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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM
MARCELO HENRIQUE BARBOSA DE OLIVEIRA
ENGENHO, ARTE E EXPERIÊNCIA: A DOUTRINA DOS
TRÊS ELEMENTOS
NO DE ORATORE I E NO PRO ARCHIA DE CÍCERO
CAMPINAS
2018
MARCELO HENRIQUE BARBOSA DE OLIVEIRA
ENGENHO, ARTE E EXPERIÊNCIA: A DOUTRINA DOS TRÊS
ELEMENTOS NO DE ORATORE I E NO PRO ARCHIA DE CÍCERO
Dissertação apresentada ao Instituto de Estudos da
Linguagem, da Universidade Estadual de Campinas,
como requisito parcial para obtenção do título de
Mestre em Linguistica.
Orientador: Prof. Dr. Marcos Aurelio Pereira
Este exemplar corresponde à versão
final da Dissertação defendida pelo
aluno Marcelo Henrique Barbosa de Oliveira
e orientado pelo Prof. Dr. Marcos Aurelio Pereira
CAMPINAS
2018
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar, agradeço a Deus, inteligência suprema, pelo aprendizado existencial
e acadêmico obtido durante a escrita dessa dissertação.
Depois, dirijo meu especial agradecimento à minha fiel, amorosa e dedicada esposa
Rebecca Andrade, companheira de vida, e ao casal querido e amado Manuel Henrique de
Oliveira e Aldenora Barbosa (meus pais), meu permanente suporte emocional e eventual apoio
financeiro nas horas difíceis da minha caminhada. Aos meus familiares que ficaram torcendo
por mim de longe, meu obrigado. Aos todos amigos que fiz em Campinas e que lá deixei. Aos
amigos de Manaus (em especial a Castro Alves, Carlos Renato e Anni Marcelli), muitas vezes,
preteridos, mas não, por isso, esquecidos, presentes sempre na lembrança.
Agradeço ao professor Marcos Aurélio Pereira, pela disponibilidade, pela paciência, pela
atenção, pela compreensão e pelo rigor acadêmico que sempre demonstrou durante esse período
de orientação. Patrícia Prata, Isabella Tardin, Flávio Ribeiro e Paulo Sérgio Vasconcellos, nessa
ordem, que muito contribuíram (Patrícia e Isabella desde a entrevista de ingresso no mestrado)
para a produção desse trabalho, muito obrigado. Agradeço imensamente à Unicamp, instituição
fundamental na minha formação acadêmica, profissional, cidadã e pessoal.
At last but not least, dedico um espaço para o importantíssimo agradecimento à Capes,
que financiou integralmente a pesquisa cujos resultados apresento agora na forma de dissertação
de mestrado (O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001).
RESUMO
A presente dissertação apresenta uma leitura do diálogo De oratore I e do discurso Pro Archia,
de Marco Túlio Cícero, à luz da doutrina dos três elementos, ora nomeados: ingenium, ars e
exercitatio. O estudo tem por objetivo evidenciar a influência dessas noções nas idealizações
ciceronianas de summus orator e de summus poeta respectivamente presentes nos referidos
textos. O capítulo primeiro, dividido em duas partes, é primeiramente dedicado a apresentar
uma breve exposição sobre a vida do orador e filósofo romano; a segunda etapa fornece uma
introdução à doutrina dos três elementos, aos conceitos envolvidos e à sua aplicabilidade na
análise da retórica e da poesia. Do capítulo segundo consta a análise da idealização do summus
orator, preconizada no De oratore, com base nas noções trabalhadas no capítulo anterior. O
último capítulo busca revelar a presença e a relevância do engenho e da arte na concepção do
summus poeta. Encerra o nosso estudo uma breve seção de conclusão em que apontamos as
eventuais convergências e divergências da aplicação da doutrina dos três elementos na
construção dos ideais ciceronianos de orador e de poeta.
Palavras-chave: Marco Túlio Cícero; Doutrina dos três elementos; De oratore; Pro Archia.
ABSTRACT
This dissertation intents to show the presence of the three elements (ingenium, ars, and
exercitatio) doctrine in two ciceronian texts: the De oratore I dialogue and the Pro Archia
speech. The aim of this study is to demonstrate the influence of these notions in Marcus Tullius
Cicero’s idealizations of summus orator and summus poeta respectively present in those texts.
The first chapter, divided in two parts, is primarily devoted to presenting a brief exposition on
the life of Cicero; the second step explains the three elements doctrine, the concepts involved
and their applicability to the analysis of ancienty rhetoric and poetry. Next, we propose an
analysis of the idealization of the summus orator, praised in De oratore, based on the notions
studied in the previous chapter. The last chapter seeks to reveal the relevance of ingenuity and
art in the Pro Archia’ summus poeta. Finally, our text closes with a brief section of final
considerations in which we point out the possible convergences and divergences of the
application of the three elements doctrine in the construction of Cicero’s ideals of orator and
poet.
Key-words: Marcus Tullius Cicero; Three elements doctrine; De oratore; Pro Archia.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
Amic. – De amicitia, Cícero
Antid. – Ἄντίδοσις, Isócrates
Arch. – Pro Archia, Cícero
Ars Am. – Ars Amatoria, Ovídio
Ars P. – Ars Poetica, Horácio
Att. – Epistulae ad Atticum, Cícero
Brut. – Brutus, Cícero
C. soph. – Κατά τον σοφιστών, Isócrates
Carm. – Carmina, de Horácio
Catul. – Carmina, Catulo
Cic. – Κικέρων, Plutarco
Cra. – Κρατύλος, Platão
De orat. – De oratore, Cícero
Dial. – Dialogus de oratoribus, Tácito
Div. – De diuinatione, Cícero
Educ. – Περὶ παίδων ἀγωγῆς, Plutarco
Ep. – Epistulae moralem ad Lucilium, Sêneca
Eth. – Ethica, Alberto Magno
Eth. Nic. – Ἠθικὰ Νικομάχεια, Aristóteles
Etym. – Etymologiae, Isidoro de Sevilha
Fam. – Epistulae ad familiares, Cícero
Fin. – De finibus, Cícero
Grg. – Γοργίας, Platão
Il. – Ἰλιάς, Homero
Inst. – Institutio oratoria, Quintiliano
Inv. – De inuentione, Cícero
Lus. – Lusíadas, Camões
Men. – Μένων, Platão
Metaph. – Tὰ μετὰ τὰ φυσικά, Aristóteles
Od. – Ὀδύσσεια, Homero
Off. – De officiis, Cícero
OLD – Oxford Latin Dictionary
Orat. – Orator, Cícero
Phdr. – Φαῖδρος, Platão
Poet. – Περὶ ποιητικῆς, Aristóteles
Pol. – Πολιτικά, Aristóteles
Prop. – Elegiae, Propércio
Prt. – Protagoras, Platão
Q. fr. – Epistulae ad Quintum fratrem, Cícero
Rh. – Ῥητορική, Aristóteles
Rhet. Her. – Rhetorica ad Herennium, Autor desconhecido
Subl. – Περì Ὕψους, Dionísio Longino
Sum. – Summa Theologica, Tomás de Aquino
Top. – Topica, Cícero
Tr. – Tristes, Ovídio
Tusc. – Tusculanae disputationes, Cícero
Vit. phil. – Βίοι καὶ γνῶμαι τῶν ἐν φιλοσοφίᾳ εὐδοκιμησάντων, Diógenes Laércio
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 12
1 CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES ............................................................................. 18
1.1 RESUMO SOBRE A VIDA DE CÍCERO ..................................................................... 18
1.2 ARS ROMANA, RETÓRICA E POESIA ....................................................................... 23
2 A DOUTRINA DOS TRÊS ELEMENTOS NO DE ORATORE I ...................................... 44
2.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS AO DE ORATORE I ..................................................... 44
2.2 ENGENHO, ESTUDO E EXPERIÊNCIA: OS FUNDAMENTOS DA RETÓRICA NO DE
ORATORE I DE CÍCERO .................................................................................................... 56
3 REFORMULAÇÃO DA DOUTRINA DOS TRÊS ELEMENTOS NO PRO ARCHIA...... 96
3.1 PREÂMBULO AO PRO ARCHIA ................................................................................. 96
3.2 ENGENHO E ARTE: REQUISITOS DO POETA IDEAL NO PRO ARCHIA ............. 103
4 CONCLUSÃO ............................................................................................................... 131
5 BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................ 135
5.1 TEXTOS ANTIGOS .................................................................................................... 136
5.2 DICIONÁRIOS............................................................................................................ 137
5.3 TEXTOS MODERNOS ............................................................................................... 138
12
INTRODUÇÃO
A leitura da Defesa do poeta Árquias (Pro Archia poeta oratio), discurso
pronunciado por Marco Túlio Cícero em 62 a.C., convida-nos a repensar a forma como se
enxerga o gênero judicial antigo. Ao invés de verificar a natureza e o número das razões pelas
quais se comete um ato, o caráter e a disposição dos que a cometem e o caráter e a disposição
dos que a sofrem,1 como é usual nesses discursos, o orador de Arpino desgarra-se desses
expedientes e introduz elementos da oratória de tipo laudatório. Ele exalta o valor da poesia e
do poeta para a oratória e para a república com vistas à persuasão dos juízes de que a concessão
da cidadania romana para o poeta grego Lúcio Licínio Árquias deve ser mantida. Cícero
defende que a poesia fornece à juventude inúmeros exemplos de virtude, que registra, na
eternidade, a história de valorosos varões do passado e que inspira, na alma dos homens, um
desejo de moralizar-se. Sobre o réu, alega que é poeta de extremo talento e de vasta erudição,
capaz de comover as rochas e acalmar feras e de improvisar cantos inúmeros sobre um mesmo
tema, responsável por cantar as Guerras Mitridáticas e Címbrias. Por esses argumentos, não é
descabido afirmar que Pro Archia, mais que um discurso forense, consiste, no mínimo, num
valioso indício da existência de opiniões acerca de poeta e poesia que circulavam à época.
É impossível determinar se o que consta do Pro Archia é, de fato, a visão de Cícero
sobre o poeta e a poesia, mas a recorrência de alguns termos pode revelar um certo
posicionamento. Como dissemos acima, uma das alegações da defesa é que Árquias é um poeta
de talento e de cultura e, para dizer isso, mobilizam-se basicamente cinco noções: natura,
ingenium, ars, doctrina e studium, noções que guardam entre si semelhanças semânticas. Por
exemplo, é difícil distinguir o que é parte do domínio da natura do que é parte do domínio do
ingenium. Ambas designam, em muitos contextos, dotes e disposições naturais. Algo similar
ocorre com as outras três palavras. Todas elas, ars, doctrina e studium, podem designar um
estudo, uma forma de conhecimento, e podem apresentar, em dados contextos, significados
extremamente próximos. Com esses termos, Cícero defende que o poeta não é um indivíduo de
admirável talento ou inexplicável inspiração apenas, mas também dedicado à sua atividade, ao
1 “Vamos agora ocupar-nos do número e qualidade das premissas, donde se devem tirar os silogismos, no que diz
respeito à acusação e à defesa. Importa distinguir três questões; primeira: natureza e número dos motivos que induzem a cometer a injustiça; segunda: disposições dos que a cometem; terceira: qualidade e disposições das
vítimas”. (Rh. I, x, 1-2; ARISTÓTELES, s.t., p. 83) “Uma ação judiciária comporta a acusação e a defesa:
necessariamente os que pleiteiam fazem uma destas duas coisas. (...) Para o gênero judiciário, é o passo, visto que
a acusação ou a defesa incide sempre sobre os fatos pretéritos”. (Rh. I, iii, 3-5; In: ARISTÓTELES, s.t., p. 46-7)
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seu ofício de produzir versos. Assim, a natureza do poeta exerce o papel de pedra bruta sobre a
qual pesará o labor da educação e do conhecimento, deixando transparecer uma relação de
complementaridade de natureza e educação evidente no parágrafo quinze do texto:
“Quaeret quispiam: "Quid? Illi ipsi summi uiri, quorum uirtutes litteris
proditae sunt, istane doctrina, quam tu effers laudibus, eruditi fuerunt?" Difficile est hoc de omnibus confirmare, sed tamen est certe quod
respondeam. Ego multos homines excellenti animo ac uirtute fuisse, et sine
doctrina naturae ipsius habitu prope diuino per se ipsos et moderatos et
grauis exstitisse, fateor: etiam illud adiungo, saepius ad laudem atque
uirtutem naturam sine doctrina quam sine natura ualuisse doctrinam. Atque
idem ego contendo, cum ad naturam eximiam atque inlustrem accesserit
ratio quaedam conformatioque doctrinae, tum illud nescio quid praeclarum ac singulare solere exsistere”. (Arch. 15) 2
Poder-se-á perguntar: ‘Pois quê? Porventura se formaram com esta cultura que tanto enalteces aqueles mesmos eminentes vultos cujas virtudes as letras
deram a conhecer?’ Seria difícil afirmá-lo quanto a todos, mas é seguro o que
vou responder: reconheço ter havido inúmeros homens de superior espírito e
virtude, mas sem instrução, que por si próprios se mostraram morigerados e austeros como por divina propensão natural. Também acrescento: mais vezes
importaram para o louvor da virtude dons naturais sem cultura do que a cultura
sem os dons naturais. E posso ainda asseverar o seguinte: quando a distintos e excelentes dons naturais se junta uma certa instrução e formação cultural, não
sei que possa existir de mais preclaro e singular.3
O orador fala dos homens valorosos encontrados, sobretudo, nos poemas épicos,
homens que lhe serviam de modelo de conduta na administração da coisa pública e no
desenvolvimento do seu espírito. Esses homens, em sua maioria, foram virtuosos e chegaram à
perfeição quando reuniram em si os dons naturais e a modelação pela cultura. Mas Cícero se
esforça para incutir, nos ouvintes, que Árquias pertence a esse grupo distinto de cidadãos
relevantes e virtuosos, pois, para ele, como veremos à frente, é necessário ser virtuoso para
cantar a virtude. Portanto, de algum modo, esse breve comentário serve para qualificá-lo
também tanto no que tange ao seu caráter quanto ao seu ofício. Desse modo, assegurando que
o acusado é talentoso e erudito em sua área de atuação, Cícero o descreve como um poeta
excepcional. Ao fim e ao cabo, conclui-se que o comentário de Arch. 15, com a devida discrição,
serve para qualificar o réu, no momento em que o coloca no patamar dos modelos de virtude e
de competência, pois Cícero faz de Árquias uma espécie de poeta modelar (summus poeta),
distinto pelo talento e admirado pelo conhecimento.
2 Esses e os demais grifos deste estudo são de nossa lavra. 3 A tradução do Pro Archia para o português brasileiro citadas neste trabalho é de Trenk (1997).
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Essa idealização com base no talento e na instrução parece ser uma sinalização do
que será visto em outro texto de Cícero: Sobre o orador I (De oratore I). O primeiro livro
encena um diálogo em que Lúcio Licínio Crasso e Marco Antônio discutem a educação oratória
vigente em sua época e idealizam um orador perfeito (summus orator). Crasso e Marco Antônio
não se mostram reticentes em afirmar que, sem uma natureza favorável, não há esperança de
grandes resultados e que ela é o ponto de partida de qualquer empreendimento oratório, além
de valorizarem o engenho e o caráter propícios à oratória, entendendo-os como fundamentais
aos discursos autênticos e livres de artifícios. Eles também parecem consonantes quanto à
orientação prática da oratória romana, isto é, consideravam positivo, por um lado, que, em
Roma, desde muito cedo, os futuros oradores fossem levados a conhecer o cenário jurídico e
político da capital, e negativo, por outro, pois a iniciação precoce lhes subtrai a possibilidade
de estudos tanto da própria retórica como da filosofia e das artes liberais, que poderiam ser
importantes não apenas na elaboração dos discursos, mas também na edificação moral do
discípulo. Discordavam, porém, quanto aos limites da arte retórica: Crasso afirmava que o
orador deveria dominar uma ampla gama de artes e ciências para alcançar a perfeição oratória,
enquanto Marco Antônio defendia que era suficiente conhecer os meios de comoção dos ânimos
e familiarizar-se minimamente com as ciências envolvidas perpassadas nos discursos. Portanto,
pode-se dizer que a discussão do primeiro diálogo gravita em torno do objeto da arte retórica,
pois parece haver concordância quanto à importância do talento (natura, ingenium) e da
experiência prática (exercitatio, usus, consuetudo). Neste sentido, citamos duas passagens, a
primeira é uma fala de Crasso:
Quid enim nos aut didicimus aut scire potuimus, qui ante ad agendum quam
ad cognoscendum uenimus; quos in foro, quos in ambitione, quos in re
publica, quos in amicorum negotiis res ipsa ante confecit quam possemus
aliquid de rebus tantis suspicari? Quod si tibi tantum in nobis uidetur esse, quibus etiam si ingenium, ut tu putas, non maxime defuit, doctrina certe et
otium et hercule etiam studium illud discendi acerrimum defuit, quid censes,
si ad alicuius ingenium uel maius illa, quae ego non attingi, accesserint, qualem illum et quantum oratorem futurum?" (De orat. I, 78-9)
Ora, o que aprendemos ou pudemos conhecer, nós, que passamos a atuar antes de estudar; nós, a quem no fórum, na carreira, na política, nas atividades dos
amigos, a própria prática preparou antes mesmo que pudéssemos suspeitar de
tão grandes temas? Porque, se te parece haver tanto em nós, a quem, mesmo
que não haja faltado, como julgas, o engenho, certamente faltaram a formação teórica, o tempo livre e, por Hércules, mesmo aquele estudo extremamente
profundo da oratória, o que pensas: se a um engenho maior se somassem
aqueles elementos a que não tive acesso, de que natureza e magnitude seria tal orador?
15
A segunda mostra a visão de Antônio:
[...] Eloquentem uero, qui mirabilius et magnificentius augere posset atque
ornare quae uellet, omnisque omnium rerum, quae ad dicendum pertinerent, fontis animo ac memoria contineret. Id si est difficile nobis, quod ante, quam
ad discendum ingressi sumus, obruimur ambitione et foro, sit tamen in re
positum atque natura: ego enim, quantum auguror coniectura quantaque
ingenia in nostris hominibus esse uideo, non despero fore aliquem aliquando, qui et studio acriore quam nos sumus atque fuimus et otio ac facultate discendi
maiore ac maturiore et labore atque industria superiore, cum se ad
audiendum legendum scribendumque dederit, exsistat talis orator, qualem quaerimus, qui iure non solum disertus, sed etiam eloquens dici possit; qui
tamen mea sententia aut hic est iam Crassus aut, si quis pari fuerit ingenio
pluraque quam hic et audierit et lectitarit et scripserit, paulum huic aliquid poterit addere." (De orat. I, 94-5)
Enquanto eloquente é aquele capaz de ampliar e ornar de modo admirável e
grandioso o que desejar, e que retém na mente e na memória todas as fontes de tudo que se relaciona à oratória. Ainda que tal coisa seja difícil para nós,
que, antes de começar a estudar, somos atrapalhados pela ambição e pelo
fórum, ela está ancorada na realidade e na natureza. De fato, pelo que posso conjecturar e pelo talento que observo em nossos oradores, não deixo de ter
esperanças de que um dia surja alguém que, com um estudo mais penetrante
do que temos ou tivemos, com tempo livre, com uma capacidade oratória maior e mais madura, com esforço e aplicação superiores, quando se dedicar
a ouvir seus mestres, a ler e escrever, venha a se tornar um orador tal qual
procuramos, que possa com justiça ser chamado não apenas de expressivo,
mas também de eloquente; no entanto, na minha opinião, ou Crasso já é tal orador, ou, caso surja alguém de igual talento, porém com mais estudo, leituras
e escritos, pouco terá a lhe acrescentar.
Se pudéssemos fazer um único juízo dessas passagens, diríamos que elas deixam
implícito que Crasso, de alguma maneira, pode ser visto como uma metonímia, isto é, para os
oradores romanos de sua época, visto que possuía um engenho e uma propensão (ingenium,
facultas) exuberantes, a ponto de animar os seus pares, para o discurso e se dedicava a uma
intensa prática oratória, capaz de burilar esses engenhos. No entanto, em ambas as falas,
identifica-se uma lacuna importante que separa esses romanos da perfeição oratória: o
conhecimento (ars, doctrina, scientia). A falta de tempo hábil impossibilitava os oradores de
conhecer a fundo a cultura e a sabedoria importada pelos mestres de oratória gregos. Nesse
cenário, estariam privados também os romanos do sofisticadíssimo sistema (ars) retórico grega,
a téchne rhetorikê, ou, em latim, ars rhetorica, aperfeiçoada durante décadas pelos sofistas,
restringindo-se ao costume e tradição (mos, consuetudo) dos antepassados. A consideração do
conhecimento retórico passa, então, a ocupar um lugar de relevo na tentativa de projetar os
requisitos, por assim dizer, do summus orator, juntamente com o talento e a prática oratória, de
modo que se abre a possibilidade para a interpretação do orador ideal como um indivíduo que
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reúne em si o talento, a teoria e a prática, em latim, ingenium, doctrina e exercitatio. Conclui-
se daí que os oradores, bem como a própria retórica enquanto ars, tanto mais próximos da
perfeição estariam quanto mais próximos estivessem desses três elementos.
Tendo isso em vista, fazemos alguns questionamentos: Onde surge a ideia de que
as artes se fundamentam sobre talento, teoria e prática? Sendo poeta e orador artifices, por que
somente um deles se dedica à exercitatio? Houve acréscimo ou supressão da exercitatio em
uma das idealizações? Existem motivos razoáveis para tanto? Se a idealização ciceroniana de
poeta está tão condicionada ao ingenium poético quanto a formação oratória proposta por
Crasso e Marco Antônio ao ingenium oratório, em que medida esses ingenia se assemelham e
se distinguem? Existem semelhanças entre os conhecimentos (ars, doctrina, scientia) do orador
e do poeta, segundo Cícero, ou eles diferem em todos os aspectos? Através dessas reflexões,
buscamos, num espectro mais amplo, auxiliar na reconstituição do juízo de Cícero acerca da
idealização do poeta e do orador a partir da análise e discussão dos argumentos expostos no
discurso Pro Archia e no diálogo De oratore. Depois, intentamos verificar a possibilidade de
compreender a representação e a idealização do poeta através das formulações de Cícero em
sua obra, tendo como ponto de partida os conceitos de natura e doctrina e investigar o modo
como os conceitos em pauta se articulam e se apresentam na concepção de poeta no Pro Archia.
Por último, visamos estabelecer um paralelo entre as idealizações de orador e de poeta inferidas
nos De oratore e no Pro Archia.
Na tentativa de responder, pelo menos, parcialmente, essas perguntas, o presente
estudo traz um capítulo introdutório destinado à explicação do conceito romano de ars e da sua
aplicabilidade à poesia e à retórica. O segundo capítulo apresenta uma proposta de leitura do
De oratore I que busca evidenciar o significado e a conformidade das noções de engenho, teoria
e prática nas bases da idealização do summus orator preconizada pelas personagens Lúcio
Licínio Crasso e Marco Antônio. O capítulo seguinte é dedicado à análise das noções de
engenho e arte aventadas por Marco Túlio Cícero na idealização do summus poeta verificável
no Pro Archia. A conclusão tenciona esclarecer a não existência de unidade nas idealizações
ciceronianas de poeta e de orador, dado que este depende de talento, teoria e prática, enquanto
aquele, de talento e estudo, estabelecendo os seus possíveis paralelos e evidenciar as suas
eventuais motivações.
Para finalizar, cabe ao derradeiro parágrafo introdutório expor os esclarecimentos.
O primeiro deles seria com relação à restrição ao primeiro livro do De oratore na análise do
summus orator. Enquanto o segundo tomo, o mais longo, projeta-se e aprofunda-se no risível,
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na doutrina dos tópicos, na arte memória, e o terceiro, o mais breve, trata dos estilos oratórios,
da elocução (elocutio) e da relação da retórica com a filosofia, o primeiro, mediano em matéria
de extensão, inicia a reflexão com a disputa entre as personagens em torno dos limites do
conhecimento do orador ideal, mas também tocando questões como os requisitos do orador
ideal, os seus dotes naturais, a sua educação e os exercícios oratórios sobre a existência, a
natureza e o objeto da eloquência, temas muito mais caros à nossa reflexão e reveladores das
nuanças atinentes às noções de talento, teoria e a prática. O segundo esclarecimento diz respeito
à contribuição dos pensadores gregos. Reconhecemos que o pensamento retórico-filosófico de
Cícero se deve muito aos pensadores gregos, sobretudo a Platão, a Aristóteles e a Isócrates, a
cujas obras aludiremos adiante, no entanto, não é propósito deste trabalho esquadrinhar os
antepassados gregos do ingenium, da ars e da exercitatio. As pontuais referências ao
pensamento helênico servirão ao propósito de esclarecer e preencher eventuais lacunas
deixadas, talvez propositadamente, pelo autor do texto. O terceiro esclarecimento diz das
traduções e dicionários consultados. A leitura e o comentário que ora apresentamos serviu-se
das traduções de De oratore I publicadas por Sutton & Rackham (CICERO, 1967), por
Courbaud (CICÉRON, 2009) e por Scatolin (2009). Com relação a Pro Archia, embasamo-nos
nas edições e traduções publicadas por Gonçalves (1986), por Bertonati (CICERONE, 1992) e
por Trenk (1997). A despeito das ótimas edições consultadas, encontrar-se-ão eventuais
divergências entre as traduções dos excertos e as escolhas tomadas nos comentários, prática
justificável pela necessidade de pontuar elementos do jargão técnico das ars e eventuais
nuanças semânticas. Nesse sentido, amparam nossas traduções os dicionários Oxford Latin
Dictionary (1968), Novíssimo Dicionário latino-português (s.t.) e Dictionnarie Latin Français
(2016). E, por fim, um último esclarecimento: todo e qualquer texto latino exibido neste
trabalho foi extraído de http://www.thelatinlibrary.com/, com a única e devida alteração do u
consonantal.
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1 CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
1.1 RESUMO SOBRE A VIDA DE CÍCERO
Marco Túlio Cícero nasceu em 3 de janeiro de 106 a.C. em Arpino, distante cerca
de 129 quilômetros a sudeste de Roma. De família aristocrática, ainda que desprovida de
relevância política, permaneceu em sua cidade natal até que seu pai, visando garantir uma
educação distinta para seus filhos, decidiu enviá-lo, acompanhado do pequeno Quinto Túlio
Cícero, à capital para estudar retórica e filosofia (JESUS, 2008, p. 16). Graças ao intermédio de
seu tio M. Fúrio Aculeio, jurista de renome, Cícero pôde estudar com L. Élio Estilão Preconino,
logógrafo famoso pelo seu domínio da cultura grega, conhecer Lúcio Licínio Crasso e Marco
Antônio, os mais importantes oradores romanos até então, e Quinto Múcio Cévola, célebre
jurisconsulto da época. Além disso, estudou filosofia com o acadêmico Filo de Larissa, o
epicurista Fedro e o estoico Diódoto (MARMORALE, 1974, p. 150). Nessa época, escreve um
tratado em dois tomos chamado De inuentione. Desempenha esse texto um grande papel na
história da retórica, primeiramente, por ser o mais antigo tratado de retórica em língua latina,
juntamente com Rhetorica ad Herennium, texto com que compartilha semelhanças estruturais
e temáticas, por traduzir e adaptar jargão retórico grego para a língua e a vivência latinas, e por
advogar em prol de uma eloquência eivada de princípios éticos (MARROU, 1990, p. 392;
GONÇALVES, 2017, p. 11). O texto, posteriormente, será referido por Quintiliano (Inst. II, xv,
6) como Arte Retórica, será lido pelo gramático tardio Prisciano, será comentado por Grílio,
Júlio Vítor e Vitorino e servirá de referência para a educação clássica, medieval, renascentista
(CICÉRON, 1994, p. 28-9).
Durante o período de juventude do arpinate, Roma atravessou dois terríveis
conflitos bélicos: a Guerra Social e a Guerra Civil. O primeiro, também conhecido como Guerra
dos Aliados, consistiu na revolta dos itálicos em busca da obtenção da cidadania romana e
ocorreu entre os anos 91 e 88 a.C. Nessa oportunidade, Cícero participou das batalhas
integrando o exército de Cneu Pompeu Estrabão. O outro conflito armado nessa época foi a
Guerra Civil que transcorreu durante os anos 88 e 86. Essa guerra é resultado da disputa entre
os generais Caio Mário e Lúcio Cornélio Sila pelo comando da Guerra contra Mitrídates, rei do
Ponto, que ocupou a Ásia e a Grécia, executou acerca de 80.000 romanos e confiscou as suas
propriedades durante o período em que os romanos combatiam os aliados. Depois que a guerra
19
acabou com a vitória de Sila e com a morte repentina de Caio Mário, o vencedor regressa a
Roma com enorme capital político e inicia uma série de perseguições aos seus adversários
políticos, entre eles, Marco Antônio, Caio Júlio César Vopisco, edil curul em 90 a.C., Quinto
Lutácio Cátulo, cônsul em 102 a.C. De fato, não eram tempos propícios para a carreira política
e, muito provavelmente em decorrência dessas atribulações, o percurso público de Cícero tenha
começado nesses anos (MAY, 2002, p. 4). Somente em 81 a.C., aos 25 anos, o arpinate estreou
como orador. Defendendo Caio Quíncio (Pro Quinctio), numa disputa de direito privado, que
versava sobre a propriedade de uma fazenda de Quíncio, Cícero enfrentou aquele que viria a
ser o seu mais frequente adversário nos tribunais: Hortênsio, cujo nome serviria de título a um
diálogo, hoje perdido, sobre a filosofia. No ano seguinte, um caso dificílimo: Sila, então ditador
eleito pelo senado, e Crisógeno, escravo liberto ligado ao déspota, acusaram o jovem Róscio de
Améria de parricídio. O republicano Cícero assumiu o caso, defendeu o réu e ganhou a causa.
Não muito tempo depois, Cícero parte para Atenas sob o pretexto de cuidar da saúde e rematar
sua educação. Plutarco afirma que, na verdade, a viagem foi resultado de pressões exercidas
por Sila.4 De todo modo, nesse período, vai à procura dos mestres de retórica no oriente, emigra
para a Ásia, onde estuda filosofia com Antíoco de Escalão, ex-membro da Academia, e retórica
com Demétrio da Síria. Depois, viaja para a Ásia Menor, onde frequenta a escola dos rétores
Ésquilo de Cnido, Xenocles de Adramício, Dionísio de Magnésia e Menipo de Cária. Depois,
encaminha-se a Rodes, onde estuda filosofia com Apolônio Mólon e Posidônio.
Sabendo da morte de Sila, em 77 a.C., Cícero retorna a Roma para iniciar sua
carreira política (cursus honorum). No ano seguinte, então, disputa as eleições para questor
(quaestor) da Sicília, cargo para o qual viria a ser eleito em 75 e em virtude do qual angariou
prestígio junto ao povo siciliano (MAY, op. cit., p. 6). Por conta disso, depois de cumprido o
mandato, já em 74, foi convidado a abrir um caso contra Caio Verres, governador da Sicília
entre 73 e 71, ocasião que ensejou a composição dos discursos conhecidos em português como
Verrinas (In Verrem orationes). Cícero regressa à província, em inícios de 70, para proceder a
pesquisas e ao inquérito indicial, e reúne, em tempo recorde, as provas e os testemunhos
(PEREIRA, 2012, p. 123). Verres teria cometido todo tipo de erro e de abuso na administração
da província e, a despeito dos esforços de seus amigos e partidários influentes para atrasar o
julgamento em Roma, o jovem Cícero saiu vitorioso. Conta-se que tamanho foi o estupor do
4 “Por medo da hostilidade de Sila, ninguém o queria socorrer e todos se afastavam; e, por isso, abandonado desta maneira, Róscio recorreu a Cícero. Os amigos deste incitavam-no a defendê-lo, pois pensavam que ele não voltaria
a ter uma oportunidade como esta para mostrar o seu brilho e adquirir uma boa reputação. Encarregou-se, pois, da
defesa, foi bem-sucedido e obteve a admiração geral. Porém, com receio de Sila, viajou para a Grécia, tendo antes
posto a correr o rumor de que precisava de se tratar”. (Cic., III, v; PLUTARCO, 2012, p. 106-7)
20
discurso do arpinate que Hortênsio, defensor de Verres na causa, abdicou da defesa e
recomendou ao cliente que se exilasse. Desse modo, o arpinate começa a angariar prestígio
político (MAY, op. cit., ibid.). Depois de ter exercido a pretura em 66 a.C., Cícero, aos 42 anos,
idade mínima para a ascensão ao cargo, assume o grau mais elevado da magistratura: o
consulado (63). O feito de maior relevância de Cícero enquanto cônsul foi ter desbaratado a
conspiração de Lúcio Sérgio Catilina contra a república. Na ocasião, Catilina, político de
origem nobre, porém arruinado financeiramente, que já havia sido pretor (68) e governador
(67), foi derrotado por Cícero na disputa pelo consulado. Devido às sucessivas derrotas nas
urnas, inúmeras dívidas e uma denúncia por extorsão, Catilina decide então reunir em exército
de aristocratas falidos e escravos rebeldes para tomar o poder mediante golpe de estado, sendo,
no entanto, descoberto e denunciado por Cícero ao povo e ao senado nos quatro discursos que
ficaram conhecidos em português como Catilinárias (In Catilinam orationes quattuor). Ao
final do episódio, o orador de Arpino foi laureado “pai da pátria” (pater patriae) por Catão, o
Jovem, em decorrência de sua atuação em defesa das instituições republicanas. Catilina, não
obstante arruinados os seus planos, não se rendeu e acabou morto pelos soldados romanos e os
demais conspiradores, condenados por Cícero e pelo Senado Romano à pena máxima, foram
executados.
Por um lado, esse foi o seu auge na carreira política, por outro, o início dos seus
problemas. A participação na denúncia do movimento conspirador, o capital político adquirido
junto à ala conservadora do senado e o apoio irrestrito às instituições republicanas o tornaram
uma figura indesejada entre os que tramavam tomar o poder, quando formaram o Primeiro
Triunvirato em 60 a.C., Júlio César, Pompeu Magno e Marco Crasso, generais vitoriosos,
populares e, acima de tudo, ambiciosos eles próprios por controlar a política de Roma. Para
tanto, eles firmaram um acordo secreto para a promoção e proteção dos seus interesses. Segundo
May (2002, p. 10), Cícero chegou a ser convidado por um intermediário dos triúnviros para
integrar a coalizão, provavelmente pelo seu reconhecido domínio da legislação e da oratória,
mas recusou a proposta. Os desdobramentos da negativa não tardaram a chegar. Em 58, Clódio
Pulcro, tribuno da plebe apesar da origem patrícia, aprovou duas leis decisivas para o futuro de
Cícero: a primeira delas objetivava conquistar o apoio dos cônsules destinando ricas províncias
a serem governadas por eles após o término de suas magistraturas, a segunda previa o exílio e
o confisco de bens de qualquer oficial público que condenasse ou já tivesse condenado um
cidadão romano à morte sem o devido processo legal (COSTA, 2013, p. 18). Enquadrado numa
manobra jurídica elaborada por um político alinhado aos interesses do triunvirato, Cícero é
21
aconselhado por Hortênsio a deixar Roma e seguir para Tessalônica. Nesse período, Cícero
intensificou sua produção epistolar, importante nos campos literário e histórico. Do ponto de
vista literário, podemos destacar o estilo de escrita empregado por Cícero, segundo Costa (2013,
p. 10), embora bastante diferente do estilo grandiloquente de seus discursos, atrativo aos
estudiosos da língua latina e da sua estilística. Do ponto de vista histórico, suas cartas revelam
fatos dos bastidores da política romana, bem como costumes, ideias e valores correntes à época
raramente encontrados em outros documentos (COSTA, 2013, p. 9). Por esse motivo, Martin
& Gaillard (1990, p. 457) afirmam que a correspondência de Cícero consiste num verdadeiro
jornal da política romana.
Passados dezesseis meses distante, já em 57 a.C., ele retorna à Urbe, porém sem o
mesmo brilho de outrora: excluído pelo triunvirato, privado de seu prestígio e desiludido com
a vida política, Cícero jamais conseguiu reingressar na política, principal motivo pelo qual
dicidiu dedicar-se à produção retórico-filosófica. O principal produto desse período de reclusão
foi a composição dos diálogos Sobre o orador (De oratore), Da república (De re publica) e
Das leis (De legibus). Além disso, integrou o Colégio dos Áugures, onde desempenharia a
respeitada tarefa de interpretar a vontade dos deuses através da observação do voo das aves a
fim de orientar as deliberações públicas (Cic. XXXVI, i). Cícero trilhou um caminho bastante
comum entre aristocratas politicamente excluídos: dedicou-se à vida intelectual, a exemplo dos
historiadores Salústio e Luceio, e de Ático, nobre romano correspondente de Cícero nas Cartas
a Ático (Epistulae ad Atticum) (TRENK, 1997, p. 61). Em 51 a.C., vai à Ásia Menor, para atuar
como procônsul da Cilícia, província localizada ao sul da atual Turquia, num período que se
concretizou como um novo exílio, visto sua ânsia por informar-se dos rumos da decadente
república. A essa altura, muito da situação política de Roma já havia mudado: César estava
prestes a concretizar a sua vitória definitiva sobre os povos da Gália e da Britânia, aumentando
ainda mais seu capital político, Pompeu estava em Roma, canalizando as insatisfações e a
incertezas da classe senatorial para si e Crasso morrera em combate contra os partos, na Síria.
Quando retorna da Cilícia, já em fins de 50, Cícero encontra a Urbe às portas da
Guerra Civil entre César e Pompeu, representante do Senado. César, que passara os últimos
cinco anos exercendo o consulado na Gália, estava em vias de retornar a Roma com o objetivo
de retomar as bases da antiga aliança com Pompeu ou de guerrear com ele pelo domínio
absoluto da capital. No ano seguinte, a despeito de determinação impeditiva do senado, César
atravessa o Rubicão e marcha sobre Roma, obrigando Pompeu a fugir com Cícero e os demais
senadores para a Hispânia e depois à Grécia. Na altura de Farsalos, na Grécia Central, os
22
senadores, fartos de fugir, o pressionam por uma batalha decisiva, que, já em 48, finalmente
acontece. César, apesar da grande desvantagem numérica e física de seu exército, vence
Pompeu, que foge para o Egito, onde é assassinado numa emboscada arquitetada pelo rei
Ptolomeu XIII. Em 46 a.C., Cícero compôs quatro textos: Bruto (Brutus), O melhor gênero de
oradores (De optimo genere oratorum), O orador (Orator) e Paradoxos dos estoicos
(Paradoxa stoicorum). Dois anos depois, com o assassínio de Júlio César, Cícero reentrou na
arena política, o que lhe concedeu uma oportunidade de reavivar sua voz consular e o uso de
sua retórica republicana. Posicionou-se favorável a Gaio Otávio, filho adotivo de Júlio César e
futuro imperador de Roma, e contrário a Marco Antônio, o lugar-tenente do general assassinado
pelos senadores nos idos de março (ABREU, 2017, p. 18). Essas duas figuras, juntamente com
Lépido, ex-comandante de César, instituem uma nova coalização, o chamado Segundo
Triunvirato. Embora contasse com a simpatia de Otaviano, Marco Antônio exigiu que o nome
de Cícero fosse incluso na lista de proscritos, uma declaração de morte. No dia 7 de dezembro
de 43, em Fórmias, conforme conta Plutarco (Cíc. XLVIII), Cícero é interceptado e assassinado
por uma tropa liderada pelo centurião Herênio e pelo tribuno Pompílio, enviados de Marco
Antônio.
Cícero viveu e atuou durante um dos períodos mais tumultuados da história de
Roma, tempos de crise política e de mudança cultural. No plano político, o orador de Arpino
vivenciou os sucessivos ataques às instituições republicanas que culminariam na ascenção de
Otávio Augusto ao posto de imperador em 27 a.C. e no início de um novo e longo período na
história de Roma. No plano cultural, Cícero esteve em meio à disseminação da cultura helênica,
resultado da conquista do Oriente, que põe em xeque algumas das tradições latinas e, ao mesmo
tempo, oferece novos instrumentos (a retórica e a filosofia) para a leitura da realidade. Esses
instrumentos, adaptados ao pensamento romano, forneceram a base da civilização itálica e do
futuro império. Sua incessante versatilidade legou aos romanos o conhecimento dos diversos
aspectos da filosofia grega, a construção de um vocabulário filosófico em latim, a arquitetura
requintada do sistema retórico clássico e o alçamento da língua do Lácio ao nível apurado e
sofisticado que sobreviveu por tantos séculos após a morte do orador. Sua atuação política
proporcionou brilhantes noções de Estado e administração pública;5 sua oratória se tornou, pela
sua acuidade e beleza, o maior paradigma de correção e elegância de toda a história da língua
5 Cf. Santos (2018).
23
latina;6 sua filosofia influenciou sucessivas gerações de humanistas e pensadores por toda a
civilização ocidental.7
1.2 A DOUTRINA DOS TRÊS ELEMENTOS: ARS ROMANA, RETÓRICA E POESIA
Oliveira (2015, p. 282) conta que, a partir da Terceira Guerra Samnita e da aliança
com Nápoles em 326 a.C., cresce entre os romanos o interesse pelo teatro, pela filosofia e pela
retórica helênicos. O estudioso (op. cit., p. 283) ainda diz que, em 219, se iniciou um processo
de emigração de profissionais gregos: médicos, matemáticos, gramáticos, filósofos e rétores
emigraram para a Urbe e aí começaram a exercer suas funções, o que culminou na importação
dos seus modelos de transmissão desses ofícios. Ocorre que os gregos, em todas essas áreas, já
possuíam sistemas de educação estabelecidos, provocando alterações na percepção romana de
certas atividades, entre elas a poesia e a retórica. A retórica, de fato, deixa a rubrica da
consuetudo ou exercitatio (exercício ou prática) e passa a ser vista como uma ars (HANSEN,
2013, p. 14).8
6 Cf. Erasmo de Roterdã (2013). 7 Cf. Marrou (1990, p. 224-329). 8 “Num primeiro momento, desconhecedores de qualquer teoria, aqueles que pensavam não haver qualquer método
de exercícios ou qualquer preceito de arte atingiam o quanto podiam pelo engenho e pela reflexão; depois, quando
se ouviram os oradores gregos, conheceram-se os seus escritos e empregaram-se os seus mestres, os latinos
inflamaram-se com um inacreditável desejo de aprender. Movia-os a magnitude, a variedade e a amplidão das
causas de toda espécie, de modo que, à teoria alcançada pelo estudo de cada um, acrescia-se a prática frequente,
que superaria os preceitos de todos os mestres” (Ac primo quidem totius rationis ignari, qui neque exercitationis
ullam uim neque aliquod praeceptum artis esse arbitrarentur, tantum, quantum ingenio et cogitatione poterant, consequebantur; post autem auditis oratoribus Graecis cognitisque eorum litteris adhibitisque doctoribus
incredibili quodam nostri homines discendi studio flagrauerunt. Excitabat eos magnitudo, uarietas multitudoque
in omni genere causarum, ut ad eam doctrinam, quam suo quisque studio consecutus esset, adiungeretur usus
frequens, qui omnium magistrorum praecepta superaret). (De orat., I, 14-5) “Mas, em primeiro lugar, isso é difícil
de conseguir, sobretudo levando em conta a vida que levamos e nossas ocupações; além disso, é de recear que nos
afastemos desta nossa prática e uso popular e forense em nossos discursos” (Sed primum id difficile est factu,
praesertim in hac nostra uita nostrisque occupationibus; deinde illud etiam uerendum est ne abstrahamur ab hac
exercitatione et consuetudine dicendi populari et forensi). (De orat. I, 81) “Mas se as características observadas
no uso e na prática da oratória foram percebidas e notadas por homens hábeis e experientes, definidas em termos,
elucidadas em gêneros, distribuídas em partes – como percebo ser possível acontecer –, não vejo por que, se não
naquela definição precisa, ao menos nesta opinião comum, não possa parecer uma arte. Mas, quer se trate de uma
arte, quer de uma aparência de arte, ela não é de se desprezar; deve-se ter em mente, no entanto, que há elementos mais importantes para se atingir a eloquência” (Sin autem ea, quae obseruata sunt in usu ac tractatione dicendi,
haec ab hominibus callidis ac peritis animaduersa ac notata, uerbis definita, generibus inlustrata, partibus
distributa sunt - id quod uideo potuisse fieri -, non intellego, quam ob rem non, si minus illa subtili definitione, at
hac uulgari opinione ars esse uideatur. Sed siue est ars siue artis quaedam similitudo, non est ea quidem
neglegenda; uerum intellegendum est alia quaedam ad consequendam eloquentiam esse maiora). (De orat. I, 109)
“Mas tomo tais medidas e decisões de tal maneira que não perca as esperanças de que essas questões que
discutimos sejam ensinadas e aperfeiçoadas em latim, pois tanto a nossa língua quanto a natureza permitem que
aquela antiga e excelente prudência dos gregos seja aplicada à nossa prática e costume” (Quamquam non haec ita
statuo atque decerno, ut desperem Latine ea, de quibus disputauimus, tradi ac perpoliri posse, patitur enim et
24
A ars pode ser entendida, de modo geral, como uma habilidade adquirida pelo
estudo ou pela prática, um conhecimento, portanto, técnico e artificial.9 Encontramos também
acepções como habilidade profissional, artística e técnica adquirida em exercício, método
artificial fruto de criatividade humana.10 Lausberg (1996, p. 59) apresenta uma interpretação de
ars como um conjunto de regras (regulae) e preceitos (praecepta) extraídos da experiência
(exercitia) e passíveis de ensino que auxiliam o homem a levar a cabo, com êxito e constância,
determinados trabalhos de relevância social. Ars, de modo conciso, pode ser compreendida
como tudo que é de indústria humana.11 Quanto à etimologia, diz-se que o termo ora analisado
se originou da contração do vocábulo grego areté, que designava virtude.12 Porém, dada a
influência da raiz indo-europeia *er-, eventualmente variando para *ar-, presente tanto na
palavra grega quanto na romana, existe, em ambas, uma ideia primitiva de juntura, de
ligamento, constatável em palavras como armus (juntura do braço ao ombro), artus
(articulação), articulus (ligamento, junção) (HANSEN, 2013, p. 31-2). Algo semelhante pode
ser verificado atualmente, na raiz arm- de armadura, armário, armadilha e armação, todas
palavras que designam objetos úteis oriundos de junção ou encaixe de peças. O mesmo pode
ser verificado em artigo, artífice, articulação e artrose: as duas primeiras palavras carregam o
sentido metafórico, enquanto as demais, o sentido, digamos, anatômico de ars. Nesse contexto,
o orador, de certa forma, harmoniza em um discurso elementos como vocabulário, conteúdo,
gênero, objetivo, auditório, caráter etc.
Essa ideia de conhecimento prático e técnico, na verdade, é uma espécie de herança
mantida ao traduzir a palavra grega téchne, que, segundo indica Murachco (1998, p. 13),
consiste numa posse prática de processos necessários para executar uma tarefa, uma habilidade
prática, manual ou habilidade potencial, um conhecimento ou articulação de meios, expedientes
e artifícios, oriundos do aprendizado, não do engenho. Téchne também significava saber-fazer
no contexto de uma profissão, técnica, arte, como marcenaria, carpintaria e metalurgia. Num
lingua nostra et natura rerum ueterem illam excellentemque prudentiam Graecorum ad nostrum usum moremque
transferri). (De orat. III, 95) 9 Ars, artis. f. (ancient tème en -i- *artis, gén. pl. artium): façon d’être ou d’agir (naturelle ou acquise, bonne ou mauvaise). In: Dictinnaire étymologique de la langue latine. Paris: Klincksieck, 2001, p. 48 10 Ars, ~tis. f. 1 a Professional, artistic, or technical skill as something acquired and exercised in practice, skilled
work, craftsmanship, art. In: Oxford Latin Dictionary. Oxford: The Clarenton Press, 1968, p. 175. 11 Ars, artis, s. ap. f. 1º arte, artifício, tudo que é de indústria humana. In: Novíssimo dicionário latino-português:
etimológico, prosódico, histórico, geográfico, mitológico, biográfico, etc. (12ª ed.). Rio de Janeiro: Garnier, 2006. 12 “Diz-se “arte”, porque se funda nos preceitos e regras da arte. Outros dizem que esse vocábulo foi desenvolvido
pelos gregos a partir de areté, ou seja, uirtus, a qual chamavam ciência” (Ars uero dicta est, quod artis praeceptis
regulisque consistat. Alii dicunt a Graecis hoc tractum esse uocabulum ἀρετή, id est, a uirtute, quam scientiam
uocauerunt). (Etym. I, i, 2; In: PINTO, 2008, p. 228-9)
25
sentido mais geral, ele diz que pode significar um modo de fazer, uma maneira, e, num sentido
mais etimológico, por força da sua raiz *tek, designava construir, fabricar.13 Confirmam essas
acepções passagens como a referência ao coração de Heitor, em Il. III, 59-62, tão duro quanto
um machado manejado por um artista (technítes) ao construir um navio,14 como o excerto Crat.
388c-d que tem como tema a tecnicidade;15 como o fragmento B 59 de Demócrito,16 atestando
que nem a arte nem a sabedoria são coisa acessível se não se aprende; como Od. III, 432-5, cujo
verso diz do ourives possuidor da forja para bater o ouro.17 Seria cabível pensar na retórica, por
sua vez, como um conhecimento ou habilidade de identificar e executar em cada caso os
expedientes adequados com o fim de persuadir, adaptando o que é dito por Aristóteles.18
Alguns autores antigos nos legaram definições que auxiliam na compreensão do
conceito de ars. O preceptor anônimo da Retórica a Herênio enxerga ars como um preceito que
dá método e sistematização para o discursar (ars est praeceptio quae dat certam uiam
rationemque dicendi).19 Quintiliano (35-100 d.C.) a define como aquilo que se alcança com o
aprendizado (ars erit quae disciplina percipi debet).20 O filósofo estoico Sêneca (4-64 d.C.)
afirma que toda arte é uma imitação da natureza (omnis ars naturae imitatio est).21 Lalande
(1999, p. 65-6) atribui a um certo Galeno de Pérgamo (130-219 d.C.) a ideia de que arte é um
sistema de preceitos universais, verdadeiros, produtivos e harmoniosos que se estendem ao
único e mesmo fim (ars est systema praeceptorum uniuersalium, uerorum, utilium,
consentientium, ad unum eumdemque finem tendentium). Agostinho de Hipona (354-430 a.C.),
por sua vez, entende que arte é o funcionamento correto de algumas produções (ars est recta
ratio aliquorum operum).22 Existem também outras duas definições de ars, supostamente
cunhadas por Cícero e disseminadas durante a Idade Média, mas que, na prática, não se
13 τέχνη. f. ‹ savoir-faire dans un métier › (métallurgie, par ex.), ‹ métier, technique, art › d’où parfois ‹ ruse,
tromperie › et dans um sens general ‹ manière de faire, moyen › In: Dictionnaire étymologique de la langue
grecque: histoire des mots. Tome III: Λ – Π. Paris: C. Klincksieck, 1974, p. 1112. 14 “Heitor, as reprimendas que tu me diriges são justas. Teu coração é tão duro quanto um machado manejado por
um homem que constrói com arte (téchne) um navio”. (In: ARAGÃO, 1988, p. 58) 15 “Sócrates: E marceneiro é todo o que tem arte (habilidade)? Hermógenes: o que tem arte (téchne)”. (In:
MURACHCO, 1998, p. 11) 16 “Nem a arte (téchne) nem a sabedoria são coisa acessível se não se aprende”. (Diels-Kranz II, 157, 16; In: MURACHCO, op. cit., p. 13) 17 “Veio o ourives que tinha em suas mãos a sua forja, os instrumentos de sua arte (téchne), que serviam para bater
o ouro”. (In: ARAGÃO, op. cit., p. 59) 18 “A retórica é a faculdade de ver teoricamente o que, em cada caso, é capaz de gerar persuasão”. (Rh. I, ii,1; In:
ARISTÓTELES, s.t., p. 38) 19 Cf. Rhet. Her. I, 3. 20 Cf. Inst. II, xiv, 5. 21 Cf. Ep. LXV, 3. 22 Cf. Sum. IV, iv, 1.
26
verificam na obra remanescente do orador. A primeira foi atribuída ao gramático Diomedes
(KEIL, 1857, p. 421). Ele imputa a Cícero a definição de ars como organização de preceitos
comprovados que visam a um fim único e útil para a vida (Tullius hoc modo eam definit ars est
perceptionum exercitatarum constructio ad unum exitum utilem uitae pertinentium). O filósofo
Alberto Magno (1200-1280) atribui a Cícero a definição de arte como um conjunto de princípios
cujo objetivo se realiza nas suas obras (Ars enim, ut dicit Tullius, est collectio principiorum ad
eundem finem operis sui tendentium).23
Em primeira análise, a definição de Quintiliano se nos mostra a mais díspar de
todas. Além de demasiado sucinta, ela é deveras simples: tudo aquilo que exige dedicação ou
aprendizado pode ser considerado arte. O mestre não faz menção a funcionamento ou a
manufatura, nem retoma a ideia de encaixe ou ajuste que vimos latente na etimologia da palavra,
ao contrário do que parece ocorrer com as outras três. Duas delas, a de Galeno e a do anônimo
da Retórica a Herênio, citam praeceptio ou praeceptum, que denotam preceito, ensinamento
ou mesmo diretriz, donde se depreende um certo teor prescritivo ou normativo da arte,
confirmado pelo que se segue. Com aparente exceção de Quintiliano, os autores se utilizam de
palavras que designam método, procedimento ou modo de fazer: ratio e systema. Há também a
menção a trabalhos ou a produções, que devem ater-se a determinadas diretrizes para que se
realizem da forma correta. Sêneca é o único que relaciona a arte à natureza, forjando uma
relação de imitação da primeira para com a segunda. Supõe-se que, num esforço por estabelecer
um elo entre o que diz o filósofo e os demais, a natureza dá o correto modo de funcionamento
das coisas que a arte imitará por meio de procedimentos artificiais. Conclui-se dessas definições
que a arte se relaciona à forma correta e segura de realizar determinadas tarefas.
No que concerne às definições atribuídas a Cícero, nota-se a permanência do teor
prescritivo e normativo representado no uso das palavras perceptio e principium, mas também
surge uma ênfase na ideia de conjunto ou sistema organizado, presente nas palavras collectio e
constructio, voltado à realização de uma tarefa útil para a vida. Essa ideia de conjunto de regras
faz com que muitos autores deem aos seus compêndios de retórica o nome de Ars Rhetorica,
fato mencionado por Quintiliano.24 Por esse motivo, muitos compêndios gramaticais ganharam
o nome Ars Grammatica, por guardarem os preceitos e princípios do bem falar.25 A utilidade
23 Cf. Eth. I, vi, 10. 24 “É evidente que nenhum dos autores que nos transmitiram as regras do discurso duvidou disto. Quem o testemunha são os próprios títulos de seus livros: Arte Retórica” (Quod quidem adeo ex iis qui praecepta dicendi
tradiderunt nemo dubitauit ut etiam ipsis librorum titulis testatum sit scriptos eos de arte rhetorica)”. (Inst. II,
xvii, 2; In: FÁLCON, 2015, p. 70) 25 Cf. Ars Grammatica, de Donato; Ars Grammatica, de Diomedes.
27
também parece ter entrado em jogo, vinculando ars ao alcance de um objetivo, introduzindo
um aspecto de profissão, de ofício rotineiro e processual, pois essas definições parecem
recuperar aquela acepção primitiva de ajuste de algo externo à própria arte. A arte, com efeito,
deve apresentar-se de maneira organizada e fechada em seus preceitos e princípios, que regulam
a produção de um objeto externo a si bem feito e bem ajustado, algo muito próximo da noção
de téchne que há pouco vimos.
Cumpre-nos dizer que as definições vistas são demasiado técnicas, pois foram
extraídas, senão todas, a maioria, de tratados retórico-filosóficos, e, por terem sido registradas
nesses contextos, é natural que seus autores primassem pela precisão, pela linguagem e por um
certo grau de abstração nos seus enunciados. Mas encontramos registros, digamos, fora do eixo
filosófico, que parecem expandir o conceito de ars adentrando em contextos menos técnicos e
mostrando que o termo também pode designar, de maneira menos precisa e rigorosa, profissão,
ofício, atividade, trabalho.26 Por conseguinte, pode-se dizer que ars é um vocábulo polissêmico
e que sua tradução para o português irá variar de acordo com o contexto.
Porém, é hora de introduzirmos alguns pontos importantes que nos levarão a
compreender não apenas os seus pontos de contato com a retórica e com a poesia como a
proposta de interpretação do summus orator em De oratore I e do summus poeta em Pro Archia.
É hora, então, de introduzir as noções de natureza, teoria e prática que aventamos na seção
anterior. Em primeiro lugar, para explicarmos agora não o que é a arte, mas sobre quais
elementos ela se fundamenta, precisamos utilizar um jargão técnico. E, como ocorre em outras
formas de conhecimento, a compreensão do jargão revela muito do modo de proceder dos que
a elas se dedicam. Sendo assim, começamos a exposição frisando que parece haver uma
discordância a respeito da origem das artes: há quem diga que é resultado da experiência
humana, expressa em latim como usus ou exercitatio, assim como há quem diga que é fruto da
pesquisa e da meditação a respeito da natureza dos homens, em latim, natura e ingenium. Não
compete a este trabalho aprofundar-se nessas reflexões, tampouco escolher entre ambas. Cabe
a nós, antes, dizer que as duas preveem que, no princípio, quando ainda não existia ars, havia
indivíduos vocacionados a determinadas tarefas, mas desprovidos de quaisquer ars ou uia
(técnica e método) abalizada e atestada acerca dessas tarefas, guiados apenas pelo próprio
ingenium (engenho) e por alguma especulação sobre os resultados obtidos na prática. A ciência
26 Ars, ~tis. f. 7 a A profession, art, craft, trade, occupation. b a business, task, pursuit; a type of activity, exercise.
In: Oxford Latin Dictionary. Oxford: The Clarendon Press, 1968, p. 175.
28
e a arte chegam aos homens através da experiência, pois a arte é feita das muitas observações
experimentais que geram um juízo universal sobre casos semelhantes.27 Esse teria sido o caso
dos oradores romanos que atuavam antes da chegada dos mestres de retórica gregos. Crasso diz
que os cidadãos desenvolveram a eloquência tanto quanto a especulação e o talento lhes
permitiu, de modo que a produção oratória, certamente, poderia ser considerada casual ou
mesmo experimental.28 Em Brut. 46, Cícero diz, apoiado em Aristóteles, que, depois da
expulsão dos tiranos da Sicília, após longo período de despotismo, os siracusanos, perspicazes
e nascidos para a controvérsia, buscaram requerer nos tribunais a posse de suas propriedades
particulares.29 Os relatos do que aconteceu à retórica em Roma e em Siracusa fornecem uma
hipótese para a questão da origem das artes. No princípio, a natura e o ingenium dos homens
orientam os modos de executar determinadas tarefas que constituirão uma forma de experiência
(exercitatio, consuetudo, usus), da qual serão extraídos os preceitos para a criação de um
método, uma técnica. Neste sentido, de fato, a arte nasceu da observação da experiência
humana.
A natural superioridade de uns sobre os outros, na prática cotidiana dos afazeres,
fez com que se verificassem expedientes mais ou menos eficientes. Essas características foram
associadas a uma natureza (natura) propícia à tarefa, e o trabalho desses homens foi sendo
convertido em identidade ideal, donde os primeiros tratadistas extraíram os primeiros esboços
dos seus manuais (CHIAPPETTA, 2001, p. 48). A partir daí, foi-se criando uma espécie de
sistematização dessa natureza propícia, como expôs o personagem Sócrates,30 para garantir a
todos um método, no sentido etimológico mesmo da palavra, uma via por onde seguir, seguro,
27 “A experiência [empeiría] parece, de certo modo, semelhante à ciência [epistéme] e à arte [téchne], mas a ciência
e a arte chegam aos homens através da experiência. Pois a experiência faz a arte, como disse Polo, e a inexperiência,
o acaso. A arte nasce quando de muitas observações experimentais surge uma noção universal sobre os casos
semelhantes”. (Metaph. I, 981a, 3-6; In: VALLANDRO, 1969, p. 36-7) 28 Vide nota 8. 29 “Assim, Aristóteles afirma que depois da expulsão dos tiranos da Sicília, as propriedades particulares, após
longo período de interrupção, passaram a ser reclamadas em tribunal, então pela primeira vez, pois aquela gente
era perspicaz e nascida para a controvérsia, os sicilianos Córax e Tísias redigiram – de fato, antes disso ninguém
costumava discursar com método e técnica, muito embora alguns o fizessem com zelo e precisão” (Itaque, ait
Aristoteles, cum sublatis in Sicilia tyrannis res priuatae longo interuallo iudiciis repeterentur, tum primum, quod esset acuta illa gens et controuersiae nata, artem et praecepta Siculos Coracem et Tisiam conscripsisse—nam
antea neminem solitum uia nec arte, sed accurate tamen et descripte plerosque dicere). (Brut. 46; In: ALMEIDA,
2014, p. 73) 30 “Todas as artes importantes devem basear-se na pesquisa e na meditação da Natureza, pois é daí que parece
advir-lhes essa sublimidade de pensamento que nelas se encontra, ao lado da perfeição. Péricles assim procedeu,
juntando aos seus dons naturais os dons acima apontados. Teve a grande felicidade de conhecer Anaxágoras, um
homem deste quilate, pois se dedicou à investigação da física, estudou a natureza do espírito e a carência de espírito
(...) e transplantou-as para a sua arte retórica, do que tirou grande proveito”. (Phdr. 270a; In: PLATÃO, 2000, p.
114-5)
29
no sentido de tentar reduzir ações do acaso, a fim de atingir um objetivo; no caso da retórica, a
persuasão. É em meio a essa reflexão que surge a ideia de que todas as artes importantes são
fruto da pesquisa e da meditação a respeito da natureza, algo não por acaso presente em Orat.
183. O texto ciceroniano diz que a notação e a observação da natureza originaram a arte (notatio
naturae, et animaduersio peperit artem), afirmação também muito próxima, em certo sentido,
daquela cunhada por Sêneca. Quase ilustrando isso, Lúcio Crasso, em explicação sobre a arte
retórica em De orat. I, 143-4 (eloquentiam ex artificio, sed artificium ex eloquentia natum) diz
que a eloquência artificial da ars originou-se da sistematização da eloquência espontânea de
nomes naturalmente eloquentes e que, por isso, pode concluir com segurança que foi a
eloquência (naturalis) a genitora da técnica, a artificialidade oratória, assim como o som existia
antes de ser criada a música, exemplo extraído de Inst. II, xvii, 10.31 Por esse viés, não há
motivos para discordar de que a arte é fruto observação da natureza. De todo modo, a técnica
traz uma sistematização (ratio), que surge, inicialmente, como resultado da experiência de
muitos casos individuais ou como generalização, que assume a forma de praecepta (preceitos),
principia (princípios), regulae (regras) e uiae (métodos) (HANSEN, 2013, p. 31). Isto não
significa que não haja alguém experiente e engenhoso embora desprovido de conhecimento,
mas a técnica fornece um tipo de conhecimento oriundo da experiência e do engenho que é
ensinável, formando um corpus de procedimentos transmissíveis em latim, uma ars, uma
doctrina, uma ratio, um studium ou uma scientia (ibid., p.31). Quintiliano aborda a questão da
origem da arte com a mesma opinião aparentemente do Sócrates platônico e de Cícero. Ele cita
o exemplo da medicina, também citada pelo mestre no Fedro, que teve seus procedimentos
todos baseados no correto funcionamento da saúde natural do corpo,32 uma ciência inteira criada
e dedicada à tentativa de reprodução e imitação artificial do estado natural de saúde. É nesse
contexto que surge a associação de ars à imitatio (imitação) da natureza, porque a natureza não
apenas preexiste à arte, mas, sobretudo, influencia diretamente as suas criações e as regras.
31 “Basta recordar-nos que tudo o que a arte torna perfeito tem sua origem na natureza. Caso contrário, sumamos
com a medicina, que foi descoberta pela observação de quais coisas conduziam à saúde, quais à doença. De acordo
com alguns, ela é inteiramente baseada na experiência: alguém já tinha atado uma ferida antes que a arte existisse, e aliviado uma febre por meio de descanso e jejum; não porque tenha visto qualquer motivo teórico para isso, mas
porque a saúde mesma do paciente o exigia. Tampouco permitamos que a construção seja uma arte: homens
primitivos construíam sem arte suas casas” (Illud enim admonere satis est, omnia quae ars consummauerit a natura
initia duxisse: aut tollatur medicina, quae ex obseruatione salubrium atque his contrariorum reperta est et, ut
quibusdam placet, tota constat experimentis [nam et uulnus deligauit aliquis antequam haec ars esset, et febrem
quiete et abstinentia, non quia rationem uidebat, sed quia id ualetudo ipsa coegerat, mitigauit], nec fabrica sit
ars [casas enim primi illi sine arte fecerunt], nec musica [cantatur ac saltatur per omnis gentes aliquo modo])”.
(Inst. II, xvii, 9; In: FÁLCON, 2015, p. 71) 32 Vide nota anterior.
30
Mas essas sistematizações parecem ter surgido de duas demandas distintas. A
primeira é do indivíduo dotado de natureza apta (ingeniosus), que poderia eventualmente não
discursar bem por diversos motivos, como, por exemplo, por ter começado por onde, na
verdade, teria de ter concluído, ou por ter elencado argumentos contraditórios, ou mesmo por
não ter memorizado aquilo que discursaria etc.33 Seus erros decorreriam do desconhecimento
completo dos procedimentos que devem reger a composição de um discurso. Para que o acaso
não ocorresse, criou-se o método. A segunda seria a do indivíduo não dotado, que, embora
limitado pela sua própria condição, seja por não ter uma boa memória, um boa argumentação
ou mesmo uma boa dicção naturais, poderia ainda produzir um discurso apropriado a ponto de
superar alguém talentoso, mas desconhecedor dos procedimentos técnicos.34 Com o objetivo de
minimizar as limitações inerentes à sua própria natureza, sejam elas de caráter físico ou
psicológico, criou-se o método. Surgem, com efeito, inúmeras artes, isto é, manuais de como
realizar determinadas tarefas da forma correta, e.g., ars grammatica (arte do falar e do escrever
corretamente), ars rhetorica (arte do discursar), ars mnemonica (arte da memória), ars poetica
(arte poética). Retórica e Gramática formaram, juntamente com outras importantes áreas do
conhecimento, as famosas sete artes liberais: dialética (arte de distinguir o verdadeiro do falso),
aritmética (arte dos números), música (arte do som e do canto), geometria (arte das medidas e
dimensões da terra) e astronomia (arte da lei dos astros), todos sistemas fechados. Cada um com
a sua scientia (conhecimento), denominando um ramo de estudo (studium) específico e gerando
um conhecimento (doctrina). Eram verdadeiros compêndios de princípios e de regras
33 “Disse então Antônio: - Muitas vezes notei, Crasso, que, como dizes, não só tu, como os demais grandes oradores
(embora, em minha opinião, jamais tenha havido alguém semelhante a ti), mostravam-se agitados no exórdio de
seus discursos. Ao examinar a razão disso, qual era o motivo de, quanto maior a habilidade de um orador, maior
ser o seu medo, encontrava estas duas causas: a primeira é que aqueles que aprenderam com a prática e a natureza
percebem que, por vezes, mesmo no caso dos maiores oradores, o resultado do discurso pode não sair de acordo
com o previsto; desse modo, não sem motivo, temiam sempre que discursavam, que acontecesse naquela exata
ocasião o que a qualquer momento podia acontecer” (Tum Antonius "saepe, ut dicis," inquit "animaduerti, Crasse,
et te et ceteros summos oratores, quamquam tibi par mea sententia nemo umquam fuit, in dicendi exordio
permoueri; cuius quidem rei cum causam quaererem, quidnam esset cur, ut in quoque oratore plurimum esset, ita
maxime is pertimesceret, has causas inueniebam duas: unam, quod intellegerent ei, quos usus ac natura docuisset,
non numquam summis oratoribus non satis ex sententia euentum dicendi procedere). (De orat. I, 122-3) 34 “E não faço tais afirmações com a intenção de afastar completamente do estudo da oratória os jovens que acaso
não tenham vocação para ela. De fato, quem não nota que o próprio fato de ser medianamente versado na oratória
(como quer que ela fosse) conferiu grande respeito a Célio, meu contemporâneo, mesmo sendo um homem novo?
Quem não percebe que o vosso contemporâneo, Q. Vário, homem grosseiro e repugnante, obteve grande
reconhecimento na cidade devido àquela mesma capacidade, qualquer que tenha sido?” (Neque haec in eam
sententiam disputo, ut homines adulescentis, si quid naturale forte non habeant, omnino a dicendi studio
deterream: quis enim non uidet C. Coelio, aequali meo, magno honori fuisse, homini nouo, illam ipsam, quamcumque adsequi potuerat, in dicendo mediocritatem?). (De orat. I, 117) “Mesmo aqueles a quem tais
elementos foram concedidos em menor proporção pela natureza podem conseguir fazer uso dos elementos que tem
de maneira moderada, judiciosa e que não seja inadequada” (Quae quibus a natura minora data sunt, tamen illud
adsequi possunt, ut eis, quae habent, modice et scienter utantur et ut ne dedeceat). (De orat. I, 132)
31
destinados à transmissão dos conhecimentos práticos adquiridos através da experiência e da
observação dos homens. Em razão disso, esses métodos possuíam um forte teor injuntivo de
modelar a atuação dos que a eles se dedicavam e transmitir a maneira correta de trabalhar para
chegar até um fim, como se pode ver nas artes rhetoricae. Esses manuais de retórica seguiam
o protocolo de ter, na estrutura, uma divisão rígida e pouco mutável; na linguagem, um tom
doutrinal e irredutível, como podemos constatar na Rhetorica ad Herennium, praxe quebrada,
no campo da retórica, apenas com a publicação de diálogo retórico De oratore, de Cícero
(CICERONE, 1992, p. 15-8). É o momento em que definitivamente atividades como retórica,
poesia e medicina deixam de ser “instintivas” e se tornam campos de conhecimento
estabelecidos.
Encaminhamo-nos, com isso, ao aspecto transmissível. As artes, na medida em que
são repletas de regras e princípios, precisam de um magister (mestre) que as domine e as ensine.
No caso da gramática, será o grammaticus; no da retórica, será o rhetor. Uma das tarefas
referentes a esse ofício é a de identificar em cada indivíduo o tipo de ingenium que lhe pertence
e a ele adaptar os seus ensinamentos. Hansen (2013, p. 34-5) lista três espécies de engenho: o
natural, o furioso e o exercitado. Diz o estudioso que o engenho natural aplica a técnica com a
perspicácia e a versatilidade do talento espontâneo. Sua perspicácia associa-se à dialética e é
faculdade de penetrar nas matérias e dividi-las pela análise, apresentando definições dos
conceitos que a constituem, e sua versatilidade tem a memória das palavras da elocutio e, com
frequência, encontra as palavras adequadas para transformar as definições dos conceitos em
argumentos proporcionados ao gênero do discurso. O outro gênero de engenho, o melancólico,
segundo os gregos, era afetado pela bile negra ou melancolia, era furor, na tradução que Cícero
faz do grego melankholía.35 Obra de um autor furiosus pode aparecer como átechnos, sem
técnica, para os que desconhecem sua arte, pois o tipo furioso produz imagens que não seguem
regra do juízo. Por isso, muitas vezes é conveniente que o orador finja a fúria, fingindo o tipo
furioso na actio ou dramatização do discurso, pois o orador que parece apaixonado,
entusiasmado e mesmo fora de si é mais persuasivo que o orador frio (HANSEN, 2013, p. 36).
O terceiro apresentado por Hansen seria o engenho exercitado (exercitatus). Em tese, ele
reproduziria escolarmente os modelos de sua arte devido aos exercícios da imitação chamados
35 “Alguns gregos famosos desejam distinguir, mas carecem de um termo: eles chamam melankholía o que
conhecemos por furor. A mente, porém, é como que movida pela bile negra e algumas raras vezes por uma ira violenta ou um temor ou uma dor” (Graeci uolunt illi quidem, sed parum ualent uerbo: quem nos furorem,
μελαγχολίαν illi uocant; quasi uero atra bili solum mens ac non saepe uel iracundia grauiore uel timore uel dolore
moueatur). (Tusc. III, iii, 5, 11; Tradução de nossa lavra)
32
meditationes (preparações). O estudioso fornece como exemplo Quintiliano, que propõe, como
meditatio e exercitatio (exercício) que os oradores leiam e conheçam de cor a enarratio
auctorum ou os elencha auctorum, os elencos dos autores que são consagrados como
autoridades pelo costume, fazendo exercícios de imitação deles. No entanto, exercitado, como
o próprio nome diz, parece-nos qualquer engenho submetido a um processo de exercício, seja
ele da espécie que for, de modo a restarem apenas dois gêneros de ingenium. Porque, de todo
modo, os engenhos desprovidos da técnica tendem a se tornar atechnoi abandonados à própria
sorte, como é o caso de algumas figuras que, por força da inspiração desmedida, gritam a todo
instante, movimentam-se demasiado, arfam, gesticulam e balançam a cabeça com violência
excessiva.36 Deve-se ter em mente ainda que a arte serve a todos, como mostra Quintiliano ao
lembrar o tratamento dessemelhante que Isócrates dispensou a Éforo e Teopompo: o primeiro
precisava de arreios; o segundo, de esporas. Sendo assim, ele diz que cabe ao mestre de retórica
reconhecer qual o tratamento e o gênero discursivo mais adequados a cada engenho.37 A
natureza do discípulo, em resumo, tanto quanto a sagacidade do mestre para detectá-la, tornam-
se elementos de suma relevância para a transmissão da ars, na medida em que decidem a ênfase
e o gênero a serem privilegiados no processo de educação do indivíduo.38
36 “Porém, esses oradores reivindicam uma reputação de oratória “forte” por causa da sua performance. Gritam a
todo momento e mugem tudo ‘com a mão erguida’, como costumam dizer, correndo muito para cima e para baixo,
arfando, gesticulando violentamente e sacudindo suas cabeças como loucos” (Verum hi pronuntiatione quoque
famam dicendi fortius quaerunt; nam et clamant ubique et omnia leuata, ut ipsi uocant, manu emugiunt, multo
discursu anhelitu, iactatione, gestus, motu capitis furentes. Iam collidere manus, terrae pedem incutere, femur
pectus frontem caedere, mire ad pullatum circulum facit). (Inst. II, xii, 9; In: FÁLCON, 2015, p. 56) 37 “Pessoalmente, não combato a natureza; em minha opinião, não se deve, de fato, renunciar às boas inclinações
inatas, se há algumas, mas desenvolver e estimular aquelas que ficam para trás. Assim Isócrates, o mais brilhante dos mestres, cujas obras testemunham sua perfeição oratória como o juízo de seus discípulos atesta seu valor
pedagógico, quando julgava Éforo e Teopompo, dizendo que um precisava de freios, e o outro de esporas,
porventura esperava que seus ensinamentos deviam favorecer a indolência de um, que era um pouco lento, e a
precipitação do outro, que praticamente corria de cabeça baixa?” (Neque ego contra naturam pugno: non enim
deserendum id bonum, si quod ingenitum est, existimo, sed augendum, addendumque quod cessat. An uero
clarissimus ille praeceptor Isocrates, quem non magis libri bene dixisse quam discipuli bene docuisse testantur,
cum de Ephoro atque Theopompo sic iudicaret ut alteri frenis, alteri calcaribus opus esse diceret, aut in illo
lentiore tarditatem aut in illo paene praecipiti concitationem adiuuandam docendo existimauit, cum alterum
alterius natura miscendum arbitraretur?). (Inst. II, viii, 11-3; In: FÁLCON, 2015, p. 50) 38 “Por isso a maioria considerou útil que se educasse cada um de modo a favorecer, por uma boa educação, as
propriedades de sua natureza, e a auxiliar preferencialmente as tendências dos diversos talentos. Como quando um
experiente mestre de ginástica, tendo entrado num ginásio cheio de crianças, estuda por toda sorte de testes o seu corpo e o seu espírito e, assim, acaba por discernir a que tipo de prova deve-se preparar cada um deles; do mesmo
modo o professor de eloquência, depois de sondar sagazmente o gosto dos alunos, seja ele por um estilo serrado e
limado, seja por um vivo, grave, doce, àspero, brilhante, urbano, deverá acomodar-se a essas diversas tendências,
a fim de que cada um seja direcionado ao gênero em que mais se destaca. Assim a natureza, auxiliada pelo cuidado,
fortificar-se-á; aquele, ao contrário, que for conduzido em sentidos diferentes, por um lado não poderá ser bem-
sucedido em campos para os quais possui menos aptidão; e por outro, abandonando a atividade para a qual parecia
nascido, ele enfraquece seu rendimento” (Vtile deinde plerisque uisum est ita quemque instituere ut propria
naturae bona doctrina fouerent, et in id potissimum ingenia quo tenderent adiuuarentur: ut si quis palaestrae
peritus, cum in aliquod plenum pueris gymnasium uenerit, expertus eorum omni modo corpus animumque
33
Por esse ângulo, surge um outro aspecto dessa transmissão: a educação, a formação.
A ars se revela uma educação na medida em que exige um longo período de aprendizado e de
extenuantes sessões de exercício, tudo isso sob a batuta de um mestre que oriente esse processo.
Talvez o maior exemplo dessa dura faceta formativa da ars seja a extensa Institutio oratoria de
Marco Fábio Quintiliano, publicada por volta de 95 a.C. A Institutio é uma obra composta de
doze livros que tratam de todas as minúcias referentes à educação oratória. Os livros, na
verdade, descrevem um longo percurso, que vai do berço à aposentadoria, se não mesmo até o
túmulo, nas palavras de Kennedy (1962, p. 132), num esforço hercúleo de descrever ou
prescrever os ditames da educação do orador perfeito, os quais, visto amiúde esgarçarem os
limites do conhecimento oratório, chegam a adquirir feições humanistas. Esse viés de educação
também pode ser visto, embora bem mais conciso, no livro I das Etymologiae, de Isidoro de
Sevilha, em que podemos encontrar uma série de preceitos sobre gramática, texto de estrutura
tratadística, de conteúdo sistematizado e de preceituário inflexível. No fim das contas, trata-se
de um processo de aquisição da doctrina, outro termo caro às artes, o qual designa o objeto de
conhecimento daquele que ensina (docet), o doctor. Em meio a tudo isso, devia o aluno
demonstrar a sua disciplina, isto é, a qualidade do discipulus, que consiste numa conduta de
busca pela educação, uma disposição mantida durante o treinamento.39 Outra virtude também
demandada do aluno era o chamado studium, ou seja, a assídua e veemente dedicação do
espírito, com grande volúpia, a uma matéria, como filosofia, poesia, geometria e letras (studium
est autem animi assidua et uehementer ad aliquam rem adplicata magna cum uoluptate
occupatio, ut philosophiae, poeticae, geometricae, litterarum).40 Essas virtudes seriam
mobilizadas para o discípulo adquirir o habitus, que pode ser resumido numa perfeição
constante e absoluta adquirida pela dedicação e pela diligência.41
discernat cui quisque certamini praeparandus sit, ita praeceptorem eloquentiae, cum sagaciter fuerit intuitus cuius
ingenium presso limatoque genere dicendi, cuius acri graui dulci aspero nitido urbano maxime gaudeat, ita se
commodaturum singulis ut in eo quo quisque eminet prouehatur, quod et adiuta cura natura magis eualescat et
qui in diuersa ducatur neque in iis quibus minus aptus est satis possit efficere et ea in quae natus uidetur deserendo
faciat infirmiora). (Inst. II, viii, 3-5; In: FÁLCON, 2015, p. 49) 39 Disciplina, ~ae. f. 4 a Orderly conduct based on moral training, discipline. b order maintained in a body of
people under command or sim. In: Oxford Latin Dictionary. Oxford: The Clarenton Press, 1968, p. 550. 40 Cf. Inv. 36. 41 “Ora, chamamos de hábito a perfeição constante e absoluta do corpo e do espírito em alguma matéria, como o
aprendizado de alguma técnica ou de certa virtude ou ainda o conhecimento e também uma espécie de simetria
corporal não dada pela natureza, mas adquirida pela dedicação e pela diligência” (Habitum autem [hunc]
appellamus animi aut corporis constantem et absolutam aliqua in re perfectionem, ut uirtutis aut artis alicuius
perceptionem aut quamuis scientiam et item corporis aliquam commoditatem non natura datam, sed studio et
industria partam)”. (Inv. 36; Tradução de nossa autoria)
34
A aplicação prática desse conhecimento, que se denominará, em latim, exercitatio,
mas também, por vezes, usus, se dará no cotidiano do artífice.42 Esses termos dão conta de uma
dimensão prática da ars e representam uma etapa fundamental para que se adquira a excelência
no seu ofício. No ambiente da retórica romana, arte da qual mais se tem notícia, essa aplicação
pode ocorrer tanto no exercício mesmo da função quanto na escola do rétor, pois a palavra
exercitatio deixa essa brecha semântica. A tal respeito, Clark (1977, p. 5) anuncia que esse
elemento da ars se conecta à prática ou ao exercício e que pode ser interpretado por esses dois
vieses. Pode significar aprendizagem por meio de tentativa e erro a exemplo de “alguém que
levanta e cai de uma bicicleta até que, pela prática, se torna capaz de se equilibrar e de ir a
qualquer lugar” (sic), situação que Clark considera mais ou menos pararela à que viviam os
romanos antes da chegada dos sofistas gregos na Urbe. Ainda pode nomear tarefas de sala de
42 “E costumas por vezes discordar de mim neste assunto, porque eu afirmo que a eloquência depende das
realizações dos homens mais instruídos, tu, em contrapartida, julgas que ela deve ser separada do refinamento da
doutrina e confiada a determinado tipo de talento e prática” (solesque non numquam hac de re a me in
disputationibus nostris dissentire, quod ego eruditissimorum hominum artibus eloquentiam contineri statuam, tu
autem illam ab elegantia doctrinae segregandam putes et in quodam ingeni atque exercitationis genere ponendam). (De orat. I, 5) “Comecei, então: - Pois bem, fazer o elogio da eloquência e relevar quão grande é seu
poder e quanto prestígio ela confere àqueles que a alcançaram não é nosso propósito aqui nem é algo necessário.
Mas isto eu poderia assegurar sem nenhuma hesitação: quer ela seja produzida por alguma arte, quer pelo
treinamento constante, quer pela disposição natural, não há nada no mundo mais difícil” (Hic ego: laudare igitur
eloquentiam et quanta uis sit eius expromere quantamque eis, qui sint eam consecuti, dignitatem afferat, neque
propositum nobis est hoc loco neque necessarium. hoc uero sine ulla dubitatione confirmauerim, siue illa arte
pariatur aliqua siue exercitatione quadam siue natura, rem unam esse omnium difficillumam). (Brut. 25; In:
ALMEIDA, 2014, p. 66) “São outros auxílios nascidos com cada um: a voz, os pulmões resistentes ao trabalho,
saúde, a perseverança, a beleza que, se foram dados pela natureza, podem ser ampliados pela técnica, mas, por
vezes, faltam de modo tal que arruínam os préstimos do talento e do empenho, assim como esses mesmos
préstimos, sem um mestre competente, sem o estudo perseverante, sem a prática contínua e abundante da leitura, da escrita, por si próprias não encontram serventia” (Sunt et alia ingenita cuique adiumenta, uox, latus patiens
laboris, ualetudo, constantia, decor, quae si modica optigerunt, possunt ratione ampliari, sed nonnumquam ita
desunt ut bona etiam ingenii studiique corrumpant: sicut haec ipsa sine doctore perito, studio pertinaci, scribendi
legendi dicendi multa et continua exercitatione per se nihil prosunt). (Inst. I, pro., xxvii; Tradução de nossa lavra)
“Tudo isso poderemos alcançar por três meios: arte, imitação e exercício. Arte é o preceito dá método e
sistematização ao discurso. Imitação é o que nos estimula, com método cuidadoso, a que logremos ser semelhantes
a outros no dizer. Exercício é a prática assídua e o costume de discursar” (Haec omnia tribus rebus adsequi
poterimus: arte, imitatione, exercitatione. Ars est praeceptio, quae dat certam uiam rationemque dicendi. Imitatio
est qua inpellimur cum diligenti ratione ut aliquorum similes in dicendo ualeamus esse. Exercitatio est assiduus
usus consuetudoque dicendi). (Rhet. Her. I, 3; In: CÍCERO, 2005, p. 55) “Portanto, o orador é um homem justo,
um proficiente no discursar. Um homem justo consiste de natureza, caráter e instrução. Um indivíduo proficiente
no discursar caracteriza-se por ter uma eloquência artificial, que consta de cinco partes: invenção, disposição, elocução, memória e pronunciação; com o dever de persuadir sobre algo. A proficiência no discursar é obtida por
meio de três coisas: natureza, teoria e prática. A natureza consiste no talento, a teoria no conhecimento, a prática
na assiduidade. Pois é isso que se espera não somente do orador, mas de qualquer artífice que produza algo”
(Orator est igitur uir bonus, dicendi peritus. Vir bonus consistit natura, moribus, artibus. Dicendi peritus consistit
artificiosa eloquentia, quae constat partibus quinque: inuentione, dispositione, elocutione, memoria,
pronuntiatione, et fine officii, quod est aliquid persuadere. Ipsa autem peritia dicendi in tribus rebus consistit:
natura, doctrina, usu. Natura ingenio, doctrina scientia, usus adsiduitate. Haec sunt enim quae non solum in
oratore, sed in unoquoque homine artifice expectantur, ut aliquid efficiat). (Etym. II, iii, 2; Tradução de nossa
lavra)
35
aula específicas, requisitadas pelo mestre e desempenhadas com grande esforço pelo discípulo.
Cícero confirma a primeira possibilidade de entendimento quando diz que a eloquência romana
não tinha qualquer sistematização ou método, mas tinha usus e consuetudo, isto é, um certo
costume e uma tradição de anos e anos de práticas oratórias frequentes, as quais, mais tarde,
tornaram, segundo o arpinate, os oradores romanos melhores que os seus mestres gregos.43 Não
esqueçamos que uma etapa importantíssima da educação oratória praticada em Roma era o
tirocinium fori, período de um ano durante o qual o jovem romano acompanharia um político
experiente e respeitado (MARROU, 1990, p. 364). Ou seja, não há outra coisa senão a
observação da exercitatio, do usus e da consuetudo oratória dos políticos romanos. No outro
espectro, Cícero também apresenta, por meio de Crasso, os exercitia de ordem escolar. Como
veremos, em De orat. I, 149-159, Crasso menciona exercícios de escrita, exercícios de
memória, de voz, de respiração, como meios de potencializar os dotes naturais do orador.
Quintiliano, mestre de retórica, também sinaliza para o grande efeito que o exercício pode gerar
no molde da natureza do indivíduo.44 Em vista de todas essas questões, a exercitatio reafirma
seu pertencimento ao âmbito da educação, na medida em que auxilia a instrução técnica dos
mestres no aprimoramento do talento do discípulo.
Ao passo que a ars se converte numa educação, como no caso da retórica, surgem
as reflexões sobre esse novo traço. Surgem, portanto, obras com esse viés reflexivo, tais como
os discursos Sobre a troca e Contra os sofistas de Isócrates, os diálogos De oratore, Brutus e
Orator e a Institutio oratoria de Quintiliano, obras que não apenas apresentam um ideal de
educação oratória, mas que criticam os rumos tomados pelos oradores e rétores que a
representam na sua época. Aí nascem também algumas teses, dentre as quais uma será
destacada. Ela, não por acaso, está presente nesses seis textos, bem como no Phdr. 270a já
citado, e foi designada por Monteiro Júnior (2016, p. 116) como o trinômio pedagógico. A
tese, exposta em Antid. 180-193 e em C. soph. 9-16, alega que todas as artes se fundamentam
em três elementos: natureza, educação e exercício. A relação entre os elementos se estabelece
de modo que em qualquer que seja a arte, a cada um, discípulo e mestre, cabe uma
responsabilidade: ao primeiro cabe trazer consigo o pré-requisito de seu talento natural (phýsis);
43 Vide nota 8. 44 “Não obstante, deve-se admitir que a educação leva algo embora – como uma lima leva algo de uma superfície
ríspida; ou a pedra de amolar, da lâmina cega; ou o envelhecimento do vinho – mas o que ela leva são os defeitos, e a obra que foi limada pelo letramento é diminuída apenas na medida em que é melhorada” (Nihilo minus
confitendum est etiam detrahere doctrinam aliquid, ut limam rudibus et cotes hebetibus et uino uetustatem, sed
uitia detrahit, atque eo solo minus est quod litterae perpolierunt quo melius). (Inst. II, xii; In: FALCÓN, 2015, p.
56)
36
ao segundo, ser capaz de transmitir a educação (paidéia) a esse discípulo. O elemento
conciliador de ambos é o exercício da experiência prática. A natureza (phýsis) é o mais
importante dos três elementos do trinômio, pois, mesmo sem um grande aprimoramento ou uma
instrução diferenciada dos demais, um indivíduo dotado de qualidades naturais no caso da
retórica – inventar, memorizar, falar desinibido junto ao seu agir prudente – pode vir a tornar-
se um orador de grande envergadura.45
Portanto, há uma cadeia gradativa a ser respeitada e que garantirá o êxito do
discípulo: em primeiro lugar, deve-se ter habilidade natural (phýsis), caracteres inatos, de modo
que não deveriam prometer ensinar técnica oratória a todos (LACERDA, 2011, p. 19). Neste
sentido, é importante frisar que o mestre entendia a natureza como elemento basilar muito em
função de acreditar na superioridade helênica em relação aos demais povos, e, por crer nessa
superioridade, que os gregos estariam mais aptos a aprender a arte oratória (LACERDA, 2011,
p. 15-6). Daí então o indivíduo adquire experiência com a prática de exercícios de oratória,
tendo por modelo a figura do mestre. Essa etapa do processo, portanto, que diz respeito à noção
de empeiría, está muito ligada à imitação e à repetição, que serão responsáveis por aprimorar a
natureza física do aluno (LACERDA, 2011, p. 17). Trata-se do segundo elemento na escala de
importância no pensamento de Isócrates. Por fim, há o estágio da paidéia, ou da educação, em
45 “Digo-lhes que quem pretende ser proeminente seja nos discursos, nas ações, ou nas demais atividades, deve,
antes de tudo, ser bem-dotado por natureza para realizar aquilo para o qual foram designados; em seguida, ser
educado e adquirir o conhecimento de cada assunto; por fim, dedicar-se e exercitar o uso e a experiência prática
daquilo que foi aprendido. Sob essas condições, pois, alcança-se a perfeição em todas as atividades, destacando-
se em muito dos demais. Cada um deles, mestres e aprendizes, tem uma responsabilidade em particular: aos aprendizes, cabe trazerem consigo o pré-requisito de seu talento natural; aos mestres, por sua vez, serem capazes
de educar discípulos de tal envergadura. O que há em comum entre ambos, porém, é o exercício da experiência
prática. Mestres, pois, devem orientar atentamente seus aprendizes; estes, por sua vez, seguir com rigidez as
orientações. Isso vale para todas as artes. Todavia, se alguém, ignorando as demais, me perguntasse qual desses
pré-requisitos é o mais eficaz na educação através dos discursos, eu responderia que o talento natural é insuperável
e se destaca muito mais do que os outros. Pois quem possui a alma assim dotada é capaz de inventar, aprender,
trabalhar, e memorizar; a voz a dicção são tão claras que, não somente pelas palavras, mas também pelo boa
disposição delas, é capaz de persuadir os ouvintes; além de ser ousado, não como sinal de falta de vergonha, mas
porque prepara a alma com prudência para que tenha tanta confiança quando discursa perante todos os seus
concidadãos quanto quando raciocinia consigo próprio – quem não sabe que, ainda que tal sujeito não receba uma
educação esmerada, mas geral e comum a todos, poderia ser um orador de tamanha envergadura que não sei se já
houve alguém assim entre os gregos? Sabemos, aliás, que aqueles que não possuem talento natural, mas demonstram excelência em experiência e dedicação, superam não somente a si próprios como também aqueles que
são naturalmente talentosos, mas negligenciaram demais seus talentos respectivos talentos. Por conseguinte, cada
um desses fatores poderia tornar um sujeito habilidoso em discursos e ações, porém ambos, quando estão presentes
na mesma pessoa, produzem um homem insuperável pelos demais. Isso é, portanto, aquilo que penso sobre talento
natural e experiência prática. Sobre a educação, todavia, não possa repetir o mesmo argumento: seu poder não é
igual nem mesmo semelhante aos anteriores. Pois, se alguém ouvisse até o fim todas as lições sobre os discursos
e as examinasse com maior rigor do que os demais, poderia, quiçá, tornar-se um compositor de discursos mais
elegante do que a maioria, mas, se fosse colocado diante de multidão, e lhe faltasse somente uma coisa, a ousadia,,
não seria nem mesmo uma única palavra” (Antid. 187-192; In: LACERDA, p. 184)
37
Isócrates. Seu papel restringe-se a dar direcionamentos àqueles que já cumpriram os requisitos
da natureza e que ainda passam pelo processo de experiência.46 Ela não possui o poder de mudar
o patamar de qualidade da natureza a ponto de transformar um indivíduo sem o menor talento
numa figura de relevância na sua arte. Ela entra em jogo apenas quando o mestre precisa dar
sentido aos esforços empreendidos pelos discípulos.
Muito do que sabemos a respeito dessa ideia foi-nos legado através da Educação
das crianças de Plutarco, autor do séc. I d.C. Nesse texto, o autor diz que as artes e ciências
seguem a mesma linha da virtude, isto é, exigem a congregação de três elementos, natureza
(phýsis), razão (lógos) e costume (éthos). Afirma que a natureza sem instrução é cega, do
mesmo modo que a aprendizagem separada da natureza é insuficiente e que o exercício
separado das duas coisas não produz resultados. A educação das crianças, para ele, é
comparável à agricultura. Tal como para a agricultura é necessário, em primeiro lugar, haver
uma terra fértil e depois um agricultor habilitado e sementes adequadas, assim também a
natureza é semelhante à terra, o educador ao agricultor e os ensinamentos e os preceitos à
semente.47 Jaeger (1995, p. 364) e Pinheiro (PLUTARCO, 2008, p. 12) concordam em dizer
que Plutarco, ao utilizar essa metáfora, deixa entrever uma longa lista de filósofos que alegavam
o mesmo, de modo que se torna possível encontrar ecos de autores importantes. É importante
dizer que, segundo Shorey (1909, p. 190-1), essa metáfora, nesses mesmos moldes, foi adotada,
sobretudo, por sofistas e rétores, em protrépticos e apologias, para defenderem sua atividade de
mal-entendidos. Eles tinham, primeiro, de provar a pertinência de seu trabalho aos
conservadores e incrédulos que os questionavam no sentido de haver artistas não educados nas
suas respectivas artes, mas que superavam os entendidos nelas, e em segundo lugar, os
46 “No entanto se é preciso não somente acusar os outros, mas também expor a minha própria reflexão, creio que
todos os homens sensatos concordariam comigo que muitos dos que se dedicaram à filosofia continuaram sendo
homens comuns, ao passo que alguns outros, mesmo sem jamais terem convivido com os sofistas, tornaram-se
prodigiosos no discurso e na prática política. Pois o poder dos discursos e de todos os outros ofícios surge naqueles
que têm boa natureza e são treinados na experiência, enquanto a educação os torna mais habilidosos e mais
engenhosos na atividade de investigação, pois, quando eles por acaso se encontram errantes em determinadas
situações, ela os ensina a captá-las de prontidão; por outro lado os que têm uma natureza inferior, ela não poderia
torna-los bons competidores ou compositores de discursos, embora poderia fazê-los progredir e torná-los homens
mais inteligentes em muitas coisas”. (C. soph., 14-5, In: LACERDA, 2011, p. 59-60) 47 “De uma forma geral, aquilo que se diz sobre a virtude é o que costumamos afirmar sobre as artes e as ciências;
para uma conduta justa é necessário congregar, em absoluto, três elementos: a natureza, a razão e o costume ao
exercício. Chamo aprendizagem e costume à prática. Os princípios advêm da natureza e os progressos da educação;
a prática advém dos exercícios e a perfeição resulta de todas estas coisas. Porém, se, por destino, faltasse alguma
destas coisas, a virtude ficaria imperfeita. É que, de fato, natureza sem instrução é cega, do mesmo modo que a
instrução separada da natureza é insuficiente e o exercício separado das duas não produz resultados. Tal como a
agricultura é necessário em primeiro lugar, haver uma terra fértil e depois um agricultor sabedor e sementes
adequadas, assim também a natureza é semelhante à terra, o educador ao agricultor e os ensinamentos e os preceitos
à semente”. (Educ. 2a; In: PLUTARCO, 2008, p. 12)
38
professores podiam resguardar-se das acusações de charlatanismo, ao advertirem que não
prometem coisas impossíveis.
Pinheiro (PLUTARCO, 2008, p. 34) visualiza essa mesma ideia, embora
desprovida da metáfora, no Phdr. 269d, passagem que traz o que ele chama “doutrina dos três
elementos”48 no exemplo de Péricles exposto em Phdr. 270a, já citado. Sócrates responde a
Fedro dizendo, a exemplo do que ocorre ao atleta com a sua excelência, que ele conquistará a
arte retórica se conseguir unir sua phýsis (natureza), unida a meleté (prática) e a epistéme
(conhecimento). Logo em seguida, ele cita o caso de Péricles para confirmar sua tese. Péricles
juntou a pesquisa e a meditação da natureza, elementos nos quais baseia as artes nos seus dons
naturais para aplicá-los no exercício da sua profissão política. Porque, do contrário, isto é,
guiando a sua prática, segundo elemento, apenas pelos dons naturais, o primeiro seguiria como
um cego desprovido de arte e método; o terceiro, que tornasse visível o caráter do verdadeiro
objeto da sua profissão retórica, a alma humana (Phdr. 270d). Ele também aponta essa doutrina
quando o personagem que dá nome ao diálogo pergunta a Sócrates, em Men. 70a, se a virtude
é coisa que se ensina, que se aprende, ou que se adquire pelo exercício e pela prática, e na
exposição de Protágoras, em Prt. 323d, que diz acreditar que a virtude é adquirida pelo estudo
e pelo exercício, não apenas trazida de berço, o que avaliza a sua atividade de sofista. No fim
de Mênon, Sócrates, juntamente com Ânito, percebe que não há mestres de virtude e que os
homens considerados bons poucas vezes conseguiram transmitir aos seus filhos a sua boa
condição moral (Men. 93a-96d). Em Protágoras, por outro lado, Protágoras afirma que é
opinião corrente entre os atenienses que a virtude pode ser ensinada, haja vista as punições
impostas por eles aos infratores com o intuito de melhorar a sua índole e incutir-lhes a virtude
(323d-324d). Além disso, a virtude é objeto de toda a educação de Atenas, desde a primeira
infância com os pais e a ama até o aprendizado das leis na maturidade (324e-325e). O estudioso
aponta também a presença da doutrina dos três elementos em textos aristotélicos como Política
e Ética a Nicômaco. Em Pol. 1332a, o mestre de Estagira declara que existem três coisas
capazes de produzir bons e virtuosos homens: phýsis (natureza), éthos (hábito) e lógos (razão).
48 Esta será a denominação que adotaremos para designar as reflexões pedagógicas que reconhecem o êxito do
ensino atrelado ao dom natural, seja ele qual for, a toda forma de conhecimento e experiência. Por vezes,
utilizaremos as palavras “teoria” e “prática”, reconhecendo que não traduzem com fidelidade as noções implicadas
em ars, doctrina, scientia, exercitatio, usus e consuetudo, mas porque remetem ao leitor leigo, isto é, não estudioso
de Letras Clássicas ou História Antiga, à organização do ensino contemporâneo, adotado frequentemente em
escolas e universidades, que distingue a aula teórica da aula prática, sendo a primeira um momento de exposição
e aprendizado do conteúdo ministrado pelo professor, e a segunda a aplicação simulada desse conhecimento no
cotidiano laboral.
39
Ele argumenta que, para a virtude, deve nascer homem, não animal, com certas qualidades de
corpo e alma, as quais podem ser melhoradas ou pioradas a depender da natureza dos hábitos
posteriores. Para ele, os outros animais vivem guiados pela natureza e pelo hábito, mas o
homem pode ser guiado pela razão que possui, de modo a colocar esses três elementos em
harmonia.49 Em Eth. Nic. 1179b, vemos a mesma ideia de construção da virtude pela phýsis
(natureza), pelo éthos (hábito) e pelo lógos (razão) ser referida por Aristóteles.50 Pode-se
afirmar, porquanto, que Pinheiro estava certo quanto ao aproveitamento por Plutarco de ideias
antigas referentes à educação dos homens: a tese que vincula o ensino da virtude à natureza, à
educação e ao exercício pôde ser vista nos autores e obras elencados. Inicialmente, no Phdr.
269d de Platão, o contexto de utilização das três noções era a reflexão sobre a aquisição da arte
retórica, depois, foi-se encaminhando à possibilidade de ensino da virtude, pauta trabalhada em
Aristóteles. Em resumo, a despeito de algumas diferenças no uso dos termos, ao final, a questão
do ensino fica vinculada ao talento do discípulo, à prática e à educação teórica, seja ela retórica
ou ética.
O caráter dessas considerações denuncia o contexto de reflexão crítica dos filósofos
sobre o ensino das téchnai em Atenas. Elas se formularam, no contexto grego do séc. V, que
permitiu a proliferação dos tratados técnicos a respeito dos mais diversos temas, como a
botânica, a culinária, a dança e a agricultura, e que permitiu, sobretudo, o crescimento do
movimento sofista que buscava sistematizar o conhecimento reclamado para si, a virtude
política (areté politiké) (JARESKI, 2006, p. 17; CURADO, 2010, p. 27). Em Roma, cerca de
quatro séculos depois, já na época de Cícero (106-44 a.C), autor dos dois textos que serviram
de base para a nossa pesquisa, ocorreu um movimento parecido no que diz respeito à retórica.
Depois que os cidadãos gregos, entre eles, também mestres de retórica, exportaram o seu
conhecimento oratório para Roma devido ao progressivo avanço romano ao sul da península
itálica, até então território grego, sobretudo a partir de 338, ano da conquista do sul italiano,
49 “Ora, alguns pensam que nos tornamos bons por natureza, outros pelo hábito e outros ainda pelo ensino. A
contribuição da natureza evidentemente não depende de nós, mas, em resultado de certas causas divinas, está
presente naqueles que são verdadeiramente afortunados. Quanto à argumentação e ao ensino, suspeitamos de que
não tenham uma influência poderosa em todos os homens, mas é preciso cultivar primeiro a alma do estudioso por
meio de hábitos, tomando-a capaz de nobres aversões, como se prepara a terra que deve nutrir a semente”. (Eth.
Nic. 1179b, 20-25; In: ARISTÓTELES, 1984, p. 232-3) 50 “There are three things which make men good and virtuous: these are nature, habit, reason. In the first place,
everyone must be born a man and not some other animal; in the second place, he must have a certain character,
both of body and soul. But some qualities there is no use in having at birth, for they are altered by habit, and there
are some gifts of nature which may be turned by habit to good or bad. Man has reason, in addition, and man only. Where for nature, habit, reason must be in harmony with one another; [for they do not always agree]; men do
many things against habit and nature, if reason persuades them that they ought. We have already determined what
natures are likely to be most easily moulded by the hands of the legislator. All else is the work of education; we
learn some things by habits and some by instruction”. (Pol. 1332a-b; In: ARISTOTLE, 1885, p. 231)
40
começam a ganhar espaço mestres de retórica romanos (rhetores latini) que traduzem a retórica
grega para o latim e que empreendem uma adaptação do seu sistema educativo para a realidade
latina, criando um fenômeno de disseminação da oratória grega (MARROU, 1990, p. 383-91).
Com a progressiva sistematização da eloquência romana, surge a figura de Cícero, com suas
obras, para questioná-la, assim como ocorreu na Atenas de Platão, Aristóteles e Isócrates. A
questão é que a popularização da retórica em Roma, com o transcorrer dos anos, gerou o que
Chiappetta (2001, p. 54) chama de retorização da sociedade romana, pois toda a crítica e a
produção textual praticada em Roma passou a reportar-se a critérios retóricos de composição e
avaliação. A retórica tornou-se uma privilegiada instância teórica e doutrinal dessa tradição
comum, tornou-se a forma de análise crítica conhecida da Antiguidade, cujo papel era examinar
a maneira pela qual os discursos eram constituídos a fim de obter certos efeitos (CHIAPPETTA,
1997, p. 20). Ela não se preocupava se o objeto de sua investigação era oral ou escrito, poesia
ou filosofia, ficção ou história: seu horizonte era apenas o campo da prática discursiva na
sociedade, como um todo, e seu interesse particular estava em ver tais práticas como formas de
poder e de desempenho (EAGLETON, 1994, p. 221). Segundo Pernot (2000, p. 257), há um
processo pelo qual formas e procedimentos pertencentes ao domínio da retórica são transpostos
para a literatura, e a sistematização retórica, nessas condições, se estende a todas as
composições literárias, incluindo ainda demonstrações filosóficas e tratados científicos. Em
suma, num momento em que não havia um equivalente da atual Teoria da Literatura, a retórica
foi fornecedora de todo o instrumental teórico e vocabular da crítica literária (CHIAPPETTA,
1997, p. 20).
Apontam nessa direção estudos como o de McDill (1933) e sua análise dos
discursos da Eneida X, os comentários concisos de Clarke (1949), as considerações técnicas de
Cícero e Horácio observadas por Fontán (1973), o primeiro capítulo de Achcar (1994), a
tradução e os comentários de Rosado Fernandes à Arte Poética de Horácio (HORÁCIO, 1992)
e a discussão dos aspectos retóricos e filosóficos em Da Silva (2017). São estudos antigos e
recentes que buscam comentar e evidenciar a utilização de expedientes retóricos na produção
poética latina. A própria proposta de Chiappetta (1997) de viabilizar uma interpretação literária
em De officiis e Partitiones oratoriae de Cícero insere-se nessa tentativa de aproximar-nos da
crítica literária retorizada de Cícero e Horácio e desprender-nos da atual Teoria da Literatura.
Mas, como falávamos, o fato de a retórica ter influenciado a análise de inúmeras
artes fez com que também a poesia se “contaminasse” com essa retorização, de modo que
ambas se tornassem como que irmãs. De acordo com Chiappetta (1997, p. 20), em Roma, poesia
41
e oratória eram disciplinas afins que se estendiam por territórios contínuos, e seus autores
compartilhavam das mesmas técnicas e integravam-se numa tradição comum. Neste sentido,
Crasso assevera que o poeta está muito próximo do orador: um pouco mais limitado pelo metro
mais livre, porém, pela licença no uso das palavras, colega e quase irmão nos gêneros de
ornamento e na impossibilidade de abusar da sua copiosidade e da sua habilidade.51 Mais à
frente, ainda nessa linha, a mesma personagem defende que os poetas são diferentes uns dos
outros assim como os oradores, visto que diferem, de acordo com as suas virtudes e as suas
naturezas, quanto aos gêneros utilizados e quanto à sua própria individualidade.52 São
elementos que distanciam da poesia a inspiração sem técnica e que, ao mesmo tempo, a
aproximam da atividade eivada de regras. Tal como a retórica, a poesia constitui-se como ars
na medida em que o poeta deve adequar metro (modus), ritmo (numerus), tom (uerba), gênero
(genus) e assunto (res) (FONTÁN, 1974, p. 209). Etimologicamente, poderíamos pensar no
fazer poético como um ajustar dos elementos da sua obra, o conteúdo, o vocabulário, a métrica
e o elenco num poema, comparando-o ao construtor de carros e casas que ajusta em conjunto
as suas criações com o fim primordial de agradar e, por vezes, de ensinar (ASSUNÇÃO, 2010,
p. 190). Isso quer dizer que, assim como o orador, o poeta se realiza em enunciados possuidores
de uma força capaz de gerar no interlocutor um determinado efeito e que, por conta disso, é
permitido aos falantes de uma língua exercer vários tipos de atos, tais como a ordem, a promessa
e o pedido. Pode-se dizer que eles também permitem o exercício do discurso poético. É preciso
haver uma correspondência entre o tema (res) e o modo de expressão (uerba), isto é, uma
adequação da forma ao conteúdo. O conteúdo elegerá uma forma de expressão que lhe seja
adequada segundo a história, a cultura e os valores de uma sociedade. A forma, em
51 “De fato, o poeta está muito próximo do orador: um pouco mais limitado pelo metro, mais livre, porém, em
virtude da licença no uso das palavras, colega e quase igual nos gêneros de ornamento; certamente quase idênticos
num ponto: não circunscrever ou restringir por quaisquer limites o seu direito, sem que lhes seja permitido vagar
à vontade pelo uso daquela mesma faculdade e copiosidade” (Est enim finitimus oratori poeta, numeris astrictior
paulo, uerborum autem licentia liberior, multis uero ornandi generibus socius ac paene par; in hoc quidem certe
prope idem, nullis ut terminis circumscribat aut definiat ius suum, quo minus ei liceat eadem illa facultate et copia
uagari qua uelit). (De orat. I, 70) 52 “E, em primeiro lugar, é possível notar entre os poetas, que têm um parentesco próximo com os oradores, o quanto Ênio, Pacúvio e Ácio são diferentes uns dos outros, bem como, entre os gregos, Ésquilo, Sófocles,
Eurípides, embora se atribua a todos eles um mérito quase igual num gênero de escrita diferente. Considerai agora
os homens cuja faculdade investigamos e observai que diferença existe entre as inclinações e as naturezas dos
oradores. Isócrates tinha encanto, Lísias, precisão, Hipérides, vivacidade, Ésquines, clamor, Demóstenes, força”
(Atque id primum in poetis cerni licet, quibus est proxima cognatio cum oratoribus: quam sunt inter sese Ennius,
Pacuuius Acciusque dissimiles, quam apud Graecos Aeschylus, Sophocles, Euripides, quamquam omnibus par
paene laus in dissimili scribendi genere tribuitur! Aspicite nunc eos homines atque intuemini, quorum de facultate
quaerimus [quid intersit inter oratorum studia atque naturas]: suauitatem Isocrates, subtilitatem Lysias, acumen
Hyperides, sonitum Aeschines, uim Demosthenes habuit). (De orat. III, 27)
42
contrapartida, fornecerá a esse conteúdo um conjunto de componentes linguísticos, como o
metro, o tom, as figuras e a forma (prosa ou verso), que permitirão ao ouvinte reconhecer aquele
texto como pertencente a um determinado gênero e, com base nas convenções deste, deleitar-
se e instruir-se (Ars P. 320-5; Ars P. 333).53 Essas necessidades poéticas são, na verdade,
oriundas do decorum retórico:
Ao forjarem suas ficções, os poetas observam o decoro quando cada personagem que criam fala e comporta-se em consequência do caráter forjado.
Se conseguem construir personagens decorosas nesse sentido, conseguem (...)
o aplauso para si. Os poetas podem julgar o que convém a cada personagem a partir do caráter que lhe atribuem; manejam uma grande variedade de
caracteres, cada um deles único e determinado; podem até escolher um caráter
perverso e conseguir aplauso, se este agir segundo a natureza dos perversos (CHIAPPETTA, 1997, p. 151).
De uma maneira concisa, considerar a retórica uma arte é também enxergá-la como
uma atividade sistematizada pertinente a um âmbito delimitado e a um objeto específico. Com
efeito, uma arte que se estabelece terá de servir-se de uma série de palavras técnicas para dar
conta das realidades específicas com que pretende lidar, o que acarretará um jargão próprio de
cada uma (LIMA, 2014, p. 82). No caso da arte retórica, o seu vocabulário parece ter sido
adotado na análise da poesia, como se pode ver nas recomendações de Horácio na Epístola aos
Pisões.54 A instituição retórica, no período de Cícero, é que determina a circulação dos
discursos ordenados em geral e os efeitos da comoção e da ficção. Isto significa que o discurso
pode ser o de um orador pronunciando uma defesa em praça pública, de um historiador
escrevendo seus comentários sobre a última guerra, um poeta recitando um elogio a seu protetor
ou um arquiteto descrevendo a planta de uma casa (CHIAPPETTA, 1997, p. 15). Era uma fase
de retorização da poesia na qual os antigos enxergavam a produção do poeta como reposição
de uma identidade ideal, e os críticos julgavam, com base na eloquência, o decoro dessa
reposição (CHIAPPETTA, 2001, p. 48). Assim sendo, torna-se razoável sustentar que uma
figura como Cícero pode ter utilizado elementos da arte retórica numa breve digressão sobre a
natureza da poesia e a condição do poeta.
53 “Comédias há, por vezes, que, embora parcas de elegância, medida e arte, por apresentarem temas atraentes e
caracteres bem delineados agradam mais ao público e o prendem muito mais do que versos sem realidade, ou
harmoniosas bagatelas poéticas” (Interdum speciosa locis morataque recte fabula nullius ueneris, sine pondere et arte, ualdius oblectat populum meliusque moratur quam uersus inopes rerum nugaeque canorae)”. (Ars P. 320-
5; HORÁCIO, 1992, p. 103) “Os poetas ou querem ser úteis ou dar prazer” (Aut prodesse uolunt aut delectare
poetae). (Ars P. 333; HORÁCIO, 1992, p. 105) 54 Vide comentários de Rosado Fernandes à Poética em Horácio (1992).
43
Ora, nesse contexto, há que se lembrar que os futuros poetas tinham a mesma
educação dos futuros oradores e futuros generais, ou seja, a educação oratória. Passavam pela
escola de gramática, em que aprendiam a escrita, o uso, o emprego de sinônimos e figuras no
discurso, bem como as regras de prosódia. Estudavam escritores do passado clássico e
escreviam exercícios elementares em verso e prosa. Passavam para a escola de retórica,
estudavam os discursos famosos e praticamente os tradicionais exercícios retóricos de
declamação (CLARK, 1977, p. 21-2). Isto se confirma ao conferirmos o relato de Ovídio,
contando que frequentou a escola junto de seu irmão, mas que não possuía a veia para as
disputas judiciais, dado que tudo o que escrevia saía em forma de versos por força de sua
inclinação.55 Horácio diz algo nessa linha quando relembra os tempos em que estudava os
versos puros, belos, quase perfeitos de Lívio Andronico sob a tutela do severíssimo (plagosus)
Lúcio Orbílio.56 O efeito imediato dessa prática seria “retorizar” o processo de criação poética
e afastá-lo de qualquer tese pautada na inspiração sem técnica das Musas, conforme, segundo
Crasso, diziam Platão e Demócrito.57 Aliás, Horácio (Ars P. 295 et seq.) entendia que esse
uesanus poeta (poeta inspirado) é o que mais se opõe ao bom poeta, o qual se apoia sobre os
seus dons naturais e sobre a sua técnica poética. A própria ideia de Crasso considerar o poeta
(também o músico e o gramático) um artista de pouca monta, dado que seu ofício e
conhecimento são de fácil identificação se comparado ao orador, já sinaliza um pensamento
técnico sobre a questão.58 Sinaliza também para uma crítica retorizada que encara o poeta como
55 “Desde a infância, fomos educados e, por cuidado de nosso pai, enviados até os mestres de Roma, ilustres por
sua arte. Desde a flor da idade, meu irmão inclinava-se à eloquência, nascido para suas contendas do fórum loquaz.
Mas a mim, ainda criança, deleitavam os ritos sublimes, a Musa furtivamente arrastava-me a sua arte. Meu pai
amiúde dizia: ‘Por que tentas um estudo inútil? Nem o próprio Meônida deixou bem algum’. Abalavam-me tais
dizeres e, abandonado todo o Hélicon, arriscava palavras livres de metro: Mas, por si vinha a poesia no metro
adequado, e o que tentava escrever saía em verso” (Protinus excolimur teneri, curaque parentis / Imus ad insignes
Vrbis ab arte uiros. / Frater ad eloquium uiridi tendebat ab aeuo, / Fortia uerbosi natus ad arma fori; / At mihi
iam puero caelestia sacra placebant, / Inque suum furtim Musa trahebat opus. / Saepe pater dixit 'studium quid
inutile temptas? / Maeonides nullas ipse reliquit opes.’ / Motus eram dictis, totoque Helicone relicto / Scribere temptabam uerba soluta modis. / Sponte sua carmen numeros ueniebat ad aptos, / Et quod temptabam scribere
uersus erat). (Tr. IV, 10, 15-40; In: PRATA, 2007, p. 341-3) 56 “Com toda certeza, amaldiçoo ou penso que devem ser destruídos os poemas de Lívio. Lembro os poemas que
o torturante Orbílio ditava para mim, quando criança, mas me fascina parecerem corretos, e belos, e em nada
distantes da perfeição” (Non equidem insector delendaue carmina Liui esse reor, memini quae plagosum mihi
paruo Orbilium dictare; sed emendata uideri pulchraque et exactis minimum distantia miror). (Carm. II, 1, 68-
71; Tradução de nossa lavra) 57 “De fato, ouvi muitas vezes dizer que ninguém pode ser um bom poeta (tal como afirmam ter sido transmitido
por Demócrito e Platão em seus escritos) sem uma inflamação dos ânimos e sem um sopro, por assim dizer, de
loucura (Saepe enim audiui poetam bonum neminem - id quod a Democrito et Platone in scriptis relictum esse
dicunt - sine inflammatione animorum exsistere posse et sine quodam adflatu quasi furoris)”. (De orat. II, 194) 58 “E, passando aos estudos das artes menos importantes, se investigássemos o músico, o gramático, o poeta,
poderia, de maneira semelhante, explicar o que cada um deles promete e até que limite se deve exigir de cada um”
(Atque, ut iam ad leuiora artium studia ueniam, si musicus, si grammaticus, si poeta quaeratur, possim similiter
explicare, quid eorum quisque profiteatur et quo non amplius ab quoque sit postulandum). (De orat. I, 212)
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um indivíduo que precisa passar pela educação para atingir a perfeição naquilo que produz, não
mais refém do próprio talento, por vezes, imprevisível. Por isso, no caso do Pro Archia,
entendemos que Cícero se utilizou do discurso retórico vigente, baseado na doutrina dos três
elementos (talento, teoria e prática) para criar um poeta ideal.
2 A DOUTRINA DOS TRÊS ELEMENTOS NO DE ORATORE I
2.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS AO DE ORATORE I
O diálogo De oratore compõe-se de três tomos publicados em 55 a.C. que encenam
reuniões, em 91 a.C., na residência de um dos antigos mestres de Cícero, Lúcio Licínio Crasso
(140-91 a.C.), na antiga cidade de Tusculum. Lá, entre os convidados, destaca-se Marco
Antônio (143-86 a.C.), seu principal interlocutor, que debate com seu anfitrião temas como a
abrangência dos conhecimentos do orador, os seus dons naturais, o humor no discurso e a
disputa entre filosofia e retórica, visando o estabelecimento do orador ideal. De oratore
compõe, junto ao Brutus (46), um diálogo sobre a história da oratória romana, e Orator (46),
uma espécie de tratado sobre o orador ideal e sobre a prosa rítmica, a tríade dos textos retóricos
mais importantes da carreira de Cícero conhecida como rhetorica maior (JESUS, 2008, p. 23).
Com esse diálogo, Cícero não apenas inaugura sua produção filosófica como
também estabelece uma inovação: trata-se do primeiro texto retórico romano em forma de
diálogo filosófico. Os mestres de retórica, no geral, seguidores da tradição sofística, transmitiam
ao aluno preceitos técnicos por meio de manuais chamados ars rhetorica (VASCONCELOS,
2000, p. 179-180). Utilizavam esses manuais repletos de definições, explicações
(explanationes), preceitos (praecepta), exemplos (exempla) e exercícios (exercitia), como uma
espécie de material de apoio para o aprendizado da arte retórica, donde se depreende seu caráter
predominantemente normativo. Através da estrutura dialógica, De oratore discute as práticas e
prescrições dos manuais convencionais59 e aponta as limitações que apresentam. Cícero
distribui, nas intervenções das personagens Lúcio Licínio Crasso, Marco Antônio, Múcio
Cévola, Sulpício Rufo, Aurélio Cota, Lutácio Cátulo e Júlio César Estrabão, todos expoentes
da classe dirigente romana, os elementos de uma doutrina complexa e vastíssima. Ele apresenta
os preceitos dos manuais de retórica com interpretações diversas, ancoradas no arbítrio dos
59 Como, por exemplo, Retórica a Herênio (Ad Herennium) e o próprio De inuentione.
45
interlocutores, que trazem consigo a autoridade da competência teórica e da experiência oratória
(CICERONE, 1992, p. 17-8). Nenhum argumento é tratado de forma exaustiva e definitiva,
prevalecendo o critério e o juízo pessoal de cada um, daí o andamento aparentemente errático
da conversação (ibid., p. 17-8). A estrutura dialógica e a utilização de personagens permitem a
Cícero propor questionamentos, apresentar perspectivas e analisar argumentos com criticidade
e sem dogmatismo, coisas que um manual de retórica da sua época não poderia oferecer. Por
esses motivos, podemos dizer que, em De oratore, temos a revisão e discussão do que no geral
era proposto pelos rétores latinos e gregos à época.
Esse modelo dialógico, utilizado por Platão e Aristóteles, é de fundamental
importância para a análise de De oratore I. Em verdade, essa estrutura inovadora é uma
expressão vigorosa do método neoacadêmico da disputatio in utramque partem de investigação
filosófica, cuja orientação é buscar o provável através do confronto de diversos
posicionamentos (CICERONE, 1992, p. 18-9). Como a verdade, para os filósofos da Nova
Academia, escola filosófica que exerceu grande influência sobre o pensamento de Cícero, não
é nem simples nem absoluta, a opinião principal prevalecerá, mas não sem restrições apontadas
pelos argumentos contrários (CICÉRON, 2009, p. viii-ix). Lima (2004, p. 56) nos mostra que,
na obra de Cícero, havia uma preocupação ligada à forma como o discurso filosófico será
conduzido. O orador de Arpino aprecia o diálogo com discursos contínuos (orationes
perpetuae), a exemplo dos oradores (rhetorice disputare),60 como meio de exposição filosófica,
embora faça importantes ressalvas a esse modo de expressão: ele não permite que os
participantes da discussão se demorem sobre as questões mais controversas e estabeleçam os
pontos em que concordam e os pontos em que discordam (LIMA, op. cit., p. 57).61 Se a oratio
perpetua é vista com alguma desconfiança por parte de Cícero, é porque deve haver outra
maneira para se expressar (ibid., p. 58). O modo socrático, associado aos dialéticos (dialetice
disputare), consistia em conversações (sermones), a princípio, sem nada afirmar, depois, da
coleta, por assim dizer, das opiniões de seus interlocutores e, por fim, da refutação dos outros
60 “Que discutamos à maneira dos rétores (...) tu achas melhor do que à maneira dos dialéticos. Ora, como se o
discurso contínuo fosse dos retores apenas e não dos filósofos também” (Rhetorice igitur, inquam, nos mauis quam
dialectice disputare? Quasi uero, inquit, perpetua oratio rhetorum solum, non etiam philosophorum sit). (Fin. II,
17; In: LIMA, 2004, p. 59) 61 “Torquato, de fato, não somente disse o que pensava, mas também as razões por que assim pensava. Quanto a
mim, ainda que tenha apreciado bastante seu discurso contínuo [oratione perpetua], todavia julgo ser mais
vantajoso quando te detenhas em cada coisa particularmente e entendas com o que cada qual concorda, o que recusa, partindo de coisas acordadas, concluíres o que desejas e alcançares o termo da discussão” (Non enim solum
Torquatus dixit quid sentiret, sed etiam cur. Ego autem arbitrar, quamquam admodum delectatus sum eius
oratione perpetua, tamen commodius, cum in rebus singulis insistas et intellegas quid quisque concedat, quid
abnuat, ex rebus concessis concludi quod uelis et ad exitum perueniri). (Fin. II, 3; In: LIMA, 2004, p. 57)
46
com aquilo que se pensava, ou nas palavras de Cícero, com o que lhe parecesse (ibid., loc. cit.).
Porém, esse método de perguntas e respostas dá espaço a raciocínios intrincados e capciosos
que visam a confundir o interlocutor e levá-lo à contradição e ao silêncio (ibid., p. 59). O autor
opta por compor De oratore com discursos contínuos, à maneira dos oradores, mas não apenas
dos oradores.
Esse diálogo com discursos longos, como se transferisse a oratória sofisticada dos
tribunais e das tribunas para a realidade amistosa da conversa entre amigos, é conhecido como
diálogo aristotélico. A crítica adota esse nome porque o próprio Cícero chama a argumentação
em favor de ambas as partes e, em todas as questões, apresenta dois discursos contrários.62 O
orador de Arpino, contudo, afasta-se do estagirita na medida em que trabalha os aspectos
ficcionais dos seus diálogos, segundo Lima (2004, p. 61), inexistentes em Aristóteles. Neste
sentido, Cícero se aproxima de Platão, que descreve os encontros fortuitos de Sócrates com os
outros personagens e que vai emoldurando as discussões filosóficas com elementos
relacionados a personagens e cenários (ibid., loc. cit).63 Tomando a função de narrador, ele faz
questão de apresentar elementos que estabelecem o lugar e o tempo em que se dá o encontro
entre as personagens e outros elementos que tornam plausível a ocorrência do diálogo mesmo
(ibid. p. 63). O diálogo ciceroniano tem a preocupação de conferir plausibilidade às ações que
se desenvolvem no texto e deixa ao leitor a tarefa de lidar com coisas verdadeiras ou
verossímeis.
A propósito, as circunstâncias de tempo e de lugar compõem um dado importante
para a análise do nosso diálogo. O diálogo encena um encontro privado na vila de Crasso
motivado pela necessidade de retorno do anfitrião à sua residência em virtude de um mal súbito
sofrido durante uma sessão no Senado. O texto reproduz as supostas conversas que ele teria
tido com seus convidados no período entre o seu regresso e a sua morte sete dias depois.64
62 “Mas se algum dia existir alguém que seja capaz, à maneira de Aristóteles, de falar sobre os dois lados de
qualquer questão e de desenvolver, em qualquer causa, duas orações contrárias depois de ter aprendido os seus
preceitos, ou que, à maneira de Arcesilau e Carnéades, disserte contra qualquer coisa que lhe seja proposta, e que
acrescente a esse método e a esse exercício esta prática e este costume retórico do discurso, esse será o verdadeiro, o perfeito, o único orador” (sin aliquis exstiterit aliquando, qui Aristotelico more de omnibus rebus in utramque
partem possit dicere et in omni causa duas contrarias orationes, praeceptis illius cognitis, explicare aut hoc
Arcesilae modo et Carneadi contra omne, quod propositum sit, disserat, quique ad eam rationem adiungat hunc
[rhetoricum] usum [moremque] exercitationemque dicendi, is sit uerus, is perfectus, is solus orator). (De orat. III,
80) 63 Ruch (1958, p. 36), inferindo que o diálogo principal de Teeteto tenha ocorrido em 399 a.C., ano do processo de
Sócrates, afirma que a personagem Euclides não poderia fazer visitas frequentes ao mestre. 64 “De fato, ouvíamos que, enquanto discursava, seu flanco começara a doer, seguido de muito suor; como começou
a tremer por causa disso, voltou para casa com febre e sucumbiu ao sétimo dia pela dor no flanco” (Namque tum
47
Embora Cícero descreva o ocorrido com muito pesar, demonstra certo alívio por seu mestre não
ter visto a Itália consumida pelas chamas da guerra, nem o senado ardendo pela inveja, nem os
crimes dos estadistas, nem as perseguições sobrevindas com a Guerra Social Romana em
setembro de 91 a.C, a Guerra Civil de 88 a.C. e a ditadura de Sila.65 Este último, durante seu
governo, teria reduzido a participação de tribunos da plebe no senado, a ampliado o número de
senadores e a proscrição de milhares de opositores, entre eles Marco Antônio, personagem do
De oratore. Sua cabeça foi exposta nos rostra, junto com as das outras vítimas da perseguição
de Sila.66
Cícero sinaliza, bem no início do primeiro prólogo,67 para a crise contemporânea à
escrita do De oratore, quando a política romana estava sendo dominada pelo triunvirato de
latus ei dicenti condoluisse sudoremque multum consecutum esse audiebamus; ex quo cum cohorruisset, cum febri
domum rediit dieque septimo lateris dolore consumptus est). (De orat. III, 6) 65 “Isso foi pesaroso para os seus, amargo para a pátria, grave para todos os bons. Contudo, tais foram as
desventuras que sobrevieram à república, que me parece, não que a vida tenha sido tirada de L. Crasso pelos deuses
imortais, mas que a morte lhe foi concedida: ele não viu a Itália consumida pelas chamadas da guerra, nem o
senado ardendo pela inveja, nem os líderes do estado culpados de um crime abominável, nem a dor de sua filha,
nem o exílio de seu genro, nem a amaríssima fuga de Mário, nem a crudelíssima matança geral, depois de seu retorno, nem, em suma, deformada em todos os gêneros a cidade em que, em seu auge, ultrapassara a muitos pela
glória” (Fuit hoc luctuosum suis, acerbum patriae, grave bonis omnibus; sed ei tamen rem publicam casus secuti
sunt, ut mihi non erepta L. Crasso a dis immortalibus uita, sed donata mors esse videatur. Non uidit flagrantem
bello Italiam, non ardentem inuidia senatum, non sceleris nefarii principes civitatis reos, non luctum filiae, non
exsilium generi, non acerbissimam C. Mari fugam, non illam post reditum eius caedem omnium crudelissimam,
non denique in omni genere deformatam eam ciuitatem? in qua ipse florentissima multum omnibus [gloria]
praestitisset). (De orat. III, 8) 66 “Já nos próprios rostros, em que defendera, como cônsul, a república com extrema constância e que ornara com
os despojos de general, foi colocada a cabeça de M. Antônio, que preservara as cabeças de muitos cidadãos” (Iam
M. Antoni in eis ipsis rostris, in quibus ille rem publicam constantissime consul defenderat quaeque censor
imperatoriis manubiis ornarat, positum caput illud fuit, a quo erant multorum [ciuium] capita seruata). (De orat. III, 10) 67 “Refletindo inúmeras vezes e rememorando os tempos antigos, Quinto, meu querido irmão, costumam parecer-
me extremamente ditosos aqueles que, no apogeu da república, ao se distinguirem tanto pelas honrarias quanto
pela glória de seus feitos, puderam conduzir suas vidas de modo a estar fora de perigo em seus negócios ou, no
ócio, com dignidade; e houve uma época em que julgava que também a mim seria lícito, e concedido por quase
todos, que passasse a ter descanso e a voltar novamente minha atenção para aqueles nossos ilustres estudos, caso
o infinito trabalho das atividades no fórum, a ocupação com as candidaturas na carreira política e mesmo o declinar
da idade o permitissem. Tal esperança, nutrida em nossas reflexões e nossos planos, desenganaram-na não apenas
as graves desventuras das circunstâncias gerais, mas também as diversas outras que se abateram sobre nós. De
fato, exatamente no momento que seria, a julgar pelas aparências, o mais pleno de repouso e tranquilidade,
sobrevieram o maior número de inquietações e as mais turbulentas tempestades; nem nos foi concedido, embora
fosse nosso desejo e aspiração, desfrutar do ócio para praticar e cultivar novamente, junto contigo, aquelas artes a que nos dedicamos desde meninos. De fato, quando jovens, deparamo-nos com a perturbação da antiga ordem, e,
em nosso consulado, atingimos o centro da disputa e da crise relativas a todas as questões; e, durante todo esse
tempo após o consulado, lançamo-nos contra os vagalhões que, desviados por nós da ruína geral, recaíram sobre
nós mesmos. No entanto, seja em meio a tais adversidades da situação ou a tal falta de tempo, ocupar-me-ei de
nossos estudos, e o quanto a perfídia dos inimigos, as causas dos amigos ou a república concederem-me de ócio,
eu o dedicarei sobretudo a escrever” (Cogitanti mihi saepe numero et memoria uetera repetenti perbeati fuisse,
Quinte frater, illi uideri solent, qui in optima re publica, cum et honoribus et rerum gestarum gloria florerent, eum
uitae cursum tenere potuerunt, ut uel in negotio sine periculo uel in otio cum dignitate esse possent; ac fuit cum
mihi quoque initium requiescendi atque animum ad utriusque nostrum praeclara studia referendi fore iustum et
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César, Pompeu e Crasso. O autor se mostra admirador daqueles que, no apogeu da república e
no ocaso da vida pública, puderam retirar-se com dignidade aos estudos, coisa que ele não pôde
fazer devido às numerosas turbulências vividas pela república romana naquela época.
Momentos depois, já no terceiro tomo, o arpinate diz que a morte livrou Crasso de presenciar a
morte da pátria, o domínio dos ímprobos e a vitória dos bons, males apenas mitigados com a
filosofia.68 Em meio a tão atribulado cenário político, Cícero advoga, através da personagem de
seu mestre Crasso, em favor de uma oratória complexa, abrangente e, o mais importante,
participativa:
Deinde, qui possit non tam caduceo quam nomine oratoris ornatus incolumis
uel inter hostium tela uersari; tum, qui scelus fraudemque nocentis possit
dicendo subicere odio ciuium supplicioque constringere; idemque ingeni praesidio innocentiam iudiciorum poena liberare; idemque languentem
labentemque populum aut ad decus excitare aut ab errore deducere aut
inflammare in improbos aut incitatum in bonos mitigare; qui denique, quemcumque in animis hominum motum res et causa postulet, eum dicendo
uel excitare possit uel sedare. (De orat. I, 202)
Em seguida, que possa, adornado não tanto com o caduceu quanto com o nome de orador, lançar seus dardos incólume mesmo estando entre inimigos; então,
que seja capaz, pelo discurso, de submeter o crime e a fraude de um criminoso
ao ódio dos cidadãos e de reprimi-los com um castigo; de livrar da pena, com a defesa feita por seu engenho, a inocência dos tribunais; de incitar o povo à
glória, quando está abatido e vacilante, afastá-lo do erro, inflamá-lo contra os
desonestos ou mitigá-lo, quando incitado contra os honestos; que seja capaz,
prope ab omnibus concessum arbitrarer, si infinitus forensium rerum labor et ambitionis occupatio decursu
honorum, etiam aetatis flexu constitisset. Quam spem cogitationum et consiliorum meorum cum graves
communium temporum tum uarii nostri casus fefellerunt; nam qui locus quietis et tranquillitatis plenissimus fore uidebatur, in eo maximae moles molestiarum et turbulentissimae tempestates exstiterunt; neque uero nobis
cupientibus atque exoptantibus fructus oti datus est ad eas artis, quibus a pueris dediti fuimus, celebrandas inter
nosque recolendas. Nam prima aetate incidimus in ipsam perturbationem disciplinae ueteris, et consulatu
deuenimus in medium rerum omnium certamen atque discrimen, et hoc tempus omne post consulatum obiecimus
eis fluctibus, qui per nos a communi peste depulsi in nosmet ipsos redundarent. Sed tamen in his uel asperitatibus
rerum uel angustiis temporis obsequar studiis nostris et quantum mihi uel fraus inimicorum uel causae amicorum
uel res publica tribuet oti, ad scribendum potissimum conferam). (De orat. I, 1-3) 68 “De minha parte, Crasso, creio que foste ornado e morreste por um desígnio divino, tanto pela flor da vida,
quanto pela oportunidade da morte. De fato, tiveste de sofrer a crueldade do ferro dos cidadãos proporcional ao
valor e à constância de teu ânimo, ou, se alguma fortuna te houvesse livrado da atrocidade da morte, ela teria te
obrigado a ser espectador da morte da pátria; e não apenas o domínio dos ímprobos teria sido motivo de tristeza,
mas também a vitória dos bons, devida à matança indiscriminada de cidadãos. (...) Porém, uma vez que essas questões já não podem mais ter liberdade de escolha e que nossos sofrimentos extremos são mitigados pela
compreensão de uma grande glória, passemos àquele consolo que pode ser não apenas prazeroso por apaziguar
nossos pesares, como também saudável enquanto ainda está aderido a nós (...)” (Ego uero te, Crasse, cum uitae
flore tum mortis opportunitate diuino consilio et ornatum et exstinctum esse arbitror; nam tibi aut pro uirtute
animi constantiaque tua ciuilis ferri subeunda fuit crudelitas aut, si qua te fortuna ab atrocitate mortis uindicasset,
eadem esse te funerum patriae spectatorem coegisset; neque solum tibi improborum dominatus, sed etiam propter
admixtam ciuium caedem bonorum uictoria maerori fuisset [...] Sed quoniam haec iam neque in integro nobis esse
possunt et summi labores nostri magna compensati gloria mitigantur, pergamus ad ea solacia, quae non modo
sedatis molestiis iucunda, sed etiam haerentibus salutaria nobis esse possint). (De orat. III, 12 et 14)
49
enfim, de provocar ou de abrandar, nos ânimos dos homens, qualquer paixão
que a questão e a causa exijam.
Aparentemente sensível à situação da república, o excerto, como direcionasse
palavras aos que tramavam contra ela, fala de um orador com poder (posse) para acusar seus
inimigos, com o poder para apontar aos concidadãos os delitos dos criminosos e com o poder
para afastar do engano ou incitar à glória o povo romano. É possível que o período turbulento
que serve de pano de fundo para os três diálogos justifique a idealização de uma figura de
grande sabedoria filosófica e atuação política, um homem que seja conselheiro da opinião
pública, líder no governo do estado, primeiro homem, pelo pensamento e pela eloquência, no
senado, em meio ao povo, nas causas públicas, porque a eloquência é feita de virtude e
sabedoria.69
Ainda na senda da construção da plausibilidade, uma característica também a ser
observada está nas opiniões veiculadas pelo texto. Cícero se utiliza de inúmeras personagens
para dar vazão a ideias distintas sobre oratória. No primeiro tomo do De oratore, caberá a
Crasso o dever de veicular a opinião principal do texto: o summus orator, ou o orador ideal,
deve ser um sujeito da mais vasta erudição e cultivado na literatura, na história, na filosofia, na
jurisprudência e em elementos das mais diversas artes (CICERONE, 1992, p. 18). O orador
ideal de Crasso é perpassado pela cultura humanística e consciente do valor da eloquência não
somente como instrumento de persuasão, mas ainda como expressão política e filosófica. Seu
principal interlocutor será Marco Antônio, por sua vez, o porta-voz de Quinto Túlio Cícero,
irmão do nosso autor. Defensor de uma oratória mais realista e enxuta, ele alega que o orador
deve restringir-se a discursar de maneira adequada à realidade do fórum e do senado, além de
conhecer os caminhos para persuadir os inúmeros tipos humanos existentes.
A escolha dos interlocutores também contribui para a plausibilidade do diálogo e
para a construção do clima formal e aristocrático, a despeito da ambientação da conversação na
residência de Crasso e da proximidade das personagens. Todos expoentes da classe dirigente
romana, eles defendem uma oratória erudita: erudita porque, de tão vasta, torna-se quase
inacessível e circunspecta, e romana porque é uma arte tão nobre que os interlocutores, como
que para honrá-la, jamais abandonam a solenidade, mesmo quando brincam, sempre prezando
pelo seu caráter grave (CICÉRON, 2009, p. ix). Mas, segundo Wisse (2002, p. 377), essa
69 “Está distante daquele homem que procuramos e que pretendemos que seja conselheiro da opinião pública, líder
no governo do estado, primeiro homem, pelo pensamento e pela eloquência, no senado, em meio ao povo, nas
causas públicas” (quem quaerimus et quem auctorem publici consili et regendae ciuitatis ducem et sententiae
atque eloquentiae principem in senatu, in populo, in causis publicis esse uolumus). (De orat. III, 63)
50
erudição também faz parte de um jogo literário do autor, e o conhecimento dos verdadeiros
Crasso e Marco Antônio não era suficiente para sustentar os argumentos colocados em suas
bocas. Além disso, continua o estudioso, os argumentos que lemos em De oratore, sobretudo
os relacionados à amplidão dos conhecimentos técnicos e filosóficos do orador, podem ser
encontrados com relativa facilidade no Brutus,70 no Orator71e, aqui incluímos, no Pro Archia,
como veremos adiante.
Nascido em 140 a.C., Lúcio Licínio Crasso destaca-se por ser considerado o mais
ilustre orador da Roma pré-ciceroniana e por ter sido preceptor do pequeno Cícero enquanto o
arpinate ainda estudava retórica em Roma. Foi eleito cônsul em 95 a.C. e censor em 92 a.C.
Um dos feitos memoráveis de sua censura foi ter fechado a escola de retórica de Lúcio Plócio
Galo, inaugurada em 93 a.C., cerceando a atuação dos rétores latinos na Urbe sob o pretexto de
que essas inovações eram contrárias aos costumes e à tradição dos antigos, fato explicado por
ele próprio nesse diálogo (MARROU, 1990, p. 390).72 De acordo com Marrou (1990, p. 391),
a medida visou impedir a disseminação da doutrina oratória pelas camadas menos favorecidas.
Daí, podemos conjeturar que muito do ideal oratório de Crasso (e, portanto, de Cícero), calcado
na vasta cultura (doctrina), pode ser um ataque velado a eventuais figuras oriundas de camadas
emergentes da sociedade romana. Porque, se, por um lado, haveria um movimento de
democratização da educação oratória, o que daria, como corolário, mais espaço para os homines
70 “Não direi nada sobre mim, direi sobre os outros, dos quais não havia ninguém que parecesse mais empenhado
do que a maioria dos homens no estudo das letras, nas quais está contida a fonte de uma eloquência plena; ninguém
cuja formação abarcasse a filosofia, mãe de todo bem agir e bem dizer; ninguém que tivesse aprendido direito civil, o que é extretamente necessário para as causas privadas e para o conhecimento prático do orador; ninguém
que conhecesse a história romana, da qual, quando necessário, podem ser evocados riquíssimos testemunhos dos
mortos” (Nihil de me dicam: dicam de ceteris, quorum nemo erat qui uideretur exquisitius quam uolgus hominum
studuisse litteris, quibus fons perfectae eloquentiae continetur; nemo qui philosophiam complexus esset matrem
omnium bene factorum beneque dictorum; nemo qui ius ciuile didicisset rem ad priuatas causas et ad oratoris
prudentiam maxume necessariam; nemo qui memoriam rerum Romanarum teneret, ex qua, si quando opus esset,
ab inferis locupletissimos testes excitaret). (Brut. 322; In: ALMEIDA, 2014, p. 191) 71 “Que não seja apenas instruído em Diálectica, mas tenha conhecidos e exercitados todos os tópicos da Filosofia.
Pois nada sobre a honra, a morte, a piedade, o amor da pátria, o bem e o mal, as virtudes e os vícios, os deveres, a
dor, a volúpia, as paixões do espírito e o erro – questões que, muitas vezes, aparecem nas causas, mas são tatadas
com grande pobreza – nada, dizia eu, sem aquela ciência que descrevi, pode ser dito e explicado viva, ampla e
abundantemente” (Nec uero a dialecticis modo sit instructus, sed habeat omnis philosophiae notos ac tractatos
locos. Nihil enim de religione, nihil de morte, nihil de pietate, nihil de caritate patriae, nihil de bonis rebus aut
malis, nihil de uirtutibus aut uitiis, nihil de officiis, nihil de dolore, nihil de uoluptate, nihil de perturbationibus
animi et erroribus – quae saepe cadunt in causas, sed ieiunius aguntur – nihil, inquam, sine ea scientia, quam
dixi, grauiter ample copiose dici et explicari potest). (Orat. 118; In: GONÇALVES, 2017, p.181) 72 “Surgiram também professores latinos – podeis acreditar? – nos últimos dois anos. Quando censor, eu os abolira
em meu édito, não por não querer, como se afirmava que não sei quem dizia, que se aguçassem os engenhos dos jovens, mas, pelo contrário, por não desejar que os engenhos embotassem, que a impudência se fortificasse (Etiam
Latini, si dis placet, hoc biennio magistri dicendi exstiterunt; quos ego censor edicto meo sustuleram, non quo, ut
nescio quos dicere aiebant, acui ingenia adulescentium nollem, sed contra ingenia obtundi nolui, conroborari
impudentiam)”. (De orat. III, 93)
51
noui na política, por outro, a humanidade e a cultura, de origem grega e de cunho helenístico,
permaneceriam nas mãos de poucos. Em vista disso, a personagem fictícia, que carrega
elementos do real, sem dúvida, torna-se, no nosso contexto de análise, um representante da elite
aristocrática romana e modelo das virtudes e atuação política desse grupo social.
Da vida de Antônio, o principal interlocutor de Crasso no primeiro dia de diálogo,
temos poucas informações. Consta que nasceu em 143 a.C., que foi pai do pretor Marco Antônio
Crético, do cônsul Caio Antônio Híbrida e avô do triúnviro Marco Antônio. Embora tenha
gerado descendentes ilustres, não vinha de família nobre. Foi um autêntico homo nouus,
granjeou reconhecimento primeiramente na prática forense, sendo bastante requisitado e,
depois, ingressando na política romana como pretor em 103 a.C., período no qual triunfou sobre
os piratas da Cilícia, região mediterrânea da Anatólia, na Turquia atual, e censor seis anos mais
tarde e cônsul em 99 a.C, tendo-se oposto a uma lei agrária, proposta por Sexto Tício,
desconhecido aliado do tribuno da plebe Lúcio Apuleio Saturnino (CICERO, 1967, p. 13;
VALÉRIO, 2016, p. 46). Nas palavras de Cícero, Marco Antônio, sozinho ou ao lado de Crasso,
representou o pináculo da oratória romana (VALÉRIO, 2016, p. 42),73 sendo sempre lembrado
pela sua memória proeminente e pela sua autoridade moral.
No entanto, alerta Valério (2016, p. 42), embasado em Fam. 7, 32, 2, no diálogo De
oratore, Marco Antônio é uma persona. No referido excerto, Cícero revela que, valendo-se da
personagem de Antônio, discutiu o ridículo no segundo tomo do De oratore e afirma que as
demonstrações desse diálogo, embora haja disposição contrária do destinatário, não pareciam
ser suas.74 Portanto, temos uma indicação de que, ao menos, parte dos argumentos do autor
estão presentes no seu texto. O caráter fictício de Marco Antônio, porém, não acarreta
73 “De fato, que grande número de oradores já foi lembrado e há quanto tempo nos ocupamos em enumerá-los. E,
no entanto, só lentamente e a custo é que, tal como alcançamos antes Demóstenes e Hipérides, chegamos assim
também agora a Antônio e Crasso. De fato, eu penso o seguinte: esses foram os maiores oradores, e com eles pela
primeira vez a copiosidade da oratória latina se igualou à dos gregos” (Quam multi enim iam oratores
commemorati sunt et quam diu in eorum enumeratione uersamur, cum tamen spisse atque uix, ut dudum ad
Demosthenen et Hyperiden, sic nunc ad Antonium Crassumque pervenimus. nam ego sic existimo, hos oratores
fuisse maximos et in his primum cum Graecorum gloria Latine dicendi copiam aequatam). (Brut. 138) “Mas Cina
ordenou que cortassem a cabeça de Cneu Otávio, cônsul e seu aliado, de Públio Crasso e de L. César, os mais
nobres homens, cuja virtude fora reconhecida em casa e em batalha, de Marco Antônio, o mais eloquente que já ouvi, e de C. César, no qual me parece ter havido um gênero de humanidade, de suavidade, de jovialidade e de
elegância” (At Cinna collegae sui consulis Cn. Octaui praecidi caput iussit, P. Crassi L. Caesaris, nobilissimorum
hominum, quorum uirtus fuerat domi militiaeque cognita, M. Antoni, omnium eloquentissimi quos ego audierim,
C. Caesaris, in quo mihi uidetur specimen fuisse humanitatis salis suauitatis leporis). (Tusc. V, 55; Tradução de
nossa lavra) 74“Questões sobre o risível foram discutidas por mim no segundo livro De oratore por intermédio da personagem
Antônio e, embora negues sob juramento, não aparentarão ser meus” ([...] quae sunt a me in secundo libro de
Oratore per Antoni personam disputata de ridiculis [...] et arguta apparebunt, ut sacramento contendas, mea non
esse). (Fam. 7, 32, 2; Tradução de nossa lavra)
52
necessariamente a mesma condição para Crasso, que, segundo Cícero, assim como seu
interlocutor, era dono de uma vasta erudição.75 Consta que Crasso foi educado, na infância, por
Lúcio Célio Antípatro, notável conhecedor do Direito e da História que, na Ásia, onde passou
o ano de 109 a.C. como questor, estudara com o filósofo acadêmico Metrodoro de Cépsis e,
que, em viagem de retorno da Ásia, passou por Atenas, onde teve oportunidade de receber
instruções de Cármadas e outros filósofos e rétores gregos famosos.76 O contato com os mestres,
seja na infância, seja na maturidade, seriam indícios de uma cultura algo elevada.
Devemos ressaltar, por outro lado, uma corrente que levanta ressalvas contra a
instrução de Crasso. Hendrickson (1906, p. 184) diz que o diálogo ciceroniano, reminiscente
das origens do diálogo enquanto forma literária, e situado numa metrópole de oradores uma
geração antes da difusão geral dos livros, ainda busca manter a ficção de que o discurso falado
é o meio apropriado para a comunicação e transmissão do pensamento. Por conta disso, na
maior parte do tempo, não se verificam alusões a livros. O conhecimento das regras ou das
opiniões é mencionado através da exposição oral, ou seja, as personagens expõem a doutrina
filosófica relembrando as discussões que travaram com os filósofos criadores dessa doutrina ou
reproduzindo o relato de um discípulo ou amigo que com eles estudou ou conversou (ibid., loc.
cit.). Para o estudioso, esse foi o cenário de composição do De oratore. As referências não
apenas de Crasso, mas de Antônio e Cévola, com efeito, consistiriam num artifício literário em
que o escritor cria uma relação entre as personagens e os autores que ele próprio consultou (op.
cit., p. 187-8). Para tal, o escritor faria uso, inclusive, de fatos da vida da personagem para
adequar o discurso aos interesses da ficção (SCATOLIN, 2009, p. 24), como parece ser o caso
de Crasso. Cícero teria aproveitado a passagem do ex-cônsul pela Ásia e pela Grécia para
construir encontros fictícios com rétores e filósofos famosos como Cármadas. Desse modo, o
autor incluiria a sua pesquisa sobre a filosofia de Cármadas, que remonta à sua própria época
75 “Na verdade, nosso Crasso, a meu ver, descreveu a faculdade do orador, não dentro dos limites daquela arte,
mas das fronteiras quase ilimitadas de seu engenho, De fato, em seu parecer, confiou até mesmo os lemes do
governos dos estados ao orador” (Crassus uero mihi noster uisus est oratoris facultatem non illius artis terminis,
sed ingeni sui finibus immensis paene describere; nam et ciuitatum regendarum oratori gubernacula sententia sua
tradidit). (De orat. I, 214) 76 L. LICINIVS CRASSVS. In: SMITH, Willian. Dictionary of greek and roman biography and mythology:
Abaeus – Dysponteus (v. I). Boston: Little, Brown and Company, 1870, p. 879.
53
de estudo com Filo de Larissa e os acadêmicos em Tusc. II, 977 e Orat. 12,78 respeitando a
biografia da personagem e, a partir disso, construiria o plausível.
Também é importante salientar que, além da referida revisão e crítica dos manuais
de retórica, o livro também faz referências a figuras de relevo na reflexão sobre a técnica em
questão, como Platão e Isócrates. Como se defendesse a oratória contra as críticas do fundador
da Academia, a afirmação de Crasso de que é necessário ao orador possuir uma ampla cultura
parece responder às questões socráticas que, em poucas palavras, exigem do orador
conhecimento que paute os discursos79. Ora, um discurso sem substância há de ser não mais
que palavras vazias, que é justamente o que Crasso alega ser o vilão do qual a oratória deve
fugir.80 Por esse motivo, o orador romano cobra um empenho em familiarizar-se com inúmeras
áreas do conhecimento. Outro exemplo pode ser visto com relação ao modo de operar da
retórica. No entender de Sócrates, para falar ou escrever, é necessário definir cada elemento,
classificá-lo à maneira de um texto didático e apenas discursos que se dedicassem ao justo, ao
belo e ao bom deveriam ser aceitos (Phdr., 277b-c – 278a). Além disso, ele defende que o
discurso seria necessariamente consequência de um ensinamento anterior, de modo que o
discurso fosse sustentado por um conhecimento verdadeiro, não por teses casuísticas. Antônio
declara que não se dedica completamente à filosofia, mas apenas um pouco,81 porque, embora
os conhecimentos dos filósofos fossem apropriados à descoberta de argumentos na elaboração
dos discursos, não serviriam como modelos, pois seu tom mais calmo seria mais adequado ao
ensino do que ao direito e à política82.
77 “Em nossa época, Filo, a quem ouvimos com regularidade, decidiu ensinar preceitos retóricos num momento,
filosóficos em outro” (Nostra autem memoria Philon, quem nos frequenter audiuimus, instituit alio tempore
rhetorum praecepta tradere, alio philosophorum). (Tusc. II, 9; In: SCATOLIN, 2009, p. 29) 78 “(...) E confesso que me sobressaí como orador não com base nas oficinas dos rétores, mas nos passeios pela
Academia” ([...]et fateor me oratorem [...] non e rhetorum officinis, sed ex cadmiae spatiis exstitisse). (Orat. 12;
In: SCATOLIN, 2009, p. 29) 79 Há uma pergunta feita por Sócrates, em Górgias 449d, que parece reverberar no De oratore: qual seria, afinal,
o objeto da arte retórica? A questão é fundamental na medida em que impõe um impasse à designação grega de
téchne à retórica, pois as téchnai deviam ter, por obrigação, um objeto concreto delimitado (Cf. Ion, 532 c-d; Grg.,
491; JARESKI, 2006, p. 23) 80 “De fato, o que há de tão insano quanto o som vazio das palavras, mesmo as melhores e mais distintas, sem um
pensamento ou conhecimento subjacente?” (Quid est enim tam furiosum, quam uerborum uel optimorum atque ornatissimorum sonitus inanis, nulla subiecta sententia nec scientia?). (De orat. I, 51) 81 “Não desaprovo esses estudos, contanto que sejam moderados; considero que a reputação desses estudos e a
suspeita de artifício da parte daqueles que julgarão o caso é adversa ao orador, pois diminui tanto a autoridade
deste quanto a credibilidade do discurso” (ego ista studia non improbo, moderata modo sint: opinionem istorum
studiorum et suspicionem artifici apud eos, qui res iudicent, oratori aduersariam esse arbitror, imminuit enim et
oratoris auctoritatem et orationis fidem). (De orat. II, 156) 82 “Falam [os filósofos] com pessoas doutas, cujos espíritos preferem acalmar a incitar se falam para ensinar e não
cativar sobre assuntos serenos e nada turbulentos, de tal maneira que nisso mesmo que procurem ao falar algum
deleite, parece que fazem algo mais do que é necessário” (Loquuntur cum doctis, quorum sedare animos malunt
54
Um item platônico a ser comentado, visto ser retomado por Crasso e Antônio em
De oratore, é a referência velada à doutrina dos três elementos em que parece estar fundada a
retórica:
Se a eloquência (rhetoriké) é da tua natureza (phýsis), serás um orador (rhétor)
apreciado, se cumprires a condição de juntar a essa vocação a prática (epistéme) e o exercício (meleté). No entanto, se te faltar uma dessas
condições, acabarás por ser um orador pouco competente. Qual seja a arte que
corresponde às necessidades acima, não creio que o seu método se possa
aprender segundo os caminhos de Lísias e de Trasímaco. (...) Todas as artes importantes devem basear-se na pesquisa e na meditação da Natureza, pois é
daí que parece advir-lhes essa sublimidade de pensamento que nelas se
encontra, ao lado da perfeição. Péricles assim, procedeu, juntando aos seus dons naturais os dons acima apontados (...) Tanto em uma [retórica] como em
outra [medicina] cumpre efectuar a análise de uma natureza: na primeira, a
análise da natureza do corpo e, na segunda, a análise da natureza da alma. Tem de se levar isto em conta se, de acordo com a arte, e não só pela prática
empírica e pela rotina, quiseres dar saúde e vigor a um e à outra, ministrando
remédios e alimentos a um e infundir noutra as tuas convicções, de modo a
torná-la virtuosa, mediante os discursos e a argumentação honesta. (Phdr. 269d-270c; PLATÃO, 2000, p. 109)
Sócrates afirma a seu amigo Fedro que a oratória será consumada se houver dons
naturais favoráveis ou uma vocação para ser orador, aliada ao conhecimento da técnica retórica
(epistéme) e ao exercício (meleté) da mesma. Adiante, ele critica Trasímaco e Lísias, mestres
de retórica que, além de transmitirem a retórica como uma arte capaz de versar sobre todos os
temas, negligenciavam a natureza do discípulo e a prática do conhecimento adquirido. O mestre
reitera o argumento com o exemplo de Péricles, que juntou a sua vocação ou talento (phýsis)
ao seu conhecimento do espírito humano e à sua prática profissional, pois a arte é resultado da
observação e reflexão sobre a natureza em si, neste caso, sobre a sua própria natureza, de modo
a lapidá-la, potencializá-la, aperfeiçoá-la. Por fim, finaliza com uma analogia entre medicina e
oratória: a oratória é uma análise da alma que precisa da prática empírica (empeiría) e da técnica
(téchne).83 Em resumo, fica patente que todas as artes necessitam desses três elementos para
chegar à sua plenitude: talento, teoria e prática. Não por acaso, são as duas noções parecidas
envolvidas no preâmbulo ao primeiro tomo do De oratore: ingenium e exercitatio,
quam incitare, si de rebus placatis ac minime turbulentis docendi causa non capiendi loquuntur, ut in eo ipso quod
delectationem aliquam dicendo aucupentur, plus nonnullis quam necesse sit facere uideantur). (Orat. 63; In:
GONÇALVES, 2017, p. 125) 83 Vide citação direta de Fedro em p. 49.
55
correspondentes respectivamente à phýsis e meleté/empeiría. A parte do conhecimento fica
mais próxima do que Isócrates.
Em Isócrates, especificamente, podemos fazer apontamentos importantes. Ele
critica os sofistas de sua época por acreditarem possuir os preceitos necessários e suficientes
para a transformação de seus discípulos em oradores84 e por desconsiderarem fatores, na sua
visão, essenciais à educação como os atributos físicos e psicológicos do discípulo, bem como a
sua prática.85 Nesse argumento, o mestre ateniense mobiliza três conceitos que Cícero
reaproveitará, quais sejam: phýsis86, paidéia87 e empeiría88 O primeiro representa os atributos
do discípulo; o segundo, a educação; e o último, a sua prática. Quanto à phýsis, Cícero, através
de Crasso, a toma por natura ou ingenium para designar os atributos essenciais à oratória, sem
os quais é impossível tornar-se orador. Em relação à paidéia, à doctrina ou mesmo à humanitas
latinas, mais uma vez, por meio das palavras de Crasso, é defendida a tese de que o orador deve
possuir uma instrução tão abrangente e profunda a ponto de poder ser chamado filósofo89. Por
fim, já no tocante à empeiría, exercitatio para os romanos, o orador não deve apenas buscar
84 “Portanto, dos sofistas que recentemente surgiram e ultimamente têm se dado às charlatanices, eu bem vejo que,
mesmo que agora eles exagerem nisso, todos se inclinarão a essa minha tese. Os restantes são os que surgiram
antes de nós e que tiveram a soberba de escrever as chamadas Artes, os quais não devemos permitir que fiquem
impunes: eles prometerem ensinar a dar sentenças no tribunal, escolhendo as palavras mais desagradáveis, – o que
seria trabalho para invejosos e não para defensores de tal educação – e esta prática, enquanto ensinável, pode ser
útil tanto para os discurso jurídicos quanto para todos os outros. Eles se tornaram piores do que os que se dedicam
às disputas verbais: ao discorrerem sobre coisas de pouco valor, o que pode tornar imediatamente maléficos em
tudo os discípulos que guiarem as próprias ações por intermédio desses discursos, ensinaram, contudo, a virtude e
a temperança acerca de tais assuntos, ao passo que aqueles, exortando os demais aos discursos políticos e
negligenciando os outros bens presentes a eles, colocam-se como professores de intriga e ambição”. (C. soph., 19-
20; In: LACERDA, 2011, 61-2) 85 Vide nota 46. 86 φύσις. 1. origin, growth. 2. the natural form or constitution of a person or thing as the result of growth, outward
form, appearance, constitution, temperament, natural place or position of a bone or joint, of the mind, one's nature,
character, instinct in animals, etc. 3. the regular order of nature. 4. nature as an originating power, elementary
substance, concrete, the creation, 'Nature'. 5. creature, (nature) of plants or material substances. 6. kind, sort,
species. 7. sex, the characteristic of sex. In: LIDDELL, Henry George. SCOTT, Robert. A Greek-English Lexicon.
Oxford. Clarendon Press, 1940. (on-line) 87 παιδεία 1. a rearing of a child. 2. training and teaching, education, opp. τροφή. 3. its result, mental culture,
learning, education. 4. culture of trees. 5. the twisted handiwork of Egypt, i.e. (acc. to Sch.) ropes of papyrus. 6.
anything taught or learned, art, science, π. ἱερή, of medicine. 7. Chastisement, youth, childhood. In: LIDDELL,
Henry George. SCOTT, Robert. A Greek-English Lexicon. Oxford. Clarendon Press, 1940. (on-line) 88 ἐμπειρ-ία. 1. experience, experience in, acquaintance with. 2. practice without knowledge of principles, esp. in Medicine, empirism, craft. In: LIDDELL, Henry George. SCOTT, Robert. A Greek-English Lexicon. Oxford.
Clarendon Press, 1940. (on-line) 89 “Se preferir chamar de filósofo esse orador que, segundo afirmo, tem a sabedoria unida à eloquência, eu não o
impedirei, com a condição de que fique claro que não se deve louvar a dificuldade de expressão daquele que
conhece um assunto mas não é capaz de explicá-lo pela fala, nem o desconhecimento daquele a quem não basta o
assunto, mas não faltam palavras” (Siue hunc oratorem, quem ego dico sapientiam iunctam habere eloquentiae,
philosophum appellare malet, non impediam; dum modo hoc constet, neque infantiam eius, qui rem norit, sed eam
explicare dicendo non queat, neque inscientiam illius, cui res non suppetat, uerba non desint, esse laudandam).
(De orat. III, 142)
56
instrução e os exercícios dos mestres de retórica, mas, sobretudo, deve tomar gosto pela atuação
no fórum, pela observação dos mais experientes e pela eleição de modelos. Em outras palavras,
Crasso valoriza a vivência e o conhecimento da realidade jurídica romana em detrimento da
teorização e do excessivo apego às regras do sistema retórico grego.
Em De oratore, teremos uma idealização, criada pelas personagens Crasso e
Antônio: o summus orator. Teremos um orador modelar ou perfeito, em torno do qual
acontecerá toda a discussão proposta nos seus três tomos desse texto. Na referida idealização,
três noções serão bastante utilizadas pelas personagens: o talento, a teoria (seja ela menor ou
mais ampla) e a prática.
2.2 ENGENHO, ESTUDO E EXPERIÊNCIA: OS FUNDAMENTOS DA RETÓRICA
NO DE ORATORE I DE CÍCERO
Não há como ignorar a presença das noções de talento, teoria e prática no preâmbulo
do diálogo.90 Cícero, o autor que fala no preâmbulo ao primeiro diálogo, revela:
(...) Solesque non numquam hac de re a me in disputationibus nostris
dissentire, quod ego eruditissimorum hominum artibus eloquentiam
contineri statuam, tu autem illam ab elegantia doctrinae segregandam putes et in quodam ingeni atque exercitationis genere ponendam. (De orat., I, 5)
(...) E costumas por vezes discordar de mim neste assunto, porque eu afirmo que a eloquência depende das realizações dos homens mais instruídos, tu, em
contrapartida, julgas que ela deve ser separada do refinamento da doutrina e
confiada a determinado tipo de talento e prática.
O prefácio insere uma suposta querela entre os irmãos que girava em torno dos
supostos pilares da eloquência: Cícero sustentava que a oratória estava contida nas artes dos
mais eruditos (eruditissimorum hominum artes), enquanto Quinto defendia que o talento
(ingenium) e a prática (exercitatio) bastavam ao orador. A partir daí, nascem os primeiros
comentários. Fantham (2007, p. 82) afirma que ars, isto é, a teoria retórica, parece um pouco
marginalizada e reduzida a um sumário de seções em favor dos dois outros elementos. Segundo
a estudiosa, Cícero esteve atento às noções platônicas de phýsis (natureza), epistéme
(conhecimento) e meléte (prática), prescritas em Phdr. 269d, e às isocráticas phýsis, paidéia
90 O título do capítulo é uma alusão aos versos de Camões: “Nem me falta na vida honesto estudo / com longa
experiência misturado, / nem engenho, que aqui vereis presente, cousas que juntas se acham raramente”. (Lus. X,
154)
57
(educação) e empeiría (experiência) verificados em Antid. 180-192. Vasconcelos (2000, p.
184), por sua vez, também reconhece o valor dessas três noções ciceronianas, mas defende que
a uita e a sapientia também podem ser incluídas entre os fundamentos da educação oratória
aventada em De oratore. Taisne (2000, p. 39) não apenas associa Cícero a Quintiliano mas
também chega a propor uma divisão do livro primeiro em que os parágrafos 113-133 versam
sobre os dons naturais, 134-147 sobre arte e 147-160 sobre os exercícios. Courbaud
(CICÉRON, 2009, p. 5) também elabora uma divisão do texto em três partes correspondentes
a cada item do trinômio: 107-113 sobre o ingenium, 134-147 sobre a ars e 147-160 sobre a
exercitatio.
Muitos estudos sinalizam para o fato de que o orador ideal preconizado pelas
personagens do primeiro diálogo De oratore consta de natureza prodigiosa, de instrução
abrangente e de uma experiência prática.91 Esses três pilares reaparecem discretamente, mais
adiante, ora juntos, ora separados, como quando, ainda no prefácio, se diz que os romanos,
desconhecedores de qualquer sistematização retórica, levaram-na adiante apenas pelo seu
próprio engenho e reflexão:
Ac primo quidem totius rationis ignari, qui neque exercitationis ullam uim
neque aliquod praeceptum artis esse arbitrarentur, tantum, quantum ingenio et cogitatione poterant, consequebantur; post autem auditis oratoribus
Graecis cognitisque eorum litteris adhibitisque doctoribus incredibili quodam
nostri homines discendi studio flagrauerunt. Excitabat eos magnitudo, uarietas multitudoque in omni genere causarum, ut ad eam doctrinam, quam
suo quisque studio consecutus esset, adiungeretur usus frequens, qui omnium
magistrorum praecepta superaret; erant autem huic studio maxima, quae
nunc quoque sunt, exposita praemia uel ad gratiam uel ad opes uel ad dignitatem; ingenia uero, ut multis rebus possumus iudicare, nostrorum
hominum multum ceteris hominibus omnium gentium praestiterunt. (De orat.,
I, 14-6)
Num primeiro momento, desconhecedores de qualquer teoria, aqueles que
pensavam não haver qualquer método de exercícios ou qualquer preceito de
arte atingiam o quanto podiam pelo engenho e pela reflexão; depois, quando se ouviram os oradores gregos, conheceram-se os seus escritos e empregaram-
se os seus mestres, os latinos inflamaram-se com um inacreditável desejo de
aprender. Movia-os a magnitude, a variedade e a amplidão das causas de toda espécie, de modo que, à teoria alcançada pelo estudo de cada um, acrescia-se
a prática frequente, que superaria os preceitos de todos os mestres. Para tal
estudo, eram oferecidas, tal como hoje em dia, as maiores recompensas concernentes à influência, às riquezas ou ao prestígio. Quanto ao engenho,
segundo podemos julgar por muitos indícios, o dos latinos superava em muito
o de todos os demais povos.
91 Cf. Cicero, 1892, p. xvii-xix; Clark, 1918, p. 80; Clark, 1977, p. 4-23; Schütrumpf, 1990, p. 310-321; Taisne,
2000, p. 39; Vasconcelos, 2000, p. 180; Müller, 2001, p. 319-346; May, 2002, p. 1; Fantham, 2006, p. 82.
58
Os romanos, segundo Cícero, tinham vocação para o discurso, pois refletiam e
discursavam guiados somente pelo talento e pela reflexão, de modo que muito do que se
produzia, certamente, poderia ser considerado casual ou mesmo experimental. O povo, embora
procurasse discursar com cuidado e ordem, desconhecia qualquer método (uia) ou técnica (ars),
assim como ocorrera aos siracusanos.92 No entanto, a natural superioridade de uns oradores
sobre os outros fez com que se verificassem, na sua fala, expedientes mais ou menos eficientes
na persuasão. Essas características foram associadas a uma natureza (natura) propícia à tarefa,
uma natureza física e psicológica que garantisse a boa execução daquele ofício: boa memória,
facilidade para argumentar, boa voz, bom fôlego, bom caráter e traços afins, capazes de granjear
a boa vontade. A partir daí, foi-se criando uma espécie de sistematização dessa natureza
propícia, como expôs Sócrates em Phdr. 269d-270c,93 para garantir a todos um método, no
sentido etimológico mesmo da palavra, uma via por onde seguir, seguro, no sentido de tentar
reduzir ações do acaso, a fim de atingir um objetivo, que, no caso da retórica, está na persuasão.
Mas essa sistematização parece surgir de duas demandas distintas. A primeira é do
indivíduo dotado de boa natureza, que poderia eventualmente não discursar bem por diversos
motivos, como, por exemplo, por ter começado por onde, na verdade, teria de ter concluído, ou
por ter elencado argumentos contraditórios, ou mesmo por não ter memorizado aquilo que
discursaria. Seus erros decorreriam do desconhecimento completo dos procedimentos que
devem reger a composição de um discurso. Para que o acaso não prevalecesse, criou-se o
método. A segunda seria a do indivíduo não dotado, que, embora limitado pela sua própria
condição, seja por não ter uma boa memória, uma boa argumentação ou mesmo uma boa dicção
naturais, isto é, de nascença, poderia este ainda pronunciar um discurso apropriado a ponto de
superar alguém talentoso, mas desconhecedor dos procedimentos técnicos. Daí surge uma
relação de complementaridade entre esses dois polos. Já que natureza favorável não é condição
suficiente para a oratória perfeita, tampouco a técnica, o ideal seria poder unir esses dois polos
na educação do orador. No que se refere ao excerto em questão, Cícero parece colocar os
romanos na condição de um povo vocacionado ao discurso, mas carente de reflexão
aprofundada sobre o tema, condição impeditiva de que se desenvolvessem ainda mais. Portanto,
segundo foi dito, o discurso, digamos, espontâneo dos oradores romanos naturalmente
talentosos (ingeniosi) vigorava até a chegada da retórica grega. Nesse sentido, Crasso diz:
92 Vide nota 29. 93 Cf. citação direta em p. 43.
59
“Sic igitur” inquit “sentio” Crassus “naturam primum atque ingenium ad
dicendum uim adferre maximam; neque uero istis, de quibus paulo ante dixit Antonius, scriptoribus artis rationem dicendi et uiam, sed naturam defuisse;
nam et animi atque ingeni celeres quidam motus esse debent, qui et ad
excogitandum acuti et ad explicandum ornandumque sint uberes et ad
memoriam firmi atque diuturni; et si quis est qui haec putet arte accipi posse, — quod falsum est; praeclare enim res se habeat, si haec accendi aut
commoueri arte possint; inseri quidem et donari ab arte non possunt; omnia
sunt enim illa dona naturae [...]. Quid de illis dicam, quae certe cum ipso
homine nascuntur, linguae solutio, uocis sonus, latera, uires, conformatio
quaedam et figura totius oris et corporis? Neque enim haec ita dico, ut ars
aliquos limare non possit — neque enim ignoro, et quae bona sint, fieri
meliora posse doctrina, et, quae non optima, aliquo modo acui tamen et corrigi posse —-, sed sunt quidam aut ita lingua haesitantes aut ita uoce
absoni aut ita uultu motuque corporis uasti atque agrestes, ut, etiam si
ingeniis atque arte ualeant, tamen in oratorum numerum uenire non possint; sunt autem quidam ita in eisdem rebus habiles, ita naturae mulieribus ornati,
ut non nati, sed ab aliquo deo ficti esse uideantur. (De orat. I, 113-5)
Disse Crasso: - Penso, então, que, em primeiro lugar, a natureza e o engenho
conferem o maior poder à oratória e que, na verdade, não faltou, a esses
escritores de manuais mencionados há pouco por Antônio, doutrina ou método
oratórios, mas talento. De fato, é preciso que alguns reflexos da mente e da inteligência sejam rápidos, de modo a serem perspicazes na reflexão e no
desenvolvimento, férteis no ornar, poderosos e duradouros na memória. E, se
houver alguém que julgue que tais coisas podem ser adquiridas pela arte (o que é falso: de fato, já será algo admirável se tais coisas puderem ganhar
estímulo e impulso por meio da arte; elas não podem, porém, ser implantadas
ou concedidas pela arte, pois são, todas elas, dádivas da natureza), que dizer daquelas que com certeza nascem com o próprio homem: a desenvoltura da
fala, o som da voz, os pulmões, as forças, certa conformação e aspecto da face
em geral e do corpo? Com efeito, não afirmo que a arte não possa aperfeiçoar
a alguns, bem como não ignoro que o que é bom possa se tornar melhor por meio da formação teórica, e o que não é muito bom possa ser aguçado e
corrigido; mas há outros de tal forma hábeis de fala tão hesitante ou de voz
tão desarmoniosa, ou de expressão e movimentos corporais tão excessivos e grosseiros, que ainda que lhes valha a inteligência e a arte, não podem entrar
para o número de oradores; em contrapartida, há outros de tal forma hábeis
nesses mesmos quesitos, de tal forma adornados com os dons da natureza, que
parecem ter não nascido, mas sido moldados por alguma divindade.
É interessante perceber, na passagem acima, como o entendimento de Crasso sobre
a oratória passa por noções como natura, ingenium, ars. O orador parece-lhe, a todo momento,
um indivíduo possuidor de dons naturais (dona naturae) que devem ser aprimorados por uma
educação (doctrina) ou técnica (ars). No entanto, perceba-se a nítida primazia da natureza,
representada pelos termos natura e ingenium, sobre a educação, aí referida ars. Crasso, para
ressaltar o argumento, critica os autores de manuais, alegando que lhes faltava talento e
apontando as limitações dos seus métodos, numa espécie de tentativa de desautorizar a sua
prática. De acordo com Crasso, a natureza (natura) e o talento (ingenium) oferecem a maior
60
contribuição possível à oratória. Logo em seguida, é listada uma série de requisitos entendidos
como primordiais para o pleno desenvolvimento do discursar: movimentos da mente e da
inteligência (animi atque ingeni celeres quidam motus) que permitam ao orador raciocinar e
demonstrar com argúcia e presteza, embelezar com abundância e memorizar com firmeza e
duração (qui et ad excogitandum acuti et ad explicandum ornandumque sint uberes et ad
memoriam firmi atque diuturni). Esses primeiros elementos parecem dizer respeito à natureza
psicológica do discípulo: perspicácia, presteza, uma espécie de criatividade e memória. Logo à
frente, como que em oposição, teremos elementos mais físicos: desenvoltura da fala, o som da
voz, os pulmões, as forças, certa conformação e aspecto da face em geral e do corpo (linguae
solutio, uocis sonus, latera, uires, conformatio quaedam et figura totius oris et corporis).
Todavia, não fica claro no excerto se ambos os termos, natura e ingenium, podem
referir-se à natureza física e psicológica do indivíduo, se apenas um deles pode fazê-lo, se cada
um é específico de uma determinada natureza. Segundo consta de Pellicer (1966, p. 18-9),
natura, por ser mais ampla que ingenium, pode denotar temperamento, caráter, personalidade
ou ainda dons naturais em geral, compreendendo também as qualidades físicas indispensáveis
à oratória. Essa acepção aparece sobretudo quando o termo vem acompanhado de determinante
ou está empregado no plural, situações bastante restritas (ibid., loc. cit.). Diz ele que natura
pode significar noções abstratas de inerência também quando em oposição a noções que
signifiquem artificialidade, tais como ars, ratio, doctrina e studium, ou em contextos menos
técnicos, e, por isso, menos precisos; contextos, enfim, diferentes do de reflexão retórica que
encontramos em De oratore. A despeito da versatilidade de natura, ingenium aparece na imensa
maioria dos casos como termo latino preciso para designar esses dons inerentes, as faculdades
intelectuais do indivíduo, o que lhe faz dizer que, no período clássico, ingenium fosse o termo
próprio para significar inteligência, dons inerentes ao espírito (ibid., p. 17). Se nos fosse lícito
usar de linguagem matemática e metafórica para sintetizar o que diz Pellicer (1996), diríamos
que ingenium, ou o conjunto das qualidades abarcadas por esse termo, está contido num
conjunto maior chamado natura, capaz de abranger igualmente todos os dons conferidos pela
natureza.
Müller (2001, p. 321), por sua vez, relembra que o termo ingenium origina-se de in-
gigno, expressão cujo sentido é de “incutido de nascença”. A palavra, segundo refere a
estudiosa, se aplicada a uma coisa, diz das suas qualidades naturais, mas, se aplicada a um ser
humano, antes de tudo, adquire um sentido global: disposições naturais desse indivíduo,
temperamento, a sua própria natureza ou caráter. Pode se referir também às disposições
61
intelectuais como a inteligência ou a sensibilidade, que dariam origem à acepção de talento
natural, de dons naturais, muito usado por autores que tematizam a retórica ou a educação
oratória. Müller ressalta que, nessa última possibilidade, parece estar contida a ideia moderna
de engenho, isto é, talento, gênio, como faculdade responsável pela invenção, pela imaginação
ou mesmo pela inspiração. O dicionário apresenta as seguintes acepções:
ingenium – (i)ī, n. [INi- + gen- (GIGNO) + - IUM]94 1 (of persons) Natural disposition, temperament. b (meton.) one having a specified disposition. c
temporary disposition, mood. 2 Inherent quality or character (of things). 3
Natural inclination or desire. 4 Mental powers, natural abilities, talent, intellect, etc. (esp. w. implication of excellence). b (meton.) one having (good)
mental powers, abilities, or sim. c the mind (as the seat of thoughts, ideias) 5
(spec.) Literary or poetic talent, inspiration, etc. b (meton.) a man of literary abilities, a gifted writer, or sim. 6 Cleverness, skill, ingenuity. b (quasi-concr.)
a clever device, contrivance.95
Além dessa definição, extensa e quase exaustiva, Cícero fornece outra, menos
extensa e exaustiva, porém mais filosófica, relacionando-a às partes da alma:
Animi autem et eius animi partis, quae princeps est, quaeque mens nominatur,
plures sunt uirtutes, sed duo prima genera, unum earum, quae ingenerantur
suapte natura appellanturque non uoluntariae, alterum autem earum, quae in uoluntate positae magis proprio nomine appellari solent, quarum est
excellens in animorum laude praestantia. Prioris generis est docilitas,
memoria; quae fere omnia appellantur uno ingenii nomine, easque uirtutes qui habent, ingeniosi uocantur.
Pois bem, da alma e desta parte da alma que tem a primazia, e que é denominada mente, múltiplas são as virtudes, mas são, primeiramente, de dois
gêneros: um, o daquelas que são inatas por sua própria natureza e que são
chamadas não-voluntárias; o outro, por sua vez, o daquelas que, tendo
fundamento na vontade, costumam ser chamadas virtudes em sentido mais próprio, às quais pertence a mais alta excelência que se louva nas almas. Do
primeiro gênero são a facilidade de aprender e a memória e quase todas as
coisas que, numa só palavra, são chamadas engenho; essas virtudes, quem as possui, é dito ‘dotado de engenho’. (Fin. V, 36. In: LIMA, 2009, p. 583)
Dessas definições de ingenium, chamamos atenção para algumas questões: não há
referências a caracteres físicos. As sugestões de tradução para ingenium parecem relacionar o
94 Ingenium é oriundo da junção da preposição in ao verbo gigno e ao sufixo formador de substantivo -ium. A
preposição detém a ideia de algo que está, de fato, dentro mesmo de uma pessoa ou de um objeto e frequentemente
se une a verbos assumindo função de prefixo, mas ainda mantendo seu sentido preposicional. O verbo gigno, por
sua vez, significa, no sentido próprio, engendrar, gerar ou causar o nascimento ou mesmo o desenvolvimento de criaturas viventes; pode também significar, por extensão, criar ou produzir objetos a partir de si mesmo, como no
caso da natureza; por fim, chega-se à acepção de criar ou produzir coisas através de meios intelectuais. O sufixo -
ius ou -ium finaliza a formação da palavra, conferindo a ideia de substância. 95 Ingenium, ~i. In: Oxford Latin Dictionary. Oxford: The Clarenton Press, 1968, p. 906-7.
62
termo apenas à natureza psicológica do indivíduo, “natural dispositions, temperament, talent,
inherent quality of character, mind”. Percebe-se também alguma semelhança entre acuti e
uberes do ingenium oratório de Cícero e cleverness e ingenuity da sexta acepção de OLD, ou
seja, a rapidez e a facilidade da mente no aprendizado seriam características fundamentais, ao
que parece, para classificar um indivíduo como ingeniosus. Da mesma forma, podemos inserir
na quarta acepção, que fala de capacidades e habilidades mentais e intelectuais como a memória
e a astúcia (ingeni acuti), que se opõem à tarditas ingenii.
Seguindo as considerações de Pellicer (1966), assim como as definições de Cícero
presentes no OLD, que nos levam a crer que ingenium seria mais interno, por assim dizer, os
indícios da sua presença no indivíduo seriam a presteza da inteligência, a perspicácia na
reflexão, a fertilidade no ornar. De acordo com Müller (2000, p. 326), essas qualidades
intelectuais são específicas do talento do orador. Para a estudiosa, essas qualidades se
relacionam aos conceitos fundamentais da retórica: inuentio (invenção),96 elocutio (elocução),97
copia rerum et uerborum (riqueza de temas e palavras).98 A primeira qualidade do espírito e do
talento na caracterização do homem eloquente é a perspicácia (a sutileza penetrante na
invenção).
Neste sentido, podemos entrever outras relações. Quanto à perspicácia (acuitas), é
possível entrever uma certa relação com a narratio, etapa em que o orador deve apresentar e
interpretar os fatos a fim de demostrar os pontos favoráveis à sua causa e criar nos ouvintes
uma convicção (TRENK, 1997, p. 145). A facilidade com que o discípulo constrói relações de
verossimilhança e compatibilidade entre as narrativas e seus personagens (e suas respectivas
índoles), sejam eles acusados ou acusadores, levando em consideração o lugar e o tempo, assim
como as prováveis refutações do adversário, é um elemento observável fundamental para que
se desenvolva. De modo oposto, a perspicácia e a presteza poderão ser vistas quando o discípulo
desfizer a convicção do público na narrativa adversária através da rápida e atenta percepção dos
vícios que ela apresenta e através da refutação, por meio dos seus apontamentos, das relações
96 “A invenção é a descoberta de coisas verdadeiras ou verossímeis que tornem a causa provável” (Inuentio est excogitatio rerum uerarum aut ueri similium, quae causam probabilem reddant). (Rhet. Her. I, ii, 3; In: CÍCERO,
2005, p. 55) 97 “Elocução é a acomodação de palavras e sentenças adequadas à invenção” (Elocutio est idoneorum uerborum
et sententiarum ad iuentionem adcommodatio). (Rhet. Her. I, ii, 3; CÍCERO, 2005, p. 55) 98 “Na retórica clássica res estava associada ao cultivo da inuentio, enquanto as uerba (palavras) compreendiam
não apenas as unidades léxicas como sinônimos, mas também os tropos e outras figuras verbais, sendo a elocutio
o seu domínio. Ainda que com campos diferenciados e independentes, a combinação entre a copia rerum (riqueza
de temas) e a copia uerborum (riqueza de palavras), era fundamental para a realização de um bom discurso
(PINTO, 2006, p. 206)”.
63
mal estabelecidas entre os seus argumentos. Por fim, seguindo a ordem da fala de Crasso, é
preciso ainda que o discípulo demonstre uma memória capaz de guardar com firmeza e duração
não apenas as palavras e o conteúdo (uerba e res), mas, sobretudo, a cadência, a entonação, a
gesticulação e a expressão preestabelecidas. Quintiliano também faz menção do exercício de
recontar histórias do fim ao início ou mesmo do meio para qualquer dos dois sentidos.99
A propósito, há, na Institutio de Quintiliano, admirador e leitor de Cícero e de sua
obra, algumas passagens que aludem aos mesmos caracteres mentais referidos pelo arpinate:
Falsa enim est querela, paucissimis hominibus uim percipiendi quae
tradantur esse concessam, plerosque uero laborem ac tempora tarditate
ingenii perdere. Nam contra plures reperias et faciles in excogitando et ad
discendum promptos. (...) Ita nobis propria est mentis agitatio atque sollertia:
unde origo animi caelestis creditur.
Porque é falsa a queixa que sustenta ser concedida a pouquíssimos homens a
capacidade de aprender e que a maioria, na verdade, perde tempo e trabalho
com a lerdeza da inteligência. Pelo contrário, pois encontrarias muitos tanto férteis para refletir quanto prontos para aprender. Assim, a agitação e a
agilidade da mente é inerente a nós: daí creditarem a origem do espírito aos
céus. (Inst. I, i, 1; Tradução de nossa lavra)
Tradito sibi puero docendi peritus ingenium eius in primis naturamque
perspiciet. Ingenii signum in paruis praecipuum memoria est: eius duplex
uirtus, facile percipere et fideliter continere. Proximum imitatio: nam id
quoque est docilis naturae, sic tamen ut ea quae discit effingat (...).
Tendo-lhe sido entregue o pequeno, o mestre examinará seu engenho e seu caráter. O primeiro indício de talento nos pequenos é a memória, a dupla
virtude de aprender com facilidade e fixar com fidelidade. O próximo indício
é a imitação, pois, ela também está presente nos temperamentos maleáveis, de
modo que reproduza aquilo que aprendeu. (Inst. I, i, 1; Tradução de nossa lavra)
Vitium utrumque, peius tamen illud quod ex inopia quam quod ex copia uenit. Nam pueris oratio perfecta nec exigi nec spari potest; melior autem indoles
laeta generosique conatus et uel plura iusto concipiens interim spiritus.
É pior, contudo, o vício da indigência que o da abundância. De meninos não
se pode nem exigir nem esperar um discurso perfeito, mas o melhor é o gênio
fértil, os esforços ambiciosos e a inspiração que, ocasionalmente, vai mais
longe do que seria apropriado. (Inst. II, iv, 4; In: FALCÓN, 2015, p. 35)
99 “De início, quando os meninos estão aprendendo a falar, repetir o que ouviram é útil para desenvolver sua
facilidade de linguagem, e com proveito são eles obrigados a expor as estórias de trás para a frente, ou partir do meio para qualquer das duas direções. Com isso vão fortalecendo a memória” (Nam ut primo, cum sermo
instituitur, dicere quae audierint utile est pueris ad loquendi facultatem, ideoque et retro agere expositionem et a
media in utramque partem discurrere sane merito cogantur, sed ad gremium praeceptoris et dum non possunt et
dum res ac uerba conectere incipiunt, ut protinus memoriam firment). (Inst. II, 4, 15)
64
Quintiliano, ao passo que fornece ao mestre de retórica que o lê indícios (signa) de
natureza favorável à oratória, pede atenção à natura e ao ingenium do aluno, atributos abstratos
que indicarão se o discípulo possui ou não os dons necessários à arte retórica. Cícero, por não
ser seu objetivo descer a minúcias da educação oratória, não se detém nesses indícios, apenas
os menciona de passagem. Quintiliano, mestre de retórica interessado em preparar uma
formação oratória que vai da infância à velhice, quando os cita, justifica a sua menção: a
memória é importante porque permitirá aprender e fixar com facilidade; a abundância porque,
na oratória, diz ele, é preferível podar os vícios a desenvolver as virtudes.100 De qualquer modo,
são apontadas características bastante próximas: agitação e agilidade da mente (mentis agitatio
atque sollertia), lentidão da inteligência (tarditas ingeni), facilidade para refletir (facilitas in
excogitando), temperamento maleável (docilis natura), gênio fértil (indoles laeta), memória
(memoria) e inspiração (spiritus); todos, enfim, caracteres da natura e do ingenium demandados
pela oratória.
Os demais usos de ingenium em De oratore I, trinta e quatro no total, referir-se-ão
ao talento, à inteligência ou ao demais dotes naturais intangíveis das personagens como, por
exemplo, em ingenium Scaeuolae (De orat. I, 243), ou ingenia nostrorum hominum (De orat.
I, 16), ou em summos homines ac summis ingeniis praeditos (De orat. I, 6), quid censes, si ad
alicuius ingenium uel maius illa, quae ego non attingi, accesserint, qualem illum et quantum
oratorem futurum (De orat. I, 79), ou ainda em Antoni incredibilis quaedam et prope singularis
et diuina uis ingeni (De orat. I, 172). Esses enunciados como que nos obrigam a retomar Fin.
V, 36 para aduzir para um aspecto interessante do ingenium: sua relação com a vontade
(uoluntas) e com a alma (anima).101 O ingenium parece algo que independe das vontades
(uoluntates) do indivíduo, uma espécie de capacidade mental tão inerente e, ao mesmo tempo,
tão individual, no sentido de constituinte da alma do indivíduo, por isso, algo modificado ou
transferido a grandes custos.
Levando a questão dos dons naturais, ainda com base em De orat. I, 113-5, aos
caracteres físicos que nascem com o indivíduo, veremos aparecerem a fala desenvolta, o som
da voz, os pulmões e a aparência (quae certe cum ipso homine nascuntur, linguae solutio, uocis
sonus, latera, uires, conformatio quaedam et figura totius oris et corporis). Esses dons da
natureza (dona naturae) tão caros à oratória, a princípio distinguiam os indivíduos dotados de
100 “Fácil é remediar a fartura; sobre o que é estéril, contudo, não há esforço que prevaleça” (Facile remedium est
ubertatis, sterilia nullo labore uincuntur). (Inst. II, iv, 6; In: FÁLCON, 2015, p. 35) 101 Cf. citação direta em p. 50-1.
65
uma natureza física propícia à atividade. Mas cumpre, antes de tudo, verificar se as afirmações
de Pellicer (1966) são endossadas pelo dicionário:
nātūră -ae, f. [nascor + -VRA] 1 The conditions of birth (sts. personief)
as determining: a physical characteristics. b character, ability, etc. c
status, relationships, etc. 2 Nature (as the power which determines the
physical properties of animals, plants and the other natural products). b
(As the power which regulates physical requirements). c (as determining the span of life). 3 Nature as the power which determines
the innate character and feelings of human beings. 4 Nature as the
power which governs the physical universe and directs all natural processes. b (as the creator of the world and all it contains); ~ā (alb.,
also per ~am), as the result of natural growth of processes, naturally. 5
a (phil.) Nature as the guiding principle in life. b natural order as a
source of law. 6 The natural course (of events), the way things happen; (esp.) -a rerum. b in (rerum) ~ā esse, to a possible contingency. c ~ā
(abl.), by the nature of things, naturally. 7 The physical world, creation.
8 The physical characteristics, size, shape, structure, etc. of a person b the nature of the physical features (of a district, town, etc.). 9 The nature
of a thing regarded as determined by its function of properties,
constitution. c the natural or proper meaning (of a word); (gram.) the force (of a case or voice). d (periphr. w. gen. = a thing being constituted
as it is). 10 a A particular distinctive feature or characteristic. b a natural
power or faculty. 11 Character, temperament, nature. b the character (of
men in general), (human) nature. 12 Abilities, natural endowments. b
sua ~ā (abl.), by its inherent nature, of its own accord. 13 A natural
appearance, naturalness (art). 14 Category of existence, order of being.
b (w. defining gen.) ~a rerum, the natural order. c 9w. defining adj.) 15 The external organs of generation, the private parts.102
A primeira observação a ser apontada é que natura é, de longe, um termo muito
mais abrangente que ingenium, conforme antecipou Pellicer (1996). A segunda seria que, à
parte as acepções 2, 4, 5, 6, 14, 15, pertinentes à natureza das coisas, à natureza enquanto
categoria ou ainda à natureza em si, que parecem distar um pouco da nossa discussão, sobrariam
possibilidades bastante similares e atinentes a caracteres inerentes ao homem, sejam eles físicos
ou “espirituais”, confirmando o que fora dito por Pellicer (1996) e a nossa analogia dos
conjuntos.103 A terceira ficaria a cargo das referências à natureza física presentes nas acepções
1, 7, 8 e 9, mas totalmente ausentes em ingenium, que nos levam a considerar que a
possibilidade de seguir Pellicer (1966), pensando, no contexto de De oratore I, ingenium, de
fato, seja utilizado para designar os caracteres psicológicos, e natura, os físicos e psicológicos,
não obstante em De orat. I, 113-5 esteja associada apenas aos físicos.
102 Natura, ae. In: Oxford Latin Dictionary. Oxford: The Clarenton Press, 1968, p. 1158-9. 103 Cf. p. 50
66
Se pudéssemos relacionar esses dotes físicos a alguma etapa ou termo do discurso
oratório, como fizemos há pouco, relacioná-los-íamos, sem dúvidas, à actio. Actio, diz Garavelli
(p. 324), provém do termo grego hypocrisis, que, no início, significava a interpretação do ator
(hypokrités), a ação teatral, associada à modulação da voz, à gesticulação e à movimentação. A
retórica apropria-se do termo para designar a ação de pronunciar o discurso, que naturalmente
também requer boa utilização da voz e dos movimentos. Nesse particular, o autor da Retórica
a Herênio tece uma série de recomendações, por vezes, de natureza terapêutica, com vistas a
adequar a atuação do orador, por assim dizer, às etapas do discurso. No exórdio, por exemplo,
deve usar uma voz suave e pausada para não causar danos à traqueia, dado que ela ainda não
está suficientemente aquecida para suportar grandes exclamações. Era esperado também que o
orador apresentasse uma modulação adequada das feições, bem como gestos e moderados. Na
narração, é preciso utilizar várias vozes de modo a mostrar que narramos cada coisa assim como
aconteceu, adequando, claro, o rosto e o gestual ao teor das palavras e ao caráter das
personagens. A amplificação, por outro lado, será pronunciada com uma voz aguda, ininterrupta
e rápida. É evidente que os pulmões devem suportar esse fluxo de palavras de modo a garantir
a potência, altura e duração. Esse pronunciamento, claro, precisa ser acompanhado de gestual
e movimentação congêneres. Todos esses detalhes da actio, ressalta o autor de Ad Herennium,
tornam mais prováveis o discurso, porque fazem parecer que ele brota do ânimo
(pronuntationem bonam id proficere, ut res ex animo agi uideatur)104 e fazem dela, segundo o
autor, a etapa mais útil e mais persuasiva de todas.105
Em vista de tudo isso, gostaríamos de apontar algumas impressões. Primeiro, vê-se
que actio é uma etapa essencialmente física e bastante ligada aos caracteres físicos listados por
Cícero em De orat. I, 113-5. Segundo, há algumas semelhanças entre o referido excerto e Inst.
I, prooemium, xxvii:
Sunt et alia ingenita cuique adiumenta, uox, latus patiens laboris, ualetudo,
constantia, decor, quae si modica optigerunt, possunt ratione ampliari, sed
104 Cf. Rhet. Her. III, 26-7. 105 “Muitos disseram que a pronunciação é o que há de mais útil ao orador e de maior eficácia para persuadir. Nós
não diríamos tão facilmente, sem receio, que uma das cinco partes possa mais que as outras; mas, sem receio,
asseguraríamos que há utilidade particularmente grande na pronunciação. Sem pronunciação, a invenção cômoda,
a elocução harmoniosa das palavras, a disposição artificiosa das partes e a memória zelosa de tudo não valerão
mais do que, sem elas, poderia valer a pronunciação sozinha” (Pronuntationem multi maxime utilem oratori
dixerunt esse et ad persuadendum plurimum ualere. Nos quidem unum de quinque rebus plurimum posse non facile dixerimus, egregie magnam esse utilitatem in pronuntiatione audacter confirmauerimus. Nam commodae
inuentione et concinnae uerborum elocutione et partium causae artificiosae dispositione et horum omnium
diligens memoria sine pronunciatione non plus, quam sine his rebus pronuntatio sola ualere poterit). (Rhet. Her.
III, 19; In: CÍCERO, 2005, p. 172-3)
67
nonnumquam ita desunt ut bona etiam ingenii studiique corrumpant: sicut
haec ipsa sine doctore perito, studio pertinaci, scribendi legendi dicendi multa et continua exercitatione per se nihil prosunt.
Há outros auxílios nascidos com cada um: a voz, os pulmões resistentes ao
trabalho, saúde, perseverança, beleza, que, se foram dados pela natureza, podem ser ampliados pela técnica, mas, por vezes, faltam de modo tal que
arruínam os préstimos do talento e do empenho, assim como esses mesmos
préstimos, sem um mestre competente, sem o estudo perseverante, sem a prática contínua e abundante da leitura, da escrita, por si próprias não
encontram serventia. (Inst. I, prooemium, xxvii; Tradução de nossa lavra).
Com evidente exceção de constância e perseverança, todos os aspectos apontados
também estão presentes na passagem ciceroniana. Note-se também a consideração, a princípio,
congênere à do arpinate acerca dos caracteres artificiais, como o preceptor competente, o
empenho e o exercício, ou seja, fazendo concessões aos estudos retóricos, mas depois
dissonante. Quintiliano marca seu posicionamento de mestre ao afirmar que também não
servem de nada os dons naturais, sejam eles do espírito ou do corpo, sem o auxílio do trabalho
técnico. Também o faz o preceptor da Retorica ad Herennium. Diz ele, em Rhet. Her. III, 20,
que a configuração da voz pode ser desenvolvida pelo método e pela diligência (ratione et
industria), que a magnitude da voz é em grande parte dada pela natureza (natura) e que a
flexibilidade da voz pode ser trabalhada pelo exercício (exercitatio).106
Para finalizar o comentário acerca de natura com base em De orat. I, 113-5, vemos
que o aspecto físico é novamente considerado fator determinante para a manutenção ou
desistência do discípulo na educação oratória. Segundo Crasso, há quem tenha a língua tão
hesitante, uma voz tão desagradável, expressão e movimentos tão grosseiros que, ainda que
treinasse bastante, jamais poderia se tornar orador (sunt quidam aut ita lingua haesitantes aut
ita uoce absoni aut ita uultu motuque corporis uasti atque agrestes, ut, etiam si ingeniis atque
arte ualeant, tamen in oratorum numerum uenire non possint). De fato, novamente temos
apenas caracteres físicos, e, nessa esteira, Cícero afirma, em Off. I, 126, que a adequação
(decorum), subentendida na “actio”, é discernível em todos os feitos, ditos e até no momento e
na atitude do corpo, e consiste na beleza, na ordem e no ornamento adequado para a ação (in
106 “A configuração da voz é o que lhe confere caráter próprio, alcançado com método e esforço. (...) Por isso,
quanto à magnitude e à estabilidade da voz, já que uma é dada pela natureza e a outra se obtém com o cultivo,
nada nos concerne aconselhar senão que se busque o método de cultivar a voz com aqueles que não ignoram essa
arte” (Figura uocis est ea, quae suum quendam possidet habitum ratione et industria conparatum. [...] Quapropter
de magnitude uocis et firmitudinis parte, quoniam altera natura paritur, altera cura comparatur, nihil nos adtinet
commenere, nisi ut ab iis, qui non inscii sunt eius artificii, ratio curandae uocis petatur). (Rhet. Her. III, 20; In:
CÍCERO, 2005, p. 173)
68
corporis denique motu et statu, cernitur idque positum est in tribus rebus, formositate, ordine,
ornatu ad actionem apto).107 A desobediência dessa adequação geraria os chamados vícios
(uitia), opostos às virtudes (uirtutes).
Quanto à uox absona, o arpinate diz, em De orat. III, 40-1,108 que ela (não) pode
ser tanto mollis e muliebris quanto absonus e absurdus, este último utilizado por Cícero. A fala
absona, ou seja, afastada do som apropriado, seria caracterizada por ser uma fala com pouco
volume, quase inaudível (DEUR, 1997, p. 58). Ainda sobre o som, quanto à lingua haesitans,
imagina-se que Cícero se referisse a indivíduos com gagueira ou com alguma dificuldade, talvez
fisiológica, na pronúncia das palavras, até porque, segundo ele, a voz deve ser clara e suave,
em nada obscura, com o som nítido e agradável, conforme a natureza.109 Quanto ao uultus
motusque corporis uasti atque agrestes, Cícero recomenda que se deve prezar pela adequação
também nos movimentos, isto é, o indivíduo precisa seguir a sua natureza e fugir de tudo que
seja repugnante aos olhos e ouvidos, mantendo o decoro na quietude, no andar, no sentar, no
rosto, nos olhos, nos movimentos das mãos, evitando tudo que seja efeminado ou rústico.110
107 “Mas o decoro é discernido em todos os feitos, ditos e até no movimento e na atitude do corpo, e está colocado
em três coisas, na beleza, na ordem e no ornamento apto para ação” (Sed quoniam decorum illud in omnibus factis,
dictis, in corporis denique motu et statu, cernitur idque positum est in tribus rebus, formositate, ordine, ornatu ad
actionem apto). (Off. I, 126; In: CHIAPPETTA, 1997, p. 278-9) 108 “E, para falar corretamente, não apenas devemos atentar para que pronunciemos palavras que não deem motivo
para censura e para que as preservemos em relação a casos, tempos, gênero e número de tal forma que não haja
nenhuma confusão, discrepância ou inversão, mas também controlar a fala, a respiração e o próprio tom da voz.
Não quero que as letras sejam pronunciadas com afetação, não quero que se pronuncie indistintamente, com
descuido. Não quero que as palavras saiam fracas e ofegantes, não quero que saiam altas e com dificuldade,
pesadamente. De fato, ainda não estou falando da voz no que diz respeito à atuação, mas no que parece estar ligado
à fala, por assim dizer. Há certos vícios que todos desejam evitar: uma voz mole, efeminada ou dissonante além da medida, por assim dizer, e desagradável ao ouvido” (Atque, ut Latine loquamur, non solum uidendum est, ut et
uerba efferamus ea, quae nemo iure reprehendat, et ea sic et casibus et temporibus et genere et numero
conseruemus, ut ne quid perturbatum ac discrepans aut praeposterum sit, sed etiam lingua et spiritus et uocis
sonus est ipse moderandus Nolo exprimi litteras putidius, nolo obscurari neglegentius; nolo uerba exiliter
exanimata exire, nolo inflata et quasi anhelata grauius. Nam de uoce nondum ea dico, quae sunt actionis, sed hoc,
quod mihi cum sermone quasi coniunctum uidetur: sunt enim certa uitia, quae nemo est quin effugere cupiat;
mollis uox aut muliebris aut quasi extra modum absona atque absurda). (De orat. III, 40-1) 109 “Já que temos a voz como registro do discurso e na voz seguimos duas coisas, que seja clara, que seja suave,
cada uma das duas deve ser tirada inteiramente da natureza; o exercício aumentará uma, a imitação dos que falam
concisa e suavemente, outra. Nada houve nos Cátulos para achares que usaram de um julgamento apurado das
letras, embora fossem letrados, mas também outros o eram; por outro lado, considerava-se que esses usavam a
língua latina otimamente; o som era doce e as letras não eram nem espremidas nem oprimidas, para que o som não ficasse obscuro nem afetado” (Sed cum orationis indicem uocem habeamus, in uoce autem duo sequamur, ut clara
sit, ut suauis, utrumque omnino a natura petundum est, uerum alterum exercitatio augebit, alterum imitatio presse
loquentium et leniter. Nihil fuit in Catulis, ut eos exquisito iudicio putares uti litterarum, quamquam erant litterati;
sed et alii; hi autem optime uti lingua Latina putabantur. Sonus erat dulcis, litterae neque expressae, neque
oppressae, ne aut obscurum esset aut putidum, sine contentione uox nec languens nec canora). (Off. I, 133; In:
CHIAPPETTA, 1997, p. 281) 110 “Sigamos nós a natureza e fujamos de tudo que repugna à aprovação dos olhos e dos ouvidos; a quietude, o
andar, o sentar, o colocar-se à mesa, o rosto, os olhos, o movimento das mãos mantenham aquele decoro. Nisso,
duas coisas devem ser evitadas acima de tudo: que nada seja efeminado ou mole nem duro ou rústico. Nem aos
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Devem ser evitados excessos grandiloquentes e o caráter feminil, buscando a mediania até
mesmo nas roupas.
Um aspecto a ser ressaltado a respeito desses caracteres físicos, segundo Cícero,
dados pela natureza, é a possibilidade de associação à actio, aliás, citada pelo autor em Off. I,
128-133. Como expusemos há pouco, a actio diz respeito ao pronunciamento do discurso em
público, e um indivíduo de língua hesitante, seja ele gago ou portador de alguma espécie de
dificuldade grave de comunicação ou pronúncia, poderia pronunciar esse discurso de modo a
não ser compreendido pelos ouvintes. De igual modo, isso poderia ocorrer ao gestual e à
expressão. As paixões suscitadas devem ser acompanhadas por gestos que manifestem o
assunto, que sejam condizentes com ele, por mãos que acompanhem as palavras e até mesmo
por batidas dos pés. Também desempenham papel fundamental na oratória o rosto e, sobretudo,
os olhos. Porque toda a atuação diz respeito ao ânimo, cujo reflexo está na expressão e no olhar.
É que todas as paixões existentes, diz Crasso, podem ser expressas e transformadas com os
movimentos dos olhos, sem os quais seria impossível fazê-lo. Mas deve-se prezar pela mediania
também nesse ponto para garantir a sobriedade do pronunciamento.111
atores e oradores deve ser concedido que sejam aptas essas coisas, dissolutas para nós. (...) Há dois tipos de beleza,
num dos quais há encanto, no outro, dignidade; devemos julgar o encanto feminino, a dignidade, viril. Logo, seja
removido da aparência todo ornamento não digno do homem e, no gesto e no movimento, seja evitado todo vício
semelhante a esse. (...) A dignidade da aparência deve ser mantida graças à boa cor; e a cor, graças aos exercícios
do corpo. Além disso, deve ser aplicada uma elegância não odiosa nem requintada em demasia, somente aquela
que evite uma negligência agreste e desumana. A mesma regra deve ser mantida para o vestuário, no qual, como
na maioria das coisas, a mediania é o melhor” (Nos autem naturam sequamur et ab omni, quod abhorret ab
oculorum auriumque approbatione fugiamus; status, incessus, sessio, accubitio, uultus, oculi, manuum motus
teneat illud decorum. Quibus in rebus duo maxime sunt fugienda, ne quid effeminatum aut molle et ne quid durum aut rusticum sit. Nec uero histrionibus oratoribusque concedendum est, ut is haec apta sint, nobis dissoluta [...].
Cum autem pulchritudinis duo genera sint, quorum in altero uenustas sit, in altero dignitas, uenustatem muliebrem
ducere debemus, dignitatem uirilem. Ergo et a forma remoueatur omnis uiro non dignus ornatus, et huic simile
uitium in gestu motuque caueatur. [...] Adhibenda praeterea munditia est non odiosa neque exquisita nimis, tantum
quae fugiat agrestem et inhumanam neglegentiam. Eadem ratio est habenda uestitus, in quo, sicut in plerisque
rebus, mediocritas optima est). (Off. I, 128-130; In: CHIAPPETTA, 1997, p. 278-9) 111 “Todas essas paixões devem ser acompanhadas por gestos, mas não os do teatro, que representam as palavras,
mas que manifestem todo o assunto e todo o pensamento por um sinal, não por uma demonstração, com esta
inflexão forte viril dos pulmões, proveniente, não do teatro e dos atores, mas do exército ou mesmo do ginásio. A
mão menos evidente, que siga, não represente, as palavras com os dedos; a batida do pé no começo ou no fim dos
embates. Mas tudo está no rosto: é exatamente nele que se encontra todo o poder dos olhos. Por isso agiram com
mais acerto aqueles nossos velhos, que não elogiavam fortemente nem mesmo Róscio com a máscara. De fato, toda a atuação diz respeito ao ânimo, e a imagem do ânimo é a expressão, seus indícios, os olhos. É que esta é a
única parte do corpo que é capaz de realizar as demonstrações e mudanças de todas as paixões que existem e, na
verdade, não há ninguém que possa o mesmo de olhos fechados. (...) Por isso é importante o controle dos olhos.
De fato, não se deve mudar excessivamente o aspecto do rosto para que não sejamos rebaixados a impertinências
ou a alguma deformidade” (Omnis autem hos motus subsequi debet gestus, non hic uerba exprimens scaenicus,
sed uniuersam rem et sententiam non demonstratione, sed significatione declarans, laterum inflexione hac forti ac
uirili, non ab scaena et histrionibus, sed ab armis aut etiam a palaestra; manus autem minus arguta, digitis
subsequens uerba, non exprimens; bracchium procerius proiectum quasi quoddam telum orationis; supplosio
pedis in contentionibus aut incipiendis aut finiendis. Sed in ore sunt omnia, in eo autem ipso dominatus est omnis
70
Nessa esteira, o que se mostra em boa parte da exposição de Crasso é, de fato, uma
valorização do ingenium e da natura do orador, colocando-os como um elemento fundamental
para a educação e para o seu êxito. Na mesma linha, em um trecho mais à frente, Antônio inicia
uma exposição que vai ao encontro das ideias de Crasso ao introduzir o exemplo de um certo
mestre de retórica chamado Apolônio de Alabanda:
Illud uero, quod a te dictum est, esse permulta, quae orator a natura nisi haberet, non multum a magistro adiuuaretur, ualde tibi adsentior inque eo uel
maxime probaui summum illum doctorem, Alabandensem Apollonium, qui
cum mercede doceret, tamen non patiebatur eos, quos iudicabat non posse oratores euaderet, operam apud sese perdere, dimittebatque et ad quam
quemque artem putabat esse aptum, ad eam impellere atque hortari solebat.
Satis est enim in ceteris artificiis percipiendis tantum modo similem esse hominis et id, quod tradatur uel etiam inculcetur, si qui forte sit tardior, posse
percipere animo et memoria custodire; non quaeritur mobilitas linguae, non
celeritas uerborum, non denique ea, quae nobis non possumus fingere,
facies, uultus, sonus: in oratore autem acumen dialecticorum, sententiae
philosophorum, uerba prope poetarum, memoria iuris consultorum, uox
tragoedorum, gestus paene summorum actorum est requirendus; quam ob
rem nihil in hominum genere rarius perfecto oratore inueniri potest; quae enim, singularum rerum artifices singula si mediocriter adepti sunt,
probantur, ea nisi omnia sunt in oratore summa, probari non possunt. (De
orat. I, 126-8)
Quanto àquilo que disseste, que há inúmeras coisas que, se o orador não
apresentar por natureza, não terá grande ajuda de um professor, concordo
plenamente contigo e sobretudo nisso aprovava aquele grande sábio, Apolônio de Alabanda, que, embora ensinasse mediante pagamento, não tolerava que
perdessem tempo com ele aqueles que não julgava capazes de se tornarem
oradores, dispensava-os e costumava impelir e exortar cada um deles à arte a que julgava apto. De fato, para a compreensão das demais artes, basta apenas
ser semelhante a um ser humano e poder guardar na mente e confiar à memória
o que é ensinado ou, mesmo, inculcado, se acaso se tratar de alguém mais
lento; não se busca a rapidez da língua, nem a velocidade com as palavras,
nem, enfim, aquilo que não podemos forjar para nós mesmos, o rosto, a
expressão, a voz; já no orador, deve-se exigir a agudeza dos dialéticos, as
máximas dos filósofos, as palavras, praticamente, dos poetas, a memória
dos jurisconsultos, a voz dos atores trágicos, os gestos, quase, dos grandes
atores; por essa razão, nada é mais raro, no gênero humano, do que encontrar
um orador perfeito; de fato, se os representantes das demais artes alcançaram medianamente cada uma dessas coisas, são aprovados; mas, a não ser que
oculorum; quo melius nostri illi senes, qui personatum ne Roscium quidem magno opere laudabant; animi est
enim omnis actio et imago animi uultus, indices oculi: nam haec est una pars corporis, quae, quot animi motus
sunt, tot significationes [et commutationes] possit efficere; neque uero est quisquam qui eadem conivens efficiat.
Qua re oculorum est magna moderatio; nam oris non est nimium mutanda species, ne aut ad ineptias aut ad
prauitatem aliquam deferamur; oculi sunt, quorum tum intentione, tum remissione, tum coniectu, tum hilaritate
motus animorum significemus apte cum genere ipso orationis; est enim actio quasi sermo corporis, quo magis
menti congruens esse debet; oculos autem natura nobis, ut equo aut leoni saetas, caudam, auris, ad motus
animorum declarandos dedit, qua re in hac nostra actione secundum uocem uultus ualet). (De orat. III, 220-3)
71
todas elas estejam presentes no orador em seu ponto mais alto, não podem
ser aprovadas.
Os atributos naturais dos discípulos serviam de indícios aos professores de retórica
para identificar aqueles que poderiam se tornar os futuros oradores de destaque, da mesma
forma que serviram outrora para identificar os bons oradores espontâneos, mais ou menos nos
moldes indicados por Quintiliano aqui já referidos.112 Vê-se que são virtudes conferidas pela
natureza (natura) e, de certo modo, refratárias ao trabalho do mestre de retórica, constituindo
um referente tão marcadamente seletivo a ponto de haver quem fosse mais radical e dispensasse
logo cedo aqueles que não apresentassem os atributos esperados. Aliás, Antônio distingue a
oratória das demais atividades, que lhe parecem mecânicas, rotineiras, apáticas, talvez aludindo
às artes, conforme supracitado,113 isto é, uma atividade sistematizada e transmissível e
pertinente a um âmbito delimitado e a um objeto específico (Ion, 536e – 542b; JARESKI, 2006,
p. 23). Porque, diz ele, para as demais artes bastava ser humano e ter boa memória para
memorizar as regras (regulae), nada mais que isso, não havia espaço para o ingenium e para a
natura como expressão da individualidade do orador, hipótese levantada por Müller (2001, p.
329).
Havia precaução, alerta Müller (2000, p. 328), com relação à superabundância, o
excesso dessa natura que Crasso tanto exalta. A natureza dotada em demasia não é conveniente,
segundo a estudiosa, à atividade fechada e cotidiana que é a retórica, pois, haja vista a dimensão
do seu talento, entraria no grau de sacralidade, segundo alguns, comum aos poetas, por isso,
muito mais próxima à poesia (MÜLLER, 2000, p. 330). Em De oratore, para a estudiosa,
encontra-se o risco do que Müller associa a Górgias e aos sofistas: um estilo grandiloquente,
evasivo, vazio, distante da virtude e em nada coadunado com a arte oratória.114 Nessa linha,
112 Vide citações diretas da Institutio oratoria em p. 58 e 59. 113 “De fato, para a compreensão das demais artes, basta apenas ser semelhante a um ser humano e poder guardar
na mente e confiar à memória o que é ensinado ou, mesmo inculcado se acaso se tratar de alguém mais lento; não
se busca a rapidez da língua, nem a velocidade com as palavras, enfim, aquilo que não podemos forjar para nós
mesmos, o rosto, a expressão, a voz (Satis est enim in ceteris artificiis percipiendis tantum modo similem esse
hominis et id, quod tradatur uel etiam inculcetur, si qui forte sit tardior, posse percipere animo et memoria
custodire; non quaeritur mobilitas linguae, non celeritas uerborum, non denique ea, quae nobis non possumus fingere, facies, uultus, sonus)”. (De orat. I, 127) 114 “Vindes agora propor a mim, como a um greguinho desocupado e falastrão (ainda que, talvez, douto e erudito),
tal questiúncula, para dela falar segundo minha vontade? Ora, em que momento julgais que me detive ou refleti
sobre tais coisas, em vez de sempre zombar da impudência daqueles homens que, assim que tomam assento nas
escolas, mandam perguntar à imensa multidão se tem alguma pergunta a fazer? Dizem que o primeiro a fazer tal
coisa foi Górgias de Leontinos, que imaginava empreender e prometer algo grandioso, ao se declarar preparado
para todos os temas acerca dos quais qualquer pessoa quisesse ouvir; depois, porém, começou a se fazer isso por
toda parte e ainda se faz, não havendo tema algum tão grandioso, tão imprevisto ou tão desconhecido de que não
se prometa dizer tudo que pode ser dito” ("Atqui" inquit [Sulpicius] "hoc ex te, de quo modo Antonius euit, quid
72
verificam-se as referências físicas e mentais, sejam elas a agudeza dos dialéticos, as sentenças
dos filósofos, as palavras dos poetas, a memória dos jurisconsultos, a voz dos tragediógrafos e
os gestos dos atores (acumen dialecticorum, sententiae philosophorum, uerba prope poetarum,
memoria iuris consultorum, uox tragoedorum, gestus paene summorum actorum est
requirendus), que muito se coadunam com o estilo elevado que o Antônio, personagem de
Orator concebido a partir da mesma figura histórica, preconiza alhures115, qualidades essenciais
para a caracterização do estilo elevado, o estilo magnífico, opulento, majestoso e ornado em
que se encontra o máximo vigor, a cuja beleza, fluência e sonoridade muitos contemplam e
almejam. Daí decorre também a ressalva de que o orador que adotasse esse estilo, por, em tese,
visar “impressionar e prender a atenção do auditório por meio da fluidez, da dicção e das
imagens belas e abundantes, ou por meio da composição epigramática”, corria mais riscos que
os outros, mais moderados e presos à repetição das regras técnicas (JESUS, 2008, p. 23).
Perceba-se que são tantas as demandas para esse estilo oratório e para esse orador,
a ponto de ultrapassarem os limites da sua própria técnica, mas não se deve perder de vista o
sentias, quaerimus, existimesne artem aliquam esse dicendi?" "Quid? mihi uos nunc" inquit Crassus "tamquam
alicui Graeculo otioso et loquaci et fortasse docto atque erudito quaestiunculam, de qua meo arbitratu loquar,
ponitis? Quando enim me ista curasse aut cogitasse arbitramini et non semper inrisisse potius eorum hominum
impudentiam, qui cum in schola adsedissent, ex magna hominum frequentia dicere iuberent, si quis quid
quaereret? Quod primum ferunt Leontinum fecisse Gorgiam, qui permagnum quiddam suscipere ac profiteri
uidebatur, cum se ad omnia, de quibus quisque audire uellet, esse paratum denuntiaret; postea uero uulgo hoc
facere coeperunt hodieque faciunt, ut nulla sit res neque tanta neque tam improuisa neque tam noua, de qua se
non omnia, quae dici possint, profiteantur esse dicturos). (De orat. I, 102-3) “Nem careço de um mestre grego que
me repise preceitos banais, sendo que ele mesmo nunca viu o fórum, nunca viu um único julgamento; tal como se
diz de Formião, o famoso peripatético, quando Aníbal, expulso de Cartago, partira para o exílio em Éfeso, na casa de Antíoco, e, em sua atenção, porque sua reputação era muito gloriosa entre todos, fora convidado por seus
anfitriões a ouvir, se o quisesse, esse a que fiz menção; e quando ele disse que poderia ser, conta-se que esse
homem copioso falou durante algumas horas acerca do ofício de general e da arte militar em geral. Então, pelo
fato de os demais que o haviam ouvido muito se deleitarem, perguntaram a Aníbal sua opinião acerca daquele
filósofo. Conta-se que esse cartaginês respondeu, não em bom grego, mas francamente, que vira muitos velhos
delirantes em diversas ocasiões, mas que não vira alguém que delirasse tanto quanto Formião” (Nec mihi opus est
Graeco aliquo doctore, qui mihi pervulgata praecepta decantet, cum ipse numquam forum, numquam ullum
iudicium aspexerit; ut Peripateticus ille dicitur Phormio, cum Hannibal Karthagine expulsus Ephesum ad
Antiochum uenisset exsul proque eo, quod eius nomen erat magna apud omnis gloria, inuitatus esset ab hospitibus
suis, ut eum, quem dixi, si uellet, audiret; cumque is se non nolle dixisset, locutus esse dicitur homo copiosus
aliquot horas de imperatoris officio et de [omni] re militari. Tum, cum ceteri, qui illum audierant, uehementer
essent delectati, quaerebant ab Hannibale, quidnam ipse de illo philosopho iudicaret: hic Poenus non optime Graece, sed tamen libere respondisse fertur, multos se deliros senes saepe vidisse, sed qui magis quam Phormio
deliraret uidisse neminem). (De orat. II, 75) 115 “O terceiro estilo é aquele magnífico, opulento, majestoso e ornado em que se encontra o máximo vigor. É este
o estilo de discurso cuja beleza e fluência fizeram que as admiradas gentes dessem à eloquência uma grande
influência na sociedade, mas esta é a eloquência que avança com grande sonoridade e um grandioso cortejo e que
todos contemplam e admiram e desesperam de poder alcançar” (Tertius est ille amplus copiosus, grauis ornatus,
in quo profecto uis maxima est. Hic est enim, cuius ornatum [dicendi] et copiam admiratae gentes eloquentiam in
ciuitatibus plurimum ualere passae sunt, sed hanc eloquentiam, quae cursu magno sonituque ferretur, quam
suspicerent omnes, quam admirarentur). (Orat. 97; In: GONÇALVES, 2017, p. 157)
73
fato de Crasso e Antônio estarem falando de um ideal de orador. Crasso chega a alertar, em dois
momentos,116 que não pretende afastar ou dissuadir os jovens que, por acaso, não possuíssem
aquele quê natural (quid naturale) que os condicionasse à oratória ou fossem menos favorecidos
pela natureza (quae quibus a natura minora data sunt). Daí surge a ressalva de Antônio,
dizendo que serão aceitos esses dotes de ator, filósofo, jurista e poeta apenas se eles forem
perfeitos. Contudo, deve-se ressaltar que, embora conste de Courbaud (CICÉRON, 2009, p. 5)
e Taisne (1997, p. 38) que De orat. I, 128 esteja contido na parte em que se fala dos dons
naturais, menciona-se e ressalta-se o papel e o valor da ars. Afinal, é custoso imaginar que
alguém chegasse a esse nível de oratória, primeiramente, sem o auxílio de um mestre de retórica
bastante atento a qualquer vício apresentado no decorrer da educação ou mesmo que não
demonstrasse dificuldades em alguma etapa do processo de aprendizado. Depois, que esse
alguém não tivesse de passar por uma observação, estudo e amadurecimento do aprendizado no
fórum e no senado, junto dos oradores mais experientes.
Portanto, ao que parece, pelo menos analisando esses dois emblemáticos trechos,
fica patente a forte valorização dos dons naturais do orador, sejam eles referidos por ingenium
ou por natura. Vimos que tanto os caracteres físicos quanto os psicológicos citados no livro I
do diálogo De oratore podem ser identificados também na Institutio oratoria e na Retórica a
Herênio, textos relativamente próximos no tempo, e que eles eram ou deveriam ser tratados,
pelo mestre de retórica, como indícios de talento ou vocação para a retórica.
Mas, se, até então, por um lado, temos a assunção dos caracteres naturais, temos,
por outro, a depreciação do papel do componente técnico artificial, em especial, quando se fala
da doctrina dos mestres de retórica ou do papel destes na apresentação do orador ideal. Embora
não tenhamos enfocado, até então, esse aspecto, não podíamos ignorar a presença de noções
como ars, artifex, doctrina, ratio e uia, utilizadas em De orat. I, 113-5 e 126-8, e integrantes
do vocabulário das artes em geral, assim como a descrença, ou, no mínimo, a desconfiança de
Crasso e Antônio com relação a elas. Confirmando as indicações deixadas por Courbaud e
Taisne de que começa em De orat. I, 134 e termina em De orat. I, 147 o tratamento dessa parte
técnica da educação oratória, Crasso inicia uma exposição dos tais preceitos batidos e repisados
(ista omnium communia et contrita praecepta), mas podemos afirmar seguramente que a visão
dos oradores sobre o papel da educação na idealização das personagens não se esgota nesses
treze parágrafos. Porque, neles, Crasso se limita a fornecer um rápido apanhado dos
ensinamentos tradicionais da retórica e parece fazer questão de encerrar afirmando que tais
116 Vide nota 34.
74
preceitos servem apenas de indicação ou meio de memorização para o orador (ad
commonendum oratorem) do caminho a respeitar para a composição de um bom discurso.
Servir-se de um método, neste sentido, seria tentar ordenar o trajeto através do qual se possam
alcançar os objetivos projetados, no caso da retórica preconizada por Crasso, a persuasão (De
orat. I, 145).117 Pode haver uma associação da ars ao méthodos, que justifique a utilização, em
De orat. I, 113, da palavra uia, cujo sentido primário é de caminho e estrada, mas que também
pode significar modo de proceder ou método para fazer algo. Talvez por esse motivo, o ex-
cônsul diga aos ouvintes que não considera de todo inútil a arte retórica e que reconhece os seus
méritos de ajudar aqueles que eventualmente não foram tão dotados pela natureza ou aqueles
que apresentam qualquer espécie de vício, como foi o caso de C. Célio, que conseguiu
reconhecimento apenas pelo conhecimento básico de oratória. Mas é que, no seu entender, esses
tantos preceitos que os mestres de retórica, em geral gregos, ensinavam nas escolas eram nada
mais que constatações provenientes da observação e classificação daquilo que os eloquentes já
faziam desde muito tempo e de maneira espontânea. Tal posicionamento faz com que Crasso,
à guisa de conclusão, anuncie que foi a eloquência que originou a técnica (retórica), não o
contrário. Neste sentido, Courbaud (CICÉRON, 2009, p. X-XI), comentando as ideias do texto,
assevera:
Regras, não mais que regras. Acreditamos na eficácia soberana das regras.
Define-se, classifica-se, distingue-se. (...) Divide-se e subdivide-se até o
infinito. (...) Esse trabalho faz com que o pupilo apenas siga docilmente os
preceitos, os quais, se bem aplicados, devem infalivelmente produzir um bom discurso. Assim, como que usando uma receita de cozinha, tenciona-se
produzir um orador. O jogo de regras, por si só, substituirá as aptidões naturais
(será inútil, então, ser bem favorecido), substituirá da mesma maneira a meditação pessoal, o esforço fecundo e vário que se renova a cada caso, a cada
discurso (inútil então raciocinar). Sem dúvida, em Roma, todos os pupilos
poderiam falar, e bem, no entanto, todos da mesma forma, visto terem sido ensinados no mesmo molde ou formados sob o mesmo padrão: o mecanismo
mataria a originalidade (...). As regras têm sua utilidade, mas é uma utilidade
restrita, pois, de outro modo, esquecer-se-ia que “não foi a eloquência que
nasceu da retórica, mas a retórica que nasceu da eloquência (De orat. I, 146) (...) A retórica, portanto, é apenas um meio, ela não é o objetivo (...).
117 “Toda a doutrina desses artífices ocupa-se, quase sempre, dessas questões; se disser que em nada ajudam, estarei
mentindo. De fato, apresentam certos elementos que servem, por assim dizer, de lembrete ao orador, a que possa referir cada ponto e, observando-o, não se afastar do que quer que tenha estabelecido como meta” (In his enim fere
rebus omnis istorum artificum doctrina uersatur, quam ego si nihil dicam adiuuare, mentiar; habet enim quaedam
quasi ad commonendum oratorem, quo quidque referat et quo intuens ab eo, quodcumque sibi proposuerit, minus
aberret). (De orat. I, 145)
75
Isso se deve ao fato de que não havia, desde a fundação de Roma até a conquista do
sul italiano, educação formal ou mesmo um currículo voltados à formação de oradores: o que
havia, na verdade, era uma iniciação progressiva à vida aristocrática tradicional (MARROU,
1990, p. 360). O pequeno romano vivia dezesseis anos sob a tutela dos pais: primeiramente,
permanecia até os sete anos sob a supervisão da mãe, a quem cabia dar-lhe jogos e brinquedos
que lhe ensinassem os rudimentos da moral e da severidade romana, depois, passava à
responsabilidade do pai, que o levaria a conhecer a vida urbana e senatorial, instruindo-o com
seus preceitos e, em especial, com seu exemplo (MARROU, 1990, p. 362). Aos dezesseis anos,
o filho da aristocracia romana vivencia o seu début: conduzido pelo seu pai e pela primeira vez
vestindo a toga uirilis, ele adentra o Forum Romanum. Passa um ano a observar e a estudar a
vida pública acompanhando um político de experiência, em geral, amigo da família, período
conhecido como tirocinium fori. Nessa etapa, o jovem tinha a oportunidade de ouvir todos os
discursos do seu patrono nos tribunais ou nos comícios. Podia escutá-lo argumentando ou
debatendo, assim como a se expressar corretamente.118 Passada essa fase, ingressava, por fim,
no serviço militar, último estágio da educação e responsável por dar ao jovem experiência,
autoridade e força. Ao que tudo indica, o modelo romano tradicional de educação é muito mais
orientado pelo costume dos ancestrais (mos maiorum), pelas demandas do fórum e pela letra
das leis. Havia necessidade de conservar a diversidade das normas de conduta sociais da
aristocracia que lhes reafirmariam a autoridade para ditá-las e até mesmo o modelo de correção
linguística aristocrático que os distinguiria da plebe em termos do uso do idioma (DEUR, 2005,
p. 28; MARROU, 1990, p. 365).
O ponto culminante dessa educação arcaica não é a erudição filosófica ou literária,
mas a formação do caráter. Segundo May (2002, p. 60), o caráter (mos; éthos) era um elemento
extraordinariamente importante no contexto sociopolítico da oratória “natural” de Roma. O
orador romano da época de Crasso e de Marco Antônio devia ser um indivíduo para quem as
virtudes tradicionais, assim como o mos maiorum, tornaram-se uma espécie de religião e para
118 “Desse modo, entre nossos antepassados, o jovem que se preparava para o fórum e para a eloquência, já imbuído da instrução doméstica e abastecido dos estudos sérios, era conduzido pelo pai ou pelos familiares até o orador
que tinha a reputação mais destacada na comunidade. Esse jovem costumava segui-lo, acompanhá-lo, estar
presente nos seus pronunciamentos, seja nos tribunais, seja nas assembleias públicas, de tal modo que também
assistisse aos debates judiciários e presenciasse as querelas, para que, assim eu o diria, na própria batalha,
aprendesse a lutar” (Ergo apud maiores nostros iuuenis ille, qui foro et eloquentiae parabatur, imbutus iam
domestica disciplina, refertus honestis studiis deducebatur a patre uel a propinquis ad eum oratorem, qui
principem in ciuitate locum obtinebat. Hunc sectari, hunc prosequi, huius omnibus dictionibus interesse siue in
iudiciis siue in contionibus adsuescebat, ita ut altercationes quoque exciperet et iurgiis interesset utque sic
dixerim, pugnare in proelio disceret). (Dial. 34, 1-2; In: TÁCITO, 2014, p. 101)
76
quem a autoridade pessoal (auctoritas) era motivo de extremo cuidado, pois serviriam de baliza
para as suas decisões políticas (MAY, 2002, p. 53). Segundo Cícero, havia um rumor, em Roma,
de que Crasso não tivera mais que a doutrina pueril com que os romanos se instruíam e de que
Antônio desconhecia qualquer forma de instrução. No prólogo do De oratore II, é retomada
uma lembrança de que muitos costumavam fazer coro a essa crença para questionar o interesse
de seu pai em instruir os filhos Marco e Quinto. Se homens desprovidos de erudição atingiram
prudência e eloquência incríveis, de que serviria tamanho empenho em educar-se.119 Essa
educação pautada na experiência prática e na tradição era bastante distinta da propagada pelos
sofistas gregos em suas escolas de retórica em voga, na Urbe, à época de Crasso e Marco
Antônio. Enquanto os “greguinhos” (graeculi) ociosos e loquazes, termo utilizado em De orat.
I, 102 com flagrante tom pejorativo pelos interlocutores do De oratore, baseavam-se em causas
fictícias, segundo eles, um tanto desconectados da realidade do fórum,120 o método proposto
pelos romanos é de aprender eloquência por palavras eloquentes e fazê-lo estudando homens
de grande experiência política e distinção cívica, respeitando assim o caráter patrício da
educação romana tradicional (VASCONCELOS, 2000, p. 180).
A verdade, no entanto, é que os próprios oradores-personagens alimentavam o
rumor de que não possuíam instrução,121 pois, se fossem vistos como incultos, seus discursos
119 “Quando éramos jovens, Quinto, meu querido irmão, se o recordas, havia um grande rumor de que L. Crasso
não adquirira maior formação teórica do que lhe permitira aquela sua primeira educação juvenil, e de que M.
Antônio era completamente destituído e desconhecedor de qualquer forma de instrução; e havia muitos que
embora, julgassem que tal não era o caso para com maior facilidade afastar dos estudos teóricos a nós, inflamados
que estávamos pelo desejo de aprender, declaravam o que mencionei acerca daqueles oradores, de que, se homens
desprovidos de instrução haviam atingido uma prudência extrema e uma incrível eloquência, todo o nosso empenho pareceria vão, e tolo o cuidado de osso pai, excelente e prudentíssimo varão, em nos instruir” (Magna
nobis pueris, Quinte frater, si memoria tenes, opinio fuit L. Crassum non plus attigisse doctrinae, quam quantum
prima illa puerili institutione potuisset; M. autem Antonium omnino omnis eruditionis expertem atque ignarum
fuisse; erantque multi qui, quamquam non ita se rem habere arbitrarentur, tamen, quo facilius nos incensos studio
discendi a doctrina deterrerent, libenter id, quod dixi, de illis oratoribus praedicarent, ut, si homines non eruditi
summam essent prudentiam atque incredibilem eloquentiam consecuti, inanis omnis noster esse labor et stultum
in nobis erudiendis patris nostri, optimi ac prudentissimi uiri, studium uideretur). (De orat. II, 1) 120 “Isso não é ensinado na escola, pois se confiam causas fáceis aos meninos; uma lei proíbe que um estrangeiro
escale a muralha; ele escala, repele os inimigos, é acusado. De nada vale conhecer uma causa desse tipo. Portanto,
nada ensinam corretamente acerca do aprendizado de uma, [pois esta é quase sempre uma fórmula das causas na
escola]. No fórum, porém, deve-se tomar conhecimento integral de contratos, testemunhos, pactos, convenções,
promessas, parentescos, afinidades, decretos, oráculos, da vida, enfim, daqueles que se ocupam da na causa. Notamos que é pela negligência de tais elementos que a maior parte das causas – e sobretudo as privadas, pois
muitas vezes são bastante obscuras – é perdida” (Hoc in ludo non praecipitur; faciles enim causae ad pueros
deferuntur; lex peregrinum uetat in murum ascendere; ascendit; hostis reppulit: accusatur. Nihil est negoti eius
modi causam cognoscere: recte igitur nihil de causa discenda praecipiunt; [haec est enim in ludo causarum
formula fere.] At uero in foro tabulae testimonia, pacta conventa stipulationes, cognationes adfinitates, decreta
responsa, uita denique eorum, qui in causa uersantur, tota cognoscenda est; quarum rerum neglegentia plerasque
causas et maxime priuatas - sunt enim multo saepe obscuriores - uidemus amitti). (De orat. II, 100) 121 “Ora, as coisas se passavam para os dois da seguinte forma: Crasso preferia não tanto que julgassem que não
estudara, quanto que desprezava tais coisas, colocando acima dos gregos a prudência de nossos conterrâneos em
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soariam mais prováveis aos seus conterrâneos, tendo Marco Antônio afirmado que nem mesmo
conhecera os gregos. Cícero sublinha os relatos de seus ancestrais e suas próprias memórias das
conversas que tivera com Crasso, ocasião em que tomou conhecimento de que seu mestre
dominava não só a língua grega, mas também variados temas, de modo que nada lhe parecesse
alheio. De igual forma, relembra os relatos das discussões de Marco Antônio com os filósofos
gregos em Rodes. O episódio ilustra o peso e a autoridade do caráter na oratória de Cícero. O
orador constrói para si mesmo uma imagem adequada às circunstâncias da enunciação, isto é,
deverá construir um éthos positivo para si, podendo até fingi-lo, inventá-lo, pois, a um povo
afeito à oratória natural, algo que emerge da própria força do caráter, era muito conveniente
não parecer artificioso e criar uma imagem de orador espontâneo (VASCONCELOS, 2016, p.
182). Percebemos, portanto, que as personagens enxergavam no excesso dessas novas técnicas
gregas uma espécie de negação tanto do ingenium quanto da tradição oratória romana. A técnica
dos gregos, para Antônio, não se adequa à realidade do fórum romano, pois privilegia
exercícios, fórmulas e repetições, como se a arte por si própria pudesse sobrepor-se ao engenho
e formar oradores como que saídos de uma mesma forma inflexível.
Existe uma crítica velada de Cícero ao método grego de ensino e uma defesa do
amplo conhecimento que transcendesse os limites da técnica. Em primeiro lugar, o arpinate
demandava que os oradores se tornassem familiares com o seu próprio contexto sociopolítico e
que a ele adaptassem seus discursos (MAY, 2002, p. 49). Através de Crasso, seu porta-voz no
diálogo, ele diz:
Perdiscendum ius ciuile, cognoscendae leges, percipienda omnis antiquitas,
senatoria consuetudo, disciplina rei publicae, iura sociorum, foedera,
pactiones, causa imperi cognoscenda est. Legendi etiam poetae, cognoscendae historiae, omnium bonarum artium doctores atque scriptores
eligendi et peruolutandi et exercitationis causa laudandi, interpretandi,
corrigendi, uituperandi [refellendi]; disputandumque de omni re in contrarias partis et, quicquid erit in quaque re, quod probabile uideri possit, eliciendum
[atque dicendum]. (De Orat. I, 158-9)
É preciso ler também os poetas, conhecer as histórias, ler e folhear com assiduidade os mestres e escritores de todas as artes liberais, bem como citá-
los como exercício, interpretá-los, corrigi-los, criticá-los, refutá-los; acerca de
qualquer tema, deve-se discutir os dois lados da questão, bem como evocar e
todo tipo de assunto; Antônio, por outro lado, considerava que seu discurso resultaria mais plausível a um povo
como este nosso se pensassem que não tinha qualquer instrução; e assim, ambos aparentariam maior seriedade se
um parecesse desprezar, o outro, simplesmente desconhecer os gregos” (Sed fuit hoc in utroque eorum, ut Crassus non tam existimari uellet non didicisse, quam illa despicere et nostrorum hominum in omni genere prudentiam
Graecis anteferre; Antonius autem probabiliorem hoc populo orationem fore censebat suam, si omnino didicisse
numquam putaretur; atque ita se uterque grauiorem fore, si alter contemnere, alter ne nosse quidem Graecos
uideretur). (De Orat., II, 5)
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mencionar, em cada tema, qualquer elemento que possa parecer provável. É
preciso aprender todo o direito civil, conhecer as leis, estudar toda a antiguidade, conhecer a tradição do senado, a disciplina do estado, os
juramentos dos aliados, os tratados, os pactos, a causa do poder.
Depois, valendo-se do mesmo artifício, defende:
Nam quod illud, Scaeuola, negasti te fuisse laturum, nisi in meo regno esses,
quod in omni genere sermonis, in omni parte humanitatis dixerim oratorem
perfectum esse debere: numquam me hercule hoc dicerem, si eum, quem
fingo, me ipsum esse arbitrarer. Sed, ut solebat C. Lucilius saepe dicere, homo
tibi subiratus, mihi propter eam ipsam causam minus quam uolebat familiaris,
sed tamen et doctus et perurbanus, sic sentio neminem esse in oratorum numero habendum, qui non sit omnibus eis artibus, quae sunt libero dignae,
perpolitus; quibus ipsis si in dicendo non utimur, tamen apparet atque exstat,
utrum simus earum rudes an didicerimus. [...] Sic in orationibus hisce ipsis iudiciorum, contionum, senatus, etiam si proprie ceterae non adhibeantur
artes, tamen facile declaratur, utrum is, qui dicat, tantum modo in hoc
declamatorio sit opere iactatus an ad dicendum omnibus ingenuis artibus
instructus accesserit. (De orat. I, 71-3)
Pois aquilo que afirmaste, Cévola, que não tolerarias caso não estivesses em
minha propriedade – que todo orador deve ser perfeito em toda espécie de discurso, em todos os domínios da cultura –, nunca, por Hércules, o diria se
julgasse ser eu mesmo o orador que concebo. Ora, concordo com o que C.
Lucílio, uma pessoa um tanto agastada contra ti – e, por isso mesmo, menos próxima de mim do que desejava –, porém culta e extremamente engenhosa,
costumava repetir: ninguém que não seja completo em todas as artes dignas
de um homem livre deve ser contado entre os oradores; ainda que não as
usemos ao discursar, torna-se claro e manifesto se somos ignorantes ou se as cultivamos. (...) Desse modo, nesses mesmos discursos dos tribunais, das
assembleias populares, do senado, ainda que não empreguem propriamente as
demais artes, logo fica claro se aquele que está discursando é versado apenas nesta obra declamatória ou se empreendeu discursar instruído em todas as
artes liberais.
O orador deve estudar, além do direito civil e das artes liberais, a história, a poesia,
a filosofia, o que diferia demasiadamente da educação retórica engessada e, em parte, tecnicista
dos preceptores gregos. O ponto fundamental, afirma Narducci (CICERONE, 1992, p. 18-9),
que emerge com absoluta clareza é que a cultura do orador deverá ser geral e não especializada.
A grande eloquência não é restrita e tem por objeto tudo quanto puder ser matéria de debate
entre os homens, e a essência do orador ideal, segundo ele, está no versar, de modo sábio,
ordenado, elegante e digno, sobre qualquer tema digno e em qualquer gênero de discurso (ibid.,
p. 18-9). Cícero, em resumo, temia que os preceitos inúmeros e rígidos não tolhessem somente
o talento enquanto individualidade, mas também a sabedoria. A arte deve ser aquilo que fornece
ao indivíduo o perfeito domínio das suas faculdades naturais e, por esse motivo, jamais deve
sobrepô-las, mas aprimorá-las. Neste ponto, somos capazes de perceber o teor da crítica de
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Cícero à retórica enquanto ars. Porque a retórica, para ele, não pode se reduzir a um mero
instrumento formal, nem o orador a uma personagem inepta do fórum. O orador perfeito de
Cícero coincide com o doctus orator de base cultural firme e de capacidade de investigar com
lucidez e agir com prudência (TRINGALI, 1988, p. 35-6).
A fala de Crasso seguramente está pautada no ideal de humanidade (humanitas), e
as disciplinas que o orador deve dominar levariam a ela. A filosofia, a história, o direito civil,
a poesia são todos estudos que, de alguma maneira, dizem respeito à convivência dos homens
em sociedade e, portanto, fornecem elementos para que se conheça o gênero humano e se
aprofunde no seu conhecimento e aprimoramento de si mesmo e do mundo que o cerca. Já que
esses estudos guardam entre si um vínculo, em conhecendo-os, torna-se o orador uma figura
não só mais erudita, porém, sobremaneira, mais humana. Deparamos com a doctrina, a reunião
desses estudos, a responsável pela transformação do homem em um doctus, como elemento
forjador do caráter e de elevação da natureza humana. Neste sentido, flagra-se a fragilidade
moral da educação da ars, algo específico, técnico, em função da robustez de uma formação
liberal holística, ampla, humanizadora.
Na época republicana, os pronunciamentos de discursos não conferem somente a
ocasião de avaliar as capacidades oratórias de um orador: além desse reconhecimento técnico,
o que está em jogo é um ser social, um estatuto de poder e reconhecimento de uma excelência
ética (DUPONT, 2000, p. 91). De Oratore, por isso, trata menos dos preceitos da retórica que
da própria formação do orador. Cícero confia ao personagem Crasso, principalmente, a opinião
de que o orador ideal deve ter uma cultura vasta, acrescentando ao conjunto das artes liberais
um saber superior, designado pelo termo doctrina, presente 16 vezes no livro I do diálogo.
Etimologicamente, a doctrina significava a profissão, a arte de ensinar, e a evolução semântica
do conceito mantém o aspecto de ensinamento, ora relacionado ao conteúdo, ora ao resultado
ou ao processo (ORBAN, 1957, p. 177). O resultado de todo o processo de desenvolvimento
individual é a cultura, no sentido perfectivo, humanizador, não preparatório, do homem
verdadeiramente homem, porque desenvolvido em todas as suas potencialidades (TRENK,
1997, p. 37). Apesar de suas diversas nuances de significações, inclusive permitindo o
intercâmbio com outros termos como ratio, ars, disciplina, humanitas, há um aspecto no valor
de doctrina que a distingue – é o acento na noção de um saber mais elevado que o do senso
comum e colocado a serviço de um propósito superior (ORBAN, 1957, p. 181).
A doutrina ainda avança para além desses limites, em sua grande maioria, técnicos
da ars. O domínio de um extenso cabedal de assuntos deve garantir que o orador seja capaz de
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disputar questões filosóficas, como a natureza dos deuses, o bem e o mal, o conceito de justiça
e as virtudes e os vícios, bem como questões deliberativas, como a aprovação de leis, a
permissão para invasões, a imposição de impostos e a religião. Embora Crasso pareça
demonstrar grande entusiasmo em De oratore para com a natureza do orador em detrimento da
sua arte, seu real objetivo é esgarçar os limites da mesma e fazer com que os novos oradores
busquem a sabedoria, tanto prática quanto teórica, como prioridade, ao invés do mero
conhecimento técnico-prático, para usá-la ao seu favor, seja no fórum como orador ou juiz, seja
na política, como senador ou cônsul. Como resultado dessa longa jornada de desenvolvimento
técnico e filosófico, o indivíduo terá ao seu alcance todas as possibilidades que sua natureza lhe
dispôs e chegará ao ápice de sua humanidade.
Marco Antônio, de alguma maneira, impõe rédeas ao ímpeto de Crasso quando traz
a retórica de volta aos limites da ars, cuja definição segue abaixo:
ars ~tis, f. 1 Professional, artistic, or technical skill as something acquired and
exercised in practice, skilled work, craftsmanship, art. ~te, per ~tem, skillfully,
artistically. 2 (spec. where a contrast w. natura, ingenium, etc., is stated or implied) Artificial methods, human ingenuity, artificiality, art. 3 A crafty
action, trick, wile, stratagem; craftiness, guile; (mil.) a tactical device. c ~te,
craftily, cunningly. 4 (usu. w. spec. adjs. and in pl.) A personal characterist or quality as manifested in action, a practice. (pl.) behaviour. b a good quality,
accomplishment. c (pl., w. istae, etc.) evil practices or habits, bad ways. 5 a A
sistematic body of knowledge and practical techniques, an art or science. b
(w. adj. or explanatory gen.; examples under this section are closely related to senses I and 7). c (pregn., applied to spec. arts or sciences). d magic, the ‘black
art’. 6 bonae, etc., ~tes, a Cultural, pursuits, liberal studies. b (without spec.
adj.) one of the fine or liberal arts, liberal culture. 7 a A profession, art, craft, trade, occupation. b a business, task, pursuit; a type of activity, exercise. 8 a
Artistic achievement or performance, a person’s art or artistry; an artistic
design or representation. b (concr.) a word of art; an invention, device, or contrivance. 9 a (sg. or pl.) The rules or principles of an art, theoretical
considerations, theory. b the rules or principles of an art in written form, a
text-book, treatise. c per ~tem, in accordance with recognized procedure; ex
~te, systematically. 10 A method, system, procedure; a principle of classification.122
Quintiliano inicia suas considerações acerca da retórica conceituando ars e
discriminando seu objetivo como tal:
Igitur rhetorice (iam enim sine metu cauillationis utemur hac appellatione)
sic, ut opinor, optime diuidetur ut de arte, de artifice, de opere dicamus. Ars
erit quae disciplina percipi debet: ea est bene dicendi scientia. Artifex est qui
122 Ars, ~tis. In: Oxford Latin Dictionary. Oxford: The Clarenton Press, 1968, p. 175.
81
percepit hanc artem: id est orator, cuius est summa bene dicere. Opus, quod
efficitur ab artifice: id est bona oratio.
Destarte, dividiremos a retórica (pois já usarei este nome sem medo de
críticas) com precisão, segundo penso, se falarmos de arte, artífice e obra.
“Arte” é o que deve ser aprendido pelo estudo: isto é, a ciência de discursar bem. “Artífice” é quem aprendeu esta arte: ou seja, o orador, cuja aspiração é
discursar bem. “Obra” é o que o artífice produz: ou seja, o bom discurso. (Inst.
II, xiv, 5; In: FALCÓN, 2015, p. 60)
Na Retórica a Herênio, temos uma pequena definição de ars:
Oratoris officium est de iis rebus posse dicere quae res ad usum ciuilem
moribus et legibus constitutae sunt, cum adsensione auditorum quoad eius fieri poterit. [...] Ars est praeceptio, quae dat certam uiam rationemque
dicendi.
O ofício do orador é poder discorrer sobre as coisas que o costume e as leis
instituíram para o uso civil, mantendo o assentimento dos ouvintes até onde
for possível. Arte é o preceito que dá método e sistematização ao discurso.
(Rhet. Her. I, 3; In: CÍCERO 2005, p. 55)
Com relação às possibilidades de tradução fornecidas por OLD, excetuando 5d, 6 e
9a, em nossa visão, relacionadas a contextos abstratos como magic, black art, cultural and
liberal arts or studies e theory, as demais aludem a métodos, técnicas, regras, sistema, truque
por vezes, até ocupação e comércio. As acepções de ars não nos oferecem espaço para grandes
pretensões humanísticas ou filosóficas. Parecem restringir seu alcance ao universo prático,
material, terreno. Se verificarmos as definições presentes na Institutio oratoria e na Retórica a
Herênio, não haverá também espaço para devaneios idealizadores: de um lado, temos
Quintiliano conceituando ars como conhecimento técnico advindo do estudo (disciplina), de
outro, um tratadista para o qual técnica é aquilo que fornece método e sistematização, acepções
atreladas a um conhecimento artificial, laborado com procedimentos rigorosos e precisos, de
certa maneira, opostas ao universo espontâneo da natura e do ingenium. Além disso, à parte as
acepções fornecidas por OLD, contamos com duas que relacionam a arte a um objetivo, a um
fim: no caso da retórica, pronunciar um bom discurso, para Quintiliano, dizer dos costumes e
das leis sem perder a atenção dos ouvintes, para o tratadista anônimo da Retórica a Herênio.
Antônio parece seguir a mesma linha desses dois últimos. De certo modo,
representa a contraposição à longa e idealizada exposição de Crasso e a retração da retórica aos
seus próprios limites. Em De orat. I, 213, vemos que o orador antonino é:
[...] Atque eum puto esse, qui et uerbis ad audiendum iucundis et sententiis ad
probandum accommodatis uti possit in causis forensibus atque communibus:
82
hunc ego appello oratorem eumque esse praeterea instructum uoce et actione
et lepore quodam uolo
(...) Aquele que é capaz de empregar palavras agradáveis de se ouvir e ideias
adequadas a uma demonstração nas causas forenses e públicas. A este eu
denomino orador, e desejo, além disso, que ele seja dotado de voz, atuação e algum encanto.
Lendo este excerto, pensamos que Narducci (CICERONE, 1992, p. 18) parece ter
razão quando diz que a função de Antônio é recolocar “os pés do diálogo” novamente no chão,
de compensar os saltos, por vezes, utópicos de Crasso com elementos de realismo que
demandam uma lúcida consciência de fatores que condicionam a situação efetiva da eloquência.
Porque nessa exposição, ele, de fato, se mostra distante de Crasso. Ele está muito mais próximo
daquilo que expunham o tratadista da Retórica a Herênio e Quintiliano se pensarmos em
concisão e objetividade na delimitação do objeto do orador. Na verdade, o intuito de Antônio
parece ser delinear os aspectos da téchne grega, em poucas palavras, uma atividade
sistematizada e transmissível pertinente a um âmbito delimitado e a um objeto específico, nas
palavras de Jareski (Ion, 536e – 542b; 2006, p. 23):
Artem uero negabat esse ullam, nisi quae cognitis penitusque perspectis et in
unum exitum spectantibus et numquam fallentibus rebus contineretur; haec
autem omnia, quae tractarentur ab oratoribus, dubia esse et incerta; quoniam et dicerentur ab eis, qui omnia ea non plane tenerent, et audirentur ab eis,
quibus non scientia esset tradenda, sed exigui temporis aut falsa aut certe
obscura opinio. Quid multa? Sic mihi tum persuadere uidebatur neque
artificium ullum esse dicendi neque quemquam posse, nisi qui illa, quae a doctissimis hominibus in philosophia dicerentur, cognosset, aut callide aut
copiose dicere [...].
[Cármadas] Afirmava ainda não haver qualquer arte que não fosse constituída
de elementos conhecidos, totalmente compreendidos, voltados a um único fim
e sempre claros; e todos os temas tratados pelos oradores são duvidosos e
incertos, uma vez que discursam aqueles que não têm seu total domínio, e ouvem aqueles a quem se deve transmitir, não um conhecimento exato, mas
uma opinião de momento, falsa ou, ao menos, obscura. Por que me alongar?
Assim, ele parecia convencer-me, além disso, de que não existe qualquer artifício oratório e que, sem o conhecimento do que dizem os filósofos mais
eruditos, ninguém é capaz de discursar de modo hábil e copioso (...).
Essa postura visa defender a retórica do ataque dos filósofos, como Cármadas, que
negavam a sua existência enquanto técnica (ars ou téchne) por não conseguirem enxergar um
objeto delimitado de estudo ou de conhecimento próprio do homem eloquente e por ter havido
oradores famosos sem nenhum conhecimento da pretensa arte. O objeto da oratória, que, no
contexto de Crasso e Antônio, era, sobretudo, política e jurídica, era o caráter dos homens, e a
83
sua finalidade, portanto, pronunciar discursos adequados à coisa pública e privada. Além disso,
também pertence à oratória ser pedagógico e descer às noções comuns para se adaptar à plateia,
uma vez que demonstrar ciência das coisas, à maneira dos professores, não garante o
convencimento de certos ouvintes. Do mesmo modo que se o orador não conhecer os prós e
contras dos argumentos jamais poderá refutá-los ou confutá-los (REBOUL, 2000, p. 22).
Portanto, a retórica é útil. Em resumo, Antônio, embora discretamente, livra a retórica dos
eventuais ataques filosóficos na medida em que lhe fornece um artífice, o político ou o orador
judicial, um espaço ou âmbito restritos, o senado ou o tribunal, e um objeto delimitado, o caráter
dos homens, obedecendo assim aos requisitos da téchne grega.123
Mais à frente, em De orat. I, 218, ele continua na mesma linha:
Ac si iam placet omnis artis oratori subiungere, tolerabilius est sic potius dicere, ut, quoniam dicendi facultas non debeat esse ieiuna atque nuda, sed
aspersa atque distincta multarum rerum iucunda quadam uarietate, sit boni
oratoris multa auribus accepisse, multa uidisse, multa animo et cogitatione,
multa etiam legendo percucurrisse, neque ea ut sua possedisse sed ut aliena libasse (...).
E se agora parece bem subordinar todas as artes ao orador, é mais tolerável antes falar da seguinte forma: uma vez que a faculdade do discurso não deve
ser árida e desnuda, mas distinta e banhada numa agradável variedade de
elementos, seja próprio do bom orador ter ouvido muito, ter visto muito, ter percorrido muito em sua mente e em seu pensamento, muito também em
leituras, e que não se apoderou de tais elementos como seus, mas os provou
como alheios.
Antônio impõe uma demanda até pouco citada: uma certa experiência de vida. Com
relação a isso, Vasconcelos (2000, p. 182-3) afirma que a doutrina dos mestres é de grande
importância para o orador, mas este não deve dedicar ao aprendizado dela mais tempo que o
123 A argumentação de Antônio talvez responda ou, melhor, tente responder também à questão colocada por
Sócrates no diálogo Górgias: afinal, qual o objeto da retórica, tema tratado pelo personagem ciceroniano (449d)? Górgias, a princípio, diz ser a palavra (449d). A palavra, contudo, serve de instrumento para diversas ciências,
aponta Sócrates, citando a medicina, a ginástica e as finanças (450). O sofista responde que, na verdade, a retórica
confere ao orador o poder de assegurar a liberdade pessoal e o governo dos concidadãos pelo domínio persuasivo
dos tribunais (452d), donde Sócrates deduz que a oratória é uma produtora de persuasão (453a). Refuta-se tal
definição dado que a aritmética, assim como outras disciplinas, também persuade (454a). Experimenta-se então
dizer que a oratória trata da persuasão sobre o justo e sobre o injusto (454b), o que é novamente refutado tendo em
vista que os oradores, com frequência, levam a população a cultivarem crenças falsas (454d). Górgias afirma que
essas ocorrências não se devem à arte, mas à índole do orador (457c), pois cabe à oratória mesma, a despeito de
fazer parecerem sabedores os ignorantes, bem como o contrário (456c), prever o ensino da persuasão acerca do
que é justo, entrando em contradição com aquilo que fora dito, já que o orador feito devia, por força de sua pretensa
formação, levar ao público o conhecimento da verdade, não das aparências (461b). Essas ideias perpassam não apenas o primeiro momento do diálogo, protagonizado por Sócrates e Górgias, mas também seu fecho. O
protagonista, durante todo o texto, empreende uma busca por objeto em torno do qual gravitaria o conhecimento
da oratória, mas conclui que a oratória não é uma arte ou técnica, mas uma mera prática (463a-463b) (PLATÃO,
1970, p. 47-74).
84
estritamente necessário. Afinal de contas, havia mais coisas que devem ter lugar na formação
oratória. O verdadeiro orador não podia, consumindo seu tempo no estudo, negligenciar a vida
e a experiência práticas que também conferiam poder à oratória, até porque não se devia
esquecer, primeiramente, que parte da educação romana consistia não por acaso num período
de vivência e observação da vida no fórum e, depois, num período de experiência no exército.
Ao cabo do processo, o orador teria não apenas conhecimento técnico, mas também uma certa
experiência de vida. Em segundo lugar, não se deve perder de vista que o principal objetivo da
educação oratória sempre fora, desde os sofistas gregos, a formação do político, de um homem
público capaz de assumir os deveres do Estado. Por isso, Antônio representa a manutenção da
tradição romana de privilegiar o que Vasconcelos (ibid., loc. cit.) chama de uita e que
traduziríamos por “experiência de vida”.
Outra vez, Antônio insiste na questão do âmbito da ars, dessa vez em De orat. I,
223:
Sed aliud quiddam, longe aliud, Crasse, quaerimus: acuto homine nobis opus
est et natura usuque callido, qui sagaciter peruestiget, quid sui ciues eique
homines, quibus aliquid dicendo persuadere uelit, cogitent, sentiant,
opinentur, exspectent; teneat oportet uenas cuiusque generis, aetatis, ordinis, et eorum, apud quos aliquid aget aut erit acturus, mentis sensusque degustet.
(...) Precisamos de um homem agudo e habilidoso por natureza e prática, que investigue, de maneira perspicaz, o que pensam, sentem, julgam, esperam seus
concidadãos e os homens que quer persuadir de algo pelo discurso. É preciso
que domine a essência de cada estirpe, idade, ordem, e forme um julgamento
sobre as mentes e os sentimentos daqueles perante os quais defende ou está para defender uma causa.
Antônio, por fim, insiste na questão do objeto da oratória e, dessa vez, para tal posto
elege a alma humana, numa suposta referência ao Fedro platônico. No curto excerto Phdr.
271d- 272b, Sócrates afirma que quem pretendesse tornar-se um orador de talento deveria
necessariamente conhecer quantas são as formas existentes na alma. Segundo ele, há muitas
espécies de homens, cada um com um caráter particular; haveria, com isso, tantas variedades
de discurso quanto caracteres humanos. Nessa linha, o orador deve discernir com rapidez o tipo
de discurso que caberá dizer para persuadir o ouvinte em questão, como quem diz a si mesmo:
eis o homem, eis a natureza que os mestres descreveram; agora que se encontra na minha
presença, eis que vou utilizar o discurso apropriado para o persuadir da maneira conveniente.
Aliás, ele diz que essa é uma virtude do orador: saber identificar rapidamente circunstâncias
favoráveis à persuasão. O mestre grego, inclusive, finaliza esse tópico determinando que não
85
se pode acreditar naquele que se considera um orador perfeito sem ter conhecimento dessa
condução das almas (psychagogía).
No entanto, Crasso estabelece outros parâmetros para avaliar a situação da retórica:
Nam si ars ita definitur, ut paulo ante posuit Antonius, ex rebus penitus
perspectis planeque cognitis atque ab opinionis arbitrio seiunctis scientiaque comprehensis, non mihi uidetur ars oratoris esse ulla; sunt enim varia et ad
vulgarem popularemque sensum accommodata omnia genera huius forensis
nostrae dictionis. Sin autem ea, quae obseruata sunt in usu ac tractatione
dicendi, haec ab hominibus callidis ac peritis animaduersa ac notata, uerbis definita, generibus inlustrata, partibus distributa sunt — id quod uideo
potuisse fieri —, non intellego, quam ob rem non, si minus illa subtili
definitione, at hac uulgari opinione ars esse uideatur. Sed siue est ars siue artis quaedam similitudo, non est ea quidem neglegenda; uerum
intellegendum est alia quaedam ad consequendam eloquentiam esse maiora.
(De orat. I, 108-9)
De fato, se uma arte, tal como há pouco expôs Antônio, se define por temas
totalmente compreendidos, perfeitamente entendidos, afastados do arbítrio da
opinião e abrangidos por uma ciência, não creio que haja uma arte do orador. É que todas as espécies deste nosso discurso do fórum são variadas e
adequadas ao senso comum e popular. Mas se as características observadas no
uso e na prática da oratória foram percebidas e notadas por homens hábeis e experientes, definidas em termos, elucidadas em gêneros, distribuídas em
partes — como percebo ser possível acontecer —, não vejo por que, se não
naquela definição precisa, ao menos nesta opinião comum, não possa parecer
uma arte. Mas, quer se trate de uma arte, quer de uma aparência de arte, ela não é de se desprezar; deve-se ter em mente, no entanto, que há elementos
mais importantes para atingir a eloquência.
Segundo Ferreira Lima (2016, p. 131), a percepção de ars, por que ordinariamente
traduzimos téchne, não parece mais, nesse período, um modo de apreensão da realidade,
centrada naquele que produz, pela qual o homem chega ao saber das coisas que podem ser
produzidas, mas o próprio conhecimento adquirido de um processo sócio-histórico de
acumulação de formas que devem se refletir na escrita de novos textos. E esse excerto parece
encaixar-se perfeitamente no comentário de Ferreira Lima, dado que privilegia a observação, o
acúmulo e a transformação da experiência oratória em conhecimento e pretere qualquer outro
elemento gnosiológico. Em outras palavras, Crasso parece simplificar a análise da retórica,
substituindo os aspectos de natureza gnosiológica da téchne grega por traços mais palpáveis.
Ao invés de falar da natureza do conhecimento e do trabalho do artífice, ele prefere enfocar a
experiência e a sistematização da técnica, que é o que parece caracterizar mais a noção romana
de ars.
86
Como havíamos dito acima,124 a discussão sobre a ars rhetorica no De oratore não
se resume a De orat. I, 134-147, momento em que Crasso tece seus comentários a respeito da
doutrina oratória aventada pelos rétores. Na verdade, o primeiro tomo inteiro toca, de alguma
maneira, a questão do conhecimento do orador perfeito, porque essa figura precisa, segundo as
personagens, adquirir conhecimento através um processo educativo. O orador idealizado tanto
por Crasso quanto por Antônio está atrelado também a um conhecimento não menos idealizado.
Mas a designação desse conhecimento no texto ciceroniano pode ocorrer através de várias
palavras, cada uma marcando um posicionamento diferente. Percebe-se uma disputa
interessante entre Crasso e Marco Antônio, que parece refletir a disputa juvenil de Cícero e
Quinto: de um lado temos um posicionamento idealizador, favorável à expansão e contrário à
especialização do conhecimento, amparado nos exemplos dos mais ilustres governantes do
passado greco-romano, de outro, um posicionamento comedido, devedor, sim, dos outros
especialistas, e atento aos seus limites. Ars ou ratio remetem à doutrina dos rétores gregos, um
conhecimento técnico, fechado ou restrito, mais alinhado à opinião de Antônio. A doctrina
deveria ser algo bem mais abrangente, apoiada nas artes liberais e no ideal de humanidade
(humanitas), alinhado à visão de Crasso, representante de Cícero no diálogo (CICERONE,
1992, p. 14). Veremos, no próximo capítulo, que Cícero registra esse ideal de humanidade já
no Pro Archia.125 Dito isto, fica patente, embora reste dúvida acerca de quão abrangente é esse
conhecimento oratório e com que ele pode ser designado no texto, a necessidade de que um dos
pilares da idealização ciceroniana de orador seja o conhecimento, seja ele enciclopédico ou
apenas oratório.
O terceiro pilar sobre o qual está fundada a figura do orador ideal é a exercitatio,
não perdendo de vista aqueles três termos aventados por Cícero e seu irmão Quinto no prefácio
ao De oratore I. A noção de exercitatio está atrelada à aplicação do conhecimento com vistas a
conquistar uma proficiência sólida, chamada por Quintiliano de firma facilitas.126 Segundo o
mestre, essa firma facilitas era adquirida somente através de intensos exercícios de escrita, de
leitura e da própria prática da oratória. Essa noção é definida pelo autor da Retórica a Herênio
124 Cf. p. 46. 125 Cf. p. 105-119. 126 “Mas estes preceitos de conduta relativos ao falar, tanto quanto são necessários para se obter o conhecimento
teórico da eloquência, não são suficientes para formar a competência oratória, a não ser que a eles se venha ajuntar
uma certa facilidade inabalável, que entre os gregos se denomina ἕξις. A esta facilidade se tem acesso pelo
exercício do escrever, prioritariamente do ler e do próprio praticar da oratória: este é o caminho pelo qual, eu sei,
se costuma buscá-la” (Sed haec eloquendi praecepta, sicut cogitationi sunt necessaria, ita non satis ad uim dicendi
ualent nisi illis firma quaedam facilitas, quae apud Graecos hexis nominatur, accesserit: ad quam scribendo plus
an legendo an dicendo conferatur, solere quaeri scio). (Inst. X, i, 1; In: REZENDE, 2009, p. 186)
87
como a prática assídua e o costume de discursar (exercitatio est adsiduus usus consuetudoque
dicendi) e apontada como fundamental, juntamente com a ars e a imitatio, para que o orador
alcance o domínio das cinco partes da retórica: invenção, disposição, elocução, memória e
pronunciação.127 Vê-se logo que exercitatio designou tarefas de sala de aula específicas,
requisitadas pelo mestre e desempenhadas com grande esforço pelo aluno (CLARK, 1977, p.
5), a fim de fixar regras (regulae), preceitos (praecepta) e a doutrina (doctrina) aprendidos na
escola de retórica. O dicionário apresenta exercitatio da seguinte forma:
exercitatio ~onis, f. [EXERCITO +-TIO] 1 a Physical work, exercise; (pl.)
forms of exercise. b the working (of soil in agriculture), cultivation. 2
Agitation, movement. 3 a Exercise (in a physical or mental activity) leading
to proficiency, practice. b exercises to promote proficiency. 4 Skill (acquired
by practice), proficiency. 5 Habitual performance; conduct (of legal
proceedings).128
Esses exercícios (exercitia) estão inseridos no universo da arte retórica (ars), que
auxilia no aprimoramento e na amplificação das competências naturais (natura) do homem. A
voz, a fala, a memória, o movimento, o conhecimento e o argumento são desenvolvidos pelos
procedimentos da educação oratória, de modo que a voz preencha os espaços do fórum, que a
fala seja ornada e articulada, que as narrativas sejam comoventes e convincentes, que os
movimentos sejam graciosos e eloquentes, que o vocabulário de assuntos e palavras seja amplo,
que a memória os retenha com fidelidade e, por fim, que tudo isto se apresente ao público da
maneira mais natural possível. A demanda pela prática dos preceitos ensinados pelo mestre vem
desde Isócrates. Diz o mestre grego que o discípulo, assim como o seu preceptor, deve possuir
uma boa natureza, ser bem instruído e conhecedor da sua matéria e dedicar-se ao exercício e à
prática do seu conhecimento. A palavra grega utilizada por ele para designar essa noção era a
127 O orador deve ter invenção, disposição, elocução, memória e pronunciação. Invenção é a descoberta de coisas
verdadeiras ou verossímeis que tornem a causa provável. Disposição é a ordenação e distribuição dessas coisas:
mostra o que deve ser colocado em cada lugar. Elocução é a acomodação de palavras e sentenças adequadas à
invenção. Memória é a firme apreensão, no ânimo, das coisas, das palavras e da disposição. Pronunciação é a
moderação, com encanto, de voz, semblante e gesto. Tudo isso poderemos alcançar por três meios: arte, imitação
e exercício. Arte é o preceito dá método e sistematização ao discurso. Imitação é o que nos estimula, com método cuidadoso, a que logremos ser semelhantes a outros no dizer. Exercício é a prática assídua e o costume de
discursar” (Oportet igitur esse in oratore inuentione, dispositione, elocutione, memoriam, pronuntiatione. Inuentio
est excogitatio rerum uerarum aut ueri similium quae causam probabilem reddant. Dispositio est ordo et
distributivo rerum, quae demonstrat quid quibus locis sit conlocandum. Elocutio est idoneorum uerborum et
sententiarum ad inuentione adcommodatio. Memoria est firma animi rerum et uerborum et dispositionis
perceptivo. Pronuntiatio est uocis, uultus, gestus, moderatio cum uenustate. Haec omnia tribus rebus adsequi
poterimus: arte, imitatione, exercitatione. Ars est praeceptio, quae dat certam uiam rationemque dicendi). (Rhet.
Her. I, 3; In: CÍCERO, 2005, p. 55) 128 Exercitatio, ~onis. In: Oxford Latin Dictionary. Oxford: The Clarenton Press, 1968, p. 640-1.
88
empeiría. Atrás apenas dos dons naturais em grau de importância e acima do conhecimento,
Isócrates deu muita ênfase a esse elemento porque ele designava a prática, o treino e a
experiência, por isso, estava muito atrelado à repetição e à imitação dos paradigmas propostos
pelo mestre.129 Esses fatores fizeram com que o sofista grego associasse a empeiría à ginástica.
Os professores de ginástica ensinam a seus alunos os movimentos a criarem com vistas às
competições, ao passo que os de filosofia expõem a seus discípulos todos os elementos
empregados pelo discurso. Após torná-los experientes nessas coisas e examiná-los
minuciosamente, repetem os exercícios com os alunos, acostumam-nos ao trabalho árduo e os
forçam a sistematizar cada uma das lições aprendidas, a fim de que as retenham com mais
solidez, e suas opiniões se tornam mais adaptadas às ocasiões.130 Portanto, similar ao entender
de Isócrates, as demandas de Crasso com relação à exercitatio, no excerto De orat. 147-160:
exercícios de declamação, de tradução, de voz e de memória, leitura e crítica dos poetas, estudos
gerais de direito e de história.
Algo a ser apontado no que se refere à exercitatio é sua relação com a imitatio
(imitação) e com o tirocinium fori. A vivência do fórum e a observação dos políticos experientes
reuniam em si o trabalho constante, a prática habitual, a elaboração rotineira que é a oratória
para os romanos antigos. Os jovens aprendizes pouco se detinham em experiências de sala de
aula, como será comum na época de Quintiliano; importa-lhes mais tomar conhecimento das
leis, dos contratos, dos decretos, dos pactos, dos parentescos, dos testemunhos131, o que poderia
ocorrer somente com o exercício da função. Neste sentido, Crasso confessa que suas mestras
foram a prática (usus), as instituições do povo romano, o costume dos ancestrais (mos
maiorum).132 Com o avanço de suas carreiras, os oradores inapelavelmente moldavam o seu
129 Vide nota 45. 130 “Assim técnicas já haviam sido estabelecidas, mas que nenhuma de tal espécie havia sido instituída para o corpo
e para a alma, criaram duas disciplinas e nos deixaram como legado: para o corpo, a educação física, da qual a
ginástica faz parte; para a alma, a filosofia, a respeito da qual pretendo discorrer. Ambas são paralelamente
correlatas e concordantes uma com a outra, por meio das quais quem as adquire torna alma mais inteligente e o
corpo mais útil, sem separar essas disciplinas uma da outra, mas utilizando-as conjuntamente em seus métodos,
exercícios e demais cuidados. Quando recebem discípulos, os professores de educação física ensinam a seus alunos
os movimentos que criaram em vista das competições, ao passo que os de filosofia expõem a seus discípulos todos
os elementos empregados pelo discurso”. (Antid. 181-3; In: LACERDA, 2016, p. 183) 131 Vide nota 113. 132 “Sendo assim, pedirei alguma clemência por minha pessoa e solicitarei a vós que considereis que me refiro não
a mim mesmo, mas ao orador, naquilo que digo. De fato, eu sou um homem que, tendo sido educado, quando
menino, com o extremo esforço de meu pai e tendo levado ao fórum tanto engenho quanto percebo, não tanto
quanto talvez vos pareça, não poderia dizer que aprendi esses elementos que agora abranjo do modo como afirmo
que devem ser aprendidos, sobretudo porque passei às causas públicas mais cedo do que qualquer um e aos vinte
e um anos de idade acusei um homem extremamente famoso e eloquente; um homem que teve o fórum como
escola, como mestre, a prática, as leis, as instituições do povo romano e a tradição dos antepassados” (Quae cum
ita sint, paululum equidem de me deprecabor et petam a uobis, ut ea, quae dicam, non de memet ipso, sed de
89
discurso ao sistema de ideias, às opiniões, aos conceitos, aos modos de pensar e de se portar
dos seus ouvintes (DILUZIO, 2014, p. 128). Dessa forma, também não é fora de lugar pensar
que a própria maneira de discursar no fórum fosse moldada à dos políticos mais experientes.
Outrossim, os mais jovens deviam procurar alguém a quem imitar de acordo com sua própria
natureza, assim como ocorre com o jovem Sulpício: palavras em excesso, discurso arrebatado
veloz e enérgico, a quem foi indicado imitar o estilo magnífico e preclaro de Crasso133. Meses
depois, segundo Antônio, de tal modo foram reparados os seus vícios que o mestre considerou
incrível o seu avanço. A imitação (imitatio), portanto, é vista como etapa da exercitatio, na
medida em que apresenta virtudes a serem incorporadas pelo discípulo ao seu repertório
retórico, por assim dizer.
A exercitatio pode ser associada a vários termos e etapas da retórica antiga. Crasso
começa seu discurso fazendo alusão àqueles que se enganavam por ter ouvido dizer que os
homens aprendiam a discursar discursando e que, por isso, queriam discursar de improviso
sempre, ignorando o momento e a oportunidade. Como remédio, Crasso considera a escrita a
mais importante aliada do discurso, porque entende que quanto mais burilado e preparado for
o discurso, tanto melhor e mais coerente ele será que o discurso improvisado, pois, com o tempo
e com o hábito da escrita, começa a moldar-se a fala espontânea às convenções da escrita.134
oratore dicere putetis. Ego enim sum is, qui cum summo studio patris in pueritia doctus essem et in forum ingeni
tantum, quantum ipse sentio, non tantum, quantum [ipse] forsitan uobis uidear, detulissem, non possim dicere me
haec, quae nunc complector, perinde, ut dicam discenda esse, didicisse; quippe qui omnium maturrime ad publicas
causas accesserim annosque natus unum et uiginti nobilissimum hominem et eloquentissimum in iudicium
uocarim; cui disciplina fuerit forum, magister usus et leges et instituta Populi Romani mosque maiorum). (De
orat. III, 74)
133 “E, para começar por um amigo nosso, Cátulo, da primeira vez que ouvi este Sulpício aqui presente, ainda
jovem, numa causa sem importância, apresentou voz, aparência, movimentos corporais e demais elementos
adequados para este ofício que investigamos, um discurso veloz e arrebatado, o que era de sua natureza, mas
palavras numerosas e um pouco em excesso, o que era da idade. (...) De uma maneira geral, era a própria natureza
que o conduzia àquele gênero magnífico e ilustre de Crasso, mas isso não lhe poderia ter sido muito proveitoso,
se não o tivesse reforçado pelo mesmo zelo e imitação se acostumado a discursar de tal forma a contemplar Crasso
com toda sua mente e todo o seu ânimo” (Atque ut a familiari nostro exordiar, hunc ego, Catule, Sulpicium primum
in causa paruula adulescentulum audiui uoce et forma et motu corporis et reliquis rebus aptis ad hoc munus, de
quo quaerimus, oratione autem celeri et concitata, quod erat ingeni, et uerbis efferuescentibus et paulo nimium
redundantibus, quod erat aetatis. [...] Omnino in illud genus eum Crassi magnificum atque praeclarum natura
ipsa ducebat sed ea non satis proficere potuisset, nisi eodem studio atque imitatione intendisset atque ita dicere
consuesset, ut tota mente Crassum atque omni animo intueretur). (De orat. II, 88-89) 134 “O ponto principal é o que, a bem da verdade, menos fazemos, pois demanda grande trabalho, o que a maioria
de nós evita: escrever o máximo possível. A escrita é a melhor e mais importante realizadora e mestre do discurso;
e não há insulto nisso: se a preparação e a reflexão superam o discurso improvisado e fortuito, é evidente que a
escrita assídua e cuidadosa será superior a ela. (...) Além disso, aquele que passa do hábito de escrever à prática
do discurso traz consigo tal capacidade que, mesmo discursando de improviso, o que fala parece semelhante ao
que escreve; e também, se alguma vez, em seu discurso, trouxer uma parte escrita, ao terminá-la, o restante do
discurso seguirá de maneira semelhante” (Caput autem est, quod, ut uere dicam, minime facimus est enim magni
laboris, quem plerique fugimus quam plurimum scribere. Stilus optimus et praestantissimus dicendi effector ac
magister; neque iniuria; nam si subitam et fortuitam orationem commentatio et cogitatio facile uincit, hanc ipsam
90
Na verdade, aí reside uma relação com a memória; o ex-cônsul supõe que existe uma relação
entre a escrita, que por si tende a ser mais organizada e precisa, e a repetição, que fortaleceria
a fixação das palavras e da ordem das frases, o uso de figuras (de linguagem) e imagens, da
sequência de argumentos e contra-argumentos.
Esse exercício também pode ser complementado pela paráfrase e tradução de
poemas e discursos em grego, esforçando-se por empregar as palavras adequadas e criar termos
precisos por analogia. Além disso, Crasso, retomando o seu ideal de conhecimento abrangente
do orador, sugere, como exercício, que sejam lidos e conhecidos poetas, historiadores e demais
mestres das artes liberais, mas que também os cite, os interprete, os critique, os refute e os
emende. A esses, poder-se-á acrescer a memorização do maior número de escritos, se possível
utilizando método de lugares mnemônicos.135 Neste sentido, talvez em menor grau no primeiro
exercício citado, mas evidente no segundo, é possível apontar uma relação com a enarratio
poetarum, aquela atividade de análise, descrição, interpretação e juízo ministrada pelo mestre
de gramática (REVILLA, 2005, p. 347). Mas, na explicação dos poetas (enarratio poetarum)
além dessa tarefa hermenêutica, também havia as leituras preliminares, chamadas
praelectiones, em que se analisavam a sintaxe, o léxico e as figuras (ibid., loc. cit.) Os exercícios
de traduções (translationes) eram feitos também nessas etapas, haja vista a situação de
bilinguismo vivida por Roma e seus habitantes à época de Cícero (ibid., loc. cit.) Quanto à
memorização, era altamente recomendável, aponta Quintiliano, que os alunos decorassem
passagens selecionadas de discursos ou obras históricas, pois eles se acostumarão aos melhores
modelos e sempre terão na memória algo a imitar. Com isso, eles reproduzirão espontaneamente
o modo de discursar desses modelos, com um vocabulário abundante e seleto, domínio da
profecto adsidua ac diligens scriptura superabit. [...] Et qui a scribendi consuetudine ad dicendum uenit, hanc
adfert facultatem, ut, etiam subito si dicat, tamen illa, quae dicantur, similia scriptorum esse uideantur; atque
etiam, si quando in dicendo scriptum attulerit aliquid, cum ab eo discesserit, reliqua similis oratio consequetur). (De orat. I, 150-2) 135 Durante a grande festa, Simônides cantou um poema em homenagem ao anfitrião, incluindo passagens em
louvor a Castor e Pólux. Scopa, enciumado, disse então ao poeta que só pagaria metade do preço combinado, que
ele fosse conseguir o resto com a dupla de deuses gêmeos. Pouco depois, Simônides recebeu o recado que dois
jovens estavam esperando por ele lá fora. Saiu, mas não encontrou ninguém. Quando voltava, todo salão do
banquete desabou, matando Scopas e seus convidados. Os corpos ficaram tão mutilados, que era impossível a
identificação das vítimas para o enterro. Simôniades, lembrando o lugar em que cada pessoa estava sentada, pôde
indicar às famílias quais eram seus parentes mortos. O episódio desastroso ajudou o poeta a estabelecer as bases
de sua técnica, a criação de lugares em ordem e a colocação de imagens fortes nos lugares criados (COIMBRA,
1989, p. 147).
91
sintaxe e das figuras, serão capazes de evocar todos os autores de maneira oportuna e fiel nos
processos, trazendo autoridade aos seus discursos.136
A escrita também é relacionada por Crasso à apreensão dos lugares comuns. Ela
teria a função de auxiliar o discípulo a fixar na memória os lugares de onde extrair argumentos
para defender e acusar. Essa doutrina relaciona-se com a inuentio, parte da retórica que trata de
como encontrar argumentos adequados a uma tese plausível (GARAVELLI, 2000, p. 67). O
orador precisa saber que certos argumentos podem ser garantidos a partir dos atributos pessoais
ou profissionais. Consideram-se atributos pessoais o nome, a natureza, o gênero de vida, a sorte,
as atribulações, a dedicação, os feitos, os interesses, as decisões, os discursos (Ac personis has
res adtributas putamus: nomen, naturam, uictum, fortunam, habitum, affectionem, studia,
consilia, facta, casus, orationes).137 Podem ser ressaltados também estirpe, dinheiro, parentes,
amigos, recursos, saúde, beleza, forças e engenho, procurando dizer que o réu os utilizou bem
e que demonstrou sabedoria, nobreza, coragem, justiça, grandeza, piedade, gratidão e
humanidade quando os perdeu.138 Deve-se associar essas virtudes ou vícios à moderação com
136 “Eu aconselharia ainda mais que decorassem passagens selecionadas de discursos ou obras históricas, ou ainda
de outro tipo de livros que sejam dignos de tal cuidado. A memória será assim exercitada com mais eficácia, ao
dominar o que é alheio, em vez do que é próprio; também se acostumarão aos melhores modelos e sempre terão
na memória algo que possam imitar; e reproduzirão, mesmo sem saber, o modo de discursar que imprimiram
profundamente em suas inteligências. Além disso, terão um vocabulário abundante e seleto, domínio da sintaxe e
figuras que já não é preciso procurar, pois surgem espontaneamente como que de um tesouro bem guardado.
Somasse a tudo isso a capacidade de evocar citações de todos os autores, que são oportunas numa conversa, e úteis
nos processos, pois carregam mais autoridade os dizeres que não foram preparados em vista do litígio do momento;
e conquistam mais aplausos do que se fossem nossos” (Sic ediscere electos ex orationibus uel historiis alioue quo
genere dignorum ea cura uoluminum locos multo magis suadeam. Nam et exercebitur acrius memoria aliena
complectendo quam sua, et qui erunt in difficiliore huius laboris genere uersati sine molestia quae ipsi composuerint iam familiaria animo suo adfigent, et adsuescent optimis, semperque habebunt intra se quod
imitentur, et iam non sentientes formam orationis illam quam mente penitus acceperint expriment. Abundabunt
autem copia uerborum optimorum et compositione ac figuris iam non quaesitis sed sponte et ex reposito uelut
thesauro se offerentibus. Accedit his et iucunda in sermone bene a quoque dictorum relatio et in causis utilis. Nam
et plus auctoritatis adferunt ea quae non praesentis gratia litis sunt comparata, et laudem saepe maiorem quam
si nostra sint conciliant). (Inst. II, vii, 2-5; In: FALCÓN, 2015, p. 47-8) 137Inv. I, 34. 138 “De fato, estabelecido aquilo que Crasso disse no início daquele discurso que, como censor, pronunciou contra
seu colega: no que a natureza ou a fortuna concederam aos homens, podia suportar tranquilamente ser superado;
naquilo que os próprios homens podem granjear para si, não podia suportar ser vencido; quem louvar alguém,
notará que deve tratar dos bens da fortuna; tais são os de estirpe, dinheiro, parentes, amigos, recursos, saúde,
beleza, forças, engenho e demais coisas que são do corpo ou externas; se os teve, que fez bom uso deles; se não os teve, que passou sem eles com sabedoria; se os perdeu, que o suportou com moderação; depois, o que aquele a
quem se louver fez ou suportou com sabedoria, nobreza, coragem, justiça, grandeza, piedade, gratidão,
humanidade, enfim, com alguma virtude. Aquele que quiser louvar perceberá facilmente esses pontos e os deste
gênero; aquele que quiser vituperar, os seus contrários” (Positis enim eis rebus, quas Crassus in illius orationis
suae, quam contra conlegam censor habuit, principio dixit: quae natura aut fortuna darentur hominibus, in eis
rebus se uinci posse animo aequo pati; quae ipsi sibi homines parare possent, in eis rebus se pati non posse uinci;
qui laudabit quempiam, intelleget exponenda sibi esse fortunae bona; ea sunt generis, pecuniae, propinquorum,
amicorum, opum, ualetudinis, formae, uirium, ingeni et ceterarum rerum, quae sunt aut corporis aut extraneae;
si habuerit bene rebus eis usum; si non habuerit, sapienter caruisse; si amiserit, moderate tulisse; deinde, quid
92
o próprio negócio, à administração do negócio, às coisas atreladas a esse negócio e ao produto
desse negócio.139 Além disso, deve dominar os tipos de argumentos verossímeis, que servem
de premissas ao raciocínio retórico, tendo em vista o justo e o injusto quando se tratar de gênero
judicial, o útil e o inútil se estiver em jogo uma disputa deliberativa, o belo e o feio em caso de
gênero epidítico, sendo aplicáveis aos três tipos discursivos o possível e o impossível e o real e
o irreal.140 Estes são, na verdade, recursos da linguagem que servem como ponto de partida ou
fonte para uma argumentação, de modo que quem se predispõe a assumir o papel de questionado
deve encontrar o lugar a partir do qual vai conduzir a sua argumentação.
As referências a exercícios mais físicos são tão pouco numerosas quanto detalhadas.
A primeira, tão tímida quanto depreciativa: Crasso, como dissemos há pouco, consente que os
alunos tentem aprender a discursar discursando, mas condena que, nessas práticas, exercitem
apenas a voz.141 Para ele, a voz, bem como os movimentos e a respiração, carece menos de arte
(ars) que trabalho (labor), além da imitação não somente de oradores, mas também de atores,
a fim de fugir a qualquer vício.142 De novo, estamos a ver a relação entre retórica e teatro e
sapienter is, quem laudet, quid liberaliter, quid fortiter, quid iuste, quid magnifice, quid pie, quid grate, quid
humaniter, quid denique cum aliqua uirtute aut fecerit aut tulerit: haec et quae sunt eius generis facile uidebit, qui
uolet laudare; et qui uituperare, contraria). (De orat. II, 46) 139 “Sobre o meio de vida, deve-se considerar por qual mestre, segundo qual costume, pelo arbítrio de qual figura
a pessoa foi educada, quais foram os seus mestres das artes liberais, seus os preceptores do viver, de quais amigos
gozou, a qual ofício, trabalho e sustento se dedicou, de que modo administrava os negócios familiares e com qual
costume tocou os negócios domésticos” (In uictu considerare oportet, apud quem et quo more et cuius arbitratu
sit educatus, quos habuerit artium liberalium magistros, quos uiuendi praeceptores, quibus amicis utatur, quo in
negotio, quaestu, artificio sit occupatus, quomodo rem familiarem administret, qua consuetudine domestica sit).
(Inv. I, 35; Tradução de nossa lavra) 140 “Tanto no gênero deliberativo como nos gêneros judiciário e demonstrativo, ter premissas relativas ao possível e ao impossível, bem como à questão de saber se um fato se deu ou não se se há de produzir ou não. Acrescente-
se ainda o seguinte: quando se louva ou se censura, quando se aconselha ou se desaconselha, quando se acusa ou
se defende, ninguém se empenha só em demostrar o que afirma; mas todos se propõem, além disso, mostrar a
importância, grande ou pequena do bem e do mal, do belo e do feio, do justo e do injusto, que o assunto encerra,
quer estes estes pontos sejam tratados em separadamente, quer sejam mutuamente postos em confronto e oposição.
Donde, será manifestamente necessário possuir premissas sobre a grandeza e a pequenez, sobre o mais e o menos,
tanto em geral como em particular, como, por exemplo, qual é num determinado caso o bem, o ato legítimo ou
ilegítimo maior ou menor; e assim por diante nas demais matérias. Acabamos de dizer onde devemos
necessariamente ir buscar premissas”. (Rh. I, iii, 7-8; In: ARISTÓTELES, s.t., p. 48-9) 141 “No que me concerne, eu aprovo, respondeu Crasso, isso que costumais fazer: uma vez proposta uma causa
semelhante às causas que são levadas ao fórum, discursais da maneira mais adequada possível à realidade. A
maioria, porém, exercita apenas a voz nesses exercícios – e isso de maneira estúpida – bem como suas forças, e incita a rapidez da língua, deleitando-se com a frequência das palavras” (Equidem probo ista, Crassus inquit quae
uos facere soletis, ut, causa aliqua posita consimili causarum earum, quae in forum deferuntur, dicatis quam
maxime ad ueritatem accommodate; sed plerique in hoc uocem modo, neque eam scienter, et uiris exercent suas
et linguae celeritatem incitant uerborumque frequentia delectantur). (De orat. I, 149) 142 “Já os movimentos e os exercícios de voz, respiração, de todo o corpo de da própria língua carecem não tanto
de arte quanto de trabalho; em tais pontos, deve-se ter extremo cuidado ao escolher quem imitaremos, a quem
desejamos nos assemelhar. Devemos observar não apenas os oradores, mas também os atores, para não os
alcançarmos, por algum mau costume, alguma deformidade ou defeito” (Iam uocis et spiritus et totius corporis et
ipsius linguae motus et exercitationes non tam artis indigent quam is laboris; quibus in rebus habenda est ratio
93
elementos da pronuntiatio. Depreende-se então que, naquele excerto em que se recomenda a
Sulpício imitar o estilo grandiloquente de Crasso, devesse o jovem orador atentar também para
a forma como o ex-cônsul se movimentava e conduzia sua voz e respiração.
Diferentemente do que ocorreu com o segundo fundamento da edificação do orador
ideal no De oratore I, não houve uma discussão dos personagens em torno da exercitatio,
tampouco alusões anteriores ou posteriores, exceto a de Quinto, localizada ainda no prefácio
do texto, que deixassem entrever um posicionamento ou uma recomendação a esse respeito.
Mas essa escassez de excertos sobre esse elemento pode ser justificada se retomarmos algumas
questões postas anteriormente. Se a téchne grega e a ars latina significaram, grosso modo,
regras sistematicamente reunidas, princípios e preceitos que um garoto deve aprender com o
apoio de um manual e a partir das conferências do seu mestre, não seria de todo descabido
conceber etapas desse processo de aquisição dessa técnica por meio de exercícios e que estes
fizessem parte daquela, de modo que os exercícios estivessem contidos na arte ou, pelo menos,
no seu aprendizado (CLARK, 1977, p. 5). Não obstante, isso não impediu grandes pensadores
antigos como Platão,143 por meio de Sócrates, Isócrates,144 Aristóteles, segundo consta de
Diógenes Laércio,145 e Cícero de incluir esse elemento prático e técnico entre os fundamentos
da retórica, formando uma espécie de tríade, juntamente com os dons naturais e o
conhecimento.
Ao longo de uma breve incursão pelo livro primeiro do De oratore, fica claro que
o ensino retórico que se disseminava à sua época pouco importava às suas personagens. Antes
da formação técnica do orador, decerto não desconhecida pelas personagens, interessava-lhes a
delineação de um determinado tipo humano ideal, que não pode ser outra figura senão o orador
ideal, um homem de conhecimento e de atuação na sociedade. Mas, para criar essa imagem de
um orador perfeito, digno de chefiar estados e fundar cidades, como sugere Crasso ainda no
início do diálogo,146 deve-se preencher três requisitos fundamentais: ter uma natureza (natura),
uma inteligência (ingenium, facultas) privilegiadas, conhecimento vastíssimo (ratio, doctrina,
diligenter, quos imitemur, quorum similes uelimus esse. Intuendi nobis sunt non solum oratores, sed etiam actores,
ne mala consuetudine ad aliquam deformitatem prauitatemque ueniamus). (De orat. 156) 143 Vide citação direta de Phdr. 269d de p. 49. 144 Vide nota 83. 145 “O filósofo costumava dizer que três coisas são indispensáveis à educação: dotes naturais, estudo e prática
constantes”. (Vit. phil. V, i, 18; In: KURY, 2008, p. 133) 146 “Mas, passando já ao que é mais importante, que outro poder foi capaz de reunir os homens dispersos num
único lugar, ou conduzi-los da vida selvagem e bruta para nosso atual tipo de vida, humano e em sociedade, ou, ainda, depois de já constituídas as cidades, estabelecer leis, tribunais, direitos?” (Vt vero iam ad illa summa
ueniamus, quae vis alia potuit aut dispersos homines unum in locum congregare aut a fera agrestique uita ad hunc
humanum cultum ciuilemque deducere aut iam constitutis ciuitatibus leges, iudicia, iura describere?). (De orat. I,
33)
94
scientia, studium) e exercício da técnica retórica (ars, exercitatio, consuetudo, usus). Neste
sentido, seus ouvintes devem ter em mente que não estavam a falar de si mesmos, porque, ainda
que não lhe tenham faltado engenho (ingenium) e experiência (exercitatio), faltaram-lhe essa
formação oratória ampla (doctrina), o tempo livre (otium) e afinco (studium). Pois ambos
reconhecem que o início precoce, observando os mais eloquentes, furtou-lhes o acesso à cultura
(doctrina) e à literatura (litterae) que trouxeram os gregos. Além das considerações de Crasso
acerca da sua formação oratória, devem ser ressaltados os três critérios utilizados por ele para
avaliar seu desempenho e para idealizar o orador perfeito: o talento admirável (ingenium), a
erudição liberal (doctrina) e a prática oratória (exercitatio).147
Cícero, nesse momento, faz uso da ideia de que tanto na retórica quanto em outras
artes, é raríssimo ver reunidos em alguém todo o engenho (ingenium), toda a instrução
(doctrina) e toda a experiência (exercitium)148 e, com isso, insere a si mesmo ou o seu texto
numa espécie de tradição de divulgadores da mesma ideia. Em De inuentione, por exemplo,
manual de retórica produzido na juventude de Cícero, afirma-se que a eloquência não pode ser
atingida apenas pela natureza (natura) ou pelos exercícios (exercitium), mas também necessita
de uma espécie de arte (artificium)149. A Rhetorica ad Herennium também indica três elementos
parecidos: ora afirma que a natureza se aperfeiçoa com talento, com instrução e com preceito150,
ora afirma que todas os gêneros e partes do discurso podem ser alcançados com arte, imitação
e exercício151. Já em Brutus, o personagem Cícero afirma que a oratória, quer por arte, quer por
exercício, quer por natureza, é a coisa mais difícil de alcançar152. Quintiliano afirma que a
capacidade de discursar é levada à perfeição com natureza, arte e exercício. A imitação, o
mestre a inclui sob o domínio da arte, embora reconheça haver quem a entenda como um quarto
147 Cf. citação direta em p. 3. 148 “Pois em toda arte, ou ocupação, ou em qualquer campo de conhecimento, ou na própria virtude, tudo que há
de mais excelente é muitíssimo raro” (In omni enim arte uel studio uel quamuis scientia uel in ipsa uirtute optimum
quidque rarissimum est). (Fin. II, xxv, 81; In: LIMA, 2009, p. 359) 149 “Se, por acaso, não apenas por natureza ou por prática, mas também por uma espécie de artifício” (Hoc si forte
non natura modo neque exercitatione conficitur, uerum etiam artificio quodam [loqui] comparatur) (Inv. I, 5;
Tradução de nossa lavra) 150 Vide nota 42. 151 “Tudo isso poderemos alcançar por três meios: arte, imitação e exercício. Arte é o preceito dá método e
sistematização ao discurso. Imitação é o que nos estimula, com método cuidadoso, a que logremos ser semelhantes
a outros no dizer. Exercício é a prática assídua e o costume de discursar” (Haec omnia tribus rebus adsequi
poterimus: arte, imitatione, exercitatione. Ars est praeceptio, quae dat certam uiam rationemque dicendi). (Rhet.
Her. I, 3; In: CÍCERO, 2005, p. 55) 152 “Mas isto eu poderia assegurar sem nenhuma hesitação: quer ela seja produzida por alguma arte, quer pelo
treinamento constante, quer pela disposição natural, não há nada no mundo mais difícil” (Hoc uero sine ulla
dubitatione confirmauerim, siue illa arte pariatur aliqua siue exercitatione quadam siue natura, rem unam esse
omnium difficillumam). (Brut. 25; In: ALMEIDA, 2014, p. 66)
95
elemento153. Isidoro de Sevilha, bem mais tarde, irá afirmar que a perfeição no discursar
consiste em natureza, instrução e prática. A natureza consiste no engenho, a instrução, no
conhecimento, e a prática, na assiduidade.154 A diferença de De oratore, estabelecida pela maior
utilização de doctrina, em vez de ars, para designar o conhecimento do orador, justifica-se pela
proposta de Crasso, seu falante mais frequente, de contestar a mera especialização (ars) e propor
uma formação ampla (doctrina) para o orador.
Um indício do valor dessas três noções é dado pelo número de vezes que noções
como natura, ingenium, facultas, scientia, doctrina, ars, studium, exercitatio e usus aparecem
relacionadas no texto e, neste momento, citamos exemplos dos três tomos do diálogo: De orat.
I, 5, 11, 14-6, 22-3, 38, 46, 75, 79, 80, 89, 90, 93-5, 102, 104, 113-5, 131, 151, 180, 191, 214,
219; De orat. II, 2, 11, 37-8, 70, 108-9, 119, 131, 150, 162, 175, 247, 298-9, 356, 363; De orat.
III, 16, 28, 35-6, 48, 57, 59, 72, 74-7, 79, 86-8, 93-4, 125, 140-1, 194, 209, 225, 229-30. No fim
das contas, duas coisas: a discussão das personagens parece, pelo menos em parte, perpassada
por essas noções, e Cícero se mostra próximo de Isócrates; afinal, ambos entendiam que é certo
que não existe arte de falar sem os dotes naturais, natura, sem técnica, ars, e a exercitação por
meio de declamações e outras práticas, exercitatio; mas essa técnica deve ser expandida para a
aquisição da cultura enciclopédica (TRENK, 1997, p. 102). O conhecimento e a experiência
servirão para lapidar a natureza do indivíduo e levá-lo à humanitas, o cume da idealização de
Cícero.
153 “A capacidade de discursar é consumada com natureza, técnica, exercício. Alguns acrescentam a esse grupo um quarto integrante, a imitação, a qual submetemos à técnica” (Facultas orandi consummatur
natura, arte, exercitatione; cui partem quartam adiciunt quidam imitationis, quam nos arti subicimus). (Inst. III,
v, 1; Tradução de nossa lavra) 154 Vide nota 40.
96
3 REFORMULAÇÃO DA DOUTRINA DOS TRÊS ELEMENTOS NO PRO ARCHIA
3.1 PREÂMBULO AO PRO ARCHIA
Para apresentar, com concisão, a Defesa do poeta Árquias (Pro A. Licinio Archia
oratio), de modo a mencionar seus principais aspectos, diríamos que consistiu num discurso
proferido por Cícero no ano de 63 a.C. em defesa epigramatista grego Aulo Licínio Árquias,
acusado, por um certo Grácio, de falsear sua cidadania romana. Com isso, evidenciamos
elementos fundamentais do texto: o seu gênero oratório, o seu autor, o ano da sua exposição, o
acusado, o acusador e a acusação; alguns dos quais perpassarão nossa análise em algum
momento e de algum modo.
Importa à análise conhecer a razão e a maneira pelas quais Cícero se permite utilizar
argumentos epidíticos para refutar acusações cíveis. Importa à análise conhecer o autor e suas
convicções para que se compreenda a utilização desses argumentos. Importa, talvez em menor
proporção, conhecer a data da Defesa para tentar identificar prenúncios do que viria a ser dito
em Sobre o orador. Importa à análise conhecer o acusado, ainda que apenas para tentar
compreender a construção da sua imagem enquanto poeta por Cícero. Em menor grau, importa
à análise, senão conhecer, ao menos comentar a figura do acusador ou do grupo, para que
fiquem claras as motivações que levaram Cícero assumir a defesa. Por fim, importa à análise,
em menor grau, conhecer as alegações acusatórias porque, entendendo-as, poderemos ter uma
ideia do que levou o orador a apelar à argumentação epidítica.
Para começar, podemos dizer que a acusação estava pautada na Lei Pláucia-Papíria
(Lex Plautia Papiria), promulgada em 89 a.C. pelos tribunos Marco Pláucio Silvano e Caio
Papírio Carbão, que dizia respeito à concessão da cidadania romana aos aliados. Com ela, os
estrangeiros nascidos em províncias romanas adquiririam um estatuto jurídico (ius ciuile), que
se referia, sobretudo, ao direito privado e ao penal, o que significa ter amparadas pelo direito
comum suas relações pessoais, familiares, políticas, patrimoniais, comerciais e jurídicas
(NICOLET, 1992, p. 24). A contagem e o controle dessa população apoiavam-se numa espécie
de recenseamento (census) feito pelo pretor, que recebia as declarações daqueles domiciliados
na Itália dentro de um prazo de sessenta dias. Tendo isso em vista, a acusação teria alegado que
Árquias, natural de Antioquia, não se registrara junto ao censor em Heracleia enquanto
97
acompanhava o séquito de Luculo e apresentava como prova o único e exclusivo fato de que
seu nome não constava dos registros públicos heracleenses.155
Grácio é o obscuro oponente de Cícero nesse processo. Nada se sabe sobre ele, e
acredita-se que a denúncia não passasse de um subterfúgio de Pompeu Magno para atingir os
Luculos, seus adversários políticos, prática comum na época (CICERÓN, 1940, p. 9;
VENTURINI, 1999, p. 300-3). O processo, muitas vezes, apresentava teor político, já que a
acusação pretendia atacar, na verdade, o clã ou a facção do adversário. A defesa, então, procura
inocentar o réu, e, por extensão, também seu grupo político (DEUR, 2005, p. 26-7). No fundo,
essa prática aproveitava-se da relação de patronato e clientela romanos. Em poucas palavras,
plebeus e escravos – os clientes – ligavam-se a um aristocrata – patrono – compondo seu séquito
por motivos econômicos e sociais. O patrono, dispondo de dinheiro, autoridade e influência,
fazia questão de arregimentar clientes para ostentar sua superioridade e seu capital político; o
cliente oferecia sua presença e apoio em assembleias e julgamentos públicos (ibid., p. 25). Essa
era uma prática muito comum porque assim os marginalizados garantiam proteção social, e os
poderosos, fidelidade política. No caso dos poetas, muitos deles gregos, por não considerarem
honroso trabalhar como plebeus, no geral, associavam-se a patronos para viverem às suas
expensas (ibid., loc. cit.).
Esse foi o caso de Aulo Licínio Árquias, compositor de epigramas, nascido em
Antioquia, cidade da Síria, anexada ao território romano por Pompeu em 64 a.C. (TRENK,
1997, p. 200). Da sua obra poética, restam apenas trinta e cinco epigramas, a alusão a poemas
narrativos da Guerra Címbria e156 da Guerra Mitridática,157 bem como a promessa de poema
155 “Pela lei de Silvano e Carbão, a cidadania romana foi concedida àqueles que tivessem sido registrados nas
cidades aliadas, que, na época da promulgação da lei, tivessem tido domicílio na Itália e que, dentro de sessenta
dias, tivessem feito a declaração ao pretor; tendo este, Árquias, seu domicílio em Roma há muitos anos, fez a
declaração diante do pretor Quinto Metelo, seu íntimo amigo” (Data est ciuitas Silvani lege et Carbonis: "Si qui
foederatis civitatibus ascripti fuissent; si tum, cum lex ferebatur, in Italia domicilium habuissent; et si sexaginta
diebus apud praetorem essent professi." Cum hic domicilium Romae multos iam annos haberet, professus est apud
praetorem Q. Metellum familiarissimum suum). (Arch. 7) 156 “Repudiaremos nós a este, vivo, que é nosso, por vontade própria e pelas leis, sobretudo quando Árquias
aplicou, de longa data, todo o seu interesse e talento na celebração da glória e do louvor do povo romano? Pois, na
juventude, não somente se ocupou das Guerras Címbricas, mas ainda agradou aquele Gaio Mário que parecia demasiado rude para tais estudos” (nos hunc uivum, qui et uoluntate et legibus noster est, repudiabimus?
Praesertim cum omne olim studium atque omne ingenium contulerit Archias ad populi Romani gloriam laudemque
celebrandam? Nam et Cimbricas res adulescens attigit, et ipsi illi C. Mario, qui durior ad haec studia uidebatur,
iucundus fuit). (Arch. 19) 157 “Mas a Guerra Mitridática, grande e difícil, além de conduzida por terra e por mar com numerosas vicissitudes,
foi por Árquias inteira descrita; e estes livros não exaltam apenas Lúcio Luculo, homem tão valente e preclaro,
mas também o nome do povo romano” (Mithridaticum uero bellum, magnum atque difficile et in multa uarietate
terra marique uersatum, totum ab hoc expressum est: qui libri non modo L. Lucullum, fortissimum et clarissimum
uirum, uerum etiam populi Romani nomen inlustrant). (Arch. 21)
98
narrativo sobre a atuação de Cícero na conjuração de Catilina.158 Além disso, restam duas
referências na obra do ex-cônsul, no De diuinatione159 e no Ad Atticum, esta última, aliás, bem
depreciativa:
Epigrammatis tuis, quae in Amaltheo posuisti, contenti erimus, praesertim
cum et Thyillus nos reliquerit, et Archias nihil de me scripserit. Ac uereor ne Lucullis quoniam Graecum poema condidit, nunc ad Caecilianam fabulam
spectet.
Ficamos contentes com seus epigramas que você pôs no Amalteo, sobretudo quando Tilo nos abandonou e Árquias nada escreveu sobre mim. Também
receio que ele tenha escrito um poema em grego para os Luculos e planeje
escrever uma peça ceciliana. (Att. I, xvi, 15; Tradução de nossa lavra)
O fato é que seu nome entrou para a história muito mais por ter sido defendido por
Cícero do que por seus próprios méritos. Aliás, nem no próprio discurso Árquias é protagonista,
pois o que, de fato, chama atenção do leitor é a defesa da poesia e a idealização do poeta, e não
a pessoa do acusado. Porque, afinal de contas, o acusado mesmo, segundo Cícero, cumpria
todos os requisitos da lei Pláucia Papíria. O réu inscreveu-se em Heracleia e fixou residência
em Roma160, tendo apresentado a declaração ao pretor no prazo.161 No outro sentido, como
objeção, a defesa alega que, durante o período correspondente aos dois primeiros censos depois
da promulgação da lei Pláucia Papíria, o poeta esteve ausente por estar em expedição pela Ásia
com Luculo (TRENK, 1997, p. 133).162
158 “Pois os atos que nós realizamos durante o consulado, juntamente convosco pela salvação deste império, da
mesma forma que pela vida dos cidadãos e por toda a república, este Árquias recolheu e começou a pôr em versos” (Nam quas res nos in consulatu nostro uobiscum simul pro salute huiusce imperi et pro uita ciuium proque
uniuersa re publica gessimus, attigit hic uersibus atque inchoauit). (Arch. 28) 159 “E Pasíteles gravou esse caso particular em prata e o nosso Árquias expressou em versos” (Atque hanc speciem
Pasiteles caelauit argento et noster expressit Archias uersibus). (Div. I, 79. In: GRATTI, 2009, p. 80) 160 “Acaso não teve domicílio em Roma este que, por tantos, mesmo antes de concedida a cidadania, em Roma
estabeleceu a sede de todos os seus interesses e bens? (...) Não só fez diversas vezes testamento conforme as nossas
leis, como ainda recebeu heranças de cidadãos romanos e, enfim, na lista das gratificações, teve seu nome
apresentado ao tesouro pelo procônsul Luculo” (An domicilium Romae non habuit is, qui tot annis ante ciuitatem
datam sedem omnium rerum ac fortunarum suarum Romae conlocauit? (...)Et testamentum saepe fecit nostris
legibus, et adiit hereditates civium Romanorum, et in beneficiis ad aerarium delatus est a L. Lucullo pro consule).
(Arch. 8-11) 161 “Entretanto, após um longo período, tendo partido para a Sicília com Lúcio Luculo e retirando-se dessa província com o mesmo Luculo, veio para Heracleia. Visto que essa cidade aliada usufruía de uma perfeita
igualdade de direito, Àrquias desejou inscrever-se ali e, tanto por ele mesmo ser considerado digno, como graças
ao prestígio e influência de Luculo, isso ele obteve dos heracleenses (Interim satis longo interuallo, cum esset cum
M. Lucullo in Siciliam profectus, et cum ex ea prouincia cum eodem Lucullo decederet, uenit Heracliam: quae
cum esset ciuitas aequissimo iure ac foedere, ascribi se in eam ciuitatem uoluit; idque, cum ipse per se dignus
putaretur, tum auctoritate et gratia Luculli ab Heracliensibus impetrauit). (Arch. 6) 162 “De fato, é dificílimo compreender que, na época dos últimos censores, ele estava junto ao exército com o
brilhantíssimo general Lúcio Luculo” (Est enim obscurum proximis censoribus hunc cum clarissimo imperatore
L. Lucullo apud exercitum fuisse). (Arch. 11)
99
No entanto, essa discussão técnica resume-se a Arch. 6-11, que, num tribunal, seriam
proferidos em menos de dez minutos. A partir dessa etapa, Cícero inicia uma argumentação
própria ao gênero epidítico. Também conhecido como demonstrativo, esse gênero comporta o
elogio ou o vitupério de alguém, os quais se baseiam nas coisas do corpo e do espírito como a
beleza, a força, o talento, a virtude, ou mesmo nos aspectos teoricamente fortuitos como a
ascendência, a educação, a riqueza, a cidadania e as amizades.163 Esses argumentos muito
diferem da esfera jurídica, na qual temos uma acusação e uma defesa que, por meio de provas,
testemunhos e argumentos, empreendem convencer um juiz a considerar legal ou não uma ação
já consumada com base na verificação da natureza e do número das razões pelas quais se comete
uma injustiça, assim como na disposição e no caráter dos que a cometem e dos que a sofrem.164
Cícero concentra mais da metade do seu discurso no elogio às virtudes, qualidades morais e à
erudição de seu cliente, o talento poético e a excelência de sua obra, a fim de captar a simpatia
dos juízes e, por conseguinte, justificar a sua absolvição (TRENK, 1997, p. 151). Esse
163 “Passemos agora ao gênero demonstrativo. Como causas desse gênero se dividem em elogio e vitupério, o vitupério será obtido com tópicos contrários àqueles que usarmos para compor o elogio. O elogio, então, pode ser
das coisas externas, do corpo e do ânimo. Coisas externas são aquelas que podem acontecer por obra do acaso ou
da fortuna, favorável ou adversa: ascendência, educação, riqueza, poder, glória, cidadania, amizades, enfim, coisas
dessa ordem e seus contrários. Ao corpo pertence o que a natureza lhe atribuiu de vantajoso ou desvantajoso:
rapidez, força, beleza, saúde, e seus contrários. Dizem respeito ao ânimo as coisas que comportam nossa
deliberação e reflexão: prudência, justiça, coração, modéstia e seus contrários. Esses serão nossos tópicos a
confirmar e refutar nesse tipo de causa. A introdução é tirada ou de nossa pessoa, ou da pessoa de quem falamos,
ou da pessoa dos ouvintes, ou do próprio assunto. De nossa pessoa, se estivermos elogiando, diremos que é por
dever, pois assim exige a amizade; ou que é por zelo, pois tal virtude todos hão de querer recordar, ou porque é
certo mostrar, elogiando outros, qual seja nosso próprio ânimo. Se estivermos vituperando, diremos que é
merecido, pelo modo como fomos tratados; ou que é por zelo, pois julgamos útil todos; ou porque agrade mostrar, com o vitupério de outros, o que nos agrada. Da pessoa de quem falamos, se estivermos elogiando, diremos que
tememos não poder igualar seus feitos com palavras, que todos os homens devem proclamar tais virtudes, que os
fatos em si superam a eloquência de todos os apologistas. Se estivermos vituperando, diremos o contrário dessas
coisas, o que sabemos ser possível fazer com a troca de umas poucas palavras, conforme se exemplificou acima”
(Nunc ad demonstratiuum genus causae transeamus. Quoniam haec causa diuiditur in laudem et uituperationem,
quibus ex rebus laudem constituerimus, ex contrariis rebus erit uituperatio conparata. Laus igitur potest esse
rerum externarum, corporis, animi. Rerum externarum sunt ea, quae casu aut fortuna secunda aut aduersa
accidere possunt: genus, educativo, diuitiae, potestates, gloriae, ciuitas, amicitae, et quae huiusmodi sunt et quae
his contraria. Corporis sunt ea, quae natura corpori adtribuit commoda aut incommoda: uelocitas, uires, dignitas,
ualetudo, et quae contraia sunt. Animi sunt ea, quae consilio et cogitatiome nostra constant: prudentia, iustitia,
fortitude, modestia, et quae contraria sunt. Erit igitur haec confirmatio et confutatio nobis in huiusmodi causa.
Principium sumitur aut ab nostra aut ab eius, de quo loquimur, aut ab eorum, qui audient, persona aut ab re. Ab nostra, si laudabimus: aut officio facere, quod causa necessitudinis intercedat; aut studio, quod eiusmodi uirtute
sit, ut omnes commemorare debeant uelle, aut quod rectum sit; ex aliorum laude ostenere, qualis ipsius animus
sit. Si uituperabimus: aut mérito facere, quod ita tractati simus; aut studio, quod utile putemus esse ab omnibus
unicam malitiam atque nequitiam cognosci; aut quod placeat ostendi, quod nobis placeat, ex aliorum. Ab eius
persona, de quo loquimur, si laudabimus: uereri nos, ut illius fcta uerbis consqui possemus; omnes homines illius
uirtutes praedicare oportere; ipsa facta omnium laudatorum eloquentiam anteire. Si uituperabimus, ea, quae
uidemus contrarie paucis uerbis commutatis dici posse, dicemus, ut paulo supra exempli causa demonstratum est).
(Rhet. Her. III, 10-1; In: CÍCERO, 2005, p. 161-3) 164 Vide nota 1.
100
momento, denominado pelos estudiosos165 “argumentação extra causam”, encontra-se em
Arch. 12-30, em que se defende a presença do poeta como vantajosa para a República, uma vez
que, através da poesia, contam-se episódios históricos, exaltam-se a glória e o nome do povo
romano166 e fogem ao esquecimento os grandes heróis.167 Além disso, os poetas, em algumas
regiões, eram reverenciados, quase em armas, devido à sua relação com as Musas168 e à sua
suposta capacidade de aplacar a fúria das bestas selvagens com seus versos.169 Essa busca de
Cícero cativa a atenção de estudiosos, explorando o valor cultural da poesia e dos seus autores
(DUGAN, 2001, p. 36), de modo que os juízes fossem levados a considerar Árquias merecedor
da cidadania romana, a despeito de qualquer acusação. Dessa forma, Cícero estabelece uma
estrutura bipartida, na qual o cliente não somente satisfaz os requisitos legais como merece a
decisão favorável (CRAIG, 1985, p. 136).
Convém frisar ainda que muito daquilo que Cícero diz sobre os juízes, sobre as
testemunhas, sobre as figuras históricas, bem como sobre si próprio e sobre o réu, compõe uma
autêntica tentativa de criar personae. Como adverte Trenk (1997, p. 138-9), ao serem
165 Cf. Brasil (2002, p. 17); D’Ors & Perez-Peix (CICERÓN, 1970, p. 13); Santos (2015, p. 177). 166 “Na verdade, foi o povo romano, sob o comando de Luculo, que desobstruiu o Ponto, outrora defendido tanto
pelos pelas forças do rei como pela própria posição geográfica; o exército do povo omano, estando com o mesmo
general, desbaratou com um pequeno contingente as tropas inumeráveis dos Armênios; é glória do povo romano
que a cidade de Cízico, aliada fiel, tenha sido, graças à estratégia do mesmo chefe, preservada de qualquer ataque
régio e arrebatada da boca faminta de toda uma guerra; será sempre referida e apregoada como nossa, estando Luculo combatendo, também aquele incrível batalha naval junto a Tênedos, quando, depois de mortos os
comandantes, a esquadra inimiga foi a pique: nossos são os troféus, nossos os monumentos, nossos os triunfos. E
graças àqueles cujos talento divulgam tais feitos, a glória do povo romano é celebrada” (Populus enim Romanus
aperuit Lucullo imperante Pontum, et regiis quondam opibus et ipsa natura et regione uallatum: populi Romani
exercitus, eodem duce, non maxima manu innumerabilis Armeniorum copias fudit: populi Romani laus est urbem
amicissimam Cyzicenorum eiusdem consilio ex omni impetu regio atque totius belli ore ac faucibus ereptam esse
atque servatam: nostra semper feretur et praedicabitur L. Lucullo dimicante, cum interfectis ducibus depressa
hostium classis, et incredibilis apud Tenedum pugna illa naualis: nostra sunt tropaea, nostra monimenta, nostri
triumphi. Quae quorum ingeniis efferuntur, ab eis populi Romani fama celebratur). (Arch. 21) 167 “Quantos historiadores dos seus feitos se diz que teve consigo o famoso Alexandre Magno! (...) E, realmente;
pois, se para um tal herói não tivesse existido aquela arte, o mesmo túmulo que envolvera seu corpo lhe teria
também sepultado o nome” (Quam multos scriptores rerum suarum magnus ille Alexander secum habuisse dicitur! [...] Et uere. Nam nisi Illias illa exstitisset, idem tumulus, qui corpus eius contexerat, nomen etiam obruisset).
(Arch. 24) 168 “É certo que Décimo Bruto, importante cidadão e general embelezou com poemas de Ácio, seu devotado amigo,
a entrada dos seus templos e monumentos. Ademais, aquele outro que lutou contra os Etólios, tendo Ênio em sua
comitiva, Fúlvio, não hesitou em consagrar às Musas o butim de Marte, numa cidade em que os generais quase
em armas respeitaram o nome dos poetas e os santuários das Musas, nela não devem os juízes togados esquivar-
se do culto às Musas e da salvaguarda aos poetas” (Decimus quidem Brutus, summus uir et imperator, Acci,
amicissimi sui, carminibus templorum ac monumentorum aditus exornauit suorum. iam uero ille, qui cum Aetolis
Ennio comite bellauit, Fuluius, non dubitauit Martis manubias Musis consecrare. Qua re in qua urbe imperatores
prope armati poetarum nomen et Musarum delubra coluerunt, in ea non debent togati iudices a Musarum honore
et a poetarum salute abhorrere). (Arch. 27) 169 “Seja, pois, sagrado perante vós, ó juízes, homens de cultura, este nome de poeta, jamais profanado por barbárie
alguma. Os rochedos e os ermos respondem à voz, as feras cruéis não raro se enternecem com o canto e param”
(Sit igitur, iudices, sanctum apud uos, humanissimos homines, hoc poetae nomen, quod nulla umquam barbaria
uiolauit. Saxa et solitudines uoci respondent, bestiae saepe immanes cantu flectuntur atque consistunt). (Arch. 19)
101
mencionadas, mesmo com seus nomes reais, como Cícero, Árquias, Grácio são construções do
texto retórico, personagens, cuja análise se inicia na sua real atuação no mundo empírico, mas
também se estende à construção retórica. Portanto, fazer com que os juízes, de fato,
acreditassem na imagem de um Árquias dotado de enorme talento e arauto da república romana
era fundamental dentro da estratégia da defesa.
Pode-se dizer que a questão do poeta e da poesia foi abordada em obras gregas. Num
rápido exercício de memória, para citar um, lembremos o Íon de Platão. Nesse diálogo,
produzido na juventude do autor, o filósofo Sócrates indaga o rapsodo Íon, para sondar a
natureza do seu conhecimento a respeito da obra de Homero. O rapsodo revela uma inexplicável
incapacidade de dissertar isoladamente sobre os numerosos assuntos que Homero canta,
tampouco de versejar sobre os assuntos que Homero, digamos, compartilhava com outros
poetas (Ion, 531a – 532c). Isso inviabiliza qualquer hipótese de conhecimento, seja ele técnico,
empírico ou epistêmico, por parte de Íon, pois Sócrates mostra que a atividade deve pertencer
a um âmbito muito bem delimitado, dizer respeito a um objeto específico de conhecimento e
deve ser racionalizada de modo a permitir o ensino, transmitir aquilo em que se é perito, as
características da téchne enquanto conhecimento (Ion, 536e – 542b; JARESKI, 2006, p. 23).
Ao final do diálogo, fica patente que a verdadeira fonte do conhecimento do rapsodo Íon é o
entusiasmo (enthousiasmós) proporcionado pelas Musas (Ion, 542a – 542b). Essa inspiração de
origem divina se apresenta como uma oposição à atividade inteligente da técnica, pois,
enquanto a atividade técnica pressupõe um controle sobre o resultado de sua prática, o estado
de entusiasmo é uma aptidão concedida sobre a qual não há como ter controle (RIBEIRO, 2008,
p. 40). As Musas determinam a produção do rapsodo por meio de uma força inspiradora, como
se elas doassem a eles o poder da palavra (lógos) e o conteúdo abordado, assim como a forma
em que eles conduzem o discurso (léxis) (ibid., p. 39). Outro texto importante que pode ser
brevemente abordado é a Poética de Aristóteles. Nela, o autor afirma que a poesia é uma
imitação (mímesis) das ações humanas (práxis), resultado da aptidão natural do homem de
imitar e se comprazer com imitações.170 A poesia é uma imitação por meios auditivos: voz,
sons, ritmo e palavras; imitação das ações humanas e, portanto, dos caracteres éticos, sejam
quais forem; imitação pela narrativa, pela ditirâmbica ou pela epopeia (Poet. 1447a,– 1448b,).
Para ele, o ofício do poeta não é descrever coisas acontecidas, ou ocorrência de fatos, mas fatos
que podem acontecer, seguindo as leis da verossimilhança e da necessidade (Poet., 1451a –
1451b). A doutrina aristotélica, então, considera a poesia uma espécie de idealização da
170 Vide nota 21.
102
realidade, admite qualquer objeto como argumento artístico e enxerga a própria imitação como
fonte de prazer estético (SPINA, 1967, p. 83).
Esses dois textos são importantes porque nos mostram alguns caminhos para
compreender a reflexão sobre a poesia. No Íon, temos a tentativa de desqualificação do poeta
enquanto technítes, a figura que detém a téchne, e o apelo às Musas como elemento fundamental
para a criação poética. Em Aristóteles, na sua Poética, encontramos o argumento da poesia
como técnica e imitação, além de uma série de sistematizações acerca dessa técnica. Tratar-se-
ia de uma certa mistificação da produção poética, de uma inspiração divina sobre a qual o
indivíduo não tinha o mínimo controle, algo próximo ao transe divinatório em que o adivinho
estava fora de si, no momento do entusiasmo, para ser manipulado pelo deus, que fazia dele um
verdadeiro instrumento de seus oráculos (ROCHA, 2000, p. 102). No Íon, essa noção parece
persistir por todo o diálogo, mas, na Poética, não. Esse último texto já traz a ideia de uma poesia
mais ligada à técnica. Aristóteles, inclusive, já enumera uma série de “regras” e classificações
a serem consideradas pelo poeta. Depreende-se disso a necessidade de que o poeta estude e
domine a sua função, de modo a tornar-se consciente e responsável por todo o processo de
criação poética. Podemos apontar, por conta disso, uma evidente sistematização do ofício
poética.
Não é absurdo pensar, a partir do que foi dito, que a Defesa de Árquias converteu-se
aos olhos da crítica num valioso documento da admiração de Cícero pela arte poética e, em
alguma medida, pelo estudo das artes liberais. Neste sentido, acreditamos que o Pro Archia de
Cícero pode, de algum modo, servir de objeto de investigação e estudo aos interessados na visão
de Cícero sobre a poesia e o poeta, e propomos uma leitura que interprete essa obra como uma
possível representação do ponto-de-vista de Cícero acerca do poeta. Para tanto, buscaremos
demonstrar de que modo e com que elementos o Arpinate, a princípio, constrói uma imagem
de poeta perfeito (summus poeta) e a associa a Árquias no decorrer do texto. O capítulo,
portanto, apoia-se na hipótese de que o poeta ideal ciceroniano reúne em si disposições inatas
(natura e ingenium) favoráveis à sua atividade, um conhecimento técnico, mas que também
pode abarcar as demais artes liberais (ars e doctrina), e, subentendida, uma prática geradora de
uma espécie de riqueza de assuntos e palavras (copia rerum et uerborum) tocantes à poesia.
103
3.2 ENGENHO E ARTE: REQUISITOS DO POETA IDEAL NO PRO ARCHIA171
A despeito de ainda utilizar o argumento socrático do furor poeticus, como
veremos, Cícero, no Pro Archia, se mostrará atento a essa progressiva racionalização da poética
(MARTÍN, 2003, p. 35-6). O orador, em alguma medida, parece concentrar os fundamentos da
mesma na doutrina dos três elementos, dada a reincidência dos elementos ligados à arte no
texto, tais como doctrina, ratio, studium, ars, ingenium, natura e facultas.
Começando pelo talento, constatamos que a palavra ingenium, por exemplo, aplica-
se ao poeta Árquias em dezesseis momentos, sempre visando ressaltar sua singularidade e
mostrar aos juízes o quão especial é sua natureza se comparada à dos demais. O primeiro uso
dessa palavra ocorre no segundo parágrafo, num contexto em que Cícero, a princípio, marca
uma distinção entre a sua atividade, muito mais ligada ao método (ratio) e à disciplina
(exercitatio), e a de Árquias, que depende de outra capacidade do engenho (facultas ingenii).
Ac ne quis a nobis hoc ita dici forte miretur, quod alia quaedam in hoc
facultas sit ingeni, neque haec dicendi ratio aut disciplina, ne nos quidem huic uni studio penitus umquam dediti fuimus. Etenim omnes artes, quae ad
humanitatem pertinent, habent quoddam commune uinculum, et quasi
cognatione quadam inter se continentur. (Arch. 2)
E para que talvez ninguém se admire de assim falarmos, por possuir este meu
cliente bem outra aptidão natural e não esta arte e prática oratória, o certo é
que nem nós mesmos fomos jamais absorvidos exclusivamente por este único estudo. Na verdade, todas as artes que dizem respeito à formação humana têm
uma espécie de vínculo comum e estão, por assim dizer, unidas entre si por
um certo parentesco.
É quase instantânea a relação que podemos estabelecer entre esse excerto e o
aforismo romano os poetas nascem, os oradores se fazem (poetae nascuntur, fiunt oratores172),
que deixa evidente a diferença supostamente existente entre ambas as figuras. No que diz
respeito ao poeta, não se trata de sistema (ratio) ou de dedicação (disciplina), mas de outra
coisa: algo que não pode ser alcançado, mas apenas admirado. A referência é à capacidade
intelectual (facultas), algo muito mais abstrato que emerge da natureza mesma do sujeito, que
jamais poderá ser modificada e que sempre o distinguirá dos demais. Os caracteres naturais do
poeta, intangíveis, parecem predominar na sua atividade, enquanto na oratória o fazem a
171 O título do capítulo é uma alusão aos célebres e sintomáticos versos de Camões: “E aqueles que por obras
valerosas / se vão da lei da morte libertando / cantando espalharei por toda parte / se a tanto me ajudar o engenho
e arte”. (Lus. I, 2; In: VERDELHO, 2012) 172 Cf. Mauri, 2010, p. 468.
104
educação e o trabalho, virtudes ou aspectos demasiado palpáveis. Portanto, pode ser notada a
ideia, talvez ainda mistificada, do poeta como homem de talento instintivo e natural.
Essa busca de Cícero por mostrar ao público que Árquias era especial pelo seu
talento perpassa todo o texto. No próximo parágrafo, a defesa afirma que, já nos primeiros anos
de mocidade, o réu se destacava pelo seu ingenium, granjeando fama e admiração conquistadas
na sua terra natal, lugar já acostumado a receber grandes figuras.
Nam ut primum ex pueris excessit Archias, atque ab eis artibus quibus aetas puerilis ad humanitatem informari solet se ad scribendi studium contulit,
primum Antiochiae nam ibi natus est loco nobili celebri quondam urbe et
copiosa, atque eruditissimis hominibus liberalissimisque studiis adfluenti,
celeriter antecellere omnibus ingeni gloria contigit. Post in ceteris Asiae partibus cunctaeque Graeciae sic eius aduentus celebrabantur, ut famam
ingeni exspectatio hominis, exspectationem ipsius aduentus admiratioque
superaret. (Arch. 4)
De fato, logo que Árquias deixou a infância e, das disciplinas com que
habitualmente se educa a criança para a cultura geral, passou à atividade
literária, rapidamente conseguiu exceder a todos pelo brilho de seu talento, primeiro em Antioquia – pois aí nascera de uma família distinta – cidade
outrora rica e populosa, repleta de homens eruditíssimos e dos mais dignos
estudos. Depois, no restante da Ásia e em toda a Grécia, as suas vindas eram de tal modo festejadas que a presença dele próprio superava a fama do seu
gênio, a expectativa e a admiração.
O poeta, mais uma vez, é colocado como alguém que precisa do talento natural,
mas, dessa vez, depreende-se que o ingenium poético se manifesta desde cedo, muito antes da
ação modeladora (informare) das artes. Perceba-se a metáfora da escultura estabelecida pelo
uso do verbo informare, modelar, moldar, dar forma, ou, por extensão, moldar a mente de
alguém (ou esse alguém) por meio da instrução: a natureza do indivíduo é vista como uma pedra
bruta sobre a qual deve recair o trabalho do artista. Depreende-se uma certa docilitas conforme
se diz em Fin. V, 36,173 relacionado ao orador no comentário a De orat. I, 113. O poeta, a
exemplo do summus orator, é alguém que aprende com facilidade e rapidez.174
O mesmo expediente é utilizado quando Cícero relata a concessão da cidadania
honorária e de distinções a Árquias em cidades da Itália Meridional, como em Tarento, em
Nápoles e em Régio, por reconhecimento ao seu talento, situação retomada posteriormente175.
173 Vide citação direta em p. 56-7. 174 Vide p. 50-1. 175 “Pois se na Magna Grécia, gratificavam, mesmo de má vontade, com o direito de cidadania, a muitas pessoas
insignificantes possuidoras ou de nenhuma profissão ou de um trabalho modesto, estou achando que os reginos ou
os locrenses ou os napolitanos ou os Tarentinos não quiseram conceder a este homem, possuidor de uma glória
105
Itaque hunc et Tarentini et Regini et Napolitani ciuitate ceterisque praemiis
donarunt; et omnes, qui aliquid de ingeniis poterant iudicare, cognitione
atque hospitio dignum existimarunt. Hac tanta celebritate famae cum esset iam absentibus notus, Romam uenit Mario consule et Catulo. Nactus est
primum consules eos, quorum alter res ad scribendum maximas, alter cum res
gestas tum etiam studium atque auris adhibere posset. Statim Luculli, cum
praetextatus etiam tum Archias esset, eum domum suam receperunt. Sic etiam hoc non solum ingeni ac litterarum, uerum etiam naturae atque uirtutis, ut
domus, quae huius adulescentiae prima fuit, eadem esset familiarissima
senectuti. (Arch. 5)
Assim, os habitantes de Tarento, de Locros, de Régio, e de Nápoles
concederam a cidadania e demais distinções a meu cliente, e todos os que podiam minimamente julgar talentos consideraram-no digno de suas relações
e hospitalidade. Com a imensa difusão de sua fama, visto que já era conhecido
nos lugares distantes, veio para Roma durante o consulado de Mário e Cátulo.
Primeiramente encontrou tais cônsules, dos quais um podia oferecer grandes feitos para serem celebrados; o outro, não somente gestas gloriosas, mas
também o gosto literário e os ouvidos. Os Luculos, embora Árquias ainda
então usasse a toga pretexta, o acolheram em sua casa sem demora. Mas ainda uma prova não só de seu talento e cultura, como também de seu caráter e
virtude é o fato de a mesma casa, que foi a primeira para sua juventude,
continuar a ser a mais familiar para sua velhice.
Segundo o autor, essas concessões o tornaram famoso ainda durante a mocidade, a
ponto de despertar a atenção de Mário e Cátulo, cônsules romanos, os quais se teriam
interessado pela possibilidade de verem cantados seus feitos em versos. No entanto, pelo pouco
que se sabe da vida do poeta, foi “adotado” ainda praetextatus pelo clã dos Luculos, em cuja
casa permaneceu até a velhice, fato atribuído, insiste Cícero, em reconhecimento ao seu talento.
No parágrafo seguinte, o orador amplia a lista de clientes notáveis, por assim dizer, do poeta
Árquias e homenagens a ele rendidas.176
incomparável, o que costumavam dar generosamente aos artistas cênicos” (Etenim cum mediocribus multis et aut nulla aut humili aliqua arte praeditis gratuito ciuitatem in Graecia homines impertiebant, Reginos credo aut
Locrensis aut Napolitanos aut Tarentinos, quod scenicis artificibus largiri solebant, id huic summa ingeni praedito
gloria noluisse!). (Arch. 10) 176 “Naquela época, ele agradava ao célebre Quinto Metelo, o Numídico, e a seu filho Pio; era escutado por Marco
Emílio; convivia com Quinto Cátulo, o pai e o filho, por Lúcio Crasso era considerado; e ainda, mantendo os
Luculos e Druso e os Otávios e Catão e toda a casa dos Hortênsios estreitados por sua amizade, era tratado com as
maiores honras, pois não somente o respeitavam aqueles que tinham gosto em ouvir e aprender algo, mas também
os que eventualmente o simulavam” (Erat temporibus illis iucundus Metello illi Numidico et eius Pio filio;
audiebatur a M. Aemilio; uiuebat cum Q. Catulo et patre et filio; a L. Crasso colebatur; Lucullos uero et Drusum
et Octauios et Catonem et totam Hortensiorum domum deuinctam consuetudine cum teneret, adficiebatur summo
honore, quod eum non solum colebant qui aliquid percipere atque audire studebant, uerum etiam si qui forte simulabant. Interim satis longo interuallo, cum esset cum M. Lucullo in Siciliam profectus, et cum ex ea prouincia
cum eodem Lucullo decederet, uenit Heracliam: quae cum esset ciuitas aequissimo iure ac foedere, ascribi se in
eam ciuitatem uoluit; idque, cum ipse per se dignus putaretur, tum auctoritate et gratia Luculli ab Heracliensibus
impetrauit). (Arch. 6)
106
A tese do poeta como um indivíduo de natureza particular explica-se a partir da sua
especificação e singularidade no núcleo do gênero humano, porque, no entender de Müller
(2000, p. 321), Cícero leva a crer que a poesia se desenvolve como uma atividade apropriada à
personalidade excepcional, à excelência individual, a única capaz de entregar uma criação
poética. Ao contrário do orador, vinculado a uma atividade em tese corriqueira e pragmática,
comumente associada ligada às regras e ao sistema, o poeta, com sua personalidade demasiado
talentosa, parece prescindir dessas regras e encontra guarida apenas em uma atividade
considerada “sagrada”, devido à raridade e complexidade do seu talento (ibid., p. 330). Um
aforismo, sugerido por Tosi (1996, p. 165), que diz respeito ao poeta, que ressalta a sua raridade
e vem ao encontro do que expomos até aqui, é solus aut rex aut poeta non quotannis nascitur
(apenas os reis e os poetas não nascem todos os dias). Em comparação com o adágio anterior,
temos a presença do verbo nasci (nascer) nas duas sentenças, mas, dessa vez, a sabedoria antiga
alega que o poeta é uma figura difícil de ser encontrada, que nascem pouquíssimos, e isso os
torna excepcionais. E, de fato, um dos aspectos que Cícero pretende mostrar ao júri é que a
causa diz respeito a uma criatura especial, considerada por alguns, inclusive, Cátulo, em De
orat. II, 194,177 receptáculo do entusiasmo das Musas. E isso será ressaltado mais à frente.
Após os parágrafos quinto e sexto, Cícero inicia suas alegações jurídicas, as quais
tomam basicamente quatro parágrafos do discurso. O arpinate afirma que Árquias, durante a
campanha militar de Lúcio Luculo em Heracleia, aí se inscreveu perante o então pretor Quinto
Metelo Pio,178 presente como testemunha de defesa, fato atestado pelos embaixadores
heracleenses, também presentes no tribunal.179 Além disso, a defesa alega que era impossível
consultar o censo dos heracleenses porque este fora destruído durante um incêndio na cidade,
fato conhecido mas deliberadamente, segundo a defesa, omitido pela acusação.180 Em
177 “De fato, Demócrito nega que possa existir algum grande poeta sem furor, o que também diz Platão. Se agrada,
que ele nomeie isso furor, contanto que tal furor seja assim elogiado como no Fedro de Platão foi elogiado” (Negat
enim sine furore Democritus quemquam poetam magnum esse posse, quod idem dicit Plato, quem, si placet,
appellet furorem dum modo is furor ita laudetur, ut in Phaedro Platonis laudatus est). (Div. I, 79; In: GRATTI,
2009, p. 82) 178 Quinto Metelo Pio foi pretor em 89 a.C., cônsul em 80 a.C. e procônsul no ano seguinte na Espanha Ulterior
(TRENK, 1997, p. 202). 179 “Tendo este, Árquias, seu domicílio em Roma há muitos anos, fez a declaração diante do pretor Quinto Metelo
Pio, seu íntimo amigo. (...) Estão aqui os enviados de Heracleia, homens notabilíssimos – vieram por causa deste
julgamento e com mandatos e com testemunho público -, os quais afirmam que meu cliente se inscreveu em
Heracleia” (Cum hic domicilium Romae multos iam annos haberet, professus est apud praetorem Q. Metellum
familiarissimum suum. [...] Adsunt Heraclienses legati, nobilissimi homines: huius iudici causa cum mandatis et
cum publico testimonio [uenerunt]; qui hunc ascriptum Heracliensem dicunt). (Arch. 7-8) 180 “E agora tu pedes os registros públicos dos heracleenses, que, todos nós sabemos, se extinguiram com o
incêndio dos arquivos durante a Guerra Social” (His tu tabulas desideras Heracliensium publicas: quas Italico
bello incenso tabulario interisse scimus omnes). (Arch. 8)
107
acréscimo, afirma-se que o réu possuía e administrava negócios particulares em Roma,
benefício conferido apenas a quem possuísse o ius comercii romano.181 Cícero continua citando
a presença do nome do poeta também nos registros de Quinto Metelo Pio, que, aliás, foram
considerados dignos de autoridade.182 A defesa técnica, por assim dizer, é finalizada com a
alegação de que as sucessivas viagens com os Luculos e a não realização dos recenseamentos
nos dois primeiros anos seguintes à promulgação da lei impossibilitaram o réu de se apresentar
ao alistamento, e com a menção de que Árquias não apenas fez diversos testamentos conforme
a lei romana, mas também recebeu heranças e doações, fatos atestadores do reconhecimento de
Árquias como cidadão romano.183
No entanto, temendo suspeitas quanto à escassez das provas, quanto à veracidade
da inscrição heracleense apresentada por Quinto Metelo Pio e quanto à idoneidade dos
embaixadores de Heracleia, Cícero constrói uma espécie de panegírico de Árquias, ressaltando
suas qualidades morais, seu talento poético e sua obra, além da própria poesia, lembrando o
profundo respeito de inúmeros povos pela poesia, da sua possível ligação com as Musas, dos
modelos de virtude presentes nela e dos heróis romanos que a ela se dedicaram, a fim de captar
a simpatia dos juízes e, por conseguinte, tornar bastante aceitável a absolvição (TRENK, 1997,
p. 151).
Fazendo um salto até o fim de Arch. 17-8,184 temos alguns aspectos interessantes a
serem apontados:
181 “Acaso não teve domicílio em Roma este que, por tantos anos, mesmo antes de concedida a cidadania, em
Roma estabeleceu a sede de todos os seus interesses e bens?” (An domicilium Romae non habuit is, qui tot annis
ante ciuitatem datam sedem omnium rerum ac fortunarum suarum Romae conlocauit?). (Arch. 9) 182 “(...) Metelo, o mais íntegro e escrupuloso entre os demais era de tal rigor, que veio à presença do pretor Lúcio
Lêntulo e dos juízes para declarar que estava perturbado com a rasura de um único nome. Ora, nestes registros não
vedes nenhuma rasura no nome de Aulo Licínio” (Metellus, homo sanctissimus modestissimusque omnium, tanta
diligentia fuit, ut ad L. Lentulum praetorem et ad iudices uenerit, et unius nominis litura se commotum esse dixerit.
In his igitur tabulis nullam lituram in nomine A. Licini uidetis). (Arch. 9) 183 “De fato, é dificílimo compreender que, na época dos últimos censores, ele estava junto ao exército com o
brilhantíssimo general Lúcio Luculo; que, na dos precedentes, estava na Ásia com o mesmo Luculo, então questor,
e que, na dos primeiros, Júlio e Crasso, nenhuma parte da população foi recenseada. De qualquer maneira, como
o censo não prova o direito de cidadania, mas apenas indica que o recenseado já procedia como um cidadão, pois
bem, nessa época, quem tu acusas de não estar, em opinião dele próprio, na condição jurídica dos cidadãos
romanos, não só fez diversas vezes testamento conforme as nossas leis, como ainda recebeu heranças de cidadãos
romanos e, enfim, na lista de gratificações, teve seu nome apresentado ao tesouro pelo procônsul Luculo” (Est
enim obscurum proximis censoribus hunc cum clarissimo imperatore L. Lucullo apud exercitum fuisse;
superioribus, cum eodem quaestore fuisse in Asia; primis Iulio et Crasso nullam populi partem esse censam. Sed
– quoniam census non ius civitatis confirmat, ac tantum modo indicat eum qui sit census [ita] se iam tum gessisse pro ciue – eis temporibus quibus tu criminaris ne ipsius quidem iudicio in ciuium Romanorum iure esse uersatum,
et testamentum saepe fecit nostris legibus, et adiit hereditates ciuium Romanorum, et in beneficiis ad aerarium
delatus est a L. Lucullo pro consule). (Arch. 11) 184 Analisaremos os parágrafos omitidos no fim do capítulo.
108
[...] Nos animorum incredibilis motus celeritatemque ingeniorum
neglegemus? Quotiens ego hunc Archiam uidi, iudices, (...) quotiens ego hunc uidi, cum litteram scripsisset nullam, magnum numerum optimorum uersuum
de eis ipsis rebus quae tum agerentur dicere ex tempore! Quotiens reuocatum
eandem rem dicere, commutatis uerbis atque sententiis! Quae uero adcurate
cogitateque scripsisset, ea sic uidi probari, ut ad ueterum scriptorum laudem perueniret. [...] Atque sic a summis hominibus eruditissimisque accepimus,
ceterarum rerum studia et doctrina et praeceptis et arte constare: poetam
natura ipsa ualere, et mentis uiribus excitari, et quasi diuino quodam spiritu inflari. Qua re suo iure noster ille Ennius sanctos appellat poetas, quod quasi
deorum aliquo dono atque munere commendati nobis esse uideantur.
(...) Nós desprezaremos os incríveis movimentos do espírito e a presteza da imaginação? Quantas vezes eu vi este Árquias, ó juízes, (...) quantas vezes eu
o vi improvisar, sem ter escrito nenhuma letra, grande número de belíssimos
versos sobre os fatos que então ocorriam! Quantas vezes, chamado de volta, repetir o mesmo tema com palavras e ideias modificadas! Porém aquilo que
tinha escrito com esmero e reflexão, eu vi a tal ponto aplaudido, que ele
chegava à glória dos antigos escritores. (...) Ademais, assim aprendemos com os homens mais eminentes e eruditos, que os estudos das outras matérias
constam de instrução, preceitos, técnicas, ao passo que o poeta se vale da
própria natureza, é estimulado pelas forças do pensamento e inspirado como
por um sopro divino. Por isso, com todo o direito, o nosso grande Ênio chama sagrados aos poetas, pelo fato de darem a impressão de que nos foram
confiados como que por um certo dom e favor dos deuses.
Para comentarmos esse parágrafo, podemos tomar dois caminhos distintos e
válidos: o de Wallach (1989), que o relaciona com o ingenium e a natura aventados em Topica,
escrito ciceroniano datado de 44 a.C., e o de Stok (1982), que enxerga um comentário embasado
na celeritas animi de De orat. I, 113. Segundo a primeira, devemos levar em conta que o apelo
ao ingenium num discurso como o Pro Archia, cujo objeto é uma pessoa, é também um apelo
à sua natureza (natura). A natura do indivíduo, isto é, o caráter, o temperamento, o conjunto
de traços da personalidade, confere ao indivíduo o grau máximo de autoridade sobre a opinião
do público.185 E a relação entre natura e ingenium nos Tópicos emerge na medida em que são
enumerados os fatores capazes de forjar a autoridade perante a opinião do povo. Segundo o
autor, conferem autoridade o talento, os recursos, a sorte, a arte, o costume, necessidade,
afluência frequente de coisas fortuitas. Com efeito, está implicitamente dito que os filósofos,
historiadores e poetas, ingeniosi que se dedicam a estudos de alta relevância, não apenas
fornecem modelos inúmeros de virtude em suas narrativas, mas também despontam como
185 “A maior autoridade advinda do caráter está na virtude. Ora, muitos são elementos que conferem autoridade:
talento, recursos, idade, sorte, técnica, costume, necessidade e também o concurso constante das coisas fortuitas”
(Naturae auctoritas in uirtute inest maxima; in tempore autem multa sunt quae afferant auctoritatem: ingenium,
opes, aetas, fortuna, ars, usus, necessitas, concursio etiam non numquam rerum fortuitarum). (Top. 73; Tradução
de nossa lavra)
109
figuras de ampla credibilidade na República. Dessa forma, o poeta Árquias é representado como
um cidadão digno de reverência por força de seu talento natural e por histórico positivo dos
ingeniosi quanto à moral romana186 (WALLACH, 1989, p. 320). Stok (1982), por outro lado,
interessa-se pela suposta celeridade da alma utilizada por Cícero para explicar o furor poeticus.
Retornando Arch. 17-8, o orador imputa à alma do poeta uma celeridade da mente (celeritatem
ingeniorum), responsável pela quase instantânea criação de versos de Árquias. Essa ação de
manusear ou movimentar com a mente um grande número de coisas em um curto espaço de
tempo, assemelhada à agilidade do corpo, de modo a ser capaz de redizer e improvisar é que
compõe a celeritas ingenii, uma espécie de movimento rápido da inteligência que serve ao
orador e ao poeta, apontada como virtude digna de louvor mais tarde nas Discussões em Túsculo
(Tusculanae disputationes).187 Espera-se deles uma profusão de palavras própria de cada
atividade: a do orador vem da técnica e do método, os seus guias, enquanto a do poeta, não dita,
parece provir do próprio espírito ou, nos dizeres de Cícero no Pro Archia, das forças da mente
(mentis uiribus).188 A profusão com que Árquias improvisava os versos e, sobretudo,
conservava sua beleza, posta no discurso como congênita não somente a ele como a outros
poetas, vem da impressionante velocidade com que sua inteligência processa o grande número
de informações e as transforma em versos. Esse movimento veloz da inteligência comove os
admiradores a ponto de acharem que, de fato, se trata de algo divino.
Após essas considerações sobre o metafórico movimento da alma, Stok (1982)
enfoca a metáfora ígnea ou pneumática. Os comentários ainda são pertinentes aos mesmos
parágrafos 17 e 18 e enfocam os termos latinos inflare (soprar) e spiritus (sopro), utilizados por
Cícero para tentar explicar o que ocorre ao poeta no momento de composição. O pesquisador
italiano inicia seu estudo relembrando a passagem das Epistulae ad Quinctum fratrem em que
186 “E mesmo se nós próprios não fôssemos capazes nem de os compreender, nem de degustá-los com a nossa
sensibilidade, deveríamos, no entanto, admirá-los, mesmo vendo-os nos outros (Quod si ipsi haec neque attingere
neque sensu nostro gustare possemus, tamen ea mirari deberemus, etiam cum in aliis uideremus). (Arch. 17) 187 “Portanto, a celeridade do corpo é chamada velocidade. A celeridade da inteligência também é digna de elogio
em função do exame de muitas coisas num curto espaço de tempo” (Velocitas autem corporis celeritas appellatur,
quae eadem ingenii etiam laus habetur propter animi multarum rerum breui tempore percursionem). (Tusc. IV,
xiii, 31) 188 “Pois mesmo se alguns, dotados de grande engenho, alcançaram a fecundidade do discurso mesmo sem um
método racional, a arte, entretanto, é um guia mais seguro do que a natureza. Pois uma coisa é verter palavras, em
profusão, ao modo dos poetas, outra é selecionar o que dizes por meio da razão e da arte” (Quod etsi ingeniis
magnis praediti quidam dicendi copiam sine ratione consequuntur, ars tamen est dux certior quam natura. Aliud
est enim poėtarum more uerba fundere, aliud ea, quae dicas, ratione et arte distinguere). (Fin. IV, 10; In: LIMA,
2009, p. 516)
110
Cícero declina o pedido do irmão para que escrevesse versos porque lhe falta o
enthousiasmós189 conforme segue abaixo:
“(...) De uersibus, quos tibi a me scribi uis, deest mihi quidem opera, quae
non modo tempus, sed etiam animum uacuum ab omni cura desiderat, sed abest etiam ἐνθουσιασμός”.
Sobre os versos que desejas que eu escreva para ti, em verdade, falta-me dedicação, que exige não apenas tempo e espírito livre de qualquer
preocupação, mas também o furor poético. (Q. fr., 3, 4, 4; Tradução de nossa
lavra)
Essa passagem é relacionada ao furor, registrado em Div. I, 79190, à inflammatio
animi e ao adflatus furoris, utilizados em De orat. II, 194191, sob a justificativa de que essas
opções tradutórias visam dar conta do entusiasmo musaico (enthousiasmós) de que fala Sócrates
em Ion, 542a–542b. Em Arch. 18, o arpinate atribui a Ênio, antigo poeta romano, a classificação
dos seus companheiros de ofício, digamos, como sagrados. Em Div. I, 79 e De orat. II, 194, há
a citação nominal de Platão relacionando-o à tese do entusiasmo musaico, que é referido como
furor. A diferença entre Platão e Cícero presente nos textos do arpinate parece estar na
modalização. É perceptível que Cícero sempre se refere à tese atribuindo-a a outrem. Logo
mais, no parágrafo vinte, o orador afirma que não há quem seja tão avesso às Musas que não
queira ter cantados seus feitos.192 Mas note-se a metonímia. A figura aqui cria uma espécie de
recurso à tradição, isto é, fala-se a partir de certo lugar-comum que relaciona o poeta às Musas,
mas que não necessariamente corresponde à visão do autor ou à visão ponderada sobre algo.
Encaminhando-se ao epílogo do discurso, ele adverte que, numa cidade em que até mesmo os
generais respeitavam o culto às Musas e aos poetas, não poderiam os juízes furtarem-se ao
mesmo respeito.193 Já no penúltimo parágrafo do texto, ele mesmo ressalta por duas vezes a
relação entre o poeta e essas divindades, mas nunca assumindo ele próprio tal
posicionamento.194
189 ἐνθουσιασμός. A Inspiration, enthusiasm, frenzy. In: LIDDELL, Henry George. SCOTT, Robert. A Greek-
English Lexicon. Oxford. Clarendon Press. 1940. 190 Vide nota 177. 191 Vide nota 57. 192 “Pois não há ninguém tão avesso às Musas a ponto de não permitir de bom grado que seja confiada aos versos
a proclamação imortal das suas obras” (Neque enim quisquam est tam aversus a Musis, qui non mandari versibus
aeternum suorum laborum facile praeconium patiatur). (Arch. 20) 193 Vide nota 166. 194 “(...) Sendo assim, juízes, se alguma recomendação não só humana, mas ainda divina, deve existir nesses grandiosos gênios, eu vos peço que este homem, que (...) pertence ao número dos que sempre, entre todos os povos,
são tidos e lembrados como sagrados, vós o aceiteis sob vossa proteção ([...] Quae cum ita sint, petimus a uobis,
iudices, si qua non modo humana, uerum etiam diuina in tantis ingeniis commendatio debet esse, ut eum qui [...]
semper apud omnis sancti sunt habiti itaque dicti, sic in uestram accipiatis fidem [...])”. (Arch. 31)
111
Tendo isso em vista, percebe-se a associação da copiosidade poética (copia
uerborum) à agitação da alma provocada por um sopro violento (furor), algo que ventila como
que dentro do indivíduo e o inspira a criar versos. É como se, nessa metáfora, o fogo, que
corresponderia à alma do indivíduo, fosse alimentado, incitado, por um sopro violento, capaz
de tirá-lo de si e lhe causar um êxtase poético difícil de ser compreendido. Mas não se pode
ignorar a afirmação de que o poeta prescinde de instrução, preceitos e técnica (et doctrina et
praeceptis et arte) e em favor da atuação de sua natureza (poetam natura ipsa ualere, et mentis
uiribus excitari, et quasi diuino quodam spiritu inflari), da agitação das forças da mente e da
inspiração de uma espécie de sopro divino. Dada a falta de uma explicação mais clara ou
adequada à raridade do fenômeno, usa-se a metáfora do sopro divino, mas o que parece ser o
sentido da passagem, em comparação ao que foi dito, é que o poeta recorre à sua própria
natureza (natura) e às forças do seu próprio pensamento, isto é, do seu talento, da sua
inteligência, de si mesmo e não de outrem:
Sit igitur, iudices, sanctum apud uos, humanissimos homines, hoc poetae
nomen, quod nulla umquam barbaria uiolauit. Saxa et solitudines uoci
repondent, bestiae saepe immanes cantu flectuntur atque consistunt: nos,
instituti rebus optimis, non poetarum uoce moueamur? (...) Nos hunc uiuum, qui et uoluntate et legibus noster est, repudiabimus? praesertim cum omne
olim studium atque omne ingenium contulerit Archias ad populi Romani
gloriam laudemque celebrandam? (...) Itaque ille Marius item eximie L. Plotium dilexit, cuius ingenio putabat ea quae gesserat posse celebrari. Quae
quorum ingeniis efferuntur, ab eis populi Romani fama celebratur. (Arch. 19-
21)
Seja, pois, sagrado perante vós, ó juízes, homens de cultura, este nome de
poeta, jamais profanado por barbárie alguma. Os rochedos e os ermos
respondem à voz, as feras cruéis não raro se enternecem com o canto e param: nós, educados nas melhores artes, não nos comoveremos com a voz dos
poetas? (...) Repudiaremos nós a este, vivo, que é nosso, por vontade própria
e pelas leis, sobretudo quando Árquias aplicou, de longa data, todo o seu interesse e talento na celebração da glória e do louvor do povo romano? (...)
Também por isso o famoso Mário estimou particularmente Lúcio Plócio, por
cujo talento pensava que se poderiam divulgar os feitos que realizara. (...) E
graças àqueles cujos talentos divulgam tais feitos, a glória do povo romano é celebrizada.
Não querendo correr o risco de excluir pessoas da audiência, Cícero não o cita
nominalmente, contudo, segundo Steel (2006, p. 93), só existe um poeta capaz de afetar a
natureza através do seu canto, Orfeu. Árquias é comparado ao arquétipo de poeta inspirado e
irresistível, numa passagem a ser lida como descrição hiperbólica do poder da poesia e talvez
do próprio ingenium do réu. No entanto, afirma Steel (op. cit., p. 94), existe um problema na
112
descrição feita por Cícero do mito órfico que, certamente, seria apontado por alguém que
conhecesse o mito: uma das partes fixas do mito é que Orfeu foi violentamente assassinado por
mãos humanas. Essa parte, diz o estudioso, é omitida de propósito. O defensor, ao omitir,
ressalta: Árquias é, como Orfeu, um poeta em perigo, e o júri não se comportará como as trácias,
ou seja, não permitirá que o poeta sofra em suas mãos (ibid., p. 94).
Outro aspecto a ser apontado é a relação do ingenium com a glória dos heróis
romanos. Cícero fala de poetas que cantavam vitórias romanas, que, na verdade, são também a
própria história romana de alguma maneira. Ele aparenta atribuir à poesia um forte papel
moralizante de educar a juventude através da apresentação de modelos de virtude, imputando-
lhe, portanto, uma certa necessidade de sabedoria e moralidade. Além disso, parece haver uma
certa ligação do caráter de Árquias a esse gênero, como se houvesse a necessidade de o poeta
ser digno dos caracteres e batalhas que canta.
Essa questão é melhor desenvolvida no recente estudo publicado por Vasconcellos
(2016). O estudioso afirma, com base em algumas passagens da obra de Cícero, que o orador
de Arpino comentava a produção poética dos autores de poesia amorosa sem fazer distinção
alguma entre autor histórico e persona poética (VASCONCELLOS, 2016, p. 156).
Vasconcellos aponta que, ao mencionar Alceu, Cícero não somente toma o que o eu poético
canta por uma revelação autobiográfica como também aponta a suposta incongruência de um
homem reconhecido pela bravura escrevendo coisas indecorosas em seus poemas.195 O autor
acrescenta uma passagem em que Cícero comenta o caso de poetas que revelaram sobre si
mesmos coisas indignas e dos dramaturgos que representavam personagens expressando-se de
maneira indecorosa (ibid., p. 157).196 Talvez, por esse motivo, ele seja contrário aos poetas
novos (poetae noui), que tinham uma vocação, por assim dizer, mais lírica. Com tais exemplos,
ilustra-se a perturbatio animi que constitui a paixão amorosa: os escritos dos poetas revelam a
perturbação da alma dos seus autores (ibid., p. 158), contrária à constantia, firmeza e
invariabilidade do caráter, valor básico para a moral romana (ibid., p. 156-7).
195 “O que, em suma, os homens mais doutos e os maiores poetas revelam a respeito de si próprios em versos e
cantos? Reconhecido como um homem de bravura em seus país, que coisas escreve Alceu sobre o amor dos
jovens!” (Quid denique homines doctissimi et summi poetae de se ipsis et carminibus edunt et cantibus? Fortis uir
in sua re p. cognitus quae de iuuenum amore scribit Alcaeus!). (Tusc. IV, xxxiii, 71; In: VASCONCELLOS, 2016,
p. 156) 196 “Mas deixemos entregues a tais jogos os poetas, em cujas peças vemos até mesmo Júpiter recair em tal desonra”
(Sed poetas ludere sinamus, quorum fabulis in hoc flagitio uersari ipsum uidemus Iouem). (Tusc. IV, xxxiii, 70;
Tradução de nossa lavra)
113
A crítica, na visão de Vasconcellos (ibid., p. 161), parece ter raízes platônicas e
aristotélicas. Platônicas porque Cícero se mostra favorável à decisão de Sócrates de expulsar os
poetas da cidade idealizada no livro décimo da República (595a - 608c), alegando que seus
versos estimulavam as paixões dos ouvintes.197 Aristotélicas porque também ecoam as palavras
do mestre estagirita quando diz que a poesia tomou diferentes formas segundo a diversa índole
particular, ou seja, os de índole superior imitam as ações e personagens nobres e os de mais
baixas inclinações voltam-se para as ações e personagens reprováveis.198 Quintiliano segue esse
caminho ao elogiar Germânico Augusto, fazendo uma associação entre a capacidade de cantar
guerras de forma elevada e a biografia do autor histórico: quem cantaria guerras mais
adequadamente do que quem as travou da melhor maneira como ele (Quis enim caneret bella
melius quam qui sic gerit)?199 Portanto, tendo em vista o forte interesse de Cícero por questões
morais e a declamação pública praticada em sua época, não poderíamos esperar outra postura
que não fosse valorizar a ligação de Árquias com a poesia épica. Nesse momento, falamos não
tanto do ingenium, de onde parecem brotar os versos do poeta, mas da sua natura, isto é, do seu
caráter, pois Árquias não é um poeta que canta atos libidinosos:
Qua re conseruate, iudices, hominem pudore eo, quem amicorum uidetis
comprobari cum dignitate tum etiam uetustate; ingenio autem tanto, quantum id conuenit existimari, quod summorum hominum ingeniis expetitum esse
uideatis [...]. Quae cum ita sint, petimus a uobis, iudices, si qua non modo
humana, uerum etiam divina in tantis ingeniis commendatio debet esse, ut eum qui uos, [...] estque ex eo numero qui semper apud omnis sancti sunt habiti
itaque dicti, sic in uestram accipiatis fidem [...]. [...] Quae autem remota a
mea iudicialique consuetudine, et de hominis ingenio et communiter de ipsius
studio locutus sum, ea, iudices, a uobis spero esse in bonam partem accepta; ab eo qui iudicium exercet, certo scio. (Arch. 31-2)
Conservai, juízes, um homem dessa integridade, a qual vedes ser confirmada não apenas pelo mérito das suas amizades, mas também pela antiguidade; e
197 “Mas vês que mal os poetas provocam? Representam os mais bravos homens lamentando-se, amolecem nosso ânimo e são, além disso, a tal ponto agradáveis que não apenas são lidos, mas aprendidos de cor. Assim, quando a
uma disciplina doméstica defeituosa e a uma vida na sombra e delicada vêm-se juntar os poetas, esgarçam todos
os nervos da virtude. Corretamente, pois, são expulsos por Platão da cidade que ele imaginou, buscando os
melhores costumes e a melhor condição para a República. Mas nós, ensinados pela Grécia, lemos e decoramos
esse tipo de coisa desde a infância, é isso que consideramos educação liberal e cultura” (Sed uidesne, poetae quid
mali adferant? Lamentantes inducunt fortissimos uiros, molliunt animos nostros, ita sunt deinde dulces, ut non
legantur modo, sed etiam ediscantur. Sic ad malam domesticam disciplinam uitamque umbratilem et delicatam
cum accesserunt etiam poetae, nervos omnes uirtutis elidunt. Recte igitur a Platone eiiciuntur ex ea civitate quam
finxit ille, cum optimos mores et optimum rei publicae statum exquireret. At uero nos, docti scilicet a Graecia,
haec a pueritia et legimus et ediscimus, hanc eruditionem liberalem et doctrinam putamus). (Tusc. II, xi, 27; In:
VASCONCELLOS, 2016, p. 156) 198 “A poesia dividiu-se de acordo com o carácter de um: os mais nobres imitaram ações belas de homens bons e
os autores mais vulgares imitaram ações de homens vis, compondo primeiramente sátiras, enquanto os outros
compunham hinos e encômios”. (Poet. 1148b, 25; In: ARISTÓTELES, 2008, p. 43) 199 (Inst. X, i, 91)
114
de um talento tão grande quanto convém supor, pelo fato de ter sido
procurado, como vedes, pelas inteligências dos homens mais notáveis (...). Sendo assim, juízes, se alguma recomendação não só humana, mas ainda
divina, deve existir nesses grandiosos gênios, eu vos peço que este homem,
que sempre glorificou a vós e pertence ao número dos que sempre, entre todos
os povos, são tidos e lembrados como sagrados, vós o aceiteis sob vossa proteção (...). (...) O que proferi quase em oposição ao meu costume e ao dos
tribunais, não só quanto ao talento deste homem, com também genericamente,
sobre os seus estudos, espero que tenha sido por vós acolhido de modo favorável; sei que o foi por quem preside o tribunal com toda a certeza.
Na peroração do discurso, que visa recapitular ideias e suscitar emoções,
sobremaneira, Cícero solicita, também não seria injusto dizer que suplica, a atenção dos juízes
ao ingenium de Árquias e ao suposto erro que seria recusar-lhe a cidadania romana, em face
dos referidos trabalhos prestados em favor dos generais romanos. Realmente, ao fim e ao cabo
de tudo, percebe-se que boa parte dos argumentos de Cícero concentra-se na natura enquanto
conjunto de traços da personalidade do poeta grego. Mas, se olharmos mais de perto nesse
âmbito, veremos que foram privilegiadas a raridade e a excepcionalidade da sua inteligência,
do seu talento, que lhe permitem criar, recriar e improvisar como nenhum outro indivíduo
versos de beleza extraordinária.
Se pensarmos na figura de Árquias no discurso como a própria idealização de poeta,
seria impossível ao menos não citar o ingenium como elemento de construção da imagem. De
fato, no Pro Archia, temos uma recorrência e associação significativa e sintomática do termo
ao poeta, de modo a sustentar essa hipótese. E uma vez que chegamos, de alguma forma, ao
desfecho da defesa de Árquias, podemos passar para o próximo item da caracterização do poeta
ideal, que será materializado pela doctrina.
O elemento complementar da representação do poeta ideal no Pro Archia constitui
um desafio. A dificuldade de enxergar o caráter técnico da poesia no Pro Archia se justifica
pelas escolhas de Cícero para designar a poesia e os seus leitores e pela sua estratégia de
divinizar o poeta. Em geral, as opções para designar a poesia giram em torno de três palavras,
em ordem de frequência no texto: studium (vinte e uma vezes), doctrina e humanitas (oito
vezes). Os dois primeiros, de acepção próxima e partícipe do vocabulário técnico de que nos
fala Lausberg (1966, p. 59), e humanitas representando um certo esgarçamento dessa ars
implícita. Desses, não definimos apenas studium no contexto das artes. Por studium, entende-
se aplicação assídua e veemente de um indivíduo a uma questão de relevância, porém, na maior
parte das suas ocorrências na Defesa, quer dizer a própria matéria à qual este indivíduo dedica
sua aplicação.
115
No entanto, pode-se dizer que Cícero entende a poesia como algo dentro do
universo da ars, dado o uso de vocabulário bastante específico desta, composto por palavras
como regulae, doctrina, scientia, studium. No entanto, no discurso Pro Archia, esse
vocabulário pouco se mostra na superfície textual. Não se vê aí, por exemplo, uso de ars para
designar a poesia, tampouco de artifex para designar o poeta, o que nos parece razoável, se não
perdermos de vista o gênero jurídico do discurso, isto é, sem qualquer pretensão filosófica ou
pedagógica sobre a questão poética. O primeiro indício de que o autor enxerga certo caráter
técnico na poesia é a afirmação de que todas as artes pertinentes à humanidade possuem um
vínculo comum:
Etenim omnes artes, quae ad humanitatem pertinent, habent quoddam commune uinculum, et quasi cognatione quadam inter se continentur. [...]
Quaeso a uobis, ut in hac causa mihi detis hanc ueniam, adcommodatam huic
reo, uobis (quem ad modum spero) non molestam, ut me pro summo poeta atque eruditissimo homine dicentem, hoc concursu hominum
literatissimorum, hac uestra humanitate, hoc denique praetore exercente
iudicium, patiamini de studiis humanitatis ac litterarum paulo loqui liberius, et in eius modi persona, quae propter otium ac studium minime in iudiciis
periculisque tractata est, uti prope nouo quodam et inusitato genere dicendi.”
(Arch. 2-3)
Na verdade, todas as artes que dizem respeito à formação humana têm uma
espécie de vínculo comum e estão, por assim dizer, unidas entre si por um
certo parentesco. (...) Peço-vos que nesta causa me concedais esta licença, apropriada ao presente réu e, conforme espero, não desagradável para vós: que
me seja permitido, neste momento em que defendo um excelso poeta e
eruditíssimo homem, nesta reunião de pessoas tão instruídas, diante de vossa cultura e, enfim, com tal pretor presidindo ao julgamento, que eu discorra um
pouco mais livremente sobre os estudos educativos e literários e, tratando-se
de um personagem que, por seu recolhimento e estudo, nunca foi maltratado
em arriscados processos, que eu possa utilizar um gênero de eloquência quase novo ou sem precedente.
Em comentário à primeira parte da passagem, é quase instantânea a relação que
estabelecemos com as sete artes liberais. São elas gramática, retórica, dialética, aritmética,
música, geometria e astronomia.200 Essas artes destacavam-se por serem intransitivas, ou seja,
200 “São sete as disciplinas chamadas artes liberais. A primeira é a gramática, ou seja, a excelência no falar. A
segunda é a retórica, que, por conta da elegância e a profusão da eloquência, é considerada de suma importância
às questões civis. A terceira é a dialética, também conhecida por lógica, a qual separa as coisas verdadeiras das
falsas nas discussões precisas. A quarta é a aritmética, que contém as causas e divisões dos números. A quinta,
que é a música, consiste nos cantos e poemas. A sexta é a geometria, que cuida das medidas e dimensões da terra.
A sétima é a astronomia, que diz da lei dos astros” (Disciplinae liberalium artium septem sunt. Prima grammatica,
id est loquendi peritia. Secunda rhetorica, quae propter nitorem et copiam eloquentiae suae maxime in ciuibibus
quaestionibus necessaria existimatur. Tertia dialectica cognomento logica, quae disputationibus subtilissimis
uera secernit a falsis. Quarta arithmetica, quae continet numerorum causas et diuisiones. Quinta musica, quae in
116
sua ação começa e termina no agente, que é aperfeiçoado pela ação (JOSEPH, 2008, p. 22-23).
A exemplo de uma flor que floresce e encontra a sua perfeição ao final desse processo, o poeta
torna-se ainda mais perito em sua prática à medida que a pratica. Neste sentido, cria-se a ideia
de que são dignas de homens livres por objetivarem o conhecimento e o bem comum. As artes
liberais, pois, ensinam como viver, treinam as faculdades e as aperfeiçoam, permitem a uma
pessoa elevar-se acima de seu ambiente material para viver uma vida intelectual, uma vida
racional e, portanto, uma vida livre (JOSEPH, 2008, p. 23). Por esse motivo, diz-se que essas
artes são humanizadoras ou mesmo humanidades como se vê no terceiro parágrafo, em que o
orador se refere à poesia, ao studium humanitatis ac litterarum, em tradução literal, “estudo da
humanidade e das letras”, e aos homens que a elas se dedicam como eruditissimi e literatissimi,
homens superlativamente cultivados e afeitos a esses estudos que alimentam sua humanidade.
Um aspecto interessante a ser explorado também seria a caracterização do poeta,
que é descrito como summus atque eruditissimus. Se começarmos pelo eruditus, de acordo com
o OLD, veremos que se trata do particípio do verbo erudio, que, por sua vez, é composto de ex,
rudis. Portanto, temos, primitivamente, o ato de extrair do estado primitivo, inalterado e
desumano, para levar ao aperfeiçoamento, ao desenvolvimento e ao humano. Naturalmente,
cria-se a ideia de instrução e educação pela observação de que o avanço do indivíduo à
humanidade é garantido através da leitura dos poetas e prosadores da cultura greco-romana.
Árquias, com efeito, representa um indivíduo cultivado e versado nessa literatura. Se nos
voltarmos ao summus, também veremos que se trata de um adjetivo adequado ao melhor ou
mais destacado em alguma atividade. Daí segue que o summus poeta também é um homem da
mais alta erudição.
Nam ut primum ex pueris excessit Archias, atque ab eis artibus quibus aetas puerilis ad humanitatem informari solet se ad scribendi studium contulit,
primum Antiochiae – nam ibi natus est loco nobili – celebri quondam urbe et
copiosa, atque eruditissimis hominibus liberalissimisque studiis adfluenti, celeriter antecellere omnibus ingeni gloria contigit. (Arch. 4)
De fato, logo que Árquias deixou a infância e, das disciplinas com que
habitualmente se educa a criança para a cultura geral, passou à atividade literária, rapidamente conseguiu exceder a todos pelo brilho de seu talento,
primeiro em Antioquia – pois aí nascera de uma família distinta – cidade
outrora rica e populosa, repleta de homens eruditíssimos e dos mais dignos estudos.
carminibus cantibusque consistit. Sexta geometrica, quae mensuras terrae dimensionesque conplectitur. Septima
astronomia, quae continet legem astrorum). (Etym. I, ii, 1-3; In: PINTO, 2008, p. 231-33)
117
Além da já comentada ideia de que a infância é uma pedra bruta sobre a qual pesa
o talhar das artes, responsáveis por formar indivíduos eruditissimi e liberalissimi,201 não seria
descabido, talvez, dizer que as artes são responsáveis pela libertação da ignorância e pelo
suposto ingresso no caminho da cultura. Cícero reforça a ideia da erudição (eruditio) e da
nobreza (liberalitas) de Árquias, mais uma vez, através da referência à sua cidade natal. Desse
modo, o defensor afirma duplamente que Árquias é erudito, por ser natural de um lugar
conhecido como reduto dos mais dignos varões e estudos e por ter se destacado nesses estudos.
Em tal momento, interessa, desde o princípio, a Cícero criar uma espécie de vínculo
entre Árquias e os juízes, homens afeitos ao estudo das humanidades. Tudo isso faz parte de
uma certa conquista da boa vontade (captatio beneuolentiae). A despeito da diferença de
nacionalidade e da pouca fama do acusado, Cícero tenta mostrar que não está em situação
costumeira e que ele e os juízes alimentam uma atividade em comum. À parte isso, também
chama a atenção o termo utilizado pelo defensor para designar as disciplinas cultivadas por
Árquias (scribendi studium) e pelos seus conterrâneos (liberalissima studia). Depreende-se que,
de fato, studium pode ser entendido como o objeto do interesse de alguém, em especial se esse
interesse for literário, o que coloca a poesia, atividade de Árquias, no rol dos campos de
conhecimentos liberais, dignos de homens livres, e ainda no vocabulário e universo das artes.202
Fazendo um razoável salto até o duodécimo parágrafo, poderemos perceber o duplo
uso de doctrina associada aos verbos excolo e relaxo, como fonte de alívio e aprimoramento,
retomando, por um lado, o seu viés formativo e, por outro, o seu viés, por assim dizer,
terapêutico, além das referências à literatura como studium e litterae, donde se depreende que,
de fato, o esforço e a chegada até a humanidade (humanitas) se dá através da literatura.
Quaere argumenta, si qua potes: numquam enim his neque suo neque amicorum iudicio reuincetur. Quaeres a nobis, Grati, cur tanto opere hoc
homine delectemur. Quia suppeditat nobis ubi et animus ex hoc forensi
strepitu reficiatur, et aures conuicio defessae conquiescant. An tu existimas aut suppetere nobis posse quod cotidie dicamus in tanta uarietate rerum, nisi
animos nostros doctrina excolamus; aut ferre animos tantam posse
contentionem, nisi eos doctrina eadem relaxemus? Ego uero fateor me his
studiis esse deditum: ceteros pudeat, si qui se ita litteris abdiderunt ut nihil possint ex eis neque ad communem adferre fructum, neque in aspectum
lucemque proferre: me autem quid pudeat, qui tot annos ita uiuo, iudices, ut
a nullius umquam me tempore aut commodo aut otium meum abstraxerit, aut uoluptas auocarit, aut denique somnus retardit? (Arch. 12)
201 Cf. p. 95. 202 Studium, i 7. a Intellectual activity, esp. of a literary kind, or an instante of it, study. b (w. gen) the study (of
a particular subject); -ium habere, to make a study (of). c a ~iis, a member of the imperial household acting as
adviser on literary matters. In: Oxford Latin Library. Oxford: The Clarenton Press, 1968, p. 1830-1.
118
Perguntarás, Grácio, por que tanto nos encanta este homem; é porque nos provê para que o espírito se refaça deste rumorejar do fórum e que os ouvidos
fatigados pelos gritos repousem. Porventura, pensas que nos poderia estar
disponível a matéria para que os discursos cotidianos em tamanha variedade
de questões, sem que cultivássemos o espírito com os estudos, ou ainda, que o espírito poderia suportar tamanha tensão sem que o aliviássemos com os
mesmos estudos? Quanto a mim, confesso que a eles me consagrei. Que se
envergonhem os outros, os que a tal ponto se enclausuram nos livros, que não podem levar deles nenhum fruto à comunidade nem mostrar nada à vista e à
luz. Mas, de que poderia envergonhar-me, eu, que há tantos anos, juízes, vivo
de tal modo que, da situação perigosa ou do interesse de ninguém, jamais o
ócio me desviou, ou o prazer me afastou ou o sono, enfim, me dissuadiu?
Nesse momento, diz Steel (2006, p. 88), Cícero está combinando dois diferentes
usos de doctrina: um como fonte de material de pesquisa, que permite ao orador elaborar seus
discursos, outro como meio de relaxamento, que prepara o orador para as batalhas jurídicas
vindouras. A ideia aí é evidenciar o aspecto prático da poesia e distingui-la dos outros tipos de
literatura, dado que um orador pode tirar proveito da sua leitura. A opção vocabular de Cícero
para descrever o trabalho de Árquias, como doctrina e studia, tende a combinar sua poesia com
o aprendizado mais geral, cujo valor para o orador seria muito menos discutível. É certo que o
impulso em direção a uma apreciação da literatura como refúgio à fadiga e ao embate da vida
política e forense, defronte a um público provavelmente suspeito e cauteloso, não é apresentado
pelo orador atento como recreação, como um passatempo desinteressado, mas como nutrição
de uma eloquência que não faltou ao socorro dos amigos (CICERONE, 1992, p. 49-50). A
doctrina é, a um só tempo, fonte da imensa variedade dos argumentos e fruto desta.
Ao poeta são imputadas duas tarefas, a saber: está expressa a de delectare os ânimos
dos leitores, mas também, de modo implícito, o prodesse. O poeta fornece ao orador um alívio
da vida jurídica e ainda um vasto cabedal de assuntos para serem aproveitados nas suas causas,
o que justifica o uso da palavra doctrina. Doctrina, como vimos há pouco, amplia-se muito
mais para uma formação teórica (em oposição à natura ou mesmo usus), de educação ou mesmo
de cultura.203 Conclui-se, com isso, que Árquias, no contexto apresentado como summus poeta,
é um indivíduo doctus, isto é, tanto vem sendo preparado desde a infância na doctrina quanto
é responsável por transmiti-la ou ensiná-la, ideia imposta já no parágrafo primeiro, no momento
em que Cícero diz do suposto período em que fora discípulo do poeta e teve sua voz modelada
203 Doctrina, ~ae. In: GAFFIOT, Félix. Dictionnaire latin-français. Paris: Hachette Education, 2016, p. 507.
119
pelos seus preceitos e exortações.204 Nessa parte, inclusive, está presente, mais uma vez, a
metáfora da escultura. Cícero deve observar os preceitos e conselhos da ars para que, através
deles, sua capacidade oratória seja desenvolvida. Donde se depreende também que o próprio
poeta deve ter passado por esse processo de aprendizado, o que pode ser confirmado na
comparação horaciana do poeta com o atleta que, para ser bem-sucedido, antes teve de
transpirar, sofrer e abdicar do vinho e do prazer, e ao flautista que muito teve de aprender junto
a um mestre até poder tocar nos Jogos Píticos.205
Cabe a nós mencionar a necessidade do autor de ressaltar que poderia encontrar
resistência de parte do público por dedicar-se aos estudos literários, sinalizando para uma ala
mais conservadora da sociedade, pouco receptiva aos costumes tidos como próprios dos gregos
que ora se instaurava na Urbe, uma ala que reprova a prática como quem reprova uma certa
indolência ou uma vida de otium luxuriosum206 (ANDRÉ, 1999, p. 37). Para essa gente, o
helenismo soava como individualismo desenfreado, abandono da antiga fides, da pietas, da
uerecundia, e de tantas outras virtudes nacionais; significava conforto material, luxo e
voluptuosidade (VAN DEN BESSELAR, 1965, p. 281). Na visão dos conservadores, a
dedicação demasiada às letras poderia parecer um tanto individualista e prejudicial àquilo que,
de fato, era importante: a vida política. Esse conservadorismo é personificado amiúde na figura
de Catão, o Censor, ícone da resistência romana contra a adesão aos valores da Hélade
(GODOY, 2004, p. 84-5). Outro indício da repulsa de determinado setor da sociedade romana
ao otium está nos versos finais do poema 51 de Catulo207, segundo o qual o ócio é visto como
causa de moléstias, do relaxamento dos costumes, da perda da energia, talvez aqui entendida
como um suposto desinteresse pela vida pública, e responsável pela queda de reis e cidades
204 “Mas se esta voz, modelada pelas suas lições e encorajamentos, serviu às vezes para salvar alguns, é sem dúvida
a ele mesmo, de quem recebemos os recursos com que pudéssemos socorrer a todos e pôr a salvo alguns, que devemos, à medida de nossas forças, levar socorro e salvação” (Quod si haec uox, huius hortatu praeceptisque
conformata, non nullis aliquando saluti fuit, a quo id accepimus quo ceteris opitulari et alios seruare possemus,
huic profecto ipsi, quantum est situm in nobis, et opem et salutem ferre debemus). (Arch. 1) 205 “O atleta que forceja por atingir na corrida a meta desejada, muito fez e suportou desde menino, suou, sofreu e
absteve-se do vinho e de Vênus; o flautista, que entoa carmes nos Jogos Píticos, teve de aprender primeiro e de
obedecer a um mestre” (Qui studet optatam cursu contingere metam, multa tulit fecitque puer, sudauit et alsit,
abstinuit uenere et uino; qui Pythia cantat tibicen, didicit prius extimuitque magistrum). (Ars P. 411-415; In:
HORÁCIO, 1992, p. 117) 206 Neste sentido, segundo Panoussi (2009, p. 518), haverá certa tensão entre otium e negotium sobretudo nos
escritos da república e do início do império, que marcará uma visão do otium como algo próprio menos dos
romanos que dos gregos. Para a classe dominante grega e seus filósofos, a ociosidade total é a condição prévia de
tudo o que é bom e belo – é o inestimável bem que, só por si, torna a vida digna de ser vivida. Somente aquele que
dispõe de ócio pode alcançar sabedoria e liberdade de espírito, pode ser senhor da vida e gozá-la plenamente
(GODOY, 2004, p. 87). 207 “O ócio, Catulo, te é molesto. Com ele, muito te exultas e te exaltas. O ócio outrora reis arruinou e prósperas
cidades” (Otium, Catulle, tibi molestum est; Otio exultas nimiumque gestis. Otium et reges prius et beatas perdidit
urbes). (Catul. LI; Tradução de nossa lavra)
120
prósperas. No entanto, Cícero professava justamente o contrário dessa tradição de pensamento:
o escopo que norteia suas obras filosóficas e, em boa medida, seus discursos mais relevantes,
segundo Conte (1999, p. 177-8), é:
Promover uma base intelectual, ética e politicamente sólida para a classe
dominante, cuja necessidade de ordem não seria traduzida num isolamento obtuso e cujo respeito pelo mos maiorum não iria refrear a absorção da cultura
grega. Promover uma base para uma classe dominante que, embora tivesse
responsabilidades para com o estado, não se negaria, insensível, ao prazer do
otium preenchido com arte e literatura ou ao prazer do zelosamente refinado estilo de vida professado no termo humanitas: a consciência da cultura é fruto
da civilização, a capacidade de distinguir e de apreciar o que é belo e
adequado.
O autor defendia a ideia de que a cultura, sobretudo aquela oriunda da educação
helenística208, não devia alhear-se da política (TRENK, 1997, p. 61). E num contexto de uma
crescente assimilação dos valores gregos, o otium foi, diríamos, um importante avanço do
período em que viveu nosso autor, pois propiciou não só a valorização de um acervo variado e
valioso de documentos históricos e literários gregos como também a própria continuação e
releitura do seu pensamento por parte de poetas e prosadores romanos. A classe dominante
romana, nesse momento, começa a entender a ociosidade como uma condição prévia para a
liberdade do espírito por meio da leitura da filosofia e da literatura, de modo que a doctrina
resultante desse processo torna-se distintiva dessa classe. No entanto, é preciso medida nos
estudos, para que não negligenciemos os negócios privados e públicos, pois o valor da virtude
está na ação (CHAUÍ, 2010, p. 237). Em vista disso, podemos afirmar que o elogio ciceroniano
às letras poéticas, ou à cultura delas advinda mostra-se uma espécie de ferramenta de divulgação
e defesa da adesão da cultura helenística em Roma.
Com essa discussão, não seria descabido, supomos, pensar que Cícero imputasse
também ao poeta a obrigação de produzir obras segundo a tradição helenística, qual seja, com
objetivo de contribuir com a formação superior do espírito, tendo em vista que, a par da fruição
estética, seria dada ao homem certa intuição da verdade, da beleza e do bem (MARROU, 1990,
p. 350). Nas bases dessa tradição helenística, encontra-se a noção de paidéia como um processo
de desenvolvimento individual, cultura do homem desenvolvido em todas as suas
potencialidades, portanto, uma cultura no sentido perfectivo, acabado, uma disciplina mesma
208 No processo de transformação da concepção antropológica e pedagógica grega (acrescentaríamos “de corte
helenístico”), sobressaíram-se determinadas características, como: antropocentrismo, gosto pelo intelectualismo,
apreço e cultivo do ócio nobre, amor à política, personalismo (que incluía a valorização da pessoa e da liberdade),
culto e cultivo da beleza física e moral e grande valorização da formação liberal (PEREIRA MELO, 2006, p. 2).
121
dos próprios instintos e fortalecimento do hábito da virtude (TRENK, 1997, p. 37). Neste
sentido, o orador imputa ao poeta grego Árquias a tarefa de cultivar o fértil espírito, embora
ainda agreste, dos romanos com as suas epopeias, de modo que estes pudessem emular seus
ancestrais tanto nas ações quanto no pensamento. Por conseguinte, postulamos que a relação
que subjaz a essa argumentação de Cícero dá à Grécia os caracteres da doctrina e da cultura,
enquanto caminhos pelos quais os romanos chegariam à virtude, e a Roma, os do ingenium e
da natura, enquanto disposições naturais favoráveis.
A passagem pode lembrar os versos de Horácio: os poetas ou querem ser úteis ou
dar prazer ou, ao mesmo tempo, tratar de assunto belo e adaptado à vida.209 Porque realmente
essa doctrina ou studium não se deve isolar na própria graciosidade (iucunda) ou atividade,
deve render frutos à vida prática justa (idonea).
Quare quis tandem me reprehendat, aut quis mihi iure suscenseat, si, quantum
ceteris ad suas res obeundas, quantum ad festos dies ludorum celebrandos, quantum ad alias uoluptates et ad ipsam requiem animi et corporis conceditur
temporum, quantum alii tribuunt tempestiuis conuiuiis, quantum denique
alueolo, quantum pilae, tantum mihi egomet ad haec studia recolenda
sumpsero? Atque hoc ideo mihi concedendum est magis, quod ex his studiis haec quoque crescit oratio et facultas; quae, quantacumque in me est,
numquam amicorum periculis defuit. Quae si cui leuior uidetur, illa quidem
certe, quae summa sunt, ex quo fonte hauriam sentio. (Arch. 13)
Por isso, quem irá, afinal, repreender-me ou quem com razão se indignará
comigo, se o mesmo tempo que é permitido aos outros para empreender seus negócios, para celebrar os dias festivos dos espetáculos, para outros prazeres
e para o próprio descanso do espírito e do corpo; se o mesmo tempo que outros
dedicam a demorados banquetes, em suma, ao tabuleiro de dados, à bola, eu,
de minha parte, o reservo para retomar estes estudos? E com razão isso deve ser-me permitido, porque é por efeito destes estudos que se desenvolve
também minha capacidade oratória, a qual, pelo tanto que está em mim, jamais
faltou nas dificuldades dos amigos. Se ela parecer pouco importante a alguém, por certo não desconheço de que fonte irei beber daquilo que, de fato, é mais
valioso.
O primeiro aspecto que podemos citar é que Cícero valoriza a dedicação aos estudos
literários, apontando que, com eles, conseguira desenvolver seu exíguo engenho, o qual nunca
faltara aos amigos e à República, e condena aqueles que investem tempo em banquetes e
espetáculos. O segundo, e mais importante, é que esse não uso de ars e as tarefas imputadas até
aqui à poesia ocultam um sentido um pouco mais amplo do que citamos, um sentido de
209 “Os poetas ou querem ser úteis ou dar prazer ou, ao mesmo tempo, tratar de assunto belo e adaptado à vida”
(Aut prodesse uolunt aut delectare poetae aut simul et iucunda et idonea dicere uitae). (Ars P. 333-5; In:
HORÁCIO, 1992, p. 105)
122
aperfeiçoamento interior e formação humana auxiliar ao seu artífice e ao seu leitor, que
extrapola os limites da técnica. A poesia, junto de outras disciplinas que versam sobre a
experiência humana, serve de fonte para esse crescimento intelectual e moral de que Cícero fala
e que, no parágrafo seguinte, detalha.
Nam nisi multorum praeceptis multisque litteris mihi ab adulescentia
suasissem, nihil esse in uita magno opere expetendum nisi laudem atque
honestatem, in ea autem persequenda omnis cruciatus corporis, omnia pericula mortis atque exsili parui esse ducenda, numquam me pro salute
uestra in tot ac tantas dimicationes atque in hos profligatorum hominum
cotidianos impetus obiecissem. Sed pleni omnes sunt libri, plenae sapientium
uoces, plena exemplorum uetustas: quae iacerent in tenebris omnia, nisi litterarum lumen accederet. Quam multas nobis imagines – non solum ad
intuendum, uerum etiam ad imitandum – fortissimorum uirorum expressas
scriptores et Graeci et Latini reliquerunt? Quas ego mihi semper in administranda re publica proponens animum et mentem meam ipsa
cognitatione hominum excellentium conformabam. (Arch. 14)
Pois, se eu não me tivesse persuadido desde a adolescência, com as lições de
muitos e com tantos escritos, de que nada se deve desejar apaixonadamente
na vida, a não ser a glória e a reputação; de que, no entanto, para alcançá-las,
devem-se menosprezar todos os sofrimentos do corpo, todos os riscos de morte ou exílio, jamais eu me teria exposto, pela vossa salvaguarda, a tantas e
tão grandes lutas e a estes ataques cotidianos de homens infames. Mas plenos
estão os livros, plenas as máximas dos sábios, plena a Antiguidade de fatos exemplares: os quais permaneceriam todos nas trevas se se lhes não
acrescentasse a luz das letras. Quão numerosas imagens dos mais valentes
cidadãos, não apenas para contemplarmos, mas para imitarmos, os escritores gregos e latinos nos deixaram gravadas! Tendo-as diante de mim ao governar
a República, eu modelava meu coração e inteligência só de pensar nesses
homens excelentes.
A poesia, junto da filosofia, da retórica, da história e do direito, disciplinas que
versam sobre a vida e sobre a convivência humanas, desperta no homem aquilo que o distingue
dos animais e o reafirma enquanto homem através de exemplos. Nesses textos, o indivíduo
vislumbra um universo de personagens que despertam a sua virtude e sabedoria. A exemplo do
discípulo da retórica que elege modelos que o inspirem a praticar a sua oratória, o indivíduo
que lê os relatos épicos dos poetas se vê exortado a melhorar a sua própria conduta, levando-os
à humanidade. Esses exemplos estão inclusos nas litterae do litteratus e na doctrina de um
indivíduo doctus, litteratus ou mesmo na humanitas dos varões humani, epítetos de homens
cultivadíssimos na virtude e na cultura letrada romanas. Aliás, essa última palavra, humanitas,
de tão abrangente, guarda em si as demais. Segundo Trenk (1997, p. 74-5):
123
Humanitas é o atributo do homem, no que tange à sua condição e natureza;
implica num sentimento de preocupação com o semelhante, identificado com a filantropia; corresponde a uma qualidade da nação e do indivíduo
civilizados; diz respeito aos deveres humanos, que não se restringem à
comunidade romana, mas também aos estrangeiros; constitui atitude de
benevolência, compreensão e tolerância para com o próximo e esforço pelo bem de todos; revela senso de medida em comportamentos convenientes,
desenvoltura no trato em sociedade; enfim, inclui a cultura intelectual do
homem.
Da extensa definição de humanitas, gostaríamos de focalizar a parte pertinente à
cultura intelectual e ao aperfeiçoamento dos dotes naturais, que, em nossa interpretação, estão
mais próximas do que discutimos. De acordo com Marrou (1990, p. 447), a palavra humanitas
com valor de cultura é um neologismo empregado pelo Arpinate, designando aquilo que faz o
homem mais profundamente humano. E no caminho para a própria humanidade, a literatura
desempenha um grande papel. Segundo Arbea (2002, p. 400), as letras constituem um caminho
muito apropriado ao homem que aspira à plenitude de sua humanidade, pois além de dar-nos
descanso e recreação, ser fonte de formação técnica e compreensão do mundo, as letras também
são, com seu inesgotável repertório de figuras e situações exemplares, um meio privilegiado de
modelação ética.
A palavra humanitas e seu adjetivo humanus são utilizadas, ao todo, oito vezes, o
mesmo número de ocorrências de doctrina, sendo que, dos oitos registros desta última, cinco
constam do parágrafo quinze, a ser comentado posteriormente. Arch. 14 diz muito sobre o que
representa essa doctrina e como ela se relaciona à humanitas, quando Cícero deixa de lado o
sentido inicial de artes, que se relaciona à profissão, à arte de ensinar, e que nos remete a termos
como ratio, ars, disciplina, para acessar um saber mais elevado que o meramente técnico, que
deverá ser utilizado a serviço de um propósito superior, que estará mais próximo da noção
abrangente e formativa de humanitas (ORBAN, 1957, p. 181).
Portanto, essa instrução exerce um papel formador mesmo do caráter, ao modelar a
natura do indivíduo tal qual o escultor talha no mármore bruto a sua imagem, metáfora,
inclusive, utilizada em Arch. 14. Como aponta Panoussi (2009, p. 520), é especial a metáfora
da escultura que sublinha a ideia de construção e de exercício andando lado a lado com o talento
e as habilidades naturais e que encontra sua perfeita expressão na figura do próprio Cícero. Em
algum sentido, o que se procura é retomar o sentido inicial de cultura, o de cultivo da terra, de
modo que o espírito humano seja visto como terreno fértil que recebe os adubos e, com sua
124
ajuda, vem a florescer e dar frutos. Nas Tusculanas210, veremos a filosofia como elemento
potencializador dessa natureza, sem a qual, por mais fértil que fosse, jamais poderia vir a ser
frutuoso; entretanto, no Pro Archia, a literatura é que será o elemento formador que levará o
homem à virtude esperada, pois foi através dela que cultivaram a virtude os grandes nomes da
República. Na verdade, além de encontrarmos as letras como elemento cultivador, também a
encontramos como elemento a ser cultivado, fomentado pela sociedade, tanto é verdade que o
orador lembra que outrora generais honraram os poetas e as musas, aqui funcionando como
epíteto para a poesia.211
Por esse motivo, Cícero, no Pro Archia, busca enfatizar ao máximo sua própria
instrução e humanidade, a dos juízes, a de suas testemunhas e a de Árquias, conquistada através
da dedicação às letras gregas e romanas e modelação das suas respectivas naturezas212. Por esse
motivo também, faz questão de expressar no texto sua busca pela erudição e pelo
aprimoramento pessoal, que emerge da própria sensibilidade do homem austero e o inspira a
conhecer e praticar a virtude. A esse indivíduo, as letras poéticas tornam-se um instrumento de
modelação do espírito e de humanização, por mostrar os heróis romanos do passado. Entende-
se daí que o poeta, enquanto compositor de modelos para a admiração alheia, também possui
sabedoria e virtude excepcionais:
Ex hoc esse hunc numero, quem patres nostri uiderunt, diuinum hominem
Africanum; ex hoc C. Laelium, L. Furium, moderatissimos homines et
continentissimos; ex hoc fortissimum uirum et illis temporibus doctissimum,
M. Catonem illum senem: qui profecto si nihil ad percipiendam [colendam] uirtutem litteris adiuuarentur, numquam se ad earum studium contulissent.
Quod si non his tantus fructus ostenderetur, et si ex his studiis delectatio sola
peteretur, tamen [ut opinor] hanc animi aduersionem humanissimam ac liberalissimam iudicaretis. Nam ceterae neque temporum sunt neque aetatum
omnium neque locorum: haec studia adulescentiam alunt, senectutem
oblectant, secundas res ornant, aduersis perfugium ac solacium praebent, delectant domi, non impediunt foris, pernoctant nobiscum, peregrinantur,
rusticantur. Quod si ipsi haec neque attingere neque sensu nostro gustare
210 “Destarte, nem todos os espíritos lavrados trazem fruto. E, para que eu me concentre em semelhante ideia,
assim como o campo, embora fértil, sem cultivo não gera frutos, desse mesmo modo ocorre ao espírito sem
conhecimento. Pois, sendo assim, temos algo incompleto sem a outra parte. Com efeito, a agricultura do espírito
é a filosofia, que extrai esses vícios desde as raízes e prepara os espíritos para receber as semeaduras, macera estas
e, por assim dizer, as semeia, para que, em maduras, gerem os frutos mais férteis” (Sic animi non omnes culti
fructum ferunt. Atque, ut in eodem simili uerser, ut ager quamuis fertilis sine cultura fructuosus esse non potest,
sic sine doctrina animus. Ita est utraque res sine altera debilis. Cultura autem animi philosophia est: haec extrahit
uitia radicitus et praeparat animos ad satus accipiendos eaque mandat iis et, ut ita dicam, serit, quae adulta
fructus uberrimos ferant). (Tusc. II, 13; Tradução de nossa lavra) 211 Vide nota 166. 212 A natureza como dux do comportamento humano está presente em “Que homens sigam o quanto puderem a
natureza, a melhor guia do bem viver” (Sequantur quantum homines possunt, naturam optimam bene uiuendi
ducem)”. (Amic. 19; Tradução de nossa lavra)
125
possemus, tamen ea mirari deberemus, etiam cum in aliis uideremus. (Arch.
16-7)
A este número pertence aquele homem divino que nossos pais conheceram, o
Africano; deste número são Gaio Lélio, Lúcio Fúrio, cidadãos plenos de
moderação e prudência; deste número ainda o varão de suma energia e, para aqueles tempos, o mais sábio, Catão, o ilustre velho: personagens que, se as
letras em nada ajudassem para conhecer e praticar a virtude, sem dúvida nunca
se teriam dedicado ao seu estudo. E mesmo se tão grande fruto não se evidenciasse e, de tais estudos, se procurasse apenas o prazer, ainda assim, a
meu ver, julgaríeis essa ocupação de espírito como a mais digna do homem e
a mais nobre. Pois as outras não são de todas as ocasiões, nem de todas as
idades, nem de todos os lugares, mas esses estudos impulsionam a juventude, entretêm a velhice, adornam os acontecimentos felizes, oferecem refúgio e
conforto na adversidade, deleitam-nos em casa, não nos atrapalham fora dela,
conosco passam a noite, viajam, veraneiam no campo. E mesmo se nós mesmos não fôssemos capazes nem de os compreender, nem de degustá-los
com a nossa sensibilidade, deveríamos, no entanto, admirá-los, mesmo vendo-
os em outros.
Na passagem, Cícero cita nominalmente figuras de relevo na história romana,213
tentando relacioná-las aos studia, palavra utilizada três vezes. Sua estratégia, por um lado,
reside na ideia de que esses indivíduos, conhecidos pela moderação e pela prudência,
primeiramente abandonaram a costumeira posição refratária ao ócio literário, que tanto
caracterizou a aristocracia, e passaram a cultivar seus espíritos com esses estudos. Somadas a
isso, ainda são citadas aplicações lúdicas da poesia, as quais também são pintadas como as mais
nobres e dignas possíveis (aduersio humanissima ac liberalissima). Por outro lado, continua a
tentativa de associar Árquias às figuras de autoridade da sociedade romana, desta vez, figuras
do passado. Através de uma espécie de metonímia, Cícero toma o artista por sua arte para criar
a ideia de que o acusado é tão virtuoso e erudito quanto Cipião Africano Menor, Gaio Lélio e
Lúcio Fúrio. Ele também alega que a poesia, obra do poeta, acompanha o homem em diversos
contextos e serve de utilidade e agrado (prodesse ac delectare) para todas as idades, fato talvez
não verificado, na visão do arpinate, nos demais estudos liberais como a geometria, a
astronomia ou mesmo a música. Por fim, já no início de Arch. 17, ele afirma que, embora nem
todos fossem capazes de acessar tal nível de apreciação moral ou estética, ainda assim, deviam,
pelo menos, admirar os que a ele se consagram. Ou seja, mesmo que fossem admiradores de
poesia, os juízes deveriam valorizar o poeta Árquias por se dedicar a um ofício tão nobre e útil
à república romana.
213 Públio Cornélio Cipião Emiliano Africano, conhecido também por Cipião Africano Menor ou Cipião Emiliano,
foi cônsul por duas vezes, em 148 e 133 a.C., e general responsável por dar cabo do conflito conhecido como
Terceira Guerra Púnica. Gaio Lélio foi combatente durante a referida guerra e cônsul em 140 a.C. Lúcio Fúrio Filo
foi cônsul em 136 a.C. (TRENK, 1997, p. 208)
126
As referências subsequentes à poesia, sejam elas matéria de estudo ou instrumento
de humanização, ou ao poeta, enquanto interessado ou produtor dessa instrução e cultura, giram
em torno da tese da poesia como fornecedora e também imortalizadora de modelos de virtude
a serem admirados pela juventude, e do termo studium e suas suas principais acepções mais
frequentes no discurso, a saber: como ramo de conhecimento (Arch. 19 e 32) e como cultura
(Arch. 19). No parágrafo 19, Cícero questiona se os juízes serão capazes de repudiar um poeta
que dedica seu engenho e seu conhecimento (studium) à celebração da história romana. Logo
após, é citada a competência de Árquias, tanta que ele acabou conquistando até Gaio Mário,214
homem não muito simpático a esses estudos (studia).215 Em Arch. 32, Cícero roga a que acatem
os juízes a sua digressão sobre o talento (ingenium) e a sua esfera de atuação (studium), por
assim dizer.216
No que se refere ao elemento prático da idealização poética, pouco podemos dizer,
pois o único momento em que Cícero permite ao leitor pressupor a sua presença no texto é em
Arch. 18.217 Não obstante o esforço da defesa por vincular a persona de Árquias ao divino, há
a possibilidade de interpretar os improvisos poéticos de Árquias como fruto de uma exercitatio
por dois pontos: o habitus e o studium, componentes que auxiliaram na construção da figura
venerável do poeta. No contexto do louvor a um indivíduo, o habitus pode ser resumido como
um primor constante e absoluto em alguma matéria conquistada pela dedicação e pela
diligência218, enquanto o studium é a assídua e veemente aplicação do espírito a um assunto
relevante, como filosofia, poesia, geometria e letras.219 Essas virtudes aparecem no momento
214Caio Mário foi seis vezes cônsul da república e general responsável por derrotar teutões e címbrios nas Guerras
Címbrias (TRENK, 1997, p. 210). 215Vide nota 112. 216 “O que eu disse em relação à causa, de modo breve e simples, conforme o meu hábito, creio confiantemente,
juízes, que tenha sido aprovado por todos; o que proferi quase em oposição ao meu costume e ao dos tribunais,
não só quanto ao talento deste homem, como também, genericamente, sore os seus estudos, espero que tenha sido
por vós acolhido de modo favorável; sei que o foi por quem preside o tribunal, com toda a certeza (Quae de causa
pro mea consuetudine breuiter simpliciterque dixi, iudices, ea confido probata esse omnibus. Quae autem remota
a mea iudicialique consuetudine, et de hominis ingenio et communiter de ipsius studio locutus sum, ea, iudices, a
uobis spero esse in bonam partem accepta; ab eo qui iudicium exercet, certo scio). (Arch. 32) 217 Vide citação direta em p. 98. 218 “Chamamos disposição, porém, a perfeição constante e absoluta de corpo e de alma em alguma matéria, a percepção de alguma virtude ou de alguma arte, ou ainda um conhecimento ou uma aptidão conquistada pela
dedicação e pela diligência, não dada pela natureza” (Habitum autem [hunc] appellamus animi aut corporis
constantem et absolutam aliqua in re perfectionem, ut uirtutis aut artis alicuius perceptionem aut quamuis
scientiam et item corporis aliquam commoditatem non natura datam, sed studio et industria partam. (Inv. 36;
Tradução de nossa lavra) 219 “A aplicação é, no entanto, a assídua e veemente dedicação a uma matéria, como a filosofia, a poética, a
geometria e as letras, associada a uma grande volúpia (Studium est autem animi assidua et uehementer ad aliquam
rem adplicata magna cum uoluptate occupatio, ut philosophiae, poeticae, geometricae, litterarum). (Inv. 36;
Tradução de nossa lavra)
127
em que Cícero menciona a facilidade com que Árquias improvisa versos magníficos como se
os tivesse escrito previamente e a copiosidade com que bisa em outras palavras os mesmos
fatos, permitindo-nos entrever uma certa copia rerum et uerborum e uma firma facilitas220
poéticas. Não é fora de lugar considerar essa possibilidade, haja vista o fato mencionado por
Clark (1977, p. 21-2)221 de que os poetas recebiam a mesma educação dos oradores, isto é,
passavam primeiramente pela educação familiar, depois eram encaminhados ao mestre de
gramática, para então assistirem às aulas de retórica, o que é confirmado por em Ovídio em Tr.
IV, 10, 15-40.222 O artista, após longa e diligente aplicação à sua técnica, a domina a ponto de
ser capaz de contar de variegadas formas um mesmo evento sem comprometer-lhe o conteúdo.
Pode-se dizer também que o episódio ilustra que a facúndia é conquistada quando aliamos a
facilidade em aprender à dedicação (studium) e à disposição (habitus), formando, assim, uma
espécie de tríade que potencialize o ingenium (RUCH, 1958, p. 196-198). Em resumo, Cícero
procura enfatizar que Árquias é um virtuose na criação de versos graças a seu ingenium, mas
também a sua ampla disposição (habitus) e sua perseverante dedicação (studium), coisas que o
colocam entre os virtuosos como Marco Pórcio Catão, Cipião Africano, Gaio Lélio e Lúcio
Fúrio, homens que se consagraram à poesia, e que revelam o papel da exercitatio na imagem
que Cícero tenta imprimir no ânimo dos juízes.
Chegamos assim ao final do discurso falando sobre o componente aprimorado,
aperfeiçoado ou, nos dizeres de Cícero, modelado na personalidade de Árquias, imagem e
semelhança do poeta ideal ciceroniano no Pro Archia. Mas existe uma passagem no discurso,
até aqui posposta, sintetizadora e representativa de tudo o que Cícero defendeu no seu discurso:
o parágrafo quinze.
Quaeret quispiam: "Quid? Illi ipsi summi uiri, quorum uirtutes litteris proditae sunt, istane doctrina, quam tu effers laudibus, eruditi fuerunt?"
Difficile est hoc de omnibus confirmare, sed tamen est certe quod
respondeam. Ego multos homines excellenti animo ac uirtute fuisse, et sine doctrina naturae ipsius habitu prope diuino per se ipsos et moderatos et
grauis exstitisse, fateor: etiam illud adiungo, saepius ad laudem atque
uirtutem naturam sine doctrina quam sine natura ualuisse doctrinam. Atque
idem ego contendo, cum ad naturam eximiam atque inlustrem accesserit ratio quaedam conformatioque doctrinae, tum illud nescio quid praeclarum ac
singulare solere exsistere. (Arch. 15)
Poder-se-á perguntar: ‘Pois quê? Porventura se formaram com esta cultura que
tanto enalteces aqueles mesmos eminentes vultos cujas virtudes as letras
220 Vide definição em p. 76. 221 Vide p. 32 e p. 64-5. 222 Vide nota 56.
128
deram a conhecer?’ Seria difícil afirmá-lo quanto a todos, mas é seguro o que
vou responder: reconheço ter havido inúmeros homens de superior espírito e virtude, mas sem instrução, que por si próprios se mostraram morigerados e
austeros como por divina propensão natural. Também acrescento: mais vezes
importaram para o louvor da virtude dons naturais sem cultura do que a cultura
sem os dons naturais. E posso ainda asseverar o seguinte: quando a distintos e excelentes dons naturais se junta uma certa instrução e formação cultural, não
sei que possa existir de mais preclaro e singular.
Como que no ponto alto do discurso, na centralidade do texto, Arch. 15, Cícero
contrapõe a natureza e a cultura, ambos motivos pelos quais o poeta deve ser absolvido, pelos
quais ele é visto como um grande poeta e pelos quais se coloca entre os homens mais virtuosos
da República. Essa tão valiosa e rara cultura é posta discretamente como contraponto artificial
ao conceito de natura, estabelecendo a síntese que, em nossa visão, permeia a representação
ciceroniana do poeta no Pro Archia. O arpinate contrapõe natura e doctrina, noções
pouquíssimo citadas no decorrer do discurso, criando poliptoto antitético que ressalta a relação
de complementaridade de ambas.223 Para chegar, então, a um mais alto nível racional, o homem
empreende um esforço no sentido de melhorar suas faculdades congênitas, pois existe o instinto
do conhecer, cujo fim é a humanitas. Pelo que nos foi mostrado no discurso, Cícero enxerga
duas maneiras de propiciar à razão um aperfeiçoamento em direção à excelência: a primeira é
um movimento da própria razão, o qual constitui o impulso inato ao conhecimento, no sentido
de buscar a observação e o entendimento das coisas, a segunda é de enriquecimento voluntário
e consiste no estudo e na aprendizagem para que a mente humana possa aguçar-se e
desenvolver-se para além dos atributos naturais (GAOS SCHMIDT, 1993, p. 31). Neste sentido,
a humanitas relaciona-se a tanto doctrina quanto a natura. Designa um saber elevado que deve
ser utilizado a serviço de um propósito e está relacionado à participação ativa e pessoal do
sujeito na sua formação, ao interesse em desenvolver-se, exigidos pela sua própria natureza.
Acrescenta o estudioso (1957, p. 184) que as expressões ad humanitatem informari224 e
conformatio doctrinae225 designam esse aperfeiçoamento da natureza humana pelo estudo das
artes liberais e da filosofia. A doctrina, portanto, é tornar imediatamente acessível ao homem
aquelas habilidades que algumas vezes se manifestam espontaneamente, mas de modo
acidental. Ela confere ao homem controle firme e real sobre as potencialidades da natureza
humana (UHFELDER, 1966, p. 585).
223 Utilizada oito vezes. Após esse parágrafo, só há mais uma ocorrência de doctrina em Arch. 18, que não se
relaciona com a poesia. 224 Vide citação direta nas p. 95-6 e 109. 225 Vide citação direta na página anterior.
129
Há uma referência que parece trazer consigo uma proposta de justa proporção entre
dois extremos, natura e doctrina, como afirmação do racional sobre o irracional e indício da
superioridade do meio termo em relação aos extremos. A natura e o ingenium por si próprios,
embora tenham de ser necessariamente propícios ao desenvolvimento, ainda pertencem ao
campo do instintivo, portanto devem ser cultivados pela doctrina ou pelo studium, que
representa tudo que está no âmbito da cultura, da convenção e da racionalidade e que distingue
o homem dos demais seres. O ideal a ser alcançado reside, como vimos, na perfeita harmonia
entre uma natureza favorável e uma cultura modeladora, a qual o levará à humanização
(humanitas). O fato de contarmos com poucas recorrências de termos associados à ars em
comparação com ingenium e natura não nos leva a crer que basta ao poeta possuir os dons
naturais, pois, apesar disso, Cícero dedica boa parte do discurso, dezoito parágrafos no total, ao
elogio da literatura e da cultura humanística (doctrina) como formas de refinamento do espírito,
o que pode ser interpretado como função da arte, segundo vimos. Ao adotarmos tal leitura do
texto, conseguimos visualizar com maior nitidez a poesia como uma ars, ou seja, um ofício
dependente do ingenium, da disciplina, da doctrina, do studium e da exercitatio¸ bem como
reunir sob a mesma designação de liberales a poesia e a oratória. Pensamos também ser possível
harmonizar tanto aqueles que creem ser o ingenium o grande trunfo do poeta para Cícero, como
parece ser o caso de Müller (2001), quanto os que veem a humanitas como grande alvo do
discurso, a exemplo de Arbea (2002). Além disso, podemos perceber que todo o processo de
aculturação contido na noção de humanitas, em que se incluem uma ampla dedicação aos
estudos e o aprimoramento de si mesmo com base na doctrina, de algum modo, presente nas
artes, está vinculado a uma necessidade da própria natureza (natura) do homem, o que se mostra
coerente com os ditames da doutrina dos três elementos.
A contraposição foi utilizada, embora timidamente, em outros momentos do texto,
como quando Cícero frisa a permanência de Árquias no clã de Luculo mesmo após a chegada
à idade adulta em função do seu talento e da sua cultura; quando defende que a instrução
decorrente desses estudos, se aliada aos dons, pode vir a gerar indivíduos singulares e preclaros
como Catão e Cipião Africano;226 quando questiona a deportação de um homem que emprega
seu talento e estudo em prol da glória do povo romano;227 e quando finaliza o discurso
afirmando que versou, de maneira geral, sobre o talento e o ofício de Árquias.228 Esse uso de
studium ou de doctrina acompanhado de ingenium ou natura retoma o caráter de
226 Vide citações de Pro Archia em p. 117-9. 227 Vide nota 112. 228 Vide nota 169.
130
complementaridade que ambas as partes da doutrina dos três elementos possuem, de modo que,
de um lado, temos os dons naturais e, de outro, o trabalho árduo, tese que será utilizada em
outros momentos da literatura latina.
O poeta Ovídio expõe sua visão sobre o papel da arte e da relação que ela possui
com a natureza do artífice. Na Ars amatoria, é dito que a arte suaviza o engenho229 e que a
prática produz os artífices,230 ao passo que, nos Tristes, é delatado o dano ao engenho decorrente
do seu não cultivo, a exemplo do que acontece ao campo. Horácio deixa explícito que ars é um
fruto do trabalho, do suor, abstendo-se do amor e do vinho, mediado pelo mestre enquanto,
como atesta a passagem citada, ingenium é um dom da natureza. Esses dois eixos aparecem na
ode horaciana em que o eu-lírico declara ter recebido de Apolo a denominação, o sopro
(spiritus) e a arte (ars) de poeta,231 bem como na pergunta de Propércio à sua amada sobre se o
seu novo amante pode competir com ele em ingenium e ars.232 Na Epístola aos Pisões de
Horácio, o autor afirma que natureza e arte caminham juntas na gênese literária233 e que o Lácio
não seria mais ilustre pelas armas e valor do que pela sua língua se não custasse tanto aos poetas
gastarem tempo no demorado trabalho da lima.234 Na mesma linha, o autor do tratado Do
Sublime defende que a natureza deve sujeitar-se ao rigor técnico da arte.235 Esses autores, pelo
visto, parecem estar de acordo com que a arte não pode compensar uma deficiência natural de
uma aptidão humana, o ingenium, de modo que o estudo das suas obras fornece aos estudiosos
da Poética Clássica teorizações e conceitos relevantes em torno do poeta e do seu ofício. De
nossa parte, concluímos que Cícero, em grande parte da Defesa, valorizou a participação do
229 “Decerto o engenho é amaciado pela arte gentil” (Scilicet ingenium placida mollitur ab arte). (Ars Am., III,
545; Tradução de nossa lavra) 230 “Somente a prática faz os artífices” (Solus et artifices qui facit, usus). (Ars Am. II, 766; Tradução de nossa
lavra) 231 “Apolo deu a mim o sopro, o nome e a arte de poeta” (Spiritum Phoebus mihi, Phoebus artem carminis
nomenque dedit poetae). (Carm. VI, 29-30; Tradução de nossa lavra) 232 “Que me enfrente em engenho, que me enfrente em arte (Contendat mecum ingenio, contendat et arte”. (Prop.
II, 24b; Tradução de nossa lavra) 233 “Há quem discuta se o bom poema vem da arte se da natureza: cá por mim, nenhuma arte vejo sem rica intuição
e tão pouco serve o engenho sem ser trabalhado: cada uma destas qualidades se completa com as outras e
amigavelmente devem todas cooperar. (Natura fieret laudabile carmen an arte, quaesitum est; ego nec studium
sine diuite uena nec rude quid prosit uideo ingenium; alterius sic altera poscit opem res et coniurat amice”. (Ars
P. 409-415; In: HORÁCIO, 1992, p. 117) 234 “Nem o Lácio não seria mais ilustre pelas armas e valor do que pela sua língua, se não custasse tanto aos poetas
gastarem tempo no demorado trabalho da lima” (Nec uirtute foret clarisue potentius armis quam lingua Latium,
si non offenderet unum quemque poetarum limae labor et mora). (Ars P. 287-290; In: HORÁCIO, 1992, p. 97) 235 “Eu, de minha parte, assevero que ficará provado que as coisas se passam doutra maneira, se examinarmos que
a natureza, embora quase sempre siga leis próprias nas emoções elevadas, não costuma ser tão fortuita e totalmente
sem método e que ela constitui a causa primeira e princípio modelar de toda produção; quanto, porém, a segura prática e uso, compete ao método estabelecer âmbito e conveniência, sem esquecer que, deixados a si mesmos,
sem os preceitos técnicos, sem apoio nem lastro, abandonados apenas a seus ímpetos e arrojo deseducado, os
gênios correm perigo maior, pois, se muitas vezes precisam de espora, muitas outras, de freio”. (Subl. II, 2; In:
ARISTÓTELES et al., 2005, p. 72)
131
ingenium, mas conservou, em alguma medida, a influência das Musas, construindo assim uma
personalidade excepcional pela própria natureza. Um indivíduo especial, mas também
mistificado, que deve equilibrar atributos naturais e modelação pela cultura. Nossa hipótese
com relação à exercitatio é de que ela pode constituir um elemento relevante na concepção do
poeta ideal na medida em que lhe confere uma copia rerum et uerborum e uma firma facilitas
capazes de produzir improvisos impressionantes a ponto de serem considerados divinos. O
poeta ingeniosus também lapidado pela prática e pelo exercício, embora, no contexto do Pro
Archia, esse elemento não tenha se referido expressa ou nominalmente ao poeta. Portanto, pode-
se dizer que o texto contribui com a reflexão sobre a poesia ao trazer um olhar mais pragmático
à figura e ao ofício do poeta na sua época, um olhar que traz o próprio homem e a sua
humanidade ao centro das formulações, posição posteriormente retomada por Horácio, por
Quintiliano e, segundo Müller (2000, p. 332), por toda a tradição literária até a modernidade.
4 CONCLUSÃO
132
O objetivo primordial de nosso estudo foi evidenciar a doutrina dos três elementos
na construção ideal do summus orator e do summus poeta em De oratore I e em Pro Archia.
No que respeita ao orador ideal, vimos que, de fato, as considerações de Crasso e Antônio são
permeadas pelas noções de talento, teoria e prática. O orador perfeito deve apresentar, de saída,
dons como inventividade, sagacidade e uma certa facilidade nas exposições e explicações, que
são da ordem do ingenium natural, próprio de uma atividade pública e cotidiana, segundo diz
Müller (2001, p. 330), bem como uma boa memória, uma boa aparência, uma boa voz, um bom
fôlego, um bom gestual, que são da ordem da natura.236 Em segundo lugar, deve dedicar-se ao
estudo de inúmeras matérias, de modo a adquirir uma omnium rerum scientia, uma doctrina
toda baseada nas artes liberais, que o levarão a tornar-se também um governante perfeito e um
pensador superior aos filósofos. Segundo as personagens do diálogo, o orador que mais se
aproximou da perfeição foi Crasso, a quem faltou o tempo livre (otium) para aplicar-se ao
conhecimento.237 A perfeição, para eles, é alcançada ou aproximada apenas quando um orador
reúne esses três elementos. O poeta ciceroniano, construído a partir da figura de Árquias,
constitui-se principalmente, no talento, no estudo, mas também, podemos dizer, na prática. É
preciso que tenha uma engenho veloz (celeritas ingenii), precoce e inventivo, copioso em
palavras e matérias (copia rerum et uerborum), receptivo ao entusiasmo das Musas (diuino
quodam spiritu inflari), atributos que o aproximam do ingenium inspirado, de uma
personalidade excepcional excessivamente dotada, em contato com o sagrado (Müller, op. cit.,
ibid.).238 Entretanto, esse engenho deveras dotado deve ser atenuado pela dedicação ao estudo
da arte, porque o poeta, para alcançar a perfeição, deve ter a natureza modelada pela educação,
uma educação humanizadora que o levará ao pico da virtude.239 A prática, se é que ela aparece,
pode ser apenas subentendida como responsável pela capacidade de improvisação do poeta.240
Conclui-se que o poeta e o orador ciceronianos, em estado de perfeição, guardam semelhanças.
A expectativa inicial de encontrarmos aspectos calcados nessas três noções que ora
aproximassem, ora distanciassem poeta e orador, nos levou a propor como objetivo secundário
apontar no que se diferenciam e no que coincidem – daí decorre a natureza mais descritiva e
expositiva que conclusiva e contestadora dessa etapa. Partindo da similaridade, com relação aos
dons que compõem a natura e o ingenium, podemos dizer, com base nos textos, que poetas e
oradores precisam apresentar, já na infância, inventividade, facilidade para aprender, memória
236 Vide p. 47-62 237 Vide p. 83-5. 238 Vide p. 98-101. 239 Vide p. 118-121. 240 Vide p. 117.
133
prodigiosa e uma espécie de agilidade nos reflexos da mente, caracteres trazidos do “berço” e
presentes em ambos os textos. Essas características estariam respectivamente ligadas, no
orador, à invenção, ao aprendizado, à fixação dos preceitos retóricos, dos argumentos e
narrativas, e à agilidade no improviso oratório. No poeta, temos poucas evidências do uso da
docilitas, mas depreendemos que a inventividade lhe serve para encontrar argumentos poéticos
para compor, que a memória talvez serviria para guardar os preceitos de arte poética, preceitos
esses visíveis, por exemplo, na Epístola aos Pisões de Horácio e na Poética de Aristóteles, e a
celeritas mentis serviria para improvisar os versos quando necessário. No outro polo, se
pudéssemos apontar uma distinção entre essas figuras, com base no que foi visto, seria a
necessidade de o poeta ter o espírito ventilado por uma espécie de sopro divino (furor poeticus).
Mas as afirmações de Cícero que seguem essa linha de apelo ao “sobrenatural” parecem-nos
oriundas da dificuldade de explicar a enigmática atividade do poeta.
Sobre esses atributos pesará a lima do studium e da doctrina, que modelará o artífice
do discurso e do poema à imagem e semelhança da perfeição, que residiria na humanitas. Esse
conhecimento e esse trabalho permitem, diz Orban (1957, p. 184), que o intelecto se desenvolva
quanto à capacidade de discernimento, de agudeza nos raciocínios, de julgamento, de
estimularem a curiosidade intelectual, além de possibilitarem o senso de harmonia, o
aperfeiçoamento do gosto, a ponto de fazer o homem modelar a si mesmo à luz de um ideal
humano exigido pela natureza. Com relação ao poeta, Cícero o coloca, na maior parte do
discurso, na posição de produtor dessa cultura modeladora de que se servirá o orador. O
elemento complementar, cujo papel seria de aperfeiçoar os dons naturais do aspirante a poeta,
é proposto com muita discrição, servindo-se o autor de studium e de doctrina, noções mais
amplas e abstratas que ars. Mesmo assim, decerto devido à ocasião de um discurso jurídico,
essa parte da idealização não foi trabalhada. Embora a descrição da erudição de Árquias esteja
atrelada à estratégia de explorar sua suposta natureza divina, o orador de Arpino deixa entrever
que o poeta também é alguém que se dedica a um ofício, e não apenas dá vazão ao que é ditado
pelas Musas.241 Neste sentido, fica apenas a hipótese de que a natureza e o caráter do poeta
seriam aperfeiçoados na mesma medida em que ele se aplicava ao seu ofício, como corolário
do poder humanizador das suas narrativas. A erudição do orador, bem como o seu caráter
modelador, por outro lado, é bem mais trabalhada e visível, decerto por conta do gênero do De
oratore. Crasso, se não delineia, pelo menos aponta o caminho que deve trilhar o orador que
pretenda superá-lo e alcançar a perfeição oratória: uma vez que oradores romanos, no geral,
241 Vide p. 105-116.
134
apresentam uma boa natureza e se dedicam bastante a adquirir experiência no fórum, eles
devem investir seu otium no estudo das artes liberais e da filosofia, conhecimentos que lhes
faltam para atingir um patamar ainda mais elevado no seu campo de atuação. O corolário de tal
dedicação seria, como vimos, a humanitas.242
Em Pro Archia, a relação entre poeta e exercitatio pode ser apenas presumida,
entrevista. Isso ocorre porque o texto ciceroniano diz apenas que Árquias é capaz de improvisar
versos com espantosa proficiência, mas cala quanto à origem desta. Desse modo, resta-nos
considerar a possibilidade de que a facilidade no improviso do poeta grego e, portanto, do
summus poeta, seja resultado de um intenso treinamento, de que eles precisam pôr em prática
o conhecimento adquirido junto a um mestre para que chegassem à perfeição. É possível,
todavia, que a necessidade de omitir esse aspecto da educação do poeta tenha sido motivada
pela estratégia da defesa de estabelecer uma diferença fundamemental entre poeta e orador, pelo
menos no recorte que estabelecemos: a exercitatio foi colocada como própria à retórica e outras
artes corriqueiras, não ao divino ofício do summus poeta. Cícero deixa isso claro, no início da
Defesa, quando diz que a poesia se distingue das outras artes que estão fundadas sobre ratio e
disciplina.243 Se não perdermos de vista a estratégia retórica de valorização da personalidade
do poeta, descrita como agraciada pelo sopro das Musas e nascida sob o signo de Orfeu, talvez
nos esclareça esse ponto. Num contexto como esse, pouco acresce aproximar o idealizado
Árquias dos demais artífices que precisam de um intenso estudo e trabalho para chegarem à
excelência terrena das suas técnicas práticas. Árquias, um poeta das mais altas realizações,
precisa mostrar que está no mesmo patamar de virtude moral que seus julgadores e, para tanto,
poucos caminhos seriam tão convenientes quanto a insistência na ideia de moralidade inerente
ao réu.244 Ao contrário do poeta, o orador ciceroniano, em De oratore, preconizado por Crasso,
é alguém que, além das evidentes atividades orientadas pelo mestre de retórica, deve se dedicar
com veemência à atuação prática e à imitação de personagens do fórum.245 Esse é, inclusive,
um traço distintivo da trajetória profissional de Crasso: ele muito aprendeu porque muito
observou. Desde cedo, acostumado a acompanhar seus pais, sua oratória foi moldada pela
experiência judicial e pela imitação dos grandes oradores, não pelos conselhos de mestres de
retórica grega. Mas o excesso de tempo dispendido nos tribunais e nas tribunas furtou-lhe o
242 Vide p. 66-9. 243 Vide p. 93-4. 244 Vide p. 102-4. 245 Vide p. 76-83.
135
ócio necessário ao estudo das artes liberais e da filosofia. Neste sentido, o caso de Crasso
demonstra, a um tempo, a forma como o frágil equilíbrio entre os elementos da educação técnica
pode ser comprometido e o quão fugaz é o objetivo do atingir a perfeição nessas artes.246
Ao fim e ao cabo, podemos fazer algumas considerações, à guisa de conclusão e a
título de encerramento. Pro Archia, mesmo recorrendo à tradição que imputa a criação poética
ao divino, na idealização de uma poética construída a partir da pessoa do réu Aulo Licínio
Árquias, utiliza-se de noções de natureza e de artifício vazadas nos termos ingenium, natura,
studium e doctrina, ligados à doutrina dos três elementos, presente não apenas nos demais textos
de Cícero, mas também nos de outros autores, sobretudo, posteriores. A hipótese de que a
exercitatio é requisito para a idealização do summus poeta é válida se considerarmos o
improviso proficiente de Árquias um fruto de sua dedicação diligente à prática poética. De
oratore prevê uma idealização do orador fundamentada nas noções de natureza (natura,
ingenium), teoria (doctrina, scientia) e prática (exercitatio, usus). As semelhanças do
vocabulário de que se serviu Cícero para idealizar essas duas figuras (poeta e orador) devem-
se à utilização de um mesmo jargão técnico para descrevê-las, o das artes, e as divergências, ao
gênero, à ocasião e à estratégia retórica do orador.
5 BIBLIOGRAFIA
246 Vide p. 83-5.
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