Armadas compete na forma da lei atribuir serviccedilo alternativo aos
que e m tempo de paz apoacutes alistados alegarem imperativo de consciecircncia entendendo-
se como tal o decorrente de crenccedila religiosa e de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica para se
eximirem de atividades de caraacuteter essencialmente militar 38
Esse eacute u m dos casos de acomodaccedilatildeo existentes no ordenamento juriacutedico
brasileiro relacionado agrave crenccedila religiosa ou agraves convicccedilotildees filosoacuteficas ou poliacuteticas Para
buscar proteccedilatildeo constitucional de mo d o a natildeo participar do serviccedilo militar compulsoacuterio
e m tempos de paz faz-se necessaacuterio provar comprometimento com ideacuteias natildeo beligerantes
a ser demonstrado por atitudes passadas que estejam e m consonacircncia com tal ideal
( M A R T I N S e B A S T O S 1989 56) Note-se que eacute possiacutevel ser excluiacutedo de atividades
essencialmente militares mas poderatildeo ser impostos serviccedilos alternativos que consistam em
57 Cf Mensagem de Veto n 960 de 14 de julho de 2000 Disponiacutevel em lthttpswwwplanaltogovbr
ccivil_03leisMensagem_Veto2000Mv0960-00htmgt Acesso em 13 fev 2009 i8 Esse dispositivo constitucional foi regulamentado pela Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991
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atividades administrativas de assistecircncia filantroacutepicas ou produtivas39 jaacute que a obrigaccedilatildeo
de servir ao Paiacutes natildeo eacute excluiacuteda ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 211) Cumpre notar que da
reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia natildeo pode resultar a privaccedilatildeo de direitos exceto
se a pessoa tambeacutem se recusar a prestar serviccedilo alternativo natildeo essencialmente militar
Nessas circunstacircncias a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo aplicaacutevel natildeo satildeo inteiramente claras
sobre as consequumlecircncias legais da recusa Alguns autores entendem que nesse caso a pessoa
que se recusou a prestar serviccedilos alternativos poderia ser privada de direitos (FERREIRA
FILHO 1994 34 e 81 e M A R T I N S e B A S T O S 1989 212)40
Constata-se aqui o que parece ser u m a grande incoerecircncia no ordenamento
juriacutedico brasileiro Enquanto e m tempos de paz as pessoas podem reivindicar imperativo
de consciecircncia para evitar serviccedilos essencialmente militares quando o Estado declara
guerra nenhum cidadatildeo poderaacute invocar crenccedilas religiosas ou convicccedilotildees filosoacuteficas ou
poliacuteticas com a finalidade de natildeo participar do serviccedilo militar41 C o m o resultado durante
o periacuteodo mais adequado e apropriado para expressar desacordo com guerras e ideais
beligerantes as pessoas natildeo tem direito de reivindicar imperativo de consciecircncia para natildeo
participar do serviccedilo militar na hipoacutetese de a Constituiccedilatildeo ser interpretada literalmente
Outro caso de acomodaccedilatildeo relacionado a crenccedilas religiosas que vale ser
mencionado eacute o uso terapecircutico do chaacute Ayahuasca em rituais religiosos A partir de
1985 o governo brasileiro comeccedilou a estudar os aspectos sociais e culturais referentes
ao uso de tal chaacute E m 23 de novembro de 2006 o Grupo Multidisciplinar de Trabalho do
Comitecirc Nacional Antidrogas do Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas42
emitiu seu relatoacuterio final reconhecendo que o uso do chaacute Ayahuasca deveria ser limitado
a rituais religiosos e m locais autorizados pela direccedilatildeo das entidades que fazem uso de
tal chaacute sendo proibido seu uso em conjunto com substacircncia ilegais Atualmente o uso
do chaacute Ayahuasca e m conformidade com as normas aplicaacuteveis eacute assegurado com base
na garantia constitucional da liberdade de consciecircncia e de crenccedila e do livre exerciacutecio de
cultos religiosos Ademais a legitimidade do uso religioso da Ayahuasca foi ratificada
como rica e ancestral manifestaccedilatildeo cultural que exatamente pela relevacircncia de seu valor
Os serviccedilos alternativos podem ser prestados e m organizaccedilotildees militares da ativa e e m oacutergatildeos de formaccedilatildeo de reservas das Forccedilas Armadas ou em oacutergatildeos subordinados aos Ministeacuterios Civis mediante convecircnios entre estes e os Ministeacuterios Militares Cf sectsect 2o e 3o do art 3o da Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991 N o entanto parece-nos que o serviccedilo militar obrigatoacuterio natildeo estaacute de acordo com os princiacutepios que norteiam a Constituiccedilatildeo no sentido de que serviccedilos alternativos natildeo deveriam ser impostos Contudo a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo Ives Granda Martins sustenta que e m tempos de guerra todos os cidadatildeos tecircm iguais deveres perante o Paiacutes (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 212) Discordamos totalmente deste posicionamento porque uma das formas mais eficazes de expressar desacordo com guerras e ideais beligerantes eacute durante o periacuteodo de guerra quando as pessoas que natildeo concordam poderiam recusar-se a prestar serviccedilos militares Contudo conforme mencionado acima a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo O Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas - S I S N A D foi instituiacutedo pela Lei n 11343 de 23 de agosto de 2006
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histoacuterico antropoloacutegico e social eacute credora da proteccedilatildeo do Estado nos termos do art
2o caput da Lei n 1134306 e do art 215 sect1deg da C F 43 que dispotildee que [o] Estado
protegeraacute as manifestaccedilotildees das culturas populares indiacutegenas e afro-brasileiras e das de
outros grupos participantes do processo civilizatoacuterio nacional44
Eacute de se notar tambeacutem o recente caso no Estado de Satildeo Paulo de acomodaccedilatildeo
religiosa previsto na Lei Estadual n 13541 de 7 de maio de 2009 Tal lei proiacutebe o consumo
de cigarros cigarrilhas charutos cachimbos ou de qualquer outro produto fumiacutegeno
derivado ou natildeo do tabaco e m ambientes de uso coletivo puacuteblicos ou privados Contudo
nos termos do art 6o da referida lei essa natildeo se aplica aos locais de culto religioso em que
o uso de produto fumiacutegeno faccedila parte do ritual O u seja trata-se de mais u m caso em que
uma lei geral eacute excetuada para acomodar praacuteticas relacionadas agrave liberdade de religiatildeo e
de culto
Diferentemente das situaccedilotildees envolvendo serviccedilo militar obrigatoacuterio
o chaacute Ayahuasca e rituais religiosos que envolvem o uso de produtos fumiacutegenos foi
negada acomodaccedilatildeo quando da reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia no contexto
de frequumlecircncia escolar no Estado de Satildeo Paulo E m opiniatildeo escrita por Ada Pellegrini
Grinover publicada e m 25 de outubro de 2002 o Conselho Estadual de Educaccedilatildeo do
Estado de Satildeo Paulo entendeu que estudantes que fossem membros da Igreja Adventista
do Seacutetimo Dia estariam obrigados a frequumlentar as aulas durante o periacuteodo compreendido
entre 1800 horas de sexta-feira e 1800 de saacutebados de acordo com a Lei n 9394 de 20
de dezembro de 1996 conforme alterada embora tal frequumlecircncia seja contraacuteria agraves suas
praacuteticas religiosas u m a vez que natildeo haacute prestaccedilatildeo alternativa estabelecida em lei para tal
escusa de consciecircncia conforme fixado pelo inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo45
Adicionalmente aos casos de acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de
consciecircncia o inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo tambeacutem jaacute foi invocado para proteger
os direitos dos professores do Estado de Rio de Janeiro contra lei estadual que estabeleceu
que somente os professores credenciados pela autoridade religiosa competente estaratildeo
autorizados a ministrar as aulas de ensino religioso e m escolas puacuteblicas estaduais Para
compreender a Accedilatildeo Direta de Inconstitucionalidade - A D I N n 326804 que ainda natildeo
foi decidida pela Suprema Corte faz-se necessaacuterio analisar as disposiccedilotildees legais aplicaacuteveis
relacionadas ao ensino religioso no Brasil
Cf Relatoacuterio Final do Grupo Multidisciplinar de Trabalho disponiacutevel entre outros siacutetios em lthttp wwwsantodaimeorgcomunidadenoticiasrelfinal_conadhtmgt Acesso em 4 mar 2009 e lthttpwww ayahuascabrasilorgindexphpop=legisl01gt Acesso em 4 mar 2009 A acomodaccedilatildeo relacionada ao uso do chaacute Ayahuasca para fins religiosos nos Estados Unidos foi decidida pela Suprema Courte em Gonzales v O Centro Espirita Beneficente Uniatildeo do Vegetal 546 US 418 (2006) Cf Parecer C E E No 4422002 - C E S - Aprovado em 23102002 Disponiacutevel em lthttpwwwceesp spgovbrParecerespa_442_02htmgt Acesso em 4 mar 2009
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34 Ensino religioso facultativo
Nos termos do art 210 da Constituiccedilatildeo [sjeratildeo fixados conteuacutedos miacutenimos
para o ensino fundamental de maneira a assegurar formaccedilatildeo baacutesica c o m u m e respeito aos
valores culturais e artiacutesticos nacionais e regionais O paraacutegrafo Io desse Artigo dispotildee
que [o] ensino religioso de matriacutecula facultativa constituiraacute disciplina dos horaacuterios
normais das escolas puacuteblicas de ensino fundamental
Nesse sentido o art 33 da Lei n 9394 de 22 de julho de 1997 conforme
alterada determina que o respeito agrave diversidade cultural religiosa do Brasil eacute assegurado
no ensino religioso sendo proibida qualquer forma de proselitismo O primeiro paraacutegrafo
desse Artigo dispotildee que [o]s sistemas de ensino regulamentaratildeo os procedimentos para a
definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso e estabeleceratildeo as normas para a habilitaccedilatildeo
e admissatildeo dos professores Ademais de acordo com o segundo paraacutegrafo do referido
Artigo [o]s sistemas de ensino ouviratildeo entidade civil constituiacuteda pelas diferentes
denominaccedilotildees religiosas para a definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso46
D e modo a observar a proibiccedilatildeo constitucional de estabelecimento de
religiatildeo o ensino religioso e m escolas natildeo pode consistir no ensino de u m a religiatildeo
determinada Nesse sentido a previsatildeo constitucional tem por finalidade dar oportunidade
a estudantes que estatildeo e m idade de formaccedilatildeo de personalidade de ter acesso a informaccedilotildees
de modo que no futuro eles possam livremente escolher adotar ou natildeo adotar u m a religiatildeo
(cf S C H E R K E R K E W I T Z 2002 60)47
Levando e m consideraccedilatildeo esses dispositivos a A D I N n 326804 foi
ajuizada pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo com o intuito de
declarar que a Lei n 3459 aprovada pela Assembleacuteia Legislativa do Estado do Rio de
Janeiro e m 14 de setembro de 2000 eacute inconstitucional u m a vez que estabeleceu que (i)
religiatildeo seria ensinada na forma confessional (ii) o conteuacutedo do ensino religioso seria
atribuiccedilatildeo de diversas autoridades religiosas e (iii) apenas professores credenciados pela
autoridade religiosa competente poderiam ensinar religiatildeo e m escolas oficiais
A Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo argumenta que o
ensino religioso na forma confessional viola o art 210 da Constituiccedilatildeo que estabelece que
os valores culturais seratildeo respeitados quando do estabelecimento dos conteuacutedos miacutenimos
para o ensino fundamental e o art 33 da Lei Federal n 939497 que determina que o
ensino religioso respeitaraacute a diversidade cultural do Brasil
Cumpre notar que nos termos do art 21 do Decreto-Lei n 4244 de 9 de abril de 1942 o programa e o regime didaacutetico do ensino religioso deveria ser determinado pela autoridade religiosa De acordo com Alexandre de Moraes para que a regulamentaccedilatildeo e a execuccedilatildeo desta disposiccedilatildeo natildeo sejam inconstitucionais faz-se necessaacuterio que toda e qualquer religiatildeo possa ser ensinada nas escolas puacuteblicas O autor entende que na praacutetica isso eacute absolutamente impossiacutevel (cf M O R A E S 2003 1984-1985)
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Adicionalmente a confederaccedilatildeo sustenta que a disposiccedilatildeo de acordo
com a qual o conteuacutedo do ensino religioso eacute u m a atribuiccedilatildeo das diversas autoridades
religiosas contraria o art 33 da Lei Federal n 939497 que estabelece diferentes padrotildees
para a definiccedilatildeo do conteuacutedo do ensino religioso E m conformidade com tal lei federal
os sistemas de ensino devem ouvir entidades civis de diversas religiotildees para definir
o conteuacutedo do ensino religioso A violaccedilatildeo eacute demonstrada com base no fato de que o
conceito de autoridade religiosa - que implica u m a estrutura administrativa e hieraacuterquica
como aquelas presentes nas Igrejas Catoacutelicas Presbiterianas e Judaicas - natildeo eacute parte da
tradiccedilatildeo de algumas religiotildees que tem origem Evangeacutelica ou afro-brasileira
A A D I N ainda natildeo foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal De qualquer
forma os argumentos apresentados pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores em
Educaccedilatildeo - e pelos vaacuterios amicus curiae admitidos no processo - parecem ser coerentes
com a Constituiccedilatildeo Federal e aptos a derrubar a Lei Estadual n 3459
N o Estado de Satildeo Paulo o ensino religioso previsto no art 33 da Lei n
939497 foi regulamentado na Deliberaccedilatildeo do Conselho Estadual de Educaccedilatildeo - CEE
n 162001 com fundamento na Indicaccedilatildeo C E E n 07 aprovada e m 25 de julho de 2001
de acordo com a qual o ensino religioso deve ser enfocado na perspectiva constitucional
de promoccedilatildeo da cidadania e da dignidade especialmente na funccedilatildeo social da educaccedilatildeo
e m geral de modo que deve ser enfatizada a reflexatildeo sobre a cidadania e as praacuteticas a ela
pertinentes Assumindo que natildeo haacute conhecimento futuro e vida sem a competecircncia de
conviver com as diferenccedilas a Indicaccedilatildeo C E E n 072001 reconhece que satildeo bem-vindos
todos os projetos educacionais (aiacute se podendo incluir o ensino religioso) que visam direta
ou indiretamente o trabalho comunitaacuterio a conscientizaccedilatildeo da responsabilidade pessoal
e social e que estimulem e restaurem os valores humanos de compromisso moral e eacutetico
auxiliando a compreensatildeo do h o m e m e o autoconhecimento Nesse sentido de acordo com
referida indicaccedilatildeo o ensino religioso nas escolas deve antes de tudo fundamentar-se nos
princiacutepios da cidadania e do entendimento do outro Assim o C E E recomendou que o
ensino religioso fosse tratado como tema transversal por meio da implementaccedilatildeo de uma
proposta de abordagem filosoacutefica que permitisse a reflexatildeo sobre valores e princiacutepios eacuteticos e
o conhecimento da histoacuteria das religiotildees Tambeacutem no Estado de Satildeo Paulo a implementaccedilatildeo
do ensino religioso foi arduamente debatida e criticada especialmente em razatildeo da
problemaacutetica questatildeo do estabelecimento de religiatildeo vedado pela Constituiccedilatildeo de 198848
Vide entre outros GIUMBELLI Emerson Ensino religioso em escolas puacuteblicas no Brasil notas de pesquisa Debates do N E R (UFRGS) v 14 p 50-68 2009 CURY Carlos Roberto Jamil Ensino religioso na escola puacuteblica o retorno de uma polecircmica recorrente Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 27 p 183-213 setdez 2004 LUI Janayna de Alencar Entre crentes e pagatildeos ensino religioso em Satildeo Paulo Cadernos de Pesquisa v 37 n 131 p 333-349 maioago 2007 R A N Q U E T A T JUacuteNIOR Ceacutesar Do confessional ao plural uma anaacutelise sobre o novo modelo de ensino religioso nas escolas brasileiras Revista Diaacutelogo Educaccedilatildeo Curitiba v 8 n 23 p 289-305 janabr 2008
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 763
Neste item a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil foi examinada
com a finalidade de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota u m princiacutepio de
toleracircncia ou de respeito As normas relacionadas agrave garantia da liberdade de consciecircncia
e de crenccedila bem como ao livre exerciacutecio de cultos religiosos agrave proteccedilatildeo dos locais de
adoraccedilatildeo agrave proibiccedilatildeo do estabelecimento de religiatildeo agrave garantia de assistecircncia religiosa
e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva agrave acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de
consciecircncia e ao ensino religioso facultativo todas foram analisadas de modo que fosse
possiacutevel concluir se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia ou
do respeito
D e acordo com tal anaacutelise o ordenamento juriacutedico brasileiro parece tratar a
religiatildeo e m conformidade com o princiacutepio do respeito Isso porque pessoas religiosas e natildeo
religiosas podem entrar no espaccedilo puacutebico e m iguais condiccedilotildees sendo que a faculdade de
buscar a finalidade uacuteltima da vida eacute respeitada pelo Estado Nesse sentido o ordenamento
juriacutedico brasileiro garante a liberdade de consciecircncia e de crenccedila o livre exerciacutecio de
cultos religiosos e a proteccedilatildeo dos locais de adoraccedilatildeo Adicionalmente enquanto de u m
lado nenhuma religiatildeo pode ser estabelecida pelo Estado pessoas religiosas podem
reivindicar imperativo de consciecircncia bem como receber assistecircncia religiosa e ensino
religioso se essa for a sua escolha
Isso demonstra que todos os indiviacuteduos de acordo com o ordenamento
juriacutedico brasileiro devem entrar no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais e que o Estado eacute
obrigado a fornecer condiccedilotildees para que pessoas religiosas e natildeo religiosas possam buscar
a finalidade uacuteltima da vida se essa for sua escolha respeitando e m todos os indiviacuteduos a
faculdade de realizar tal busca
4 Conclusatildeo
Inicialmente foi examinada neste artigo a diferenccedila entre o princiacutepio da
toleracircncia e o princiacutepio do respeito no que se refere ao tratamento legal de questotildees de
consciecircncia Posteriormente a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no ordenamento
juriacutedico brasileiro foi analisada com a finalidade de verificar qual desses dois princiacutepios eacute
adotado Finalmente conclui-se que o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio
do respeito pela faculdade dos indiviacuteduos de buscar pela finalidade uacuteltima da vida sendo o
Estado obrigado a garantir condiccedilotildees adequadas para as pessoas exercerem tal faculdade
de acordo com suas escolhas autocircnomas de modo que todos os indiviacuteduos possam entrar
no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais
Satildeo Paulo dezembro de 2010
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IM Maria Costa Neves Machado
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748 Maria Costa Neves Machado
parcial e pode ser considera principalmente c o m o questatildeo de descriminalizaccedilatildeo de
condutas1314 M a s natildeo somente o escopo do princiacutepio da toleracircncia pode estar errado
seus fundamentos tambeacutem podem u m princiacutepio de toleracircncia pode ser adotado por razotildees
morais suspeitas15 Aleacutem disso se u m princiacutepio de toleracircncia for sustentado da maneira
errada - aqueles que toleram deixam claro que prefeririam natildeo ser tolerantes - aqueles
que satildeo tolerados podem tambeacutem sentir-se desconfortaacuteveis ( G R E E N 2008 6-7)16
Entretanto m e s m o que u m sistema legal pudesse construir u m princiacutepio de
toleracircncia que superasse as falhas mencionadas acima aqueles que satildeo tolerados ainda se
sentiriam desconfortaacuteveis porque seria sempre melhor se natildeo tivessem que ser tolerados
e sujeitados ao poder de toleracircncia de outra pessoa ( G R E E N 2008 6-7)n Nesse sentido
Green sustenta que
Quem quer viver da graccedila e do favor dos poderosos Isto eacute especialmente verdadeiro quando tolerados natildeo tecircm nenhum poder similar sobre seus toleradores A esse respeito a toleracircncia compartilha algo com outras relaccedilotildees desejaacuteveis mas assimeacutetricas como oferecer misericoacuterdia ou sentir piedade que pode tambeacutem ser incocircmoda para seus
13 E m relaccedilatildeo agrave toleracircncia de minorias sexuais Leslie Green ressalta que exceto pela descriminalizaccedilatildeo
haacute pouca evidecircncia que a natildeo-conformidade sexual seja amplamente tolerada nos Estados Unidos onde
eleiccedilotildees ainda podem ser perdidas ou ganhas dependendo da questatildeo a respeito do que fazer sobre gays e
onde e m aacutereas como direito do trabalho e de famiacutelia minorias sexuais continuam a vivenciar tratamento
duro atualmente raro em democracias liberais (GREEN 2008 5) (traduccedilatildeo livre da autora apart from
decriminalization there is slim evidence that sexual non-conformity is widely tolerated in the United States
where elections can still be won or lost on the issue of what to do about the gays and where in aacutereas from
employment to family law sexual minorities continue to experience harsh treatment now rare in liberal
democracies) 14 Natildeo obstante o autor alerta que a descriminalizaccedilatildeo de condutas pode natildeo resultar da adoccedilatildeo de u m princiacutepio
de toleracircncia - faz-se necessaacuterio examinar as razotildees pelas quais determinada conduta foi descriminalizada
(cf G R E E N 2008 5) 15 Por exemplo o autor afirma que seria preocupante se u m governo tolerasse o ato de fumar porque seus
atuaacuterios descobriram que fumantes morrem mais cedo o suficiente para aumentar o saldo liacutequido da
previdecircncia (traduccedilatildeo livre da autora) Ademais ele menciona que se a homossexualidade eacute tolerada
somente porque e na medida e m que existem outras condutas mais seriamente erradas para reprimir gays
americanos justamente sentiriam u m mal-estar (cf G R E E N 2008 6) (traduccedilatildeo livre da autora) 16 Identificando tambeacutem os problemas decorrentes do princiacutepio da toleracircncia Miguel Reale Juacutenior (2008
176) com base nas ideacuteias de Javier Lucas afirma que a retoacuterica da toleracircncia natildeo acolhe a criaccedilatildeo de uma
cultura fruto do diaacutelogo intercultural e ignora os problemas de inclusatildeo do diferente para se estabelecer a
igualdade na diversidade Nesse sentido Reale Juacutenior defende que o conceito liberal de toleracircncia deve
ser complementado com o conceito social de solidariedade destacando que solidariedade significa natildeo
apenas aceitaccedilatildeo da diferenccedila mas como realccedila Judith Martins-Costa uma aceitaccedilatildeo qualificada de cunho
normativo pela qual se admite que o diferente pode receber maior tutela ou tutela especiacutefica que atenda agrave
sua diferenccedila concreta como membro da comunidade ( R E A L E JUacuteNIOR 2008 176-177) 17 E m 1791 Thomas Paine notou que toleracircncia natildeo eacute o oposto de intoleracircncia mas a sua imitaccedilatildeo Ambos
satildeo despotismos U m assume para si o direito de reter a liberdade de consciecircncia e o outro de concedecirc-la
(paine 1791) Madison tambeacutem chamou a atenccedilatildeo das pessoas para o fato de que a palavra toleracircncia era
muito relutante sugerindo benevolecircncia legislativa ao inveacutes de direito ( N U S S B A U M 2008 90) (traduccedilatildeo livre da autora)
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receptores E quando noacutes consideramos as pessoas natildeo como mocircnadas mas como membros de grupos minoritaacuterios entatildeo o fato da toleracircncia pode ser um lembrete infeliz da distribuiccedilatildeo de poder social (GREEN 2008 IO)18
Assim o princiacutepio da toleracircncia reflete tambeacutem a diferenccedila de poder entre
tolerados e toleradores E isto causa mais u m a vez desconforto nos tolerados no sentido
de que estes precisam contar com a benevolecircncia dos poderosos quando o poder eacute exercido
e quando a conduta do tolerado eacute julgada pelos poderosos (cf G R E E N 2008 8-12)
Green entende que entre as trecircs maneiras que geralmente satildeo chamadas
para complementar o princiacutepio da toleracircncia quais sejam aceitaccedilatildeo19 reconhecimento20
e compreensatildeo21 a uacuteltima eacute a adequada O autor assinala que u m a melhor compreensatildeo
pode ampliar a toleracircncia pode fazer com que as pessoas tenham menos m aacute vontade
pode mudar a disposiccedilatildeo para a toleracircncia incentivando pessoas a revisitar julgamentos
e pode tambeacutem ser u m a boa maneira de evitar razotildees erradas para a toleracircncia Essa
complementaccedilatildeo pode deixar aqueles que satildeo tolerados mais confortaacuteveis porque eles
sabem que os toleradores estatildeo fazendo esforccedilos de boa-feacute para compreender C o m o
consequumlecircncia os tolerados sentem que satildeo considerados como parte da convivecircncia
humana (cf G R E E N 2008 21) Green conclui que
Compreender o que a conduta reprovada significa para o agente e como se encaixa em uma vida humana pode fazer-nos revisitar e agraves vezes revisar aquele julgamento Pode complementar a toleracircncia pode tomar-nos toleradores melhores especialmente quando nos daacute uma ideacuteia do que eacute estar na extremidade afiada de uma vareta Esse tipo da compreensatildeo deixa espaccedilo para discordacircncias em torno de valores e deixa espaccedilo para correccedilatildeo de erros Natildeo
18 Traduccedilatildeo livre da autora W h o wants to live by grace and favor ofthe powerful This is especially true when the tolerated have no similar power over their tolerators In this respect toleration shares something with other desirable but asymmetric relations like offering mercy or taking pity which can also be uncomfortable for their recipients And when w e consider people not as monads but as members of minority groups then the fact of toleration may be an unhappy reminder ofthe social distribution of power
19 Se o princiacutepio da toleracircncia fosse complementado pela aceitaccedilatildeo aqueles que praticam atos ou possuem crenccedilas que satildeo toleradas podem (i) assumir abertamente suas praacuteticas e crenccedilas sem que lhes seja imposta nenhuma consequumlecircncia adversa ou (ii) demandar acomodaccedilatildeo para suas praacuteticas e crenccedilas (cf G R E E N 2008 12-15)
20 Se o princiacutepio da toleracircncia fosse complementado pelo reconhecimento praacuteticas e crenccedilas seriam toleradas de bom grado ateacute por aqueles que pensam que tais praacuteticas e crenccedilas satildeo supersticiosas sexistas etc e aqueles que toleram veriam os tolerados como eles mesmos se vecircem Nesse sentido reconhecimento exige natildeo apenas que os valores do tolerado sejam compartilhados pelos toleradores mas que a identidade do tolerado seja reconhecida (cf G R E E N 2008 15-19)
21 Se o princiacutepio da toleracircncia fosse complementado pelo entendimento toleradores deveriam tentar recriar ou capturar na medida do possiacutevel o sentido que accedilotildees e siacutembolos tecircm para seus agentes (GREEN 2008 20-25) (traduccedilatildeo livre da autora attempt to capture or recreate to the extent that w e can the meanings that acts and symbols have for their agents)
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Xrdiz a aceitaccedilatildeo ou o reconhecimento Mas o esforccedilo para compreender afirma nossa convivecircncia com os objetos de nossa toleracircncia Sem isso a toleracircncia eacute mais pobre - e mais dura - do que precisaria ser (GREEN 2008 27)22
Embora Green reconheccedila as principais falhas do princiacutepio da toleracircncia
parece que sua complementaccedilatildeo por u m a atitude compreensiva como sugerida pelo autor
ainda natildeo eacute suficiente para garantir a igualdade entre cidadatildeos e para proteger a dignidade
humana em democracias liberais
Tambeacutem criticando a abordagem da toleracircncia Heiner Bielefeldt argumenta
que a crise normativa resultante do pluralismo cultural deve ser endereccedilada pelo
reconhecimento de tal pluralismo natildeo pela sua toleracircncia C o m o afirmado por Bielefeldt
o problema da toleracircncia eacute que aqueles que tecircm o poder de tolerar tambeacutem tecircm o poder
de natildeo tolerar e aqueles que consideram que tem o poder para tolerar pretendem julgar
as questotildees de consciecircncia O autor sustenta que somente apoacutes a superaccedilatildeo dos conceitos
tradicionais de toleracircncia o pluralismo religioso e poliacutetico natildeo seraacute considerado uma perda
infeliz do centralismo religioso e da cosmovisatildeo da sociedade tradicional O pluralismo
religioso e poliacutetico seratildeo entatildeo considerados uma expressatildeo da responsabilidade autocircnoma
dos seres humanos que desejam ser respeitados e m suas convicccedilotildees e ter direitos iguais
(cf BIELEFELDT 2000 50)
D o mesmo modo Martha Nussbaum argumenta e m favor do princiacutepio
do respeito pela consciecircncia (Respect-Conscience Principie)23 de acordo com o qual
a esfera puacuteblica deve respeitar os diferentes comprometimentos religiosos de todos os
cidadatildeos e deve garantir u m espaccedilo onde os cidadatildeos possam agir consistentemente com
suas consciecircncias de forma que todos os cidadatildeos possam entrar no espaccedilo puacuteblico em
condiccedilotildees iguais ( N U S S B A U M 2008 22-23)
Nussbaum entende que tal princiacutepio natildeo requer a aprovaccedilatildeo de
reivindicaccedilotildees teoloacutegicas e eacuteticas de nenhuma religiatildeo pela esfera puacuteblica ou por cidadatildeos
individualmente (cf N U S S B A U M 2008 23) Neste sentido ela sustenta que o [r]
espeito por concidadatildeos natildeo significa dizer ou acreditar que suas visotildees religiosas estatildeo
corretas ou mesmo que todas as religiotildees satildeo caminhos vaacutelidos ao entendimento da vida
( N U S S B A U M 2008 23)24 Assim ela conclui que
Traduccedilatildeo livre da autora Understanding what the disapproved conduct means for the agent and how it fits into a human life may make us revisit and sometimes revise that judgment It may supplement torelation it may make us better tolerators especially when it gives us a grasp of what it is to be at the sharp end of a particular stick That kind of understanding leaves room for disagreement in value and room for correction of error It does not bring acceptance or recognition But the effort to understand affirms our fellowship with the objects of our toleration Without that toleration is poorer - and harder - than it need to be A autora expressamente afirma sua preferecircncia pelo termo respeito ao inveacutes do termo toleracircncia porque entende que o uacuteltimo eacute muito fraco e relutante (cf N U S S B A U M 2008 24) Traduccedilatildeo livre da autora [r]espect for fellow citizens does not mean saying or believing that their religious
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O princiacutepio do respeito pela consciecircncia significa apenas respeitaacute-los como
seres humanos com suas proacuteprias escolhas para fazer em mateacuterias religiosas e u m direito
de fazer livremente essas escolhas ( N U S S B A U M 2008 23)25
Assim eacute a faculdade de buscar a finalidade uacuteltima da vida que tem valor e
que deve ser respeitada independentemente de os indiviacuteduos a estarem usando de forma
boa ou ruim Esta abordagem natildeo implica que encontrar a finalidade uacuteltima da vida tem
valor intriacutenseco como resultado as visotildees ceacuteticas e anti-metafiacutesicas tambeacutem merecem ser
respeitadas ( N U S S B A U M 2008 168-169)
D e acordo com Nussbaum o Estado natildeo deve endossar nenhuma religiatildeo
ou a natildeo religiatildeo sobre a religiatildeo E m consequumlecircncia nenhuma indicaccedilatildeo puacuteblica de acordo
ou desacordo devem ser feitos As instituiccedilotildees puacuteblicas natildeo devem ter conteuacutedo religioso
- embora a autora assuma que teratildeo conteuacutedo eacutetico - porque elas devem ser fundadas
em princiacutepios tais como o igual respeito que todos os cidadatildeos podem compartilhar
independentemente de sua religiatildeo ( N U S S B A U M 2008 23)
Cumpre notar que essa abordagem natildeo implica uma visatildeo poacutes-modernista26
de completa relatividade de valores Nesse sentido Nussbaum esclarece que o princiacutepio
do respeito pela consciecircncia natildeo implica que todas as religiotildees e visotildees da vida devem
ser (igualmente) respeitadas pelo governo ( N U S S B A U M 2008 24)27 Se uma visatildeo
contradiz ou ameaccedila as fundaccedilotildees da ordem constitucional e a igualdade dos cidadatildeos
a comunidade pode razoavelmente se opor e desfavorecer tal visatildeo (cf N U S S B A U M 2008 24)
Assim na linha exposta por Nussbaum embora como regra geral crenccedilas
e praacuteticas religiosas devam ser respeitadas algumas accedilotildees e discursos natildeo faratildeo jus a
igual respeito e tratamento se ameaccedilarem os mais importantes valores da comunidade
poliacutetica sendo certo que Estados democraacuteticos liberais devem regular e limitar tais accedilotildees
e discursos
Alguns autores sugeriram limites a serem impostos por Estados democraacuteticos
liberais Nussbaum por exemplo entende que
views are correct or even that ali religions are valid routes to understanding life Traduccedilatildeo livre da autora The Respect-Conscience Principie just means respecting them as human beings with their own choices to make in religious matters and a right to make those choices freely Embora natildeo haja consenso sobre seu conteuacutedo o termo poacutes-modernismo foi definido a partir de seu uso por Jean Baudrillard Jean-Franccedilois Lyotard Fredric Jameson entre outros e eacute utilizado aqui para designer o contexto histoacuterico e socioloacutegico particular caracterizado pelo paradigma da transiccedilatildeo da modernidade que comeccedilou no final do seacuteculo X X As principais caracteriacutesticas do paradigma poacutes-moderno satildeo a ausecircncia de consenso o fim das metanarrativas e de qualquer pretensatildeo de teorias universais (cf BITTAR 2005 96) Para uma visatildeo socioloacutegica mais detalhada do poacutes-modernismo confira Gisela B Taschner A poacutes-modernidade e a sociologia in Revista USP Satildeo Paulo Coordenadoria de Comunicaccedilatildeo Social (CCS) da Universidade de Satildeo Paulo n 42 junago 1999 p 6-19 Traduccedilatildeo livre da autora does not imply that ali religions and views of life must be (equally) respected by the government
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752 Maria Costa Neves Machado
Se as pessoas buscam torturar crianccedilas ou escravizar minorias citando sua religiatildeo como sua razatildeo deve-se resistir a suas reivindicaccedilotildees mesmo que elas possam ser sinceras Se eles simplesmente falam em favor da escravidatildeo ou da tortura sua liberdade de expressatildeo deve ser protegida ateacute o ponto em que o discurso se transforme em uma ameaccedila Eles natildeo poderatildeo entretanto apresentar suas ideacuteias na esfera poliacutetica em bases iguais com outras ideacuteias uma vez que a Constituiccedilatildeo (no caso da escravidatildeo) e a lei criminal (no caso da tortura) proiacutebem as praacuteticas que eles recomendam (NUSSBAUM 2008 24)28
D e acordo com Juumlrgen Habermas as sociedades multiculturais somente
podem tolerar tradiccedilotildees que aceitem a discordacircncia razoaacutevel que ele chama de tradiccedilotildees
natildeo-fundamentalistas Habermas entende que somente as formas de vida tolerantes que
aceitam a discordacircncia razoaacutevel satildeo capazes de coexistir com o reconhecimento dos
membros de culturas diferentes ( H A B E R M A S 1994 151)29 D e m o d o similar Marcelo
Neves argumenta que a intoleracircncia eacutetnica e o fuacutendamentalismo religioso satildeo contra o
pluralismo requerido pela esfera puacuteblica e devem ser juriacutedica e politicamente restringidos
(NEVES 2006 136 222 223 e Neves 2000 41)
Para Miguel Reale Juacutenior o reconhecimento de setores diferentes da
sociedade (tais como minorias eacutetnicas ou classes especiais de pessoas) de seus direitos
e de suas especificidades - a partir do avanccedilo do conceito liberal de toleracircncia para o
conceito social de solidariedade - bem como a assunccedilatildeo da responsabilidade por sua
integraccedilatildeo social natildeo importa e m abrir m atilde o de valores essenciais da pessoa humana
afirmados e conquistados ao longo do processo histoacuterico ( R E A L E JUacuteNIOR 2008
177) Sustentando que pluralismo natildeo significa arbitrismo no sentido de aceitaccedilatildeo de
qualquer organizaccedilatildeo social Reale Juacutenior idem ibidem) destaca que o pluralismo deve
ser limitado pelas conquistas essenciais acerca da dignidade humana conquistas essas que
satildeo historicamente impostergaacuteveis
C o m u m a abordagem diferente Will Kymlicka sustenta que os liberais
deveriam tentar acomodar grupos natildeo liberais desde que estes natildeo estejam buscando o
apoio da sociedade como u m todo e natildeo queiram impor seus valores a outros grupos Para
Traduccedilatildeo livre da autora [i]f people seek to torture children or to enslave minorities citing their religion as their reason their claims must be resisted even though they m a y be sincere If they simply talk in favor of slavery or torture their freedom to speak must be protected up to the point at which speech becomes a threat They will not however be able to present their ideas in the political sphere on an equal basis with other ideas since the Constitution (in the case of slavery) and the criminal law (in the case of torture) forbid the practices they recommend
Para u m a visatildeo completa sobre o entendimento de Habermas a respeito de toleracircncia religiosa vide Juumlrgen Habermas Entre naturalismo e religiatildeo estudos filosoacuteficos traduccedilatildeo de Flaacutevio Beno Siebeneichler Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 2007 especialmente Item IV - Toleracircncia p 279-392
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 753
o autor a maioria das pessoas entende que se u m a minoria nacional estaacute oprimindo outros
grupos u m a intervenccedilatildeo contra a agressatildeo eacute justificaacutevel Entretanto se a minoria somente
visa guiar sua comunidade de acordo com princiacutepios natildeo liberais e natildeo estaacute interessada e m
estabelecer regras para outros grupos ou e m privar esses outros grupos de seus recursos
parece errado impor valores liberais (cf K Y M L I C K A 1997 154-155) Assim Kymlicka
adota u m a visatildeo de acordo com a qual a toleracircncia liberal deve proteger os direitos dos
indiviacuteduos de discordar de seus grupos assim como o direito dos grupos de natildeo serem
perseguidos pelo Estado enquanto que o poder de grupos natildeo liberais de restringir a
liberdade de seus membros e o poder de Estados natildeo liberais de restringir a liberdade de
culto devem ser limitados
Neste item foram examinados (i) a diferenccedila entre o princiacutepio da toleracircncia
e o princiacutepio do respeito no que se refere agrave liberdade religiosa e (ii) os limites para a
adoccedilatildeo do princiacutepio do respeito por democracias liberais A partir dessa anaacutelise o
ordenamento juriacutedico brasileiro e a regulaccedilatildeo da liberdade religiosa seratildeo estudados no
item subsequente
3 Liberdade religiosa no Brasil
A regulaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil eacute examinada neste item com
o intuito de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia
ou do respeito Satildeo analisados os dispositivos da Constituiccedilatildeo Federal que tratam
da liberdade religiosa quais sejam aqueles relacionados ao livre exerciacutecio de cultos
religiosos agrave proteccedilatildeo aos locais de culto e suas liturgias (art 5o inc VI) agrave garantia de
prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa a pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva
(art 5o inc VII) agrave acomodaccedilatildeo juriacutedica e m razatildeo de imperativo de consciecircncia (art 5o
inc VIII) agrave vedaccedilatildeo ao estabelecimento de religiatildeo pelo Estado (art 19) e ao ensino
religioso facultativo (art 210) bem como a legislaccedilatildeo federal relacionada O estudo ora
realizado natildeo pretende analisar de forma exaustiva as leis estaduais anaacutelise esta que
quando realizada serve apenas para ilustrar a aplicaccedilatildeo das normas constitucionais
O dispositivo central da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil de
1988 que serve de base para a proteccedilatildeo da liberdade religiosa eacute seu art 5o o qual estabelece
que [t]odos satildeo iguais perante a lei sem distinccedilatildeo de qualquer natureza garantindo-se
aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Paiacutes a inviolabilidade do direito agrave vida
agrave liberdade agrave igualdade agrave seguranccedila e agrave propriedade Os dispositivos constitucionais
examinados a seguir visam a garantir a observacircncia da liberdade religiosa que se
apresenta como u m dos aspectos da liberdade e m sentido lato a qual eacute constitucionalmente
assegurada a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no Paiacutes
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754 Maria Costa Neves Machado
31 Livre exerciacutecio de cultos religiosos e vedaccedilatildeo ao estabelecimento de religiatildeo
O inciso VI do art 5o da Constituiccedilatildeo Federal determina que eacute inviolaacutevel
a liberdade de consciecircncia e de crenccedila sendo assegurado o livre exerciacutecio dos cultos
religiosos e garantida na forma da lei a proteccedilatildeo aos locais de culto e a suas liturgias
Diferentemente do texto atual a Constituiccedilatildeo brasileira de 1967
expressamente limitava e m seu art 150 paraacutegrafo 5 o exerciacutecio da liberdade religiosa
aos cultos que natildeo contrariassem a ordem puacuteblica e os bons costumes D e acordo com
Celso Ribeiro Bastos embora a atual Constituiccedilatildeo omita o requisito de observacircncia da
ordem puacuteblica e dos bons costumes estaacute impliacutecito no ordenamento juriacutedico brasileiro
que os direitos devem ser exercidos de modo que natildeo prejudiquem os direitos de outras
pessoas e em consonacircncia com os valores eacuteticos e morais e m que se funda a sociedade
brasileira independentemente de quatildeo difiacutecil possa ser para os tribunais definirem quais
satildeo esses valores que estatildeo evoluindo constantemente (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989
52) E m sentido diverso do entendimento de Bastos Manuel Gonccedilalves Ferreira Filho
entende que em razatildeo da omissatildeo da Constituiccedilatildeo os cultos religiosos satildeo garantidos
inclusive contra eventuais limitaccedilotildees baseadas na ordem puacuteblica e nos bons costumes (cf
F E R R E I R A FILHO 1990 33) A interpretaccedilatildeo de Ferreira Filho parece mais adequada
uma vez que os legisladores constitucionais omitiram intencionalmente a exigecircncia da
observacircncia da ordem puacuteblica e dos bons costumes Dessa forma os tribunais brasileiros
natildeo podem limitar o exerciacutecio da liberdade religiosa invocando a ordem puacuteblica ou os
bons costumes
U m a questatildeo muito polecircmica sobre o exerciacutecio da liberdade de culto
e sua limitaccedilatildeo no Brasil eacute relacionada agrave caracterizaccedilatildeo do crime de curandeirismo
previsto no art 284 do Coacutedigo Penal30 Enquanto alguns autores por exemplo Magalhatildees
Noronha sustentam que uma praacutetica religiosa que pretenda curar sem tiacutetulo ou habilitaccedilatildeo
apropriada seja enquadrada como curandeirismo ( N O R O N H A 1968 107) outros
autores como Francisco de Assis Toledo argumentam que os rituais espiacuteritas e os rituais de
todas as outras religiotildees tais como o Catolicismo o Protestantismo ou Budismo embora
possam visar agrave cura ou agrave diminuiccedilatildeo do sofrimento de pessoas doentes nunca poderatildeo ser
considerados u m crime (cf T O L E D O 1986 100-101) Francisco de Assis Toledo parece
estar certo e m sua interpretaccedilatildeo do crime curandeirismo uma vez que ele leva a seacuterio a
Artigo 284 Exercer o curandeirismo
I - prescrevendo ministrando ou aplicando habitualmente qualquer substacircncia
II - usando gestos palavras ou qualquer outro meio
III - fazendo diagnoacutesticos
Pena - detenccedilatildeo de seis meses a dois anos
Paraacutegrafo uacutenico - Se o crime eacute praticado mediante remuneraccedilatildeo o agente fica tambeacutem sujeito agrave multa
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 755
garantia constitucional da liberdade de religiatildeo Atualmente o poder judiciaacuterio no Brasil
entende que os rituais espiacuteritas relacionados agrave cura de pessoas doentes natildeo podem ser
considerados curandeirismo sendo constitucionalmente protegidos como u m tipo de
culto31
Cumpre notar que durante o periacuteodo do Impeacuterio no Brasil havia uma
liberdade religiosa sem liberdade de culto somente o culto catoacutelico era reconhecido como
livre Outras religiotildees somente podiam celebrar seus cultos na esfera domeacutestica sendo
proibido todo o templo fora do lar para outras religiotildees (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989
50 e C R E T E L L A JUacuteNIOR 1992 252)
Essa abordagem inicial da liberdade religiosa no ordenamento juriacutedico
brasileiro pode ser explicada como consequumlecircncia de nosso passado colonial U m a das
justificaccedilotildees ideoloacutegicas subjacentes agrave colonizaccedilatildeo do Brasil por Portugal - e de outros
paiacuteses da Ameacuterica Latina pela Espanha - era relacionada agrave catequizaccedilatildeo dos povos
indiacutegenas C o m o resultado o catolicismo foi a religiatildeo oficial ateacute o fim do periacuteodo
imperial32
A esse respeito vale notar com Faacutebio Konder Comparato (2001 312) que
natildeo haacute autecircntica liberdade de crenccedila e de opiniatildeo num Estado que adota u m a religiatildeo
oficial As pressotildees de toda a sorte - poliacuteticas econocircmicas e profissionais - contra os natildeo
seguidores da religiatildeo de Estado tornam essa liberdade ilusoacuteria C o m efeito as religiotildees
indiacutegenas e africanas e seus valores foram negados durante grande parte da histoacuteria do
Brasil e ainda hoje haacute na sociedade brasileira preconceito contra tais religiotildees33
Exemplificativamente destaque-se que e m 1985 o Supremo Tribunal
Federal arquivou a Representaccedilatildeo n 959-PB que questionava u m a lei do Estado da
Paraiacuteba de 1966 de acordo com a qual os cultos africanos deveriam obter u m a licenccedila
preacutevia para iniciar suas atividades Tal licenccedila seria concedida se entre outras exigecircncias
o responsaacutevel pelos cultos pudesse provar sua idoneidade moral e perfeitas condiccedilotildees de
sauacutede mental conforme documentado e m relatoacuterio psiquiaacutetrico A accedilatildeo arquivada com
STF R H C 62240SP rei Min Francisco Rezek 2a Turma 13121984 DJ 02081985 p 12046 e STJ H C 1498RJ rei Min Luiz Vicente Cernicchiaro 6a Turma j 18121992 DJ 1 de 16081993 p 15994 Cf tambeacutem FERREIRA Pinto Comentaacuterios agrave constituiccedilatildeo brasileira Satildeo Paulo Saraiva 1989 p 71 C o m efeito Celso Lafer nos lembra que incumbia ao imperador antes de ser proclamado jurar manter a religiatildeo catoacutelica cabendo-lhe em contrapartida entre as suas atribuiccedilotildees nomear bispos e prover os benefiacutecios eclesiaacutesticos bem como conceder ou negar beneplaacutecitos a atos da Santa Feacute (cf Constituiccedilatildeo de 1824 art 5o 102 paraacutegrafos 2o e 14 103) (LAFER 2007) Note-se que a negaccedilatildeo dos valores africanos e de uma identidade africana no Brasil abrangendo a esfera religiosa tem suas origens na chegada dos escravos africanos desde o seacuteculo XVI A relaccedilatildeo entre os povos africanos e a sociedade colonial foi caracterizada pela conversatildeo compulsoacuteria dos escravos agrave religiatildeo de seus donos e pela perseguiccedilatildeo daqueles que insistissem na manutenccedilatildeo das praacuteticas ancestrais (DADESKY 2005 51-52)
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756 Maria Costa Neves Machado
base no fato de que a lei e m questatildeo havia sido modificada e m 1977 tendo sido excluiacuteda
a exigecircncia da licenccedila preacutevia
A separaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja foi estabelecida no Brasil somente
durante a Repuacuteblica pelo Decreto n 119-A datado de 7 de janeiro de 1890 de autoria
de Rui Barbosa (cf L A F E R 2007) que proibiu a intervenccedilatildeo do governo federal e dos
estados e m questotildees religiosas e estabeleceu a liberdade de culto34 Desde entatildeo o Brasil
eacute u m estado laico A separaccedilatildeo entre Estado e Igreja na Constituiccedilatildeo de 1988 estaacute prevista
no art 19
Eacute vedado agrave Uniatildeo aos Estados ao Distrito Federal e aos Municiacutepios (i) estabelecer cultos religiosos ou igrejas subvencionaacute-los embaraccedilar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relaccedilotildees de dependecircncia ou alianccedila ressalvada na forma da lei a colaboraccedilatildeo de interesse puacuteblico ()
Consequentemente o Estado brasileiro eacute indiferente agraves vaacuterias igrejas que
podem ser livremente formadas como entidades legais O Estado deve ser absolutamente
neutro sendo proibida a discriminaccedilatildeo entre igrejas para beneficiaacute-las ou prejudicaacute-las
Tambeacutem natildeo pode impor nenhum ocircnus indevido agrave formaccedilatildeo de igrejas N a realidade haacute
mesmo u m incentivo constitucional para sua formaccedilatildeo que resulta da imunidade tributaacuteria
a que fazem jus ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 50-51)35
Observe-se que a colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico mencionada no Artigo
19 para natildeo infringir a proibiccedilatildeo de estabelecimento de religiatildeo pelo Estado natildeo pode
ocorrer em u m campo fundamentalmente religioso (cf F E R R E I R A FILHO 1990 144
C R E T E L L A JUacuteNIOR 1992 1179 e L A F E R 2007) N atildeo obstante essa disposiccedilatildeo tem
implicaccedilotildees muito complexas quando se trata de sua execuccedilatildeo como eacute possiacutevel estabelecer
a colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico entre o Estado e u m a determinada igreja sem favorecer
u m a religiatildeo sobre a outra36 Ademais essa disposiccedilatildeo levanta u m problema similar ao que
resulta da assistecircncia religiosa a pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva e do
ensino religioso facultativo e m escolas conforme detalhado abaixo eacute possiacutevel na praacutetica
ensinar religiatildeo prestar assistecircncia religiosa e estabelecer esquemas de colaboraccedilatildeo
Esse decreto nunca foi expressamente revogado Cf lthttpslegislacaoplanaltogovbrLEGISLA LegislacaonsffraWebOpenFrameSetampFrame=frmWeb2ampSrc=2FLEGISLA2FLegislacaonsf2Fvi wTodos2Fbea39c8e0e484811032569fa005afab43FOpenDocument26Highlight3Dl2C26Auto Framedgt Acesso em 3 abr 2009
Cumpre notar que a Lei n 8245 datada de 18 de outubro de 1991 conforme alterada estabelece que o contrato de locaccedilatildeo de imoacuteveis utilizados por entidades religiosas devidamente registradas bem como por hospitais unidades sanitaacuterias oficiais asilos estabelecimentos de sauacutede e de ensino autorizados e fiscalizados pelo Poder Puacuteblico somente poderaacute ser rescindido em determinadas situaccedilotildees Para uma criacutetica sobre a exceccedilatildeo relacionada agrave colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico vide C R E T E L L A JUacuteNIOR 19921180
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 757
no interesse puacuteblico sem favorecer u m a determinada religiatildeo e sem violar o art 19 da
Constituiccedilatildeo
32 Garantia de assistecircncia religiosa em estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva
A Constituiccedilatildeo brasileira garante a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa a
pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva abrangendo presos militares e
pacientes hospitalizados (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 54) D e acordo com o inciso
VII do art 5o da Constituiccedilatildeo eacute assegurada nos termos da lei a prestaccedilatildeo de assistecircncia
religiosa nas entidades civis e militares de internaccedilatildeo coletiva O caraacuteter laico do Estado
brasileiro natildeo eacute afetado por esta disposiccedilatildeo u m a vez que o Estado natildeo eacute obrigado a
prestar assistecircncia religiosa e as entidades religiosas eacute que iratildeo prestaacute-la (cf M A R T I N S e
B A S T O S 1989 51 e 54 e F E R R E I R A FILHO 1990 34)
Neste sentido a Lei n 7210 de 11 de julho de 1984 que trata da execuccedilatildeo
penal estabelece e m seu art 10 que o Estado deve prestar assistecircncia aos presos e internados
incluindo os egressos objetivando prevenir o crime e orientar o retorno agrave convivecircncia e m
sociedade Tal assistecircncia consistiraacute de acordo com o art 11 e m assistecircncia material
agrave sauacutede juriacutedica educacional social e religiosa D e fato o art 41 estabelece que tais
assistecircncias satildeo direitos dos presos
D e acordo com o art 24 a assistecircncia religiosa com liberdade de culto
seraacute prestada aos presos e aos internados permitindo-se-lhes a participaccedilatildeo nos serviccedilos
organizados no estabelecimento penal bem como a posse de livros de instruccedilatildeo religiosa
O primeiro paraacutegrafo deste artigo estabelece que haveraacute local apropriado para os cultos
religiosos no estabelecimento penal o segundo paraacutegrafo dispotildee que nenhum preso ou
internado poderaacute ser obrigado a participar de atividade religiosa
Adicionalmente a Lei n 9982 de 14 de julho de 2000 que trata da prestaccedilatildeo
de assistecircncia religiosa e m estabelecimentos prisionais civis e militares e e m entidades
hospitalares puacuteblicas e privadas garante e m seu art Io o acesso aos religiosos de todas
as confissotildees aos hospitais da rede puacuteblica ou privada bem como aos estabelecimentos
prisionais civis ou militares para dar atendimento religioso aos internados desde que
em c o m u m acordo com estes ou com seus familiares no caso de doentes que jaacute natildeo mais
estejam no gozo de suas faculdades mentais Vale notar que nos termos do art 2o os
religiosos chamados a prestar assistecircncia nas entidades definidas no art Io deveratildeo e m
suas atividades acatar as determinaccedilotildees legais e normas internas de cada instituiccedilatildeo
hospitalar ou penal a fim de natildeo pocircr e m risco as condiccedilotildees do paciente ou a seguranccedila do
ambiente hospitalar ou prisional
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Duas disposiccedilotildees dessa lei foram vetadas pelo Presidente37 A primeira
disposiccedilatildeo estabelecia que a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa natildeo seria permitida se de
acordo com o hospital ou a prisatildeo houvesse risco de vida ou sauacutede para o internado ou
para o religioso O Presidente justificou esse veto argumentando que a transferecircncia do
processo decisoacuterio relativo agrave prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa aos hospitais ou prisotildees
excluindo-se o paciente ou preso bem como suas famiacutelias era contraacuterio aos incisos VI
e VII do art 5o da Constituiccedilatildeo Ademais o Presidente sustentou que a precauccedilatildeo que
motivou o dispositivo vetado jaacute estaacute assegurada pelo art 2 o da lei e m questatildeo
A segunda disposiccedilatildeo vetada pelo Presidente determinava que o interno teria
direito a pelo menos u m a visita semanal de religiosos da confissatildeo religiosa que professe
O Presidente justificou esse veto argumentando que a periodicidade das visitas deveria ser
determinada pela autoridade local levando e m consideraccedilatildeo as particularidades regionais
os usos e costumes Aleacutem disso o Presidente sustentou que era inadequado tratar hospitais
e prisotildees da mesma forma tendo e m vista as circunstacircncias especiacuteficas de cada instituiccedilatildeo
Havia tambeacutem a preocupaccedilatildeo de que o nuacutemero miacutenimo de visitas estabelecido por lei se
tornasse o nuacutemero maacuteximo permitido na praacutetica
33 Acomodaccedilatildeo em razatildeo de imperativo de consciecircncia
Nos termos do inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo ningueacutem seraacute privado
de direitos por motivo de crenccedila religiosa ou de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica salvo se as
invocar para eximir-se de obrigaccedilatildeo legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestaccedilatildeo
alternativa fixada e m lei Esse inciso entre outras coisas estaacute relacionado ao serviccedilo
militar obrigatoacuterio estabelecido pelo art 143 da Constituiccedilatildeo O paraacutegrafo Io deste artigo
dispotildee que agraves Forccedilas Armadas compete na forma da lei atribuir serviccedilo alternativo aos
que e m tempo de paz apoacutes alistados alegarem imperativo de consciecircncia entendendo-
se como tal o decorrente de crenccedila religiosa e de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica para se
eximirem de atividades de caraacuteter essencialmente militar 38
Esse eacute u m dos casos de acomodaccedilatildeo existentes no ordenamento juriacutedico
brasileiro relacionado agrave crenccedila religiosa ou agraves convicccedilotildees filosoacuteficas ou poliacuteticas Para
buscar proteccedilatildeo constitucional de mo d o a natildeo participar do serviccedilo militar compulsoacuterio
e m tempos de paz faz-se necessaacuterio provar comprometimento com ideacuteias natildeo beligerantes
a ser demonstrado por atitudes passadas que estejam e m consonacircncia com tal ideal
( M A R T I N S e B A S T O S 1989 56) Note-se que eacute possiacutevel ser excluiacutedo de atividades
essencialmente militares mas poderatildeo ser impostos serviccedilos alternativos que consistam em
57 Cf Mensagem de Veto n 960 de 14 de julho de 2000 Disponiacutevel em lthttpswwwplanaltogovbr
ccivil_03leisMensagem_Veto2000Mv0960-00htmgt Acesso em 13 fev 2009 i8 Esse dispositivo constitucional foi regulamentado pela Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 759
atividades administrativas de assistecircncia filantroacutepicas ou produtivas39 jaacute que a obrigaccedilatildeo
de servir ao Paiacutes natildeo eacute excluiacuteda ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 211) Cumpre notar que da
reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia natildeo pode resultar a privaccedilatildeo de direitos exceto
se a pessoa tambeacutem se recusar a prestar serviccedilo alternativo natildeo essencialmente militar
Nessas circunstacircncias a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo aplicaacutevel natildeo satildeo inteiramente claras
sobre as consequumlecircncias legais da recusa Alguns autores entendem que nesse caso a pessoa
que se recusou a prestar serviccedilos alternativos poderia ser privada de direitos (FERREIRA
FILHO 1994 34 e 81 e M A R T I N S e B A S T O S 1989 212)40
Constata-se aqui o que parece ser u m a grande incoerecircncia no ordenamento
juriacutedico brasileiro Enquanto e m tempos de paz as pessoas podem reivindicar imperativo
de consciecircncia para evitar serviccedilos essencialmente militares quando o Estado declara
guerra nenhum cidadatildeo poderaacute invocar crenccedilas religiosas ou convicccedilotildees filosoacuteficas ou
poliacuteticas com a finalidade de natildeo participar do serviccedilo militar41 C o m o resultado durante
o periacuteodo mais adequado e apropriado para expressar desacordo com guerras e ideais
beligerantes as pessoas natildeo tem direito de reivindicar imperativo de consciecircncia para natildeo
participar do serviccedilo militar na hipoacutetese de a Constituiccedilatildeo ser interpretada literalmente
Outro caso de acomodaccedilatildeo relacionado a crenccedilas religiosas que vale ser
mencionado eacute o uso terapecircutico do chaacute Ayahuasca em rituais religiosos A partir de
1985 o governo brasileiro comeccedilou a estudar os aspectos sociais e culturais referentes
ao uso de tal chaacute E m 23 de novembro de 2006 o Grupo Multidisciplinar de Trabalho do
Comitecirc Nacional Antidrogas do Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas42
emitiu seu relatoacuterio final reconhecendo que o uso do chaacute Ayahuasca deveria ser limitado
a rituais religiosos e m locais autorizados pela direccedilatildeo das entidades que fazem uso de
tal chaacute sendo proibido seu uso em conjunto com substacircncia ilegais Atualmente o uso
do chaacute Ayahuasca e m conformidade com as normas aplicaacuteveis eacute assegurado com base
na garantia constitucional da liberdade de consciecircncia e de crenccedila e do livre exerciacutecio de
cultos religiosos Ademais a legitimidade do uso religioso da Ayahuasca foi ratificada
como rica e ancestral manifestaccedilatildeo cultural que exatamente pela relevacircncia de seu valor
Os serviccedilos alternativos podem ser prestados e m organizaccedilotildees militares da ativa e e m oacutergatildeos de formaccedilatildeo de reservas das Forccedilas Armadas ou em oacutergatildeos subordinados aos Ministeacuterios Civis mediante convecircnios entre estes e os Ministeacuterios Militares Cf sectsect 2o e 3o do art 3o da Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991 N o entanto parece-nos que o serviccedilo militar obrigatoacuterio natildeo estaacute de acordo com os princiacutepios que norteiam a Constituiccedilatildeo no sentido de que serviccedilos alternativos natildeo deveriam ser impostos Contudo a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo Ives Granda Martins sustenta que e m tempos de guerra todos os cidadatildeos tecircm iguais deveres perante o Paiacutes (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 212) Discordamos totalmente deste posicionamento porque uma das formas mais eficazes de expressar desacordo com guerras e ideais beligerantes eacute durante o periacuteodo de guerra quando as pessoas que natildeo concordam poderiam recusar-se a prestar serviccedilos militares Contudo conforme mencionado acima a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo O Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas - S I S N A D foi instituiacutedo pela Lei n 11343 de 23 de agosto de 2006
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7(gt(l Maria Costa Neves Machado
histoacuterico antropoloacutegico e social eacute credora da proteccedilatildeo do Estado nos termos do art
2o caput da Lei n 1134306 e do art 215 sect1deg da C F 43 que dispotildee que [o] Estado
protegeraacute as manifestaccedilotildees das culturas populares indiacutegenas e afro-brasileiras e das de
outros grupos participantes do processo civilizatoacuterio nacional44
Eacute de se notar tambeacutem o recente caso no Estado de Satildeo Paulo de acomodaccedilatildeo
religiosa previsto na Lei Estadual n 13541 de 7 de maio de 2009 Tal lei proiacutebe o consumo
de cigarros cigarrilhas charutos cachimbos ou de qualquer outro produto fumiacutegeno
derivado ou natildeo do tabaco e m ambientes de uso coletivo puacuteblicos ou privados Contudo
nos termos do art 6o da referida lei essa natildeo se aplica aos locais de culto religioso em que
o uso de produto fumiacutegeno faccedila parte do ritual O u seja trata-se de mais u m caso em que
uma lei geral eacute excetuada para acomodar praacuteticas relacionadas agrave liberdade de religiatildeo e
de culto
Diferentemente das situaccedilotildees envolvendo serviccedilo militar obrigatoacuterio
o chaacute Ayahuasca e rituais religiosos que envolvem o uso de produtos fumiacutegenos foi
negada acomodaccedilatildeo quando da reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia no contexto
de frequumlecircncia escolar no Estado de Satildeo Paulo E m opiniatildeo escrita por Ada Pellegrini
Grinover publicada e m 25 de outubro de 2002 o Conselho Estadual de Educaccedilatildeo do
Estado de Satildeo Paulo entendeu que estudantes que fossem membros da Igreja Adventista
do Seacutetimo Dia estariam obrigados a frequumlentar as aulas durante o periacuteodo compreendido
entre 1800 horas de sexta-feira e 1800 de saacutebados de acordo com a Lei n 9394 de 20
de dezembro de 1996 conforme alterada embora tal frequumlecircncia seja contraacuteria agraves suas
praacuteticas religiosas u m a vez que natildeo haacute prestaccedilatildeo alternativa estabelecida em lei para tal
escusa de consciecircncia conforme fixado pelo inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo45
Adicionalmente aos casos de acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de
consciecircncia o inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo tambeacutem jaacute foi invocado para proteger
os direitos dos professores do Estado de Rio de Janeiro contra lei estadual que estabeleceu
que somente os professores credenciados pela autoridade religiosa competente estaratildeo
autorizados a ministrar as aulas de ensino religioso e m escolas puacuteblicas estaduais Para
compreender a Accedilatildeo Direta de Inconstitucionalidade - A D I N n 326804 que ainda natildeo
foi decidida pela Suprema Corte faz-se necessaacuterio analisar as disposiccedilotildees legais aplicaacuteveis
relacionadas ao ensino religioso no Brasil
Cf Relatoacuterio Final do Grupo Multidisciplinar de Trabalho disponiacutevel entre outros siacutetios em lthttp wwwsantodaimeorgcomunidadenoticiasrelfinal_conadhtmgt Acesso em 4 mar 2009 e lthttpwww ayahuascabrasilorgindexphpop=legisl01gt Acesso em 4 mar 2009 A acomodaccedilatildeo relacionada ao uso do chaacute Ayahuasca para fins religiosos nos Estados Unidos foi decidida pela Suprema Courte em Gonzales v O Centro Espirita Beneficente Uniatildeo do Vegetal 546 US 418 (2006) Cf Parecer C E E No 4422002 - C E S - Aprovado em 23102002 Disponiacutevel em lthttpwwwceesp spgovbrParecerespa_442_02htmgt Acesso em 4 mar 2009
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 761
34 Ensino religioso facultativo
Nos termos do art 210 da Constituiccedilatildeo [sjeratildeo fixados conteuacutedos miacutenimos
para o ensino fundamental de maneira a assegurar formaccedilatildeo baacutesica c o m u m e respeito aos
valores culturais e artiacutesticos nacionais e regionais O paraacutegrafo Io desse Artigo dispotildee
que [o] ensino religioso de matriacutecula facultativa constituiraacute disciplina dos horaacuterios
normais das escolas puacuteblicas de ensino fundamental
Nesse sentido o art 33 da Lei n 9394 de 22 de julho de 1997 conforme
alterada determina que o respeito agrave diversidade cultural religiosa do Brasil eacute assegurado
no ensino religioso sendo proibida qualquer forma de proselitismo O primeiro paraacutegrafo
desse Artigo dispotildee que [o]s sistemas de ensino regulamentaratildeo os procedimentos para a
definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso e estabeleceratildeo as normas para a habilitaccedilatildeo
e admissatildeo dos professores Ademais de acordo com o segundo paraacutegrafo do referido
Artigo [o]s sistemas de ensino ouviratildeo entidade civil constituiacuteda pelas diferentes
denominaccedilotildees religiosas para a definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso46
D e modo a observar a proibiccedilatildeo constitucional de estabelecimento de
religiatildeo o ensino religioso e m escolas natildeo pode consistir no ensino de u m a religiatildeo
determinada Nesse sentido a previsatildeo constitucional tem por finalidade dar oportunidade
a estudantes que estatildeo e m idade de formaccedilatildeo de personalidade de ter acesso a informaccedilotildees
de modo que no futuro eles possam livremente escolher adotar ou natildeo adotar u m a religiatildeo
(cf S C H E R K E R K E W I T Z 2002 60)47
Levando e m consideraccedilatildeo esses dispositivos a A D I N n 326804 foi
ajuizada pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo com o intuito de
declarar que a Lei n 3459 aprovada pela Assembleacuteia Legislativa do Estado do Rio de
Janeiro e m 14 de setembro de 2000 eacute inconstitucional u m a vez que estabeleceu que (i)
religiatildeo seria ensinada na forma confessional (ii) o conteuacutedo do ensino religioso seria
atribuiccedilatildeo de diversas autoridades religiosas e (iii) apenas professores credenciados pela
autoridade religiosa competente poderiam ensinar religiatildeo e m escolas oficiais
A Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo argumenta que o
ensino religioso na forma confessional viola o art 210 da Constituiccedilatildeo que estabelece que
os valores culturais seratildeo respeitados quando do estabelecimento dos conteuacutedos miacutenimos
para o ensino fundamental e o art 33 da Lei Federal n 939497 que determina que o
ensino religioso respeitaraacute a diversidade cultural do Brasil
Cumpre notar que nos termos do art 21 do Decreto-Lei n 4244 de 9 de abril de 1942 o programa e o regime didaacutetico do ensino religioso deveria ser determinado pela autoridade religiosa De acordo com Alexandre de Moraes para que a regulamentaccedilatildeo e a execuccedilatildeo desta disposiccedilatildeo natildeo sejam inconstitucionais faz-se necessaacuterio que toda e qualquer religiatildeo possa ser ensinada nas escolas puacuteblicas O autor entende que na praacutetica isso eacute absolutamente impossiacutevel (cf M O R A E S 2003 1984-1985)
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762 Maria Costa Neves Machado
Adicionalmente a confederaccedilatildeo sustenta que a disposiccedilatildeo de acordo
com a qual o conteuacutedo do ensino religioso eacute u m a atribuiccedilatildeo das diversas autoridades
religiosas contraria o art 33 da Lei Federal n 939497 que estabelece diferentes padrotildees
para a definiccedilatildeo do conteuacutedo do ensino religioso E m conformidade com tal lei federal
os sistemas de ensino devem ouvir entidades civis de diversas religiotildees para definir
o conteuacutedo do ensino religioso A violaccedilatildeo eacute demonstrada com base no fato de que o
conceito de autoridade religiosa - que implica u m a estrutura administrativa e hieraacuterquica
como aquelas presentes nas Igrejas Catoacutelicas Presbiterianas e Judaicas - natildeo eacute parte da
tradiccedilatildeo de algumas religiotildees que tem origem Evangeacutelica ou afro-brasileira
A A D I N ainda natildeo foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal De qualquer
forma os argumentos apresentados pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores em
Educaccedilatildeo - e pelos vaacuterios amicus curiae admitidos no processo - parecem ser coerentes
com a Constituiccedilatildeo Federal e aptos a derrubar a Lei Estadual n 3459
N o Estado de Satildeo Paulo o ensino religioso previsto no art 33 da Lei n
939497 foi regulamentado na Deliberaccedilatildeo do Conselho Estadual de Educaccedilatildeo - CEE
n 162001 com fundamento na Indicaccedilatildeo C E E n 07 aprovada e m 25 de julho de 2001
de acordo com a qual o ensino religioso deve ser enfocado na perspectiva constitucional
de promoccedilatildeo da cidadania e da dignidade especialmente na funccedilatildeo social da educaccedilatildeo
e m geral de modo que deve ser enfatizada a reflexatildeo sobre a cidadania e as praacuteticas a ela
pertinentes Assumindo que natildeo haacute conhecimento futuro e vida sem a competecircncia de
conviver com as diferenccedilas a Indicaccedilatildeo C E E n 072001 reconhece que satildeo bem-vindos
todos os projetos educacionais (aiacute se podendo incluir o ensino religioso) que visam direta
ou indiretamente o trabalho comunitaacuterio a conscientizaccedilatildeo da responsabilidade pessoal
e social e que estimulem e restaurem os valores humanos de compromisso moral e eacutetico
auxiliando a compreensatildeo do h o m e m e o autoconhecimento Nesse sentido de acordo com
referida indicaccedilatildeo o ensino religioso nas escolas deve antes de tudo fundamentar-se nos
princiacutepios da cidadania e do entendimento do outro Assim o C E E recomendou que o
ensino religioso fosse tratado como tema transversal por meio da implementaccedilatildeo de uma
proposta de abordagem filosoacutefica que permitisse a reflexatildeo sobre valores e princiacutepios eacuteticos e
o conhecimento da histoacuteria das religiotildees Tambeacutem no Estado de Satildeo Paulo a implementaccedilatildeo
do ensino religioso foi arduamente debatida e criticada especialmente em razatildeo da
problemaacutetica questatildeo do estabelecimento de religiatildeo vedado pela Constituiccedilatildeo de 198848
Vide entre outros GIUMBELLI Emerson Ensino religioso em escolas puacuteblicas no Brasil notas de pesquisa Debates do N E R (UFRGS) v 14 p 50-68 2009 CURY Carlos Roberto Jamil Ensino religioso na escola puacuteblica o retorno de uma polecircmica recorrente Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 27 p 183-213 setdez 2004 LUI Janayna de Alencar Entre crentes e pagatildeos ensino religioso em Satildeo Paulo Cadernos de Pesquisa v 37 n 131 p 333-349 maioago 2007 R A N Q U E T A T JUacuteNIOR Ceacutesar Do confessional ao plural uma anaacutelise sobre o novo modelo de ensino religioso nas escolas brasileiras Revista Diaacutelogo Educaccedilatildeo Curitiba v 8 n 23 p 289-305 janabr 2008
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 763
Neste item a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil foi examinada
com a finalidade de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota u m princiacutepio de
toleracircncia ou de respeito As normas relacionadas agrave garantia da liberdade de consciecircncia
e de crenccedila bem como ao livre exerciacutecio de cultos religiosos agrave proteccedilatildeo dos locais de
adoraccedilatildeo agrave proibiccedilatildeo do estabelecimento de religiatildeo agrave garantia de assistecircncia religiosa
e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva agrave acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de
consciecircncia e ao ensino religioso facultativo todas foram analisadas de modo que fosse
possiacutevel concluir se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia ou
do respeito
D e acordo com tal anaacutelise o ordenamento juriacutedico brasileiro parece tratar a
religiatildeo e m conformidade com o princiacutepio do respeito Isso porque pessoas religiosas e natildeo
religiosas podem entrar no espaccedilo puacutebico e m iguais condiccedilotildees sendo que a faculdade de
buscar a finalidade uacuteltima da vida eacute respeitada pelo Estado Nesse sentido o ordenamento
juriacutedico brasileiro garante a liberdade de consciecircncia e de crenccedila o livre exerciacutecio de
cultos religiosos e a proteccedilatildeo dos locais de adoraccedilatildeo Adicionalmente enquanto de u m
lado nenhuma religiatildeo pode ser estabelecida pelo Estado pessoas religiosas podem
reivindicar imperativo de consciecircncia bem como receber assistecircncia religiosa e ensino
religioso se essa for a sua escolha
Isso demonstra que todos os indiviacuteduos de acordo com o ordenamento
juriacutedico brasileiro devem entrar no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais e que o Estado eacute
obrigado a fornecer condiccedilotildees para que pessoas religiosas e natildeo religiosas possam buscar
a finalidade uacuteltima da vida se essa for sua escolha respeitando e m todos os indiviacuteduos a
faculdade de realizar tal busca
4 Conclusatildeo
Inicialmente foi examinada neste artigo a diferenccedila entre o princiacutepio da
toleracircncia e o princiacutepio do respeito no que se refere ao tratamento legal de questotildees de
consciecircncia Posteriormente a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no ordenamento
juriacutedico brasileiro foi analisada com a finalidade de verificar qual desses dois princiacutepios eacute
adotado Finalmente conclui-se que o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio
do respeito pela faculdade dos indiviacuteduos de buscar pela finalidade uacuteltima da vida sendo o
Estado obrigado a garantir condiccedilotildees adequadas para as pessoas exercerem tal faculdade
de acordo com suas escolhas autocircnomas de modo que todos os indiviacuteduos possam entrar
no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais
Satildeo Paulo dezembro de 2010
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IM Maria Costa Neves Machado
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 749
receptores E quando noacutes consideramos as pessoas natildeo como mocircnadas mas como membros de grupos minoritaacuterios entatildeo o fato da toleracircncia pode ser um lembrete infeliz da distribuiccedilatildeo de poder social (GREEN 2008 IO)18
Assim o princiacutepio da toleracircncia reflete tambeacutem a diferenccedila de poder entre
tolerados e toleradores E isto causa mais u m a vez desconforto nos tolerados no sentido
de que estes precisam contar com a benevolecircncia dos poderosos quando o poder eacute exercido
e quando a conduta do tolerado eacute julgada pelos poderosos (cf G R E E N 2008 8-12)
Green entende que entre as trecircs maneiras que geralmente satildeo chamadas
para complementar o princiacutepio da toleracircncia quais sejam aceitaccedilatildeo19 reconhecimento20
e compreensatildeo21 a uacuteltima eacute a adequada O autor assinala que u m a melhor compreensatildeo
pode ampliar a toleracircncia pode fazer com que as pessoas tenham menos m aacute vontade
pode mudar a disposiccedilatildeo para a toleracircncia incentivando pessoas a revisitar julgamentos
e pode tambeacutem ser u m a boa maneira de evitar razotildees erradas para a toleracircncia Essa
complementaccedilatildeo pode deixar aqueles que satildeo tolerados mais confortaacuteveis porque eles
sabem que os toleradores estatildeo fazendo esforccedilos de boa-feacute para compreender C o m o
consequumlecircncia os tolerados sentem que satildeo considerados como parte da convivecircncia
humana (cf G R E E N 2008 21) Green conclui que
Compreender o que a conduta reprovada significa para o agente e como se encaixa em uma vida humana pode fazer-nos revisitar e agraves vezes revisar aquele julgamento Pode complementar a toleracircncia pode tomar-nos toleradores melhores especialmente quando nos daacute uma ideacuteia do que eacute estar na extremidade afiada de uma vareta Esse tipo da compreensatildeo deixa espaccedilo para discordacircncias em torno de valores e deixa espaccedilo para correccedilatildeo de erros Natildeo
18 Traduccedilatildeo livre da autora W h o wants to live by grace and favor ofthe powerful This is especially true when the tolerated have no similar power over their tolerators In this respect toleration shares something with other desirable but asymmetric relations like offering mercy or taking pity which can also be uncomfortable for their recipients And when w e consider people not as monads but as members of minority groups then the fact of toleration may be an unhappy reminder ofthe social distribution of power
19 Se o princiacutepio da toleracircncia fosse complementado pela aceitaccedilatildeo aqueles que praticam atos ou possuem crenccedilas que satildeo toleradas podem (i) assumir abertamente suas praacuteticas e crenccedilas sem que lhes seja imposta nenhuma consequumlecircncia adversa ou (ii) demandar acomodaccedilatildeo para suas praacuteticas e crenccedilas (cf G R E E N 2008 12-15)
20 Se o princiacutepio da toleracircncia fosse complementado pelo reconhecimento praacuteticas e crenccedilas seriam toleradas de bom grado ateacute por aqueles que pensam que tais praacuteticas e crenccedilas satildeo supersticiosas sexistas etc e aqueles que toleram veriam os tolerados como eles mesmos se vecircem Nesse sentido reconhecimento exige natildeo apenas que os valores do tolerado sejam compartilhados pelos toleradores mas que a identidade do tolerado seja reconhecida (cf G R E E N 2008 15-19)
21 Se o princiacutepio da toleracircncia fosse complementado pelo entendimento toleradores deveriam tentar recriar ou capturar na medida do possiacutevel o sentido que accedilotildees e siacutembolos tecircm para seus agentes (GREEN 2008 20-25) (traduccedilatildeo livre da autora attempt to capture or recreate to the extent that w e can the meanings that acts and symbols have for their agents)
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Xrdiz a aceitaccedilatildeo ou o reconhecimento Mas o esforccedilo para compreender afirma nossa convivecircncia com os objetos de nossa toleracircncia Sem isso a toleracircncia eacute mais pobre - e mais dura - do que precisaria ser (GREEN 2008 27)22
Embora Green reconheccedila as principais falhas do princiacutepio da toleracircncia
parece que sua complementaccedilatildeo por u m a atitude compreensiva como sugerida pelo autor
ainda natildeo eacute suficiente para garantir a igualdade entre cidadatildeos e para proteger a dignidade
humana em democracias liberais
Tambeacutem criticando a abordagem da toleracircncia Heiner Bielefeldt argumenta
que a crise normativa resultante do pluralismo cultural deve ser endereccedilada pelo
reconhecimento de tal pluralismo natildeo pela sua toleracircncia C o m o afirmado por Bielefeldt
o problema da toleracircncia eacute que aqueles que tecircm o poder de tolerar tambeacutem tecircm o poder
de natildeo tolerar e aqueles que consideram que tem o poder para tolerar pretendem julgar
as questotildees de consciecircncia O autor sustenta que somente apoacutes a superaccedilatildeo dos conceitos
tradicionais de toleracircncia o pluralismo religioso e poliacutetico natildeo seraacute considerado uma perda
infeliz do centralismo religioso e da cosmovisatildeo da sociedade tradicional O pluralismo
religioso e poliacutetico seratildeo entatildeo considerados uma expressatildeo da responsabilidade autocircnoma
dos seres humanos que desejam ser respeitados e m suas convicccedilotildees e ter direitos iguais
(cf BIELEFELDT 2000 50)
D o mesmo modo Martha Nussbaum argumenta e m favor do princiacutepio
do respeito pela consciecircncia (Respect-Conscience Principie)23 de acordo com o qual
a esfera puacuteblica deve respeitar os diferentes comprometimentos religiosos de todos os
cidadatildeos e deve garantir u m espaccedilo onde os cidadatildeos possam agir consistentemente com
suas consciecircncias de forma que todos os cidadatildeos possam entrar no espaccedilo puacuteblico em
condiccedilotildees iguais ( N U S S B A U M 2008 22-23)
Nussbaum entende que tal princiacutepio natildeo requer a aprovaccedilatildeo de
reivindicaccedilotildees teoloacutegicas e eacuteticas de nenhuma religiatildeo pela esfera puacuteblica ou por cidadatildeos
individualmente (cf N U S S B A U M 2008 23) Neste sentido ela sustenta que o [r]
espeito por concidadatildeos natildeo significa dizer ou acreditar que suas visotildees religiosas estatildeo
corretas ou mesmo que todas as religiotildees satildeo caminhos vaacutelidos ao entendimento da vida
( N U S S B A U M 2008 23)24 Assim ela conclui que
Traduccedilatildeo livre da autora Understanding what the disapproved conduct means for the agent and how it fits into a human life may make us revisit and sometimes revise that judgment It may supplement torelation it may make us better tolerators especially when it gives us a grasp of what it is to be at the sharp end of a particular stick That kind of understanding leaves room for disagreement in value and room for correction of error It does not bring acceptance or recognition But the effort to understand affirms our fellowship with the objects of our toleration Without that toleration is poorer - and harder - than it need to be A autora expressamente afirma sua preferecircncia pelo termo respeito ao inveacutes do termo toleracircncia porque entende que o uacuteltimo eacute muito fraco e relutante (cf N U S S B A U M 2008 24) Traduccedilatildeo livre da autora [r]espect for fellow citizens does not mean saying or believing that their religious
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 751
O princiacutepio do respeito pela consciecircncia significa apenas respeitaacute-los como
seres humanos com suas proacuteprias escolhas para fazer em mateacuterias religiosas e u m direito
de fazer livremente essas escolhas ( N U S S B A U M 2008 23)25
Assim eacute a faculdade de buscar a finalidade uacuteltima da vida que tem valor e
que deve ser respeitada independentemente de os indiviacuteduos a estarem usando de forma
boa ou ruim Esta abordagem natildeo implica que encontrar a finalidade uacuteltima da vida tem
valor intriacutenseco como resultado as visotildees ceacuteticas e anti-metafiacutesicas tambeacutem merecem ser
respeitadas ( N U S S B A U M 2008 168-169)
D e acordo com Nussbaum o Estado natildeo deve endossar nenhuma religiatildeo
ou a natildeo religiatildeo sobre a religiatildeo E m consequumlecircncia nenhuma indicaccedilatildeo puacuteblica de acordo
ou desacordo devem ser feitos As instituiccedilotildees puacuteblicas natildeo devem ter conteuacutedo religioso
- embora a autora assuma que teratildeo conteuacutedo eacutetico - porque elas devem ser fundadas
em princiacutepios tais como o igual respeito que todos os cidadatildeos podem compartilhar
independentemente de sua religiatildeo ( N U S S B A U M 2008 23)
Cumpre notar que essa abordagem natildeo implica uma visatildeo poacutes-modernista26
de completa relatividade de valores Nesse sentido Nussbaum esclarece que o princiacutepio
do respeito pela consciecircncia natildeo implica que todas as religiotildees e visotildees da vida devem
ser (igualmente) respeitadas pelo governo ( N U S S B A U M 2008 24)27 Se uma visatildeo
contradiz ou ameaccedila as fundaccedilotildees da ordem constitucional e a igualdade dos cidadatildeos
a comunidade pode razoavelmente se opor e desfavorecer tal visatildeo (cf N U S S B A U M 2008 24)
Assim na linha exposta por Nussbaum embora como regra geral crenccedilas
e praacuteticas religiosas devam ser respeitadas algumas accedilotildees e discursos natildeo faratildeo jus a
igual respeito e tratamento se ameaccedilarem os mais importantes valores da comunidade
poliacutetica sendo certo que Estados democraacuteticos liberais devem regular e limitar tais accedilotildees
e discursos
Alguns autores sugeriram limites a serem impostos por Estados democraacuteticos
liberais Nussbaum por exemplo entende que
views are correct or even that ali religions are valid routes to understanding life Traduccedilatildeo livre da autora The Respect-Conscience Principie just means respecting them as human beings with their own choices to make in religious matters and a right to make those choices freely Embora natildeo haja consenso sobre seu conteuacutedo o termo poacutes-modernismo foi definido a partir de seu uso por Jean Baudrillard Jean-Franccedilois Lyotard Fredric Jameson entre outros e eacute utilizado aqui para designer o contexto histoacuterico e socioloacutegico particular caracterizado pelo paradigma da transiccedilatildeo da modernidade que comeccedilou no final do seacuteculo X X As principais caracteriacutesticas do paradigma poacutes-moderno satildeo a ausecircncia de consenso o fim das metanarrativas e de qualquer pretensatildeo de teorias universais (cf BITTAR 2005 96) Para uma visatildeo socioloacutegica mais detalhada do poacutes-modernismo confira Gisela B Taschner A poacutes-modernidade e a sociologia in Revista USP Satildeo Paulo Coordenadoria de Comunicaccedilatildeo Social (CCS) da Universidade de Satildeo Paulo n 42 junago 1999 p 6-19 Traduccedilatildeo livre da autora does not imply that ali religions and views of life must be (equally) respected by the government
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752 Maria Costa Neves Machado
Se as pessoas buscam torturar crianccedilas ou escravizar minorias citando sua religiatildeo como sua razatildeo deve-se resistir a suas reivindicaccedilotildees mesmo que elas possam ser sinceras Se eles simplesmente falam em favor da escravidatildeo ou da tortura sua liberdade de expressatildeo deve ser protegida ateacute o ponto em que o discurso se transforme em uma ameaccedila Eles natildeo poderatildeo entretanto apresentar suas ideacuteias na esfera poliacutetica em bases iguais com outras ideacuteias uma vez que a Constituiccedilatildeo (no caso da escravidatildeo) e a lei criminal (no caso da tortura) proiacutebem as praacuteticas que eles recomendam (NUSSBAUM 2008 24)28
D e acordo com Juumlrgen Habermas as sociedades multiculturais somente
podem tolerar tradiccedilotildees que aceitem a discordacircncia razoaacutevel que ele chama de tradiccedilotildees
natildeo-fundamentalistas Habermas entende que somente as formas de vida tolerantes que
aceitam a discordacircncia razoaacutevel satildeo capazes de coexistir com o reconhecimento dos
membros de culturas diferentes ( H A B E R M A S 1994 151)29 D e m o d o similar Marcelo
Neves argumenta que a intoleracircncia eacutetnica e o fuacutendamentalismo religioso satildeo contra o
pluralismo requerido pela esfera puacuteblica e devem ser juriacutedica e politicamente restringidos
(NEVES 2006 136 222 223 e Neves 2000 41)
Para Miguel Reale Juacutenior o reconhecimento de setores diferentes da
sociedade (tais como minorias eacutetnicas ou classes especiais de pessoas) de seus direitos
e de suas especificidades - a partir do avanccedilo do conceito liberal de toleracircncia para o
conceito social de solidariedade - bem como a assunccedilatildeo da responsabilidade por sua
integraccedilatildeo social natildeo importa e m abrir m atilde o de valores essenciais da pessoa humana
afirmados e conquistados ao longo do processo histoacuterico ( R E A L E JUacuteNIOR 2008
177) Sustentando que pluralismo natildeo significa arbitrismo no sentido de aceitaccedilatildeo de
qualquer organizaccedilatildeo social Reale Juacutenior idem ibidem) destaca que o pluralismo deve
ser limitado pelas conquistas essenciais acerca da dignidade humana conquistas essas que
satildeo historicamente impostergaacuteveis
C o m u m a abordagem diferente Will Kymlicka sustenta que os liberais
deveriam tentar acomodar grupos natildeo liberais desde que estes natildeo estejam buscando o
apoio da sociedade como u m todo e natildeo queiram impor seus valores a outros grupos Para
Traduccedilatildeo livre da autora [i]f people seek to torture children or to enslave minorities citing their religion as their reason their claims must be resisted even though they m a y be sincere If they simply talk in favor of slavery or torture their freedom to speak must be protected up to the point at which speech becomes a threat They will not however be able to present their ideas in the political sphere on an equal basis with other ideas since the Constitution (in the case of slavery) and the criminal law (in the case of torture) forbid the practices they recommend
Para u m a visatildeo completa sobre o entendimento de Habermas a respeito de toleracircncia religiosa vide Juumlrgen Habermas Entre naturalismo e religiatildeo estudos filosoacuteficos traduccedilatildeo de Flaacutevio Beno Siebeneichler Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 2007 especialmente Item IV - Toleracircncia p 279-392
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 753
o autor a maioria das pessoas entende que se u m a minoria nacional estaacute oprimindo outros
grupos u m a intervenccedilatildeo contra a agressatildeo eacute justificaacutevel Entretanto se a minoria somente
visa guiar sua comunidade de acordo com princiacutepios natildeo liberais e natildeo estaacute interessada e m
estabelecer regras para outros grupos ou e m privar esses outros grupos de seus recursos
parece errado impor valores liberais (cf K Y M L I C K A 1997 154-155) Assim Kymlicka
adota u m a visatildeo de acordo com a qual a toleracircncia liberal deve proteger os direitos dos
indiviacuteduos de discordar de seus grupos assim como o direito dos grupos de natildeo serem
perseguidos pelo Estado enquanto que o poder de grupos natildeo liberais de restringir a
liberdade de seus membros e o poder de Estados natildeo liberais de restringir a liberdade de
culto devem ser limitados
Neste item foram examinados (i) a diferenccedila entre o princiacutepio da toleracircncia
e o princiacutepio do respeito no que se refere agrave liberdade religiosa e (ii) os limites para a
adoccedilatildeo do princiacutepio do respeito por democracias liberais A partir dessa anaacutelise o
ordenamento juriacutedico brasileiro e a regulaccedilatildeo da liberdade religiosa seratildeo estudados no
item subsequente
3 Liberdade religiosa no Brasil
A regulaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil eacute examinada neste item com
o intuito de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia
ou do respeito Satildeo analisados os dispositivos da Constituiccedilatildeo Federal que tratam
da liberdade religiosa quais sejam aqueles relacionados ao livre exerciacutecio de cultos
religiosos agrave proteccedilatildeo aos locais de culto e suas liturgias (art 5o inc VI) agrave garantia de
prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa a pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva
(art 5o inc VII) agrave acomodaccedilatildeo juriacutedica e m razatildeo de imperativo de consciecircncia (art 5o
inc VIII) agrave vedaccedilatildeo ao estabelecimento de religiatildeo pelo Estado (art 19) e ao ensino
religioso facultativo (art 210) bem como a legislaccedilatildeo federal relacionada O estudo ora
realizado natildeo pretende analisar de forma exaustiva as leis estaduais anaacutelise esta que
quando realizada serve apenas para ilustrar a aplicaccedilatildeo das normas constitucionais
O dispositivo central da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil de
1988 que serve de base para a proteccedilatildeo da liberdade religiosa eacute seu art 5o o qual estabelece
que [t]odos satildeo iguais perante a lei sem distinccedilatildeo de qualquer natureza garantindo-se
aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Paiacutes a inviolabilidade do direito agrave vida
agrave liberdade agrave igualdade agrave seguranccedila e agrave propriedade Os dispositivos constitucionais
examinados a seguir visam a garantir a observacircncia da liberdade religiosa que se
apresenta como u m dos aspectos da liberdade e m sentido lato a qual eacute constitucionalmente
assegurada a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no Paiacutes
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754 Maria Costa Neves Machado
31 Livre exerciacutecio de cultos religiosos e vedaccedilatildeo ao estabelecimento de religiatildeo
O inciso VI do art 5o da Constituiccedilatildeo Federal determina que eacute inviolaacutevel
a liberdade de consciecircncia e de crenccedila sendo assegurado o livre exerciacutecio dos cultos
religiosos e garantida na forma da lei a proteccedilatildeo aos locais de culto e a suas liturgias
Diferentemente do texto atual a Constituiccedilatildeo brasileira de 1967
expressamente limitava e m seu art 150 paraacutegrafo 5 o exerciacutecio da liberdade religiosa
aos cultos que natildeo contrariassem a ordem puacuteblica e os bons costumes D e acordo com
Celso Ribeiro Bastos embora a atual Constituiccedilatildeo omita o requisito de observacircncia da
ordem puacuteblica e dos bons costumes estaacute impliacutecito no ordenamento juriacutedico brasileiro
que os direitos devem ser exercidos de modo que natildeo prejudiquem os direitos de outras
pessoas e em consonacircncia com os valores eacuteticos e morais e m que se funda a sociedade
brasileira independentemente de quatildeo difiacutecil possa ser para os tribunais definirem quais
satildeo esses valores que estatildeo evoluindo constantemente (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989
52) E m sentido diverso do entendimento de Bastos Manuel Gonccedilalves Ferreira Filho
entende que em razatildeo da omissatildeo da Constituiccedilatildeo os cultos religiosos satildeo garantidos
inclusive contra eventuais limitaccedilotildees baseadas na ordem puacuteblica e nos bons costumes (cf
F E R R E I R A FILHO 1990 33) A interpretaccedilatildeo de Ferreira Filho parece mais adequada
uma vez que os legisladores constitucionais omitiram intencionalmente a exigecircncia da
observacircncia da ordem puacuteblica e dos bons costumes Dessa forma os tribunais brasileiros
natildeo podem limitar o exerciacutecio da liberdade religiosa invocando a ordem puacuteblica ou os
bons costumes
U m a questatildeo muito polecircmica sobre o exerciacutecio da liberdade de culto
e sua limitaccedilatildeo no Brasil eacute relacionada agrave caracterizaccedilatildeo do crime de curandeirismo
previsto no art 284 do Coacutedigo Penal30 Enquanto alguns autores por exemplo Magalhatildees
Noronha sustentam que uma praacutetica religiosa que pretenda curar sem tiacutetulo ou habilitaccedilatildeo
apropriada seja enquadrada como curandeirismo ( N O R O N H A 1968 107) outros
autores como Francisco de Assis Toledo argumentam que os rituais espiacuteritas e os rituais de
todas as outras religiotildees tais como o Catolicismo o Protestantismo ou Budismo embora
possam visar agrave cura ou agrave diminuiccedilatildeo do sofrimento de pessoas doentes nunca poderatildeo ser
considerados u m crime (cf T O L E D O 1986 100-101) Francisco de Assis Toledo parece
estar certo e m sua interpretaccedilatildeo do crime curandeirismo uma vez que ele leva a seacuterio a
Artigo 284 Exercer o curandeirismo
I - prescrevendo ministrando ou aplicando habitualmente qualquer substacircncia
II - usando gestos palavras ou qualquer outro meio
III - fazendo diagnoacutesticos
Pena - detenccedilatildeo de seis meses a dois anos
Paraacutegrafo uacutenico - Se o crime eacute praticado mediante remuneraccedilatildeo o agente fica tambeacutem sujeito agrave multa
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 755
garantia constitucional da liberdade de religiatildeo Atualmente o poder judiciaacuterio no Brasil
entende que os rituais espiacuteritas relacionados agrave cura de pessoas doentes natildeo podem ser
considerados curandeirismo sendo constitucionalmente protegidos como u m tipo de
culto31
Cumpre notar que durante o periacuteodo do Impeacuterio no Brasil havia uma
liberdade religiosa sem liberdade de culto somente o culto catoacutelico era reconhecido como
livre Outras religiotildees somente podiam celebrar seus cultos na esfera domeacutestica sendo
proibido todo o templo fora do lar para outras religiotildees (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989
50 e C R E T E L L A JUacuteNIOR 1992 252)
Essa abordagem inicial da liberdade religiosa no ordenamento juriacutedico
brasileiro pode ser explicada como consequumlecircncia de nosso passado colonial U m a das
justificaccedilotildees ideoloacutegicas subjacentes agrave colonizaccedilatildeo do Brasil por Portugal - e de outros
paiacuteses da Ameacuterica Latina pela Espanha - era relacionada agrave catequizaccedilatildeo dos povos
indiacutegenas C o m o resultado o catolicismo foi a religiatildeo oficial ateacute o fim do periacuteodo
imperial32
A esse respeito vale notar com Faacutebio Konder Comparato (2001 312) que
natildeo haacute autecircntica liberdade de crenccedila e de opiniatildeo num Estado que adota u m a religiatildeo
oficial As pressotildees de toda a sorte - poliacuteticas econocircmicas e profissionais - contra os natildeo
seguidores da religiatildeo de Estado tornam essa liberdade ilusoacuteria C o m efeito as religiotildees
indiacutegenas e africanas e seus valores foram negados durante grande parte da histoacuteria do
Brasil e ainda hoje haacute na sociedade brasileira preconceito contra tais religiotildees33
Exemplificativamente destaque-se que e m 1985 o Supremo Tribunal
Federal arquivou a Representaccedilatildeo n 959-PB que questionava u m a lei do Estado da
Paraiacuteba de 1966 de acordo com a qual os cultos africanos deveriam obter u m a licenccedila
preacutevia para iniciar suas atividades Tal licenccedila seria concedida se entre outras exigecircncias
o responsaacutevel pelos cultos pudesse provar sua idoneidade moral e perfeitas condiccedilotildees de
sauacutede mental conforme documentado e m relatoacuterio psiquiaacutetrico A accedilatildeo arquivada com
STF R H C 62240SP rei Min Francisco Rezek 2a Turma 13121984 DJ 02081985 p 12046 e STJ H C 1498RJ rei Min Luiz Vicente Cernicchiaro 6a Turma j 18121992 DJ 1 de 16081993 p 15994 Cf tambeacutem FERREIRA Pinto Comentaacuterios agrave constituiccedilatildeo brasileira Satildeo Paulo Saraiva 1989 p 71 C o m efeito Celso Lafer nos lembra que incumbia ao imperador antes de ser proclamado jurar manter a religiatildeo catoacutelica cabendo-lhe em contrapartida entre as suas atribuiccedilotildees nomear bispos e prover os benefiacutecios eclesiaacutesticos bem como conceder ou negar beneplaacutecitos a atos da Santa Feacute (cf Constituiccedilatildeo de 1824 art 5o 102 paraacutegrafos 2o e 14 103) (LAFER 2007) Note-se que a negaccedilatildeo dos valores africanos e de uma identidade africana no Brasil abrangendo a esfera religiosa tem suas origens na chegada dos escravos africanos desde o seacuteculo XVI A relaccedilatildeo entre os povos africanos e a sociedade colonial foi caracterizada pela conversatildeo compulsoacuteria dos escravos agrave religiatildeo de seus donos e pela perseguiccedilatildeo daqueles que insistissem na manutenccedilatildeo das praacuteticas ancestrais (DADESKY 2005 51-52)
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756 Maria Costa Neves Machado
base no fato de que a lei e m questatildeo havia sido modificada e m 1977 tendo sido excluiacuteda
a exigecircncia da licenccedila preacutevia
A separaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja foi estabelecida no Brasil somente
durante a Repuacuteblica pelo Decreto n 119-A datado de 7 de janeiro de 1890 de autoria
de Rui Barbosa (cf L A F E R 2007) que proibiu a intervenccedilatildeo do governo federal e dos
estados e m questotildees religiosas e estabeleceu a liberdade de culto34 Desde entatildeo o Brasil
eacute u m estado laico A separaccedilatildeo entre Estado e Igreja na Constituiccedilatildeo de 1988 estaacute prevista
no art 19
Eacute vedado agrave Uniatildeo aos Estados ao Distrito Federal e aos Municiacutepios (i) estabelecer cultos religiosos ou igrejas subvencionaacute-los embaraccedilar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relaccedilotildees de dependecircncia ou alianccedila ressalvada na forma da lei a colaboraccedilatildeo de interesse puacuteblico ()
Consequentemente o Estado brasileiro eacute indiferente agraves vaacuterias igrejas que
podem ser livremente formadas como entidades legais O Estado deve ser absolutamente
neutro sendo proibida a discriminaccedilatildeo entre igrejas para beneficiaacute-las ou prejudicaacute-las
Tambeacutem natildeo pode impor nenhum ocircnus indevido agrave formaccedilatildeo de igrejas N a realidade haacute
mesmo u m incentivo constitucional para sua formaccedilatildeo que resulta da imunidade tributaacuteria
a que fazem jus ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 50-51)35
Observe-se que a colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico mencionada no Artigo
19 para natildeo infringir a proibiccedilatildeo de estabelecimento de religiatildeo pelo Estado natildeo pode
ocorrer em u m campo fundamentalmente religioso (cf F E R R E I R A FILHO 1990 144
C R E T E L L A JUacuteNIOR 1992 1179 e L A F E R 2007) N atildeo obstante essa disposiccedilatildeo tem
implicaccedilotildees muito complexas quando se trata de sua execuccedilatildeo como eacute possiacutevel estabelecer
a colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico entre o Estado e u m a determinada igreja sem favorecer
u m a religiatildeo sobre a outra36 Ademais essa disposiccedilatildeo levanta u m problema similar ao que
resulta da assistecircncia religiosa a pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva e do
ensino religioso facultativo e m escolas conforme detalhado abaixo eacute possiacutevel na praacutetica
ensinar religiatildeo prestar assistecircncia religiosa e estabelecer esquemas de colaboraccedilatildeo
Esse decreto nunca foi expressamente revogado Cf lthttpslegislacaoplanaltogovbrLEGISLA LegislacaonsffraWebOpenFrameSetampFrame=frmWeb2ampSrc=2FLEGISLA2FLegislacaonsf2Fvi wTodos2Fbea39c8e0e484811032569fa005afab43FOpenDocument26Highlight3Dl2C26Auto Framedgt Acesso em 3 abr 2009
Cumpre notar que a Lei n 8245 datada de 18 de outubro de 1991 conforme alterada estabelece que o contrato de locaccedilatildeo de imoacuteveis utilizados por entidades religiosas devidamente registradas bem como por hospitais unidades sanitaacuterias oficiais asilos estabelecimentos de sauacutede e de ensino autorizados e fiscalizados pelo Poder Puacuteblico somente poderaacute ser rescindido em determinadas situaccedilotildees Para uma criacutetica sobre a exceccedilatildeo relacionada agrave colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico vide C R E T E L L A JUacuteNIOR 19921180
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 757
no interesse puacuteblico sem favorecer u m a determinada religiatildeo e sem violar o art 19 da
Constituiccedilatildeo
32 Garantia de assistecircncia religiosa em estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva
A Constituiccedilatildeo brasileira garante a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa a
pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva abrangendo presos militares e
pacientes hospitalizados (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 54) D e acordo com o inciso
VII do art 5o da Constituiccedilatildeo eacute assegurada nos termos da lei a prestaccedilatildeo de assistecircncia
religiosa nas entidades civis e militares de internaccedilatildeo coletiva O caraacuteter laico do Estado
brasileiro natildeo eacute afetado por esta disposiccedilatildeo u m a vez que o Estado natildeo eacute obrigado a
prestar assistecircncia religiosa e as entidades religiosas eacute que iratildeo prestaacute-la (cf M A R T I N S e
B A S T O S 1989 51 e 54 e F E R R E I R A FILHO 1990 34)
Neste sentido a Lei n 7210 de 11 de julho de 1984 que trata da execuccedilatildeo
penal estabelece e m seu art 10 que o Estado deve prestar assistecircncia aos presos e internados
incluindo os egressos objetivando prevenir o crime e orientar o retorno agrave convivecircncia e m
sociedade Tal assistecircncia consistiraacute de acordo com o art 11 e m assistecircncia material
agrave sauacutede juriacutedica educacional social e religiosa D e fato o art 41 estabelece que tais
assistecircncias satildeo direitos dos presos
D e acordo com o art 24 a assistecircncia religiosa com liberdade de culto
seraacute prestada aos presos e aos internados permitindo-se-lhes a participaccedilatildeo nos serviccedilos
organizados no estabelecimento penal bem como a posse de livros de instruccedilatildeo religiosa
O primeiro paraacutegrafo deste artigo estabelece que haveraacute local apropriado para os cultos
religiosos no estabelecimento penal o segundo paraacutegrafo dispotildee que nenhum preso ou
internado poderaacute ser obrigado a participar de atividade religiosa
Adicionalmente a Lei n 9982 de 14 de julho de 2000 que trata da prestaccedilatildeo
de assistecircncia religiosa e m estabelecimentos prisionais civis e militares e e m entidades
hospitalares puacuteblicas e privadas garante e m seu art Io o acesso aos religiosos de todas
as confissotildees aos hospitais da rede puacuteblica ou privada bem como aos estabelecimentos
prisionais civis ou militares para dar atendimento religioso aos internados desde que
em c o m u m acordo com estes ou com seus familiares no caso de doentes que jaacute natildeo mais
estejam no gozo de suas faculdades mentais Vale notar que nos termos do art 2o os
religiosos chamados a prestar assistecircncia nas entidades definidas no art Io deveratildeo e m
suas atividades acatar as determinaccedilotildees legais e normas internas de cada instituiccedilatildeo
hospitalar ou penal a fim de natildeo pocircr e m risco as condiccedilotildees do paciente ou a seguranccedila do
ambiente hospitalar ou prisional
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Duas disposiccedilotildees dessa lei foram vetadas pelo Presidente37 A primeira
disposiccedilatildeo estabelecia que a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa natildeo seria permitida se de
acordo com o hospital ou a prisatildeo houvesse risco de vida ou sauacutede para o internado ou
para o religioso O Presidente justificou esse veto argumentando que a transferecircncia do
processo decisoacuterio relativo agrave prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa aos hospitais ou prisotildees
excluindo-se o paciente ou preso bem como suas famiacutelias era contraacuterio aos incisos VI
e VII do art 5o da Constituiccedilatildeo Ademais o Presidente sustentou que a precauccedilatildeo que
motivou o dispositivo vetado jaacute estaacute assegurada pelo art 2 o da lei e m questatildeo
A segunda disposiccedilatildeo vetada pelo Presidente determinava que o interno teria
direito a pelo menos u m a visita semanal de religiosos da confissatildeo religiosa que professe
O Presidente justificou esse veto argumentando que a periodicidade das visitas deveria ser
determinada pela autoridade local levando e m consideraccedilatildeo as particularidades regionais
os usos e costumes Aleacutem disso o Presidente sustentou que era inadequado tratar hospitais
e prisotildees da mesma forma tendo e m vista as circunstacircncias especiacuteficas de cada instituiccedilatildeo
Havia tambeacutem a preocupaccedilatildeo de que o nuacutemero miacutenimo de visitas estabelecido por lei se
tornasse o nuacutemero maacuteximo permitido na praacutetica
33 Acomodaccedilatildeo em razatildeo de imperativo de consciecircncia
Nos termos do inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo ningueacutem seraacute privado
de direitos por motivo de crenccedila religiosa ou de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica salvo se as
invocar para eximir-se de obrigaccedilatildeo legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestaccedilatildeo
alternativa fixada e m lei Esse inciso entre outras coisas estaacute relacionado ao serviccedilo
militar obrigatoacuterio estabelecido pelo art 143 da Constituiccedilatildeo O paraacutegrafo Io deste artigo
dispotildee que agraves Forccedilas Armadas compete na forma da lei atribuir serviccedilo alternativo aos
que e m tempo de paz apoacutes alistados alegarem imperativo de consciecircncia entendendo-
se como tal o decorrente de crenccedila religiosa e de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica para se
eximirem de atividades de caraacuteter essencialmente militar 38
Esse eacute u m dos casos de acomodaccedilatildeo existentes no ordenamento juriacutedico
brasileiro relacionado agrave crenccedila religiosa ou agraves convicccedilotildees filosoacuteficas ou poliacuteticas Para
buscar proteccedilatildeo constitucional de mo d o a natildeo participar do serviccedilo militar compulsoacuterio
e m tempos de paz faz-se necessaacuterio provar comprometimento com ideacuteias natildeo beligerantes
a ser demonstrado por atitudes passadas que estejam e m consonacircncia com tal ideal
( M A R T I N S e B A S T O S 1989 56) Note-se que eacute possiacutevel ser excluiacutedo de atividades
essencialmente militares mas poderatildeo ser impostos serviccedilos alternativos que consistam em
57 Cf Mensagem de Veto n 960 de 14 de julho de 2000 Disponiacutevel em lthttpswwwplanaltogovbr
ccivil_03leisMensagem_Veto2000Mv0960-00htmgt Acesso em 13 fev 2009 i8 Esse dispositivo constitucional foi regulamentado pela Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 759
atividades administrativas de assistecircncia filantroacutepicas ou produtivas39 jaacute que a obrigaccedilatildeo
de servir ao Paiacutes natildeo eacute excluiacuteda ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 211) Cumpre notar que da
reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia natildeo pode resultar a privaccedilatildeo de direitos exceto
se a pessoa tambeacutem se recusar a prestar serviccedilo alternativo natildeo essencialmente militar
Nessas circunstacircncias a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo aplicaacutevel natildeo satildeo inteiramente claras
sobre as consequumlecircncias legais da recusa Alguns autores entendem que nesse caso a pessoa
que se recusou a prestar serviccedilos alternativos poderia ser privada de direitos (FERREIRA
FILHO 1994 34 e 81 e M A R T I N S e B A S T O S 1989 212)40
Constata-se aqui o que parece ser u m a grande incoerecircncia no ordenamento
juriacutedico brasileiro Enquanto e m tempos de paz as pessoas podem reivindicar imperativo
de consciecircncia para evitar serviccedilos essencialmente militares quando o Estado declara
guerra nenhum cidadatildeo poderaacute invocar crenccedilas religiosas ou convicccedilotildees filosoacuteficas ou
poliacuteticas com a finalidade de natildeo participar do serviccedilo militar41 C o m o resultado durante
o periacuteodo mais adequado e apropriado para expressar desacordo com guerras e ideais
beligerantes as pessoas natildeo tem direito de reivindicar imperativo de consciecircncia para natildeo
participar do serviccedilo militar na hipoacutetese de a Constituiccedilatildeo ser interpretada literalmente
Outro caso de acomodaccedilatildeo relacionado a crenccedilas religiosas que vale ser
mencionado eacute o uso terapecircutico do chaacute Ayahuasca em rituais religiosos A partir de
1985 o governo brasileiro comeccedilou a estudar os aspectos sociais e culturais referentes
ao uso de tal chaacute E m 23 de novembro de 2006 o Grupo Multidisciplinar de Trabalho do
Comitecirc Nacional Antidrogas do Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas42
emitiu seu relatoacuterio final reconhecendo que o uso do chaacute Ayahuasca deveria ser limitado
a rituais religiosos e m locais autorizados pela direccedilatildeo das entidades que fazem uso de
tal chaacute sendo proibido seu uso em conjunto com substacircncia ilegais Atualmente o uso
do chaacute Ayahuasca e m conformidade com as normas aplicaacuteveis eacute assegurado com base
na garantia constitucional da liberdade de consciecircncia e de crenccedila e do livre exerciacutecio de
cultos religiosos Ademais a legitimidade do uso religioso da Ayahuasca foi ratificada
como rica e ancestral manifestaccedilatildeo cultural que exatamente pela relevacircncia de seu valor
Os serviccedilos alternativos podem ser prestados e m organizaccedilotildees militares da ativa e e m oacutergatildeos de formaccedilatildeo de reservas das Forccedilas Armadas ou em oacutergatildeos subordinados aos Ministeacuterios Civis mediante convecircnios entre estes e os Ministeacuterios Militares Cf sectsect 2o e 3o do art 3o da Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991 N o entanto parece-nos que o serviccedilo militar obrigatoacuterio natildeo estaacute de acordo com os princiacutepios que norteiam a Constituiccedilatildeo no sentido de que serviccedilos alternativos natildeo deveriam ser impostos Contudo a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo Ives Granda Martins sustenta que e m tempos de guerra todos os cidadatildeos tecircm iguais deveres perante o Paiacutes (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 212) Discordamos totalmente deste posicionamento porque uma das formas mais eficazes de expressar desacordo com guerras e ideais beligerantes eacute durante o periacuteodo de guerra quando as pessoas que natildeo concordam poderiam recusar-se a prestar serviccedilos militares Contudo conforme mencionado acima a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo O Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas - S I S N A D foi instituiacutedo pela Lei n 11343 de 23 de agosto de 2006
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7(gt(l Maria Costa Neves Machado
histoacuterico antropoloacutegico e social eacute credora da proteccedilatildeo do Estado nos termos do art
2o caput da Lei n 1134306 e do art 215 sect1deg da C F 43 que dispotildee que [o] Estado
protegeraacute as manifestaccedilotildees das culturas populares indiacutegenas e afro-brasileiras e das de
outros grupos participantes do processo civilizatoacuterio nacional44
Eacute de se notar tambeacutem o recente caso no Estado de Satildeo Paulo de acomodaccedilatildeo
religiosa previsto na Lei Estadual n 13541 de 7 de maio de 2009 Tal lei proiacutebe o consumo
de cigarros cigarrilhas charutos cachimbos ou de qualquer outro produto fumiacutegeno
derivado ou natildeo do tabaco e m ambientes de uso coletivo puacuteblicos ou privados Contudo
nos termos do art 6o da referida lei essa natildeo se aplica aos locais de culto religioso em que
o uso de produto fumiacutegeno faccedila parte do ritual O u seja trata-se de mais u m caso em que
uma lei geral eacute excetuada para acomodar praacuteticas relacionadas agrave liberdade de religiatildeo e
de culto
Diferentemente das situaccedilotildees envolvendo serviccedilo militar obrigatoacuterio
o chaacute Ayahuasca e rituais religiosos que envolvem o uso de produtos fumiacutegenos foi
negada acomodaccedilatildeo quando da reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia no contexto
de frequumlecircncia escolar no Estado de Satildeo Paulo E m opiniatildeo escrita por Ada Pellegrini
Grinover publicada e m 25 de outubro de 2002 o Conselho Estadual de Educaccedilatildeo do
Estado de Satildeo Paulo entendeu que estudantes que fossem membros da Igreja Adventista
do Seacutetimo Dia estariam obrigados a frequumlentar as aulas durante o periacuteodo compreendido
entre 1800 horas de sexta-feira e 1800 de saacutebados de acordo com a Lei n 9394 de 20
de dezembro de 1996 conforme alterada embora tal frequumlecircncia seja contraacuteria agraves suas
praacuteticas religiosas u m a vez que natildeo haacute prestaccedilatildeo alternativa estabelecida em lei para tal
escusa de consciecircncia conforme fixado pelo inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo45
Adicionalmente aos casos de acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de
consciecircncia o inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo tambeacutem jaacute foi invocado para proteger
os direitos dos professores do Estado de Rio de Janeiro contra lei estadual que estabeleceu
que somente os professores credenciados pela autoridade religiosa competente estaratildeo
autorizados a ministrar as aulas de ensino religioso e m escolas puacuteblicas estaduais Para
compreender a Accedilatildeo Direta de Inconstitucionalidade - A D I N n 326804 que ainda natildeo
foi decidida pela Suprema Corte faz-se necessaacuterio analisar as disposiccedilotildees legais aplicaacuteveis
relacionadas ao ensino religioso no Brasil
Cf Relatoacuterio Final do Grupo Multidisciplinar de Trabalho disponiacutevel entre outros siacutetios em lthttp wwwsantodaimeorgcomunidadenoticiasrelfinal_conadhtmgt Acesso em 4 mar 2009 e lthttpwww ayahuascabrasilorgindexphpop=legisl01gt Acesso em 4 mar 2009 A acomodaccedilatildeo relacionada ao uso do chaacute Ayahuasca para fins religiosos nos Estados Unidos foi decidida pela Suprema Courte em Gonzales v O Centro Espirita Beneficente Uniatildeo do Vegetal 546 US 418 (2006) Cf Parecer C E E No 4422002 - C E S - Aprovado em 23102002 Disponiacutevel em lthttpwwwceesp spgovbrParecerespa_442_02htmgt Acesso em 4 mar 2009
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 761
34 Ensino religioso facultativo
Nos termos do art 210 da Constituiccedilatildeo [sjeratildeo fixados conteuacutedos miacutenimos
para o ensino fundamental de maneira a assegurar formaccedilatildeo baacutesica c o m u m e respeito aos
valores culturais e artiacutesticos nacionais e regionais O paraacutegrafo Io desse Artigo dispotildee
que [o] ensino religioso de matriacutecula facultativa constituiraacute disciplina dos horaacuterios
normais das escolas puacuteblicas de ensino fundamental
Nesse sentido o art 33 da Lei n 9394 de 22 de julho de 1997 conforme
alterada determina que o respeito agrave diversidade cultural religiosa do Brasil eacute assegurado
no ensino religioso sendo proibida qualquer forma de proselitismo O primeiro paraacutegrafo
desse Artigo dispotildee que [o]s sistemas de ensino regulamentaratildeo os procedimentos para a
definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso e estabeleceratildeo as normas para a habilitaccedilatildeo
e admissatildeo dos professores Ademais de acordo com o segundo paraacutegrafo do referido
Artigo [o]s sistemas de ensino ouviratildeo entidade civil constituiacuteda pelas diferentes
denominaccedilotildees religiosas para a definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso46
D e modo a observar a proibiccedilatildeo constitucional de estabelecimento de
religiatildeo o ensino religioso e m escolas natildeo pode consistir no ensino de u m a religiatildeo
determinada Nesse sentido a previsatildeo constitucional tem por finalidade dar oportunidade
a estudantes que estatildeo e m idade de formaccedilatildeo de personalidade de ter acesso a informaccedilotildees
de modo que no futuro eles possam livremente escolher adotar ou natildeo adotar u m a religiatildeo
(cf S C H E R K E R K E W I T Z 2002 60)47
Levando e m consideraccedilatildeo esses dispositivos a A D I N n 326804 foi
ajuizada pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo com o intuito de
declarar que a Lei n 3459 aprovada pela Assembleacuteia Legislativa do Estado do Rio de
Janeiro e m 14 de setembro de 2000 eacute inconstitucional u m a vez que estabeleceu que (i)
religiatildeo seria ensinada na forma confessional (ii) o conteuacutedo do ensino religioso seria
atribuiccedilatildeo de diversas autoridades religiosas e (iii) apenas professores credenciados pela
autoridade religiosa competente poderiam ensinar religiatildeo e m escolas oficiais
A Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo argumenta que o
ensino religioso na forma confessional viola o art 210 da Constituiccedilatildeo que estabelece que
os valores culturais seratildeo respeitados quando do estabelecimento dos conteuacutedos miacutenimos
para o ensino fundamental e o art 33 da Lei Federal n 939497 que determina que o
ensino religioso respeitaraacute a diversidade cultural do Brasil
Cumpre notar que nos termos do art 21 do Decreto-Lei n 4244 de 9 de abril de 1942 o programa e o regime didaacutetico do ensino religioso deveria ser determinado pela autoridade religiosa De acordo com Alexandre de Moraes para que a regulamentaccedilatildeo e a execuccedilatildeo desta disposiccedilatildeo natildeo sejam inconstitucionais faz-se necessaacuterio que toda e qualquer religiatildeo possa ser ensinada nas escolas puacuteblicas O autor entende que na praacutetica isso eacute absolutamente impossiacutevel (cf M O R A E S 2003 1984-1985)
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762 Maria Costa Neves Machado
Adicionalmente a confederaccedilatildeo sustenta que a disposiccedilatildeo de acordo
com a qual o conteuacutedo do ensino religioso eacute u m a atribuiccedilatildeo das diversas autoridades
religiosas contraria o art 33 da Lei Federal n 939497 que estabelece diferentes padrotildees
para a definiccedilatildeo do conteuacutedo do ensino religioso E m conformidade com tal lei federal
os sistemas de ensino devem ouvir entidades civis de diversas religiotildees para definir
o conteuacutedo do ensino religioso A violaccedilatildeo eacute demonstrada com base no fato de que o
conceito de autoridade religiosa - que implica u m a estrutura administrativa e hieraacuterquica
como aquelas presentes nas Igrejas Catoacutelicas Presbiterianas e Judaicas - natildeo eacute parte da
tradiccedilatildeo de algumas religiotildees que tem origem Evangeacutelica ou afro-brasileira
A A D I N ainda natildeo foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal De qualquer
forma os argumentos apresentados pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores em
Educaccedilatildeo - e pelos vaacuterios amicus curiae admitidos no processo - parecem ser coerentes
com a Constituiccedilatildeo Federal e aptos a derrubar a Lei Estadual n 3459
N o Estado de Satildeo Paulo o ensino religioso previsto no art 33 da Lei n
939497 foi regulamentado na Deliberaccedilatildeo do Conselho Estadual de Educaccedilatildeo - CEE
n 162001 com fundamento na Indicaccedilatildeo C E E n 07 aprovada e m 25 de julho de 2001
de acordo com a qual o ensino religioso deve ser enfocado na perspectiva constitucional
de promoccedilatildeo da cidadania e da dignidade especialmente na funccedilatildeo social da educaccedilatildeo
e m geral de modo que deve ser enfatizada a reflexatildeo sobre a cidadania e as praacuteticas a ela
pertinentes Assumindo que natildeo haacute conhecimento futuro e vida sem a competecircncia de
conviver com as diferenccedilas a Indicaccedilatildeo C E E n 072001 reconhece que satildeo bem-vindos
todos os projetos educacionais (aiacute se podendo incluir o ensino religioso) que visam direta
ou indiretamente o trabalho comunitaacuterio a conscientizaccedilatildeo da responsabilidade pessoal
e social e que estimulem e restaurem os valores humanos de compromisso moral e eacutetico
auxiliando a compreensatildeo do h o m e m e o autoconhecimento Nesse sentido de acordo com
referida indicaccedilatildeo o ensino religioso nas escolas deve antes de tudo fundamentar-se nos
princiacutepios da cidadania e do entendimento do outro Assim o C E E recomendou que o
ensino religioso fosse tratado como tema transversal por meio da implementaccedilatildeo de uma
proposta de abordagem filosoacutefica que permitisse a reflexatildeo sobre valores e princiacutepios eacuteticos e
o conhecimento da histoacuteria das religiotildees Tambeacutem no Estado de Satildeo Paulo a implementaccedilatildeo
do ensino religioso foi arduamente debatida e criticada especialmente em razatildeo da
problemaacutetica questatildeo do estabelecimento de religiatildeo vedado pela Constituiccedilatildeo de 198848
Vide entre outros GIUMBELLI Emerson Ensino religioso em escolas puacuteblicas no Brasil notas de pesquisa Debates do N E R (UFRGS) v 14 p 50-68 2009 CURY Carlos Roberto Jamil Ensino religioso na escola puacuteblica o retorno de uma polecircmica recorrente Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 27 p 183-213 setdez 2004 LUI Janayna de Alencar Entre crentes e pagatildeos ensino religioso em Satildeo Paulo Cadernos de Pesquisa v 37 n 131 p 333-349 maioago 2007 R A N Q U E T A T JUacuteNIOR Ceacutesar Do confessional ao plural uma anaacutelise sobre o novo modelo de ensino religioso nas escolas brasileiras Revista Diaacutelogo Educaccedilatildeo Curitiba v 8 n 23 p 289-305 janabr 2008
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 763
Neste item a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil foi examinada
com a finalidade de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota u m princiacutepio de
toleracircncia ou de respeito As normas relacionadas agrave garantia da liberdade de consciecircncia
e de crenccedila bem como ao livre exerciacutecio de cultos religiosos agrave proteccedilatildeo dos locais de
adoraccedilatildeo agrave proibiccedilatildeo do estabelecimento de religiatildeo agrave garantia de assistecircncia religiosa
e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva agrave acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de
consciecircncia e ao ensino religioso facultativo todas foram analisadas de modo que fosse
possiacutevel concluir se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia ou
do respeito
D e acordo com tal anaacutelise o ordenamento juriacutedico brasileiro parece tratar a
religiatildeo e m conformidade com o princiacutepio do respeito Isso porque pessoas religiosas e natildeo
religiosas podem entrar no espaccedilo puacutebico e m iguais condiccedilotildees sendo que a faculdade de
buscar a finalidade uacuteltima da vida eacute respeitada pelo Estado Nesse sentido o ordenamento
juriacutedico brasileiro garante a liberdade de consciecircncia e de crenccedila o livre exerciacutecio de
cultos religiosos e a proteccedilatildeo dos locais de adoraccedilatildeo Adicionalmente enquanto de u m
lado nenhuma religiatildeo pode ser estabelecida pelo Estado pessoas religiosas podem
reivindicar imperativo de consciecircncia bem como receber assistecircncia religiosa e ensino
religioso se essa for a sua escolha
Isso demonstra que todos os indiviacuteduos de acordo com o ordenamento
juriacutedico brasileiro devem entrar no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais e que o Estado eacute
obrigado a fornecer condiccedilotildees para que pessoas religiosas e natildeo religiosas possam buscar
a finalidade uacuteltima da vida se essa for sua escolha respeitando e m todos os indiviacuteduos a
faculdade de realizar tal busca
4 Conclusatildeo
Inicialmente foi examinada neste artigo a diferenccedila entre o princiacutepio da
toleracircncia e o princiacutepio do respeito no que se refere ao tratamento legal de questotildees de
consciecircncia Posteriormente a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no ordenamento
juriacutedico brasileiro foi analisada com a finalidade de verificar qual desses dois princiacutepios eacute
adotado Finalmente conclui-se que o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio
do respeito pela faculdade dos indiviacuteduos de buscar pela finalidade uacuteltima da vida sendo o
Estado obrigado a garantir condiccedilotildees adequadas para as pessoas exercerem tal faculdade
de acordo com suas escolhas autocircnomas de modo que todos os indiviacuteduos possam entrar
no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais
Satildeo Paulo dezembro de 2010
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IM Maria Costa Neves Machado
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750 Maria Costa Neves Machado
Xrdiz a aceitaccedilatildeo ou o reconhecimento Mas o esforccedilo para compreender afirma nossa convivecircncia com os objetos de nossa toleracircncia Sem isso a toleracircncia eacute mais pobre - e mais dura - do que precisaria ser (GREEN 2008 27)22
Embora Green reconheccedila as principais falhas do princiacutepio da toleracircncia
parece que sua complementaccedilatildeo por u m a atitude compreensiva como sugerida pelo autor
ainda natildeo eacute suficiente para garantir a igualdade entre cidadatildeos e para proteger a dignidade
humana em democracias liberais
Tambeacutem criticando a abordagem da toleracircncia Heiner Bielefeldt argumenta
que a crise normativa resultante do pluralismo cultural deve ser endereccedilada pelo
reconhecimento de tal pluralismo natildeo pela sua toleracircncia C o m o afirmado por Bielefeldt
o problema da toleracircncia eacute que aqueles que tecircm o poder de tolerar tambeacutem tecircm o poder
de natildeo tolerar e aqueles que consideram que tem o poder para tolerar pretendem julgar
as questotildees de consciecircncia O autor sustenta que somente apoacutes a superaccedilatildeo dos conceitos
tradicionais de toleracircncia o pluralismo religioso e poliacutetico natildeo seraacute considerado uma perda
infeliz do centralismo religioso e da cosmovisatildeo da sociedade tradicional O pluralismo
religioso e poliacutetico seratildeo entatildeo considerados uma expressatildeo da responsabilidade autocircnoma
dos seres humanos que desejam ser respeitados e m suas convicccedilotildees e ter direitos iguais
(cf BIELEFELDT 2000 50)
D o mesmo modo Martha Nussbaum argumenta e m favor do princiacutepio
do respeito pela consciecircncia (Respect-Conscience Principie)23 de acordo com o qual
a esfera puacuteblica deve respeitar os diferentes comprometimentos religiosos de todos os
cidadatildeos e deve garantir u m espaccedilo onde os cidadatildeos possam agir consistentemente com
suas consciecircncias de forma que todos os cidadatildeos possam entrar no espaccedilo puacuteblico em
condiccedilotildees iguais ( N U S S B A U M 2008 22-23)
Nussbaum entende que tal princiacutepio natildeo requer a aprovaccedilatildeo de
reivindicaccedilotildees teoloacutegicas e eacuteticas de nenhuma religiatildeo pela esfera puacuteblica ou por cidadatildeos
individualmente (cf N U S S B A U M 2008 23) Neste sentido ela sustenta que o [r]
espeito por concidadatildeos natildeo significa dizer ou acreditar que suas visotildees religiosas estatildeo
corretas ou mesmo que todas as religiotildees satildeo caminhos vaacutelidos ao entendimento da vida
( N U S S B A U M 2008 23)24 Assim ela conclui que
Traduccedilatildeo livre da autora Understanding what the disapproved conduct means for the agent and how it fits into a human life may make us revisit and sometimes revise that judgment It may supplement torelation it may make us better tolerators especially when it gives us a grasp of what it is to be at the sharp end of a particular stick That kind of understanding leaves room for disagreement in value and room for correction of error It does not bring acceptance or recognition But the effort to understand affirms our fellowship with the objects of our toleration Without that toleration is poorer - and harder - than it need to be A autora expressamente afirma sua preferecircncia pelo termo respeito ao inveacutes do termo toleracircncia porque entende que o uacuteltimo eacute muito fraco e relutante (cf N U S S B A U M 2008 24) Traduccedilatildeo livre da autora [r]espect for fellow citizens does not mean saying or believing that their religious
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 751
O princiacutepio do respeito pela consciecircncia significa apenas respeitaacute-los como
seres humanos com suas proacuteprias escolhas para fazer em mateacuterias religiosas e u m direito
de fazer livremente essas escolhas ( N U S S B A U M 2008 23)25
Assim eacute a faculdade de buscar a finalidade uacuteltima da vida que tem valor e
que deve ser respeitada independentemente de os indiviacuteduos a estarem usando de forma
boa ou ruim Esta abordagem natildeo implica que encontrar a finalidade uacuteltima da vida tem
valor intriacutenseco como resultado as visotildees ceacuteticas e anti-metafiacutesicas tambeacutem merecem ser
respeitadas ( N U S S B A U M 2008 168-169)
D e acordo com Nussbaum o Estado natildeo deve endossar nenhuma religiatildeo
ou a natildeo religiatildeo sobre a religiatildeo E m consequumlecircncia nenhuma indicaccedilatildeo puacuteblica de acordo
ou desacordo devem ser feitos As instituiccedilotildees puacuteblicas natildeo devem ter conteuacutedo religioso
- embora a autora assuma que teratildeo conteuacutedo eacutetico - porque elas devem ser fundadas
em princiacutepios tais como o igual respeito que todos os cidadatildeos podem compartilhar
independentemente de sua religiatildeo ( N U S S B A U M 2008 23)
Cumpre notar que essa abordagem natildeo implica uma visatildeo poacutes-modernista26
de completa relatividade de valores Nesse sentido Nussbaum esclarece que o princiacutepio
do respeito pela consciecircncia natildeo implica que todas as religiotildees e visotildees da vida devem
ser (igualmente) respeitadas pelo governo ( N U S S B A U M 2008 24)27 Se uma visatildeo
contradiz ou ameaccedila as fundaccedilotildees da ordem constitucional e a igualdade dos cidadatildeos
a comunidade pode razoavelmente se opor e desfavorecer tal visatildeo (cf N U S S B A U M 2008 24)
Assim na linha exposta por Nussbaum embora como regra geral crenccedilas
e praacuteticas religiosas devam ser respeitadas algumas accedilotildees e discursos natildeo faratildeo jus a
igual respeito e tratamento se ameaccedilarem os mais importantes valores da comunidade
poliacutetica sendo certo que Estados democraacuteticos liberais devem regular e limitar tais accedilotildees
e discursos
Alguns autores sugeriram limites a serem impostos por Estados democraacuteticos
liberais Nussbaum por exemplo entende que
views are correct or even that ali religions are valid routes to understanding life Traduccedilatildeo livre da autora The Respect-Conscience Principie just means respecting them as human beings with their own choices to make in religious matters and a right to make those choices freely Embora natildeo haja consenso sobre seu conteuacutedo o termo poacutes-modernismo foi definido a partir de seu uso por Jean Baudrillard Jean-Franccedilois Lyotard Fredric Jameson entre outros e eacute utilizado aqui para designer o contexto histoacuterico e socioloacutegico particular caracterizado pelo paradigma da transiccedilatildeo da modernidade que comeccedilou no final do seacuteculo X X As principais caracteriacutesticas do paradigma poacutes-moderno satildeo a ausecircncia de consenso o fim das metanarrativas e de qualquer pretensatildeo de teorias universais (cf BITTAR 2005 96) Para uma visatildeo socioloacutegica mais detalhada do poacutes-modernismo confira Gisela B Taschner A poacutes-modernidade e a sociologia in Revista USP Satildeo Paulo Coordenadoria de Comunicaccedilatildeo Social (CCS) da Universidade de Satildeo Paulo n 42 junago 1999 p 6-19 Traduccedilatildeo livre da autora does not imply that ali religions and views of life must be (equally) respected by the government
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752 Maria Costa Neves Machado
Se as pessoas buscam torturar crianccedilas ou escravizar minorias citando sua religiatildeo como sua razatildeo deve-se resistir a suas reivindicaccedilotildees mesmo que elas possam ser sinceras Se eles simplesmente falam em favor da escravidatildeo ou da tortura sua liberdade de expressatildeo deve ser protegida ateacute o ponto em que o discurso se transforme em uma ameaccedila Eles natildeo poderatildeo entretanto apresentar suas ideacuteias na esfera poliacutetica em bases iguais com outras ideacuteias uma vez que a Constituiccedilatildeo (no caso da escravidatildeo) e a lei criminal (no caso da tortura) proiacutebem as praacuteticas que eles recomendam (NUSSBAUM 2008 24)28
D e acordo com Juumlrgen Habermas as sociedades multiculturais somente
podem tolerar tradiccedilotildees que aceitem a discordacircncia razoaacutevel que ele chama de tradiccedilotildees
natildeo-fundamentalistas Habermas entende que somente as formas de vida tolerantes que
aceitam a discordacircncia razoaacutevel satildeo capazes de coexistir com o reconhecimento dos
membros de culturas diferentes ( H A B E R M A S 1994 151)29 D e m o d o similar Marcelo
Neves argumenta que a intoleracircncia eacutetnica e o fuacutendamentalismo religioso satildeo contra o
pluralismo requerido pela esfera puacuteblica e devem ser juriacutedica e politicamente restringidos
(NEVES 2006 136 222 223 e Neves 2000 41)
Para Miguel Reale Juacutenior o reconhecimento de setores diferentes da
sociedade (tais como minorias eacutetnicas ou classes especiais de pessoas) de seus direitos
e de suas especificidades - a partir do avanccedilo do conceito liberal de toleracircncia para o
conceito social de solidariedade - bem como a assunccedilatildeo da responsabilidade por sua
integraccedilatildeo social natildeo importa e m abrir m atilde o de valores essenciais da pessoa humana
afirmados e conquistados ao longo do processo histoacuterico ( R E A L E JUacuteNIOR 2008
177) Sustentando que pluralismo natildeo significa arbitrismo no sentido de aceitaccedilatildeo de
qualquer organizaccedilatildeo social Reale Juacutenior idem ibidem) destaca que o pluralismo deve
ser limitado pelas conquistas essenciais acerca da dignidade humana conquistas essas que
satildeo historicamente impostergaacuteveis
C o m u m a abordagem diferente Will Kymlicka sustenta que os liberais
deveriam tentar acomodar grupos natildeo liberais desde que estes natildeo estejam buscando o
apoio da sociedade como u m todo e natildeo queiram impor seus valores a outros grupos Para
Traduccedilatildeo livre da autora [i]f people seek to torture children or to enslave minorities citing their religion as their reason their claims must be resisted even though they m a y be sincere If they simply talk in favor of slavery or torture their freedom to speak must be protected up to the point at which speech becomes a threat They will not however be able to present their ideas in the political sphere on an equal basis with other ideas since the Constitution (in the case of slavery) and the criminal law (in the case of torture) forbid the practices they recommend
Para u m a visatildeo completa sobre o entendimento de Habermas a respeito de toleracircncia religiosa vide Juumlrgen Habermas Entre naturalismo e religiatildeo estudos filosoacuteficos traduccedilatildeo de Flaacutevio Beno Siebeneichler Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 2007 especialmente Item IV - Toleracircncia p 279-392
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 753
o autor a maioria das pessoas entende que se u m a minoria nacional estaacute oprimindo outros
grupos u m a intervenccedilatildeo contra a agressatildeo eacute justificaacutevel Entretanto se a minoria somente
visa guiar sua comunidade de acordo com princiacutepios natildeo liberais e natildeo estaacute interessada e m
estabelecer regras para outros grupos ou e m privar esses outros grupos de seus recursos
parece errado impor valores liberais (cf K Y M L I C K A 1997 154-155) Assim Kymlicka
adota u m a visatildeo de acordo com a qual a toleracircncia liberal deve proteger os direitos dos
indiviacuteduos de discordar de seus grupos assim como o direito dos grupos de natildeo serem
perseguidos pelo Estado enquanto que o poder de grupos natildeo liberais de restringir a
liberdade de seus membros e o poder de Estados natildeo liberais de restringir a liberdade de
culto devem ser limitados
Neste item foram examinados (i) a diferenccedila entre o princiacutepio da toleracircncia
e o princiacutepio do respeito no que se refere agrave liberdade religiosa e (ii) os limites para a
adoccedilatildeo do princiacutepio do respeito por democracias liberais A partir dessa anaacutelise o
ordenamento juriacutedico brasileiro e a regulaccedilatildeo da liberdade religiosa seratildeo estudados no
item subsequente
3 Liberdade religiosa no Brasil
A regulaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil eacute examinada neste item com
o intuito de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia
ou do respeito Satildeo analisados os dispositivos da Constituiccedilatildeo Federal que tratam
da liberdade religiosa quais sejam aqueles relacionados ao livre exerciacutecio de cultos
religiosos agrave proteccedilatildeo aos locais de culto e suas liturgias (art 5o inc VI) agrave garantia de
prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa a pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva
(art 5o inc VII) agrave acomodaccedilatildeo juriacutedica e m razatildeo de imperativo de consciecircncia (art 5o
inc VIII) agrave vedaccedilatildeo ao estabelecimento de religiatildeo pelo Estado (art 19) e ao ensino
religioso facultativo (art 210) bem como a legislaccedilatildeo federal relacionada O estudo ora
realizado natildeo pretende analisar de forma exaustiva as leis estaduais anaacutelise esta que
quando realizada serve apenas para ilustrar a aplicaccedilatildeo das normas constitucionais
O dispositivo central da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil de
1988 que serve de base para a proteccedilatildeo da liberdade religiosa eacute seu art 5o o qual estabelece
que [t]odos satildeo iguais perante a lei sem distinccedilatildeo de qualquer natureza garantindo-se
aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Paiacutes a inviolabilidade do direito agrave vida
agrave liberdade agrave igualdade agrave seguranccedila e agrave propriedade Os dispositivos constitucionais
examinados a seguir visam a garantir a observacircncia da liberdade religiosa que se
apresenta como u m dos aspectos da liberdade e m sentido lato a qual eacute constitucionalmente
assegurada a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no Paiacutes
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31 Livre exerciacutecio de cultos religiosos e vedaccedilatildeo ao estabelecimento de religiatildeo
O inciso VI do art 5o da Constituiccedilatildeo Federal determina que eacute inviolaacutevel
a liberdade de consciecircncia e de crenccedila sendo assegurado o livre exerciacutecio dos cultos
religiosos e garantida na forma da lei a proteccedilatildeo aos locais de culto e a suas liturgias
Diferentemente do texto atual a Constituiccedilatildeo brasileira de 1967
expressamente limitava e m seu art 150 paraacutegrafo 5 o exerciacutecio da liberdade religiosa
aos cultos que natildeo contrariassem a ordem puacuteblica e os bons costumes D e acordo com
Celso Ribeiro Bastos embora a atual Constituiccedilatildeo omita o requisito de observacircncia da
ordem puacuteblica e dos bons costumes estaacute impliacutecito no ordenamento juriacutedico brasileiro
que os direitos devem ser exercidos de modo que natildeo prejudiquem os direitos de outras
pessoas e em consonacircncia com os valores eacuteticos e morais e m que se funda a sociedade
brasileira independentemente de quatildeo difiacutecil possa ser para os tribunais definirem quais
satildeo esses valores que estatildeo evoluindo constantemente (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989
52) E m sentido diverso do entendimento de Bastos Manuel Gonccedilalves Ferreira Filho
entende que em razatildeo da omissatildeo da Constituiccedilatildeo os cultos religiosos satildeo garantidos
inclusive contra eventuais limitaccedilotildees baseadas na ordem puacuteblica e nos bons costumes (cf
F E R R E I R A FILHO 1990 33) A interpretaccedilatildeo de Ferreira Filho parece mais adequada
uma vez que os legisladores constitucionais omitiram intencionalmente a exigecircncia da
observacircncia da ordem puacuteblica e dos bons costumes Dessa forma os tribunais brasileiros
natildeo podem limitar o exerciacutecio da liberdade religiosa invocando a ordem puacuteblica ou os
bons costumes
U m a questatildeo muito polecircmica sobre o exerciacutecio da liberdade de culto
e sua limitaccedilatildeo no Brasil eacute relacionada agrave caracterizaccedilatildeo do crime de curandeirismo
previsto no art 284 do Coacutedigo Penal30 Enquanto alguns autores por exemplo Magalhatildees
Noronha sustentam que uma praacutetica religiosa que pretenda curar sem tiacutetulo ou habilitaccedilatildeo
apropriada seja enquadrada como curandeirismo ( N O R O N H A 1968 107) outros
autores como Francisco de Assis Toledo argumentam que os rituais espiacuteritas e os rituais de
todas as outras religiotildees tais como o Catolicismo o Protestantismo ou Budismo embora
possam visar agrave cura ou agrave diminuiccedilatildeo do sofrimento de pessoas doentes nunca poderatildeo ser
considerados u m crime (cf T O L E D O 1986 100-101) Francisco de Assis Toledo parece
estar certo e m sua interpretaccedilatildeo do crime curandeirismo uma vez que ele leva a seacuterio a
Artigo 284 Exercer o curandeirismo
I - prescrevendo ministrando ou aplicando habitualmente qualquer substacircncia
II - usando gestos palavras ou qualquer outro meio
III - fazendo diagnoacutesticos
Pena - detenccedilatildeo de seis meses a dois anos
Paraacutegrafo uacutenico - Se o crime eacute praticado mediante remuneraccedilatildeo o agente fica tambeacutem sujeito agrave multa
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 755
garantia constitucional da liberdade de religiatildeo Atualmente o poder judiciaacuterio no Brasil
entende que os rituais espiacuteritas relacionados agrave cura de pessoas doentes natildeo podem ser
considerados curandeirismo sendo constitucionalmente protegidos como u m tipo de
culto31
Cumpre notar que durante o periacuteodo do Impeacuterio no Brasil havia uma
liberdade religiosa sem liberdade de culto somente o culto catoacutelico era reconhecido como
livre Outras religiotildees somente podiam celebrar seus cultos na esfera domeacutestica sendo
proibido todo o templo fora do lar para outras religiotildees (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989
50 e C R E T E L L A JUacuteNIOR 1992 252)
Essa abordagem inicial da liberdade religiosa no ordenamento juriacutedico
brasileiro pode ser explicada como consequumlecircncia de nosso passado colonial U m a das
justificaccedilotildees ideoloacutegicas subjacentes agrave colonizaccedilatildeo do Brasil por Portugal - e de outros
paiacuteses da Ameacuterica Latina pela Espanha - era relacionada agrave catequizaccedilatildeo dos povos
indiacutegenas C o m o resultado o catolicismo foi a religiatildeo oficial ateacute o fim do periacuteodo
imperial32
A esse respeito vale notar com Faacutebio Konder Comparato (2001 312) que
natildeo haacute autecircntica liberdade de crenccedila e de opiniatildeo num Estado que adota u m a religiatildeo
oficial As pressotildees de toda a sorte - poliacuteticas econocircmicas e profissionais - contra os natildeo
seguidores da religiatildeo de Estado tornam essa liberdade ilusoacuteria C o m efeito as religiotildees
indiacutegenas e africanas e seus valores foram negados durante grande parte da histoacuteria do
Brasil e ainda hoje haacute na sociedade brasileira preconceito contra tais religiotildees33
Exemplificativamente destaque-se que e m 1985 o Supremo Tribunal
Federal arquivou a Representaccedilatildeo n 959-PB que questionava u m a lei do Estado da
Paraiacuteba de 1966 de acordo com a qual os cultos africanos deveriam obter u m a licenccedila
preacutevia para iniciar suas atividades Tal licenccedila seria concedida se entre outras exigecircncias
o responsaacutevel pelos cultos pudesse provar sua idoneidade moral e perfeitas condiccedilotildees de
sauacutede mental conforme documentado e m relatoacuterio psiquiaacutetrico A accedilatildeo arquivada com
STF R H C 62240SP rei Min Francisco Rezek 2a Turma 13121984 DJ 02081985 p 12046 e STJ H C 1498RJ rei Min Luiz Vicente Cernicchiaro 6a Turma j 18121992 DJ 1 de 16081993 p 15994 Cf tambeacutem FERREIRA Pinto Comentaacuterios agrave constituiccedilatildeo brasileira Satildeo Paulo Saraiva 1989 p 71 C o m efeito Celso Lafer nos lembra que incumbia ao imperador antes de ser proclamado jurar manter a religiatildeo catoacutelica cabendo-lhe em contrapartida entre as suas atribuiccedilotildees nomear bispos e prover os benefiacutecios eclesiaacutesticos bem como conceder ou negar beneplaacutecitos a atos da Santa Feacute (cf Constituiccedilatildeo de 1824 art 5o 102 paraacutegrafos 2o e 14 103) (LAFER 2007) Note-se que a negaccedilatildeo dos valores africanos e de uma identidade africana no Brasil abrangendo a esfera religiosa tem suas origens na chegada dos escravos africanos desde o seacuteculo XVI A relaccedilatildeo entre os povos africanos e a sociedade colonial foi caracterizada pela conversatildeo compulsoacuteria dos escravos agrave religiatildeo de seus donos e pela perseguiccedilatildeo daqueles que insistissem na manutenccedilatildeo das praacuteticas ancestrais (DADESKY 2005 51-52)
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base no fato de que a lei e m questatildeo havia sido modificada e m 1977 tendo sido excluiacuteda
a exigecircncia da licenccedila preacutevia
A separaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja foi estabelecida no Brasil somente
durante a Repuacuteblica pelo Decreto n 119-A datado de 7 de janeiro de 1890 de autoria
de Rui Barbosa (cf L A F E R 2007) que proibiu a intervenccedilatildeo do governo federal e dos
estados e m questotildees religiosas e estabeleceu a liberdade de culto34 Desde entatildeo o Brasil
eacute u m estado laico A separaccedilatildeo entre Estado e Igreja na Constituiccedilatildeo de 1988 estaacute prevista
no art 19
Eacute vedado agrave Uniatildeo aos Estados ao Distrito Federal e aos Municiacutepios (i) estabelecer cultos religiosos ou igrejas subvencionaacute-los embaraccedilar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relaccedilotildees de dependecircncia ou alianccedila ressalvada na forma da lei a colaboraccedilatildeo de interesse puacuteblico ()
Consequentemente o Estado brasileiro eacute indiferente agraves vaacuterias igrejas que
podem ser livremente formadas como entidades legais O Estado deve ser absolutamente
neutro sendo proibida a discriminaccedilatildeo entre igrejas para beneficiaacute-las ou prejudicaacute-las
Tambeacutem natildeo pode impor nenhum ocircnus indevido agrave formaccedilatildeo de igrejas N a realidade haacute
mesmo u m incentivo constitucional para sua formaccedilatildeo que resulta da imunidade tributaacuteria
a que fazem jus ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 50-51)35
Observe-se que a colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico mencionada no Artigo
19 para natildeo infringir a proibiccedilatildeo de estabelecimento de religiatildeo pelo Estado natildeo pode
ocorrer em u m campo fundamentalmente religioso (cf F E R R E I R A FILHO 1990 144
C R E T E L L A JUacuteNIOR 1992 1179 e L A F E R 2007) N atildeo obstante essa disposiccedilatildeo tem
implicaccedilotildees muito complexas quando se trata de sua execuccedilatildeo como eacute possiacutevel estabelecer
a colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico entre o Estado e u m a determinada igreja sem favorecer
u m a religiatildeo sobre a outra36 Ademais essa disposiccedilatildeo levanta u m problema similar ao que
resulta da assistecircncia religiosa a pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva e do
ensino religioso facultativo e m escolas conforme detalhado abaixo eacute possiacutevel na praacutetica
ensinar religiatildeo prestar assistecircncia religiosa e estabelecer esquemas de colaboraccedilatildeo
Esse decreto nunca foi expressamente revogado Cf lthttpslegislacaoplanaltogovbrLEGISLA LegislacaonsffraWebOpenFrameSetampFrame=frmWeb2ampSrc=2FLEGISLA2FLegislacaonsf2Fvi wTodos2Fbea39c8e0e484811032569fa005afab43FOpenDocument26Highlight3Dl2C26Auto Framedgt Acesso em 3 abr 2009
Cumpre notar que a Lei n 8245 datada de 18 de outubro de 1991 conforme alterada estabelece que o contrato de locaccedilatildeo de imoacuteveis utilizados por entidades religiosas devidamente registradas bem como por hospitais unidades sanitaacuterias oficiais asilos estabelecimentos de sauacutede e de ensino autorizados e fiscalizados pelo Poder Puacuteblico somente poderaacute ser rescindido em determinadas situaccedilotildees Para uma criacutetica sobre a exceccedilatildeo relacionada agrave colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico vide C R E T E L L A JUacuteNIOR 19921180
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no interesse puacuteblico sem favorecer u m a determinada religiatildeo e sem violar o art 19 da
Constituiccedilatildeo
32 Garantia de assistecircncia religiosa em estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva
A Constituiccedilatildeo brasileira garante a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa a
pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva abrangendo presos militares e
pacientes hospitalizados (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 54) D e acordo com o inciso
VII do art 5o da Constituiccedilatildeo eacute assegurada nos termos da lei a prestaccedilatildeo de assistecircncia
religiosa nas entidades civis e militares de internaccedilatildeo coletiva O caraacuteter laico do Estado
brasileiro natildeo eacute afetado por esta disposiccedilatildeo u m a vez que o Estado natildeo eacute obrigado a
prestar assistecircncia religiosa e as entidades religiosas eacute que iratildeo prestaacute-la (cf M A R T I N S e
B A S T O S 1989 51 e 54 e F E R R E I R A FILHO 1990 34)
Neste sentido a Lei n 7210 de 11 de julho de 1984 que trata da execuccedilatildeo
penal estabelece e m seu art 10 que o Estado deve prestar assistecircncia aos presos e internados
incluindo os egressos objetivando prevenir o crime e orientar o retorno agrave convivecircncia e m
sociedade Tal assistecircncia consistiraacute de acordo com o art 11 e m assistecircncia material
agrave sauacutede juriacutedica educacional social e religiosa D e fato o art 41 estabelece que tais
assistecircncias satildeo direitos dos presos
D e acordo com o art 24 a assistecircncia religiosa com liberdade de culto
seraacute prestada aos presos e aos internados permitindo-se-lhes a participaccedilatildeo nos serviccedilos
organizados no estabelecimento penal bem como a posse de livros de instruccedilatildeo religiosa
O primeiro paraacutegrafo deste artigo estabelece que haveraacute local apropriado para os cultos
religiosos no estabelecimento penal o segundo paraacutegrafo dispotildee que nenhum preso ou
internado poderaacute ser obrigado a participar de atividade religiosa
Adicionalmente a Lei n 9982 de 14 de julho de 2000 que trata da prestaccedilatildeo
de assistecircncia religiosa e m estabelecimentos prisionais civis e militares e e m entidades
hospitalares puacuteblicas e privadas garante e m seu art Io o acesso aos religiosos de todas
as confissotildees aos hospitais da rede puacuteblica ou privada bem como aos estabelecimentos
prisionais civis ou militares para dar atendimento religioso aos internados desde que
em c o m u m acordo com estes ou com seus familiares no caso de doentes que jaacute natildeo mais
estejam no gozo de suas faculdades mentais Vale notar que nos termos do art 2o os
religiosos chamados a prestar assistecircncia nas entidades definidas no art Io deveratildeo e m
suas atividades acatar as determinaccedilotildees legais e normas internas de cada instituiccedilatildeo
hospitalar ou penal a fim de natildeo pocircr e m risco as condiccedilotildees do paciente ou a seguranccedila do
ambiente hospitalar ou prisional
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Duas disposiccedilotildees dessa lei foram vetadas pelo Presidente37 A primeira
disposiccedilatildeo estabelecia que a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa natildeo seria permitida se de
acordo com o hospital ou a prisatildeo houvesse risco de vida ou sauacutede para o internado ou
para o religioso O Presidente justificou esse veto argumentando que a transferecircncia do
processo decisoacuterio relativo agrave prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa aos hospitais ou prisotildees
excluindo-se o paciente ou preso bem como suas famiacutelias era contraacuterio aos incisos VI
e VII do art 5o da Constituiccedilatildeo Ademais o Presidente sustentou que a precauccedilatildeo que
motivou o dispositivo vetado jaacute estaacute assegurada pelo art 2 o da lei e m questatildeo
A segunda disposiccedilatildeo vetada pelo Presidente determinava que o interno teria
direito a pelo menos u m a visita semanal de religiosos da confissatildeo religiosa que professe
O Presidente justificou esse veto argumentando que a periodicidade das visitas deveria ser
determinada pela autoridade local levando e m consideraccedilatildeo as particularidades regionais
os usos e costumes Aleacutem disso o Presidente sustentou que era inadequado tratar hospitais
e prisotildees da mesma forma tendo e m vista as circunstacircncias especiacuteficas de cada instituiccedilatildeo
Havia tambeacutem a preocupaccedilatildeo de que o nuacutemero miacutenimo de visitas estabelecido por lei se
tornasse o nuacutemero maacuteximo permitido na praacutetica
33 Acomodaccedilatildeo em razatildeo de imperativo de consciecircncia
Nos termos do inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo ningueacutem seraacute privado
de direitos por motivo de crenccedila religiosa ou de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica salvo se as
invocar para eximir-se de obrigaccedilatildeo legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestaccedilatildeo
alternativa fixada e m lei Esse inciso entre outras coisas estaacute relacionado ao serviccedilo
militar obrigatoacuterio estabelecido pelo art 143 da Constituiccedilatildeo O paraacutegrafo Io deste artigo
dispotildee que agraves Forccedilas Armadas compete na forma da lei atribuir serviccedilo alternativo aos
que e m tempo de paz apoacutes alistados alegarem imperativo de consciecircncia entendendo-
se como tal o decorrente de crenccedila religiosa e de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica para se
eximirem de atividades de caraacuteter essencialmente militar 38
Esse eacute u m dos casos de acomodaccedilatildeo existentes no ordenamento juriacutedico
brasileiro relacionado agrave crenccedila religiosa ou agraves convicccedilotildees filosoacuteficas ou poliacuteticas Para
buscar proteccedilatildeo constitucional de mo d o a natildeo participar do serviccedilo militar compulsoacuterio
e m tempos de paz faz-se necessaacuterio provar comprometimento com ideacuteias natildeo beligerantes
a ser demonstrado por atitudes passadas que estejam e m consonacircncia com tal ideal
( M A R T I N S e B A S T O S 1989 56) Note-se que eacute possiacutevel ser excluiacutedo de atividades
essencialmente militares mas poderatildeo ser impostos serviccedilos alternativos que consistam em
57 Cf Mensagem de Veto n 960 de 14 de julho de 2000 Disponiacutevel em lthttpswwwplanaltogovbr
ccivil_03leisMensagem_Veto2000Mv0960-00htmgt Acesso em 13 fev 2009 i8 Esse dispositivo constitucional foi regulamentado pela Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 759
atividades administrativas de assistecircncia filantroacutepicas ou produtivas39 jaacute que a obrigaccedilatildeo
de servir ao Paiacutes natildeo eacute excluiacuteda ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 211) Cumpre notar que da
reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia natildeo pode resultar a privaccedilatildeo de direitos exceto
se a pessoa tambeacutem se recusar a prestar serviccedilo alternativo natildeo essencialmente militar
Nessas circunstacircncias a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo aplicaacutevel natildeo satildeo inteiramente claras
sobre as consequumlecircncias legais da recusa Alguns autores entendem que nesse caso a pessoa
que se recusou a prestar serviccedilos alternativos poderia ser privada de direitos (FERREIRA
FILHO 1994 34 e 81 e M A R T I N S e B A S T O S 1989 212)40
Constata-se aqui o que parece ser u m a grande incoerecircncia no ordenamento
juriacutedico brasileiro Enquanto e m tempos de paz as pessoas podem reivindicar imperativo
de consciecircncia para evitar serviccedilos essencialmente militares quando o Estado declara
guerra nenhum cidadatildeo poderaacute invocar crenccedilas religiosas ou convicccedilotildees filosoacuteficas ou
poliacuteticas com a finalidade de natildeo participar do serviccedilo militar41 C o m o resultado durante
o periacuteodo mais adequado e apropriado para expressar desacordo com guerras e ideais
beligerantes as pessoas natildeo tem direito de reivindicar imperativo de consciecircncia para natildeo
participar do serviccedilo militar na hipoacutetese de a Constituiccedilatildeo ser interpretada literalmente
Outro caso de acomodaccedilatildeo relacionado a crenccedilas religiosas que vale ser
mencionado eacute o uso terapecircutico do chaacute Ayahuasca em rituais religiosos A partir de
1985 o governo brasileiro comeccedilou a estudar os aspectos sociais e culturais referentes
ao uso de tal chaacute E m 23 de novembro de 2006 o Grupo Multidisciplinar de Trabalho do
Comitecirc Nacional Antidrogas do Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas42
emitiu seu relatoacuterio final reconhecendo que o uso do chaacute Ayahuasca deveria ser limitado
a rituais religiosos e m locais autorizados pela direccedilatildeo das entidades que fazem uso de
tal chaacute sendo proibido seu uso em conjunto com substacircncia ilegais Atualmente o uso
do chaacute Ayahuasca e m conformidade com as normas aplicaacuteveis eacute assegurado com base
na garantia constitucional da liberdade de consciecircncia e de crenccedila e do livre exerciacutecio de
cultos religiosos Ademais a legitimidade do uso religioso da Ayahuasca foi ratificada
como rica e ancestral manifestaccedilatildeo cultural que exatamente pela relevacircncia de seu valor
Os serviccedilos alternativos podem ser prestados e m organizaccedilotildees militares da ativa e e m oacutergatildeos de formaccedilatildeo de reservas das Forccedilas Armadas ou em oacutergatildeos subordinados aos Ministeacuterios Civis mediante convecircnios entre estes e os Ministeacuterios Militares Cf sectsect 2o e 3o do art 3o da Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991 N o entanto parece-nos que o serviccedilo militar obrigatoacuterio natildeo estaacute de acordo com os princiacutepios que norteiam a Constituiccedilatildeo no sentido de que serviccedilos alternativos natildeo deveriam ser impostos Contudo a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo Ives Granda Martins sustenta que e m tempos de guerra todos os cidadatildeos tecircm iguais deveres perante o Paiacutes (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 212) Discordamos totalmente deste posicionamento porque uma das formas mais eficazes de expressar desacordo com guerras e ideais beligerantes eacute durante o periacuteodo de guerra quando as pessoas que natildeo concordam poderiam recusar-se a prestar serviccedilos militares Contudo conforme mencionado acima a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo O Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas - S I S N A D foi instituiacutedo pela Lei n 11343 de 23 de agosto de 2006
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7(gt(l Maria Costa Neves Machado
histoacuterico antropoloacutegico e social eacute credora da proteccedilatildeo do Estado nos termos do art
2o caput da Lei n 1134306 e do art 215 sect1deg da C F 43 que dispotildee que [o] Estado
protegeraacute as manifestaccedilotildees das culturas populares indiacutegenas e afro-brasileiras e das de
outros grupos participantes do processo civilizatoacuterio nacional44
Eacute de se notar tambeacutem o recente caso no Estado de Satildeo Paulo de acomodaccedilatildeo
religiosa previsto na Lei Estadual n 13541 de 7 de maio de 2009 Tal lei proiacutebe o consumo
de cigarros cigarrilhas charutos cachimbos ou de qualquer outro produto fumiacutegeno
derivado ou natildeo do tabaco e m ambientes de uso coletivo puacuteblicos ou privados Contudo
nos termos do art 6o da referida lei essa natildeo se aplica aos locais de culto religioso em que
o uso de produto fumiacutegeno faccedila parte do ritual O u seja trata-se de mais u m caso em que
uma lei geral eacute excetuada para acomodar praacuteticas relacionadas agrave liberdade de religiatildeo e
de culto
Diferentemente das situaccedilotildees envolvendo serviccedilo militar obrigatoacuterio
o chaacute Ayahuasca e rituais religiosos que envolvem o uso de produtos fumiacutegenos foi
negada acomodaccedilatildeo quando da reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia no contexto
de frequumlecircncia escolar no Estado de Satildeo Paulo E m opiniatildeo escrita por Ada Pellegrini
Grinover publicada e m 25 de outubro de 2002 o Conselho Estadual de Educaccedilatildeo do
Estado de Satildeo Paulo entendeu que estudantes que fossem membros da Igreja Adventista
do Seacutetimo Dia estariam obrigados a frequumlentar as aulas durante o periacuteodo compreendido
entre 1800 horas de sexta-feira e 1800 de saacutebados de acordo com a Lei n 9394 de 20
de dezembro de 1996 conforme alterada embora tal frequumlecircncia seja contraacuteria agraves suas
praacuteticas religiosas u m a vez que natildeo haacute prestaccedilatildeo alternativa estabelecida em lei para tal
escusa de consciecircncia conforme fixado pelo inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo45
Adicionalmente aos casos de acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de
consciecircncia o inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo tambeacutem jaacute foi invocado para proteger
os direitos dos professores do Estado de Rio de Janeiro contra lei estadual que estabeleceu
que somente os professores credenciados pela autoridade religiosa competente estaratildeo
autorizados a ministrar as aulas de ensino religioso e m escolas puacuteblicas estaduais Para
compreender a Accedilatildeo Direta de Inconstitucionalidade - A D I N n 326804 que ainda natildeo
foi decidida pela Suprema Corte faz-se necessaacuterio analisar as disposiccedilotildees legais aplicaacuteveis
relacionadas ao ensino religioso no Brasil
Cf Relatoacuterio Final do Grupo Multidisciplinar de Trabalho disponiacutevel entre outros siacutetios em lthttp wwwsantodaimeorgcomunidadenoticiasrelfinal_conadhtmgt Acesso em 4 mar 2009 e lthttpwww ayahuascabrasilorgindexphpop=legisl01gt Acesso em 4 mar 2009 A acomodaccedilatildeo relacionada ao uso do chaacute Ayahuasca para fins religiosos nos Estados Unidos foi decidida pela Suprema Courte em Gonzales v O Centro Espirita Beneficente Uniatildeo do Vegetal 546 US 418 (2006) Cf Parecer C E E No 4422002 - C E S - Aprovado em 23102002 Disponiacutevel em lthttpwwwceesp spgovbrParecerespa_442_02htmgt Acesso em 4 mar 2009
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 761
34 Ensino religioso facultativo
Nos termos do art 210 da Constituiccedilatildeo [sjeratildeo fixados conteuacutedos miacutenimos
para o ensino fundamental de maneira a assegurar formaccedilatildeo baacutesica c o m u m e respeito aos
valores culturais e artiacutesticos nacionais e regionais O paraacutegrafo Io desse Artigo dispotildee
que [o] ensino religioso de matriacutecula facultativa constituiraacute disciplina dos horaacuterios
normais das escolas puacuteblicas de ensino fundamental
Nesse sentido o art 33 da Lei n 9394 de 22 de julho de 1997 conforme
alterada determina que o respeito agrave diversidade cultural religiosa do Brasil eacute assegurado
no ensino religioso sendo proibida qualquer forma de proselitismo O primeiro paraacutegrafo
desse Artigo dispotildee que [o]s sistemas de ensino regulamentaratildeo os procedimentos para a
definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso e estabeleceratildeo as normas para a habilitaccedilatildeo
e admissatildeo dos professores Ademais de acordo com o segundo paraacutegrafo do referido
Artigo [o]s sistemas de ensino ouviratildeo entidade civil constituiacuteda pelas diferentes
denominaccedilotildees religiosas para a definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso46
D e modo a observar a proibiccedilatildeo constitucional de estabelecimento de
religiatildeo o ensino religioso e m escolas natildeo pode consistir no ensino de u m a religiatildeo
determinada Nesse sentido a previsatildeo constitucional tem por finalidade dar oportunidade
a estudantes que estatildeo e m idade de formaccedilatildeo de personalidade de ter acesso a informaccedilotildees
de modo que no futuro eles possam livremente escolher adotar ou natildeo adotar u m a religiatildeo
(cf S C H E R K E R K E W I T Z 2002 60)47
Levando e m consideraccedilatildeo esses dispositivos a A D I N n 326804 foi
ajuizada pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo com o intuito de
declarar que a Lei n 3459 aprovada pela Assembleacuteia Legislativa do Estado do Rio de
Janeiro e m 14 de setembro de 2000 eacute inconstitucional u m a vez que estabeleceu que (i)
religiatildeo seria ensinada na forma confessional (ii) o conteuacutedo do ensino religioso seria
atribuiccedilatildeo de diversas autoridades religiosas e (iii) apenas professores credenciados pela
autoridade religiosa competente poderiam ensinar religiatildeo e m escolas oficiais
A Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo argumenta que o
ensino religioso na forma confessional viola o art 210 da Constituiccedilatildeo que estabelece que
os valores culturais seratildeo respeitados quando do estabelecimento dos conteuacutedos miacutenimos
para o ensino fundamental e o art 33 da Lei Federal n 939497 que determina que o
ensino religioso respeitaraacute a diversidade cultural do Brasil
Cumpre notar que nos termos do art 21 do Decreto-Lei n 4244 de 9 de abril de 1942 o programa e o regime didaacutetico do ensino religioso deveria ser determinado pela autoridade religiosa De acordo com Alexandre de Moraes para que a regulamentaccedilatildeo e a execuccedilatildeo desta disposiccedilatildeo natildeo sejam inconstitucionais faz-se necessaacuterio que toda e qualquer religiatildeo possa ser ensinada nas escolas puacuteblicas O autor entende que na praacutetica isso eacute absolutamente impossiacutevel (cf M O R A E S 2003 1984-1985)
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762 Maria Costa Neves Machado
Adicionalmente a confederaccedilatildeo sustenta que a disposiccedilatildeo de acordo
com a qual o conteuacutedo do ensino religioso eacute u m a atribuiccedilatildeo das diversas autoridades
religiosas contraria o art 33 da Lei Federal n 939497 que estabelece diferentes padrotildees
para a definiccedilatildeo do conteuacutedo do ensino religioso E m conformidade com tal lei federal
os sistemas de ensino devem ouvir entidades civis de diversas religiotildees para definir
o conteuacutedo do ensino religioso A violaccedilatildeo eacute demonstrada com base no fato de que o
conceito de autoridade religiosa - que implica u m a estrutura administrativa e hieraacuterquica
como aquelas presentes nas Igrejas Catoacutelicas Presbiterianas e Judaicas - natildeo eacute parte da
tradiccedilatildeo de algumas religiotildees que tem origem Evangeacutelica ou afro-brasileira
A A D I N ainda natildeo foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal De qualquer
forma os argumentos apresentados pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores em
Educaccedilatildeo - e pelos vaacuterios amicus curiae admitidos no processo - parecem ser coerentes
com a Constituiccedilatildeo Federal e aptos a derrubar a Lei Estadual n 3459
N o Estado de Satildeo Paulo o ensino religioso previsto no art 33 da Lei n
939497 foi regulamentado na Deliberaccedilatildeo do Conselho Estadual de Educaccedilatildeo - CEE
n 162001 com fundamento na Indicaccedilatildeo C E E n 07 aprovada e m 25 de julho de 2001
de acordo com a qual o ensino religioso deve ser enfocado na perspectiva constitucional
de promoccedilatildeo da cidadania e da dignidade especialmente na funccedilatildeo social da educaccedilatildeo
e m geral de modo que deve ser enfatizada a reflexatildeo sobre a cidadania e as praacuteticas a ela
pertinentes Assumindo que natildeo haacute conhecimento futuro e vida sem a competecircncia de
conviver com as diferenccedilas a Indicaccedilatildeo C E E n 072001 reconhece que satildeo bem-vindos
todos os projetos educacionais (aiacute se podendo incluir o ensino religioso) que visam direta
ou indiretamente o trabalho comunitaacuterio a conscientizaccedilatildeo da responsabilidade pessoal
e social e que estimulem e restaurem os valores humanos de compromisso moral e eacutetico
auxiliando a compreensatildeo do h o m e m e o autoconhecimento Nesse sentido de acordo com
referida indicaccedilatildeo o ensino religioso nas escolas deve antes de tudo fundamentar-se nos
princiacutepios da cidadania e do entendimento do outro Assim o C E E recomendou que o
ensino religioso fosse tratado como tema transversal por meio da implementaccedilatildeo de uma
proposta de abordagem filosoacutefica que permitisse a reflexatildeo sobre valores e princiacutepios eacuteticos e
o conhecimento da histoacuteria das religiotildees Tambeacutem no Estado de Satildeo Paulo a implementaccedilatildeo
do ensino religioso foi arduamente debatida e criticada especialmente em razatildeo da
problemaacutetica questatildeo do estabelecimento de religiatildeo vedado pela Constituiccedilatildeo de 198848
Vide entre outros GIUMBELLI Emerson Ensino religioso em escolas puacuteblicas no Brasil notas de pesquisa Debates do N E R (UFRGS) v 14 p 50-68 2009 CURY Carlos Roberto Jamil Ensino religioso na escola puacuteblica o retorno de uma polecircmica recorrente Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 27 p 183-213 setdez 2004 LUI Janayna de Alencar Entre crentes e pagatildeos ensino religioso em Satildeo Paulo Cadernos de Pesquisa v 37 n 131 p 333-349 maioago 2007 R A N Q U E T A T JUacuteNIOR Ceacutesar Do confessional ao plural uma anaacutelise sobre o novo modelo de ensino religioso nas escolas brasileiras Revista Diaacutelogo Educaccedilatildeo Curitiba v 8 n 23 p 289-305 janabr 2008
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 763
Neste item a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil foi examinada
com a finalidade de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota u m princiacutepio de
toleracircncia ou de respeito As normas relacionadas agrave garantia da liberdade de consciecircncia
e de crenccedila bem como ao livre exerciacutecio de cultos religiosos agrave proteccedilatildeo dos locais de
adoraccedilatildeo agrave proibiccedilatildeo do estabelecimento de religiatildeo agrave garantia de assistecircncia religiosa
e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva agrave acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de
consciecircncia e ao ensino religioso facultativo todas foram analisadas de modo que fosse
possiacutevel concluir se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia ou
do respeito
D e acordo com tal anaacutelise o ordenamento juriacutedico brasileiro parece tratar a
religiatildeo e m conformidade com o princiacutepio do respeito Isso porque pessoas religiosas e natildeo
religiosas podem entrar no espaccedilo puacutebico e m iguais condiccedilotildees sendo que a faculdade de
buscar a finalidade uacuteltima da vida eacute respeitada pelo Estado Nesse sentido o ordenamento
juriacutedico brasileiro garante a liberdade de consciecircncia e de crenccedila o livre exerciacutecio de
cultos religiosos e a proteccedilatildeo dos locais de adoraccedilatildeo Adicionalmente enquanto de u m
lado nenhuma religiatildeo pode ser estabelecida pelo Estado pessoas religiosas podem
reivindicar imperativo de consciecircncia bem como receber assistecircncia religiosa e ensino
religioso se essa for a sua escolha
Isso demonstra que todos os indiviacuteduos de acordo com o ordenamento
juriacutedico brasileiro devem entrar no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais e que o Estado eacute
obrigado a fornecer condiccedilotildees para que pessoas religiosas e natildeo religiosas possam buscar
a finalidade uacuteltima da vida se essa for sua escolha respeitando e m todos os indiviacuteduos a
faculdade de realizar tal busca
4 Conclusatildeo
Inicialmente foi examinada neste artigo a diferenccedila entre o princiacutepio da
toleracircncia e o princiacutepio do respeito no que se refere ao tratamento legal de questotildees de
consciecircncia Posteriormente a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no ordenamento
juriacutedico brasileiro foi analisada com a finalidade de verificar qual desses dois princiacutepios eacute
adotado Finalmente conclui-se que o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio
do respeito pela faculdade dos indiviacuteduos de buscar pela finalidade uacuteltima da vida sendo o
Estado obrigado a garantir condiccedilotildees adequadas para as pessoas exercerem tal faculdade
de acordo com suas escolhas autocircnomas de modo que todos os indiviacuteduos possam entrar
no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais
Satildeo Paulo dezembro de 2010
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IM Maria Costa Neves Machado
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 751
O princiacutepio do respeito pela consciecircncia significa apenas respeitaacute-los como
seres humanos com suas proacuteprias escolhas para fazer em mateacuterias religiosas e u m direito
de fazer livremente essas escolhas ( N U S S B A U M 2008 23)25
Assim eacute a faculdade de buscar a finalidade uacuteltima da vida que tem valor e
que deve ser respeitada independentemente de os indiviacuteduos a estarem usando de forma
boa ou ruim Esta abordagem natildeo implica que encontrar a finalidade uacuteltima da vida tem
valor intriacutenseco como resultado as visotildees ceacuteticas e anti-metafiacutesicas tambeacutem merecem ser
respeitadas ( N U S S B A U M 2008 168-169)
D e acordo com Nussbaum o Estado natildeo deve endossar nenhuma religiatildeo
ou a natildeo religiatildeo sobre a religiatildeo E m consequumlecircncia nenhuma indicaccedilatildeo puacuteblica de acordo
ou desacordo devem ser feitos As instituiccedilotildees puacuteblicas natildeo devem ter conteuacutedo religioso
- embora a autora assuma que teratildeo conteuacutedo eacutetico - porque elas devem ser fundadas
em princiacutepios tais como o igual respeito que todos os cidadatildeos podem compartilhar
independentemente de sua religiatildeo ( N U S S B A U M 2008 23)
Cumpre notar que essa abordagem natildeo implica uma visatildeo poacutes-modernista26
de completa relatividade de valores Nesse sentido Nussbaum esclarece que o princiacutepio
do respeito pela consciecircncia natildeo implica que todas as religiotildees e visotildees da vida devem
ser (igualmente) respeitadas pelo governo ( N U S S B A U M 2008 24)27 Se uma visatildeo
contradiz ou ameaccedila as fundaccedilotildees da ordem constitucional e a igualdade dos cidadatildeos
a comunidade pode razoavelmente se opor e desfavorecer tal visatildeo (cf N U S S B A U M 2008 24)
Assim na linha exposta por Nussbaum embora como regra geral crenccedilas
e praacuteticas religiosas devam ser respeitadas algumas accedilotildees e discursos natildeo faratildeo jus a
igual respeito e tratamento se ameaccedilarem os mais importantes valores da comunidade
poliacutetica sendo certo que Estados democraacuteticos liberais devem regular e limitar tais accedilotildees
e discursos
Alguns autores sugeriram limites a serem impostos por Estados democraacuteticos
liberais Nussbaum por exemplo entende que
views are correct or even that ali religions are valid routes to understanding life Traduccedilatildeo livre da autora The Respect-Conscience Principie just means respecting them as human beings with their own choices to make in religious matters and a right to make those choices freely Embora natildeo haja consenso sobre seu conteuacutedo o termo poacutes-modernismo foi definido a partir de seu uso por Jean Baudrillard Jean-Franccedilois Lyotard Fredric Jameson entre outros e eacute utilizado aqui para designer o contexto histoacuterico e socioloacutegico particular caracterizado pelo paradigma da transiccedilatildeo da modernidade que comeccedilou no final do seacuteculo X X As principais caracteriacutesticas do paradigma poacutes-moderno satildeo a ausecircncia de consenso o fim das metanarrativas e de qualquer pretensatildeo de teorias universais (cf BITTAR 2005 96) Para uma visatildeo socioloacutegica mais detalhada do poacutes-modernismo confira Gisela B Taschner A poacutes-modernidade e a sociologia in Revista USP Satildeo Paulo Coordenadoria de Comunicaccedilatildeo Social (CCS) da Universidade de Satildeo Paulo n 42 junago 1999 p 6-19 Traduccedilatildeo livre da autora does not imply that ali religions and views of life must be (equally) respected by the government
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752 Maria Costa Neves Machado
Se as pessoas buscam torturar crianccedilas ou escravizar minorias citando sua religiatildeo como sua razatildeo deve-se resistir a suas reivindicaccedilotildees mesmo que elas possam ser sinceras Se eles simplesmente falam em favor da escravidatildeo ou da tortura sua liberdade de expressatildeo deve ser protegida ateacute o ponto em que o discurso se transforme em uma ameaccedila Eles natildeo poderatildeo entretanto apresentar suas ideacuteias na esfera poliacutetica em bases iguais com outras ideacuteias uma vez que a Constituiccedilatildeo (no caso da escravidatildeo) e a lei criminal (no caso da tortura) proiacutebem as praacuteticas que eles recomendam (NUSSBAUM 2008 24)28
D e acordo com Juumlrgen Habermas as sociedades multiculturais somente
podem tolerar tradiccedilotildees que aceitem a discordacircncia razoaacutevel que ele chama de tradiccedilotildees
natildeo-fundamentalistas Habermas entende que somente as formas de vida tolerantes que
aceitam a discordacircncia razoaacutevel satildeo capazes de coexistir com o reconhecimento dos
membros de culturas diferentes ( H A B E R M A S 1994 151)29 D e m o d o similar Marcelo
Neves argumenta que a intoleracircncia eacutetnica e o fuacutendamentalismo religioso satildeo contra o
pluralismo requerido pela esfera puacuteblica e devem ser juriacutedica e politicamente restringidos
(NEVES 2006 136 222 223 e Neves 2000 41)
Para Miguel Reale Juacutenior o reconhecimento de setores diferentes da
sociedade (tais como minorias eacutetnicas ou classes especiais de pessoas) de seus direitos
e de suas especificidades - a partir do avanccedilo do conceito liberal de toleracircncia para o
conceito social de solidariedade - bem como a assunccedilatildeo da responsabilidade por sua
integraccedilatildeo social natildeo importa e m abrir m atilde o de valores essenciais da pessoa humana
afirmados e conquistados ao longo do processo histoacuterico ( R E A L E JUacuteNIOR 2008
177) Sustentando que pluralismo natildeo significa arbitrismo no sentido de aceitaccedilatildeo de
qualquer organizaccedilatildeo social Reale Juacutenior idem ibidem) destaca que o pluralismo deve
ser limitado pelas conquistas essenciais acerca da dignidade humana conquistas essas que
satildeo historicamente impostergaacuteveis
C o m u m a abordagem diferente Will Kymlicka sustenta que os liberais
deveriam tentar acomodar grupos natildeo liberais desde que estes natildeo estejam buscando o
apoio da sociedade como u m todo e natildeo queiram impor seus valores a outros grupos Para
Traduccedilatildeo livre da autora [i]f people seek to torture children or to enslave minorities citing their religion as their reason their claims must be resisted even though they m a y be sincere If they simply talk in favor of slavery or torture their freedom to speak must be protected up to the point at which speech becomes a threat They will not however be able to present their ideas in the political sphere on an equal basis with other ideas since the Constitution (in the case of slavery) and the criminal law (in the case of torture) forbid the practices they recommend
Para u m a visatildeo completa sobre o entendimento de Habermas a respeito de toleracircncia religiosa vide Juumlrgen Habermas Entre naturalismo e religiatildeo estudos filosoacuteficos traduccedilatildeo de Flaacutevio Beno Siebeneichler Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 2007 especialmente Item IV - Toleracircncia p 279-392
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 753
o autor a maioria das pessoas entende que se u m a minoria nacional estaacute oprimindo outros
grupos u m a intervenccedilatildeo contra a agressatildeo eacute justificaacutevel Entretanto se a minoria somente
visa guiar sua comunidade de acordo com princiacutepios natildeo liberais e natildeo estaacute interessada e m
estabelecer regras para outros grupos ou e m privar esses outros grupos de seus recursos
parece errado impor valores liberais (cf K Y M L I C K A 1997 154-155) Assim Kymlicka
adota u m a visatildeo de acordo com a qual a toleracircncia liberal deve proteger os direitos dos
indiviacuteduos de discordar de seus grupos assim como o direito dos grupos de natildeo serem
perseguidos pelo Estado enquanto que o poder de grupos natildeo liberais de restringir a
liberdade de seus membros e o poder de Estados natildeo liberais de restringir a liberdade de
culto devem ser limitados
Neste item foram examinados (i) a diferenccedila entre o princiacutepio da toleracircncia
e o princiacutepio do respeito no que se refere agrave liberdade religiosa e (ii) os limites para a
adoccedilatildeo do princiacutepio do respeito por democracias liberais A partir dessa anaacutelise o
ordenamento juriacutedico brasileiro e a regulaccedilatildeo da liberdade religiosa seratildeo estudados no
item subsequente
3 Liberdade religiosa no Brasil
A regulaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil eacute examinada neste item com
o intuito de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia
ou do respeito Satildeo analisados os dispositivos da Constituiccedilatildeo Federal que tratam
da liberdade religiosa quais sejam aqueles relacionados ao livre exerciacutecio de cultos
religiosos agrave proteccedilatildeo aos locais de culto e suas liturgias (art 5o inc VI) agrave garantia de
prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa a pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva
(art 5o inc VII) agrave acomodaccedilatildeo juriacutedica e m razatildeo de imperativo de consciecircncia (art 5o
inc VIII) agrave vedaccedilatildeo ao estabelecimento de religiatildeo pelo Estado (art 19) e ao ensino
religioso facultativo (art 210) bem como a legislaccedilatildeo federal relacionada O estudo ora
realizado natildeo pretende analisar de forma exaustiva as leis estaduais anaacutelise esta que
quando realizada serve apenas para ilustrar a aplicaccedilatildeo das normas constitucionais
O dispositivo central da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil de
1988 que serve de base para a proteccedilatildeo da liberdade religiosa eacute seu art 5o o qual estabelece
que [t]odos satildeo iguais perante a lei sem distinccedilatildeo de qualquer natureza garantindo-se
aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Paiacutes a inviolabilidade do direito agrave vida
agrave liberdade agrave igualdade agrave seguranccedila e agrave propriedade Os dispositivos constitucionais
examinados a seguir visam a garantir a observacircncia da liberdade religiosa que se
apresenta como u m dos aspectos da liberdade e m sentido lato a qual eacute constitucionalmente
assegurada a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no Paiacutes
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754 Maria Costa Neves Machado
31 Livre exerciacutecio de cultos religiosos e vedaccedilatildeo ao estabelecimento de religiatildeo
O inciso VI do art 5o da Constituiccedilatildeo Federal determina que eacute inviolaacutevel
a liberdade de consciecircncia e de crenccedila sendo assegurado o livre exerciacutecio dos cultos
religiosos e garantida na forma da lei a proteccedilatildeo aos locais de culto e a suas liturgias
Diferentemente do texto atual a Constituiccedilatildeo brasileira de 1967
expressamente limitava e m seu art 150 paraacutegrafo 5 o exerciacutecio da liberdade religiosa
aos cultos que natildeo contrariassem a ordem puacuteblica e os bons costumes D e acordo com
Celso Ribeiro Bastos embora a atual Constituiccedilatildeo omita o requisito de observacircncia da
ordem puacuteblica e dos bons costumes estaacute impliacutecito no ordenamento juriacutedico brasileiro
que os direitos devem ser exercidos de modo que natildeo prejudiquem os direitos de outras
pessoas e em consonacircncia com os valores eacuteticos e morais e m que se funda a sociedade
brasileira independentemente de quatildeo difiacutecil possa ser para os tribunais definirem quais
satildeo esses valores que estatildeo evoluindo constantemente (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989
52) E m sentido diverso do entendimento de Bastos Manuel Gonccedilalves Ferreira Filho
entende que em razatildeo da omissatildeo da Constituiccedilatildeo os cultos religiosos satildeo garantidos
inclusive contra eventuais limitaccedilotildees baseadas na ordem puacuteblica e nos bons costumes (cf
F E R R E I R A FILHO 1990 33) A interpretaccedilatildeo de Ferreira Filho parece mais adequada
uma vez que os legisladores constitucionais omitiram intencionalmente a exigecircncia da
observacircncia da ordem puacuteblica e dos bons costumes Dessa forma os tribunais brasileiros
natildeo podem limitar o exerciacutecio da liberdade religiosa invocando a ordem puacuteblica ou os
bons costumes
U m a questatildeo muito polecircmica sobre o exerciacutecio da liberdade de culto
e sua limitaccedilatildeo no Brasil eacute relacionada agrave caracterizaccedilatildeo do crime de curandeirismo
previsto no art 284 do Coacutedigo Penal30 Enquanto alguns autores por exemplo Magalhatildees
Noronha sustentam que uma praacutetica religiosa que pretenda curar sem tiacutetulo ou habilitaccedilatildeo
apropriada seja enquadrada como curandeirismo ( N O R O N H A 1968 107) outros
autores como Francisco de Assis Toledo argumentam que os rituais espiacuteritas e os rituais de
todas as outras religiotildees tais como o Catolicismo o Protestantismo ou Budismo embora
possam visar agrave cura ou agrave diminuiccedilatildeo do sofrimento de pessoas doentes nunca poderatildeo ser
considerados u m crime (cf T O L E D O 1986 100-101) Francisco de Assis Toledo parece
estar certo e m sua interpretaccedilatildeo do crime curandeirismo uma vez que ele leva a seacuterio a
Artigo 284 Exercer o curandeirismo
I - prescrevendo ministrando ou aplicando habitualmente qualquer substacircncia
II - usando gestos palavras ou qualquer outro meio
III - fazendo diagnoacutesticos
Pena - detenccedilatildeo de seis meses a dois anos
Paraacutegrafo uacutenico - Se o crime eacute praticado mediante remuneraccedilatildeo o agente fica tambeacutem sujeito agrave multa
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 755
garantia constitucional da liberdade de religiatildeo Atualmente o poder judiciaacuterio no Brasil
entende que os rituais espiacuteritas relacionados agrave cura de pessoas doentes natildeo podem ser
considerados curandeirismo sendo constitucionalmente protegidos como u m tipo de
culto31
Cumpre notar que durante o periacuteodo do Impeacuterio no Brasil havia uma
liberdade religiosa sem liberdade de culto somente o culto catoacutelico era reconhecido como
livre Outras religiotildees somente podiam celebrar seus cultos na esfera domeacutestica sendo
proibido todo o templo fora do lar para outras religiotildees (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989
50 e C R E T E L L A JUacuteNIOR 1992 252)
Essa abordagem inicial da liberdade religiosa no ordenamento juriacutedico
brasileiro pode ser explicada como consequumlecircncia de nosso passado colonial U m a das
justificaccedilotildees ideoloacutegicas subjacentes agrave colonizaccedilatildeo do Brasil por Portugal - e de outros
paiacuteses da Ameacuterica Latina pela Espanha - era relacionada agrave catequizaccedilatildeo dos povos
indiacutegenas C o m o resultado o catolicismo foi a religiatildeo oficial ateacute o fim do periacuteodo
imperial32
A esse respeito vale notar com Faacutebio Konder Comparato (2001 312) que
natildeo haacute autecircntica liberdade de crenccedila e de opiniatildeo num Estado que adota u m a religiatildeo
oficial As pressotildees de toda a sorte - poliacuteticas econocircmicas e profissionais - contra os natildeo
seguidores da religiatildeo de Estado tornam essa liberdade ilusoacuteria C o m efeito as religiotildees
indiacutegenas e africanas e seus valores foram negados durante grande parte da histoacuteria do
Brasil e ainda hoje haacute na sociedade brasileira preconceito contra tais religiotildees33
Exemplificativamente destaque-se que e m 1985 o Supremo Tribunal
Federal arquivou a Representaccedilatildeo n 959-PB que questionava u m a lei do Estado da
Paraiacuteba de 1966 de acordo com a qual os cultos africanos deveriam obter u m a licenccedila
preacutevia para iniciar suas atividades Tal licenccedila seria concedida se entre outras exigecircncias
o responsaacutevel pelos cultos pudesse provar sua idoneidade moral e perfeitas condiccedilotildees de
sauacutede mental conforme documentado e m relatoacuterio psiquiaacutetrico A accedilatildeo arquivada com
STF R H C 62240SP rei Min Francisco Rezek 2a Turma 13121984 DJ 02081985 p 12046 e STJ H C 1498RJ rei Min Luiz Vicente Cernicchiaro 6a Turma j 18121992 DJ 1 de 16081993 p 15994 Cf tambeacutem FERREIRA Pinto Comentaacuterios agrave constituiccedilatildeo brasileira Satildeo Paulo Saraiva 1989 p 71 C o m efeito Celso Lafer nos lembra que incumbia ao imperador antes de ser proclamado jurar manter a religiatildeo catoacutelica cabendo-lhe em contrapartida entre as suas atribuiccedilotildees nomear bispos e prover os benefiacutecios eclesiaacutesticos bem como conceder ou negar beneplaacutecitos a atos da Santa Feacute (cf Constituiccedilatildeo de 1824 art 5o 102 paraacutegrafos 2o e 14 103) (LAFER 2007) Note-se que a negaccedilatildeo dos valores africanos e de uma identidade africana no Brasil abrangendo a esfera religiosa tem suas origens na chegada dos escravos africanos desde o seacuteculo XVI A relaccedilatildeo entre os povos africanos e a sociedade colonial foi caracterizada pela conversatildeo compulsoacuteria dos escravos agrave religiatildeo de seus donos e pela perseguiccedilatildeo daqueles que insistissem na manutenccedilatildeo das praacuteticas ancestrais (DADESKY 2005 51-52)
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base no fato de que a lei e m questatildeo havia sido modificada e m 1977 tendo sido excluiacuteda
a exigecircncia da licenccedila preacutevia
A separaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja foi estabelecida no Brasil somente
durante a Repuacuteblica pelo Decreto n 119-A datado de 7 de janeiro de 1890 de autoria
de Rui Barbosa (cf L A F E R 2007) que proibiu a intervenccedilatildeo do governo federal e dos
estados e m questotildees religiosas e estabeleceu a liberdade de culto34 Desde entatildeo o Brasil
eacute u m estado laico A separaccedilatildeo entre Estado e Igreja na Constituiccedilatildeo de 1988 estaacute prevista
no art 19
Eacute vedado agrave Uniatildeo aos Estados ao Distrito Federal e aos Municiacutepios (i) estabelecer cultos religiosos ou igrejas subvencionaacute-los embaraccedilar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relaccedilotildees de dependecircncia ou alianccedila ressalvada na forma da lei a colaboraccedilatildeo de interesse puacuteblico ()
Consequentemente o Estado brasileiro eacute indiferente agraves vaacuterias igrejas que
podem ser livremente formadas como entidades legais O Estado deve ser absolutamente
neutro sendo proibida a discriminaccedilatildeo entre igrejas para beneficiaacute-las ou prejudicaacute-las
Tambeacutem natildeo pode impor nenhum ocircnus indevido agrave formaccedilatildeo de igrejas N a realidade haacute
mesmo u m incentivo constitucional para sua formaccedilatildeo que resulta da imunidade tributaacuteria
a que fazem jus ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 50-51)35
Observe-se que a colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico mencionada no Artigo
19 para natildeo infringir a proibiccedilatildeo de estabelecimento de religiatildeo pelo Estado natildeo pode
ocorrer em u m campo fundamentalmente religioso (cf F E R R E I R A FILHO 1990 144
C R E T E L L A JUacuteNIOR 1992 1179 e L A F E R 2007) N atildeo obstante essa disposiccedilatildeo tem
implicaccedilotildees muito complexas quando se trata de sua execuccedilatildeo como eacute possiacutevel estabelecer
a colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico entre o Estado e u m a determinada igreja sem favorecer
u m a religiatildeo sobre a outra36 Ademais essa disposiccedilatildeo levanta u m problema similar ao que
resulta da assistecircncia religiosa a pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva e do
ensino religioso facultativo e m escolas conforme detalhado abaixo eacute possiacutevel na praacutetica
ensinar religiatildeo prestar assistecircncia religiosa e estabelecer esquemas de colaboraccedilatildeo
Esse decreto nunca foi expressamente revogado Cf lthttpslegislacaoplanaltogovbrLEGISLA LegislacaonsffraWebOpenFrameSetampFrame=frmWeb2ampSrc=2FLEGISLA2FLegislacaonsf2Fvi wTodos2Fbea39c8e0e484811032569fa005afab43FOpenDocument26Highlight3Dl2C26Auto Framedgt Acesso em 3 abr 2009
Cumpre notar que a Lei n 8245 datada de 18 de outubro de 1991 conforme alterada estabelece que o contrato de locaccedilatildeo de imoacuteveis utilizados por entidades religiosas devidamente registradas bem como por hospitais unidades sanitaacuterias oficiais asilos estabelecimentos de sauacutede e de ensino autorizados e fiscalizados pelo Poder Puacuteblico somente poderaacute ser rescindido em determinadas situaccedilotildees Para uma criacutetica sobre a exceccedilatildeo relacionada agrave colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico vide C R E T E L L A JUacuteNIOR 19921180
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 757
no interesse puacuteblico sem favorecer u m a determinada religiatildeo e sem violar o art 19 da
Constituiccedilatildeo
32 Garantia de assistecircncia religiosa em estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva
A Constituiccedilatildeo brasileira garante a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa a
pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva abrangendo presos militares e
pacientes hospitalizados (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 54) D e acordo com o inciso
VII do art 5o da Constituiccedilatildeo eacute assegurada nos termos da lei a prestaccedilatildeo de assistecircncia
religiosa nas entidades civis e militares de internaccedilatildeo coletiva O caraacuteter laico do Estado
brasileiro natildeo eacute afetado por esta disposiccedilatildeo u m a vez que o Estado natildeo eacute obrigado a
prestar assistecircncia religiosa e as entidades religiosas eacute que iratildeo prestaacute-la (cf M A R T I N S e
B A S T O S 1989 51 e 54 e F E R R E I R A FILHO 1990 34)
Neste sentido a Lei n 7210 de 11 de julho de 1984 que trata da execuccedilatildeo
penal estabelece e m seu art 10 que o Estado deve prestar assistecircncia aos presos e internados
incluindo os egressos objetivando prevenir o crime e orientar o retorno agrave convivecircncia e m
sociedade Tal assistecircncia consistiraacute de acordo com o art 11 e m assistecircncia material
agrave sauacutede juriacutedica educacional social e religiosa D e fato o art 41 estabelece que tais
assistecircncias satildeo direitos dos presos
D e acordo com o art 24 a assistecircncia religiosa com liberdade de culto
seraacute prestada aos presos e aos internados permitindo-se-lhes a participaccedilatildeo nos serviccedilos
organizados no estabelecimento penal bem como a posse de livros de instruccedilatildeo religiosa
O primeiro paraacutegrafo deste artigo estabelece que haveraacute local apropriado para os cultos
religiosos no estabelecimento penal o segundo paraacutegrafo dispotildee que nenhum preso ou
internado poderaacute ser obrigado a participar de atividade religiosa
Adicionalmente a Lei n 9982 de 14 de julho de 2000 que trata da prestaccedilatildeo
de assistecircncia religiosa e m estabelecimentos prisionais civis e militares e e m entidades
hospitalares puacuteblicas e privadas garante e m seu art Io o acesso aos religiosos de todas
as confissotildees aos hospitais da rede puacuteblica ou privada bem como aos estabelecimentos
prisionais civis ou militares para dar atendimento religioso aos internados desde que
em c o m u m acordo com estes ou com seus familiares no caso de doentes que jaacute natildeo mais
estejam no gozo de suas faculdades mentais Vale notar que nos termos do art 2o os
religiosos chamados a prestar assistecircncia nas entidades definidas no art Io deveratildeo e m
suas atividades acatar as determinaccedilotildees legais e normas internas de cada instituiccedilatildeo
hospitalar ou penal a fim de natildeo pocircr e m risco as condiccedilotildees do paciente ou a seguranccedila do
ambiente hospitalar ou prisional
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Duas disposiccedilotildees dessa lei foram vetadas pelo Presidente37 A primeira
disposiccedilatildeo estabelecia que a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa natildeo seria permitida se de
acordo com o hospital ou a prisatildeo houvesse risco de vida ou sauacutede para o internado ou
para o religioso O Presidente justificou esse veto argumentando que a transferecircncia do
processo decisoacuterio relativo agrave prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa aos hospitais ou prisotildees
excluindo-se o paciente ou preso bem como suas famiacutelias era contraacuterio aos incisos VI
e VII do art 5o da Constituiccedilatildeo Ademais o Presidente sustentou que a precauccedilatildeo que
motivou o dispositivo vetado jaacute estaacute assegurada pelo art 2 o da lei e m questatildeo
A segunda disposiccedilatildeo vetada pelo Presidente determinava que o interno teria
direito a pelo menos u m a visita semanal de religiosos da confissatildeo religiosa que professe
O Presidente justificou esse veto argumentando que a periodicidade das visitas deveria ser
determinada pela autoridade local levando e m consideraccedilatildeo as particularidades regionais
os usos e costumes Aleacutem disso o Presidente sustentou que era inadequado tratar hospitais
e prisotildees da mesma forma tendo e m vista as circunstacircncias especiacuteficas de cada instituiccedilatildeo
Havia tambeacutem a preocupaccedilatildeo de que o nuacutemero miacutenimo de visitas estabelecido por lei se
tornasse o nuacutemero maacuteximo permitido na praacutetica
33 Acomodaccedilatildeo em razatildeo de imperativo de consciecircncia
Nos termos do inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo ningueacutem seraacute privado
de direitos por motivo de crenccedila religiosa ou de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica salvo se as
invocar para eximir-se de obrigaccedilatildeo legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestaccedilatildeo
alternativa fixada e m lei Esse inciso entre outras coisas estaacute relacionado ao serviccedilo
militar obrigatoacuterio estabelecido pelo art 143 da Constituiccedilatildeo O paraacutegrafo Io deste artigo
dispotildee que agraves Forccedilas Armadas compete na forma da lei atribuir serviccedilo alternativo aos
que e m tempo de paz apoacutes alistados alegarem imperativo de consciecircncia entendendo-
se como tal o decorrente de crenccedila religiosa e de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica para se
eximirem de atividades de caraacuteter essencialmente militar 38
Esse eacute u m dos casos de acomodaccedilatildeo existentes no ordenamento juriacutedico
brasileiro relacionado agrave crenccedila religiosa ou agraves convicccedilotildees filosoacuteficas ou poliacuteticas Para
buscar proteccedilatildeo constitucional de mo d o a natildeo participar do serviccedilo militar compulsoacuterio
e m tempos de paz faz-se necessaacuterio provar comprometimento com ideacuteias natildeo beligerantes
a ser demonstrado por atitudes passadas que estejam e m consonacircncia com tal ideal
( M A R T I N S e B A S T O S 1989 56) Note-se que eacute possiacutevel ser excluiacutedo de atividades
essencialmente militares mas poderatildeo ser impostos serviccedilos alternativos que consistam em
57 Cf Mensagem de Veto n 960 de 14 de julho de 2000 Disponiacutevel em lthttpswwwplanaltogovbr
ccivil_03leisMensagem_Veto2000Mv0960-00htmgt Acesso em 13 fev 2009 i8 Esse dispositivo constitucional foi regulamentado pela Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991
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atividades administrativas de assistecircncia filantroacutepicas ou produtivas39 jaacute que a obrigaccedilatildeo
de servir ao Paiacutes natildeo eacute excluiacuteda ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 211) Cumpre notar que da
reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia natildeo pode resultar a privaccedilatildeo de direitos exceto
se a pessoa tambeacutem se recusar a prestar serviccedilo alternativo natildeo essencialmente militar
Nessas circunstacircncias a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo aplicaacutevel natildeo satildeo inteiramente claras
sobre as consequumlecircncias legais da recusa Alguns autores entendem que nesse caso a pessoa
que se recusou a prestar serviccedilos alternativos poderia ser privada de direitos (FERREIRA
FILHO 1994 34 e 81 e M A R T I N S e B A S T O S 1989 212)40
Constata-se aqui o que parece ser u m a grande incoerecircncia no ordenamento
juriacutedico brasileiro Enquanto e m tempos de paz as pessoas podem reivindicar imperativo
de consciecircncia para evitar serviccedilos essencialmente militares quando o Estado declara
guerra nenhum cidadatildeo poderaacute invocar crenccedilas religiosas ou convicccedilotildees filosoacuteficas ou
poliacuteticas com a finalidade de natildeo participar do serviccedilo militar41 C o m o resultado durante
o periacuteodo mais adequado e apropriado para expressar desacordo com guerras e ideais
beligerantes as pessoas natildeo tem direito de reivindicar imperativo de consciecircncia para natildeo
participar do serviccedilo militar na hipoacutetese de a Constituiccedilatildeo ser interpretada literalmente
Outro caso de acomodaccedilatildeo relacionado a crenccedilas religiosas que vale ser
mencionado eacute o uso terapecircutico do chaacute Ayahuasca em rituais religiosos A partir de
1985 o governo brasileiro comeccedilou a estudar os aspectos sociais e culturais referentes
ao uso de tal chaacute E m 23 de novembro de 2006 o Grupo Multidisciplinar de Trabalho do
Comitecirc Nacional Antidrogas do Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas42
emitiu seu relatoacuterio final reconhecendo que o uso do chaacute Ayahuasca deveria ser limitado
a rituais religiosos e m locais autorizados pela direccedilatildeo das entidades que fazem uso de
tal chaacute sendo proibido seu uso em conjunto com substacircncia ilegais Atualmente o uso
do chaacute Ayahuasca e m conformidade com as normas aplicaacuteveis eacute assegurado com base
na garantia constitucional da liberdade de consciecircncia e de crenccedila e do livre exerciacutecio de
cultos religiosos Ademais a legitimidade do uso religioso da Ayahuasca foi ratificada
como rica e ancestral manifestaccedilatildeo cultural que exatamente pela relevacircncia de seu valor
Os serviccedilos alternativos podem ser prestados e m organizaccedilotildees militares da ativa e e m oacutergatildeos de formaccedilatildeo de reservas das Forccedilas Armadas ou em oacutergatildeos subordinados aos Ministeacuterios Civis mediante convecircnios entre estes e os Ministeacuterios Militares Cf sectsect 2o e 3o do art 3o da Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991 N o entanto parece-nos que o serviccedilo militar obrigatoacuterio natildeo estaacute de acordo com os princiacutepios que norteiam a Constituiccedilatildeo no sentido de que serviccedilos alternativos natildeo deveriam ser impostos Contudo a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo Ives Granda Martins sustenta que e m tempos de guerra todos os cidadatildeos tecircm iguais deveres perante o Paiacutes (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 212) Discordamos totalmente deste posicionamento porque uma das formas mais eficazes de expressar desacordo com guerras e ideais beligerantes eacute durante o periacuteodo de guerra quando as pessoas que natildeo concordam poderiam recusar-se a prestar serviccedilos militares Contudo conforme mencionado acima a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo O Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas - S I S N A D foi instituiacutedo pela Lei n 11343 de 23 de agosto de 2006
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histoacuterico antropoloacutegico e social eacute credora da proteccedilatildeo do Estado nos termos do art
2o caput da Lei n 1134306 e do art 215 sect1deg da C F 43 que dispotildee que [o] Estado
protegeraacute as manifestaccedilotildees das culturas populares indiacutegenas e afro-brasileiras e das de
outros grupos participantes do processo civilizatoacuterio nacional44
Eacute de se notar tambeacutem o recente caso no Estado de Satildeo Paulo de acomodaccedilatildeo
religiosa previsto na Lei Estadual n 13541 de 7 de maio de 2009 Tal lei proiacutebe o consumo
de cigarros cigarrilhas charutos cachimbos ou de qualquer outro produto fumiacutegeno
derivado ou natildeo do tabaco e m ambientes de uso coletivo puacuteblicos ou privados Contudo
nos termos do art 6o da referida lei essa natildeo se aplica aos locais de culto religioso em que
o uso de produto fumiacutegeno faccedila parte do ritual O u seja trata-se de mais u m caso em que
uma lei geral eacute excetuada para acomodar praacuteticas relacionadas agrave liberdade de religiatildeo e
de culto
Diferentemente das situaccedilotildees envolvendo serviccedilo militar obrigatoacuterio
o chaacute Ayahuasca e rituais religiosos que envolvem o uso de produtos fumiacutegenos foi
negada acomodaccedilatildeo quando da reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia no contexto
de frequumlecircncia escolar no Estado de Satildeo Paulo E m opiniatildeo escrita por Ada Pellegrini
Grinover publicada e m 25 de outubro de 2002 o Conselho Estadual de Educaccedilatildeo do
Estado de Satildeo Paulo entendeu que estudantes que fossem membros da Igreja Adventista
do Seacutetimo Dia estariam obrigados a frequumlentar as aulas durante o periacuteodo compreendido
entre 1800 horas de sexta-feira e 1800 de saacutebados de acordo com a Lei n 9394 de 20
de dezembro de 1996 conforme alterada embora tal frequumlecircncia seja contraacuteria agraves suas
praacuteticas religiosas u m a vez que natildeo haacute prestaccedilatildeo alternativa estabelecida em lei para tal
escusa de consciecircncia conforme fixado pelo inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo45
Adicionalmente aos casos de acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de
consciecircncia o inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo tambeacutem jaacute foi invocado para proteger
os direitos dos professores do Estado de Rio de Janeiro contra lei estadual que estabeleceu
que somente os professores credenciados pela autoridade religiosa competente estaratildeo
autorizados a ministrar as aulas de ensino religioso e m escolas puacuteblicas estaduais Para
compreender a Accedilatildeo Direta de Inconstitucionalidade - A D I N n 326804 que ainda natildeo
foi decidida pela Suprema Corte faz-se necessaacuterio analisar as disposiccedilotildees legais aplicaacuteveis
relacionadas ao ensino religioso no Brasil
Cf Relatoacuterio Final do Grupo Multidisciplinar de Trabalho disponiacutevel entre outros siacutetios em lthttp wwwsantodaimeorgcomunidadenoticiasrelfinal_conadhtmgt Acesso em 4 mar 2009 e lthttpwww ayahuascabrasilorgindexphpop=legisl01gt Acesso em 4 mar 2009 A acomodaccedilatildeo relacionada ao uso do chaacute Ayahuasca para fins religiosos nos Estados Unidos foi decidida pela Suprema Courte em Gonzales v O Centro Espirita Beneficente Uniatildeo do Vegetal 546 US 418 (2006) Cf Parecer C E E No 4422002 - C E S - Aprovado em 23102002 Disponiacutevel em lthttpwwwceesp spgovbrParecerespa_442_02htmgt Acesso em 4 mar 2009
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 761
34 Ensino religioso facultativo
Nos termos do art 210 da Constituiccedilatildeo [sjeratildeo fixados conteuacutedos miacutenimos
para o ensino fundamental de maneira a assegurar formaccedilatildeo baacutesica c o m u m e respeito aos
valores culturais e artiacutesticos nacionais e regionais O paraacutegrafo Io desse Artigo dispotildee
que [o] ensino religioso de matriacutecula facultativa constituiraacute disciplina dos horaacuterios
normais das escolas puacuteblicas de ensino fundamental
Nesse sentido o art 33 da Lei n 9394 de 22 de julho de 1997 conforme
alterada determina que o respeito agrave diversidade cultural religiosa do Brasil eacute assegurado
no ensino religioso sendo proibida qualquer forma de proselitismo O primeiro paraacutegrafo
desse Artigo dispotildee que [o]s sistemas de ensino regulamentaratildeo os procedimentos para a
definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso e estabeleceratildeo as normas para a habilitaccedilatildeo
e admissatildeo dos professores Ademais de acordo com o segundo paraacutegrafo do referido
Artigo [o]s sistemas de ensino ouviratildeo entidade civil constituiacuteda pelas diferentes
denominaccedilotildees religiosas para a definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso46
D e modo a observar a proibiccedilatildeo constitucional de estabelecimento de
religiatildeo o ensino religioso e m escolas natildeo pode consistir no ensino de u m a religiatildeo
determinada Nesse sentido a previsatildeo constitucional tem por finalidade dar oportunidade
a estudantes que estatildeo e m idade de formaccedilatildeo de personalidade de ter acesso a informaccedilotildees
de modo que no futuro eles possam livremente escolher adotar ou natildeo adotar u m a religiatildeo
(cf S C H E R K E R K E W I T Z 2002 60)47
Levando e m consideraccedilatildeo esses dispositivos a A D I N n 326804 foi
ajuizada pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo com o intuito de
declarar que a Lei n 3459 aprovada pela Assembleacuteia Legislativa do Estado do Rio de
Janeiro e m 14 de setembro de 2000 eacute inconstitucional u m a vez que estabeleceu que (i)
religiatildeo seria ensinada na forma confessional (ii) o conteuacutedo do ensino religioso seria
atribuiccedilatildeo de diversas autoridades religiosas e (iii) apenas professores credenciados pela
autoridade religiosa competente poderiam ensinar religiatildeo e m escolas oficiais
A Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo argumenta que o
ensino religioso na forma confessional viola o art 210 da Constituiccedilatildeo que estabelece que
os valores culturais seratildeo respeitados quando do estabelecimento dos conteuacutedos miacutenimos
para o ensino fundamental e o art 33 da Lei Federal n 939497 que determina que o
ensino religioso respeitaraacute a diversidade cultural do Brasil
Cumpre notar que nos termos do art 21 do Decreto-Lei n 4244 de 9 de abril de 1942 o programa e o regime didaacutetico do ensino religioso deveria ser determinado pela autoridade religiosa De acordo com Alexandre de Moraes para que a regulamentaccedilatildeo e a execuccedilatildeo desta disposiccedilatildeo natildeo sejam inconstitucionais faz-se necessaacuterio que toda e qualquer religiatildeo possa ser ensinada nas escolas puacuteblicas O autor entende que na praacutetica isso eacute absolutamente impossiacutevel (cf M O R A E S 2003 1984-1985)
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Adicionalmente a confederaccedilatildeo sustenta que a disposiccedilatildeo de acordo
com a qual o conteuacutedo do ensino religioso eacute u m a atribuiccedilatildeo das diversas autoridades
religiosas contraria o art 33 da Lei Federal n 939497 que estabelece diferentes padrotildees
para a definiccedilatildeo do conteuacutedo do ensino religioso E m conformidade com tal lei federal
os sistemas de ensino devem ouvir entidades civis de diversas religiotildees para definir
o conteuacutedo do ensino religioso A violaccedilatildeo eacute demonstrada com base no fato de que o
conceito de autoridade religiosa - que implica u m a estrutura administrativa e hieraacuterquica
como aquelas presentes nas Igrejas Catoacutelicas Presbiterianas e Judaicas - natildeo eacute parte da
tradiccedilatildeo de algumas religiotildees que tem origem Evangeacutelica ou afro-brasileira
A A D I N ainda natildeo foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal De qualquer
forma os argumentos apresentados pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores em
Educaccedilatildeo - e pelos vaacuterios amicus curiae admitidos no processo - parecem ser coerentes
com a Constituiccedilatildeo Federal e aptos a derrubar a Lei Estadual n 3459
N o Estado de Satildeo Paulo o ensino religioso previsto no art 33 da Lei n
939497 foi regulamentado na Deliberaccedilatildeo do Conselho Estadual de Educaccedilatildeo - CEE
n 162001 com fundamento na Indicaccedilatildeo C E E n 07 aprovada e m 25 de julho de 2001
de acordo com a qual o ensino religioso deve ser enfocado na perspectiva constitucional
de promoccedilatildeo da cidadania e da dignidade especialmente na funccedilatildeo social da educaccedilatildeo
e m geral de modo que deve ser enfatizada a reflexatildeo sobre a cidadania e as praacuteticas a ela
pertinentes Assumindo que natildeo haacute conhecimento futuro e vida sem a competecircncia de
conviver com as diferenccedilas a Indicaccedilatildeo C E E n 072001 reconhece que satildeo bem-vindos
todos os projetos educacionais (aiacute se podendo incluir o ensino religioso) que visam direta
ou indiretamente o trabalho comunitaacuterio a conscientizaccedilatildeo da responsabilidade pessoal
e social e que estimulem e restaurem os valores humanos de compromisso moral e eacutetico
auxiliando a compreensatildeo do h o m e m e o autoconhecimento Nesse sentido de acordo com
referida indicaccedilatildeo o ensino religioso nas escolas deve antes de tudo fundamentar-se nos
princiacutepios da cidadania e do entendimento do outro Assim o C E E recomendou que o
ensino religioso fosse tratado como tema transversal por meio da implementaccedilatildeo de uma
proposta de abordagem filosoacutefica que permitisse a reflexatildeo sobre valores e princiacutepios eacuteticos e
o conhecimento da histoacuteria das religiotildees Tambeacutem no Estado de Satildeo Paulo a implementaccedilatildeo
do ensino religioso foi arduamente debatida e criticada especialmente em razatildeo da
problemaacutetica questatildeo do estabelecimento de religiatildeo vedado pela Constituiccedilatildeo de 198848
Vide entre outros GIUMBELLI Emerson Ensino religioso em escolas puacuteblicas no Brasil notas de pesquisa Debates do N E R (UFRGS) v 14 p 50-68 2009 CURY Carlos Roberto Jamil Ensino religioso na escola puacuteblica o retorno de uma polecircmica recorrente Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 27 p 183-213 setdez 2004 LUI Janayna de Alencar Entre crentes e pagatildeos ensino religioso em Satildeo Paulo Cadernos de Pesquisa v 37 n 131 p 333-349 maioago 2007 R A N Q U E T A T JUacuteNIOR Ceacutesar Do confessional ao plural uma anaacutelise sobre o novo modelo de ensino religioso nas escolas brasileiras Revista Diaacutelogo Educaccedilatildeo Curitiba v 8 n 23 p 289-305 janabr 2008
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 763
Neste item a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil foi examinada
com a finalidade de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota u m princiacutepio de
toleracircncia ou de respeito As normas relacionadas agrave garantia da liberdade de consciecircncia
e de crenccedila bem como ao livre exerciacutecio de cultos religiosos agrave proteccedilatildeo dos locais de
adoraccedilatildeo agrave proibiccedilatildeo do estabelecimento de religiatildeo agrave garantia de assistecircncia religiosa
e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva agrave acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de
consciecircncia e ao ensino religioso facultativo todas foram analisadas de modo que fosse
possiacutevel concluir se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia ou
do respeito
D e acordo com tal anaacutelise o ordenamento juriacutedico brasileiro parece tratar a
religiatildeo e m conformidade com o princiacutepio do respeito Isso porque pessoas religiosas e natildeo
religiosas podem entrar no espaccedilo puacutebico e m iguais condiccedilotildees sendo que a faculdade de
buscar a finalidade uacuteltima da vida eacute respeitada pelo Estado Nesse sentido o ordenamento
juriacutedico brasileiro garante a liberdade de consciecircncia e de crenccedila o livre exerciacutecio de
cultos religiosos e a proteccedilatildeo dos locais de adoraccedilatildeo Adicionalmente enquanto de u m
lado nenhuma religiatildeo pode ser estabelecida pelo Estado pessoas religiosas podem
reivindicar imperativo de consciecircncia bem como receber assistecircncia religiosa e ensino
religioso se essa for a sua escolha
Isso demonstra que todos os indiviacuteduos de acordo com o ordenamento
juriacutedico brasileiro devem entrar no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais e que o Estado eacute
obrigado a fornecer condiccedilotildees para que pessoas religiosas e natildeo religiosas possam buscar
a finalidade uacuteltima da vida se essa for sua escolha respeitando e m todos os indiviacuteduos a
faculdade de realizar tal busca
4 Conclusatildeo
Inicialmente foi examinada neste artigo a diferenccedila entre o princiacutepio da
toleracircncia e o princiacutepio do respeito no que se refere ao tratamento legal de questotildees de
consciecircncia Posteriormente a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no ordenamento
juriacutedico brasileiro foi analisada com a finalidade de verificar qual desses dois princiacutepios eacute
adotado Finalmente conclui-se que o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio
do respeito pela faculdade dos indiviacuteduos de buscar pela finalidade uacuteltima da vida sendo o
Estado obrigado a garantir condiccedilotildees adequadas para as pessoas exercerem tal faculdade
de acordo com suas escolhas autocircnomas de modo que todos os indiviacuteduos possam entrar
no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais
Satildeo Paulo dezembro de 2010
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752 Maria Costa Neves Machado
Se as pessoas buscam torturar crianccedilas ou escravizar minorias citando sua religiatildeo como sua razatildeo deve-se resistir a suas reivindicaccedilotildees mesmo que elas possam ser sinceras Se eles simplesmente falam em favor da escravidatildeo ou da tortura sua liberdade de expressatildeo deve ser protegida ateacute o ponto em que o discurso se transforme em uma ameaccedila Eles natildeo poderatildeo entretanto apresentar suas ideacuteias na esfera poliacutetica em bases iguais com outras ideacuteias uma vez que a Constituiccedilatildeo (no caso da escravidatildeo) e a lei criminal (no caso da tortura) proiacutebem as praacuteticas que eles recomendam (NUSSBAUM 2008 24)28
D e acordo com Juumlrgen Habermas as sociedades multiculturais somente
podem tolerar tradiccedilotildees que aceitem a discordacircncia razoaacutevel que ele chama de tradiccedilotildees
natildeo-fundamentalistas Habermas entende que somente as formas de vida tolerantes que
aceitam a discordacircncia razoaacutevel satildeo capazes de coexistir com o reconhecimento dos
membros de culturas diferentes ( H A B E R M A S 1994 151)29 D e m o d o similar Marcelo
Neves argumenta que a intoleracircncia eacutetnica e o fuacutendamentalismo religioso satildeo contra o
pluralismo requerido pela esfera puacuteblica e devem ser juriacutedica e politicamente restringidos
(NEVES 2006 136 222 223 e Neves 2000 41)
Para Miguel Reale Juacutenior o reconhecimento de setores diferentes da
sociedade (tais como minorias eacutetnicas ou classes especiais de pessoas) de seus direitos
e de suas especificidades - a partir do avanccedilo do conceito liberal de toleracircncia para o
conceito social de solidariedade - bem como a assunccedilatildeo da responsabilidade por sua
integraccedilatildeo social natildeo importa e m abrir m atilde o de valores essenciais da pessoa humana
afirmados e conquistados ao longo do processo histoacuterico ( R E A L E JUacuteNIOR 2008
177) Sustentando que pluralismo natildeo significa arbitrismo no sentido de aceitaccedilatildeo de
qualquer organizaccedilatildeo social Reale Juacutenior idem ibidem) destaca que o pluralismo deve
ser limitado pelas conquistas essenciais acerca da dignidade humana conquistas essas que
satildeo historicamente impostergaacuteveis
C o m u m a abordagem diferente Will Kymlicka sustenta que os liberais
deveriam tentar acomodar grupos natildeo liberais desde que estes natildeo estejam buscando o
apoio da sociedade como u m todo e natildeo queiram impor seus valores a outros grupos Para
Traduccedilatildeo livre da autora [i]f people seek to torture children or to enslave minorities citing their religion as their reason their claims must be resisted even though they m a y be sincere If they simply talk in favor of slavery or torture their freedom to speak must be protected up to the point at which speech becomes a threat They will not however be able to present their ideas in the political sphere on an equal basis with other ideas since the Constitution (in the case of slavery) and the criminal law (in the case of torture) forbid the practices they recommend
Para u m a visatildeo completa sobre o entendimento de Habermas a respeito de toleracircncia religiosa vide Juumlrgen Habermas Entre naturalismo e religiatildeo estudos filosoacuteficos traduccedilatildeo de Flaacutevio Beno Siebeneichler Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 2007 especialmente Item IV - Toleracircncia p 279-392
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 753
o autor a maioria das pessoas entende que se u m a minoria nacional estaacute oprimindo outros
grupos u m a intervenccedilatildeo contra a agressatildeo eacute justificaacutevel Entretanto se a minoria somente
visa guiar sua comunidade de acordo com princiacutepios natildeo liberais e natildeo estaacute interessada e m
estabelecer regras para outros grupos ou e m privar esses outros grupos de seus recursos
parece errado impor valores liberais (cf K Y M L I C K A 1997 154-155) Assim Kymlicka
adota u m a visatildeo de acordo com a qual a toleracircncia liberal deve proteger os direitos dos
indiviacuteduos de discordar de seus grupos assim como o direito dos grupos de natildeo serem
perseguidos pelo Estado enquanto que o poder de grupos natildeo liberais de restringir a
liberdade de seus membros e o poder de Estados natildeo liberais de restringir a liberdade de
culto devem ser limitados
Neste item foram examinados (i) a diferenccedila entre o princiacutepio da toleracircncia
e o princiacutepio do respeito no que se refere agrave liberdade religiosa e (ii) os limites para a
adoccedilatildeo do princiacutepio do respeito por democracias liberais A partir dessa anaacutelise o
ordenamento juriacutedico brasileiro e a regulaccedilatildeo da liberdade religiosa seratildeo estudados no
item subsequente
3 Liberdade religiosa no Brasil
A regulaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil eacute examinada neste item com
o intuito de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia
ou do respeito Satildeo analisados os dispositivos da Constituiccedilatildeo Federal que tratam
da liberdade religiosa quais sejam aqueles relacionados ao livre exerciacutecio de cultos
religiosos agrave proteccedilatildeo aos locais de culto e suas liturgias (art 5o inc VI) agrave garantia de
prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa a pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva
(art 5o inc VII) agrave acomodaccedilatildeo juriacutedica e m razatildeo de imperativo de consciecircncia (art 5o
inc VIII) agrave vedaccedilatildeo ao estabelecimento de religiatildeo pelo Estado (art 19) e ao ensino
religioso facultativo (art 210) bem como a legislaccedilatildeo federal relacionada O estudo ora
realizado natildeo pretende analisar de forma exaustiva as leis estaduais anaacutelise esta que
quando realizada serve apenas para ilustrar a aplicaccedilatildeo das normas constitucionais
O dispositivo central da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil de
1988 que serve de base para a proteccedilatildeo da liberdade religiosa eacute seu art 5o o qual estabelece
que [t]odos satildeo iguais perante a lei sem distinccedilatildeo de qualquer natureza garantindo-se
aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Paiacutes a inviolabilidade do direito agrave vida
agrave liberdade agrave igualdade agrave seguranccedila e agrave propriedade Os dispositivos constitucionais
examinados a seguir visam a garantir a observacircncia da liberdade religiosa que se
apresenta como u m dos aspectos da liberdade e m sentido lato a qual eacute constitucionalmente
assegurada a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no Paiacutes
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754 Maria Costa Neves Machado
31 Livre exerciacutecio de cultos religiosos e vedaccedilatildeo ao estabelecimento de religiatildeo
O inciso VI do art 5o da Constituiccedilatildeo Federal determina que eacute inviolaacutevel
a liberdade de consciecircncia e de crenccedila sendo assegurado o livre exerciacutecio dos cultos
religiosos e garantida na forma da lei a proteccedilatildeo aos locais de culto e a suas liturgias
Diferentemente do texto atual a Constituiccedilatildeo brasileira de 1967
expressamente limitava e m seu art 150 paraacutegrafo 5 o exerciacutecio da liberdade religiosa
aos cultos que natildeo contrariassem a ordem puacuteblica e os bons costumes D e acordo com
Celso Ribeiro Bastos embora a atual Constituiccedilatildeo omita o requisito de observacircncia da
ordem puacuteblica e dos bons costumes estaacute impliacutecito no ordenamento juriacutedico brasileiro
que os direitos devem ser exercidos de modo que natildeo prejudiquem os direitos de outras
pessoas e em consonacircncia com os valores eacuteticos e morais e m que se funda a sociedade
brasileira independentemente de quatildeo difiacutecil possa ser para os tribunais definirem quais
satildeo esses valores que estatildeo evoluindo constantemente (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989
52) E m sentido diverso do entendimento de Bastos Manuel Gonccedilalves Ferreira Filho
entende que em razatildeo da omissatildeo da Constituiccedilatildeo os cultos religiosos satildeo garantidos
inclusive contra eventuais limitaccedilotildees baseadas na ordem puacuteblica e nos bons costumes (cf
F E R R E I R A FILHO 1990 33) A interpretaccedilatildeo de Ferreira Filho parece mais adequada
uma vez que os legisladores constitucionais omitiram intencionalmente a exigecircncia da
observacircncia da ordem puacuteblica e dos bons costumes Dessa forma os tribunais brasileiros
natildeo podem limitar o exerciacutecio da liberdade religiosa invocando a ordem puacuteblica ou os
bons costumes
U m a questatildeo muito polecircmica sobre o exerciacutecio da liberdade de culto
e sua limitaccedilatildeo no Brasil eacute relacionada agrave caracterizaccedilatildeo do crime de curandeirismo
previsto no art 284 do Coacutedigo Penal30 Enquanto alguns autores por exemplo Magalhatildees
Noronha sustentam que uma praacutetica religiosa que pretenda curar sem tiacutetulo ou habilitaccedilatildeo
apropriada seja enquadrada como curandeirismo ( N O R O N H A 1968 107) outros
autores como Francisco de Assis Toledo argumentam que os rituais espiacuteritas e os rituais de
todas as outras religiotildees tais como o Catolicismo o Protestantismo ou Budismo embora
possam visar agrave cura ou agrave diminuiccedilatildeo do sofrimento de pessoas doentes nunca poderatildeo ser
considerados u m crime (cf T O L E D O 1986 100-101) Francisco de Assis Toledo parece
estar certo e m sua interpretaccedilatildeo do crime curandeirismo uma vez que ele leva a seacuterio a
Artigo 284 Exercer o curandeirismo
I - prescrevendo ministrando ou aplicando habitualmente qualquer substacircncia
II - usando gestos palavras ou qualquer outro meio
III - fazendo diagnoacutesticos
Pena - detenccedilatildeo de seis meses a dois anos
Paraacutegrafo uacutenico - Se o crime eacute praticado mediante remuneraccedilatildeo o agente fica tambeacutem sujeito agrave multa
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 755
garantia constitucional da liberdade de religiatildeo Atualmente o poder judiciaacuterio no Brasil
entende que os rituais espiacuteritas relacionados agrave cura de pessoas doentes natildeo podem ser
considerados curandeirismo sendo constitucionalmente protegidos como u m tipo de
culto31
Cumpre notar que durante o periacuteodo do Impeacuterio no Brasil havia uma
liberdade religiosa sem liberdade de culto somente o culto catoacutelico era reconhecido como
livre Outras religiotildees somente podiam celebrar seus cultos na esfera domeacutestica sendo
proibido todo o templo fora do lar para outras religiotildees (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989
50 e C R E T E L L A JUacuteNIOR 1992 252)
Essa abordagem inicial da liberdade religiosa no ordenamento juriacutedico
brasileiro pode ser explicada como consequumlecircncia de nosso passado colonial U m a das
justificaccedilotildees ideoloacutegicas subjacentes agrave colonizaccedilatildeo do Brasil por Portugal - e de outros
paiacuteses da Ameacuterica Latina pela Espanha - era relacionada agrave catequizaccedilatildeo dos povos
indiacutegenas C o m o resultado o catolicismo foi a religiatildeo oficial ateacute o fim do periacuteodo
imperial32
A esse respeito vale notar com Faacutebio Konder Comparato (2001 312) que
natildeo haacute autecircntica liberdade de crenccedila e de opiniatildeo num Estado que adota u m a religiatildeo
oficial As pressotildees de toda a sorte - poliacuteticas econocircmicas e profissionais - contra os natildeo
seguidores da religiatildeo de Estado tornam essa liberdade ilusoacuteria C o m efeito as religiotildees
indiacutegenas e africanas e seus valores foram negados durante grande parte da histoacuteria do
Brasil e ainda hoje haacute na sociedade brasileira preconceito contra tais religiotildees33
Exemplificativamente destaque-se que e m 1985 o Supremo Tribunal
Federal arquivou a Representaccedilatildeo n 959-PB que questionava u m a lei do Estado da
Paraiacuteba de 1966 de acordo com a qual os cultos africanos deveriam obter u m a licenccedila
preacutevia para iniciar suas atividades Tal licenccedila seria concedida se entre outras exigecircncias
o responsaacutevel pelos cultos pudesse provar sua idoneidade moral e perfeitas condiccedilotildees de
sauacutede mental conforme documentado e m relatoacuterio psiquiaacutetrico A accedilatildeo arquivada com
STF R H C 62240SP rei Min Francisco Rezek 2a Turma 13121984 DJ 02081985 p 12046 e STJ H C 1498RJ rei Min Luiz Vicente Cernicchiaro 6a Turma j 18121992 DJ 1 de 16081993 p 15994 Cf tambeacutem FERREIRA Pinto Comentaacuterios agrave constituiccedilatildeo brasileira Satildeo Paulo Saraiva 1989 p 71 C o m efeito Celso Lafer nos lembra que incumbia ao imperador antes de ser proclamado jurar manter a religiatildeo catoacutelica cabendo-lhe em contrapartida entre as suas atribuiccedilotildees nomear bispos e prover os benefiacutecios eclesiaacutesticos bem como conceder ou negar beneplaacutecitos a atos da Santa Feacute (cf Constituiccedilatildeo de 1824 art 5o 102 paraacutegrafos 2o e 14 103) (LAFER 2007) Note-se que a negaccedilatildeo dos valores africanos e de uma identidade africana no Brasil abrangendo a esfera religiosa tem suas origens na chegada dos escravos africanos desde o seacuteculo XVI A relaccedilatildeo entre os povos africanos e a sociedade colonial foi caracterizada pela conversatildeo compulsoacuteria dos escravos agrave religiatildeo de seus donos e pela perseguiccedilatildeo daqueles que insistissem na manutenccedilatildeo das praacuteticas ancestrais (DADESKY 2005 51-52)
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756 Maria Costa Neves Machado
base no fato de que a lei e m questatildeo havia sido modificada e m 1977 tendo sido excluiacuteda
a exigecircncia da licenccedila preacutevia
A separaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja foi estabelecida no Brasil somente
durante a Repuacuteblica pelo Decreto n 119-A datado de 7 de janeiro de 1890 de autoria
de Rui Barbosa (cf L A F E R 2007) que proibiu a intervenccedilatildeo do governo federal e dos
estados e m questotildees religiosas e estabeleceu a liberdade de culto34 Desde entatildeo o Brasil
eacute u m estado laico A separaccedilatildeo entre Estado e Igreja na Constituiccedilatildeo de 1988 estaacute prevista
no art 19
Eacute vedado agrave Uniatildeo aos Estados ao Distrito Federal e aos Municiacutepios (i) estabelecer cultos religiosos ou igrejas subvencionaacute-los embaraccedilar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relaccedilotildees de dependecircncia ou alianccedila ressalvada na forma da lei a colaboraccedilatildeo de interesse puacuteblico ()
Consequentemente o Estado brasileiro eacute indiferente agraves vaacuterias igrejas que
podem ser livremente formadas como entidades legais O Estado deve ser absolutamente
neutro sendo proibida a discriminaccedilatildeo entre igrejas para beneficiaacute-las ou prejudicaacute-las
Tambeacutem natildeo pode impor nenhum ocircnus indevido agrave formaccedilatildeo de igrejas N a realidade haacute
mesmo u m incentivo constitucional para sua formaccedilatildeo que resulta da imunidade tributaacuteria
a que fazem jus ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 50-51)35
Observe-se que a colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico mencionada no Artigo
19 para natildeo infringir a proibiccedilatildeo de estabelecimento de religiatildeo pelo Estado natildeo pode
ocorrer em u m campo fundamentalmente religioso (cf F E R R E I R A FILHO 1990 144
C R E T E L L A JUacuteNIOR 1992 1179 e L A F E R 2007) N atildeo obstante essa disposiccedilatildeo tem
implicaccedilotildees muito complexas quando se trata de sua execuccedilatildeo como eacute possiacutevel estabelecer
a colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico entre o Estado e u m a determinada igreja sem favorecer
u m a religiatildeo sobre a outra36 Ademais essa disposiccedilatildeo levanta u m problema similar ao que
resulta da assistecircncia religiosa a pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva e do
ensino religioso facultativo e m escolas conforme detalhado abaixo eacute possiacutevel na praacutetica
ensinar religiatildeo prestar assistecircncia religiosa e estabelecer esquemas de colaboraccedilatildeo
Esse decreto nunca foi expressamente revogado Cf lthttpslegislacaoplanaltogovbrLEGISLA LegislacaonsffraWebOpenFrameSetampFrame=frmWeb2ampSrc=2FLEGISLA2FLegislacaonsf2Fvi wTodos2Fbea39c8e0e484811032569fa005afab43FOpenDocument26Highlight3Dl2C26Auto Framedgt Acesso em 3 abr 2009
Cumpre notar que a Lei n 8245 datada de 18 de outubro de 1991 conforme alterada estabelece que o contrato de locaccedilatildeo de imoacuteveis utilizados por entidades religiosas devidamente registradas bem como por hospitais unidades sanitaacuterias oficiais asilos estabelecimentos de sauacutede e de ensino autorizados e fiscalizados pelo Poder Puacuteblico somente poderaacute ser rescindido em determinadas situaccedilotildees Para uma criacutetica sobre a exceccedilatildeo relacionada agrave colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico vide C R E T E L L A JUacuteNIOR 19921180
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 757
no interesse puacuteblico sem favorecer u m a determinada religiatildeo e sem violar o art 19 da
Constituiccedilatildeo
32 Garantia de assistecircncia religiosa em estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva
A Constituiccedilatildeo brasileira garante a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa a
pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva abrangendo presos militares e
pacientes hospitalizados (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 54) D e acordo com o inciso
VII do art 5o da Constituiccedilatildeo eacute assegurada nos termos da lei a prestaccedilatildeo de assistecircncia
religiosa nas entidades civis e militares de internaccedilatildeo coletiva O caraacuteter laico do Estado
brasileiro natildeo eacute afetado por esta disposiccedilatildeo u m a vez que o Estado natildeo eacute obrigado a
prestar assistecircncia religiosa e as entidades religiosas eacute que iratildeo prestaacute-la (cf M A R T I N S e
B A S T O S 1989 51 e 54 e F E R R E I R A FILHO 1990 34)
Neste sentido a Lei n 7210 de 11 de julho de 1984 que trata da execuccedilatildeo
penal estabelece e m seu art 10 que o Estado deve prestar assistecircncia aos presos e internados
incluindo os egressos objetivando prevenir o crime e orientar o retorno agrave convivecircncia e m
sociedade Tal assistecircncia consistiraacute de acordo com o art 11 e m assistecircncia material
agrave sauacutede juriacutedica educacional social e religiosa D e fato o art 41 estabelece que tais
assistecircncias satildeo direitos dos presos
D e acordo com o art 24 a assistecircncia religiosa com liberdade de culto
seraacute prestada aos presos e aos internados permitindo-se-lhes a participaccedilatildeo nos serviccedilos
organizados no estabelecimento penal bem como a posse de livros de instruccedilatildeo religiosa
O primeiro paraacutegrafo deste artigo estabelece que haveraacute local apropriado para os cultos
religiosos no estabelecimento penal o segundo paraacutegrafo dispotildee que nenhum preso ou
internado poderaacute ser obrigado a participar de atividade religiosa
Adicionalmente a Lei n 9982 de 14 de julho de 2000 que trata da prestaccedilatildeo
de assistecircncia religiosa e m estabelecimentos prisionais civis e militares e e m entidades
hospitalares puacuteblicas e privadas garante e m seu art Io o acesso aos religiosos de todas
as confissotildees aos hospitais da rede puacuteblica ou privada bem como aos estabelecimentos
prisionais civis ou militares para dar atendimento religioso aos internados desde que
em c o m u m acordo com estes ou com seus familiares no caso de doentes que jaacute natildeo mais
estejam no gozo de suas faculdades mentais Vale notar que nos termos do art 2o os
religiosos chamados a prestar assistecircncia nas entidades definidas no art Io deveratildeo e m
suas atividades acatar as determinaccedilotildees legais e normas internas de cada instituiccedilatildeo
hospitalar ou penal a fim de natildeo pocircr e m risco as condiccedilotildees do paciente ou a seguranccedila do
ambiente hospitalar ou prisional
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Duas disposiccedilotildees dessa lei foram vetadas pelo Presidente37 A primeira
disposiccedilatildeo estabelecia que a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa natildeo seria permitida se de
acordo com o hospital ou a prisatildeo houvesse risco de vida ou sauacutede para o internado ou
para o religioso O Presidente justificou esse veto argumentando que a transferecircncia do
processo decisoacuterio relativo agrave prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa aos hospitais ou prisotildees
excluindo-se o paciente ou preso bem como suas famiacutelias era contraacuterio aos incisos VI
e VII do art 5o da Constituiccedilatildeo Ademais o Presidente sustentou que a precauccedilatildeo que
motivou o dispositivo vetado jaacute estaacute assegurada pelo art 2 o da lei e m questatildeo
A segunda disposiccedilatildeo vetada pelo Presidente determinava que o interno teria
direito a pelo menos u m a visita semanal de religiosos da confissatildeo religiosa que professe
O Presidente justificou esse veto argumentando que a periodicidade das visitas deveria ser
determinada pela autoridade local levando e m consideraccedilatildeo as particularidades regionais
os usos e costumes Aleacutem disso o Presidente sustentou que era inadequado tratar hospitais
e prisotildees da mesma forma tendo e m vista as circunstacircncias especiacuteficas de cada instituiccedilatildeo
Havia tambeacutem a preocupaccedilatildeo de que o nuacutemero miacutenimo de visitas estabelecido por lei se
tornasse o nuacutemero maacuteximo permitido na praacutetica
33 Acomodaccedilatildeo em razatildeo de imperativo de consciecircncia
Nos termos do inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo ningueacutem seraacute privado
de direitos por motivo de crenccedila religiosa ou de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica salvo se as
invocar para eximir-se de obrigaccedilatildeo legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestaccedilatildeo
alternativa fixada e m lei Esse inciso entre outras coisas estaacute relacionado ao serviccedilo
militar obrigatoacuterio estabelecido pelo art 143 da Constituiccedilatildeo O paraacutegrafo Io deste artigo
dispotildee que agraves Forccedilas Armadas compete na forma da lei atribuir serviccedilo alternativo aos
que e m tempo de paz apoacutes alistados alegarem imperativo de consciecircncia entendendo-
se como tal o decorrente de crenccedila religiosa e de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica para se
eximirem de atividades de caraacuteter essencialmente militar 38
Esse eacute u m dos casos de acomodaccedilatildeo existentes no ordenamento juriacutedico
brasileiro relacionado agrave crenccedila religiosa ou agraves convicccedilotildees filosoacuteficas ou poliacuteticas Para
buscar proteccedilatildeo constitucional de mo d o a natildeo participar do serviccedilo militar compulsoacuterio
e m tempos de paz faz-se necessaacuterio provar comprometimento com ideacuteias natildeo beligerantes
a ser demonstrado por atitudes passadas que estejam e m consonacircncia com tal ideal
( M A R T I N S e B A S T O S 1989 56) Note-se que eacute possiacutevel ser excluiacutedo de atividades
essencialmente militares mas poderatildeo ser impostos serviccedilos alternativos que consistam em
57 Cf Mensagem de Veto n 960 de 14 de julho de 2000 Disponiacutevel em lthttpswwwplanaltogovbr
ccivil_03leisMensagem_Veto2000Mv0960-00htmgt Acesso em 13 fev 2009 i8 Esse dispositivo constitucional foi regulamentado pela Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 759
atividades administrativas de assistecircncia filantroacutepicas ou produtivas39 jaacute que a obrigaccedilatildeo
de servir ao Paiacutes natildeo eacute excluiacuteda ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 211) Cumpre notar que da
reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia natildeo pode resultar a privaccedilatildeo de direitos exceto
se a pessoa tambeacutem se recusar a prestar serviccedilo alternativo natildeo essencialmente militar
Nessas circunstacircncias a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo aplicaacutevel natildeo satildeo inteiramente claras
sobre as consequumlecircncias legais da recusa Alguns autores entendem que nesse caso a pessoa
que se recusou a prestar serviccedilos alternativos poderia ser privada de direitos (FERREIRA
FILHO 1994 34 e 81 e M A R T I N S e B A S T O S 1989 212)40
Constata-se aqui o que parece ser u m a grande incoerecircncia no ordenamento
juriacutedico brasileiro Enquanto e m tempos de paz as pessoas podem reivindicar imperativo
de consciecircncia para evitar serviccedilos essencialmente militares quando o Estado declara
guerra nenhum cidadatildeo poderaacute invocar crenccedilas religiosas ou convicccedilotildees filosoacuteficas ou
poliacuteticas com a finalidade de natildeo participar do serviccedilo militar41 C o m o resultado durante
o periacuteodo mais adequado e apropriado para expressar desacordo com guerras e ideais
beligerantes as pessoas natildeo tem direito de reivindicar imperativo de consciecircncia para natildeo
participar do serviccedilo militar na hipoacutetese de a Constituiccedilatildeo ser interpretada literalmente
Outro caso de acomodaccedilatildeo relacionado a crenccedilas religiosas que vale ser
mencionado eacute o uso terapecircutico do chaacute Ayahuasca em rituais religiosos A partir de
1985 o governo brasileiro comeccedilou a estudar os aspectos sociais e culturais referentes
ao uso de tal chaacute E m 23 de novembro de 2006 o Grupo Multidisciplinar de Trabalho do
Comitecirc Nacional Antidrogas do Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas42
emitiu seu relatoacuterio final reconhecendo que o uso do chaacute Ayahuasca deveria ser limitado
a rituais religiosos e m locais autorizados pela direccedilatildeo das entidades que fazem uso de
tal chaacute sendo proibido seu uso em conjunto com substacircncia ilegais Atualmente o uso
do chaacute Ayahuasca e m conformidade com as normas aplicaacuteveis eacute assegurado com base
na garantia constitucional da liberdade de consciecircncia e de crenccedila e do livre exerciacutecio de
cultos religiosos Ademais a legitimidade do uso religioso da Ayahuasca foi ratificada
como rica e ancestral manifestaccedilatildeo cultural que exatamente pela relevacircncia de seu valor
Os serviccedilos alternativos podem ser prestados e m organizaccedilotildees militares da ativa e e m oacutergatildeos de formaccedilatildeo de reservas das Forccedilas Armadas ou em oacutergatildeos subordinados aos Ministeacuterios Civis mediante convecircnios entre estes e os Ministeacuterios Militares Cf sectsect 2o e 3o do art 3o da Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991 N o entanto parece-nos que o serviccedilo militar obrigatoacuterio natildeo estaacute de acordo com os princiacutepios que norteiam a Constituiccedilatildeo no sentido de que serviccedilos alternativos natildeo deveriam ser impostos Contudo a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo Ives Granda Martins sustenta que e m tempos de guerra todos os cidadatildeos tecircm iguais deveres perante o Paiacutes (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 212) Discordamos totalmente deste posicionamento porque uma das formas mais eficazes de expressar desacordo com guerras e ideais beligerantes eacute durante o periacuteodo de guerra quando as pessoas que natildeo concordam poderiam recusar-se a prestar serviccedilos militares Contudo conforme mencionado acima a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo O Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas - S I S N A D foi instituiacutedo pela Lei n 11343 de 23 de agosto de 2006
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7(gt(l Maria Costa Neves Machado
histoacuterico antropoloacutegico e social eacute credora da proteccedilatildeo do Estado nos termos do art
2o caput da Lei n 1134306 e do art 215 sect1deg da C F 43 que dispotildee que [o] Estado
protegeraacute as manifestaccedilotildees das culturas populares indiacutegenas e afro-brasileiras e das de
outros grupos participantes do processo civilizatoacuterio nacional44
Eacute de se notar tambeacutem o recente caso no Estado de Satildeo Paulo de acomodaccedilatildeo
religiosa previsto na Lei Estadual n 13541 de 7 de maio de 2009 Tal lei proiacutebe o consumo
de cigarros cigarrilhas charutos cachimbos ou de qualquer outro produto fumiacutegeno
derivado ou natildeo do tabaco e m ambientes de uso coletivo puacuteblicos ou privados Contudo
nos termos do art 6o da referida lei essa natildeo se aplica aos locais de culto religioso em que
o uso de produto fumiacutegeno faccedila parte do ritual O u seja trata-se de mais u m caso em que
uma lei geral eacute excetuada para acomodar praacuteticas relacionadas agrave liberdade de religiatildeo e
de culto
Diferentemente das situaccedilotildees envolvendo serviccedilo militar obrigatoacuterio
o chaacute Ayahuasca e rituais religiosos que envolvem o uso de produtos fumiacutegenos foi
negada acomodaccedilatildeo quando da reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia no contexto
de frequumlecircncia escolar no Estado de Satildeo Paulo E m opiniatildeo escrita por Ada Pellegrini
Grinover publicada e m 25 de outubro de 2002 o Conselho Estadual de Educaccedilatildeo do
Estado de Satildeo Paulo entendeu que estudantes que fossem membros da Igreja Adventista
do Seacutetimo Dia estariam obrigados a frequumlentar as aulas durante o periacuteodo compreendido
entre 1800 horas de sexta-feira e 1800 de saacutebados de acordo com a Lei n 9394 de 20
de dezembro de 1996 conforme alterada embora tal frequumlecircncia seja contraacuteria agraves suas
praacuteticas religiosas u m a vez que natildeo haacute prestaccedilatildeo alternativa estabelecida em lei para tal
escusa de consciecircncia conforme fixado pelo inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo45
Adicionalmente aos casos de acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de
consciecircncia o inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo tambeacutem jaacute foi invocado para proteger
os direitos dos professores do Estado de Rio de Janeiro contra lei estadual que estabeleceu
que somente os professores credenciados pela autoridade religiosa competente estaratildeo
autorizados a ministrar as aulas de ensino religioso e m escolas puacuteblicas estaduais Para
compreender a Accedilatildeo Direta de Inconstitucionalidade - A D I N n 326804 que ainda natildeo
foi decidida pela Suprema Corte faz-se necessaacuterio analisar as disposiccedilotildees legais aplicaacuteveis
relacionadas ao ensino religioso no Brasil
Cf Relatoacuterio Final do Grupo Multidisciplinar de Trabalho disponiacutevel entre outros siacutetios em lthttp wwwsantodaimeorgcomunidadenoticiasrelfinal_conadhtmgt Acesso em 4 mar 2009 e lthttpwww ayahuascabrasilorgindexphpop=legisl01gt Acesso em 4 mar 2009 A acomodaccedilatildeo relacionada ao uso do chaacute Ayahuasca para fins religiosos nos Estados Unidos foi decidida pela Suprema Courte em Gonzales v O Centro Espirita Beneficente Uniatildeo do Vegetal 546 US 418 (2006) Cf Parecer C E E No 4422002 - C E S - Aprovado em 23102002 Disponiacutevel em lthttpwwwceesp spgovbrParecerespa_442_02htmgt Acesso em 4 mar 2009
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 761
34 Ensino religioso facultativo
Nos termos do art 210 da Constituiccedilatildeo [sjeratildeo fixados conteuacutedos miacutenimos
para o ensino fundamental de maneira a assegurar formaccedilatildeo baacutesica c o m u m e respeito aos
valores culturais e artiacutesticos nacionais e regionais O paraacutegrafo Io desse Artigo dispotildee
que [o] ensino religioso de matriacutecula facultativa constituiraacute disciplina dos horaacuterios
normais das escolas puacuteblicas de ensino fundamental
Nesse sentido o art 33 da Lei n 9394 de 22 de julho de 1997 conforme
alterada determina que o respeito agrave diversidade cultural religiosa do Brasil eacute assegurado
no ensino religioso sendo proibida qualquer forma de proselitismo O primeiro paraacutegrafo
desse Artigo dispotildee que [o]s sistemas de ensino regulamentaratildeo os procedimentos para a
definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso e estabeleceratildeo as normas para a habilitaccedilatildeo
e admissatildeo dos professores Ademais de acordo com o segundo paraacutegrafo do referido
Artigo [o]s sistemas de ensino ouviratildeo entidade civil constituiacuteda pelas diferentes
denominaccedilotildees religiosas para a definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso46
D e modo a observar a proibiccedilatildeo constitucional de estabelecimento de
religiatildeo o ensino religioso e m escolas natildeo pode consistir no ensino de u m a religiatildeo
determinada Nesse sentido a previsatildeo constitucional tem por finalidade dar oportunidade
a estudantes que estatildeo e m idade de formaccedilatildeo de personalidade de ter acesso a informaccedilotildees
de modo que no futuro eles possam livremente escolher adotar ou natildeo adotar u m a religiatildeo
(cf S C H E R K E R K E W I T Z 2002 60)47
Levando e m consideraccedilatildeo esses dispositivos a A D I N n 326804 foi
ajuizada pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo com o intuito de
declarar que a Lei n 3459 aprovada pela Assembleacuteia Legislativa do Estado do Rio de
Janeiro e m 14 de setembro de 2000 eacute inconstitucional u m a vez que estabeleceu que (i)
religiatildeo seria ensinada na forma confessional (ii) o conteuacutedo do ensino religioso seria
atribuiccedilatildeo de diversas autoridades religiosas e (iii) apenas professores credenciados pela
autoridade religiosa competente poderiam ensinar religiatildeo e m escolas oficiais
A Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo argumenta que o
ensino religioso na forma confessional viola o art 210 da Constituiccedilatildeo que estabelece que
os valores culturais seratildeo respeitados quando do estabelecimento dos conteuacutedos miacutenimos
para o ensino fundamental e o art 33 da Lei Federal n 939497 que determina que o
ensino religioso respeitaraacute a diversidade cultural do Brasil
Cumpre notar que nos termos do art 21 do Decreto-Lei n 4244 de 9 de abril de 1942 o programa e o regime didaacutetico do ensino religioso deveria ser determinado pela autoridade religiosa De acordo com Alexandre de Moraes para que a regulamentaccedilatildeo e a execuccedilatildeo desta disposiccedilatildeo natildeo sejam inconstitucionais faz-se necessaacuterio que toda e qualquer religiatildeo possa ser ensinada nas escolas puacuteblicas O autor entende que na praacutetica isso eacute absolutamente impossiacutevel (cf M O R A E S 2003 1984-1985)
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762 Maria Costa Neves Machado
Adicionalmente a confederaccedilatildeo sustenta que a disposiccedilatildeo de acordo
com a qual o conteuacutedo do ensino religioso eacute u m a atribuiccedilatildeo das diversas autoridades
religiosas contraria o art 33 da Lei Federal n 939497 que estabelece diferentes padrotildees
para a definiccedilatildeo do conteuacutedo do ensino religioso E m conformidade com tal lei federal
os sistemas de ensino devem ouvir entidades civis de diversas religiotildees para definir
o conteuacutedo do ensino religioso A violaccedilatildeo eacute demonstrada com base no fato de que o
conceito de autoridade religiosa - que implica u m a estrutura administrativa e hieraacuterquica
como aquelas presentes nas Igrejas Catoacutelicas Presbiterianas e Judaicas - natildeo eacute parte da
tradiccedilatildeo de algumas religiotildees que tem origem Evangeacutelica ou afro-brasileira
A A D I N ainda natildeo foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal De qualquer
forma os argumentos apresentados pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores em
Educaccedilatildeo - e pelos vaacuterios amicus curiae admitidos no processo - parecem ser coerentes
com a Constituiccedilatildeo Federal e aptos a derrubar a Lei Estadual n 3459
N o Estado de Satildeo Paulo o ensino religioso previsto no art 33 da Lei n
939497 foi regulamentado na Deliberaccedilatildeo do Conselho Estadual de Educaccedilatildeo - CEE
n 162001 com fundamento na Indicaccedilatildeo C E E n 07 aprovada e m 25 de julho de 2001
de acordo com a qual o ensino religioso deve ser enfocado na perspectiva constitucional
de promoccedilatildeo da cidadania e da dignidade especialmente na funccedilatildeo social da educaccedilatildeo
e m geral de modo que deve ser enfatizada a reflexatildeo sobre a cidadania e as praacuteticas a ela
pertinentes Assumindo que natildeo haacute conhecimento futuro e vida sem a competecircncia de
conviver com as diferenccedilas a Indicaccedilatildeo C E E n 072001 reconhece que satildeo bem-vindos
todos os projetos educacionais (aiacute se podendo incluir o ensino religioso) que visam direta
ou indiretamente o trabalho comunitaacuterio a conscientizaccedilatildeo da responsabilidade pessoal
e social e que estimulem e restaurem os valores humanos de compromisso moral e eacutetico
auxiliando a compreensatildeo do h o m e m e o autoconhecimento Nesse sentido de acordo com
referida indicaccedilatildeo o ensino religioso nas escolas deve antes de tudo fundamentar-se nos
princiacutepios da cidadania e do entendimento do outro Assim o C E E recomendou que o
ensino religioso fosse tratado como tema transversal por meio da implementaccedilatildeo de uma
proposta de abordagem filosoacutefica que permitisse a reflexatildeo sobre valores e princiacutepios eacuteticos e
o conhecimento da histoacuteria das religiotildees Tambeacutem no Estado de Satildeo Paulo a implementaccedilatildeo
do ensino religioso foi arduamente debatida e criticada especialmente em razatildeo da
problemaacutetica questatildeo do estabelecimento de religiatildeo vedado pela Constituiccedilatildeo de 198848
Vide entre outros GIUMBELLI Emerson Ensino religioso em escolas puacuteblicas no Brasil notas de pesquisa Debates do N E R (UFRGS) v 14 p 50-68 2009 CURY Carlos Roberto Jamil Ensino religioso na escola puacuteblica o retorno de uma polecircmica recorrente Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 27 p 183-213 setdez 2004 LUI Janayna de Alencar Entre crentes e pagatildeos ensino religioso em Satildeo Paulo Cadernos de Pesquisa v 37 n 131 p 333-349 maioago 2007 R A N Q U E T A T JUacuteNIOR Ceacutesar Do confessional ao plural uma anaacutelise sobre o novo modelo de ensino religioso nas escolas brasileiras Revista Diaacutelogo Educaccedilatildeo Curitiba v 8 n 23 p 289-305 janabr 2008
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 763
Neste item a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil foi examinada
com a finalidade de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota u m princiacutepio de
toleracircncia ou de respeito As normas relacionadas agrave garantia da liberdade de consciecircncia
e de crenccedila bem como ao livre exerciacutecio de cultos religiosos agrave proteccedilatildeo dos locais de
adoraccedilatildeo agrave proibiccedilatildeo do estabelecimento de religiatildeo agrave garantia de assistecircncia religiosa
e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva agrave acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de
consciecircncia e ao ensino religioso facultativo todas foram analisadas de modo que fosse
possiacutevel concluir se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia ou
do respeito
D e acordo com tal anaacutelise o ordenamento juriacutedico brasileiro parece tratar a
religiatildeo e m conformidade com o princiacutepio do respeito Isso porque pessoas religiosas e natildeo
religiosas podem entrar no espaccedilo puacutebico e m iguais condiccedilotildees sendo que a faculdade de
buscar a finalidade uacuteltima da vida eacute respeitada pelo Estado Nesse sentido o ordenamento
juriacutedico brasileiro garante a liberdade de consciecircncia e de crenccedila o livre exerciacutecio de
cultos religiosos e a proteccedilatildeo dos locais de adoraccedilatildeo Adicionalmente enquanto de u m
lado nenhuma religiatildeo pode ser estabelecida pelo Estado pessoas religiosas podem
reivindicar imperativo de consciecircncia bem como receber assistecircncia religiosa e ensino
religioso se essa for a sua escolha
Isso demonstra que todos os indiviacuteduos de acordo com o ordenamento
juriacutedico brasileiro devem entrar no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais e que o Estado eacute
obrigado a fornecer condiccedilotildees para que pessoas religiosas e natildeo religiosas possam buscar
a finalidade uacuteltima da vida se essa for sua escolha respeitando e m todos os indiviacuteduos a
faculdade de realizar tal busca
4 Conclusatildeo
Inicialmente foi examinada neste artigo a diferenccedila entre o princiacutepio da
toleracircncia e o princiacutepio do respeito no que se refere ao tratamento legal de questotildees de
consciecircncia Posteriormente a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no ordenamento
juriacutedico brasileiro foi analisada com a finalidade de verificar qual desses dois princiacutepios eacute
adotado Finalmente conclui-se que o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio
do respeito pela faculdade dos indiviacuteduos de buscar pela finalidade uacuteltima da vida sendo o
Estado obrigado a garantir condiccedilotildees adequadas para as pessoas exercerem tal faculdade
de acordo com suas escolhas autocircnomas de modo que todos os indiviacuteduos possam entrar
no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais
Satildeo Paulo dezembro de 2010
R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010
IM Maria Costa Neves Machado
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 753
o autor a maioria das pessoas entende que se u m a minoria nacional estaacute oprimindo outros
grupos u m a intervenccedilatildeo contra a agressatildeo eacute justificaacutevel Entretanto se a minoria somente
visa guiar sua comunidade de acordo com princiacutepios natildeo liberais e natildeo estaacute interessada e m
estabelecer regras para outros grupos ou e m privar esses outros grupos de seus recursos
parece errado impor valores liberais (cf K Y M L I C K A 1997 154-155) Assim Kymlicka
adota u m a visatildeo de acordo com a qual a toleracircncia liberal deve proteger os direitos dos
indiviacuteduos de discordar de seus grupos assim como o direito dos grupos de natildeo serem
perseguidos pelo Estado enquanto que o poder de grupos natildeo liberais de restringir a
liberdade de seus membros e o poder de Estados natildeo liberais de restringir a liberdade de
culto devem ser limitados
Neste item foram examinados (i) a diferenccedila entre o princiacutepio da toleracircncia
e o princiacutepio do respeito no que se refere agrave liberdade religiosa e (ii) os limites para a
adoccedilatildeo do princiacutepio do respeito por democracias liberais A partir dessa anaacutelise o
ordenamento juriacutedico brasileiro e a regulaccedilatildeo da liberdade religiosa seratildeo estudados no
item subsequente
3 Liberdade religiosa no Brasil
A regulaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil eacute examinada neste item com
o intuito de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia
ou do respeito Satildeo analisados os dispositivos da Constituiccedilatildeo Federal que tratam
da liberdade religiosa quais sejam aqueles relacionados ao livre exerciacutecio de cultos
religiosos agrave proteccedilatildeo aos locais de culto e suas liturgias (art 5o inc VI) agrave garantia de
prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa a pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva
(art 5o inc VII) agrave acomodaccedilatildeo juriacutedica e m razatildeo de imperativo de consciecircncia (art 5o
inc VIII) agrave vedaccedilatildeo ao estabelecimento de religiatildeo pelo Estado (art 19) e ao ensino
religioso facultativo (art 210) bem como a legislaccedilatildeo federal relacionada O estudo ora
realizado natildeo pretende analisar de forma exaustiva as leis estaduais anaacutelise esta que
quando realizada serve apenas para ilustrar a aplicaccedilatildeo das normas constitucionais
O dispositivo central da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil de
1988 que serve de base para a proteccedilatildeo da liberdade religiosa eacute seu art 5o o qual estabelece
que [t]odos satildeo iguais perante a lei sem distinccedilatildeo de qualquer natureza garantindo-se
aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Paiacutes a inviolabilidade do direito agrave vida
agrave liberdade agrave igualdade agrave seguranccedila e agrave propriedade Os dispositivos constitucionais
examinados a seguir visam a garantir a observacircncia da liberdade religiosa que se
apresenta como u m dos aspectos da liberdade e m sentido lato a qual eacute constitucionalmente
assegurada a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no Paiacutes
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754 Maria Costa Neves Machado
31 Livre exerciacutecio de cultos religiosos e vedaccedilatildeo ao estabelecimento de religiatildeo
O inciso VI do art 5o da Constituiccedilatildeo Federal determina que eacute inviolaacutevel
a liberdade de consciecircncia e de crenccedila sendo assegurado o livre exerciacutecio dos cultos
religiosos e garantida na forma da lei a proteccedilatildeo aos locais de culto e a suas liturgias
Diferentemente do texto atual a Constituiccedilatildeo brasileira de 1967
expressamente limitava e m seu art 150 paraacutegrafo 5 o exerciacutecio da liberdade religiosa
aos cultos que natildeo contrariassem a ordem puacuteblica e os bons costumes D e acordo com
Celso Ribeiro Bastos embora a atual Constituiccedilatildeo omita o requisito de observacircncia da
ordem puacuteblica e dos bons costumes estaacute impliacutecito no ordenamento juriacutedico brasileiro
que os direitos devem ser exercidos de modo que natildeo prejudiquem os direitos de outras
pessoas e em consonacircncia com os valores eacuteticos e morais e m que se funda a sociedade
brasileira independentemente de quatildeo difiacutecil possa ser para os tribunais definirem quais
satildeo esses valores que estatildeo evoluindo constantemente (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989
52) E m sentido diverso do entendimento de Bastos Manuel Gonccedilalves Ferreira Filho
entende que em razatildeo da omissatildeo da Constituiccedilatildeo os cultos religiosos satildeo garantidos
inclusive contra eventuais limitaccedilotildees baseadas na ordem puacuteblica e nos bons costumes (cf
F E R R E I R A FILHO 1990 33) A interpretaccedilatildeo de Ferreira Filho parece mais adequada
uma vez que os legisladores constitucionais omitiram intencionalmente a exigecircncia da
observacircncia da ordem puacuteblica e dos bons costumes Dessa forma os tribunais brasileiros
natildeo podem limitar o exerciacutecio da liberdade religiosa invocando a ordem puacuteblica ou os
bons costumes
U m a questatildeo muito polecircmica sobre o exerciacutecio da liberdade de culto
e sua limitaccedilatildeo no Brasil eacute relacionada agrave caracterizaccedilatildeo do crime de curandeirismo
previsto no art 284 do Coacutedigo Penal30 Enquanto alguns autores por exemplo Magalhatildees
Noronha sustentam que uma praacutetica religiosa que pretenda curar sem tiacutetulo ou habilitaccedilatildeo
apropriada seja enquadrada como curandeirismo ( N O R O N H A 1968 107) outros
autores como Francisco de Assis Toledo argumentam que os rituais espiacuteritas e os rituais de
todas as outras religiotildees tais como o Catolicismo o Protestantismo ou Budismo embora
possam visar agrave cura ou agrave diminuiccedilatildeo do sofrimento de pessoas doentes nunca poderatildeo ser
considerados u m crime (cf T O L E D O 1986 100-101) Francisco de Assis Toledo parece
estar certo e m sua interpretaccedilatildeo do crime curandeirismo uma vez que ele leva a seacuterio a
Artigo 284 Exercer o curandeirismo
I - prescrevendo ministrando ou aplicando habitualmente qualquer substacircncia
II - usando gestos palavras ou qualquer outro meio
III - fazendo diagnoacutesticos
Pena - detenccedilatildeo de seis meses a dois anos
Paraacutegrafo uacutenico - Se o crime eacute praticado mediante remuneraccedilatildeo o agente fica tambeacutem sujeito agrave multa
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 755
garantia constitucional da liberdade de religiatildeo Atualmente o poder judiciaacuterio no Brasil
entende que os rituais espiacuteritas relacionados agrave cura de pessoas doentes natildeo podem ser
considerados curandeirismo sendo constitucionalmente protegidos como u m tipo de
culto31
Cumpre notar que durante o periacuteodo do Impeacuterio no Brasil havia uma
liberdade religiosa sem liberdade de culto somente o culto catoacutelico era reconhecido como
livre Outras religiotildees somente podiam celebrar seus cultos na esfera domeacutestica sendo
proibido todo o templo fora do lar para outras religiotildees (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989
50 e C R E T E L L A JUacuteNIOR 1992 252)
Essa abordagem inicial da liberdade religiosa no ordenamento juriacutedico
brasileiro pode ser explicada como consequumlecircncia de nosso passado colonial U m a das
justificaccedilotildees ideoloacutegicas subjacentes agrave colonizaccedilatildeo do Brasil por Portugal - e de outros
paiacuteses da Ameacuterica Latina pela Espanha - era relacionada agrave catequizaccedilatildeo dos povos
indiacutegenas C o m o resultado o catolicismo foi a religiatildeo oficial ateacute o fim do periacuteodo
imperial32
A esse respeito vale notar com Faacutebio Konder Comparato (2001 312) que
natildeo haacute autecircntica liberdade de crenccedila e de opiniatildeo num Estado que adota u m a religiatildeo
oficial As pressotildees de toda a sorte - poliacuteticas econocircmicas e profissionais - contra os natildeo
seguidores da religiatildeo de Estado tornam essa liberdade ilusoacuteria C o m efeito as religiotildees
indiacutegenas e africanas e seus valores foram negados durante grande parte da histoacuteria do
Brasil e ainda hoje haacute na sociedade brasileira preconceito contra tais religiotildees33
Exemplificativamente destaque-se que e m 1985 o Supremo Tribunal
Federal arquivou a Representaccedilatildeo n 959-PB que questionava u m a lei do Estado da
Paraiacuteba de 1966 de acordo com a qual os cultos africanos deveriam obter u m a licenccedila
preacutevia para iniciar suas atividades Tal licenccedila seria concedida se entre outras exigecircncias
o responsaacutevel pelos cultos pudesse provar sua idoneidade moral e perfeitas condiccedilotildees de
sauacutede mental conforme documentado e m relatoacuterio psiquiaacutetrico A accedilatildeo arquivada com
STF R H C 62240SP rei Min Francisco Rezek 2a Turma 13121984 DJ 02081985 p 12046 e STJ H C 1498RJ rei Min Luiz Vicente Cernicchiaro 6a Turma j 18121992 DJ 1 de 16081993 p 15994 Cf tambeacutem FERREIRA Pinto Comentaacuterios agrave constituiccedilatildeo brasileira Satildeo Paulo Saraiva 1989 p 71 C o m efeito Celso Lafer nos lembra que incumbia ao imperador antes de ser proclamado jurar manter a religiatildeo catoacutelica cabendo-lhe em contrapartida entre as suas atribuiccedilotildees nomear bispos e prover os benefiacutecios eclesiaacutesticos bem como conceder ou negar beneplaacutecitos a atos da Santa Feacute (cf Constituiccedilatildeo de 1824 art 5o 102 paraacutegrafos 2o e 14 103) (LAFER 2007) Note-se que a negaccedilatildeo dos valores africanos e de uma identidade africana no Brasil abrangendo a esfera religiosa tem suas origens na chegada dos escravos africanos desde o seacuteculo XVI A relaccedilatildeo entre os povos africanos e a sociedade colonial foi caracterizada pela conversatildeo compulsoacuteria dos escravos agrave religiatildeo de seus donos e pela perseguiccedilatildeo daqueles que insistissem na manutenccedilatildeo das praacuteticas ancestrais (DADESKY 2005 51-52)
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base no fato de que a lei e m questatildeo havia sido modificada e m 1977 tendo sido excluiacuteda
a exigecircncia da licenccedila preacutevia
A separaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja foi estabelecida no Brasil somente
durante a Repuacuteblica pelo Decreto n 119-A datado de 7 de janeiro de 1890 de autoria
de Rui Barbosa (cf L A F E R 2007) que proibiu a intervenccedilatildeo do governo federal e dos
estados e m questotildees religiosas e estabeleceu a liberdade de culto34 Desde entatildeo o Brasil
eacute u m estado laico A separaccedilatildeo entre Estado e Igreja na Constituiccedilatildeo de 1988 estaacute prevista
no art 19
Eacute vedado agrave Uniatildeo aos Estados ao Distrito Federal e aos Municiacutepios (i) estabelecer cultos religiosos ou igrejas subvencionaacute-los embaraccedilar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relaccedilotildees de dependecircncia ou alianccedila ressalvada na forma da lei a colaboraccedilatildeo de interesse puacuteblico ()
Consequentemente o Estado brasileiro eacute indiferente agraves vaacuterias igrejas que
podem ser livremente formadas como entidades legais O Estado deve ser absolutamente
neutro sendo proibida a discriminaccedilatildeo entre igrejas para beneficiaacute-las ou prejudicaacute-las
Tambeacutem natildeo pode impor nenhum ocircnus indevido agrave formaccedilatildeo de igrejas N a realidade haacute
mesmo u m incentivo constitucional para sua formaccedilatildeo que resulta da imunidade tributaacuteria
a que fazem jus ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 50-51)35
Observe-se que a colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico mencionada no Artigo
19 para natildeo infringir a proibiccedilatildeo de estabelecimento de religiatildeo pelo Estado natildeo pode
ocorrer em u m campo fundamentalmente religioso (cf F E R R E I R A FILHO 1990 144
C R E T E L L A JUacuteNIOR 1992 1179 e L A F E R 2007) N atildeo obstante essa disposiccedilatildeo tem
implicaccedilotildees muito complexas quando se trata de sua execuccedilatildeo como eacute possiacutevel estabelecer
a colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico entre o Estado e u m a determinada igreja sem favorecer
u m a religiatildeo sobre a outra36 Ademais essa disposiccedilatildeo levanta u m problema similar ao que
resulta da assistecircncia religiosa a pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva e do
ensino religioso facultativo e m escolas conforme detalhado abaixo eacute possiacutevel na praacutetica
ensinar religiatildeo prestar assistecircncia religiosa e estabelecer esquemas de colaboraccedilatildeo
Esse decreto nunca foi expressamente revogado Cf lthttpslegislacaoplanaltogovbrLEGISLA LegislacaonsffraWebOpenFrameSetampFrame=frmWeb2ampSrc=2FLEGISLA2FLegislacaonsf2Fvi wTodos2Fbea39c8e0e484811032569fa005afab43FOpenDocument26Highlight3Dl2C26Auto Framedgt Acesso em 3 abr 2009
Cumpre notar que a Lei n 8245 datada de 18 de outubro de 1991 conforme alterada estabelece que o contrato de locaccedilatildeo de imoacuteveis utilizados por entidades religiosas devidamente registradas bem como por hospitais unidades sanitaacuterias oficiais asilos estabelecimentos de sauacutede e de ensino autorizados e fiscalizados pelo Poder Puacuteblico somente poderaacute ser rescindido em determinadas situaccedilotildees Para uma criacutetica sobre a exceccedilatildeo relacionada agrave colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico vide C R E T E L L A JUacuteNIOR 19921180
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 757
no interesse puacuteblico sem favorecer u m a determinada religiatildeo e sem violar o art 19 da
Constituiccedilatildeo
32 Garantia de assistecircncia religiosa em estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva
A Constituiccedilatildeo brasileira garante a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa a
pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva abrangendo presos militares e
pacientes hospitalizados (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 54) D e acordo com o inciso
VII do art 5o da Constituiccedilatildeo eacute assegurada nos termos da lei a prestaccedilatildeo de assistecircncia
religiosa nas entidades civis e militares de internaccedilatildeo coletiva O caraacuteter laico do Estado
brasileiro natildeo eacute afetado por esta disposiccedilatildeo u m a vez que o Estado natildeo eacute obrigado a
prestar assistecircncia religiosa e as entidades religiosas eacute que iratildeo prestaacute-la (cf M A R T I N S e
B A S T O S 1989 51 e 54 e F E R R E I R A FILHO 1990 34)
Neste sentido a Lei n 7210 de 11 de julho de 1984 que trata da execuccedilatildeo
penal estabelece e m seu art 10 que o Estado deve prestar assistecircncia aos presos e internados
incluindo os egressos objetivando prevenir o crime e orientar o retorno agrave convivecircncia e m
sociedade Tal assistecircncia consistiraacute de acordo com o art 11 e m assistecircncia material
agrave sauacutede juriacutedica educacional social e religiosa D e fato o art 41 estabelece que tais
assistecircncias satildeo direitos dos presos
D e acordo com o art 24 a assistecircncia religiosa com liberdade de culto
seraacute prestada aos presos e aos internados permitindo-se-lhes a participaccedilatildeo nos serviccedilos
organizados no estabelecimento penal bem como a posse de livros de instruccedilatildeo religiosa
O primeiro paraacutegrafo deste artigo estabelece que haveraacute local apropriado para os cultos
religiosos no estabelecimento penal o segundo paraacutegrafo dispotildee que nenhum preso ou
internado poderaacute ser obrigado a participar de atividade religiosa
Adicionalmente a Lei n 9982 de 14 de julho de 2000 que trata da prestaccedilatildeo
de assistecircncia religiosa e m estabelecimentos prisionais civis e militares e e m entidades
hospitalares puacuteblicas e privadas garante e m seu art Io o acesso aos religiosos de todas
as confissotildees aos hospitais da rede puacuteblica ou privada bem como aos estabelecimentos
prisionais civis ou militares para dar atendimento religioso aos internados desde que
em c o m u m acordo com estes ou com seus familiares no caso de doentes que jaacute natildeo mais
estejam no gozo de suas faculdades mentais Vale notar que nos termos do art 2o os
religiosos chamados a prestar assistecircncia nas entidades definidas no art Io deveratildeo e m
suas atividades acatar as determinaccedilotildees legais e normas internas de cada instituiccedilatildeo
hospitalar ou penal a fim de natildeo pocircr e m risco as condiccedilotildees do paciente ou a seguranccedila do
ambiente hospitalar ou prisional
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Duas disposiccedilotildees dessa lei foram vetadas pelo Presidente37 A primeira
disposiccedilatildeo estabelecia que a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa natildeo seria permitida se de
acordo com o hospital ou a prisatildeo houvesse risco de vida ou sauacutede para o internado ou
para o religioso O Presidente justificou esse veto argumentando que a transferecircncia do
processo decisoacuterio relativo agrave prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa aos hospitais ou prisotildees
excluindo-se o paciente ou preso bem como suas famiacutelias era contraacuterio aos incisos VI
e VII do art 5o da Constituiccedilatildeo Ademais o Presidente sustentou que a precauccedilatildeo que
motivou o dispositivo vetado jaacute estaacute assegurada pelo art 2 o da lei e m questatildeo
A segunda disposiccedilatildeo vetada pelo Presidente determinava que o interno teria
direito a pelo menos u m a visita semanal de religiosos da confissatildeo religiosa que professe
O Presidente justificou esse veto argumentando que a periodicidade das visitas deveria ser
determinada pela autoridade local levando e m consideraccedilatildeo as particularidades regionais
os usos e costumes Aleacutem disso o Presidente sustentou que era inadequado tratar hospitais
e prisotildees da mesma forma tendo e m vista as circunstacircncias especiacuteficas de cada instituiccedilatildeo
Havia tambeacutem a preocupaccedilatildeo de que o nuacutemero miacutenimo de visitas estabelecido por lei se
tornasse o nuacutemero maacuteximo permitido na praacutetica
33 Acomodaccedilatildeo em razatildeo de imperativo de consciecircncia
Nos termos do inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo ningueacutem seraacute privado
de direitos por motivo de crenccedila religiosa ou de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica salvo se as
invocar para eximir-se de obrigaccedilatildeo legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestaccedilatildeo
alternativa fixada e m lei Esse inciso entre outras coisas estaacute relacionado ao serviccedilo
militar obrigatoacuterio estabelecido pelo art 143 da Constituiccedilatildeo O paraacutegrafo Io deste artigo
dispotildee que agraves Forccedilas Armadas compete na forma da lei atribuir serviccedilo alternativo aos
que e m tempo de paz apoacutes alistados alegarem imperativo de consciecircncia entendendo-
se como tal o decorrente de crenccedila religiosa e de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica para se
eximirem de atividades de caraacuteter essencialmente militar 38
Esse eacute u m dos casos de acomodaccedilatildeo existentes no ordenamento juriacutedico
brasileiro relacionado agrave crenccedila religiosa ou agraves convicccedilotildees filosoacuteficas ou poliacuteticas Para
buscar proteccedilatildeo constitucional de mo d o a natildeo participar do serviccedilo militar compulsoacuterio
e m tempos de paz faz-se necessaacuterio provar comprometimento com ideacuteias natildeo beligerantes
a ser demonstrado por atitudes passadas que estejam e m consonacircncia com tal ideal
( M A R T I N S e B A S T O S 1989 56) Note-se que eacute possiacutevel ser excluiacutedo de atividades
essencialmente militares mas poderatildeo ser impostos serviccedilos alternativos que consistam em
57 Cf Mensagem de Veto n 960 de 14 de julho de 2000 Disponiacutevel em lthttpswwwplanaltogovbr
ccivil_03leisMensagem_Veto2000Mv0960-00htmgt Acesso em 13 fev 2009 i8 Esse dispositivo constitucional foi regulamentado pela Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 759
atividades administrativas de assistecircncia filantroacutepicas ou produtivas39 jaacute que a obrigaccedilatildeo
de servir ao Paiacutes natildeo eacute excluiacuteda ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 211) Cumpre notar que da
reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia natildeo pode resultar a privaccedilatildeo de direitos exceto
se a pessoa tambeacutem se recusar a prestar serviccedilo alternativo natildeo essencialmente militar
Nessas circunstacircncias a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo aplicaacutevel natildeo satildeo inteiramente claras
sobre as consequumlecircncias legais da recusa Alguns autores entendem que nesse caso a pessoa
que se recusou a prestar serviccedilos alternativos poderia ser privada de direitos (FERREIRA
FILHO 1994 34 e 81 e M A R T I N S e B A S T O S 1989 212)40
Constata-se aqui o que parece ser u m a grande incoerecircncia no ordenamento
juriacutedico brasileiro Enquanto e m tempos de paz as pessoas podem reivindicar imperativo
de consciecircncia para evitar serviccedilos essencialmente militares quando o Estado declara
guerra nenhum cidadatildeo poderaacute invocar crenccedilas religiosas ou convicccedilotildees filosoacuteficas ou
poliacuteticas com a finalidade de natildeo participar do serviccedilo militar41 C o m o resultado durante
o periacuteodo mais adequado e apropriado para expressar desacordo com guerras e ideais
beligerantes as pessoas natildeo tem direito de reivindicar imperativo de consciecircncia para natildeo
participar do serviccedilo militar na hipoacutetese de a Constituiccedilatildeo ser interpretada literalmente
Outro caso de acomodaccedilatildeo relacionado a crenccedilas religiosas que vale ser
mencionado eacute o uso terapecircutico do chaacute Ayahuasca em rituais religiosos A partir de
1985 o governo brasileiro comeccedilou a estudar os aspectos sociais e culturais referentes
ao uso de tal chaacute E m 23 de novembro de 2006 o Grupo Multidisciplinar de Trabalho do
Comitecirc Nacional Antidrogas do Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas42
emitiu seu relatoacuterio final reconhecendo que o uso do chaacute Ayahuasca deveria ser limitado
a rituais religiosos e m locais autorizados pela direccedilatildeo das entidades que fazem uso de
tal chaacute sendo proibido seu uso em conjunto com substacircncia ilegais Atualmente o uso
do chaacute Ayahuasca e m conformidade com as normas aplicaacuteveis eacute assegurado com base
na garantia constitucional da liberdade de consciecircncia e de crenccedila e do livre exerciacutecio de
cultos religiosos Ademais a legitimidade do uso religioso da Ayahuasca foi ratificada
como rica e ancestral manifestaccedilatildeo cultural que exatamente pela relevacircncia de seu valor
Os serviccedilos alternativos podem ser prestados e m organizaccedilotildees militares da ativa e e m oacutergatildeos de formaccedilatildeo de reservas das Forccedilas Armadas ou em oacutergatildeos subordinados aos Ministeacuterios Civis mediante convecircnios entre estes e os Ministeacuterios Militares Cf sectsect 2o e 3o do art 3o da Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991 N o entanto parece-nos que o serviccedilo militar obrigatoacuterio natildeo estaacute de acordo com os princiacutepios que norteiam a Constituiccedilatildeo no sentido de que serviccedilos alternativos natildeo deveriam ser impostos Contudo a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo Ives Granda Martins sustenta que e m tempos de guerra todos os cidadatildeos tecircm iguais deveres perante o Paiacutes (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 212) Discordamos totalmente deste posicionamento porque uma das formas mais eficazes de expressar desacordo com guerras e ideais beligerantes eacute durante o periacuteodo de guerra quando as pessoas que natildeo concordam poderiam recusar-se a prestar serviccedilos militares Contudo conforme mencionado acima a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo O Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas - S I S N A D foi instituiacutedo pela Lei n 11343 de 23 de agosto de 2006
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7(gt(l Maria Costa Neves Machado
histoacuterico antropoloacutegico e social eacute credora da proteccedilatildeo do Estado nos termos do art
2o caput da Lei n 1134306 e do art 215 sect1deg da C F 43 que dispotildee que [o] Estado
protegeraacute as manifestaccedilotildees das culturas populares indiacutegenas e afro-brasileiras e das de
outros grupos participantes do processo civilizatoacuterio nacional44
Eacute de se notar tambeacutem o recente caso no Estado de Satildeo Paulo de acomodaccedilatildeo
religiosa previsto na Lei Estadual n 13541 de 7 de maio de 2009 Tal lei proiacutebe o consumo
de cigarros cigarrilhas charutos cachimbos ou de qualquer outro produto fumiacutegeno
derivado ou natildeo do tabaco e m ambientes de uso coletivo puacuteblicos ou privados Contudo
nos termos do art 6o da referida lei essa natildeo se aplica aos locais de culto religioso em que
o uso de produto fumiacutegeno faccedila parte do ritual O u seja trata-se de mais u m caso em que
uma lei geral eacute excetuada para acomodar praacuteticas relacionadas agrave liberdade de religiatildeo e
de culto
Diferentemente das situaccedilotildees envolvendo serviccedilo militar obrigatoacuterio
o chaacute Ayahuasca e rituais religiosos que envolvem o uso de produtos fumiacutegenos foi
negada acomodaccedilatildeo quando da reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia no contexto
de frequumlecircncia escolar no Estado de Satildeo Paulo E m opiniatildeo escrita por Ada Pellegrini
Grinover publicada e m 25 de outubro de 2002 o Conselho Estadual de Educaccedilatildeo do
Estado de Satildeo Paulo entendeu que estudantes que fossem membros da Igreja Adventista
do Seacutetimo Dia estariam obrigados a frequumlentar as aulas durante o periacuteodo compreendido
entre 1800 horas de sexta-feira e 1800 de saacutebados de acordo com a Lei n 9394 de 20
de dezembro de 1996 conforme alterada embora tal frequumlecircncia seja contraacuteria agraves suas
praacuteticas religiosas u m a vez que natildeo haacute prestaccedilatildeo alternativa estabelecida em lei para tal
escusa de consciecircncia conforme fixado pelo inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo45
Adicionalmente aos casos de acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de
consciecircncia o inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo tambeacutem jaacute foi invocado para proteger
os direitos dos professores do Estado de Rio de Janeiro contra lei estadual que estabeleceu
que somente os professores credenciados pela autoridade religiosa competente estaratildeo
autorizados a ministrar as aulas de ensino religioso e m escolas puacuteblicas estaduais Para
compreender a Accedilatildeo Direta de Inconstitucionalidade - A D I N n 326804 que ainda natildeo
foi decidida pela Suprema Corte faz-se necessaacuterio analisar as disposiccedilotildees legais aplicaacuteveis
relacionadas ao ensino religioso no Brasil
Cf Relatoacuterio Final do Grupo Multidisciplinar de Trabalho disponiacutevel entre outros siacutetios em lthttp wwwsantodaimeorgcomunidadenoticiasrelfinal_conadhtmgt Acesso em 4 mar 2009 e lthttpwww ayahuascabrasilorgindexphpop=legisl01gt Acesso em 4 mar 2009 A acomodaccedilatildeo relacionada ao uso do chaacute Ayahuasca para fins religiosos nos Estados Unidos foi decidida pela Suprema Courte em Gonzales v O Centro Espirita Beneficente Uniatildeo do Vegetal 546 US 418 (2006) Cf Parecer C E E No 4422002 - C E S - Aprovado em 23102002 Disponiacutevel em lthttpwwwceesp spgovbrParecerespa_442_02htmgt Acesso em 4 mar 2009
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 761
34 Ensino religioso facultativo
Nos termos do art 210 da Constituiccedilatildeo [sjeratildeo fixados conteuacutedos miacutenimos
para o ensino fundamental de maneira a assegurar formaccedilatildeo baacutesica c o m u m e respeito aos
valores culturais e artiacutesticos nacionais e regionais O paraacutegrafo Io desse Artigo dispotildee
que [o] ensino religioso de matriacutecula facultativa constituiraacute disciplina dos horaacuterios
normais das escolas puacuteblicas de ensino fundamental
Nesse sentido o art 33 da Lei n 9394 de 22 de julho de 1997 conforme
alterada determina que o respeito agrave diversidade cultural religiosa do Brasil eacute assegurado
no ensino religioso sendo proibida qualquer forma de proselitismo O primeiro paraacutegrafo
desse Artigo dispotildee que [o]s sistemas de ensino regulamentaratildeo os procedimentos para a
definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso e estabeleceratildeo as normas para a habilitaccedilatildeo
e admissatildeo dos professores Ademais de acordo com o segundo paraacutegrafo do referido
Artigo [o]s sistemas de ensino ouviratildeo entidade civil constituiacuteda pelas diferentes
denominaccedilotildees religiosas para a definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso46
D e modo a observar a proibiccedilatildeo constitucional de estabelecimento de
religiatildeo o ensino religioso e m escolas natildeo pode consistir no ensino de u m a religiatildeo
determinada Nesse sentido a previsatildeo constitucional tem por finalidade dar oportunidade
a estudantes que estatildeo e m idade de formaccedilatildeo de personalidade de ter acesso a informaccedilotildees
de modo que no futuro eles possam livremente escolher adotar ou natildeo adotar u m a religiatildeo
(cf S C H E R K E R K E W I T Z 2002 60)47
Levando e m consideraccedilatildeo esses dispositivos a A D I N n 326804 foi
ajuizada pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo com o intuito de
declarar que a Lei n 3459 aprovada pela Assembleacuteia Legislativa do Estado do Rio de
Janeiro e m 14 de setembro de 2000 eacute inconstitucional u m a vez que estabeleceu que (i)
religiatildeo seria ensinada na forma confessional (ii) o conteuacutedo do ensino religioso seria
atribuiccedilatildeo de diversas autoridades religiosas e (iii) apenas professores credenciados pela
autoridade religiosa competente poderiam ensinar religiatildeo e m escolas oficiais
A Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo argumenta que o
ensino religioso na forma confessional viola o art 210 da Constituiccedilatildeo que estabelece que
os valores culturais seratildeo respeitados quando do estabelecimento dos conteuacutedos miacutenimos
para o ensino fundamental e o art 33 da Lei Federal n 939497 que determina que o
ensino religioso respeitaraacute a diversidade cultural do Brasil
Cumpre notar que nos termos do art 21 do Decreto-Lei n 4244 de 9 de abril de 1942 o programa e o regime didaacutetico do ensino religioso deveria ser determinado pela autoridade religiosa De acordo com Alexandre de Moraes para que a regulamentaccedilatildeo e a execuccedilatildeo desta disposiccedilatildeo natildeo sejam inconstitucionais faz-se necessaacuterio que toda e qualquer religiatildeo possa ser ensinada nas escolas puacuteblicas O autor entende que na praacutetica isso eacute absolutamente impossiacutevel (cf M O R A E S 2003 1984-1985)
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762 Maria Costa Neves Machado
Adicionalmente a confederaccedilatildeo sustenta que a disposiccedilatildeo de acordo
com a qual o conteuacutedo do ensino religioso eacute u m a atribuiccedilatildeo das diversas autoridades
religiosas contraria o art 33 da Lei Federal n 939497 que estabelece diferentes padrotildees
para a definiccedilatildeo do conteuacutedo do ensino religioso E m conformidade com tal lei federal
os sistemas de ensino devem ouvir entidades civis de diversas religiotildees para definir
o conteuacutedo do ensino religioso A violaccedilatildeo eacute demonstrada com base no fato de que o
conceito de autoridade religiosa - que implica u m a estrutura administrativa e hieraacuterquica
como aquelas presentes nas Igrejas Catoacutelicas Presbiterianas e Judaicas - natildeo eacute parte da
tradiccedilatildeo de algumas religiotildees que tem origem Evangeacutelica ou afro-brasileira
A A D I N ainda natildeo foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal De qualquer
forma os argumentos apresentados pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores em
Educaccedilatildeo - e pelos vaacuterios amicus curiae admitidos no processo - parecem ser coerentes
com a Constituiccedilatildeo Federal e aptos a derrubar a Lei Estadual n 3459
N o Estado de Satildeo Paulo o ensino religioso previsto no art 33 da Lei n
939497 foi regulamentado na Deliberaccedilatildeo do Conselho Estadual de Educaccedilatildeo - CEE
n 162001 com fundamento na Indicaccedilatildeo C E E n 07 aprovada e m 25 de julho de 2001
de acordo com a qual o ensino religioso deve ser enfocado na perspectiva constitucional
de promoccedilatildeo da cidadania e da dignidade especialmente na funccedilatildeo social da educaccedilatildeo
e m geral de modo que deve ser enfatizada a reflexatildeo sobre a cidadania e as praacuteticas a ela
pertinentes Assumindo que natildeo haacute conhecimento futuro e vida sem a competecircncia de
conviver com as diferenccedilas a Indicaccedilatildeo C E E n 072001 reconhece que satildeo bem-vindos
todos os projetos educacionais (aiacute se podendo incluir o ensino religioso) que visam direta
ou indiretamente o trabalho comunitaacuterio a conscientizaccedilatildeo da responsabilidade pessoal
e social e que estimulem e restaurem os valores humanos de compromisso moral e eacutetico
auxiliando a compreensatildeo do h o m e m e o autoconhecimento Nesse sentido de acordo com
referida indicaccedilatildeo o ensino religioso nas escolas deve antes de tudo fundamentar-se nos
princiacutepios da cidadania e do entendimento do outro Assim o C E E recomendou que o
ensino religioso fosse tratado como tema transversal por meio da implementaccedilatildeo de uma
proposta de abordagem filosoacutefica que permitisse a reflexatildeo sobre valores e princiacutepios eacuteticos e
o conhecimento da histoacuteria das religiotildees Tambeacutem no Estado de Satildeo Paulo a implementaccedilatildeo
do ensino religioso foi arduamente debatida e criticada especialmente em razatildeo da
problemaacutetica questatildeo do estabelecimento de religiatildeo vedado pela Constituiccedilatildeo de 198848
Vide entre outros GIUMBELLI Emerson Ensino religioso em escolas puacuteblicas no Brasil notas de pesquisa Debates do N E R (UFRGS) v 14 p 50-68 2009 CURY Carlos Roberto Jamil Ensino religioso na escola puacuteblica o retorno de uma polecircmica recorrente Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 27 p 183-213 setdez 2004 LUI Janayna de Alencar Entre crentes e pagatildeos ensino religioso em Satildeo Paulo Cadernos de Pesquisa v 37 n 131 p 333-349 maioago 2007 R A N Q U E T A T JUacuteNIOR Ceacutesar Do confessional ao plural uma anaacutelise sobre o novo modelo de ensino religioso nas escolas brasileiras Revista Diaacutelogo Educaccedilatildeo Curitiba v 8 n 23 p 289-305 janabr 2008
R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010
Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 763
Neste item a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil foi examinada
com a finalidade de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota u m princiacutepio de
toleracircncia ou de respeito As normas relacionadas agrave garantia da liberdade de consciecircncia
e de crenccedila bem como ao livre exerciacutecio de cultos religiosos agrave proteccedilatildeo dos locais de
adoraccedilatildeo agrave proibiccedilatildeo do estabelecimento de religiatildeo agrave garantia de assistecircncia religiosa
e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva agrave acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de
consciecircncia e ao ensino religioso facultativo todas foram analisadas de modo que fosse
possiacutevel concluir se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia ou
do respeito
D e acordo com tal anaacutelise o ordenamento juriacutedico brasileiro parece tratar a
religiatildeo e m conformidade com o princiacutepio do respeito Isso porque pessoas religiosas e natildeo
religiosas podem entrar no espaccedilo puacutebico e m iguais condiccedilotildees sendo que a faculdade de
buscar a finalidade uacuteltima da vida eacute respeitada pelo Estado Nesse sentido o ordenamento
juriacutedico brasileiro garante a liberdade de consciecircncia e de crenccedila o livre exerciacutecio de
cultos religiosos e a proteccedilatildeo dos locais de adoraccedilatildeo Adicionalmente enquanto de u m
lado nenhuma religiatildeo pode ser estabelecida pelo Estado pessoas religiosas podem
reivindicar imperativo de consciecircncia bem como receber assistecircncia religiosa e ensino
religioso se essa for a sua escolha
Isso demonstra que todos os indiviacuteduos de acordo com o ordenamento
juriacutedico brasileiro devem entrar no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais e que o Estado eacute
obrigado a fornecer condiccedilotildees para que pessoas religiosas e natildeo religiosas possam buscar
a finalidade uacuteltima da vida se essa for sua escolha respeitando e m todos os indiviacuteduos a
faculdade de realizar tal busca
4 Conclusatildeo
Inicialmente foi examinada neste artigo a diferenccedila entre o princiacutepio da
toleracircncia e o princiacutepio do respeito no que se refere ao tratamento legal de questotildees de
consciecircncia Posteriormente a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no ordenamento
juriacutedico brasileiro foi analisada com a finalidade de verificar qual desses dois princiacutepios eacute
adotado Finalmente conclui-se que o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio
do respeito pela faculdade dos indiviacuteduos de buscar pela finalidade uacuteltima da vida sendo o
Estado obrigado a garantir condiccedilotildees adequadas para as pessoas exercerem tal faculdade
de acordo com suas escolhas autocircnomas de modo que todos os indiviacuteduos possam entrar
no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais
Satildeo Paulo dezembro de 2010
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754 Maria Costa Neves Machado
31 Livre exerciacutecio de cultos religiosos e vedaccedilatildeo ao estabelecimento de religiatildeo
O inciso VI do art 5o da Constituiccedilatildeo Federal determina que eacute inviolaacutevel
a liberdade de consciecircncia e de crenccedila sendo assegurado o livre exerciacutecio dos cultos
religiosos e garantida na forma da lei a proteccedilatildeo aos locais de culto e a suas liturgias
Diferentemente do texto atual a Constituiccedilatildeo brasileira de 1967
expressamente limitava e m seu art 150 paraacutegrafo 5 o exerciacutecio da liberdade religiosa
aos cultos que natildeo contrariassem a ordem puacuteblica e os bons costumes D e acordo com
Celso Ribeiro Bastos embora a atual Constituiccedilatildeo omita o requisito de observacircncia da
ordem puacuteblica e dos bons costumes estaacute impliacutecito no ordenamento juriacutedico brasileiro
que os direitos devem ser exercidos de modo que natildeo prejudiquem os direitos de outras
pessoas e em consonacircncia com os valores eacuteticos e morais e m que se funda a sociedade
brasileira independentemente de quatildeo difiacutecil possa ser para os tribunais definirem quais
satildeo esses valores que estatildeo evoluindo constantemente (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989
52) E m sentido diverso do entendimento de Bastos Manuel Gonccedilalves Ferreira Filho
entende que em razatildeo da omissatildeo da Constituiccedilatildeo os cultos religiosos satildeo garantidos
inclusive contra eventuais limitaccedilotildees baseadas na ordem puacuteblica e nos bons costumes (cf
F E R R E I R A FILHO 1990 33) A interpretaccedilatildeo de Ferreira Filho parece mais adequada
uma vez que os legisladores constitucionais omitiram intencionalmente a exigecircncia da
observacircncia da ordem puacuteblica e dos bons costumes Dessa forma os tribunais brasileiros
natildeo podem limitar o exerciacutecio da liberdade religiosa invocando a ordem puacuteblica ou os
bons costumes
U m a questatildeo muito polecircmica sobre o exerciacutecio da liberdade de culto
e sua limitaccedilatildeo no Brasil eacute relacionada agrave caracterizaccedilatildeo do crime de curandeirismo
previsto no art 284 do Coacutedigo Penal30 Enquanto alguns autores por exemplo Magalhatildees
Noronha sustentam que uma praacutetica religiosa que pretenda curar sem tiacutetulo ou habilitaccedilatildeo
apropriada seja enquadrada como curandeirismo ( N O R O N H A 1968 107) outros
autores como Francisco de Assis Toledo argumentam que os rituais espiacuteritas e os rituais de
todas as outras religiotildees tais como o Catolicismo o Protestantismo ou Budismo embora
possam visar agrave cura ou agrave diminuiccedilatildeo do sofrimento de pessoas doentes nunca poderatildeo ser
considerados u m crime (cf T O L E D O 1986 100-101) Francisco de Assis Toledo parece
estar certo e m sua interpretaccedilatildeo do crime curandeirismo uma vez que ele leva a seacuterio a
Artigo 284 Exercer o curandeirismo
I - prescrevendo ministrando ou aplicando habitualmente qualquer substacircncia
II - usando gestos palavras ou qualquer outro meio
III - fazendo diagnoacutesticos
Pena - detenccedilatildeo de seis meses a dois anos
Paraacutegrafo uacutenico - Se o crime eacute praticado mediante remuneraccedilatildeo o agente fica tambeacutem sujeito agrave multa
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 755
garantia constitucional da liberdade de religiatildeo Atualmente o poder judiciaacuterio no Brasil
entende que os rituais espiacuteritas relacionados agrave cura de pessoas doentes natildeo podem ser
considerados curandeirismo sendo constitucionalmente protegidos como u m tipo de
culto31
Cumpre notar que durante o periacuteodo do Impeacuterio no Brasil havia uma
liberdade religiosa sem liberdade de culto somente o culto catoacutelico era reconhecido como
livre Outras religiotildees somente podiam celebrar seus cultos na esfera domeacutestica sendo
proibido todo o templo fora do lar para outras religiotildees (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989
50 e C R E T E L L A JUacuteNIOR 1992 252)
Essa abordagem inicial da liberdade religiosa no ordenamento juriacutedico
brasileiro pode ser explicada como consequumlecircncia de nosso passado colonial U m a das
justificaccedilotildees ideoloacutegicas subjacentes agrave colonizaccedilatildeo do Brasil por Portugal - e de outros
paiacuteses da Ameacuterica Latina pela Espanha - era relacionada agrave catequizaccedilatildeo dos povos
indiacutegenas C o m o resultado o catolicismo foi a religiatildeo oficial ateacute o fim do periacuteodo
imperial32
A esse respeito vale notar com Faacutebio Konder Comparato (2001 312) que
natildeo haacute autecircntica liberdade de crenccedila e de opiniatildeo num Estado que adota u m a religiatildeo
oficial As pressotildees de toda a sorte - poliacuteticas econocircmicas e profissionais - contra os natildeo
seguidores da religiatildeo de Estado tornam essa liberdade ilusoacuteria C o m efeito as religiotildees
indiacutegenas e africanas e seus valores foram negados durante grande parte da histoacuteria do
Brasil e ainda hoje haacute na sociedade brasileira preconceito contra tais religiotildees33
Exemplificativamente destaque-se que e m 1985 o Supremo Tribunal
Federal arquivou a Representaccedilatildeo n 959-PB que questionava u m a lei do Estado da
Paraiacuteba de 1966 de acordo com a qual os cultos africanos deveriam obter u m a licenccedila
preacutevia para iniciar suas atividades Tal licenccedila seria concedida se entre outras exigecircncias
o responsaacutevel pelos cultos pudesse provar sua idoneidade moral e perfeitas condiccedilotildees de
sauacutede mental conforme documentado e m relatoacuterio psiquiaacutetrico A accedilatildeo arquivada com
STF R H C 62240SP rei Min Francisco Rezek 2a Turma 13121984 DJ 02081985 p 12046 e STJ H C 1498RJ rei Min Luiz Vicente Cernicchiaro 6a Turma j 18121992 DJ 1 de 16081993 p 15994 Cf tambeacutem FERREIRA Pinto Comentaacuterios agrave constituiccedilatildeo brasileira Satildeo Paulo Saraiva 1989 p 71 C o m efeito Celso Lafer nos lembra que incumbia ao imperador antes de ser proclamado jurar manter a religiatildeo catoacutelica cabendo-lhe em contrapartida entre as suas atribuiccedilotildees nomear bispos e prover os benefiacutecios eclesiaacutesticos bem como conceder ou negar beneplaacutecitos a atos da Santa Feacute (cf Constituiccedilatildeo de 1824 art 5o 102 paraacutegrafos 2o e 14 103) (LAFER 2007) Note-se que a negaccedilatildeo dos valores africanos e de uma identidade africana no Brasil abrangendo a esfera religiosa tem suas origens na chegada dos escravos africanos desde o seacuteculo XVI A relaccedilatildeo entre os povos africanos e a sociedade colonial foi caracterizada pela conversatildeo compulsoacuteria dos escravos agrave religiatildeo de seus donos e pela perseguiccedilatildeo daqueles que insistissem na manutenccedilatildeo das praacuteticas ancestrais (DADESKY 2005 51-52)
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base no fato de que a lei e m questatildeo havia sido modificada e m 1977 tendo sido excluiacuteda
a exigecircncia da licenccedila preacutevia
A separaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja foi estabelecida no Brasil somente
durante a Repuacuteblica pelo Decreto n 119-A datado de 7 de janeiro de 1890 de autoria
de Rui Barbosa (cf L A F E R 2007) que proibiu a intervenccedilatildeo do governo federal e dos
estados e m questotildees religiosas e estabeleceu a liberdade de culto34 Desde entatildeo o Brasil
eacute u m estado laico A separaccedilatildeo entre Estado e Igreja na Constituiccedilatildeo de 1988 estaacute prevista
no art 19
Eacute vedado agrave Uniatildeo aos Estados ao Distrito Federal e aos Municiacutepios (i) estabelecer cultos religiosos ou igrejas subvencionaacute-los embaraccedilar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relaccedilotildees de dependecircncia ou alianccedila ressalvada na forma da lei a colaboraccedilatildeo de interesse puacuteblico ()
Consequentemente o Estado brasileiro eacute indiferente agraves vaacuterias igrejas que
podem ser livremente formadas como entidades legais O Estado deve ser absolutamente
neutro sendo proibida a discriminaccedilatildeo entre igrejas para beneficiaacute-las ou prejudicaacute-las
Tambeacutem natildeo pode impor nenhum ocircnus indevido agrave formaccedilatildeo de igrejas N a realidade haacute
mesmo u m incentivo constitucional para sua formaccedilatildeo que resulta da imunidade tributaacuteria
a que fazem jus ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 50-51)35
Observe-se que a colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico mencionada no Artigo
19 para natildeo infringir a proibiccedilatildeo de estabelecimento de religiatildeo pelo Estado natildeo pode
ocorrer em u m campo fundamentalmente religioso (cf F E R R E I R A FILHO 1990 144
C R E T E L L A JUacuteNIOR 1992 1179 e L A F E R 2007) N atildeo obstante essa disposiccedilatildeo tem
implicaccedilotildees muito complexas quando se trata de sua execuccedilatildeo como eacute possiacutevel estabelecer
a colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico entre o Estado e u m a determinada igreja sem favorecer
u m a religiatildeo sobre a outra36 Ademais essa disposiccedilatildeo levanta u m problema similar ao que
resulta da assistecircncia religiosa a pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva e do
ensino religioso facultativo e m escolas conforme detalhado abaixo eacute possiacutevel na praacutetica
ensinar religiatildeo prestar assistecircncia religiosa e estabelecer esquemas de colaboraccedilatildeo
Esse decreto nunca foi expressamente revogado Cf lthttpslegislacaoplanaltogovbrLEGISLA LegislacaonsffraWebOpenFrameSetampFrame=frmWeb2ampSrc=2FLEGISLA2FLegislacaonsf2Fvi wTodos2Fbea39c8e0e484811032569fa005afab43FOpenDocument26Highlight3Dl2C26Auto Framedgt Acesso em 3 abr 2009
Cumpre notar que a Lei n 8245 datada de 18 de outubro de 1991 conforme alterada estabelece que o contrato de locaccedilatildeo de imoacuteveis utilizados por entidades religiosas devidamente registradas bem como por hospitais unidades sanitaacuterias oficiais asilos estabelecimentos de sauacutede e de ensino autorizados e fiscalizados pelo Poder Puacuteblico somente poderaacute ser rescindido em determinadas situaccedilotildees Para uma criacutetica sobre a exceccedilatildeo relacionada agrave colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico vide C R E T E L L A JUacuteNIOR 19921180
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no interesse puacuteblico sem favorecer u m a determinada religiatildeo e sem violar o art 19 da
Constituiccedilatildeo
32 Garantia de assistecircncia religiosa em estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva
A Constituiccedilatildeo brasileira garante a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa a
pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva abrangendo presos militares e
pacientes hospitalizados (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 54) D e acordo com o inciso
VII do art 5o da Constituiccedilatildeo eacute assegurada nos termos da lei a prestaccedilatildeo de assistecircncia
religiosa nas entidades civis e militares de internaccedilatildeo coletiva O caraacuteter laico do Estado
brasileiro natildeo eacute afetado por esta disposiccedilatildeo u m a vez que o Estado natildeo eacute obrigado a
prestar assistecircncia religiosa e as entidades religiosas eacute que iratildeo prestaacute-la (cf M A R T I N S e
B A S T O S 1989 51 e 54 e F E R R E I R A FILHO 1990 34)
Neste sentido a Lei n 7210 de 11 de julho de 1984 que trata da execuccedilatildeo
penal estabelece e m seu art 10 que o Estado deve prestar assistecircncia aos presos e internados
incluindo os egressos objetivando prevenir o crime e orientar o retorno agrave convivecircncia e m
sociedade Tal assistecircncia consistiraacute de acordo com o art 11 e m assistecircncia material
agrave sauacutede juriacutedica educacional social e religiosa D e fato o art 41 estabelece que tais
assistecircncias satildeo direitos dos presos
D e acordo com o art 24 a assistecircncia religiosa com liberdade de culto
seraacute prestada aos presos e aos internados permitindo-se-lhes a participaccedilatildeo nos serviccedilos
organizados no estabelecimento penal bem como a posse de livros de instruccedilatildeo religiosa
O primeiro paraacutegrafo deste artigo estabelece que haveraacute local apropriado para os cultos
religiosos no estabelecimento penal o segundo paraacutegrafo dispotildee que nenhum preso ou
internado poderaacute ser obrigado a participar de atividade religiosa
Adicionalmente a Lei n 9982 de 14 de julho de 2000 que trata da prestaccedilatildeo
de assistecircncia religiosa e m estabelecimentos prisionais civis e militares e e m entidades
hospitalares puacuteblicas e privadas garante e m seu art Io o acesso aos religiosos de todas
as confissotildees aos hospitais da rede puacuteblica ou privada bem como aos estabelecimentos
prisionais civis ou militares para dar atendimento religioso aos internados desde que
em c o m u m acordo com estes ou com seus familiares no caso de doentes que jaacute natildeo mais
estejam no gozo de suas faculdades mentais Vale notar que nos termos do art 2o os
religiosos chamados a prestar assistecircncia nas entidades definidas no art Io deveratildeo e m
suas atividades acatar as determinaccedilotildees legais e normas internas de cada instituiccedilatildeo
hospitalar ou penal a fim de natildeo pocircr e m risco as condiccedilotildees do paciente ou a seguranccedila do
ambiente hospitalar ou prisional
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Duas disposiccedilotildees dessa lei foram vetadas pelo Presidente37 A primeira
disposiccedilatildeo estabelecia que a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa natildeo seria permitida se de
acordo com o hospital ou a prisatildeo houvesse risco de vida ou sauacutede para o internado ou
para o religioso O Presidente justificou esse veto argumentando que a transferecircncia do
processo decisoacuterio relativo agrave prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa aos hospitais ou prisotildees
excluindo-se o paciente ou preso bem como suas famiacutelias era contraacuterio aos incisos VI
e VII do art 5o da Constituiccedilatildeo Ademais o Presidente sustentou que a precauccedilatildeo que
motivou o dispositivo vetado jaacute estaacute assegurada pelo art 2 o da lei e m questatildeo
A segunda disposiccedilatildeo vetada pelo Presidente determinava que o interno teria
direito a pelo menos u m a visita semanal de religiosos da confissatildeo religiosa que professe
O Presidente justificou esse veto argumentando que a periodicidade das visitas deveria ser
determinada pela autoridade local levando e m consideraccedilatildeo as particularidades regionais
os usos e costumes Aleacutem disso o Presidente sustentou que era inadequado tratar hospitais
e prisotildees da mesma forma tendo e m vista as circunstacircncias especiacuteficas de cada instituiccedilatildeo
Havia tambeacutem a preocupaccedilatildeo de que o nuacutemero miacutenimo de visitas estabelecido por lei se
tornasse o nuacutemero maacuteximo permitido na praacutetica
33 Acomodaccedilatildeo em razatildeo de imperativo de consciecircncia
Nos termos do inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo ningueacutem seraacute privado
de direitos por motivo de crenccedila religiosa ou de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica salvo se as
invocar para eximir-se de obrigaccedilatildeo legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestaccedilatildeo
alternativa fixada e m lei Esse inciso entre outras coisas estaacute relacionado ao serviccedilo
militar obrigatoacuterio estabelecido pelo art 143 da Constituiccedilatildeo O paraacutegrafo Io deste artigo
dispotildee que agraves Forccedilas Armadas compete na forma da lei atribuir serviccedilo alternativo aos
que e m tempo de paz apoacutes alistados alegarem imperativo de consciecircncia entendendo-
se como tal o decorrente de crenccedila religiosa e de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica para se
eximirem de atividades de caraacuteter essencialmente militar 38
Esse eacute u m dos casos de acomodaccedilatildeo existentes no ordenamento juriacutedico
brasileiro relacionado agrave crenccedila religiosa ou agraves convicccedilotildees filosoacuteficas ou poliacuteticas Para
buscar proteccedilatildeo constitucional de mo d o a natildeo participar do serviccedilo militar compulsoacuterio
e m tempos de paz faz-se necessaacuterio provar comprometimento com ideacuteias natildeo beligerantes
a ser demonstrado por atitudes passadas que estejam e m consonacircncia com tal ideal
( M A R T I N S e B A S T O S 1989 56) Note-se que eacute possiacutevel ser excluiacutedo de atividades
essencialmente militares mas poderatildeo ser impostos serviccedilos alternativos que consistam em
57 Cf Mensagem de Veto n 960 de 14 de julho de 2000 Disponiacutevel em lthttpswwwplanaltogovbr
ccivil_03leisMensagem_Veto2000Mv0960-00htmgt Acesso em 13 fev 2009 i8 Esse dispositivo constitucional foi regulamentado pela Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 759
atividades administrativas de assistecircncia filantroacutepicas ou produtivas39 jaacute que a obrigaccedilatildeo
de servir ao Paiacutes natildeo eacute excluiacuteda ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 211) Cumpre notar que da
reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia natildeo pode resultar a privaccedilatildeo de direitos exceto
se a pessoa tambeacutem se recusar a prestar serviccedilo alternativo natildeo essencialmente militar
Nessas circunstacircncias a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo aplicaacutevel natildeo satildeo inteiramente claras
sobre as consequumlecircncias legais da recusa Alguns autores entendem que nesse caso a pessoa
que se recusou a prestar serviccedilos alternativos poderia ser privada de direitos (FERREIRA
FILHO 1994 34 e 81 e M A R T I N S e B A S T O S 1989 212)40
Constata-se aqui o que parece ser u m a grande incoerecircncia no ordenamento
juriacutedico brasileiro Enquanto e m tempos de paz as pessoas podem reivindicar imperativo
de consciecircncia para evitar serviccedilos essencialmente militares quando o Estado declara
guerra nenhum cidadatildeo poderaacute invocar crenccedilas religiosas ou convicccedilotildees filosoacuteficas ou
poliacuteticas com a finalidade de natildeo participar do serviccedilo militar41 C o m o resultado durante
o periacuteodo mais adequado e apropriado para expressar desacordo com guerras e ideais
beligerantes as pessoas natildeo tem direito de reivindicar imperativo de consciecircncia para natildeo
participar do serviccedilo militar na hipoacutetese de a Constituiccedilatildeo ser interpretada literalmente
Outro caso de acomodaccedilatildeo relacionado a crenccedilas religiosas que vale ser
mencionado eacute o uso terapecircutico do chaacute Ayahuasca em rituais religiosos A partir de
1985 o governo brasileiro comeccedilou a estudar os aspectos sociais e culturais referentes
ao uso de tal chaacute E m 23 de novembro de 2006 o Grupo Multidisciplinar de Trabalho do
Comitecirc Nacional Antidrogas do Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas42
emitiu seu relatoacuterio final reconhecendo que o uso do chaacute Ayahuasca deveria ser limitado
a rituais religiosos e m locais autorizados pela direccedilatildeo das entidades que fazem uso de
tal chaacute sendo proibido seu uso em conjunto com substacircncia ilegais Atualmente o uso
do chaacute Ayahuasca e m conformidade com as normas aplicaacuteveis eacute assegurado com base
na garantia constitucional da liberdade de consciecircncia e de crenccedila e do livre exerciacutecio de
cultos religiosos Ademais a legitimidade do uso religioso da Ayahuasca foi ratificada
como rica e ancestral manifestaccedilatildeo cultural que exatamente pela relevacircncia de seu valor
Os serviccedilos alternativos podem ser prestados e m organizaccedilotildees militares da ativa e e m oacutergatildeos de formaccedilatildeo de reservas das Forccedilas Armadas ou em oacutergatildeos subordinados aos Ministeacuterios Civis mediante convecircnios entre estes e os Ministeacuterios Militares Cf sectsect 2o e 3o do art 3o da Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991 N o entanto parece-nos que o serviccedilo militar obrigatoacuterio natildeo estaacute de acordo com os princiacutepios que norteiam a Constituiccedilatildeo no sentido de que serviccedilos alternativos natildeo deveriam ser impostos Contudo a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo Ives Granda Martins sustenta que e m tempos de guerra todos os cidadatildeos tecircm iguais deveres perante o Paiacutes (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 212) Discordamos totalmente deste posicionamento porque uma das formas mais eficazes de expressar desacordo com guerras e ideais beligerantes eacute durante o periacuteodo de guerra quando as pessoas que natildeo concordam poderiam recusar-se a prestar serviccedilos militares Contudo conforme mencionado acima a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo O Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas - S I S N A D foi instituiacutedo pela Lei n 11343 de 23 de agosto de 2006
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7(gt(l Maria Costa Neves Machado
histoacuterico antropoloacutegico e social eacute credora da proteccedilatildeo do Estado nos termos do art
2o caput da Lei n 1134306 e do art 215 sect1deg da C F 43 que dispotildee que [o] Estado
protegeraacute as manifestaccedilotildees das culturas populares indiacutegenas e afro-brasileiras e das de
outros grupos participantes do processo civilizatoacuterio nacional44
Eacute de se notar tambeacutem o recente caso no Estado de Satildeo Paulo de acomodaccedilatildeo
religiosa previsto na Lei Estadual n 13541 de 7 de maio de 2009 Tal lei proiacutebe o consumo
de cigarros cigarrilhas charutos cachimbos ou de qualquer outro produto fumiacutegeno
derivado ou natildeo do tabaco e m ambientes de uso coletivo puacuteblicos ou privados Contudo
nos termos do art 6o da referida lei essa natildeo se aplica aos locais de culto religioso em que
o uso de produto fumiacutegeno faccedila parte do ritual O u seja trata-se de mais u m caso em que
uma lei geral eacute excetuada para acomodar praacuteticas relacionadas agrave liberdade de religiatildeo e
de culto
Diferentemente das situaccedilotildees envolvendo serviccedilo militar obrigatoacuterio
o chaacute Ayahuasca e rituais religiosos que envolvem o uso de produtos fumiacutegenos foi
negada acomodaccedilatildeo quando da reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia no contexto
de frequumlecircncia escolar no Estado de Satildeo Paulo E m opiniatildeo escrita por Ada Pellegrini
Grinover publicada e m 25 de outubro de 2002 o Conselho Estadual de Educaccedilatildeo do
Estado de Satildeo Paulo entendeu que estudantes que fossem membros da Igreja Adventista
do Seacutetimo Dia estariam obrigados a frequumlentar as aulas durante o periacuteodo compreendido
entre 1800 horas de sexta-feira e 1800 de saacutebados de acordo com a Lei n 9394 de 20
de dezembro de 1996 conforme alterada embora tal frequumlecircncia seja contraacuteria agraves suas
praacuteticas religiosas u m a vez que natildeo haacute prestaccedilatildeo alternativa estabelecida em lei para tal
escusa de consciecircncia conforme fixado pelo inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo45
Adicionalmente aos casos de acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de
consciecircncia o inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo tambeacutem jaacute foi invocado para proteger
os direitos dos professores do Estado de Rio de Janeiro contra lei estadual que estabeleceu
que somente os professores credenciados pela autoridade religiosa competente estaratildeo
autorizados a ministrar as aulas de ensino religioso e m escolas puacuteblicas estaduais Para
compreender a Accedilatildeo Direta de Inconstitucionalidade - A D I N n 326804 que ainda natildeo
foi decidida pela Suprema Corte faz-se necessaacuterio analisar as disposiccedilotildees legais aplicaacuteveis
relacionadas ao ensino religioso no Brasil
Cf Relatoacuterio Final do Grupo Multidisciplinar de Trabalho disponiacutevel entre outros siacutetios em lthttp wwwsantodaimeorgcomunidadenoticiasrelfinal_conadhtmgt Acesso em 4 mar 2009 e lthttpwww ayahuascabrasilorgindexphpop=legisl01gt Acesso em 4 mar 2009 A acomodaccedilatildeo relacionada ao uso do chaacute Ayahuasca para fins religiosos nos Estados Unidos foi decidida pela Suprema Courte em Gonzales v O Centro Espirita Beneficente Uniatildeo do Vegetal 546 US 418 (2006) Cf Parecer C E E No 4422002 - C E S - Aprovado em 23102002 Disponiacutevel em lthttpwwwceesp spgovbrParecerespa_442_02htmgt Acesso em 4 mar 2009
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 761
34 Ensino religioso facultativo
Nos termos do art 210 da Constituiccedilatildeo [sjeratildeo fixados conteuacutedos miacutenimos
para o ensino fundamental de maneira a assegurar formaccedilatildeo baacutesica c o m u m e respeito aos
valores culturais e artiacutesticos nacionais e regionais O paraacutegrafo Io desse Artigo dispotildee
que [o] ensino religioso de matriacutecula facultativa constituiraacute disciplina dos horaacuterios
normais das escolas puacuteblicas de ensino fundamental
Nesse sentido o art 33 da Lei n 9394 de 22 de julho de 1997 conforme
alterada determina que o respeito agrave diversidade cultural religiosa do Brasil eacute assegurado
no ensino religioso sendo proibida qualquer forma de proselitismo O primeiro paraacutegrafo
desse Artigo dispotildee que [o]s sistemas de ensino regulamentaratildeo os procedimentos para a
definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso e estabeleceratildeo as normas para a habilitaccedilatildeo
e admissatildeo dos professores Ademais de acordo com o segundo paraacutegrafo do referido
Artigo [o]s sistemas de ensino ouviratildeo entidade civil constituiacuteda pelas diferentes
denominaccedilotildees religiosas para a definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso46
D e modo a observar a proibiccedilatildeo constitucional de estabelecimento de
religiatildeo o ensino religioso e m escolas natildeo pode consistir no ensino de u m a religiatildeo
determinada Nesse sentido a previsatildeo constitucional tem por finalidade dar oportunidade
a estudantes que estatildeo e m idade de formaccedilatildeo de personalidade de ter acesso a informaccedilotildees
de modo que no futuro eles possam livremente escolher adotar ou natildeo adotar u m a religiatildeo
(cf S C H E R K E R K E W I T Z 2002 60)47
Levando e m consideraccedilatildeo esses dispositivos a A D I N n 326804 foi
ajuizada pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo com o intuito de
declarar que a Lei n 3459 aprovada pela Assembleacuteia Legislativa do Estado do Rio de
Janeiro e m 14 de setembro de 2000 eacute inconstitucional u m a vez que estabeleceu que (i)
religiatildeo seria ensinada na forma confessional (ii) o conteuacutedo do ensino religioso seria
atribuiccedilatildeo de diversas autoridades religiosas e (iii) apenas professores credenciados pela
autoridade religiosa competente poderiam ensinar religiatildeo e m escolas oficiais
A Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo argumenta que o
ensino religioso na forma confessional viola o art 210 da Constituiccedilatildeo que estabelece que
os valores culturais seratildeo respeitados quando do estabelecimento dos conteuacutedos miacutenimos
para o ensino fundamental e o art 33 da Lei Federal n 939497 que determina que o
ensino religioso respeitaraacute a diversidade cultural do Brasil
Cumpre notar que nos termos do art 21 do Decreto-Lei n 4244 de 9 de abril de 1942 o programa e o regime didaacutetico do ensino religioso deveria ser determinado pela autoridade religiosa De acordo com Alexandre de Moraes para que a regulamentaccedilatildeo e a execuccedilatildeo desta disposiccedilatildeo natildeo sejam inconstitucionais faz-se necessaacuterio que toda e qualquer religiatildeo possa ser ensinada nas escolas puacuteblicas O autor entende que na praacutetica isso eacute absolutamente impossiacutevel (cf M O R A E S 2003 1984-1985)
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762 Maria Costa Neves Machado
Adicionalmente a confederaccedilatildeo sustenta que a disposiccedilatildeo de acordo
com a qual o conteuacutedo do ensino religioso eacute u m a atribuiccedilatildeo das diversas autoridades
religiosas contraria o art 33 da Lei Federal n 939497 que estabelece diferentes padrotildees
para a definiccedilatildeo do conteuacutedo do ensino religioso E m conformidade com tal lei federal
os sistemas de ensino devem ouvir entidades civis de diversas religiotildees para definir
o conteuacutedo do ensino religioso A violaccedilatildeo eacute demonstrada com base no fato de que o
conceito de autoridade religiosa - que implica u m a estrutura administrativa e hieraacuterquica
como aquelas presentes nas Igrejas Catoacutelicas Presbiterianas e Judaicas - natildeo eacute parte da
tradiccedilatildeo de algumas religiotildees que tem origem Evangeacutelica ou afro-brasileira
A A D I N ainda natildeo foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal De qualquer
forma os argumentos apresentados pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores em
Educaccedilatildeo - e pelos vaacuterios amicus curiae admitidos no processo - parecem ser coerentes
com a Constituiccedilatildeo Federal e aptos a derrubar a Lei Estadual n 3459
N o Estado de Satildeo Paulo o ensino religioso previsto no art 33 da Lei n
939497 foi regulamentado na Deliberaccedilatildeo do Conselho Estadual de Educaccedilatildeo - CEE
n 162001 com fundamento na Indicaccedilatildeo C E E n 07 aprovada e m 25 de julho de 2001
de acordo com a qual o ensino religioso deve ser enfocado na perspectiva constitucional
de promoccedilatildeo da cidadania e da dignidade especialmente na funccedilatildeo social da educaccedilatildeo
e m geral de modo que deve ser enfatizada a reflexatildeo sobre a cidadania e as praacuteticas a ela
pertinentes Assumindo que natildeo haacute conhecimento futuro e vida sem a competecircncia de
conviver com as diferenccedilas a Indicaccedilatildeo C E E n 072001 reconhece que satildeo bem-vindos
todos os projetos educacionais (aiacute se podendo incluir o ensino religioso) que visam direta
ou indiretamente o trabalho comunitaacuterio a conscientizaccedilatildeo da responsabilidade pessoal
e social e que estimulem e restaurem os valores humanos de compromisso moral e eacutetico
auxiliando a compreensatildeo do h o m e m e o autoconhecimento Nesse sentido de acordo com
referida indicaccedilatildeo o ensino religioso nas escolas deve antes de tudo fundamentar-se nos
princiacutepios da cidadania e do entendimento do outro Assim o C E E recomendou que o
ensino religioso fosse tratado como tema transversal por meio da implementaccedilatildeo de uma
proposta de abordagem filosoacutefica que permitisse a reflexatildeo sobre valores e princiacutepios eacuteticos e
o conhecimento da histoacuteria das religiotildees Tambeacutem no Estado de Satildeo Paulo a implementaccedilatildeo
do ensino religioso foi arduamente debatida e criticada especialmente em razatildeo da
problemaacutetica questatildeo do estabelecimento de religiatildeo vedado pela Constituiccedilatildeo de 198848
Vide entre outros GIUMBELLI Emerson Ensino religioso em escolas puacuteblicas no Brasil notas de pesquisa Debates do N E R (UFRGS) v 14 p 50-68 2009 CURY Carlos Roberto Jamil Ensino religioso na escola puacuteblica o retorno de uma polecircmica recorrente Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 27 p 183-213 setdez 2004 LUI Janayna de Alencar Entre crentes e pagatildeos ensino religioso em Satildeo Paulo Cadernos de Pesquisa v 37 n 131 p 333-349 maioago 2007 R A N Q U E T A T JUacuteNIOR Ceacutesar Do confessional ao plural uma anaacutelise sobre o novo modelo de ensino religioso nas escolas brasileiras Revista Diaacutelogo Educaccedilatildeo Curitiba v 8 n 23 p 289-305 janabr 2008
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 763
Neste item a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil foi examinada
com a finalidade de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota u m princiacutepio de
toleracircncia ou de respeito As normas relacionadas agrave garantia da liberdade de consciecircncia
e de crenccedila bem como ao livre exerciacutecio de cultos religiosos agrave proteccedilatildeo dos locais de
adoraccedilatildeo agrave proibiccedilatildeo do estabelecimento de religiatildeo agrave garantia de assistecircncia religiosa
e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva agrave acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de
consciecircncia e ao ensino religioso facultativo todas foram analisadas de modo que fosse
possiacutevel concluir se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia ou
do respeito
D e acordo com tal anaacutelise o ordenamento juriacutedico brasileiro parece tratar a
religiatildeo e m conformidade com o princiacutepio do respeito Isso porque pessoas religiosas e natildeo
religiosas podem entrar no espaccedilo puacutebico e m iguais condiccedilotildees sendo que a faculdade de
buscar a finalidade uacuteltima da vida eacute respeitada pelo Estado Nesse sentido o ordenamento
juriacutedico brasileiro garante a liberdade de consciecircncia e de crenccedila o livre exerciacutecio de
cultos religiosos e a proteccedilatildeo dos locais de adoraccedilatildeo Adicionalmente enquanto de u m
lado nenhuma religiatildeo pode ser estabelecida pelo Estado pessoas religiosas podem
reivindicar imperativo de consciecircncia bem como receber assistecircncia religiosa e ensino
religioso se essa for a sua escolha
Isso demonstra que todos os indiviacuteduos de acordo com o ordenamento
juriacutedico brasileiro devem entrar no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais e que o Estado eacute
obrigado a fornecer condiccedilotildees para que pessoas religiosas e natildeo religiosas possam buscar
a finalidade uacuteltima da vida se essa for sua escolha respeitando e m todos os indiviacuteduos a
faculdade de realizar tal busca
4 Conclusatildeo
Inicialmente foi examinada neste artigo a diferenccedila entre o princiacutepio da
toleracircncia e o princiacutepio do respeito no que se refere ao tratamento legal de questotildees de
consciecircncia Posteriormente a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no ordenamento
juriacutedico brasileiro foi analisada com a finalidade de verificar qual desses dois princiacutepios eacute
adotado Finalmente conclui-se que o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio
do respeito pela faculdade dos indiviacuteduos de buscar pela finalidade uacuteltima da vida sendo o
Estado obrigado a garantir condiccedilotildees adequadas para as pessoas exercerem tal faculdade
de acordo com suas escolhas autocircnomas de modo que todos os indiviacuteduos possam entrar
no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais
Satildeo Paulo dezembro de 2010
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IM Maria Costa Neves Machado
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 755
garantia constitucional da liberdade de religiatildeo Atualmente o poder judiciaacuterio no Brasil
entende que os rituais espiacuteritas relacionados agrave cura de pessoas doentes natildeo podem ser
considerados curandeirismo sendo constitucionalmente protegidos como u m tipo de
culto31
Cumpre notar que durante o periacuteodo do Impeacuterio no Brasil havia uma
liberdade religiosa sem liberdade de culto somente o culto catoacutelico era reconhecido como
livre Outras religiotildees somente podiam celebrar seus cultos na esfera domeacutestica sendo
proibido todo o templo fora do lar para outras religiotildees (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989
50 e C R E T E L L A JUacuteNIOR 1992 252)
Essa abordagem inicial da liberdade religiosa no ordenamento juriacutedico
brasileiro pode ser explicada como consequumlecircncia de nosso passado colonial U m a das
justificaccedilotildees ideoloacutegicas subjacentes agrave colonizaccedilatildeo do Brasil por Portugal - e de outros
paiacuteses da Ameacuterica Latina pela Espanha - era relacionada agrave catequizaccedilatildeo dos povos
indiacutegenas C o m o resultado o catolicismo foi a religiatildeo oficial ateacute o fim do periacuteodo
imperial32
A esse respeito vale notar com Faacutebio Konder Comparato (2001 312) que
natildeo haacute autecircntica liberdade de crenccedila e de opiniatildeo num Estado que adota u m a religiatildeo
oficial As pressotildees de toda a sorte - poliacuteticas econocircmicas e profissionais - contra os natildeo
seguidores da religiatildeo de Estado tornam essa liberdade ilusoacuteria C o m efeito as religiotildees
indiacutegenas e africanas e seus valores foram negados durante grande parte da histoacuteria do
Brasil e ainda hoje haacute na sociedade brasileira preconceito contra tais religiotildees33
Exemplificativamente destaque-se que e m 1985 o Supremo Tribunal
Federal arquivou a Representaccedilatildeo n 959-PB que questionava u m a lei do Estado da
Paraiacuteba de 1966 de acordo com a qual os cultos africanos deveriam obter u m a licenccedila
preacutevia para iniciar suas atividades Tal licenccedila seria concedida se entre outras exigecircncias
o responsaacutevel pelos cultos pudesse provar sua idoneidade moral e perfeitas condiccedilotildees de
sauacutede mental conforme documentado e m relatoacuterio psiquiaacutetrico A accedilatildeo arquivada com
STF R H C 62240SP rei Min Francisco Rezek 2a Turma 13121984 DJ 02081985 p 12046 e STJ H C 1498RJ rei Min Luiz Vicente Cernicchiaro 6a Turma j 18121992 DJ 1 de 16081993 p 15994 Cf tambeacutem FERREIRA Pinto Comentaacuterios agrave constituiccedilatildeo brasileira Satildeo Paulo Saraiva 1989 p 71 C o m efeito Celso Lafer nos lembra que incumbia ao imperador antes de ser proclamado jurar manter a religiatildeo catoacutelica cabendo-lhe em contrapartida entre as suas atribuiccedilotildees nomear bispos e prover os benefiacutecios eclesiaacutesticos bem como conceder ou negar beneplaacutecitos a atos da Santa Feacute (cf Constituiccedilatildeo de 1824 art 5o 102 paraacutegrafos 2o e 14 103) (LAFER 2007) Note-se que a negaccedilatildeo dos valores africanos e de uma identidade africana no Brasil abrangendo a esfera religiosa tem suas origens na chegada dos escravos africanos desde o seacuteculo XVI A relaccedilatildeo entre os povos africanos e a sociedade colonial foi caracterizada pela conversatildeo compulsoacuteria dos escravos agrave religiatildeo de seus donos e pela perseguiccedilatildeo daqueles que insistissem na manutenccedilatildeo das praacuteticas ancestrais (DADESKY 2005 51-52)
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756 Maria Costa Neves Machado
base no fato de que a lei e m questatildeo havia sido modificada e m 1977 tendo sido excluiacuteda
a exigecircncia da licenccedila preacutevia
A separaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja foi estabelecida no Brasil somente
durante a Repuacuteblica pelo Decreto n 119-A datado de 7 de janeiro de 1890 de autoria
de Rui Barbosa (cf L A F E R 2007) que proibiu a intervenccedilatildeo do governo federal e dos
estados e m questotildees religiosas e estabeleceu a liberdade de culto34 Desde entatildeo o Brasil
eacute u m estado laico A separaccedilatildeo entre Estado e Igreja na Constituiccedilatildeo de 1988 estaacute prevista
no art 19
Eacute vedado agrave Uniatildeo aos Estados ao Distrito Federal e aos Municiacutepios (i) estabelecer cultos religiosos ou igrejas subvencionaacute-los embaraccedilar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relaccedilotildees de dependecircncia ou alianccedila ressalvada na forma da lei a colaboraccedilatildeo de interesse puacuteblico ()
Consequentemente o Estado brasileiro eacute indiferente agraves vaacuterias igrejas que
podem ser livremente formadas como entidades legais O Estado deve ser absolutamente
neutro sendo proibida a discriminaccedilatildeo entre igrejas para beneficiaacute-las ou prejudicaacute-las
Tambeacutem natildeo pode impor nenhum ocircnus indevido agrave formaccedilatildeo de igrejas N a realidade haacute
mesmo u m incentivo constitucional para sua formaccedilatildeo que resulta da imunidade tributaacuteria
a que fazem jus ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 50-51)35
Observe-se que a colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico mencionada no Artigo
19 para natildeo infringir a proibiccedilatildeo de estabelecimento de religiatildeo pelo Estado natildeo pode
ocorrer em u m campo fundamentalmente religioso (cf F E R R E I R A FILHO 1990 144
C R E T E L L A JUacuteNIOR 1992 1179 e L A F E R 2007) N atildeo obstante essa disposiccedilatildeo tem
implicaccedilotildees muito complexas quando se trata de sua execuccedilatildeo como eacute possiacutevel estabelecer
a colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico entre o Estado e u m a determinada igreja sem favorecer
u m a religiatildeo sobre a outra36 Ademais essa disposiccedilatildeo levanta u m problema similar ao que
resulta da assistecircncia religiosa a pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva e do
ensino religioso facultativo e m escolas conforme detalhado abaixo eacute possiacutevel na praacutetica
ensinar religiatildeo prestar assistecircncia religiosa e estabelecer esquemas de colaboraccedilatildeo
Esse decreto nunca foi expressamente revogado Cf lthttpslegislacaoplanaltogovbrLEGISLA LegislacaonsffraWebOpenFrameSetampFrame=frmWeb2ampSrc=2FLEGISLA2FLegislacaonsf2Fvi wTodos2Fbea39c8e0e484811032569fa005afab43FOpenDocument26Highlight3Dl2C26Auto Framedgt Acesso em 3 abr 2009
Cumpre notar que a Lei n 8245 datada de 18 de outubro de 1991 conforme alterada estabelece que o contrato de locaccedilatildeo de imoacuteveis utilizados por entidades religiosas devidamente registradas bem como por hospitais unidades sanitaacuterias oficiais asilos estabelecimentos de sauacutede e de ensino autorizados e fiscalizados pelo Poder Puacuteblico somente poderaacute ser rescindido em determinadas situaccedilotildees Para uma criacutetica sobre a exceccedilatildeo relacionada agrave colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico vide C R E T E L L A JUacuteNIOR 19921180
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 757
no interesse puacuteblico sem favorecer u m a determinada religiatildeo e sem violar o art 19 da
Constituiccedilatildeo
32 Garantia de assistecircncia religiosa em estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva
A Constituiccedilatildeo brasileira garante a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa a
pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva abrangendo presos militares e
pacientes hospitalizados (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 54) D e acordo com o inciso
VII do art 5o da Constituiccedilatildeo eacute assegurada nos termos da lei a prestaccedilatildeo de assistecircncia
religiosa nas entidades civis e militares de internaccedilatildeo coletiva O caraacuteter laico do Estado
brasileiro natildeo eacute afetado por esta disposiccedilatildeo u m a vez que o Estado natildeo eacute obrigado a
prestar assistecircncia religiosa e as entidades religiosas eacute que iratildeo prestaacute-la (cf M A R T I N S e
B A S T O S 1989 51 e 54 e F E R R E I R A FILHO 1990 34)
Neste sentido a Lei n 7210 de 11 de julho de 1984 que trata da execuccedilatildeo
penal estabelece e m seu art 10 que o Estado deve prestar assistecircncia aos presos e internados
incluindo os egressos objetivando prevenir o crime e orientar o retorno agrave convivecircncia e m
sociedade Tal assistecircncia consistiraacute de acordo com o art 11 e m assistecircncia material
agrave sauacutede juriacutedica educacional social e religiosa D e fato o art 41 estabelece que tais
assistecircncias satildeo direitos dos presos
D e acordo com o art 24 a assistecircncia religiosa com liberdade de culto
seraacute prestada aos presos e aos internados permitindo-se-lhes a participaccedilatildeo nos serviccedilos
organizados no estabelecimento penal bem como a posse de livros de instruccedilatildeo religiosa
O primeiro paraacutegrafo deste artigo estabelece que haveraacute local apropriado para os cultos
religiosos no estabelecimento penal o segundo paraacutegrafo dispotildee que nenhum preso ou
internado poderaacute ser obrigado a participar de atividade religiosa
Adicionalmente a Lei n 9982 de 14 de julho de 2000 que trata da prestaccedilatildeo
de assistecircncia religiosa e m estabelecimentos prisionais civis e militares e e m entidades
hospitalares puacuteblicas e privadas garante e m seu art Io o acesso aos religiosos de todas
as confissotildees aos hospitais da rede puacuteblica ou privada bem como aos estabelecimentos
prisionais civis ou militares para dar atendimento religioso aos internados desde que
em c o m u m acordo com estes ou com seus familiares no caso de doentes que jaacute natildeo mais
estejam no gozo de suas faculdades mentais Vale notar que nos termos do art 2o os
religiosos chamados a prestar assistecircncia nas entidades definidas no art Io deveratildeo e m
suas atividades acatar as determinaccedilotildees legais e normas internas de cada instituiccedilatildeo
hospitalar ou penal a fim de natildeo pocircr e m risco as condiccedilotildees do paciente ou a seguranccedila do
ambiente hospitalar ou prisional
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Duas disposiccedilotildees dessa lei foram vetadas pelo Presidente37 A primeira
disposiccedilatildeo estabelecia que a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa natildeo seria permitida se de
acordo com o hospital ou a prisatildeo houvesse risco de vida ou sauacutede para o internado ou
para o religioso O Presidente justificou esse veto argumentando que a transferecircncia do
processo decisoacuterio relativo agrave prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa aos hospitais ou prisotildees
excluindo-se o paciente ou preso bem como suas famiacutelias era contraacuterio aos incisos VI
e VII do art 5o da Constituiccedilatildeo Ademais o Presidente sustentou que a precauccedilatildeo que
motivou o dispositivo vetado jaacute estaacute assegurada pelo art 2 o da lei e m questatildeo
A segunda disposiccedilatildeo vetada pelo Presidente determinava que o interno teria
direito a pelo menos u m a visita semanal de religiosos da confissatildeo religiosa que professe
O Presidente justificou esse veto argumentando que a periodicidade das visitas deveria ser
determinada pela autoridade local levando e m consideraccedilatildeo as particularidades regionais
os usos e costumes Aleacutem disso o Presidente sustentou que era inadequado tratar hospitais
e prisotildees da mesma forma tendo e m vista as circunstacircncias especiacuteficas de cada instituiccedilatildeo
Havia tambeacutem a preocupaccedilatildeo de que o nuacutemero miacutenimo de visitas estabelecido por lei se
tornasse o nuacutemero maacuteximo permitido na praacutetica
33 Acomodaccedilatildeo em razatildeo de imperativo de consciecircncia
Nos termos do inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo ningueacutem seraacute privado
de direitos por motivo de crenccedila religiosa ou de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica salvo se as
invocar para eximir-se de obrigaccedilatildeo legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestaccedilatildeo
alternativa fixada e m lei Esse inciso entre outras coisas estaacute relacionado ao serviccedilo
militar obrigatoacuterio estabelecido pelo art 143 da Constituiccedilatildeo O paraacutegrafo Io deste artigo
dispotildee que agraves Forccedilas Armadas compete na forma da lei atribuir serviccedilo alternativo aos
que e m tempo de paz apoacutes alistados alegarem imperativo de consciecircncia entendendo-
se como tal o decorrente de crenccedila religiosa e de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica para se
eximirem de atividades de caraacuteter essencialmente militar 38
Esse eacute u m dos casos de acomodaccedilatildeo existentes no ordenamento juriacutedico
brasileiro relacionado agrave crenccedila religiosa ou agraves convicccedilotildees filosoacuteficas ou poliacuteticas Para
buscar proteccedilatildeo constitucional de mo d o a natildeo participar do serviccedilo militar compulsoacuterio
e m tempos de paz faz-se necessaacuterio provar comprometimento com ideacuteias natildeo beligerantes
a ser demonstrado por atitudes passadas que estejam e m consonacircncia com tal ideal
( M A R T I N S e B A S T O S 1989 56) Note-se que eacute possiacutevel ser excluiacutedo de atividades
essencialmente militares mas poderatildeo ser impostos serviccedilos alternativos que consistam em
57 Cf Mensagem de Veto n 960 de 14 de julho de 2000 Disponiacutevel em lthttpswwwplanaltogovbr
ccivil_03leisMensagem_Veto2000Mv0960-00htmgt Acesso em 13 fev 2009 i8 Esse dispositivo constitucional foi regulamentado pela Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 759
atividades administrativas de assistecircncia filantroacutepicas ou produtivas39 jaacute que a obrigaccedilatildeo
de servir ao Paiacutes natildeo eacute excluiacuteda ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 211) Cumpre notar que da
reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia natildeo pode resultar a privaccedilatildeo de direitos exceto
se a pessoa tambeacutem se recusar a prestar serviccedilo alternativo natildeo essencialmente militar
Nessas circunstacircncias a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo aplicaacutevel natildeo satildeo inteiramente claras
sobre as consequumlecircncias legais da recusa Alguns autores entendem que nesse caso a pessoa
que se recusou a prestar serviccedilos alternativos poderia ser privada de direitos (FERREIRA
FILHO 1994 34 e 81 e M A R T I N S e B A S T O S 1989 212)40
Constata-se aqui o que parece ser u m a grande incoerecircncia no ordenamento
juriacutedico brasileiro Enquanto e m tempos de paz as pessoas podem reivindicar imperativo
de consciecircncia para evitar serviccedilos essencialmente militares quando o Estado declara
guerra nenhum cidadatildeo poderaacute invocar crenccedilas religiosas ou convicccedilotildees filosoacuteficas ou
poliacuteticas com a finalidade de natildeo participar do serviccedilo militar41 C o m o resultado durante
o periacuteodo mais adequado e apropriado para expressar desacordo com guerras e ideais
beligerantes as pessoas natildeo tem direito de reivindicar imperativo de consciecircncia para natildeo
participar do serviccedilo militar na hipoacutetese de a Constituiccedilatildeo ser interpretada literalmente
Outro caso de acomodaccedilatildeo relacionado a crenccedilas religiosas que vale ser
mencionado eacute o uso terapecircutico do chaacute Ayahuasca em rituais religiosos A partir de
1985 o governo brasileiro comeccedilou a estudar os aspectos sociais e culturais referentes
ao uso de tal chaacute E m 23 de novembro de 2006 o Grupo Multidisciplinar de Trabalho do
Comitecirc Nacional Antidrogas do Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas42
emitiu seu relatoacuterio final reconhecendo que o uso do chaacute Ayahuasca deveria ser limitado
a rituais religiosos e m locais autorizados pela direccedilatildeo das entidades que fazem uso de
tal chaacute sendo proibido seu uso em conjunto com substacircncia ilegais Atualmente o uso
do chaacute Ayahuasca e m conformidade com as normas aplicaacuteveis eacute assegurado com base
na garantia constitucional da liberdade de consciecircncia e de crenccedila e do livre exerciacutecio de
cultos religiosos Ademais a legitimidade do uso religioso da Ayahuasca foi ratificada
como rica e ancestral manifestaccedilatildeo cultural que exatamente pela relevacircncia de seu valor
Os serviccedilos alternativos podem ser prestados e m organizaccedilotildees militares da ativa e e m oacutergatildeos de formaccedilatildeo de reservas das Forccedilas Armadas ou em oacutergatildeos subordinados aos Ministeacuterios Civis mediante convecircnios entre estes e os Ministeacuterios Militares Cf sectsect 2o e 3o do art 3o da Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991 N o entanto parece-nos que o serviccedilo militar obrigatoacuterio natildeo estaacute de acordo com os princiacutepios que norteiam a Constituiccedilatildeo no sentido de que serviccedilos alternativos natildeo deveriam ser impostos Contudo a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo Ives Granda Martins sustenta que e m tempos de guerra todos os cidadatildeos tecircm iguais deveres perante o Paiacutes (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 212) Discordamos totalmente deste posicionamento porque uma das formas mais eficazes de expressar desacordo com guerras e ideais beligerantes eacute durante o periacuteodo de guerra quando as pessoas que natildeo concordam poderiam recusar-se a prestar serviccedilos militares Contudo conforme mencionado acima a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo O Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas - S I S N A D foi instituiacutedo pela Lei n 11343 de 23 de agosto de 2006
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histoacuterico antropoloacutegico e social eacute credora da proteccedilatildeo do Estado nos termos do art
2o caput da Lei n 1134306 e do art 215 sect1deg da C F 43 que dispotildee que [o] Estado
protegeraacute as manifestaccedilotildees das culturas populares indiacutegenas e afro-brasileiras e das de
outros grupos participantes do processo civilizatoacuterio nacional44
Eacute de se notar tambeacutem o recente caso no Estado de Satildeo Paulo de acomodaccedilatildeo
religiosa previsto na Lei Estadual n 13541 de 7 de maio de 2009 Tal lei proiacutebe o consumo
de cigarros cigarrilhas charutos cachimbos ou de qualquer outro produto fumiacutegeno
derivado ou natildeo do tabaco e m ambientes de uso coletivo puacuteblicos ou privados Contudo
nos termos do art 6o da referida lei essa natildeo se aplica aos locais de culto religioso em que
o uso de produto fumiacutegeno faccedila parte do ritual O u seja trata-se de mais u m caso em que
uma lei geral eacute excetuada para acomodar praacuteticas relacionadas agrave liberdade de religiatildeo e
de culto
Diferentemente das situaccedilotildees envolvendo serviccedilo militar obrigatoacuterio
o chaacute Ayahuasca e rituais religiosos que envolvem o uso de produtos fumiacutegenos foi
negada acomodaccedilatildeo quando da reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia no contexto
de frequumlecircncia escolar no Estado de Satildeo Paulo E m opiniatildeo escrita por Ada Pellegrini
Grinover publicada e m 25 de outubro de 2002 o Conselho Estadual de Educaccedilatildeo do
Estado de Satildeo Paulo entendeu que estudantes que fossem membros da Igreja Adventista
do Seacutetimo Dia estariam obrigados a frequumlentar as aulas durante o periacuteodo compreendido
entre 1800 horas de sexta-feira e 1800 de saacutebados de acordo com a Lei n 9394 de 20
de dezembro de 1996 conforme alterada embora tal frequumlecircncia seja contraacuteria agraves suas
praacuteticas religiosas u m a vez que natildeo haacute prestaccedilatildeo alternativa estabelecida em lei para tal
escusa de consciecircncia conforme fixado pelo inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo45
Adicionalmente aos casos de acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de
consciecircncia o inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo tambeacutem jaacute foi invocado para proteger
os direitos dos professores do Estado de Rio de Janeiro contra lei estadual que estabeleceu
que somente os professores credenciados pela autoridade religiosa competente estaratildeo
autorizados a ministrar as aulas de ensino religioso e m escolas puacuteblicas estaduais Para
compreender a Accedilatildeo Direta de Inconstitucionalidade - A D I N n 326804 que ainda natildeo
foi decidida pela Suprema Corte faz-se necessaacuterio analisar as disposiccedilotildees legais aplicaacuteveis
relacionadas ao ensino religioso no Brasil
Cf Relatoacuterio Final do Grupo Multidisciplinar de Trabalho disponiacutevel entre outros siacutetios em lthttp wwwsantodaimeorgcomunidadenoticiasrelfinal_conadhtmgt Acesso em 4 mar 2009 e lthttpwww ayahuascabrasilorgindexphpop=legisl01gt Acesso em 4 mar 2009 A acomodaccedilatildeo relacionada ao uso do chaacute Ayahuasca para fins religiosos nos Estados Unidos foi decidida pela Suprema Courte em Gonzales v O Centro Espirita Beneficente Uniatildeo do Vegetal 546 US 418 (2006) Cf Parecer C E E No 4422002 - C E S - Aprovado em 23102002 Disponiacutevel em lthttpwwwceesp spgovbrParecerespa_442_02htmgt Acesso em 4 mar 2009
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 761
34 Ensino religioso facultativo
Nos termos do art 210 da Constituiccedilatildeo [sjeratildeo fixados conteuacutedos miacutenimos
para o ensino fundamental de maneira a assegurar formaccedilatildeo baacutesica c o m u m e respeito aos
valores culturais e artiacutesticos nacionais e regionais O paraacutegrafo Io desse Artigo dispotildee
que [o] ensino religioso de matriacutecula facultativa constituiraacute disciplina dos horaacuterios
normais das escolas puacuteblicas de ensino fundamental
Nesse sentido o art 33 da Lei n 9394 de 22 de julho de 1997 conforme
alterada determina que o respeito agrave diversidade cultural religiosa do Brasil eacute assegurado
no ensino religioso sendo proibida qualquer forma de proselitismo O primeiro paraacutegrafo
desse Artigo dispotildee que [o]s sistemas de ensino regulamentaratildeo os procedimentos para a
definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso e estabeleceratildeo as normas para a habilitaccedilatildeo
e admissatildeo dos professores Ademais de acordo com o segundo paraacutegrafo do referido
Artigo [o]s sistemas de ensino ouviratildeo entidade civil constituiacuteda pelas diferentes
denominaccedilotildees religiosas para a definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso46
D e modo a observar a proibiccedilatildeo constitucional de estabelecimento de
religiatildeo o ensino religioso e m escolas natildeo pode consistir no ensino de u m a religiatildeo
determinada Nesse sentido a previsatildeo constitucional tem por finalidade dar oportunidade
a estudantes que estatildeo e m idade de formaccedilatildeo de personalidade de ter acesso a informaccedilotildees
de modo que no futuro eles possam livremente escolher adotar ou natildeo adotar u m a religiatildeo
(cf S C H E R K E R K E W I T Z 2002 60)47
Levando e m consideraccedilatildeo esses dispositivos a A D I N n 326804 foi
ajuizada pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo com o intuito de
declarar que a Lei n 3459 aprovada pela Assembleacuteia Legislativa do Estado do Rio de
Janeiro e m 14 de setembro de 2000 eacute inconstitucional u m a vez que estabeleceu que (i)
religiatildeo seria ensinada na forma confessional (ii) o conteuacutedo do ensino religioso seria
atribuiccedilatildeo de diversas autoridades religiosas e (iii) apenas professores credenciados pela
autoridade religiosa competente poderiam ensinar religiatildeo e m escolas oficiais
A Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo argumenta que o
ensino religioso na forma confessional viola o art 210 da Constituiccedilatildeo que estabelece que
os valores culturais seratildeo respeitados quando do estabelecimento dos conteuacutedos miacutenimos
para o ensino fundamental e o art 33 da Lei Federal n 939497 que determina que o
ensino religioso respeitaraacute a diversidade cultural do Brasil
Cumpre notar que nos termos do art 21 do Decreto-Lei n 4244 de 9 de abril de 1942 o programa e o regime didaacutetico do ensino religioso deveria ser determinado pela autoridade religiosa De acordo com Alexandre de Moraes para que a regulamentaccedilatildeo e a execuccedilatildeo desta disposiccedilatildeo natildeo sejam inconstitucionais faz-se necessaacuterio que toda e qualquer religiatildeo possa ser ensinada nas escolas puacuteblicas O autor entende que na praacutetica isso eacute absolutamente impossiacutevel (cf M O R A E S 2003 1984-1985)
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Adicionalmente a confederaccedilatildeo sustenta que a disposiccedilatildeo de acordo
com a qual o conteuacutedo do ensino religioso eacute u m a atribuiccedilatildeo das diversas autoridades
religiosas contraria o art 33 da Lei Federal n 939497 que estabelece diferentes padrotildees
para a definiccedilatildeo do conteuacutedo do ensino religioso E m conformidade com tal lei federal
os sistemas de ensino devem ouvir entidades civis de diversas religiotildees para definir
o conteuacutedo do ensino religioso A violaccedilatildeo eacute demonstrada com base no fato de que o
conceito de autoridade religiosa - que implica u m a estrutura administrativa e hieraacuterquica
como aquelas presentes nas Igrejas Catoacutelicas Presbiterianas e Judaicas - natildeo eacute parte da
tradiccedilatildeo de algumas religiotildees que tem origem Evangeacutelica ou afro-brasileira
A A D I N ainda natildeo foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal De qualquer
forma os argumentos apresentados pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores em
Educaccedilatildeo - e pelos vaacuterios amicus curiae admitidos no processo - parecem ser coerentes
com a Constituiccedilatildeo Federal e aptos a derrubar a Lei Estadual n 3459
N o Estado de Satildeo Paulo o ensino religioso previsto no art 33 da Lei n
939497 foi regulamentado na Deliberaccedilatildeo do Conselho Estadual de Educaccedilatildeo - CEE
n 162001 com fundamento na Indicaccedilatildeo C E E n 07 aprovada e m 25 de julho de 2001
de acordo com a qual o ensino religioso deve ser enfocado na perspectiva constitucional
de promoccedilatildeo da cidadania e da dignidade especialmente na funccedilatildeo social da educaccedilatildeo
e m geral de modo que deve ser enfatizada a reflexatildeo sobre a cidadania e as praacuteticas a ela
pertinentes Assumindo que natildeo haacute conhecimento futuro e vida sem a competecircncia de
conviver com as diferenccedilas a Indicaccedilatildeo C E E n 072001 reconhece que satildeo bem-vindos
todos os projetos educacionais (aiacute se podendo incluir o ensino religioso) que visam direta
ou indiretamente o trabalho comunitaacuterio a conscientizaccedilatildeo da responsabilidade pessoal
e social e que estimulem e restaurem os valores humanos de compromisso moral e eacutetico
auxiliando a compreensatildeo do h o m e m e o autoconhecimento Nesse sentido de acordo com
referida indicaccedilatildeo o ensino religioso nas escolas deve antes de tudo fundamentar-se nos
princiacutepios da cidadania e do entendimento do outro Assim o C E E recomendou que o
ensino religioso fosse tratado como tema transversal por meio da implementaccedilatildeo de uma
proposta de abordagem filosoacutefica que permitisse a reflexatildeo sobre valores e princiacutepios eacuteticos e
o conhecimento da histoacuteria das religiotildees Tambeacutem no Estado de Satildeo Paulo a implementaccedilatildeo
do ensino religioso foi arduamente debatida e criticada especialmente em razatildeo da
problemaacutetica questatildeo do estabelecimento de religiatildeo vedado pela Constituiccedilatildeo de 198848
Vide entre outros GIUMBELLI Emerson Ensino religioso em escolas puacuteblicas no Brasil notas de pesquisa Debates do N E R (UFRGS) v 14 p 50-68 2009 CURY Carlos Roberto Jamil Ensino religioso na escola puacuteblica o retorno de uma polecircmica recorrente Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 27 p 183-213 setdez 2004 LUI Janayna de Alencar Entre crentes e pagatildeos ensino religioso em Satildeo Paulo Cadernos de Pesquisa v 37 n 131 p 333-349 maioago 2007 R A N Q U E T A T JUacuteNIOR Ceacutesar Do confessional ao plural uma anaacutelise sobre o novo modelo de ensino religioso nas escolas brasileiras Revista Diaacutelogo Educaccedilatildeo Curitiba v 8 n 23 p 289-305 janabr 2008
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 763
Neste item a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil foi examinada
com a finalidade de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota u m princiacutepio de
toleracircncia ou de respeito As normas relacionadas agrave garantia da liberdade de consciecircncia
e de crenccedila bem como ao livre exerciacutecio de cultos religiosos agrave proteccedilatildeo dos locais de
adoraccedilatildeo agrave proibiccedilatildeo do estabelecimento de religiatildeo agrave garantia de assistecircncia religiosa
e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva agrave acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de
consciecircncia e ao ensino religioso facultativo todas foram analisadas de modo que fosse
possiacutevel concluir se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia ou
do respeito
D e acordo com tal anaacutelise o ordenamento juriacutedico brasileiro parece tratar a
religiatildeo e m conformidade com o princiacutepio do respeito Isso porque pessoas religiosas e natildeo
religiosas podem entrar no espaccedilo puacutebico e m iguais condiccedilotildees sendo que a faculdade de
buscar a finalidade uacuteltima da vida eacute respeitada pelo Estado Nesse sentido o ordenamento
juriacutedico brasileiro garante a liberdade de consciecircncia e de crenccedila o livre exerciacutecio de
cultos religiosos e a proteccedilatildeo dos locais de adoraccedilatildeo Adicionalmente enquanto de u m
lado nenhuma religiatildeo pode ser estabelecida pelo Estado pessoas religiosas podem
reivindicar imperativo de consciecircncia bem como receber assistecircncia religiosa e ensino
religioso se essa for a sua escolha
Isso demonstra que todos os indiviacuteduos de acordo com o ordenamento
juriacutedico brasileiro devem entrar no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais e que o Estado eacute
obrigado a fornecer condiccedilotildees para que pessoas religiosas e natildeo religiosas possam buscar
a finalidade uacuteltima da vida se essa for sua escolha respeitando e m todos os indiviacuteduos a
faculdade de realizar tal busca
4 Conclusatildeo
Inicialmente foi examinada neste artigo a diferenccedila entre o princiacutepio da
toleracircncia e o princiacutepio do respeito no que se refere ao tratamento legal de questotildees de
consciecircncia Posteriormente a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no ordenamento
juriacutedico brasileiro foi analisada com a finalidade de verificar qual desses dois princiacutepios eacute
adotado Finalmente conclui-se que o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio
do respeito pela faculdade dos indiviacuteduos de buscar pela finalidade uacuteltima da vida sendo o
Estado obrigado a garantir condiccedilotildees adequadas para as pessoas exercerem tal faculdade
de acordo com suas escolhas autocircnomas de modo que todos os indiviacuteduos possam entrar
no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais
Satildeo Paulo dezembro de 2010
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IM Maria Costa Neves Machado
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756 Maria Costa Neves Machado
base no fato de que a lei e m questatildeo havia sido modificada e m 1977 tendo sido excluiacuteda
a exigecircncia da licenccedila preacutevia
A separaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja foi estabelecida no Brasil somente
durante a Repuacuteblica pelo Decreto n 119-A datado de 7 de janeiro de 1890 de autoria
de Rui Barbosa (cf L A F E R 2007) que proibiu a intervenccedilatildeo do governo federal e dos
estados e m questotildees religiosas e estabeleceu a liberdade de culto34 Desde entatildeo o Brasil
eacute u m estado laico A separaccedilatildeo entre Estado e Igreja na Constituiccedilatildeo de 1988 estaacute prevista
no art 19
Eacute vedado agrave Uniatildeo aos Estados ao Distrito Federal e aos Municiacutepios (i) estabelecer cultos religiosos ou igrejas subvencionaacute-los embaraccedilar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relaccedilotildees de dependecircncia ou alianccedila ressalvada na forma da lei a colaboraccedilatildeo de interesse puacuteblico ()
Consequentemente o Estado brasileiro eacute indiferente agraves vaacuterias igrejas que
podem ser livremente formadas como entidades legais O Estado deve ser absolutamente
neutro sendo proibida a discriminaccedilatildeo entre igrejas para beneficiaacute-las ou prejudicaacute-las
Tambeacutem natildeo pode impor nenhum ocircnus indevido agrave formaccedilatildeo de igrejas N a realidade haacute
mesmo u m incentivo constitucional para sua formaccedilatildeo que resulta da imunidade tributaacuteria
a que fazem jus ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 50-51)35
Observe-se que a colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico mencionada no Artigo
19 para natildeo infringir a proibiccedilatildeo de estabelecimento de religiatildeo pelo Estado natildeo pode
ocorrer em u m campo fundamentalmente religioso (cf F E R R E I R A FILHO 1990 144
C R E T E L L A JUacuteNIOR 1992 1179 e L A F E R 2007) N atildeo obstante essa disposiccedilatildeo tem
implicaccedilotildees muito complexas quando se trata de sua execuccedilatildeo como eacute possiacutevel estabelecer
a colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico entre o Estado e u m a determinada igreja sem favorecer
u m a religiatildeo sobre a outra36 Ademais essa disposiccedilatildeo levanta u m problema similar ao que
resulta da assistecircncia religiosa a pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva e do
ensino religioso facultativo e m escolas conforme detalhado abaixo eacute possiacutevel na praacutetica
ensinar religiatildeo prestar assistecircncia religiosa e estabelecer esquemas de colaboraccedilatildeo
Esse decreto nunca foi expressamente revogado Cf lthttpslegislacaoplanaltogovbrLEGISLA LegislacaonsffraWebOpenFrameSetampFrame=frmWeb2ampSrc=2FLEGISLA2FLegislacaonsf2Fvi wTodos2Fbea39c8e0e484811032569fa005afab43FOpenDocument26Highlight3Dl2C26Auto Framedgt Acesso em 3 abr 2009
Cumpre notar que a Lei n 8245 datada de 18 de outubro de 1991 conforme alterada estabelece que o contrato de locaccedilatildeo de imoacuteveis utilizados por entidades religiosas devidamente registradas bem como por hospitais unidades sanitaacuterias oficiais asilos estabelecimentos de sauacutede e de ensino autorizados e fiscalizados pelo Poder Puacuteblico somente poderaacute ser rescindido em determinadas situaccedilotildees Para uma criacutetica sobre a exceccedilatildeo relacionada agrave colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico vide C R E T E L L A JUacuteNIOR 19921180
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 757
no interesse puacuteblico sem favorecer u m a determinada religiatildeo e sem violar o art 19 da
Constituiccedilatildeo
32 Garantia de assistecircncia religiosa em estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva
A Constituiccedilatildeo brasileira garante a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa a
pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva abrangendo presos militares e
pacientes hospitalizados (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 54) D e acordo com o inciso
VII do art 5o da Constituiccedilatildeo eacute assegurada nos termos da lei a prestaccedilatildeo de assistecircncia
religiosa nas entidades civis e militares de internaccedilatildeo coletiva O caraacuteter laico do Estado
brasileiro natildeo eacute afetado por esta disposiccedilatildeo u m a vez que o Estado natildeo eacute obrigado a
prestar assistecircncia religiosa e as entidades religiosas eacute que iratildeo prestaacute-la (cf M A R T I N S e
B A S T O S 1989 51 e 54 e F E R R E I R A FILHO 1990 34)
Neste sentido a Lei n 7210 de 11 de julho de 1984 que trata da execuccedilatildeo
penal estabelece e m seu art 10 que o Estado deve prestar assistecircncia aos presos e internados
incluindo os egressos objetivando prevenir o crime e orientar o retorno agrave convivecircncia e m
sociedade Tal assistecircncia consistiraacute de acordo com o art 11 e m assistecircncia material
agrave sauacutede juriacutedica educacional social e religiosa D e fato o art 41 estabelece que tais
assistecircncias satildeo direitos dos presos
D e acordo com o art 24 a assistecircncia religiosa com liberdade de culto
seraacute prestada aos presos e aos internados permitindo-se-lhes a participaccedilatildeo nos serviccedilos
organizados no estabelecimento penal bem como a posse de livros de instruccedilatildeo religiosa
O primeiro paraacutegrafo deste artigo estabelece que haveraacute local apropriado para os cultos
religiosos no estabelecimento penal o segundo paraacutegrafo dispotildee que nenhum preso ou
internado poderaacute ser obrigado a participar de atividade religiosa
Adicionalmente a Lei n 9982 de 14 de julho de 2000 que trata da prestaccedilatildeo
de assistecircncia religiosa e m estabelecimentos prisionais civis e militares e e m entidades
hospitalares puacuteblicas e privadas garante e m seu art Io o acesso aos religiosos de todas
as confissotildees aos hospitais da rede puacuteblica ou privada bem como aos estabelecimentos
prisionais civis ou militares para dar atendimento religioso aos internados desde que
em c o m u m acordo com estes ou com seus familiares no caso de doentes que jaacute natildeo mais
estejam no gozo de suas faculdades mentais Vale notar que nos termos do art 2o os
religiosos chamados a prestar assistecircncia nas entidades definidas no art Io deveratildeo e m
suas atividades acatar as determinaccedilotildees legais e normas internas de cada instituiccedilatildeo
hospitalar ou penal a fim de natildeo pocircr e m risco as condiccedilotildees do paciente ou a seguranccedila do
ambiente hospitalar ou prisional
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Duas disposiccedilotildees dessa lei foram vetadas pelo Presidente37 A primeira
disposiccedilatildeo estabelecia que a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa natildeo seria permitida se de
acordo com o hospital ou a prisatildeo houvesse risco de vida ou sauacutede para o internado ou
para o religioso O Presidente justificou esse veto argumentando que a transferecircncia do
processo decisoacuterio relativo agrave prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa aos hospitais ou prisotildees
excluindo-se o paciente ou preso bem como suas famiacutelias era contraacuterio aos incisos VI
e VII do art 5o da Constituiccedilatildeo Ademais o Presidente sustentou que a precauccedilatildeo que
motivou o dispositivo vetado jaacute estaacute assegurada pelo art 2 o da lei e m questatildeo
A segunda disposiccedilatildeo vetada pelo Presidente determinava que o interno teria
direito a pelo menos u m a visita semanal de religiosos da confissatildeo religiosa que professe
O Presidente justificou esse veto argumentando que a periodicidade das visitas deveria ser
determinada pela autoridade local levando e m consideraccedilatildeo as particularidades regionais
os usos e costumes Aleacutem disso o Presidente sustentou que era inadequado tratar hospitais
e prisotildees da mesma forma tendo e m vista as circunstacircncias especiacuteficas de cada instituiccedilatildeo
Havia tambeacutem a preocupaccedilatildeo de que o nuacutemero miacutenimo de visitas estabelecido por lei se
tornasse o nuacutemero maacuteximo permitido na praacutetica
33 Acomodaccedilatildeo em razatildeo de imperativo de consciecircncia
Nos termos do inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo ningueacutem seraacute privado
de direitos por motivo de crenccedila religiosa ou de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica salvo se as
invocar para eximir-se de obrigaccedilatildeo legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestaccedilatildeo
alternativa fixada e m lei Esse inciso entre outras coisas estaacute relacionado ao serviccedilo
militar obrigatoacuterio estabelecido pelo art 143 da Constituiccedilatildeo O paraacutegrafo Io deste artigo
dispotildee que agraves Forccedilas Armadas compete na forma da lei atribuir serviccedilo alternativo aos
que e m tempo de paz apoacutes alistados alegarem imperativo de consciecircncia entendendo-
se como tal o decorrente de crenccedila religiosa e de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica para se
eximirem de atividades de caraacuteter essencialmente militar 38
Esse eacute u m dos casos de acomodaccedilatildeo existentes no ordenamento juriacutedico
brasileiro relacionado agrave crenccedila religiosa ou agraves convicccedilotildees filosoacuteficas ou poliacuteticas Para
buscar proteccedilatildeo constitucional de mo d o a natildeo participar do serviccedilo militar compulsoacuterio
e m tempos de paz faz-se necessaacuterio provar comprometimento com ideacuteias natildeo beligerantes
a ser demonstrado por atitudes passadas que estejam e m consonacircncia com tal ideal
( M A R T I N S e B A S T O S 1989 56) Note-se que eacute possiacutevel ser excluiacutedo de atividades
essencialmente militares mas poderatildeo ser impostos serviccedilos alternativos que consistam em
57 Cf Mensagem de Veto n 960 de 14 de julho de 2000 Disponiacutevel em lthttpswwwplanaltogovbr
ccivil_03leisMensagem_Veto2000Mv0960-00htmgt Acesso em 13 fev 2009 i8 Esse dispositivo constitucional foi regulamentado pela Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991
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atividades administrativas de assistecircncia filantroacutepicas ou produtivas39 jaacute que a obrigaccedilatildeo
de servir ao Paiacutes natildeo eacute excluiacuteda ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 211) Cumpre notar que da
reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia natildeo pode resultar a privaccedilatildeo de direitos exceto
se a pessoa tambeacutem se recusar a prestar serviccedilo alternativo natildeo essencialmente militar
Nessas circunstacircncias a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo aplicaacutevel natildeo satildeo inteiramente claras
sobre as consequumlecircncias legais da recusa Alguns autores entendem que nesse caso a pessoa
que se recusou a prestar serviccedilos alternativos poderia ser privada de direitos (FERREIRA
FILHO 1994 34 e 81 e M A R T I N S e B A S T O S 1989 212)40
Constata-se aqui o que parece ser u m a grande incoerecircncia no ordenamento
juriacutedico brasileiro Enquanto e m tempos de paz as pessoas podem reivindicar imperativo
de consciecircncia para evitar serviccedilos essencialmente militares quando o Estado declara
guerra nenhum cidadatildeo poderaacute invocar crenccedilas religiosas ou convicccedilotildees filosoacuteficas ou
poliacuteticas com a finalidade de natildeo participar do serviccedilo militar41 C o m o resultado durante
o periacuteodo mais adequado e apropriado para expressar desacordo com guerras e ideais
beligerantes as pessoas natildeo tem direito de reivindicar imperativo de consciecircncia para natildeo
participar do serviccedilo militar na hipoacutetese de a Constituiccedilatildeo ser interpretada literalmente
Outro caso de acomodaccedilatildeo relacionado a crenccedilas religiosas que vale ser
mencionado eacute o uso terapecircutico do chaacute Ayahuasca em rituais religiosos A partir de
1985 o governo brasileiro comeccedilou a estudar os aspectos sociais e culturais referentes
ao uso de tal chaacute E m 23 de novembro de 2006 o Grupo Multidisciplinar de Trabalho do
Comitecirc Nacional Antidrogas do Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas42
emitiu seu relatoacuterio final reconhecendo que o uso do chaacute Ayahuasca deveria ser limitado
a rituais religiosos e m locais autorizados pela direccedilatildeo das entidades que fazem uso de
tal chaacute sendo proibido seu uso em conjunto com substacircncia ilegais Atualmente o uso
do chaacute Ayahuasca e m conformidade com as normas aplicaacuteveis eacute assegurado com base
na garantia constitucional da liberdade de consciecircncia e de crenccedila e do livre exerciacutecio de
cultos religiosos Ademais a legitimidade do uso religioso da Ayahuasca foi ratificada
como rica e ancestral manifestaccedilatildeo cultural que exatamente pela relevacircncia de seu valor
Os serviccedilos alternativos podem ser prestados e m organizaccedilotildees militares da ativa e e m oacutergatildeos de formaccedilatildeo de reservas das Forccedilas Armadas ou em oacutergatildeos subordinados aos Ministeacuterios Civis mediante convecircnios entre estes e os Ministeacuterios Militares Cf sectsect 2o e 3o do art 3o da Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991 N o entanto parece-nos que o serviccedilo militar obrigatoacuterio natildeo estaacute de acordo com os princiacutepios que norteiam a Constituiccedilatildeo no sentido de que serviccedilos alternativos natildeo deveriam ser impostos Contudo a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo Ives Granda Martins sustenta que e m tempos de guerra todos os cidadatildeos tecircm iguais deveres perante o Paiacutes (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 212) Discordamos totalmente deste posicionamento porque uma das formas mais eficazes de expressar desacordo com guerras e ideais beligerantes eacute durante o periacuteodo de guerra quando as pessoas que natildeo concordam poderiam recusar-se a prestar serviccedilos militares Contudo conforme mencionado acima a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo O Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas - S I S N A D foi instituiacutedo pela Lei n 11343 de 23 de agosto de 2006
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7(gt(l Maria Costa Neves Machado
histoacuterico antropoloacutegico e social eacute credora da proteccedilatildeo do Estado nos termos do art
2o caput da Lei n 1134306 e do art 215 sect1deg da C F 43 que dispotildee que [o] Estado
protegeraacute as manifestaccedilotildees das culturas populares indiacutegenas e afro-brasileiras e das de
outros grupos participantes do processo civilizatoacuterio nacional44
Eacute de se notar tambeacutem o recente caso no Estado de Satildeo Paulo de acomodaccedilatildeo
religiosa previsto na Lei Estadual n 13541 de 7 de maio de 2009 Tal lei proiacutebe o consumo
de cigarros cigarrilhas charutos cachimbos ou de qualquer outro produto fumiacutegeno
derivado ou natildeo do tabaco e m ambientes de uso coletivo puacuteblicos ou privados Contudo
nos termos do art 6o da referida lei essa natildeo se aplica aos locais de culto religioso em que
o uso de produto fumiacutegeno faccedila parte do ritual O u seja trata-se de mais u m caso em que
uma lei geral eacute excetuada para acomodar praacuteticas relacionadas agrave liberdade de religiatildeo e
de culto
Diferentemente das situaccedilotildees envolvendo serviccedilo militar obrigatoacuterio
o chaacute Ayahuasca e rituais religiosos que envolvem o uso de produtos fumiacutegenos foi
negada acomodaccedilatildeo quando da reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia no contexto
de frequumlecircncia escolar no Estado de Satildeo Paulo E m opiniatildeo escrita por Ada Pellegrini
Grinover publicada e m 25 de outubro de 2002 o Conselho Estadual de Educaccedilatildeo do
Estado de Satildeo Paulo entendeu que estudantes que fossem membros da Igreja Adventista
do Seacutetimo Dia estariam obrigados a frequumlentar as aulas durante o periacuteodo compreendido
entre 1800 horas de sexta-feira e 1800 de saacutebados de acordo com a Lei n 9394 de 20
de dezembro de 1996 conforme alterada embora tal frequumlecircncia seja contraacuteria agraves suas
praacuteticas religiosas u m a vez que natildeo haacute prestaccedilatildeo alternativa estabelecida em lei para tal
escusa de consciecircncia conforme fixado pelo inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo45
Adicionalmente aos casos de acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de
consciecircncia o inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo tambeacutem jaacute foi invocado para proteger
os direitos dos professores do Estado de Rio de Janeiro contra lei estadual que estabeleceu
que somente os professores credenciados pela autoridade religiosa competente estaratildeo
autorizados a ministrar as aulas de ensino religioso e m escolas puacuteblicas estaduais Para
compreender a Accedilatildeo Direta de Inconstitucionalidade - A D I N n 326804 que ainda natildeo
foi decidida pela Suprema Corte faz-se necessaacuterio analisar as disposiccedilotildees legais aplicaacuteveis
relacionadas ao ensino religioso no Brasil
Cf Relatoacuterio Final do Grupo Multidisciplinar de Trabalho disponiacutevel entre outros siacutetios em lthttp wwwsantodaimeorgcomunidadenoticiasrelfinal_conadhtmgt Acesso em 4 mar 2009 e lthttpwww ayahuascabrasilorgindexphpop=legisl01gt Acesso em 4 mar 2009 A acomodaccedilatildeo relacionada ao uso do chaacute Ayahuasca para fins religiosos nos Estados Unidos foi decidida pela Suprema Courte em Gonzales v O Centro Espirita Beneficente Uniatildeo do Vegetal 546 US 418 (2006) Cf Parecer C E E No 4422002 - C E S - Aprovado em 23102002 Disponiacutevel em lthttpwwwceesp spgovbrParecerespa_442_02htmgt Acesso em 4 mar 2009
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 761
34 Ensino religioso facultativo
Nos termos do art 210 da Constituiccedilatildeo [sjeratildeo fixados conteuacutedos miacutenimos
para o ensino fundamental de maneira a assegurar formaccedilatildeo baacutesica c o m u m e respeito aos
valores culturais e artiacutesticos nacionais e regionais O paraacutegrafo Io desse Artigo dispotildee
que [o] ensino religioso de matriacutecula facultativa constituiraacute disciplina dos horaacuterios
normais das escolas puacuteblicas de ensino fundamental
Nesse sentido o art 33 da Lei n 9394 de 22 de julho de 1997 conforme
alterada determina que o respeito agrave diversidade cultural religiosa do Brasil eacute assegurado
no ensino religioso sendo proibida qualquer forma de proselitismo O primeiro paraacutegrafo
desse Artigo dispotildee que [o]s sistemas de ensino regulamentaratildeo os procedimentos para a
definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso e estabeleceratildeo as normas para a habilitaccedilatildeo
e admissatildeo dos professores Ademais de acordo com o segundo paraacutegrafo do referido
Artigo [o]s sistemas de ensino ouviratildeo entidade civil constituiacuteda pelas diferentes
denominaccedilotildees religiosas para a definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso46
D e modo a observar a proibiccedilatildeo constitucional de estabelecimento de
religiatildeo o ensino religioso e m escolas natildeo pode consistir no ensino de u m a religiatildeo
determinada Nesse sentido a previsatildeo constitucional tem por finalidade dar oportunidade
a estudantes que estatildeo e m idade de formaccedilatildeo de personalidade de ter acesso a informaccedilotildees
de modo que no futuro eles possam livremente escolher adotar ou natildeo adotar u m a religiatildeo
(cf S C H E R K E R K E W I T Z 2002 60)47
Levando e m consideraccedilatildeo esses dispositivos a A D I N n 326804 foi
ajuizada pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo com o intuito de
declarar que a Lei n 3459 aprovada pela Assembleacuteia Legislativa do Estado do Rio de
Janeiro e m 14 de setembro de 2000 eacute inconstitucional u m a vez que estabeleceu que (i)
religiatildeo seria ensinada na forma confessional (ii) o conteuacutedo do ensino religioso seria
atribuiccedilatildeo de diversas autoridades religiosas e (iii) apenas professores credenciados pela
autoridade religiosa competente poderiam ensinar religiatildeo e m escolas oficiais
A Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo argumenta que o
ensino religioso na forma confessional viola o art 210 da Constituiccedilatildeo que estabelece que
os valores culturais seratildeo respeitados quando do estabelecimento dos conteuacutedos miacutenimos
para o ensino fundamental e o art 33 da Lei Federal n 939497 que determina que o
ensino religioso respeitaraacute a diversidade cultural do Brasil
Cumpre notar que nos termos do art 21 do Decreto-Lei n 4244 de 9 de abril de 1942 o programa e o regime didaacutetico do ensino religioso deveria ser determinado pela autoridade religiosa De acordo com Alexandre de Moraes para que a regulamentaccedilatildeo e a execuccedilatildeo desta disposiccedilatildeo natildeo sejam inconstitucionais faz-se necessaacuterio que toda e qualquer religiatildeo possa ser ensinada nas escolas puacuteblicas O autor entende que na praacutetica isso eacute absolutamente impossiacutevel (cf M O R A E S 2003 1984-1985)
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762 Maria Costa Neves Machado
Adicionalmente a confederaccedilatildeo sustenta que a disposiccedilatildeo de acordo
com a qual o conteuacutedo do ensino religioso eacute u m a atribuiccedilatildeo das diversas autoridades
religiosas contraria o art 33 da Lei Federal n 939497 que estabelece diferentes padrotildees
para a definiccedilatildeo do conteuacutedo do ensino religioso E m conformidade com tal lei federal
os sistemas de ensino devem ouvir entidades civis de diversas religiotildees para definir
o conteuacutedo do ensino religioso A violaccedilatildeo eacute demonstrada com base no fato de que o
conceito de autoridade religiosa - que implica u m a estrutura administrativa e hieraacuterquica
como aquelas presentes nas Igrejas Catoacutelicas Presbiterianas e Judaicas - natildeo eacute parte da
tradiccedilatildeo de algumas religiotildees que tem origem Evangeacutelica ou afro-brasileira
A A D I N ainda natildeo foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal De qualquer
forma os argumentos apresentados pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores em
Educaccedilatildeo - e pelos vaacuterios amicus curiae admitidos no processo - parecem ser coerentes
com a Constituiccedilatildeo Federal e aptos a derrubar a Lei Estadual n 3459
N o Estado de Satildeo Paulo o ensino religioso previsto no art 33 da Lei n
939497 foi regulamentado na Deliberaccedilatildeo do Conselho Estadual de Educaccedilatildeo - CEE
n 162001 com fundamento na Indicaccedilatildeo C E E n 07 aprovada e m 25 de julho de 2001
de acordo com a qual o ensino religioso deve ser enfocado na perspectiva constitucional
de promoccedilatildeo da cidadania e da dignidade especialmente na funccedilatildeo social da educaccedilatildeo
e m geral de modo que deve ser enfatizada a reflexatildeo sobre a cidadania e as praacuteticas a ela
pertinentes Assumindo que natildeo haacute conhecimento futuro e vida sem a competecircncia de
conviver com as diferenccedilas a Indicaccedilatildeo C E E n 072001 reconhece que satildeo bem-vindos
todos os projetos educacionais (aiacute se podendo incluir o ensino religioso) que visam direta
ou indiretamente o trabalho comunitaacuterio a conscientizaccedilatildeo da responsabilidade pessoal
e social e que estimulem e restaurem os valores humanos de compromisso moral e eacutetico
auxiliando a compreensatildeo do h o m e m e o autoconhecimento Nesse sentido de acordo com
referida indicaccedilatildeo o ensino religioso nas escolas deve antes de tudo fundamentar-se nos
princiacutepios da cidadania e do entendimento do outro Assim o C E E recomendou que o
ensino religioso fosse tratado como tema transversal por meio da implementaccedilatildeo de uma
proposta de abordagem filosoacutefica que permitisse a reflexatildeo sobre valores e princiacutepios eacuteticos e
o conhecimento da histoacuteria das religiotildees Tambeacutem no Estado de Satildeo Paulo a implementaccedilatildeo
do ensino religioso foi arduamente debatida e criticada especialmente em razatildeo da
problemaacutetica questatildeo do estabelecimento de religiatildeo vedado pela Constituiccedilatildeo de 198848
Vide entre outros GIUMBELLI Emerson Ensino religioso em escolas puacuteblicas no Brasil notas de pesquisa Debates do N E R (UFRGS) v 14 p 50-68 2009 CURY Carlos Roberto Jamil Ensino religioso na escola puacuteblica o retorno de uma polecircmica recorrente Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 27 p 183-213 setdez 2004 LUI Janayna de Alencar Entre crentes e pagatildeos ensino religioso em Satildeo Paulo Cadernos de Pesquisa v 37 n 131 p 333-349 maioago 2007 R A N Q U E T A T JUacuteNIOR Ceacutesar Do confessional ao plural uma anaacutelise sobre o novo modelo de ensino religioso nas escolas brasileiras Revista Diaacutelogo Educaccedilatildeo Curitiba v 8 n 23 p 289-305 janabr 2008
R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010
Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 763
Neste item a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil foi examinada
com a finalidade de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota u m princiacutepio de
toleracircncia ou de respeito As normas relacionadas agrave garantia da liberdade de consciecircncia
e de crenccedila bem como ao livre exerciacutecio de cultos religiosos agrave proteccedilatildeo dos locais de
adoraccedilatildeo agrave proibiccedilatildeo do estabelecimento de religiatildeo agrave garantia de assistecircncia religiosa
e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva agrave acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de
consciecircncia e ao ensino religioso facultativo todas foram analisadas de modo que fosse
possiacutevel concluir se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia ou
do respeito
D e acordo com tal anaacutelise o ordenamento juriacutedico brasileiro parece tratar a
religiatildeo e m conformidade com o princiacutepio do respeito Isso porque pessoas religiosas e natildeo
religiosas podem entrar no espaccedilo puacutebico e m iguais condiccedilotildees sendo que a faculdade de
buscar a finalidade uacuteltima da vida eacute respeitada pelo Estado Nesse sentido o ordenamento
juriacutedico brasileiro garante a liberdade de consciecircncia e de crenccedila o livre exerciacutecio de
cultos religiosos e a proteccedilatildeo dos locais de adoraccedilatildeo Adicionalmente enquanto de u m
lado nenhuma religiatildeo pode ser estabelecida pelo Estado pessoas religiosas podem
reivindicar imperativo de consciecircncia bem como receber assistecircncia religiosa e ensino
religioso se essa for a sua escolha
Isso demonstra que todos os indiviacuteduos de acordo com o ordenamento
juriacutedico brasileiro devem entrar no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais e que o Estado eacute
obrigado a fornecer condiccedilotildees para que pessoas religiosas e natildeo religiosas possam buscar
a finalidade uacuteltima da vida se essa for sua escolha respeitando e m todos os indiviacuteduos a
faculdade de realizar tal busca
4 Conclusatildeo
Inicialmente foi examinada neste artigo a diferenccedila entre o princiacutepio da
toleracircncia e o princiacutepio do respeito no que se refere ao tratamento legal de questotildees de
consciecircncia Posteriormente a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no ordenamento
juriacutedico brasileiro foi analisada com a finalidade de verificar qual desses dois princiacutepios eacute
adotado Finalmente conclui-se que o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio
do respeito pela faculdade dos indiviacuteduos de buscar pela finalidade uacuteltima da vida sendo o
Estado obrigado a garantir condiccedilotildees adequadas para as pessoas exercerem tal faculdade
de acordo com suas escolhas autocircnomas de modo que todos os indiviacuteduos possam entrar
no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais
Satildeo Paulo dezembro de 2010
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 757
no interesse puacuteblico sem favorecer u m a determinada religiatildeo e sem violar o art 19 da
Constituiccedilatildeo
32 Garantia de assistecircncia religiosa em estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva
A Constituiccedilatildeo brasileira garante a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa a
pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva abrangendo presos militares e
pacientes hospitalizados (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 54) D e acordo com o inciso
VII do art 5o da Constituiccedilatildeo eacute assegurada nos termos da lei a prestaccedilatildeo de assistecircncia
religiosa nas entidades civis e militares de internaccedilatildeo coletiva O caraacuteter laico do Estado
brasileiro natildeo eacute afetado por esta disposiccedilatildeo u m a vez que o Estado natildeo eacute obrigado a
prestar assistecircncia religiosa e as entidades religiosas eacute que iratildeo prestaacute-la (cf M A R T I N S e
B A S T O S 1989 51 e 54 e F E R R E I R A FILHO 1990 34)
Neste sentido a Lei n 7210 de 11 de julho de 1984 que trata da execuccedilatildeo
penal estabelece e m seu art 10 que o Estado deve prestar assistecircncia aos presos e internados
incluindo os egressos objetivando prevenir o crime e orientar o retorno agrave convivecircncia e m
sociedade Tal assistecircncia consistiraacute de acordo com o art 11 e m assistecircncia material
agrave sauacutede juriacutedica educacional social e religiosa D e fato o art 41 estabelece que tais
assistecircncias satildeo direitos dos presos
D e acordo com o art 24 a assistecircncia religiosa com liberdade de culto
seraacute prestada aos presos e aos internados permitindo-se-lhes a participaccedilatildeo nos serviccedilos
organizados no estabelecimento penal bem como a posse de livros de instruccedilatildeo religiosa
O primeiro paraacutegrafo deste artigo estabelece que haveraacute local apropriado para os cultos
religiosos no estabelecimento penal o segundo paraacutegrafo dispotildee que nenhum preso ou
internado poderaacute ser obrigado a participar de atividade religiosa
Adicionalmente a Lei n 9982 de 14 de julho de 2000 que trata da prestaccedilatildeo
de assistecircncia religiosa e m estabelecimentos prisionais civis e militares e e m entidades
hospitalares puacuteblicas e privadas garante e m seu art Io o acesso aos religiosos de todas
as confissotildees aos hospitais da rede puacuteblica ou privada bem como aos estabelecimentos
prisionais civis ou militares para dar atendimento religioso aos internados desde que
em c o m u m acordo com estes ou com seus familiares no caso de doentes que jaacute natildeo mais
estejam no gozo de suas faculdades mentais Vale notar que nos termos do art 2o os
religiosos chamados a prestar assistecircncia nas entidades definidas no art Io deveratildeo e m
suas atividades acatar as determinaccedilotildees legais e normas internas de cada instituiccedilatildeo
hospitalar ou penal a fim de natildeo pocircr e m risco as condiccedilotildees do paciente ou a seguranccedila do
ambiente hospitalar ou prisional
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758 Maria Costa Neves Machado
Duas disposiccedilotildees dessa lei foram vetadas pelo Presidente37 A primeira
disposiccedilatildeo estabelecia que a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa natildeo seria permitida se de
acordo com o hospital ou a prisatildeo houvesse risco de vida ou sauacutede para o internado ou
para o religioso O Presidente justificou esse veto argumentando que a transferecircncia do
processo decisoacuterio relativo agrave prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa aos hospitais ou prisotildees
excluindo-se o paciente ou preso bem como suas famiacutelias era contraacuterio aos incisos VI
e VII do art 5o da Constituiccedilatildeo Ademais o Presidente sustentou que a precauccedilatildeo que
motivou o dispositivo vetado jaacute estaacute assegurada pelo art 2 o da lei e m questatildeo
A segunda disposiccedilatildeo vetada pelo Presidente determinava que o interno teria
direito a pelo menos u m a visita semanal de religiosos da confissatildeo religiosa que professe
O Presidente justificou esse veto argumentando que a periodicidade das visitas deveria ser
determinada pela autoridade local levando e m consideraccedilatildeo as particularidades regionais
os usos e costumes Aleacutem disso o Presidente sustentou que era inadequado tratar hospitais
e prisotildees da mesma forma tendo e m vista as circunstacircncias especiacuteficas de cada instituiccedilatildeo
Havia tambeacutem a preocupaccedilatildeo de que o nuacutemero miacutenimo de visitas estabelecido por lei se
tornasse o nuacutemero maacuteximo permitido na praacutetica
33 Acomodaccedilatildeo em razatildeo de imperativo de consciecircncia
Nos termos do inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo ningueacutem seraacute privado
de direitos por motivo de crenccedila religiosa ou de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica salvo se as
invocar para eximir-se de obrigaccedilatildeo legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestaccedilatildeo
alternativa fixada e m lei Esse inciso entre outras coisas estaacute relacionado ao serviccedilo
militar obrigatoacuterio estabelecido pelo art 143 da Constituiccedilatildeo O paraacutegrafo Io deste artigo
dispotildee que agraves Forccedilas Armadas compete na forma da lei atribuir serviccedilo alternativo aos
que e m tempo de paz apoacutes alistados alegarem imperativo de consciecircncia entendendo-
se como tal o decorrente de crenccedila religiosa e de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica para se
eximirem de atividades de caraacuteter essencialmente militar 38
Esse eacute u m dos casos de acomodaccedilatildeo existentes no ordenamento juriacutedico
brasileiro relacionado agrave crenccedila religiosa ou agraves convicccedilotildees filosoacuteficas ou poliacuteticas Para
buscar proteccedilatildeo constitucional de mo d o a natildeo participar do serviccedilo militar compulsoacuterio
e m tempos de paz faz-se necessaacuterio provar comprometimento com ideacuteias natildeo beligerantes
a ser demonstrado por atitudes passadas que estejam e m consonacircncia com tal ideal
( M A R T I N S e B A S T O S 1989 56) Note-se que eacute possiacutevel ser excluiacutedo de atividades
essencialmente militares mas poderatildeo ser impostos serviccedilos alternativos que consistam em
57 Cf Mensagem de Veto n 960 de 14 de julho de 2000 Disponiacutevel em lthttpswwwplanaltogovbr
ccivil_03leisMensagem_Veto2000Mv0960-00htmgt Acesso em 13 fev 2009 i8 Esse dispositivo constitucional foi regulamentado pela Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 759
atividades administrativas de assistecircncia filantroacutepicas ou produtivas39 jaacute que a obrigaccedilatildeo
de servir ao Paiacutes natildeo eacute excluiacuteda ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 211) Cumpre notar que da
reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia natildeo pode resultar a privaccedilatildeo de direitos exceto
se a pessoa tambeacutem se recusar a prestar serviccedilo alternativo natildeo essencialmente militar
Nessas circunstacircncias a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo aplicaacutevel natildeo satildeo inteiramente claras
sobre as consequumlecircncias legais da recusa Alguns autores entendem que nesse caso a pessoa
que se recusou a prestar serviccedilos alternativos poderia ser privada de direitos (FERREIRA
FILHO 1994 34 e 81 e M A R T I N S e B A S T O S 1989 212)40
Constata-se aqui o que parece ser u m a grande incoerecircncia no ordenamento
juriacutedico brasileiro Enquanto e m tempos de paz as pessoas podem reivindicar imperativo
de consciecircncia para evitar serviccedilos essencialmente militares quando o Estado declara
guerra nenhum cidadatildeo poderaacute invocar crenccedilas religiosas ou convicccedilotildees filosoacuteficas ou
poliacuteticas com a finalidade de natildeo participar do serviccedilo militar41 C o m o resultado durante
o periacuteodo mais adequado e apropriado para expressar desacordo com guerras e ideais
beligerantes as pessoas natildeo tem direito de reivindicar imperativo de consciecircncia para natildeo
participar do serviccedilo militar na hipoacutetese de a Constituiccedilatildeo ser interpretada literalmente
Outro caso de acomodaccedilatildeo relacionado a crenccedilas religiosas que vale ser
mencionado eacute o uso terapecircutico do chaacute Ayahuasca em rituais religiosos A partir de
1985 o governo brasileiro comeccedilou a estudar os aspectos sociais e culturais referentes
ao uso de tal chaacute E m 23 de novembro de 2006 o Grupo Multidisciplinar de Trabalho do
Comitecirc Nacional Antidrogas do Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas42
emitiu seu relatoacuterio final reconhecendo que o uso do chaacute Ayahuasca deveria ser limitado
a rituais religiosos e m locais autorizados pela direccedilatildeo das entidades que fazem uso de
tal chaacute sendo proibido seu uso em conjunto com substacircncia ilegais Atualmente o uso
do chaacute Ayahuasca e m conformidade com as normas aplicaacuteveis eacute assegurado com base
na garantia constitucional da liberdade de consciecircncia e de crenccedila e do livre exerciacutecio de
cultos religiosos Ademais a legitimidade do uso religioso da Ayahuasca foi ratificada
como rica e ancestral manifestaccedilatildeo cultural que exatamente pela relevacircncia de seu valor
Os serviccedilos alternativos podem ser prestados e m organizaccedilotildees militares da ativa e e m oacutergatildeos de formaccedilatildeo de reservas das Forccedilas Armadas ou em oacutergatildeos subordinados aos Ministeacuterios Civis mediante convecircnios entre estes e os Ministeacuterios Militares Cf sectsect 2o e 3o do art 3o da Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991 N o entanto parece-nos que o serviccedilo militar obrigatoacuterio natildeo estaacute de acordo com os princiacutepios que norteiam a Constituiccedilatildeo no sentido de que serviccedilos alternativos natildeo deveriam ser impostos Contudo a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo Ives Granda Martins sustenta que e m tempos de guerra todos os cidadatildeos tecircm iguais deveres perante o Paiacutes (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 212) Discordamos totalmente deste posicionamento porque uma das formas mais eficazes de expressar desacordo com guerras e ideais beligerantes eacute durante o periacuteodo de guerra quando as pessoas que natildeo concordam poderiam recusar-se a prestar serviccedilos militares Contudo conforme mencionado acima a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo O Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas - S I S N A D foi instituiacutedo pela Lei n 11343 de 23 de agosto de 2006
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7(gt(l Maria Costa Neves Machado
histoacuterico antropoloacutegico e social eacute credora da proteccedilatildeo do Estado nos termos do art
2o caput da Lei n 1134306 e do art 215 sect1deg da C F 43 que dispotildee que [o] Estado
protegeraacute as manifestaccedilotildees das culturas populares indiacutegenas e afro-brasileiras e das de
outros grupos participantes do processo civilizatoacuterio nacional44
Eacute de se notar tambeacutem o recente caso no Estado de Satildeo Paulo de acomodaccedilatildeo
religiosa previsto na Lei Estadual n 13541 de 7 de maio de 2009 Tal lei proiacutebe o consumo
de cigarros cigarrilhas charutos cachimbos ou de qualquer outro produto fumiacutegeno
derivado ou natildeo do tabaco e m ambientes de uso coletivo puacuteblicos ou privados Contudo
nos termos do art 6o da referida lei essa natildeo se aplica aos locais de culto religioso em que
o uso de produto fumiacutegeno faccedila parte do ritual O u seja trata-se de mais u m caso em que
uma lei geral eacute excetuada para acomodar praacuteticas relacionadas agrave liberdade de religiatildeo e
de culto
Diferentemente das situaccedilotildees envolvendo serviccedilo militar obrigatoacuterio
o chaacute Ayahuasca e rituais religiosos que envolvem o uso de produtos fumiacutegenos foi
negada acomodaccedilatildeo quando da reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia no contexto
de frequumlecircncia escolar no Estado de Satildeo Paulo E m opiniatildeo escrita por Ada Pellegrini
Grinover publicada e m 25 de outubro de 2002 o Conselho Estadual de Educaccedilatildeo do
Estado de Satildeo Paulo entendeu que estudantes que fossem membros da Igreja Adventista
do Seacutetimo Dia estariam obrigados a frequumlentar as aulas durante o periacuteodo compreendido
entre 1800 horas de sexta-feira e 1800 de saacutebados de acordo com a Lei n 9394 de 20
de dezembro de 1996 conforme alterada embora tal frequumlecircncia seja contraacuteria agraves suas
praacuteticas religiosas u m a vez que natildeo haacute prestaccedilatildeo alternativa estabelecida em lei para tal
escusa de consciecircncia conforme fixado pelo inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo45
Adicionalmente aos casos de acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de
consciecircncia o inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo tambeacutem jaacute foi invocado para proteger
os direitos dos professores do Estado de Rio de Janeiro contra lei estadual que estabeleceu
que somente os professores credenciados pela autoridade religiosa competente estaratildeo
autorizados a ministrar as aulas de ensino religioso e m escolas puacuteblicas estaduais Para
compreender a Accedilatildeo Direta de Inconstitucionalidade - A D I N n 326804 que ainda natildeo
foi decidida pela Suprema Corte faz-se necessaacuterio analisar as disposiccedilotildees legais aplicaacuteveis
relacionadas ao ensino religioso no Brasil
Cf Relatoacuterio Final do Grupo Multidisciplinar de Trabalho disponiacutevel entre outros siacutetios em lthttp wwwsantodaimeorgcomunidadenoticiasrelfinal_conadhtmgt Acesso em 4 mar 2009 e lthttpwww ayahuascabrasilorgindexphpop=legisl01gt Acesso em 4 mar 2009 A acomodaccedilatildeo relacionada ao uso do chaacute Ayahuasca para fins religiosos nos Estados Unidos foi decidida pela Suprema Courte em Gonzales v O Centro Espirita Beneficente Uniatildeo do Vegetal 546 US 418 (2006) Cf Parecer C E E No 4422002 - C E S - Aprovado em 23102002 Disponiacutevel em lthttpwwwceesp spgovbrParecerespa_442_02htmgt Acesso em 4 mar 2009
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 761
34 Ensino religioso facultativo
Nos termos do art 210 da Constituiccedilatildeo [sjeratildeo fixados conteuacutedos miacutenimos
para o ensino fundamental de maneira a assegurar formaccedilatildeo baacutesica c o m u m e respeito aos
valores culturais e artiacutesticos nacionais e regionais O paraacutegrafo Io desse Artigo dispotildee
que [o] ensino religioso de matriacutecula facultativa constituiraacute disciplina dos horaacuterios
normais das escolas puacuteblicas de ensino fundamental
Nesse sentido o art 33 da Lei n 9394 de 22 de julho de 1997 conforme
alterada determina que o respeito agrave diversidade cultural religiosa do Brasil eacute assegurado
no ensino religioso sendo proibida qualquer forma de proselitismo O primeiro paraacutegrafo
desse Artigo dispotildee que [o]s sistemas de ensino regulamentaratildeo os procedimentos para a
definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso e estabeleceratildeo as normas para a habilitaccedilatildeo
e admissatildeo dos professores Ademais de acordo com o segundo paraacutegrafo do referido
Artigo [o]s sistemas de ensino ouviratildeo entidade civil constituiacuteda pelas diferentes
denominaccedilotildees religiosas para a definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso46
D e modo a observar a proibiccedilatildeo constitucional de estabelecimento de
religiatildeo o ensino religioso e m escolas natildeo pode consistir no ensino de u m a religiatildeo
determinada Nesse sentido a previsatildeo constitucional tem por finalidade dar oportunidade
a estudantes que estatildeo e m idade de formaccedilatildeo de personalidade de ter acesso a informaccedilotildees
de modo que no futuro eles possam livremente escolher adotar ou natildeo adotar u m a religiatildeo
(cf S C H E R K E R K E W I T Z 2002 60)47
Levando e m consideraccedilatildeo esses dispositivos a A D I N n 326804 foi
ajuizada pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo com o intuito de
declarar que a Lei n 3459 aprovada pela Assembleacuteia Legislativa do Estado do Rio de
Janeiro e m 14 de setembro de 2000 eacute inconstitucional u m a vez que estabeleceu que (i)
religiatildeo seria ensinada na forma confessional (ii) o conteuacutedo do ensino religioso seria
atribuiccedilatildeo de diversas autoridades religiosas e (iii) apenas professores credenciados pela
autoridade religiosa competente poderiam ensinar religiatildeo e m escolas oficiais
A Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo argumenta que o
ensino religioso na forma confessional viola o art 210 da Constituiccedilatildeo que estabelece que
os valores culturais seratildeo respeitados quando do estabelecimento dos conteuacutedos miacutenimos
para o ensino fundamental e o art 33 da Lei Federal n 939497 que determina que o
ensino religioso respeitaraacute a diversidade cultural do Brasil
Cumpre notar que nos termos do art 21 do Decreto-Lei n 4244 de 9 de abril de 1942 o programa e o regime didaacutetico do ensino religioso deveria ser determinado pela autoridade religiosa De acordo com Alexandre de Moraes para que a regulamentaccedilatildeo e a execuccedilatildeo desta disposiccedilatildeo natildeo sejam inconstitucionais faz-se necessaacuterio que toda e qualquer religiatildeo possa ser ensinada nas escolas puacuteblicas O autor entende que na praacutetica isso eacute absolutamente impossiacutevel (cf M O R A E S 2003 1984-1985)
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762 Maria Costa Neves Machado
Adicionalmente a confederaccedilatildeo sustenta que a disposiccedilatildeo de acordo
com a qual o conteuacutedo do ensino religioso eacute u m a atribuiccedilatildeo das diversas autoridades
religiosas contraria o art 33 da Lei Federal n 939497 que estabelece diferentes padrotildees
para a definiccedilatildeo do conteuacutedo do ensino religioso E m conformidade com tal lei federal
os sistemas de ensino devem ouvir entidades civis de diversas religiotildees para definir
o conteuacutedo do ensino religioso A violaccedilatildeo eacute demonstrada com base no fato de que o
conceito de autoridade religiosa - que implica u m a estrutura administrativa e hieraacuterquica
como aquelas presentes nas Igrejas Catoacutelicas Presbiterianas e Judaicas - natildeo eacute parte da
tradiccedilatildeo de algumas religiotildees que tem origem Evangeacutelica ou afro-brasileira
A A D I N ainda natildeo foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal De qualquer
forma os argumentos apresentados pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores em
Educaccedilatildeo - e pelos vaacuterios amicus curiae admitidos no processo - parecem ser coerentes
com a Constituiccedilatildeo Federal e aptos a derrubar a Lei Estadual n 3459
N o Estado de Satildeo Paulo o ensino religioso previsto no art 33 da Lei n
939497 foi regulamentado na Deliberaccedilatildeo do Conselho Estadual de Educaccedilatildeo - CEE
n 162001 com fundamento na Indicaccedilatildeo C E E n 07 aprovada e m 25 de julho de 2001
de acordo com a qual o ensino religioso deve ser enfocado na perspectiva constitucional
de promoccedilatildeo da cidadania e da dignidade especialmente na funccedilatildeo social da educaccedilatildeo
e m geral de modo que deve ser enfatizada a reflexatildeo sobre a cidadania e as praacuteticas a ela
pertinentes Assumindo que natildeo haacute conhecimento futuro e vida sem a competecircncia de
conviver com as diferenccedilas a Indicaccedilatildeo C E E n 072001 reconhece que satildeo bem-vindos
todos os projetos educacionais (aiacute se podendo incluir o ensino religioso) que visam direta
ou indiretamente o trabalho comunitaacuterio a conscientizaccedilatildeo da responsabilidade pessoal
e social e que estimulem e restaurem os valores humanos de compromisso moral e eacutetico
auxiliando a compreensatildeo do h o m e m e o autoconhecimento Nesse sentido de acordo com
referida indicaccedilatildeo o ensino religioso nas escolas deve antes de tudo fundamentar-se nos
princiacutepios da cidadania e do entendimento do outro Assim o C E E recomendou que o
ensino religioso fosse tratado como tema transversal por meio da implementaccedilatildeo de uma
proposta de abordagem filosoacutefica que permitisse a reflexatildeo sobre valores e princiacutepios eacuteticos e
o conhecimento da histoacuteria das religiotildees Tambeacutem no Estado de Satildeo Paulo a implementaccedilatildeo
do ensino religioso foi arduamente debatida e criticada especialmente em razatildeo da
problemaacutetica questatildeo do estabelecimento de religiatildeo vedado pela Constituiccedilatildeo de 198848
Vide entre outros GIUMBELLI Emerson Ensino religioso em escolas puacuteblicas no Brasil notas de pesquisa Debates do N E R (UFRGS) v 14 p 50-68 2009 CURY Carlos Roberto Jamil Ensino religioso na escola puacuteblica o retorno de uma polecircmica recorrente Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 27 p 183-213 setdez 2004 LUI Janayna de Alencar Entre crentes e pagatildeos ensino religioso em Satildeo Paulo Cadernos de Pesquisa v 37 n 131 p 333-349 maioago 2007 R A N Q U E T A T JUacuteNIOR Ceacutesar Do confessional ao plural uma anaacutelise sobre o novo modelo de ensino religioso nas escolas brasileiras Revista Diaacutelogo Educaccedilatildeo Curitiba v 8 n 23 p 289-305 janabr 2008
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 763
Neste item a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil foi examinada
com a finalidade de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota u m princiacutepio de
toleracircncia ou de respeito As normas relacionadas agrave garantia da liberdade de consciecircncia
e de crenccedila bem como ao livre exerciacutecio de cultos religiosos agrave proteccedilatildeo dos locais de
adoraccedilatildeo agrave proibiccedilatildeo do estabelecimento de religiatildeo agrave garantia de assistecircncia religiosa
e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva agrave acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de
consciecircncia e ao ensino religioso facultativo todas foram analisadas de modo que fosse
possiacutevel concluir se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia ou
do respeito
D e acordo com tal anaacutelise o ordenamento juriacutedico brasileiro parece tratar a
religiatildeo e m conformidade com o princiacutepio do respeito Isso porque pessoas religiosas e natildeo
religiosas podem entrar no espaccedilo puacutebico e m iguais condiccedilotildees sendo que a faculdade de
buscar a finalidade uacuteltima da vida eacute respeitada pelo Estado Nesse sentido o ordenamento
juriacutedico brasileiro garante a liberdade de consciecircncia e de crenccedila o livre exerciacutecio de
cultos religiosos e a proteccedilatildeo dos locais de adoraccedilatildeo Adicionalmente enquanto de u m
lado nenhuma religiatildeo pode ser estabelecida pelo Estado pessoas religiosas podem
reivindicar imperativo de consciecircncia bem como receber assistecircncia religiosa e ensino
religioso se essa for a sua escolha
Isso demonstra que todos os indiviacuteduos de acordo com o ordenamento
juriacutedico brasileiro devem entrar no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais e que o Estado eacute
obrigado a fornecer condiccedilotildees para que pessoas religiosas e natildeo religiosas possam buscar
a finalidade uacuteltima da vida se essa for sua escolha respeitando e m todos os indiviacuteduos a
faculdade de realizar tal busca
4 Conclusatildeo
Inicialmente foi examinada neste artigo a diferenccedila entre o princiacutepio da
toleracircncia e o princiacutepio do respeito no que se refere ao tratamento legal de questotildees de
consciecircncia Posteriormente a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no ordenamento
juriacutedico brasileiro foi analisada com a finalidade de verificar qual desses dois princiacutepios eacute
adotado Finalmente conclui-se que o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio
do respeito pela faculdade dos indiviacuteduos de buscar pela finalidade uacuteltima da vida sendo o
Estado obrigado a garantir condiccedilotildees adequadas para as pessoas exercerem tal faculdade
de acordo com suas escolhas autocircnomas de modo que todos os indiviacuteduos possam entrar
no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais
Satildeo Paulo dezembro de 2010
R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010
IM Maria Costa Neves Machado
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758 Maria Costa Neves Machado
Duas disposiccedilotildees dessa lei foram vetadas pelo Presidente37 A primeira
disposiccedilatildeo estabelecia que a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa natildeo seria permitida se de
acordo com o hospital ou a prisatildeo houvesse risco de vida ou sauacutede para o internado ou
para o religioso O Presidente justificou esse veto argumentando que a transferecircncia do
processo decisoacuterio relativo agrave prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa aos hospitais ou prisotildees
excluindo-se o paciente ou preso bem como suas famiacutelias era contraacuterio aos incisos VI
e VII do art 5o da Constituiccedilatildeo Ademais o Presidente sustentou que a precauccedilatildeo que
motivou o dispositivo vetado jaacute estaacute assegurada pelo art 2 o da lei e m questatildeo
A segunda disposiccedilatildeo vetada pelo Presidente determinava que o interno teria
direito a pelo menos u m a visita semanal de religiosos da confissatildeo religiosa que professe
O Presidente justificou esse veto argumentando que a periodicidade das visitas deveria ser
determinada pela autoridade local levando e m consideraccedilatildeo as particularidades regionais
os usos e costumes Aleacutem disso o Presidente sustentou que era inadequado tratar hospitais
e prisotildees da mesma forma tendo e m vista as circunstacircncias especiacuteficas de cada instituiccedilatildeo
Havia tambeacutem a preocupaccedilatildeo de que o nuacutemero miacutenimo de visitas estabelecido por lei se
tornasse o nuacutemero maacuteximo permitido na praacutetica
33 Acomodaccedilatildeo em razatildeo de imperativo de consciecircncia
Nos termos do inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo ningueacutem seraacute privado
de direitos por motivo de crenccedila religiosa ou de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica salvo se as
invocar para eximir-se de obrigaccedilatildeo legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestaccedilatildeo
alternativa fixada e m lei Esse inciso entre outras coisas estaacute relacionado ao serviccedilo
militar obrigatoacuterio estabelecido pelo art 143 da Constituiccedilatildeo O paraacutegrafo Io deste artigo
dispotildee que agraves Forccedilas Armadas compete na forma da lei atribuir serviccedilo alternativo aos
que e m tempo de paz apoacutes alistados alegarem imperativo de consciecircncia entendendo-
se como tal o decorrente de crenccedila religiosa e de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica para se
eximirem de atividades de caraacuteter essencialmente militar 38
Esse eacute u m dos casos de acomodaccedilatildeo existentes no ordenamento juriacutedico
brasileiro relacionado agrave crenccedila religiosa ou agraves convicccedilotildees filosoacuteficas ou poliacuteticas Para
buscar proteccedilatildeo constitucional de mo d o a natildeo participar do serviccedilo militar compulsoacuterio
e m tempos de paz faz-se necessaacuterio provar comprometimento com ideacuteias natildeo beligerantes
a ser demonstrado por atitudes passadas que estejam e m consonacircncia com tal ideal
( M A R T I N S e B A S T O S 1989 56) Note-se que eacute possiacutevel ser excluiacutedo de atividades
essencialmente militares mas poderatildeo ser impostos serviccedilos alternativos que consistam em
57 Cf Mensagem de Veto n 960 de 14 de julho de 2000 Disponiacutevel em lthttpswwwplanaltogovbr
ccivil_03leisMensagem_Veto2000Mv0960-00htmgt Acesso em 13 fev 2009 i8 Esse dispositivo constitucional foi regulamentado pela Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 759
atividades administrativas de assistecircncia filantroacutepicas ou produtivas39 jaacute que a obrigaccedilatildeo
de servir ao Paiacutes natildeo eacute excluiacuteda ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 211) Cumpre notar que da
reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia natildeo pode resultar a privaccedilatildeo de direitos exceto
se a pessoa tambeacutem se recusar a prestar serviccedilo alternativo natildeo essencialmente militar
Nessas circunstacircncias a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo aplicaacutevel natildeo satildeo inteiramente claras
sobre as consequumlecircncias legais da recusa Alguns autores entendem que nesse caso a pessoa
que se recusou a prestar serviccedilos alternativos poderia ser privada de direitos (FERREIRA
FILHO 1994 34 e 81 e M A R T I N S e B A S T O S 1989 212)40
Constata-se aqui o que parece ser u m a grande incoerecircncia no ordenamento
juriacutedico brasileiro Enquanto e m tempos de paz as pessoas podem reivindicar imperativo
de consciecircncia para evitar serviccedilos essencialmente militares quando o Estado declara
guerra nenhum cidadatildeo poderaacute invocar crenccedilas religiosas ou convicccedilotildees filosoacuteficas ou
poliacuteticas com a finalidade de natildeo participar do serviccedilo militar41 C o m o resultado durante
o periacuteodo mais adequado e apropriado para expressar desacordo com guerras e ideais
beligerantes as pessoas natildeo tem direito de reivindicar imperativo de consciecircncia para natildeo
participar do serviccedilo militar na hipoacutetese de a Constituiccedilatildeo ser interpretada literalmente
Outro caso de acomodaccedilatildeo relacionado a crenccedilas religiosas que vale ser
mencionado eacute o uso terapecircutico do chaacute Ayahuasca em rituais religiosos A partir de
1985 o governo brasileiro comeccedilou a estudar os aspectos sociais e culturais referentes
ao uso de tal chaacute E m 23 de novembro de 2006 o Grupo Multidisciplinar de Trabalho do
Comitecirc Nacional Antidrogas do Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas42
emitiu seu relatoacuterio final reconhecendo que o uso do chaacute Ayahuasca deveria ser limitado
a rituais religiosos e m locais autorizados pela direccedilatildeo das entidades que fazem uso de
tal chaacute sendo proibido seu uso em conjunto com substacircncia ilegais Atualmente o uso
do chaacute Ayahuasca e m conformidade com as normas aplicaacuteveis eacute assegurado com base
na garantia constitucional da liberdade de consciecircncia e de crenccedila e do livre exerciacutecio de
cultos religiosos Ademais a legitimidade do uso religioso da Ayahuasca foi ratificada
como rica e ancestral manifestaccedilatildeo cultural que exatamente pela relevacircncia de seu valor
Os serviccedilos alternativos podem ser prestados e m organizaccedilotildees militares da ativa e e m oacutergatildeos de formaccedilatildeo de reservas das Forccedilas Armadas ou em oacutergatildeos subordinados aos Ministeacuterios Civis mediante convecircnios entre estes e os Ministeacuterios Militares Cf sectsect 2o e 3o do art 3o da Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991 N o entanto parece-nos que o serviccedilo militar obrigatoacuterio natildeo estaacute de acordo com os princiacutepios que norteiam a Constituiccedilatildeo no sentido de que serviccedilos alternativos natildeo deveriam ser impostos Contudo a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo Ives Granda Martins sustenta que e m tempos de guerra todos os cidadatildeos tecircm iguais deveres perante o Paiacutes (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 212) Discordamos totalmente deste posicionamento porque uma das formas mais eficazes de expressar desacordo com guerras e ideais beligerantes eacute durante o periacuteodo de guerra quando as pessoas que natildeo concordam poderiam recusar-se a prestar serviccedilos militares Contudo conforme mencionado acima a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo O Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas - S I S N A D foi instituiacutedo pela Lei n 11343 de 23 de agosto de 2006
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7(gt(l Maria Costa Neves Machado
histoacuterico antropoloacutegico e social eacute credora da proteccedilatildeo do Estado nos termos do art
2o caput da Lei n 1134306 e do art 215 sect1deg da C F 43 que dispotildee que [o] Estado
protegeraacute as manifestaccedilotildees das culturas populares indiacutegenas e afro-brasileiras e das de
outros grupos participantes do processo civilizatoacuterio nacional44
Eacute de se notar tambeacutem o recente caso no Estado de Satildeo Paulo de acomodaccedilatildeo
religiosa previsto na Lei Estadual n 13541 de 7 de maio de 2009 Tal lei proiacutebe o consumo
de cigarros cigarrilhas charutos cachimbos ou de qualquer outro produto fumiacutegeno
derivado ou natildeo do tabaco e m ambientes de uso coletivo puacuteblicos ou privados Contudo
nos termos do art 6o da referida lei essa natildeo se aplica aos locais de culto religioso em que
o uso de produto fumiacutegeno faccedila parte do ritual O u seja trata-se de mais u m caso em que
uma lei geral eacute excetuada para acomodar praacuteticas relacionadas agrave liberdade de religiatildeo e
de culto
Diferentemente das situaccedilotildees envolvendo serviccedilo militar obrigatoacuterio
o chaacute Ayahuasca e rituais religiosos que envolvem o uso de produtos fumiacutegenos foi
negada acomodaccedilatildeo quando da reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia no contexto
de frequumlecircncia escolar no Estado de Satildeo Paulo E m opiniatildeo escrita por Ada Pellegrini
Grinover publicada e m 25 de outubro de 2002 o Conselho Estadual de Educaccedilatildeo do
Estado de Satildeo Paulo entendeu que estudantes que fossem membros da Igreja Adventista
do Seacutetimo Dia estariam obrigados a frequumlentar as aulas durante o periacuteodo compreendido
entre 1800 horas de sexta-feira e 1800 de saacutebados de acordo com a Lei n 9394 de 20
de dezembro de 1996 conforme alterada embora tal frequumlecircncia seja contraacuteria agraves suas
praacuteticas religiosas u m a vez que natildeo haacute prestaccedilatildeo alternativa estabelecida em lei para tal
escusa de consciecircncia conforme fixado pelo inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo45
Adicionalmente aos casos de acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de
consciecircncia o inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo tambeacutem jaacute foi invocado para proteger
os direitos dos professores do Estado de Rio de Janeiro contra lei estadual que estabeleceu
que somente os professores credenciados pela autoridade religiosa competente estaratildeo
autorizados a ministrar as aulas de ensino religioso e m escolas puacuteblicas estaduais Para
compreender a Accedilatildeo Direta de Inconstitucionalidade - A D I N n 326804 que ainda natildeo
foi decidida pela Suprema Corte faz-se necessaacuterio analisar as disposiccedilotildees legais aplicaacuteveis
relacionadas ao ensino religioso no Brasil
Cf Relatoacuterio Final do Grupo Multidisciplinar de Trabalho disponiacutevel entre outros siacutetios em lthttp wwwsantodaimeorgcomunidadenoticiasrelfinal_conadhtmgt Acesso em 4 mar 2009 e lthttpwww ayahuascabrasilorgindexphpop=legisl01gt Acesso em 4 mar 2009 A acomodaccedilatildeo relacionada ao uso do chaacute Ayahuasca para fins religiosos nos Estados Unidos foi decidida pela Suprema Courte em Gonzales v O Centro Espirita Beneficente Uniatildeo do Vegetal 546 US 418 (2006) Cf Parecer C E E No 4422002 - C E S - Aprovado em 23102002 Disponiacutevel em lthttpwwwceesp spgovbrParecerespa_442_02htmgt Acesso em 4 mar 2009
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 761
34 Ensino religioso facultativo
Nos termos do art 210 da Constituiccedilatildeo [sjeratildeo fixados conteuacutedos miacutenimos
para o ensino fundamental de maneira a assegurar formaccedilatildeo baacutesica c o m u m e respeito aos
valores culturais e artiacutesticos nacionais e regionais O paraacutegrafo Io desse Artigo dispotildee
que [o] ensino religioso de matriacutecula facultativa constituiraacute disciplina dos horaacuterios
normais das escolas puacuteblicas de ensino fundamental
Nesse sentido o art 33 da Lei n 9394 de 22 de julho de 1997 conforme
alterada determina que o respeito agrave diversidade cultural religiosa do Brasil eacute assegurado
no ensino religioso sendo proibida qualquer forma de proselitismo O primeiro paraacutegrafo
desse Artigo dispotildee que [o]s sistemas de ensino regulamentaratildeo os procedimentos para a
definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso e estabeleceratildeo as normas para a habilitaccedilatildeo
e admissatildeo dos professores Ademais de acordo com o segundo paraacutegrafo do referido
Artigo [o]s sistemas de ensino ouviratildeo entidade civil constituiacuteda pelas diferentes
denominaccedilotildees religiosas para a definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso46
D e modo a observar a proibiccedilatildeo constitucional de estabelecimento de
religiatildeo o ensino religioso e m escolas natildeo pode consistir no ensino de u m a religiatildeo
determinada Nesse sentido a previsatildeo constitucional tem por finalidade dar oportunidade
a estudantes que estatildeo e m idade de formaccedilatildeo de personalidade de ter acesso a informaccedilotildees
de modo que no futuro eles possam livremente escolher adotar ou natildeo adotar u m a religiatildeo
(cf S C H E R K E R K E W I T Z 2002 60)47
Levando e m consideraccedilatildeo esses dispositivos a A D I N n 326804 foi
ajuizada pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo com o intuito de
declarar que a Lei n 3459 aprovada pela Assembleacuteia Legislativa do Estado do Rio de
Janeiro e m 14 de setembro de 2000 eacute inconstitucional u m a vez que estabeleceu que (i)
religiatildeo seria ensinada na forma confessional (ii) o conteuacutedo do ensino religioso seria
atribuiccedilatildeo de diversas autoridades religiosas e (iii) apenas professores credenciados pela
autoridade religiosa competente poderiam ensinar religiatildeo e m escolas oficiais
A Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo argumenta que o
ensino religioso na forma confessional viola o art 210 da Constituiccedilatildeo que estabelece que
os valores culturais seratildeo respeitados quando do estabelecimento dos conteuacutedos miacutenimos
para o ensino fundamental e o art 33 da Lei Federal n 939497 que determina que o
ensino religioso respeitaraacute a diversidade cultural do Brasil
Cumpre notar que nos termos do art 21 do Decreto-Lei n 4244 de 9 de abril de 1942 o programa e o regime didaacutetico do ensino religioso deveria ser determinado pela autoridade religiosa De acordo com Alexandre de Moraes para que a regulamentaccedilatildeo e a execuccedilatildeo desta disposiccedilatildeo natildeo sejam inconstitucionais faz-se necessaacuterio que toda e qualquer religiatildeo possa ser ensinada nas escolas puacuteblicas O autor entende que na praacutetica isso eacute absolutamente impossiacutevel (cf M O R A E S 2003 1984-1985)
R Fac Dir Univ SP v 105 p 743 - 765 jandez 2010
762 Maria Costa Neves Machado
Adicionalmente a confederaccedilatildeo sustenta que a disposiccedilatildeo de acordo
com a qual o conteuacutedo do ensino religioso eacute u m a atribuiccedilatildeo das diversas autoridades
religiosas contraria o art 33 da Lei Federal n 939497 que estabelece diferentes padrotildees
para a definiccedilatildeo do conteuacutedo do ensino religioso E m conformidade com tal lei federal
os sistemas de ensino devem ouvir entidades civis de diversas religiotildees para definir
o conteuacutedo do ensino religioso A violaccedilatildeo eacute demonstrada com base no fato de que o
conceito de autoridade religiosa - que implica u m a estrutura administrativa e hieraacuterquica
como aquelas presentes nas Igrejas Catoacutelicas Presbiterianas e Judaicas - natildeo eacute parte da
tradiccedilatildeo de algumas religiotildees que tem origem Evangeacutelica ou afro-brasileira
A A D I N ainda natildeo foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal De qualquer
forma os argumentos apresentados pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores em
Educaccedilatildeo - e pelos vaacuterios amicus curiae admitidos no processo - parecem ser coerentes
com a Constituiccedilatildeo Federal e aptos a derrubar a Lei Estadual n 3459
N o Estado de Satildeo Paulo o ensino religioso previsto no art 33 da Lei n
939497 foi regulamentado na Deliberaccedilatildeo do Conselho Estadual de Educaccedilatildeo - CEE
n 162001 com fundamento na Indicaccedilatildeo C E E n 07 aprovada e m 25 de julho de 2001
de acordo com a qual o ensino religioso deve ser enfocado na perspectiva constitucional
de promoccedilatildeo da cidadania e da dignidade especialmente na funccedilatildeo social da educaccedilatildeo
e m geral de modo que deve ser enfatizada a reflexatildeo sobre a cidadania e as praacuteticas a ela
pertinentes Assumindo que natildeo haacute conhecimento futuro e vida sem a competecircncia de
conviver com as diferenccedilas a Indicaccedilatildeo C E E n 072001 reconhece que satildeo bem-vindos
todos os projetos educacionais (aiacute se podendo incluir o ensino religioso) que visam direta
ou indiretamente o trabalho comunitaacuterio a conscientizaccedilatildeo da responsabilidade pessoal
e social e que estimulem e restaurem os valores humanos de compromisso moral e eacutetico
auxiliando a compreensatildeo do h o m e m e o autoconhecimento Nesse sentido de acordo com
referida indicaccedilatildeo o ensino religioso nas escolas deve antes de tudo fundamentar-se nos
princiacutepios da cidadania e do entendimento do outro Assim o C E E recomendou que o
ensino religioso fosse tratado como tema transversal por meio da implementaccedilatildeo de uma
proposta de abordagem filosoacutefica que permitisse a reflexatildeo sobre valores e princiacutepios eacuteticos e
o conhecimento da histoacuteria das religiotildees Tambeacutem no Estado de Satildeo Paulo a implementaccedilatildeo
do ensino religioso foi arduamente debatida e criticada especialmente em razatildeo da
problemaacutetica questatildeo do estabelecimento de religiatildeo vedado pela Constituiccedilatildeo de 198848
Vide entre outros GIUMBELLI Emerson Ensino religioso em escolas puacuteblicas no Brasil notas de pesquisa Debates do N E R (UFRGS) v 14 p 50-68 2009 CURY Carlos Roberto Jamil Ensino religioso na escola puacuteblica o retorno de uma polecircmica recorrente Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 27 p 183-213 setdez 2004 LUI Janayna de Alencar Entre crentes e pagatildeos ensino religioso em Satildeo Paulo Cadernos de Pesquisa v 37 n 131 p 333-349 maioago 2007 R A N Q U E T A T JUacuteNIOR Ceacutesar Do confessional ao plural uma anaacutelise sobre o novo modelo de ensino religioso nas escolas brasileiras Revista Diaacutelogo Educaccedilatildeo Curitiba v 8 n 23 p 289-305 janabr 2008
R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010
Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 763
Neste item a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil foi examinada
com a finalidade de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota u m princiacutepio de
toleracircncia ou de respeito As normas relacionadas agrave garantia da liberdade de consciecircncia
e de crenccedila bem como ao livre exerciacutecio de cultos religiosos agrave proteccedilatildeo dos locais de
adoraccedilatildeo agrave proibiccedilatildeo do estabelecimento de religiatildeo agrave garantia de assistecircncia religiosa
e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva agrave acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de
consciecircncia e ao ensino religioso facultativo todas foram analisadas de modo que fosse
possiacutevel concluir se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia ou
do respeito
D e acordo com tal anaacutelise o ordenamento juriacutedico brasileiro parece tratar a
religiatildeo e m conformidade com o princiacutepio do respeito Isso porque pessoas religiosas e natildeo
religiosas podem entrar no espaccedilo puacutebico e m iguais condiccedilotildees sendo que a faculdade de
buscar a finalidade uacuteltima da vida eacute respeitada pelo Estado Nesse sentido o ordenamento
juriacutedico brasileiro garante a liberdade de consciecircncia e de crenccedila o livre exerciacutecio de
cultos religiosos e a proteccedilatildeo dos locais de adoraccedilatildeo Adicionalmente enquanto de u m
lado nenhuma religiatildeo pode ser estabelecida pelo Estado pessoas religiosas podem
reivindicar imperativo de consciecircncia bem como receber assistecircncia religiosa e ensino
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Isso demonstra que todos os indiviacuteduos de acordo com o ordenamento
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obrigado a fornecer condiccedilotildees para que pessoas religiosas e natildeo religiosas possam buscar
a finalidade uacuteltima da vida se essa for sua escolha respeitando e m todos os indiviacuteduos a
faculdade de realizar tal busca
4 Conclusatildeo
Inicialmente foi examinada neste artigo a diferenccedila entre o princiacutepio da
toleracircncia e o princiacutepio do respeito no que se refere ao tratamento legal de questotildees de
consciecircncia Posteriormente a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no ordenamento
juriacutedico brasileiro foi analisada com a finalidade de verificar qual desses dois princiacutepios eacute
adotado Finalmente conclui-se que o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio
do respeito pela faculdade dos indiviacuteduos de buscar pela finalidade uacuteltima da vida sendo o
Estado obrigado a garantir condiccedilotildees adequadas para as pessoas exercerem tal faculdade
de acordo com suas escolhas autocircnomas de modo que todos os indiviacuteduos possam entrar
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 765
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 759
atividades administrativas de assistecircncia filantroacutepicas ou produtivas39 jaacute que a obrigaccedilatildeo
de servir ao Paiacutes natildeo eacute excluiacuteda ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 211) Cumpre notar que da
reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia natildeo pode resultar a privaccedilatildeo de direitos exceto
se a pessoa tambeacutem se recusar a prestar serviccedilo alternativo natildeo essencialmente militar
Nessas circunstacircncias a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo aplicaacutevel natildeo satildeo inteiramente claras
sobre as consequumlecircncias legais da recusa Alguns autores entendem que nesse caso a pessoa
que se recusou a prestar serviccedilos alternativos poderia ser privada de direitos (FERREIRA
FILHO 1994 34 e 81 e M A R T I N S e B A S T O S 1989 212)40
Constata-se aqui o que parece ser u m a grande incoerecircncia no ordenamento
juriacutedico brasileiro Enquanto e m tempos de paz as pessoas podem reivindicar imperativo
de consciecircncia para evitar serviccedilos essencialmente militares quando o Estado declara
guerra nenhum cidadatildeo poderaacute invocar crenccedilas religiosas ou convicccedilotildees filosoacuteficas ou
poliacuteticas com a finalidade de natildeo participar do serviccedilo militar41 C o m o resultado durante
o periacuteodo mais adequado e apropriado para expressar desacordo com guerras e ideais
beligerantes as pessoas natildeo tem direito de reivindicar imperativo de consciecircncia para natildeo
participar do serviccedilo militar na hipoacutetese de a Constituiccedilatildeo ser interpretada literalmente
Outro caso de acomodaccedilatildeo relacionado a crenccedilas religiosas que vale ser
mencionado eacute o uso terapecircutico do chaacute Ayahuasca em rituais religiosos A partir de
1985 o governo brasileiro comeccedilou a estudar os aspectos sociais e culturais referentes
ao uso de tal chaacute E m 23 de novembro de 2006 o Grupo Multidisciplinar de Trabalho do
Comitecirc Nacional Antidrogas do Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas42
emitiu seu relatoacuterio final reconhecendo que o uso do chaacute Ayahuasca deveria ser limitado
a rituais religiosos e m locais autorizados pela direccedilatildeo das entidades que fazem uso de
tal chaacute sendo proibido seu uso em conjunto com substacircncia ilegais Atualmente o uso
do chaacute Ayahuasca e m conformidade com as normas aplicaacuteveis eacute assegurado com base
na garantia constitucional da liberdade de consciecircncia e de crenccedila e do livre exerciacutecio de
cultos religiosos Ademais a legitimidade do uso religioso da Ayahuasca foi ratificada
como rica e ancestral manifestaccedilatildeo cultural que exatamente pela relevacircncia de seu valor
Os serviccedilos alternativos podem ser prestados e m organizaccedilotildees militares da ativa e e m oacutergatildeos de formaccedilatildeo de reservas das Forccedilas Armadas ou em oacutergatildeos subordinados aos Ministeacuterios Civis mediante convecircnios entre estes e os Ministeacuterios Militares Cf sectsect 2o e 3o do art 3o da Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991 N o entanto parece-nos que o serviccedilo militar obrigatoacuterio natildeo estaacute de acordo com os princiacutepios que norteiam a Constituiccedilatildeo no sentido de que serviccedilos alternativos natildeo deveriam ser impostos Contudo a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo Ives Granda Martins sustenta que e m tempos de guerra todos os cidadatildeos tecircm iguais deveres perante o Paiacutes (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 212) Discordamos totalmente deste posicionamento porque uma das formas mais eficazes de expressar desacordo com guerras e ideais beligerantes eacute durante o periacuteodo de guerra quando as pessoas que natildeo concordam poderiam recusar-se a prestar serviccedilos militares Contudo conforme mencionado acima a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo O Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas - S I S N A D foi instituiacutedo pela Lei n 11343 de 23 de agosto de 2006
R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010
7(gt(l Maria Costa Neves Machado
histoacuterico antropoloacutegico e social eacute credora da proteccedilatildeo do Estado nos termos do art
2o caput da Lei n 1134306 e do art 215 sect1deg da C F 43 que dispotildee que [o] Estado
protegeraacute as manifestaccedilotildees das culturas populares indiacutegenas e afro-brasileiras e das de
outros grupos participantes do processo civilizatoacuterio nacional44
Eacute de se notar tambeacutem o recente caso no Estado de Satildeo Paulo de acomodaccedilatildeo
religiosa previsto na Lei Estadual n 13541 de 7 de maio de 2009 Tal lei proiacutebe o consumo
de cigarros cigarrilhas charutos cachimbos ou de qualquer outro produto fumiacutegeno
derivado ou natildeo do tabaco e m ambientes de uso coletivo puacuteblicos ou privados Contudo
nos termos do art 6o da referida lei essa natildeo se aplica aos locais de culto religioso em que
o uso de produto fumiacutegeno faccedila parte do ritual O u seja trata-se de mais u m caso em que
uma lei geral eacute excetuada para acomodar praacuteticas relacionadas agrave liberdade de religiatildeo e
de culto
Diferentemente das situaccedilotildees envolvendo serviccedilo militar obrigatoacuterio
o chaacute Ayahuasca e rituais religiosos que envolvem o uso de produtos fumiacutegenos foi
negada acomodaccedilatildeo quando da reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia no contexto
de frequumlecircncia escolar no Estado de Satildeo Paulo E m opiniatildeo escrita por Ada Pellegrini
Grinover publicada e m 25 de outubro de 2002 o Conselho Estadual de Educaccedilatildeo do
Estado de Satildeo Paulo entendeu que estudantes que fossem membros da Igreja Adventista
do Seacutetimo Dia estariam obrigados a frequumlentar as aulas durante o periacuteodo compreendido
entre 1800 horas de sexta-feira e 1800 de saacutebados de acordo com a Lei n 9394 de 20
de dezembro de 1996 conforme alterada embora tal frequumlecircncia seja contraacuteria agraves suas
praacuteticas religiosas u m a vez que natildeo haacute prestaccedilatildeo alternativa estabelecida em lei para tal
escusa de consciecircncia conforme fixado pelo inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo45
Adicionalmente aos casos de acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de
consciecircncia o inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo tambeacutem jaacute foi invocado para proteger
os direitos dos professores do Estado de Rio de Janeiro contra lei estadual que estabeleceu
que somente os professores credenciados pela autoridade religiosa competente estaratildeo
autorizados a ministrar as aulas de ensino religioso e m escolas puacuteblicas estaduais Para
compreender a Accedilatildeo Direta de Inconstitucionalidade - A D I N n 326804 que ainda natildeo
foi decidida pela Suprema Corte faz-se necessaacuterio analisar as disposiccedilotildees legais aplicaacuteveis
relacionadas ao ensino religioso no Brasil
Cf Relatoacuterio Final do Grupo Multidisciplinar de Trabalho disponiacutevel entre outros siacutetios em lthttp wwwsantodaimeorgcomunidadenoticiasrelfinal_conadhtmgt Acesso em 4 mar 2009 e lthttpwww ayahuascabrasilorgindexphpop=legisl01gt Acesso em 4 mar 2009 A acomodaccedilatildeo relacionada ao uso do chaacute Ayahuasca para fins religiosos nos Estados Unidos foi decidida pela Suprema Courte em Gonzales v O Centro Espirita Beneficente Uniatildeo do Vegetal 546 US 418 (2006) Cf Parecer C E E No 4422002 - C E S - Aprovado em 23102002 Disponiacutevel em lthttpwwwceesp spgovbrParecerespa_442_02htmgt Acesso em 4 mar 2009
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 761
34 Ensino religioso facultativo
Nos termos do art 210 da Constituiccedilatildeo [sjeratildeo fixados conteuacutedos miacutenimos
para o ensino fundamental de maneira a assegurar formaccedilatildeo baacutesica c o m u m e respeito aos
valores culturais e artiacutesticos nacionais e regionais O paraacutegrafo Io desse Artigo dispotildee
que [o] ensino religioso de matriacutecula facultativa constituiraacute disciplina dos horaacuterios
normais das escolas puacuteblicas de ensino fundamental
Nesse sentido o art 33 da Lei n 9394 de 22 de julho de 1997 conforme
alterada determina que o respeito agrave diversidade cultural religiosa do Brasil eacute assegurado
no ensino religioso sendo proibida qualquer forma de proselitismo O primeiro paraacutegrafo
desse Artigo dispotildee que [o]s sistemas de ensino regulamentaratildeo os procedimentos para a
definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso e estabeleceratildeo as normas para a habilitaccedilatildeo
e admissatildeo dos professores Ademais de acordo com o segundo paraacutegrafo do referido
Artigo [o]s sistemas de ensino ouviratildeo entidade civil constituiacuteda pelas diferentes
denominaccedilotildees religiosas para a definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso46
D e modo a observar a proibiccedilatildeo constitucional de estabelecimento de
religiatildeo o ensino religioso e m escolas natildeo pode consistir no ensino de u m a religiatildeo
determinada Nesse sentido a previsatildeo constitucional tem por finalidade dar oportunidade
a estudantes que estatildeo e m idade de formaccedilatildeo de personalidade de ter acesso a informaccedilotildees
de modo que no futuro eles possam livremente escolher adotar ou natildeo adotar u m a religiatildeo
(cf S C H E R K E R K E W I T Z 2002 60)47
Levando e m consideraccedilatildeo esses dispositivos a A D I N n 326804 foi
ajuizada pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo com o intuito de
declarar que a Lei n 3459 aprovada pela Assembleacuteia Legislativa do Estado do Rio de
Janeiro e m 14 de setembro de 2000 eacute inconstitucional u m a vez que estabeleceu que (i)
religiatildeo seria ensinada na forma confessional (ii) o conteuacutedo do ensino religioso seria
atribuiccedilatildeo de diversas autoridades religiosas e (iii) apenas professores credenciados pela
autoridade religiosa competente poderiam ensinar religiatildeo e m escolas oficiais
A Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo argumenta que o
ensino religioso na forma confessional viola o art 210 da Constituiccedilatildeo que estabelece que
os valores culturais seratildeo respeitados quando do estabelecimento dos conteuacutedos miacutenimos
para o ensino fundamental e o art 33 da Lei Federal n 939497 que determina que o
ensino religioso respeitaraacute a diversidade cultural do Brasil
Cumpre notar que nos termos do art 21 do Decreto-Lei n 4244 de 9 de abril de 1942 o programa e o regime didaacutetico do ensino religioso deveria ser determinado pela autoridade religiosa De acordo com Alexandre de Moraes para que a regulamentaccedilatildeo e a execuccedilatildeo desta disposiccedilatildeo natildeo sejam inconstitucionais faz-se necessaacuterio que toda e qualquer religiatildeo possa ser ensinada nas escolas puacuteblicas O autor entende que na praacutetica isso eacute absolutamente impossiacutevel (cf M O R A E S 2003 1984-1985)
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762 Maria Costa Neves Machado
Adicionalmente a confederaccedilatildeo sustenta que a disposiccedilatildeo de acordo
com a qual o conteuacutedo do ensino religioso eacute u m a atribuiccedilatildeo das diversas autoridades
religiosas contraria o art 33 da Lei Federal n 939497 que estabelece diferentes padrotildees
para a definiccedilatildeo do conteuacutedo do ensino religioso E m conformidade com tal lei federal
os sistemas de ensino devem ouvir entidades civis de diversas religiotildees para definir
o conteuacutedo do ensino religioso A violaccedilatildeo eacute demonstrada com base no fato de que o
conceito de autoridade religiosa - que implica u m a estrutura administrativa e hieraacuterquica
como aquelas presentes nas Igrejas Catoacutelicas Presbiterianas e Judaicas - natildeo eacute parte da
tradiccedilatildeo de algumas religiotildees que tem origem Evangeacutelica ou afro-brasileira
A A D I N ainda natildeo foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal De qualquer
forma os argumentos apresentados pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores em
Educaccedilatildeo - e pelos vaacuterios amicus curiae admitidos no processo - parecem ser coerentes
com a Constituiccedilatildeo Federal e aptos a derrubar a Lei Estadual n 3459
N o Estado de Satildeo Paulo o ensino religioso previsto no art 33 da Lei n
939497 foi regulamentado na Deliberaccedilatildeo do Conselho Estadual de Educaccedilatildeo - CEE
n 162001 com fundamento na Indicaccedilatildeo C E E n 07 aprovada e m 25 de julho de 2001
de acordo com a qual o ensino religioso deve ser enfocado na perspectiva constitucional
de promoccedilatildeo da cidadania e da dignidade especialmente na funccedilatildeo social da educaccedilatildeo
e m geral de modo que deve ser enfatizada a reflexatildeo sobre a cidadania e as praacuteticas a ela
pertinentes Assumindo que natildeo haacute conhecimento futuro e vida sem a competecircncia de
conviver com as diferenccedilas a Indicaccedilatildeo C E E n 072001 reconhece que satildeo bem-vindos
todos os projetos educacionais (aiacute se podendo incluir o ensino religioso) que visam direta
ou indiretamente o trabalho comunitaacuterio a conscientizaccedilatildeo da responsabilidade pessoal
e social e que estimulem e restaurem os valores humanos de compromisso moral e eacutetico
auxiliando a compreensatildeo do h o m e m e o autoconhecimento Nesse sentido de acordo com
referida indicaccedilatildeo o ensino religioso nas escolas deve antes de tudo fundamentar-se nos
princiacutepios da cidadania e do entendimento do outro Assim o C E E recomendou que o
ensino religioso fosse tratado como tema transversal por meio da implementaccedilatildeo de uma
proposta de abordagem filosoacutefica que permitisse a reflexatildeo sobre valores e princiacutepios eacuteticos e
o conhecimento da histoacuteria das religiotildees Tambeacutem no Estado de Satildeo Paulo a implementaccedilatildeo
do ensino religioso foi arduamente debatida e criticada especialmente em razatildeo da
problemaacutetica questatildeo do estabelecimento de religiatildeo vedado pela Constituiccedilatildeo de 198848
Vide entre outros GIUMBELLI Emerson Ensino religioso em escolas puacuteblicas no Brasil notas de pesquisa Debates do N E R (UFRGS) v 14 p 50-68 2009 CURY Carlos Roberto Jamil Ensino religioso na escola puacuteblica o retorno de uma polecircmica recorrente Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 27 p 183-213 setdez 2004 LUI Janayna de Alencar Entre crentes e pagatildeos ensino religioso em Satildeo Paulo Cadernos de Pesquisa v 37 n 131 p 333-349 maioago 2007 R A N Q U E T A T JUacuteNIOR Ceacutesar Do confessional ao plural uma anaacutelise sobre o novo modelo de ensino religioso nas escolas brasileiras Revista Diaacutelogo Educaccedilatildeo Curitiba v 8 n 23 p 289-305 janabr 2008
R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010
Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 763
Neste item a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil foi examinada
com a finalidade de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota u m princiacutepio de
toleracircncia ou de respeito As normas relacionadas agrave garantia da liberdade de consciecircncia
e de crenccedila bem como ao livre exerciacutecio de cultos religiosos agrave proteccedilatildeo dos locais de
adoraccedilatildeo agrave proibiccedilatildeo do estabelecimento de religiatildeo agrave garantia de assistecircncia religiosa
e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva agrave acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de
consciecircncia e ao ensino religioso facultativo todas foram analisadas de modo que fosse
possiacutevel concluir se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia ou
do respeito
D e acordo com tal anaacutelise o ordenamento juriacutedico brasileiro parece tratar a
religiatildeo e m conformidade com o princiacutepio do respeito Isso porque pessoas religiosas e natildeo
religiosas podem entrar no espaccedilo puacutebico e m iguais condiccedilotildees sendo que a faculdade de
buscar a finalidade uacuteltima da vida eacute respeitada pelo Estado Nesse sentido o ordenamento
juriacutedico brasileiro garante a liberdade de consciecircncia e de crenccedila o livre exerciacutecio de
cultos religiosos e a proteccedilatildeo dos locais de adoraccedilatildeo Adicionalmente enquanto de u m
lado nenhuma religiatildeo pode ser estabelecida pelo Estado pessoas religiosas podem
reivindicar imperativo de consciecircncia bem como receber assistecircncia religiosa e ensino
religioso se essa for a sua escolha
Isso demonstra que todos os indiviacuteduos de acordo com o ordenamento
juriacutedico brasileiro devem entrar no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais e que o Estado eacute
obrigado a fornecer condiccedilotildees para que pessoas religiosas e natildeo religiosas possam buscar
a finalidade uacuteltima da vida se essa for sua escolha respeitando e m todos os indiviacuteduos a
faculdade de realizar tal busca
4 Conclusatildeo
Inicialmente foi examinada neste artigo a diferenccedila entre o princiacutepio da
toleracircncia e o princiacutepio do respeito no que se refere ao tratamento legal de questotildees de
consciecircncia Posteriormente a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no ordenamento
juriacutedico brasileiro foi analisada com a finalidade de verificar qual desses dois princiacutepios eacute
adotado Finalmente conclui-se que o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio
do respeito pela faculdade dos indiviacuteduos de buscar pela finalidade uacuteltima da vida sendo o
Estado obrigado a garantir condiccedilotildees adequadas para as pessoas exercerem tal faculdade
de acordo com suas escolhas autocircnomas de modo que todos os indiviacuteduos possam entrar
no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais
Satildeo Paulo dezembro de 2010
R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010
IM Maria Costa Neves Machado
Referecircncias
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7(gt(l Maria Costa Neves Machado
histoacuterico antropoloacutegico e social eacute credora da proteccedilatildeo do Estado nos termos do art
2o caput da Lei n 1134306 e do art 215 sect1deg da C F 43 que dispotildee que [o] Estado
protegeraacute as manifestaccedilotildees das culturas populares indiacutegenas e afro-brasileiras e das de
outros grupos participantes do processo civilizatoacuterio nacional44
Eacute de se notar tambeacutem o recente caso no Estado de Satildeo Paulo de acomodaccedilatildeo
religiosa previsto na Lei Estadual n 13541 de 7 de maio de 2009 Tal lei proiacutebe o consumo
de cigarros cigarrilhas charutos cachimbos ou de qualquer outro produto fumiacutegeno
derivado ou natildeo do tabaco e m ambientes de uso coletivo puacuteblicos ou privados Contudo
nos termos do art 6o da referida lei essa natildeo se aplica aos locais de culto religioso em que
o uso de produto fumiacutegeno faccedila parte do ritual O u seja trata-se de mais u m caso em que
uma lei geral eacute excetuada para acomodar praacuteticas relacionadas agrave liberdade de religiatildeo e
de culto
Diferentemente das situaccedilotildees envolvendo serviccedilo militar obrigatoacuterio
o chaacute Ayahuasca e rituais religiosos que envolvem o uso de produtos fumiacutegenos foi
negada acomodaccedilatildeo quando da reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia no contexto
de frequumlecircncia escolar no Estado de Satildeo Paulo E m opiniatildeo escrita por Ada Pellegrini
Grinover publicada e m 25 de outubro de 2002 o Conselho Estadual de Educaccedilatildeo do
Estado de Satildeo Paulo entendeu que estudantes que fossem membros da Igreja Adventista
do Seacutetimo Dia estariam obrigados a frequumlentar as aulas durante o periacuteodo compreendido
entre 1800 horas de sexta-feira e 1800 de saacutebados de acordo com a Lei n 9394 de 20
de dezembro de 1996 conforme alterada embora tal frequumlecircncia seja contraacuteria agraves suas
praacuteticas religiosas u m a vez que natildeo haacute prestaccedilatildeo alternativa estabelecida em lei para tal
escusa de consciecircncia conforme fixado pelo inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo45
Adicionalmente aos casos de acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de
consciecircncia o inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo tambeacutem jaacute foi invocado para proteger
os direitos dos professores do Estado de Rio de Janeiro contra lei estadual que estabeleceu
que somente os professores credenciados pela autoridade religiosa competente estaratildeo
autorizados a ministrar as aulas de ensino religioso e m escolas puacuteblicas estaduais Para
compreender a Accedilatildeo Direta de Inconstitucionalidade - A D I N n 326804 que ainda natildeo
foi decidida pela Suprema Corte faz-se necessaacuterio analisar as disposiccedilotildees legais aplicaacuteveis
relacionadas ao ensino religioso no Brasil
Cf Relatoacuterio Final do Grupo Multidisciplinar de Trabalho disponiacutevel entre outros siacutetios em lthttp wwwsantodaimeorgcomunidadenoticiasrelfinal_conadhtmgt Acesso em 4 mar 2009 e lthttpwww ayahuascabrasilorgindexphpop=legisl01gt Acesso em 4 mar 2009 A acomodaccedilatildeo relacionada ao uso do chaacute Ayahuasca para fins religiosos nos Estados Unidos foi decidida pela Suprema Courte em Gonzales v O Centro Espirita Beneficente Uniatildeo do Vegetal 546 US 418 (2006) Cf Parecer C E E No 4422002 - C E S - Aprovado em 23102002 Disponiacutevel em lthttpwwwceesp spgovbrParecerespa_442_02htmgt Acesso em 4 mar 2009
R Fac Dir Univ SP v 105 p 743 - 765 jandez 2010
Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 761
34 Ensino religioso facultativo
Nos termos do art 210 da Constituiccedilatildeo [sjeratildeo fixados conteuacutedos miacutenimos
para o ensino fundamental de maneira a assegurar formaccedilatildeo baacutesica c o m u m e respeito aos
valores culturais e artiacutesticos nacionais e regionais O paraacutegrafo Io desse Artigo dispotildee
que [o] ensino religioso de matriacutecula facultativa constituiraacute disciplina dos horaacuterios
normais das escolas puacuteblicas de ensino fundamental
Nesse sentido o art 33 da Lei n 9394 de 22 de julho de 1997 conforme
alterada determina que o respeito agrave diversidade cultural religiosa do Brasil eacute assegurado
no ensino religioso sendo proibida qualquer forma de proselitismo O primeiro paraacutegrafo
desse Artigo dispotildee que [o]s sistemas de ensino regulamentaratildeo os procedimentos para a
definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso e estabeleceratildeo as normas para a habilitaccedilatildeo
e admissatildeo dos professores Ademais de acordo com o segundo paraacutegrafo do referido
Artigo [o]s sistemas de ensino ouviratildeo entidade civil constituiacuteda pelas diferentes
denominaccedilotildees religiosas para a definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso46
D e modo a observar a proibiccedilatildeo constitucional de estabelecimento de
religiatildeo o ensino religioso e m escolas natildeo pode consistir no ensino de u m a religiatildeo
determinada Nesse sentido a previsatildeo constitucional tem por finalidade dar oportunidade
a estudantes que estatildeo e m idade de formaccedilatildeo de personalidade de ter acesso a informaccedilotildees
de modo que no futuro eles possam livremente escolher adotar ou natildeo adotar u m a religiatildeo
(cf S C H E R K E R K E W I T Z 2002 60)47
Levando e m consideraccedilatildeo esses dispositivos a A D I N n 326804 foi
ajuizada pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo com o intuito de
declarar que a Lei n 3459 aprovada pela Assembleacuteia Legislativa do Estado do Rio de
Janeiro e m 14 de setembro de 2000 eacute inconstitucional u m a vez que estabeleceu que (i)
religiatildeo seria ensinada na forma confessional (ii) o conteuacutedo do ensino religioso seria
atribuiccedilatildeo de diversas autoridades religiosas e (iii) apenas professores credenciados pela
autoridade religiosa competente poderiam ensinar religiatildeo e m escolas oficiais
A Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo argumenta que o
ensino religioso na forma confessional viola o art 210 da Constituiccedilatildeo que estabelece que
os valores culturais seratildeo respeitados quando do estabelecimento dos conteuacutedos miacutenimos
para o ensino fundamental e o art 33 da Lei Federal n 939497 que determina que o
ensino religioso respeitaraacute a diversidade cultural do Brasil
Cumpre notar que nos termos do art 21 do Decreto-Lei n 4244 de 9 de abril de 1942 o programa e o regime didaacutetico do ensino religioso deveria ser determinado pela autoridade religiosa De acordo com Alexandre de Moraes para que a regulamentaccedilatildeo e a execuccedilatildeo desta disposiccedilatildeo natildeo sejam inconstitucionais faz-se necessaacuterio que toda e qualquer religiatildeo possa ser ensinada nas escolas puacuteblicas O autor entende que na praacutetica isso eacute absolutamente impossiacutevel (cf M O R A E S 2003 1984-1985)
R Fac Dir Univ SP v 105 p 743 - 765 jandez 2010
762 Maria Costa Neves Machado
Adicionalmente a confederaccedilatildeo sustenta que a disposiccedilatildeo de acordo
com a qual o conteuacutedo do ensino religioso eacute u m a atribuiccedilatildeo das diversas autoridades
religiosas contraria o art 33 da Lei Federal n 939497 que estabelece diferentes padrotildees
para a definiccedilatildeo do conteuacutedo do ensino religioso E m conformidade com tal lei federal
os sistemas de ensino devem ouvir entidades civis de diversas religiotildees para definir
o conteuacutedo do ensino religioso A violaccedilatildeo eacute demonstrada com base no fato de que o
conceito de autoridade religiosa - que implica u m a estrutura administrativa e hieraacuterquica
como aquelas presentes nas Igrejas Catoacutelicas Presbiterianas e Judaicas - natildeo eacute parte da
tradiccedilatildeo de algumas religiotildees que tem origem Evangeacutelica ou afro-brasileira
A A D I N ainda natildeo foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal De qualquer
forma os argumentos apresentados pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores em
Educaccedilatildeo - e pelos vaacuterios amicus curiae admitidos no processo - parecem ser coerentes
com a Constituiccedilatildeo Federal e aptos a derrubar a Lei Estadual n 3459
N o Estado de Satildeo Paulo o ensino religioso previsto no art 33 da Lei n
939497 foi regulamentado na Deliberaccedilatildeo do Conselho Estadual de Educaccedilatildeo - CEE
n 162001 com fundamento na Indicaccedilatildeo C E E n 07 aprovada e m 25 de julho de 2001
de acordo com a qual o ensino religioso deve ser enfocado na perspectiva constitucional
de promoccedilatildeo da cidadania e da dignidade especialmente na funccedilatildeo social da educaccedilatildeo
e m geral de modo que deve ser enfatizada a reflexatildeo sobre a cidadania e as praacuteticas a ela
pertinentes Assumindo que natildeo haacute conhecimento futuro e vida sem a competecircncia de
conviver com as diferenccedilas a Indicaccedilatildeo C E E n 072001 reconhece que satildeo bem-vindos
todos os projetos educacionais (aiacute se podendo incluir o ensino religioso) que visam direta
ou indiretamente o trabalho comunitaacuterio a conscientizaccedilatildeo da responsabilidade pessoal
e social e que estimulem e restaurem os valores humanos de compromisso moral e eacutetico
auxiliando a compreensatildeo do h o m e m e o autoconhecimento Nesse sentido de acordo com
referida indicaccedilatildeo o ensino religioso nas escolas deve antes de tudo fundamentar-se nos
princiacutepios da cidadania e do entendimento do outro Assim o C E E recomendou que o
ensino religioso fosse tratado como tema transversal por meio da implementaccedilatildeo de uma
proposta de abordagem filosoacutefica que permitisse a reflexatildeo sobre valores e princiacutepios eacuteticos e
o conhecimento da histoacuteria das religiotildees Tambeacutem no Estado de Satildeo Paulo a implementaccedilatildeo
do ensino religioso foi arduamente debatida e criticada especialmente em razatildeo da
problemaacutetica questatildeo do estabelecimento de religiatildeo vedado pela Constituiccedilatildeo de 198848
Vide entre outros GIUMBELLI Emerson Ensino religioso em escolas puacuteblicas no Brasil notas de pesquisa Debates do N E R (UFRGS) v 14 p 50-68 2009 CURY Carlos Roberto Jamil Ensino religioso na escola puacuteblica o retorno de uma polecircmica recorrente Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 27 p 183-213 setdez 2004 LUI Janayna de Alencar Entre crentes e pagatildeos ensino religioso em Satildeo Paulo Cadernos de Pesquisa v 37 n 131 p 333-349 maioago 2007 R A N Q U E T A T JUacuteNIOR Ceacutesar Do confessional ao plural uma anaacutelise sobre o novo modelo de ensino religioso nas escolas brasileiras Revista Diaacutelogo Educaccedilatildeo Curitiba v 8 n 23 p 289-305 janabr 2008
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 763
Neste item a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil foi examinada
com a finalidade de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota u m princiacutepio de
toleracircncia ou de respeito As normas relacionadas agrave garantia da liberdade de consciecircncia
e de crenccedila bem como ao livre exerciacutecio de cultos religiosos agrave proteccedilatildeo dos locais de
adoraccedilatildeo agrave proibiccedilatildeo do estabelecimento de religiatildeo agrave garantia de assistecircncia religiosa
e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva agrave acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de
consciecircncia e ao ensino religioso facultativo todas foram analisadas de modo que fosse
possiacutevel concluir se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia ou
do respeito
D e acordo com tal anaacutelise o ordenamento juriacutedico brasileiro parece tratar a
religiatildeo e m conformidade com o princiacutepio do respeito Isso porque pessoas religiosas e natildeo
religiosas podem entrar no espaccedilo puacutebico e m iguais condiccedilotildees sendo que a faculdade de
buscar a finalidade uacuteltima da vida eacute respeitada pelo Estado Nesse sentido o ordenamento
juriacutedico brasileiro garante a liberdade de consciecircncia e de crenccedila o livre exerciacutecio de
cultos religiosos e a proteccedilatildeo dos locais de adoraccedilatildeo Adicionalmente enquanto de u m
lado nenhuma religiatildeo pode ser estabelecida pelo Estado pessoas religiosas podem
reivindicar imperativo de consciecircncia bem como receber assistecircncia religiosa e ensino
religioso se essa for a sua escolha
Isso demonstra que todos os indiviacuteduos de acordo com o ordenamento
juriacutedico brasileiro devem entrar no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais e que o Estado eacute
obrigado a fornecer condiccedilotildees para que pessoas religiosas e natildeo religiosas possam buscar
a finalidade uacuteltima da vida se essa for sua escolha respeitando e m todos os indiviacuteduos a
faculdade de realizar tal busca
4 Conclusatildeo
Inicialmente foi examinada neste artigo a diferenccedila entre o princiacutepio da
toleracircncia e o princiacutepio do respeito no que se refere ao tratamento legal de questotildees de
consciecircncia Posteriormente a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no ordenamento
juriacutedico brasileiro foi analisada com a finalidade de verificar qual desses dois princiacutepios eacute
adotado Finalmente conclui-se que o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio
do respeito pela faculdade dos indiviacuteduos de buscar pela finalidade uacuteltima da vida sendo o
Estado obrigado a garantir condiccedilotildees adequadas para as pessoas exercerem tal faculdade
de acordo com suas escolhas autocircnomas de modo que todos os indiviacuteduos possam entrar
no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais
Satildeo Paulo dezembro de 2010
R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010
IM Maria Costa Neves Machado
Referecircncias
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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 761
34 Ensino religioso facultativo
Nos termos do art 210 da Constituiccedilatildeo [sjeratildeo fixados conteuacutedos miacutenimos
para o ensino fundamental de maneira a assegurar formaccedilatildeo baacutesica c o m u m e respeito aos
valores culturais e artiacutesticos nacionais e regionais O paraacutegrafo Io desse Artigo dispotildee
que [o] ensino religioso de matriacutecula facultativa constituiraacute disciplina dos horaacuterios
normais das escolas puacuteblicas de ensino fundamental
Nesse sentido o art 33 da Lei n 9394 de 22 de julho de 1997 conforme
alterada determina que o respeito agrave diversidade cultural religiosa do Brasil eacute assegurado
no ensino religioso sendo proibida qualquer forma de proselitismo O primeiro paraacutegrafo
desse Artigo dispotildee que [o]s sistemas de ensino regulamentaratildeo os procedimentos para a
definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso e estabeleceratildeo as normas para a habilitaccedilatildeo
e admissatildeo dos professores Ademais de acordo com o segundo paraacutegrafo do referido
Artigo [o]s sistemas de ensino ouviratildeo entidade civil constituiacuteda pelas diferentes
denominaccedilotildees religiosas para a definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso46
D e modo a observar a proibiccedilatildeo constitucional de estabelecimento de
religiatildeo o ensino religioso e m escolas natildeo pode consistir no ensino de u m a religiatildeo
determinada Nesse sentido a previsatildeo constitucional tem por finalidade dar oportunidade
a estudantes que estatildeo e m idade de formaccedilatildeo de personalidade de ter acesso a informaccedilotildees
de modo que no futuro eles possam livremente escolher adotar ou natildeo adotar u m a religiatildeo
(cf S C H E R K E R K E W I T Z 2002 60)47
Levando e m consideraccedilatildeo esses dispositivos a A D I N n 326804 foi
ajuizada pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo com o intuito de
declarar que a Lei n 3459 aprovada pela Assembleacuteia Legislativa do Estado do Rio de
Janeiro e m 14 de setembro de 2000 eacute inconstitucional u m a vez que estabeleceu que (i)
religiatildeo seria ensinada na forma confessional (ii) o conteuacutedo do ensino religioso seria
atribuiccedilatildeo de diversas autoridades religiosas e (iii) apenas professores credenciados pela
autoridade religiosa competente poderiam ensinar religiatildeo e m escolas oficiais
A Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo argumenta que o
ensino religioso na forma confessional viola o art 210 da Constituiccedilatildeo que estabelece que
os valores culturais seratildeo respeitados quando do estabelecimento dos conteuacutedos miacutenimos
para o ensino fundamental e o art 33 da Lei Federal n 939497 que determina que o
ensino religioso respeitaraacute a diversidade cultural do Brasil
Cumpre notar que nos termos do art 21 do Decreto-Lei n 4244 de 9 de abril de 1942 o programa e o regime didaacutetico do ensino religioso deveria ser determinado pela autoridade religiosa De acordo com Alexandre de Moraes para que a regulamentaccedilatildeo e a execuccedilatildeo desta disposiccedilatildeo natildeo sejam inconstitucionais faz-se necessaacuterio que toda e qualquer religiatildeo possa ser ensinada nas escolas puacuteblicas O autor entende que na praacutetica isso eacute absolutamente impossiacutevel (cf M O R A E S 2003 1984-1985)
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762 Maria Costa Neves Machado
Adicionalmente a confederaccedilatildeo sustenta que a disposiccedilatildeo de acordo
com a qual o conteuacutedo do ensino religioso eacute u m a atribuiccedilatildeo das diversas autoridades
religiosas contraria o art 33 da Lei Federal n 939497 que estabelece diferentes padrotildees
para a definiccedilatildeo do conteuacutedo do ensino religioso E m conformidade com tal lei federal
os sistemas de ensino devem ouvir entidades civis de diversas religiotildees para definir
o conteuacutedo do ensino religioso A violaccedilatildeo eacute demonstrada com base no fato de que o
conceito de autoridade religiosa - que implica u m a estrutura administrativa e hieraacuterquica
como aquelas presentes nas Igrejas Catoacutelicas Presbiterianas e Judaicas - natildeo eacute parte da
tradiccedilatildeo de algumas religiotildees que tem origem Evangeacutelica ou afro-brasileira
A A D I N ainda natildeo foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal De qualquer
forma os argumentos apresentados pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores em
Educaccedilatildeo - e pelos vaacuterios amicus curiae admitidos no processo - parecem ser coerentes
com a Constituiccedilatildeo Federal e aptos a derrubar a Lei Estadual n 3459
N o Estado de Satildeo Paulo o ensino religioso previsto no art 33 da Lei n
939497 foi regulamentado na Deliberaccedilatildeo do Conselho Estadual de Educaccedilatildeo - CEE
n 162001 com fundamento na Indicaccedilatildeo C E E n 07 aprovada e m 25 de julho de 2001
de acordo com a qual o ensino religioso deve ser enfocado na perspectiva constitucional
de promoccedilatildeo da cidadania e da dignidade especialmente na funccedilatildeo social da educaccedilatildeo
e m geral de modo que deve ser enfatizada a reflexatildeo sobre a cidadania e as praacuteticas a ela
pertinentes Assumindo que natildeo haacute conhecimento futuro e vida sem a competecircncia de
conviver com as diferenccedilas a Indicaccedilatildeo C E E n 072001 reconhece que satildeo bem-vindos
todos os projetos educacionais (aiacute se podendo incluir o ensino religioso) que visam direta
ou indiretamente o trabalho comunitaacuterio a conscientizaccedilatildeo da responsabilidade pessoal
e social e que estimulem e restaurem os valores humanos de compromisso moral e eacutetico
auxiliando a compreensatildeo do h o m e m e o autoconhecimento Nesse sentido de acordo com
referida indicaccedilatildeo o ensino religioso nas escolas deve antes de tudo fundamentar-se nos
princiacutepios da cidadania e do entendimento do outro Assim o C E E recomendou que o
ensino religioso fosse tratado como tema transversal por meio da implementaccedilatildeo de uma
proposta de abordagem filosoacutefica que permitisse a reflexatildeo sobre valores e princiacutepios eacuteticos e
o conhecimento da histoacuteria das religiotildees Tambeacutem no Estado de Satildeo Paulo a implementaccedilatildeo
do ensino religioso foi arduamente debatida e criticada especialmente em razatildeo da
problemaacutetica questatildeo do estabelecimento de religiatildeo vedado pela Constituiccedilatildeo de 198848
Vide entre outros GIUMBELLI Emerson Ensino religioso em escolas puacuteblicas no Brasil notas de pesquisa Debates do N E R (UFRGS) v 14 p 50-68 2009 CURY Carlos Roberto Jamil Ensino religioso na escola puacuteblica o retorno de uma polecircmica recorrente Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 27 p 183-213 setdez 2004 LUI Janayna de Alencar Entre crentes e pagatildeos ensino religioso em Satildeo Paulo Cadernos de Pesquisa v 37 n 131 p 333-349 maioago 2007 R A N Q U E T A T JUacuteNIOR Ceacutesar Do confessional ao plural uma anaacutelise sobre o novo modelo de ensino religioso nas escolas brasileiras Revista Diaacutelogo Educaccedilatildeo Curitiba v 8 n 23 p 289-305 janabr 2008
R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010
Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 763
Neste item a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil foi examinada
com a finalidade de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota u m princiacutepio de
toleracircncia ou de respeito As normas relacionadas agrave garantia da liberdade de consciecircncia
e de crenccedila bem como ao livre exerciacutecio de cultos religiosos agrave proteccedilatildeo dos locais de
adoraccedilatildeo agrave proibiccedilatildeo do estabelecimento de religiatildeo agrave garantia de assistecircncia religiosa
e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva agrave acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de
consciecircncia e ao ensino religioso facultativo todas foram analisadas de modo que fosse
possiacutevel concluir se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia ou
do respeito
D e acordo com tal anaacutelise o ordenamento juriacutedico brasileiro parece tratar a
religiatildeo e m conformidade com o princiacutepio do respeito Isso porque pessoas religiosas e natildeo
religiosas podem entrar no espaccedilo puacutebico e m iguais condiccedilotildees sendo que a faculdade de
buscar a finalidade uacuteltima da vida eacute respeitada pelo Estado Nesse sentido o ordenamento
juriacutedico brasileiro garante a liberdade de consciecircncia e de crenccedila o livre exerciacutecio de
cultos religiosos e a proteccedilatildeo dos locais de adoraccedilatildeo Adicionalmente enquanto de u m
lado nenhuma religiatildeo pode ser estabelecida pelo Estado pessoas religiosas podem
reivindicar imperativo de consciecircncia bem como receber assistecircncia religiosa e ensino
religioso se essa for a sua escolha
Isso demonstra que todos os indiviacuteduos de acordo com o ordenamento
juriacutedico brasileiro devem entrar no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais e que o Estado eacute
obrigado a fornecer condiccedilotildees para que pessoas religiosas e natildeo religiosas possam buscar
a finalidade uacuteltima da vida se essa for sua escolha respeitando e m todos os indiviacuteduos a
faculdade de realizar tal busca
4 Conclusatildeo
Inicialmente foi examinada neste artigo a diferenccedila entre o princiacutepio da
toleracircncia e o princiacutepio do respeito no que se refere ao tratamento legal de questotildees de
consciecircncia Posteriormente a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no ordenamento
juriacutedico brasileiro foi analisada com a finalidade de verificar qual desses dois princiacutepios eacute
adotado Finalmente conclui-se que o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio
do respeito pela faculdade dos indiviacuteduos de buscar pela finalidade uacuteltima da vida sendo o
Estado obrigado a garantir condiccedilotildees adequadas para as pessoas exercerem tal faculdade
de acordo com suas escolhas autocircnomas de modo que todos os indiviacuteduos possam entrar
no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais
Satildeo Paulo dezembro de 2010
R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010
IM Maria Costa Neves Machado
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C R E T E L L A JUacuteNIOR Joseacute Comentaacuterios agrave Constituiccedilatildeo Brasileira de 1988 Rio de Janeiro
Forense Universitaacuteria 1992 v 1
D A D E S K Y Jacques Pluralismo eacutetnico e multiculturalismo racismos e anti-racismos no Brasil
Rio de Janeiro Pallas 2005
FERREIRA Pinto Comentaacuterios agrave Constituiccedilatildeo Brasileira Satildeo Paulo Saraiva 1989
FERREIRA FILHO Manuel Gonccedilalves Comentaacuterios agrave Constituiccedilatildeo brasileira de 1988 Satildeo Paulo
Saraiva 1990
GIUMBELLI Emerson Ensino religioso em escolas puacuteblicas no Brasil notas de pesquisa Debates
do NER (UFRGS) v 14 p 50-68 2009
G R E E N Leslie On being tolerated University of Oxford Faculty of Law Legal Studies Research
Paper Series Working Paper No 142008
H A B E R M A S Juumlrgen Lutas pelo reconhecimento no Estado Democraacutetico Constitucional In
TAYLOR Charles (Org) Multiculturalismo examinando a poliacutetica do reconhecimento Lisboa
Piaget 1994
JAMIL CURY Carlos Roberto Ensino religioso na escola puacuteblica o retomo de uma polecircmica
recorrente Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 27 p 183-213 setdez 2004
K Y M L I C K A Will Multicultural citizenship a liberal theory of minority rights Oxford Clarendon
Press 1997
R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010
Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 765
LEITER Brian Why tolerate religion Manuscrito natildeo publicado fornecido pelo autor durante o
Workshop Direito e Filosofia coordenado por Brian Leiter na University of Chicago Law School no
periacuteodo compreendido entre setembro de 2008 e maio de 2009
LUI Janayna de Alencar Entre crentes e pagatildeos ensino religioso em Satildeo Paulo Cadernos de
Pesquisa v 37 n 131 p 333-349 maioago 2007
NORONHA Magalhatildees Direito Penal Satildeo Paulo Saraiva 1968 v 4
NUSSBAUM Martha C Liberty of Conscience In DEFENSE of Americas Tradition of Religious
Equality N e w York Basic Books 2008
MARTINS Ives Granda BASTOS Celso Ribeiro Comentaacuterios agrave Constituiccedilatildeo do Brasil
(Promulgada em 5 de outubro de 1988) Satildeo Paulo Saraiva 1989 v 2
Moraes Alexandre de Constituiccedilatildeo do Brasil Interpretada e Legislaccedilatildeo Constitucional Satildeo Paulo
Atlas 2003
NEVES Marcelo Entre Tecircmis e Leviatatilde uma relaccedilatildeo difiacutecil (o Estado Democraacutetico de Direito a
partir e aleacutem de Luhmann e Habermas) Satildeo Paulo Martins Fontes 2006
Justiccedila e diferenccedila numa sociedade global complexa Recife Instituto dos Advogados de
Pernambuco v 1 n 1 2000
PAINE Thomas The Founders Constitution v 5 I Emenda (Religiatildeo) Doe 57 Disponiacutevel em
lthttppress-pubsuchicagoedufoundersdocumentsamendI_religions57htmlgt
R A N Q U E T A T JUacuteNIOR Ceacutesar Do confessional ao plural uma anaacutelise sobre o novo modelo de
ensino religioso nas escolas brasileiras Revista Diaacutelogo e Educaccedilatildeo Curitiba v 8 n 23 p 289-
305 janabr 2008
RAZ Joseph Autonomy toleration and the harm principie In GAVISON Ruth (Ed)
Contemporary legalphilosophy the influence of H L A Hart Oxford University Press
R E A L E JUacuteNIOR Miguel Toleracircncia e solidariedade In MARCIacuteLIO Maria Luiza A declaraccedilatildeo
Universal dos Direitos Humanos sessenta anos sonhos e realidades Satildeo Paulo EDUSP 2008 p
167-178
S C H E R K E R K E W I T Z Iso Chaitz O direito de religiatildeo no Brasil Revista Nacional de
Jurisprudecircncia ano 3 n 34 out 2002
TASCHNER Gisela B A poacutes-modemidade e a sociologia Revista USP Satildeo Paulo n 42 junago
p 6-19 1999
T O L E D O Francisco de Assis Princiacutepios baacutesicos de direito penal Satildeo Paulo Saraiva 1986
R Fac Dir Univ SP v 105 p 743 - 765 jandez 2010
762 Maria Costa Neves Machado
Adicionalmente a confederaccedilatildeo sustenta que a disposiccedilatildeo de acordo
com a qual o conteuacutedo do ensino religioso eacute u m a atribuiccedilatildeo das diversas autoridades
religiosas contraria o art 33 da Lei Federal n 939497 que estabelece diferentes padrotildees
para a definiccedilatildeo do conteuacutedo do ensino religioso E m conformidade com tal lei federal
os sistemas de ensino devem ouvir entidades civis de diversas religiotildees para definir
o conteuacutedo do ensino religioso A violaccedilatildeo eacute demonstrada com base no fato de que o
conceito de autoridade religiosa - que implica u m a estrutura administrativa e hieraacuterquica
como aquelas presentes nas Igrejas Catoacutelicas Presbiterianas e Judaicas - natildeo eacute parte da
tradiccedilatildeo de algumas religiotildees que tem origem Evangeacutelica ou afro-brasileira
A A D I N ainda natildeo foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal De qualquer
forma os argumentos apresentados pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores em
Educaccedilatildeo - e pelos vaacuterios amicus curiae admitidos no processo - parecem ser coerentes
com a Constituiccedilatildeo Federal e aptos a derrubar a Lei Estadual n 3459
N o Estado de Satildeo Paulo o ensino religioso previsto no art 33 da Lei n
939497 foi regulamentado na Deliberaccedilatildeo do Conselho Estadual de Educaccedilatildeo - CEE
n 162001 com fundamento na Indicaccedilatildeo C E E n 07 aprovada e m 25 de julho de 2001
de acordo com a qual o ensino religioso deve ser enfocado na perspectiva constitucional
de promoccedilatildeo da cidadania e da dignidade especialmente na funccedilatildeo social da educaccedilatildeo
e m geral de modo que deve ser enfatizada a reflexatildeo sobre a cidadania e as praacuteticas a ela
pertinentes Assumindo que natildeo haacute conhecimento futuro e vida sem a competecircncia de
conviver com as diferenccedilas a Indicaccedilatildeo C E E n 072001 reconhece que satildeo bem-vindos
todos os projetos educacionais (aiacute se podendo incluir o ensino religioso) que visam direta
ou indiretamente o trabalho comunitaacuterio a conscientizaccedilatildeo da responsabilidade pessoal
e social e que estimulem e restaurem os valores humanos de compromisso moral e eacutetico
auxiliando a compreensatildeo do h o m e m e o autoconhecimento Nesse sentido de acordo com
referida indicaccedilatildeo o ensino religioso nas escolas deve antes de tudo fundamentar-se nos
princiacutepios da cidadania e do entendimento do outro Assim o C E E recomendou que o
ensino religioso fosse tratado como tema transversal por meio da implementaccedilatildeo de uma
proposta de abordagem filosoacutefica que permitisse a reflexatildeo sobre valores e princiacutepios eacuteticos e
o conhecimento da histoacuteria das religiotildees Tambeacutem no Estado de Satildeo Paulo a implementaccedilatildeo
do ensino religioso foi arduamente debatida e criticada especialmente em razatildeo da
problemaacutetica questatildeo do estabelecimento de religiatildeo vedado pela Constituiccedilatildeo de 198848
Vide entre outros GIUMBELLI Emerson Ensino religioso em escolas puacuteblicas no Brasil notas de pesquisa Debates do N E R (UFRGS) v 14 p 50-68 2009 CURY Carlos Roberto Jamil Ensino religioso na escola puacuteblica o retorno de uma polecircmica recorrente Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 27 p 183-213 setdez 2004 LUI Janayna de Alencar Entre crentes e pagatildeos ensino religioso em Satildeo Paulo Cadernos de Pesquisa v 37 n 131 p 333-349 maioago 2007 R A N Q U E T A T JUacuteNIOR Ceacutesar Do confessional ao plural uma anaacutelise sobre o novo modelo de ensino religioso nas escolas brasileiras Revista Diaacutelogo Educaccedilatildeo Curitiba v 8 n 23 p 289-305 janabr 2008
R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010
Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 763
Neste item a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil foi examinada
com a finalidade de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota u m princiacutepio de
toleracircncia ou de respeito As normas relacionadas agrave garantia da liberdade de consciecircncia
e de crenccedila bem como ao livre exerciacutecio de cultos religiosos agrave proteccedilatildeo dos locais de
adoraccedilatildeo agrave proibiccedilatildeo do estabelecimento de religiatildeo agrave garantia de assistecircncia religiosa
e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva agrave acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de
consciecircncia e ao ensino religioso facultativo todas foram analisadas de modo que fosse
possiacutevel concluir se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia ou
do respeito
D e acordo com tal anaacutelise o ordenamento juriacutedico brasileiro parece tratar a
religiatildeo e m conformidade com o princiacutepio do respeito Isso porque pessoas religiosas e natildeo
religiosas podem entrar no espaccedilo puacutebico e m iguais condiccedilotildees sendo que a faculdade de
buscar a finalidade uacuteltima da vida eacute respeitada pelo Estado Nesse sentido o ordenamento
juriacutedico brasileiro garante a liberdade de consciecircncia e de crenccedila o livre exerciacutecio de
cultos religiosos e a proteccedilatildeo dos locais de adoraccedilatildeo Adicionalmente enquanto de u m
lado nenhuma religiatildeo pode ser estabelecida pelo Estado pessoas religiosas podem
reivindicar imperativo de consciecircncia bem como receber assistecircncia religiosa e ensino
religioso se essa for a sua escolha
Isso demonstra que todos os indiviacuteduos de acordo com o ordenamento
juriacutedico brasileiro devem entrar no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais e que o Estado eacute
obrigado a fornecer condiccedilotildees para que pessoas religiosas e natildeo religiosas possam buscar
a finalidade uacuteltima da vida se essa for sua escolha respeitando e m todos os indiviacuteduos a
faculdade de realizar tal busca
4 Conclusatildeo
Inicialmente foi examinada neste artigo a diferenccedila entre o princiacutepio da
toleracircncia e o princiacutepio do respeito no que se refere ao tratamento legal de questotildees de
consciecircncia Posteriormente a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no ordenamento
juriacutedico brasileiro foi analisada com a finalidade de verificar qual desses dois princiacutepios eacute
adotado Finalmente conclui-se que o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio
do respeito pela faculdade dos indiviacuteduos de buscar pela finalidade uacuteltima da vida sendo o
Estado obrigado a garantir condiccedilotildees adequadas para as pessoas exercerem tal faculdade
de acordo com suas escolhas autocircnomas de modo que todos os indiviacuteduos possam entrar
no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais
Satildeo Paulo dezembro de 2010
R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010
IM Maria Costa Neves Machado
Referecircncias
BLACKBURN Simon Religion and respect Manuscrito natildeo publicado fornecido pelo autor
durante o Workshop Direito e Filosofia coordenado por Brian Leiter na University of Chicago Law
School no periacuteodo compreendido entre setembro de 2008 e maio de 2009
BIELEFELDT Heiner Filosofia dos direitos humanos fundamentos de u m ethos de liberdade
universal Satildeo Leopoldo Unisinos 2000
BITTAR Eduardo Carlos Bianca O direito na poacutes-modernidade Rio de Janeiro Forense
Universitaacuteria 2005
BOBBIO Norberto Toleracircncia e verdade In E L O G I O da serenidade e outros escritos morais
Traduccedilatildeo de Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo Paulo UNESP 2002 p 149-155
LAFER Celso O Estado laico O Estado de S Paulo Satildeo Paulo 20 maio 2007 Caderno A2 Espaccedilo
Aberto
C O M P A R A T O Faacutebio Konder A afirmaccedilatildeo histoacuterica dos direitos humanos 2 ed Satildeo Paulo
Saraiva 2001
C R E T E L L A JUacuteNIOR Joseacute Comentaacuterios agrave Constituiccedilatildeo Brasileira de 1988 Rio de Janeiro
Forense Universitaacuteria 1992 v 1
D A D E S K Y Jacques Pluralismo eacutetnico e multiculturalismo racismos e anti-racismos no Brasil
Rio de Janeiro Pallas 2005
FERREIRA Pinto Comentaacuterios agrave Constituiccedilatildeo Brasileira Satildeo Paulo Saraiva 1989
FERREIRA FILHO Manuel Gonccedilalves Comentaacuterios agrave Constituiccedilatildeo brasileira de 1988 Satildeo Paulo
Saraiva 1990
GIUMBELLI Emerson Ensino religioso em escolas puacuteblicas no Brasil notas de pesquisa Debates
do NER (UFRGS) v 14 p 50-68 2009
G R E E N Leslie On being tolerated University of Oxford Faculty of Law Legal Studies Research
Paper Series Working Paper No 142008
H A B E R M A S Juumlrgen Lutas pelo reconhecimento no Estado Democraacutetico Constitucional In
TAYLOR Charles (Org) Multiculturalismo examinando a poliacutetica do reconhecimento Lisboa
Piaget 1994
JAMIL CURY Carlos Roberto Ensino religioso na escola puacuteblica o retomo de uma polecircmica
recorrente Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 27 p 183-213 setdez 2004
K Y M L I C K A Will Multicultural citizenship a liberal theory of minority rights Oxford Clarendon
Press 1997
R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010
Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 765
LEITER Brian Why tolerate religion Manuscrito natildeo publicado fornecido pelo autor durante o
Workshop Direito e Filosofia coordenado por Brian Leiter na University of Chicago Law School no
periacuteodo compreendido entre setembro de 2008 e maio de 2009
LUI Janayna de Alencar Entre crentes e pagatildeos ensino religioso em Satildeo Paulo Cadernos de
Pesquisa v 37 n 131 p 333-349 maioago 2007
NORONHA Magalhatildees Direito Penal Satildeo Paulo Saraiva 1968 v 4
NUSSBAUM Martha C Liberty of Conscience In DEFENSE of Americas Tradition of Religious
Equality N e w York Basic Books 2008
MARTINS Ives Granda BASTOS Celso Ribeiro Comentaacuterios agrave Constituiccedilatildeo do Brasil
(Promulgada em 5 de outubro de 1988) Satildeo Paulo Saraiva 1989 v 2
Moraes Alexandre de Constituiccedilatildeo do Brasil Interpretada e Legislaccedilatildeo Constitucional Satildeo Paulo
Atlas 2003
NEVES Marcelo Entre Tecircmis e Leviatatilde uma relaccedilatildeo difiacutecil (o Estado Democraacutetico de Direito a
partir e aleacutem de Luhmann e Habermas) Satildeo Paulo Martins Fontes 2006
Justiccedila e diferenccedila numa sociedade global complexa Recife Instituto dos Advogados de
Pernambuco v 1 n 1 2000
PAINE Thomas The Founders Constitution v 5 I Emenda (Religiatildeo) Doe 57 Disponiacutevel em
lthttppress-pubsuchicagoedufoundersdocumentsamendI_religions57htmlgt
R A N Q U E T A T JUacuteNIOR Ceacutesar Do confessional ao plural uma anaacutelise sobre o novo modelo de
ensino religioso nas escolas brasileiras Revista Diaacutelogo e Educaccedilatildeo Curitiba v 8 n 23 p 289-
305 janabr 2008
RAZ Joseph Autonomy toleration and the harm principie In GAVISON Ruth (Ed)
Contemporary legalphilosophy the influence of H L A Hart Oxford University Press
R E A L E JUacuteNIOR Miguel Toleracircncia e solidariedade In MARCIacuteLIO Maria Luiza A declaraccedilatildeo
Universal dos Direitos Humanos sessenta anos sonhos e realidades Satildeo Paulo EDUSP 2008 p
167-178
S C H E R K E R K E W I T Z Iso Chaitz O direito de religiatildeo no Brasil Revista Nacional de
Jurisprudecircncia ano 3 n 34 out 2002
TASCHNER Gisela B A poacutes-modemidade e a sociologia Revista USP Satildeo Paulo n 42 junago
p 6-19 1999
T O L E D O Francisco de Assis Princiacutepios baacutesicos de direito penal Satildeo Paulo Saraiva 1986
R Fac Dir Univ SP v 105 p 743 - 765 jandez 2010
Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 763
Neste item a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil foi examinada
com a finalidade de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota u m princiacutepio de
toleracircncia ou de respeito As normas relacionadas agrave garantia da liberdade de consciecircncia
e de crenccedila bem como ao livre exerciacutecio de cultos religiosos agrave proteccedilatildeo dos locais de
adoraccedilatildeo agrave proibiccedilatildeo do estabelecimento de religiatildeo agrave garantia de assistecircncia religiosa
e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva agrave acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de
consciecircncia e ao ensino religioso facultativo todas foram analisadas de modo que fosse
possiacutevel concluir se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia ou
do respeito
D e acordo com tal anaacutelise o ordenamento juriacutedico brasileiro parece tratar a
religiatildeo e m conformidade com o princiacutepio do respeito Isso porque pessoas religiosas e natildeo
religiosas podem entrar no espaccedilo puacutebico e m iguais condiccedilotildees sendo que a faculdade de
buscar a finalidade uacuteltima da vida eacute respeitada pelo Estado Nesse sentido o ordenamento
juriacutedico brasileiro garante a liberdade de consciecircncia e de crenccedila o livre exerciacutecio de
cultos religiosos e a proteccedilatildeo dos locais de adoraccedilatildeo Adicionalmente enquanto de u m
lado nenhuma religiatildeo pode ser estabelecida pelo Estado pessoas religiosas podem
reivindicar imperativo de consciecircncia bem como receber assistecircncia religiosa e ensino
religioso se essa for a sua escolha
Isso demonstra que todos os indiviacuteduos de acordo com o ordenamento
juriacutedico brasileiro devem entrar no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais e que o Estado eacute
obrigado a fornecer condiccedilotildees para que pessoas religiosas e natildeo religiosas possam buscar
a finalidade uacuteltima da vida se essa for sua escolha respeitando e m todos os indiviacuteduos a
faculdade de realizar tal busca
4 Conclusatildeo
Inicialmente foi examinada neste artigo a diferenccedila entre o princiacutepio da
toleracircncia e o princiacutepio do respeito no que se refere ao tratamento legal de questotildees de
consciecircncia Posteriormente a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no ordenamento
juriacutedico brasileiro foi analisada com a finalidade de verificar qual desses dois princiacutepios eacute
adotado Finalmente conclui-se que o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio
do respeito pela faculdade dos indiviacuteduos de buscar pela finalidade uacuteltima da vida sendo o
Estado obrigado a garantir condiccedilotildees adequadas para as pessoas exercerem tal faculdade
de acordo com suas escolhas autocircnomas de modo que todos os indiviacuteduos possam entrar
no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais
Satildeo Paulo dezembro de 2010
R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010
IM Maria Costa Neves Machado
Referecircncias
BLACKBURN Simon Religion and respect Manuscrito natildeo publicado fornecido pelo autor
durante o Workshop Direito e Filosofia coordenado por Brian Leiter na University of Chicago Law
School no periacuteodo compreendido entre setembro de 2008 e maio de 2009
BIELEFELDT Heiner Filosofia dos direitos humanos fundamentos de u m ethos de liberdade
universal Satildeo Leopoldo Unisinos 2000
BITTAR Eduardo Carlos Bianca O direito na poacutes-modernidade Rio de Janeiro Forense
Universitaacuteria 2005
BOBBIO Norberto Toleracircncia e verdade In E L O G I O da serenidade e outros escritos morais
Traduccedilatildeo de Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo Paulo UNESP 2002 p 149-155
LAFER Celso O Estado laico O Estado de S Paulo Satildeo Paulo 20 maio 2007 Caderno A2 Espaccedilo
Aberto
C O M P A R A T O Faacutebio Konder A afirmaccedilatildeo histoacuterica dos direitos humanos 2 ed Satildeo Paulo
Saraiva 2001
C R E T E L L A JUacuteNIOR Joseacute Comentaacuterios agrave Constituiccedilatildeo Brasileira de 1988 Rio de Janeiro
Forense Universitaacuteria 1992 v 1
D A D E S K Y Jacques Pluralismo eacutetnico e multiculturalismo racismos e anti-racismos no Brasil
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FERREIRA Pinto Comentaacuterios agrave Constituiccedilatildeo Brasileira Satildeo Paulo Saraiva 1989
FERREIRA FILHO Manuel Gonccedilalves Comentaacuterios agrave Constituiccedilatildeo brasileira de 1988 Satildeo Paulo
Saraiva 1990
GIUMBELLI Emerson Ensino religioso em escolas puacuteblicas no Brasil notas de pesquisa Debates
do NER (UFRGS) v 14 p 50-68 2009
G R E E N Leslie On being tolerated University of Oxford Faculty of Law Legal Studies Research
Paper Series Working Paper No 142008
H A B E R M A S Juumlrgen Lutas pelo reconhecimento no Estado Democraacutetico Constitucional In
TAYLOR Charles (Org) Multiculturalismo examinando a poliacutetica do reconhecimento Lisboa
Piaget 1994
JAMIL CURY Carlos Roberto Ensino religioso na escola puacuteblica o retomo de uma polecircmica
recorrente Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 27 p 183-213 setdez 2004
K Y M L I C K A Will Multicultural citizenship a liberal theory of minority rights Oxford Clarendon
Press 1997
R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010
Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 765
LEITER Brian Why tolerate religion Manuscrito natildeo publicado fornecido pelo autor durante o
Workshop Direito e Filosofia coordenado por Brian Leiter na University of Chicago Law School no
periacuteodo compreendido entre setembro de 2008 e maio de 2009
LUI Janayna de Alencar Entre crentes e pagatildeos ensino religioso em Satildeo Paulo Cadernos de
Pesquisa v 37 n 131 p 333-349 maioago 2007
NORONHA Magalhatildees Direito Penal Satildeo Paulo Saraiva 1968 v 4
NUSSBAUM Martha C Liberty of Conscience In DEFENSE of Americas Tradition of Religious
Equality N e w York Basic Books 2008
MARTINS Ives Granda BASTOS Celso Ribeiro Comentaacuterios agrave Constituiccedilatildeo do Brasil
(Promulgada em 5 de outubro de 1988) Satildeo Paulo Saraiva 1989 v 2
Moraes Alexandre de Constituiccedilatildeo do Brasil Interpretada e Legislaccedilatildeo Constitucional Satildeo Paulo
Atlas 2003
NEVES Marcelo Entre Tecircmis e Leviatatilde uma relaccedilatildeo difiacutecil (o Estado Democraacutetico de Direito a
partir e aleacutem de Luhmann e Habermas) Satildeo Paulo Martins Fontes 2006
Justiccedila e diferenccedila numa sociedade global complexa Recife Instituto dos Advogados de
Pernambuco v 1 n 1 2000
PAINE Thomas The Founders Constitution v 5 I Emenda (Religiatildeo) Doe 57 Disponiacutevel em
lthttppress-pubsuchicagoedufoundersdocumentsamendI_religions57htmlgt
R A N Q U E T A T JUacuteNIOR Ceacutesar Do confessional ao plural uma anaacutelise sobre o novo modelo de
ensino religioso nas escolas brasileiras Revista Diaacutelogo e Educaccedilatildeo Curitiba v 8 n 23 p 289-
305 janabr 2008
RAZ Joseph Autonomy toleration and the harm principie In GAVISON Ruth (Ed)
Contemporary legalphilosophy the influence of H L A Hart Oxford University Press
R E A L E JUacuteNIOR Miguel Toleracircncia e solidariedade In MARCIacuteLIO Maria Luiza A declaraccedilatildeo
Universal dos Direitos Humanos sessenta anos sonhos e realidades Satildeo Paulo EDUSP 2008 p
167-178
S C H E R K E R K E W I T Z Iso Chaitz O direito de religiatildeo no Brasil Revista Nacional de
Jurisprudecircncia ano 3 n 34 out 2002
TASCHNER Gisela B A poacutes-modemidade e a sociologia Revista USP Satildeo Paulo n 42 junago
p 6-19 1999
T O L E D O Francisco de Assis Princiacutepios baacutesicos de direito penal Satildeo Paulo Saraiva 1986
R Fac Dir Univ SP v 105 p 743 - 765 jandez 2010
IM Maria Costa Neves Machado
Referecircncias
BLACKBURN Simon Religion and respect Manuscrito natildeo publicado fornecido pelo autor
durante o Workshop Direito e Filosofia coordenado por Brian Leiter na University of Chicago Law
School no periacuteodo compreendido entre setembro de 2008 e maio de 2009
BIELEFELDT Heiner Filosofia dos direitos humanos fundamentos de u m ethos de liberdade
universal Satildeo Leopoldo Unisinos 2000
BITTAR Eduardo Carlos Bianca O direito na poacutes-modernidade Rio de Janeiro Forense
Universitaacuteria 2005
BOBBIO Norberto Toleracircncia e verdade In E L O G I O da serenidade e outros escritos morais
Traduccedilatildeo de Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo Paulo UNESP 2002 p 149-155
LAFER Celso O Estado laico O Estado de S Paulo Satildeo Paulo 20 maio 2007 Caderno A2 Espaccedilo
Aberto
C O M P A R A T O Faacutebio Konder A afirmaccedilatildeo histoacuterica dos direitos humanos 2 ed Satildeo Paulo
Saraiva 2001
C R E T E L L A JUacuteNIOR Joseacute Comentaacuterios agrave Constituiccedilatildeo Brasileira de 1988 Rio de Janeiro
Forense Universitaacuteria 1992 v 1
D A D E S K Y Jacques Pluralismo eacutetnico e multiculturalismo racismos e anti-racismos no Brasil
Rio de Janeiro Pallas 2005
FERREIRA Pinto Comentaacuterios agrave Constituiccedilatildeo Brasileira Satildeo Paulo Saraiva 1989
FERREIRA FILHO Manuel Gonccedilalves Comentaacuterios agrave Constituiccedilatildeo brasileira de 1988 Satildeo Paulo
Saraiva 1990
GIUMBELLI Emerson Ensino religioso em escolas puacuteblicas no Brasil notas de pesquisa Debates
do NER (UFRGS) v 14 p 50-68 2009
G R E E N Leslie On being tolerated University of Oxford Faculty of Law Legal Studies Research
Paper Series Working Paper No 142008
H A B E R M A S Juumlrgen Lutas pelo reconhecimento no Estado Democraacutetico Constitucional In
TAYLOR Charles (Org) Multiculturalismo examinando a poliacutetica do reconhecimento Lisboa
Piaget 1994
JAMIL CURY Carlos Roberto Ensino religioso na escola puacuteblica o retomo de uma polecircmica
recorrente Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 27 p 183-213 setdez 2004
K Y M L I C K A Will Multicultural citizenship a liberal theory of minority rights Oxford Clarendon
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R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010
Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 765
LEITER Brian Why tolerate religion Manuscrito natildeo publicado fornecido pelo autor durante o
Workshop Direito e Filosofia coordenado por Brian Leiter na University of Chicago Law School no
periacuteodo compreendido entre setembro de 2008 e maio de 2009
LUI Janayna de Alencar Entre crentes e pagatildeos ensino religioso em Satildeo Paulo Cadernos de
Pesquisa v 37 n 131 p 333-349 maioago 2007
NORONHA Magalhatildees Direito Penal Satildeo Paulo Saraiva 1968 v 4
NUSSBAUM Martha C Liberty of Conscience In DEFENSE of Americas Tradition of Religious
Equality N e w York Basic Books 2008
MARTINS Ives Granda BASTOS Celso Ribeiro Comentaacuterios agrave Constituiccedilatildeo do Brasil
(Promulgada em 5 de outubro de 1988) Satildeo Paulo Saraiva 1989 v 2
Moraes Alexandre de Constituiccedilatildeo do Brasil Interpretada e Legislaccedilatildeo Constitucional Satildeo Paulo
Atlas 2003
NEVES Marcelo Entre Tecircmis e Leviatatilde uma relaccedilatildeo difiacutecil (o Estado Democraacutetico de Direito a
partir e aleacutem de Luhmann e Habermas) Satildeo Paulo Martins Fontes 2006
Justiccedila e diferenccedila numa sociedade global complexa Recife Instituto dos Advogados de
Pernambuco v 1 n 1 2000
PAINE Thomas The Founders Constitution v 5 I Emenda (Religiatildeo) Doe 57 Disponiacutevel em
lthttppress-pubsuchicagoedufoundersdocumentsamendI_religions57htmlgt
R A N Q U E T A T JUacuteNIOR Ceacutesar Do confessional ao plural uma anaacutelise sobre o novo modelo de
ensino religioso nas escolas brasileiras Revista Diaacutelogo e Educaccedilatildeo Curitiba v 8 n 23 p 289-
305 janabr 2008
RAZ Joseph Autonomy toleration and the harm principie In GAVISON Ruth (Ed)
Contemporary legalphilosophy the influence of H L A Hart Oxford University Press
R E A L E JUacuteNIOR Miguel Toleracircncia e solidariedade In MARCIacuteLIO Maria Luiza A declaraccedilatildeo
Universal dos Direitos Humanos sessenta anos sonhos e realidades Satildeo Paulo EDUSP 2008 p
167-178
S C H E R K E R K E W I T Z Iso Chaitz O direito de religiatildeo no Brasil Revista Nacional de
Jurisprudecircncia ano 3 n 34 out 2002
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