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Universidade de São Paulo
Prof. Dr. João Grandino RodasReitor
Prof. Dr. Hélio Nogueira da CruzVice-Reitor
Profª Drª Maria Arminda do Nascimento Arruda Pró-Reitora de Cultura e Extensão Universitária
Prof. Dr. Osvaldo Luiz BezzonPrefeito do Campus de Ribeirão Preto
João Braz Martins JúniorDiretor da Divisão de Atendimento a Comunidade
Camila de Carvalho MicheluttiChefe da Seção de Atividades Culturais
Seção de Atividades Culturais:
Aurélio M. C. Guazzelli (Lelo)Camila de Carvalho Michelutti
Carlos de Araújo ArantesIvani Moreno Cardoso
José Gustavo Julião de CamargoLélis Camilo Cavalieri
Maria Aparecida Rodrigues VitorRafael dos Santos Elias
Regina Célia Reis da SilvaSandra Regina Arcanjo de Carvalho Melo
volume 202014
ISSN 1516-0513
poesia & prosa
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULOPRÓ-REITORIA DE CULTURA E EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA
PREFEITURA DO CAMPUS USP DE RIBEIRÃO PRETODIVISÃO DE ATENDIMENTO A COMUNIDADE
SEÇÃO DE ATIVIDADES CULTURAIS
ProduçãoSeção de Atividades Culturais
Coordenação do ProgramaLelo Guazzelli
Seleção de OriginaisAlfredo Rossetti e Lucas Arantes
Preparação, Projeto Gráfico e Supervisão GráficaPSAF - Gráfica
Fotografia: Estéphe Bergoncini, 1° Tenente do Corpo de Bombeiros, aman-
te da fotografia. Participou da Oficina de Fotografia da Seção de Atividades Culturais.
SEÇÃO DE ATIVIDADES CULTURAIS • DVATCOM • PUSP-RP • USPPrefeitura do Campus USP de Ribeirão Preto
Rua Pedreira de Freitas, casa 04 – tel.: (16) 3602.353014040-900 • Ribeirão Preto / SP
www.prefeiturarp.usp.br/culturacultura.pc@usp.br
facebook: atividadesculturais.usp.br
editorial Não deve ser muito comum um programa literário durar vinte
anos em nosso País. Mas aí está o Poeta de Gaveta, que começou
sem muita pretensão e permaneceu até os dias de hoje. Abraçado
pela comunidade uspiana, reconhecido pelos amantes da literatura,
entre outros.
É fato que programas culturais não casam com projetos “políti-
cos”, estes são efêmeros e incapazes de gerar consistência. O espaço
de quatro anos é muito pouco para construir uma ação cultural, e, ao
mesmo tempo, suficiente para destruir o que se mantém. Tenho visto
poucos concursos literários pelo país. Pouca inclinação para a arte e
a cultura. Muita coisa acontece, mas parece que vejo tudo em vitrines.
Fico com medo de olhar em meu corpo e achar um código de barra.
Será que é só uma crise saudosista? Pode ser. Mas graças à internet,
vamos descobrindo outros caminhos para nossos sentidos. Pelo me-
nos nela podemos decidir quais mares navegar.
Em tempos digitais estamos redescobrindo o passado e atu-
ando no presente, praticamente “ao vivo”. Estamos mutantes. Várias
gerações ao mesmo tempo mutantes. Mas mudar em pouco tempo
pode não ser nada, apenas conhecer ou simplesmente ver. A ativida-
de cultural quando existe traz modificações, muda o jeito de pensar
porque descobre-se o seu pensar. Entende-se o individual e olha-se
no ambiente social. Reflexão, contradições e o ato de conversar pa-
rece passado. Mas quanto ganharia a nossa sociedade se discutisse
filosoficamente e não futebolisticamente. Parar o frenético impulso de
uma mídia que nos torna cada dia mais efêmero é bem necessário.
As mídias tradicionais não favorecem mais ninguém, talvez porque
tenham dado menos importância para a cultura e arte, justificando,
como nosso país justifica tudo, pelo direito ao dinheiro.
Um rastro pueril vai ficando em nossas vidas. Percebo que
onde se tem dinheiro, em noutros tempos não se mantém, nada se
solidifica a não ser pelas ruínas. Porém onde se tem arte e cultura,
com dinheiro ou não, a semente sempre germina, os olhos brilham, as
ideias florescem, o caráter é digno. Não falo de uma cura social, mas
um direito à cidadania. De uma sociedade com o direito de ter um sen-
so crítico desenvolvido, para analisar o turbilhão de um entretenimento
decadente socado pelos nossos ouvidos e olhos todos os dias nesse
país, e onde programas como o Poeta de Gaveta, e outras iniciativas
artísticas poderiam ser bem acolhidas.
Lelo Guazzelli
Coordenador do programa Poeta de Gaveta
ALGUMAS PALAVRAS
O programa POETA DE GAVETA exprime fielmente a literatura
do nosso tempo: plural. Ou se preferirem heterogênea. Sem a preo-
cupação do modismo ou vassalagem à uma determinada escola. A
prioridade é a expressão de cada artista, independente do que o aca-
demicismo possa reiterar como tendência. E isso livra de certa ditadu-
ra imposta sempre por círculos pretensiosamente donos das cartas a
dar. Que bom. Assim, podemos reunir num só volume várias formas
de se fazer literatura, seja em poemas, crônicas ou contos. E esta
diversidade aponta para o deleite de quem tem a oportunidade de ler
e reler haikai, soneto, poemas livres, contos curtos, crônicas atuais,
etc. Além disso, o projeto também reúne em seu bojo o abrir oportu-
nidades aos artistas que não podem, por vários motivos, terem seus
trabalhos publicados em livros, e só quem milita nesta área é que pode
descrever com propriedade, o prazer que é ver diante de nossos olhos
e sentidos nossos trabalhos publicados, nossas linhas impressas, o
papel tatuado com alguma marca pessoal diante de nós. E para mim é
a parte mais importante desse livro que ora vem à lume, num exercício
primoroso de se estabelecer uma porta aberta a quem tem a intrínseca
necessidade de expressão.
Alfredo Rossetti, poeta. Autor dos livros: COLHEITA DOS VENTOS, 2008 TREM
DAS PALAVRAS, 2011 LUZ DE ALPENDRE, 2013
A arte sempre foi crônica do seu tempo. Aproximar o público
com os realizadores de obras realizadas no presente é manter a socie-
dade em constante contato com a história da cultura, impulsionando o
pensamento de cada um para a construção do futuro. Ao ter acesso a
novos textos no programa POETA DE GAVETA, um novo público esta-
rá se formando para ver a literatura com novos olhos. Um novo público
também é formado por novos conteúdos. E nada melhor do que escri-
tos contemporâneos para catapultar as questões artísticas e humanas
de cada um, nos fazendo repensar o presente para a construção do
futuro. Uma nação precisa ter acesso aos seus artistas e poetas, em
diminuir a distância entre artistas, obra e público, pois são eles quem
ajudam a pensar o mundo em constante transformação, nos fazendo
refletir sobre o homem na atualidade e a nos reinventarmos a cada
instante. É neste contexto que o programa POETA DE GAVETA se faz
necessário, reunindo um variedade de vozes e linguagens formando
um pedaço do mosaico da literatura realizada nos tempos de hoje.
Lucas Arantes, escritor, jornalista e psicanalista. Membro fundador e atual orga-
nizador do Espaço A Coisa. Autor dos livros SONIDOS, DOCUMENTOS INÚTEIS,
POEMAS NA MESA POSTA OU O CLÃ DO URSO DA FLORESTA e O OUTRO ES-
TRANHO. Autor dos espetáculos SUSPENSÃO, AR VAZIO, A.B.ISMO, INFAUSTO,
SOTERRAMENTO, EDIFÍCIO LONDON, entre outros espetáculos. Este último, o es-
petáculo levado ao palco pela premiada Companhia Os Satyros, de São Paulo, e o
livro, publicado pela Editora Coruja, de Ribeirão Preto foram censurados pela justiça
brasileira em março de 2013.
sumário17 - Fruição e Fricção / Vitor Hugo de Oliveira
18 - Ainda / Vitor Hugo de Oliveira
20 - Ícaro submerso na luz / Vitor Hugo de Oliveira
22 - Única (o) / Flávio Basile
23 - O princípio / Caio Chaves Morau
25 - Flores no chão / Caio Chaves Morau
27 - Breve retrato de uma quarta-feira ordinaríssima / Caio
Chaves Morau
33 - Informática mágica / Amir do N. Elemam
34 - Hiato / Mateus Araujo
35 - Reflexões de uma pedra / Marcos de Abraão
37 - De que pé dá o amor? / Ana Clara Rodrigues Almeida
38 - Singularidade I / Letícia Azevedo
39 - Singularidade II / Letícia Azevedo
40 - Permanência / Letícia Azevedo
41 - Poema de “não sei” / Janaína de Godoy Gonçalves
42 - Amor / Pedro Henrique
45 - Imortalidade / Pedro Henrique
47 - Sentidos / Milena Shimada
48 - Encontro / Marina Liberale
51 - Aroma / Roque Pinho
53 - Afronta Brasiloira / Roque Pinho
55 - Esclarecimento sombrio / Magê DBgt
56 - Senhora morte em desabafo / Magê DBgt
57 - Foi no carnaval / Guilherme Gandolfi
59 - O homem invisível / Guilherme Gandolfi
61 - 1914 / Alexandre Traldi Reichel
63 - Abra o negro ceú, luar das almas / Camila Silveira Stanquini
64 - Opala 71 / Camila Silveira Stanquini
67 - Arrevesso escuro na avenida Dr. Carlos Botelho / Lucelindo
Dias Ferreira Junior
68 - Romance selado a sangue e cuspe / Lucelindo Dias Ferreira
Junior
69 - Menino-dor: broto de cactos / Lucelindo Dias Ferreira Junior
73 - All-stars nesse puzzle fotográfico / Ana Paula Tavares Miranda
74 - A manhã que acorda meio kafka / Ana Paula Tavares Miranda
75 - Te amo (no Elevado do Caju) / José Antonio Vargas Bazán
Nomes de autores com abreviação:
Amir do Nascimento Elemam - Amir do N. Elemam
Marcos de Abraão de Souza Fonseca - Marcos de Abraão
Letícia Azevedo Januário - Letícia Azevedo
Pedro Henrique Rodrigues da Silva - Pedro Henrique
Roque Emmanuel da Costa de Pinho - Roque Pinho
Maria Eugênia Deungaro Borgato - Magê DBgt
autoresautores
textostextos
17
Fruição e FricçãoVitor Hugo de Oliveira
Costuro-lhe todos os lábios,
escavo então novas profundidades.
Dou-lhe uma nova geografia.
Todo tapa dói, pois só se espanca o ser amado
As cartas de amor sangram ódios insuperados
e tingem de escarlate, por entre as letras de Moisés,
o puro vinho produzido
por fruição e fricção
18
AindaVitor Hugo de Oliveira
Sobre o que ainda não foi dito
sobre o que muito já se disse, se sentiu, se sofreu
preservado feito fóssil nas densas sedimentações
depositadas sobre os corações, as rugas, as lágrimas.
Muito se nasce e se resseca na fértil terra de nossas
almas,
que se muito arada há de necessitar de pousios
quando as chuvas acalentam as ressequidas rachaduras
quando o Nordeste se alumia em verde flora
e exala o perfume da bela rapariga
que se apronta, que acasala, que se achega nos ombros
\e sopra o ouvido
19
Arre! os tremores da pele que brotam em pêlos hirtos
são novas florestas que nascem ao comando teu,
as mesmas que nascem... e depois morrem, e se
\sedimentam em palavras
no corpo nu
e fertilizam as frases de palavras desvirtuadas
e brotam em dizeres tampouco puros
e abrem valas entre os lábios
de sons não professados, ainda
20
Ícaro submerso na luzVitor Hugo de Oliveira
“Eu quero mais é que me faça flutuar essa tal gravidadeforjar minhas asas nas duras
duras penas da verdade”
Manifesto de repulsa à flacidezO Feliz Amor do Felino Ferido
Como voar sem erguer os braços,
atingir velocidades ultrassônicas e distâncias atmosféricas?
Como ser contido, como escolher o caminho do meio,
ser moderado, ter a parcimônia do entre-segundos?
Estou siderado!
Arregaço minhas mangas, abro minhas asas,
ignoro as físicas algorítmicas e frias, viajo direto à luz
21
Será que queimo de velocidade ou de temor?
Derreto minhas possibilidades em lágrimas ferventes,
chorando a dor em Technicolor, no vermelho-sangue das
/costas
Chibatadas solares
Piedades nebulosas
com suas gravitações newtonianas
Após o vértice dos sonhos,
no torpor de mil brilhos estelares
resvalo na luz com as pontas dos dedos,
sucumbo ao pecado
ao corpo
ao inferno,
...
Submerso e disperso na verdade ondulante e incerta
desfeito em duras penas:
Com vistas esbranquiçadas não mais vejo,
como se veria.
Vitor Hugo de OliveiraDoutorado/Psicologia/FFCLRP • “Faz tempo que não leio. Faz tempo que escrevo. Recolho textos esparsos no tem-po, buscando retomar sensações antigas”.www.atravosfimicio.blogspot.com
22
Única(o) Flávio Basile
Bem aventurado o que sabe que a Vida não leva a
nada e a lugar algum.
E que falta sua ninguém vai sentir.
Percebe daí: a vida é uma só pra não se ser
Singular.
Flávio BasileA/Direito/FDRP • “Há sete anos, publiquei no Jornal À Cidade de Ribeirão Preto”.flavio.basile@usp.br
23
O PrincípioCaio Chaves Morau
— De acordo, meu senhor, não sou em quem discordará.
— Ainda bem que lhe sobra algo de sensatez nessa cabeça.
— Sobra sensatez... sim, é verdade. E sobram também muitas
outras coisas...
— Natural que seja assim. Diga-me, pois, algumas delas...
— São tantas, meu senhor, que não sei bem por onde começar.
— Pelo princípio, oras.
— Mas que princípio é esse? Identifico, ainda que com alguma
dificuldade, o princípio daquelas filas de banco, de uma partida de
futebol... mas, meu senhor, aqui nesta cabeça, não há princípio que
mereça este nome.
— Deixa de bobagem, menino. O princípio, estas nove letras
que se pronunciam com gosto, é o mesmo para as filas de banco e
partidas de futebol e para todas essas bobagens que guarda nessa
tua cabeça de jovem.
— Não entendo, meu senhor...
— Não há um único mistério em tudo isso. O princípio é isto
que se convencionou chamar de começo, início, é a força primeira,
o acontecimento primeiro...
— Mas, meu senhor, é demasiada simplicidade pra essas coi-
sas da nossa cabeça...
24
— Mais do que simplicidade, lógica, meu filho. O princípio está
ali, não enxerga porque não quer. O princípio está em tudo. “In prin-
cipio creavit Deus caelum et terram”, no princípio Deus criou o céu
e a terra, não lhe parece razoável?
— Meu senhor, me perdoe, não estamos aqui a falar da cria-
ção, tampouco de razoabilidade. Pergunto ao senhor onde é que
está o princípio da nossa alegria e da nossa tristeza, das nossas
dúvidas e das nossas angústias.
— Meu filho, escuta bem o que te digo. Este princípio é ainda
mais claro do que todos os outros. Não está em nada da tua ca-
beça, nem nos pensamentos que te arrastam. O que é o princípio
senão o dia em que saiu do ventre da tua mãe, e que também eu
de lá saí há alguns tantos anos. Este princípio não escolhemos.
Não procura nunca o princípio, meu filho! Acaso já te foi necessário
tocar o coração da tua mãe pra saber do amor que dali parte? Faz
o mesmo com o princípio, convence-te de que ele esteve sempre
ali e cuida de tratar das tuas angústias e das tuas dúvidas com
honradez. Não é o princípio o culpado e não há culpado nenhum.
25
Flores no chãoCaio Chaves Morau
— Veja só que sou capaz de ver flores no chão.
— Capazes somos todos... acaso nascem as flores do ar ou
brotam das paredes?
— Repara bem no que digo: vejo flores no chão!
— Ah, não me venha com essa, que é hoje sábado de manhã,
há mais o que se ver por aí.
— Pois, repito. Flores, flores! Vejo flores no chão!
— Que queres tu? Tirar-me a alegria desta manhã com os de-
vaneios teus?
— Queria mesmo que as enxergasse.
— Pois onde estão, oras, essas flores que vês nesse teu chão?
— Aí estão!
— Já bem imaginava... que flores são essas? O que se vê aqui
são reflexos. Reflexos das flores suspensas do alpendre. Acaso cabu-
lastes tuas aulas de física?
— Reflexo... não entendo de que reflexo falas tu...
— Ora bolas, reflexo, deste que tratamos aqui, é o reflexo, ele,
o único, o de se verem as coisas noutro lugar por alguma ação física
que o valha...
— Então, só se veem os reflexos nessa condição? Antes que te
fizesse notar, havias tu reparado nessas flores?
26
— Repararia, se tivesse olhado...
— Repararia em que? Nas flores ou no reflexo delas?
— Ora, deixe-me de tantas perguntas.... o reflexo ali está, as
flores também estão. Que mais queres tu?
— Não quis nada desde o princípio.... quis sim que reparastes
nas flores.
— Pois qualquer um em boa vista notaria todas elas...
— Tens certeza? Os reflexos notamos todos. As flores que ali
estão, no piso, nas vidraças, nos lagos bem azuis, ainda que sejam
reflexos, só são flores para quem quiser ver flores.
27
Breve retrato de umaquarta-feira ordinaríssima
Caio Chaves Morau
Ontem à noite, sabe-se lá por que razão, resolvi confirmar
se havia aula nesta quarta-feira, já o sabia que sim, por diversas
vezes havia sido preciso que eu decorasse os horários e não seria
desta vez que me enganaria. Eis que um minúsculo asterisco na
tabela chamava a atenção para o fato de que, excepcionalmente
hoje, não haveria aula. Pois bem, em uns quantos dias nublados
e chuvosos, essa informação traduzia diante de mim que no dia
seguinte não haveria “nada” a fazer. Diante dos “nadas” que apa-
recem a toda a gente, tem-se geralmente duas opções claríssimas:
ou deixa-se contaminar por eles ou usa-se da infinita capacidade
inventiva das cabeças humanas para que se preencha de alguma
maneira o tempo.
Resolvi então fazer algo que desejava desde o
primeiro momento em que cogitei passar estes meses em terras
francesas. Tirar um dia justamente para cultivar o “nada”. Seria,
no entanto, uma notável injustiça com o verbo “cultivar” que se lhe
atribuísse um sentido vazio, pois ele próprio, sozinho, já nos diz
demasiado. Para que não me alongue muito nessa introdução que
parece levar a lugar nenhum, digo então que tomei o dia simples-
mente para observar. A tudo e a todos. Foi assim que decidi, para
que me sentisse de certa maneira acompanhado, carregar um livro
28
que há muito queria ter lido e que só agora – e que bom que tenha
sido agora – tive a oportunidade de começar. O “Ensaio sobre a
cegueira”, livro do meu autor predileto, malgrado não tenha eu lido
o livro e tampouco visto o filme.
O livro principia com uma epidemia de cegueira, que
vai afetando gradativamente os que tomavam contato com os que
estavam cegos e aqueles, por contágio, cegam também. E a his-
tória se passa de uma maneira tal e a cegueira se instala de um
modo tão abrupto que me veio à mente o seguinte pensamento:
“Que extraordinária coisa essa de se poder ver... deve ser bastante
penosa a vida dos que não veem...”. Pois bem. Saio do metrô e
inicio meu passeio a pé nas ruas cinzentas de uma Paris também
cinzenta que eu não conhecia. E aquilo em que pensei, mal ima-
ginava, fez a mim efetivamente uma companhia durante toda a
tarde. E mais Saramago: “Com o andar dos tempos, mais as ativi-
dades de convivência e as trocas genéticas, acabamos por meter
a consciência na cor do sangue e no sal das lágrimas, e, como
se tanto fosse pouco, fizemos dos olhos uma espécie de espelhos
virados para dentro.”
Espelhos virados para dentro. Guardo esta frase.
Continuo a caminhada, agora mais propenso a observar realmente
tudo o que se passava a minha volta. Lá pelo meio da tarde, entre
uma multidão que se aglomerava em baixo da Torre Eiffel, vi uma
moça bastante simpática, provável que também fosse estrangeira,
com os olhos metidos debaixo de umas grossas lentes escuras,
parada e de braços dados com o seu marido. Não me cansava
29
de olhar aquilo. Se por uma imagem se pudesse dizer que há ali
um verdadeiro amor, que duas pessoas estão espiritualmente uni-
das, não haveria melhor cena do que aquele casal. A moça não via
nada. Paradoxo: e ao mesmo tempo via tudo. Absolutamente tudo.
Arrisco-me ainda a dizer que via mais do que aqueles que tiravam
incessantemente fotos a cada intervalo de trinta ou quarenta se-
gundos. Seu marido lhe descrevia a paisagem, lhe mostrava com
palavras toda a atmosfera de beleza, mesmo na tarde nublada
cujos efeitos de frio e de vento ela própria era capaz de sentir, e a
cada frase que encerrava, abria-se em seu rosto um sorriso legíti-
mo, como deveriam ser em verdade todos os sorrisos.
Aquela cena, que agora guardo como uma bela
fotografia dentro desse álbum de vivências que invariavelmente
encontramos em nossa alma, me fez valer esta tarde, que agora,
embora tenha sido hoje, arrisco também a me referir como “aquela
tarde” – confere uma certa nostalgia a um acontecimento notavel-
mente recente. Como se não bastasse aquela cena – permitam-me
usar o “aquela” agora também para a cena – e como se estivesse
eu como um cientista à procura de um objeto a ser descoberto,
atravesso a calçada. Lanço o olhar para um grupo razoavelmen-
te grande de crianças que estavam ao meu lado esperando que
se abrisse a luz verde para os pedestres. Tinham todas síndrome
de Down e estavam sendo guiadas por um professor para que fi-
zessem um passeio por aquela tarde felizmente cinzenta. Olham
fixamente para o rio Sena. Ao contrário da moça acometida pela
cegueira, eles sim podem ver, mas sabemos nós que o que veem
30
fora não se processa dentro como nas pessoas a quem se poderia
chamar de normais.
O grupo de garotos e a moça de braços dados com
o marido, naquela tarde, em princípio, tinham visivelmente – não
visualmente – alguma limitação. E como venho me arriscando em
todo o texto, não perco mais uma oportunidade: embora visivel-
mente limitados, eram, em termos visuais, de todos os que ali esta-
vam os mais afortunados: viam absolutamente tudo e como viam!
Perto das seis horas, quando começa a escurecer,
pego o metrô de volta para casa. Continuo maravilhado com as
cenas que tinha visto. Penso que provavelmente só eu tivesse vis-
to aqueles dois episódios e atribuído a eles o significado que aqui
contei. Estava em êxtase. Dentro do metrô, como que para enfati-
zar o profundo significado de uma das tardes mais agradáveis da
minha vida, começa um senhor a tocar esplendidamente músicas
no seu saxofone. A música ali fechava com maestria uma tarde fan-
tástica que havia podido desfrutar. Não para os outros. A música
era bela, realmente bela. Como atestar a sua beleza não sei, mas
queiram aceitar que era incrivelmente bela. Os outros, a maioria,
que estavam entretidos com seus aparelhos eletrônicos, não se
atreveram a tirar os fones de ouvido em que estavam metidos ao
menos para ver, ou melhor, ouvir se valia à pena dirigir a atenção
às notas que aquele pobre senhor colocava naquele vagão com
um fôlego inenarrável. Estavam indiferentes, prova cabal daquilo
que há pouco chamamos de “espelhos virados para dentro”. Che-
gamos à última estação. Arrisco-me a bater palmas. Sozinho, mas
31
não em vão. O senhor do saxofone dirigiu a mim imediatamente o
seu olhar. E digo que o os olhos daquele senhor não expressavam
nada mais do que a gratidão. A gratidão por conta das palmas de
um jovem que estava ali maravilhado com as suas músicas. O seu
olhar me dizia, melhor do que quaisquer palavras que se metesse
a dizer, que estava grato, que era raro para que ele que alguém
exaltasse seu trabalho com algumas poucas palmas, que alguém
ajeitasse os olhos, esses “espelhos virados para dentro”, por ao
menos algum instantes, em sua direção.
Pra mim, já podia ter-se acabado o dia naquele mo-
mento. Já havia sido brindado com muito e não esperava que o
trajeto final de ônibus me guardasse alguma surpesa. Como havia
me enganado logo desde o primeiro momento em que saí de casa,
fui levado ao erro mais uma vez. Aquele trajeto final até a resi-
dência universitária guardava ainda alguma magia. Reparo em um
senhor que entra no ônibus com certa dificuldade e tropeça no de-
grau. Estava com uma bengala, mas agora sem as grossas lentes
escuras da moça que estava de braços dados com o marido. Era
também ele cego. E rapidamente me lembrei que já o havia visto
nesse mesmo ônibus em outra ocasião e não havia dado pela sua
cegueira. Lembrei-me que naquele dia ele estava acompanhado.
Pensei que alguém de sua família ou mesmo algum ajudante ou
empregado ficasse sempre ao seu lado para lhe auxiliar. Hoje não
havia ninguém. E o mais natural pra mim foi que eu saísse do
banco onde estava, me dirigisse até ele e dissesse: “Je peux vous
accompagner, monsieur”. Seus olhos não brilharam, porque esta-
32
vam cerrados, mas sua alma, essa sim se encheu de alegria e o
agradecimento veio imediatamente. Desci com aquele senhor na
estação de ônibus e percebi que não morávamos muito longe. Não
sabia se agarrava o seu braço como fez a moça de braços dados
com o marido ou se somente apoiava a mão em seu ombro e lhe
dirigia pelo caminho. Optei pela segunda opção. Guiei desastro-
samente mal aquele senhor de cabelos brancos. Esquecia-me de
avisar que se aproximava a calçada e ele esbarrava o pé e perdia
por vezes o equilíbrio. Agradeceu mais uma vez e disse que eu já
poderia ir-me embora, que a partir dali ele já conhecia o caminho
de casa.
A razão pela qual a vida vem e transforma essas
tardes nubladas e cinzentas em belos dias de sol e contentamento
não pretendo descobrir, pois sei bem que será tarefa das mais di-
fíceis. O que me resta – e é só isso que posso fazer - é agradecer
imensamente à moça de braços dados com o marido, aos jovens
guiados pelo professor e a este senhor que toma o ônibus na mes-
ma linha que eu, por terem permitido que pelo menos durante um
dia, ou uma tarde – aquela tarde! – eu tenha definitivamente virado
para fora esses nossos olhos que em todos os outros dias não são
mais do que pobres, ingratos e indiferentes “espelhos virados para
dentro”.
Caio Chaves MorauA/Direito/FDRP • “Apesar de escrever crônicas e poemas há muito tempo, nesse último ano, que passei em Paris, escrevi com mais regularidade e – assim espero! - profundidade”.
33
Informática MágicaAmir do N. Elemam
Há problema com informação?
Nós temos a solução!
Só tem uma coisa a fazer
A informática vai resolver.
Não importa qual o problema
A solução é SEMPRE um sistema
Não precisa de operador
Quem faz tudo é o computador
Nunca vai dar defeito
O sistema é sempre perfeito
Nem precisa de treinamento
É só dar Enter. Pronto! Tá feito!
Amir do Nascimento ElemamA/Inf. Biomédica/ FFCLRP/FMRPamir.elemam@usp.br
34
HiatoMateus Araujo
Escrevo translúcido em mim
A predileção é a mesma que mata.
O gosto do vinho amargo sustenta abstração.
Escrevo e transmuto confins
A disposição que corta acata.
A fraqueza que entrega a dor ostenta exposição.
O verso retém o diverso
Intacto.
O inverso contém o imerso
Hiato.
Mateus AraujoA/Música/FFCLRP
35
Reflexões de uma pedraMarcos de Abraão
Não sei por que estou aqui.
Simplesmente quando dei por mim eu era assim,
um ser imóvel e pensante.
Percebo que é estranho pensar,
mais estranho ainda é pensar que estou pensando.
Pois penso nas coisas que se passam,
não sei o que são,
mas apenas sei que passam.
Ora são carícias,
que eu chamei de vento
e ora são lágrimas,
que eu chamei de chuva.
Quando é claro é quente
e quando é noite é silêncio.
Sou um ser imóvel e pensante.
O que eu sinto só eu sei.
Não precisa de verdades.
O mundo é assim,
seco, molhado, quente e frio.
Uma parte é terra e a outra é vazio.
36
Não havia nada além do céu até aquele olhar.
Depois disso tudo mudou,
pois assim eu sei que tudo passa,
tudo muda.
Eu estava no meio do caminho quando me notaram.
E toda minha singularidade aflorou-se,
pois também tenho uma história.
Marcos de Abraão de Souza FonsecaDoutorado/Bioinformática/FFCLRP
37
De que pé dá o amor?Ana Clara Rodrigues Almeida
O amor não nasceu crescido
Não foi o destino quem trouxe em uma noite especial
\qualquer
Não foi à primeira vista ou a troca de olhares
Nem veio de Deus ou coisa sobrenatural
Não, não e não...sou feliz em dizer.
Sou a única responsável pelo amor que sinto
Escolhi, inventei e recreie...e recrio
Não fui fadada a amar e não o sou em todo o momento
\em que amo.
Sou livre
Posso amar e desamar, graças a Deus!
E se ainda assim amo e continuo amando a cada letra
\que escrevo e dias que passam
É porque ele é bom, alegre e cresce.
Amo porque quero amar e isto me basta.
Ana Clara Rodrigues AlmeidaA/Psicologia/FFCLRP • “Nunca publiquei meus poemas, talvez por falta de oportunidade.”
38
Singularidade ILetícia Azevedo
Arbustos deitam-se às margens do riacho preguiçoso
que avança exultando risos e jorros cristalinos.
Minha face se reflete e as calêndulas
irradiam seu amarelo por entre meus dedos.
Os galhos estendem rubras cerejas
feito joias a balouçar em graciosas orelhas...
E a tarde morre neste momento
Frouxo e trêmulo.
39
Singularidade IILetícia Azevedo
À sorrelfa, o melro pousa na mesa.
O movimento de suas asas interrompe as repousantes
pétalas de peônias rosadas no cesto.
Sorrateiramente, furta uma cereja deixada ao acaso
e a leva para um galho.
Depois, vai-se em voo suave.
Nas tardes mornas, ouve-se seu canto harmonioso
vindo dos seculares plátanos.
40
PermanênciaLetícia Azevedo
Permanecerei aqui,
entre as alamedas verdejantes
onde nossos olhares se encontraram.
Entre prímulas orvalhas
rodeadas de rútilas borboletas.
Espero-te, até que seus pensamentos e
lembranças o traga novamente
de encontro aos meus sentidos
ansiosos por seu eterno sorriso.
Espero-te entre o canto dos pássaros,
entre o cintilar das águas e
entre o rumorejar da fonte.
Minha vista a perder-se
por entre o murmúrio das folhas ao vento.
E o vestígio da minha passagem,
Trazer-te-á até mim.
Letícia Azevedo JanuárioA/Ciências da Informação e da Documentação/FFCLRP • “Leio desde muito cedo e escrevo desde os 12 anos. Com a vida acadêmica não tenho tido muito tempo para me dedicar a poesia. Nunca pensei em publicar minhas poesias, até porque, nunca tive a oportunidade. Mas agora com o Poeta de Gaveta, comecei a pensar sobre isso”.
41
Poema de “não sei” Janaína de Godoy Gonçalves
É a imperfeição do que é bonito e a perfeição do que é feio.
Não é o quadrado nem a circunferência, mas uma forma aleatória
\da mistura dos dois.
Não é o doce nem o salgado nem o “sem sal”.
É o ponto tríplice.
A horrível sensação da beleza de uma bomba atômica é o que eu
\sinto,
mas não tão instantâneo.
É o que faz se optar entre duas coisas iguais.
É a sensação de frio depois de estar perto de algo quente, mas não
\estando frio.
É o amargo de algo doce após se provar algo mais doce.
É o que diferencia o azul-esverdeado do verde-azulado.
É o vento frio em dia quente.
É a imensidão da escuridão de um céu estampado de estrelas.
É o aleatório.
É o randômico.
É o sentimento.
É o simplesmente “não sei”.
Janaína de Godoy GonçalvesF/Química / FFCLRP • “Tenho participações em outras edições do Poeta de Gaveta”.
42
AmorPedro Henrique
Um dos grandes pilares da sociedade é o amor. O amor e tudo
o que ele proclama aos quatro cantos infinito-além como o
carinho, compreensão e paixão é responsável por você, todo dia,
religiosamente, colocar a comida e trocar a água de seu animalzinho
de estimação, afagá-lo e conversar com ele, no qual ele responde
com o abanar do rabinho e nos pulos que dirige a você. Esse
mesmo amor é responsável por você levantar cedo e muitas vezes
encarar um trabalho horrível para que seus filhos possam ter uma
vida melhor que a sua. Esse mesmo amor que desata a aceleração
do coração e te faz entrelaçar o seu corpo com outro e tornarem-
se um só. O mesmo amor que, não correspondido, torna sua visão
sentimental cinza, diminui sua autoestima e o faz sentir-se um
ínfimo ser mundano. O amor que deixou histórias de romances. De
guerras. De tragédias. E hoje, como nunca, de tragédias pessoais.
Caminhe por um grande centro urbano, um símbolo do auge
civilizatório em que chegamos, mas do ocaso emocional que
enfrentamos. Caminhe pelas ruas e não se surpreenda com algum
mendigo estendendo a mão pedindo-lhe dinheiro para consumir
uma bebida que tornará a sua realidade ilusoriamente menos
horrível. Caminhe mais um pouco e depare com um poste cheio de
cartazes com dizeres sobre trazer seu amor em três dias — como
se o amor fosse uma mercadoria que pudesse ser transportada
diante pagamentos-, dizeres pedindo o paradeiro de uma criança
que — por céus — sabe-se lá onde esteja e como esteja, palavras
43
bíblicas trazendo boas-novas sobre a vinda do Juízo Final e
como você fugir do Inferno. Não descanse. Encontre um garoto
na faixa de pedestres fazendo malabarismos enquanto um cartaz
de uma mega agência bancária pede seu apoio para programas
educacionais. Por falar em educação, caminhe para a escola mais
próxima.
Entre em uma sala do ensino médio e sente-se ao fundo da sala.
Veja a magia da professora ensinando a aula que preparou durante
horas de forma que o conteúdo despertasse o interesse e trouxesse
mais do que cultura — trouxesse o senso crítico, a curiosidade, o
despertar para o mundo do conhecimento. Mas veja tudo que disse
apenas mentalmente e com os olhos fechados. Feito isso, abra-os
e encha-os de lágrimas. Um aluno agride a professora e os outros
assistem e aplaudem o espetáculo da degradação do sistema
educacional brasileiro que mal existe. Vá para outra escola — uma
particular. Veja os alunos recebendo em pílulas o conhecimento
específico para que passem no vestibular, formem-se e tornem-se
consumidores vorazes. Caminhe para a universidade em busca de
cidadãos e pessoas que mudam de opinião porque não tem medo
de pensar. Veja mentalmente estudantes que cumprem seu ofício
com afinco a fim de, após serem recompensados, poderem ajudar
a melhorar a vida de seus próximos. Abra novamente os olhos e
veja os mais jovens com marcas físicas de um trote inclusivo. Veja
manifestações de preconceitos raciais, sexuais e sociais. Veja
grupos distintos e não uma rede de pensamentos. Apenas veja e
contemple um microcosmo capitalista.
Contemple microcosmos capitalistas nos hospitais, nas casas, nas
pessoas. E atente para a crise existencial que vivemos. É claro que
44
não são todos. Mas é claro que os que estão, serão dizimados pela
própria maneira de viver.
Eu tenho sonhos, sonhos que poderiam tornar minha vida mais feliz
e mais luminosa. Mas atenho-me a tarefas que me fazem fugir dos
meus sonhos. Tenho sorrisos sarcásticos. Tenho mil novecentos
e um amigos virtuais e quase nenhum real. Minha página virtual é
uma apoteose de bons conselhos, de animais fofinhos e de lições
de moral. Minha vida é um cemitério de realizações. E na tentativa
de mudar isso, escrevo. Escrevo para expurgar meus sentimentos
e urgir para a aurora das realizações. Se escrevo, é porque atingi
o fundo do poço e tudo reflete naquilo em que vivo — nas escolas,
nas ruas, nos campos, construções. Eu sou você e sou todos.
Somos todos nós escrevendo a história de seres em massa que
precisam se individualizar. Escrevo e deixo aberto esse testamento
para que não ofereçam a mim a piedade ou desprezo, mas sim
o amor. Plantem em mim e deixem que eu plante a semente do
amor. Do amor que temos pelos cachorros, pelos nossos filhos,
que não temos por nós mesmos e pelos outros que não parecem
nos pertencer de alguma forma. Eu amarei e serei amado. Terei em
mim fonte de amor. Amor que possa mudar nossas escolas, nossos
hospitais, nossa civilização. Amor que gerou grandes histórias.
Amor que culminou em grandes tragédias. Amor próprio que nos
salve, que nos tire de nossa crise, que nos torne humanamente
felizes e quem sabe — quem sabe — loucamente apaixonáveis.
45
ImortalidadePedro Henrique
Devemos visitar quem amamos e iniciar conversações com eles
enquanto ainda estão presentes fisicamente nessa existência
terrena tão etérea. Abster-se de tecnologias o máximo possível e
apreciar uma conversa em que possamos olhar para o rosto da
pessoa, ver ela rindo ou contando seus causos cotidianos é uma
lei humana a ser seguida e apreciada. Abraçar e apertar o corpo,
sentindo o calor humano que dele emana é um ato tão simples mas
tão crucial à beleza de momentos humanamente felizes. Poder
dizer-lhe o que sente e compartilhar sentimentalidades enquanto
ainda habita entre nós é uma benção da qual devemos agradecer
até que a vida acabe. Porque, por mais que doa, tudo acaba,
transformando-se em memórias. E será delas que você sobreviverá
quando a pessoa amada se for. Das fotos já amareladas de anos
tão humanamente distantes. De roupas que seres microscópicos
tomam conta sem se importar com a importância de quem as vestiu.
De uma comida deliciosa, de uma música bonita, de um filme antigo
que trarão lembranças da pessoa que se foi. De nada adiantará as
mil flores que depositará no túmulo das pessoas que você gosta.
Elas podem — se você acreditar em Paraíso — ver seu gesto e
ficarem felizes. Mas você não vai ter nenhuma resposta a não ser
sua própria fé. De nada adiantará as memórias que derramam em
sua mente o barulho do sorriso e os momentos bons vividos com
a pessoa amada. Remoer e reviver mentalmente as memórias
46
pode ser uma tarefa árdua. Podem afetar tanto emocionalmente
que seu físico padecerá e se sentará para chorar. Chorar e pedir
perdão pelas palavras não ditas, pelos abraços não dados, pelos
beijos acalorados jamais beijados. E pensar que ela está em um
Paraíso pode ser o início do equilíbrio emocional. Aceitar uma
ideia que tantas vezes você rejeitou e agora professa como um
fato, uma lei além da lei do homem — você passa a ter fé. Não
necessariamente a fé baseada em uma religião. Mas a fé em que
além deste mundo terreno tão cheio de ludibriações, existe uma
resposta para todos nossos medos e fraquezas. Um mundo em
que transforma a morte terrena em vida. Em vida rica de sorrisos
e abraços que nossas carne e mente restritivas não permitiram
que aproveitássemos. Um local em que o aperto de mão é um
abraço, o choro é de alegria e a dor não existe. E você imagina a
pessoa que se foi caminhando por entre belas flores e com a face
serena, mostrando que está tudo bem e que, se alguém precisa de
ajuda, esse alguém somos nós- para enfrentar nossas dores e os
dias finais de nossa existência rumo a vivência. Então, estando
estafado pelo choro e pelo ocaso emocional, você adormece.
Acorda e segue o curso normal da existência. Da pessoa que se
foi, as recordações se tornam doces, permitindo um sorriso tímido
no rosto — você sabe que ela está bem. Continuará esquecendo os
abraços, as visitas e mergulhará na Terra das Magias Tecnológicas.
E um dia, sua vivência começará. Com os beijos, abraços e risos
tão terrenamente escassos. Para sempre.
Pedro Henrique Rodrigues da SilvaA/Física Médica/FFCLRP • “Escrevo por gosto e leio porque o ato me faz sentir vivo”.
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SentidosMilena Shimada
pingos dançam, pagãos,
entre seu corpo e o meu
chuvas de verão.
Milena ShimadaDoutorado/Psicologia/FFCLRP • “Participei dos volumes 18 e 19 do Poeta de Gaveta.”
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EncontroMarina Liberale
Medardo ainda está vivo? Tive a sensação que encontrei
com suas partes...
Hoje? Ontem? Sim. A certeza que possuo é que eu encontrei várias
vezes com ele.
O primeiro encontro, concretamente, eu lembro que eu
usava uma calça jeans e uma camisa xadrez verde-água. E só
me dei conta que poderia ser Medardo que estava ao meu lado
no almoço, no refeitório do campus da Universidade de São Paulo
(USP), quando entre uma mordida e outra, eu perguntei para minha
amiga: por que você acha que eu estou usando essa camisa?
A camisa xadrez verde-água na qual eu usava naquele dia
era da minha mãe. Acordei cedo e senti que estava misturada
emocionalmente. Conscientemente escolhi vestir a camisa xadrez
verde-água que ali representava o amor incondicional de mãe.
Precisava ser acolhida. Eu estava à milhas de distância de casa,
preste a me formar e carregava dentro de mim a vontade de não
querer voltar.
Segundo os nossos valores morais (o qual fui educada), amor
incondicional sempre requererá nosso bem! Por mais que
represente um “sufocamento” ou até mesmo uma “dor”, o amor de
mãe para com um filho é representado como algo “divino”e livre de
ser pecador.
49
Ah... e eu queria sentir esse “amor incondicional”. Na verdade
eu precisava senti-lo... Só que, o que eu queria nesse momento,
era liberdade, e não sufocamento. Portanto, não caberia ali, usar
a camisa xadrez verde-clara. E foi nesse contexto, entre o falar
“por que você acha que eu estou usando essa camisa?” e o sentir
“sufocamento” e querer “liberdade” que eu vi Medardo.
Queria caminhar com minhas pernas, com meus erros e
acertos, e queria MUITO me sentir amparada. Para que me entenda
melhor, caro leitor, preciso lhe perguntar: como é a sua mãe? Quem
é a sua mãe? A minha mãe tem o discurso que quer e acredita nos
meus sonhos, desde que os meus sonhos não sejam tão longe das
quatros paredes da sua casa. Minha mãe deseja minha felicidade,
mas quando meus sonhos são fora das quatros paredes, não
me ajuda, concretamente, construí-los. Tem discurso, todavia as
atitudes contrapõe a visão de que “os filhos são do mundo”. O seu
apelo emocional chega a me dar náuseas. Epa, um instante: se
sou contraditória; minha mãe também é contraditória; logo somos
todos contraditórios?
Sem respostas prévias para esse questionamento eu fiquei
olhando para Medardo. Como um sopro as palavras foram
saltando da minha boca, ora como sentenças afirmativas, ora como
questionamentos: Medardo é o “outro”! Ás vezes, isso é tudo o que
ele pode dar ou doar. E se recusar esse amor incondicional que
tanto preciso me culpo, pois aparentemente, estou recusando o
que ela pode me dar. Então, diante do incontrolável e do inatingível
(o outro em si) sejamos tolerantes! É tão tênue a linha que separa
50
“falta de coragem” com a “bondade” não é mesmo, Medardo? Não
obtive resposta alguma dele até essa última inquietação. Nossos
olhos se cruzaram e ele sorriu... Depois de alguns instantes, como
num passe de mágica, Medardo desapareceu. E eu terminei meu
almoço com a minha amiga usando minha camisa xadrez verde-
claro.
Medardo é o personagem de Ítalo Calvino do então intitulado
livro “Visconde Partido ao Meio”. Medardo, então visconde, ao ir
para a guerra foi partido ao meio por uma bala de canhão e, suas
duas partes voltaram para governar a cidade, uma parte má e outra
boa. E diante dessa dicotomia várias coisas aconteceram.
Conscientemente, tenho encontrando com Medardo dentro de
mim. Alternadamente, mas quase que ao mesmo tempo, eu os
sinto, tanto a parte má quanto a parte boa. E diante de todos
esses sentimentos eu apenas tenho uma palavra para me traduzir
e talvez até responda um dos vários questionamentos apontados
nesse texto: contradição.
E você, caro leitor, conhece Medardo? Não? Olhe atentamente,
talvez a resposta seja surpreendente...
Marina LiberaleF/EERP • “Gosto de escrever, desenhar e pintar óleo sobre tela. Não tenho nenhuma publicação ou vivencia literária”.
51
AromaRoque Pinho
Tem pó o tempo
vem nua a nuvem.
Dobra-se o sobrado em si
sobras de um Brasil
brasas remanescentes.
A ruína a anuir
consentindo o que não sente.
Mas memória é um mar sem jeito
gema gris, a lágrima da rima
e a amargura, uma agrura
num ar logo acima.
Pois, esquece as ruínas
são lembranças que se tecem
brancos lenços de cetim
que acenam à cena do fim
e esmaecem.
52
Distraia-se, meu amor, escape!
Vem, toma o vento norte
terno, soprando
em seu brando sussurro
de assovios eternos.
Solte-se que o sol te sente
aqui pertinho, doce e cedo
no carinho barato das manhãs.
Toca minha mão e canta
e toquemos para longe
das sobras dos sobrados.
Busquemos num bosque
o resto de olor das flores
o elixir exalado à vida
tão além do mal de lembrar
além das ruínas...
Mas põe em poemas a dor
coração não é brinquedo
finda a morte, brinda a sorte
não há temor
o aroma, meu amor
é o único segredo.
53
Afronta BrasiloiraRoque Pinho
Em um cenário poeticovarde dos tempos de escravidão,
paira nos ares a tensão dos combatenazes entre etnias, classes
e poderes. Eis que numa salatente da antigananciosa mansão
portuguesa, uma cenavalha intrigante se apresenta...
De pele clara e cabelos lisos, uma beleza espanholoira sofre
presa em algemalvadas, que a ferem sem dó. Cortes profundoídos
laceram sua alma e a dor já ultrapassa sua carnefasta. Gotas de
sanguerreiras escorrem vagarosamente pelas curvaliosas do seu
corpolido e pingam cruas sobre as roupálidas caídas. Duas belas
negrosseiras gritam ao seu ouvido, rindo abertamente do seu
padecerteiro e implacaveloz.
A penumbrasil que cobre o ambiente é quase tão negra
quanto à pelesada dos escravorazes que ali sofreram. O lugar
abafado remetia-lhes apenas ao passadoentio, marcado em
cada paredeserta com esparsos quadros. Neles, as imagens
do trabalhordinário, feito pelos escravelhinhos e suas ultimortas
energias. Ao longo da sala, antigos instrumentiranos de torturácida.
Mas quem antes comandava os chicotemidos tinha agora um
olhar submissombrio e a raivalente de um cachorrosnando. Presa
nas amarras firmerecidas da desforrasgante, aquela menterrível
sentia um brevelado arrependimento por suas crueldades.
54
Acontecia então uma das revoltardias daquela epocastigante.
Apenas uma, de tantas outras. De fora da casa, ouviam-se
gritocantes de alforria, promessadias de satisfação e sorrisos de
liberdadevolvida. As amas-de-leiternura agora sorriam plácidas,
com negros molequeridos em seus braços...
Roque Emmanuel da Costa de PinhoDoutorado/Eng. de Biossistemas/ESALQ • “Tenho crônicas e poemas publi-cados em edições anteriores do Poeta de Gaveta.”
55
Esclarecimento SombrioMagê DBgt
Talvez houvesse salvação. Mas há quem duvide que fosse
possível. Os corpos estavam praticamente soterrados, coberto por
fungos e bactérias, vivos e em putrefação. Aquela terra úmida era
o único predador real, pois o que os consumia, no fundo da alma,
eram suas respectivas consciências. Um estupro, uma tortura, um
sequestro. As imagens vinham em flashback, da consequência até
a causa; do fim ao início. Uma mancha de sangue vivo os deixaria
felizes, pois os seus já haviam se sujado, tornando-se pretos, de
existência insignificante. Os pecadores não viviam: vegetavam.
56
Senhora Morte em DesabafoMagê DBgt
“Ora, ora” dizia a Morte. “Estou com preguiça. Deu-me
trabalho nos últimos tempos, carregando aqueles para os lugares.
Uns ao Sol; outros nesta terra mundana mesmo, não mereciam
sair daqui. Mas os inocentes eram em maioria, o que me fez ter
muita pena da sua pobre alma. Eu sou a Morte e não tenho prazer
no que faço, se isso esclarece seus pensamentos. Eu sinto tristeza
e agonizo mais que vocês, pecadores, pois eu não pequei. Nasci
pura para me sujar com o trabalho que a humanidade me dá. Eu
sofro sem merecer. Mas pela compaixão que sinto em relação
às almas inocentes, continuo na minha jornada sombria. Tenha
piedade de mim, ao menos. Deixe-me ver sofrer pela dor que
causou.”
Maria Eugênia Deungaro BorgatoA/Eng. Agronômica/ESALQ • “Fui revisora do livro Prosa Fiada e Outro Goles, e capista do livro Tempo de Baú, ambos do autor José Renato de Almeida Prado.”http://livrariaeletronica.blogspot.com
57
Foi no CarnavalGuilherme Gandolfi
Escrevo estes versos no carnaval
Comecei na terça, mas já é quarta-feira de cinzas
Tenho medo
Não consigo dormir de tanto pensar
Cogitar que nosso amor seja folião
Sexta: Foi o abre-alas
Por de trás das mascaras nos conhecemos
Lançou teu perfume em mim
E fui bobo lhe fazer corte
Cheio de alegorias para impressionar
Sábado: Nos reencontramos
Sob a benção de Venus, Dançamos
Sua amiga vestida de cupido
Lhe lancei todo meu confete
Fomos para casa embriagados um pelo outro
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Domingo lavamos a tinta
Finalmente conheci sua verdadeira face
Para meu espanto não a assustei com a minha
Reconhecemo-nos em nossos defeitos
Brindamos às imperfeições
Segunda: Fomos alegria
Fui de Arlequim e tu de Columbina
Vimos de mãos dadas a banda passar
Cantaloramos marchinhas de amor
Nem percebemos quando a musica cessou
Terça: Foi de mais
A alegria me deu ressaca
E te vi com overdose de beleza
Apesar da de usarmos proteção
Contraímos a pior DST, a ilusão
Como disse ainda é carnaval
Espero angustiado o sol raiar
Amanha restarão apenas as cinzas
Ou será a fênix nosso enredo?
Talvez ainda possamos renascer
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O homem invisívelGuilherme Gandolfi
Hoje, eu vi um Homem Invisível, de carro eu passei por sua
frente, ele não usava cueca por cima da calça e nem capa, apenas
roupas velhas e uma muleta, estava na sarjeta, em uma grande
avenida. Ainda, sim, não era um humano comum.
Muitos outros atravessavam o seu caminho todos os dias,
iam e vinham, mas pouquíssimos o viam. Ele falava com eles, ten-
tava chamar a atenção, por entre seus lábios rachados saia o som,
mas não haviam ouvidos abertos. Os poucos que o enxergavam se
afastavam, talvez com medo da impotência do Invisível, ou de sua
própria, não sei.
Seu arqui-rival era a fome e seu maior inimigo a indiferen-
ça, contra eles nada podia. Por enquanto combatia os seus vícios,
suas fugas dessa realidade amarga.
Enquanto isso, eu passava com pressa, afinal é isso que
aprendo na escola, a como ter pressa, estar sempre atrasado para
algo mais importante e nunca ter tempo para nada que não gere
lucro. Já o Homem esperava, sentado na calçada da sociedade,
ele olhava além do horizonte.
Hoje, eu vi um homem invisível, ele era um mendigo e estava
lá, mas ninguém o via. Seu super poder? Sorrir. Enquanto meu
carro cuspia sua fumaça e eu seguia estressado e praguejando,
60
ele sorria para o mundo e abraçava seu cachorro como há tempos
eu não abraço um amigo.
O seu papelão-casa-colchão é o que ele vale para quem o
governa, para quem o cerca. Seu sonho não perde para ninguém
da Liga da Justiça, ele quer um mundo com mais amor e um pouco
menos de dor.
Ele é só um homem que ninguém vê, ainda, sim, não é nem
um humano comum.
Guilherme GandolfiA/Gestão Ambiental/ESALQ • “Há cerca de quatro anos venho escrevendo, mantendo um blog há cinco meses. Tive um poema publicado no Prêmio Novo Poeta, antologia poética e fui relacionado no Prêmio Sarau Brasil, ambos da Editora Vivara”. http://ironiaepoesia.wordpress.com/
61
1914Alexandre Traldi Reichel
Reduzidos à bestialidade dos sons das metralhadoras estão agora
as belas bibliotecas e teatros. Assassinam a cultura e intelectuali-
dade como se fossem inimigos cruéis. Os livros dos mais despon-
tados cientistas de todas as eras, se espalham com o vento pelas
ruas sujas de sangue e sofrimento.
A verdadeira hegemonia da estupidez humana ironiza quaisquer
ideias de que um dia fomos uma espécie civilizada.
O que diriam os pensadores de épocas remotas sobre as condi-
ções em que se encontra nossa história?
Experientes soldados esperneando como crianças em meio às
ruas reduzidas a pó e pólvora; crianças choram sem pais nem
mães, nem pés, nem mãos.
É essa a utilidade de todo este dinheiro? Generais tomam seus es-
pumantes em grandes salões, trajando seus uniformes bem pas-
sados, acompanhados de mulheres mal passadas.
Chorem por milênios, nunca serão perdoados. O sofrimento de
gerações, comemorado com nobres emoções. Escória humana,
quem são vocês que permitem a uma criança chorar, sem que ten-
tem ampará-la?
Quem são teus criadores? Reviram-se agora em seus túmulos,
repousam agora de bruços em seus caixões, tamanha a vergonha
62
que sentem ao notarem o quão desgraçado é o fruto de seu ventre.
Rios de sangue, lagoas vermelhas, abastecidas pelas artérias
abertas que ainda pulsam, não há tempo para estancar o ferimen-
to, não há tempo.
Valas comuns, fuzis, uniformes, ordens, gás lacrimogênio, amputa-
ção, hemorragia, prisão, coturnos, trincheiras, balas. Mil novecen-
tos e quatorze.
Alexandre Traldi ReichelA/Eng. Agronômica/ESALQ • “Publico, desde 2009, alguns textos e poesias em um blog.Nunca publiquei nada em livros.”alexandre_tr@hotmail.com • http://maragoiaba.blogspot.com.br/
63
Abra o negro céu, luar das almasCamila Silveira Stanquini
A caveira dos suicidas, o coelho dos puros. É a morada do
santo cristão, o coração da Deusa pagã. A morte do dia, a vida dos
sonhos. Um grande queijo aos olhos de ratos cegos; ou um sorriso,
convite à viagem dos esquizofrênicos. É a amante dos poetas; aos
poetas, o anseio. Farol dos navegantes, um rumo aos viajantes.
Confidente dos desejos. A fuga do medo em uma janela ao além?
Com a cor e a doçura do mel que carrega o encanto das
flores sob o orvalho diamante. Amarelo-Sol em sua irmã Lua, em
memória ao tempo dos deuses, em seu resplendor divinal. Amare-
lo amargo, como o creme que respinga dos olhos de um cão ferido.
Os olhos ferem a alma do homem, e é no espelho dos céus que se
retrata a dor daqueles que sofrem e calam.
64
Opala 71Camila Silveira Stanquini
“Sou um conhecedor de estradas. Tenho experimentado estradas durante toda a minha vida... Essa estrada que nunca acaba...
Provavelmente, vai sempre ao redor do mundo...”.(My Own Private Idaho)
Não sei bem a data ao certo. O tempo passa rápido demais.
E as estradas não perdoam. Também já não sei mais onde estou,
nem por quais lugares passei. Nomes, endereços, códigos... Tudo
isso deixou de significar algo já faz um bom tempo. Mas de algumas
coisas eu me lembro como se estivesse vivenciando pela primeira
vez. Sua voz inebriante... Olhar hipnótico... Postura firme, toque
libidinoso... Um ar de superioridade exalado por sua presença
incólume. Lembro-me do sabor de seus beijos como se fossem
embebedados pelo whisky de meu copo. E de seu perfume, que
me envolvia como a fumaça deste cigarro que se apaga com as
lembranças.
Lembro-me da primeira vez que o vi. Quando as estradas
ainda não me pertenciam, eu já pertencia a elas. Foi numa época,
como esta, enquanto ganhava uns trocados num bar menos
sujo que este, entre músicos e meretrizes. Não se consegue
desvencilhar uma vida boêmia daqueles que pertencem às ruas.
Naquela época, cantava canções de amor sem, de fato, apropriar-
65
me delas. Mas isso mudou quando o conheci. Era como um anjo
caído, travestido de homem, alma de pecador. Tinha nome de
artista, daqueles estrangeiros, embora mantivesse sua postura
de intelectual que contrastava com sua jovialidade. Observava-o
divertindo-se com moças seminuas nas mesas e nos cantos do
bar, enquanto, para saciar o meu desejo, mantinha um microfone
em meus lábios, acariciado por minhas mãos, em um regozijo
quase sexual. Terminava a noite. E até que a próxima noite viesse,
trocava aquele microfone por sua carne. E assim foi nossa vida por
um bom tempo. À noite, pertencíamos ao mundo. Durante os dias,
éramos apenas nós, o nosso mundo.
As estradas nunca terminam. Sequer o anseio dos jovens.
Pois, assim, resolvemos entregarmo-nos às estradas, desta
vez, juntos. Opala 71, verde. Quantas estradas percorreram
aquelas rodas... Quantos amores presenciaram aqueles bancos...
Afagos, carícias, promessas... Tinha, então, 15 anos. Quanto a
ele, há algum tempo já dirigia aquele Opala, que era como uma
representação mecânica de sua índole selvagem. E fomos nós,
entregues à paixão e à doentia obcessão de conquistar o mundo.
Paisagens magníficas coloriram nosso romance através das
janelas daquele veículo que nos conduzia como um mestre aos
seus discípulos pelos caminhos em busca da descoberta. E, ao
adormecer do Sol, lá estavam elas, estrelas, irradiando nossos
sonhos como se fossem infinitos, tal qual o manto negro da noite
que velava por nossas almas. Porém, sonhos terminam. E a vida,
66
tal qual as estradas, é contingente demais. Hoje, a minha estrada,
é a da perdição.
Incrível admitir que se possa passar mais tempo nas estradas
do que sob um teto. Seja o teto de um lar, um quarto de hotel, uma
igreja, um santuário, um bar, bordel... A vida é uma estrada a qual
se escolhe percorrer. Tantas estradas, tantas escolhas... Nasci nas
estradas e sei que nelas encontrarei também o meu fim. São elas
o meu caminho.
Tanto tempo nas estradas, cada curva reflete o meu ser...
Inconstante, perturbadora, tênue, densa, escura, clara, sombria,
solitária, perigosa, longa, breve, curvas... Vazia... Estou vazia
e esse vazio reflete-se nas estradas por onde passo. Vazia por
dentro... O vazio de fora... Vi tanto pelas estradas em que passei
que já não sei mais se quero ir além. Tudo o que sei é que, enquanto
tiver as estradas, memórias daquele Opala 71 percorrerão a minha
mente como se, a cada curva, ele ainda estivesse a minha espera.
Camila Silveira StanquiniA/Medicina Veterinária/FZEA • “Publiquei nas edições 18 e 19 do Poeta de Gaveta.”
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Arrevesso escuro naavenida Dr. Carlos Botelho
Lucelindo Dias Ferreira Junior
hoje, eu vi Deus
numa lata de Coca-Cola Zero.
gelado.
escuro.
indecifrável.
fluido.
absolutamente vulgar.
e vi um anjo,
na sacola do supermercado,
volitando,
branco,
pelo ar.
também, vi árvores assassinas,
mais vivas do que fui, sou ou serei um dia.
e bebi lactobacilos vivos.
e comi chocolates.
hoje, eu vi o amor e senti saudade.
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Romance selado a sangue e cuspeLucelindo Dias Ferreira Junior
Rezei ao diabo duas ou três vezes. Agora, levantei e fiz o café.
Nem o café, era o cheiro do seu cuspe na minha camisa. Do seu
perfume e cigarro vagabundos. E das suas doenças. Rezei, duas
ou três vezes, para ter as suas doenças. Transmitidas por sangue,
cuspe. E a sua loucura, pelo ar. Que você tem todas as doenças do
mundo. Sim, eu sei. Os seus fluidos são um perigo a humanidade.
Mas, também, seu abraço é denso. Violento e silencioso, como
um estrangulamento na madrugada. E sua pele tem eczemas. Por
alguma razão, sou todo imune. Mas, ainda assim, pereço ao seu
contato. Mentira! Sou meu próprio veneno.
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Menino-dor: broto de cactosLucelindo Dias Ferreira Junior
Ambiente em escuridão. Surge um círculo de luz no rosto do homem.
Parece que não há volta. Quero dizer, quando se começa uma história. Não há volta. A história nunca retrocede e ficamos intactos. Não, não ficamos intactos. E a história, quando começa, nunca termina. Torna-se uma sina. Triste é o destino de quem a escreve, conta. Uma história torna-se uma sina para quem a tece.Foi assim que perdi o meu pouco. O pouco que eu era. E fui me entregando à silenciosa dor que somente ocorre às madrugadas. À dor, que, antes não minha, externa, calcificou-se em minhas veias. A dor desta história. Devo salientar, para não impressionar o pobre ouvinte, que esta história é tão simples que somente o pobre ouvido poderá compreender de todo. E que somente um ouvido inflamado em pus, poderia senti-la. Sim, caro ouvinte. Irei contar uma história que percorre minhas mãos escarnadas como fluido de vida, contraditoriamente seca, como calango do sertão percorrendo o Saara, que tem entre as patas a história límpida para que se possa atentar ao mais importante, a dor. A dor que é a vida aberta. A pólvora acesa que é a vida. A vida que é uma lama espessa, um sangue escuro coagulado. Juro que tentarei contar desta vez, o que nunca contei antes, de forma a não conter a verdade. Sim, conhece o ouvinte sobre a verdade? Compreender a verdade, tenho percebido, é a única forma de atingir o profundo ilimitado da dor. E existir na verdade é um dos modos mais graves para se chegar ao ápice, seja ele qual for. O ápice que nos transforma irreversivelmente. Como quem tem fome e deseja beber. Esta é a realidade desta história, de todo verdadeira. Devo alertar que a história me guiará, tomará a minha mão. De modo que não haverá outro dia sem que ela esteja em mim. E o que está aqui é eterno, desde já. Não há volta. E se não agrada o que digo, que se invente uma forma diferente de ouvir.
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Não irei referir lugar. Não irei nominar pessoas. Essas informações não me chegam. Sei que era um lugar tão quente, que o diabo reconheceria. E a paisagem, uma passagem de desconforto. De terra seca e sol laranja. (pausa) Neste ambiente nasceu e foi criado o Menino-Dor. Um menino que não poderia ser descrito à perfeição. Que somente um texto sem os adornos o mostraria tal como é. Sem nenhum capricho. Mas ainda assim um texto seria um capricho fútil, como a própria vida. (pausa) O Menino-Dor, como poderia descrevê-lo. Ele era olhos largos e redondos, que constantemente pediam. Ele era olhos apaixonados pelo que não tinha, costumavam chamar tristes. Mas prefiro dizer que eram apaixonados. Olhos que diziam paixão, uma paixão de menino que nunca havia sido acometido pela grave doença da paixão. Nem pelo amor. Pois que tais sentimentos não poderiam existir em seu excessivamente magro corpo, que era quase um canudo para o refrigerante. E, portanto, se ali estavam os órgãos todos, conviviam entupidos e dobrados. E, bem... (pausa) Não caberia em aquele corpo estreito o amor. Do amor somente cabia nada. O Menino-Dor era, também, uma cabeça desproporcional. Pois que possuía um grande cérebro para maquinar suas coisas, remoer suas dores, a carne viva e brilhante. Tumores. Convém referir, a experiência do menino com a dor estava em todos os sentidos. Ele era a dor brilhante qual cristal infiltrado na retina. Não apenas isso. Uma dor pulsante, como quando se aperta uma água-viva na palma da mão de uma criança. Como quando se tem metade da perna arrancada e resta somente um exposto palmito ósseo e uma carne hipervascularizada palpitando. Justamente por resultar de cruzamentos sucessivos de linhagens rebaixadas da sociedade, que o premiavam, como mérito de sobrevivência, com muitas das doenças, até então desconhecidas, do mundo. Sim, vivia no sertão, mas era fruto do mundo inteiro. Um serzinho malformado, pouco crescido, de voz que dava agonia ouvir. (pausa) Estuprado, ainda criança, com bananas chifres-de-boi, seguidas vezes. (pausa) Sei que durou a própria eternidade. (reflexivo) Devo pedir perdão ao ouvinte. Não me sinto adequado para contar o que pretendia. Estou
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fraco e imerso. A história me dói antes que conte. A verdade é que, percebo agora, o Menino-Dor me é inalcançável. Está em um nível que eu jamais poderia participar. Estou despreparado e infeliz. E me fecho, escondo-me do mundo. (encolhe-se) Eu falhei, como sempre tenho falhado. O Menino-Dor nunca poderá ser descrito. Deve morrer, procurar a morte, como eu mesmo. Eu que fui audacioso e pensei saber lidar com as consequências de contar a simples história. A história da dor que está mais viva em mim. Ó pobre ouvinte! Porque eu me descobri em uma história mal contada, falha. Porque eu nasci, indevidamente. Justo agora, eu nasço, como o Menino-Dor nasceria.(levanta-se e grita) EU SOU O MENINO-DOR!Pois nasci às avessas. Sou um cacto. Um broto de cactos. Retenho líquidos que são meus sentimentos, esses que absorvi do mundo. E sofro as consequências do amor seco de Deus. Um amor que, ontem, era o meu pão. De fato, sofro. Não posso evitar. Sou existente para representar a dor como quem deve lembrar ao mundo de seu fardo. Tenho dores. Dores da matéria e do etéreo, que tiveram origem muito cedo, desde nascimento. (sussurro) Nascimento é expulsão por ferida aberta de infecção. Nasci com a pele mestiça, e participo no pior de cada raça. Como quem tem vitiligo, eu tenho um mapa mundi à minha volta, estampado em minha pele. Indicando a minha lepra. E conto esta história como quem acredita que pode mudar e transcrever todo um passado. Porém, não tenho senso de direção, senso algum de narrativa, ou linguagem que se ajuste. Vou simples tecendo com fio de estopa ensanguentado, marcando as digitais como um analfabeto faria. Saiba o pobre ouvinte. Sou livre dos estudos. Não os tenho. E isso me dói inteiro. Falta-me a essência, o tutano para eu enfrentar o mundo. E, por isso, vou só morrendo. Mas a morte, a morte verdadeira, que me sucumbe, que me chega aos pedaços, em terríveis dores, conquanto, não chega. Tenho a dor nos olhos. Tenho a dor nos ouvidos. Tenho a dor na boca. E a dor na língua, no nariz. Nos pulmões, de meus cigarros. No fígado, de minhas bebidas. Nas tripas. No estômago. No pinto. A DOR NO CU. Enfim, a dor de que fui, sou e serei rejeitado pela humanidade. A dor
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do amor inexistente. Tudo me dói. E não aguento sucumbir, esse processo lento e doloroso. Eu já deveria estar prostrado em uma cama a esperar, esperar e esperar. Feito um moribundo. Um Jesus invisível e perdido. Mas se eu fosse o Messias jamais acreditariam em mim. Eu morreria tal e qual já morro. Pois eu tenho a minha sina. Carrego a minha cruz. Morro pela humanidade. Não morri, neste instante, por não saber, por ignorância, por acreditar que a dor é coisa insistente, que não se elimina pelo simples e fácil ato de morrer. Morrer é somente um segundo. É instante, enquanto a minha dor é perene. Eu sou o tempo íntegro. Peço desculpas ao ouvinte, que deve estar em completo despreparo. Vou mudar de assunto, para que eu mesmo apague a minha nódoa. Devo esquecer-me para avançar no mundo. E manter a compostura, mesmo tendo a rudeza do pior dos animais. Devo desculpas, sobretudo ao Menino-Dor, que deve compreender que o mundo é todo árido, não somente o nordeste. Este menino que nasceria se assim eu tivesse descrito. Se eu não tivesse enlouquecido, minutos atrás. Saiba o ouvinte, o Menino-Dor é o próprio texto, a própria história não feita. É um ruído incômodo de coração batendo. Juro que não quis, desde o princípio, me propor a falar sobre o Menino-Dor. Ele apenas veio, fez-me sentir, e sumiu para dentro de mim. Induziu-me um vômito, que era eu inteiro. É que o Menino-Dor nascera. Para balbuciar toda dor implícita. (sussurro) A pior dor é aquela que não se vê. (enérgico) Aqui está a verdade. Não se pode curar a dor de haver nascido. A dor não tem rumo ou fim. É broto de cactos que nasce no sertão, em mim. A história não termina aqui, caro ouvinte. Estive começando o que durará uma vida inteira para contar. Há coisas que sei e não mais deverão ser reveladas. Espero que o ouvinte entenda. É muito chão e há sol, sem água ou pão. E a dor é genuína, ao fim e ao cabo.O círculo de luz se apaga. Fica a completa escuridão.
Lucelindo Dias Ferreira JuniorDoutorado/Engenharia de Produção/EESC • “Sou um estreante experimentando ser um escritor”.
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All-stars nesse puzzle fotográficoAna Paula Tavares Miranda
tive um sonho em pixels acordei
quadradinha eram como se fizessem
parte de um puzzle, difícil congelar um
sonho em uma fotografia
preciso de um calço
para equilibrar mente em corpo manco
e às vezes o contrário
qual é o seu número senhorita?
(o número de vezes que meu cérebro me sabota)
lembro do meu primeiro all-star tinha
um nicho especial para guardar uma
(única) moeda
all I need is
(Oh John)
all stars nesse puzzle fotográfico quando
eu era criança parecia divertido
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A manhã que acorda meio KafkaAna Paula Tavares Miranda
O dia entra pelo quarto com cor de fruta estáquente maneja o cobertor a cobrir somente parteda perna direita do joelho ao calcanhar que é onde sente frio agora precisa acordar mas não é hora o corpo dói do pescoço à coluna um frio que lh’atravessa como uma pedra de gelo
engolida com pouca saliva não quer acordar abreos olhos sente o pé pesado e mais um pouco consegue encontrá-lo no outro que está em parte meticulosamente coberto um súbito e pé e pé se estranham sente um casco envolto à pele que pesa todo corpo sente que está por uma razão fazer jamais sair da cama talvez a materialização do
desejo matinal não consigue movê-lo e começa a senti-lo crescendo da extremidade à cabeça éa melhor sensação que tivera a quer mais e cerraos olhos a degustá-la cega melhor tão melhor a luz que atravessava aguda a cortina já é amena sinal que o sol andou apressado e que o momento anda
lento já sente o estômago duro imagina quais cores se revelariam na quebra desse seu rochedo que a faz parte mina a parte menina agora parece uma questãode escolha preencher o vazio que sobra do duro minério humanizado ou acostumar-se com a leveza do vazio? Decide ser pedra.
Ana Paula Tavares MirandaMestrado/Arquitetura e Urbanismo/IAU/SC • “Tenho um blog onde há pouco tempo expo-nho minhas poesias. Sou amadora”.
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Te amo(no Elevado do Caju)
José Antonio Vargas Bazán
A todas as minhas musas, pela sua irremediável volatilidade.
Morenaque a estas horasem outros braços descansas,saibaque eu te amono Elevado do Caju.
Não sei se eu te amariase os tempos fossem outrosou se te amarei em Santa Cruz.É provável queame a outrana festa de São João.
Sei,como é evidente,que te amono Elevado do Caju.
Quiçá em outrascircunstancias(provável é que me apaixonepor outrasno Calçadão de Bangu),
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não mesmo te amarei.Daqui a uma semana,sabe-se lá,poderei amar a uma outramulher,morena também,como tu.
É tanta a adversidade.Contudo,é daqui que agora eu vejoo cais(um barco chega, vai,atraca em um estrondo).E penso com meus botõesvelhosque eu te amo,não sei se te amarei,nem sequer penses em se te amei.
Não fui o primeiroe não serás a última(são juras de amor na rua Ceará).
Sei, de um saber indubitável,que te amono Elevado do Caju.
José Antonio Vargas BazánDoutorado/Eng. Estruturas/SET/SC • “Tenho um pequeno livro de poemas: Um shingo em el basural (Um urubu no lixão), 2001.”
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Programa Poeta de Gaveta
Inscrições realizadas no período de 01 a 30 de maio de 2013.
Total de 47 participantes com 113 trabalhos:
Ribeirão Preto – 20 p – 43 t/inscritosLorena – 3 p – 7 t/inscritos
Piracicaba – 12 p – 31 t/inscritosPirassununga – 2 p – 6 t/inscritosSão Carlos – 10 p – 26 t/inscritos
Volume 20 –2014 – ISSN 1516-0513
Poeta de Gaveta é uma publicação anual de textos de poesia e prosa produzidos por alunos, docentes e funcionários dos campi do interior da USP, com etapas de inscrição e seleção. É editada pela
Seção de Atividades Culturais da Prefeitura do Campus USP deRibeirão Preto – PUSP-RP.
Os textos publicados são de inteira responsabilidade de seusautores.
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Poeta de Gaveta – Volume 20 – 2014
ISSN 1516-0513
Impresso em novembro de 2013. Tiragem de 800 exemplares.Distribuição gratuita. Proibida a Reprodução sem prévia
autorização.
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