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Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Letras – Mestrado do Centro de Letras e Comunicação da Universidade Federal de Pelotas, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Letras – Literatura Comparada.
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS
CENTRO DE LETRAS E COMUNICAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS – MESTRADO
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA COMPARADA
Dissertação de Mestrado
AS IDEIAS RACIAIS NA OBRA DE MONTEIRO LOBATO:
FICÇÃO E NÃO FICÇÃO
Rafael Fúculo Porciúncula
Pelotas, 2014
Rafael Fúculo Porciúncula
AS IDEIAS RACIAIS NA OBRA DE MONTEIRO LOBATO: FICÇÃO E NÃO FICÇÃO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras – Mestrado do Centro de Letras e Comunicação da Universidade Federal de Pelotas, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Letras – Literatura Comparada.
Orientador: Prof. Dr. Alfeu Sparemberger
Co-orientador: Prof. Dr. Uruguay Cortazzo González
Pelotas, 2014
Dedico este trabalho à minha amada esposa Siane
Bianchi Porciúncula, por fazer parte de mim, por ser
tudo o que eu sempre sonhei e tudo que eu quero
para toda a minha vida, por ser o impulso que me
lança em direção aos nossos sonhos, a luz que me
guia, a água que bebo, o ar que respiro, por ser o
grande amor da minha vida.
Agradecimentos
À minha esposa, pelo apoio incondicional, pelo colo nos dias exaustão, por ter
sido a força que me manteve em pé nos momentos de aflição, pela compreensão
mesmo nos dias e nas noites que sacrifiquei, por ter sido minha motivação, porque
sem ela nada disso teria sido possível.
À minha mãe, por ter sido, durante toda a vida, um espelho de garra e de
coragem e por ter me ensinado que a vida é feita de batalhas, que ora se ganham
ora se perdem, mas que a vitória só é alcançada com empenho e perseverança.
Ao meu pai, que mesmo não estando mais presente entre nós, certamente
estará orgulhoso por minha conquista, por ter me ensinado a encarar a vida com
humildade e caráter.
Ao meu orientador, Alfeu, pelas aulas excelentes, pela amizade, pela
paciência e compreensão de sempre, por acreditar na minha capacidade e na
viabilidade desta pesquisa.
Ao meu co-orientador, Uruguay, pela amizade, por ter aberto as janelas da
minha vida para o mundo encantado da literatura, pela paciência com os infindáveis
e-mails, por ter guiado o meu olhar para uma temática tão apaixonante e humana.
Resumo
PORCIÚNCULA, Rafael Fúculo. As ideias raciais na obra de Monteiro Lobato: ficção e não ficção. 2014. 199 f. Dissertação (Mestrado em Letras - Literatura Comparada) - Programa de Pós-Graduação em Letras, Centro de Letras e Comunicação, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2014. A discussão suscitada nos últimos anos a respeito da possível presença de ideais preconceituosos nas produções do escritor paulista Monteiro Lobato (1882-1948) instigou a análise de seu ―pensamento racial‖, com o intuito de averiguar se, de alguma maneira, o seu discurso não ficcional dialoga com as representações dadas à mesma temática em suas criações literárias. O estopim da polêmica supracitada foi a acusação, relatada em Parecer do Conselho Nacional da Educação (CNE), de que a obra pertencente ao Programa Nacional Biblioteca da Escola, Caçadas de Pedrinho (1933), de Monteiro Lobato, representava o ―negro‖ e o ―universo africano‖ de maneira estereotipada e preconceituosa. Por conseguinte, diante das múltiplas interpretações constatadas, essa investigação buscou analisar a evolução do pensamento lobatiano sobre a questão racial de acordo o contexto histórico-social em que Lobato viveu e as ideias às quais se afiliou. Assim, o exame de seus enunciados revela distintas associações a teorias sobre o tema, ora com uma visão crítica sobre a miscigenação, ora com a aderência aos projetos sanitaristas ou eugenistas do início do século XX. Através de suas declarações, observou-se que o criador do ―Sítio do Picapau Amarelo‖ acreditava na existência de uma superioridade branca em relação às outras ―raças‖, relacionando-a, por diversas vezes, a um suposto arquétipo intelectual, cultural e fisionômico. Paralelamente, examinou-se suas narrativas literárias desde uma perspectiva que visasse averiguar como o racialismo está representado em seu discurso ficcional. Por conseguinte, constatou-se que os ideais raciais presentes na obra literária do escritor coincidem com suas concepções sobre o tema. Seja através das palavras do narrador, seja pela caracterização física e psicológica dada às personagens ou pelas relações estabelecidas entre elas, nota-se que o ―negro‖ e o ―mestiço‖ são, constantemente, associados à subalternidade, à fealdade, à ignorância e ao atraso cultural, em oposição à autoridade, à beleza, à inteligência e à cultura avançada do ―branco‖. Palavras-chave: Literatura Brasileira; Monteiro Lobato; Racialismo.
Abstract PORCIÚNCULA, Rafael Fúculo. The racial ideas in the work of Monteiro Lobato: fiction and nonfiction. 2014. 199 f. Dissertation (Master of Arts in Comparative Literature) - Programa de Pós-Graduação em Letras, Centro de Letras e Comunicação, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2014. The discussion raised in recent years about the possible presence of prejudicial ideals in the productions of Monteiro Lobato (1882-1948) prompted the analysis of his "racial thinking" in order to ascertain whether, somehow, his nonfictional discourse is linked with the representations given to the same theme in his literary creations. The reason of the controversy aforementioned was the charge reported in the National Education Council Report (CNE), that the work which belongs to the National School Library Program, Caçadas de Pedrinho (1933), written by Monteiro Lobato, represented the ―black‖ and ―African universe!‖ in a stereotyped and prejudicial way. Therefore, given the multiple interpretations noted, this study aimed at analyzing the evolution of Lobato‘s thinking about race according to historical and social context in which he lived and the ideas to which he was affiliated. Thus, the examination of his enunciations reveals distinct associations to theories on the subject, sometimes with a critical view of miscegenation, and sometimes with adherence to the sanitary or eugenicists projects of the early twentieth century. Through his statements, it was observed that the creator of Sítio do Picapau Amarelo believed in the existence of white superiority over other ―races‖, relating it several times to a supposed intellectual, cultural and physiognomic archetype. In parallel, we examined their literary narratives from a perspective that aims at ascertaining how racialism is represented in his fictional discourse. Therefore, it was found that racial ideals present in the literary work of the writer coincides with his views on the subject. Both through the words of the narrator and the physical and psychological characterization given to the characters, or the relationships established between them, it is possible to note that the ―black‖ and ―mestizo‖ are constantly associated with the concepts of subordination, ugliness, ignorance and cultural backwardness, as opposed to authority, beauty, intelligence and advanced culture of the ―white‖. Keywords: Brazilian Literature; Monteiro Lobato; Racialism.
Sumário
1 Considerações iniciais................................................................................. 9
2 Caçadas de Pedrinho e a polêmica............................................................. 13
2.1 Os Pareceres do Conselho Nacional da Educação................................ 13
2.2 As distintas interpretações e a polêmica................................................. 18
3 As discussões raciais entre o final do século XIX e início do século XX 51
3.1 Produção literária e sociedade................................................................. 51
3.2 O contexto abolicionista e republicano................................................... 54
3.3 A questão imigratória e o “branqueamento”........................................... 62
3.4 A teoria de purificação da raça................................................................. 67
3.5 A eugenia brasileira................................................................................... 71
4 As ideais raciais de Monteiro Lobato I....................................................... 82
4.1 As primeiras epístolas............................................................................... 82
4.2 Lobato articulista....................................................................................... 91
4.2.1 “Uma velha praga”.................................................................................. 92
4.2.2 “Urupês”.................................................................................................. 94
4.2.3 A questão da guerra............................................................................... 100
4.3 Primeiros contos........................................................................................ 102
4.3.1 “A vingança da peroba”......................................................................... 102
4.3.2 “Bocatorta”.............................................................................................. 104
4.4 A união aos projetos sanitaristas e a ressurreição do Jeca Tatu......... 106
4.4.1 Sanear é preciso...................................................................................... 106
4.4.2 Jeca Tatu – a ressurreição..................................................................... 111
4.5 Negrinha..................................................................................................... 113
4.5.1 A beleza angelical branca...................................................................... 113
4.5.2 “O jardineiro Timóteo”........................................................................... 116
4.5.3 “O bugio moqueado” e “Os negros”.................................................... 118
5 As ideais raciais de Monteiro Lobato II...................................................... 124
5.1 O presidente negro ou O choque das raças........................................... 124
5.1.1 Os Estados Unidos em 2228.................................................................. 125
5.1.2 Um grito de guerra pró-eugenia............................................................. 137
5.1.3 Estados Unidos e Ku-Klux-Klan............................................................ 144
5.2 O Sítio do Picapau Amarelo...................................................................... 146
5.2.1 O negro: subalternidade, fealdade, ignorância e atraso cultural....... 147
5.2.2 O branco: autoridade, beleza, inteligência e cultura avançada......... 162
5.2.3 O Sítio e seu criador............................................................................... 171
5.3 Últimas impressões................................................................................... 174
5.3.1 Zé Brasil................................................................................................... 175
5.3.2 O enorme canteiro baiano e o candomblé........................................... 178
6. Considerações finais................................................................................... 183
Referências....................................................................................................... 194
9
1 Considerações iniciais
Iniciou-se, no ano de 2010, uma discussão a respeito das ideias raciais
presentes na obra do escritor paulista Monteiro Lobato (1882-1948). No referido ano,
o Conselho Nacional da Educação (CNE) relatou a acusação de Antônio Gomes da
Costa Neto, de que a obra Caçadas de Pedrinho (1933) representava o ―negro‖ e o
―universo africano‖ de maneira preconceituosa e estereotipada. O motivo da
denúncia teria sido a inserção da obra literária no Programa Nacional Biblioteca da
Escola (PNBE) e sua consequente distribuição nas escolas públicas do Distrito
Federal. O documento foi divulgado nos meios de comunicação e, como resultado,
provocou a manifestação de diferentes vozes sociais a respeito do seu teor. Logo,
formou-se uma polêmica em torno da questão devido às diferentes interpretações
tanto do objetivo do Parecer quanto do próprio pensamento racial de Lobato.
A investigação que aqui se desenvolve nasceu em virtude dessa controvérsia.
Assim, inicialmente, analisa-se o conteúdo apresentado na acusação de Costa Neto
e suas alterações por solicitação do Ministério da Educação (MEC).
Sequencialmente, busca-se examinar os diferentes posicionamentos gerados em
função da denúncia, com o intuito de perceber quais são os argumentos utilizados
como concordância ou oposição às solicitações relatadas pelo CNE. Além disso,
averiguam-se quais são as interpretações existentes sobre os ideais raciais no
pensamento de Lobato e das representações acerca da mesma temática presentes
em suas obras literárias. As declarações analisadas não se restringem a
pesquisadores da área literária, mas englobam as opiniões de diferentes segmentos
sociais, ligados aos mais variados interesses. Essa escolha contribui para a
compreensão de que a obra literária não se encerra entre as paredes acadêmicas,
mas circula entre as distintas camadas da sociedade.
Em seguida, com base nos estudos de Antonio Candido (2000) e de Daniel
Madelénat (2004) sobre a relação entre a literatura e a sociedade, objetivou-se
verificar de que maneira esses dois campos dialogam no momento da elaboração do
produto artístico. Com isso, constatou-se a legitimidade do estudo que vise à
10
comparação entre as concepções de um autor sobre a problemática racial e a
representatividade ficcional desses princípios em sua literatura. Dada essa
viabilidade, resgata-se o final do século XIX e início do século XX, com o esforço de
perceber qual o contexto histórico-social em que Monteiro Lobato desenvolveu seus
ideais. Período de distintas inovações no terreno científico, principalmente na esfera
da biologia, além de câmbios políticos e de práticas sócio-laborais no Brasil, o
recorte temporal apresenta debates intensos sobre a questão da ―raça‖.
Expõe-se, assim, as discussões referentes à problemática da escravidão e
dos caminhos trilhados até a promulgação da Lei Áurea e a libertação dos escravos.
Ademais, apresenta-se a realidade social com a qual se depararam os ex-escravos
quando libertados e a sua trajetória visando à inserção em uma sociedade que, a
muito, já se organizava de forma hierárquica. A respeito da racialidade brasileira,
examinam-se as diferentes teorias que ora questionam a mestiçagem ora a tomam
como solucionista se guiada pelas concepções corretas, ou ainda, formulações
científicas que visam o aperfeiçoamento da ―raça‖ de acordo com a interferência nas
uniões, nos direitos de procriar e com a tentativa de controle de fatores
supostamente degenerativos. Para os fins destacados, toma-se como fundamento
os trabalhos de Thomas Skidmore (2012), de Pietra Diwan (2007) e de Nancy
Stepan (2005), aos quais se intercalam outros estudos que, em diálogo com os
citados, contribuem para a formação de um panorama consistente sobre aquele
período, no que se refere à temática central desta pesquisa.
Depois de caracterizado o cenário que se tinha proposto, esta investigação
centraliza a sua análise em Monteiro Lobato, mais precisamente em seus
enunciados a respeito da esfera racial. Opta-se por não separar, em sua totalidade,
o exame de seu discurso não ficcional da apreciação de sua produção literária, não
por uma equiparação da natureza desses textos, mas por considerar-se mais
favorável para a avaliação do possível diálogo entre eles. Entretanto, no decorrer do
texto, procura-se demarcar essa distinção discursiva, ou seja, busca-se salientar se
as manifestações em análise se referem à própria voz de Lobato ou se está inserida
em uma obra literária e a sentença derive de uma entidade ficcional, como o
narrador ou alguma personagem. Além disso, no mesmo viés organizativo, esforça-
se por abordar esses materiais seguindo uma ordem cronológica de produção, com
o intuito de perceber a modificação ou conservação de um ideal, tanto no nível
11
artístico quanto nas suas concepções pessoais. Obviamente, algumas obras são
constituídas por textos escritos em datas que não coincidem com a de sua
publicação e, por conseguinte, sempre que possível, procura-se demarcar o período
em que foram produzidas.
Para o exame do pensamento racial lobatiano, recorre-se às suas produções
não literárias, com a finalidade de constatar quais foram as declarações feitas pelo
escritor sobre o assunto. Como objetos pertinentes a essa averiguação, utiliza-se
materiais de caráter jornalísticos, como artigos ou crônicas de sua autoria e
entrevistas cedidas à imprensa, além de prefácios elaborados para outrem e,
também, sua correspondência pessoal. Nota-se, desde agora, a bipartição entre o
que Monteiro escreveu para se tornar público e o que foi elaborado com finalidade
particular. Ainda assim, mesmo dentro do conjunto de textos, inicialmente, tidos
como privados, encontra-se uma nova divisão, pois a grande maioria dessas cartas
foi publicada com o consentimento de seu criador, mas algumas delas apenas foram
divulgadas após sua morte, através da disponibilização das mesmas em instituições
de preservação da memória não somente do remetente, mas também de seus
interlocutores. Essa cisão contribui para a constatação de qual imagem Lobato
gostaria que fosse pública e qual preferia que se mantivesse em sua
confidencialidade.
Nascido no final do período escravista, Monteiro cresceu em meio às
mudanças decorrentes da alteração de regime laboral e da alteração no campo
político. Diante da realidade social em que estava inserido, o escritor paulista
presenciou as diferentes teorizações sobre a questão racial e este trabalho procura
constatar como ele encarou cada uma dessas formulações, se com aceitação ou
negação. Ademais, objetiva-se perceber se o escritor optou por afiliar-se a alguma
dessas correntes de pensamento e defendê-la ou por manter-se imparcial em
relação às discussões sobre o tema, as quais permeavam os meios intelectuais
daquela época.
No âmbito literário, primeiramente, analisa-se suas criações para adultos,
constituídas por alguns contos e por um único romance. Dentre as narrativas curtas,
filtram-se apenas as que apresentam características relevantes para esta pesquisa.
Ainda que a questão racial não ocupe espaço central na maioria dessas produções,
a perspectiva de análise que se adota é guiada pela síntese do enredo narrativo e a
12
convergência para a esfera racial, com o propósito de destacar se a temática exerce
alguma função para a economia do texto. Por outro lado, o único romance lobatiano
– desde seu título, O presidente negro ou O choque das raças (1926) – apresenta de
maneira efetiva o conteúdo que conduz essa investigação. Antes de qualquer
análise, a titulação antecipa que a questão racial ocupará papel central na narrativa.
Para todas as manifestações ficcionais de Monteiro Lobato, considera-se a
caracterização racial dada às personagens, seja pela voz do narrador ou pela
descrição feita por outro indivíduo atuante na história apresentada. Ademais, busca-
se o exame das relações entre essas personagens, tendo em conta a configuração
intelectual e psicológica das mesmas, com o propósito de observar como a questão
racial influi no modo de interação dessas personagens. Nessa mesma direção,
contempla-se a literatura infantil de Lobato, que, apesar do elevado número de
obras, se unificam pela relação de continuidade apresentada, tanto no que se refere
aos acontecimentos narrados quanto às personagens que compõem o que se pode
chamar de grupo de protagonistas. Por conseguinte, toma-se esse conjunto como
constitutivo de uma possível grande narrativa do ―Sítio do Pica-pau Amarelo‖, ainda
que, para fins de localização, se faça a referência a cada uma das obras.
Com a mesma perspectiva supracitada, o estudo que se apresenta pretende
observar de que modo a questão racial é apresentada na literatura infantil de
Monteiro Lobato. Para tanto, tenciona-se a análise da representação dada aos
―negros‖, através das figuras de Tio Barnabé e de Tia Nastácia; e aos ―brancos‖, por
intermédio de Dona Benta e seus netos. Obviamente, esse exame se estende a
atuação de outras personagens centrais, como Emília e Visconde de Sabugosa, e
também das secundárias, cuja conduta, de alguma maneira, venha ao encontro dos
objetivos propostos por essa pesquisa.
Assim, fomentado pelas diferentes interpretações sobre as ideias raciais de
Monteiro Lobato e sobre a representação literária do tema, este estudo busca
evidenciar o que o escritor paulista pensava a respeito desse assunto e perceber se
essas concepções pessoais expressas em sua obra não ficcional dialogam com a
aparição da temática em suas produções literárias. Tanto a dissonância quanto a
aproximação entre as duas esferas discursivas são perfeitamente possíveis e, nesse
sentido, o estudo do pensamento racial de Lobato contribuiria para a leitura de suas
obras ficcionais segundo a própria intencionalidade que projetava para as mesmas.
13
2 Caçadas de Pedrinho e a polêmica
2.1 Os Pareceres do Conselho Nacional da Educação
Em 30 de junho de 2010, o Conselho Nacional da Educação (CNE), na
Ouvidoria da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, recebeu uma
denúncia de autoria de Antônio Gomes da Costa Neto, Técnico em Gestão
Educacional e, no momento, mestrando em Educação pela Universidade de Brasília.
O processo gerado, relatado em Parecer aprovado pelo Conselho em 1º de
setembro do mesmo ano (BRASIL, 2010), objetivava solicitar que a Secretaria de
Educação do Distrito Federal se abstivesse da utilização de materiais – sejam eles
didáticos, literários ou de qualquer funcionalidade – que contivessem expressões de
cunho racista.
Na denúncia, o autor apresenta uma análise embasada em seu campo de
pesquisa, a Educação para as Relações Étnicorraciais, da obra infantil Caçadas de
Pedrinho (1933)1, do escritor Monteiro Lobato, na qual declara que a obra citada
apresenta múltiplas passagens que se referem de maneira estereotipada ao negro e
ao universo africano. Além disso, ressalta que esta produção lobatiana é utilizada
como referência em escolas públicas do Distrito Federal, faz parte da coleção
selecionada para o Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) e, por
conseguinte, foi distribuída para as escolas públicas de ensino fundamental.
O Parecer destaca trecho da nota técnica enviada sob aprovação do Diretor
de Educação para a Diversidade, Armênio Bello Schimdt, a qual se mostra a favor
do denunciante. Dentre os pontos analisados, Neto salienta que a editora se
preocupou em enfatizar que o texto apresenta revisão das novas regras de
ortografia e que, referindo-se à parte do conteúdo textual, ainda não existiam leis de
proteção aos animais silvestres, além de a onça pintada não estar em risco de
extinção na época em que a obra foi escrita. De acordo com ele, em consequência,
1 A primeira edição de Caçadas de Pedrinho data de 1933. Entretanto, a análise apresentada se
refere à republicação pela Editora Globo no ano de 2009.
14
caberia a editora responsável inserir uma nota explicativa justificando a presença de
estereótipos na literatura, através da contextualização da obra no período histórico
em que foi produzida. Ademais, mesmo sem deixar de reconhecer a importância da
utilização de clássicos literários na educação, o mestrando apresentou as leis e as
diretrizes que vêm em favor de sua manifestação, em defesa do cumprimento, por
parte do Ministério da Educação (MEC), das normas antirracistas que o próprio
órgão estipula.
Além da solicitação de inserção de nota explicativa, não só em Caçadas de
Pedrinho, mas também em todas as obras pertencentes ao acervo que apresentem
as mesmas características, o requerente considerou necessária a execução de
outras medidas decorrentes da avaliação do processo: primeiramente, a criação de
políticas públicas voltadas aos cursos de ensino superior, visando à formação de
profissionais da educação que estejam aptos a lidar crítica e pedagogicamente com
essa temática; posteriormente, a indispensabilidade de orientação às escolas, por
parte da Secretaria da Educação do Distrito Federal, objetivando o real cumprimento
das Diretrizes Nacionais da Educação para a Educação das Relações Étnicorraciais
e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (BRASIL 2004).
O Parecer 15/2010 destaca que a Coordenação Geral de Material Didático do
MEC, ao ser questionada sobre o assunto, declarou que a obra será lida sempre sob
a supervisão de um professor, dotado de uma experiência leitora, mas não deixou
de afirmar que um dos critérios de avaliação no momento da seleção é a ausência
de preconceitos, estereótipos e doutrinações. Na ―Análise‖ da denúncia, afirma-se
que é passível de compreensão que a adoção de Caçadas de Pedrinho para compor
o acervo do PNBE siga o legado de pôr à disposição de alunos e professores obras
clássicas para o estudo da literatura infantil. Não obstante, considera-se que a obra
supracitada não se enquadra com o método avaliativo anteriormente destacado, pois
as características não foram evidenciadas apenas nessa obra, mas também em
outras produções lobatianas, o que demonstraria que não se trata de um exame de
fragmentos isolados, mas da própria ideologia racial presente nas obras do escritor.
Advoga-se, então, pela necessidade de prevenir a adoção de novos materiais que
não condigam com o princípio de não selecionar obras que possuam estereótipos e
preconceitos de qualquer tipo e, nas seleções subsequentes, de fazer-se cumprir,
pela Coordenação Geral de Material Didático do MEC, as normas estabelecidas.
15
O documento publicado pelo CNE resultou em distintas interpretações, pois,
em princípio, aparentou não expor com clareza alguns de seus propósitos, o que,
por conseguinte, levou seus receptores a diferentes inferências, como, por exemplo,
a solicitação ou não de censura e proibição do uso da obra no contexto escolar.
Devido a tal entendimento ambíguo, o MEC solicitou que o Conselho reexaminasse
a denúncia e seus pormenores, o que acarretou na produção de um segundo
Parecer (BRASIL, 2011), revisto e corrigido. Em seu ―Histórico‖, o Parecer 6/2011
procura esclarecer que a polêmica gerada resultou de más interpretações sobre o
teor do Parecer anterior, pois o documento não objetiva vetar a obra de Monteiro
Lobato. Em contraponto, a relatora, Nilma Lino Gomes, procurou comprovar que
este não havia sido o único entendimento, ao trazer à discussão trecho de nota
enviada ao Ministro da Educação pelo intelectual, político e ativista do Movimento
Negro, Abdias no Nascimento (1914-2011), solicitando a homologação e
cumprimento das orientações do Parecer de 2010 (BRASIL, 2011, p. 2).
No decorrer na ―Análise‖, o novo documento desfaz a ambiguidade referente
à edição da obra de Monteiro Lobato ali reportada, pois a análise direciona-se a
republicação no ano de 2009, pela Editora Globo, a qual se tratava de aquisição
direta no mercado editorial por escola particular do Distrito Federal, enquanto a
inclusão da obra no acervo do PNBE havia sido feita entre os anos de 1998 e 2003,
em edição anterior. Além disso, reelabora alguns trechos anteriormente
apresentados e acrescenta outras fundamentações à discussão, baseando-se em
leis, decretos e convenções que destacam o dever do Estado de promover às
crianças um ambiente vivencial e educacional sem qualquer forma de preconceito ou
discriminação (p. 5).
No anseio de uma base teórica mais eficaz, são aliados à discussão outros
estudos sobre a presença do negro na literatura e sobre as ligações entre literatura
infantil e ideologia. Ademais, busca-se legitimar a representação negativa do negro
nas obras lobatianas com os estudos de Pietra Diwan sobre a história da eugenia,
no qual a historiadora afirma que Monteiro Lobato esteve ligado a projetos de
―purificação racial‖ do povo brasileiro e que as ideias raciais presentes em sua obra
coincidem com as ideologias às quais estava relacionado.
Diferentemente do documento anterior, onde a denúncia se referia mais
propriamente à Secretaria de Educação do Distrito Federal, o Parecer de 2011
16
amplia sua manifestação, conduzindo-a a todo sistema de ensino do país, sob
supervisão do Ministério da Educação. Percebe-se, também, a substituição ou
supressão de alguns termos. Tinha-se como objetivo ―exigir‖ que a editora
responsável inserisse uma ―nota explicativa‖ a fim de dar a conhecer ao leitor os
atuais estudos sobre a presença de estereótipos na literatura (BRASIL, 2010, p.5). O
primeiro termo destacado foi substituído por ―recomendar‖, enquanto o segundo foi
suprimido, mantendo-se somente a referência ao texto introdutório da obra. Foi
citado trecho do ―edital de convocação para inscrição de obras de literatura no
processo de avaliação e seleção para o PNBE‖ para o ano de 2011, no qual é
ressaltado em seu ―Projeto gráfico‖ que:
A biografia do(s) autor(es) deverá ser apresentada de forma a enriquecer o projeto gráfico-editorial e promover a contextualização do autor e da obra no universo literário. Igualmente, outras informações devem ter por objetivo a ampliação das possibilidades de leitura, em uma linguagem adequada ao público a que se destina, e com informações relevantes e consistentes (BRASIL, 2009, p. 15).
Percebe-se um esforço ainda maior, por parte do segundo Parecer, em
demonstrar que suas orientações estão de acordo com a legislação e normas
publicadas e vigentes. Além disso, advoga-se pela contextualização acerca das
circunstâncias histórica, política e ideológica nas quais foram produzidas as obras
literárias, com a finalidade de promover uma leitura fundamentalmente crítica. A
ligação, na obra de Lobato, entre o âmbito literário e fatores externos (históricos,
sociais, políticos, etc.) é fundamentada em estudo da pesquisadora paulista Marisa
Lajolo sobre a ―Figura do negro em Monteiro Lobato‖ (1998), no qual afirma que:
[...] analisar a representação do negro na obra de Monteiro Lobato, além de contribuir para um conhecimento maior deste grande escritor brasileiro, pode renovar os olhares com que se olham os sempre delicados laços que enlaçam literatura e sociedade, história e literatura, literatura e política e similares binômios que tentam dar conta do que, na página literária, fica entre seu aquém e seu além. (LAJOLO apud BRASIL, 2011, p. 8).
Percebe-se que Lajolo, uma empenhada investigadora da vida e da obra do
escritor paulista, evidencia a possibilidade dialógica entre a literatura, mais
especificamente a representação do negro nas produções de Lobato, e os diferentes
âmbitos extratextuais da contemporaneidade lobatiana. Entretanto, apesar do
resgate do trabalho da pesquisadora pelo Parecer 06/2011, ver-se-á,
posteriormente, que o posicionamento de Marisa Lajolo difere das postulações e
acusações apresentadas nos dois documentos encaminhados pelo Conselho
Nacional da Educação.
17
Em maio de 2011, a discussão renovou suas forças quando o jornalista
Arnaldo Bloch publicou, na seção ―LOGO/A página móvel‖ do jornal ―O Globo‖
(Bloch, 2011), trechos da correspondência de Monteiro Lobato com o higienista
Arthur Neiva. Em uma delas, enviada de Nova York, em 10 de abril de 1928, o
escritor faz referência à organização racista norte-americana Ku-Klux-Klan,
declarando a necessidade da existência de uma organização de mesmo fim no
Brasil. Tanto essa como outras declarações retiradas de sua correspondência serão
retomadas e analisadas no decorrer deste trabalho.
No ano seguinte, um mandado de segurança foi encaminhado ao Supremo
Tribunal de Federal (STF) e relatado pelo ministro Luiz Fux, sob autoria de Antônio
Gomes da Costa e do Instituto de Advocacia Racial e Ambiental (IARA), no qual é
questionado o uso de Caçadas de Pedrinho no âmbito escolar. No mês de setembro
do mesmo ano, a primeira audiência de conciliação acabou sem acordo, levando a
decisão ao plenário do STF. Ademais, o IARA entrou com uma ação junto à
Controladoria Geral da União (CGU), em 25 de setembro de 2012, na qual destaca
que uma segunda obra do escritor (Negrinha, 19202), que também fez parte do
acervo do PNBE, contém trechos igualmente preconceituosos. Segundo Humberto
Adami, presidente do Instituto na ocasião, a obra utilizada pelo Programa, publicada
pela Editora Globo, possui uma nota de apresentação que afirma que a obra não é
racista, o que, a seu ver, é uma contradição se comparada ao conteúdo da mesma.
Na continuação, Adami declara que, ―ao contrário do que se diz que queremos
censurar a obra, a obra tem que circular com o esclarecimento para desconstruir o
racismo" (ADAMI apud MENDES, 2012). Para o presidente do IARA, a questão
ultrapassa a esfera literária (ADAMI apud QUESTÃO, 2012), problemática comum
quando entram em discussão duas esferas distintas, como literatura e política. O
resultado dos processos permanece pendente de decisão pelo Supremo Tribunal
Federal.
Humberto Adami põe em discussão um ponto importante para análise: as
inferências tiradas por muitos de que a ideia defendida pelas acusações era a de
censura às obras destacadas, ponto negado pelos acusadores. Por conseguinte,
percebe-se que tal conclusão alcançada pelos opositores serviu, por diversas vezes,
2 A republicação da obra pela Editora Globo foi adquirida pelo Programa Nacional Biblioteca da
Escola no ano de 2009 e distribuída às escolas públicas brasileiras.
18
como argumento-chave para legitimar a sua postura contrária. Torna-se necessário
examinar as diferentes vozes sociais manifestadas e envolvidas no debate,
repetidamente tido como polêmico. Para tanto, analisar-se-á a postura dos meios de
comunicação, bem como declarações e produções de intelectuais e interessados
publicadas em outras fontes digitais ou impressas. Complementarmente, examinar-
se-á uma série de entrevistas feitas pela ―Univesp TV‖, em 2012, as quais procuram
demonstrar as opiniões em conflito no debate gerado. Com mais profundidade,
buscar-se-á centralizar a investigação nas postulações dadas por um dos
entrevistados, a professora e pesquisadora Marisa Lajolo, devido à multiplicidade de
estudos referentes ao escritor.
2.2 As distintas interpretações e a polêmica
As diferentes conclusões e manifestações referentes aos ideais raciais de
Monteiro Lobato e da influência destes em sua produção literária suscitou uma
discussão que perdurou por longo período, pois considerar racista o criador do ―Sítio
do Pica-pau Amarelo‖ pareceu ofensivo a alguns e justo a outros. Estudiosos das
Ciências Humanas e Sociais, imprensa, políticos e interessados apresentaram
diferentes posicionamentos em favor e contra a acusação, dos quais, ao serem
examinados, se pode extrair três pareceres centrais em relação à problemática,
partindo de uma visão analítica mais ampla.
O primeiro deles compartilha as conclusões expostas no Parecer do Conselho
ao destacar uma ideologia racista presente nas obras do autor, legitimada nas
comprovações do íntimo vínculo com o médico paulista Renato Kehl e a Eugenia,
além das declarações feitas a Arthur Neiva e a Godofredo Rangel, as quais serão
analisadas nos capítulos seguintes. O segundo juízo reconhece a presença de
trechos racistas não só em Caçadas de Pedrinho. No entanto, expõe como
argumento que Lobato foi ―filho de sua época‖ e que apenas não se afastou do
pensamento predominante da elite de seu tempo, o que demonstra a ideia de um
determinismo ditado pelo período histórico e pela classe social a que pertencia, onde
o negro ocupava uma posição secundária em relação ao branco. Finalmente, o
último parecer contrapõe as opiniões defendidas pelo relator da denúncia, o qual
considera que a produção literária de Lobato valorizou o negro em um período em
19
que sua posição na sociedade ainda era inferior. De acordo com eles, esse
reconhecimento se deu através da inserção do negro como protagonista em uma de
suas obras, da equiparação de valores sociais e da valorização da cultura popular.
Os manifestos contrários às acusações apresentadas pelo CNE eclodiram
rapidamente após a divulgação do primeiro parecer. A Associação Brasileira de
Literatura Comparada (ABRALIC) se pronunciou em ―Carta Aberta‖ publicada em 5
de novembro de 2010. Segundo a instituição, seu pronunciamento objetivava o
―apoio a entidades e especialistas da área dos estudos literários e culturais que já
haviam intervindo naquele debate ressaltando as mesmas posições‖ (ASSOCIAÇÃO
BRASILEIRA DE LITERATURA COMPARADA, 2010). No parágrafo que dá início ao
documento, nota-se o intuito de demarcar a esfera intelectual em que se insere
aquele posicionamento. Além disso, põe-se em destaque que a apreciação em
evidência é compartilhada por grupos e por sujeitos com aptidões que lhes permitem
um olhar diferenciado sobre os fenômenos literários e culturais, o que, por
conseguinte, demonstraria certa uniformidade nas interpretações dos indivíduos
pertencentes a esse meio. Em seguida, através da apresentação de seis tópicos, a
Associação expõe sua postura frente à problemática, os quais podem ser citados em
sua integridade:
1. nosso repúdio a quaisquer formas de censura às manifestações estético-culturais; // 2. nossa recusa a formas de abordagem da literatura e da arte que se limitem a uma dimensão estritamente conteudística, minimizando a relevância de sua função estética; // 3. nossa rejeição a tendências que submetam os repertórios literários a formas de revisionismo pautadas por propósitos higienizadores de qualquer ordem; // 4. nossa resistência a procedimentos que produzam artificialmente o apagamento da diversidade e complexidade das representações da sociedade presentes na produção literária de qualquer época; // 5. nossa condenação a ações que camuflem as insuficiências do sistema de formação dos professores, julgando reparar tais problemas com notas editoriais ou recomendações pontuais; // 6. nosso desapreço por posições que subestimem a força humanizadora da leitura do texto literário, por sua capacidade de propiciar a experiência do deslocamento do ser humano para além de suas vivências individuais ou grupais, uma das formas relevantes para o combate à ignorância e superação dos preconceitos (Idem, Ibidem).
Percebe-se que, em nenhum dos tópicos, faz-se referência direta ao Parecer
relatado pelo Conselho Nacional de Educação, pois, através do uso de vocábulos
como ―formas‖, ―tendências‖, ―procedimentos‖, ―ações‖, ―posições‖, as afirmações
elencadas se direcionariam a qualquer manifestação que apresentasse tais
características, sem se dirigir de maneira explícita às declarações expostas pela
entidade educacional. Tal procedimento discursivo parece ter sido usado a fim de
20
evitar uma relação direta ao ―Parecer 15/2010‖, mas, obviamente, não deixa de
transparecer essa ligação ao mencionar o motivo da publicação daquela ―Carta
Aberta‖. Vê-se que, em todos os pontos listados, as frases estão marcadas pela
negação a determinadas procedimentos analíticos que supostamente teriam sido
adotados por Antônio Gomes da Costa Neto e o CNE na interpretação da obra
lobatiana.
A primeira observação da ABRALIC é exemplo da linha de análise que
caracterizou as orientações do CNE como tentativas de censura da produção
literária de Monteiro Lobato. Além disso, salienta a exiguidade da apreciação do
fenômeno literário que se detenha na esfera do conteúdo e, consequentemente,
desvalorize sua importância estética e representativa. Nesse viés, ressalta-se o
terceiro enunciado, no qual a Associação frisa sua discordância ao que denomina
―revisionismos pautados por propósitos higienizadores‖. Aparentemente, a sentença
utilizada estaria direcionada ao estudo da obra literária preocupado em localizar
características julgadas como sendo inoportunas e que, por conseguinte, objetive a
limpeza dessas produções ou trechos tidos como inadequados. Não obstante, o
reconhecimento da existência de métodos analíticos guiados por tais tenções,
implicitamente, demonstra considerar legítima a inferência de que, de alguma forma,
a literatura pode estar relacionada à esfera racial e que essa ligação é, no mínimo,
problemática, dada a possibilidade de representação positiva ou negativa do tema.
Além disso, a simples oposição a tais procedimentos não implica, necessariamente,
uma recusa à interpretação de que, na obra de Monteiro Lobato, essas
representações surjam de maneira depreciativa ao negro e ao universo africano.
Pelo contrário, a declaração parece reforçar essa inferência, mas, ao enfatizar a
importância do caráter estético da obra em detrimento de suas outras possíveis
condições, acaba por desvalorizar a complexidade dos diálogos plausíveis da
mesma com essas outras esferas, como a social ou, mais especificamente, a racial.
A supervalorização do âmbito estético gera, por conseguinte, a ideia de
autonomia da produção literária, ou seja, a obra passa a independer de qualquer
ação externa em direção ao texto e o sentido que veicula torna-se único e
imodificável. Esse congelamento hermenêutico impediria, por exemplo, a existência
de releituras das obras literárias desde uma perspectiva contemporânea e
atualizada, além de desconstruir a teoria da recepção, em cujo alicerce está o papel
21
ativo do leitor. A partir dessa constatação, vê-se que a expressão ―revisionismo‖ não
se referiria apenas à crítica que busca localizar características reprováveis a fim de
censurá-las, mas a toda orientação que venha a questionar essa suposta autonomia
do texto.
A entidade considera, também, que as indicações dadas pelo Conselho
Nacional da Educação sobre a necessidade de uma interferência editorial para
solucionar os segmentos considerados reprováveis apenas mascaram a ineficácia
dos cursos superiores de licenciatura. Cabe destacar que, apesar de negar a
solução apresentada, essa crítica negativa à formação docente também é
encontrada no ―Parecer 15/2010‖. Por fim, a ABRALIC retoma a defesa à liberdade
de expressão e ao acesso de educadores e educandos ―a toda forma de produção
literária‖, além de frisar a relevância da figura do professor para a formação de
leitores ativamente críticos. Não obstante, o último tópico deixa transparecer,
novamente, a defesa de certa autonomia do texto literário, cuja leitura seria dotada
de uma ―força humanizadora‖, a qual estaria sendo subestimada com as referidas
solicitações dadas pelo CNE. A questão da autonomia do texto acaba por conflitar-
se com a ideia da necessidade e da importância do docente como mediador da
leitura. Essa dicotomia põe em debate a problemática de onde começa e de onde
termina a fronteira entre uma autossuficiência do leitor e a dependência de
mediação desse processo.
Outro documento que manifestou oposição ao Parecer 15/2010 foi o ―abaixo-
assinado‖ elaborado pelos escritores Ana Maria Machado, Bartolomeu Campos de
Queirós, Lygia Bojunga, Pedro Bandeira, Ruth Rocha e Ziraldo. É cabível, aqui, a
reprodução total do conteúdo apresentado pelos autores:
Os abaixo-assinados, escritores brasileiros que, como Monteiro Lobato, têm suas obras destinadas às crianças brasileiras, vêm, através deste documento, apresentar seu desagrado e desacordo ao veto do Conselho Nacional de Educação ao livro As Caçadas de Pedrinho, do nosso grande autor. Suas criações têm formado, ao longo dos anos, gerações e gerações dos melhores escritores deste país que, a partir da leitura de suas obras, viram despertar sua vocação e sentiram-se destinados, cada um a seu modo, a repetir seu destino. // A maravilhosa obra de Monteiro Lobato faz parte do patrimônio cultural de todos nós – crianças, adultos, alunos, professores – brasileiros de todos os credos e raças. Nenhum de nós, nem os mais vividos, tem conhecimento de que os livros de Lobato nos tenham tornado pessoas desagregadas, intolerantes ou racistas. Pelo contrário: com ele aprendemos a amar imensamente este país e a alimentar esperança em seu futuro. Ela inaugura, nos albores do século passado, nossa confiança nos destinos do Brasil e é um dos pilares das nossas melhores conquistas culturais e sociais (MACHADO et al., 2010).
22
Vê-se, neste primeiro momento, uma manifestação contrária ao primeiro
documento, formulada por escritores consagrados do campo literário infantil e
infanto-juvenil. Esses escritores objetivam realçar a importância de Monteiro Lobato
como modelo seguido, durante longo período, pelos, por eles considerados,
―melhores‖ escritores do ramo. Percebe-se a exaltação da obra do escritor,
considerando-a como ensinamento de como benquerer o país e confiar na
prosperidade do porvir. Certamente, para os autores, a importância do criador do
―Sítio do Pica-pau Amarelo‖ está em outro patamar, levando em consideração sua
relevância para o surgimento de uma literatura infantil originalmente brasileira.
No ano seguinte (2011), um bloco carnavalesco do Rio de Janeiro se serviu
da discussão e adotou a temática para o seu samba-enredo. A letra da música
(BANDOLIM et al., s/d) apresenta diferentes associações nas quais personagens
literários, folclóricos etc. são ligados a ações que, no viés da suposta tentativa de
censura a Lobato, também seriam tachadas de não aceitáveis, como o ―Cravo‖
brigar com a ―Rosa‖, o ―Saci‖ fumar, o ―Boi‖ malvado ter a ―cara preta‖ ou ―atirar o
pau no gato‖. Em seus refrões, aparece o vínculo direto à polêmica: ―Tia Nastácia,
sai da cozinha! Vem sambar! Pra ser destaque em Ipanema. A Dona Benta acende
o fogo em seu lugar [...] É carnaval e ninguém vai me censurar‖. Os versos
demonstram uma tentativa de igualar as duas personagens, ao afirmar a
possibilidade de que Dona Benta desempenhasse uma função de Tia Nastácia, além
de uma crítica direta a postura considerada censuradora presentes nos pareceres do
CNE.
A cada ano que passa, o bloco elabora uma camiseta diferente e relacionada
à temática apresentada no seu samba-enredo. Em 2011, a vestimenta continha uma
ilustração feita pelo cartunista e escritor Ziraldo, na qual aparece Monteiro Lobato
abraçado em uma mulher ―mulata‖ e a um gato com um pau nas mãos,
acompanhados por um cravo e uma rosa e da frase que nomeia o bloco – ―Que m* é
essa?‖. O cartunista declarou a intenção de sua produção dizendo:
Para acabar com a polêmica, coloquei o Monteiro Lobato sambando com uma mulata. Ele tem um conto sobre uma neguinha que é uma maravilha. Racismo tem ódio. Racismo sem ódio não é racismo. A ideia é acabar com essa brincadeira de achar que a gente é racista (ZIRALDO apud CARVALHO, 2011).
Segundo Ziraldo, sua produção tencionava a desconstrução das postulações
sobre um ideal racista na obra do escritor paulista. O cartunista menciona e exalta o
23
conto ―Negrinha‖, publicado em livro de mesmo nome, e conclui que uma
manifestação é considerada racista somente quando esta é guiada pelo ―ódio‖.
Certamente, seria interessante a definição teórica do termo ―racismo‖ para análise
da declaração do cartunista e da significação que dá ao termo. Entretanto, deixar-se-
á tal demarcação terminológica para o capítulo seguinte e analisar-se-ão, neste
momento, somente os resultantes de sua afirmação.
Em fevereiro do mesmo ano, a escritora Ana Maria Gonçalves, militante do
movimento negro, publicou uma ―Carta Aberta ao Ziraldo‖ (GONÇALVES, 2011)3, na
qual expõe sua avaliação sobre a ilustração feita para o bloco carnavalesco carioca
e sobre a intencionalidade da mesma na declaração anteriormente citada. O texto de
Gonçalves é pertinente para a exposição de um posicionamento central no debate
sobre a obra lobatiana, pois condiz com a opinião de um dos extremos centrais na
discussão, cuja avaliação designa Monteiro Lobato como possuidor de um
pensamente racista, justificado por discursos proferidos em cartas enviadas a
amigos e que condizem com suas manifestações literárias. Grande parte do texto
elaborado por Ana Maria Gonçalves traz citações de trechos da correspondência do
escritor com seu amigo e também escritor Godofredo Rangel, com o médico e
eugenista Renato Kehl e com seu companheiro sanitarista Arthur Neiva.
Intencionalmente, essas produções não serão examinadas neste momento, pois
farão parte do corpus a ser analisado quando resgatados os discursos lobatianos
referentes às suas ideias raciais.
Primeiramente, com falas direcionadas ao criador do ―Menino Maluquinho‖, a
escritora questiona o conhecimento de informações a respeito do posicionamento de
Lobato sobre os ―mestiços brasileiros‖, bem como a definição dada por ele para o
termo ―racismo‖. Gonçalves afirma que, mesmo o seu ―humor negro‖,
consequentemente ―sem ódio‖ também é uma forma de racismo e declara que:
Racismo não nasce do ódio ou amor, Ziraldo, sendo talvez a causa e não a consequência da presença daquele ou da ausência desse. Racismo nasce da relação de poder. De poder ter influência ou gerência sobre as vidas de quem é considerado inferior (Idem, Ibidem).
Para Ana Maria, sempre que ―Monteiro Lobato se referiu a negros e mulatos,
foi com ódio, com desprezo, com a certeza absoluta de própria superioridade,
fazendo uso do dom que lhe foi dado e pelo qual é admirado e defendido até hoje‖.
3 Com o objetivo de evitar a repetição da referenciação, destaca-se que todas as citações aqui
expostas com referencia a Ana Maria Gonçalves estão relacionadas a este mesmo texto.
24
É mencionado, por ela, o fracasso de Lobato ao tentar publicar nos Estados Unidos
seu único romance – O choque das raças ou O presidente negro (1926) – o qual
recebeu rejeições pelos possíveis editores por seu conteúdo textual considerado
ofensivo. Gonçalves alega que Lobato possuía grande interesse mercadológico com
suas obras, manifestado com a expectativa de venda de seu romance nos Estados
Unidos e anulada pelo repúdio editorial no país. Segundo ela, para o literato, mais
importavam os lucros de suas produções do que a ―exasperação dos ofendidos‖.
Ademais, afirma que o interesse financeiro do escritor aparece, também, na ligação
de sua personagem ―Jeca Tatu‖ às propagandas da empresa farmacêutica de
Cândido Fontoura.
A escritora questiona a interpretação de Ziraldo de que o objetivo do
movimento estabelecido pelo CNE era o de ―censurar‖ as obras de Monteiro Lobato,
ao perguntar-lhe porque não foi contestada a censura feita pela prefeitura do Rio de
Janeiro quando solicitado ao bloco carnavalesco que não utilizasse por extenso uma
palavra ofensiva que compunha o seu nome, mas a abreviasse: ―Que m* é essa?‖.
Para ela, o que se defende não é a censura, mas a defesa dos Direitos Humanos, e
o acusa de desrespeitá-los, mesmo tendo sido o artista convidado a ilustrar uma
cartilha acerca da temática, sob encomenda da Presidência da República. Por
diversas vezes, Ana Maria remete a produções de Ziraldo. A escritora problematiza
as relações entre as personagens centrais na obra O menino marrom (1986) e utiliza
como estratégia a comparação dos discursos do criador do ―Menino Maluquinho‖ e
de Monteiro Lobato. Constata-se que a autora da Carta Aberta procura salientar os
problemas do racismo no Brasil, mais especificamente, no próprio ambiente escolar
onde as obras desses escritores estão inseridas.
Obviamente, nem todas as conclusões se mantiveram fixas e imutáveis. Em
entrevista a Arnaldo Bloch, alguns dias antes de completar seu 80º aniversário,
Ziraldo falou sobre diferentes aspectos de sua vida e mostrou ter mudado de opinião
quando perguntado sobre o debate a respeito da possível presença de racismo na
obra de Monteiro Lobato. Como justificativa, declarou:
Quando fiz a camiseta para o bloco Que Merda é Essa, não conhecia ainda as cartas e os textos para adulto que seriam publicados pela imprensa em seguida. Mudei de ideia, claro. A prova de que Monteiro Lobato era racista é exuberante e bem documentada. Ele era eugenista. Chega a dizer que o Brasil não atingiu o nível de civilização para ter uma Ku-Klux-Klan. Só não fiquei mais triste porque, na verdade, nunca fui realmente um fã. Sempre fui mais de Super-Homem e Fantasma. Agora, na obra infantil ele continua a ser o criador de alguns dos personagens mais emblemáticos da literatura.
25
Emília, junto com Capitu, Rê Bordosa e, agora, Carminha, é das personagens femininas mais importantes. E Tia Nastácia é a mais simpática e a mais querida do ―Sítio‖. Não precisamos proibir livros. Precisamos é melhorar a capacidade dos professores para discernir. Num país que tem 90% de analfabetismo funcional o pessoal devia era estar preocupado em fazer uma revolução em que nenhuma criança cresça sem aprender a ler, escrever, contar e interpretar (ZIRALDO, 2012).
Percebe-se que o escritor utiliza como argumento o desconhecimento das
declarações de Lobato, em epístolas e outros textos, publicadas nos últimos anos.
Para Ziraldo, esses documentos comprovam que o literato possuía ideais racistas e
que era adepto da teoria eugênica. Nota-se a ambiguidade discursiva de sua
resposta à pergunta de Bloch quando comparada as declarações expostas no
manifesto por ele assinado, em 2010, elaborado por um grupo de escritores de
literatura infantil. Na manifestação, é perceptível um alto grau de exaltação, a partir
da utilização de termos como ―grande autor‖, ―maravilhosa obra‖ ou até a
consideração de que Monteiro Lobato ainda tem servido de ―modelo para a
formação dos melhores escritores do país‖. A ambiguidade se forma quando o
cartunista afirma que sua tristeza não foi maior com a sua percepção do
pensamento lobatiano porque ―nunca foi, realmente, um fã‖, o que destrói toda
construção exaltante anteriormente apresentada. Essa ambivalência é reforçada
quando, por fim, projeta uma cisão entre ―obra adulta‖ e ―literatura infantil‖, onde
profere elogios às personagens Emília e Tia Nastácia.
Diferentes órgãos mostraram mobilização contrária aos argumentos
apresentados pelo Conselho Nacional da Educação, dentre eles a Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB) e a Academia Brasileira de Letras (ABL). Em novembro
de 2010, o presidente da OAB, Ophir Cavalcante, em discurso na sede da OAB-PR,
declarou que o CNE ―necessitava rever o documento enviado e deveria desculpar-se
com o país‖ e complementou a afirmação dizendo que a manifestação era um insulto
à cultura brasileira e à memória daquele ―grande escritor‖, pois ―nós, que nos
sentimos filhos literários do autor do Sítio do Pica-pau Amarelo, cuja sensibilidade
indicou que um país se faz com homens e livros, não podemos aceitar tamanho
absurdo‖ (CAVALCANTE apud OAB, 2010). A pesar do furor das declarações, a
notícia, publicada no jornal ―Folha de S. Paulo‖, não apresenta argumentos
fundamentados para a indignação de Cavalcante. Com o mesmo propósito, outra
entidade manifestou desacordo com a acusação: a Academia Brasileira de Letras.
Em notícia publicada no portal ―Folha de S. Paulo‖, os acadêmicos da instituição
26
afirmaram que:
Cabe aos professores orientar os alunos no desenvolvimento de uma leitura crítica. Um bom leitor sabe que Tia Nastácia encarna a divindade criadora dentro do Sítio do Pica-pau Amarelo. Se há quem se refira a ela como ex-escrava e negra, é porque essa era a cor dela e essa era a realidade dos afro-descendentes no Brasil dessa época. Não é um insulto, é a triste constatação de uma vergonhosa realidade histórica (ACADEMIA, 2010).
Segundo os representantes da Academia, as referências à personagem
Nastácia como ―negra‖ e ―ex-escrava‖ são resultantes da própria realidade, não
somente sua, mas dos afrodescendentes no período. Sua postura demonstra certa
generalização ao considerar que essa era a condição de todos os negros do
período, pois, mais de trinta anos após a abolição – levando-se em consideração
que as obras infantis de Monteiro Lobato começaram a ser publicadas na década de
1920, é perceptível a existência de algumas gerações que já não tinham vivenciado
o período escravista. Era possível que as descendências dos ex-escravos
alforriados já tivessem ultrapassado algumas décadas, visto que o feito da ―Abolição
da Escravatura‖, em 1888, não inaugurou o ato de libertação, o qual já havia sido
alcançado por diferentes motivos mesmo antes da efetiva proibição da escravidão4.
Além disso, afirma-se que as referências dadas à personagem do ―Sitio do Pica-pau
Amarelo‖ não são insultuosas, mas uma percepção da realidade brasileira, tida
como ―vergonhosa‖, perspectiva que denota o diálogo entre as produções literárias
do escritor e a sociedade do período em suas relações étnicorraciais.
Sequencialmente, os acadêmicos destacaram a necessidade do conhecimento e
familiarização dos professores para com as obras de Lobato, assim:
Então saberiam que esses livros são motivo de orgulho para uma cultura. E que muito poucos personagens de livros infantis pelo mundo afora são dotados da irreverência de Emília ou de sua independência de pensamento. Raros autores estimulam tanto os leitores a pensar por conta própria quanto Lobato, inclusive para discordar dele. Dispensá-lo sumariamente é um desperdício. A obra de Monteiro Lobato, em sua integridade, faz parte do patrimônio cultural brasileiro e apelamos ao senhor ministro da Educação no sentido de que se respeite o direito de todo cidadão a esse legado, e que vete a entrada em vigor dessa recomendação (Idem, Ibidem).
Aparentemente, a interpretação demonstra que um indivíduo que se
aprofunde na leitura das obras lobatianas inevitavelmente reconhecerá o seu valor, o
que, consequentemente, julga as conclusões díspares a apresentada como sendo
4 Leia-se o capítulo seguinte, o qual está direcionado à contextualização do período que compreende
o final do século XIX e início do século XX.
27
leituras errôneas. A declaração é finalizada com um apelo ao então Ministro da
Educação, Fernando Haddad, em prol da não efetivação das sugestões dadas pelo
CNE, o que recorda um ponto relevante para a discussão: caso fosse necessária a
inserção de notas explicativas como solicitado pelo Conselho, o que estas deveriam
apresentar? Certamente, cada lado do debate teria seus critérios para a formulação
dessa nota, o que, por conseguinte, levantaria uma nova discussão sem desapegar-
se do problema central.
Os portais de notícias on-line se destacam pelo acompanhamento e difusão
das informações sobre o andamento da polêmica por possuir a capacidade de
alcançar um maior número de leitores em menor tempo. Dentre os materiais
publicados nos sítios da ―G1‖ e da ―Folha de S. Paulo‖ percebe-se, tanto em seus
títulos e subtítulos como em seus conteúdos textuais, frequentes utilizações dos
verbos ―banir‖, ―vetar‖ ou ―censurar‖. Obviamente, essas palavras, por seu peso
semântico historicamente construído, trazem a tona o repúdio ao período de regime
ditatorial brasileiro (1964 – 1985) e as suas privações do direito de expressão.
Apesar da tentativa, no segundo parecer elaborado pelo CNE, de esclarecer que o
documento não objetivava as ações de ―banimento‖, ―veto‖ ou ―censura‖, os
materiais de caráter opinativos ou informativos referentes ao caso continuaram a
fazer uso dessas palavras em seus discursos.
A imprensa desempenhou papel fundamental para os fins alcançados pelos
debates decorrentes das acusações aqui mencionadas. Toma-se como base o
levantamento e a análise feitos por João Feres Júnior, Leonardo Fernandes
Nascimento e Zena Winona Eisenberg (2012), dos materiais sobre a problemática
publicados por jornais e revistas de maior circulação no país. A investigação
apresenta gráficos com estudos de diferentes dados. O primeiro deles se refere às
instituições com maior publicação de textos sobre o tema, dentre as quais se
destacam ―O Globo‖ e ―Folha de S. Paulo‖. O segundo gráfico apresenta os meses
dessas publicações, onde se salienta o mês de novembro de 2013 como o período
de maior produção de materiais direcionados a discussão. Por fim, o terceiro
apresenta uma análise das opiniões expressas nessas fontes sobre os Pareceres e
os rumos por eles acarretados, separando-as em ―contrárias‖, ―a favor‖ ou
―informativas (neutras). De acordo com os autores:
68% das matérias pesquisadas sobre o assunto apresentam posições contrárias aos pareceres. Se descontarmos as matérias meramente
28
informativas (26%), e tomarmos somente as opinativas, vemos esta proporção aumentar para 92%, enquanto meros 6% expressam opinião favorável. Importante também é notar que quase metade das matérias opinativas (42%) abordam a questão do politicamente correto para comentar o caso. Dessas, todas menos uma são críticas ao que identificam como politicamente correto, e esta única matéria é neutra (FERES JÚNIOR; NASCIMENTO; EISENBERG, 2012, p. 76).
Os dados demonstram uma maior incidência de opiniões voltadas à
contraposição das acusações apresentadas nos pareceres de 2010 e 2011: 68% do
total analisado. A porcentagem aumenta consideravelmente (passa a 92%) quando
descartadas as opiniões destacadas como meramente informativas ou neutras.
Sequencialmente, a investigação procura interpretar com mais profundidade essas
contraposições, no intuito de averiguar as justificativas dadas para tal
posicionamento em oposição. O título desse trabalho prontamente abre caminho
para um elemento central na análise que propõe: ―Monteiro Lobato e o politicamente
correto‖. O estudo constata que, por diversas vezes, os julgamentos remetem as
acusações a exageros do politicamente correto. De acordo com os pesquisadores, é
constante a aparição de postulações que caracterizam as manifestações contra
Lobato como sendo excessos ideológicos, por vezes, correlacionando-as a ações do
Partido dos Trabalhadores (p. 77-78). Outro dado demonstrado corresponde às
constantes acusações de imitação servil, por parte do movimento que considera
racista o escritor taubateano, dos modelos estadunidenses de ―falsas políticas de
afirmação‖. Essa seria a opinião compartilhada por Aldo Rebelo, deputado federal e
um dos poucos políticos que optaram por pronunciar-se sobre o caso (p. 79).
Cabe destacar a existência de uma separação de opiniões entre os que
discordam dos pareceres do Conselho Nacional da Educação. Há, primeiramente,
os que acreditam que o autor possui ideais raciais totalmente opostos aos que foram
apresentados nas acusações. Não obstante, há, em outro extremo, defensores de
que não se pode condená-lo porque o racismo era ideal predominante no início do
século XX. Assim, percebe-se o reconhecimento de um pensamento racista no
discurso lobatiano ao mesmo tempo em que se repudiam as soluções dadas pelos
acusadores. Pode-se resgatar o texto escrito pelo colunista do portal ―Folha de S.
Paulo‖, Hélio Schwartsman, o qual considera como ―analfabetismo histórico‖ toda
leitura que não é localizada histórica e socialmente. De acordo com ele, não se pode
―aplicar critérios contemporâneos para julgar o passado‖ (SCHWARTSMAN, 2012).
Assim como assinalaram Feres Júnior, Nascimento e Eisenberg (2013), há certa
29
concordância entre os estudiosos em considerar a necessidade de contextualização
para ―entendimento de um conceito ou uma linguagem do passado‖ (FERES
JÚNIOR; NASCIMENTO; EISENBERG, 2013, p. 82).
Segundo Schwartsman, em sua publicação para o periódico paulista, não se
pode chegar a nenhuma inferência sobre Monteiro Lobato sem ter consciência do
período em que viveu. Para o colunista, Lobato fazia parte de uma sociedade na
qual ―quase todo mundo era racista‖ e conclui que todas as pessoas são
―prisioneiras da mentalidade de sua época‖ e que existe um ―horizonte de
possibilidades morais além do qual não é possível enxergar‖ (SCHWARTSMAN,
2012). Seu posicionamento, exemplo da variação da opinião dos que se opõem às
acusações a Lobato, mescla aceitação e negação e configura a possibilidade da
existência de certo determinismo histórico das ideias, uma generalização a qual
considera que uma época não é formada por um grupo complexo de ideologias às
quais os indivíduos se afiliam deliberadamente, mas que é passível que certo
pensamento impere significativamente, apesar da presença considerada irrelevante
de ideias contrárias, e imponha sua crença aos indivíduos da sociedade na qual está
presente.
Outros literatos avaliaram a problemática, dentre eles está Luis Fernando
Veríssimo. Em setembro de 2012, publicou-se, no blog do colunista do jornal ―O
Globo‖ Ricardo Noblat, um texto intitulado ―No contexto, por Luis Fernando
Veríssimo‖ (VERÍSSIMO, 2012), no qual o escritor analisa a questão. Veríssimo
destaca que sua filha ―optou pela censura‖ quando se deparou com o trecho que
descrevia à Tia Nastácia em uma obra de Lobato, enquanto a lia para sua neta.
Assinala não ter na memória a lembrança de ter lido as obras do criador do ―Sítio‖
para seus filhos, mas acredita que sua atitude não teria sido a mesma:
Não me ocorreria que o texto era racista. Ou talvez ocorresse e eu o desculpasse, pois seria apenas um detalhe que em nada diminuía o imenso prazer de ler Monteiro Lobato. E escrito numa época em que o próprio autor não teria consciência de estar sendo ofensivo, ou menos que afetuoso com sua personagem (VERÍSSIMO, 2012).
A postura do escritor gaúcho se aproxima das colocações dadas por Hélio
Schwartsman no que se refere à predominância de um ideal em determinado tempo
histórico e à necessidade do deslocamento no processo de leitura. Schwartsman
legitima suas afirmações ao destacar que a época em que viveu Lobato era racista,
o que lhe imporia, se a metáfora é cabível, ser escravo de ideais de superioridade
30
racial branca. Luis Fernando Veríssimo traz à discussão a existência de uma
inconsciência da negatividade destes ideais, uma inocência cegante que lhe
ocultava a possibilidade de pensar de maneira distinta, inocência que sustentaria as
suas qualidades literárias.
Luis Fernando Veríssimo discorre, complementarmente, a respeito das
mudanças no contexto das relações etnicorraciais e das manifestações culturais, as
quais demonstram que, em outras épocas, certas atitudes tidas como não aceitáveis
nos dias atuais eram toleráveis, pois esses preconceitos herdados e hábitos
culturais não eram questionados (Idem, Ibidem). Segundo ele, há não muito tempo,
o humor televisivo se utilizava de estereótipos raciais e das minorias que, partindo
desta inocência com os fatos e por se tratar de humor, não era feito com maldade.
Essa falta de consciência de estar sendo ofensivo, destacada por Veríssimo,
possibilita a retomada da fala do cartunista Ziraldo quando analisa a ilustração feita
para o bloco carnavalesco carioca: ―Racismo sem ódio não é racismo‖. Sobre as
soluções apresentadas pelo Conselho Nacional da Educação, declara:
[...] minha posição sobre como o autor deva continuar sendo leitura deliciada das crianças apesar dos trechos abomináveis é um decidido ―Não sei‖. / Fala-se que nas edições adotadas nas escolas conste uma explicação que coloque os termos repreensíveis no contexto. Não sei. O essencial é que não se prive nenhuma criança brasileira de ler Monteiro Lobato (Idem, Ibidem).
Percebe-se o caráter, aparentemente, inconclusivo de Veríssimo ao reforçar o
seu ―não sei‖. Entretanto, sua fala demonstra com clareza a concepção de que o
reconhecimento da presença, na obra de Monteiro Lobato, de características tidas
como racistas nos dias atuais não deveria impedir o acesso das crianças brasileiras
a ela e, menos ainda, seria capaz de rebaixar a importância por ela alcançada.
Contrariamente, essa ingenuidade por ele apresentada não é perceptível pelo
escritor carioca Alberto Mussa. Em ensaio ao jornal ―Rascunho‖, o escritor
mencionou ter declarado, em outro trabalho, que ―a obra infantil de Monteiro Lobato,
embora genial como concepção, é imprestável como leitura de crianças‖ e
problematiza a análise da polêmica ao tentar analisar com profundidade as
características dos posicionamentos em favor da obra de Lobato, caracterizando-os
como ―reações personalistas‖, ―reações estéticas‖ e ―reações democráticas‖, além de
afirmar que, por determinadas vezes, essas manifestações aparecem interligadas
31
em um mesmo discurso (MUSSA, 20105).
De acordo com ele, as ―reações personalistas‖ se referem às argumentações
proferidas por indivíduos que ―leram as histórias do Pica-pau Amarelo e se
encantaram com aquele universo mágico, fascinante, profundamente brasileiro e
original‖. Neste mesmo viés estariam, também, os admiradores do ―homem Monteiro
Lobato‖, por seus ideais nacionalistas, suas ações em prol do livro e da leitura e de
suas reflexões e lutas pelo petróleo brasileiro. Para Mussa, encaixam-se nessa
tendência as declarações de sujeitos que afirmam não ter se tornado racistas depois
da leitura da obra lobatiana ou que essas críticas demonstram falta de ―auto-estima
e desvalorização de um grande personagem histórico‖. Consequentemente, declara
que:
[...] o caráter ou a intenção do autor não importam para o julgamento ideológico da obra; e experiências individuais de leitura são, obviamente, individuais: não podem se presumir de representantes do conjunto social. É mesmo muita pretensão pensar que ―se algo não foi nocivo para mim, não será para outros‖ (Idem, Ibidem).
Em um primeiro momento, percebe-se, na opinião do escritor, a existência de
duas cisões: uma entre autor e obra e outra entre produção e recepção. Segundo tal
crença, o conhecimento da personalidade do escritor seria dispensável para a
análise do âmbito ideológico de sua produção literária, bem como a intencionalidade
projetada por ele a esse produto não remeteria ao fim alcançado pelo mesmo. Ainda
no âmbito da recepção, Alberto Mussa defende a individualidade da leitura, segundo
a qual uma mesma obra não é lida da mesma maneira por diferentes indivíduos, ou
seja, é falha a concepção de que alguma expressão em uma obra que não tenha
sido ofensiva para um também não o será para o outro.
Já as ―reações estéticas‖ seriam aquelas articuladas por sujeitos os quais
defendem que, se adotadas tais atitudes em prol do barramento do racismo nas
artes, a cultura brasileira estaria comprometida. Segundo Mussa, essa postura
demonstra certa sacralização da literatura, cujo cerne define obra e escritor como
pertencentes a um grau elevado em comparação às outras pessoas, o que
possibilita que esses indivíduos ―digam o que queiram‖. Nesta linha, caberia a
associação ao comentário de Luiz Fernando Veríssimo ao afirmar que, se
percebesse algum trecho racista ao ler uma obra do criador do ―Sítio‖, o perdoaria,
5 Com o objetivo de evitar a repetição da referenciação, destaca-se que todas as citações aqui
expostas com referencia a Alberto Mussa estão relacionadas a esse mesmo texto.
32
pois seria apenas ―um detalhe que em nada diminuía o imenso prazer de ler
Monteiro Lobato‖ (VERÍSSIMO, 2012). Complementarmente, o escritor carioca
relaciona aos que manifestam esse tipo de parecer a ideia de que estes sujeitos
defenderiam a necessidade de contextualização da obra, principalmente se tratando
de um escritor renomado, ideia mencionada em alguns posicionamentos
anteriormente apresentados. Além disso, para Alberto Mussa, a análise das
circunstâncias em que a obra foi produzida é ineficiente quando se refere à literatura
infantil e possível, somente, quando a produção literária está direcionada a um
adulto. Advoga pela supressão ou pela reescrita de todos os trechos considerados
racistas na obra infantil de Monteiro Lobato, ou, no mínimo, uma advertência do tipo:
―Este livro contém pensamentos e expressões que configuram discriminação racial‖.
Vê-se que, no que refere à literatura infantil, Mussa defende a interferência editorial
para resolução da problemática, seja através de modificação textual, seja com a
explicitação do caráter discriminatório da obra de forma paratextual.
Por fim, a ―reação democrática‖ seria aquela que toma como princípio a
defesa da liberdade e manifestação do pensamento. Para esta reflexão, o autor
elabora uma suposição, na tentativa de expor qual seria a reação da sociedade
frente à determinada problemática. Sua hipótese é apresentada da seguinte forma:
Suponhamos uma obra, um livro nazista, escrito por um ariano careca, muito pálido, de olhos azuis, com um metro e noventa e cerca de 40 quilos de massa muscular. Não acredito que a justiça brasileira permitisse que tal livro circulasse, menos por medo do autor que de sua ideologia. E ficaria eu decepcionado se soubesse ter havido alguém que reagisse contra a censura, em defesa do careca (MUSSA, 2010).
A declaração parece contraditória se comparada à fala anterior, onde
menciona que ―o caráter do autor não importa para o julgamento ideológico da obra‖,
pois todas as descrições, não só morais como físicas, do suposto escritor ariano
demonstram interligação entre autor e obra. Ademais, expõe a certeza de sua
decepção caso alguém contestasse a censura da obra, levando em consideração a
ligação ideológica entre os ideais do autor e o seu resultante literário. Em outra
instância, sua suposição é complementada por possibilidades de substituições do
autor e da obra: ―um pedófilo, um violador de garotinhas, que publicasse um álbum
ilustrado com fotografias e legendas elucidativas‖ ou, em âmbito mais brando, ―uma
biografia vulgar não autorizada, com indiscrições picantes, mexericos e coisas
proibidas ou vexatórias sobre um protagonista famoso ou que pertença a uma
família fica e poderosa‖. Para ele, apesar da certa objeção gerada por muitos, em
33
alguns desses casos o poder judiciário concorda com as ações que visam tirar essas
obras de circulação. Em contraposição, acredita que, na sociedade brasileira, o
―racismo‖ é menos grave que o ―nazismo‖, a ―pedofilia‖ ou a ―invasão da
privacidade‖, graças à crença de que se vive em um país onde a democracia racial
impera.
Em síntese, Alberto Mussa crê na ineficácia da tentativa de mediação por
parte dos professores quando se tratar de obras que contenham teor racista, como
também da inocência de esperar que uma criança seja capaz de uma
contextualização histórico-social para melhor entendimento da obra. Segundo ele, o
Brasil não dispõe de profissionais da educação preparados para lidar com o
―racismo‖ e, menos ainda, com o ensino na ―História e da cultura africana‖ previsto
em lei. Sobre Monteiro Lobato, afirma que o ―leitor negro e infantil não estava no
horizonte do escritor‖, mas sim o branco, pois cria no total branqueamento da
população brasileira até o ano 2000, devido à política de promoção e financiamento
da imigração europeia (Idem, Ibidem).
Nos meses de setembro e de outubro de 2012, a ―Univesp Tv‖ realizou quatro
entrevistas a fim de expor os diferentes posicionamentos na discussão sobre o
racismo em Monteiro Lobato. Dentre os entrevistados está o Frei David Raimundo
dos Santos, fundador do projeto Educafro; o fundador do Instituto Afro-brasileiro de
Ensino Superior e reitor da faculdade paulista Zumbi dos Palmares, José Vicente; o
pesquisador e professor da Universidade Estadual Paulista (UNESP) de Assis, João
Luís Cardoso Tápias Ceccantini e a pesquisadora e professora das universidades
Mackenzie e UNICAMP, Marisa Philbert Lajolo. Prontamente, percebe-se a
existência de duas áreas de atuação para a discussão: primeiramente, indivíduos
envolvidos na esfera da educação e no movimento negro e, posteriormente, dois
sujeitos da área dos estudos literários, investigadores da obra de Monteiro Lobato,
os quais publicaram, em 2009, uma análise da obra infantil lobatiana, intitulada
Monteiro Lobato: livro a livro. Analisar-se-á essas entrevistas em ordem não
cronológica de realização e publicação, dada a constatação de semelhanças nas
áreas e nas argumentações.
Inicialmente, resgata-se o diálogo com David Raimundo dos Santos, o qual
começa seu discurso afirmando a consciência de que Monteiro Lobato era um
homem de seu tempo. Não obstante, acredita que o escritor, por fazer parte da
34
intelectualidade daquele período, tinha como dever elaborar um olhar crítico sobre
as incoerências de seu tempo, o que, a seu ver, não ocorreu. Além disso, o fundador
da Educafro alega que o autor era sectário de movimentos racistas, como a Ku-Klux-
Klan, e esse partidarismo pode ser comprovado através de declarações em sua
correspondência. Consequentemente, acredita que Lobato ―quis transmitir uma visão
pejorativa da comunidade negra‖ de forma intencional.
Santos demonstra ser favorável a que as produções literárias destacadas
continuem à disposição de todos, desde que as obras enviadas às escolas
apresentem uma nota explicativa para auxiliar a leitura das crianças e o trabalho dos
professores, no intuito de salientar que aquelas manifestações se referem a um
tempo em que aquelas atitudes eram comuns, mas que não devem ser
reproduzidas. Em seguida, David Santos cobra dos órgãos competentes que
cumpram a legislação por eles elaborada sobre o respeito à diversidade. Neste viés,
demonstra estranheza quanto ao posicionamento do Ministério da Educação, por se
preocupar com a contextualização ecológica e a atualização ortográfica presente em
Caçadas de Pedrinho, mas negligenciar-se a respeito ao negro. De acordo com ele,
é inaceitável a justificativa de que a atualização da obra neste viés da representação
do negro na literatura ―fere a obra‖ na qual a nota seria inserida. Para o militante da
causa negra, a comparação de Tia Nastácia a uma macaca de carvão demonstra
claramente ―um espírito de chacota com o povo negro‖. Em seguida, expõe o
constrangimento que sentia quando trechos como este eram lidos na escola onde
estudava: ―Eu lembro, quando criança, ao ler Monteiro Lobato em sala de aula, onde
eu era um dos poucos negros, o quanto era incômodo para mim [...]‖. Segundo
Santos, as demais crianças o olhavam imediatamente e, por conseguinte, ele não
sabia ―onde enfiar a cabeça‖ (SANTOS, 2012).
Sequencialmente, o frade culpa o MEC por aceitar pressões advindas da
Editora Globo para o não cumprimento das indicações dadas no Parecer 15/2010.
Ao analisar as mudanças efetuadas após a revisão feita pelo Conselho Nacional da
Educação, demonstra que o cerne do problema visto pelos que criticaram o primeiro
Parecer era a defesa da ―exigência‖ para com as editoras de inserirem a nota
explicativa nas obras citadas, o que, ocasionalmente, resultou em um segundo
documento onde o verbo ―exigir‖ foi substituído pelo verbo ―recomendar‖. De acordo
com Santos, diversas leis no país são regidas por ―exigências‖ e, ainda assim, não
35
são cumpridas. Consequentemente, um Parecer, que já não tem força de lei, ser
regido por ―recomendações‖ é aceitar que as mudanças sejam feitas por escolha
própria das editoras. Essa alteração verbal nos pareceres é relacionada por ele ao
debate sobre o Estatuto da Igualdade Racial, no qual os partidos PSDB e DEM
afirmaram que o estatuto seria aprovado somente se os verbos que indicavam
―determinação‖ fossem substituídos por ―recomendações‖, o que teria tornado o
documento ineficaz ―porque não é lei, é uma recomendação e recomendação‖,
afirma ele, ―não pega no Brasil‖ (Idem, Ibidem).
Por fim, expõe uma dinâmica realizada com dez crianças negras de uma
creche, todas com cinco anos de idade. Estas crianças foram levadas a uma sala
onde haviam sido colocadas nove bonecas negras e uma branca. Depois de uma
explicação sobre a importância de se brincar com a boneca, se pediu para que, uma
de cada vez, se levantasse e escolhesse uma delas e com ela interagisse. No
momento final, as duas últimas crianças se depararam com uma boneca branca e
uma negra, que haviam restado depois das primeiras oito escolhas. A última menina,
deduzindo que a penúltima escolheria a boneca branca, travou uma disputa com a
companheira. O Frei David dos Santos interpreta essa reação da seguinte maneira:
―a sociedade, através da televisão, dos meios de comunicação, onde a criança vê
programa onde o negro está sempre em situação negativa, a criança negra já cresce
tendo vergonha de pertencer ao povo negro (Idem, Ibidem)‖.
Resumidamente, pode-se se concluir que David Raimundo dos Santos toma
como princípio de seu discurso as informações apresentadas pelos pareceres
encaminhados pelo Conselho Nacional da Educação em 2010 e 2011. Faz uso,
também, de referências a trechos de cartas escritas por Monteiro Lobato na tentativa
de demonstrar que o escritor elaborou suas obras literárias levando em
consideração uma crença de que os negros eram inferiores aos brancos, a qual
acabou por fazer parte dessas representações. Evidencia-se a tentativa de anular as
interpretações de que se objetivava a censura às obras lobatianas, ao ponto que
defende a contextualização das mesmas através de nota explicativa sobre o período
em que viveu o criador da Emília e sobre as ideias pelas quais advogava. Para
Santos, tem-se formado indivíduos com complexos de inferioridade pelas diferentes
menções negativas feitas, por variados meios, não só ao negro, mas ao universo
afro-descendente.
36
As próximas considerações a serem examinadas são as do advogado, doutor
em Educação e reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares, José Vicente. Inicialmente,
Vicente salienta a singularidade do alcance da discussão sobre Monteiro Lobato,
pois é a primeira vez que questões desse gênero chegam ao Supremo Tribunal
Federal. Segundo ele, isso decorre das mudanças que estão ocorrendo no país,
onde discussões que antes passavam despercebidas, agora são colocadas como
valores importantes, devido a uma demanda de reivindicações sociais que se
erguem. Vicente afirma que a construção do racismo não data de hoje, mas é
resultante de um regime escravocrata que perdurou por mais de 350 anos, cujos
ideais de dominação e crença na superioridade de uns e inferioridade de outros se
manteve arraigada na história do país. A Proclamação da República e a mudança de
regime não teriam sido capazes de alterar essa mentalidade, a qual,
consequentemente, teria se manifestado em todos os setores da sociedade
(VICENTE, 2012).
O reitor da Zumbi dos Palmares declara que a presença de um pensamento
racial que levava em consideração a existência de superioridade e inferioridade
entre os homens era corrente no início do século XX e cita a postura de outro
conhecido intelectual da época, Nina Rodrigues (1862-1906), o qual, segundo José
Vicente, cria na ―degenerescência decorrente das relações entre brancos e negros".
De acordo com ele, a ideia de que os negros eram racial, estética, cultural e
religiosamente inferiores se reproduzia nas diferentes esferas sociais, até mesmo
nas escolas, onde essa inferioridade era apresentada textualmente nos livros
didáticos. Entretanto, reforça a ideia de que o mundo está entrando em fase de
mudanças, nas quais as questões do negro, da discriminação, do racismo entram
em discussão (Idem, Ibidem).
No âmbito da legislação, expõe a existência do ―direito de livre expressão do
pensamento ou artística‖, mas o contrapõe ao dizer que esse não é um ―direito
soberano‖, nem ―autônomo‖ e necessita ―convergir e interagir com um conjunto de
outros direitos‖. Por essa liberdade não ser ilimitada, afirma fazer-se necessário
levar em consideração o direito à ―dignidade, à honra, à imagem pessoal ou coletiva:
valores estes definidos e determinados na Constituição Federal‖ (Idem, Ibidem). Na
contemporaneidade lobatiana, segundo ele, era possível expressar essas
concepções, porém, os valores sociais atuais questionam esses princípios e não
37
somente Monteiro Lobato, mas em ―qualquer livro didático [...] que traga qualquer
tipo de insinuação, ou qualquer tipo de manifestação [...] desses fundamentos‖ (Idem
Ibidem).
O doutor em Educação alega que a legislação educacional vigente determina
que obras que contenham qualquer tipo de manifestação dessa natureza não podem
ser selecionadas para ―compor o acervo de livros didáticos que serão usados em
sala de aula‖, pois é nesse espaço que são formadas ―as consciências, as
mentalidades, os fundamentos da cidadania‖. Assim, seria dever do Estado intervir
nessa discussão, uma vez que é na escola que se deva capacitar os indivíduos para
o ―respeito a todo tipo de diferença e os valores de todos os grupos sociais que
compõem a sociedade‖. Para esse fim, acredita ser necessária a contextualização
das obras utilizadas, independentemente do autor que a escreveu, ainda que, por
dois motivos, não se possa assegurar que essa contextualização seja feita de
maneira correta: primeiramente, porque não há uma ―exigência‖ legal que a torne
obrigatória e, em segundo, porque os professores, de uma maneira geral, ―não estão
qualificados para tratar de questões dessa natureza na sala de aula‖.
O apresentador e entrevistador da Univesp Tv, Ederson Granetto, lança a
problemática de que, nesse sentido, irão surgir interpretações distintas para uma
mesma obra e cita o livro de contos Negrinha, sobre o qual há conclusões de que se
trata de um livro antirracista exatamente por expor as crueldades sofridas pela
menina, ao ponto que outros afirmarão que se trata de uma obra com conteúdo
racista por esses mesmos motivos. Segundo José Vicente, faz-se necessário formar
uma equipe de estudiosos que seja capaz de interpretar essas obras de maneira
correta e ―a academia tem capacidade de elaborar um grupo de avaliação, para
realizar estudos dessa natureza‖ (Idem, Ibidem).
O terceiro parecer a ser analisado é o do professor do Departamento de
Literatura da Unesp de Assis, João Luís Ceccantini. O professor frisa, prontamente,
que a classificação da obra de Monteiro Lobato como racista é resultado de uma
conclusão exagerada, a qual não consideraria a produção literária do escritor em
sua totalidade. Essa conclusão parte do pressuposto de que determinadas
expressões encontradas nessas produções são frutos da época em que viveu
Lobato, sendo que o autor teria nascido no final do século XIX, o que propiciou a
vivência do momento de transição entre o regime escravagista e o surgimento da
38
República, período no qual o preconceito estava intrincado na sociedade brasileira
(CECCANTINI, 2012).
Segundo o pesquisador, principalmente no que se refere à obra infantil
lobatiana, a qualificação de ―racista‖ é absurda. Em situações, como em Caçadas de
Pedrinho, em que Tia Nastácia é comparada a uma ―macaca de carvão‖, considera
possível a equiparação a outro trecho em que uma ―mulher branca‖ sobe em uma
árvore e o autor também a chama de macaca, o que eliminaria o entendimento da
sentença como ―pejorativa‖. Ademais, afirma que, para expressões como ―negra
beiçuda‖, classificação dada à mesma personagem em outras circunstâncias, é
fundamental considerar que, naquela época, o termo ―beiço‖ possuía significações
diferentes das que se possui hoje e era usado, muitas vezes, com o sentido de
―lábios‖, o que poderia ser comprovado a partir da análise de outras obras do
mesmo período. Consequentemente, o pesquisador defende que Lobato não pode
ser ―julgado com padrões ou critérios atuais‖, dado que estas manifestações fazem
parte de um período sócio-histórico específico e deve, então, ser lido a partir dessa
localização espaço-temporal (Idem, Ibidem).
Ceccantini considera que um estudo da personagem Nastácia tem que
analisar a sua função no decorrer das narrativas, pois essas verificações fazem
referência apenas ao âmbito linguístico. Segundo ele, a obra infantil de Monteiro
Lobato desconstrói alguns padrões existentes nas histórias infantis relacionados às
―famílias tradicionais‖ e seus personagens adotam atribuições significativas nas
histórias, como, por exemplo, Dona Benta como a ―mulher sábia‖ e Tia Nastácia
como a responsável por ―cuidar das questões práticas e representante de tudo
aquilo que está ligado ao nacional, à tradição oral, ao popular, ao folclórico‖. Para o
professor, é possível notar a representação de uma recíproca afetividade entre
Nastácia e o resto do grupo. Além disso, uma confirmação da importância da
personagem Nastácia seria comprovada ao perceber-se que, por vezes, ela possui
uma ―função narrativa fundamental‖, como, por exemplo, quando salva o sítio de um
Minotauro com sua ―sabedoria de cozinheira‖ e com alguns bolinhos por ela
preparados. Considera ele que essa relevância é percebida em diferentes momentos
e que, por conseguinte, a ―colocação dessa etiqueta racista na obra de Monteiro
Lobato seja um equívoco‖. Em contrapartida, sobre a mediação e receptividade
desses textos por parte das crianças, Ceccantini declara que:
39
Se um mediador, um professor, um pai observa esses traços, esses resquícios que sobraram lá, de uma sociedade que era profundamente racista, escravagista, etc. e tal, o papel é exatamente esse: de discutir isso, de mostrar ―olha, que pena, no momento do Lobato era assim; [...] mudamos, isso não pode mais acontecer. Agora, isso não pode eliminar todo o papel incrível, criativo, ousado do projeto literário do Lobato. E a criança, isso a minha experiência mostra muito, ela está muito ligada nessas questões. [...] Se você é filho de uma família militante, que está muito ligada nessas questões e está discutindo, muito provavelmente, uma criança um pouco mais velha – sete, oito ou nove anos – ela pode perceber isso e se sentir mal. De um modo geral, quando você não está nesses ambientes, vamos dizer assim, já bem politizados e esclarecidos, o que eu tenho visto [...] [é que] as crianças não se atêm a isso (Idem, Ibidem).
O trecho demonstra a função dada por ele ao mediador no processo de leitura
infantil, ao mesmo tempo em que evidencia uma interpretação autônoma, pelas
crianças, da obra literária. De acordo com o autor, o âmbito ficcional e as
possibilidades imaginativas que proporcionam são mais relevantes e perceptíveis
para o público infantil do que questões relacionadas a problemáticas sobre trechos
com caráter malicioso, sexual, de gênero, de violência, etc., os quais seriam, muitas
das vezes, uma demasia elaborada pelos adultos. Além disso, segundo o professor
da UNESP, cada indivíduo tem ―uma história de leitura, um repertório‖, o qual é
ativado no momento do encontro com o texto e resulta em distintas interpretações
do mesmo. Assim, a proximidade desses sujeitos a informações sobre a questão do
negro e dos movimentos de militância em prol da questão daria luz a percepções
não evidenciadas em crianças que estão afastadas dessas discussões (Idem,
Ibidem).
No que se refere ao âmbito escolar, o pesquisador lobatiano, ao comentar ter
trabalhado com projetos em escolas públicas, afirma não lembrar-se de nenhum
caso em que essas discussões ou comentários tenham surgido a partir das leituras
das obras por parte dos alunos. Entretanto, acredita que um bom professor é aquele
que proporciona esses debates antes mesmo que eles surjam. Entretanto, faz-se
necessário perceber se os alunos estão maduramente preparados para tal
abordagem, postura defendida por muitos psicólogos que, segundo ele, discutem o
momento certo de levantar determinados temas na educação. Ceccantini frisa que,
obviamente, caso esse assunto surja, não se pode ocultá-lo, mas, pelo contrário,
deve-se procurar demonstrar que ―esse tipo de representação do negro está
superado‖ e que há autores contemporâneos que apresentam postura
―completamente oposta‖, como Ana Maria Machado, em Menina bonita do laço de
fita (2000).
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Sobre as medidas a serem tomadas com relação aos livros adotados pelo
MEC, alega que ―não é a questão de ficar censurando, recriminando, colocando na
fogueira o escritor e a sua obra. [...] A questão é outra, quer dizer, são os
mediadores, como você vai trabalhar com isso, não subestimar o leitor [...]‖ (Idem,
Ibidem). Para ele, além disso, ao contrário do que defende o senso comum, a leitura
de uma representação racista ou qualquer outro posicionamento negativo não
produz indivíduos com as mesmas características, ou seja, a transposição de ideias
do campo ficcional ao real não é, de maneira alguma, ―mecânica‖. Sobre a inserção
de notas explicativas nas obras que apresentam conteúdos considerados racistas,
como solicitado pelo Conselho Nacional da Educação, João Luís conclui que:
[...] hoje você tem uma tendência editorial forte de subestimar o leitor em nome da crise da leitura, em nome de facilitar a vida do professor e você ir inchando e colocando tantas notas e tantos paratextos: prefácios, posfácios, orelhas, hipertextos, marginálias, etc. e tal, que você também começa a induzir a leitura. E você pode, também, distorcer, atrofiar essas leituras. Então, não me parece uma coisa muito saudável [...] (Idem, Ibidem).
Claramente, o professor demonstra ser contra a colocação de qualquer
paratexto que possa influenciar a leitura da obra. Não obstante, observa que o
acréscimo de textos desse feitio é viável somente se esta for a única solução
encontrada para a contínua utilização das obras lobatianas no contexto escolar e se
esses textos forem elaborados de forma ―inteligente e sem excessos‖. No que diz
respeito ao livro de contos Negrinha, declara que a inclusão de alguma orientação é
―mais problemática‖. Segundo ele, o movimento negro achou, na obra, ―um bom
pretexto‖ para mobilização e considera a acusação ―equivocada‖. Tanto ele quanto
seus colegas, quando se levantava, no contexto acadêmico, a discussão sobre a
presença de racismo na obra lobatiana, usavam como justificativa de defesa a
indicação de leitura do conto central da obra – ―Negrinha‖ – o qual sempre foi lido
por eles como ―um conto de denúncia do horror que era o racismo [...] e que isso
podia contaminar o interior de uma família, o microcosmos‖. Observa que existem,
no conto supracitado, certas descrições e referenciações não mais aceitáveis nos
dias atuais, mas que se tem caído constantemente em anacronismos e se tem
julgado esses autores com valores de hoje. Cita, então, o artigo de Hélio
Schwartsman publicado no ―Folha de S. Paulo‖6, no qual destaca a existência de
6 Possivelmente, o artigo citado seja ―Analfabetismo histórico‖ (SCHWARTSMAN, 2012), cujo
posicionamento foi analisado anteriormente (p.28-29).
41
posicionamentos sobre a polêmica que tomam como base uma leitura
descontextualizada da obra de Monteiro Lobato.
Sobre a divulgação de trecho de uma carta enviada por Monteiro Lobato, na
qual defende a criação de uma ordem como a Ku-Klux-Klan no Brasil, Ceccantini
considera que seja essencial analisar outros aspectos com cuidado, como um ―jogo
de datas‖ dessas correspondências e em que contexto aquelas palavras foram ditas.
Afirma acreditar na possibilidade de que o autor tinha certa restrição de informações
sobre essa organização no momento. Assim, estranharia se ―Monteiro Lobato fosse
alguém que endossaria os horrores da Ku-Klux-Klan, [sendo] uma pessoa que
construiu toda uma obra, de fio a pavio, profundamente humanista, o tempo todo
lutando por valores democráticos, o respeito ao próximo‖ (Idem, Ibidem). Cita A
chave do Tamanho (1942) como exemplo de obra que questiona os valores
vigentes, opondo-se à insensatez da guerra e suscitando a reflexão sobre a
necessidade de um novo começo com base em ―outros valores‖. Com essa
interpretação, crê que a imagem criada sobre o escritor paulista hoje é ―exorbitante,
exagerada, falsa e descontextualizada‖ (Idem, Ibidem).
Finalmente, destaca que não se pode sobrepor autor e obra
automaticamente, como se fossem a mesma coisa, e que essa postura
―politicamente correta‖ de interferência nas obras afetaria toda a literatura, desde a
Antiguidade. Reafirma que o homem é ―produto de sua época‖ e que acompanha as
mudanças de pensamento decorrentes do passar dos anos. A exemplo disso,
menciona a personagem ―Jeca Tatu‖ e sua representação inicial como atraso ao
progresso brasileiro e o surgimento da personagem ―Zé Brasil‖, cujos problemas são
relacionados exatamente a estrutura econômica e social do país. Além disso,
acredita que Tia Nastácia foi representada de maneira cada vez mais positiva ao
longo da carreira de Monteiro Lobato.
Depreende-se, dessas declarações, um posicionamento voltado ao campo
das Letras, com justificativas sempre relacionadas a estudos sobre a literatura e, de
maneira mais específica, a teorizações sobre a leitura e a recepção. João Luís
Ceccantini relaciona a linguagem de Monteiro Lobato, com suas expressões mais
particularmente direcionadas ao negro, como sendo produto da época em que viveu,
como efeito das constantes mudanças ocorridas entre os séculos XIX e XX. Afirma a
deficiência das leituras descontextualizadas e com base em uma perspectiva atual
42
para análise das obras do escritor. Reforça, também, que a leitura infantil, na maioria
das vezes, não se direciona a problemáticas tão específicas, pois sua atenção é
tomada pelo universo imaginativo das histórias e acabam por absorver somente o
que lhes é proveitoso, a não ser que esse leitor esteja imerso em um contexto de
discussões sobre a temática do negro. Ademais, observa variações na maneira
como Lobato representava não só Tia Nastácia, mas o próprio povo brasileiro, de
maneira mais específica, com Jeca Tatu, ou mais ampla, com Zé Brasil, o que
demonstra que um pensamento não é fixo e imutável, mas, pelo contrário, flexível a
variações, oscilações e etc.
O último e não menos importante entrevistado é a professora e, também,
pesquisadora de Monteiro Lobato, Marisa Philbert Lajolo. Inicialmente, a professora
destaca que, já há algum tempo, se interessa por Monteiro Lobato como objeto de
pesquisa, o que considera um prazer por ter sido um escritor lido com gosto por ela
enquanto criança. Desde o princípio, afirma acreditar que ―Lobato não insufla o
racismo‖, ou seja, que ―não transmita ideias preconceituosas‖, mas, pelo contrário,
que as ―pessoas leem Lobato e passam a ter uma perspectiva bastante positiva da
Tia Nastácia‖ (LAJOLO, 2012).
Lajolo declara, posteriormente, que ainda não se sabe ao certo qual é a
receptividade, por parte das crianças negras, da obra lobatiana analisada nos
pareceres do Conselho Nacional da Educação, mas que seria interessante uma
investigação que desse conta de analisar se esses leitores consideram ofensivos os
trechos citados como sendo preconceituosos. Além disso, a pesquisadora reitera
que Lobato não compara somente Tia Nastácia a uma macaca e menciona o conto
publicado em livro de mesmo nome, ―O macaco que se fez homem‖7, o qual
apresenta a história de um macaco que, acidentalmente, bate com a cabeça. Desse
momento em diante, o primata começa a pensar e daquela fatalidade teria surgido o
homem. Segundo ela, cabe observar, no entanto, que esses fragmentos sobre
Caçadas de Pedrinho estão sendo lidos de forma isolada do restante do livro e, na
tentativa de demonstrar o valor dado à personagem negra, antecipa um trecho do
final da obra no qual Nastácia declara a Dona Benta: ―Tenha paciência [...]. Agora
chegou a minha vez. Negro também é gente, sinhá...‖ (LOBATO, 2009a, p. 71).
Marisa defende, assim, a necessidade de uma ―leitura mais atenta‖ e de maior
7 A obra O macaco que se fez homem data de 1923.
43
―confiança nos leitores‖, pois acredita que ―o texto é autossuficiente para colocar de
forma adequada questões de racismo e preconceito na sociedade brasileira‖
(LAJOLO, 2012). De acordo com a professora, essa autossuficiência torna
desnecessária, também, a nota introdutória explicando que a obra foi escrita em um
período em que as onças não estavam em perigo de extinção, nem possuíam
proteção pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente. No que se refere a essa
temática, lembra que, durante a história, após a morte de uma onça, os animais
decidem, em uma assembléia, invadir o Sítio, devido a ―pouca responsabilidade do
ser humano em relação ao Planeta Terra‖. Essa postura seria, então, capaz de gerar
a discussão sobre essas questões ecológicas sem a necessidade de uma
interferência de uma nota explicativa, a qual teria sido inserida por simples
atendimento às exigências do Ministério da Educação.
Para Marisa Lajolo, não somente esta nota, cujo teor poderia ter sido
demonstrado no próprio texto, mas a grande maioria das notas editoriais acaba por
dirigir a leitura com sua intervenção. Alega, por conseguinte, que a ―ideia de que a
leitura precisa ser gerenciada por notas de roda-pé e advertências [...] é
contraproducente, ela sugere a minha ideia de leitor como alguém absolutamente
incapaz de entender um livro‖ (LAJOLO, 2012). Para a pesquisadora, atualmente,
nenhum sentido elaborado a partir de uma interpretação textual está equivocado, o
que demonstra que é falsa a crença de que um leitor sem esse suporte fará uma
leitura errada do texto, ainda que esses sujeitos sejam crianças, pois eles
necessitam tornar-se independentes e capazes de dar sentido às suas leituras. Caso
a inserção de alguma nota fosse necessária, acredita que a mesma deveria conter a
seguinte frase: ―Se você se incomoda pelo tratamento recebido por Nastácia, leia até
o fim a história e pense no assunto‖, juntamente com uma referência as últimas
frases do livro.
A pesquisadora menciona uma colocação feita por uma professora, na qual
afirma que se faria, então, necessário ―censurar‖, também, a Machado de Assis,
pois, em Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), teria se referido de maneira
preconceituosa a uma mulher que possuía um problema na perna, ao dizer: ―Porque
bonita, se coxa? Porque coxa, se bonita?‖. Para Lajolo, essas tentativas de
constatar trechos controversos em obras literárias são discutíveis, pois, no caso de
Machado de Assis, a inserção de uma nota explicativa seria problemática e os
44
leitores, mesmo crianças, seriam capazes de lidar com esse dinamismo do narrador.
Consequentemente, a pesquisadora expõe a indispensabilidade de formar melhor os
professores, para que sejam capazes de lidar com eficácia com as questões
referentes à leitura. Para ela, um educador que saia da academia com uma
formação eficiente será capaz de ―ler e de trabalhar qualquer obra com seus alunos‖,
pois considera o esforço por formar leitores que interpretem textos de forma
independente como sendo um dos deveres da educação.
Por fim, Lajolo tenta demonstrar que não é a primeira vez que Monteiro
Lobato sofre ―perseguições‖, ao relembrar que o escritor foi preso por discordar – e
manifestar essa discordância – da política do petróleo durante a ditadura getulista,
oposição exposta em sua obra O escândalo do petróleo (1936); e que seus livros
foram queimados em escolas católicas por serem considerados como
propagandistas do ateísmo. Segundo ela, essas manifestações contrárias se
justificam porque ―o valor maior da obra do Lobato é a independência e a
irreverência e todos os poderes constituídos têm medo disso‖. Ademais, crê que
questões pertinentes à cultura não devam ser solucionadas por legislações, mas,
entretanto, ―se esse episódio do Lobato servir para uma conscientização da
necessidade da formação do professor como um excelente leitor, para que ele seja
um excelente guia de leitura para os alunos, valeu a pena‖ (Lajolo, 2012).
Em síntese, Marisa destaca que as expressões aparentemente
preconceituosas indicadas são derrubadas por trechos ou acontecimentos dentro do
próprio texto ou do conjunto da obra de Monteiro Lobato, pois indicariam uma ideia
totalmente oposta à presente nas acusações contidas nos pareceres do CNE. Além
disso, ponto que se assemelha em diferentes aspectos do posicionamento de João
Luis Ceccantini, a professora ressalta a ineficiência dos paratextos que, de alguma
maneira, influenciariam a compreensão do texto e resultariam em um atrofiamento
da leitura. Essas dimensões acabam por defender certa autonomia do texto, no qual
o professor atua somente como mediador da leitura. Percebe-se que, nessas
entrevistas, tanto Lajolo quanto Ceccantini acabaram por não adentrar no tema da
correspondência de Monteiro Lobato. Entretanto, em ano anterior, a professora
declarou, em pronunciamento à Revista Nova Escola (LAJOLO, 2011), além das
informações similares as dadas, posteriormente, à ―Univesp TV‖, sua opinião
referente a essas cartas contendo trechos que problematizam a discussão sobre
45
racismo em Monteiro Lobato.
A pesquisadora de Monteiro Lobato acredita na importância do conhecimento,
divulgação e análise desses materiais. Segundo ela, as cartas, cujos trechos foram
divulgados nos últimos anos, realmente foram escritas pelo criador do ―Sítio do Pica-
pau Amarelo‖. Além disso, afirma que o escritor, de fato, esteve envolvido com ―um
grupo ligado a questões de eugenia‖, teoria a qual se cria ter uma base científica.
Não obstante, Lajolo destaca que Lobato reescreveu a sua obra por diversas vezes
e defende que ―as pessoas tem direito a errar, tem direito a voltar atrás, a dizer: ‗-
Perdão, leitores. Esqueçam o que eu escrevi‘‖ (LAJOLO, 2011). De acordo com a
professora, a partir dos anos 30 ou 40, Monteiro Lobato demonstrou mudança de
opinião sobre diferentes posturas tomadas anteriormente. Ademais, o escritor teria
selecionado as suas cartas que seriam publicadas, a fim de transmitir uma imagem
específica sobre si:
Lobato, quando editou a correspondência dele, claro, como toda pessoa que edita a correspondência, ele escolheu qual era a imagem que ele queria que fosse pública. Eu acho que essa imagem [...] é uma imagem ―x‖. Agora, essas outras cartas, esses outros documentos, mostram, também, uma imagem ―y‖, mas não é que o ―y‖ anula o ―x‖ ou que o ―x‖ anula o ―y‖. Lobato é isso, ele é muitos, e é, exatamente, por isso que ele é bom (LAJOLO, 2011).
Nota-se que, para Lajolo, o escritor idealizou uma vida pública, parcialmente,
em dissonância com sua vida privada. Em outras palavras, procurou não
transparecer certos ideais nos quais acreditava e defendia. Para Marisa, Lobato é
um sujeito com mobilidade de pensamento e essa capacidade de variação é o que
agrada o público infantil. Essa característica seria também perceptível, segundo ela,
a partir da análise dos próprios personagens do Sítio do Pica-pau Amarelo, onde
cada um possui uma personalidade distintamente definida: ―Visconte‖ e sua
inteligência; ―Pedrinho‖ e sua liderança; ―Narizinho‖ e sua parvalhice; ―Emília‖ e sua
imprevisibilidade e irreverência; Dona Benta e Tia Nastácia como as ―matrizes
adultas no Sítio‖ (LAJOLO, 2011). Lajolo trata de destacar, também, que essas duas
últimas personagens são, além disso, mulheres, onde uma é branca e a outra é
negra, o que, aparentemente, demonstraria uma equiparação que desconstrói a
entendimento de que Monteiro Lobato propunha uma hierarquia entre as ―raças‖.
Os estudos de Marisa Lajolo abrem espaço para que a análise se alargue a
outras esferas ligadas à problemática sobre as ideias raciais de Monteiro Lobato.
Percebe-se que uma das justificativas principais de acusação ao escritor é a história
46
apresentada em seu único romance – O presidente negro, cujo enredo apresentaria
uma defesa explícita do preconceito racial e, segundo declarações epistolares do
autor, um propósito propagandista da teoria eugênica8. Nesse viés, torna-se
relevante evidenciar qual a leitura feita por Lajolo dessa obra no que se refere à
presença de ideais preconceituosos. Em sua obra Monteiro Lobato: um brasileiro
sob medida (2000), a pesquisadora analisa as intenções de Lobato ao escrever seu
primeiro e único romance. Primeiramente lançada em forma de folhetim, no jornal A
Manhã, em 1926, a obra foi produzida com o objetivo de ser publicada nos Estados
Unidos, país para o qual Monteiro seria transferido devido a sua nomeação como
adido comercial brasileiro. A respeito desta criação literária, Marisa Lajolo afirma:
O enredo escandaliza. E entre as razões do escândalo pode se incluir a atualidade da temática, a um tempo em que o conceito de ―eugenia‖ era evocado acima e abaixo do Equador para justificar políticas de exclusão e marginalização. / Sem happy end, o livro tem um narrador desinteressado em discutir aspectos éticos da história que conta e parece ter sido planejado por Monteiro Lobato como uma espécie de passaporte para suas pretendidas atividades de escritor e editor nos Estados Unidos. [...] / Assim, no projeto que Monteiro Lobato tem para O presidente negro não há mais lugar para a imagem ingênua do escritor para quem a produção de um texto corresponde a uma necessidade de expressão íntima, como reza a tradição romântica. Pois, por mais que O presidente negro apresente elementos fundamentais para o estudo das ideias lobatianas a respeito de sociedades melhores e piores [...], esse romance foi feito sob medida, de acordo com a imagem que Monteiro Lobato tinha do público norte-americano (LAJOLO, 2000, p. 68). [grifos do autor]
As considerações apresentadas por Marisa Lajolo destacam que Monteiro
Lobato havia incorporado o espírito de editor e que havia elaborado seu romance
com fins meramente mercadológicos. Segundo a autora, o então adido comercial, ao
compor a história de um choque entre as raças branca e a negra, teria cogitado um
público leitor que presenciava a separação racial no país e que, possivelmente,
aprovaria o resultado final do conflito existente no enredo de sua obra, mas
encontrou resistência dos editores mais conservadores. Além disso, segundo Lajolo,
esse propósito de conquistar o público norte-americano estaria desassociado de
qualquer posição do autor com relação ao tema.
Em estudo anterior, Marisa Lajolo analisa a ―figura do negro‖ na produção
literária lobatiana (LAJOLO, 1999). A pesquisadora resgata Tia Nastácia como ponto
de partida e afirma que a personagem ―desfruta da afetividade da família matriarcal
8 A obra será analisa com maior profundidade no Capítulo ―As ideais raciais de Monteiro Lobato II‖ (p.
124)
47
branca para a qual trabalha‖ (p. 65), com exceção de Emília, cujas falas
direcionadas a Nastácia são, na maioria das vezes, desrespeitosas. De acordo com
o estudo, esses discursos de Emília são interpretados, por alguns estudiosos do
tema, como indicação clara do preconceito do seu criador. Marisa põe, então, em
contraposição as funções desempenhadas por Dona Benta, em Peter Pan (1930) e
Dom Quixote das crianças (1936), e Tia Nastácia, em Histórias de Tia Nastácia
(1937), como contadoras de histórias.
Nas três obras, as duas personagens tomam a palavra do narrador principal e
narram histórias às crianças do Sítio do Pica-pau Amarelo. De acordo com a
pesquisadora, Dona Benta, nas duas primeiras obras supracitadas, fala de um lugar
mais elevado em relação a seus ouvintes e utiliza-se da oralidade nas narrações
apenas para instigar o interesse do público pela cultura escrita e,
consequentemente, pela leitura (p. 68). Por outro lado, Nastácia, a qual, segundo a
professora da UNICAMP, encontra no cômodo da cozinha o seu lugar de atuação e
o registro de sua posição social (p. 65), ganha novo espaço em Histórias de Tia
Nastácia, obra constituída por uma série de contos populares narrados por ela.
Entretanto, diferentemente das histórias proferidas por Dona Benta, as de Tia
Nastácia, em vários momentos, recebem rejeição dos seus interlocutores. Segundo
Lajolo:
[...] quando Tia Nastácia assume a posição de contadora de histórias, a relação de forças entre ela e sua audiência (a mesma das histórias de Dona Benta) é completamente outra. Tia Nastácia transfere para o lugar de contadora de histórias a inferioridade sócio cultural da posição (de doméstica) que ocupa no grupo e além disso (ou, por causa disso...), por contar histórias que vêm da tradição oral, não desempenha a função de mediadora da cultura escrita, ficando sua posição subalterna à de seus ouvintes, consumidores exigentes da cultura escrita [...] (LAJOLO, 1999, p. 68).
No caso das histórias de Nastácia, a oralidade deixa de ser usada apenas
como mediação do estímulo à cultura escrita e passa a ser o cerne da transmissão
das histórias através da cultura popular, representada pela personagem. Não
obstante, ao considerar o projeto modernista de Monteiro Lobato, Marisa Lajolo
questiona ―que lugar podia haver, nesse mundo moderno, para tias nastácias e as
culturas que elas representam?‖ (p. 71). Além disso, propõe a consideração de que
Dona Benta fosse, nessas circunstâncias, a alter ego de seu criador e as produções
anteriormente ressaltadas como objetos de conflito entre a cultura negra,
representada por Tia Nastácia, e a modernidade branca, representada por Dona
48
Benta e as crianças. Já sobre a receptividade dos leitores dessas produções
lobatianas, a pesquisadora considera que, dificilmente, optarão por apoiar a
Nastácia, apesar do possível afeto pela personagem:
Ao ir lendo a reação dos ouvintes às histórias que Tia Nastácia vai contando, o leitor de Lobato sente-se tentado a tomar partido. E só por estar lendo, são muito pequenas as chances de que sua solidariedade vá para a preta velha que desfia histórias por quem, na melhor das hipóteses e como os pica-pauzinhos, ele (leitor) nutre sentimentos de afeto mas que, nem por serem autênticos, deixam de ser uma das expressões que racismo assume na cultura brasileira (LAJOLO, 1999, p. 74).
O trecho destacado demonstra que essa afetividade coincide com uma das
formas de preconceito racial, no qual vingava um sentimento paternalista em relação
aos negros. Ainda entre os personagens do Sítio, Lajolo destaca que ―Tio Barnabé‖
é ―versão feminina de Tia Nastácia‖ e detentor de papéis secundários nas histórias
de Lobato. Além disso, se a personagem negra mantinha como característica a sua
situação no espaço da cozinha, ―a marginalidade narrativa de Tio Barnabé
concretiza-se no detalhe de sua cabana localizar-se nos confins do Sítio‖ (p. 76).
Para Marisa Lajolo, todas as vezes que Nastácia acompanha os outros personagens
em ações fora do Sítio é para desempenhar funções semelhantes às que executava
dentro dele, como, por exemplo, ao fazer ―bolinhos para o Minotauro‖ ou fritar
―batatas para o príncipe Codadad‖. Para a investigadora, essa imobilidade ficcional
de Nastácia ―parece combinar bem com a representação da imobilidade social a que
estão confinados os segmentos dos quais ela pode ser o emblema‖ (p. 76).
As considerações anteriores parecem demarcar um terreno de marginalização
dos integrantes negros e da própria cultura popular na obra infantil de Monteiro
Lobato. Por conseguinte, levando em consideração os projetos lobatianos, Lajolo
indaga: ―se já não havia lugar para os dois negros no sítio da Dona Benta como
haveria lugar para eles no Brasil de Lobato?‖ (p. 76). Com base na colocação, a
pesquisadora acredita que o lugar do negro na obra infantil lobatiana pode
representar o espaço a ele destinado nos projetos modernistas ansiados pelo
escritor.
A professora da Universidade Mackenzie acredita que essas características
não são restritas a literatura infantil de Monteiro Lobato, mas sim reforçadas na sua
obra adulta. Assim, tanto Timóteo, no conto ―O jardineiro Timóteo‖, e Leandro, em
―Bugio moqueado‖, seriam representantes da ―impossibilidade de sobrevivência de
certos segmentos da população brasileira a partir da instauração do processo de
49
modernização‖ (p. 77). Lajolo menciona também o conto ―Negrinha‖9 e o caracteriza
pela ―dramática denúncia do narrador lobatiano do racismo do qual Negrinha é
vítima‖. Vê-se que, para esse conto, o narrador é qualificado como denunciante das
atitudes preconceituosas perpetradas sobre a menina negra, o que demonstra um
caráter de rejeição dessas ações e certa ambivalência se tomado como queixa dos
direitos dos negros. Marisa conclui que essas representações de cunho mais
violento se diferenciam do ―paternalismo afetuoso‖ com que o negro é tratado na
obra infantil de Lobato (p. 77).
Nesse estudo, refere-se ao romance lobatiano – O presidente negro –
demonstrando, primeiramente, o antes comentado interesse de publicação nos
Estados Unidos. Não obstante, afirma que tanto em Histórias de Tia Nastácia quanto
no seu único romance:
[...] a representação do negro e de sua inserção no seio de uma sociedade que se quer branca, não hesita no realismo das soluções narrativas adotadas, inscritas ambas na moldura da oralidade. Quer na chave do realismo fantástico da história norte-americana, quer na do realismo miúdo e cotidiano do sítio de Dona Benta, o conflito é violento porque ele não era menos violento na vida real, nem abaixo nem acima do Equador (LAJOLO, 1999, p. 80).
As obras estariam, assim, fundamentadas em uma representação
compromissada com a realidade racial do período, conflitualmente violenta, de
acordo com Lajolo. Entretanto, apesar da análise em retrocesso dos estudos de
Marisa Lajolo, é possível perceber certa ambiguidade nas colocações da
pesquisadora, principalmente no que se refere ao papel de Tia Nastácia na obra de
Lobato. Nesse primeiro estudo afirma que o leitor dificilmente optaria por apoiar a
personagem na defesa de sua cultura popular e oral, mas, posteriormente, em meio
à polêmica atual, afirma que esse mesmo leitor, ao conhecer a obra infantil de
Monteiro Lobato, acaba por obter uma impressão bastante positiva de Tia Nastácia,
ou seja, que as colocações postuladas nas narrativas não acarretavam em visões
preconceituosas em direção aos personagens negros. Considerou, primeiramente,
que a atuação de Nastácia ao preparar ―bolinhos‖ ao Minotauro era o reforço de sua
posição subalterna de cozinheira, mas, posteriormente, considerou que, na interação
entre as personagens, tenta-se demarcar a igualdade entre as os sujeitos, como em
Caçadas de Pedrinho: ―Negro também é gente, sinhá...‖. Além disso, a própria
9 Os três contos citados aqui fazem parte da coletânea Negrinha (1920).
50
afetividade paternalista antes considerada passou a significar uma nova equiparação
de valores entre as ―matrizes adultas no sítio‖, como sendo, as duas mulheres, uma
branca e uma negra.
A prolongada análise do posicionamento de Lajolo e dessa aparente
ambiguidade, talvez resultante de mudança de opinião não informada no
desabrochar da discussão ou mera contradição, serve para demonstrar o quão
problemático é o debate sobre as ideias raciais em Monteiro Lobato, os quais
acabam por geram controvérsias até mesmo dentro do discurso de um mesmo
pesquisador. As opiniões sobre a suposta existência de racismo em Lobato se
fundamentam em políticas públicas, em teorias literárias e linguísticas, na opinião
pública, etc., expondo discursos que ora se opõem ora dialogam, mas que, no final,
deixam sem respostas as indagações sobre quais realmente eram os ideais raciais
do criador do Sítio do Pica-pau Amarelo.
Cruzou, por praticamente todos os pareceres, a conclusão de que sua
posição era resultante de um período histórico-social problemático no âmbito das
relações etnicorraciais. Torna-se, então, relevante averiguar se é legitima a
abordagem que põe em diálogo a literatura e a sociedade, ou seja, a possibilidade
de análise da obra literária em função de sua inserção em um contexto histórico,
social e político específico. Consequentemente, verificar qual a leitura que o escritor
paulista fez sobre a questão racial e como interagiu com essa problemática
socialmente. Ademais, não se pode, obviamente, afirmar que seus discursos, não
literário e literário, são de mesma natureza, nem que os ideais presentes no
primeiro, sejam eles positivos ou negativos, se reproduzem automaticamente no
segundo, mas é possível analisar em que medida esses discursos se relacionam na
esfera dessas relações. Os próximos capítulos objetivarão responder a essas
indagações.
51
3. As discussões raciais entre o final do século XIX e início do século XX
3.1 Produção literária e sociedade
Viu-se, no capítulo anterior, os distintos posicionamentos e manifestações
referentes à acusação de racismo nas produções literárias de Monteiro Lobato, os
quais puseram em diálogo diferentes vozes sociais e apresentaram justificativas
fundamentadas nas mais variadas vertentes. Quer fosse para acusações quer para
defesas, por diversas vezes, evocou-se a necessidade de contextualização do
período em que o escritor paulista viveu, formou seu pensamento intelectual e
escreveu suas obras. É indiscutível que os ideais do escritor a respeito do negro
estejam relacionados, de alguma maneira, a concepções correntes na sua
contemporaneidade, podendo essa relação ser, obviamente, de repulsa ou de
afeição.
Monteiro Lobato não escreveu apenas textos literários, mas também investiu
em reflexões sobre diversos aspectos do país, como a sociedade, a saúde, a
economia, a política, etc., algumas publicadas apenas em jornais outras em livros.
Muitas das suas avaliações foram discutidas com amigos por meio de
correspondências, algumas delas disponíveis em obras editadas por ele mesmo,
outras em entidades que preservam documentos herdados dos interlocutores do
escritor – como a Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro, e o Instituto Biológico
de São Paulo, as quais guardam cartas enviadas por Lobato a Renato Kehl e a
Arthur Neiva respectivamente. A partir da análise dessas variadas produções é
possível averiguar quais eram os ideais raciais nos quais cria e de que maneira
essas concepções interagem com as discussões sobre o tema que vigoravam no
período.
Entretanto, no que se refere ao âmbito literário, que relação é possível entre a
dimensão social da primeira metade do século XX e a literatura lobatiana? Em
outras palavras, seria legítimo um estudo que abordasse o texto literário em diálogo
com os aspectos sociais do período no qual foi elaborado? Daniel Madelénat, a
respeito do estudo comparativo entre ―Literatura e Sociedade‖ (MADELENÁT, 2004),
52
afirma que:
A arte é uma atividade social; a obra estética não se isola de um contexto religioso, político, cultural, económico e até mesmo técnico, resumindo, de um conjunto de instituições, de mentalidades, de ideologias, de saberes, de atitudes propriamente sociais: eis a evidência, ou o postulado, que inaugura toda a reflexão sobre as relações sobre a literatura e a sociedade (MADELÉNAT, 2004, p. 101)
Assim, a abordagem sociológica da literatura não se desfaz do caráter
estético da obra literária, negando-o ou obscurecendo-o, mas, pelo contrário, busca
averiguar de que maneira os fenômenos sociais surgem esteticamente
representados. No mesmo viés, cabe destacar que essa ligação entre os universos
social e literário não se dá de forma automática e involuntária, ou seja, não existe
um determinismo que imponha ao literato a necessidade de apresentar uma
realidade social com extrema exatidão, pois:
[...] a obra é um mundo em si mesmo, cosmos ou mónada, com a sua linguagem, as suas normas, as suas imagens; os signos que a compõem obedecem à sua própria lógica, autotélica ou autocentrada, longe de copiar servilmente ou mesmo fotografar, uma realidade social. Nenhuma causalidade directa, mecânica, tiraniza o escritor, a escrita ou o leitor; nenhuma servidão flagela os temas. A sociedade propõe, condiciona, apresenta um repertório (monumentos, formas, acontecimentos, tradições...): o criador dispõe, combina, organiza esses dados segundo os seus fantasmas, as suas intenções estéticas, as suas possibilidades pessoais (Idem, Ibidem, p. 102).
A afirmação de Madelénat pode ser posta ao lado da consideração de Antonio
Candido de Mello e Souza, em Literatura e Sociedade (1965), ao destacar a
necessidade de ―consciência da relação arbitrária e deformante que o trabalho
artístico estabelece com a realidade, mesmo quando pretende observá-la e transpô-
la rigorosamente, pois a mimese é sempre uma forma de poiese‖ (CANDIDO, 2000,
p. 13). Essas postulações apresentam o caráter ―transformador‖ da produção
literária. Ela é a criação de um ―microcosmo paralelo ao macrocosmo‖
(MADELÉNAT, 2004, p.102), onde o social deixa de ser ―realidade‖ e passa a ser
―representação‖. Assim, segundo Candido, a interpretação que parta do princípio de
que, para entender-se uma obra, faz-se necessário apenas transpô-la à realidade
―corre o risco de uma perigosa simplificação causal (p. 13).
Para Antônio Candido, a obra de arte é, acima de tudo, ―comunicação
expressiva, expressão de realidades profundamente radicadas no artista‖ (p. 20),
além disso, ―os impulsos pessoais predominam na verdadeira obra de arte sobre
quaisquer elementos sociais a que se combinem‖ (p. 33). Assim, a sociedade
53
disponibiliza um apartado de temas, conteúdos e ideias para a elaboração da obra
artística, mas predomina sempre a intencionalidade criativa, que no momento da
feitura se combina com os elementos sociais a fim de gerar o objeto final. Sobre
isso, Candido destaca, também, a existência de questionamentos que buscam
compreender ―se a obra é fruto da iniciativa individual ou de condições sociais,
quando na verdade ela surge na confluência de ambas, indissoluvelmente ligadas‖
(p. 23-24).
No mesmo caminho, Daniel Madelénat destaca que ―quer o artista se integre
harmoniosamente numa civilização ou se lhe oponha (num conflito latente e
violento), ele testemunha os desenvolvimentos, as repressões, as regras ou os
costumes que caracterizam uma sociedade‖ (p. 101). Consequentemente, assim
como seus contemporâneos, ele ―pertence a um meio (grupo etário ou geracional,
classe social, província, bairro, círculo, capelinha ou cenáculo) cujas preocupações,
interesses, preconceitos, sensibilidades e fantasmas ele exprime‖ (p. 119). Assim, o
projeto estético de um escritor estaria interligado às suas várias inquietações e
ideais, formadas no seio das relações sociais de sua contemporaneidade.
Entretanto, cabe ressaltar que dependerá de escolhas por parte do escritor a
inserção ou não dessas concepções pessoais como componentes de sua produção
literária. Além disso, qualquer tipo de representação pode não coincidir com as
aspirações pessoais e não literárias do artista, pois a literatura não é reflexo da vida
do escritor e essa correlação entre autor e obra pode apresentar desconexões ou
contradições.
Para a problemática que compõe o cerne desta pesquisa, faz-se necessário
cogitar as mais variadas possibilidades, desde a consideração de que o pensamento
de um escritor sobre determinada temática está em harmonia com sua produção
literária quanto a de que essa comparação possa apresentar oposições. Como
exemplificação da possibilidade de dissonância entre discurso não ficcional e
ficcional, pode-se retomar a colocação de Anatol Rosenfeld (1912-1973), em ―Arte e
fascismo‖ (ROSENFELD,1993), ao considerar a relação entre os ideais do escritor
norueguês, Knut Hamsun (1859-1952), e a sua produção literária. Segundo
Rosenfeld, Hamsun ―se colocou com decisão e paixão no lado do nazismo‖ (p. 189),
mas sua produção literária não apresenta a ―decadência moral de seu criador‖
(p.197), ou seja, a sua afiliação ideológica ao nazismo não repercute em seu
54
trabalho artístico, com representações em defesa do partido, originalmente,
alemão10.
Obviamente, o social entra em cena não apenas no processo de produção
dos textos literários, mas também na fase de recepção desses textos, pois a sua
interpretação também é situada sócio-historicamente e essa constatação é o que
elucida as novas leituras da obra lobatiana, com novas interpretações e
perspectivas. Por fim, as exemplificações expostas anteriormente servem para
demonstrar que a literatura e a sociedade ora apresentam ligações ora intersecções.
Em meio a essas complexas relações de interação e desconexão, a investigação
que aqui se desenvolve buscará averiguar de que maneira Monteiro Lobato
assimilou as discussões sobre a questão racial brasileira e, consequentemente, se
sua produção literária apresenta características que possibilitam a aproximação com
seu pensamento intelectual sobre a mesma temática. Para tanto, far-se-á necessário
traçar um panorama do período que compreende o final do século XIX e início do
século XX, levando em consideração as tensões geradas pelas mudanças ocorridas
no país com a alteração de regimes e de forma de governo e os variados debates
originados sobre o âmbito racial.
3.2 O contexto abolicionista e republicano
Serão traçadas, aqui, breves considerações a respeito do contexto pré-
abolição, no intuito de melhor visualizar os projetos ansiados por grande parte da
intelectualidade brasileira entre o final do século XIX e o início do século XX, no que
se refere a sua constituição racial. Para a contextualização que se propõe tanto
neste tópico como no seguinte, toma-se como fundamento o estudo de Thomas
Skidmore (2012) sobre a temática racial. A partir desse embasamento, resgatar-se-
ão outros materiais que, em dialogo com o anterior, venham a contribuir para os
objetivos supracitados.
Constantemente preocupada com as opiniões vindas do exterior, parte da
intelectualidade brasileira adotou teorias científicas contemporâneas que supunham
a existência de uma superioridade do branco com relação às outras raças, a fim de 10
Para uma fundamentação teórica sobre a relação entre ―autor‖ e ―narrador‖, leia-se Genette
(1979), Aguiar e Silva (1988) e Leite (2005).
55
implantar projetos de branqueamento da população, primeiramente, através da
miscigenação e, posteriormente, com os ideais de melhoria da raça ditados pela
teoria eugênica. O Brasil foi um dos últimos países do mundo a abolir a escravatura.
Apesar da persistência no mantimento da escravidão, a adoção do sistema de
trabalho livre se tornaria inevitável, graças ao fim do tráfico de escravos, sob
pressão da Inglaterra, em 1850. Assim, a falta de indivíduos para a reposição da
mão de obra se tornou um problema para a manutenção escravagista. Na década de
1870, no Rio Grande do Sul, iniciou-se uma busca de imigrantes que suprissem
essa falta, resultado de uma previsão de que tão logo não haveria como recompor o
grupo de escravos necessários para o trabalho. Este seria o primeiro passo para que
se repensasse a situação brasileira no âmbito da escravidão.
Paralelos a esses acontecimentos e às discussões que deles nasciam,
surgiram, também, debates que questionavam a ineficiência do regime monárquico.
Uma corrente filosófica francesa mudou as orientações de grande parte da
intelectualidade brasileira na segunda metade do século XIX. Criados por Augusto
Comte, os ideais positivistas contrariavam todo o sistema vigente no país: a
monarquia, a escravidão, a religião, etc. Os intelectuais que se debruçaram sobre as
considerações de Comte acabaram por se tornar empenhados republicanos.
O pensamento republicano e o abolicionista sempre andaram intrincados. O
Partido Republicano, inicialmente, se absteve de um envolvimento com o
abolicionismo com o intuito de conquistar o apoio de fazendeiros influentes,
sobretudo na província de São Paulo, onde a economia em torno do café se
expandia rapidamente. Entretanto, posteriormente, o abolicionismo conquistou
grande número de intelectuais adeptos ao republicanismo. Outros intelectuais, como
André Rebouças (1838-1898), preferiam não investir contra o Império e deixaram as
ideias republicanas de lado.
Em 1866, d. Pedro II recebeu um pedido de abolicionistas franceses, para que
usasse de sua autoridade como imperador e acabasse com a escravidão no país.
Na mensagem enviada pela ―Junta Francesa de Emancipação‖, o apelo visou
convencer o Imperador de que o fim do tráfico foi uma medida incompleta e que já
eram muitas as vozes que se levantavam em favor do fim da escravidão. No
documento, a entidade destacou:
O número de escravos é menos que os dos homens livres; e quase 1/3 já
existe nas cidades exercendo ofícios ou servindo de criados, e é fácil elevá-
56
los a condição de assalariados. A emigração dirigir-se-á para as vossas províncias, desde que a servidão tiver desaparecido. A obra da abolição, que deve atender aos fatos, interesses, situações, parece menos difícil no Brasil, onde aliás os costumes são brandos, e os corações humanos e cristãos (BROGLIE et al., 2005, p. 53-54).
Percebe-se que a manifestação intentou tranquilizá-lo sobre a possível falta
de mão de obra decorrente da libertação dos escravos, pois a vinda de imigrantes
certamente começaria a partir do momento em que o trabalho forçado cessasse.
Além disso, tratou de lembrá-lo que era grande o número de alforriados que já
haviam se adaptado sem problemas ao trabalho livre e remunerado. E, por fim,
recorreram à exaltação das ―grandezas‖ do país, as quais não condiziam com o
regime que ainda adotava. Naquele momento, as preocupações do Império estavam
voltadas para a Guerra do Paraguai (1864 – 1870), que já durava mais de um ano.
No entanto, esse conflito teve um vínculo indireto com a problemática da escravidão,
pois revelou ao país a falta de homens preparados para desempenhar a função
militar. Em consequência, escravos foram enviados para as frentes de batalha,
recebendo como promessa por bom desempenho a liberdade.
O Brasil demorou a formar um grupo expressivo de partidários ao
abolicionismo e, consequentemente, seus resultados também tardaram. Somente
em 1871 foi possível notar uma atitude abolicionista objetiva. Nessa data, foi
assinada a Lei do Ventre Livre, a qual dava liberdade a toda criança nascida,
daquele momento em diante, em berço escravo. A abolição adquiria, assim, cada
vez mais inevitabilidade. No fim da mesma década, o projeto abolicionista ganhou
um engajado reforço que mudaria os rumos da discussão: Joaquim Nabuco (1849-
1910). Parte da intelectualidade cria que o país não resistiria ao fim do regime
escravista. Em contrapartida, Nabuco afirmava que era preferível submeter-se a tais
provas do que ser uma nação incapaz de sobreviver sem o lastreamento da
escravidão. A abolição libertaria não só os escravos, mas também o Brasil do atraso
decorrente do trabalho forçado e o estimularia a dar uma guinada em direção a uma
verdadeira independência (Nabuco apud Skidmore, 2012, p. 60-61).
No tocante à raça, os abolicionistas demonstravam ser contraditórios. Para
Nabuco, no Brasil, diferente do que em outros países escravagistas, a escravidão
nunca gerou ódio entre os escravos e seus senhores (Nabuco, 2003, p. 40). Para
grande maioria da população, não existia preconceito racial no país. Além disso,
segundo Skidmore, ―os abolicionistas no Brasil raramente se viam obrigados a
57
discutir a questão da raça em si, porque os defensores da escravidão praticamente
nunca recorriam a teorias de inferioridade racial‖ (p.62). Ao mesmo tempo, imperava
entre os adeptos do movimento a crença no ―evolucionismo‖, o qual postulava que,
no final, a ―raça superior‖ predominaria sobre a ―inferior‖, inevitavelmente.
Nos primeiros anos da década de 1880, ano em que foi fundada a ―Sociedade
Contra a Escravidão‖, foi possível observar a existência de um movimento mais
significativo objetivando o alcance da abolição. As críticas estrangeiras em direção à
escravidão, até mesmo dos Estados Unidos, que há pouquíssimas décadas havia
abolido o trabalho escravo, era o argumento mais utilizado entre os abolicionistas.
Para eles, o atraso brasileiro nesse tocante afetava sua integridade moral e impedia
a chegada do progresso. Ademais, os abolicionistas se beneficiavam desse repúdio
para solicitar a intervenção de homens influentes junto a d. Pedro II, o que, muitas
vezes, soava com um antipatriotismo.
Percebe-se que o discurso de grande parte dos abolicionistas, por trás da
máscara humanitária que agia em prol do negro e de uma democratização racial,
visava muito mais o melhoramento da visão que se tinha do Brasil no exterior. Em
consequência, o país começaria a ser visto como um lugar conveniente para
investimentos por parte das potências europeias. O incremento do sistema industrial
brasileiro atrairia, também, a vinda de imigrantes, os quais visavam melhores
condições de vida nos países do Novo Mundo, em constante desenvolvimento. Ver-
se-á, mais adiante, que esse investimento na promoção da imigração europeia
objetivava suprir a carência de mão de obra qualificada no setor agrícola e, por
conseguinte, o aumento do número de indivíduos ―brancos‖ considerados
―superiores‖ desde uma categorização racial.
Quando os seus ideais já haviam atingido o âmbito nacional, o abolicionismo
deu novo passo rumo ao seu objetivo. Em 1885, foi assinada a Lei do Sexagenário,
dando liberdade a todo escravo com mais de sessenta e cinco anos. Os que
estavam na faixa entre os sessenta e sessenta e cinco deveriam cumprir mais três
anos de serviço aos seus ―proprietários‖. Alguns anos mais tarde, alguns fazendeiros
conservadores, que antes haviam defendido arduamente o mantimento da
escravidão, mobilizaram-se para dar fim ao regime escravista. Com isso, tinham
como objetivo evitar a ascensão ao governo de abolicionistas que viessem a
desfavorecer a classe agrária, mantendo, assim, o domínio em suas mãos. Em 13
58
de maio de 1888, substituindo seu pai d. Pedro II, na ocasião, doente, a princesa
Isabel assinou a Lei Áurea, que dava liberdade a todos os escravos sem qualquer
indenização aos antigos senhores.
Vários foram os motivos que levaram muitos brasileiros a se tornarem
adeptos ao republicanismo. Um deles foi a consciência de que o país carecia de
qualquer perspectiva de desenvolvimento econômico, além da ligação problemática
entre o Estado e a Igreja, que conturbava a muitos conservadores, gerando atritos
constantes. Por outro lado, no último instante, o republicanismo ganhou novos
defensores, os chamados ―republicanos de 13 de maio‖, devido à insatisfação dos
fazendeiros que não receberam ressarcimentos pela perda de seus escravos.
Resultante desses e de outros descontentamentos com a monarquia, em 15 de
novembro de 1889, uma frente militar, conduzida pelo Marechal Deodoro da
Fonseca, depôs o imperador e proclamou a República Brasileira.
No Brasil, em momento algum se havia pensado em barrar o contato do
branco com o negro, com o índio ou, mesmo ainda, com o próprio mestiço. Mesmo
antes da abolição, era perceptível uma imensidade de matizes de cor da pele entre a
população brasileira, pois, até então, uma infinidade de escravos já havia sido liberta
e, distante das concepções dadas pelo racismo científico em voga na segunda
metade do século XIX, a miscigenação havia se dado sem tentativas de intervenção.
Além disso, desde o período colonial, alguns negros e mulatos alcançaram um nível
diferenciado dos escravos que desempenhavam trabalhos pesados. Devido à
necessidade de mão de obra para determinadas atividades, esses indivíduos
desfrutavam de privilégios negados aos que não compartilhavam as mesmas
funções. Consequentemente, a grande maioria ganhava a liberdade, mas era
constante que permanecesse prestando serviços a seus antigos senhores. Segundo
Skidmore:
É plausível que uma carência mais que centenária de mão de obra branca qualificada e semiqualificada no Brasil colonial obrigasse aos conquistadores europeus a legitimar a criação de uma categoria de negros libertos que fossem capazes de executar essas tarefas. O mesmo processo provavelmente continuou durante o século XIX (SKIDMORE, 2012, p. 83).
Essa prerrogativa, usufruída na maioria das vezes por mulatos, acabou
gerando um nível intermediário de indivíduos, entre a elite branca e os escravos
negros, os quais obtiveram a possibilidade de mobilidade e ascensão social, mesmo
antes do fim da escravidão. Esse pode ser considerado o primeiro passo em direção
59
a uma democratização racial brasileira. No século XIX, o número de libertos
aumentou significativamente. Cada novo liberto se deparava com uma
hierarquização racial que interferia diretamente nas possibilidades de crescimento
na sociedade. Quanto mais clara a cor da pele, mais possibilidade de ascensão
social e, consequentemente, quanto mais escura, a probabilidade de ascensão era
menor. Assim como afirma Thomas Skidmore, não só aspectos físicos – como, por
exemplo, a cor da pele, a textura do cabelo e os traços faciais – interferiam na
avaliação do observador, mas também sociais e econômicos, tais como: os círculos
sociais, os patrimônios, a educação, as boas maneiras, etc. (p. 81-82).
Muitos desses libertos buscavam migrar para outras regiões para ocultar suas
origens familiares. De acordo com Donald Pierson, para destituir-se das cicatrizes
oriundas de sua ascendência escrava, ―mulatos claros, de origem escrava,
conseguiam muitas vezes, em áreas distintas de seu nascimento, passar por
descendentes de pessoas livres‖ (PIERSON, 2005, p. 207). Essa mudança territorial
permitiu que estes sujeitos utilizassem as habilidades que possuíam para uso
profissional, garantindo uma melhoria na sua situação econômica. Por conseguinte,
esse importante passo possibilitou um avanço ainda maior posteriormente, com o
crescimento econômico de algumas regiões.
Segundo Pierson, com o surgimento das Academias depois da
Independência, esses homens tiveram a oportunidade de elevar as suas qualidades
intelectuais. Os títulos de doutores ou bacharéis davam a eles a ocasião oportuna
para um avanço no âmbito social (p. 208). O autor afirma, também, que, outras
vezes, pela própria vantagem de possuírem um pai branco ou por contarem com
parentes ou amigos influentes na classe dominante, acabavam conseguindo
conquistar carreiras promissoras em suas áreas de estudo. Alguns obtiveram a
chance de estudar no exterior e, ao regressarem, proporcionaram novas
perspectivas à camada que aos poucos garantia um status mais elevado.
Em 1888, depois da Abolição, os ex-escravos se depararam com uma
sociedade em que os afro-descendentes se encontravam nos mais diversos degraus
da escala social. Além disso, a norma estipulada na Lei Áurea não impôs aos
antigos escravagistas nenhuma obrigatoriedade de auxílio, em qualquer instância,
aos seus antigos escravos. Os alforriados foram largados a mercê de suas
deficiências econômicas e, por conseguinte, alguns preferiram continuar prestando
60
atividades laborais a seus antigos proprietários, submetendo-se às condições de
trabalho e aos baixos salários oferecidos pelos fazendeiros que os haviam libertado.
Muitos dos ex-escravos se mantiveram envolvidos com o trabalho agrícola,
mas em um sistema de subsistência. Outros procuraram deslocar-se para outras
regiões em busca de trabalhos nas lavouras, mas acabaram por ter que competir
com os recém chegados imigrantes. Os movimentos em prol da imigração,
começados mesmo antes da Abolição, haviam ocasionado um crescimento no
número de trabalhadores estrangeiros com mão de obra especializada. Além disso,
as teorias contemporâneas que davam ênfase a ―inferioridade negra‖ e promoviam o
branqueamento os deixavam em desvantagem, dada as considerações de
superioridade dos imigrantes europeus.
Outra camada desse grupo de forros migrou para as grandes cidades, mal
prevenidas para a sua chegada. Thomas Skidmore afirma que alguns se juntaram
em bandos conhecidos como ―capoeiras‖, os quais, com ―uma forma de luta com os
pés [...] aterrorizavam as cidades‖. Esse risco a segurança pública fez com que essa
categoria de ―criminosos‖ fosse incluída no Código Penal de 1890. Além disso,
afirma que essa ―violência reforçava a imagem do negro como elemento atrasado e
antissocial, e com isso a elite ganhava mais um incentivo para trabalhar no sentido
de um Brasil mais branco‖ (p.89-90).
Grande parte dos que defendiam a escravidão cria que a libertação dos
escravos produziria uma desordem social incontrolável e temiam que ela ameaçasse
o poder adquirido pela elite até então. Entretanto, para a sua tranquilidade, os
resultados foram exatamente o contrário. O antigo regime havia produzido nos ex-
cativos um sentimento de submissão que fez com que se sujeitassem a realidade
social e cultural dos brancos. O contexto do pós-abolição acabou por revelar a
verdadeira face dos movimentos que defendiam o fim da escravidão. O lado
humanitário da liberdade tão solicitada ao negro foi diluído e nem mesmo os mais
empenhados abolicionistas demonstraram mover esforços para garantir qualquer
direito aos escravos alforriados.
Ao se submeterem à condição de elemento alheio que lhes foi imposta, os
libertos se colocaram à margem da sociedade. Os que partiram em direção às
cidades em desenvolvimento se uniram à classe baixa já existente e a grande
maioria se aglomerou em periferias insalubres, correndo riscos constantes de
61
contrair doenças devido à falta de saneamento. Os que almejavam alcançar um
crescimento econômico se deparavam com as condições impostas por uma
sociedade culturalmente branca, onde o preconceito, agora legitimado pela ciência,
imperava em todos os setores. Devido às escassas possibilidades de acesso à
educação e à formação profissional, o atraso econômico se mantinha e a elite
legitimava o seu poder perante as classes desfavorecidas.
As campanhas eleitorais tinham como característica o elitismo e a fraude. A
Constituição de 1891 restringiu a interferência eleitoral da grande maioria da
população, pois proibia o voto de analfabetos. Segundo Neres, Cardoso e Markunas
(2006), a nova Constituição ―garantiu direitos civis e políticos e praticamente não
tratou dos direitos sociais‖ (p. 131). Além disso, afirmam que a República:
[...] trouxe a expectativa de participação das camadas antes excluídas do jogo político. Entre 1889 e 1930 houve intensa mobilização de diversos setores sociais – Revolução Federalista, Canudos, Contestado, Revolta da Chibata, Levante de Sargentos –, além de diversas greves operárias. Contudo, os diversos conflitos foram resolvidos pelo autoritarismo dos grupos que estavam no poder, que resistiam em ampliar a cidadania (NERES; CARDOSO; MARKUNAS, 2006, p. 131).
A Marinha Brasileira abria espaço para a entrada de negros e mulatos para o
posto de marinheiro. Entretanto, essa tentativa de ascensão social era barrada pelos
baixos salários, pelos trabalhos pesados em ambientes desprovidos de higiene.
Além disso, os autoritários oficiais, filhos da aristocracia, desrespeitavam o terceiro
decreto do governo provisório da República, o qual abolia o castigo corporal na
armada. Os marinheiros, na grande maioria das vezes, negros e mulatos, levavam
chibatadas pela desobediência às ordens superiores. Em 1910, sob o comando de
João Cândido (o ―Almirante Negro‖), um motim foi armado ao chegarem à Baía de
Guanabara. Os marinheiros ameaçaram bombardear as localidades onde residiam a
elite caso seus pedidos não fossem atendidos. O motim, conhecido como Revolta da
Chibata, resultou no aumento dos soldos, na redução das atividades pesadas e,
obviamente, no fim das chibatadas. O autoritarismo da elite já havia se manifestado
alguns anos antes com a urbanização da capital e o ―bota-abaixo‖ e com as políticas
sanitárias de combate a epidemias. Assim como outras revoltas populares, ora
campesinas, como a Guerra de Canudos, ora urbanas, como a Revolta da Vacina,
cujos desfechos serão analisados posteriormente, manifestaram-se os primeiros
esforços das camadas desfavorecidas da sociedade contra a prepotência da elite
brasileira.
62
Negros e mulatos buscavam, aos poucos, alcançar um reconhecimento maior
na sociedade. Uns gozavam de possibilidade de expressão cultural e cunharam
espaços das áreas das Letras, das Artes e da Política, enquanto outros viabilizavam
seu lento crescimento econômico com pequenos comércios. Entretanto, os
movimentos ideológicos do final do século XIX e início do século XX, os quais
partiam do pressuposto de que o branco era ―superior racialmente‖, reforçariam a
marginalização do negro e dos mestiços na Primeira República. Com o advento do
conhecimento biológico, uma série de teorias foi criada, seguindo caminhos
diferentes, mas com o objetivo comum de ―branquear o povo brasileiro‖. A análise
racial da questão nacional teve como primeira atitude, dentro das tendências
denominadas ―de branqueamento‖, o controle imigratório.
3.3 A questão imigratória e o “branqueamento”
Esse trabalho pretende dar conta do período em que essas discussões
alcançaram o meio intelectual e se legitimaram como teorias científicas. Esses
estudos ganharam força a partir de meados do século XIX, quando diferentes
formulações foram criadas na busca de justificar a existência dessas diferenças
entre os humanos, adaptando-se, na maioria das vezes, ao contexto e às
necessidades de cada país.
Nesse período, grande parte da intelectualidade europeia acreditava que
todos os avanços econômicos, sociais, políticos e, também, filosóficos por eles
alcançados até então eram resultado de sua superioridade com relação aos outros
povos. Essa divisão ocorreu, primeiramente, dentro do próprio continente. Os
europeus do Norte afirmavam que seus caracteres herdados geneticamente, em
conjunto com as condições climáticas em que estavam inseridos, os faziam
detentores de uma supremacia. Em consequência, os povos que dispunham de um
clima mais quente e possuíam a pele mais escura viveriam sempre no atraso
decorrente de sua ―inferioridade‖. Essa linha de pensamento postulava a existência
de uma hierarquia dentro da própria categoria racial ―branca‖, definindo escalas de
brancura entre o povo europeu.
A ideologia de superioridade nórdica não tardou a migrar para outros
territórios e encontrou forte aceitabilidade nos Estados Unidos. Não obstante, cabe
63
ressaltar que, a cada nova formulação, os estudiosos centravam a discussão, cada
vez mais, na questão da ―raça‖. Se a aplicabilidade dessas considerações tinha
muito a dizer a respeito dos próprios brancos, o que diria com relação às outras
raças? Esse ideário determinista fez nascer nas nações uma preocupação com
relação a sua constituição racial.
Nas décadas de 1840 e 1850, alguns intelectuais tomaram como base a
teoria poligênica da criação humana, a qual sustentava que o homem teria surgido a
partir de diferentes espécies. Pesquisadores norte-americanos analisaram diversas
mostras de ossadas humanas egípcias e destacaram diferenças métricas nas
estruturas dos corpos. Partindo dessa constatação, pressupuseram que tais
diferenças podiam ter ligação com outras distinções entre os povos, como, por
exemplo, culturais. Um dos mais empenhados estudiosos da teoria no contexto
americano foi o suíço Jean Louis Rodolphe Agassiz (1807-1873), o qual assinalou a
existência de diferentes espécies humanas para cada região climática. Esses
ideários fundavam a existência de um determinismo climático e genético entre os
seres humanos. O racismo começava a ganhar o amparo da ciência.
No Brasil, assim como nos outros países do Novo Mundo, a formação racial
tinha forte influência indígena, em virtude dos nativos que já habitavam o território;
branca, principiada com a chegada dos colonizadores no início do XVI; e negra, em
consequência do desgovernado tráfico de escravos africanos que perdurou até
1850. No século XIX, o país presenciou o surgimento das múltiplas correntes de
pensamento que se ocupavam em discutir a questão racial. A intelectualidade
brasileira recebeu as críticas à miscigenação com preocupação, pois, naquele
momento, o Brasil já apresentava fortes traços de uma sociedade multirracial, com
uma população predominantemente mestiça.
O francês Arthur de Gobineau (1816 -1882) foi um representativo porta-voz
desse posicionamento. Tornou-se amigo de d. Pedro II ao ser enviado ao país como
diplomata, em 1869, e não poupou esforços para menosprezar a constituição racial
brasileira. Assim como afirmou Skidmore (p.70-71), para Gobineau, a mistura entre
as raças havia degenerado a população brasileira da pior forma possível, afetando
todas as classes sociais. Consequentemente, tal insucesso levaria o povo ao
gradativo desaparecimento. Segundo ele, somente as raças europeias eram
capazes de tonificar a nação brasileira e livrá-la do ―trágico fim‖ ao qual se dirigia.
64
Outro conhecido teórico que reprovou a situação racial do país foi Louis Agassiz.
Para o suíço, a miscigenação eliminava os atributos positivos das raças puras.
Os movimentos intelectuais que visavam discutir as questões raciais do Brasil
se viram perturbados com as colocações vindas do exterior. Como anteriormente
mencionado, em nenhum momento se havia pensado, no Brasil, em controlar os
relacionamentos entre as ―raças‖. Inevitavelmente, seria necessário adotar uma
postura que condissesse com a realidade brasileira e a crença na superioridade do
branco fez com que o pusessem como meta a ser alcançada: acreditavam ser
necessário ―branquear o povo brasileiro‖ de alguma forma.
Alguns estudiosos manifestavam concordância com as teses estrangeiras que
consideravam a mestiçagem perniciosa. Outros preferiam acreditar que a promoção
da mistura do negro, do índio e do mestiço com o branco levaria a um gradativo
branqueamento da população e, junto a ele, a permanência dos caracteres positivos
da ―raça superior‖. Tal pensamento se firmava na teoria evolucionista e pretendia
apressar os resultados inevitáveis de uma vitória do branco decorrente de sua
suposta superioridade. Não obstante, como seria possível promover a mestiçagem
com o branco se, assim como afirmou Skidmore, até então, ele nunca tinha sido
maioria em nenhuma parte do Brasil (p. 83)? Em consequência, tornou-se
indispensável estudar uma maneira de fazer crescer o número de indivíduos
detentores de ―qualidades raciais elevadas‖.
Paralelo a isso, o país começava a sentir as consequências do fim do tráfico
de escravos, o que havia acarretado a falta de indivíduos para a substituição e para
a ampliação da mão de obra. Em São Paulo, o crescimento das lavouras de café
exigia cada vez mais dos cafeicultores o aumento no número de trabalhadores
agrícolas. Além disso, o fim da escravidão, no final da década de 1880, veio a
problematizar ainda mais esse déficit. Essa dupla necessidade, racial e laboral,
estimulou a ideia de que o Brasil precisava de reforços.
Era indiscutível entre os que criam na existência de uma supremacia racial
branca que, numa escala global, o branco europeu era detentor dos melhores
atributos. Assim, se era necessário elevar a quantidade de brancos no país, que se
buscasse estimular a vinda de imigrantes daquele continente. É possível observar,
também, que a ideia de que a Europa teria muito a contribuir para uma
reconstituição racial para o Brasil é percebida intrinsecamente à fala dos
65
abolicionistas.
Os discursos de abolicionistas, como Joaquim Nabuco, se mostraram
intensamente contraditórios no que se refere à questão racial. Nabuco, em sua obra
O abolicionismo, publicada pela primeira vez em 1883, declara que a raça negra não
é ―uma raça inferior, alheia à comunhão ou isolada desta‖, mas ―um elemento de
considerável importância nacional, estreitamente ligada por infinitas relações
orgânicas à nossa constituição, parte integrante do povo brasileiro‖ (Nabuco, 2003,
p. 39). De acordo com ele, o propósito pelo qual lutavam era levantado em nome de
uma raça que renunciou o seu direito de acusação. Entretanto, na mesma obra o
pensador abolicionista expõe os propósitos do projeto que promoviam, os quais
parecem representar uma ambiguidade, dado o que foi acima mencionado:
Compare-se com o Brasil atual da escravidão o ideal de pátria que nós, abolicionistas, sustentamos: um país onde todos sejam livres; onde, atraída pela franqueza das nossas instituições e pela liberdade do nosso regime, a imigração européia traga, sem cessar, para os trópicos uma corrente de sangue caucásio vivaz, enérgico e sadio, que possamos absorver sem perigo, em vez dessa onda chinesa, com que a grande propriedade aspira a viciar e corromper ainda mais a nossa raça; um país que de alguma forma trabalhe originalmente para a obra da humanidade e para o adiantamento da América do Sul. (Idem, Ibidem, p. 205).
O paradoxo se forma quando Nabuco, ao falar da importância da imigração,
declara que o ―sangue caucásico‖ europeu acrescentaria ao brasileiro as
propriedades fundamentais para a evolução do país: vivacidade, energia e saúde.
Para a grande maioria dos intelectuais que a promoviam, a busca de imigrantes
europeus tinha como objetivo dar suporte às necessidades de mão de obra agrícola
do país, reforçar a presença do "branco superior" e, consequentemente, ―fortalecer o
sangue brasileiro‖. Acreditava-se que, na mistura, os caracteres da ―raça superior‖
prevaleceria e, por conseguinte, as ―raças inferiores‖ seriam suprimidas.
O rechaço ao imigrante chinês representa uma reposta às propostas vigentes
de substituir a escravidão negra pela asiática. Esse desprezo, não só de Nabuco,
mas de grande parte dos abolicionistas, comprova que a questão racial permeava a
ideologia abolicionista, ainda que eles mesmos a negassem. Por acreditarem na
existência de uma inferioridade dos chineses, assim como outros avaliavam as
qualidades do negro, impuseram-se contra a tentativa, depois fracassada, de
promover a substituição da mão de obra negra.
66
Segundo Skidmore, em 1886, um grupo de fazendeiros criou a ―Sociedade
Promotora da Imigração‖, uma associação que objetivava estimular a vinda de
imigrantes europeus destinados a trabalhar nas lavouras de café. Mesmo não sendo
uma entidade governamental, recebia subsídios da província de São Paulo para
manutenção de suas atividades, como, por exemplo, o pagamento de passagens
aos imigrantes até a província paulista e o cuidado com os aspectos burocráticos de
suas atividades laborais nos cafezais (p. 202).
As operações que tencionavam a promoção da imigração europeia
alcançaram um maior suporte político após a Proclamação da República, em 1889.
Em junho de 1890, seis meses após o golpe político-militar, o primeiro presidente da
República brasileira, marechal Deodoro da Fonseca, firmou o decreto que
regularizaria a entrada e a localização de imigrantes no território brasileiro. O
primeiro capítulo do documento tratava da introdução desses indivíduos e o primeiro
artigo trazia os primeiros passos formais em direção aos propósitos de
branqueamento do Brasil:
Art. 1º É inteiramente livre a entrada, nos portos da República, dos indivíduos válidos e aptos para o trabalho, que não se acharem sujeitos à ação criminal do seu país, excetuados os indígenas da Ásia, ou da África que somente mediante autorização do Congresso Nacional poderão ser admitidos de acordo com as condições que forem então estipuladas (BRASIL, 1890).
As primeiras linhas que compõe o documento demonstram, antecipadamente,
a base do que se tencionava com a política imigratória do início da Primeira
República. Primeiramente, a formação de uma barreira para a entrada de africanos e
asiáticos. Seria de incumbência de diplomatas e cônsules o uso de todas as suas
influências no exterior para evitar a vinda de imigrantes desses dois continentes e
comunicar o Governo Federal, por telégrafo, toda vez que não fosse possível conter
a saída dos mesmos em direção ao Brasil. A polícia portuária teria como função o
impedimento do desembarque desses indivíduos – e de mendigos e indigentes –
nos portos brasileiros, os quais representariam um risco para desenvolvimento do
Brasil. Ademais, os comandantes que trouxessem quaisquer desses sujeitos
estariam obrigados a pagar multa ao Estado.
Em segundo lugar, nota-se o incentivo à vinda de europeus aptos ao trabalho.
Ademais, é perceptível que governo preferia trabalhadores agrícolas, ao ponto de
financiar a vinda de imigrantes através do pagamento às companhias de transporte
67
marítimo que trouxessem imigrantes europeus. O artigo 7º do primeiro capítulo do
Decreto supracitado demonstra que os valores variavam conforme a idade. Os
resultados demonstraram uma maior aceitabilidade de trabalhadores italianos,
seguidos de portugueses e depois de espanhóis, o que viria a acentuar a latinidade
do povo brasileiro e provocar desgosto a uma camada de intelectuais que acreditava
numa ―superioridade ainda maior‖ dos europeus nórdicos.
Thomas Skidmore afirma que os esforços em direção ao branqueamento
deram resultados por dois motivos. Primeiramente, porque a população negra havia
se tornado inferior a dos brancos devido à baixa taxa de natalidade, a uma maior
ocorrência de doenças e à sua desorganização social. Em seguida, porque a
mestiçagem cumpria com o objetivo de produzir ―gerações mais claras‖, pois ―os
genes brancos eram mais fortes‖ e, na maioria das vezes, ―as pessoas escolhiam
parceiros mais claros que elas‖ (p. 110). A imigração foi duramente interrompida
somente após o começo da Primeira Guerra Mundial, em 1914.
3.4 A teoria de purificação da raça
Para os estudiosos, a ideologia de branqueamento mostrou dar resultados,
mas em prazos demasiado longos. Esses ideais nasceram e se desenvolveram ao
mesmo tempo em que surgia, na Inglaterra, uma teoria que visava, aparentemente
com mais competência, à prevalência dos indivíduos considerados ―racialmente
superiores‖: a eugenia. Neste momento, adota-se as pesquisas de Nancy Stepan
(2005) e de Pietra Diwan (2007) como norteadoras da contextualização que visa
demonstrar como se deu o surgimento e a difusão das teorias eugênicas no âmbito
mundial. Posteriormente, as atenções se convergirão para a esfera brasileira, a fim
de averiguar como a intelectualidade do país lidou com essas novas teorizações e
quais foram os estudiosos que se empenharam por sua implantação.
A teoria eugênica aparece, primeiramente, como um dos resultados do
advento do conhecimento biológico no século XIX, mas, principalmente, dos novos
estudos a respeito da hereditariedade e da evolução. Na segunda metade daquele
século, o inglês Charles Darwin publica A Origem das Espécies, um tratado biológico
que expõe a teoria da ―seleção natural‖, a qual afirma que todos os animais
possuem características hereditárias, positivas e negativas. Por conseguinte, as
68
características positivas possibilitariam a determinada espécie uma melhor
adaptação ao meio ambiente e dotá-la-iam de uma superioridade em relação às
possuidoras de características negativas. De acordo com Darwin, com o passar do
tempo, ocorreria uma seleção natural onde as espécies melhor equipadas com tais
propriedades positivas teriam mais chance de prevalecer na natureza, devido à sua
preeminência hereditariamente adquirida.
Dessas premissas, surgirá na Inglaterra o darwinismo social, uma
transposição das teorias sobre o evolucionismo e a seleção natural de Darwin à
esfera humana. Assim, os seres humanos seriam também dotados de características
herdadas de seus ancestrais, as quais os enquadrariam em categorias de
superioridade e inferioridade. O discurso poligênico se aproxima em diversos pontos
ao do darwinismo social, entretanto, faz-se necessário lembrar que a o poligenismo
postulava que a origem dos humanos derivou da existência de diversas espécies,
opondo-se ao darwinismo que seguia as premissas do evolucionismo de Darwin, o
qual parte do pressuposto da evolução humana a partir de uma única espécie. A
burguesia usaria, então, esse discurso social do darwinismo na tentativa de legitimar
sua posição de controle econômico e de poder.
Posteriormente à Segunda Revolução Industrial na Inglaterra, a população
cresceu de forma incontrolável. As discussões entre superioridade burguesa e
inferioridade operária ganharam força, mas não foram capazes de superar o medo
da multidão, da falta de saneamento que assolava a classe de trabalhadores e das
consequentes doenças que se proliferavam. Na busca de controlar a ―degeneração‖
em que se encontrava essa parte da população inglesa, higienistas trabalharão para
melhorar a saúde física e moral daquela parte da sociedade.
É nesse contexto inglês que Francis Galton, primo de Darwin, desenvolveu as
teorias eugênicas, a teoria de purificação da raça. Assim como afirma Pietra Diwan,
a eugenia surge como uma busca de melhoria da raça desde uma perspectiva
biológica (DIWAN, 2007, p. 37). Galton investigará as características da sociedade
inglesa e, partindo das considerações de seu primo Darwin e de sua própria
experiência com estatística, matemática e teoria da probabilidade, buscará
categorizar a população, usando medições físicas, testes de inteligência e análise de
históricos familiares.
69
Pietra Diwan (2007) destaca que o teórico inglês montou um ―Laboratório de
Antropometria‖ em um evento realizado em Londres no ano de 1884, a fim de
―coletar e medir de diversas maneiras as faculdades e as formas físicas dos
visitantes do evento‖, realizando mais de nove mil registros (p. 42). As
características fisionômicas foram comparadas através da sobreposição das
fotografias, na busca de evidenciar tanto possíveis semelhanças físicas quanto de
caráter. Nota-se que o pesquisador partia dos mesmos pressupostos destacados
pelos estudiosos norte-americanos que mediram esqueletos egípcios e concluíram
que as diferenças físicas, provavelmente, teriam ligação com distinções intelectuais,
culturais, etc.
Os dois primos, Darwin e Galton, discutiram, conjuntamente e por alguns
anos, as teorias que haviam cunhado. Não obstante, em 1865, a separação entre os
dois acontece devido às divergências sobre a influência do meio ambiente na carga
hereditária. Para Francis Galton, a raça poderia ser aperfeiçoada através da
interferência eugênica somente se não existissem interferências exteriores. Alguns
anos mais tarde, em 1869, lança Hereditary Genius11, obra na qual, segundo Stepan
(2005), objetivava comprovar que todas as habilidades dos seres humanos
derivavam da hereditariedade e não da educação (p. 30). Tais palavras demonstram
que a tentativa de adquirir e desenvolver uma alta capacidade intelectual era
impossível, pois essas qualidades eram preestabelecidas pela herança genética.
Além disso, declara que da mesma forma que é possível:
[...] obter por meio de cuidadosa seleção uma raça de cães ou cavalos dotada de capacidade peculiar de correr, ou de qualquer outra capacidade específica, seria também perfeitamente possível reproduzir uma raça de homens altamente dotada promovendo casamentos criteriosos ao longo de várias gerações (GALTON apud STEPAN, 2005, p. 31).
Dentre as especificidades de sua teoria de melhoria da raça inglesa estaria o
controle de casamentos e o impedimento da reprodução dos considerados
indesejados, com o objetivo de fortalecer a categoria dos superiores e de que os
inaptos desaparecessem com o passar dos anos. Em contrapartida, as postulações
de Galton encontraram como barreira a consideração, por parte da sociedade, de
que era moralmente inaceitável intervir na reprodução dos seres humanos. Não
11
Hereditary Genius foi a segunda obra lançada pelo teórico inglês. Sucedeu e complementou a sua
primeira publicação, Hereditary Talent and Character (1865), onde aparecem as primeiras
formulações a respeito da teoria de melhoramento da raça.
70
obstante, para a elite inglesa, a situação atual do país demonstrava que, no auge
das discussões sobre a evolução, a sociedade estava se deteriorando, devido ao
crescimento descontrolado da classe operária, vivendo aglomerada em recintos
insalubres, e ao aumento das doenças epidêmicas e da criminalidade.
Segundo Diwan (2007), depois de um longo período dedicado à
comprovação de que as competências humanas são herdadas geneticamente,
Galton se dedicou a tentar provar que fatores como a marginalidade e as doenças
mentais também eram resultado dessas heranças (p. 41). A historiadora afirma
também, que, em 1883, o autor utiliza, pela primeira vez, o termo ―eugenia‖,
descrevendo-o da seguinte maneira:
Mencionar vários tópicos mais ou menos conectados com aquele do cultivo da raça, ou, como podemos chamá-los, com as questões ―eugênicas‖. Isto é, com problemas relacionados com o que se chama em grego de ―eugenes‖, quer dizer, de boa linhagem, dotado hereditariamente com nobres qualidades. Esta e as palavras relacionadas, ―eugeneia” são igualmente aplicáveis aos homens, aos brutos e às plantas. Desejamos ardentemente uma palavra breve que expresse a ciência do melhoramento da linhagem, que não está de nenhuma maneira restrita a união procriativa, senão, especialmente no caso dos homens, a tomar conhecimento de todas as influências que tendem, em qualquer grau, por mais remoto que seja, dar às raças ou linhagens sanguíneas mais convenientes uma melhor possibilidade de prevalecer rapidamente sobre os menos convenientes, que de outra forma não haja acontecido (GALTON apud DIWAN, 2007, p. 41-42).
Com o avanço de sua teoria, Galton passou vários anos de sua vida
promovendo a eugenia por onde fosse possível. Acreditava que era imprescindível o
aperfeiçoamento da raça, principalmente nas colônias africanas e nos países com
clima tropical. Em uma carta enviada ao editor do jornal londrino The Times, no ano
de 1873, declara a necessidade de se estimular a imigração chinesa para a costa
leste africana. Para o eugenista, aquele território não era conveniente para homens
de raça superiores como eles, entretanto, os chineses apresentavam qualidades
mais elevadas que o negro, desprovido de intelectualidade, de autoconfiança e de
autocontrole. Para ele, os chineses, além de se adequarem facilmente a qualquer
clima, alcançam o sucesso em qualquer território em que se instalam. O caráter
servil, a preguiça e a selvageria do negro nunca o haviam deixado desenvolver uma
civilização que merecesse apreço (GALTON, 1873).
Com status de disciplina científica, as teorias de Galton alcançaram mais
profundamente o meio acadêmico e intelectual somente no início do século XX,
época em que encontrou adeptos, também, na intelectualidade estrangeira. No ano
71
de 1901, o resumo de uma conferência pronunciada por Galton é publicada nos
Estados Unidos e os ideais expostos pelo teórico alcançam a simpatia de parte da
intelectualidade norte-americana, o que ocasionou a fundação, dois anos depois, da
―Associação Americana de Reprodução‖.
Os ideais eugênicos serão usados e desenvolvidos reforçando cada vez mais
a ideologia de uma suposta ―superioridade‖ de determinada raça em detrimento das
outras. Japão, Suécia, México, Argentina, Brasil, dentre outros, mas principalmente
Estados Unidos e Alemanha, aderirão às teorias galtonianas para a melhoria da
raça. É neste momento que surgirão propostas mais rígidas de controle dos grupos
que se autoconsideravam detentores dessa superioridade, onde serão incorporados
métodos mais radicais, como a esterilização compulsória ou voluntária, o
confinamento em sanatórios e os controles de imigração. Essa radicalização da
eugenia foi denominada ―eugenia negativa‖, ao ponto que a que seguia os preceitos
de Galton foi chamada ―eugenia positiva‖. A primeira lei de esterilização foi aprovada
nos Estados Unidos já na primeira década do século XX.
3.5 A eugenia brasileira
Segundo Stepan (2005), durante muito tempo, os países europeus
―simbolizavam tudo que supostamente era civilizado e avançado em contraste com
o, assim chamado, barbarismo e o atraso da América Latina‖ (p. 46). Entretanto, a
crueldade refletida pela Primeira Guerra Mundial (1914-1918) – literalmente
experimentada, na América Latina, somente pelo Brasil, mas sentida por todos os
outros países – fez nascer um novo sentimento nacionalista em cada nação, as
quais ansiavam por uma valorização no âmbito global. Além disso, pretendiam
procurar meios próprios para resolver as problemáticas que eram particulares de
cada território.
No Brasil, a popularidade da teoria galtoniana cresceu devido às diferentes
alterações ocorridas no país entre o final do século XIX e início do século XX, a um
desenvolvimento ocorrido às avessas. Após a abolição da escravatura, os libertos
haviam se entregue à subalternidade e marginalizaram-se, sem demonstrar grandes
esforços para reivindicar direitos junto ao governo. A jovem República não
apresentava estabilidade política, mas conseguia manter o poder nas mãos da elite,
72
predominantemente branca, restringindo à população o direito ao voto. Além disso,
apesar do crescimento na produção do café, o país se submetia a função de
provedor de matérias-primas. Stepan afirma que:
Frequentemente, as consequências de tal crescimento foram devastadoras – um desenvolvimento distorcido e ―dependente‖ cujas manifestações sociais foram pobreza, distúrbios sociais e, no mais das vezes, crescimento, em vez de decrescimento das desigualdades, especialmente para os seguimentos negro e mulato da população (STEPAN, 2005, p. 46).
A autora assevera também que, naquele instante, os ―preconceitos de raça e
classe fundiram-se, por conseguinte, na linguagem da hereditariedade‖ (p. 47). A
discriminação já não se dirigia apenas ao negro e ao mulato, mas também a toda
base da pirâmide hierárquica que constituía a sociedade brasileira. Assim, pobreza
virou sinônimo de sujidade e de má educação e, consequentemente, foi relacionada
ao âmbito biológico da herança genética. Além disso, a imigração, começada
mesmo antes da Proclamação da República, produziu uma larga disputa para as
vagas de trabalho, o que deixava negros e mulatos em desvantagem, devido à
tormenta erguida pelo racismo científico. Junto a isso, o acelerado processo de
urbanização iludiu um grande número de indivíduos, os quais, ao migrarem,
acabaram nas periferias das grandes cidades.
A vinda de imigrantes europeus não trouxe, evidentemente, apenas bons
resultados aos que nela apostaram. A nova classe operária brasileira era formada
por trabalhadores que já tinham conhecimento da eficácia das mobilizações em
massa, o que mudou a forma de pensar de muitos trabalhadores brasileiros. O ano
de 1917 foi marcado pelas grandes greves comerciais e industriais que afetaram,
principalmente, o estado de São Paulo. A elite brasileira sentiu o mesmo receio que
perturbou a elite inglesa na segunda metade do século passado, o do crescimento
descontrolado de uma multidão que começava a ganhar força. A população de
classe baixa era vista como um todo homogêneo, composta, basicamente, por
doentes, famintos, alcoólatras, vagabundos e criminosos e que davam passos
contrários ao progresso.
A intelectualidade brasileira, no intuito de mostrar-se cada vez mais como um
país disposto a alcançar progresso, investiu no avanço do conhecimento científico,
principalmente nas áreas da Medicina, Psicologia e Antropologia. A virada de
séculos presenciou a ―cientificação‖ do racismo, mas o Brasil já havia se oposto às
teorias que justificavam o seu atraso devido à suposta existência de um
73
―determinismo climático‖, segundo o qual seria impossível a evolução de um país
que possuía um clima tropical. O movimento sanitarista, na primeira década do
século XX, se mostrou disposto a curar o país de suas enfermidades. Segundo
Simone Kropf e Nísia Lima:
O movimento pelo saneamento do Brasil, desencadeado durante a Primeira República (1889-1930), colocou em evidência as precárias condições de saúde das populações rurais como principal obstáculo a que o país se civilizasse e se tornasse efetivamente uma nação. Sua origem e trajetória estiveram diretamente relacionadas à história da tripanossomíase americana ou doença de Chagas, descoberta por Carlos Chagas, médico e pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz, em Lassance, norte de Minas Gerais, em 1909 (PONTES; LIMA; KROPF, 2010, p. 79).
As pesquisas cunhadas pelo médico epidemiologista Osvaldo Gonçalves Cruz
(1872-1917), no início da primeira década do século XX, foram o passo inicial para
uma nova perspectiva em direção à saúde brasileira e o marco inicial do movimento
sanitarista. Por conseguinte, a descoberta de Carlos Chagas, então integrante do
Instituto Osvaldo Cruz, da tripanossomíase americana (Doença de Chagas)
despertou a atenção da classe médica aos problemas de saúde da área rural
brasileira. A descoberta alavancou a jornada sanitarista, na qual um grupo de
médicos buscou promover políticas públicas que dessem conta de resolver os
problemas de insalubridade, das constantes doenças – e consequentes epidemias –
e das péssimas condições de vida do povo, não só do campo, mas também da
camada pobre das crescentes zonas urbanas.
As ações em prol da urbanização e saneamento da então capital brasileira,
Rio de Janeiro, trouxeram consigo conflitos com o povo, obrigado, em alguns casos,
a abandonar suas casas e, em outros, a vacinar-se obrigatoriamente. Os meios de
transporte com tração animal aos poucos foram sendo substituídos por modelos à
gasolina, o que não se adaptava às estreitas, disformes e não pavimentadas ruas do
Rio. Paralelo a isto, um surto de febre amarela manchava a imagem do país no
exterior. Segundo o historiador Leoncio Basbaum, a reputação brasileira de ―país de
escravos‖ tinha desaparecido e, em seu lugar, ―surgira a fama de país da febre
amarela‖ (BASBAUM, 1958, p. 136).
Em 1904, sob apoio do presidente Rodrigues Alves, o prefeito da cidade,
Pereira Passos, empreendeu um trabalho de urbanização e saneamento da capital
brasileira, este último sob organização do médico sanitarista e diretor da Saúde
Pública Osvaldo Cruz. Políticas que objetivavam a destruição dos possíveis focos de
74
febre amarela – e ao mesmo tempo o embelezamento da cidade – levou a
destruição de várias ruas. Diversos cortiços foram demolidos, o que obrigou seus
moradores a desocuparem o centro e a erguer barracos nos morros ou outros
bairros às margens da cidade.
Tal acontecimento, também conhecido por ―bota-abaixo‖, foi acompanhado da
campanha de vacinação contra a varíola. Entretanto, em novembro 1904, a
população não estava disposta a aceitar o permanente autoritarismo das políticas de
urbanização e de saneamento, o que acarretou na Revolta da Vacina, um conflito
popular no qual a população se manifestou contra a obrigatoriedade da vacinação. O
povo lutou contra a imposição do governo com protestos e barricadas pelas ruas da
cidade, mas, no fim, as autoridades controlaram a situação. Algumas pessoas foram
mortas, uma centena delas foi presa e outras deportadas ao Acre. As revoltas
populares no Rio de Janeiro contribuíram para a marginalização da classe baixa,
composta, predominantemente, por negros e mulatos.
A luta pelo saneamento do país continuou durante as próximas décadas, com
a permanente meta de curar o Brasil das moléstias que o afastavam do progresso.
No ano de 1912, os médicos Arthur Neiva (1880-1943) e Belisário Pena (1868-1939)
saíram em uma expedição ao nordeste brasileiro com o objetivo de verificar a
situação do povo e a proliferação de doenças contagiosas, a fim de estudar
possíveis soluções. O relatório da pesquisa foi publicado nas Memórias do Instituto
Oswaldo Cruz, em 1916.
Por trás dessa aparente preocupação com o povo estava também o anseio
pela criação de uma identidade nacional brasileira, de um país no qual o negro, o
índio e o mestiço não tinham lugar. O progresso brasileiro dependia da regeneração
do povo em seus mais detalhados níveis, o que melhoraria a imagem que se tinha
do país no exterior. Por trás desse sentimento nacionalista, ambiguamente,
mantinha-se a Europa como modelo. Os intelectuais sanitaristas tinham como meta
um país constitutivamente branco, dotado das mesmas qualidades superiores dos
países europeus mais desenvolvidos, pois a ciência, a cada dia ganhando mais
autoridade, era capaz de provar essa supremacia.
Os eugenistas brasileiros estavam atentos a todas essas mudanças e a
análise dos resultados os dava ainda mais justificativas para iniciar a empreitada
eugênica. Com o discurso eugênico, a elite branca brasileira pôde legitimar sua tão
75
crida ―superioridade‖. O médico paulista Renato Ferraz Kehl (1889-1974) foi o
intelectual que mais investiu na aplicação e na divulgação dos ideais eugênicos no
Brasil. Obviamente, não esteve só na tentativa de implantar a teoria eugênica no
país, mas será tomado como pilar dessa discussão por seu empenho contínuo em
defesa da ideologia de Galton.
O trabalho de Kehl girou em torno da divulgação da eugenia e,
consequentemente, da tentativa de reconhecimento estatal da importância dos
projetos eugênicos para o futuro do país. A grande maioria das obras que escreveu
foi financiada pela empresa farmacêutica alemã Bayer do Brasil, na qual trabalhou
durante dezessete anos, além das infinitas publicações em compêndios custeados
pelas instituições com fins eugênicos as quais encabeçava. A partir disso e das
amplas relações com intelectuais brasileiros e estrangeiros, com quem trocava
correspondência, seu reconhecimento foi impulsionado.
Segundo Nancy Stepan (2005), em 1917, em reunião com a comunidade
médica de São Paulo, ele propôs uma reformulação da legislação que regulava o
casamento civil no país, criada no ano anterior, a qual proibia o matrimônio entre
consanguíneos (STEPAN, 2005, p. 55). Com a permissão desse tipo de relação,
Kehl tencionava alcançar um controle dos casamentos, através da promoção da
união entre os indivíduos racialmente superiores e aproveitou a ocasião para
apresentar ao grupo a teoria galtoniana.
Em 1918, a ciência de purificação da raça foi institucionalizada no Brasil, ao
ser fundada a primeira organização eugênica da América Latina: a Sociedade
Eugênica de São Paulo (SESP). Com um número maior de membros que a própria
organização francesa, a Sociedade contava com associados de renome no campo
das pesquisas a respeito das debilidades do povo brasileiro, como os sanitaristas
Penna e Neiva, além de grande parte da elite intelectual paulista. Entretanto, cabe
ressaltar que o movimento eugênico passou por dois momentos distintos: o primeiro
está relacionado à caminhada conjunta com as atividades sanitaristas e o segundo à
radicalização das propostas de melhoria para a ―raça brasileira‖.
Durante muito tempo, sanitaristas e eugenistas lutaram unidos pelos mesmos
objetivos e essa união está diretamente relacionada à discussão sobre influência ou
não do meio ambiente na carga hereditária. A ligação dos dois movimentos deriva
da adoção da corrente neolamarckista para as considerações sobre a
76
hereditariedade. O neolamarckismo foi um restabelecimento, no início do século XX,
da teoria criada pelo francês Jean-Baptiste de Lamarck (1744-1829), a qual
postulava a hereditariedade dos caracteres adquiridos, em que a evolução partia de
uma vagarosa adaptação às variações do meio ambiente, o que a diferia das
considerações darwinianas.
Stepan afirma que a SESP ―adotara sua congênere francesa [de base
neolamarckiana] como modelo, reproduzindo seus estatutos fielmente‖ (p. 89). A
corrente francesa opunha-se a britânica, que tomava como base o darwinismo social
e seguia a orientação de August Weismann (1834-1914) sobre a ―continuidade do
plasma germinativo‖, segundo a qual somente parte da célula carrega material
hereditário e este era incapaz de ser afetado pelo meio ambiente. Segundo Stepan,
em meio às discussões sobre a eugenia na América Latina, no início do século XX:
[...] o neolamarckismo também aparecia, com frequência, matizado de expectativas otimistas de que reformas no ambiente social resultassem em melhoramento permanente, ideia afinada com a tradição ambientalista-sanitarista que se tornava moda na região (STEPAN, 2005, p. 82).
Essa possibilidade de interferência no âmbito social, a fim de impedir a
degeneração biológica do povo, foi o primeiro impulso dado pelos movimentos
sanitaristas brasileiros. Após a sua união com a eugenia, as funções sanitárias
foram complementadas e passaram a auxiliar no ―aperfeiçoamento da raça
brasileira‖. De acordo com Diwan, na ideologia eugênica, a humanidade seria
dividida em dois tipos eugênicos: a ―aristogenia‖, onde estariam incluídos os
indivíduos geneticamente superiores; e a ―cacogenia‖, composta por sujeitos
inferiores e com disposição à disgenia, ―desvios e doenças transmitidas de pai para
filho‖ (p. 131). Uma das funções da eugenia, segundo Kehl, seria o combate aos
agentes disgênicos e parte dessa missão seria de incumbência dos sanitaristas, os
quais teriam que garantir a extinção dos problemas de saúde que degradavam as
massas, enquanto os eugenistas se voltariam para a questão da seleção dos mais
aptos e controle dos ―degenerados‖. Para Renato Kehl, em A cura da fealdade:
A saúde assentar-se-á, então, sobre duas bases: a Higiene, que afastará as causas dos males, e a Eugenia, que selecionará os indivíduos, tornando-os mais sólidas unidades de raça. O problema da doença será, pois, resolvido, em um futuro não remoto, não somente pelos médicos e homens de ciência, mas pelos homens de Estado (KEHL apud DIWAN, 2007, p. 114-115).
Entretanto, não só a falta de saneamento urbano ou rural era considerada
como degenerativa. A miséria, a guerra e a criminalidade faziam parte da lista dos
77
eugenistas, o que permite relacionar a eugenia com as condições e os eventos
sociais, além de comportamentos que denotam desvio de caráter. Ademais, Kehl
afirmava que tuberculosos, sifilíticos, epiléticos, débeis mentais, loucos e todos
aqueles que fugiam à ―normalidade‖ degradavam a estrutura social e afetavam a
hereditariedade. O alcoolismo foi duramente criticado pelo médico eugenista como
forte condicionante a disgenia, pois afetaria tanto a carga hereditária do indivíduo
quanto a estrutura familiar no qual estava inserido, deixando sua esposa e filhos a
mercê dos infortúnios da vida. Esforçou-se, também, por alcançar o que chamou de
―cura da fealdade‖. De acordo com ele, a fealdade tinha ligação não apenas com a
degeneração física dos sujeitos, mas também com sua degradação moral. Segundo
Diwan (2007), o eugenista tinha como paradigma a Grécia Antiga, ―que no seu
entender havia encontrado o equilíbrio do corpo e do espírito expressos na
civilização ideal‖ (p. 126).
Grande parte do movimento eugenista brasileiro incentivava a adoção de
políticas que estimulassem a educação eugênica como medida preventiva. Cria-se
ser necessário o ensino dos princípios da herança genética desde os primeiros anos
escolares. Além disso, a educação com moldes eugênicos evitaria um desvio no
desenvolvimento dos educandos e a consequente formação de sujeitos ignorantes.
Outro viés tencionado era a criação de uma consciência da ―teoria de purificação da
raça‖, através da educação sexual e da orientação matrimonial. A conscientização
previa também o reconhecimento, por parte dos estudantes, dos ―males‖ causados
pela mistura das raças, além dos problemas causados pelo uso da nicotina e do
álcool. A educação física visaria o melhoramento da saúde corpórea, o que
demonstra uma perceptível preocupação com a beleza exterior. Os que se opunham
à teoria neolamarckiana consideravam as medidas como desperdício de tempo e de
verbas com uma camada inevitavelmente disgênica.
Como declarou Kehl, a eugenia objetivava a seleção dos indivíduos. Para
tanto, além de combater os fatores degenerativos, era necessário controlar os
casamentos e aplicar exames pré-nupciais, a fim de promover a união entre
indivíduos de nível elevado, o que barraria a possibilidade de miscigenação e levaria
a um aumento no número de sujeitos dotados de caracteres ―superiores‖. Para
essas finalidades, grande parte dos eugenistas reivindicava a necessidade de
interferência médica na legislação brasileira. Até o período, somente a área do
78
Direito havia gozado do privilégio de interceder nas leis governamentais. Entretanto,
somente após a ascensão de Getúlio Vargas, com o golpe de Estado denominado
―Revolta de 1930‖, foi possível notar a manifestação estatal em favor da eugenia.
Esse primeiro momento denota a ligação da eugenia a um ideal positivo de
saneamento, educação e controle de casamentos. Entretanto, o final da década de
1920 e início de 1930 registraram uma mudança rígida nas considerações de
diversos eugenistas, assim como de Renato Kehl. Segundo Robert Wegner (2011),
Kehl declarou, no Primeiro Congresso de Eugenia, em 1929, que ―nem o
saneamento e a saúde pública, nem a educação ou a religião conseguiriam tornar os
homens nacionais em seres eugenicamente superiores, capazes de colocar o país
no trilho do progresso e da civilização (WEGNER, 2011, p. 2)‖.
Essa descrença na possibilidade de regenerar o povo com ―procedimentos
eugênicos positivos‖ levou grande parte dos intelectuais eugenistas a oscilar entre
as premissas neolamarckianas e a corrente weismanniana de interpretação da
hereditariedade, enquanto outros acabaram por rejeitar, posteriormente, a teoria
francesa. Essa oscilação de pensamentos gera, obviamente, ambiguidades devido à
rígida oposição entre as duas teorias. Entretanto, esse foi o período que marcou a
investida brasileira em promover uma eugenia de base negativa, na qual a
esterilização, o segregacionismo e o controle imigratório estavam entre as medidas
realmente eficazes para a construção de uma raça forte e permitiriam que o país
fosse visto como uma nação que pode servir de modelo.
As considerações de Francis Galton contribuíram de diferentes formas para
formação eugênica de Renato Kehl. O médico paulista partia de uma tabela sobre a
hereditariedade criada por Galton, segundo a qual existiam níveis de superioridade.
Essa ideia galtoniana de hierarquização pode ser notada em sua manifestação,
anteriormente citada, com relação à imigração chinesa para a África. Para ele, os
chineses eram superiores aos africanos, mas, ao mesmo tempo, inferiores aos
europeus. Para Kehl, a eugenia brasileira não tencionava alcançar o nível mais
elevado da escala galtoniana, mas aperfeiçoar os que pertenciam à categoria
intermediária e reduzir a porção de degenerados que compunham a humanidade
(Kehl apud Diwan, 2007, p. 129).
Durante as últimas décadas do século XIX, a temática da raça havia adquirido
diferentes considerações no meio científico, mas, no final, cada país acabou por
79
adotar as teorias que melhor se adaptavam a sua realidade. A cor da pele passou a
carregar consigo fortes e diferentes cargas semânticas e o vigor físico, moral e
intelectual passaram a ser relacionados à questão racial. A crítica à mistura das
raças, manifestada pelo diplomata francês Arthur de Gobineau na época do Império,
foi reacendida com o movimento eugênico do início do século XX.
Para Renato Kehl, a miscigenação eliminava o melhor de cada raça, o que
admitia a existência de qualidades positivas nas raças diferentes da branca. Além
disso, cria que a mestiçagem trazia consigo as características mais degradantes de
um indivíduo e que a solução primordial era o branqueamento, devido à supremacia
branca. Kehl acreditava em uma hierarquia entre as raças, assim como postulou
Francis Galton, onde o branco ocupava o topo da lista. Por outro lado, as raças ―não
brancas‖ também possuíam caracteres positivos, mas nada que as equiparasse aos
brancos. Em 1929, Kehl declarou: ―a nacionalidade brasileira só embranquecerá a
custa de muito sabão de coco ariano‖ (Kehl apud Diwan, 2007, p. 87).
Cabe ressaltar que nem todos os eugenistas partilhavam das mesmas ideias.
Uns continuaram a defender uma eugenia mais positiva, enquanto outros passaram
a ser mais extremistas. Segundo Diwan, o médico Edgar Roquette-Pinto (1884-
1954), presidente do primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, ocorrido no final da
década 1929, apoiava a miscigenação e discordava das medidas segregacionistas.
Ademais, para Roquette-Pinto, ―a solução para o problema nacional era a higiene e
não a raça‖ (Diwan, 2007, p. 114).
Como supracitado, o início da década de 1930 foi palco de uma renovação
nas discussões sobre a necessidade de eugenizar o país. O novo governo mostrou
estar disposto a colaborar com os propósitos eugênicos. O Artigo 138 e alínea ―b‖ da
nova Constituição, criada em 1934, declarava:
Incumbe à União, aos Estados e aos Municípios, nos termos das leis respectivas: a) estimular a educação eugênica; [...] f) adotar medidas legislativas e administrativas tendentes a restringir a moralidade e a morbidade infantis; e de higiene social, que impeçam a propagação das doenças transmissíveis; g) cuidar da higiene mental e incentivar a luta contra os venenos sociais (BRASIL, 1934).
Para os que ainda defendiam o saneamento do Brasil e a eugenia positiva, o
apoio governamental foi um avanço, pois viabilizava grande parte das tentativas
anteriores de intervenção estatal em prol dos eugenistas. Por outro lado, outra gama
de intelectuais, como Kehl, já havia decido dar passos mais firmes para alcançar o
80
melhoramento da raça. Uma das medidas era a volta do controle imigratório,
promovendo a entrada de indivíduos superiores racialmente e rejeitando a vinda de
imigrantes africanos ou asiáticos.
Nesse contexto, para os que apoiavam a miscigenação, certamente seria
conveniente a vinda de indivíduos europeus para acelerar o branqueamento através
da mistura; para os que a repudiavam, a imigração europeia possibilitaria um
incremento da camada branca da sociedade e propiciaria mais opções para as
promoções de união entre ―aristogênicos‖. A Constituição de 1934, no segundo
parágrafo do Artigo 121, tinha algo a contribuir para esse fim: a ―entrada de
imigrantes no território nacional sofrerá as restrições necessárias à garantia da
integração étnica e capacidade física e civil do imigrante [...]‖ (Brasil, 1934).
Uma viagem de cinco meses pela Alemanha, na década de 1920, permitiu
que Kehl tomasse conhecimento mais profundo sobre as atividades eugênicas
alemãs. Assim como destacou Wegner, território onde a eugenia seguia as
premissas da superioridade ariana, para Kehl, a Alemanha era ―onde se praticava a
eugenia com mais amplitude e coragem‖ (Kehl apud Wegner, 2011, p. 3). No ano de
1934, foi aprovada no país europeu uma lei de esterilização para todos aqueles que
eram detentores de doenças hereditárias. A ligação de Kehl com o movimento
eugênico alemão o incentivou a defender a esterilização também no Brasil, a qual
ele tratou de exemplificar:
a) Esterilização de alienados e de perversos instintivos; b) esterilização de grandes criminosos e de miseráveis; c) esterilização econômica, nos casos de casais incapazes de fornecer, pelo próprio esforço, os meios necessários para garantir a subsistência e a educação dos filhos; d) esterilização social, a fim de reduzir as despesas progressivas que a coletividade é forçada a sustentar com asilos de débeis mentais e inaptos ao trabalho, cada vez em maior número; e) esterilização obrigatória, imposta por doenças mentais; f) esterilização voluntária, praticada habitualmente por indivíduos com doenças físicas, por exemplo, tuberculosos, por mulheres após repetidos partos, havendo perigo de vida, cuja morte deixará na orfandade os filhos (KEHL apud DIWAN, 2007, p. 146-147).
Além da esterilização, que Kehl apresentou com amplas especificações, o
eugenista pregava a segregação de deficientes, criminosos e dos socialmente
inadaptados. Para ele, esses sujeitos deveriam poupar a sociedade de sua
existência degradada e sem futuro. A análise de sua trajetória demonstra uma
marcada mudança da eugenia positiva para a negativa e, consequentemente, um
gradual crescimento no extremismo de sua ideologia, principalmente quando passou
a acompanhar as atividades do Instituto Eugênico de Berlim.
81
Na Alemanha, a ideologia eugênica antecedeu o surgimento do nazismo, mas
alcançou seu grau extremo junto a ele, com a ascensão de Hitler, na década de
1930, e com a Segunda Guerra Mundial (1939 e 1945). O líder alemão utilizou o
discurso científico de ―superioridade da raça ariana‖ para justificar as mais de seis
milhões de mortes e as infinitas atrocidades que ordenou. Após o fim do conflito, a
eugenia foi parcialmente deixada de lado ou mascarada, devido ao ponto que havia
alcançado através das tiranias de Hitler em nome da higiene da raça alemã.
82
4 As ideais raciais de Monteiro Lobato I
4.1 As primeiras epístolas
O estudo do pensamento lobatiano, no que se refere ao âmbito racial, pode
ser iniciado por uma das suas últimas publicações, não por objetivar um caminho
reverso, pois se pretende investigar a formação de seus ideais e,
consequentemente, sua perduração ou modificação; mas pelo gênero e pelas datas
de escrita dos textos nela contidos. A obra A Barca de Gleyre foi publicada pela
primeira vez em 1944 e reúne as cartas enviadas por Monteiro Lobato a seu amigo
Godofredo Rangel (1884-1951) entre os anos de 1903 e 1943. Através dessas
epístolas, nas quais os dois companheiros dialogam sobre os mais variados temas,
buscar-se-á averiguar se, em algum momento, o escritor paulista demonstra as suas
impressões pessoais sobre a questão racial ou sobre as problemáticas interligadas a
ela. Obviamente, já que essa correspondência abarca um longo período de tempo e,
por conseguinte, diferentes momentos da vida do escritor, tenciona-se apreciar suas
declarações de forma ordenada ou em possíveis diálogos com outros textos ou
enunciações de sua autoria.
Em diferentes momentos de A Barca de Gleyre, Monteiro Lobato manifesta
ser um admirador de Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900). Dado o seu apreço
pelo filósofo alemão, Lobato constantemente buscava, nas livrarias, as obras de
autoria de Nietzsche, mas nem sempre as encontrava. Em 24 de agosto de 1904, o
escritor queixa-se a Rangel da procura fracassada de uma obra de Friedrich em São
Paulo: ―Não há Nietzsche nas livrarias desta Zululândia‖ (LOBATO, 1950a, p.65).
Certamente, o termo utilizado por Lobato para se referir àquela cidade (ou ao país)
faz referência a uma antiga região histórica da África do Sul de mesmo nome, hoje
chamada de KwaZulu-Natal12. Nota-se que a relação São Paulo/Zululândia –
consequentemente, Brasil/África – objetiva uma comparação com sentido pejorativo
de duas maneiras: primeiramente, pela presença significante de indivíduos de
12
Em espanhol, o nome ―Zululandia‖ continua a ser usado.
83
ascendência africana no país – apesar da possível diminuição do percentual de
―negros‖ e ―mulatos‖, relativo à população total, depois das políticas de promoção da
imigração (SKIDMORE, 2012, p. 87-88); e pela suposta inferioridade intelectual –
dada a referência, de base africana/―não branca‖ – vinculada a esses indivíduos,
devido a seu desconhecimento ou desinteresse pela obra do filósofo alemão.
A reportação à África como local ínfero pode ser observada em carta escrita
em abril de 1907. Primeiramente, Lobato reclama da movimentação de pessoas em
virtude das festividades da ―Semana Santa‖, que o impede de sair de casa há uma
semana; e, em seguida, descreve os aparatos envolvidos nas celebrações. Segundo
ele, chamam de ―Divino13 [...] uma bandeira vermelha [...] com fitas pendentes que
vão recebendo beijos de todas as beatas; e corre a salva do Divino para pingamento
de níqueis‖. Além disso, o ―Divino‖ seria também ―um passarinho amarelo na ponta
de um pau‖ (LOBATO, 1950a, p. 157). A descrição de Monteiro Lobato,
ironicamente, desconstrói a simbologia religiosa dos instrumentos ligados à festa,
associando-as à devoção em excesso e à crença e associação de princípios
incorpóreos a elementos materiais. Monteiro Lobato resume essas atitudes como
sendo ―tudo África, neste século de Ruskin e do arbor-day‖, o que demonstra uma
crítica à africanidade brasileira como algo retrógrado e em dissonância com a
modernidade. Na continuação, ele declara:
Há procissões de pretos e brancos a atravancar as ruas. Nas igrejas, muito consumo de aguinhas e fumaças cheirosas, e litanias. Por toda parte, povo - o nosso povo, essa coisas feia, catinguda e suada. Sovacos ambulantes. [...] Rangel, Rangel... Os olhos cansam-se de feiuras semoventes. Que urbs, estas nossas! As casas parecem caixões quadrados; E nem sequer os velhos beiras: inventaram agora o horror da platibanda. Não há mulheres, há macacas e macaquinhas. Não há homens, há macacões. Raro um tipo decente, uma linha que nos leve os olhos, uma cor, uma nota, um tom, uma atitude de beleza - nada que lembre a Grécia. / A Plebe, só ela, com o seu fratas democrático e religioso, a expluir vulgaridade e chateza. Eu vingo-me lendo Nietzsche, lendo Goncourt, lento até Kant e Hartmann [...] (LOBATO, 1950a, p. 157-158) [grifos do autor]
Vê-se que Lobato associa as comemorações como sendo de ―negros‖ e
―brancos‖. Essa caracterização racial do movimento e sua ligação com a ―plebe‖
retomam a colocação de Nancy Stepan ao afirmar a amalgamação entre o aspecto
racial e o de classe nas perspectivas depreciativas elaboradas sobre o povo na
virada dos séculos XIX e XX (STEPAN, 2005, p. 47). Quando chamada de
13
―Divino Espírito Santo‖.
84
―macacos‖, a classe baixa da população brasileira é desumanizada por Monteiro
Lobato e essa animalização do homem é caracterizada, também, por sua ―fealdade‖
e ―sujidade‖. Essa sujidade pode ser relacionada à menção ao negro como um ser
inevitavelmente fétido, presente em correspondência enviada a Rangel em julho de
1910. Monteiro decide instalar-se no porão da casa em busca de sossego para a
escrita, mas afirma desistir da ideia, pois ―uma criada ocupa a repartição, e como é
preta põe lá um bodum peor [sic] que o barulho da sala‖ (LOBATO, 1950a, p. 293).
Ainda sobre a análise de Lobato acerca os indivíduos que celebram a
―Semana Santa‖, o autor declara que poucas são as exceções que fogem a esses
rasgos e nada que evoque o padrão grego de beleza. Monteiro afirma, então, vingar
a trivialidade do comportamento desse segmento da população com a leitura de
obras de filósofos europeus, de origem anglo-saxã, o que, novamente, demarca a
oposição entre essa cultura, cuja superioridade é defendida por Lobato, e a cultura
latina de base africana. Em carta emitida em 03 de fevereiro de 1908, Monteiro
novamente manifesta sua admiração pelas qualidades físicas dos gregos. Nela, o
escritor paulista declara estar lendo o ―incomparável Homero‖ e, a partir de sua
leitura, contrapõe a beleza grega ao problema da mestiçagem brasileira, mais
especificamente, no Rio de Janeiro. Apesar da extensão do enunciado, a sua
reprodução é cabível pela profundidade de suas colocações:
Que diferença de mundos! Na Grécia, a beleza; aqui a disformidade. Aquiles lá; Quasímodo aqui. Esteticamente, que desastre foi o cristianismo com a sua insistente cultura do feio! / Estive uns dias no Rio. Que contra-Grécia é o Rio! O mulatismo dizem que trás dessoramento de caráter. Dizem que a mestiçagem liquefaz essa cristalização racial que é o caráter e dá produtos instáveis. Isso no moral – e no físico que feiúra! Num desfile, à tarde, pela horrível rua Marechal Floriano, de gente que volta para os subúrbios, perpassam todas as degenerescências, todas as formas e má-formas humanas – todas, menos a normal. Os negros da África, caçados à tiro, trazidos à força para a escravidão, vingaram-se do português da maneira mais terrível – amulatando-o e liquefazendo-o, dando aquela coisa residual que vem dos subúrbios pela manhã e reflui para os subúrbios à tarde. E como vão apinhados como sardinhas e há um desastre por dia, metade daquela gente não tem braço ou não tem perna, ou falta-lhes um dedo, ou mostram uma terrível cicatriz na cara. ‗Que foi?‘ ‗Desastre da Central‘. / Como consertar essa gente? Como sermos gente, no concerto dos povos? Que problemas terríveis o pobre negro da África nos criou aqui, na inconsciente vingança!... / Talvez a salvação venha de S. Paulo e outras zonas que intensamente se injetam de sangue europeu. Os americanos salvaram-se da mestiçagem com a barreira do preconceito racial. Temos também aqui essa barreira, mas só em certas classes e certas zonas. No Rio não existe. / Há tempos assisti em Taubaté uma cena muito ilustrativa do que é essa defesa na América do Norte. Um americano desceu do trem e foi ao restaurante Pereira comer qualquer coisa. Sentou-se e pediu. Nisto entra um guarda-freio de boné na orelha, gaforinha, e senta-se-lhe ao pé. O americano ergue-se de impulso, atira a cadeira e some-se no trem. O país
85
equiparava-o ao guarda-freio, mas ele não aceitava o presente. Filosoficamente me parece horrível isto – mas certo do ponto de vista racial (LOBATO, 1944, p. 132-133)
Primeiramente, cabe ressaltar que, por algum motivo desconhecido, trecho da
carta supracitada foi retirado na publicação da mesma obra pela Editora Brasiliense
alguns anos depois da primeira edição14. Essa intervenção editorial aparenta a
tentativa de apagamento de informações relativas ao escritor e problematizam ainda
mais a discussão sobre suas ideais raciais, pois demonstra um esforço por moldar a
imagem pública de Lobato a partir de suas declarações. No fragmento citado, o
escritor exalta a beleza grega como modelo físico e que se opõe à disformidade da
população mestiça brasileira, mais especificamente dos mulatos. Segundo Pietra
Diwan, essa idealização arquetípica nos gregos fez parte dos discursos dos teóricos
eugenistas do final do século XIX e começo do século XX (DIWAN, 2007, p. 21-22),
o que evidencia que esse discurso esteve em interação com os ―projetos raciais‖
brasileiros de forma mais ampla.
Em um segundo momento, o escritor taubateano salienta a existência de
correntes de pensamento que consideram o ―mulatismo‖ como deteriorante do
caráter. A miscigenação acarretaria, assim, a instabilidade moral dos indivíduos e,
além disso, seria fisicamente degradante, tendo como resultado a fealdade.
Sequencialmente, Lobato declara ter observado a movimentação de pessoas em
uma rua do Rio de Janeiro e ter percebido a ―degeneração‖ da população
suburbana, onde se encontrariam todas as ―formações e deformações físicas‖,
menos a ―normal‖. Por conseguinte, cabe lembrar que essa perspectiva estética
acarretou em propostas como a do médico eugenista Renato Kehl sobre a
necessidade de ―cura‖ da população brasileira: o povo como detentor de uma
enfermidade que necessitava ser tratada através dos procedimentos eugênicos.
Para o escritor paulista, esses indivíduos necessitam ser consertados, para que o
Brasil possa equiparar-se aos outros países. Além disso, as observações de Lobato
remontam as críticas a respeito da mestiçagem, que tiveram como porta-voz o
diplomata francês Arthur de Gobineau (PICHOT, 2002, p. 247-278), depois de sua
estada no país, na segunda metade do século XIX, e que perduraram durante as
14
A primeira edição da obra foi publicada pela Companhia Editora Nacional em 1944. Na nova
edição, pela Brasiliense, há um corte depois de ―[...] insistente cultura do feio!‖ e recomeça após o
trecho acima citado.
86
primeiras décadas do século seguinte.
O pesquisador lobatiano Cassiano Nunes (1921-2007), em um estudo
comparativo entre Monteiro Lobato e Mark Twain (NUNES, 1960), afirma que o
escritor brasileiro era contrário a livre mistura entre as ―raças‖ e que seus
preconceitos sobre o mulato devem ter sido herdados de Euclides da Cunha, ―uma
das suas grandes admirações‖. Além disso, declara que Lobato cria que ―o atraso
industrial brasileiro era resultante de sua inferioridade racial e seu mulatismo‖, e que
o progresso chegaria apenas quando os brasileiros fossem ―absorvidos por
estrangeiros de pele mais clara‖ (p. 81). Já a respeito da população carioca, seu
processo de redenção poderia vir, então, das cidades que ―intensamente se injetam
de sangue europeu‖, ou seja, que promovem a vinda de imigrantes desse
continente. O procedimento para resolver o problema brasileiro da miscigenação
era, propriamente, uma nova mistura, não obstante, agora com o branco europeu.
Segundo Monteiro Lobato, a escravidão negra foi, inconscientemente, vingada da
forma mais ―terrível‖: através da miscigenação. A ―raça branca portuguesa‖ teria sido
―amulatada‖ por meio do cruzamento com os ―negros‖. Por conseguinte, o contato
entre as duas ―raças‖ teria corrompido a ―raça branca‖ e resultado em algo
depreciativamente sedimentar, que caracteriza esses indivíduos que, durante o dia,
circulam pelo centro da cidade do Rio de Janeiro e, ao fim da tarde, retornam ao
subúrbio.
De acordo com Lobato, os Estados Unidos teriam se preservado do contato
entre as ―raças‖ através do preconceito racial, mas essa intolerância não teria obtido
sucesso no Brasil por encontrar-se em setores restritos da sociedade. Na
continuação, apresenta uma situação presenciada em sua cidade natal, onde um
americano teria se revoltado porque um guarda-freio, possivelmente negro ou
mulato, sentou-se próximo a ele. Contrariamente ao que ocorria no país norte-
americano, a sociedade brasileira o igualava a um sujeito ―não branco‖, o que lhe
pareceu inaceitável. Chega-se a conclusão de que a afirmação de Monteiro Lobato
ao considerar que a atitude do estrangeiro é ―filosoficamente horrível‖, mas ―certa do
ponto vista racial‖, revela sua convicção da existência de duas formas de ver
realidade: a primeira parte de uma perspectiva puramente racional, a qual indica o
que se deve ser; enquanto a segunda configura uma verdade autêntica e
incontestável – a racial. Consequentemente, a igualdade entre os homens seria
87
postulada pela racionalidade e pela cultura, ao ponto que a desigualdade entre eles
resultaria de uma legitimidade irrefutável.
Em outra carta a Godofredo Rangel, em 27 de junho de 1909, Monteiro
Lobato planeja com seu amigo como será estruturado um livro de contos que
pretendem escrever juntos. O futuro literato afirma que seus contos não conterão
―nada de amorecos e adulteriozinhos de Paris‖, pois, para ele, ―isso já fede‖.
Destaca, então, que as narrativas serão como as de ―Kipling – com paisagens,
árvores, céu, passarinhos, negros...‖. E completa: ―Eu gosto muito dos negros,
Rangel. Parecem-me tragédias biológicas. Ser pigmentado, como é tremendo!‖
(LOBATO, 1950a, p. 244). Cassiano Nunes, no estudo antes mencionado, afirma
que Lobato ―não podia imaginar o país sem a participação do negro‖, apesar de ser
contrário ao cruzamento deste com o branco (NUNES, 1960, p. 81). Para Nunes, o
trecho acima destacado demonstra a admiração lobatiana pelos negros. Não
obstante, percebe-se que o apreço do escritor se deve a distinta coloração da pele
desses indivíduos, caracterizada por ele como uma ―tragédia biológica‖. A pele
negra é apresentada como um desastre, um desvio à uma suposta normalidade, ou
seja, a organicidade humana em sua forma imperfeita.
A questão da ―raça‖ encontrará diferentes acepções no pensamento
lobatiano. A primeira delas é observável nos primeiros trechos analisados, nos quais
o âmbito racial é fundido com a categorização de ―classes‖, como pode ser visto na
análise de Lobato sobre a ―Semana Santa‖ e no seu parecer em direção à sociedade
carioca. Já na segunda, percebe-se a união terminológica entre ―raça‖ e ―cultura‖. As
superioridades e inferioridades raciais proveriam, assim, de sua ligação aos
costumes e à formação intelectual dos povos. No caso de países com fundação
colonial, como é o caso do Brasil, onde a cultura é elaborada a partir da interação
com outras culturas, a dicotomia ―superior/inferior‖ seria ditada, exatamente, pela
ocasião de uma influência cultural indígena, africana e/ou europeia. Já a terceira
significação apresentada por Lobato se direciona ao campo biológico. As
informações apresentadas por ele giram em torno de aspectos físicos demarcados
pela distinção da cor da pele entre ―brancos‖, ―negros‖ e, em decorrência da
miscigenação, ―mulatos‖. Intrincados a esse plano, estariam a questão da beleza ou
da fealdade física e a do caráter, de acordo com o escritor paulista, moldadas a
partir do cruzamento entre as ―raças‖ ou do próprio mantimento das relações entre
88
cada uma delas. A ―raça‖ é, nesse momento, classificada como algo orgânico.
A relação entre ―raça‖ e ―cultura‖ pode ser observada, também, em
comentário de Lobato a trecho de Vida Ociosa (191715), de Godofredo Rangel. O
narrador da obra de Godofredo caracteriza a personagem ―Zé‖ da seguinte forma:
Era um negrinho de quinze anos, empertigado, de meia e chinelos, que em questões de decência o professor mostrava-se inflexível. Usava a carapinha levantada em topete, e a tudo só respondia ―sim‖ ou ―não‖. Tinha ar sério de negro educado, que sabe ser negro só ‗nas cor‘ [sic] (RANGEL, 2000, p. 40).
Godofredo compartilhava, com o amigo, fragmentos de sua obra durante a
sua feitura e, a respeito dessa personagem, Monteiro declara que ―o negrinho aluno
está uma pura maravilha; conheço uns tantos desses pretos de pastinha, brancos
por dentro, pretos só por fora. Zé correto! Até o nome não podia ser melhor‖
(LOBATO, 1950b, p. 18). Vê-se que o escritor taubateano concorda com as
designações apresentadas pelo narrador de Vida Ociosa. Primeiramente, percebe-
se que a boa educação é diretamente exposta como um rasgo pertencente ao
―branco‖. Entretanto, Lobato declara conhecer sujeitos negros que alcançaram essa
postura que não condiz com a sua ―raça‖, assim como o personagem ―Zé Correto‖. A
partir dessa perspectiva, esse sistema de metamorfose é tido como uma forma de
―branqueamento moral‖, ou seja, como um processo civilizatório que se opõe à
antiga ―selvageria do negro‖. Para Monteiro, o apelido dado à personagem se
adéqua a sua mudança, à retificação de um erro ou de uma imperfeição natural
desses indivíduos. Apesar dessa possibilidade de despegar-se das suas
qualificações de ―incivilizado‖, seus traços físicos se mantêm, tornando-se ―branco
por dentro‖, mas permanecendo ―negro por fora‖.
Essa ideia de mutação racial pode ser identificada, também, em artigo
publicado no ―Estado de S. Paulo, em janeiro de 1917, e que, posteriormente fez
parte da obra Ideias de Jeca Tatu (1919). Já nas linhas iniciais de ―A questão do
estilo‖, Monteiro Lobato destaca que são muitos os que consideram como ―absurda‖
a possibilidade de criar um estilo propriamente brasileiro, pois como seria provável a
restauração do ―mau gosto colonial, um barroco de importação atravessado de
barbarismos oriundos da cabeça de pedreiros pretos‖ (LOBATO, 1959d, p. 31)? Em
resposta a indagação, Lobato salienta: 15
A obra foi, primeiramente, publicada na ―Revista do Brasil‖, em 1917, e republicada em forma de
livro em 1920.
89
Levada a intransigência a ponto agudo, era caso de responder que o pedreiro preto que com o seu sentimento pessoal colaborou na arte vinda da metrópole, era branco por dentro; como o snob de hoje que copia a França é preto retinto na alma; porque o preto fazia obra de branco e estes brancos falsários fazem obra de pretos do Senegal, useiros em meter na cabeça uma cartola velha, enfiar a casaca, atochar os pés num botinão e virem para a rua crentes de que o público os confundirá com puros parisienses (Idem, Ibidem, p. 31).
Novamente, nota-se que o escritor paulista manifesta a possibilidade de uma
alteração ―racial/cultural‖, onde os pedreiros negros são vistos como detentores de
qualidades específicas do ―homem branco‖. Em outras palavras, sua capacidade de
colaboração à arte decorre de uma perspectiva branca de atuação, o que lhe
diferencia dos exaltadores e imitadores da cultura francesa, sujeitos estes
possuidores de uma ―alma negra‖. Por conseguinte, a originalidade é vinculada ao
―branco‖, enquanto a reprodução de idealizações é associada ao ―negro‖. Nota-se a
oposição entre cultura branca e incultura negra, a ponto de que esse desprovimento
cultural seja o gerador da imitação. Assim, o pedreiro negro se despegaria de sua
inculturalidade ao absorver as habilidades culturais do homem branco.
A questão ressurge em texto escrito por Lobato na década de 1930, publicado
no jornal ―O Correio‖ e unido, posteriormente, à coletânea de contos Negrinha
(1920)16. Intitulado ―Quero ajudar o Brasil‖, o texto lobatiano foi produzido quando o
escritor estava envolvido com o movimento em prol do petróleo brasileiro. Ainda que
inserido em um conjunto de contos, na produção de Monteiro, a voz enunciativa
apresenta pretensões de narrar algo que realmente sucedeu. Edgard Cavalheiro,
biógrafo de Monteiro Lobato, apresenta ―Quero ajudar o Brasil‖ em diálogo com a
análise da questão do petróleo e toma como fundamento que, nesse texto, a voz é a
de seu autor e o fato é real (CAVALHEIRO, 1956b, p. 6). Assim, levando em
consideração esse rasgo que leva a aproximar o texto mais a uma crônica do que
um conto, tomar-se-á a voz narrativa como a do próprio Lobato.
Segundo o ele, o fato que começa a ser contado ocorreu no momento da
fundação da ―Companhia Petróleos do Brasil‖, cujos objetivos não haviam alcançado
o apoio dos setores de maior influência do país: o governo, os bancos e os ―homens
de dinheiro‖. Ainda assim, no intuito da busca do petróleo brasileiro, os dirigentes da
16
A primeira edição da obra continha apenas seis contos. Em novas publicações, foram incluídos
mais dezesseis textos, alguns escritos antes de sua ida para os Estados Unidos, outros depois de
sua volta (Nota dos Editores, In: LOBATO, 1959g, s/p).
90
Companhia não escondiam dos possíveis investidores a possibilidade do sucesso e
altos ganhos ou do fracasso e a perda total dos investimentos. A atitude,
possivelmente, demonstrou a seriedade do negócio, levando a ―gente simples‖,
impulsionada pela esperança de enriquecimento, a acreditar nos planejamentos e
resultados positivos da organização e é entre estes indivíduos que surge a
personagem central do acontecimento narrado.
Certo dia, entra no escritório onde a entidade recém fundada vendia ações
para dar continuidade aos projetos formulados, um homem negro, cuja humildade
assustou os presentes da sala. Manifestou, então, a intenção de obter ações da
Companhia e, apesar da estranheza, foram-lhe explicadas as eventuais
consequências do investimento e indagado o número de ações que gostaria de
adquirir. Segundo Lobato, a entrada daquele sujeito não foi tão assustadora quanto
sua resposta àquela pergunta: decidiu comprar mais ações do que qualquer outro
indivíduo que lá entrou:
O homem devia estar louco. Tomar trinta ações, empatar três contos de réis num negocio em que a gente mais endinheirada não se atrevia a ir além de algumas centenas de mil réis, era evidentemente loucura. Só se aquele homem de pele preta estava escondendo o leite – se era rico, muito rico. Na América existem negros riquíssimos, até milionários; mas no Brasil não há negros ricos. Teria aquele, por acaso, ganho algum pacote na loteria (LOBATO, 1959g, p. 254).
Vê-se que Lobato destaca a improbabilidade de que um homem negro
brasileiro tivesse um poder aquisitivo que o possibilitasse tamanha investidura, a não
ser que tivesse ganhado muito dinheiro em jogos de azar. Apesar dos
questionamentos manifestados pelos corretores da Companhia de Petróleo, o
indivíduo afirma que se trata das economias de sua vida inteira, mas que não tem
dúvida do propósito da aplicação. A singularidade do acontecimento não evitou que
perguntassem o que o levava àquele ato e, negando qualquer propósito ambicioso,
deu uma última resposta causadora de espanto: ―– É que eu quero ajudar o Brasil...‖
(p. 155). A postura daquele brasileiro perante a necessidade de seu país deixou
Lobato e seu companheiro ainda mais surpresos e levou o escritor paulista a
seguinte conclusão: ―Essa coisa chamada Brasil, que é de vender, que até os
ministros vendem, ele queria ajudar... De que brancura deslumbrante nos saíra
aquele negro! E como são negros certos ministros brancos‖ (Idem, Ibidem, p. 256).
Percebe-se que a admiração pelo ―ato patriótico‖ de abdicar de toda uma vida
inteira de poupança, dado o baixo salário brasileiro da época, embranquecia a
91
negritude cultural daquele homem. Aquela ―ação exemplar‖, segundo Monteiro,
exigia o mantimento de todos eles à altura daquele ―negro ultra-branco‖ (p. 256). As
palavras do escritor taubateano demonstram que aquele posicionamento
nacionalista, cujo cerne estava na esperança do progresso brasileiro através do
petróleo, era comportamento de um homem branco, não fisionomicamente, mas
culturalmente; enquanto a omissão por parte dos ministros era caracterizada como
uma atitude de negros. A enunciação demonstra que o progresso brasileiro seria
cunhado pelas mãos dos brancos, seja daqueles que assim o são de acordo com a
cor da pele e a sua cultura ou daqueles que, branqueados culturalmente, o são
―espiritualmente‖. Em síntese, a questão cultural da raça é, nesses casos, desligada
da parte biológica, dada a viabilidade de transmutação de uma esfera a outra, sem,
obviamente, afetar o âmbito fenotípico. Não obstante, ―raça‖ e ―cultura‖ ganharão
novas configurações quando relacionadas ao caboclo, como se verá nas análises
subsequentes.
4.2 Lobato articulista
No ano de 1913, Monteiro Lobato começa sua colaboração nas páginas do
jornal ―Estado de S. Paulo‖, com a publicação de um artigo intitulado ―Entre duas
crises‖, sobre a possibilidade de uma nova crise econômica em São Paulo. Antes de
sua ligação ao jornal paulista, suas intenções literárias variaram entre a elaboração
de um romance ou de vários contos com base em uma mesma teoria sobre o
―caboclo‖. Em 1912, afirma objetivar a escrita de apenas um conto, sob o título
Porrigo decalvans (remetendo-se a um parasita ocasionador da calvície), no qual
consideraria o ―caboclo um piolho da terra, uma praga da terra‖ (LOBATO, 1950a, p.
327). No entanto, sua teoria acaba sendo demonstrada em seu segundo artigo no
jornal paulista – ―Uma velha praga‖ – no ano de 1914, no qual expõe ideias que
vinham se formando desde 1910 (LOBATO, 1950a, p. 326).
Menos de um mês antes da publicação de ―Uma velha praga‖17, em carta ao
amigo Godofredo Rangel, o autor declara que está em conflito com quatro
―caboclos‖ que se agregaram às suas terras e que o grande incêndio de matas
ocorrido nas suas propriedades, no mesmo ano, proveio das mãos desses sujeitos.
17
A publicação de ―Uma velha praga‖ no ―Estado de S. Paulo‖ data de 12 de novembro de 1914.
92
Desde já, o escritor associa os caboclos a seres parasitários, ao afirmar que os
estuda e os acompanha ―desde o estado de lêndeas, no útero de uma cabocla suja
por fora e inçada de superstições por dentro‖ (LOBATO, 1950a, p. 363). Assim, o
caboclo é, também, apresentado de forma animalizada e associado à sujidade e a
falsas crenças. De acordo com o epistológrafo, todos os caboclos passam pelas
seguintes transformações sucessivas:
Nasce por mãos duma negra parteira, senhora de rezas mágicas de macumba. Cresce no chão batido das choças e do terreiro, entre galinhas, leitões e cachorrinhos, com uma eterna lombriga de ranho pendurada no nariz. Vê-lo virar menino, tomar o pito e a faca de ponta, impregnar-se do vocabulário e da ―sabedoria‖ paterna, provar a primeira pinga, queimar o primeiro mate, matar com a pica-pau a primeira rolinha, casar e passar a piolhar a será nas redondezas do sítio onde nasceu, até que a morte o recolha. Constrói uma choça de palha igualzinha à paterna, produz uns piolhinhos muito iguais ao que ele foi, com a mesma lombriga nas ventas (LOBATO, 1950a, p. 363)
A primeira frase da enunciação parece, ironicamente, relacionar o nascimento
desses indivíduos a um processo feiticeiresco necessário para que venha ao mundo.
A sequência dos eventos expostos por Monteiro Lobato são caracterizados por sua
imutabilidade, pela existência de um legado eterno a ser seguido pelas
descendências do caboclo. Segundo Lobato, as atitudes desses sujeitos são sempre
devastadoras e resultantes de mínimos proveitos em comparação a sua obra
depredatória. Seus feitos são interrompidos somente com a chegada do italiano que
―senhora-se da terra, cura-a, trasforma-a e prospera‖, enquanto o ―piolho,
afugentado, vai parasitar um chão virgem mais adiante‖ (p. 363-364). A menção ao
europeu denota a crença na prosperidade advinda com a chegada da mão de obra
europeia, de braços fortes para o trabalho do campo, ao passo que o caboclo
brasileiro se isola e abdica desses espaços laborais.
4.2.1 “Uma velha praga”
Em novembro de 1914, Monteiro Lobato publica seu segundo artigo no jornal
paulista. Em ―Uma velha praga‖, o articulista começa por salientar a constante falta
de chuva e as queimadas iniciadas no mês de agosto e que se prolongaram por
mais alguns meses. O fogo, segundo ele, estava afetando o solo, a floresta, os
animais, além das propriedades privadas e o gado, que, se não morto pela própria
queimada, morria pela falta de alimento. Segundo o escritor, tais acontecimentos
93
são resultantes da presença do ―caboclo‖ na montanha, o qual é classificado como
sendo ―um parasita, um piolho da terra, peculiar a ela como o Argas o é aos
galinheiros ou o ‗Sarcoptes mutaus‘ a perna das aves domésticas‖ (LOBATO, 2008b,
p. 160). Com constantes referenciações a nomes científicos dos mais variados
parasitas, o caboclo é descrito como uma:
[...] espécie de homem baldio, semi-nomade, inadaptável à civilização, mas que vive à beira dela, na sua penumbra. À medida que o progresso vem chegando com a via férrea, o italiano, o arado, a valorização das terras, vai ele refugindo em silêncio, com o seu cachorro, o seu pilão, a pica-pau, o isqueiro, de modo a se conservar sempre na beirada, mudo e sorno. Encoscorado em uma rotina de pedra, recua para não se adaptar. É de vê-lo abordar a sítio novo e nele se implantar como ―agregado‖, nômade por força de vagos atavismos não se liga à terra como o campônio europeu, ―agrega-se-lhe‖ temporariamente tal qual o ―sarcoptes‖, pelo tempo necessário à completa sucção da seiva comezinha; feito o que, salta para adiante com a mesma bagagem com que ali chegou (Idem, Ibidem, p. 161).
A descrição do articulista demonstra o desencontro do caboclo com o
progresso brasileiro que, a seu ver, se aproximava com a chegada da via férrea, dos
imigrantes europeus para reforçar a mão de obra e da consequente valorização da
economia agrícola. Assim, o caboclo seria, deliberadamente, um indivíduo marginal
a toda essas mudanças, o qual, diferente do trabalhador europeu, não se adequava
a lugar algum e usufruía do local onde se instalava somente até retirar dele todo o
proveito, para, posteriormente, abandoná-lo. Segundo Lobato, ―com estes simples
ingredientes o fazedor de desertos perpetua a espécie e a obra de esterilização
ensejada pelos remotíssimos avós‖ (p. 161). A colocação, consequentemente,
postula a perduração de uma herança cultural de interação do caboclo com o meio e
que, segundo o autor, o diferencia das outras ―espécies de homens‖.
De acordo com Lobato, o caboclo edifica sua casa com materiais extraídos do
próprio local, limpa a mata ao redor de sua instalação e, posteriormente, acomete a
floresta: ―roça e derruba, não perdoando ao mais belo pau‖. Depois de tal investida,
emprega o uso de seu isqueiro e, pela falta de cumprimento das leis que
determinam o controle do fogo como proteção à floresta, surgem as incontroláveis
queimadas. Por conseguinte, na maioria das vezes, o responsável consegue abster-
se de sua culpa, mas, quando isso não ocorre, ele é ―tocado‖: ―o caboclo nunca sai
dum lugar espontaneamente: é sempre ‗tocado‘. [...] Despedir, expulsar, etc. são
meios usados para afastar outras categorias de homens. Ao caboclo toca-se, como
se toca um cachorro importuno, ou uma galinha que vareja pela sala (LOBATO,
2008b, p. 163). Assim, para Monteiro Lobato, o abandono do lugar onde se aloja
94
ocorre, não voluntariamente, mas por exigência. Além disso, no trecho destacado, a
diferenciação nos verbos que exprimem essa exigência demonstra o rebaixamento
desses indivíduos em comparação aos outros homens e a desumanização do
caboclo, ao compará-lo com animais que, por suas atitudes reprovadoras,
necessitam ser ―tocados‖.
Para o autor, a vida desses indivíduos é ―vazia‖ e ―semi-selvagem‖ e a sua
produção agrícola serve apenas para mantê-los vivos, pois ―assim fez o pai, o avô,
assim fará a prole empanzinada‖ (p. 164). Evidencia-se, assim, a crença do autor em
uma hierarquia entre os homens, onde, segundo Monteiro, o ―caboclo é uma
quantidade negativa‖, o que demarcaria a desnecessidade de sua existência. Por
fim, de acordo com Monteiro Lobato, depois que abandonam o território, a terra
assimila tudo que edificou com materiais naturais daquele território e nada mais
testifica a passada do ―Manuel Peroba‖, do ―Chico Marimbondo‖, do ―Jeca Tatu‖ (p.
164). É nesse momento que o escritor faz a primeira menção a uma personagem
que demonstrará, posteriormente, sua mudança de pensamento em relação ao
caboclo: Jeca Tatu.
4.2.2 “Urupês”
Em dezembro do mesmo ano, Monteiro Lobato publica seu terceiro texto no
―Estado de S. Paulo‖. Classificado como ―artigo‖ pelo seu autor (LOBATO, 1950b, p.
5), ―Urupês‖ é uma mescla de ensaio crítico e ficção, onde surge a personagem
―Jeca Tatu‖, uma representação do caboclo brasileiro em diálogo com as
manifestações negativas expressas por ele em sua publicação anterior no jornal
paulista. Inicialmente, Monteiro procura demonstrar que o indianismo se desfez e no
lugar de Peri – personagem de O guarani (1857), de José da Alencar (1829-1877) e,
segundo o escritor paulista, tentativa de ―idealização de um homem natural‖, dotado
de superioridade em ―beleza de alma e corpo‖ – se instalou ―um selvagem natural,
feio e brutesco, anguloso e desinteressante, tão incapaz, muscularmente, de
arrancar uma palmeira, como incapaz, moralmente, de amar Ceci‖ (LOBATO, 2008b,
p. 167).
Monteiro Lobato apresenta o caboclo através de uma relação intertextual com
a personagem Peri, de Alencar, o qual, como simbolização de força física e aptidão
95
sentimental, desenraizou uma palmeira com as próprias mãos com o intuito de
salvar a sua amada, Ceci. Segundo Lobato, o movimento representado por Peri teria
elaborado um excesso de produções literárias com essas configurações, o que
acabou por enfadar o público (p. 167) e, consequentemente, ocasionou a diluição do
indianismo, não a ponto de matá-lo, mas resultando em sua evolução: ―O indianismo
está de novo a deitar copa, de nome mudado. Crismou-se de ‗caboclismo‘‖ (p. 168).
Para ele, a literatura brasileira teria substituído as iconicidades, sem perceber que o
caboclo é Peri às avessas, ou seja, destituição física e sentimental. Segundo o
escritor:
[...] entre as raças de variado matiz, formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e o aborígene de tabuinha no beiço, uma existe a vegetar de cócoras, incapaz de evolução, impenetrável ao progresso. Feio e sorna, nada a põe de pé (LOBATO, 2008b, p. 169).
Nota-se que Lobato reforça a sua inclinação para a confiança na existência de
várias raças humanas. Dentre elas, o caboclo ocupa posição subalterna por sua
vivência inercial, contrária ao desenvolvimento. Para o literato, o caboclo era o ―‗Ai
Jesus!‘ nacional‖ (Idem, Ibidem), caracterizado por sua indolência, que o impediu de
tomar partido quando libertos os escravos e abertas as vacâncias de trabalho, e de
não ter percebido, ao menos, a mudança para o regime republicano; e sua fealdade,
questão esta que, novamente, permeia o discurso lobatiano.
Vê-se que esse artigo dá continuidade às críticas principiadas em ―Uma velha
praga‖. Entretanto, em ―Urupês, surge a caracterização de uma personagem
meramente citada na publicação anterior: ―Jeca Tatu‖. Apesar do caráter ficcional
evidenciado, principalmente, a partir da primeira menção dessa personagem no
artigo, percebe-se que não há a instauração de um narrador. Mais do que uma
coincidência entre vozes – autor/narrador – o texto demonstra continuidade na
perspectiva direcionada ao caboclo sob a própria voz de Lobato, agora orientando-
se a Jeca Tatu. Segundo o seu criador, Jeca é o representante de todos os
caboclos, pois nele residem todos os atributos pertencentes aos mesmos: ―Jeca
Tatu é um piraquara do Paraíba, maravilhoso epítome de carne onde se resumem
todas as características da espécie‖ (p. 169).
Segundo Monteiro Lobato, diante de qualquer situação, a primeira atitude do
caipira é ―acocorar-se‖ e qualquer ação sua que não ocorra estando ele sentado
sobre seus calcanhares será ―desastre infalível‖. Além disso, sua indisposição para o
trabalho braçal o conduz às feiras com produtos obtidos nas matas sem grandes
96
dificuldades, pois estão à disposição para serem colhidos sem que seja necessário
seu cultivo. Reflexo dessa letargia está na estrutura de sua vivenda, a qual, erguida
com sapé e lama, ―faz sorrir aos bichos que moram em toca e gargalhar o joão-de-
barro‖ (p. 170). Em seu interior, não há móveis. Banco, apenas com três pernas,
pois a quarta é desnecessária ao equilíbrio, e somente aos visitantes, pois ele não
abandona o conforto de seus calcanhares. De acordo com o escritor paulista, os
avós de Jeca Tatu ―não gozaram maiores comodidades. Seus netos não meterão
quarta pata ao banco. Para quê? Vive-se bem sem isso‖ (p. 171). Reforça-se, assim,
a existência de uma hereditariedade dos costumes do caboclo, incontornavelmente
ininterrupta, já que supõe ser prescindível a vida destituída desses recursos.
No que se refere ao aproveitamento da terra, Jeca Tatu se restringe à
plantação de milho, de cana-de-açúcar e de mandioca, sendo as três escolhas
justificadas pela relação esforço/benefício. Para Monteiro Lobato, o cultivo desses
produtos é beneficiado pela facilidade com que o meio ambiente os produz.
Consequentemente, a mandioca é classificada por ele como ―um pão já amassado
pela natureza‖ (p. 172), cujo labor de produção se resume em um fácil plantio em
―qualquer chão‖, a posterior arrancadura da raiz e sua colocação à brasa. O criador
do Jeca afirma, então, que tais auxílios naturais são responsáveis pelo
quebrantamento de forças do caboclo e a falta dos mesmos é o ocasionador da
pujança das ―raças humanas‖:
O vigor das raças humanas está na razão direta da hostilidade ambiente. Se a poder de estacas e diques o holandês extraiu de um brejo salgado a Holanda, essa joia do esforço, é que ali nada o favorecia. Se a Inglaterra brotou das ilhas nevoentas da Caledônia, é que lá não medrava a mandioca. Medrasse, e talvez os víssemos hoje, os ingleses, tolhiços, de pé no chão, amarelentos, mariscando de peneira no Tâmisa. Há bens que vêm para males. A mandioca ilustra este avesso provérbio (LOBATO, 2008b, p. 172).
As assistências propiciadas pelo meio ambiente seriam, então, os males que
impossibilitam a evolução do caboclo. Para Lobato, a força das raças humanas
depende, para se desenvolver, da adversidade ambiental e, por conseguinte, tanto
Inglaterra quanto Holanda foram capazes de formar suas civilizações devido a essas
contrariedades. Percebe-se, no fragmento citado, uma terceira acepção
correlacionada ao âmbito ―racial‖. O escritor associa as raças humanas à formação
das nações, estabelecendo, assim, uma ligação do termo ―raça‖ a uma quarta
acepção: a ―nacionalidade‖ – precedida pelos sentidos ―classe‖, ―cultura‖ e
97
―fisionomia‖. Tal vínculo pode ser percebido, também, em epístola enviada a
Godofredo Rangel, em setembro de 1909, na qual Lobato declara que as similitudes
entre as línguas são como ―a estrutura óssea das várias raças humanas, coisa que
não varia apreciavelmente; o que faz o inglês, por exemplo, ser tão diverso do
italiano, são as feições, os trajes, os modos e as modas de cada um, isto é, os
idiotismos fisionômicos‖ (LOBATO, 1950a, p. 272) [grifos do autor]. Monteiro declara
que, tanto as línguas quanto as ―raças humanas‖ – no caso, a ―raça inglesa‖ e a
―raça italiana‖ – não apresentam variações estruturais e que as suas diferenciações
são manifestadas através de particularidades alicerçadas em uma mesma base.
Com essa comparação, novamente, o escritor paulista articula o domínio racial com
o da nacionalidade.
De volta a Jeca Tatu, segundo seu criador, ele não produz reparos em sua
residência. Entre as improvisações para sustentar as bases comprometidas da casa,
está a ―Nossa Senhora enquadrada em moldurinha amarela‖, que, por ―força santa‖,
afirma a parede danificada (LOBATO, 2008b, p. 171). Ademais, dentre outras
crenças está a da cura por intermédio de medicamentos cuja elaboração exige os
mais variados e estranhos ingredientes, além da aplicação por um ―curador‖. Além
desses remédios solucionadores de problemas como ―bronquite‖, ―quebranto de
ossos‖, ―brotoeja‖, há a ―medicação simpática, baseada na influição misteriosa de
objetos, palavras e atos sobre o corpo humano‖, como, por exemplo, ―o ritual
bizantino dentro de cujas maranhas os filhos do Jeca vêm ao mundo, e do qual não
há fugir sob pena de gravíssimas consequências futuras‖ (p. 175). Vê-se que a
ênfase dada aos princípios nos quais Jeca Tatu acredita tenta demonstrar a
intensidade de sua crença nessas concepções. Entretanto, essa mesma ênfase é
usada de forma irônica e demonstra com clareza a conclusão de que os princípios
cridos por sua personagem não passam de superstições. Se posto em diálogo com
―Uma velha praga‖, o nascimento do caboclo é apresentado a partir da ocorrência de
um processo ritualístico relacionado ora a uma cultura africana ora a uma cultura de
base cristã, de maneira que deixa transparecer a crítica lobatiana em direção a essa
inclinação religiosa de influências múltiplas.
Já no contexto artístico, o escritor afirma que Jeca não demonstra a mínima
vocação, diferentemente de outros povos rurais cuja produção artística, por vezes,
influencia a criação de ―artistas de escol‖ (p. 176). Suas mais singelas manifestações
98
estéticas estão resumidas em ―uma chumbada do relho‖ e ―uns ziguezagues a
canivete ou fogo pelo roliço do porretinho de guatambu‖ (p. 177). De acordo o
criador do Jeca Tatu, a ―arte popular‖ não é fruto das mãos do caboclo, mas sim das
do ―mulato‖: ―A modinha, como as demais manifestações de arte popular, é obra do
mulato, em cujas veias o sangue recente do europeu, rico de atavismos estéticos,
borbulha de envolta com o sangue selvagem, alegre e são do negro‖ (p. 177).
O pequeno fragmento citado pode demonstrar diferentes posicionamentos
lobatianos com relação à questão racial. Primeiramente, cabe ressaltar que essa foi
a única vez que Monteiro Lobato caracterizou Jeca Tatu com base em uma
comparação racial de cunho biológico, onde o caboclo é posto em oposição ao
mulato originário da miscigenação entre o branco europeu e o negro. Entretanto, o
cotejo não se encerra apenas nesse campo. O objetivo é demonstrar que a arte
popular está relacionada a uma ―raça‖ específica, a qual é dotada da capacidade
necessária para produzi-la e que, consequentemente, se opõe à outra raça
desprovida de tais habilidades. Ademais, a aptidão artística do mulato é legitimada
não por uma competência adquirida, mas por sua ascendência europeia que,
segundo Lobato, dispõe de uma tradição estética ancestral; em comunhão com a
―selvageria‖, a ―alegria‖ e a ―sanidade‖ do negro. Vê-se que o dom da arte, apesar da
sua compartilha com outras qualificações dadas ao negro, que não a da inclinação
estética, está diretamente associado a uma cultura branca. A referência ao negro
como um ser selvagem pode ser associada a um suposto desprovimento cultural
e/ou de uma ligação próxima com a natureza. Finalmente, percebe-se o
estabelecimento de uma correspondência entre o terreno cultural e o biológico da
―raça‖ no momento em que Lobato afirma que a faculdade artística – que, por
conseguinte, gera produção cultural – é hereditária, por estar presente nos
indivíduos de forma sanguínea.
Resumidamente, o caboclo Jeca Tatu é apresentado a partir de uma inaptidão
que permeia todas as esferas de sua vida: no trabalho, nas crenças, na elaboração
artística, na edificação de uma morada, nos sentimentos, etc.. Diferentemente do
negro, o caboclo é representado como ―semi‖-selvagem e, provavelmente, a
utilização do prefixo seja justificada pela presença do sangue branco em suas veias,
o que lhe privaria da selvageria total. Não obstante, essa presença não foi capaz de
gerar os mesmos benefícios transferidos ao mulato no processo de miscigenação,
99
ainda que, segundo Monteiro Lobato, seus princípios culturais tenham sido
passados de geração a geração e o processo fosse permanente. Como visto, a
única relação de Jeca a uma descrição racialmente biológica deriva de sua
confrontação com o mulato, onde é possível notar que as acepções de ―raça‖ em
Monteiro Lobato não atuam somente de forma isolada, mas também em interação.
Mesmo quando correlacionada à nacionalidade, a questão racial foi exposta a partir
da possibilidade de contraposição com o caboclo, o qual, por sua vez, é
representado segundo outros dois âmbitos: o biológico e o cultural. Assim, o caboclo
é tido como racialmente inferior, por sua indolência e conformidade com as
adversidades e por sua cultura alheia a qualquer forma de progresso: tudo isso
permeado por uma inevitável perduração genética. Diferentemente das colocações a
respeito da personagem de Vida Ociosa, os campos cultural e biológico, no caboclo,
são indissociáveis e imutáveis.
O pensamento lobatiano referente ao caboclo se manteve por mais alguns
anos. Em 1916, Lobato declara que o caboclo continua a ser visto desde uma
perspectiva equivocada, graças à sua representação cômica no teatro, que desvirtua
os olhares de sua real situação:
O caboclo é o Menino Jesus étnico que todos acham engraçadíssimo, mas ninguém estuda como realidade. O caipira estilizado das palhaçadas teatrais fez que [sic] o Brasil nunca pusesse tento nos milhões de pobres criaturas humanas residuais e sub-raciais que abarrotam o Interior. Todos as têm como enfeites da paisagem - como os anões de barro de certos jardins da Paulicéia (LOBATO, 1950b, p. 58).
Reforça-se, assim, a ideia de Monteiro de que o caboclo era uma ―raça‖
subalterna às outras. Prontamente, sua caracterização como ―criatura humana
residual‖ remete a algo sobejante e desnecessário; e, se aprofundada a análise do
termo, pode referir-se a algo remanescente da combinação entre diferentes fatores,
ou seja, o caboclo seria o resultado da mescla de um meio ambiente que estimula a
ociosidade e de uma cultura que preserva essa estagnação. Para Lobato, o
horizonte equivocado de apreciação desses indivíduos fazia com que sua existência
fosse considerada meramente ornamental e insignificante, a ponto de culminar em
algo problemático para o país.
100
4.2.3 A questão da guerra
Em artigo publicado no jornal paulista, em 191518, Lobato analisa a
problemática da guerra. Segundo ele, a formação de um sentimento de conquista
nasceu com Caim depois de matar seu irmão Abel. De acordo com Monteiro Lobato,
―com a pedrada‖, Caim pode abandonar sua simples função de ―pastor‖19 e, por
conseguinte, ―ensinou aos homens o caminho da glória, a embriaguez da vingança,
o segredo da dominação, a morte heróica. Em suma a guerra‖ (LOBATO, 1959d, p.
96). Já nas regiões onde, de acordo com ele, ―o homem não tinha contato com
Deus‖, o troglodita descobriu que, através da morte, poderia possuir coisas alheias,
como uma cobiçada pele de urso para proteger-se do frio. As grandes vitórias da
história teriam descendido desses dois fatores inaugurais e acabado por formar os
maiores ―heróis guerreiros‖:
Nenhum povo detentor de alto valor histórico existe que o não conquistasse pela guerra. Grécia, Roma, Cartago, França, Alemanha... Em redor deles gravita como satélite o rebanho dos fracos, carneáveis como rezes. [...] A guerra europeia ensina, ainda e sempre, a eterna glória da força aureolada do heroísmo; indica ao povo que ―queira‖ viver a senda a trilhar na arrancada para o futuro (LOBATO, 1959d, p. 100). [grifo do autor]
Tratada como força instintiva, a inclinação para a guerra é associada à
natureza humana e considerada como realizadora da possibilidade de distinção
entre fortes e fracos, superiores e inferiores. Considerando a guerra que se
desenvolvia naquele momento como uma lição aos que objetivavam ser ―grandes‖,
Lobato salienta a necessidade de instigar o sentimento belicoso no Brasil, ao
destacar ser imprescindível perceber que a guerra fez parte do passado, faz parte
do presente e fará parte do futuro, pois sempre haverá ―luta de classes‖, ―luta de
partidos‖, ―luta de povos‖, ―luta de raças‖: resumidamente, segundo Monteiro, ―viver
socialmente é lutar‖ (LOBATO, 1959d, p. 100).
De acordo com o escritor, os ensinamentos da guerra atual fariam com que os
―armamentos‖, os ―serviços de espionagem‖, a ―disciplina e controle dos exércitos‖
evoluíssem para adequar-se as necessidades das guerras futuras (p. 101). Não
18
O artigo, intitulado ―A hostefagia‖, foi republicado em Ideias de Jeca Tatu, em 1919.
19 Lobato faz referência: ―Caim morreria simples pastor‖ (p. 96). No entanto, no capítulo 4 e versículo
2 da bíblia cristã, vê-se essa era a função desempenhada por Abel, enquanto a ocupação de Caim
era ―lavrador‖ (GÊNESIS, s/d).
101
obstante, faltava rever a problemática da alimentação dos soldados, cujo papel seria
fundamental para a vitória em combate. Para ele, ainda que se fale em ―alimentação
artificial‖, a grande saída estaria na ―hostefagia‖, nome dado por Lobato à
antropofagia, a fim de eliminar o caráter bárbaro e brutal da palavra (p. 102). A
possibilidade de alimentar-se da hoste adversária é legitimada, segundo Monteiro,
por estudos que comprovam que a carne humana possui a mesma formação que a
do boi. Além disso, a solução para o preconceito poderia ser alcançada através da
instigação desses hábitos desde o início da vida e ―o povo que primeiro vencer o
preconceito bromatológico do seu exército terá o mundo a seus pés‖, já que um dia
de jejum forçado seria o suficiente para instigar a ânsia dos exércitos (p. 103). Por
fim, afirma que quando sejam notados os benefícios obtidos pela primeira nação que
adotar a ―hostefagia‖, esse comportamento alimentar será exercido por toda a
humanidade e, nesse momento, ter-se-á chegado a ―idade de ouro‖ (p. 104).
Nessa perspectiva, a vida em sociedade é determinada por sua multiplicidade
de diferenças, o que resulta como imposição a necessidade de luta, de competição.
Dentre esses múltiplos confrontos, onde Lobato inclui o confronto entre as raças,
essa necessidade estaria obstruída por um sentimento avesso ao preciso: o da
pacificidade. A quietação de ânimo é considerada por ele como sinônimo de
covardia (p. 99) e, se analisada em comparação com a existência de uma ―verdade
filosófica‖ em dissonância com a ―verdade autêntica‖, essa harmonia seria, então, a
desencadeadora daquela moral ilusória. As postulações de Monteiro Lobato
induzem a conclusão de que esses duelos, aparentemente mais amenos, são como
a Guerra, e que era primordial que se deixasse florescer a natureza bélica do ser
humano, a fim de que essas lutas encontrassem os desfechos naturais da vida e,
por conseguinte, os mais fortes imperassem.
Finalmente, a consideração de que a adoção do hábito ―hostefágico‖ gera a
vitória, a evolução, o progresso, inevitavelmente faz lembrar os rituais
antropofágicos nos quais se cria que, na ingestão da carne do inimigo, suas forças e
habilidades eram absorvidas. Está claro que o escritor paulista não cria nesse
desfecho mágico do processo alimentício, mas pode, de maneira metafórica, fazer
alusão a ele, ao considerar que ―chegar-se-á a idade de ouro‖ quando os comedores
de carne humana manifestarem maior vigor a cada nova vitória, como se a conquista
incorporasse a força, aparentemente eliminada, ao vencedor, tornando-o mais hábil
102
e forte e evidenciando sua supremacia. O artigo lobatiano aparenta concordância e
defesa do princípio de ―seleção natural‖ ancorado nos ideais dos darwinistas sociais.
4.3 Primeiros contos
Em julho de 1918, Monteiro Lobato publica sua primeira obra, um conjunto de
doze contos interligados pela temática da ―morte‖. Devido a essa relação entre os
contos, inicialmente nomeou sua produção de ―Doze mortes trágicas‖, mas, por
indicação de Arthur Neiva (CAVALHEIRO, 1956a, p. 185), alterou o título da obra
para Urupês, mesmo nome de seu artigo anteriormente publicado no ―Estado de S.
Paulo‖, o qual acabou por ser incluído ao final dessa publicação, juntamente com o
texto ―Uma Velha praga‖20. Coincide, também, na maioria destes contos, a aparição
do sertão como o espaço de desenvolvimento das ações narrativas e,
consequentemente, a vinculação dos personagens à vida sertaneja ou à ruralidade.
Entretanto, são restritas as menções dos narradores lobatianos a características
raciais identificáveis, mas dois contos se destacam pela aparição dessa
representação: ―A vingança da peroba‖ e ―Bocatorta‖.
4.3.1 “A vingança da peroba”
Escrito em 1915, ―A vingança da peroba‖ traz a história de uma rivalidade
longínqua entre João Nunes e Pedro Porunga. Sua desavença nasceu na ocasião
em que um dos filhos de Porunga acidentalmente matou uma paca – antiga
moradora das terras de Nunes e especialista em escapar de suas tentativas de
caçá-la – e nem ao menos compartilhou a carne resultante do imprevisto com seu
―legítimo dono‖. Segundo o narrador, concomitantemente a essa desavença, Nunes
era tomado por um sentimento de desconsolo derivado de uma família formada,
predominantemente, por mulheres – com exceção de si mesmo e do único filho
homem, José Benedito – e que se opunha à descendência de Pedro Porunga,
constituída por seis filhos homens.
A demarcação racial surge apenas em um momento, no qual o narrador
caracteriza José Benedito como sendo ―caboclo‖, o que, obviamente, não denota
20
Em Urupês, o nome do artigo sofre alteração ao perder o artigo inicial: (Uma) Velha Praga.
103
nenhuma certeza a uma indicação de mesmo cunho direcionada a seu pai, mas
possibilita análise significativa quando posta em diálogo com a subsequente
descrição de Nunes e sua investida no doutrinamento cultural do filho. De acordo
com o narrador, enquanto Porunga era próspero em suas atividades laborais,
possuía uma égua, caçava com espingarda de dois canos e sua residência era
elogiável:
[...] Nunes – pobre do Nunes! – não punha na terra nenhum alqueire de semente. Teve égua, mas barganhou-a por um capadete e uma espingarda velha. Comido o porquinho, sobrou do negócio o caco da pica-pau, dum cano só e manhosa de tardar fogo. / Sua casa, de esteios com casca e postas de imbaúba rachada, muito encardida de picuman, prenunciava tapera próxima. Capado, nenhum. Galinha escassa. / [...] O cachorro [...] andava de barriga às costas [...] (LOBATO, 2008b, p. 57).
Assim, Nunes é apresentado segundo uma incompatibilidade com a
prosperidade de Pedro Porunga. Em relação ao trabalho, não demonstra usufruir da
possibilidade de plantação, nem de criação de animais produtivos, e suas
negociações resultam apenas em prejuízos. Sua postura estagnante e antievolutiva
– e ainda inversa a de Pedro – se une ao vício pela ―cachaça‖, atitude a qual não só
intencionava passar a Benedito, juntamente com a do ―fumo‖, mas que já punha em
prática ao dar-lhe goles da bebida: ―– Homem que não bebe, não pita, não tem faca
de ponta, não é homem – dizia Nunes‖ (p. 56). Por fim, fruto da emulação
direcionada a Porunga, Nunes constrói um monjolo, obtendo madeira a partir do
derrube da peroba que dividia a terra dos dois vizinhos e que, por conseguinte,
pertencia aos dois. Entretanto, o seu engenho não funcionou como planejado e, nas
redondezas, instalou-se a zombaria em direção àquela edificação frustrada. Em uma
das embriaguezes de consolação, Nunes convidou seu filho para acompanhá-lo e ―o
menino não esperou novo convite‖ (p. 66). Ao acordar, João Nunes descobre a
morte trágica de José Benedito esmagado pelo pilão do monjolo inútil.
Percebe-se que a personagem João Nunes é apresentada pelo narrador com
permanente ligação a suas atitudes contrárias às desencadeadoras do sucesso de
seu vizinho. Além disso, nota-se a tentativa de transmissão dos hábitos entre pai e
filho, visando uma prevalência cultural a partir da ingerência de bebidas alcoólicas,
do uso do fumo e do porte de uma faca de ponta. A exposição do caboclo pelo
narrador lobatiano pode ser posto em comparação com a apresentação desse
indivíduo feita por Lobato nos artigos anteriormente analisados. Em ―Uma velha
praga‖, Monteiro Lobato explica como costuma ser a chegada dos caboclos a uma
104
nova terra e expõe o perfil do filho mais velho que em muito se assemelha – e não
só na idade – com o de José Benedito, expresso pelo narrador de ―A vingança da
peroba‖: ―[...] outro de sete anos – à ourela da saia – este já de pitinho na boca e
faca na cinta‖ (LOBATO, 2008b, p. 161).
Já em ―Urupês‖, o escritor paulista contrasta a situação de Jeca Tatu a de seu
vizinho: ―A terra onde mora é sua. Possui ainda uma égua, monjolo e espingarda de
dois canos‖ (Idem, Ibidem, p. 173). Apesar de Nunes também ser proprietário de sua
terra, diferentemente de Jeca, o diálogo entre os ideais do escritor e as
caracterizações dadas por seu narrador coincidem quando João é descrito como um
indivíduo desapegado ao trabalho manual, não aproveitando os benefícios da
agricultura e com costumes antiprogressivos. Os aspectos destacados não
objetivam apenas o apontamento de simples similitudes entre os textos, mas
evidenciam que o pensamento de Lobato a respeito do caboclo está em harmonia
com a representação literária na voz do narrador do conto analisado.
4.3.2 Bocatorta
A maturação das ideias a respeito dessa produção literária durou mais de dez
anos e, com o intuito inicial de elaboração de um romance, Lobato acabou por
estruturar ―Bocatorta‖ em forma de conto, no ano de 1915. Dentro da obra de
Monteiro Lobato, Bocatorta é a primeira personagem negra com função narrativa
importante para o enredo literário, consequentemente, conquistando o título do texto
no qual está inserido. Sua história se desenvolve nas imediações da fazenda do
major Zé Lucas, na qual Bocatorta vive isolado no matagal e somente pela noite e
em escassas vezes sai de casa. De acordo com o major, Bocatorta é filho de uma
das escravas de seu pai e sua ―fisionomia monstruosa‖ resulta no terror do povo, o
qual relaciona a ele todos os infortúnios ocorridos na fazenda (LOBATO, 2008b, p.
120). Ainda que de maneira mais comedida em Zé Lucas, a repulsa à ―feiúra‖ da
personagem negra é evidenciada nas vozes de todas as outras personagens, bem
como na do narrador, que o descreve da seguinte maneira:
Bocatorta excedeu a toda pintura. A hediondez personificara-se nele, avultando, sobretudo, na monstruosa deformação da boca. Não tinha beiços, e as gengivas largas, violáceas, com raros cotos de dentes bestiais fincados às tontas, mostravam-se cruas, como enorme chaga viva. E torta, posta de viés a cara, num esgar diabólico, resumindo o que o feio pode compor de horripilante. Embora se lhe estampasse na boca o quanto fosse
105
preciso para fazer daquela criatura a culminância da ascosidade, a natureza malvada fora além, dando-lhe pernas cambaias e uns pés deformados que nem remotamente lembravam a forma do pé humano. E olhos vivíssimos que pulavam das órbitas empapuçadas, veiados de sangue na esclerótica amarela. E pele grumosa, escamada de escaras cinzentas. Tudo nele quebrava o equilíbrio normal do corpo humano, como se a teratologia caprichasse em criar a sua obra-prima (LOBATO, 2008b, p. 126)
O trecho citado exemplifica a centralidade da relação à personagem segundo
a descrição de traços físicos ligados, na maioria das vezes, a uma monstruosidade
de caráter diabólico. Neste sentido, Bocatorta é apresentado segundo uma
deformação sobrenatural de seu corpo e essas características tidas como
abomináveis legitimariam a sua condição de exclusão. A figura negativa dessa
personagem se opõe a de Cristina, filha de Zé Lucas, a qual é apresentada como
um arquétipo da beleza, ―um ramalhete completo das graças‖, com ―lábios de
pitanga, a magnólia da pele acesa em rosas nas faces, olhos sombrios como a noite,
dentes de pérola‖: ―linda‖ (p. 124). Vê-se que, nos dois casos, a aparência das
personagens é levada a seus extremos e, prontamente, se percebe a formação da
dicotomia feiúra/beleza, a qual, por relação direta, pode ser expandida para ―feiúra
negra/beleza branca‖, dada a demarcação racial de cada um.
Os rasgos físicos de Bocatorta despertam, então, o interesse de Eduardo,
noivo de Cristina, e o instiga a conhecer o tal sujeito. A ―criatura‖ ocasionava o temor
de todos, principalmente o da filha do major, que, desde sua infância, era
atemorizada pelas mucamas com histórias sobre Bocatorta, o que lhe ocasionava
sonhos repetidos nos quais ele, sem sucesso, tentava beijá-la. Depois de algumas
falhas rejeições da garota, todos partiram para a visita ao ―monstro‖ e, ao encontrá-
lo, somente os homens o observaram com suportação, mas, em certo instante, os
olhos do ―monstro‖ ―encontraram os de Cristina e neles viram a expressão de pavor
da preá engrifada nas puas da suindara – o pavor da morte...‖ (p. 126). De volta a
casa, no dia seguinte, a moça se encontra ―febril‖, ―trêmula‖ e com ―ardores no
peito‖. Passa a piorar a cada novo dia e, no décimo, ―o sino do arraial anuncia seu
prematuro fim‖ (p. 128). Durante a mesma noite, Eduardo decide visitar o túmulo de
Cristina para um último adeus, mas lá encontra uma criatura a remexer sua
sepultura. Por conseguinte, retorna a casa para anunciar a crueldade. De volta ao
cemitério, Zé Lucas e outros sujeitos se deparam com ―um corpo branco [...]
abraçado a um vulto vivo, negro e coleante como polvo‖ (p. 130). Bocatorta é
flagrado, perseguido e morto pelo major e seus companheiros.
106
Segundo David Brookshaw (1983), o conto de Monteiro Lobato dialoga com a
postura ―mestiçofóbica‖ do escritor, com sua depreciação do contato entre as raças,
por considerá-lo contrário ao progresso racial brasileiro. Para David, ―criar um
monstro a partir dele [do negro] era, na verdade, dizer que ele não era um homem,
nem tampouco merecia qualquer contato humano, fosse qual fosse‖ (BROOKSHAW,
1983, p. 69). Nota-se que a morte de Cristina derivou do próprio contanto, durante
muito tempo preservado, com Bocatorta. Na linha de pensamento apresentada por
Brookshaw, o conto lobatiano pode ser considerado uma metáfora de um projeto
racial para o Brasil, onde se deveria proteger-se contra a miscigenação, pois, caso
essa restrição fosse rompida, o futuro do país seria o perecimento.
4.4 A união aos projetos sanitaristas e a ressurreição de Jeca Tatu
O lançamento do livro O saneamento do Brasil (1918), por Belisário Pena,
reunião de artigos escritos e publicados durante 1916 e 1917, serviu de parâmetro
para a fundação, no mesmo ano, da Liga Pró-Saneamento do Brasil (PONTES;
LIMA; KROPF, 2010, p. 90). De acordo com Edgard Cavalheiro, essa obra de Pena
revelou ―à Nação estarrecida o Brasil desconhecido, um País doente, cheio de
mazelas‖ e esse reconhecimento, tanto de Belisário como de outros cientistas como
Osvaldo Cruz, Carlos Chagas e Arthur Neiva, ocasionou a inferência de que ―o
problema número um do País‖ estava relacionada à questão do saneamento
(CAVALHEIRO, 1956a, p. 211-212). Segundo Cavalheiro, Lobato, que ainda recebia
críticas pela sua caracterização do caboclo, se une aos projetos sanitaristas
cunhados pelo médico paulista Osvaldo Cruz no começo daquele século e que
ganhava novas forças com o trabalho de cientistas como Pena.
4.4.1 Sanear é preciso
Monteiro começa, então, a escrita de vários artigos a serem publicados no ―O
Estado de S. Paulo‖, baseando-se nas premissas dos ―teóricos higienistas‖ (Idem,
Ibidem, p. 212). Entre março e junho de 1918, o escritor paulista publica uma série
de textos, os quais acabaram por ser reunidos em forma de livro no mesmo ano.
Sob o título de Problema vital, a publicação lobatiana levava a seguinte nota na
107
capa: ―Artigos publicados no ‗Estado de S. Paulo‘ e enfeixados em volume por
decisão da Sociedade Eugênica de São Paulo e da Liga Pró-Saneamento do Brasil‖.
Vê-se que as duas instituições, fundadas no mesmo ano, partilhavam interesses e
projetos e essa concordância se refletia, também, na existência de membros com
funções importantes associados às duas entidades, como é o caso de Arthur Neiva
e Renato Kehl (DIWAN, 2007, p. 98).
A mudança de perspectiva com relação ao caboclo é evidente desde a
epígrafe de Problema vital: ―O Jeca não é assim; está assim‖. Lobato abandona,
assim, a visão determinista de imutabilidade daqueles indivíduos, para considerá-los
como resultantes dessa problemática falta de higiene sanitária pela qual estavam
acometidos. A edição inicial da obra lobatiana foi prefaciada pelo secretário da
SESP e da LPSB, Renato Kehl. Segundo ele, essas publicações de Monteiro Lobato
no jornal paulista foram ―como que alavancas que nos deslocaram do enervante
estado de apatia em que jazíamos. Elas nos deram a conhecer os males que urgia
serem combatidos‖ (KEHL apud CAVALHEIRO, 1956a, p. 217).
Na obra, Lobato tenta demonstrar, primeiramente, que se criou uma visão
ilusória sobre o Brasil, cujo cerne estaria na posse de uma ―riqueza‖, uma
―inteligência‖ e uma ―invencibilidade‖ incontestável. Esse desvanecimento expresso
em diferentes atos, publicações e cânticos seriam originadores dos males
brasileiros, pois o ―povo, ingênuo que é, decorou a sério o agradável estribilho da
riqueza sem par, da inteligência primacial e da invencibilidade da nipônica; e
consequente com o ensinado assumiu uma atitude lógica: papo ao ar em sorridente
lombeira‖ (LOBATO, 2010d, p. 23). Segundo ele, no entanto, começa-se a perceber
a realidade do país e dá-se o passo inicial quando Osvaldo Cruz é nomeado chefe
da higiene da cidade do Rio de Janeiro e eclode no Brasil o movimento sanitarista,
baseado nos estudos do cientista francês Louis Pasteur (1822-1895) sobre a
microbiologia. Por conseguinte, aprofunda-se esse novo estágio no momento da
publicação da obra de Belisário Pena anteriormente citada (Idem, Ibidem, p. 24-26).
Seguidamente, Monteiro Lobato explana as principais doenças detectadas
pelos cientistas na marcha pelo saneamento do Brasil. De acordo com o escritor
paulista, como resultado da ação e proliferação do amarelão, da doença de Chagas
e da malária, tem-se o ―atrofiamento da inteligência‖ do indivíduo, transformando-o
em ―um saturno urupê humano, incapaz de ação, incapaz de vontade, incapaz de
108
progresso‖ (p. 30). Formam-se, assim, uma infinidade de ―aleijados‖, ―idiotas‖ e
―papudos‖ a degradar a população brasileira e que, consequentemente, fazem do
país ―uma nação pobre‖ (p. 43). Unem-se a estas três moléstias a ―lepra campeira‖,
a ―sífilis‖, a ―tuberculose‖ e a ―leishmaniose‖. Todas essas problemáticas já não
estavam relacionadas especificamente ao caboclo, mas ao homem do campo em
geral e teriam provocado no país uma carência de braços fortes para o trabalho nas
lavouras, principalmente nas de café, produto central da agricultura brasileira da
época. Segundo Lobato, o país clamava:
Braços! Braços! Há fome de braços. Um país de 25 milhões de habitantes não consegue fornecer braços para a lavoura do café, lavoura que produz menos que uma das grandes empresas açucareiras de Cuba. / É que os braços estão aleijados. / Há-os de sobra, mas ineficientes, de músculos roídos pela infecção parasitária, o que obriga a lavoura ao ônus indireto de importar músculos europeus, ou chins, ou japoneses – o que haja, contanto que seja carne sadia e não fibras em decomposição. / Entretanto, a solução definitiva do problema eterno da lavoura quem a dará é a higiene (LOBATO, 2010d, p. 36). [grifos do autor]
A centralidade da questão é posta em evidência: um país com um grande
número de habitantes não estava sendo capaz de suprir a demanda de trabalho
resultante do fim da escravidão. Segundo Lobato, o problema reside na evidência de
que os indivíduos que poderiam repor a mão de obra estão doentes, o que exige a
vinda de trabalhadores estrangeiros. Para ele, o preenchimento necessário poderia
vir tanto da Europa quanto da Ásia, posicionamento que contraria as críticas
direcionadas à imigração asiática, tão advogadas por Joaquim Nabuco, mas que
avalia a situação apenas por seu viés de contribuição laboral e deixam de lado a
discussão racial. No entanto, o escritor paulista destaca que a Primeira Guerra
Mundial (1914-1918), a qual caminhava para seu fim, havia aniquilado ―aquele
excedente de população donde nos vinha o caudal de braços‖ (p. 69) e, por
conseguinte, havia invalidado a continuação da imigração europeia. Estudava-se a
possibilidade da vinda de chineses para suprir a falta de ―braços‖, mas Monteiro
Lobato salientava que os gastos injetados na vinda desses sujeitos poderiam ser
invertidos em apoio ao projeto sanitarista para ―renovação‖ da população rural, a
qual, consequentemente, atenderia as demandas de trabalho.
Percebe-se que, por diversas vezes, Lobato exalta a necessidade de
crescimento econômico do país, a qual foi interrompida pelas mazelas do povo.
Afirma ele que ―o déficit econômico é reflexo do déficit da saúde‖ (p. 62). A exaltação
lobatiana dos projetos sanitaristas demonstra estar interligada mais a uma proposta
109
de construção de um movimento agrícola em prol do progresso brasileiro, do que a
uma interseção de cunho humanista em defesa do povo rural. Assim, dada a
irrealizável busca de reforços europeus, o valor dessa investida é associado à
igualdade desses brasileiros aos trabalhadores estrangeiros, pois a população rural
―possui ótimas qualidades de resistência e adaptação. É boa por índole, meiga e
dócil. O pobre caipira é positivamente um homem como o italiano, o português, o
espanhol. / Mas é um homem em estado latente‖ (p. 69). Lobato afirma,
posteriormente, que, por dois motivos, em ―todos os países do mundo as populações
rurais constituem o cerne das nacionalidades‖ (p. 47):
Pela capacidade de trabalho, mantêm eles sempre elevado o nível da produção econômica; pela saúde física, mantêm em alta o índice biológico da raça, pois é com o sangue e o músculo forte do camponês que os centros urbanos retemperam a sua vitalidade. / O urbanismo é um mal nocivo à espécie humana. Os vícios, o artificialismo, o afastamento da vida natural, o ar impuro, a moradia anti-higiênica se conjugam para romper o equilíbrio orgânico do homem citadino, rebaixando-lhe o tônus vital. Mas o campo intervém e restaura-se o equilíbrio. A infiltração permanente de sangue e carne de boa têmpera, vinda dos campos, contrabalança o desmembramento das cidades (LOBATO, 2010d, p. 47-48).
Novamente relaciona-se o homem do campo ao desenvolvimento econômico
do país, mas também o associa ao vigor da raça, esta tomada, como se percebe,
como ―nacionalidade‖. As zonas urbanas, desprovidas dessas energias advindas da
proximidade com a natureza, necessitariam do ―auxílio‖ da população rural para
suprir as carências oriundas de hábitos degradantes e imposições do urbanismo.
Segundo Lobato, no caso do Brasil, essa busca era em vão, pois a situação da
população rural era inferior a da urbana, o que obrigava a importação de sangue
estrangeiro. De acordo com ele, ―os homens mínguam de corpo, as mulheres são
um rastolho raquítico incapaz de bem desempenhar sequer a missão reprodutora‖
(p. 48). Percebe-se que Monteiro adota uma postura de valorização do trabalhador
nacional, em função de sua formação racial, ou seja, seria possível beneficiar-se das
contribuições que o próprio povo brasileiro tinha a oferecer – já que a imigração
europeia tinha sido paralisada pelos conflitos armados – desde que, primeiramente,
se fosse capaz de curar esse Brasil doente.
O conjunto de textos publicados no jornal paulista é finalizado pelo artigo ―As
grandes possibilidades dos países quentes‖, no qual Monteiro analisa a questão do
suposto ―determinismo climático‖, associando-o às possíveis colaborações da
organização sanitarista que se desenvolvia. Inicialmente, afirma que, nas regiões de
110
clima tropical, a ―vida animal‖ e ―vegetal‖ alcançam o estágio mais avançado da
evolução (p. 94). A partir dessa afirmação, o articulista chega à conclusão de que o
mesmo não ocorre com o homem, pois, com relação a este, o processo é
―degenerativo‖, o que leva Lobato a questionar-se o motivo da ruptura: ―Por que
degenera o homem justamente onde, por impulso ambiental, devera alterar-se ao
apogeu?‖ (p. 96) Segundo ele, ocorreu um ―atrofiamento das defesas naturais do
corpo‖ no momento em que o homem distanciou-se da natureza e assumiu o
comportamento debilitador da ―nova alimentação‖, da ―facilidade de transporte‖, da
―utilização de vestimentas‖, da ―vida em sociedade‖ e do ―urbanismo‖ (p. 97). Em
consequencia disso:
[...] o regime do direito e da moral, impostos pela vida em sociedade, anulou a força dos processos seletivos; os fracos defendidos pela lei, amparados e conservados artificialmente; o forte impedido de vencer e eliminar o fraco; a revogação, em suma, da lei da biologia lançou o Homo sapiens no despenhadeiro da degenerescência física. Biologicamente, o homem é um animal em plena decadência (LOBATO, 2010d, p. 97).
Se na análise de Monteiro Lobato sobre a questão bélica a associação às
postulações de Charles Darwin sobre a evolução das espécies e a seleção natural
dependia de interpretação, agora, prontamente, percebe-se a relação explícita do
enunciado lobatiano à teorização do naturalista britânico, as quais foram transpostas
ao plano humano pelos estudiosos do darwinismo social. O ―direito‖ e a ―moral‖ são
colocados como uma criação fictícia ligada aos processos de ―civilização‖ e
―socialização‖ e que acarretaram no rompimento do curso natural da seleção
humana, na qual o forte, mais do que vencer, eliminaria o fraco. A colocação é
diretamente relacionável ao acontecimento narrado por Lobato sobre a reação do
americano frente à ação do guarda-freio e que considerou horrível de acordo com as
leis artificiais da sociedade, mas aceitável segundo as leis naturais, legitimadoras de
sua superioridade. Além disso, o desconsolo com o desfecho falho da seleção
natural é sinônimo de um desapontamento pela não mais predominância futura de
certa espécie/raça e extinção das outras. A ideia salienta não a dominância sobre
outras raças – e, consequentemente, seu mantimento – mas a sua eliminação.
Entretanto, ―revogou-se a lei da biologia‖ e o homem, ao invés de evoluir, se
degenerou.
De volta ao âmbito do determinismo climático, Monteiro Lobato destaca que o
progresso biológico do homem pode ter sucesso apenas nas zonas temperadas ou
frias onde ―o mundo dos microorganismos não alça o colo, onde o parasitismo é
111
quase nulo‖ (p. 97). Assim, devido a seu clima, os habitantes dessas regiões
estariam livres de calamidades como a do Brasil, porém, teriam essa liberdade tirada
quando se mudassem a localidades de clima quente, onde se expõem aos mesmos
inconvenientes que padecem os habitantes naturais daquele espaço. Entretanto, a
solução brasileira para o problema das imposições climáticas foi encontrada, a qual
Lobato caracteriza como ―defesa artificial‖, a qual substituiria a ―defesa natural
degradada‖: a higiene (p. 98). Através dela, o país poderia salvar-se da deterioração
biológica em que se encontrava e desconstruir o suposto determinismo climático das
zonas quentes. Essa mudança de pensamento quanto à situação do povo rural fez
com que o escritor ―ressuscitasse‖ sua personagem Jeca Tatu e desse a ela uma
nova face.
4.4.2 Jeca Tatu: A ressurreição
Em 1924, Monteiro Lobato publica uma nova história de ―Jeca Tatu‖ e essa
proposta de renovação é perceptível a partir de seu título inicial – Jeca Tatu: A
ressurreição – um novo começo, um ressurgimento, um voltar da morte.
Posteriormente, a obra passou a ser chamada de Jeca Tatuzinho, devido a seu
pequeno formato de distribuição, já que o texto ocupa pouquíssimas páginas, além
de ser formado por capítulos com um número restrito de parágrafos. Segundo o
narrador da referida obra, o caboclo Jeca Tatu era um ser desalentado, o qual
residia numa casa em estado deplorável, sem o mínimo conforto. Era proprietário da
terra onde morava, mas dono, também, de um esmorecimento que lhe impedia a
inspiração de aproveitar a terra através da plantação. Tal fraqueza era notável nos
grandes esforços que fazia para carregar uma pequena quantidade de lenha. Sua
estagnação era, por ele, justificada por repetitivos ―– Não paga a pena‖ (LOBATO,
2010d, p. 103), os quais não eram manifestados apenas quando se tratava de
―beber pinga‖. A personagem lobatiana é, então, posta em comparação com seu
vizinho italiano, próspero em suas atividades laborais, dada a sua isenção da
preguiça que flagelava o caboclo. Devido à sua postura, Jeca era visto, pelos que lá
passavam, como ―preguiçoso‖, ―bêbado‖ e ―idiota‖ (p. 104).
A narrativa ganha novos contornos quando um médico, em razão da chuva,
chega à casa de Jeca Tatu e, em uma conversa com o ―caboclo‖, identifica que a
112
moleza e as dores que sente derivam de uma doença, a qual diagnostica como
sendo ancilostomíase, mais conhecida como ―amarelão‖. Então, o esculápio receita
um medicamento e lhe orienta a não mais andar descalço e não ingerir bebidas
alcoólicas (p. 105). Em nova visita, o médico encontra Jeca Tatu em melhores
condições e explica a ele as formas de contração daquela enfermidade. Daquele
momento em diante, Jeca passou a crer na ―Ciência‖. Curado de suas moléstias,
juntamente com sua família, ganhou forças: começou a plantação; carregava
grandes feixes de lenha; cuidava dos animais; consertou e aumentou a casa.
Objetivava enriquecer e o italiano se impressionava a cada novo avanço nas terras
vizinhas. O caboclo aprendeu a falar inglês e implantou sistemas avançados de
controle de sua fazenda, a qual ―tornou-se famosa no país inteiro‖ (p. 110). Por fim,
seu sucesso o inspirou a ajudar os ―caipiras‖ da sua região e a ensinar as crianças o
que havia aprendido:
Meninos: nunca se esqueçam dessa história; e, quando crescerem, tratem de imitar o Jeca. Se forem fazendeiros, procurem curar os camaradas da fazenda. Além de ser para eles um grande benefício, é para vocês um alto negócio. Vocês verão o trabalho dessa gente produzir três vezes mais. / Um país não vale pelo tamanho, nem pela quantidade de habitantes. Vale pelo trabalho que realiza e pela qualidade da sua gente. Ter saúde é a grande qualidade de um povo. Tudo mais vem daí (LOBATO, 2010d, p. 111).
Essas palavras finais demonstram uma das características essenciais de Jeca
Tatuzinho: o caráter instrucional ou didático. Essa característica, comprovada na
conclusão do texto, é construída no enredo da própria narrativa, com um panorama
evolutivo da personagem, que vai de sua inércia, passa pelo conhecimento da
ciência e pela cura, para, por fim, desencadear no progresso vivido pelo caboclo em
função dos benefícios da boa higiene. O didatismo dessa obra lobatiana se reforça
quando a obra passa a ser usada com interesse propagandístico dos medicamentos
da empresa de Cândido Fontoura (1885-1974), pioneiro da indústria farmacêutica
brasileira. Na versão publicitária, trechos são modificados e ganham referências
diretas aos fármacos ―Ankilostomina Fontoura‖ e ―Biotônico Fontoura‖. A conclusão
do texto de Lobato demonstra que, apesar da referência a Jeca Tatu, a questão
higienista defendida pelo narrador se direciona não só ao caboclo, mas a todos os
homens rurais, denominados como ―caipiras‖.
Obvia e explicitamente, o texto de Monteiro Lobato é fruto de sua união aos
projetos sanitaristas e apresenta pensamentos semelhantes aos postulados em seus
artigos enfeixados em Problema vital. Segundo Lobato, o país necessitava prosperar
113
economicamente, mas estava impossibilitado pela falta de mão de obra nacional em
consequência dos altos custos de mantimento da imigração e pela ―incapacidade‖ do
povo rural. Percebe-se que, apesar da ideia de um indivíduo que enriquece em
função de sua cura, a esfera da saúde do povo do campo é, por fim, associada ao
progresso por intermédio da multiplicação do trabalho. Ainda assim, vê-se que, na
transição apresentada, a perspectiva do escritor paulista passou de um pessimismo
determinista em direção ao caboclo a um otimismo progressista orientado ao homem
rural brasileiro.
4.5 Negrinha
A obra Negrinha, em sua primeira publicação, em 1920, levava apenas seis
contos. Moldava-se um ―Lobato editor‖ que buscava averiguar se era mais vantajoso
publicar livros pequenos ou grandes (LOBATO, 1950b, p. 220). Posteriormente, na
organização de suas ―Obras completas‖, acabou por acrescentar algumas
produções que faziam parte da publicação O macaco que se fez homem, de 1923,
bem como outros textos. A questão racial dessa obra lobatiana é marcada desde
seu título, o qual é reflexo da titulação do conto que abre o conjunto de textos. Os
dois primeiros textos analisados trazem, como pano de fundo, uma temática
relevante para discussão que aqui se propõe: o período pós-abolição. Os outros dois
tratam a problemática racial de forma mais singela.
4.5.1 A beleza angelical branca
A partir de seu título, pode-se concluir que o texto lobatiano será conduzido
pelo viés racial e essa demarcação é posta em cena desde as primeiras linhas do
conto, nas quais o narrador descreve a personagem protagonista segundo sua
fisionomia e sua situação familiar. De acordo com ele, ―Negrinha era uma pobre órfã
de sete anos. Preta? Não; fusca, mulatinha escura, de cabelos ruços e olhos
assustados‖ (LOBATO, 1959g, p. 3). Vê-se que a nomeação dada pelo narrador à
menina é, diretamente, associada à cor de sua pele e essa característica se manterá
no decorrer da narrativa, na qual a personagem levará consigo a demarcação racial
reforçada por essas primeiras palavras. Essa indicação parte, quase que na
114
totalidade das ocorrências, a partir da voz do narrador, com exceção de um
momento em que ela mesma se apresenta como ―Negrinha‖, o que demonstra que
sua identidade havia sido formada nessas circunstâncias. No entanto, não há na
narrativa nenhuma fala direta de outra personagem se referindo a ela com essa
nomeação. Já o adjetivo ―pobre‖, desde já, fixa a existência de certo
compadecimento do narrador devido a ter perdido sua mãe enquanto criança.
Negrinha nasceu na senzala, filha de mãe escrava, mas, devido a sua perda,
acabou sob os cuidados de ―dona Inácia‖, antiga patroa de sua mãe. A ausência
materna, no entanto, não lhe tirou a condição social e, até os últimos dias de sua
vida, teve como principal espaço de vivência a cozinha. Além disso, sendo que era
antiga dona de escravos, Inácia extraiu daí a habilidade de maltratar, ainda mais por
não ter gerado filhos e, por conseguinte, não tolerar choro de crianças. Essas
intolerâncias de Inácia acabavam por surtir efeito em Negrinha, cuja pobre carne, de
acordo com o narrador, ―exercia para os cascudos, cocres e beliscões a mesma
atração que o imã exerce para o aço‖ (p.5). Isso quando não desencadeavam
castigos mais severos, como quando pôs um ovo quente na boca da menina,
tampando-a com a mão para que não o cuspisse e, ao mesmo tempo, não gritasse.
O tratamento dado a filha de uma ex-escrava era acompanhado de uma
multiplicidade de apelidos com intuito pejorativo: ―pestinha, diabo, coruja, barata
descascada, bruxa, pata choca, pinto gorado, mosca morta, sujeira, bisca, trapo,
cachorrinha, coisa ruim, lixo‖, etc. (p. 4-5).
Ironicamente, o narrador lobatiano relaciona a disposição de dona Inácia em
tomar conta de Negrinha com uma postura de acordo com os preceitos religiosos e
morais, caracterizando-a com adjetivos de exaltação de sua suposta bondade:
―Excelente senhora‖; ―Ótima, a dona Inácia‖; ―Uma virtuosa senhora, em suma‖ (p.
3). Sua atitude era tida por ela mesma como uma obra de bondosa caridade e
admirada pelo padre da região. Suas crenças em uma superioridade branca não
foram modificadas pela ―Abolição da Escravatura‖:
Nunca se afizera ao regime novo – essa indecência de negro igual a branco e qualquer coisinha: a polícia! ―Qualquer coisinha‖: uma mucama assada ao forno porque se engraçou dela o senhor; uma novena de relho porque disse: ―Como é ruim, a sinhá!‖... / O 13 de Maio tirou-lhe das mãos o azorrague, mas não lhe tirou da alma a gana (LOBATO, 1959g, p. 5). [grifos do autor]
As palavras do narrador demonstram que dona Inácia não se adaptou a
―igualdade‖ instaurada com a transição de regimes, nem as consequências impostas
115
à continuidade de uma postura de base escravista, já que a polícia intervinha em
atitudes consideradas sem relevância, como o açoitamento ou a morte de negros,
decorrentes de ações tidas como repreensíveis. A impossibilidade de dar
prosseguimento à escravidão teria lhe tirado apenas o direito, mas não a vontade de
dominação, o que refletia na maneira como procedia com Negrinha. Para o narrador,
Inácia foi mulher pela primeira vez em sua vida no momento em que se apiedou da
menina e permitiu que brincasse com suas sobrinhas (p.10). A chegada dessas
meninas na casa foi, para Negrinha, como a chegada de ―dois anjos do céu‖ e
deram a conhecer a ela uma diversidade de brinquedos que, até então,
desconhecia, dentre os quais uma boneca loura, a qual, prontamente, reconheceu
como a imitação de uma criança (p. 9).
Os dias seguidos no quintal a brincar com as sobrinhas de dona Inácia fez
florescer em Negrinha a consciência de que possuía uma alma e mesmo a partida
das meninas não foi capaz de arrancar-lhe aquela percepção. O conhecimento de si
e a permanência de sua exclusão na cozinha a tornou triste e fizeram com que
parasse de comer e, por conseguinte, a mataram. Segundo o narrador:
Jamais, entretanto, ninguém morreu com maior beleza. O delírio rodeou-a de bonecas, todas louras, de olhos azuis. E de anjos... E bonecas e anjos remoinhavam-lhe em torno, numa farândola do céu. Sentiu-se agarrada por aquelas mãozinhas de louça – abraçada, rodopiada. / Veio a tontura; uma névoa envolveu tudo. E tudo regirou em seguida, confusamente num disco. Ressoaram vozes apagadas, longe, e pela última vez o cuco lhe apareceu de boca aberta. / Mas imóvel, sem ruflar as asas. // Foi-se apagando. O vermelho da goela desmaiou... / E tudo se esvaiu em trevas (LOBATO, 1959g, p. 11)
O conto lobatiano demonstra a formação de uma autoidentificação por parte
da personagem protagonista. Negrinha se conhecia a partir de sua indiferença,
definida pela sua exclusão na cozinha da casa, pelas agressões que
constantemente sofria e pela demarcação racial, carregada desde seu nome e
desprezada por dona Inácia. A descrição da chegada das sobrinhas de dona Inácia,
segundo a perspectiva de Negrinha, demonstra a sua própria conclusão de que era
inferior: sendo negra, confinada e triste, enquanto as meninas eram brancas, livres e
felizes, a ponto dessas qualidades permitirem uma comparação a seres celestiais
como os anjos. A colocação lembra o estudo de Franz Fanon (1952), no qual
declara a formação de um complexo de inferioridade nos indivíduos que sofreram
um ―sepultamento de sua originalidade cultural‖ (FANON, 2008, p. 34).
116
No momento em que desfrutou a vida de criança por alguns dias, a menina
descobriu sua humanidade e não se conformou quando, finda as férias, voltou à sua
situação marginal. Não obstante, o reconhecimento dessa humanidade,
possivelmente, não foi capaz de remodelar a identificação que tinha de si mesma.
De acordo com o narrador, depois daquelas férias, Negrinha deixou de ter olhos
assustados e passou a ter olhos nostálgicos (LOBATO, 1959g, p. 11) e, em um
momento extasiante anterior a sua morte, viu-se cercada de bonecas louras de
olhos azuis e de anjos. Sua concepção de beleza celestial foi formada naquele
dezembro, no instante da chegada das meninas, representadas também naquele
brinquedo que recém conhecia. Obviamente, seu momento de alucinação demonstra
um novo resgate, onde, mais uma vez, só que agora em definitivo, pôde abandonar
o isolamento da cozinha e unir-se aos anjos e à ―linda boneca loura‖. Já o narrador,
em diferentes momentos, demonstra piedade com as acometidas sofridas por
Negrinha, além de, ironicamente, manifestar uma criticidade reprovadora da conduta
de dona Inácia e a sua imagem mantida perante a igreja. Não obstante, ao afirmar
que ―jamais [...] ninguém morreu com maior beleza‖ (p. 11), acaba por demonstrar
condescendência com a criação de Negrinha de uma imagem angelical
fundamentalmente branca.
4.5.2 “O jardineiro Timóteo”
―O jardineiro Timóteo‖ apresenta a história de um ex-escravo que, há
quarenta anos, se dedicava ao cuidado dos jardins da casa para qual trabalhava. O
longo período envolvido com aquela atividade laboral fez com que Timóteo criasse
uma ligação sentimental com as flores pelas quais era responsável, a ponto de
nomeá-las em homenagem as mais distintas pessoas que fizeram ou faziam parte
da história da casa. O canteiro principal representava a figura do ―Senhor velho‖,
―tronco da estirpe e generoso amigo que lhe dera carta d‘alforria muito antes da Lei
Áurea‖ (LOBATO, 1959g, p. 41), e nenhuma outra planta podia ultrapassar sua
altura, pois não eram dignas de olhá-lo de cima. Em outros pontos, um canteiro
destinado ao ―Senhô-moço‖ e outros dois em forma de coração, com as flores mais
alegres, eram associados à ―Sinhazinha‖. Segundo o narrador, ela:
[...] desde menina, se habituara a monopolizar os carinhos da família e a dedicação dos escravos, chegando esta a ponto de, ao sobrevir a Lei
117
Áurea, nenhum ter ânimo de afastar-se da fazenda. Emancipação? Loucura! Quem, uma vez cativo de Sinhazinha, podia jamais romper as algemas da doce escravidão? (LOBATO, 1959g, p. 43).
A maior parte do conto lobatiano trata de demonstrar a sensibilidade de
Timóteo para com as flores e a relação que a personagem estabeleceu entre cada
uma delas e cada um dos indivíduos ou animais associados à casa. Não obstante,
as referências ao ―Sinhô velho‖ expostas anteriormente demonstram a existência de
uma relação paternalista entre a personagem protagonista e o antigo senhor de
escravos. Os pontos apresentados pelo narrador demonstram que longe de o
trabalho forçado gerar em Timóteo um sentimento negativo em direção a seu antigo
proprietário, a figura do ―Sinhô velho‖ representava, para ele, algo paternal e afetivo,
cuja atitude de libertá-lo mesmo antes da Abolição era tida como uma prova de
generosidade e amizade. Esse sistema paternalista de relações entre patrões e
empregados se estende à dedicação, estimulada por Sinhazinha, de todos os
subordinados. Os dois exemplos demonstram a existência de um servilismo
deliberado, possíveis reflexos do sistema escravagista que impunha a submissão.
Timóteo defendia seu jardim acima de todas as coisas e sustentou-se mesmo
após a tentativa fracassada do ―Sinhô-moço‖ de arrancar as plantas antigas e, no
seu lugar, cultivar espécies modernas, conhecidas por ele em um passeio em São
Paulo (p.48). Não obstante, em determinado dia, a família acabou vendendo a
fazenda e deixando para trás o jardineiro Timóteo a servir os novos proprietários.
Desolado, o jardineiro chegou à conclusão que ―branco não tem coração...‖ (p. 49),
os deixaram para trás, ele e seu jardim, os quais cria que faziam parte da família. Os
atuais patrões, com ares modernos, decidiram reformar a antiga fazenda, pois
ecoava uma essência do passado e, obviamente, o jardim de Timóteo fazia parte
dos aspectos antiquados do local. Mais do que apenas ver o resultado de todo o seu
labor ir-se por água abaixo, o ex-escravo teria que fazê-lo com suas próprias mãos:
– E para não perder tempo, enquanto o Ambrogi não chega, ponho aquele macaco a me arrasar isto – disse o homem apontando para Timóteo. / – Ó tição, vem cá! / Timóteo aproximou-se, com ar apatetado. / Olha, ficas encarregado de limpar este mato e deixar a terra nuazinha. Quero fazer aqui um lindo jardim. Arrasa-me isto bem arrasadinho, entendes? (LOBATO, 1959g, p. 50)
Vê-se que os adjetivos usados pelo novo patrão de Timóteo para referir-se e
para dirigir-se ao jardineiro têm uma finalidade pejorativa. Primeiramente, a
referência feita à personagem é realizada a partir de uma animalização, ao associá-
118
lo a um macaco; e, posteriormente, é chamado por ―tição‖, cuja significação está
relacionada à sujidade. A decisão dos atuais proprietários resultaria no fim do jardim
cuidado por Timóteo durante tantos anos e com tanta dedicação, mas o ex-escravo
se negou a realizar a solicitação. Depois de praguejar a fazenda, o velho serviçal
decide ―morrer lá na porteira como um cachorro fiel‖ (p. 51) e o amanhecer revela
seu corpo falecido junto à entrada da herdade.
Percebe-se que a morte de Timóteo se projeta a partir da percepção da
insensibilidade dos ―brancos‖, evidenciada na venda da fazenda e no abandono do
servo que dedicou grande parte de sua vida para cuidar de um jardim que, segundo
ele, estava tão ligado à família a que imaginava pertencer. A chegada dos
compradores e a sentença eliminatória do jardim ―antimoderno‖ fizeram com o
jardineiro preferisse a morte a fazer parte da aniquilação das plantas com as quais
mantinha estreita relação de amizade. Nas linhas iniciais do conto, o narrador
lobatiano afirma que Timóteo era ―um preto branco por dentro‖ (p. 41). Por
conseguinte, sua caracterização, observável ao decorrer da narrativa, está
relacionada ao predomínio do sentimento e à capacidade de apreensão da essência
das coisas. Assim, essas qualidades atribuídas ao jardineiro são associadas ao
branco, o que demonstra o abandono de sua incapacidade sensitiva e a absorção de
uma aptidão que é exclusiva da ―raça branca‖. A designação dada pelo narrador
está em consonância com as colocações de seu criador ao destacar a possibilidade
de um ―branqueamento moral‖ do negro, as quais foram destacas em declarações
feitas em direção à personagem da obra de Godofredo Rangel, aos pedreiros que
intervieram na questão do estilo brasileiro e à atitude do sujeito que estava disposto
a ajudar o país ao investir suas economias no projeto petrolífero brasileiro.
4.5.3 “Bugio moqueado” e “Os negros”
Os dois últimos contos analisados se aproximam em alguns pontos:
primeiramente, pela existência de um narrador que, em grande parte da narrativa,
abandona o posto de enunciador e passa a ser ouvinte da narrativa central; em
segundo lugar, por apresentar características com propósito ―assustador‖. O primeiro
deles – ―Bugio moqueado‖ – é iniciado com o transcorrer de um ―jogo de pelota‖,
onde o narrador, ao assistir a partida, passa a escutar a conversa entre dois homens
119
posicionados a seu lado. Um deles narra a história do dia em que aceitou o convite
para jantar na casa de um fazendeiro conhecido como ―coronel Teotônio‖, do qual
havia comprado algumas cabeças de gado. Na hora do jantar, percebeu que o
fazendeiro, tão sombrio quanto sua casa, estava forçando a própria esposa a comer
algo misterioso. Notou, posteriormente, que a dispensa guardava algo preto e
estranho pendurado a um gancho, o que, segundo o anfitrião, tratava-se de ―bugio
moqueado‖ – a carne defumada de uma espécie de macaco. Para o convidado,
comer a carne desse tipo de animal era ―o mesmo que comer gente‖ (LOBATO,
1959g, p. 36) e a estranheza ao tomar conhecimento daquela situação fez com que
decidisse nunca mais voltar àquele lugar.
Alguns anos depois, o comprador de gado encontrou um bom ajudante para o
cuidado com os animais. Segundo ele, ―negro quando acerta de ser bom vale por
dois brancos. Esteves valia quatro‖ (LOBATO, 1959g, p. 37). Com o aumento do
trabalho, perguntou a Esteves se não tinha algum irmão que tivesse o mesmo
empenho, para ajudar nos afazeres e foi então que tomou conhecimento dos fatos
verdadeiros relacionados a Teotônio e sua esposa. Segundo o subordinado, seu
único irmão era funcionário do coronel, mas havia sido morto pelo fazendeiro
quando este chegou à conclusão de que sua mulher estava mantendo um caso com
o empregado. Depois da morte, teria sido ―moqueado [...] como um bugio. E comido,
dizem. Penduraram aquela carne na despensa e, todos os dias, vinha à mesa um
pedacinho para a patroa comer‖ (p. 39).
Primeiramente, nota-se a necessidade tida pelo criador de gado, ao exaltar a
atuação de Zé Esteves, em demarcar racialmente as equivalências: um homem
negro bom trabalhador valia, não por dois outros trabalhadores, mas por dois
brancos. A comparação elimina a possibilidade de que esses indivíduos que se
equiparam a um ―negro‖ competente fossem, também, ―negros‖ e, por conseguinte,
demonstra a crença em uma distinção entre os sujeitos de ―raças‖ diferentes. Sobre
o desfecho final, é perceptível que a razão que levou o fazendeiro àquela atitude não
tinha um fundamento racial, mas estava associada ao problema da traição. Não
obstante, nota-se que, novamente, uma personagem lobatiana negra é associada,
por outra personagem, a um macaco. O canibalismo a que foi forçada a esposa de
Teotônio, foi apresentada por ele, ironicamente, como um processo natural de
alimentação, onde a refeição era, simplesmente, um animal comestível. Nesse
120
momento, o método nutricional apresentado pela personagem do conto difere das
colocações feitas por Monteiro Lobato no que procurou denominar ―hostefagia‖,
palavra que substituiria ―antropofagia‖ a fim de eliminar seu peso semântico
negativo. Em ―Bugio moqueado‖, ainda que se mantenha a ideia de matar o inimigo
e fazê-lo de alimento, o conflito era familiar e a ingestão da carne humana era feita,
compulsoriamente, também pelo inimigo, como forma de punição a sua afronta,
dando-lhe um caráter mais sinistro do que natural. A outra caracterização racial do
conto pode ser constatada na conclusão de Esteves de que aquela história de
adultério resultava do sortilégio de ―Liduinha‖, uma ―mulata amiga do coronel‖ (p.
38). Vê-se que, na voz de uma personagem ―negra‖, Liduinha é racialmente
identificada e relacionada à crueldade provinda de cerimônias mágicas.
Já com relação ao texto ―Os negros‖, Monteiro teve propósitos mais amplos. A
produção foi publicada separadamente, pela Sociedade Editora Olegário Ribeiro, em
1920. Não obstante, levava o subtítulo ―ou Ele e o Outro‖ e uma nota introdutória
que a caracterizava como uma ―novela‖ com características de ―terror‖. O narrador
personagem de ―Os negros‖ afirma que a chuva fez com que ele e seu companheiro,
Jonas, solicitassem abrigo em uma antiga propriedade, sobre a qual se afirmava ser
mal-assombrada. Recebidos por um homem idoso e ex-escravo da fazenda, o qual
lhes ofereceu abrigo e comida apresentado-se com explícito servilismo: ―– Tio Bento,
pr‘a [sic] servir os brancos‖ (LOBATO, 1959g, p. 71). Posteriormente, ao ser
indagado por Jonas sobre o tempo da escravidão, Bento afirma que o período não
―deixou saudades‖ e, como réplica, o visitante declarou:
– Para vocês, pretos; porque entre os brancos muitos há que choram aquele tempo de vacas gordas. Não fosse o Treze de Maio e não estava agora eu aqui a arrebentar as unhas neste raio de látego, que encruou com a chuva e não desata. Era servicinho do pajem... (Idem, Ibidem, p. 71).
Como se pode ver, Jonas lamenta o fim da escravidão, pois, dada a proibição
do trabalho forçado, muitos ―brancos‖, como ele, passaram a desempenhar funções
antes executadas pelos escravos ―negros‖. Consequentemente, a expressão ―tempo
de vacas gordas‖ remete a um período onde se tinha um crescimento econômico
maior com esforço limitado, ou seja, era um tempo de fartura sem que o ―homem
branco‖ desempenhasse funções fatigantes.
Sequencialmente, por solicitação dos visitantes, Bento os leva para passar a
noite na casa grande. Bem como em ―Bugio moqueado‖, em ―Os negros‖ instaura-se
um narrador que, no decorrer da narrativa, perde a voz enunciativa e cede a palavra
121
a um novo narrador, guiado sob um efeito sobrenatural decorrente da ―fazenda mal-
assombrada‖, um espírito, manifestado no corpo de Jonas, o qual afirma chamar-se
Fernão. A partir de suas palavras, começa-se a narrar uma história paralela a inicial,
na qual conta como ocorreu, no tempo da escravidão, sua vinda de Portugal para o
Brasil, e como acabou apaixonando-se por Izabel, filha do Capitão Aleixo, antigo
dono daquela propriedade. No viés da discussão que este trabalho propõe, a
caracterização de Aleixo é um ponto relevante da narrativa, devido à maldade e
sensibilidade nula da personagem com seus escravos. Segundo Fernão:
Com o tempo desenvolveu-se nele a crueldade inútil. Não se limitava a impor castigos: ia presenciá-los. Gozava de ver a carne humana avergoar-se aos golpes do couro cru. / Ninguém, entretanto, estranhava aquilo. Os pretos sofriam como predestinados à dor. E os brancos tinham como dogma que de outra maneira não se levavam os pretos. / O sentimento de revolta não latejava em ninguém, salvo em Izabel, que se fechava no quarto, de dedos fincados nos ouvidos, sempre que na casa-do-tronco o bacalhau
arrancava urros a um pobre infeliz (LOBATO, 1959g, p. 102). Nota-se que, novamente, em uma criação lobatiana, surge uma personagem
marcada por uma frieza relacionada à época da escravidão. Não obstante, as
palavras de Fernão demonstram que a perversidade de Aleixo alcançava graus
extremos, pois chega ao âmbito da aprazibilidade em presenciar as punições que
ordenava. Além disso, vê-se que as atitudes do capitão eram tidas como ―naturais‖,
pois criam que a violência era a única forma de manter o controle sobre os ―negros‖,
exceto por Izabel que não suportava ouvir os gritos de sofrimento dos castigados. Já
a falta de reação por parte dos escravos é tida como uma consciência de que a
escravização fazia parte de seus destinos, o que, paralelamente, significa que sua
subalternidade era inevitável e sua inferioridade inquestionável.
Esses atributos negativos de Aleixo não impediram que Fernão se
aproximasse da filha do patrão, com a ajuda de Liduinha, a mucama preferida de
sua amada. Depois de solicitar a ajuda da criada para que conseguisse se aproximar
de Izabel, Fernão se compadece da mulher por sua situação enquanto escrava:
Afirma ele: ―Pobre criatura! Tinha a alma irmã da minha e foi ao compreender
su‘alma que pela primeira vez alcancei todo o horror da escravidão...‖ (p. 87). A
partir da colocação anterior, pode-se inferir que a sensibilidade de Liduinha para
com os sentimentos do português levou a uma modificação das concepções que
Fernão tinha a respeito do regime que vigorava, fazendo com que passasse a
acreditar em um sentido negativo para aquele sistema de trabalho e de relações.
122
A compreensão da escrava e a proximidade que mantinha com a filha do
patrão facilitaram o acercamento entre Fernão e Izabel, resultando no começo de
um romance às escondidas. Para ela, os animais eram felizes devido à sua
liberdade, enquanto eles eram ―ainda mais escravos que os escravos do eito...‖ (p.
101). O sofrimento do amor proibido era, para a filha do escravocrata, mais intenso
que o labor movido pela violência; e não tardou para que Aleixo tomasse
conhecimento da relação que ela mantinha com o serviçal. O temperamento do
capitão, obviamente, não se desfez e, como castigo, Fernão foi surrado pelos
capatazes do fazendeiro e, quando tomou consciência de si, estava preso ao tronco,
de onde presenciou a abertura de ―um largo rombo no espesso muro de taipa‖ (p.
105): iam emparedá-lo vivo. Nesse instante, Jonas volta ao normal e retorna-se ao
narrador inicial que solicita a Bento que conte os destinos de Izabel e Liduinha.
Segundo o ex-escravo, a filha de Aleixo foi mandada para a Corte e, segundo
diziam, enlouqueceu e foi mandada a um hospício. Já Liduinha foi morta a
chicoteadas. De acordo com Bento, ―o Gabriel e o Estevão, os carrascos, retalharam
seu corpinho de criança com os rabos do bacalhau...‖ (p. 106).
O título e o subtítulo do texto lobatiano demonstram, desde o princípio, as
duas instâncias presentes na narrativa. De um lado, ―ou Ele e o Outro‖ refere-se,
respectivamente, a Jonas e ao espírito de Fernão manifestado no viajante. Pela voz
sobrenatural de Fernão, narra-se um romance proibido entre a filha de um
fazendeiro brasileiro e um subalterno português. Já a titulação ―Os negros‖ pode ser
associada ao contexto escravocrata no qual se desenvolve a história paralela à
inicial, onde se manifesta a severidade de um proprietário de escravos que
considerava inútil a vida daqueles indivíduos se não para os proveitos laborais, ao
ponto de considerar agradável assistir as punições físicas que ordenava. A
permanência do título e a eliminação do subtítulo na inclusão do texto em Negrinha
parecem salientar a questão da escravidão no conto de Lobato.
A respeito do destino dado a Fernão, a atitude de Aleixo colocou o
subordinado no mesmo patamar dos escravos de seu patrão. O amor por Izabel
levou Fernão a uma proximidade ainda maior com a questão da escravidão, pois fez
com que sofresse na pele as mesmas consequências da crueldade que diversas
vezes presenciou nos açoitamentos aos escravos. No caso de Liduinha, morreu
como muitos outros que, escravos como ela, ultrajaram seus ―proprietários‖. Por
123
outro lado, pode-se comparar alguns aspectos dessa narrativa ao conto ―Bugio
moqueado‖, no qual a personagem Esteves afirma que a ideia da ligação entre seu
irmão e a patroa provinha de alguma armação de uma ―mulata amiga do coronel‖. A
aproximação entre as personagens ultrapassa a coincidência de nomes – Liduinha.
No primeiro caso, a responsabilização pela morte de uma personagem e tortura de
outra é criada a partir de uma suposição de Esteves, enquanto no segundo, a
personagem Liduinha é posta, efetivamente, como possibilitadora do desfecho final.
Nos dois contos, ainda que de formas diferentes, tem-se a instauração da ideia de
influência de uma personagem, racialmente identificada, na atitude inexorável do
ofendido. Nos dois casos, também, as personagens que possuem maior
proximidade com o repreendedor – a esposa do fazendeiro, em ―Bugio moqueado‖;
e Izabel, em ―Os negros‖ – recebem punições menos severas que a das outras
personagens.
124
5 As ideais raciais de Monteiro Lobato II
5.1O presidente negro ou O choque das raças
Assim como afirma Edgard Cavalheiro, a ideia de escrever uma obra onde se
instaurasse a questão da previsibilidade pode ser observada nas colocações de
Monteiro Lobato em carta a Rangel já no ano de 1905 (CAVALHEIRO, 1956a, p.
309), mas foi apenas em meados dos anos de 1920 que sua ideia amadureceu e
ganhou forma. Em carta a Godofredo Rangel, em julho de 1926, Lobato expõe ao
amigo as ideias que moldariam o romance que estava escrevendo:
Sabes o que ando gestando? Uma ideia-mãe! Um romance americano, isto é, editável nos Estados Unidos. Já comecei e caminha depressa. Meio a Wells, com visão do futuro. O clou será o choque da raça negra com a branca, quando a primeira, cujo índice de proliferação é maior, alcançar a branca e batê-la nas urnas, elegendo um presidente preto! Acontecem coisas tremendas, mas vence por fim a inteligência do branco. Consegue por meio de raios N, inventados pelo professor Brown, esterilizar os negros sem que estes deem pela coisa (LOBATO, 1950b, p. 293-294). [grifos do autor]
Prontamente, o trecho acima sintetiza o primeiro romance lobatiano, mas
opta-se por reservar a análise literária para as páginas seguintes. Ainda assim, cabe
destacar que a produção da obra se deu como resultado da possibilidade – e
conveniência, dados seus problemas financeiros – de publicar algo nos Estados
Unidos. Segundo Cavalheiro, a obra foi escrita em apenas vinte dias e publicada
pela primeira vez, no ano de 1926 e em forma de folhetim, no jornal carioca ―A
Manhã‖, sob o título O choque das raças ou O presidente negro21 (CAVALHEIRO,
1956a, p. 309-310). Além disso, o biógrafo destaca que Lobato pensava chamar seu
primeiro romance de O Raio Louro, título o qual fez parte de uma circular que se
direcionaria aos livreiros brasileiros (Idem, Ibidem, p. 310).
21
O título sofreu modificações com o tempo, passando a ser chamado pela forma inversa – O
presidente negro ou O choque das Raças – e, posteriormente, apenas O presidente negro.
125
5.1.1 Os Estados Unidos em 2228
O primeiro e único romance de Monteiro Lobato tem como narrador ―Ayrton
Lobo‖, o qual narra como, por exaltação resultante de um Ford novo, acabou
acidentando-se enquanto se deslocava para realizar uma atividade para empresa
onde trabalhava. Coincidentemente, o desastre ocorreu próximo da propriedade do
professor Benson, homem conhecido por jogar no Câmbio ―com tal segurança que
não perdia‖ (LOBATO, 2008a, p. 24). Desacordado, Ayrton foi socorrido e levado
para a residência de Benson, onde permaneceu até que voltasse a si e pudesse
tomar conhecimento do resgate. Ademais da acolhida, o professor oferece ao antigo
funcionário da empresa ―Sá, Pato & Cia‖ a função de ―confidente‖, pois já via
aproximar-se o fim de seus dias e desejava ter alguém para quem contar a história
de sua vida, desde que tivesse, como simples obrigação, não revelar nada a
ninguém fora daquela casa (p. 30).
Dessa maneira, o professor Benson expõe a Lobo suas teorias a respeito da
vida. Segundo ele, ―a vida na Terra é um movimento de vibrações do éter, do átomo,
do quer que seja uno e primário‖ (p. 47), modificadas por uma única ação do
―interferente‖, o qual ―poderá para outros ter o nome de Deus, por exemplo, ou
Vontade‖ (p. 48). A teoria do professor Benson tem como fundamento a ideia de
que a vida, sendo uma vibração já interferida do éter, é uma determinação, ou seja,
o futuro não passa de algo inevitavelmente estabelecido. A partir dessa premissa, o
professor criou, depois de longos anos de experiências, uma máquina capaz de
simular os acontecimentos futuros: o ―porviroscópio‖. Em outras palavras, o futuro,
apesar de ainda não existir, poderia ser visto, ou ainda, predeterminado, o que
explicava suas apostas infalíveis.
Benson morava com sua filha, Miss Jane, com quem dividia seus
conhecimentos e as observações do porvir. Enquanto seu pai se detém a explicar o
funcionamento de sua invenção, Jane compartilha ao confidente os acontecimentos
já observados no ―porviroscópio‖ e, nesse instante, surge a primeira problemática
racial destacada por ela nos anos futuros. Jane afirma que, no ano de 3527, pode
notar na população francesa ―evidentes sinais de mongolismo‖, com os quais ela e
seu pai ficaram ―perplexos‖. Somente a análise de anos mais próximos pode explicar
que se tinha ―derramado pela Europa os mongóis e substituído à raça branca‖ (p.
126
64).
A explicação para a vitória do ―amarelo‖ sobre o ―branco‖ é definida por Jane
segundo duas circunstâncias básicas: ele ―come menos e prolifera mais. Só se
salvará da absorção o branco da América‖ (p. 65). A afirmação do inexorável
―amarelamento europeu‖ foi, para Ayrton, uma surpresa desagradável, a qual
considerou uma ―catástrofe‖. Percebe-se que, para o narrador-personagem, o
desaparecimento do ―branco europeu‖ depois de uma supressão mongol era como
se o continente tivesse absorvido o mais alto grau de negatividade, decorrente da
substituição e rompimento da ―primazia branca‖. No entanto, a filha de Benson não
possuía a mesma opinião, dada a aceitação da inevitabilidade determinista que
movia todas as coisas.
Todas aquelas novidades empolgaram a Ayrton, mas nada chamou mais sua
atenção do que ―o choque das raças‖ que ocorreria nos Estados Unidos, no ano de
2228 (p. 73). Entretanto, o estado de saúde do professor piora, ocasionando sua
morte; mas antes, prevendo sua partida, Benson declara a sua filha: ―Queimei toda a
papelada relativa e desmontei as peças mestras dos aparelhos. O que resta não tem
significado nenhum e não poderá ser restaurado‖ (p. 78). Sem o ―porviroscópio‖,
Jane decide contar a Lobo sua experiência com os acontecimentos no país norte-
americano, além de propor-lhe a ideia de que, com a história narrada, escreva um
livro. Nessas circunstâncias, Ayrton passa a frequentar a casa de Miss Jane todos
os domingos, com o intuito de ouvi-la narrar os fatos futuros daquele país. Dentre as
primeiras informações dadas por Jane, está a caracterização dos Estados Unidos
segundo sua formação racial:
[...] que é a América senão a feliz zona que desde o início atraiu os elementos mais eugênicos das melhores raças europeias? Onde há força vital da raça branca senão lá? [...] Ondas sucessivas dos melhores elementos europeus para lá se transportaram. Depois vieram as leis seletivas da emigração, e as massas que a procuravam, já de si boas, viram-se peneiradas ao chegar. Ficava a flor. O restolho voltava. Note o enriquecimento de valores humanos que isso representou para aquela nação (LOBATO, 2008a, p. 90-91).
A qualificação inicialmente dada aquele território, prontamente, designa como
―infeliz‖ todas as regiões que não tiveram a mesma constituição racial. Além disso,
Jane assinala a existência de diferentes raças europeias, hierarquizadas segundo
características que tornam umas ―melhores‖ e outras ―piores‖. A partir dessa crença
em uma disparidade entre estas ―raças‖, ela destaca a capacidade dos Estados
127
Unidos em instigar a vinda dos tipos mais eugênicos das ―raças superiores‖. Por
conseguinte, vê-se que os ideais de Miss Jane partem das premissas da teoria
eugênica, fundada por Francis Galton, segundo a qual, além de existir uma relação
de superioridade e inferioridade entre os homens, há uma escala que categoriza a
preeminência em diferentes graus, formando uma pirâmide em cujo topo estaria o
mais bem dotado racialmente. Assim, o país norte-americano teria sido formado por
sujeitos que ocupavam o nível mais elevado dessa classificação. Além disso, teria
contribuído para tal constituição o controle de entrada de emigrantes no país,
através da seleção de indivíduos eleitos entre um grupo que já possuía qualidades
relevantes, a fim do enriquecimento de valores humanos no local. A perda de seus
melhores elementos teria, então, auxiliado o processo de ―mongolização‖ da Europa
(p. 91).
Ayrton, a pesar de perceber um poder de persuasão nas palavras de Jane,
questionou sua teoria sobre aquela formação racial, ao considerar que, além dos
europeus que para lá rumaram de forma espontânea, faltou-lhe a referência aos
negros levados para o trabalho escravo por imposição. Jane não havia ignorado o
dado, apenas o deixado para inferência de que esse foi ―o único erro inicial,
cometido naquela feliz composição‖ (p. 92). A conclusão apresentada por ela
centraliza a dicotomia entre ―felicidade/tristeza‖ ao pôr em oposição paralela a
relação ―branco/negro‖ respectivamente. A princípio, a entrada dos negros por via da
escravidão teria sido um empecilho para o sucesso total dos Estados Unidos.
A interpretação inicial de Ayrton para a decisão norte-americana foi de que a
bipartição racial do país era insolúvel e ufanou-se do Brasil por ter solucionado o
problema da multiplicidade de raças ao permitir o seu livre contato, a fim de
branquear a população gradativamente a través da miscigenação. Por conseguinte,
sua colocação permite inferir que ele também avaliava a multiplicidade racial como
sendo um problema, no qual o branco surgia como uma idealização e o negro como
o constituinte negativo dessa diversidade. No entanto, Jane discorda de sua
afirmação, pois a fusão teria ―estragado as duas raças‖, ou seja, ―o negro perdeu as
suas admiráveis qualidades físicas de selvagem e o branco sofreu a inevitável piora
de caráter, consequente a todos os cruzamentos entre raças díspares‖ (p. 92). Nota-
se que os negros são caracterizados como detentores de elevada força corpórea
resultante de sua selvageria, enquanto os brancos são postos como possuidores de
128
um caráter notável. A mestiçagem é vista, assim, como uma forma degradante das
qualidades primordiais de cada um desses grupos, devido ao cruzamento entre
raças, essencialmente, ―desiguais‖.
Ayrton Lobo se surpreende com a postura de Jane ao considerar mais
eficiente a instauração de uma ―barreira de ódio‖ entre as raças. Para ela, esse ódio,
melhor representado pela palavra ―orgulho‖, impediria a degeneração racial e
manteria cada uma delas em ―relativa pureza‖ (p. 92-93). Além disso, afirma Jane,
―não há mal nem bem no jogo das forças cósmicas. O ódio desabrocha tantas
maravilhas quanto o amor. O amor matou no Brasil a possibilidade de uma suprema
expressão biológica; O ódio criou na América a glória do eugenismo humano...‖ (p.
93). Percebe-se que a cisão que evitou o contato entre negros e brancos é reputada
por Jane como uma ufania racial de cada um deles, que, consequentemente, teria
aperfeiçoado o patrimônio genético do branco e formado o homem perfeito. Por
outro lado, a falta desse orgulho no Brasil impediria que, no país, se formasse tal
arquétipo humano.
A cada novo encontro para dar continuidade à narração dos acontecimentos,
Ayrton volta com novas inquietações. Dessa vez, não conseguiu chegar à conclusão
de como, dada sua desproporcionalidade numérica, a população ―negra‖ poderia
apresentar perigo à ―branca‖. De acordo com Miss Jane, para controlar o
crescimento da população, destituiu-se a promoção da imigração europeia em
concomitância com:
[...] o surdo das ideias eugenísticas de Francis Galton. Deu-se, então, a ruptura da balança. Os brancos entraram a primar em qualidade, enquanto os negros persistiriam em avultar em quantidade. Foi a maré montante da pigmentação. Mais tarde, quando a eugenia venceu em toda a linha e se criou o Ministério da Seleção Artificial, o surto negro já era imenso (LOBATO, 2008a, p. 97).
Percebe-se que a diminuição do desequilíbrio entre as ―raças‖ derivou, além
da própria investida dos negros em incrementar o seu grupo populacional, de duas
ações da camada branca da sociedade norte-americana: primeiramente, o
fechamento das portas do país para a entrada de imigrantes europeus e,
posteriormente, o direcionamento da preocupação para o âmbito aprimoramento
eugênico. Assim, entende-se que a própria postura daquele estrato da população
teria colaborado para a diminuição da desvantagem numérica dos negros. Ademais,
é perceptível que a instituição criada tinha como objetivo gerar meios de selecionar a
humanidade segundo suas próprias aspirações, pois sua denominação remete,
129
inevitavelmente, à teoria de ―seleção natural‖ cunhada por Charles Darwin e
transpostas ao âmbito humano pelos darwinistas sociais. A artificialidade estaria,
então, fixada com o intuito de efetivar as premissas de um darwinismo social falho,
onde não teria se cumprido o princípio de que o melhor equipado prevaleceria
naturalmente.
Segundo Jane, com o surgimento do Ministério surgiram normas que
colaboraram para o aprimoramento da população norte-americana, como, por
exemplo, o estabelecimento da antiga lei espartana contra os que nascem com
deficiências físicas (p. 97). Novamente, as considerações da filha de Benson
causaram o espanto de Ayrton, mas, como antes, ela possuía a justificativa
necessária para o seu entendimento. Aos olhos da moça, ―entre cortar no início o fio
da vida a uma posta de carne sem sombra de consciência e deixar que dela saia o
ser consciente que vai vegetar anos e anos na horrível categoria dos ‗degenerados‘,
a crueldade está no segundo processo‖ (p. 98). Vê-se que a ―desvio físico‖ é
colocado como a ausência de qualidades ansiadas segundo a teoria eugênica e a
privação da vida da criança, enquanto irracional, era feita como um processo de
redenção, o que anularia o seu caráter cruel. Enquanto a lei espartana resolvia o
problema da esfera física, uma lei de esterilização dava conta dos ―desgraçados por
defeito mental‖. Por conseguinte, percebe-se que a legislação do país levava a
adoção de uma eugenia de fundo ―negativo‖, não mais fundamentada apenas nos
princípios elaborados por Galton, mas também nos incrementos que levaram a um
extremismo nas atitudes dos eugenistas.
No Brasil dos anos futuros, a multiplicidade racial também tinha gerado novas
concepções. O território seria divido em dois países distintos, ―um centralizador de
toda a grandeza sul-americana‖, ―o outro, uma república tropical‖ (p. 99-100). Para
Miss Jane, essa foi a melhor decisão a tomar-se, dado o descontrole da mestiçagem
nos séculos anteriores. De um lado, encontrava-se o Brasil tropical que prosseguia
como o antigo país, com seus desregramentos; do outro, uma república temperada
que teria descoberto a tempo as falhas dos antepassados. Nos Estados Unidos,
vingavam duas correntes de pensamento que objetivavam solucionar a
―problemática racial‖: os brancos ambicionavam a expatriação dos negros para o
―Brasil tropical‖, enquanto os negros tencionavam a divisão do país ao meio, bem
como teria acontecido no antigo Brasil (p. 99). A falta de consenso entre as partes
130
deixava a situação como estava e as distintas prioridades anteriormente citadas –
qualidade e quantidade – acarretaram no alcance da população negra a pouco mais
que a metade do número de brancos. Nesse contexto repleto de atribulações,
surgiria Jim Roy, ―o negro de gênio‖, o qual é apresentado por Jane segundo as
características físicas que ele detinha:
Tinha a figura atlética do senegalês dos nossos tempos, apesar da modificação craniana sofrida por influência do meio. Tal modificação o aproximava dos antigos aborígenes encontrados por Colombo. / [...] Em Jim Roy a sua semelhança com um mestiço de senegalês e pele-vermelha (coisa impossível, pois a muito já não existia um só índio na América) acentuava-se pela cor da pele, nada relembrativa da cor clássica dos pretos de hoje. / [...] Quase toda a população negra da América apresentava pele igual a sua. A ciência havia resolvido o caso da cor pela destruição do pigmento. De modo que, se Jim Roy aparecesse diante de nós hoje, surpreenderia da maneira mais desconcertante, visto como esse negro de raça puríssima, sem uma só gota de sangue branco nas veias, era, apesar de ter o cabelo carapinha, horrivelmente esbranquiçado [...] – um pouco desse tom duvidoso das mulatas de hoje que borram a cara de creme e pó-de-arroz... (LOBATO, 2008a, p. 101-102).
A primeira frase da descrição da enunciadora demonstra, novamente, a
associação do negro à força física. Além disso, a questão racial, nesse instante, é
colocada de acordo com os traços fisionômico do sujeito, ao destacar a robustez de
seu porte físico e a cor de sua pele. A existência de somente duas raças no país é
explicada pela indicação da sucumbência futura dos índios. Além disso, cabe
destacar que Jane afirma, posteriormente, que a influência do meio ambiente não
ocorreu restritamente aos negros, mas a todos norte-americanos, o que afetou tanto
a estrutura craniana quanto a cor da pele, a qual ganhou uma tonalidade ―levemente
acobreada‖ (p. 102).
Por outro lado, a cor da pele dos negros teria sofrido outra modificação por
intervenção da ciência. As palavras de Miss Jane se referem à pigmentação como
um problema, como um desvio a ser solucionado. No ano de 2228, a população
negra dos Estados Unidos alcançaria a resolução para tal questão, ao ter sua pele
―branqueada‖. Apesar dessa mutação, a comparação com a mulata remete a uma
tentativa de ocultação racial, impossível devido à permanência de suas
características capilares. Segundo a enunciadora, o alisamento dos cabelos era um
―ideal da raça negra‖ (p. 121), o que dissimularia seus rasgos fisionômicos. As
afirmações levam a concluir que a modificação na coloração epidérmica desses
sujeitos se deu de forma deliberada e essa vontade teria se inclinado à característica
exterior que ainda os diferenciava – o cabelo – o que denota a existência de um
131
sentimento de inconveniência em possuir atributos físicos que não os do ―branco‖.
Essa postura acentuava o conflito racial, pois os ―brancos‖, ―orgulhosos da pureza
étnica e do privilégio da cor branca ingênita, não lhes podiam perdoar aquela
camouflage da pigmentação‖ (p. 102) [grifos do autor]. Semelhante a essa
discordância é a observação de Jane ao avaliar o resultado obtido como
―horrivelmente esbranquiçado‖, o que indica a sua igual desaprovação para o
processo.
A caracterização de Jim Roy não se resumiu apenas a seus atributos
fisionômicos, pois a enunciadora destaca a sua capacidade de liderança e
organização que acabava por dar-lhe um ―imenso valor‖. Esses atributos
possibilitaram a criação de um partido político – a Associação Negra – ao qual todos
os negros norte-americanos se afiliaram. O número ainda inferior de habitantes
negros no país poderia não resultar problemas na disputa eleitoral caso não
houvesse um atrito existente entre os brancos. Havia surgido uma corrente de
pensamento feminista que defendia uma nova teoria sobre a evolução, na qual se
destacava que a mulher que evoluiu ao lado do homem não correspondia a sua
verdadeira ―fêmea‖, o que levou a bipartição dos brancos em ―Partido Masculino‖,
sob o comando do atual presidente, Kerlog; e o ―Partido Feminino‖, liderado por Miss
Evelyn Astor, ―criatura habilíssima, rica de todos os dotes da inteligência, da cultura
e da maquiavélica sagacidade feminina, se juntava um elemento perturbador, novo
no conjunto político presidencial: a sua rara beleza física‖ (p. 106).
Vê-se que Miss Evelyn é apresentada por Miss Jane como o protótipo
humano feminino, por ter alcançado o ápice das qualidades físicas, psicológicas e
culturais. Jane destaca que, em uma conferência entre Jim e Astor, defrontaram-se
as personificações da ―beleza‖ e da ―força‖, sem qualquer intimidação ou
perturbação pela figura um do outro (p. 112). Segundo ela, Jim Roy simbolizava a
força: ―A raça espezinhada confluíra-se toda nele, transformando-o num feixe de
energias indomáveis. [...] Não era um indivíduo, Jim. Era a própria raça negra por
um milagre de compreensão posta inteira dentro de um homem‖ (p. 113). A
afirmação de Jane expõe a homogeneidade racial negra representada por Jim Roy e
demonstra que o passado oprimido daquela ―raça‖ havia gerado um ser insubmisso,
cuja inflexibilidade impedia qualquer tentativa de desfazer seus planos.
132
Nessas circunstâncias, a vitória de qualquer um dos partidos brancos
dependia do apoio de Jim Roy, o qual poderia unir-se ou ao Partido Masculino em
troca do abrandamento da lei de esterilização, que já objetivava o controle
reprodutivo dos negros, além de Roy ser, também, homem e não concordar com os
princípios de Astor; ou ao Partido Feminino, por opor-se aos ideais implantados
pelos homens ―brancos‖ em detrimento dos ―negros‖. O medo da falta de apoio de
Jim levou o Partido Masculino ao estudo das possibilidades de expatriação do negro,
voluntária ou compulsoriamente, o qual, no momento da eleição, já estava
concluído. Sobre as concepções feministas sobre os homens, o presidente Kerlog
afirma: ―Se ela nos trata a nós brancos de gorilas, que expressões reservará para os
pretos de Jim‖ (p. 129). Vê-se que, apesar da aflição por não saber a decisão de Jim
Roy, Kerlog anseia pela compreensão do ―líder negro‖ de que a candidatura de Miss
Astor fosse contrária tanto ao Partido Masculino quanto à Associação Negra. Além
disso, ao salientar a forma como eram chamados os homens brancos pelo Partido
Feminino, a colocação do atual presidente parece destacar que a associação aos
primatas teria legitimidade se feita em relação aos negros, mas se, com sua
brancura, ainda lhes associam aos primatas, a negritude seria vinculada a algo
ainda mais pejorativo.
O voto de todos os ―negros‖ estava nas mãos de Jim. As novas tecnologias
permitiam que, no momento certo, ele transmitisse aos membros da Associação em
quem deveriam votar. O capítulo ―O titã apresenta-se‖ gira em torno das reflexões de
Roy a respeito da decisão a ser tomada, nas quais, panoramicamente, rememora o
passado dos negros norte-americanos desde a chegada do navio negreiro até a
conquista de direitos que não existiam. O trecho é apresentado segundo a própria
perspectiva de Jim e salienta a chegada dos traficantes de escravos às terras
africanas, a destruição dos povoados, a violência que destinava a seleção dos mais
aptos ao trabalho. Sequencialmente, realça o aprisionamento e a viagem sem fim
em direção às terras do ―Novo Mundo‖. Avaliava-se aqueles homens segundo as
suas atitudes e a conclusão era que ―branco queria dizer uma coisa só: crueldade
fria...‖ (p. 133). Essa insensibilidade era o que movia o labor forçado e, nesses
moldes, ergueu-se o país. A liberdade não teria sido capaz de destruir a cicatriz e,
no lugar do aprisionamento físico, construíram o moral, pois, aos negros, o branco
―negava a igualdade e negava a fraternidade, embora a Lei, que paira serena acima
133
do sangue, consagrasse a equiparação dos dois sócios. (p. 133).
Vê-se que o referido capítulo trata de expor como os ―negros‖ avaliavam a
postura dos brancos depois dos séculos de contato entre eles. A recapitulação de
Jim Roy deixa clara a ideia de que o passado havia gerado em todos os negros – já
que Roy é posto como ―a própria raça negra‖ – uma mágoa inapagável. Ademais,
percebe-se que, a partir da visão do líder da Associação Negra, o branco é
apresentado de forma negativa, de acordo com suas atitudes consideradas
desaprovadoras. Pode-se notar, também, que a ―lei‖ é posta em dissonância com o
âmbito ―biológico‖ e esse desencontro demonstra a artificialidade das normas que
validavam a igualdade de direitos entre todos. A indignação criada a partir da
reflexão de Jim o motivou para a decisão de que ele seria o candidato em quem os
membros de seu partido deveriam votar: ―Livre, apenas? Não! Também senhor
agora...‖ (p. 136). Foi eleito, então, o 88º presidente norte-americano: um ―presidente
negro‖.
A notícia surpreendeu a todos, pois a ninguém ocorreria a ideia de que Jim
não se aliasse a nenhum dos partidos. Jane afirma que ―a raça triste, que através
dos séculos não se atrevera a sonho maior que o da mesquinha liberdade física,
passou a sonhar o grande sonho branco da dominação...‖ (p. 147). A colocação
pontua o surgimento de um sentimento de vingança pelas opressões sofridas
durantes os séculos anteriores e instaurado a partir da adesão ao ideal branco de
domínio. No entanto, segundo a enunciadora, esse não era o anseio de Jim Roy, o
qual cria que ―a América surgira do esforço braçal de um pelo esforço mental de
outro‖ (p. 148) e, consequentemente, acreditava que o território pertencia as duas
―raças‖. Vê-se que, agora no pensamento do Roy, ―negros‖ e ―brancos‖ são
associados à ―força‖ e à ―inteligência‖ respectivamente, instrumentos pelos quais
teria se edificado os Estados Unidos.
Dada a consideração de que ambos as ―raças‖ detinham direitos pelo país e a
percepção da impossibilidade de convencer os ―brancos‖ da alternativa de convívio
mútuo, o sucessor de Kerlog tinha como decisão a bipartição do país. Entretanto,
chegou à conclusão de que, depois da surpresa eleitoral, necessitava da ajuda do
opositor para que cada um acalmasse os ânimos de seus grupos (p. 149). Kerlog
consentiu com o acordo, mas não sem afirmar que aquela afronta seria vingada:
Como há razões de Estado, Jim, há razões de raça. Razões sobre-humanas, frias como o gelo, cruéis como o tigre, duras como o diamante,
134
implacáveis como o fogo. O sangue não raciocina, como os filósofos. O sangue sidera, qual o raio. Como homem admiro-te, Jim. Vejo em ti o irmão e sinto o gênio. Mas como branco só vejo em ti o inimigo a esmagar... (LOBATO, 2008a, p. 150).
A partir das palavras do presidente, pode-se evidenciar que o feito de Jim
havia alcançado a consideração de Kerlog, mas não conseguiu eliminar o orgulho
racial que possuía. Os motivos que o guiavam ultrapassavam o âmbito da política e
da moral e feria a esfera biológica. Para o líder branco a ―raça‖ estava acima de
todas as coisas e, novamente, impunha a dicotomia ―verdade artificial/verdade
racial‖. Antes de qualquer consenso ético se manifestava uma ofensa à ―honra
racial‖ que ditava a superioridade de uns e inferioridade de outros. Assim, mesmo
com a consciência do patriotismo de Jim, Kerlog estava convencido de que ―acima
da América estava o Sangue‖ (p. 150) e o caminho para a vingança seria a guerra. A
concepção do presidente a respeito da supremacia racial era partilhada com seus
companheiros de governo, como pode observar-se nas palavras do Ministro da
Equidade, com as quais afirma: ―Acima das leis políticas vejo a lei suprema da Raça
Branca. Acima da Constituição vejo o Sangue Ariano‖ (p. 157).
Entre o grupo negro, a empolgação com a vitória de Jim só foi substituída
pela notícia da nova descoberta de John Dudley, homem branco conhecido por suas
dezenas de invenções: os raios Ômega. Segundo Miss Jane, a criação de Dudley
tinha ―a propriedade miraculosa de modificar o cabelo africano. Com três aplicações
apenas, o mais rebelde pixaim tornava-se não só liso, como ainda fino e sedoso
como o cabelo do mais apurado tipo branco‖ (p. 173). Para os negros, a
despigmentação da pele, apesar da atual imperfeição, com o tempo, sofreria as
modificações necessárias para a igualação à pele branca. Além disso, agora, com a
metamorfose capilar, o aperfeiçoamento físico da raça estaria completo e ocultar-se-
iam os rasgos identificáveis da raça negra, geradores do preconceito branco. Nesse
momento, é possível concluir que a ânsia pela mutação racial externa tinha como
intuito a supressão do estigma e, ao mesmo tempo, a ascendência na hierarquia
racial, ou seja, deixava-se de ser inferior e passava-se a ser superior. A vitória
fisionômica se tornou derrota, a qual pode ser explicada com as palavras de Kerlog
direcionadas a Jim Roy:
Tua raça foi vítima do que chamarás a traição do branco e do que chamarei as razões do branco. [...] Não há moral entre raças, como não há moral entre povos. Há vitória ou derrota. Tua raça morreu, Jim... [...] Os raios de John Dudley possuem virtude dupla... Ao mesmo tempo que alisam os cabelos [...] esterilizam o homem (LOBATO, 2008a, p. 189-190).
135
A novidade de Dudley não obteve rejeição e, com instituições espalhadas por
todo o país, todos os negros norte-americanos, inclusive Jim, teve seu cabelo
alisado permanentemente. Entretanto, como pôde ser visto no discurso de Kerlog,
os raios Ômega tinham uma função não explicitada, a capacidade de esterilização.
Aniquilada a faculdade de reprodução, bastaria o tempo para que os Estados Unidos
se tornasse um país constituído inteiramente de homens e mulheres brancos.
Através da eugenia se dizia ter eliminado todo desvio moral entres os habitantes
daquele país, qualidade a qual estaria abaixo da ufania racial branca, superior a todo
fundamento ético factício criado pelo homem.
Desde que havia alisado seus cabelos, Jim não se sentia como antes (p.
186). O homem conhecido como o protótipo da força e da incoercibilidade via sua
energia esvaecer-se a cada dia que passava e o grupo, dotado da reputação de
mais reprodutivo entre as ―raças‖, viu sua capacidade de perduração ser tirada sem
seu consentimento. No dia da posse de Jim, o líder negro ―amanheceu morto em
seu gabinete de trabalho‖ (p. 194), sem ter revelado a nenhum membro da
Associação a revelação que recebeu do presidente Kerlog. Não havia mais motivos
para encobrir da população a verdade com relação aos raios Ômega e, em
mensagem virtualmente enviada a cada residência, apresentou-se um resumo da
decisão tomada em reunião da ―raça branca‖:
A convenção da raça branca decide alterar a Lei Owen no sentido de incluir entre as taras que implicam a esterilização o pigmento negro camuflado... A raça branca autoriza o governo americano a lançar mão dos recursos que julgar convenientes para a execução desta sentença suprema e inapelável!
(LOBATO, 2008a, p. 195). [grifos do autor]
Nota-se que, de um lado, falhou a tentativa eugênica de extinção do ―desvio
moral‖, por considerar-se que a legitimidade racial estava acima de todas as coisas;
mas, de outro, o princípio da esterilização dos indesejados e inferiores se cumpriu
da forma mais absoluta possível. Outrora tida como uma possibilidade de
desconstruir o estigma da cor e de igualar os indivíduos racialmente, a
despigmentação encaminhou a população negra do país para o rumo adverso. A
atitude demonstrava que, na oposição ―força negra/ inteligência branca‖, o segundo
atributo era mais valoroso se confrontadas.
Em síntese, em O presidente negro, a questão racial surge como elemento
central no enredo da obra. Em 2228, nos Estados Unidos, teria sido possível a
136
formação de um homem dotado das melhores qualidades existentes, a partir da
adoção das teorias eugênicas e dos procedimentos que elas estimulavam – como a
ressurreição da lei espartana de eliminação dos nascidos com defeitos físicos, a
esterilização dos indivíduos detentores de taras e o controle rigoroso do direito de
reprodução – a fim de efetuar, artificialmente, as funções que a ―seleção natural‖ não
foi capaz de cumprir. Não obstante, a perduração paralela da ―raça negra‖, com seu
alto índice de proliferação, estava comprometendo a ―supremacia branca‖, além de
impedir a vitória completa sobre o único território onde havia evoluído o ―super-
homem branco‖, dada a ―mongolização‖ da Europa.
Vê-se que a tripartição dos partidos coloca em evidência a figura de três
pilares centrais da narrativa: primeiramente, o negro com a sua força; depois, a
mulher branca e a sua beleza; e, por último, o homem branco e a sua inteligência. A
junção entre os dois últimos englobou as qualidades da ―inteligência‖ e da ―beleza‖,
as quais acabaram por vencer a ―força‖ dos primeiros. Além disso, a existência de
uma crença a respeito da superioridade e da inferioridade entre os indivíduos é
mostrada de maneira evidente, assim como a comunidade negra é exibida,
primeiramente, como detentora da qualidade de ―selvagem‖ e, posteriormente, de
um estigma racial, o qual origina um desejo de igualar-se aos brancos e essa
equiparação seria alcançada através da despigmentação e do alisamento do cabelo.
Por conseguinte, para vingar-se da afronta feita com a eleição de Jim Roy, o
―homem branco‖ teria se aproveitado da ansiedade dos negros em resolver seu
―problema capilar‖ e, através da invenção de Dudley, acabaria dando fim à
população negra do país. O processo de esterilização, apesar de sua forma singular
de execução, dava continuidade às premissas eugenistas adotadas no país para o
melhoramento da raça.
Por outro lado, percebe-se que as constantes críticas à miscigenação, nas
quais a ideia de que a mistura entre as raças é considerada degenerativa por
extinguir os atributos mais notáveis dos envolvidos. Ademais, a possibilidade de
observação dos acontecimentos futuros, a qual revela a existência de um
determinismo causal em todas as coisas, acabam por possibilitar a reflexão das
personagens Ayrton e Miss Jane, desde sua contemporaneidade, sobre a realidade
racial tanto dos Estados Unidos como do Brasil e da Europa. Nota-se que, à medida
em que explana as relações raciais do porvir, Miss Jane opina a respeito dessas
137
informações e, aos poucos, vai convencendo Ayrton de suas teorias raciais de base
eugênica e vinculadas a uma superioridade branca. Consequentemente, quando
algum evento narrado pela filha de Benson demonstra determinado extremismo,
Jane substitui as surpresas de Ayrton para com essas ações por algum princípio
referente às relações raciais que provariam que aquele era o caminho mais
conveniente a ser seguido, a ponto de fazer com que ele chegue a lamentar que a
eugenia não tenha sido adotada no seu tempo (LOBATO, 2008a, p. 159).
Paralela a história futurística do ano de 2228, Ayrton narra a maneira como se
apaixonou pela filha do inventor. Nas visitas domingueiras ao castelo de Benson
para ouvir os novos ―capítulos‖ da narrativa de Jane, Ayrton Lobo dividia sua
atenção entre as novidades relatadas por ela e as viagens ilusórias nas quais
imaginava como seria sua vida ao lado daquela mulher. É perceptível que, apesar
dessa sincronia narrativa entre presente e futuro, a análise da posteridade ganha
espaço privilegiado na obra lobatiana. Entretanto, esse relato amoroso pareceria
apenas organizador da totalidade se os desejos de Ayrton e a descrição feita da
beleza de sua amada não instigassem outra conclusão. Segundo ele, Miss Jane
possuía ―cabelos louros‖ e ―olhos azuis‖, além de possuir a ―esbelteza‖ e a
―elegância de porte‖ capazes de produzir a ―ruptura de seu equilíbrio nervoso‖ (p.
41). Além disso, ao descrever a cidade de ―Erópolis‖ como a ―Cidade do Amor‖, local
destinado à concepção da ―elite da América – a nova aristocracia dos filhos do Amor
e da Beleza‖ (p. 128), Ayrton idealizou a sua presença no local juntamente com
Jane. Prontamente, a fisionomia descrita por Lobo relembra a ―beleza‖ das mulheres
brancas norte-americanas do ano de 2228, como Miss Evelyn Astor. Ademais, o
sonho de encontrar-se na ―Cidade do Amor‖ com Jane permite a inferência de que
ele se via digno de frequentar a região reservada para ―casais brancos‖,
representantes da perfeição física e unidos pelo amor sublime.
5.1.2 Um grito de guerra pró-eugenia
Na circular enviada aos livreiros brasileiros citada inicialmente, onde a obra é
referenciada com o título O Raio Louro, o escritor destaca: ―Os Srs. Livreiros terão
uma ótima oportunidade para fazer negócios, ativando a venda de um livro não só
de alta intensidade dramática e amorosa, como ainda semeador das mais altas
138
ideias de Eugenia‖ (LOBATO apud CAVALHEIRO, 1956a, p. 326). As palavras de
Monteiro Lobato estabelecem uma dupla finalidade para sua obra: naturalmente, a
primeira está ligada ao seu âmbito literário, enquanto a segunda fundamenta a
utilidade de fomentadora dos ideais eugênicos, em sua forma mais profunda. A
ligação entre O presidente negro e os movimentos eugenistas da primeira metade
do século XX não se encerra na colocação supracitada, pois, em carta direcionada a
Renato Kehl, depositada no Centro de Documentação da Fundação Oswaldo Cruz,
no Rio de Janeiro, Lobato declara o seu interesse pela eugenia e a ligação de seu
romance às teorias fundadas por Galton:
Renato, Tu és o pai da eugenia no Brasil e a ti devia eu dedicar meu Choque, grito de guerra pró-eugenia. Vejo que errei não te pondo lá no frontispício, mas perdoai a este estropeado amigo. [...] Precisamos lançar, vulgarizar essas ideias. A humanidade precisa de uma coisa só: poda. É como a vinha. Lobato. (LOBATO apud DIWAN, 2007, p. 106) [grifos do autor]
O fragmento da carta enviada a Kehl demonstra o reconhecimento de Lobato
da importância do médico paulista para a difusão e implantação da eugenia no
Brasil. Posteriormente, desculpa-se por não ter direcionado a dedicatória de sua
obra ao eugenista22, o que certificaria, desde seu lançamento, a associação entre a
produção lobatiana e a propaganda dos princípios eugênicos. Além disso, Monteiro
Lobato afirma a necessidade de divulgação dessas concepções para que estejam ao
alcance de todos e, por fim, em comparação à vinha, ressalta a indispensabilidade
da seleção dos sujeitos prestáveis da humanidade e da eliminação dos inúteis. Em
outra carta enviada a Kehl, datada de setembro de 1930, Monteiro Lobato declara
que considera a literatura como ―um processo indireto de fazer eugenia, e os
processos indiretos, no Brasil, ‗work‘ muito mais eficiente‖ (LOBATO apud DIWAN,
2007, p. 111). A afirmativa reforça a conclusão de que, para o escritor, a literatura
possuía um propósito além da ficcionalidade, mas não desligada desta, pois,
exatamente por esse rasgo artístico, era possível disseminar a eugenia com o
―disfarce literário‖.
Vê-se que Lobato era conhecedor da eugenia e o contato com Renato Kehl
teve início no final da década de 1910, quando se ligou aos projetos sanitaristas.
22
A primeira edição de O presidente negro trazia a dedicatória: ―A Artur Neiva e Coelho Neto, dois
grandes mestres no trabalho, na ciência e nas letras‖ (LOBATO, 1956a, p.125). Cabe destacar que a
grafia do nome de ―Artur‖ aparece, em diferentes documentos, como ―Arthur‖.
139
Segundo Pietra Diwan, a primeira correspondência enviada pelo escritor ao
eugenista data de abril de 1918, na qual Lobato se lamenta por, somente naquele
momento, ―travar conhecimento com um espírito tão brilhante como o seu, voltado
para tão nobres ideais e servido, na expressão do pensamento, por um estilo
verdadeiramente ‗eugênico‘, pela clareza, equilíbrio e vigor vernacular (LOBATO
apud DIWAN, 2007, p. 110). No trecho citado, percebe-se a existência de
enaltecimentos da ―capacidade intelectual‖ de Renato Kehl, os quais podem ser
notados, também, em prefácio elaborado por Monteiro para uma obra do eugenista,
como se verá posteriormente.
Ao prefaciar a obra Bio-Perspectivas, de Renato Kehl, Monteiro Lobato
declara que o considera o ―mais acabado tipo de cientista que a atualidade pensante
da época possuía (LOBATO, 1956b, p. 75), além de destacar que conheceu o
médico paulista no início de sua vida literária (p. 82). A glorificação feita por Lobato é
fundamentada com trecho da obra prefaciada, em cujas palavras Kehl destaca o
papel social e biológico da ―máquina‖. Da citação, cabe destacar o seguinte
fragmento:
Substituindo progressivamente os ―homens-braço‖, os ―homens-mão‖, deixam cada vez maior o número de ―sem-trabalho‖. Salvar-se-ão naturalmente alguns elementos de maior valia; os demais sucumbirão. Como se sabe, durante os últimos anos as escórias humanas se têm acumulado em consequência do desrespeito às leis naturais. Não tem havido desbastamento suficiente ou eliminação seletiva em regra. Os incapazes, os doentes e os anormais de várias ordens acumulam-se de modo assombroso, nas prisões, nas penitenciárias, nos manicômios, nos bairros da miséria. A máquina, que criou o ―sem-trabalho‖, agrava ainda mais a situação, porque deixa ao desamparado um sem-número de famílias que ainda conseguia viver. A natureza agora tira partido do próprio artificialismo, mantido pelo ―homem-caridade‖, pelo ―homem-médico‖, pelo ―homem-higiene‖, apressando a seleção exatamente em consequencia deste fator novo: a máquina (KEHL apud LOBATO, 1957, p. 80-81) [grifos do autor]
No trecho acima, Kehl salienta os malefícios causados pela ―maquina‖ por
substituir a produção braçal e acarretar em inúmeros desempregos. Segundo ele, os
indesejados conseguiam manter-se graças ao amparo estatal, o que impedia a
―seleção natural‖ dos mais aptos e eliminação dos incapacitados. O surgimento da
máquina e de seus consequentes prejuízos aumentava as proporções dos
malquistos, os quais, por conseguinte, acabavam vivendo não por fruto de seu
próprio esforço, mas de maneira artificial através do assistencialismo. Vê-se que
Kehl põe ao lado desse auxílio a sua própria categoria, a dos médicos, bem como os
antigos projetos sanitaristas que caminharam juntos com a eugenia em tempos de
140
uma eugenia mais ―positiva‖. A máquina reforçaria, então, a necessidade da
―seleção sintética‖ fomentada pela eugenia. Nessas circunstâncias, vê-se que, em
diferentes momentos, Monteiro Lobato advoga pela instauração dos procedimentos
eugênicos, além de exaltar a riqueza dos trabalhos de Renato Kehl como alicerce
para a adoção dessas premissas.
Em 25 de maio de 1927, Monteiro Lobato embarcou rumo à Nova York, onde
iria desempenhar a função de Adido Comercial brasileiro e, também, objetivava
fundar a editora ―Tupy Publishing Co‖ (CAVALHEIRO, 1956a, p. 332). O escritor
paulista buscou editoras que se interessassem pela publicação de O presidente
negro no país norte-americano, mas encontrou obstáculos devido à temática que
abordava. Marisa Lajolo apresenta trecho da correspondência enviada pela editora
―Palmer Literary Agency‖, na qual a empresa reconhece a capacidade criadora de
Lobato, mas rejeita a publicação de The clash of the races (O choque das raças),
por se tratar de uma temática difícil de ser abordada no país e, normalmente,
recusadas pelos editores (PALMER apud LAJOLO, 2000, p. 49). Em nova carta a
Rangel, enviada de Nova York, em setembro de 1927, Lobato declara seu desânimo
com as constantes recusas que recebeu:
Meu romance não encontra editor. Falhou a Tupy Company. Acham-no ofensivo demais à dignidade americana, visto admitir que depois de tantos séculos de progresso moral possa esse povo, coletivamente, combater a sangue frio o belo crime que sugeri. Errei vindo cá tão verde. Devia ter vindo no tempo em que eles linchavam os negros (LOBATO, 1950b, p. 304).
Nota-se a manifestação do desalento do escritor paulista ao declarar ter
fracassado na busca de uma editora que lançasse seu romance em inglês, bem
como não ter conseguido fundar a sua própria editora no país para o qual havia se
mudado. Através de sua declaração, reforça-se a postura dos editores norte-
americanos em não aceitar obras guiadas pela temática racial, por acreditarem que
o país havia evoluído moralmente. Entretanto, com a desconsideração de qualquer
forma de moralismo para avaliar sua produção, Lobato acredita que O presidente
negro teria outra aceitabilidade se fosse enviado para publicação nos tempos de
segregação racial naquele território, pois a ideia de progresso da ―raça branca‖,
eliminação da ―raça negra‖ através dos procedimentos eugênicos e,
consequentemente, a dominação do país por parte dos primeiros, além de reforçar a
crença na ―superioridade‖ de uns e ―inferioridade‖ de outros, apenas aclararia as
propostas de uma teoria que já encontrava adeptos no país.
141
Como editor, obviamente, Monteiro Lobato tinha uma perspectiva que
ultrapassava a de um simples escritor, o que lhe permitia ver, com ainda mais
precisão, os benefícios econômicos das obras literárias. A ideia de relançar seu
romance nos Estados Unidos, seguramente, tinha sido planejada levando em
consideração as vantagens financeiras que acarretaria e foi nesse viés que o
escritor declarou ao amigo Gastão Cruls o possível aproveitamento da problemática
que abordava em seu texto e os resultados monetários que poderia gerar:
Um escândalo literário equivale no mínimo a 2.000.000 dólares para o autor e com essa dose de fertilizante não há Tupy que não grele. Esse ovo de escândalo foi recusado por cinco editores conservadores e amigos de obras bem comportadas, mas acaba de encher de entusiasmo um editor judeu que quer que eu o refaça e ponha mais matéria de exasperação. Penso como ele e estou com idéias de enxertar um capítulo no qual conte a guerra donde resultou a conquista pelos Estados Unidos do México e toda essa infecção spanish da América Central. O meu judeu acha que com isso até uma proibição policial obteremos - o que vale um milhão de dólares. Um livro proibido aqui sai na Inglaterra e entra boothegued como o whisky e outras implicâncias dos puritanos (LOBATO, 1970, p. 114). [grifos do autor]
Novamente, Lobato afirma a rejeição do seu Choque das raças por diferentes
editores norte-americanos, mas destaca o interesse de um editor entusiasmado,
exatamente, por se tratar de um tema polêmico e considerar que esse tipo de
assunto, refutado por avaliá-lo como ―imoral‖, se convertem em retornos econômicos
satisfatórios. Vê-se que a contrariedade ao conteúdo apresentado na obra lobatiana
é considerada pelo autor como ―puritanismo‖ de indivíduos que se preocupam com
os princípios do se considera ser ―íntegro‖. Ainda assim, Monteiro diz pretender
acrescentar novo trecho em sua obra, no qual apresentaria a colonização espanhola
na América Central como uma ―infecção‖, o que remete a uma crítica à ―latinização‖
do território, avaliada como uma contaminação sanguínea.
Viu-se que a intencionalidade de Monteiro Lobato para com seu romance se
sustentava em três diferentes esferas: a estético-literária, a de difusão dos ideais
eugênicos e a econômica. Essa constatação desconstrói a avaliação de Marisa
Lajolo que associa o romance a apenas o âmbito mercadológico e seus resultados
financeiros. A segunda esfera indicada demonstra que os ideais raciais destacados
na obra O presidente negro concordam com os de seu criador. Adepto da teoria
eugênica, representada com maior significância no Brasil por Renato Kehl, Monteiro
Lobato cria na necessidade de implantar procedimentos que possibilitassem o
melhoramento da raça branca, dada a crença em sua supremacia, e na
inconveniência da raça negra para a evolução de um país. Percebe-se, também, que
142
as críticas à miscigenação destacadas por Miss Jane estão em consonância com as
considerações que Lobato tinha a respeito do contato entre as raças, assim como as
constantes referenciações aos negros como seres ―selvagens‖, cuja qualidade
essencial era a ―força‖. Assim, tanto no pensamento lobatiano quanto nos ideais dos
porta-vozes da raça branca em seu romance, a conveniência da aplicação da
eugenia é defendida com o intuito de aliviar o peso que sobrecarrega a sociedade e
impede o progresso e, consequentemente, possibilitar a vitória dos detentores da
―superioridade‖.
Nota-se que o conceito do líder branco de que a legitimidade dos direitos
raciais está acima da artificialidade dos direitos morais é o mesmo que o de Monteiro
Lobato ao avaliar a postura do norte-americano frente ao guarda-freio e reforçado
nas páginas de Problema vital, onde se confrontam as verdades ―biológica‖ e
―filosófica‖. Além disso, em autor e obra, pode-se destacar a viabilidade do
―branqueamento racial‖, só que, de um lado, se tem a questão cultural e, do outro, a
fisionômica. Nota-se, também, a dissonância das duas formas ao serem analisadas
as apreciações feitas sobre o processo, pois Lobato considera o ―branqueamento
moral‖ como algo elogiável nos negros, enquanto o ―branqueamento físico‖ é
avaliado com negatividade no romance, desde uma perspectiva ―branca‖. Por fim, a
dicotomia beleza/fealdade exposta por Monteiro em sua análise sobre o Rio de
Janeiro, comparando-o com a Grécia, apresenta a mesma equivalência da oposição
feita por Miss Jane sobre Jim Roy e Miss Evelyn. Idealização da mais elevada
―perfeição física‖, Evelyn é posta frente a frente com Roy e a filha de Benson
destaca que eles ―eram dois seres sem a menor aproximação de aparências
externas [...]‖ (p. 112). A colocação impulsiona a inferência de que a fisionomia de
Jim diverge da ―formosura‖ da líder feminina e, por conseguinte, suscita a separação
entre ―beleza branca‖ e ―fealdade negra‖.
O cargo de ―Adido Comercial‖ possibilitou a criação de um horizonte mais
delimitado sobre a situação daquele país no que se refere à temática abordada por
Monteiro em O presidente negro: a eugenia. Em epístolas inéditas divulgadas em
2011, o escritor paulista declara que o país norte-americano, certamente, seria o que
mais teria investido na divulgação, no estudo e na prática do eugenismo (LOBATO
apud NIGRI, 2011, p. 29). Em 8 de julho de 1929, Monteiro Lobato descreve a
Renato Kehl o patamar alcançado pelos processos eugênicos nos Estados Unidos:
143
[...] a eugenia está tão adiantada que já começam a aparecer 'filhos eugênicos'. Uma senhora da alta sociedade meses atrás ocupou durante vários dias a front page dos jornais mexeriqueiros graças à audácia com que, rompendo contra todos os preceitos da ciência e sem se ligar legalmente a nenhum homem, escolheu um admirável tipo macho, fê-lo estudar sobre todos os aspectos e, achando-o fit para o fim que tinha em vista, fez-se fecundar por ele. Disso resultou uma menina que está sendo criada numa farm especialmente adaptada para nursery eugênica. E lá vai ela conduzindo a sua experiência de ouvidos fechados a todas as censuras da bigotry (LOBATO apud NIGRI, 2011, p. 29-30).
As informações compartidas com Kehl demonstram que as teorias de
melhoramento da raça estavam sendo praticadas com afinco no país onde se
encontrava. No caso citado, a ―intervenção na reprodução‖, a partir da seleção
paterna, objetivava gerar uma criança dotada das melhores qualidades humanas.
Ademais, a criação em isolamento aparenta a tentativa de moldar as características
psicológicas da menina, obstruindo a interação com o restante da sociedade e o
caráter científico do processo é reforçado pela classificação de Lobato como ―uma
experiência‖.
Todas as colocações anteriores permitem a conclusão de que Monteiro
Lobato esteve ligado à eugenia a partir da observação da evolução da teoria nos
locais onde se encontrava, bem como através da interação com um grande defensor
das premissas eugênicas no Brasil, Renato Kehl. Não obstante, cabe destacar que o
escritor não queria que muitas das suas declarações fossem publicadas,
principalmente as manifestações presentes em cartas dirigidas a Kehl, como pode
perceber-se em uma de suas epístolas enviada ao eugenista, em outubro de 1929,
período em que ainda estava nos Estados Unidos: ―Rasgue esta incontinenti, meu
caro, antes que alguém meta o nariz nela. Tudo que te digo é estritamente
confidencial e só pode ser dito a um espírito superior como o teu‖ (LOBATO apud
DIWAN, 2007, p, 111). O trecho destacado demonstra o receio lobatiano de que
suas declarações fossem reveladas, devido à possível falta de compreensão dos
receptores. Entretanto, o medo da divulgação dessas cartas, inevitavelmente, leva a
inferência de que ele objetivava a ocultação da sua afiliação à eugenia, o que
acabara por moldar a sua imagem pública.
144
5.1.3 Estados Unidos e Ku-Klux-Klan
A experiência de Monteiro Lobato nos Estados Unidos fez com que desejasse
não voltar mais ao seu país. Em carta dirigida de Nova York ao cunhado, Heitor de
Morais, Lobato manifesta sua satisfação em encontrar-se naquele lugar, além de
declarar a maneira como analisava o Brasil desde um olhar externo: ―Eu, por mim,
não sairia mais daqui, porque o Brasil torna-se grotesco visto de longe. [...] Só agora
meço em toda a extensão o atraso infinito e a estupidez maior ainda da nossa gente.
Somos África pura, meu caro Heitor‖ (LOBATO, 1970, p. 105). Vê-se que, segundo
Lobato, a contemplação distanciada possibilita averiguar a ridiculez do seu país, por
se mostrar ainda preso ao passado e ser formado por um povo ―ignorante‖, o que
legitimaria sua postura antiprogressista. Ademais, percebe-se que, mais uma vez,
Lobato associa o Brasil à África, por considerar o continente como a referência da
―antimodernidade‖. Entretanto, de acordo com Lobato, o atraso brasileiro estava
preso a outras circunstâncias, como pode ser averiguado em carta enviada a Arthur
Neiva em abril de 1928:
Mulatada, em suma. (...) País de mestiços onde o branco não tem força para organizar uma Klux-Klan é país perdido para altos destinos. (...) Um dia se fará justiça ao Klux-Klan; (...) Tivéssemos aí uma defesa dessa ordem, que mantém o negro no seu lugar, e estaríamos hoje livres da peste da imprensa carioca — mulatinho fazendo o jogo do galego, e sempre demolidor porque a mestiçagem do negro destroem [sic] a capacidade construtiva (LOBATO apud BLOCH, 2011).
Como pode ser observado, a adversidade brasileira estava relacionada,
também, a esfera racial. Novamente, Monteiro condena a miscigenação brasileira,
só que, desta vez, centraliza a inconveniência no contato com a ―raça negra‖, ao
considerá-lo ―antiprogressivo‖. O escritor declara a conveniência da instauração, no
Brasil, de uma organização como a ―Ku Klux Klan‖, uma associação criada no século
XIX, depois da abolição da escravatura nos Estados Unidos, com a finalidade
defender a supremacia branca e de impedir a integração dos negros na sociedade
norte-americana. Primeiramente direcionada somente aos ex-escravos e seus
descendentes e, depois, orientada aos judeus, aos católicos e aos estrangeiros, a
entidade é vinculada a ações terroristas e movimentos violentos, como linchamentos
e intimidações aos negros através da força, apesar da amenização dessas ações a
partir da década de 1960 (ALVES, s/d, p. 141-142). Para Monteiro Lobato, a ―raça
branca‖ de um país onde predomina a miscigenação, se objetivasse o progresso,
145
tinha de ser capaz de formar uma instituição que legitimasse a sua ―superioridade‖.
Vê-se, também, que sua acometida está apontada para a imprensa do Rio de
Janeiro, onde afirma haver ―mulatos‖ atuando como se fossem ―brancos‖, e proclama
que um dia a organização norte-americana receberá seus méritos por mostrar que
os ―negros‖ tem lugar distinto dos ―brancos‖ na sociedade.
A relação à ―Ku Klux Klan‖ demonstra que o reconhecimento dessa
supremacia poderia ser feito com atos característicos do grupo anteriormente citado.
Como destacado no primeiro capítulo desta investigação, segundo o professor da
UNESP, João Luís Ceccantini, seria possível que o escritor paulista desconhecesse
as informações concretas referentes à organização, além de afirmar que a
declaração de Lobato deveria ser analisada levando-se em consideração as datas
em que foram escritas. A respeito disso, cabe destacar que a carta na qual o escritor
paulista faz as referidas afirmações foi escrita no período em que desempenhava a
função de Adido Comercial nos Estados Unidos e possui endereçamento da cidade
de Nova York. Assim, a imersão de Lobato no território onde a organização atuava
rompe com a distância causadora da possível ignorância de suas características.
Especificamente sobre a conexão entre a entidade e os atos violentos, pode-
se destacar a correspondência enviada por Lobato a Rangel, em 1905, na qual
afirma já ter sido convidado a participar da ―Irmandade do Santíssimo Sacramento,
espécie de Ku-Klux-Klan local, inofensiva e de balandrau roxo, em vez de branco à
moda americana‖ (LOBATO, 1950a, p. 95). A relação entre a entidade religiosa e a
organização norte-americana pode ser justificada pela existência de diferentes
―Irmandades‖ de base cristã criadas no Brasil, no período colonial, nas quais a
participação era regida pela exclusividade racial, como é o caso da ―Irmandade do
Santíssimo Sacramento‖ que, durante muito tempo, foi uma associação
restritamente de brancos (PRESSER, 2006, p. 174; FROTA, s/d, p.15). Uma das
distinções feitas por Lobato entre os dois grupos é a classificação da postura da
Irmandade brasileira como ―inofensiva‖, qualidade que estaria em oposição à atitude
violenta da Ku-Klux-Klan. No mesmo viés, cabe destacar a fala de Miss Jane, em O
presidente negro, ao destacar a tensão existente nos Estados Unidos devido à
―permanência no mesmo território de duas raças dispares e infusíveis [...]. Os atritos
se faziam constantes e, embora não desfechassem como outrora nas violências da
Ku Klux Klan, constituíam um permanente motivo de inquietação‖ (LOBATO, 2008a,
146
p. 121). A colocação da personagem lobatiana comprova, definitivamente, o
conhecimento de seu criador do comportamento agressivo da entidade destacada, o
que demonstra que a referência presente na carta enviada a Neiva foi feita levando
em consideração essa informação. Assim, segundo Monteiro Lobato, o progresso só
era possível, no Brasil, se existisse um grupo com os mesmos objetivos no país:
exaltando a ―supremacia branca‖ e impondo a eliminação dos negros e seus
descendentes da maneira que fosse necessária.
5.2 O Sitio do Pica-pau Amarelo
A inclinação para a literatura infantil foi despertada em Monteiro Lobato a
partir da compreensão da falta textos literários brasileiros direcionados a crianças,
como pode ser observado em epístola enviada a Rangel em setembro de 1916.
Inspirado nas antigas fábulas de Esopo e La Fontaine, o escritor objetivava construir
uma literatura infantil com moldes nacionais, a qual, segundo ele, teria ―um fabulário
só nosso, com bichos daqui em vez dos exóticos, se for feito com arte e talento dará
coisa preciosa... Que é que nossas crianças podem ler? Não vejo nada. Fábulas
assim seriam o começo da literatura que nos falta‖ (LOBATO, 1950b, p. 104). Com
essa motivação, em 1920, Monteiro lança a sua primeira obra direcionada ao público
infantil – Narizinho Arrebitado, a qual, posteriormente, ocuparia o capítulo inicial da
obra As reinações de Narizinho, publicada em 1931 (LOBATO, 2011d, p. 8)23.
Assim, com a primeira frase dessa obra inaugural, o escritor faz nascer o ―Sítio do
Pica-pau Amarelo‖.
O ―Sítio‖ é propriedade de ―Dona Benta‖, a qual vive com sua neta Lúcia, mais
conhecida por ―Narizinho‖, com ―Tia Nastácia‖, a cozinheira, e com Emília, uma
boneca de pano feita por Nastácia (LOBATO, 2011d, p. 12) e que ganhou o dom da
fala graças à ―pílula falante‖ do Doutor Caramujo (p. 31). Além delas, compartem as
ações ocorridas no Sítio: ―Pedrinho‖, também neto de Dona Benta, o qual passa as
férias escolares na casa de sua avó; o porco ―Rabicó‖, possuidor do título de
Marquês e filho do ―Visconde de Sabugosa‖, segundo a imaginação de Narizinho (p.
79-80). Por fim, outras personagens têm presença mais restrita nas narrativas do
Sítio, como é o caso de ―Tio Barnabé‖, um negro de mais de 80 anos que morava no
23
Nota do editor.
147
rancho coberto de sapé lá junto da ponte (LOBATO, 2007b, p. 21); o ―saci‖, o
rinoceronte ―Quindim‖ e o burro ―Conselheiro‖.
Diferentemente da obra O presidente negro, onde a questão da ―raça‖ é parte
fundamental do enredo narrativo, o âmbito racial ocupa posição mais
descentralizada na literatura infantil de Lobato. Por conseguinte, essa esfera pode
ser analisada segundo a caracterização dada às personagens lobatianas, de suas
funções narrativas e das declarações manifestadas por elas sobre a temática, sem
desconsiderar que, em algumas obras, as relações raciais possam atingir um nível
mais significativo do que em outras, o que exigirá uma apreciação mais minuciosa.
Assim, inicialmente, analisar-se-á a presença do ―negro‖ nas obras infantis de
Lobato, marcada pelas figuras de ―Tio Barnabé‖ e de ―Tia Nastácia‖.
5.2.1 O negro: subalternidade, fealdade, ignorância e atraso cultural
Em Viagem ao céu (1932), Dona Benta expõe qual a situação da personagem
Tio Barnabé em relação a seu domicílio nos domínios do Sítio, onde afirma que ele é
seu ―agregado‖, ou seja, que ―mora em suas terras com seu consentimento‖
(LOBATO, 2004d, p. 62). Diferente de Nastácia, a qual vive juntamente com Dona
Benta, Barnabé reside em uma vivenda situada próximo das divisas daquela
propriedade e esse afastamento, possivelmente, justifique a sua limitada
participação nos acontecimentos narrados sobre os integrantes do Sítio do Pica-pau
Amarelo. A presença mais significativa da personagem está reduzida à obra O saci
(1921), quando é procurada por Pedrinho com a finalidade de saber o que sabia a
respeito daquele ―ser de uma perna só‖. Segundo Nastácia, a existência do ―saci‖
era verídica, apesar da incredulidade dos ―homens brancos‖ da cidade. Sua crença
se mantinha mesmo sem nunca ter observado uma entidade como aquela, mas
afirma não existir ―negro velho‖ que não o tenha visto e recomenda que procure Tio
Barnabé, pois ―negro sabido está ali! Entende de todas as feitiçarias, e de saci, de
mula sem cabeça, de lobisomem – de tudo‖ (LOBATO, 2007b, p. 20-21).
No diálogo que tiveram, o ―sábio‖ confirmou a Pedrinho veracidade das
declarações de Nastácia e explicou com minúcia todas as artimanhas dos sacis,
bem como a maneira mais eficiente de capturá-los. Dentre as informações dadas ao
neto de Dona Benta, cabe destacar a afirmação de Barnabé de que ―quem consegue
148
tomar e esconder a carapuça de um saci fica por toda vida senhor de um pequeno
escravo‖ (p. 21) e de que já teve ―um saci na garrafa que lhe prestava muitos bons
serviços‖ (p. 25). Obviamente, os sacis são apresentados como ―entidades mágicas‖
e não ―humanas‖, mas é possível perceber que, mesmo tendo vivido no tempo da
escravidão, Barnabé admitia a ideia do trabalho forçado, através de um direito que
lhe era dado segundo a sua capacidade de dominação do outro.
A ideia de capturar um saci entusiasmou Pedrinho e essa empolgação o
ajudou a apanhar uma daquelas criaturas. Depois disso, manteve-o preso em uma
garrafa até o dia em que se viu no meio da mata e seu saci o alertou dos perigos
daquele local. Após a promessa de liberdade em troca de sua proteção, Pedrinho
abriu o frasco que o prendia e o saci contou-lhe todos os ―segredos da mata virgem‖
(p.29). Depois de explicar-lhe sobre diferentes aspectos dos animais e da floresta, o
saci contou-lhe sobre os entes noturnos, os quais, segundo ele, eram frutos do
―medo‖ e existiam apenas para aqueles que neles creem. O saci destaca, então,
que, na América, há muitas ―criações do medo, não só dos índios chamados
aborígenes, como dos negros que vieram da África‖ (p. 45) e relata a Pedrinho as
histórias do ―Boitatá‖, do ―Negrinho do Pastorejo‖, do ―Lobisomem‖ e da ―Mula sem
cabeça‖. Por conseguinte, pode-se inferir que a narrativa lobatiana trata de expor a
existência de um imaginário popular de origem indígena e negra. Além disso, o que
possibilitaria a existência e daria vida a esses seres fantásticos seria exatamente a
crença e o consequente medo dessas criaturas. Assim, Tia Nastácia e Tio Barnabé
surgem como provedores desse ―medo‖ ou ―convicção‖ e, por conseguinte, como
veiculadores desses ideais populares por meio dos quais essas entidades se fazem
presentes.
A aparição de Barnabé nas outras obras lobatianas se reduz a curtas
menções à personagem, mas sem outra participação efetiva ou grandes relações
com as ações principais. A referência mais significativa, com exceção de O saci,
parece ser a sua possível ―morte‖, narrada em A chave do tamanho (1942). Nessa
obra, Emília decide ir à ―Casa das Chaves‖, com o intuito de fechar a ―chave da
guerra‖ – alusão feita à Segunda Guerra Mundial – mas acaba modificando a
posição da ―chave do tamanho‖, o que, consequentemente, reduzia a estatura de
todos os indivíduos do mundo. Entretanto, seu feito não havia afetado Rabicó e a
boneca de pano declara ao ―Marquês‖ o resultado do apetite do animal por
149
minhocas: ―Sabe quem eram as minhocas pretas que você comeu na casa do tio
Barnabé? Eram o pobre negro velho e toda a família dele‖ (LOBATO, 1982a, p. 59).
Faz-se necessário destacar que a visão distorcida de Rabicó ao animalizar aquela
família não se reduziu às figuras dos ―negros‖, pois o porco afirma ter comido tanto
minhocas ―pretas‖ quanto ―cor-de-rosa‖ e ―cor de rapadura‖, dentre as quais estava
―Quinota‖, filha do ―Coronel Teodorico‖.
Já a personagem Tia Nastácia surge na primeira obra infantil de Lobato –
Narizinho Arrebitado – como integrante da casa de Dona Benta e é apresentada
pelo narrador lobatiano como uma ―[...] negra de estimação que carregou Lúcia em
pequena [...]‖ (LOBATO, 2011d, p. 12). Obviamente, o adjetivo que caracteriza a
personagem evidencia o apreço tido pela senhora que tomou conta de Narizinho
quando menor, mas não deixa de evocar o sentido de ―animal doméstico‖ e de sua
distinção dos outros ―negros‖ devido a uma disciplina que lhe possibilitou o direito de
viver dentro da casa de seu ―proprietário‖. Essa ideia de posse pode ser relacionada
à informação de que Nastácia tinha sido escrava de sua atual patroa: ―– Pois foi –
confirmou Dona Benta. – Foi minha escrava, sim. Meu marido, que Deus haja,
comprou-a por dois contos e quinhentos, lembro-me muito bem...‖ (LOBATO, 2005a,
p. 105). Vê-se que a declaração da proprietária do Sítio do Pica-pau Amarelo
demonstra, inicialmente, uma anuência a respeito do regime de escravidão, mas
opta-se por deixar a análise de seus ideais para as páginas subsequentes.
A caracterização racial de Tia Nastácia aparece não só nas descrições do
narrador, mas também nas falas das personagens, principalmente nas de Emília.
Em uma festa dada a convidados vindos do ―País das Maravilhas‖, o narrador afirma
que todos tomaram café, menos Cinderela: ―– Só tomo leite – explicou a linda
princesa. – Tenho medo de que o café me deixe morena‖. Como resposta Emília
declara que ela ―faz muito bem‖, pois foi ―de tanto tomar café que Tia Nastácia ficou
preta assim...‖ (LOBATO, 2011d, p. 173). A fobia apresentada na justificativa de
Cinderela revela a concepção de que a pele morena representa algum perigo ou
inconveniência e, por conseguinte, apresenta seu caráter ufanista da pele branca. A
concordância de Emília apenas reforça a concepção de negatividade da pele negra,
representada, naquele instante, por Tia Nastácia. Junto a isso, cabe salientar a
advertência do narrador ao ressaltar que a fala derivava da ―linda princesa‖. Nesse
contexto, o adjetivo acaba por unir o atributo da ―beleza‖ ao da ―pele branca‖ e,
150
implicitamente, fixa a ideia de ―fealdade negra‖.
Por outro lado, em Os doze trabalhos de Hércules (1944), em novo
deslocamento das personagens àquele tempo pretérito, o narrador descreve as
características da personagem ―Medusa‖, a qual considera ―o horror dos horrores‖.
Os inúmeros atributos relacionados a ela demonstram tratar-se de uma criatura que
em pouco se assemelhava aos rasgos humanos, em exceção da estrutura de seu
corpo. Não obstante, em meio a essas qualidades, cabe destacar a indicação de que
Medusa era negra (LOBATO, 2011c, p. 56). Enquanto nas palavras das
personagens24 e do próprio narrador lobatiano surgem constantes exaltações da
―beleza grega‖, nota-se que, nesse momento, a ―pele negra‖ está ligada à
anormalidade, à monstruosidade e à fealdade, o que restabelece a dicotomia
existente entre essa caracterização e a ―beleza branca‖.
Essa ideia de desvio é perceptível, também, quando, na festa anteriormente
citada, ―Branca de Neve‖ pergunta a Emília quem era a senhora que, no momento,
servia o café e a boneca lhe responde: ―Nastácia é uma princesa núbia que certa
fada virou em cozinheira. Quando aparecer um certo anel, que está na barriga de
um certo peixe, virará princesa outra vez‖ (LOBATO, 2011d, p. 172). O enunciado
demonstra uma metamorfose que tenta contrapor duas instâncias tidas como
―opostas‖: de soberana a subalterna. A partir de um encantamento, a fada teria
rebaixado uma integrante da nobreza à posição de serviçal e a restituição de sua
titulação dependia da obtenção de um objeto mágico que desfizesse a magia.
Sequencialmente, a descrição de Nastácia segundo essas características reaparece
quando as crianças constroem um circo, a partir da vitória de Emília em um concurso
de ideias. Antes do espetáculo inicial, Narizinho declara que não sabe se a
cozinheira terá coragem de entrar em cena, pois, segundo ela, ―está com vergonha,
coitada, por ser preta‖ (p. 221). Por conseguinte, Emília encontra a solução
necessária para que tudo corra como planejado e, novamente, apresenta Nastácia
como uma princesa:
Também apresento a Princesa Anastácia. Não reparem ser preta. É preta só por fora, e não de nascença. Foi uma fada que um dia a pretejou, condenando-a a ficar assim até que encontre um certo anel na barriga de um certo peixe. Então o encanto se quebrará e ela virará uma linda princesa loura. Todos bateram palmas, enquanto as duas velhas se escarrapachavam nas suas cadeiras especiais (LOBATO, 2011d, p. 221).
24
Leia-se, no tópico subsequente, as páginas 169-170.
151
As palavras de Narizinho destacam a existência de um constrangimento por
parte de Nastácia devido à cor de sua pele. Já a postura de Emília ao criar uma
maneira para resolver o ―problema‖ demonstra a concordância com o motivo dado
pela senhora para não apresentar-se. Novamente, a coloração da pele de Nastácia
é posta como produto de uma ação mágica, o que, segundo Uruguay Cortazzo,
pode-se relacionar à ―ideologia do príncipe convertido em sapo (servo/escravo)25‖.
Se tomado segundo essa relação, de maneira animalizada ou desumanizada, põe-
se em oposição, de um lado, o branco com sentido de ―normalidade‖ e ―beleza‖ e, de
outro, o negro como sinônimo de ―desvio‖ e de ―fealdade‖ gerados como efeito de
uma punição. Além disso, a volta à regularidade dependeria de um acontecimento
inesperado ou milagroso.
Por outro lado, pode-se salientar outro trecho da fala de Emília que demonstra
qual a origem daquela teoria sobre Nastácia. A partir da ideia de Pedrinho de criar o
irmão do ―Pinóquio‖, Tia Nastácia é sorteada para ―dar forma humana ao pedaço de
pau vivente‖ (LOBATO, 2011d, p. 189). A discordância de Emília para com o
resultado fez com que decidisse ir morar com o ―Pequeno Polegar‖ e, enquanto
arrumava suas malas, ela declara: ―Não é à toa que é preta como o carvão. [...]
Mentira de narizinho! Essa negra não é fada nenhuma, nem nunca foi branca.
Nasceu preta e ainda mais preta a de morrer‖ (p. 190). O monólogo da boneca
destaca que foi Lúcia quem afirmou que, no passado, a criada de sua avó não era
nem cozinheira nem negra e as declarações anteriormente feitas por Emília surgem
como resultado dessa conceituação sobre a pele negra de Nastácia. Entretanto, o
solilóquio citado revela a crença em uma negatividade em ―ser negro‖, pois a
informação dada por Lúcia certifica uma necessidade de justificar a Emília o motivo
daquela cor de pele. Por conseguinte, a aceitação inicial sobre o parecer da menina
se converte em renegação por parte da boneca e, dada a desaprovação da vitória
de Nastácia para os fins destacados, a frase final toma sentido de imprecação e o
―ser‖ e ―tornar-se ainda mais negra‖ é apresentado como algo desfavorável.
Bem como tio Barnabé, Nastácia surge como representante do povo e da
cultura popular. A obra em que essa designação aparece de forma mais evidente é
Histórias de Tia Nastácia (1937), na qual Pedrinho procura saber o que é o ―folclore‖
25
Comunicação pessoal (06 out. 2012).
152
e obtêm a definição de sua avó: ―folk quer dizer gente, povo; e lore quer dizer
sabedoria, ciência. Folclore são as coisas que o povo sabe por boca, de um contar
para o outro, de pais a filhos – os contos, as histórias, as anedotas, as superstições,
as bobagens, a sabedoria popular etc. e tal (LOBATO, 2009b, p. 12) [grifos do
autor]. A partir da conclusão de que Nastácia é o ―povo‖, o menino decide saber o
que ela tem a contar sobre o folclore e, então, a cozinheira toma a palavra e narra
diferentes histórias aos ouvintes da casa de Dona Benta.
Segundo Benta, os contos de Tia Nastácia são prolongamentos de narrativas
trazidas pelos colonizadores, as quais o povo reproduz oralmente, devido ao
analfabetismo (p. 61). Na obra referenciada, destaca-se antes a reação do público
receptor do que propriamente as narrativas da ex-escrava. Após o final do primeiro
conto, Emília e Narizinho destacam a ingenuidade das ―histórias folclóricas‖, a
boneca por achar o povo ―muito idiota‖ e a menina por achar-se ―exigente‖ depois de
ter lido ―Peter Pan‖. Já Pedrinho acredita na importância de conhecê-las por
possibilitar um ―estudo da mentalidade do povo‖ (p. 18). Nesse viés, a boneca de
pano afirma:
[...] só aturo essas histórias como estudo da ignorância e burrice do povo. Prazer não sinto nenhum. Não são engraçadas, não têm humorismo. Parecem-me muito grosseiras e bárbaras, coisas mesmo de negra beiçuda como Tia Nastácia. Não gosto, não gosto e não gosto... (LOBATO, 2009b, p. 28).
Percebe-se que os pareceres das três personagens associam aquelas
histórias a uma cultura díspar a que possuem e a crítica de Emília as relaciona a um
grupo incivilizado ou semisselvagem, ao qual Tia Nastácia pertenceria por ser negra.
A cada nova narração, os ouvintes manifestam suas avaliações sobre o que
escutaram. Normalmente, as críticas iniciam com a fala de Emília e, a partir dela, as
outras personagens dão continuidade à discussão. A boneca afirma que seu gosto
se direciona mais a Andersen e Carroll do que às histórias populares (p. 23) e que a
responsável por suas exigências é Dona Benta, por ―ensinar-lhes tanto sobre
ciências e artes‖ (p.18). Na obra citada, pode-se notar a dicotomia entre ―literatura
oral‖ e ―literatura escrita‖, onde Nastácia se encontra isolada como representante da
oralidade, considerada consequência do analfabetismo, e seus ouvintes como
críticos fundamentados em uma cultura letrada e ocidental. Essa
desproporcionalidade pode ser comprovada a partir da apreciação das palavras da
personagem Dona Benta a respeito das reivindicações feitas pelas crianças:
153
Nós não podemos exigir do povo o apuro artístico dos grandes escritores. O povo... Que é o povo? São essas pobres tias velhas, como Nastácia, sem cultura nenhuma, que nem ler sabem e que outra coisa não fazem senão ouvir as histórias de outras criaturas igualmente ignorantes e passá-las para outros ouvidos, mais adulteradas ainda (LOBATO, 2009b, p. 27).
Vê-se que Benta relaciona o povo à incultura, por se tratar de um grupo
iletrado, cujas manifestações literárias não passam de histórias repassadas
verbalmente e modificadas a cada nova transmissão. Outras considerações
semelhantes podem ser notadas nas afirmações de Emília. Primeiramente, a de que
o povo ―não tem delicadeza, não tem finuras, não tem arte. É grosseiro, tosco em
tudo que faz‖ (p. 49); depois, referindo-se a Tia Nastácia, considera que ―bem se vê
que é preta e beiçuda! Não tem a menor filosofia, esta diaba‖ (p. 90). Assim,
Nastácia e, consequentemente, o povo – segundo a relação feita por Pedrinho ao
princípio – são associados à falta de apuro artístico e, também, à incivilidade.
Ademais, essas características estariam ligadas de forma intrínseca à esfera racial,
pois Emília expõe que, somente a partir das declarações de Nastácia, seria fácil
concluir que se tratava de um indivíduo dotado de ditas características fisionômicas.
Outro julgamento que pode ser percebido entre os interlocutores de Tia
Nastácia é o despropósito ou falta de sentido de algumas ações presentes nos
contos, bem como a repetição do ―enredo narrativo‖, o qual aparenta ter sido apenas
remodelado, como parece ser a opinião de Pedrinho ao declara estar cansado da
―ciclicidade‖ daquelas histórias (p. 36). Em outro momento, o menino tenta justificar a
aparição de personagens negras em histórias nas quais, inicialmente, só possuíam
personagens brancas. Sobre o conto de ―João e Maria‖, narrado por Nastácia, a
razão da inserção de um negro na história ocorre ―porque no Brasil as histórias são
contadas pelas negras, que gostam de enxertar personagens pretos como elas. Lá
na Dinamarca Andersen nunca se lembraria de enxertar um preto porque não há
pretos. Tudo gente loura‖ (p. 54). A colocação de Pedrinho parte do princípio de uma
tentativa de alteração da narrativa como forma de autoidentificação, ou seja, a
inclusão de sujeitos negros em histórias onde só existiam personagens brancas
seria um esforço visando aproximar o conteúdo narrativo da realidade racial dos
seus mediadores. Ademais, a não inserção de personagens negras nas narrativas
de Andersen é justificada pela provável totalidade branca da população do território
onde o escritor elaborou suas criações, o que, novamente, demonstraria uma
valorização de uma identidade racial.
154
Cabe destacar que nos contos finais enunciados por Nastácia, a postura dos
ouvintes se altera e pode-se notar a manifestação de elogios devido ao fim das
repetições, do melhoramento dos arranjos, a presença de humorismo e de
personagens animais, no lugar de reis e príncipes. Apesar do protagonismo de Tia
Nastácia como personagem que adquire a voz narrativa, em determinado instante,
ela necessita abandonar o posto adquirido e retomar a sua função de cozinheira,
pois a hora do jantar se aproxima. Por solicitação das crianças, Dona Benta substitui
Nastácia e, por declarar-se conhecedora de histórias do folclore de todos os países,
dá continuidade à sessão de histórias (p. 119).
Dentre as narrativas apresentadas, a dona do Sítio do Pica-pau Amarelo
decide dar a conhecer um conto folclórico originário do Congo e, ao final da
enunciação, Pedrinho conclui que aquela história se parece com as brasileiras, as
quais seriam ―bem bobinhas‖. Para Dona Benta, não se podia esperar nada diferente
dos ―pobres negros do Congo‖ e, além disso, aquela teria sido uma região de
intenso fornecimento de escravos para a América (p. 125). O esclarecimento da
senhora demonstra que os indivíduos daquele país, demarcados por sua
composição racial negra, não eram capazes de elaborar uma narrativa de qualidade
elevada e a similitude com os brasileiros evidencia uma herança transplantada na
época do tráfico de escravos africanos. Assim, as críticas negativas às histórias
populares – como a nula ou baixa cultura, a incapacidade artística, a incivilidade,
etc. – são ligadas a um atavismo fundamentado na ancestralidade africana do povo.
Por fim, os interlocutores afirmam estarem fartos daquele tipo de narrativas e
Narizinho destaca que ―histórias do povo não quer mais. De hoje em diante, só as
assinadas pelos grandes escritores. Essas é que são as artísticas‖ (p. 133). A
inferência de Lúcia comprova o repúdio ao folclore e, prontamente, anula a
possibilidade de retomar-se aquela temática em novas reuniões.
Cabe, ainda, destacar que em uma das histórias enunciadas por Tia Nastácia,
Pedrinho menciona seu desagrado pela aparição na narrativa de um ―canteiro de
cebolas‖. Para o menino, ―bem se vê que é história contada por negras velhas,
cozinheiras‖ (p. 40). A vírgula que separa os termos ―negras velhas‖ de ―cozinheiras‖
revela que o segundo termo funciona como uma explicação e não como uma
restrição. Desta forma, vê-se que Pedrinho generaliza a ligação entre as mulheres
idosas e negras à função de cozinheira, ocupação desempenhada, na casa de Dona
155
Benta, por Tia Nastácia. Obviamente, se analisado de forma superficial, a
representação de uma mulher negra ligada a essa profissão não demonstra uma
tentativa de rebaixamento social. Entretanto, a generalização feita a partir da
associação feita entre ―raça‖ e essa ocupação pode levar a outras conclusões. A
frase de Pedrinho denota que a atividade de ―cozinheira‖ é preenchida,
inevitavelmente, por ―negras velhas‖ e ver-se-á que essa ligação não se encerra no
exemplo dado.
Em A chave do tamanho, devido à pequena estatura dos indivíduos em
decorrência do erro de Emília na ―Casa das Chaves‖, a boneca avistou de longe
―dois insetos cor-de-rosa e um preto‖, mas somente depois percebeu que se tratava
de humanos. A conclusão a que chegou foi que os ―cor-de-rosa‖ eram os donos da
casa e o ―preto‖ devia ser ―a Tia Nastácia de lá – a cozinheira‖ (LOBATO, 1982a, p.
23). A dedução de Emília elaborada antes de um contato com aqueles sujeitos
demonstram, novamente, uma conexão indubitável entre a pessoa ―negra‖
observada em um dos degraus da varanda e a função de ―criado‖. Por conseguinte,
os dois exemplos dados tratam de correlacionar o âmbito ―serviçal‖ ao ―racial‖ e,
nesse momento, pode-se notar a tentativa de categorização entre as personagens
segundo o critério de ―raça‖.
O ofício de Tia Nastácia como cozinheira fará parte da grande maioria de
suas participações nas obras lobatianas. Mesmo nos meros comentários, sem
grandes intervenções aos acontecimentos centrais, são realizados depois de sua
vinda da cozinha, onde desempenha suas atividades, ou diretamente desse seu
espaço laboral. Na maioria das vezes, as interações consideráveis de Nastácia com
outra personagem se realizam em função dos alimentos que elabora ou possuem
como pano de fundo o cômodo da casa onde, normalmente, se encontra. Essa
evidenciação pode ser percebida na visita do ―Príncipe Escamado e de sua corte‖,
em Reinações de Narizinho, onde uma sardinha – ―Miss Sardine‖ – faz amizade com
Nastácia. A relação entre as personagens se mantém a partir da curiosidade da
visitante sobre os diferentes produtos que a cozinheira dispunha para o preparo das
refeições e das explicações derivadas desse interesse (LOBATO, 2011d, p. 120-
122).
Outra situação semelhante ocorre em O Pica-pau Amarelo (1939), onde as
personagens do ―Mundo da Fábula‖ decidem morar no Sítio e Sancho, o escudeiro
156
de Dom Quixote, se torna amigo de Nastácia. O escudeiro fica encantado pelas
comidas feitas pela cozinheira de Dona Benta e, no momento da despedida, conclui:
―[...] nesta casa os petiscos têm qualquer coisa que bole no coração da gente.
Acredite, Senhora Nastácia, que cozinheira como vosmecê nunca jamais [sic] houve
no mundo – nem haverá‖ (LOBATO, 2010c, p. 77). Vê-se que o trecho destacado
expressa uma valorização do ofício de Tia Nastácia, onde o hóspede declara a
perfeição dos pratos que elabora. A exaltação de seus dotes culinários não se faz
presente somente nesse momento, mas, pelo contrário, permeará quase que a
totalidade das referenciações à Nastácia.
Em sua primeira saída do Sítio com as crianças, ao fazerem que cheirasse o
―pó de pirlimpimpim‖ pensando que era ―rapé‖, a ex-escrava foi levada, sem o seu
consentimento, em uma viagem ao céu (LOBATO, 2004d, p. 21). A chegada
inesperada ocorreu na Lua, onde acabaram por encontrar a ―São Jorge‖, o qual ficou
sabendo da dedicação de Nastácia no Sítio do Pica-pau Amarelo e convidou-a para
que permanecesse naquele local para ser sua cozinheira. Antes que Nastácia
respondesse, Narizinho decidiu que a senhora ficaria, mas somente enquanto eles
visitassem os outros planetas. Percebe-se que, mesmo com o distanciamento, Tia
Nastácia permanece em sua função de criada, prestando serviços a diferentes
indivíduos, como ocorre no casamento de Branca de Neve – em O Pica-pau
Amarelo – onde é levada para ―Terras Novas‖ com a incumbência de preparar o
banquete, momento em que foi sequestrada.
Já em O Minotauro (1939), obra que dá sequência ao desaparecimento da
cozinheira, Dona Benta e as crianças vão à Grécia em busca de Tia Nastácia.
Segundo Benta, a razão daquele esforço é, ao mesmo tempo, ―sentimental‖ e
―culinária‖, por se tratar de sua ―amiga‖ e ―cozinheira‖ (LOBATO, 1982e, p. 66).
Assim, pode perceber que a colocação da senhora equipara os valores da
empregada. No momento em que a encontram, Nastácia está preparando bolinhos
para o Minotauro em seu labirinto. O que, segundo ela, começou como uma maneira
de matar a saudade da sua ―gente lá do sítio‖ e acabou como forma de livrar-se do
desejo antropofágico daquela criatura. As suas habilidades de cozinheira – diferente
do que destacou, equivocadamente, José Luís Ceccantini ao afirmar que sem a
atitude da ex-escrava o Sítio chegaria a seu fim – resultaram, na verdade, em uma
arma de autodefesa, sem interligação alguma com as outras personagens ou
157
espaços narrativos, como a fazenda de Benta. Na sequência do salvamento, uma
das personagens declara a Nastácia que ela iria ―voltar para o Pica-pau e continuar
por toda a vida a fazer bolinhos para eles‖ (p. 84). Apesar das aflições sofridas,
reforçou-se a sua posição de serviçal, além de afirmar que a personagem se
manteria naquela ocupação até o final de seus dias.
Ainda em O Minotauro, enquanto procuravam por Nastácia, Emília a
descreveu a um pastor a fim de averiguar se ele a tinha visto. De acordo com ela, se
tratava de ―uma velha cor de carvão, de lenço vermelho de ramagens na cabeça e
um par de beiços deste tamanho na boca‖ (p. 45). A associação da cor da pele da
cozinheira à coloração daquele produto pode ser relacionada à consideração da
boneca, em Serões de Dona Benta (1937), de que o carvão é ―tão preto e feio‖
(LOBATO, 2004d, p. 98). Com essa ligação, é possível concluir que a cor da pele de
Nastácia é vinculada ao âmbito da ―fealdade‖. O uso de tal termo é encontrado em
outras obras, como ocorre em Memórias da Emília (1936), em trecho em que a
boneca de pano expõe sua opinião sobre Tia Nastácia:
Eu vivo brigando com ela e tenho-lhe dito muitos desaforos – mas não é de coração. Lá por dentro gosto ainda mais dela do que dos seus afamados bolinhos. Só não compreendo por que Deus faz uma criatura tão boa e prestimosa nascer preta como carvão. É verdade que as jabuticabas, as amoras, os maracujás também são pretos. Isso me leva a crer que a tal cor preta é uma coisa que só desmerece as pessoas aqui neste mundo. Lá encima não há diferenças de cor. Se houvesse, como havia de ser preta a jabuticaba, que para mim é a rainha das frutas? (LOBATO, 2007a, p. 90-91).
Percebe-se que as frases iniciais demonstram a afeição de Emília pela
cozinheira, mas as colocações subsequentes demonstram o incômodo sentido pela
boneca devido à cor da pele de Nastácia, comparada mais uma vez ao ―carvão‖.
Além disso, vê-se que as qualidades da empregada giram em torno de sua bondade
e de seu servilismo, o qual reforça a sua posição de prestadora de serviços. Esse
aspecto pode ser notado em trecho anterior ao citado, no qual se destaca que a
sabedoria da ex-escrava se restringe, basicamente, a seus afazeres na cozinha,
mas no que se refere à ―ciência‖ dos livros, era uma ―ignorante‖ (p. 90). O
desconforto declarado por Emília está na incompatibilidade existente entre os
atributos de Nastácia e sua coloração epidérmica, a qual seria a causadora da
natureza degradante desses sujeitos. A comparação às frutas aponta que a cor
preta seria depreciativa somente nos humanos e acarretaria a desigualdade entre os
indivíduos.
158
Essa distinção aparece em outras declarações de Emília, como, por exemplo,
em Viagem ao céu, onde afirma que ―negra velha não tem o direito de repousar‖
(LOBATO, 2004d, p. 8). Pode-se mencionar, entretanto, a investida de Lúcia ao
defender que ninguém tinha mais direito de descanso do que Tia Nastácia. Em Peter
Pan (1930), Emília reage à solicitação da empregada para ouvir a história a ser
narrada por Dona Benta. Segundo a boneca, a ideia era uma ―bo-ba-gem! Para que
uma cozinheira precisa saber a história de Peter Pan?‖ (LOBATO, 1982f, p. 8). Nota-
se que a condição de Nastácia como criada surge como divisora dos direitos ou
necessidades e, apesar do interesse manifestado, aquela história não lhe serviria de
maneira alguma. Sequencialmente, ao declarar que nunca havia visto uma fada, Tia
Nastácia recebe, com rispidez, a reação de Emília:
Cale a boca! [...] Você só entende de cebolas e alhos e vinagres e toicinhos. Está claro que não poderia nunca ter visto uma fada porque elas não aparecem para gente preta. Eu, se fosse Peter, enganava Wendy dizendo que uma fada morre sempre que vê uma negra beiçuda (LOBATO, 1982f, p. 13).
Vê-se que, nesse momento, se mesclam as categorias ―laboral‖ e ―racial‖,
onde, novamente, o conhecimento da senhora aparece como restrito a suas
atividades domésticas, enquanto o ―mundo das fadas‖ estaria limitado aos ―brancos‖.
Além disso, a suposição de Emília sobre o que faria no lugar de Peter Pan coloca os
―negros‖ como destruidores desse universo fantástico branco, pelo simples contato
visual. Além disso, essa ideia de Emília sobre a morte das fadas quando miram a
uma ―negra‖ pode ser associada à característica central de Medusa: a capacidade
de petrificar quem lhe fixasse os olhos. Assim, a pele negra aparece como algo
destrutivo para os que a contemplam.
Na ocasião, Dona Beta tenta controlar a situação e pede a Emília para que
não trate Nastácia daquela maneira, pois todos sabem que ―ela é preta só por fora‖,
e o Visconde de Sabugosa reforça a explicação ao declarar que ―isso de brancuras e
preturas não passa de maior ou menor quantidade de pigmentos nas células da
pele‖ (p. 13). A declaração inicial de Dona Benta descarta a possível obviedade da
informação e trata de expor que a ―cor‖ da ex-escrava era algo apenas epidérmico,
ou seja, que ―os pretos são pretos porque têm muitos pigmentos na pele‖ (p. 14).
Consequentemente, Emília não perde a oportunidade de zombar daquela
informação, ao alegar que ―se os pigmentos de Tia Nastácia fossem cor de burro
quando foge ela não seria negra e sim uma burra fugida...‖ (p. 14).
159
Cabe ressaltar que a discussão se formou a partir do primeiro comentário de
Emília sobre a impossibilidade de que ―negras‖ enxergassem as fadas, o que
instaura a ideia de desigualdade de direitos entre brancos e negros. Com a
intervenção de Dona Benta, centraliza-se o assunto na esfera da distinção exterior
marcada pela coloração da pele, mas Emília acaba por conduzir o diálogo para a
esfera da animalização, fundada com base na associação à expressão popular. Vê-
se que, a pesar das modificações nos rumos da conversa e da tentativa de
esclarecimento por parte de Dona Benta, a boneca continua a se referir à cozinheira
de forma escarnecedora.
No mesmo caminho, a fim de demonstrar que as explicações de Benta e de
Visconde parecem não ter ficado tão claras para Emília, pode-se resgatar outra fala
da boneca. Em Caçadas de Pedrinho (1933), ao falar sobre o conflito que se armava
com os animais da floresta, ela afirma: ―É guerra e das boas. Não vai escapar
ninguém – nem tia Nastácia, que tem carne preta‖ (LOBATO, 2009a, p. 26). Na fala
de Emília, exalta-se a distinção biológica da cozinheira, agora relacionada à
coloração carnal da personagem. Entretanto, apesar da diferenciação apresentada
por Nastácia, os animais não a privariam do ataque. A necessidade de mencionar
essa acometida geral por parte dos seres da floresta demonstra que Emília cria que
o mais natural seria que as diferenças físicas de Nastácia a salvassem daquele
ataque.
A menção ao ataque dos animais permite a introdução de outra temática,
destacada nos pareceres do Conselho Nacional da Educação mencionados no
―Capítulo I‖: a associação de Tia Nastácia a uma ―macaca de carvão‖. O atrito em os
integrantes do Sítio do Pica-pau Amarelo e os animais da floresta, presente em
Caçadas de Pedrinho, teria sido resultado da morte de uma onça por parte das
crianças e do planejamento da vingança elaborado pelos habitantes da mata. No
ataque comandado pelas onças, o narrador lobatiano afirma que, com o intuito de
refugiar-se do perigo, ―Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos,
trepou, como uma macaca de carvão, pelo mastro de São Pedro acima, com tal
agilidade que parecia nunca ter feito outra coisa na vida senão subir em mastros‖
(LOBATO, 2009a, p. 39).
Considera-se relevante a retomada da afirmação de Marisa Lajolo de que
Monteiro Lobato, a todo instante, chama a diversos personagens de ―macaco‖. A
160
autora usa como exemplo a obra O macaco que se fez homem, na qual o escritor
teria satirizado as hipóteses sobre o surgimento da humanidade. No artigo
mencionado por Lajolo – ―Era no paraíso...‖ – com uma mescla de intertextualidades
sobre as teorias bíblica e evolucionista, o texto lobatiano relaciona o advento da
humanidade a um acidente de um chimpanzé que, devido ao vento, despencou da
árvore que se encontrava e chocou-se contra uma pedra. Desde esse dia, então,
teria começado ―elaborar ideias‖ (LOBATO, 1959b, p. 202)26. Vê-se que o texto
associa toda a humanidade a um primeiro ―macaco‖ que teria dado início a evolução,
mas, em se tratando da literatura infantil, torna-se necessário averiguar como essas
referências aparecem.
O narrador de Reinações de Narizinho, ao descrever Lúcia, afirma que ―[...] a
menina não fazia outra coisa senão chupar jabuticabas. Volta e meia trepava à
árvore, que nem uma macaquinha‖ (LOBATO, 2011d, p.38). Nota-se que a
comparação de Narizinho a uma ―macaca‖ está relacionada à atitude desse animal
de subir em árvores, no caso da menina, nas jabuticabeiras em busca das frutas
maduras, a fim de comê-las. Semelhante a essa vinculação, o narrador de Caçadas
de Pedrinho destaca que, no momento em que o menino e sua turma falharam na
acometida em direção a uma onça que tentavam caçar, ―cada qual tratou de si e,
como se houvessem virado macacos, todos procuraram a salvação nas árvores
(LOBATO, 2009a, p. 16). Novamente, a ligação aos primatas tem como fundamento
o comportamento trepador dos macacos. Posteriormente, Pedrinho dá o sinal no
momento oportuno da decida: ―– É hora! Avança, macacada!‖ (p. 17). Claramente,
percebe-se que a personagem também estabeleceu a associação entre a ação de
subir ou descer de árvores e o hábito daquele animal.
Já Emília, em Fábulas (1922), ao resumir o que entendia sobre esse gênero
literário, afirma que se trata de ―indiretas‖ para diferentes pessoas e que ela,
prontamente, faz as relações necessárias: ―este mono é o Tio Barnabé; aquele asno
carregado de ouro é o Coronel Teodorico; a gralha enfeitada de penas de pavão é a
filha da Nhá Veva‖ (LOBATO, 2010b, p. 118). Neste caso, se tomado em
comparação aos exemplos anteriores, não se pode justificar a relação feita por
Emília entre Tio Barnabé e um macaco. Entretanto, vê-se que outras personagens
26
Na publicação de suas ―Obras Completas‖, Monteiro Lobato dividiu os textos de O macaco que se
fez homem e incluiu-os em outras duas publicações: Cidades Mortas (1919) e Negrinha (1920).
161
também são relacionadas a animais diversos, sem qualquer esclarecimento. Uma
inferência que não leve em conta essa percepção, pode ser induzida ao erro, pois o
texto não apresenta informações precisas para que se conclua algo diverso do
exposto anteriormente.
Por outro lado, retoma-se a afirmação do narrador de Caçadas de Pedrinho a
respeito de Tia Nastácia, na qual declara que a senhora ―trepou, como uma macaca
de carvão, no mastro de São Pedro acima‖. Prontamente, pode-se agregar essa
informação aos dois primeiros exemplos mencionados, onde a facilidade que teve
em subir naquele local é tida como semelhante à habilidade do ―macaco‖. Não
obstante, a relação ao primata não vem isolada, mas, pelo contrário, vem
complementada pela especificação indicada pelo adjunto adnominal ―de carvão‖.
Nas análises anteriores, viu-se que nas palavras de Emília o termo ―carvão‖ e as
suas associações à Tia Nastácia tem caráter negativo. Obviamente, não se podem,
simplesmente, interligar os ideais da boneca aos do narrador, por se tratarem de
entidades ficcionais distintas. Ainda assim, a alusão ao ―carvão‖, certamente, tem
por intuito uma marcação racial a partir do critério da ―cor‖. Consequentemente, é
possível destacar a necessidade tida pelo enunciador em unir, na mesma
expressão, o vínculo antes evidenciado sobre a atitude de subir com facilidade – e
uma delimitação de cunho racial. Assim, não se pode evitar uma leitura da locução
que englobe as duas conclusões em apenas uma e compreenda a referência ao
macaco como uma especificação, também, racial.
Outro ponto importante em relação à personalidade de Tia Nastácia está
vinculado à forte caracterização de suas crenças religiosas. Em suas falas,
constantemente, aparecem rogos a divindade cristã, além de considerar, por vezes,
sortílegas as atitudes ou declarações das crianças, com frases como: ―Credo! Até
parece feitiçaria!‖ (LOBATO, 2011d, p. 43). Além disso, em episódios causadores de
medo ou desprezo por parte da personagem, o narrador menciona a sua atitude de
fazer o ―sinal da cruz‖, ora apenas uma vez e sem erros ora repetidas vezes, com
ambas as mãos ou abandonando qualquer ordem pré-estabelecida sobre a
sequência a ser seguida para dito gesto.
162
5.2.2 O branco: autoridade, beleza, inteligência e cultura avançada
Em Emília no país da gramática (1934), ao aprender a teoria sobre os
―Sinônimos e os Antônimos‖. A boneca chega à conclusão de que, então, ―Dona
Benta é Antônima de Tia Nastácia [...], porque uma é branca, e outra é preta‖
(LOBATO, 1982c, p. 35). Como resposta, Narizinho declara que ―as cores delas é
que são Antônimas [...] e não elas...‖ (Idem, Ibidem). Percebe-se que, para a análise
dos opostos, tanto Emília, com o uso aparentemente inconsciente de uma
sinédoque, quanto Lúcia com sua especificação, partem de um pressuposto
fenotípico. No entanto, o argumento utilizado pela menina centraliza a oposição ao
destacar que a diferença é apenas epidérmica, mas ver-se-á, a seguir, que as
incompatibilidades entre as duas personagens ultrapassam as questões físicas.
No apartado anterior, observou-se que Tia Nastácia surge como
representante do ―povo‖ e, por conseguinte, de uma cultura popular de base
fundamentalmente oral. Além dessas características, mas não desassociada delas,
está a percepção de que Nastácia – e por extensão o ―povo‖ – é marcadamente
―ingênua‖ e ―ignorante‖, princípio expresso não só pelos integrantes do Sítio, mas
também por personagens externos, como ―São Jorge‖, em Viagem ao céu
(LOBATO, 2004d, p. 31). Por outro lado, no que se refere à proprietária do Sítio do
Pica-pau Amarelo, essa representação está sustentada por uma cultura ―escrita‖ e
―científica‖. Em grande número de obras27, Dona Benta ganha a voz narrativa e a
atenção das outras personagens centrais – incluindo Tia Nastácia em alguns casos
– o que, numericamente, já demonstra que as possibilidades de defesa de princípios
são díspares.
Em relação ao âmbito literário, vê-se que, em Histórias de Tia Nastácia, a ex-
escrava narra histórias populares e atua como prolongadora da ―cultura oral‖.
Enquanto isso, Dona Benta aparece como defensora de uma ―cultura escrita‖ e, em
extensão, de uma literatura ocidental, através da menção, da defesa e da difusão
das narrativas dessa espécie e de seus escritores, como Esopo, Jean de La
Fontaine (1621-1695), Miguel de Cervantes (1547-1616), Hans Christian Andersen
27
Como exemplos, é possível citar as seguintes obras: Fábulas (1922); As aventuras de Hans Staden
(1927); Peter Pan (1930); História do Mundo para Crianças (1933); Geografia de Dona Benta (1935);
História das invenções (1935); Dom Quixote das crianças (1936); Serões de Dona Benta (1937).
163
(1805-1875), Charles Lutwidge Dodgson (Lewis Carroll) (1832-1898). Ademais, vê-
se que as obras lobatianas em que essa evidenciação está mais explícita são
Fábulas (1922), Peter Pan (1930) e Dom Quixote das crianças (1936).
Dentre essas produções, destaca-se Fábulas pela relação apresentada entre
o povo e esse gênero literário. Nas narrativas contadas por Nastácia, as histórias
populares são consideradas por Benta como uma herança dos colonizadores, as
quais teriam sido, constantemente, modificadas pelo povo no momento de sua
disseminação oral. Entretanto, as ―fábulas‖ contadas por Dona Benta, ainda que
relacionadas ao povo, ganham outras proporções. Segundo a dona do Sítio, quem
―inventou a fábula foi o povo e os escritores foram aperfeiçoando. A sabedoria que
há nas fábulas é a mesma sabedoria do povo, adquirida à força de experiência‖
(LOBATO, 2010b, p. 59). Vê-se que, nesse momento, o ―povo‖ surge como
integrante necessário para a constituição das histórias, pois teria sido ele o real
criador dessas narrativas. Assim, percebe-se que o grupo representado por Nastácia
não coincide com os autores das fábulas aprimoradas pelos escritores, pois as
histórias divulgadas pelos primeiros são colocadas como um legado importado e
desconexo à realidade popular, enquanto as dos segundos, frutos do saber
compartilhado entre os indivíduos, resultam da própria experiência dos mesmos.
Ao levar-se em consideração que, na base das narrativas contadas por Dona
Benta estão as figuras de Esopo e La Fontaine, conclui-se que as concepções
positivas estão direcionadas ao ―povo ocidental‖, ao ponto que as negativas estão
apontadas para o ―povo brasileiro‖. Além disso, as histórias são ora lidas
diretamente dos livros ora narradas oralmente por Dona Benta. Em Dom Quixote
das crianças, com a justificativa de que as crianças não têm a ―necessária cultura
para compreender a beleza da forma literária‖ (LOBATO, 2011a, p. 17), a senhora
decide contar a história com suas próprias palavras. Nota-se a associação feita entre
incapacidade ou desprovimento cultural e a oralidade, o que remete a maneira de
transmissão das histórias populares.
Sobre a receptividade dos ouvintes a respeito não só das narrativas literárias,
mas também das científicas, nota-se o inverso do destacado nos contos de
Nastácia. Em Fábulas, apesar de algumas discordâncias de Emília em alguns
pontos, em geral, a reação das crianças pode ser considerada positiva, dada as
atitudes expressas ao fim de cada história: ―Lindo, vovó‖ (LOBATO, 2010b, p. 23);
164
―Bravos!‖ (p. 48); etc. Além disso, os questionamentos, normalmente, têm por
objetivo esclarecer dúvidas e sempre encontram respostas convincentes de Dona
Benta. O mesmo acontece quando as informações estão voltadas a outros ramos do
conhecimento, como se pode ver na resposta de Narizinho à explicação de sua avó
sobre os ―poços artesianos‖, em Serões de Dona Benta: ―Está claro como água na
fonte [...] A senhora é um poço artesiano de clareza‖ (LOBATO, 1994, p. 29). O
entendimento por parte das crianças é o que objetiva Dona Benta, pois afirma que
tem por intuito dar a elas a ―riqueza de conhecimentos‖ e não a ―material‖ (p. 104).
Não obstante, quando as enunciações de Benta não estão ligadas ao
―literário‖, Tia Nastácia não faz parte do grupo de interlocutores, pois a sua
sabedoria era evidenciada apenas na esfera funcional. Segundo Dona Benta, ―até tia
Nastácia, que Emília chama um poço de ignorância, sabe um monte de coisas
científicas – mas só as sabe praticamente, sem conhecer as razões teóricas que
estão nos livros‖ (LOBATO, 1994, p.11). Vê-se que a separação de Nastácia denota
a existência da oposição entre ―atividade intelectual‖ e ―atividade manual‖, onde,
obviamente, a cozinheira atua como agente da segunda faculdade. Essa bipartição é
perceptível, também, quando analisadas as primeiras saídas das duas figuras
adultas do Sítio. Como destacado anteriormente, Tia Nastácia foi levada contra a
sua vontade á Lua, onde acabou desempenhando a função de cozinheira de São
Jorge enquanto as crianças conheciam os outros planetas. Já Dona Benta teve o
seu primeiro passeio impulsionado por sua própria vontade – a de conhecer ―La
Fontaine‖. Segundo o narrador de Reinações de Narizinho, Benta ―sempre tivera
grande admiração por esse fabulista, que considerava um dos maiores escritores do
mundo‖ (LOBATO, 2011d, p. 261). Além da nova exaltação à literatura europeia,
nota-se que as duas funções narrativas fora do Sítio recém mencionadas remetem a
dicotomia apresentada anteriormente, onde se reforça a oposição entre as duas
atividades.
A notoriedade ocidental, antes mencionada, ultrapassa o ramo literário e
alcança o âmbito histórico-geográfico. Em Geografia de Dona Benta (1935), Benta
conta aos seus fiéis interlocutores a respeito da formação das nações e dos
sucessos e insucessos tidos por cada uma das regiões do mundo. De um lado, os
países nortistas da Europa – em especial França, Holanda, Alemanha e Dinamarca
– são considerados por Dona Benta como regiões de grandes vantagens climáticas
165
e de elevadas civilizações. Além das contínuas exaltações aos europeus do norte,
os Estados Unidos são considerados a ―glória do continente americano‖, pois nele
―tem tudo‖, ―produz tudo‖ (LOBATO, 2004a, p. 52-53). Entretanto, torna-se
necessário destacar a continuidade da declaração de Benta depois de salientar a
―glória‖ desse país, na qual destaca que ―há lá uma barreira entre os brancos e os
pretos, de modo que as duas raças pouco se misturam. Quem é branco fica branco
e quem é preto fica preto‖ (p. 52). A informação sobre a questão racial dos Estados
Unidos demonstra que se trata de uma nação que zela pela purificação racial,
efetivada com a dita ―barreira‖ que a sustenta. Assim, a colocação desse dado ao
lado do enaltecimento anteriormente citado induzem a conclusão de que a esfera
racial tem papel fundamental para torná-lo ―glorioso‖.
Outro país analisado por Dona Benta foi o Japão, nação que, segundo ela,
servia de exemplo de que ―a grandeza dum povo não é a extensão do território e sim
a qualidade da gente‖. Segundo ela, aquela nação vinha surpreendendo o mundo,
mesmo ―com um território pequeno e de más terras, cheio de vulcões, todo
picadinho e, além do mais, sujeito a terríveis terremotos‖ (p. 79). Entretanto, as
qualidades japonesas não são expostas como uma conquista individual, mas como
resultado da busca, no lugar correto, dos ingredientes necessários para o sucesso.
De acordo com Dona Benta, nesse país, ―mandaram alunos cursar as grandes
escolas europeias e americanas, para que aprendessem as ciências lá ensinadas –
e esses alunos vieram depois transformar o país‖ (p.80).
Diferentemente do que nos países anteriores, onde o clima e o território são
postos como elemento importante para o sucesso nacional, agora, apresenta-se
uma região desprovida de qualidades geográficas que possibilitassem sua evolução.
Não obstante, a solução apresentada por Dona Benta é, exatamente, a busca dos
conhecimentos necessários para essa finalidade. Assim, a Europa e os Estados
Unidos são expostos, além de tudo como países detentores do ―grande saber‖. A
associação entre o homem branco e a inteligência é destacada, também, quando a
proprietária do Sítio do Pica-pau Amarelo fala a respeito da Índia e de sua antiga
povoação composta por ―arianos‖ e ―dravidianos‖:
Esses arianos eram gente rija e de mais força mental que os Dravidianos, a gente de pele mais escura que por esse tempo fervilhava nos vales da Índia. E os arianos dominaram a zona inteira apesar da inferioridade numérica. O número nunca valeu muito na vida. Vale o jeito, a esperteza. Um punhado de arianos dominou completamente o enxame de Dravidianos, e para defender-se deles, para evitar que se revoltassem, inventaram o tal
166
sistema de castas, que ainda perdura até hoje. [...] Um meio que os que estavam de cima, e eram poucos, inventaram para conservar em submissão os que estavam debaixo, e eram muitos. Com a sua esperteza natural, os arianos de cima convenceram os dravidianos debaixo de que eles formavam uma raça inferior, maldita, indigna. E proibiram, da maneira mais absoluta, o menor contacto entre as duas classes. Separação ainda pior que a notada por vocês nos Estados Unidos entre os brancos e os pretos (LOBATO, 2004a, p. 99-100).
As palavras de Dona Benta revelam a existência de uma dupla desigualdade
entre os dois povos: os arianos seriam dotados de uma força mental superior aos
dravidianos, enquanto estes possuíam apenas vantagem numérica, incapazes de
triunfar sobre a inteligência dos primeiros. Nota-se que essa aptidão teria
possibilitado o domínio ariano na Índia, através do sistema de castas, criado a partir
do convencimento da suposta ―inferioridade dravidiana‖. A dicotomia ―de
cima/debaixo‖ parece estar relacionada aos povos do norte e do sul do país
respectivamente, mas não deixa de permitir uma associação à disparidade exposta
anteriormente. Em seguida, vê-se que a ―esperteza‖ dos arianos é considerada por
Dona Benta como algo biológico e, por conseguinte, essa avaliação demonstra
concordância com a ideia de ―inferioridade‖ – pelo menos mental – que teria
possibilitado a fundação do sistema de castas indiano. Essa separação pode ser
aproximada às considerações apresentadas anteriormente sobre a questão da
―ciência‖ vista de seu ângulo prático e teórico, responsável pela diferenciação entre
Tia Nastácia e os outros integrantes do Sítio do Pica-pau Amarelo.
A ligação entre o ―ariano‖ e a ―inteligência‖ pode ser notado em A chave do
tamanho, no momento em que Emília apresenta o Visconde de Sabugosa ao ditador
alemão, um dos responsáveis pela guerra que se desenrolava. Nessa narrativa,
todos os indivíduos estavam em tamanhos reduzidos, com exceção do Visconde.
Por conseguinte, a estatura gigantesca do sabugo falante assustou o ―Grande
Ditador‖ e com o intuito de acalmá-lo, Emília salienta: ―[...] não é judeu não,
Excelência. Não tenha medo. O Visconde é arianíssimo. Quando esteve no milharal
que foi o seu berço, o vento dava na sua linda cabeleira louro-platinada‖ (LOBATO,
1982a, p. 68). Mesmo sem mencionar o nome de Hitler ou o regime nazista, as
declarações de Emília tratam de estabelecer a possibilidade de temor do ditador
caso aquele ―gigante‖ fosse um ―judeu‖. Ademais, vê-se que a apesar de sua origem
vegetal, o Visconde é apresentado com características que lhe possibilitavam a
inserção em uma ―categoria racial‖. Antes dessa descrição, a boneca destaca que
167
Sabugosa ―é um grande sábio – hoje o maior sábio do mundo‖ (Idem, Ibidem) – e
essa informação remonta a faculdade mais enaltecida do sabugo vivente nas obras
a respeito do Sítio do Pica-pau Amarelo: sua ―inteligência‖. Por conseguinte,
percebe-se que, assim como ocorre com na definição das características dos povos
―arianos‖ e ―dravidianos‖, a genialidade é associada à ―raça branca‖.
Por fim, o último território relevante a ser citado é a África. De acordo com
Benta, o continente africano é um território ―azarado‖ pelas imensas regiões
desérticas, as quais seriam inúteis para ser aproveitadas pelo homem (p. 103). A
―narradora‖ analisa, também, a variação da cor da pele do que chamou de
―continente infeliz‖, onde o norte apresentava características distintas, como a cor da
pele morena e o cabelo liso, e o centro e o sul seriam constituídos por indivíduos de
―pele preta como o carvão e cabelo pixaim‖ (p. 103-104). Os rasgos peculiares
apresentados ao norte seria resultado da miscigenação entre arianos, semitas e
negros, o que teria afetado, também, algumas características dos povos europeus
próximos à África, considerados por Dona Benta como sendo ―em regra morenos‖.
Consequentemente, quanto mais afastado desse continente, mais se evidenciava a
branquidão epidérmica.
Sequencialmente, ela afirma que se juntou aos males africanos – como os
imensos desertos, a malária e a doença do sono – a ganância dos europeus. O
despertar do interesse ocidental pela África teria sido originado com as grandes
navegações e a descoberta do Novo Mundo. A grande quantidade de trabalho e a
escassez de mão de obra acarretaram na escravização dos índios americanos, mas
a inadmissão por parte dos oprimidos e a consequente falta de substituição desses
trabalhadores teriam exigido a busca de escravos nas terras africanas, por ideia do
padre ―Las Casas‖. De acordo com Dona Benta, nesse momento, ―começa a grande
tragédia da América, a qual daria origem à grande tragédia da África‖ (p. 104). Os
colonizadores teriam considerado os africanos mais dóceis e acostumados à
escravidão, o que se opunha a rebeldia dos índios. Entretanto, sua ―ganância [...] fez
que continuasse a escravidão dos índios e a ela se juntasse a escravidão dos
negros‖ (p. 105).
Vê-se que a descrição de Dona Benta à eclosão da escravidão nas Américas
é norteada pela crítica à ambição europeia. Para os colonizadores, o sucesso de sua
investida no novo continente dependia de braços fortes e a saída encontrada por
168
eles foi exatamente a exigência do trabalho forçado, primeiramente, pelos nativos
daquelas terras e, depois, pelos negros africanos trazidos à força pelo tráfico
transatlântico. As palavras utilizadas por Benta para narrar a forma como aqueles
indivíduos eram tomados de suas terras e trazidos à América mantém a criticidade
anteriormente manifestada ao exagerado interesse dos europeus, mas ganha
sentidos ainda mais reprovadores ao destacar a crueldade com que tudo acontecia.
Igualmente indignados, os ouvintes da senhora demonstram o desprezo àquelas
atitudes, como pode ser visto em uma das reações de Lúcia expostas pelo narrador:
―Que horror, vovó! – exclamou Narizinho, realmente horrorizada‖ (p. 105). Além
disso, Pedrinho destaca a ―vergonha brasileira‖ por ter sido o último país a abolir a
escravatura.
A conclusão de Dona Benta para a postura da África perante isso tudo foi que
ela ―não fez nunca outra coisa senão pagar o crime de ser mais atrasada que a
Europa‖ (p. 106). Assim, a impossibilidade de criar uma grande civilização, devido a
uma aparente estagnação e às adversidades geográficas, havia sido a razão do
domínio europeu. Depois de passadas as atribulações da escravidão e da
colonização, o que havia restado aos africanos era ―a honra de serem explorados
pelos povos da mais alta civilização do mundo ocidental‖ (p. 106). Nota-se que,
nessa inferência, apesar das críticas anteriores à ―ganância‖ e à ―crueldade‖, exalta-
se a ―grandeza‖ da civilização europeia e põe-se a dominação colonial e a
escravização empreendidas por ela como algo do que se orgulhar por parte dos
oprimidos.
Quando se analisou a caracterização dada a Tia Nastácia, citou-se a
informação de que a cozinheira havia sido escrava de Dona Benta. Essa declaração
se encontra no contexto recém exposto sobre o âmbito da escravidão e, depois
desse comentário, a ―narradora‖ continua a manifestar a ligação entre o
despovoamento da África e a ganância europeia. A rápida menção à situação de
Nastácia no passado acabam por tentar centralizar a responsabilidade na cupidez
dos europeus, mas denotam a ideia de assentimento por parte de Dona Benta, a
qual teria sido esposa de um proprietário de escravos. Apesar da manifestação de
que o Brasil teria sido o último país a abolir a escravatura, em nenhum momento o
mecanismo do regime é questionado em relação aos outros territórios. Ainda que
seja um prolongamento dos ideais coloniais, a escravidão por muito tempo serviu de
169
engrenagem da economia agrícola brasileira e a participação de Dona Benta nesse
processo fica clara a partir de sua declaração, a qual designaria, no mínimo, um
assentimento inicial sobre a questão escravista.
Por outro lado, em Minotauro, Benta continua seu julgamento negativo sobre
a escravidão. Dessa vez, suas enunciações aparecem como conselhos dados a
Péricles na viagem feita à Grécia Antiga, com o uso do ―pó de pirlimpimpim‖, a fim de
salvar Tia Nastácia do sequestro. Nas advertências feitas ao líder ateniense em
defesa do trabalho livre, Dona Benta afirma que, por ser escravo, ―um homem não
deixa de ser homem; e uma sociedade que divide os homens em livres e escravos,
está condenada a desaparecer‖. Por conseguinte, ela o aconselha: ―uma sociedade
justa não pode ter escravos, Senhor Péricles, e nela todos os trabalhos serão feitos
por homens livres (LOBATO, 1982e, p. 26). Vê-se que a liberdade é colocada como
fundamental para a modernidade e, em extensão, para o progresso de uma
sociedade. Além disso, Dona Benta destaca que o regime escravista não nulifica o
caráter ―humano‖ dos homens, o que denota um sentimento igualitário em relação
ao direito à liberdade.
A continuidade da antonímia existente entre Tia Nastácia e Dona Benta pode
ser observada a partir da constatação anterior: no passado, Nastácia era escrava e
Dona Benta sua proprietária; agora, a ex-escrava é a serviçal, enquanto a fazendeira
é sua patroa. A sequência da prestação de serviços por Nastácia depois de sua
libertação lembra o sistema paternalista que convenceu muitos libertos a não
abandonarem as fazendas onde trabalhavam. Nesse caso, devido ao falecimento do
marido de Dona Benta, o Sítio do Pica-pau Amarelo aparece orientado por um
regime matriarcal. Tia Nastácia seria uma das ―matrizes adultas‖ do Sítio, como
afirma Marisa Lajolo, mas, além disso, trata-se de mais uma das personagens que
se encontra sob o controle de Dona Benta, pois sua atuação é marcadamente
laboral e caracterizada segundo uma indissociável subalternidade.
De volta a Minotauro, outra comparação cabível é a de que, depois do
salvamento de Tia Nastácia de sua atuação como cozinheira no labirinto da criatura
―meio homem, meio touro‖, Pedrinho levou-a ao encontro de Lúcia e Dona Benta, as
quais estavam participando de um desfile em Atenas. Segundo o narrador, Tia
Nastácia ―devorava com os olhos a formosura daquelas adolescentes vestidas com
tão graciosa singeleza‖ (LOBATO, 1982e, p. 102), dentre as quais encontrou
170
Narizinho. Já Emília conseguiu avistar Dona Benta, ao considerar que ―a velharada
de Atenas é de primeira ordem. Bonitões! E lá está um de óculos. Não é homem,
não... É uma velha. Tal qual Dona Benta... Querem ver que é ela mesma?‖ (p. 103).
Nos dois casos, é possível notar o enaltecimento da beleza grega e,
consequentemente, a inserção das duas personagens àquele grupo acaba por
estender esses encômios igualmente a elas. A associação entre ―ter a pele branca‖
e ―ser belo‖ já havia sido constatada na análise feita sobre a caracterização de Tia
Nastácia. Naquele mesmo contexto, Narizinho também destacou tal ligação ao
salientar a beleza de Branca de Neve e a cor de sua pele: ―Como é boa e linda!‖; e,
no mesmo enunciado, ―como Branca é branca!‖ (LOBATO, 2011d, p. 178). Os dois
trechos citados demonstram a surpresa de Lúcia tanto pela intensidade de sua
brancura quanto a de sua formosura.
Por fim, uma informação relevante que demonstra certa equiparação de
valores entre Dona Benta e Tia Nastácia pode ser observada em A reforma da
natureza (1941). Finda a guerra na Europa, os ditadores, reis e presidentes se
uniram em uma ―Conferência de Paz‖ e, segundo o rei da Romênia, a participação
de representantes da humanidade era a única forma para que entrassem em um
acordo. Sua indicação foi a presença das ―duas responsáveis matronas que
governam o Sítio do Picapau Amarelo‖:
[...] unicamente por meio da sabedoria de Dona Benta e do bom-senso de Tia Nastácia o mundo poderá ser consertado. No dia em que o nosso planeta ficar inteirinho como é o Sítio, não só teremos paz eterna como a mais perfeita felicidade (LOBATO, 2010a, p. 13).
Nota-se a valorização das duas personagens para o alcance do ―bem estar
mundial‖ e a consideração de que Tia Nastácia também era responsável por
comandar o Sítio. Entretanto, novamente, liga-se à Dona Benta o atributo da
inteligência, ainda que à Nastácia seja lhe dado o de equilíbrio nas decisões. Além
disso, as constatações evidenciadas no decorrer desta análise e a afirmação de que
a fazenda de Dona Benta é tomada como o arquétipo de socialização – fundamental
para a ―paz‖ e a ―felicidade‖ – demonstram que, na concepção do rei romeno, ―a paz
eterna e a perfeita felicidade‖ estão relacionadas, também, à subalternidade do
negro e a defesa da superioridade branca em seus mais variados sentidos: cultural,
físico, intelectual, etc..
171
5.2.3 O Sítio e seu criador
Viu-se que a esfera racial na literatura infantil de Monteiro Lobato está
relacionada à caracterização dada às personagens, ora apresentada através das
palavras do narrador ora por suas próprias vozes. Numa mescla entre a ideia de
―raça‖ e a de ―classe‖, a figura do negro, representada por Tio Barnabé e Tia
Nastácia, é associada a uma cultura popular e a crendices em seres mágicos e
sobrenaturais. No que se refere ao cargo de Nastácia, a própria função de
cozinheira talvez não denotasse um sentido negativo caso essa característica não
fosse apresentada com excessos de subalternidade. A personagem lobatiana tem
como principal espaço de atuação a cozinha e as suas incumbências não são
alteradas mesmo quando atua fora das fronteiras do Sítio do Pica-pau Amarelo, seja
como cozinheira de São Jorge, do casamento de Branca de Neve ou como
autodefesa contra um monstro mitológico. Nota-se que, por vezes, esse posto é
apresentado como uma ocupação restritamente de ―negros‖, como se viu em
comentários de Emília e de Pedrinho. Ex-escrava de Dona Benta, a permanência de
Nastácia no Sítio do Pica-pau Amarelo apresenta um servilismo e uma associação
ao sistema paternalista que mantiveram muitos libertos sob a guarda de seus
antigos proprietários depois da abolição da escravatura.
Nos comentários de Emília, a função de serviçal surge como resultante de
um castigo dado por uma fada a uma princesa e essa visão fantástica de penalidade
se estende às afirmações da boneca a respeito da pele negra de Nastácia. Ademais,
percebe-se que, nas declarações de Emília, a coloração da pele da personagem e a
função de cozinheira são responsáveis pela supressão de seus direitos, como o do
descanso ou o de compartilhar o lugar de ouvinte das histórias de Dona Benta.
Constantemente, a boneca põe a diferenciação epidérmica segundo uma
negatividade, como quando concorda com a visão ufanista da pele branca de
Cinderela ou quando questiona a possibilidade de um indivíduo ser ―negro‖ e possuir
qualidades positivas.
A aversão à ―raça negra‖ não aparece somente nas falas de Emília, mas
também nas enunciações do narrador lobatiano, onde é perceptível a ligação entre o
―negro‖ e a ―monstruosidade‖ ou a ―fealdade‖. Ademais, nota-se que a ideia de
desfavor ligada ao negro está presente, também, no pensamento de Nastácia, que
172
chega a declarar-se envergonhada de ter a ―pele negra‖. Além disso, em História de
Tia Nastácia, percebe-se que outras considerações repulsivas se originam de
grande parte das personagens, onde o povo é, repetidamente, descrito como
incivilizado, ingênuo, ignorante e desprovido de aptidão artística. Esses atributos
estariam ligados ao atraso característico do grupo representado por Nastácia, o que
se aproxima das declarações feitas, também, a respeito da África e denota a
existência de uma herança cultural procedente dos ancestrais africanos.
Resumidamente, o negro na literatura infantil de Monteiro Lobato está ligado à
―subalternidade‖, à ―fealdade‖, à ―ignorância‖ e ao ―atraso cultural‖.
Por outro lado, a ―raça branca‖ surge na obra infantil lobatiana com uma
conotação marcadamente oposta a dada à ―raça negra‖. Enquanto as funções
narrativas de Tia Nastácia giram em torno da esfera funcional, Dona Benta tem
como emblema a autoridade de avó e de patroa, como a dona da última palavra, o
que a coloca em degrau mais elevado no que se refere à responsabilidade. Além
disso, a proprietária do Sítio do Pica-pau Amarelo exibe a condição de arquétipo da
sapiência, ou seja, como dotada de todo conhecimento intelectual necessário para
dar retorno a qualquer questionamento, sobre diferentes esferas do saber. Ao ponto
que Nastácia ganha voz com mais profundidade em apenas uma obra, Benta tem o
compromisso de conduzir um número elevado de narrações, na maioria das vezes,
alicerçadas por conceitos científicos, como geografia, física, história etc..
Na obra organizada segundo as histórias contadas por Nastácia, a avó de
Narizinho e de Pedrinho atua como fundamentadora das críticas elaboradas pelas
crianças em direção à cultura popular de base oral e, como empenhada defensora
da cultura escrita, advoga pela leitura dos ―grandes escritores‖ – fundamentalmente,
ocidentais. Assim, a dona do Sítio ocupa a posição de representante da
intelectualidade e de uma cultura transcendente. A associação entre a ―raça branca‖
e a alta mentalidade nos ideais de Dona Benta pode ser verificada, também, em sua
análise sobre o conflito entre os arianos e os dravidianos na Índia. Entretanto, essa
conceituação é observável, também, na caracterização dada por Emília ao Visconde
de Sabugosa, ao afirmar que ele, além de ser ―ariano‖, é o ―maior sábio do mundo‖.
Dentre os pensamentos mediados por Dona Benta, está a exaltação da
beleza grega como modelo fisionômico, o que se opõe as representações do negro
como qualificadamente ―feios‖. O conceito de ―formosura branca‖ aparece tanto nas
173
enunciações de Benta, como nas de Emília, de Narizinho e da própria tia Nastácia e
do narrador lobatiano. Não obstante, não se pode deixar de salientar as constantes
condenações da dona do Sítio ao regime escravista, considerado como desumano e
alheio ao progresso de uma nação, ainda que apresente certa contrariedade com a
informação de que foi, também, uma escravocrata. Por fim, cabe destacar as
glorificações manifestadas em direção às ―grandes civilizações europeias‖, dotadas
de uma cultura ímpar que lhes propiciou essa evolução, onde, nas Américas, o
modelo de progresso está a cargo dos Estados Unidos. Dessa maneira, ao inverso
do que é evidenciado com relação aos ―negros‖, a ―raça branca‖ ganha contornos
positivos ligados à ―autoridade‖, à ―beleza‖, à ―inteligência‖ e à uma ―cultura
avançada‖. Por conseguinte, claramente, nota-se a ideia de ―superioridade branca‖
em detrimento de uma ―inferioridade negra‖ nas representações raciais presentes
nas narrativas do ―Sitio do Pica-pau Amarelo‖.
Chega-se a conclusão de que, mais uma vez, as representações raciais
presentes na obra de Monteiro Lobato estão em consonância com os ideais
manifestados por ele em suas produções não literárias. A esfera racial gira em torno
das quatro definições ligadas a ela por Lobato: a ―cultura‖, a ―classe‖, a ―fisionomia‖
e a ―nacionalidade‖, ora individualizadas ora mescladas. O negro – ou, por extensão,
o povo – é representado segundo um atraso cultural, oriundo de uma herança
africana, desprovido de inteligência e ligado a um atavismo que se prende a
superstições e conceitos ultrapassados considerados antimodernos, os quais lhe
impedem de alavancar a ―evolução‖. Já as características fisionômicas dos negros
são associadas à desfiguração, à monstruosidade ou à fealdade, que muito recorda
a ideia de desvio exposta por Lobato ao considerá-los ―tragédias biológicas‖. A
posição de subalternidade do negro, generalizada em muitos momentos, pode
remeter a categorização defendida pelo escritor em diferentes correspondências,
seja em defesa da eugenia, ou até mesmo ao afirmar que a imprensa não é lugar de
―mulatos‖.
Por outro lado, o homem branco é interligado a uma cultura superior
associada à ciência e aos grandes pensadores, ou seja, como detentor de ―força
mental‖ que excede ao outros ―grupos raciais‖. A menção à cultura europeia e norte-
americana denotam a defesa da capacidade do branco de erguer civilizações
exemplares e que se contrapõe à incivilidade do negro. Por fim, o enaltecimento de
174
uma suposta ―beleza física branca‖ passível de comparação à ―formosura grega‖.
Entretanto, cabe o questionamento: qual a importância dessa analogia entre os
ideias presentes tanto no pensamento de Monteiro Lobato, como nas
representações dadas a suas personagens infantis ou à voz narrativa? Em carta a
Godofredo Rangel, em 28 de março de 1943, o escritor paulista avalia a recepção
infantil de obras literárias:
A receptividade do cérebro infantil ainda limpo de impressões é algo tremendo – e foi ao que o infame fascismo da nossa era recorreu para a sórdida escravização da humanidade e supressão de todas as liberdades. A destruição em curso vai ser a maior da história, porque os soldados de Hitler leram em criança os venenos cientificamente dosados do hitlerismo – leram como eu li o Robinson (LOBATO, 1950b, p. 345-346).
As palavras de Lobato demonstram que a literatura infantil detém o poder de
penetrar no cérebro das crianças de forma distinta de que no do adulto. A ausência
de princípios estruturados facilitaria a instauração de qualquer concepção por
intermédio da obra literária. A menção aos soldados alemães, obviamente, não
aparece como uma defesa de seus ideias, mas para afirmar que a fidelidade desses
militares foi moldada quando eram crianças, através da instauração dos ideais
hitlerianos por intermédio da leitura. Assim, pode-se inferir que um dos objetivos
lobatianos para seu projeto infantil, dentre tantos outros, era a propagação da ideia
de ―superioridade branca‖ e de ―inferioridade negra‖. A demarcação do suposto
atraso da cultura negra/popular reforça a consideração de que essa camada da
sociedade caminhava em direção oposta ao progresso, enquanto, desde o passado,
a cultura branca já vinha demonstrando a habilidade de evolução, de constante
modernização e a defesa dessas premissas seria o caminho acertado para o
desenvolvimento.
5.3 Últimas impressões
Alguns aspectos perceptíveis nos últimos anos da vida de Monteiro Lobato
demonstram algumas variações em seus ideias. Em 1948, publica uma narrativa
literária curta28 onde, com novas perspectivas, ressurge a figura do homem rural
brasileiro: Zé Brasil. Além disso, suas últimas cartas apresentam uma visão, em
alguns aspectos, distinta da que sustentou no passado. Suas declarações,
28
A primeira edição de Zé Brasil, publicada pela Editora Vitória, possuía 24 páginas.
175
resultantes de sua visita à Bahia no final do ano em que lançou Zé Brasil, exibem um
Lobato ainda preso às antigas concepções de ―superioridade‖ e ―inferioridade‖ entre
os homens, mas demonstram o despertar de certo interesse por manifestações da
cultura afro-brasileira. Assim, os próximos subtópicos buscam analisar algumas das
últimas manifestações literárias e epistolares do escritor paulista.
5.3.1 Zé Brasil
A personagem que dá nome à obra é apresentada já nas primeiras linhas de
Zé Brasil, onde o narrador destaca, prontamente, que se trata de um ―pobre coitado‖,
que ―nasceu e sempre viveu em casebre de sapé e barro, desses de chão batido‖
(LOBATO, 2010d, p. 116). O limitado número de móveis se une à restrita
quantidade de materiais para leitura: um guia para a análise das luas, em
consequência das chuvas, e a história do ―Jeca Tatu‖, lançado pelo grupo
―Fontoura‖. Nesse momento, Zé se identifica com a protagonista daquela narrativa,
ao destacar que as mesmas adversidades que acometiam o ―coitado do Jeca‖
também lhe afetavam. Entretanto, nas duas aparições do Jeca nas produções
lobatianas – em Urupês e Jeca Tatu: A ressurreição – mesclavam-se questões de
ordem ―biológica‖, ―cultural‖ e de ―classe‖. No caso de Zé Brasil, a associação à
personagem com a qual se estabelece uma relação intertextual está limitada às
doenças das quais padecia e à extrema pobreza que o assolava.
Segundo o narrador, os homens da cidade tinham uma visão destorcida de
Zé, ao considerá-lo ―vadio, indolente, sem ambição, imprestável‖, pois não tinham
ideia das enfermidades que o afligia (p. 117). A partir da inserção de um interlocutor,
sequencialmente, Zé Brasil expõe as dificuldades encontradas em sua antiga
residência e trabalho como agregado nas terras do Coronel Tatuíra. Segundo a
personagem, o preço pago pela cessão ao dono da propriedade era a divisão dos
bens produzidos a cada colheita, mas uma repartição injusta já que o produtor ficava
sempre com a ―metade mais magra‖ da partilha. Sendo que a ―lei‖ só dava amparo
aos ―ricos‖, a discordância com o processo acarretou em seu despejo da fazenda e a
colocação de outro agregado em seu lugar. Dessa forma, o coronel ia aproveitando-
se do trabalho das mais de cem famílias para quais arrendava parte de suas terras.
176
A partir dessas informações, o interlocutor de Zé Brasil passa a advogar por
um homem que tinha por objetivo mudar a situação do homem rural brasileiro – Luís
Carlos Prestes – destituindo a concepção de Zé de que ninguém no mundo
intercedia por eles. Segundo o interlocutor, Prestes projetava ―acabar com a injustiça
no mundo‖, a partir da descentralização do poder, que naquele momento se
mantinha nas mãos dos grandes fazendeiros, para que houvesse ―centenas de
donos de sítios dentro de cada fazenda, vivendo sem medo de nada, na maior
abundância e segurança‖ (p. 120). Com as vastas extensões de terra do país, seria
possível distribuí-las de forma justa a seus habitantes, ao invés de concentrar essas
propriedades sob o domínio de poucos. Assim, ―no dia em que quem trabalha ficar
dono do produto do seu trabalho tudo entrará nos eixos e todos serão felizes‖ (p.
121). Entretanto, para que tudo aquilo fosse possível, seria necessário que tanto Zé
quanto seus semelhantes trabalhadores rurais apoiassem os ideias de Luís Carlos
Prestes, devido à sua vantagem numérica em comparação aos ―fazendeiros
arrendadores‖. Por fim, Zé Brasil conclui que, por essa razão, ―é que há tanta gente
que morre por ele. Estou compreendendo agora. É o único homem que quer o nosso
bem. O resto, eh, eh, eh! é tudo mais ou menos Coronel Tatuíra‖ (p. 123). Assim, a
protagonista passou a concordar com as considerações de seu interlocutor de que a
única saída para as injustiças sofridas pelo homem do campo seria o apoio a
empreitada de Prestes.
Se sintetizada em apenas uma frase, pode-se afirmar que a narrativa
lobatiana tem como cerne a apresentação das problemáticas do homem rural e a
defesa dos ideais comunistas de Luís Carlos Prestes. Além disso, a menção ao país
no nome dado à personagem central – Zé Brasil – demonstra uma tentativa de
resumir a problemática rural do Brasil na representação dada a apenas um
indivíduo. De uma forma geral, no que se refere ao âmbito racial, a narrativa
lobatiana aparenta ter pouco a oferecer, mas torna-se importante por apresentar
uma terceira caracterização do caipira brasileiro. Enquanto, em Urupê, percebe-se
uma perspectiva determinista sobre esses sujeitos e, em Jeca Tatuzinho, nota-se a
presença de fundamentos sanitaristas a respeito dos mesmos; Zé Brasil tem como
fulcro a ligação entre os infortúnios do homem do campo e o descaso político que
favorece a convergência dos lucros da produção agrícola aos grandes proprietários
de terras. Essa seria, portanto, uma explicação de cunho político-econômico e não
177
―racial‖ para o suposto atraso da população rural brasileira.
Bem como nas narrativas anteriores onde figuram a personagem Jeca Tatu,
Zé Brasil apresenta forte inclinação extraliterária, como pode ser observado na
declaração de Monteiro Lobato em entrevista ao jornal ―Folha da Noite‖: ―Zé Brasil é
isso. É o problema agrário do mundo posto em fraldas de camisa e alcance de todas
as burrices‖ (LOBATO apud ANDREUCCI, 2006, p. 73). Vê-se que Lobato associa,
de forma explícita, os ideais expressos em sua produção à realidade rural mundial,
mas, mais do que acusações referentes ao programa agrário, percebe-se, em Zé
Brasil, uma forte orientação propagandística a Prestes e, por conseguinte, ao Partido
Comunista. Não obstante, em 1947, Lobato afirma não ser comunista, mas tê-lo
―acolhido em seu coração‖ depois que o sistema foi proscrito, perseguido e proibido
e por não aceitar que ―governo nenhum determine as ideias que os homens devem
ter‖ (LOBATO, 1959c, p. 319). Essa contrariedade às imposições do governo de
Eurico Gaspar Dutra (1883-1974), nos anos finais da primeira metade do século XX,
rendeu-lhe a apreensão de Zé Brasil pela polícia, por apresentar propaganda ao
comunismo.
Não obstante, a ligação entre Monteiro Lobato e Luís Carlos Prestes não teve
início com a publicação daquela obra, em 1948. Em 15 de julho de 1945, não pode
comparecer ao comício em homenagem a Prestes, no Estádio Pacaembu, em São
Paulo, mas, pelo telefone de sua residência, enviou uma mensagem aos
comunistas. Dentre as palavras, Lobato destaca:
A nossa ordem social é um enorme canteiro em que as classes privilegiadas são as flores e a imensa massa da maioria é apenas o esterco que engorda essas flores. Esterco doloroso e gemebundo. Nasci na classe privilegiada e nela vivi até hoje, mas o que vi de miséria silenciosa nos campos e cidades me força a repudiar uma ordem social que está contente com isso e arma-se até com armas celestes contra qualquer mudança. A nossa ordem social me é pessoalmente muito agradável, mas eu penso em mim mesmo se acaso houvesse nascido esterco. Essa visão da realidade brasileira sempre me preocupou e sempre me estragou a vida (LOBATO apud CAVALHEIRO, 1956b, p. 225).
A metáfora utilizada pelo escritor paulista lembra a discussão que,
literariamente, apresentaria em Zé Brasil, onde o homem rural aparece como a fonte
de riqueza dos grandes fazendeiros. Segundo Lobato, tanto no âmbito rural quanto
no urbano, o trabalho das classes baixas servia de suprimento às possíveis
dificuldades econômicas da classe alta, proporcionando-lhes o pleno
desenvolvimento. Mesmo ao afirmar que faz parte do ―grupo favorecido‖, Lobato
178
manifesta o desprezo por essa ordem que admite e defende essa desigualdade, a
qual teria lhe preocupado durante ―toda a sua vida‖. Entretanto, muitas das
informações destacadas neste trabalho demonstram que, por diversas vezes, as
avaliações do escritor afirmavam o contrário.
Dentre elas, algumas podem ser resgatadas a fim de comprovar essa
contradição. Primeiramente, a sua análise sobre o Rio de Janeiro em comparação
com a Grécia, onde demonstra um menosprezo pela classe baixa carioca e, ao
destacar a situação do norte-americano, defende a existência de ―verdades
biológicas‖ que estão acima das ―verdades filosóficas‖ criadas artificialmente. Essa
bipartição antecipa a segunda afirmação de Lobato, onde, em Problema vital,
reassume a ideia de que o processo de seleção natural entre os homens teria sido
anulado pela defesa e conservação artificial dos fracos por leis criadas pelos
homens e que contradizem as ―leis biológicas‖. O insucesso da ―seleção natural‖ foi
o que alavancou o surgimento e a disseminação das teorias eugênicas, as quais o
escritor paulista esteve afiliado e, com base nelas, declarou a Renato Kehl que a
sociedade brasileira necessitava ser ―podada‖. Todas essas alegações, que mantêm
como eixo a ideia de dominação ou a dicotomia entre ―superioridade‖ e
―inferioridade‖ na esfera humana, evidenciam que, pelo contrário, a postura de
Lobato no passado se direcionou para caminhos contrários aos que proclama na
mensagem em defesa do Partido Comunista.
A respeito da metáfora antes citada, obviamente, a menção ao ―esterco‖ tem
como intuito referenciar a sua função de ―fornecedor‖ ou ―favorecedor‖, mas também
pode ser considerado segundo uma perspectiva negativa, que se aproxima da
consideração de Lobato sobre o povo carioca como uma ―coisa residual que vem
dos subúrbios pela manhã e reflui para os subúrbios à tarde‖. A comparação entre
parte da população ao ―esterco‖ não está restrita às declarações do criador do Sítio
do Pica-pau Amarelo aos comunistas, mas pode ser verificada em cartas do escritor
a alguns de seus amigos, nas quais avalia o povo baiano, aspecto ao qual se dará
atenção no tópico seguinte.
5.3.2 O enorme canteiro baiano e o candomblé
Em epístola enviada a Arthur Neiva, no ano de 1935, Monteiro Lobato afirma
ter se encantado com a Bahia depois tê-la conhecido em viagem no mesmo ano,
179
mas, ao avaliar a população baiana, demonstra que nem tudo que presenciou lhe foi
agradável, pois, segundo ele, um ―feio material humano formiga entre tanta pedra
velha! A massa popular é positivamente um resíduo, um detrito biológico. Já a elite
que brota como flor desse esterco tem todas as finuras cortesãs das raças bem
amadurecidas" (LOBATO apud NIGRI, 2011, p. 31). Inicialmente, Lobato salienta a
intensa presença de indivíduos ―feios‖ naquele território e, posteriormente, utiliza a
mesma metáfora que empregaria dez anos depois em sua mensagem ao comício no
Estádio Pacaembu. Não obstante, vê-se que a comparação do povo a ―matérias
fecais‖ aparece, antes de tudo, isoladamente e, somente na frase seguinte, a fim de
enaltecer a elite baiana, é que estabelece uma relação metafórica com a ―flor‖.
Nesse sentido, a associação do povo ao ―esterco‖ ganha contornos pejorativos e a
dicotomia ―povo/elite‖ acaba por remeter, também, à oposição ―fealdade/beleza‖,
tudo isso sob uma perspectiva racial, dada a colocação que encerra o enunciado
citado. Além disso, percebe-se que, mais uma vez, ―raça‖ e ―classe‖ ocupam a
mesma significância no pensamento do escritor paulista.
Em dezembro de 1947, novamente, Monteiro Lobato viaja à Bahia para
assistir uma ―opereta infantil‖ baseada em Narizinho Arrebitado, sob os cuidados de
Adroaldo Ribeiro da Costa (1917-1984). No início do ano seguinte, o escritor relata,
ao amigo Artur Coelho, suas (não tão) novas impressões sobre o estado baiano:
Estive na Bahia. Que maravilha a Bahia! 70% da população da capital vive abaixo do mínimo da subalimentação possível, contou-me o Anísio. Forma uma estupenda camada de esterco humano, curtido em 4 séculos de miséria e já chegada ao estado de morredefomismo hindu. Sobre esse esterco doloroso, mas não gemebundo, porque já não tem força nem para gemer, brotam flores lindas. Anísio: uma flor de inteligência. Mangabeira, a flor da eloquência. Costa Pinto, a flor da riqueza. [...] A Bahia é Índia pura. A imensa camada negra do esterco por baixo e rajás e marajás por cima. E não há revolta. Não há ―questão social‖. O esterco ―reconhece o seu lugar‖ e toma a benção das flores. Até eu virei flor lá. Fui para assistir a estréia de Narizinho, uma opereta em quatro atos, que um compositor baiano compôs e o governo do Estado montou, gastando nisso o que salvaria a vida a X moribundos por subalimentação. Ato sábio, pois que adianta protelar a morte dos pobres? Virei flor e a criançada nos bastidores do teatro, para onde fui por curiosidade no fim da festa, rodeou-me e todos me beijaram a mão. E eu, safado como um bispo, dava-lhe a mão esquerda e com a direita desenhava no ar um cruz, enquanto a boca dizia: ―Deus te abençoe!‖ (LOBATO, 1970, p. 347). [grifos do autor]
Prontamente, Lobato destaca a realidade econômica da capital baiana, onde
uma grande porcentagem da população era considerada subnutrida e vivia abaixo
do nível da pobreza, o que, segundo ele, os tornava ―estercos humanos‖. Essa
configuração vincula a classe baixa, predominantemente negra, a algo
180
remanescente, expulso por ser marginal ou desnecessário. Novamente, a relação
entre o povo e as matérias fecais se opõe à elite floral formada por sujeitos cujas
qualidades acentuadas são a ―inteligência‖, ―eloquência‖ e ―riqueza‖, as quais,
juntamente com a formosura que caracteriza a elite, acabam por apontar a
―fealdade‖ do povo, bem como a sua ―ignorância‖ e ―miséria‖. Além disso, chama a
atenção de Monteiro que não há manifestações em prol do questionamento dessas
disparidades, sendo que o povo admite a sua ―inferioridade‖ e aceita a
―superioridade‖ da elite.
Com essas afirmações, Lobato parece pactuar com aquela disposição entre
os sujeitos, o que se repete ao concordar com os gastos do governo naquele evento,
ao invés de aplicar a quantia em benefícios ao povo, pois não haveria motivos para
adiar a morte desses indivíduos. Vê-se que reaparece a ideia da desnecessária
existência desses sujeitos, como quanto comparados ao ―esterco humano‖.
Ademais, o escritor declara também ter se tornado flor, pois foi beijado nas mãos
pelas crianças que atuaram na ―opereta‖, às quais lhes desejou a ―benção‖. Essa
postura de Monteiro Lobato frente às crianças retoma a informação de que o
―esterco toma a benção das flores‖ e, ao considerar-se ―flor‖, por conseguinte,
associa aqueles infantes ao ―esterco‖, os quais acabavam de representar, em
formato teatral, a leitura de uma de suas obras literárias, além de formarem parte do
público leitor que consumia suas produções. A duplicidade de uso da metáfora do
―canteiro humano‖ reforça a conclusão de que o escritor paulista moldava a sua
imagem pública, enquanto a sua imagem privada pode ser compreendida somente a
partir de declarações, até certo ponto, particulares e da comparação feita entre
esses enunciados.
Por outro lado, na mesma carta enviada a Coelho, percebe-se um dado
relevante na análise de Lobato sobre a Bahia. Nos dias em que passou naquele
território teve a oportunidade de assistir a duas cerimônias de ―candomblé‖, religião
de origem africana fundada no Brasil pelos escravos, as quais o surpreenderam:
Vi dois candomblés. Maravilha! O que salva a Bahia é o negro, que formou uma civilização muito mais séria e rica que a do branco. Uma civilização com religião própria, e medicina própria, etc. etc. E sem catinga. Estive até duas horas da madrugada nesses candomblés, onde dançavam e suavam tantas ―filhas-de-santo‖ negras, e não percebi nem um centésimo da catinga da nossa criada aqui – a Benedita (LOBATO, 1970, p. 348).
A declaração do escritor revela um Monteiro Lobato com pensamentos, no
mínimo, diferentes. Com relação à constituição racial, afirma que o ―negro‖ teria sido
181
o único a ser capaz de desenvolver civilização sustentada por uma cultura própria,
fato não realizado pelo ―branco‖, e esse seria o aspecto significativo daquele estado.
Dentre os atributos relacionados àquele grupo, Lobato salienta a ―seriedade‖, a
―riqueza‖ – não material, já que, anteriormente, destacou o acentuado nível de
pobreza do povo, mas por sua grandiosidade – e a ―falta de catinga‖. Em carta a
João Palma Neto, o criador da Emília afirma ter conservado ―no ouvido aquelas
toadas ao som dos atabaques, e no olfato o cheiro humano (não é catinga, o negro
baiano não é catingudo) de mistura com o olor das folhas de pitanga esmagadas‖
(LOBATO, 1970, p. 341). Nota-se que, apesar da exceção dada aos baianos, a
continuidade do conceito de ―mau cheiro‖ dos negros e consequente ―sujidade‖ dos
mesmos.
Por outro lado, o escritor paulista menciona que, dentre as ―manifestações da
civilização negra, tão profundamente africana, o candomblé é o produto supremo‖
(LOBATO apud CAVALHEIRO, 1956b, p. 265). A exaltação geral daquelas
cerimônias se une a saliência dada à atuação de Joãozinho da Gomeia29, o qual, de
acordo com Lobato, parecia a ―a reencarnação dum Príncipe Maia ou Asteca. No
físico. Não sai da cabeça o seu perfil austero, forte, hierárquico, do dia em que o vi
dançar...‖ (Idem, Ibidem). A afirmação de Monteiro permite a associação entre o
comportamento de Joãozinho e um primitivismo interligado à força física, conceito
que pode ser percebido em diferentes declarações de Lobato a respeito do ―negro‖.
Por fim, cabe destacar uma epístola enviada por Monteiro Lobato a Vladimir
Guimarães no final do ano de 1947, na qual destaca a boa recepção de seus
anfitriões baianos e o interesse causado pelos ―candomblés‖. Segundo o escritor,
enquanto não voltasse para um estudo aprofundado daquele aspecto cultural, iria ler
tudo quanto encontrasse sobre o tema. Entretanto, a conclusão da carta parece
deixar um imenso ponto de interrogação sobre a possível mudança de pensamento
a respeito do negro no pensamento lobatiano, sendo que o escritor faleceria por
volta de sete meses após o envio daquela correspondência. Como se notou, a
valorização do candomblé aparece com certa estranheza em meio às infinitas
críticas de Lobato a uma cultura popular atrasada e antimoderna, além da defesa de
uma ―superioridade branca‖, mas a inferência decorrente dessa simpatia impede
qualquer tentativa de explicação. Na carta a Guimarães, antes do adeus, José Bento
29
João Alves de Torres Filho (1914-1971).
182
Monteiro Lobato afirma que, com o candomblé da Bahia, ―dá vontade da gente ser
negro bem preto‖ (LOBATO, 1970, p. 338).
183
6 Considerações finais
Inicialmente, este estudo procurou desconstruir a polêmica criada em torno
dos Pareceres do Conselho Nacional de Educação, com o intuito de averiguar quais
foram os posicionamentos criados como reação a esses documentos. Em
consequência, foi possível identificar a manifestação de distintas vozes sociais e
políticas sobre a problemática levantada, como, por exemplo, escritores, órgãos e
estudiosos pertencentes à área das Letras, instituições ligadas ao Movimento Negro,
além da presença significativa da imprensa para a divulgação das informações a
respeito do andamento da denúncia e da constatação da tomada de
posicionamento, principalmente, pelos portais de notícias em linha. Obviamente,
essas avaliações emanam de diferentes linhas de pensamento e, por conseguinte,
manifestam opiniões que ora se aproximam ora se distanciam. Entretanto, ainda que
apresentem suas particularidades, essas apreciações podem ser classificadas de
acordo com suas matrizes argumentativas.
Apesar da possibilidade de categorizar as opiniões segundo critérios mais
específicos, como a afiliação ideológica ou a área de atuação dos enunciadores,
optou-se pela análise dessas apreciações de uma forma mais ampla, a fim de
perceber a concordância ou não com o juízo de que as obras de Monteiro Lobato
possuem aspectos tidos como preconceituosos e de que essas representações
estão vinculadas aos ideais do próprio escritor. Assim, primeiramente, observou-se a
existência de um conjunto de pronunciamentos que aprovam as acusações
expressas nos Pareceres, além de reforçar essa anuência com interpretações
similares de outras obras lobatianas – não só infantis, mas também adultas – e com
informações biográficas do criador do Sítio do Pica-pau Amarelo que comprovariam
sua crença na ―superioridade branca‖ e na ―inferioridade negra‖, devido à afiliação a
teorias consideradas ―racistas‖.
Por outro lado, notou-se que o volume de declarações contrárias à denúncia é
tão representativo quanto o de apoio à investida do CNE. Nessa direção se
destacam não somente estudiosos da literatura e da linguística, mas também
indivíduos pertencentes ao meio artístico, como escritores e músicos. Uma das
184
justificativas centrais para esses posicionamentos é a de que, contrariamente ao
apresentado nas acusações, o ―negro‖ ocupa espaço tão privilegiado nas narrativas
infantis de Lobato quanto o ―branco‖, tendo como representantes dessa equiparação
as figuras de Tia Nastácia e Dona Benta, cujas funções narrativas teriam, cada uma
a seu modo, uma importância fundamental no desenrolar dos acontecimentos.
Ademais, em alguns momentos, pode-se notar a defesa da importância do escritor
paulista para a cultura brasileira e do contributo deixado por ele para o campo
literário infantil do país.
Por fim, cabe destacar que nem todas as opiniões contrárias aos documentos
do Conselho discordam, totalmente, das informações neles contidos. Nesse
contexto, observou-se uma terceira linha interpretativa, que considera legítimas as
afirmações de que Monteiro Lobato se refere ao negro de maneira depreciativa.
Entretanto, acabam por associar essa postura racial do escritor ao período histórico-
social em que viveu, em que o preconceito estaria intrincado na sociedade de forma
predominante. Essa alegação configura a existência de um determinismo ideológico
ditado por condições espaço-temporais que imporiam a orientação seguida por
Lobato. Os julgamentos guiados por essa perspectiva avaliam as interpretações
negativas sobre o escritor como uma leitura deslocada, ou seja, uma leitura
conduzida por um olhar descontextualizado e norteada por valores contemporâneos
sobre as relações sociais. Além disso, algumas dessas observações relacionam à
denúncia apresentada pelo órgão educativo como uma atitude exorbitante de quem
tudo avalia segundo o critério do ―politicamente correto‖.
Obviamente, essa categorização não apresenta rigidez absoluta e muitos dos
que discordam do teor das acusações relatadas pelo CNE apresentam certas
concordâncias em pontos específicos. Além disso, alguns deles demonstraram
mudança de opiniões sobre Lobato e sua obra, seja no decorrer de uma vida
acadêmica seja no fervor da polêmica contemporânea sobre o pensamento racial do
escritor. Por outro lado, apesar da diversidade de manifestações, percebeu-se que
foram constantes as afirmações de que os ideais de Monteiro Lobato estabelecem
alguma relação com a realidade social em que estava inserido. Não obstante, em
poucos momentos se fez a distinção entre autor e obra, como se a interpretação da
segunda dependesse única e exclusivamente de uma sobreposição à primeira. Viu-
se que a arte não se exime do social no momento da produção, pois seu criador está
185
imerso em diferentes contextos, aos quais irá recorrer para dar forma a sua criação
artística. Entretanto, essa produção não é mero reflexo da sociedade nem dos ideais
do artista, mas surge como uma metamorfose que visa gerar um novo universo
aparte, que já não é mais o real e passa a ser representação.
Em síntese, pode-se afirmar que, atualmente, existem diferentes
interpretações das ideias raciais presentes no pensamento lobatiano e em suas
obras literárias. Diante disso, este trabalho buscou destacar os dados histórico-
sociais necessários para entender em que contexto o escritor paulista viveu e
produziu suas obras, a fim de evidenciar quais eram as discussões existentes sobre
o âmbito racial naquele contexto. Sob essa perspectiva, observou-se que o final do
século XIX e início do século XX deram início a uma vasta produção de teorias sobre
a esfera racial. No Brasil, foram presenciadas as mudanças no regime de trabalho e
no regime político, as quais acabaram por dar pano de fundo ao surgimento dessas
novas concepções.
Viu-se que o processo de transição da escravidão ao trabalho livre ocorreu
com pequenos e vagarosos câmbios. Obviamente, a pressão estrangeira para que
se cessasse o tráfico de escravos e se alterasse a forma laboral influenciou nas leis
que, aos poucos, davam liberdade a certas camadas de indivíduos, como a ―Lei do
Ventre Livre‖ e a ―Lei do Sexagenário‘. Além disso, ao invés de uma luta pela causa
humanista, o abolicionismo surgiu como forma de reivindicação pelo atraso
econômico decorrente da permanência naqueles antigos moldes. Depois da
assinatura da lei de 13 de maio de 1888, tanto o governo que a promulgou quanto os
defensores que por ela lutavam não propiciaram a mínima assistência aos libertos,
os quais acabaram por aceitarar a hierarquização já existente na sociedade. O
servilismo que se enraizou no pensamento de muitos negros depois dos séculos de
escravidão fez com que vários dos ex-escravos se submetessem aos seus antigos
proprietários, enquanto os outros ou continuaram na vida rural com um sistema de
subsistência ou se uniram a classe baixa das cidades em desenvolvimento, vivendo
de forma aglomerada em zonas marginais e insalubres.
Apesar da ascensão social alcançada por uma camada de negros e mulatos
mesmo antes do fim do trabalho forçado, as teorias raciais vigentes reforçavam o
rebaixamento a eles associado em anos anteriores. Paralelas a todas essas
mudanças, distintas teorizações foram elaboradas sobre o terreno racial.
186
Primeiramente, as críticas à constituição racial brasileira, predominantemente
mestiça, consideravam a miscigenação como algo degradante e responsável pelo
seu atraso econômico do país. Depois disso, evidenciou-se o surgimento da solução
brasileira para o ―problema‖ da miscigenação: a própria mistura. Com esse processo,
visava-se o branqueamento da população através do progressivo cruzamento com
indivíduos de pele branca e, para esse fim, instigou-se a vinda de imigrantes
europeus para o território brasileiro.
O controle imigratório demonstrou resultados, mas com efeitos a longo prazo,
o que não satisfez a uma gama de estudiosos, os quais optaram pela defesa da
implantação de uma teoria criada no final do século XIX e que visava a ―purificação
da raça branca‖: a eugenia. Os intelectuais eugenistas tinham por intuito o controle
matrimonial da população a fim de conter o contato entre raças consideradas
díspares e promover a ligação entre indivíduos da ―raça superior‖. Juntaram-se a
eles os sanitaristas, através da busca pelo fim das degradações resultantes das
moléstias adquiridas pelo povo em razão da vida insalubre que levava. Entretanto,
viu-se que essa união não obteve êxito e, por volta do final da década de 1930,
alguns eugenistas, como Renato Kehl, já defendiam a implantação de
procedimentos eugênicos mais extremos, como a esterilização e a segregação dos
indesejados. A teoria que dava amparo científico às premissas de ―superioridade
branca‖ foi abandonada ou mascarada depois de embasar o empreendimento
nazista em busca da purificação da raça alemã.
Foi em meio a essas tensões e a essa diversidade de conceituações sobre a
questão racial que o escritor Monteiro Lobato desenvolveu suas premissas sobre a
esfera racial e produziu sua obra ficcional e não ficcional. Devido ao seu caráter
pessoal, a análise da correspondência de Lobato possibilitou uma abordagem mais
ampla e mais profunda do racialismo presente em seu discurso. Em suas primeiras
missivas, notou-se que o escritor paulista, repetidamente, associava o povo
brasileiro a uma cultura antimoderna, bem como à ―fealdade‖ e à ―sujidade‖, e essa
caracterização aparece, em vários momentos, através da comparação do país com
o continente africano. Ademais, a miscigenação é posta como algo degenerativo dos
aspectos físicos e psicológicos dos indivíduos. Sob essa afirmação, viu-se que o
pensamento do criador do ―Sítio do Pica-pau Amarelo‖ se aproxima das críticas à
mestiçagem presentes nas falas de alguns escritores, como Arthur de Gobineau.
187
De volta às questões fisionômicas, notou-se que a menção à ―feiúra‖ do
povo se reforça quando Monteiro Lobato considera os negros como ―tragédias
biológicas‖, devido à pigmentação de sua pele, o que restabelece a ideia de desvio
de uma suposta normalidade (branca). Enquanto o negro e o mestiço representam a
distorção, a referência aos atributos físicos dos brancos surge através da exaltação
feita pelo escritor à beleza grega. Assim, as informações mencionadas demonstram
que o termo ―raça‖, para Monteiro Lobato, possuía distintas significações e era
usado com os mesmos sentidos dados às características físicas, à cultura ou à
classe. Uma quarta designação ligada ao terreno racial era a nacionalidade, mas,
apesar dessa possibilidade de classificação, essas concepções não atuam
isoladamente e aparecem em constantes diálogos umas com as outras.
Um exemplo dessas combinações foi percebido nas diferentes
representações dadas ao caboclo por Lobato. Sob a figura de Jeca Tatu,
inicialmente, o caboclo foi apresentado como um ―parasita‖ responsável pelo atraso
econômico do país, devido à sua cultura da devastação, suas superstições e sua
inércia laboral. Os artigos onde nasce essa personagem apresentam uma mescla de
características ficcionais e não ficcionais e evidenciam o diálogo que se manterá
entre esses discursos lobatianos em outras duas representações do homem rural.
Junto à união de Monteiro ao movimento sanitarista, Jeca ressurge desde uma nova
perspectiva, a qual coincide com os ideais a que o escritor havia se afiliado. Tanto
em seus enunciados não-literários quanto na ―ressurreição‖ de Jeca Tatu, percebeu-
se a alteração de uma visão determinista a uma possível mudança por intermédio da
higiene. Entretanto, nos artigos sobre o saneamento presentes em Problema Vital, a
revitalização do homem do campo é apresentada como um bem necessário ao
crescimento econômico do país, que clamava por ―braços fortes‖ para o trabalho, e
não ao lado humanitário da ação. Em Zé Brasil, última aparição do homem rural na
literatura lobatiana, a explícita propaganda comunista exposta no diálogo com a
personagem protagonista exibe a mesma harmonia com a solução política crida por
Lobato para o problema agrário.
A aparição do negro na literatura de Monteiro Lobato parece dar continuidade
a essas concordâncias entre os ideais do escritor e os expressos em suas
produções ficcionais. ―Bocatorta‖, por exemplo, está centralizado na dicotomia entre
a repugnância pela fealdade negra e a exaltação da beleza branca. Ademais, o
188
contato entre esses opostos, mesmo que visual, apresenta um resultado trágico.
Essas conclusões sobre o texto lobatiano estão em consonância com a análise de
seu criador sobre a fisionomia humana, além da alusão à inconveniência do contato
entre ―raças opostas‖. Essa valorização do ―branco‖ em detrimento do ―negro‖ é
constatável em outros contos do escritor. Em ―Negrinha‖, as palavras do narrador
demonstram uma condenação à crueldade dos ex-proprietários de escravos, mesmo
após a queda do regime, mas, por outro lado, contrapõe o sentimento de
inferioridade da protagonista, negra e confinada, e a beleza angelical das duas
outras meninas, brancas e livres.
Nos contos de Lobato em que se observa essa base escravista, percebeu-se
repetidas ligações entre o homem branco e a perversidade com os escravos ou ex-
cativos, bem como a associação do negro ao servilismo. Não obstante, além das
próprias definições de ―inferioridade‖ relacionadas ao negro, esses textos
expressam, na maioria das vezes, um aspecto que engrandece a suposta
positividade em ser branco. Em ―O jardineiro Timóteo‖, além da mesma
subserviência ao branco anteriormente citada, o atributo que costura toda a narrativa
é a sensibilidade da protagonista no trato de seu jardim. Entretanto, uma única frase
desconstrói toda aquela caracterização: Timóteo era um negro branco por dentro. A
sentimentalidade da personagem pode ser considerada a função mais relevante e
positiva na narrativa, mas, ainda que referidas a um sujeito ―negro‖, trata-se de um
atributo que teria uma derivação ―branca‖.
A afirmação exposta demonstra nada menos que a possibilidade de
branqueamento moral dos ―não brancos‖. As características fisionômicas e a
condição social do negro poderiam não apresentar mudanças, mas, ainda assim,
seria possível uma alteração em suas características psicológicas que o
aproximariam ao branco. A crença nesse processo de câmbio não se restringe às
qualidades apresentadas pelo narrador lobatiano, mas se manifesta nas palavras do
próprio escritor ao analisar uma personagem de Godofredo Rangel. Viu-se que
Monteiro Lobato afirma, realmente, conhecer indivíduos como ―Zé Correto‖, negros
somente por fora. A correção de ―Zé‖ era exatamente a de saber ser branco, ainda
que apenas moralmente. Mais uma vez, o branco é exposto como modelo de
adequação, o que se repete quando Lobato destaca a originalidade dos pedreiros
negros brasileiros como característica de sua branquidão interior.
189
O confronto entre brancos e negros adquiriu um caráter mais profundo na
literatura de Monteiro em seu único romance, O presidente negro, no qual a questão
racial passa a constituir o cerne do enredo narrativo. As propriedades direcionadas
às personagens Jim Roy, Kerlog e Evelyn Astor tratam de engrandecer as suas
purezas raciais e faz ressurgir a crítica negativista sobre a mestiçagem, a qual teria
sido o empecilho para a evolução do Brasil. A aparição desses indivíduos segundo
uma importância política para o povo demonstra, exatamente, o nível representativo
de cada uma das ―raças‖, como síntese das qualidades e anseios de seus afiliados.
Assim, os brancos norte-americanos são associados a um modelo de formosura e
de inteligência, enquanto os negros estariam ligados à força física, a um espírito
selvagem e ao desejo de ser branco.
Apesar da discordância por parte dos ―não negros‖, os quais consideravam
uma forma de camuflagem racial, a ciência teria resolvido o ―problema da
pigmentação‖. Nessas circunstâncias, não somente a pele, mas todas as
características fisionômicas do branco teriam estariam ligados à normalidade.
Ademais, notou-se a existência de um complexo de inferioridade que impulsionava
os negros a ansiar pela igualação física. Com a eleição de Roy e a revolta dos
partidos derrotados, essa ambição negra pelo branqueamento teria possibilitado a
vingança de Kerlog e o triunfo completo da ―raça branca‖ nos Estados Unidos. Além
disso, o desfecho apresentado demonstra a vitória da inteligência do branco sobre a
força do negro e o predomínio do orgulho racial em detrimento da igualdade de
direitos adquirida pelos negros.
Todas essas informações futurísticas provêm das palavras de Miss Jane, a
qual narra com completa anuência às ações que ocorreriam nos Estados Unidos de
2228. Naquele território, a eugenia alcançaria seu ápice com a instauração de leis
que eliminariam os nascidos com deformidades físicas, controlariam com rigidez a
reprodução e esterilizariam os detentores de taras, dentre as quais se inseriu a
―pigmentação camuflada da pele‖. A segurança com que Jane revelava aquelas
informações convencia Ayrton das teorias de melhoramento e supremacia da raça
branca. Assim, as relações raciais que dão forma ao romance lobatiano estão
moldadas por princípios de perfeição e eficiência, os quais são guiados pelos
fundamentos eugênicos de purificação da raça.
190
Explicitamente, Monteiro Lobato declara aos livreiros a dupla função de seu
romance: a estética e a de semeador das ideias eugênicas. O papel de veiculador
desses ideias é declarado a Renato Kehl, em carta na qual afirma que sua obra é
um ―grito de guerra em prol da eugenia‖. Além desses, viu-se que o escritor avaliava
sua obra segundo um atributo mercadológico, mas não encontrou editor nos Estados
Unidos, por ser considerada demasiado ―ofensiva‖. A ligação entre Lobato e a
eugenia reforça a conclusão de que suas criações literárias apresentam concepções
sobre o âmbito racial que dialogam com os ideais de seu criador.
Em suas produções infantis, foi possível perceber as mesmas oposições entre
o ―negro‖ e o ―branco‖ presentes em sua literatura para adultos. O negro é
representado através das figuras de Tio Barnabé e de Tia Nastácia, as quais são
tidas como detentoras de inúmeras superstições e associadas a uma cultura popular
de base oral. A definição física da ex-escrava parte de diferentes personagens e
também do narrador lobatiano, mas ganha formas mais modeladas nas palavras de
Emília, a qual trata de enfatizar a distinção racial daquela personagem. Em
diferentes momentos, a função de cozinheira e a cor da pele de Nastácia são
apresentadas como o resultado mágico de uma punição, o que indica uma
negatividade em possuir aquelas características epidérmicas. Essa ideia de desvio
da normalidade se une a outras afirmações que caminham na mesma direção, nas
quais o negro é relacionado à monstruosidade e a fealdade. Nota-se que até mesmo
Nastácia analisa a sua distinção física como algo constrangedor. Além disso, viu-se
que, segundo Emília, a definição racial de um indivíduo pode justificar as suas
atitudes ou ditar seus direitos.
A ocupação de Nastácia evidencia, também, certos excessos de submissão,
onde a função de serviçal prevalece mesmo quando a personagem se afasta do
―Sítio do Pica-pau Amarelo―. Sua função é abandonada somente no instante em que
é convocada para contar histórias do folclore popular, já que Pedrinho a considera
como ―sendo o povo‖. Assim, as narrativas de Nastácia são resgatadas e
transmitidas a partir de uma cultura oral, característica que será usada para justificar
as críticas de falta de sentido e as aparentes modificações apresentadas pelas
narrativas devido à falta de registro. Ademais, as avaliações feitas pelas crianças e
reforçadas por Dona Benta relacionam a cultura popular à falta de originalidade e de
aptidão artística. Para a proprietária do Sítio, essas configurações são aceitáveis,
191
pois não se poderia exigir do povo ―o mesmo apuro artístico dos grandes escritores‖,
dada o seu desprovimento da suposta alta cultura.
Já Dona Benta surge como um oposto a Tia Nastácia em diferentes sentidos.
Representante de uma cultura letrada, Benta é propagandista da literatura ocidental
e dos ―grandes escritores‖ e, diferentemente de quando Nastácia adotava a voz
narrativa, seus ouvintes avaliam suas histórias com explícita positividade e com
interrogativas que visam apenas esclarecer dúvidas e não reprovar os resultados.
Não obstante, Dona Benta não é veiculadora unicamente da cultura literária escrita,
mas também de uma sabedoria científica que visa transmitir às crianças com
constância. Dentre esses ensinamentos, destaca-se a exaltação das civilizações
europeias a sua potencialidade evolutiva, o que se relaciona também aos Estados
Unidos juntamente com a informação da existência de uma barreira racial no país
que teria auxiliado em seu progresso. Na análise de Benta sobre os arianos e os
dravidianos na Índia, viu-se que a inteligência estaria biologicamente relacionada
aos brancos, enquanto a vantagem dos negros seria apenas numérica. A ideia de
sapiência branca se manifesta, novamente, na figura do Visconde de Sabugosa,
dotado de uma sabedoria científica e descrito por Emília como sendo ―arianíssimo‖.
No discurso da dona do Sítio, percebem-se repetidas condenações ao regime
escravista, o que, aparentemente, se contradiz a informação de que, no passado, foi
senhora de escravos. Esse dado evidenciaria uma possível mudança de
pensamento sobre aquele processo laboral, mas que não foi manifestada no
momento em que fala sobre o tempo da escravidão. A desaprovação manifestada
por Benta surge, também, quando analisa as concepções que regiam o trabalho na
Grécia Antiga, mas, apesar dessa crítica negativa, essa mesma região é enaltecida
pela intensidade da beleza de seus habitantes. Essa qualidade se vincula à Benta e
à Lúcia no instante em que elas se juntam aos gregos para um desfile e a formosura
antes relacionada aos sujeitos oriundos daquele local é, também, direcionada às
duas personagens. Assim, além da sabedoria, associa-se aos brancos a ideia de
perfeição física. Em síntese, pode-se afirmar que, na literatura infantil lobatiana, o
negro está ligado à subalternidade, à fealdade, à ignorância e ao atraso cultural,
enquanto o branco é associado à autoridade, à beleza, à inteligência e a uma cultura
avançada.
192
No decorrer desta investigação, percebeu-se que Lobato cria na existência de
diferentes concepções a respeito da verdade. A primeira delas estaria fundamentada
em uma autenticidade biológica e imutável sobre a realidade, enquanto a segunda
teria uma base puramente filosófica, criada pelos homens como circunstância para
viver-se em sociedade, em outras palavras, uma ―verdade artificial‖. Essas
―verdades‖ permitiriam uma dupla possibilidade de encarar a relação entre os
homens, o que, no âmbito racial, daria a determinados indivíduos direitos ilegítimos
e contrários à justiça natural. Para Monteiro, o negro e o branco poderiam ter seus
valores equiparados apenas ―filosoficamente‖, pois, ―biologicamente‖, permaneciam
distintos. Essa afirmação permeia não somente o discurso não literário do escritor,
mas também sua produção ficcional.
As análises feitas no decorrer deste trabalho demonstram que, seja através
da caracterização dada às personagens ou pela relação existente entre elas, a ideia
de inferioridade negra e superioridade branca como algo natural permeia a literatura
lobatiana. Concomitantemente, a equiparação dos valores e direitos entre as ―raças‖
surge como algo fundado pela civilização e necessário para a convivência pacífica
entre indivíduos de ―raças distintas‖. Vê-se que Monteiro Lobato defendia a
evolução, o progresso, no anseio de se formar uma grande civilização, mas
repudiava a suposta igualdade racial que impedia a seleção natural e a vitória dos
mais aptos. Os dados apresentados revelam que os ideais raciais presentes na
produção literária de Monteiro Lobato estavam em permanente consonância com os
princípios e interesses do escritor.
Cabe destacar, no entanto, que Monteiro Lobato procurou não expor essa
imagem de maneira tão explícita. Percebe-se a presença de interferências editoriais
para suprimir declarações problemáticas sobre o âmbito racial, além da solicitação a
alguns de seus interlocutores para que não divulgasse aquelas declarações, como
ocorre em carta a Renato Kehl. Além disso, vê-se que os enunciados que
apresentam maior profundidade analítica sobre a questão da ―raça‖ se encontram
em correspondências. O caráter privado que configura essa forma comunicativa
permitiu a constatação de que determinadas afirmações apresentam versões
opostas quando ditas em público, como é perceptível em sua metáfora sobre o
―canteiro humano‖. Assim, a literatura, por seu caráter representacional, possibilitaria
a veiculação desses ideais de forma indireta, com se vê na alegação de Lobato.
193
Por fim, depois da visita do escritor à Bahia nos últimos meses de sua vida,
suas declarações não apresentam elementos suficientes para se afirmar o que
realmente lhe chamou a atenção. Suas cartas revelam um Lobato maravilhado com
um elemento cultural de ascendência africana e praticado, no período, quase que
em sua totalidade, por negros: o candomblé. Obviamente, Monteiro não deixou de
relacionar o negro a um primitivismo e a uma representativa força física, mas
demonstra uma inclinação antes repudiada pelo criador do ―Sítio do Pica-pau
Amarelo‖. Não há informações o bastante para que se conclua que esse encanto
teria um fundamento espiritual e a frase que encerra o último capítulo deste trabalho,
inevitavelmente, deixa a interrogação: será que, naquele momento, Monteiro Lobato
teria iniciado uma reformulação de seus ideais raciais? Não obstante, sua saúde
debilitada e o seu posterior falecimento impossibilitaram que essa pergunta
apresentasse a resposta acertada.
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_____. A reforma da natureza. Ilustrações Paulo Borges. 2. ed. São Paulo: Globo, 2010a.
_____. Aritmética da Emília. São Paulo: Brasiliense, 1982b.
_____. As aventuras de Hans Staden. São Paulo: Brasiliense, 1951a.
_____. Caçadas de Pedrinho. Ilustrações Paulo Borges. 3. ed. São Paulo: Globo, 2009a.
_____. Cartas escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1970. (Série Obras Completas de Monteiro Lobato, v. 16)
_____. Cidades Mortas. São Paulo: Brasiliense, 1959b. (Série Obras Completas de Monteiro Lobato, v. 2)
_____. Conferências, artigos e crônicas. São Paulo: Brasiliense, 1959c. (Obras completas
de Monteiro Lobato, v. 15).
_____. Don Quixote das crianças. Ilustrações Camilo Riani. 2. ed. São Paulo: Globo, 2011a.
_____. Emília no país da gramática. 24. ed. São Paulo: Brasiliense, 1982c.
_____. Fábulas. Ilustrações Alcy Linares. 2. ed. São Paulo: Globo, 2010b.
_____. Geografia de Dona Benta. São Paulo: Brasiliense, 2004a.
_____. História das invenções. 20. ed. São Paulo: Brasiliense, 1982d.
_____. Histórias de Tia Nastácia. Ilustrações Cláudio Martins. São Paulo: Globo, 2009b.
_____. Histórias diversas. Ilustrações Elisabeth Teixeira. São Paulo: Globo, 2011b.
_____. Histórias do mundo para crianças. Ilustrações Manoel Victor Filho. São Paulo: Brasiliense, 2004b.
_____. Ideias de Jeca Tatu. São Paulo: Brasiliense, 1959d. (Série Obras Completas de Monteiro Lobato, v. 4)
_____. Literatura do Minarete. São Paulo: Brasiliense, 1959e. (Série Obras Completas de Monteiro Lobato, v. 14)
_____. Memórias da Emília. Ilustrações Paulo Borges. São Paulo: Globo, 2007a.
_____. Mr. Slang e o Brasil e Problema vital. São Paulo: Brasiliense, 1959f. (Série Obras Completas de Monteiro Lobato, v. 8)
_____. Mundo da lua e Miscelânea. São Paulo: Brasiliense, 1951b. (Série Obras Completas de Monteiro Lobato, v. 10)
_____. Na antevéspera. São Paulo: Brasiliense, 1951c. (Série Obras Completas de Monteiro Lobato, v. 6)
_____. Negrinha. São Paulo: Brasiliense, 1959g. (Série Obras Completas de Monteiro Lobato, v. 3)
_____. O escândalo do petróleo e Ferro. São Paulo: Brasiliense, 1951d. (Série Obras Completas de Monteiro Lobato, v. 7)
_____. O Minotauro. São Paulo: Brasiliense, 1982e.
_____. O Pica-pau Amarelo. Ilustrações Paulo Borges. 2. ed. São Paulo: Globo, 2010c.
_____. O poço do Visconde. Ilustrações de Manoel Victor Filho. São Paulo: Brasiliense, 2004c.
_____. O presidente negro. São Paulo: Globo, 2008a.
_____. O saci. Ilustrações Paulo Borges. São Paulo: Globo, 2007b.
_____. Os doze trabalhos de Hércules. Ilustrações Cris Eich. 2. ed. São Paulo: Globo, 2011c.
_____. Peter Pan. 24 ed. São Paulo: Brasiliense, 1982f.
_____. Prefácios e entrevistas. São Paulo: Brasiliense, 1956b. (Série Obras Completas de Monteiro Lobato, v. 13)
_____. Problema Vital, Jeca Tatu e outros textos. São Paulo: Globo, 2010d.
_____. Reinações de Narizinho. Ilustrações Paulo Borges. São Paulo: Globo, 2011d.
_____. Serões de Dona Benta. Ilustrações Manoel Victor Filho. São Paulo: Brasiliense, 1994.
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