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MADELEINE ROUXTRADUÇÃO: GUILHERME MIRANDA
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título original Court of Shadows© 2018 by HarperCollins Publishers. Publicado com a autorização da HarperCollins Children’s Books, uma divisão da HarperCollins Publishers.© 2018 Vergara & Riba Editoras S.A.
Plataforma21 é o selo jovem da V&R Editoras
direção editorial Marco Garciaedição Thaíse Costa Macêdoeditora-assistente Natália Chagas Máximopreparação Raquel Nakasonerevisão Bárbara Borges e Isadora Prosperodireção de arte Ana Soltdiagramação Pamella Destefiilustrações © 2018 by Iris Compietcapa e tipografia Erin Fitzsimmonsilustração de capa © 2018 by Daniel Danger
Todos os direitos desta edição reservados à VERGARA & RIBA EDITORAS S.A.Rua Cel. Lisboa, 989 | Vila MarianaCEP 04020-041 | São Paulo | SPTel. | Fax: (+55 11) 4612-2866plataforma21.com.br | plataforma21@vreditoras.com.br
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)Roux, MadeleineTribunal das sombras / Madeleine Roux; tradução Guilherme Miranda. ‒ São Paulo: Plataforma21, 2018. ‒ (Casa das fúrias; 2)Título original: Court of shadowsISBN 978-85-92783-89-11. Ficção norte-americana I. Título II. Série.18-22582 CDD-813Índices para catálogo sistemático:1. Ficção : Literatura norte-americana 813Maria Paula C. Riyuzo ‒ Bibliotecária ‒ CRB-8/7639
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Prólogo
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Ano dois
Diário de Bennu, o C orredor
Foram saindo da árvore como vermes da terra. Mais sombra do que massa,
deslizaram por entre as fendas plangentes no tronco antes de chegar à clareira.
As raízes da árvore tinham a grossura de cavalos, largas e nodosas, nunca toca-
das pelo homem e raras vezes vistas por ele. As criaturas foram saindo dessas
raízes aos poucos no começo, mas, com o cair da noite, foram chegando em um
ritmo mais gradual, um gotejar lento que se tornou um fluxo constante.
De onde elas vinham? Seria a árvore oca por dentro para abrigar tantas
filhas? Até onde dentro da terra chegavam suas raízes? Era lá que as criaturas
Ano doisAno doisAno doisAno doisAno doisAno dois
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viviam quando fugiam do ar verde e fresco da floresta? Seriam feitas de lama
ou rocha ou madeira, ou de carne e osso como eu?
Eu tinha chegado tão longe, percorrido quilômetros incalculáveis, para
testemunhar esse renascimento com meus próprios olhos, embora tivesse teste-
munhado muitas estranhezas em Per Ramessu e Bubastis, e embora tivesse
pelejado ao atravessar territórios desconhecidos cheios de estranhos pintados e
animais curiosos. Tinha visto uma mulher engolir uma cobra inteira sem sofrer
qualquer dano, visto o rosto de outra derreter como cera sob o sopro de um anjo,
e comido na companhia de homens que se diziam mais velhos do que as areias
da minha terra.
Mas aquilo… Cortava meu coração ver aquilo, ver o nada tomar forma,
ver uma árvore, alta como um palácio, agir como uma mulher de carne e osso e
criar vida. Vida que andava e respirava. Cada criatura com um rosto diferente.
Não eram feias aquelas criaturas, tampouco eram como qualquer homem que
eu já tivesse conhecido. Linhas escuras como tatuagens cobriam a pele, cortando
fundo. As criaturas cintilavam e se moviam com uma graça sobrenatural, como
se flutuassem ao longo da grama orvalhada.
Corujões, orelhudos e ameaçadores, estavam pousados nas árvores menores
ao meu redor, piando em um ritmo lento. Toda espécie de cobras e aranhas tinha
vindo assistir, um exército de olhos pretos e escamas cintilantes. Notei que havia
um tipo de música no ar, com sapos e grilos cantando em conjunto, auxiliados
pelo gemido baixo do que parecia um cervo. A música ecoava em meu peito,
ancestral e primitiva, e senti um calafrio, aconchegado sob a pele que eu havia
encontrado seguindo o rastro de um animal morto. A floresta fedia à vegetação
nova e à podridão purulenta, um cheiro terroso e forte que parecia pulsar com
vida própria.
Perguntei-me aonde tinha ido meu protetor, o homem forte que tinha vindo
comigo do Egito e me protegido de tanta coisa. Mas ele havia desaparecido e, ao
longe, escutei um grito de fúria. Será que o haviam levado? Será que o homem
estava sofrendo?
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Vida. Tudo ali era vida, quase a ponto de ser sufocante. Todas as coisas cres-
ciam e se expandiam, espalhando-se através da argila e da água, sem nenhuma
civilização que as contivesse. Como era solitário e frio ser o único homem no que
parecia uma eternidade em todas as direções.
Mas permaneci.
Nada que saía da árvore me notou, embora eu não tivesse feito nenhuma
tentativa de esconder minha presença. Afinal, tinha sido convocado, enviado
por mulheres com visões, guiado sob a luz do dia por uma Serpente Celeste
atravessando as nuvens com seu grandioso e terrível corpo. Eu tinha escutado
e seguido e cruzado mares e montanhas e vales até chegar a este lugar. Até a
árvore. Até o Pai.
Por fim, a árvore conteve sua criação, e todos que ela gerou a rodearam. A
música da floresta ficou mais alta, a ponto de doer, palpitando em meu peito
como um punho batendo mais e mais forte. Eu não podia fazer nada além
de me encolher sob a pele, com os pés molhados pela lama, e esperar, obser-
vando enquanto a árvore se abria uma vez mais, a grande fenda em seu tronco
soprando um último vulto.
Teria eu conhecido o verdadeiro frio antes? Teria eu conhecido a face das
magias reais e perversas? Não, aquilo transformou tudo. Eu estava na pre-
sença de algo fora do tempo, fora do cálculo, um ser sem começo nem fim.
Ele era o rei deles, e essa… essa era sua corte. Meu rei. Meu Pai. De
repente, todos os olhos se voltaram para mim, negros como besouros, cintilantes.
Todos sorriam, embora eu não quisesse saber o porquê. Me senti subitamente
perseguido e soube que poderia ser meu fim – aqueles não eram sorrisos de boas-
-vindas, mas sinais de uma fome insaciável.
O Pai veio em minha direção e a música ficou mais suave, como um cântico,
agora com sussurros agudos e fantasmagóricos acompanhando o ritmo.
As palavras brotaram com força quando o rei da floresta me viu e se aproxi-
mou. Ele era mais alto que os outros, tinha um rosto talhado e aquilino, traços
humanos desenhados por uma mão trêmula. Nariz de falcão, queixo de leão,
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bochechas de esfinge, cabelo de corvo. Seus olhos, do preto mais escuro, dan-
çavam com pontinhos tênues de vermelho, e ele vestia musgo, vinha e penas,
moldadas em um manto que descia flutuante de seus ombros.
Ele estendeu seus dedos curvos e pontudos, e eu soube que o que segurava
em meus braços, o que protegia junto ao peito, logo seria dele. Os sussurros! Os
sussurros corroíam meu cérebro, deixando-me fraco e distraído.
Por que eu tinha vindo? As ninfas tinham me oferecido refúgio. Não era
para ser meu fim…
O Pai de Todas as Árvores, o Pai de Todas as Árvores, o Pai de Todas as
Árvores…
Eu não conseguia ouvir nada além dos sussurros agora, nem mesmo meus
pensamentos. Se sobrevivesse a essa floresta, não sabia se algum dia voltaria a
pensar em outra coisa.
– Veio até tão longe para me trazer isso… – Sua voz eram estalos e rangidos
de galhos sob a tempestade, era o uivo do vento pelas folhas, o borbulhar da
água sobre a pedra. – Para me trazê-lo.
É para você? Cometi algum erro? Talvez não tenha sido feito para
ninguém. Isso nunca deve ser encontrado!
Então seus dedos tocaram o livro junto ao meu peito, e não havia sobrado
energia em meu corpo. As centenas de olhos negros me vigiando tinham rou-
bado minhas forças, e seu cântico tinha me deixado à beira do sono. Ele o tirou
de mim. Ele o tirou, e eu fracassei.
– Durma agora, Bennu, aquele que conheceu a fome e a exaustão e o medo.
Durma agora, seguro entre os ramos. Seus segredos estão a salvo comigo.
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C apítulo Um
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Norte da Inglaterra Primavera, 1810
Não era a primeira vez que eu encarava o cano de uma arma, mas
realmente esperava que fosse a última.
Ao menos era uma mudança na minha rotina habitual. Passei a
conhecer os efeitos atordoantes do tédio até nas mais bizarras das tarefas. No
começo, a novidade de limpar os corpos dos hóspedes aniquilados por Poppy
e pelas magias da sra. Haylam tornava o trabalho interessante. Mas carregar
baldes de vísceras, esfregar manchas de sangue dos pisos de madeira e limpar
excrementos de ave dos carpetes do sr. Morningside logo se tornaram tarefas
enfadonhas. A vida, ainda que em uma casa de prodígios sombrios, poderia
se tornar maçante. Comecei a perder a conta dos hóspedes cruéis que eu havia
ajudado a matar. Ainda me deixava mal pensar demais em meu trabalho na
Casa Coldthistle.
– Ora, você não está se concentrando nem um pouco, Louisa.
Atrás do cano curvo da pistola, Chijioke estava de cara fechada. Havia
uma contração exausta em seu olho, e sua mão tremia um pouco enquanto
apontava a arma para o meu rosto. A luz nebulosa do sol atravessava a sujeira
com dificuldade nas janelas da biblioteca; partículas pálidas de pó dançavam
ao nosso redor como vaga-lumes vespertinos.
– Só jura pra mim que ela não está carregada – eu disse, de mau humor.
Ele revirou os olhos e bufou.
– Pela quinta vez, está vazia. Agora, foco, Louisa. Ou foi só um golpe de
sorte que salvou sua vida?
Tentei me concentrar, mas as perguntas dele estavam me deixando mais
distraída. Na verdade, foi uma combinação de coisas que salvaram minha
vida no dia em que o tio de Lee decidiu me matar: Mary me protegendo com
sua magia peculiar e Poppy usando a dela para estourar os miolos de George
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Bremerton. Estremeci com a lembrança – pesadelos daquele dia me visita-
vam com frequência e, no fundo, eu sabia que era improvável que eles fossem
embora algum dia.
Havia os sonhos horrendos, e também a realidade ainda mais cruel da
ausência de Mary. Eu sentia falta dela. Meses haviam se passado desde que eu
fora à Irlanda, na esperança de invocá-la novamente com um desejo lançado
dentro de um poço especial. Segundo o sr. Morningside, Mary, como um
espírito do Extraterreno, nem morta nem viva, devia ter ido para as Terras
Crepusculares, um lugar como o limbo; era para eu ter conseguido invocá-la
de volta com a mesma magia que havia lhe dado à luz pela primeira vez. Mas
meu desejo caiu no poço, mergulhou na água e afundou como pedra.
Naquele momento terrível, ao menos me considerei livre da Casa Coldthistle.
Eu tinha deixado a nascente e partido alcoolizada de Dublin a Londres e,
então, relutante, de volta a Malton. As poucas coisas que havia roubado da
casa renderam bastante depois de vendidas, mas não o suficiente. Pensei em
me virar sozinha, encontrar algum trabalho como criada. Mas minha perso-
nalidade irascível não era tolerada na cidade, como era em Coldthistle. Não
demorou para eu estar desempregada e na miséria novamente. Talvez fosse o
destino me obrigando a voltar à Casa Coldthistle; talvez, em algum grau, eu
apenas sentisse falta do lugar detestável.
Chijioke devia ter visto o desamparo em meu rosto. Suspirou e acenou
com a cabeça para a pistola apontada na direção de meu nariz, como se esti-
vesse me lembrando de que estava fazendo isso para o meu próprio bem.
Do lado de fora, mesmo com as janelas firmemente fechadas, pude ouvir o
som de vozes alegres. Durante toda a semana, operários da propriedade vizi-
nha vinham trabalhando para erguer uma enorme tenda no quintal da Casa
Coldthistle. Bom, parte dela era na propriedade da casa – metade, para ser
específica – e a outra metade ficava nos pastos ao leste, cuidados pelo gentil
pastor que me recebera certa tarde. O objetivo da tenda de festa permanecia
um mistério, e meus pensamentos alternaram entre a pobre Mary e o que
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quer que o sr. Morningside pudesse ter planejado. Os operários tomavam
seu chá no gramado; os risos graves e altos eram um som raro no terreno de
Coldthistle.
– Vamos, garota. Você já está testando minha paciência!
Chijioke estava quase gritando na minha cara. Aquele tique de exaustão
em seu olho sumia quando ele bradava com seriedade.
– Muito bem! – gritei em resposta, finalmente encontrando o foco que havia
me escapado. Veio, como das outras vezes, da raiva. Não houve fumaça nem
estalo alto de magia, nenhuma descida de poeira cintilante, nada exótico ou
digno de uma história infantil para o que eu era capaz de fazer: simplesmente
foquei toda a minha mente por um instante e o poder de criança trocada dentro
de mim se moveu, transformando a pistola na mão dele em um coelho.
Chijioke levou um susto, tão chocado e confuso quanto o filhote de coelho
se contorcendo em sua mão.
Depois ele riu e abriu a palma, deixando o animalzinho se enrolar em uma
bola curiosa e farejar sua pele. Era encantador de ver – a mão calejada do jar-
dineiro de Coldthistle segurando um coelhinho cor de marfim do tamanho
de uma bola de neve.
– Muito engraçado – ele disse, olhando para o coelho com a sobrancelha
erguida. – Então seu poder não foi um golpe de sorte, afinal. Que nome vai
dar pra ele?
Dei as costas para os dois e andei até a janela suja, ficando na ponta dos
pés para olhar o gramado lá embaixo. A tenda branca era quase tão grande
quanto o celeiro. Uma bandeira vermelha, verde e dourada ficava em cima de
cada um de seus picos atrativamente curvos e então pontiagudos. As f lâmulas
eram simples, sem adornos, e não pude deixar de questionar o que significa-
vam. Talvez, por causa da mudança de clima, fosse uma espécie de celebração
da primavera. Mas isso parecia algo estranho demais para o sr. Morningside.
Ele não faria nada tão aprazível sem uma motivação sinistra.
– Louisa?
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Olhei para trás na direção de Chijioke e seu novo companheiro peludo.
Não durou muito. Bastou piscar os olhos para o coelho desaparecer, e logo
Chijioke estava com a arma em sua mão novamente.
– Não, nada. Por mais que eu tente, não consigo fazer o feitiço durar.
Ele encolheu os ombros com compaixão, enfiando a pistola atrás da calça
e se aproximando de mim perto da janela. Ficamos olhando o estúpido pátio
e observando os operários terminarem o chá e voltarem ao pavilhão, todos se
esforçando para evitar os buracos que pontilhavam o terreno.
– Talvez tenha sido melhor assim, garota – Chijioke disse. – O coitadinho
teria virado comida do Bartholomew antes do pôr do sol.
– Ele com certeza tem comido mais – concordei. – E crescido. Logo você
vai ter de cuidar dele no celeiro. Poppy vai cavalgar nele pra cima e pra baixo
no gramado.
Pelo canto do olho, vi Chijioke se crispar.
– Você não sabe mesmo para que é aquilo? – perguntei, subindo em uma pilha
de livros para ter uma visão melhor. Havia um pequeno parapeito na janela, o
suficiente para eu apoiar um joelho e esticar o pescoço para ver o gramado.
– Desconfio que só a sra. Haylam saiba, mas eu não ficaria surpreso se até
ela estivesse no escuro. Não tenho por que mentir pra você, Louisa. Mas, se
você descobrir primeiro, é melhor me contar tudo.
Estreitei os olhos, mas era óbvio que eu não consegui ver nada, nem quando
a pequena abertura na frente da tenda se agitou sob o vento. Murmurando,
encostei a cabeça no vidro da janela. Usar meus poderes – os poderes de criança
trocada, como dizia o sr. Morningside – tinha me deixado um tanto frágil.
– Se Coldthistle fosse uma hospedaria normal, eu diria que é uma festa
de casamento.
Ele riu e se apoiou no parapeito perto de mim, batendo de leve no colar que
tinha escapado do meu vestido e agora pendia visível diante do meu pescoço.
– Anda pensando nessas coisas, hein?
Meu Deus, o colar. Eu pretendia guardar segredo sobre ele e, agora, minha
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deselegância ao subir na janela o havia feito escapar do xale meticulosamente
enfiado no corpete. Peguei a colher com a mão e a enfiei de volta dentro do
vestido. Desci do parapeito com um salto, dei as costas e tentei me esconder
entre as estantes.
– Não é o que parece.
– Ah, não? Porque para mim parece uma bela de uma bobagem sentimental.
– Essa bobagem sentimental – respondi inflamada, virando em direção à
porta – salvou minha vida.
Depois de quase morrer nas mãos de George Bremerton, várias vezes
tinha pensado em partir permanentemente. Ainda pensava. Mas, se fugisse
agora, se abandonasse Lee e as memórias que restavam de Mary, o que isso
faria de mim? Ladra e fugitiva eu já era, mas não pretendia ser desleal. Tal-
vez, se Mary voltasse de alguma forma e Lee encontrasse a felicidade ou ao
menos uma certa paz, talvez eu pudesse partir. Talvez então…
Chijioke me chamou, mas naquela hora eu estava esgotada pelo treino e
entristecida. Senti o peso da colher na corrente em volta do pescoço e fechei os
olhos, saindo a passos rápidos para o corredor. Não havia como pensar na colher
sem pensar em Lee, que tinha morrido na briga com o tio. Quer dizer, morrido
apenas temporariamente, já que sua vida fora renovada pela magia da sra. Haylam
e pelo sacrifício de Mary. Morto. Renovado. Isso estava longe de explicar
tudo que eu havia feito, o que havia escolhido como destino para meu amigo.
Não. Amigo, não; a sombra de um amigo agora. Embora ele morasse
em Coldthistle e não pudesse sair, fazia semanas que eu não via Rawleigh
Brimble. Ele se esquivava e se escondia feito uma sombra, o que eu achava
totalmente compreensível.
– Louisa! Abandonando suas tarefas de novo, pelo que vejo…
Minha saída rápida foi interrompida pela sra. Haylam, perfeitamente
arrumada como sempre, com o cabelo grisalho preso na nuca e o avental
engomado e branco a ponto de cegar. Ela uniu as mãos escuras na frente da
cintura e olhou para mim por sobre o nariz, fungando.
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– Estou indo buscar as roupas de cama para o quarto dos Pritcher – mur-
murei, evitando o olhar penetrante dela.
– É claro que está. E vai cuidar do quarto dos Fenton também, em seguida,
e trazer a roupa suja. Nada de procrastinar com a convocação do Tribunal.
Pude sentir os olhos de Chijioke se arregalarem tanto quanto os meus ao
ouvir isso.
– Tribunal?
A sra. Haylam era uma mulher temível no melhor dos momentos, e agora
seus olhos se inflamaram enquanto abria espaço para que eu passasse, fazendo
sinal para segui-la pelo corredor.
– Pareço estar disposta a ser interrogada, garota?
– Certo. Pritcher, Fenton, roupa suja – sussurrei, passando rápido por ela.
Ela me pegou pela orelha e me contorci, gritando com a dor súbita. Mas
aquela velha era muito, muito mais forte do que parecia.
– Não tão rápido, Louisa. O sr. Morningside gostaria de ver você. Algo
urgente, ele disse, e eu não demoraria se fosse você. – Ela deu uma risadinha
maldosa enquanto soltava minha orelha.
Por mais ansiosa que estivesse para fugir dos beliscões dela, não me agra-
dou muito a ideia de descer e atravessar a porta verde para ver meu patrão.
Felizmente, nossas interações foram poucas desde meu retorno da Irlanda.
Encolhi-me no corredor feito um cãozinho magoado, alternando o olhar
entre a sra. Haylam e o caminho para a escada.
Ela já tinha me esquecido, partindo para cima de Chijioke e recriminan-
do-o por perder tempo com criadas bobas na biblioteca.
Decidi fugir antes de ser pega a encarando e virei as costas, escapando
pelo corredor com a mão na orelha machucada. No caminho, vi o que parecia
a sombra de um pé virando a curva, desaparecendo enquanto a pessoa que
estava observando escapava para um andar superior. Os passos já estavam
ficando mais baixos, mas os reconheci. Lee. O sacrifício de Mary e minha
decisão o ressuscitaram, mas, em troca, ele vivia com nada além de trevas
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movendo seu espírito. Eu não entendia bem como funcionava, e ele não
estava interessado em discutir as mudanças que tinha sofrido.
Parei para escutar os passos conforme eles diminuíam, tocando a colher
sob o vestido junto ao peito. Eu o havia condenado e, também, havia conde-
nado nossa amizade emergente, maculando-a como fazia com tudo em meu
caminho.
– Louisa! Desça! Agora.
Não havia espaço para discussão na voz da sra. Haylam. Minhas muitas
obrigações aguardavam, mas primeiro eu tinha a tarefa indesejável de encon-
trar o sr. Morningside mais uma vez.
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