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Um exercício de aplicação empírica de uma parte da obra «A Miséria do Mundo» de Pierre Bourdieu, a par de um levantamento de críticas e complementaridades ao seu quadro conceptual.
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FACULDADE DE LETRAS DA UNIVERSIDADE DO PORTO
LICENCIATURA EM SOCIOLOGIA
ANO LECTIVO DE 2010/11
ANÁLISE, ACTUALIZAÇÃO E CRÍTICA AO ESQUEMA CONCEPTUAL DE
PIERRE BOURDIEU PRESENTE NA OBRA «A MISÉRIA DO MUNDO»
Autor:
Gonçalo Marques Pereira Soares Barbosa
Realizado para a unidade curricular de Correntes Actuais da Sociologia 2,
leccionada pela docente Paula Guerra
Porto, 9 de Julho de 2011
1
Sumário
Índice de figuras ....................................................................................... 2
Índice de anexos ....................................................................................... 3
Notas introdutórias .................................................................................... 4
I – A disputa dos campos entre grupos de imigrantes e de locais ............................. 5
1 – O posicionamento dos imigrantes e dos locais nos campos ................................. 5
2 – Como se originaram os posicionamentos nos campos? ....................................... 7
2.1 – A vinda dos imigrantes e a criação de espaços de diversidade étnica e
cultural .............................................................................................. 8
2.2 – O confronto entre imigrantes e locais nos campos ................................... 10
2.3 – A derrota dos imigrantes nos campos ................................................... 11
II – Os media: reprodutores da luta de campos? ................................................ 15
1 – Análise tabular das notícias ................................................................... 19
2 – Uma intemporalidade empírica da teoria bourdieusiana .................................. 19
2.1 – O Estado como fonte de intervenção nas relações nos campos ..................... 19
2.2 – O impacto dos imigrantes na demografia .............................................. 20
2.3 – Acentuação do carácter conflitual nas comunidades imigrantes ................... 21
2.4 – Novas nuvens temáticas sobre a imigração aplicada à teoria bourdieusiana ..... 22
III – Oposições e complementaridades à teoria de Bourdieu ................................. 24
1 – O habitus em análise ........................................................................... 24
2 – O papel dos media .............................................................................. 27
3 – A educação e a influência societal ........................................................... 28
4 – Crime e desvio ................................................................................... 29
5 – Segregação étnica............................................................................... 32
Considerações finais.................................................................................. 35
Referências bibliográficas consultadas ........................................................... 36
Anexos .................................................................................................. 39
2
Índice de figuras
Figura 1
Espaço de posições sociais ........................................................................... 5
Figura 2
Teia conceptual de Bourdieu aplicada à problemática dos imigrantes ..................... 14
Figura 3
Teia conceptual de Bourdieu aplicada à problemática dos imigrantes – adaptada às
novas temáticas ....................................................................................... 23
Figura 4
Complementaridades entre Giddens e Bourdieu – habitus e segurança ontológica ...... 25
Figura 5
Complementaridades entre Giddens e Bourdieu – capitais e globalização ................ 26
Figura 6
Teia conceptual de Bourdieu aplicada à problemática dos imigrantes – adaptada a novos
autores .................................................................................................. 34
3
Índice de anexos
Anexo 1
Ficha de leitura da obra «A Miséria do Mundo»................................................. 39
Anexo 2
Notícia n.º 1 – Sarkozy lidera com mão de ferro um Estado enfraquecido ................ 82
Anexo 3
Notícia n.º 2 – O contágio do medo ................................................................ 85
Anexo 4
Notícia n.º 3 – Imigração, inevitável e indispensável .......................................... 88
Anexo 5
Notícia n.º 4 – Guerras de línguas, poder e fronteiras ......................................... 91
Anexo 6
Notícia n.º 5 – O falhanço da integração ao estilo sueco ...................................... 94
Anexo 7
Notícia n.º 6 – Os turcos ainda assustam os austríacos ........................................ 97
4
Notas introdutórias
Esta recensão crítica foi produzida no âmbito da unidade curricular de Correntes
Actuais da Sociologia 2, do 1.º ciclo de estudos em Sociologia da Faculdade de Letras da
Universidade do Porto. Estando inserida na abordagem teórica aos três autores de síntese
contemporâneos com maior relevância na sociologia actual, Norbert Elias, Anthony Giddens
e Pierre Bourdieu, pretende-se aqui, em particular, um exercício teorico-empírico aplicado
a este último autor, estando organizado em três momentos.
Primeiro, iremos recorrer a uma das obras centrais deste sociólogo francês, e desde
logo realizar uma análise conceptual a alguns capítulos específicos da mesma. Optou-se
assim por abordar A Miséria do Mundo1, de Pierre Bourdieu2. Será analisado o bloco de
entrevistas do capítulo O espaço dos pontos de vista. Para a abordagem a esta obra,
alicerçamo-nos de uma ficha de leitura, que pretende constituir uma base de dados com o
levantamento das ideias e citações centrais presentes nas páginas do livro em análise, e
que se encontra presente no anexo 1. Uma vez que nunca há uma componente teórica
explicitamente presente na obra, optamos por tentar demonstrar como as várias temáticas
expostas nessas entrevistas se enquadram na teia conceptual proposta por Bourdieu.
Num segundo momento, partimos para uma demonstração empírica da teia
conceptual deste autor, recorrendo a um conjunto de seis notícias actuais. Pretende-se
aqui perceber até que ponto a teoria bourdieusiana mantém a sua aplicabilidade na
actualidade, ou até que ponto será necessária uma expansão ou revisão desse modelo.
Um último capítulo, em jeito de balanço aos dois anteriores, pretende constituir
uma pequena base de dados de propostas teóricas de outros autores, que possam tanto
servir como crítica ao quadro teórico de Bourdieu, ou como meios de complementaridade à
proposta deste sociólogo de síntese.
1 A Miséria do Mundo: obra publicada em 1993, constitui uma compilação das contribuições de 18 investigadores que, em 564 páginas, apresentam tudo aquilo que é possível realizar-se com entrevistas. Ao longo de seis blocos temáticos, a obra apresenta um conjunto de fontes de miséria social na população. 2 Pierre Bourdieu (1930-2002): sociólogo e antropólogo cultural francês, que recolheu boa parte do seu quadro conceptual durante o seu serviço no exército francês na guerra da independência da Argélia. Desenvolveu conceitos como habitus e campo e redigiu obras emblemáticas como A Reprodução, Razões Práticas, ou A Distinção.
5
I – A disputa dos campos entre grupos de imigrantes e de locais
1 – O posicionamento dos imigrantes e dos locais nos campos
Tendo em conta que entendemos campo como um «[…] estado de relações de força
entre agentes e instituições envolvidos numa luta, ou, se se preferir, é uma distribuição
do capital específico a qual, acumulada no curso de anteriores lutas, orienta estratégias
futuras.» (cit. Por Casanova, 1995, p. 66), iremos aqui encarar um campo particular e
genérico de disputa. Considerando as dinâmicas imigratórias que muito caracterizaram e
ainda caracterizam a França, poderemos considerar que emerge neste país um conflito
geral pelos benefícios socioeconómicos. Como se distribuem os agentes sociais deste país
no espaço social? De acordo com Pierre Bourdieu, «[…] os agentes distribuem-se, na
primeira dimensão, segundo o volume global do capital que possuem sob as suas diferente
espécies e, na segunda, segundo a estrutura do seu capital, quer dizer, segundo o peso
relativo das diferentes espécies de capital, económico e cultural, no volume total do seu
capital.» (Bourdieu, 1997, p. 7). Ora, neste caso concreto, poderemos localizar da seguinte
forma, genericamente, os diferentes grupos da população, correndo o risco de simplificar
em demasia o contexto francês:
Figura 1
Espaço de posições sociais
Adaptado de Bourdieu, Pierre – Razões Práticas, p. 8
6
São os imigrantes que se apresentam na posição menos favorável. Tipicamente, são
os que apresentam uma menor quantidade de capital total e, em termos relativos, o
capital económico é muito diminuto. O exemplo mais marcante do baixo nível deste tipo
de capital é o relatado pela dona Tellier, que viu a sua loja de desporto totalmente
vandalizada e assaltada pelos jovens do seu bairro; a loja foi vista como um insulto por
apresentar bens inalcançáveis a esses jovens, bens que simbolizavam um nível económico
que eles não possuíam; em resultado disso, «[…] esses jovens que vinham, eles vinham
procurar roubar, mais as palavras, mais os insultos. Agressivos, muito, muito agressivos.»
(Bourdieu, 1993, p. 122). Quanto ao nível de capital cultural, poderemos destacar o
testemunho de Ali, um argelino que abandonou prematuramente a escola, por influência
dos seus colegas de bairro, que nunca iam à escola: «Sim, mas se você aprendesse e tudo,
bem, você se sairia bem. Sem problema. Mas a gente preferia divertir-se.» (Bourdieu,
1993, p. 88), conta Ali ao entrevistador.
No lado oposto, temos os cidadãos locais, e em particular aqueles que se localizam
nas zonas mais centrais das cidades, que apresentam os maiores valores de capital social e
económico. Numa situação intermédia, podemos encontrar os cidadãos locais de França,
mas que vivem nos bairros sociais onde tipicamente são concentrados os imigrantes. Estes
franceses caracterizam-se por uma maior debilidade do ponto de vista do capital
económico, apresentando um peso relativo significativo do capital cultural, já que têm
condições mais favoráveis para a obtenção de diplomas e certificações, em particular com
o factor língua comum.
No esquema, foram ainda distinguidos dois grupos de imigrantes, que foram
múltiplas vezes referidos de forma subtil pelos entrevistados. O Sr. Hocine, tunisino,
refere que está sempre pronto para defender aqueles que relatam problemas sobre
imigrantes, e acrescenta que «[…] os imigrantes não são os espanhóis, não são os
portugueses, não são os turcos, não são… Os imigrantes são os norte-africanos, são os
tunisianos, os argelinos, os marroquinos!» (Bourdieu, 1993, p. 131). Já Maria, espanhola,
refere que as posturas dos argelinos diferem significativamente da sua, no que concerne ao
empenho em trabalhos vistos como menores, nomeadamente ser operário, ou nos
comportamentos de natalidade, com os argelinos a terem tipicamente famílias muito
numerosas. Assim, desta forma, os entrevistados transmitiram a ideia de que um grupo de
imigrantes, os europeus, por uma maior proximidade e capacidade de adaptação à cultura
francesa, apresentariam assim uma melhor posição no campo do que os restantes
imigrantes; os primeiros têm uma maior quantidade de capital cultural e social, o que se
traduz num maior valor do capital global.
7
Deveremos destacar ainda a forte tendência reprodutiva deste posicionamento nos
campos, já que tipicamente as segundas gerações de imigrantes não conseguem engajar-se
em movimentações significativas neste campo. Os jovens deparam-se com sérios problemas
de adaptação ao sistema de ensino e de entrada no mercado de trabalho, com elevadas
taxas de desemprego. Este último factor foi referido por múltiplos entrevistados, como é o
caso de Sylvie, francesa de origem, que reconhece o quanto os jovens sofrem com o
desemprego; esta jovem, bem como o seu marido Thierry, compreendem que «[…] o
desemprego pesa sobre esses jovens de uma maneira […] mais aguda que sobre eles e
reconhecem que esses comportamentos desviantes são causados principalmente pela
situação de anomia criada pela imigração […]» (Bourdieu, 1993, p. 144). Foi possível
observar em todas as entrevistas uma ausência de significativos movimentos de ascensão
social; a reprodução social foi a nota dominante, o que vai de acordo com o que Pierre
Bourdieu defende: a existência de uma elevada carga reprodutiva nos campos.
De tal forma se manifesta a superioridade quantitativa dos vários tipos de capitais
nos cidadãos locais face aos imigrantes que poderemos considerar que ocorre uma
manifesta homologia dos campos, isto é, os agentes sociais que se apresentam no topo de
um campo, como por exemplo, o económico, estarão também nas melhores posições no
respeitante aos outros campos, algo que «[…] reflecte uma constituição estrutural similar
nos diferentes campos […]» (Casanova, 1995, p. 66). Se individualizássemos o espaço social
apresentado acima nos vários campos cultural, social, económico, entre outros, iríamos ter
sempre posicionamentos semelhantes, com os imigrantes a serem posicionados no lado
inferior dos vários campos, em oposição aos cidadãos locais, que emergem sempre no lado
superior dos mesmos, já que possuem maiores quantidades de dos vários tipos de capitais.
2. Como se originaram os posicionamentos nos campos?
Descrito o estado actual desta disputa pelos campos, importará perceber como se
originam estes posicionamentos, como é que os agentes sociais chegam a uma determinada
posição no espaço social, isto é, como se realiza a «[...] correspondência, mais ou menos
estreita, entre uma certa ordem de coexistência (ou de distribuição) dos agentes e uma
certa ordem de coexistência (ou de distribuição) das propriedades.» (Bourdieu, 1998, p.
119). Podemos descrever em três momentos o processo de disputa dos campos, tal como
denuncia o esquema síntese que está presente no final deste capítulo (figura 2), e que
apresenta os conceitos chave deste autor, interligando-o com algumas componentes desta
problemática dos imigrantes em França.
8
2.1. A vinda dos imigrantes e a criação de espaços de diversidade étnica e cultural
Quando os imigrantes chegam aos bairros sociais, vêm dominados por sonhos de
ascensão social. São muitos os que emigram para França na expectativa de melhorar as
suas condições de vida, ou então em movimentos de fuga de países que não puderam dar-
lhes a vida que eles ambicionavam. É o caso da Maria, uma mulher espanhola que
abandona a sua aldeia sem ainda nem ter completado 18 anos, por falta de emprego na sua
aldeia.
Do ponto de vista económico, estes imigrantes perspectivam empregos que lhes
permitam acumular capital económico e ascender socialmente. Mas deparam-se com
desemprego e com actividades profissionais que não lhes garantem significativa margem de
mobilidade, como operários em fábricas, ou porteiros nos bairros sociais. Muitos
imigrantes, desmotivados, não se sentem incentivados a ir para esses empregos que estão
associados a baixos rendimentos e fracas condições laborais.
O alojamento é normalmente um factor de instabilidade para os entrevistados, que
descrevem a forma como passaram por múltiplos locais até chegarem àqueles em que se
encontravam no momento da entrevista, normalmente bairros sociais. É o caso da família
argelina Ben Mirould: primeiro estiveram numa casa que se encontrava ao abandono, e que
foi oferecida de forma gratuita pelo patrão a título temporário, depois transitaram para
uma favela e só após várias diligências com os assistentes sociais conseguiram um
apartamento apertado de Paris.
Do ponto de vista da educação, a socialização primária exercida pelos pais
imigrantes aos seus filhos é objecto de algumas críticas. A viverem num contexto
socioeconómico complexo, estes filhos necessitariam de uma educação mais firme, que
impeça que estes sigam caminhos de marginalidade ou crime. Thierry e Christian, de
origens populares, vêem na sua rígida educação o motivo pelo qual não caíram mais baixo
na sua trajectória social. O Sr. Leblond, francês de origem, acha que o centro dos
problemas de coabitação reside nos jovens, «[…] condenados à privação e à pobreza, e,
sobretudo, no ambiente escolar, para o qual nada os prepara, aos revezes e à humilhação
[…] escapam, às vezes completamente, como os dois filhos mais velhos de Amezziane, ao
controlo familiar.» (Bourdieu, 1993, p. 23).
A vinda de várias comunidades de imigrantes de múltiplos países faz com que
frequentemente numa mesma zona residam pessoas de várias etnias e nacionalidades,
fomentando espaços de diversidade cultural. As diferenças culturais são uma frequente
causa de fricção entre os residentes dos bairros: as tradições de cada país por vezes
9
causam fricção e incompreensão entre os vários membros. O casal Leblond, família de
origem francesa, descreve como é por vezes complicado conviver com os argelinos,
especialmente na altura do Ramadão, por causa do barulho: «Os jovens berram. É preciso
ouvi-los reclamando. E depois, eles começam a viver às dez horas da noite, então quando
você quer ir dormir, bem, palavra de honra… você tem direito a todo barulho…» (Bourdieu,
1993, p. 29). Já a família argelina Ben Mirould refere que as pessoas não compreendem as
constantes movimentações de pessoas em sua casa: «Veja, a minha irmã mais velha mora
na casa dela e, é claro, ela passa aqui todos os dias, vêem-na sempre aqui, ela vem ver os
pais, é normal! Assegurar-se que tudo vai bem, às vezes dorme aqui. Todos temos um
quarto ou uma cama aqui. No entanto, ela tem a casa dela… É assim entre nós: não
abandonamos nossos pais ou simplesmente ir vê-los todo dia 30 de Fevereiro (…)»
(Bourdieu, 1993, p. 43). A dona Meunier, residente desse bairro, transpira justamente essa
visão de desconfiança: «Com eles, nunca se sabe quantos estão. Quem faz parte da
família, quem não faz parte da família. É um vai-e-vém que não acaba mais. Há sempre
uma garotada. Eles estão em toda a parte, na rua, na praça; eles gritam, eles choram.»
(Bourdieu, 1993, p. 48).
Na escola, as limitações e o desinteresse são uma ameaça constante. Alguns cedem;
Ali, descendente argelino, enfrentou grandes dificuldades na escola, a língua era uma
barreira para aprender a ler: «[…] ignorando completamente o francês quando de sua
entrada tardia para a escola e só falando árabe em família […], ele tem muita dificuldade
em aprender a ler […]» (Bourdieu, 1993, p. 82); deixou de ir à escola quando entrou numa
turma com alguns colegas do seu bairro, nenhum deles ia às aulas e os professores pareçam
não se importar muito com esse facto. Outros realizam esforços sistemáticos para
garantirem que os seus filhos consigam um percurso escolar de sucesso; é o caso de Maria,
a imigrante espanhola, que relatou como agiu quando percebeu que um dos filhos estava
em risco de reprovar: «Ele passou raspando e eu já fui chamada duas, três vezes porque
ele começava a não mais respeitar os professores e tudo isso. Eu lhe disse, “ah! bom?, eu
lhe passei um sabão e acreditava que isso ia melhorar; ele terminou a sexta rente, mas
terminou.» (Bourdieu, 1993, p. 109). Do ponto de vista do capital escolar poderemos
compreender que genericamente se denota um desinteresse e afastamento dos jovens
imigrantes ou filhos de imigrantes face à escola, algo que se acentua pelos contextos de
socialização em que estes se encontram, que acentuam essa tendência de absentismo e
abandono escolar.
10
2.2. O confronto entre imigrantes e locais nos campos
Com todas as características e distâncias ao nível social, cultural, escolar,
económico ou familiar que foram elencadas no ponto anterior, geram-se diferenças
significativas entre imigrantes e locais ao nível do habitus, isto é, «[…] o modo como a
sociedade se torna depositada nas pessoas sob a forma de disposições duráveis, ou
capacidades treinadas e propensões estruturadas para pensar, sentir e agir de modos
determinados, que então as guiam nas suas respostas criativas aos constrangimentos e
solicitações do seu meio social existente.» (Wacquant, 2004, p. 36). É este habitus que
vai influir fortemente nos posicionamentos dos agentes nos campos sociais, já que é o
responsável pelas práticas sociais dos agentes nos vários campos. Aqui entramos no
segundo momento da problemática dos imigrantes: os confrontos nos campos.
Os jovens, globalmente desinteressados e desmotivados, apresentam um baixo
investimento nos campos e uma fraca illusio. A illusio corresponde ao «[…] facto de se
estar envolvido no jogo, tomado pelo jogo, de se crer que o jogo compensa, ou, para dizer
as coisas simplesmente, que vale a pena jogar.» (Bourdieu, 1997, p. 106). Será o próprio
habitus destes jovens que lhes levará a não querer investir nestes campos, a considerarem
que não vale a pena investir na escola ou a procurar um emprego. Influenciados pelos seus
grupos de amigos, pouco incentivados pelos professores ou pouco orientados pela família,
não vêem interesse no jogo de disputa dos campos.
Na disputa pelos campos sociais, vale tudo. E por vezes, para satisfazerem os seus
próprios interesses individuais, os agentes poderão mobilizar-se contra outros indivíduos.
Foi o que aconteceu com a família de Françoise, vítima da ambição dos seus vizinhos
portugueses, que aspiravam ampliar o seu capital económico ao acrescentar um segundo
piso. A família de Françoise logo se mobilizou contra este projecto, mas «Um pouco de
desordem não assustava este vizinho importuno; com a reprovação geral, seu pequeno
jardim logo é transformado em galinheiro e pocilga; ele não hesita em usar a janela do
litígio para jogar lixo, ou simplesmente roubar os tomates carinhosamente plantados por
Thierry.». Apesar de Françoise ter chamado as autoridades e sensibilizado os vizinhos a
família de portugueses persistiu, estendendo mesmo a disputa do campo à escola, com os
filhos dos portugueses a fazerem bullying à filha de Françoise. A situação ficou de tal
forma problemática que a família sentiu necessidade de ceder e mudar-se.
11
2.3. A derrota dos imigrantes nos campos
O confronto dos grupos sociais nos campos gera representações de uns grupos sobre
os outros. Essas representações são fortemente baseadas no próprio habitus dos agentes
sociais, já que é este código de leitura que definirá aquilo que os outros grupos fazem
como bom ou mau, com valor ou sem valor, digno ou não digno.
Um dos grupos de socialização que contribui de forma significativa para a formação
destas representações sociais é os meios de comunicação social, que frequentemente, na
opinião dos moradores dos bairros sociais, deturpam a imagem real dessas áreas,
exagerando no grau de violência e conflito a que esses são sujeitos: «[…] além de palavras
convencionais, como “guetos, cidades-dormitório, emigrados sujeitos a constrangimentos,
polícia selvagem, violência dos subúrbios, etc.” há uma realidade mais banal […]»
(Bourdieu, 1993, p. 72). Apenas os jornalistas locais têm a capacidade de dar um retrato
mais fiel; por outro lado, os habitantes dos bairros sociais estão impotentes: «Os
dominados são os menos aptos a poderem controlar sua própria representação. O
espectáculo de sua vida quotidiana não pode ser, para os jornalistas, senão ordinário e sem
interesse. Porque eles são desprovidos de cultura, e além disso incapazes de se exprimir
nas formas requeridas ela grande mídia.» (Bourdieu, 1993, p. 66).
Essas representações sociais, consolidadas pelo habitus traduzem uma derrota nos
campos, em particular no campo do poder simbólico, que no fundo é uma representação
do fraco valor dos capitais que os imigrantes possuem nos restantes campos. Percebe-se
assim que os quadros de valorização dos capitais, em todas as suas variantes, são benéficos
à cultura francesa e aos seus cidadãos de origem, prejudicando os capitais dos imigrantes e
das suas gerações, que possuem tipos de capitais com um menor valor nesse país.
Estes sistemas simbólicos acabam por conferir uma legitimação das relações de
dominação, gerando assim uma violência simbólica, e que corresponde fundamentalmente
ao terceiro e último momento. «O efeito de dominação simbólica (de sexo, de etnia, de
cultura, de língua, etc.) exerce-se não na obscuridade das disposições do habitus, onde
estão inscritos, os esquemas de percepção, de apreciação e de acção, que fundam, aquém
das decisões da consciência e dos controlos da vontade, uma relação de conhecimento e de
reconhecimento práticos profundamente obscura para si própria.» (Bourdieu, 1998, p.
151). Importa aqui destacar que os imigrantes não se deixam dominar de forma voluntária
face aos cidadãos locais: «[…] esta submissão nada tem de uma relação de “servidão
voluntária” e esta cumplicidade não é concedida por meio de um acto consciente e
12
deliberado.» (Bourdieu, 1998, p. 151). O habitus fornece uma inércia a esses imigrantes,
fazendo com que estes interiorizem e reproduzam essa condição de dominado.
O principal elemento simbólico do imigrante é o seu próprio corpo. Será adequado
falarmos aqui de uma hexis corporal, «O corpo está no mundo social, mas o mundo social
está no corpo […]» (Bourdieu, 1998, p. 135). O corpo é o principal denunciador da condição
de imigrante: a cor da pele, os traços faciais, são elementos que falam mais alto, por mais
que o imigrante os queira silenciar, eles despertam de imediato a estrutura, que se levanta
para lhes incutir disposições ou representações sociais.
Tanto a violência simbólica, gerada pelo poder simbólico, como a hexis corporal
geram práticas sociais específicas em torno dos imigrantes. Uma delas é uma
incompreensão e simplificação que os cidadãos locais realizam face aos imigrantes,
encarando-os sempre como meros imigrantes, mesmo quando já são descendentes,
continuando a serem tratados como se não tivessem a nacionalidade francesa: «Se há algo
a compreender em tudo isso é que eles simplesmente gostariam que não estivéssemos
aqui. Ou, se estamos, é preciso que a gente não seja visto, que não se mostre.» (Bourdieu,
1993, p. 44), diz o filho.
Há também um efeito de segregação espacial destes dois grupos, já que
tipicamente os organismos de gestão autárquica optam por concentrar as famílias
imigrantes num só local, juntando-se assim todas as famílias vistas como problemáticas
num mesmo sítio, normalmente num bairro social. O Sr. Leblond é um crítico dessa
tendência de concentração: «Ela alojava todas aquelas pessoas juntas, e não era isso que
deveria ter sido feito com a Familiale nem com a prefeitura; aquelas pessoas deveriam ser
espalhadas um pouco, habituadas um pouco a viver, não estão mais no mato.» (Bourdieu,
1993, p. 31), relata o francês.
O racismo é um conceito que está sempre presente no discurso dos entrevistados,
seja de forma explícita ou implícita. Os entrevistados medem as palavras, tentam
esquivar-se de afirmações que possam parecer preconceituosas, mas ao mesmo tempo não
deixam de accionar um conjunto de inculcações relativas aos outros grupos. Dona Meunier,
residente de um bairro social, comenta as mudanças nos residentes desse espaço: «Não é
pelo racismo que eu digo que há aqui cada vez mais famílias imigradas, famílias árabes.
Não sei o que elas são, argelinos, marroquinos; famílias de norte-africanos. E isso não
ajuda a arrumar as coisas, para tornar o bairro agradável.» (Bourdieu, 1993, p. 46). Há
ainda quem acuse outros de racismo: a Maria, espanhola, considera que os árabes são mais
racistas que os restantes, «Eles, ás vezes, chegam à porta e, quando vêem muitos
europeus, não entram. É preciso que eles estejam em maioria, os árabes.» (Bourdieu,
13
1993, p. 112). Dona Meunier, uma vizinha francesa de um bairro social, argumenta que os
filhos dos imigrantes são os mais perigosos, «Antes mesmo que você diga uma palavra, eles
o acusam de racismo; qualquer um que discordar deles, para eles é um racista. Então, são
eles os racistas.» (Bourdieu, 1993, p. 49). Já Sylvie está consciente de que estão
desinteressados na vida, algo que é fomentado pelo sistemático racismo que eles sofrem
por todo o lado. Thierry, seu marido, diz que muitas vezes as crianças já são educadas
para o racismo: os seus filhos «[…] não são educados no racismo, como faz meu irmão com
os filhos dele. Na casa dele, a mais nova, que tem cinco, quatro anos, ela está no
maternal, ele não pára de lhe dizer: “os árabes são bosta”.» (Bourdieu, 1993, p. 158).
Christian é o único que se assume como racista, mas apenas daqueles que vão contra as
normas societais: «Se você disser qualquer coisa [aos jovens], você é racista. Eu não
concordo. Conheço e tenho companheiros tunisianos, argelinos… […] “eu sou racista com
bagunceiros, é tudo.”» (Bourdieu, 1993, p. 150).
Explorados os três momentos da luta nos campos, resta fazer uma ressalva.
Seguimos neste modelo a tendência central, tivemos em conta as regularidades sociais,
numa lógica muito defendida por Bourdieu de reprodução social. Contudo, é sempre
importante referir que é possível efectuarem-se movimentações no espaço social que
contrariem a tendência dominante. A dona Maria, espanhola, é um desses casos raros de
consciência e de planeamento da luta nos campos, com vista à obtenção do melhor
posicionamento possível. «Longe da resignação e do fatalismo ou, ao contrário, dos
projectos totalmente irreais que caracterizam frequentemente as fracções mais baixas da
classe operária, Maria D. mostra uma atitude de reivindicação razoável; é preciso buscar,
pela luta, melhorar mas sem querer o impossível.» (Bourdieu, 1993, p. 108). Para além
disso, apercebe-se de que é nas famílias numerosas que os problemas de controlo dos
filhos se acentuam, e por isso contra voluntariamente o seu nível de fecundidade para
apenas dois filhos, nos quais pôde centrar todas as suas atenções.
15
II – Os media: reprodutores da luta de campos?
Quando se referiu a importância dos meios de comunicação social para a
consolidação das representações sociais que envolvem o campo simbólico, considerou-se
que estes transmitiam uma visão excessivamente pessimista dos bairros sociais e dos
imigrantes, exagerando as dimensões de violência, conflito ou precariedade. Assim, neste
segundo capítulo propomo-nos a realizar um curto exercício de verificação empírica, que
permita ver até que ponto essa noção é real, perceber até que ponto os meios de
comunicação também interiorizam o habitus e, no momento de transmitirem as notícias,
também os jornalistas accionam automatismos, inculcações ou conhecimentos
praxiológicos. Ao mesmo tempo, tentaremos actualizar o contexto e vivências dos
imigrantes, ao recorrermos a notícias mais recentes, que tenham em conta a realidade
actual da sociedade, já que as entrevistas da obra foram realizadas há mais de duas
décadas atrás. Esta pesquisa noticiosa permite ainda tentarmos verificar a validade da
teoria bourdieusiana no tempo actual.
Para esta verificação, optamos por seleccionar um conjunto de artigos de notícias
online, recorrendo a uma conceituada página de notícias, a Presseurop, que compila
notícias dos vários países, e que são traduzidos para múltiplas línguas, onde se inclui o
português. Assim, efectuou-se uma pesquisa na base de artigos disponível nessa página,
recorrendo a palavras-chave de pesquisa como imigrantes, imigração, integração, conflito,
dificuldades e potencialidades. Obtivemos assim um total de seis artigos que pareceram
adequar-se à nuvem temática deste relatório. Será efectuada uma análise notícia a
notícia, tentando analisar os seguintes aspectos: aplicabilidade de conceitos bourdianos?;
presença de novas temáticas relativas aos imigrantes?; forma como são encarados os
imigrantes?.
1. Análise tabular das notícias
Notícia n.º 1 – Anexo 2
Título «Sarkozy lidera com mão de ferro um Estado enfraquecido»
Resumo
Aborda a questão das políticas relativas a imigrantes: uma de expulsão
de imigrantes, em particular do despejamento de 40 acampamentos
com 700 pessoas; outra, de retirada da nacionalidade de qualquer
cidadão francês de origem estrangeira que cometa um crime violento,
16
após o alvejamento de um polícia por parte de um assaltante num
bairro de imigrantes.
Aplicabilidade
Denuncia a violência simbólica exercida sobre os imigrantes, e em
particular a forma como os próprios mecanismos estatais reproduzem
essa relação de dominação. Os ciganos são vistos como símbolos de
desordem aos quais o Estado declara guerra.
Novos temas Políticas de expulsão de imigrantes decorrentes de situações de anomia
social e desvio.
Imigrantes
Os incidentes e confrontos são referidos na notícia como frequentes, a
“tensão é latente” e que qualquer movimentação da polícia no bairro
de imigrantes pode causar uma “escalada de violência”, que poderá
“acontecer a qualquer momento”.
Destacou-se na notícia um jovem cigano que passou de carro num ponto
de polícia com um polícia no capô do carro e ainda o testemunho de
uma local de um bairro de imigrantes que classifica a situação como
parecendo Beirute.
Notícia n.º 2 – Anexo 3
Título «O contágio do medo»
Resumo
Relata a afirmação do partido Democrata da Suécia nas últimas
legislativas, que traduz uma alteração no estado de espírito dos suecos,
agora mais desconfiados quanto à imigração e cansados do modelo
socialista.
Aplicabilidade Plano político como um campo de disputa entre locais e imigrantes; um
campo onde se traduz o contexto social.
Novos temas Emersão de políticas de extrema-direita que possam fomentar
sentimentos de xenofobia.
Imigrantes
A população sueca está cansada de um governo que é severo com os
compatriotas e indulgente com os estrangeiros. Há um medo não
explicado que se dirige aos imigrantes; é feito um apelo a uma
tentativa de compreensão desse medo, não se limitando a uma rejeição
politicamente correcta desse medo.
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Notícia n.º 3 – Anexo 4
Título «Imigração, inevitável e indispensável»
Resumo Um grupo de personalidades publica um relatório em que defende os
benefícios da imigração na Europa.
Aplicabilidade
Posição favorável dos imigrantes num subcampo particular, o campo
demográfico. É o habitus destes grupos de imigrantes que conduz a esse
tipo de comportamentos demográficos.
Novos temas Necessidade demográfica dos imigrantes na Europa.
Imigrantes
Os imigrantes são uma fonte de população activa e, sem ela, a
população europeia seria muito mais envelhecida. Estas personalidades
destacam que não se pode pedir aos imigrantes que renunciem à sua
religião, cultura e identidade quando chegam ao país de acolhimento.
São bons contribuintes para a segurança social, já que representam uma
parte significativa da mão-de-obra.
Alguns investigadores de uma faculdade espanhola referem ainda que a
concentração dos imigrantes em bairros e comunidades, leva a
desequilíbrios na oferta e na procura de serviços, o que causa uma
degradação desses mesmos serviços, algo que é culpabilizado aos
imigrantes por parte dos habitantes.
Notícia n.º 4 – Anexo 5
Título «Guerras de línguas, poder e fronteiras»
Resumo
É aprovada uma lei na Eslovénia que impõe o eslovaco como língua
obrigatória nos locais públicos, causando a revolta da comunidade
imigrante da Hungria.
Aplicabilidade Intensas lutas políticas mediadas pelo campo legal.
Novos temas
Questão da língua como meio de comunicação e a sua conotação
simbólica; fricções históricas na base de conflitos entre imigrantes; a lei
como forma de dominação e violência simbólica.
Imigrantes A Eslovénia localiza novos nacionalismos no Estado.
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Notícia n.º 5 – Anexo 6
Título «O falhanço da integração ao estilo sueco»
Resumo Um relato dos bairros populares de Malmo, vistos como um gueto
caracterizado pela dificuldade de integrar a população imigrante.
Aplicabilidade Pluralidade de habitus e representações relativas aos imigrantes, tanto
favoráveis como desfavoráveis.
Novos temas Impacto dos imigrantes na economia e na demografia do país de
acolhimento.
Imigrantes
A percentagem de desemprego desta população é de 90%, e a população
só sobrevive graças às prestações sociais escandinavas. Os “incidentes
violentos” que ocorreram em Abril do ano passado “não são novidade”.
Não há um dia em que não sejam noticiados “confrontos com a polícia e
tensões entre as minorias imigrantes”.
Os imigrantes são vistos como forma de reduzir a idade média da
população, levando Malmo a ser vista como uma cidade jovem. Mas
também são vistos como fontes de delinquência; em particular, é essa a
ideia transmitida pela polícia.
Notícia n.º 6 – Anexo 7
Título «Os turcos ainda assustam os austríacos»
Resumo O Partido Austríaco da Liberdade obteve mais de um quinto dos votos
numa região da Áustria.
Aplicabilidade Derrota simbólica dos imigrantes, explicita pelo crescimento de partidos
de cariz nacionalista.
Novos temas Conflitos religiosos derivados dos fluxos migratórios.
Imigrantes
O chefe da secção local deste partido argumenta que o principal medo
de uma parte da população é a imigração turca. Este membro da força
da direita populista refere que não quer que a região se torne numa
“pequena Istambul”.
“O Ocidente nas mãos dos cristãos” é um dos slogans do partido, que se
mostra inconformado por o Islão se ter tornado a segunda religião da
Áustria.
19
2. Uma intemporalidade empírica da teoria bourdieusiana
Ao analisamos as seis entrevistas seleccionadas, percebemos que a teia conceptual
de Bourdieu mantém a sua aplicabilidade empírica nos dias de hoje, mas também
verificamos a presença de novos temas que influenciam o universo dos imigrantes, e para
os quais apenas alguns têm resposta dada por Bourdieu. Vejamos alguns casos.
2.1. O Estado como fonte de intervenção nas relações nos campos
O Estado foi uma entidade quase sempre envolvida nas notícias, assumindo uma
importância central, e também foi mencionada algumas vezes nas entrevistas, embora
mais ao nível dos organismos municipais e locais. Importa perceber como é que Bourdieu
vê o Estado e de que forma este contribui para a manutenção e reprodução das relações de
dominação. O sociólogo compreende que «O Estado é o culminar de um processo de
concentração de diferentes espécies de capitais […] concentração que, enquanto tal,
constitui o Estado como detentor de uma espécie de metacapital, que confere poder sobre
as outras espécies de capital e sobre os seus detentores.» (Bourdieu, 1997, p. 75). O que
importa destacar aqui, não é tanto o processo histórico que construiu os pilares deste
Estado de metacapital, mas antes qual é o poder deste último. «[…] permite ao Estado
exercer um poder sobre os diferentes campos e sobre as diferentes espécies particulares
de capital, nomeadamente sobre as taxas de câmbio entre umas e outras […]» (Bourdieu,
1997, p. 75). Esta concentração de capital faz com que consiga criar um trascendental
histórico comum a todos os agentes sociais, impondo práticas, «[…] o Estado instaura e
inculca formas e categorias de percepção e pensamentos comuns […] Desse modo, cria as
condições de uma espécie de orquestração imediata dos habitus que é por sua vez o
fundamento de uma espécie de consenso sobre o conjunto de evidências partilhadas
constitutivas do senso comum.» (Bourdieu, 1997, p. 87).
Assim, percebe-se aqui do fortíssimo poder que o Estado tem em modificar as
relações de poder entre os grupos de locais e de imigrantes. Um tipo de governo com uma
determinada ideologia pode apontar para um caminho, e outro governo apontar para o
caminho oposto. O caso da Suécia foi apontando, numa notícia, como um exemplo de
integração e aceitação dos imigrantes, mas o risco de um governo com uma nova cor
política ameaça essa abertura e receptividade.
Como pode o Estado ser mais solidário ou mais intransigente com os imigrantes? Um
veículo fundamental é a lei. Em várias notícias é através da lei que se geram conflitos e é
20
através da lei que se tenta atingir os objectos de (des)integração dos imigrantes. Bourdieu
compreende essa questão, estando consciente de que também o poder aqui em causa, o
legal, sofreu um processo de concentração estatal, constituindo «[…] o fundamento da
autoridade específica do detentor do poder estatal […]» (Bourdieu, 1997, p. 83). «Em
suma, passa-se de um capital simbólico, difuso, fundado apenas no reconhecimento
colectivo, a um capital simbólico objectivado, codificado, delegado e garantido pelo
Estado, burocratizado.» (Bourdieu, 1997, p. 84). O capital legal é, assim, uma tradução
materializada do capital simbólico do Estado. A lei é a força máxima que este pode
accionar para garantir determinadas práticas e representações sociais. Por exemplo,
Nicolas Sarkozy, presidente da França, opta por lançar novas leis como forma de cumprir
um objectivo que traçou, o de reduzir a criminalidade nos grupos de imigrantes.
A base ideológica dos partidos e dos governos pode ser uma fonte de violência
simbólica. Bastará atentar no caso do Partido Austríaco da Liberdade, cujo slogan “O
Ocidente nas mãos dos cristãos” é revelador da forte violência simbólica que tencionam
exercer sobre os imigrantes turcos caso consigam alcançar o poder, e que potencialmente
será accionada por via do poder legal, com fortes medidas restritivas à imigração.
Também se identificaram motivações históricas para o accionar do poder legal,
como foi o caso da lei de obrigatoriedade de utilizar o eslovaco como língua obrigatória
nos locais. Neste caso, parece que ainda há um esforço de unificação cultural e linguística
por parte do governo, tentando minar dessa forma as línguas mais secundárias, com
particular destaque ao húngaro, utilizado pelas comunidades imigrantes húngaras: a
Eslovénia já não está na Hungria e tem direito à sua independência, sem necessitar da
intervenção ou contributo da Hungria, que já está no passado; é esta a mensagem que o
Governo quer transmitir. Bourdieu refere que «A unificação cultural e linguística é
acompanhada pela imposição da língua e da cultura dominantes como legítimas, e pela
rejeição de todas as outras reduzidas à indignidade […]» (Bourdieu, 1993, p. 80). É
aplicável também a este contexto. Forma-se uma espécie de campo linguístico, um sub-
campo do campo cultural, onde se tenta demonstrar, por via da imposição de uma língua,
o carácter superior de um grupo face ao outro.
2.2. O impacto dos imigrantes na demografia
Na obra de Bourdieu, vários entrevistados destacaram que os imigrantes, em
particular os exteriores à Europa, caracterizam-se por serem famílias numerosas, com um
grande número de famílias, chegando mesmo a apontar os problemas que daí advêm ao
21
nível da socialização primária e educação dos filhos, com uma incapacidade dos pais em os
controlar. Contudo, nestas notícias surge uma abordagem diferente à dimensão da família.
Por serem famílias jovens, fornecem uma grande contribuição para a população activa,
rejuvenescendo a estrutura etária na sua base e, por outro lado, porque a maioria se
encontra a trabalhar, contribui com carga fiscal para o país. Até que ponto este tipo de
capital poderá ser encarado, do ponto de vista simbólico, como de valor? A questão será
mais ampla, em que campo nos encontramos quando abordamos esta questão? A
problemática do envelhecimento demográfico tem agitado a Europa, que está apreensiva
com as tendências e projecções da evolução da sua estrutura demográfica, vê na
população imigrante um canal de suavização desses efeitos. Contudo, a população em
geral não reconhece esse impacto demográfico favorável como significativamente
simbólico ao ponto de ver de forma favorável a sua vinda para o país.
2.3. Acentuação do carácter conflitual nas comunidades imigrantes
A confirmar a pista já introduzida na obra A Miséria do Mundo, esta selecção de
notícias confirma uma vez mais a tendência dos media em acentuar o carácter conflitual
dos bairros sociais. Os próprios jornalistas activam os seus habitus e, com um conjunto de
automatismos, recorrem a certos termos, palavras ou expressões que remetam para um
carácter endémico. Aqui o destaque nítido é o artigo «O falhanço da integração ao estilo
sueco, que relata:
As expressões sublinhadas evidenciam a forma como os jornalistas naturalizam e
generalizam estes confrontos com a polícia, considerando-os como estruturais e
frequentes, quando na verdade constituem, por vezes, episódios esporádicos. Poderemos
considerar aqui que são as representações sociais criadas acerca dos imigrantes que
ensombram os jornalistas.
«Os incidentes violentos de finais do mês de Abril não são novidade [entre 28 e 29 de Abril,
um grupo de jovens do bairro, de cara tapada, vandalizou escolas, quiosques, caixotes dos
lixo e automóveis, para protestar contra a detenção de um deles. A rebelião só acalmou
com a intervenção da polícia. Não há um dia em que os jornais não noticiem confrontos
com a polícia e tensões entre as minorias imigrantes […]» (sublinhado nosso)
22
2.4. Novas nuvens temáticas sobre a imigração aplicada à teoria bourdieusiana
Estas notícias tiveram como principal produto uma actualização do contexto
empírico dos imigrantes a uma realidade mais próxima da actual. Utilizando o mesmo
esquema geral que recorremos na primeira parte deste trabalho, deveremos adicionar ao
contexto de imigração a crise económica que enfrenta actualmente, à escala global,
grande parte dos países, incluindo muitos daqueles que são os principais destinos da
imigração; por outro lado, devemos compreender e ter em conta a importância da
realidade da União Europeia e das implicações que isso tem ao nível da livre circulação de
pessoas dentro deste espaço comunitário; acrescentemos ainda o complexo contexto de
globalização e das suas consequências ao nível do acentuar das interdependências entre
países, aos vários níveis cultural, económico e social.
Um outro contributo destes artigos da Presseurop foi permitir salientar a ideia de
que existe todo um conjunto de campos ou sub-campos mais secundários, que não dizendo
directamente respeito aos imigrantes, têm fortes consequências ao nível da principal luta
que é travada no campo simbólico. Destacamos aqui o campo legal, com a produção de
leis; o campo histórico, com as rivalidades entre povos, etnias e religiões; a língua, como
um elemento fulcral da identidade de um país; o campo mediático, onde se influenciam
representações sociais a uma escala nacional; e ainda, claro, o campo político, onde se
disputa um combate ideológico pela posse de um metacapital. Complexifica-se assim a
abordagem ao segundo momento, o do confronto nos campos, tentando considerar uma
maior quantidade de campos onde a luta dos imigrantes e dos locais é travada.
Surgem assim, no momento três, ainda mais consequências resultantes da luta nos
campos. Por um lado, a materialização das intenções do Estado em políticas migratórias,
que tanto poderão incentivar como desfavorecer; a emersão de novos nacionalismos
decorrentes da crise económica, que possam acentuar sentimentos de xenofobia e
preconceito; o contributo dos imigrantes na estrutura demográfica; e a língua como fonte
de segregação e preconceito.
Todos estes elementos estão expostos na figura seguinte, uma readaptação do
esquema apresentado no primeiro capítulo.
23
Figura 3
Teia conceptual de Bourdieu aplicada à problemática dos imigrantes – adaptada às novas temáticas
24
III – Oposições e complementaridades à teoria de Bourdieu
Este último capítulo pretende aprofundar algumas questões que foram abordadas no
modelo teórico de Bourdieu ou que são uma nota constante no contexto empírico dos
imigrantes que nos encontramos a analisar, recorrendo sempre a contributos de outros
sociólogos, num espírito de crítica e complementaridade.
1. O habitus em análise
O conceito de habitus foi objecto de múltiplas críticas pelos sociólogos. Firmino da
Costa argumenta que «[…] no que respeita à noção de habitus, “os problemas provêm
tanto de «explicar demasiado» como de «explicar insuficientemente» (Casanova, 1995, p
59). Esta crítica surge na medida em que este conceito apresenta um grande potencial
explicativo, mas que ainda não foi totalmente aproveitado, sendo acusado de ainda possuir
um insuficiente nível de rigor (Casanova, 1995).
Outra crítica é o carácter essencialmente reprodutor do habitus. «[…] Pierre
Bourdieu apenas acentua a inércia e a recorrência das disposições incorporadas,
minimizando questões igualmente relevantes que têm a ver com a permanente premência
da socialização, com a incorporação do novo, e com a adaptabilidade, adesão e
protagonismo dos agentes sociais relativamente à mudança.» (Casanova, 1995, p. 60)
Poderíamos propor aqui uma interligação entre os contributos de Bourdieu e
Giddens, no sentido de conferir maior dinamismo ao conceito de habitus. Quando olhamos
para a definição de reflexividade da vida social que este último autor apresenta na sua
obra «As consequências da Modernidade», somos levados a considerar uma certa oposição
entre este conceito e o de habitus. Por reflexividade da vida social, Giddens entende que
«[…] consiste no facto de que as práticas sociais são constantemente examinadas e
reformadas à luz de informação renovada sobre estas próprias práticas, alterando assim
constitutivamente seu carácter.» (Giddens, 1990, p. 39). Na modernidade há uma
característica que se acentua nos indivíduos, que é a reflexão constante sobre todos os
aspectos da vida social e até da própria reflexão. «Por outras palavras, os agentes são
normalmente capazes, se lhes for pedido, de fornecerem interpretações discursivas sobre
a natureza do comportamento e das razões para o comportamento em que estão
envolvidos.» (Giddens, 1994, p. 31). Giddens refere que o self define um projecto
reflexivo.
25
Poderemos complementar uma análise mais estática do habitus com o dinamismo da
modernidade, e em particular com as noções de segurança ontológica e de riscos. A
segurança ontológica é um sentimento de consciência prática que permite responder às
questões existenciais e permite lidar com ansiedades e medos, e tem subjacente uma
compreensão reflexiva da auto-identidade, da vida, da morte e da existência em geral. Os
riscos, dos quais a modernidade é grande promotora, podem conseguir afectar essa
segurança: «A barreira protectora que oferece pode ser furada, temporária ou
permanentemente, por acontecimentos que demonstram a realidade das contingências
negativas que fazem parte de todo o risco.» (Giddens, 1994, p. 35). Podemos considerar
que esses riscos moldam e enformam o self, ou na linguagem de Bourdieu, o habitus.
Propõe-se assim a seguinte circularidade:
Figura 4: Complementaridades entre Giddens e Bourdieu – habitus e segurança ontológica
Será importante aliar a análise de Bourdieu ao habitus com uma análise à
modernidade, e em particular à globalização. De que forma a globalização impactou, caso
tenha impactado, o habitus dos agentes sociais? De que forma o distanciamento do espaço
e do tempo podem impactar o habitus? De que forma as quatro dimensões da globalização
apontadas por Anthony Giddens influenciaram o habitus? Considerando que o habitus
traduz-se em diferentes tipos e quantidades de capitais, poderíamos ser levados a tentar
realizar um levantamento dos factores da modernidade e da globalização que tiveram
implicações nesses capitais. O esquema seguinte apresenta um exercício simplificado de
tentativa de elencação de alguns desses factores:
26
Figura 5: Complementaridades entre Giddens e Bourdieu – capitais e globalização
Goffman surge em linha com Giddens, numa concepção mais dinâmica do actor
social, que se encontra numa monitorização constante dos comportamentos. Para
enquadrar essa concepção, Goffman propõe a metáfora teatral. O sociólogo vê o actor
como alguém que desempenha um papel para uma plateia, sendo que este «[…] organiza o
seu desempenho e exibição “em intenção das outras pessoas”.» (Goffman, 1993, p. 29),
recolhendo informações sobre os outros, para saber como agir e o que esperar. Goffman
refere que o actor irá ter tantas personalidades quantos forem os grupos que este queira
impressionar, há uma segregação da audiência. Os actores poderão também optar por uma
falsa representação, ocultando características que lhe sejam prejudiciais ou fazendo algo
para o qual não têm autorização. A sua performance ajusta-se, assim, em função da
situação em que o actor se encontre, sendo que é o próprio actor que constrói essa
definição de situação. Goffman refere ainda que existem aspectos controláveis ou não
controláveis, mas que o actor tem sempre consciência dos mesmos, a tal ponto de tentar
controlar os seus aspectos não controláveis, de forma a não serem inconsistentes com o
papel que está a desempenhar. O actor possui um jogo de estratégia, accionando
princípios de acção racional que sigam o princípio do minimax, isto é, usar o mínimo de
recursos para obter o máximo de ganhos (Herpin, 1982). O carácter consciente do actor
social proposto por Goffman contrapõe-se com o carácter mais inconsciente do agente
social proposto por Bourdieu.
José Madureira Pinto propõe o conceito de interhabitus, «[…] centrada numa
preocupação de revelação da dimensão relacional do habitus, potencia , giaulmente, um
entendimento mais dinâmico e menos essencialista da matriz de disposições […]»
(Casanova, 1995, p. 61).
27
A operatividade do habitus também é apontada como um problema fulcral da
teorização de Bourdieu. «Tal impasse na operacionalização deste conceito contribui,
largamente, para a indefinição do seu campo de explicabilidade, dos seus limites e das
suas articulações com outras sedes […]» (Casanova, 1995, p. 62).
2. O papel dos media
O interaccionismo simbólico, por via de Stanley Cohen, traz-nos um contributo para
a abordagem aos media que foi efectuada no segundo capítulo. Este sociólogo focaliza nos
discursos dos media a produção de pânicos morais. Foi visível tanto nas entrevistas como
nas notícias a tendência para hiperbolizar as vivências das comunidades de imigrantes,
impondo uma necessidade urgente de reforçar a segurança, combater a criminalidade e
reformar esses bairros sociais.
A primeira fase, a do inventário, pauta-se «[…] por quatro características
fundamentais: exagero, distorção, prognóstico e simbolização.» (Guerra, 2002, p. 135).
Tal como foi visto no segundo capítulo, houve uma tendência para exagerar a dimensão
conflitual desses bairros sociais, através do recurso a um tipo específico de linguagem e de
adjectivação. «Após a fase de construção do inventário interessa perceber como é que as
suas imagens foram cristalizadas em opiniões e atitudes que correspondem a sistemas de
crenças generalizadas no quadro da opinião pública e interiorizados cognitivamente […]»
(Guerra, 2002, p. 136) – aqui pode ser feito um paralelismo à concepção bourdieusiana,
considerando que a opinião pública absorve um determinado habitus relativo aos
imigrantes, exteriorizando-o com opiniões e atitudes que manifestem uma violência
simbólica em torno desse grupo. A última fase corresponde às reacções da sociedade e
uma tentativa de controlo social do desvio, com a criação de procedimentos
institucionalizados de controlo social, o que em Bourdieu correspondem a mecanismos de
violência simbólica.
Também Cohen é sensível ao facto de que são os grupos dominados que mais sofrem
com as construções mediáticas do desvio. «[…] ao indivíduos situados nos mais baixos
escalões da estrutura social serão, porventura, os mais vulneráveis à fabricação de
representações mediáticas acerca das suas próprias vidas, pois ocupam uma posição de
dominação cultural, social, política e simbólica.» (Guerra, 2002, p. 139).
28
3. A educação e a influência societal
Numa oposição à perspectiva de Bourdieu, surge um Durkheim excessivamente
estruturalista. Na sua obra Educação e Sociologia, encara a educação como «[…] acima de
tudo o meio pelo qual a sociedade renova perpetuamente as condições de sua própria
existência.» (Durkheim, 1965, p. 82), sendo então uma socialização metódica geracional. O
fim da educação seria construir o ser social do indivíduo, isto é, os «[…] sistemas de ideias,
sentimentos e de hábitos que exprimem em nós, não a nossa individualidade, mas o grupo
ou os grupos diferentes de que fazemos parte […]» (Durkheim, 1965, p. 83). O sociólogo
refere que as transformações profundas das sociedades contemporâneas têm
correspondentes transformações nos planos de educação. Durkheim utiliza, assim, a
seguinte definição de educação: «A educação é a acção exercida, pelas gerações adultas,
sobre as gerações que não se encontrem ainda preparadas para a vida social; tem por
objecto suscitar e desenvolver, na criança, certo número de estados físicos, intelectuais e
morais, reclamados pela sociedade política, no seu conjunto, e pelo meio especial a que a
criança, particularmente, se destine» (Dukrheim, 1965, p. 41).
Também consciente das influências societais na educação, Bernstein lança a teoria
dos códigos linguísticos. «[…] as crianças de origens sociais diversas desenvolvem códigos,
ou formas de discurso, diferentes, no começo da sua vida, que afectam as suas
experiências escolares posteriores.» (Giddens, 2009, p. 514). Enquanto as crianças da
classe trabalhadora apresentam um código restrito, onde os valores e normas da cultura
onde crescem fica encrostada na sua linguagem e forma de escrever, as crianças da classe
média adquirem um código elaborado, sendo capaz de generalizar e expressar ideias
abstractas com maior facilidade. «As crianças que adquiriram códigos elaborados de
discurso, propõe Bernstein, têm maior capacidade para lidar com as exigências da
educação académica formal do que as que estão limitadas a códigos restritos.» (Giddens,
2009, p. 515). A sua teoria ajuda-nos a perceber porque é que as crianças de origem
socioeconómica mais baixa tendem a não ser bem sucedidas na escola. Esta teoria seria um
bom complemento ao modelo analítico de Bourdieu, já que, no fundo, traduz o fraco
capital escolar dos imigrantes, que estando associados a um baixo nível de capital
económico, acabam por não ser capazes de ter força no campo cultural, e em particular no
campo escolar.
29
4. Crime e desvio
Começando pelos contributos estruturo-funcionalistas, poderemos tentar aplicar a
análise mertoniana dos tipos de atitudes sociais aos contextos imigrantes. Merton
argumenta que existem cinco tipos de atitudes sociais em função do indivíduo cumprir ou
não as metas culturais e se recorre ou não aos meios tidos como legítimos para os actores
alcançarem esses fins. É uma perspectiva que se opõe a Bourdieu pelo carácter
excessivamente estruturalista deste quadro teórico. Merton argumenta de que são aqueles
em situação de inovação, com uma aceitação das metas culturais da estrutura cultural,
mas com uma incapacidade de obter os meios necessários na estrutura social para alcançar
esses fins, que são a causa de situações de anomia social, fomentando situações de crime.
Assim, desta forma, as atitudes sociais de crime e desvio são explicadas unicamente pela
estrutura, já que é esta que define quais são os fins e interesses da sociedade, e é esta
que regula e controla os meios para alcançar os fins (Merton, 1938).
Blumer, representante da Escola de Chicago, aborda a questão dos imigrantes como
sendo de assimilação. «O processo pelo qual o indivíduo se incorpora nesta ordem social
habitual e institucional é talvez melhor descrito como processo de socialização. O ciclo de
assimilação envolve sucessivamente, sob condições ordinárias, a competição, o conflito, a
acomodação, a assimilação e, eventualmente, o amálgama biológico.» (Blumer, 1962, p.
138). O sociólogo americano é sensível à ideia de que os imigrantes ocupam as piores
posições nos campos sociais, destacando, que a sua assimilação é difícil, traduzindo-se em
baixos níveis na economia. Contudo, «Grupos imigrantes anteriormente vistos como
ameaças a níveis salariais, cujas imigrações adicionais eram combatidas pelo trabalho
organizado, frequentemente na segunda geração fornecem os recrutas e líderes para o
mesmo.» (Blumer, 1962, p. 71).
Tal como nas entrevistas de Bourdieu, Blumer aponta para os jovens imigrantes de
segunda geração como os que mais contribuíram para o crime: «Não tanto os imigrantes
em si, mas crianças de dupla cultura contribuíram desproporcionalmente para o crime e
outros problemas das classes mais baixas.» (Blumer, 1962, p. 72). Também ele refere a
questão da hexis corporal, mas designando-a como o papel da visibilidade: […] a
discriminação funciona como um dispositivo de restrição de concorrência no mercado de
trabalho, para manutenção de uma fonte de mão-de-obra mais barata […]. A visibilidade
permite e auxilia a segregação, a marca de uma situação de casta. As distinções parecem
ser feitas somente na base de cor.» (Blumer, 1962, p. 68-69). De acordo com Blumer, os
custos de um sistema de castas são elevados, já que que «[…] promovem serviços paralelos
30
e a doença e criminalidade […]. Destroem o crescimento integral da personalidade da
parte de ambos os grupos, permitindo apenas a mais superficial comunhão de interesses. O
sociólogo destaca ainda, em paralelo com Bourdieu, do impacto da acção governamental,
que poderá atenuar a situação, nomeadamente através de leis, como a publicada em Nova
Iorque que proibiu a discriminação no emprego fundamentada na raça, credo ou
nacionalidade (Blumer, 1962). Blumer assume-se assim, nesta temática em análise, como
basicamente concordante com Bourdieu, embora recorrendo a uma terminologia diferente.
É no âmbito de uma racionalidade teórica que a Escola de Chicago apresenta a
noção de meio, entendida como um «[…] ponto de equilíbrio entre um espaço geográfico
localizado – o habitat – e a qualificação tecnológica dos indivíduos que nele vivem – os
habitantes.» (Herpin, 1973, p. 30). «[…] o equilíbrio de uma comunidade humana
particular é instável […]» (Herpin, 1973, p. 31).
As suas abordagens à desorganização social, em particular realizadas na obra O gang
de Thrasher, são um bom contraponto à abordagem de Bourdieu. «O fenómeno de que
Thrasher parte é a localização geográfica da delinquência juvenil. Há sectores na cidade
que são mais afectados que outros pela delinquência.» (Herpin, 1973, p. 110-111). Tenta
assim desenvolver uma teoria da urbanização, e caracteriza a delinquência juvenil como
um fenómeno representativo de uma má aclimatação sociogeográfica. Embora Bourdieu
afirme que por vezes existe correspondência entre o espaço social e o espaço físico, não
chega a traçar uma visão tão estreita e directa como aquela que traça Thrasher. Contudo,
ambos estarão de acordo quando este último refere que «Os gangs representam o efeito
espontâneo dos jovens para criar uma sociedade adequada às suas necessidades, quando
ela não existe.» (cit. por Herpin, 1973, p. 113). O roubo é visto como uma actividade de
incitação desportiva, e não propriamente como um desejo de rendimento.
A desorganização é vista como uma característica do sistema e não uma
propriedade dos grupos de imigrantes. «O insucesso dos costumes e das instituições que
normalmente controlam de forma eficiente (as condutas) traduz-se, na experiência do
jovem, pela desintegração da vida familiar, pela ineficácia da escola, pelo formalismo e a
exterioridade da religião, pela corrupção e a indiferença em relação aos partidos na
política local, pelos salários baixos e pela monopolização do trabalho, o desemprego e as
poucas ocasiões de divertimento.» (cit. por Herpin, p. 114).
Destaca-se nesta escola os urban área projects, que constituem programas
concebidos para combater a delinquência juvenil nas zonas urbanas habitadas por
imigrantes, sendo que este programa deveria ser aplicado pelos próprios residentes do
barrio; «Os sociólogos têm por tarefa identificar “os residentes que ocupam posições
31
chave” capazes de serem responsáveis pelo programa.» (Herpin, 1973, p. 54). Bourdieu
falha neste aspecto, com uma ausência de projectos que possam resolver a situação de
anomia em que se encontram os imigrantes.
Entrando agora no interaccionismo-simbólico, Becker surge em oposição a Bourdieu
ao analisar o desvio de um ponto de vista estritamente individual. Estabelece um conjunto
de passos necessários, que mais não são do que opções tomadas pelo individuo e que,
apenas caso ele as tome, tornar-se-á um desviante. No caso do consumo da marijuana,
Becker identificou que seria necessário primeiro o aprendizado da técnica, seguindo-se
uma percepção dos efeitos da marijuana e seguindo-se por fim aprender a gostar dos
efeitos da marijuana. O centro da sua análise permite conferir um carácter mais
individualista ao desvio, numa directa oposição a Bourdieu, que lê o desvio como
resultante da posição nos campos, com uma componente primariamente estrutural.
Destacar ainda no interaccionismos-simbólico o contributo de Goffman, que
apresenta o conceito de estigma como referente a um atributo profundamente
depreciativo, e que pode definir uma dupla perspectiva, dependendo se é só o indivíduo
que tem consciência que está a ser estigmatizado ou se é algo evidente às pessoas que o
vejam. O sociólogo argumenta que quando um individuo estigmatizado enfrenta outras
pessoas normais e sente que estas agem com ele em forma diferente só por causa desse
mesmo estigma, este conscientemente tenta resolver essa situação: ou tenta corrigir o seu
defeito, ou tenta desenvolver actividades que tipicamente estão associadas a pessoas que
não possuam esse defeito, ou poderá ainda ver a sua privação com alguma espécie de
bênção (Goffman, 1982). A perspectiva de Goffman será de que os indivíduos têm plena
consciência do estigma e agem em função disso para tentarem controlar, reduzir ou
conseguir lidar com situações de estigmatização. É o caso dos pais dos estigmatizados, que
optam por diferentes tipos de socialização para os filhos, por forma a tentar protege-los da
melhor forma possível. Os próprios estigmatizados activam técnicas de controle da
informação, tentando encobrir ou manter em segredo o estigma. Em oposição, Bourdieu
sempre manifesta um carácter inconsciente da subordinação, através da violência
simbólica.
Elias também aborda a questão do desvio na sua obra Estabelecidos e Outsiders.
Elias argumenta que as classes sociais não são a única forma de opressão, sendo que esta
decorre de desequilíbrios entre grupos interdependentes numa figuração. «[…] when the
power gradient between groups is very steep, outsiders are often stigmatized as unworthy,
filthy, shifty, or perhaps childlike […]. At this stage, images of outsiders are highly fantasy-
laden and the attitudes of established toward outsiders are extremely rigid.» (Kilminster,
32
2000, p. 618). Os outsiders acabam por interiorizar a visão de inferioridade transmitida
pelos estabelecidos. Quando a relação começa a ficar mais igual, surgem sinais de rebelião
e de emancipação, o que faz com que as imagens dos outsiders deixem de ser tão
fantasiosas, a tal ponto em que já será possível aos outsiders criarem a sua própria auto-
imagem, que acabará por ser transmitida aos estabelecidos. É este processo que ocorreu
entre negros e brancos e ainda decorre entre homossexuais e heterossexuais. Esta visão
processual e dinâmica de Elias poderia ser integrada na temática da luta dos campos de
Bourdieu, concedendo um maior dinamismo e propensão à mudança social deste último
modelo.
5. Segregação étnica
Weber fala de segregação “étnica” e “casta”. Será importante reflectir em que
medida as comunidades de imigrantes que ficam concentradas num mesmo espaço reúnem
características de “casta”, tal como entendida pelo autor: «A “casta” é, realmente, a
forma natural pela qual costumam “socializar-se” as comunidades étnicas que crêem no
parentesco de sangue com os membros de comunidades exteriores e o relacionamento
social. […] formam comunidades, adquirem tradições ocupacionais específicas […] Vivem
numa “diáspora” rigorosamente segregada de todo relacionamento pessoal, excepto o de
tipo inevitável, e sua situação é legalmente precária. Não obstante, em virtude de sua
indisponibilidade económica, são tolerados, realmente, e frequentemente privilegiados, e
vivem em comunidades políticas dispersas.» (Weber, 1982, p. 221). Para Weber, a
segregação em casta implica o reconhecimento por parte dos grupos étnicos da sua
inferioridade e subordinação, enquanto que «[…] as coexistências étnicas condicionam uma
repulsão e um desprezo mútuos, mas permitem a toda comunidade étnica considerar a sua
própria honra como a mais elevada […]» (Weber, 1982, p. 221). Importará assim perceber
em qual dos dois eixos as comunidades de imigrantes se encontram mais próximas.
Essas comunidades étnicas, segundo o sociólogo, possuem diferentes patamares de
honra, traduzida pelo seu status social. «O papel decisivo de um “estilo de vida” na
“honra” do grupo significa que os estamentos são os portadores específicos de todas as
“convenções”.» (Weber, 1982, p. 224), importará perceber o funcionamento dos grupos de
status nas suas práticas sociais e nas suas posições nos campos sociais. Considerando por
outro lado a noção de classe tal como apresentada por Weber, poderemos reflectir sobre a
forma como a pertença a uma classe pode influenciar a sua capacidade de luta nos campos
socais. Weber entende classe como uma componente causal das oportunidades de vida,
33
constitui-se pelos interesses económicos de posse de bens e de oportunidades de renda e
representa-se no mercado sob a forma de produtos ou trabalho (Weber, 1982). A realidade
dos imigrantes é caracterizada, tipicamente, por uma chegada ao país de acolhimento sem
a posse de qualquer renda ou muito escassos bens. E isso desde logo condiciona as
possibilidades de vida dos mesmos, constituindo desde logo uma limitação aos produtos
que estes podem colocar no mercado.
Apresenta-se, na página seguinte, mais uma adaptação do esquema base de três
momentos da luta dos campos que temos utilizado ao longo deste relatório, e que agora
essencialmente resume os contributos que estivemos a listar ao longo deste capítulo,
enquadrando-os nas diferentes peças do esquema.
Genericamente, podemos afirmar que houve forte compatibilidade entre as
entrevistas do primeiro capítulo e as notícias do segundo capítulo. Ambos apontam para
uma mesma realidade: os imigrantes são caracterizados por um fraco nível de capital, que
lhes causa um mau posicionamento nos campos, originando, do ponto de vista simbólico,
mecanismos de violência simbólica que constantemente relembrem aos imigrantes a sua
situação de subordinação. Contudo, o modelo teórico proposto por Bourdieu poderá ser
refinado e complexificado com o contributo de outros autores, desde os mais clássicos até
aos mais contemporâneos, por forma a suplantar as suas limitações, tal como se tentou
demonstrar neste último capítulo.
34
Figura 4
Teia conceptual de Bourdieu aplicada à problemática dos imigrantes – adaptada a novos autores
35
Considerações finais
Este relatório tentou fornecer uma perspectivação geral dos inúmeros contributos
dados por Bourdieu para a sociologia, sendo que foi demonstrada uma total aplicabilidade
desta teia conceptual ao contexto dos imigrantes. Em particular, a terminologia dos
campos e da luta de campos mostrou-se profícua na criação de raciocínios de compreensão
do porquê dos imigrantes se encontrarem nas posições desfavoráveis que normalmente se
encontram nos vários países para onde se movimentam.
Por outro lado, foi salientado o enorme poder de duas instituições que,
actualmente, se mostram centrais com elevadíssimo poder de intervenção nos campos: o
Estado e os mass media. São, sem dúvida, os mais capacitados e aqueles mais influem nas
representações sociais da população em geral, contribuindo para a formação de habitus
particulares. Importa, deste modo, em trabalhos futuros, um ainda maior aprofundamento
dos impactos que estas instituições sociais têm nos imigrantes, e tentar perceber de que
forma podem mobilizar-se de uma maneira mais activa para a melhoria das condições de
vida destes imigrantes e para a formulação de representações sociais mais correctas, com
menos bases em atitudes xenófobas ou pretensões excessivamente nacionalistas.
Por fim, foi nosso objectivo demonstrar umas das maiores virtualidades da
sociologia: a sistemática diversidade de propostas teóricas, que nos relembram
sistematicamente que nenhum conhecimento é final e que nenhuma teoria consegue
abarcar a totalidade de um fenómeno social. Por isso mesmo, esforçamo-nos por tentar
envolver no debate da temática dos imigrantes contributos de autores passando dos mais
clássicos aos mais contemporâneos, e de escolas tão opostas como são o interaccionismo –
simbólico e o estruturo-funcionalismo, numa modesta tentativa de tentar preencher um
pouco mais as lacunas de compreensão deste fenómeno social que é a imigração.
36
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WEBER, Max (1982) – Ensaios de Sociologia. 5.ª ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores.
39
Anexo I – Ficha de leitura
BOURDIEU, Pierre (1993) – A miséria do mundo. Rio de Janeiro: Editora Vozes Ltda. ISBN
85.326.1818-9. p. 11-158.
Resumo: Na análise ao capítulo «O espaço dos pontos de vista», encontramos um conjunto
de nove entrevistas, somos transportados aos lares de famílias francesas, espanholas
argelinas, entre outras. Ouvimos os relatos esperançosos de pais que acreditam nos filhos
para melhorarem a situação económica da família, de jovens adultos que procuram
integrar-se numa cultura que muitas vezes parece que não os quer acolher, de jovens
imigrantes que se encontram desanimados com a vida que receberam e utilizam o crime
como tubo de escapatória e fuga, de idosos que não compreendem os costumes destes
novos imigrantes que chegam aos bairros sociais e de adultos estabilizados que lutam cada
dia por melhorarem a sua situação económica. Um conjunto de relatos íntimos sobre o que
é ser um imigrante, como vivem os imigrantes e como são vistos pela sociedade, pelos
media, pelo governo, pelos outros.
Conceitos-chave: bairros sociais, desemprego, diversidade cultural, imigração, crime,
conflitos, jovens, socialização primária
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Pag. Análise Texto Conceitos
Ideias-chave
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16
Capítulo I – O espaço dos pontos de vista
Bourdieu apresenta este bloco de entrevistas
como fruto de uma necessidade de quebrar
com as perspectivas redutoras das situações
sociais mais complexas ou difíceis, apelando a
uma necessidade de se ter em conta o
pluralismo dos pontos de vista.
A rua dos Junquilhos
A rua dos Junquilhos é composta por famílias
de operários qualificados, maioritariamente
provenientes do estrangeiro, e em particular da
Argélia. Uma rua vazia, que apenas se anima na
altura em que as crianças terminam as aulas.
Os Leblond e os Amezziane são duas famílias
dessa rua.
Os filhos destas famílias têm desviado os
propósitos da geração anterior, ao
permanecerem mais tempo na escola e
diminuírem o seu interesse na indústria.
O casal Leblond foi entrevistado. A Sra.
Leblond mostrava-se pouco participativa, e
apenas intervinha com autorização do marido.
«Espera-se, assim,
produzir dois efeitos:
mostrar que os lugares
ditos “difíceis” […] são,
primeiramente, difíceis
de descrever e de pensar
e que é preciso substituir
as imagens simplistas e
unilaterais […] e […]
abandonar o ponto de
vista único, central,
dominante, em suma,
quase divino […].»
«Ela resistiu a nossas
tentativas para
estabelecer dois diálogos
separados. Com o olhar,
ele a fez participar da
conversa. Quando ela
falava, solicitava a
participação dele;
gravemente, ele
aprovava, mas não
intervinha, como por
respeito.»
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Os Leblond foram das últimas famílias de
origem francesa a permanecer na rua. O Sr.
Leblond conseguiu evitar ser vítima de uma
grande onda de dispensas. A par disso, verifica-
se uma degradação da sua condição
profissional, com quebras de salário.
Há uma crise de reprodução das gerações na
indústria. A escola é tida como um dos
principais factores desta mudança. O Sr.
Leblond aponta que a escola não representava
muito para a sua geração.
O Sr. Leblond relata também os seus anos de
trabalho na fábrica, destacando em particular a
forma como aprendizagem prática, em
oposição a um carácter meramente técnico dos
estudantes que obtêm diplomas.
Amezziane, por seu turno, é um operário de
origem argelina que nos anos 80 ficou
desempregado pelas demissões em massa dessa
época.
Enquanto Leblond corresponde a um proletário
empregado e com rendimento garantido,
Amezziane é um antigo operário sem protecção
nem garantias, caindo na condição de
subproletário. Amezziane trabalhou em
diversas empresas, desde que, em 1960, veio
para França.
«E entre os motivos que
são invocados para
explicar da desafeição
dos jovens pelo trabalho
na fábrica […], menciona-
se, em primeiro lugar, a
escola e as aspirações
muito precisas, muito
circunscritas, que ela
inculca.»
«”Bem, eles têm os
diplomas, eles têm a
técnica, mas eles não
têm a prática, é isso que
está em falta, no
momento actual, na
fábrica; precisa-se de
muitíssimos rapazes com
prática, rapazes que
conheçam sua instalação
[…]”»
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A família Amezziane é composta por seis
pessoas, o casal e seus quatro filhos. As
acrobacias financeiras são uma constante,
sendo impossível pagar de uma vez todas as
dívidas que possuem. O contrato da casa está
quase a terminar e o dilema de regressar para a
Argélia ou permanecer na França persiste.
Descreve a sua relação com os vizinhos como
neutra, algo semelhante a uma desumanidade
presente na Argélia dos anos 60.
Leblond refere que respeita os argelinos e que
faz um intenso esforço de coabitação, tentando
ultrapassar as dificuldades que esta representa
e mantendo uma perspectiva internacionalista
e anti-racista. Essas dificuldades acentuam-se
no período do Ramadão.
É nos mais jovens que reside o centro dos
conflitos de coabitação, algo que, na opinião
de Leblond, é fruto de uma crise da autoridade
doméstica nas famílias norte-africanas.
«E depois eles começam
a viver às dez horas da
noite, então, como você
vai dormir, bem, palavra
de honra, você tem
direito ao barulho.»
«E, de fato, os efeitos da
coabitação mais difíceis
de tolerar, barulho,
brigas, depredações ou
degradações, são
imputáveis a essas
crianças e a esses
adolescentes que,
condenados à privação e
à pobreza, e, sobretudo,
no ambiente escolar,
para o qual nada os
prepara, aos revezes e à
humilhação […] escapam,
às vezes completamente,
como os dois filhos mais
velhos de Amezziane, ao
controlo familiar.»
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Entrevista ao casal Leblond
Conversa inicia-se sobre as duas filhas do casal.
A mais velha é enfermeira, e a mais nova, com
14 anos, estuda no CPPN (3º ciclo do ensino
básico). Discute-se a possibilidade dela
frequentar um CAP.
Actualmente não há tanta oferta de emprego
para estudantes desses cursos; e por outro lado
há uma fraca vontade de irem para a fábrica. A
escola é, por vezes, vista como uma alternativa
ao desemprego.
A geração anterior tinha a vantagem de entrar
mais cedo numa vertente mais prática,
enquanto a dos filhos permanece mais tempo
na escola, reforça a técnica, mas falha em
prática.
Os jovens têm dificuldade em encontrar um
emprego, é-lhes exigida experiência. As
empresas querem tudo sem pagar muito.
Em contraponto, ao nível da aposentadoria, há
pessoas que são despedidas pouco tempo antes
de atingirem essa idade. Havia também quem
recorre-se a uma pré-aposentadoria, tendo a
garantia de que os jovens, os seus filhos,
seriam admitidos. Mas agora isso nem sempre
acontece.
«O problema, está aí, é
que nós, com o centro de
aprendizagem, tínhamos,
no entanto, a felicidade,
enfim a felicidade ou a
infelicidade, digamos, de
conhecer a fábrica,
porque íamos, tínhamos
acesso ela, íamos fazer
visitas…»
«Por toda parte você vê:
jovem, experiência. Bom,
então eu, eu vou dizer,
eu vou chegar, eu talvez
tenha experiência, mas
já passei dos 40 anos…»
«O homem tem jovens
em casa, sai talvez ainda
de bom grado, mas, ao
fim de um ano, que ele
vê que o rapaz está
sempre em casa, que ele
não está empregado, os
que saem por último não
desejam sair […]»
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Inicialmente os Leblond viviam num bloco,
passando posteriormente a viver na moradia
individual onde vivem agora.
Nas escolas estão presentes uma maioria de
80% de estrangeiros, diz Leblond. As famílias
trabalhavam na fábrica, agora caminham ou
para a aposentadoria, ou os jovens estão no
desemprego.
O casal afirma ainda que o ambiente está mais
calmo do que no passado.
Referem que, ainda nesta altura, o período
mais complicado é o do Ramadão, por causa do
barulho. Tem sido essencialmente celebrado
pelos mais velhos, uma tradição que se tem
perdido, comentam os Leblond.
O Sr. Leblond critíca que há trabalhadores que,
durante o Ramadão, arriscam a sua saúde ao ir
trabalhar 8 horas durante o dia, em intenso
calor, sem se alimentarem ou beberem um
simples copo de água.
Leblond critica a forma como as várias famílias
estrangeiras são simplesmente colocadas numa
torre, todas em conjunto e isoladas, em vez se
serem dispersadas e misturadas com as famílias
locais. A torre entretanto foi demolida.
O bairro onde vivem os Leblond não é perigoso
e o barulho não é maior do que nos outros
lugares. O problema são os ocasionais furtos.
«Ela alojava todas
aquelas pessoas juntas, e
não era isso que deveria
ter sido feito com a
Familiale nem com a
prefeitura; aquelas
pessoas deveriam ser
espalhadas um pouco,
habituadas um pouco a
viver, não estão mais no
mato.»
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As famílias francesas do fundo da rua são as
vítimas desses furtos mas, segundo os Leblond,
porque se arriscam.
Sr. Leblond refere que não tem medo das
pessoas do bairro, pois os conhece do desporto,
contexto no qual se gera um respeito mútuo
entre ele e os restantes residentes do bairro.
Refere ainda que a polícia de lá não faz mais
nada além de ir ao local.
Comenta-se que a polícia teve de intervir sobre
um conflito que ocorreu entre professores e
pais há dois anos, quando um professor agrediu
um aluno porque este último vandalizou
diversas vezes o seu carro.
Para os professores por vezes é difícil a
integração nessas escolas e, caso não sejam
dessa região, é-lhes difícil permanecer.
Comenta-se por fim que os jovens actualmente
são menos politizados que os seus pais
Uma família deslocada
O contexto de análise é um bairro de casas de
dois andares que, ao longo do tempo, viu
algumas das suas casas que iam sendo
colocadas à venda, compradas pela câmara,
«Não, mas é verdade, é
preciso reconhecer, eles
deixam a roupa de cama
secando diante da porta,
eles deixam a roupa
durante a noite, é preciso
dizer também…»
«É isso, eu tranco a porta
e não deixo roupa do lado
de fora à noite.»
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para posteriormente serem ocupadas como
moradias para famílias de imigrantes. São casas
sociais que geram novos conflitos de
vizinhança. Surgem choques entre identidades
sociais diferentes.
Presença de três tipos de discursos.
A família Ben Mirould provém da Argélia. Todos
os filhos nasceram na França. O pai opta por
abordar o passado e de descrever como foi o
processo de imigração.
A casa, que se encontrava ao abandono, foi
oferecida pelo patrão/empresa de forma
gratuita. Estava condenada à demolição porque
ia passar lá uma futura auto-estrada. A casa
passou a servir como moradia provisória à
família Ben Miloud. Terminando o prazo, a
família muda-se para uma favela, considerada
a opção de mais baixo nível.
«Em primeiro lugar, do
lado da família imigrada,
o discurso do pai, que
recorda a história
residencial da família
durante toda a sua
imigração […], o discurso
colectivo dos filhos que
versa sobre a situação
presente o estado da
moradia actual; e […] o
discurso da vizinha
francesa mais próxima,
que se divide entre, de
um lado, a defesa dos
interesses materiais e
simbólicos […] e, de
outro, a indignação e
protesto contra o facto
de ser obrigado a
suportar uma coabitação
senta como degradante
[…]»
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Após várias diligências e com a ajuda de
assistentes sociais, a família consegue ser
realojada num apertado apartamento em Paris.
Fez um novo pedido no sentido de se mudar
para um apartamento com mais espaço,
chegando finalmente a família Ben Miloud à
residência onde se encontram actualmente.
Entrevista com os moradores de uma vila
operária
Pai e filhos debatem sobre uma senhora do
bairro que, aos olhos da filha, apesar de
educada com as palavras, não mostra coerência
com o olhar.
A senhora do bairro fez diversas queixas contra
a família, alegando que faziam excesso de
barulho.
O pai de seguida conta uma história de quando
estavam numa das outras casas. Tinha uns
vizinhos que reclamavam do barulho que
faziam. Mas, na verdade, como eram um casal
de idosos que ninguém ia visitar, sentiam
«Nas palavras é assim,
mas nos olhos é outra
coisa, há fogo e veneno.»
«É sempre a mesma
história. Quando não
podemos dizer que a
vizinhança com os árabes
é má, porque eles são
sujos, porque eles
cheiram mal, porque eles
fazem muito barulho,
porque há sempre muita
gente nas casas deles,
mesmo quando não
podem dizer tudo isso,
inventam outra coisa,
encontram sempre
algo…»
«Eu provoquei uma
conversa sobre barulho.
Fiquei surpreso com o
que eles me disseram. O
barulho era, na
realidade, as numerosas
visitas que tínhamos.»
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ciúme, uma certa inveja, por ver aquela família
a receber tantas visitas, e eram essas visitas
que o casal considerava como barulho.
A família assume que não sabe ao certo quem
controla a situação da casa, que instituições
são responsáveis e a quem devem pagar o
aluguel. A família mostra-se com vontade de
permanecer naquela casa.
O filho argumenta que poderão ser efectuadas
medidas que forcem o despejamento dessas
famílias, como por exemplo subindo o valor do
aluguel.
A filha refere que a vizinha não acha que a
França pertença a esta família. Já o filho
lembra que ela os denunciou por terem uma
casa barulhenta e muito ocupada. Há um hábito
cultural dos filhos visitarem regularmente os
pais, algo que não acontece com os franceses.
A filha considera a postura da vizinha como
resultado de ciúme.
Apesar dos filhos terem nacionalidade francesa,
são tratados como se não a tivessem.
«Existe ainda a mesma
unanimidade quando se
trata de proclamar a
vontade da família de
permanecer ali, qualquer
que seja o rumo que
tomar o projecto de
reabilitação e que haja
restauração, ou não.»
«Veja: minha irmã mais
velha mora na casa dela
e, é claro, ela passa aqui
todos os dias, vêem-na
sempre aqui, ela vem ver
os pais, é normal!
Assegurar-se que tudo vai
bem, às vezes dorme
aqui. Todos temos um
quarto ou uma cama
aqui. No entanto, ela tem
a casa dela… É assim
entre nós: não
abandonamos nossos pais
ou simplesmente ir vê-los
todo dia 30 de fevereiro
(…)»
«Se há algo a
compreender em tudo
isso é que eles
simplesmente gostariam
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O pai assume que, àquela idade, não tem mais
sítio para onde ir, não pode emigrar de França.
Segue-se agora um momento de conversa entre
o entrevistador e uma vizinha do bairro, a Dona
Meunier. A senhora refere que a população do
bairro está a mudar, as pessoas estão a ir
embora e são as famílias estrangeiras que
ocupam as casas vazias. As pessoas saem por
desilusão ao bairro.
Dona Meunier considera que foi roubada, a casa
perdeu valor: a população que fundou o bairro,
que muitas vezes construiu as casas, parte e as
coisas ficam ao abandono, não se consertam
novamente.
Não há mais conversa entre os vizinhos, a inter-
ajuda também se perdeu; tudo isto foi embora
com a mudança da população do bairro.
Não se pode contar com os vizinhos para
protestar colectivamente pela melhoria dos
serviços.
Na opinião da moradora do bairro, este torna-
se gradualmente um HLM, com um cada vez
maior número de famílias de imigrantes com
casas atribuídas pela prefeitura.
que não estivéssemos
aqui. Ou, se estamos, é
preciso que a gente não
seja visto, que não se
mostre.»
«A população muda
sempre… e nem sempre
para melhor.»
«Não é pelo racismo que
eu digo que há aqui cada
vez mais famílias
imigradas, famílias
árabes. Não sei o que
elas são, argelinos,
marroquinos; famílias de
norte-africanos. E isso
não ajuda a arrumar as
coisas, para tornar o
bairro agradável. Então,
todos partem ao mesmo
tempo.»
«Com eles, nunca se sabe
quantos estão. Quem faz
parte da família, quem
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Considera que o principal problema está nos
jovens, nos filhos, que podem fazer tudo.
não faz parte da família.
É um vai-e-vém que não
acaba mais. Há sempre
uma garotada. Eles estão
em toda a parte, na rua,
na praça; eles gritam,
eles choram.»
«Os filhos são
pretensiosos… perigosos.
(…) Antes mesmo que
você diga uma palavra,
eles o acusam de
racismo; qualquer um
que discordar deles, para
eles é um racista. Então,
são eles os racistas.»
«Ouço daqui o que eles
vão dizer, o que eles vão
gritar para mim: “não
estão em sua casa; o
jardim não é seu; cuida
de seu cão, e basta. Não
viemos pedir-lhe
satisfação! Etc., etc.!”
Mas, se, ao menos, eles
soubessem… “Não estão
em sua casa!” Ora, eles
estão em minha casa,
eles estão na França, não
sou eu que estou na casa
deles.”
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Cada qual em sua casa
Françoise viveu em 1987 um momento de
tensão com o seu vizinho. Actualmente, mora
numa residência de funcionários da SNCF.
Ao longo da sua vida, Françoise passou por
diversos deslocamentos.
Françoise refere que em 1957 a mãe fica
doente e tem de abandonar o trabalho. A
família instala-se no prédio onde a mãe
trabalhava.
Em 1965 transitam para uma moradia nuns
novos prédios que são construídos.
Com a morte do pai, em 1976, a família sofre
um grande aperto económico. Françoise volta a
trabalhar e Thierry, com quem se casou em
1972, fica a trabalhar num local mais próximo
de casa.
Compram um pavilhão em Sartrouville, muito
pequeno para a família: a mãe, Françoise e
Thierry, a irmã de Françoise e ainda os dois
filhos de Françoise. A vida parecia correr bem à
família, foram melhorando o nível de
educação, os rendimentos foram aumentando.
«Em 1987, a família está
em completa desordem;
várias vezes, Françoise
volta a me contar as suas
alteracações com o
proprietário da casa
contígua à sua e as
providências que ela
tomou para pôr fim a
uma situação julgada
intolerável.»
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As relações com os vizinhos, com quem a casa
estava geminada, eram tranquilas, até que o
vizinho, um pedreiro português, decide
construir mais um andar na sua casa.
Tentaram apelar à comunidade e à lei, mas não
viram os problemas resolvidos. Françoise fica
bastante incomodada, sente-se afectada.
Acabam por vender a casa, indo para uma
residência que acolhe os funcionários da SNCF.
Mas com o tempo as coisas mudaram.
Françoise matricula os filhos numa instituição
religiosa mais distante, que sendo mais
exigente do ponto de vista financeiro, dará
mais oportunidades aos filhos.
Entrevista com Françoise
Françoise refere que os problemas com os
vizinhos repercutiram-se fora de casa, na rua,
na escola, com as pessoas.
«Um pouco de desordem
não assustava este
vizinho importuno; com a
reprovação geral, seu
pequeno jardim logo é
transformado em
galinheiro e pocilga; ele
não hesita em usar a
janela do litígio para
jogar lixo, ou
simplesmente roubar os
tomates carinhosamente
plantados por Thierry.»
«Agora, em 1991, as
coisas mudaram, e a
SNCF aluga para qualquer
um, e não só aos
funcionários, não é mais
como era, os antigos
locatários envelheceram,
não têm mais ânimo de
sair, e aos novos isto não
interessa […] Os jovens
norte-africanos são cada
vez mais numerosos nas
escolas da região […]»
«Começou por causa do
barulho, mas depois
houve ataques pessoais,
ameaças de morte, etc.»
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Os filhos dos vizinhos eram socializados pelos
pais a agir de forma agressiva com a filha de
Françoise, estendendo assim a pressão e o
conflito para fora de casa.
Carole era agredida e ameaçada pelos filhos do
pedreiro português. Françoise não se sentia
sequer segura na rua.
Apesar do subúrbio não incluir pessoas muito
sociáveis, a comunidade mostrou-se solidária
com o que acontecia à família de Françoise.
«Mas, então, as crianças,
que eram da mesma
categoria dos pais,
infelizmente, e que iam à
escola, ameaçavam
Carole na escola. E
quando eu a levava para
a escola, eles tinham um
carro, eu não sei quantas
vezes eles tentaram me
esmagar no passeio.
Chegou a esse ponto!»
«Devo reconhecer que
ficamos até surpresos
porque pessoas que não
falavam connosco, que
nem mesmo nos diziam
bom-dia, quando a
polícia chegou no dia em
que chamamos a polícia
porque já estava demais,
houve pessoas que vieram
no dia seguinte nos
perguntar o que havia
ocorrido.»
«O médico me disse:
“Você precisa mudar-se,
não pode ficar.”
“Eu estava de tal maneira
perturbada que eu o teria
matado facilmente.»
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O apoio da comunidade foi fundamental, já que
eles frequentemente iam para casa dos vizinhos
apenas para se distanciarem do barulho.
O jardim da família foi completamente
inutilizado: cercado por blocos de cimento,
inundado de maus cheiros. Ergueu-se uma
espécie de prisão naquele jardim.
«O que é importante
também é que, muitas
vezes, ficávamos
hospedados com os
vizinhos aos sábados e
aos domingos. As pessoas
nos convidavam para que
não ficássemos em nossa
casa. Elas eram gentis.
Felizmente nos
apoiavam, porque isso é
preciso reconhecer! Se
não nos tivessem
apoiado, não sei se
teríamos podido ficar
tanto tempo.»
«[…] quando nosso
vizinho do lado alteou
[sua casa], os cómodos
davam sobre nosso
jardim, o que não
adiantava nada porque,
bom, as ameaças estando
já no pé em que
estavam, eles jogavam
toda espécie de detritos
em nosso jardim. Estava
fora de questão servir-se
dele. Além do mais, eles
criavam animais bem
junto do nosso muro, o
que destilava
regularmente mau
cheiro!»
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Com a mudança para a residência de
funcionários da SNCF, Françoise pode afirmar
que se sente bem, suportada pelo apoio das
restantes famílias quando seja necessário,
promovendo jantares ocasionalmente, mas
sempre preservando o espírito de
independência.
A visão mediática
Apenas ganham existência real aqueles mal-
estares que são abordados pelos media e que,
com essa abordagem, estão sujeitos a
frequentes deformações.
A televisão toma o lugar central neste palco
mediático, sendo o principal factor para a
constituição das representações sociais dos
assuntos do momento. A imprensa escrita não
pode mais ignorar aquilo que foi exibido pelos
telejornais na noite anterior.
O discurso mediático sobre os subúrbios
problemáticos tem a sua origem nos anos 80,
com incidentes que ocorreram em Lyon, no
bairro de Vénissieux, caracterizada por uma
forte concentração de população emigrada.
Esses incidentes foram massivamente
divulgados pelos meios de comunicação, o que
conduziu à percepção do elevado estado de
degradação desses subúrbios, marcados pelo
vandalismo e abandono.
«[…] mas eu acho que são
pessoas inteligentes, que
sabem ver as coisas como
elas são, que raciocinam,
que podem manter uma
conversa.»
«Os mal-estares sociais
não têm uma existência
visível senão quando se
fala deles na mídia, isto
é, quando são
reconhecidos como tais
pelos jornalistas.»
«O que chamamos de um
“acontecimento” não é
jamais, afinal, senão o
resultado da mobilização
– que pode ser
espontânea ou provocada
– dos meios de
comunicação em torno de
alguma coisa com que
elas concordam, por
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Os jornalistas procuram o excepcional, o
espectacular: o mais violento. Assim, o público
absorve essas acções violentas.
Os jornalistas munem-se do chamado
jornalismo de investigação e, mais do que os
sociólogos, falam por cima dos polícias.
Mesmo na ausência de acontecimentos, a
máquina jornalística produz alguma coisa: um
repórter falará ao vivo durante alguns minutos,
embora nada tenha acontecido no subúrbio.
certo tempo, a
considerar como tal.»
«Os dominados são os
menos aptos a poderem
controlar sua própria
representação. O
espectáculo de sua vida
quotidiana não pode ser,
para os jornalistas, senão
ordinário e sem
interesse. Porque eles
são desprovidos de
cultura, e além disso
incapazes de se exprimir
nas formas requeridas
pela grande mídia.»
«Se esta representação
ocupa pouco espaço no
discurso dos dominados,
é porque estes
dificilmente são ouvidos.
Fala-se deles mais do que
eles falam, e quando
falam aos dominantes,
tendem a tomar um
discurso emprestado, o
que os dominadores
usam.
«A investigação
jornalística se parece
com a investigação
judiciária: a
objectividade consiste,
como em um processo,
em dar a palavra a todas
as partes envolvidas […]
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Os acontecimentos fazem sucesso durante
alguns dias ou um mês, para depois deixarem
de interessar, perder impacto e cair no
esquecimento.
Os jornais locais dão uma visão mais próxima da
realidade e provocam os jornais de Paris,
criticando a linguagem que utilizam. Esses
jornalistas dos grandes jornais preocupam-se
mais com os confrontos do que com a situação
objectiva que os provoca.
O trabalho de campo
propriamente dito limita-
se […] a algumas horas,
passadas no local, “para
dar um pouco de
colorido” às reportagens,
com geralmente um
cenário previamente
construído […]»
«Mas, longe de fazer
compreender, esta
“cobertura mediática”
serviu de motivo para ver
ressurgirem os
estereótipos sobre os
subúrbios e os grandes
conjuntos habitacionais
[…]»
«Os diferentes jornais
têm muito
evidentemente
desenvolvido estas
temáticas segundo as
opções ideológicas que
lhes são próprias.»
«[…] além de palavras
convencionais, como
“guetos, cidades-
dormitório, emigrados
sujeitos a constrangi-
mentos, polícia
selvagem, violência dos
subúrbios, etc.” há uma
realidade mais banal […]»
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Os jornalistas consideram sempre que o pior é
ficar em silêncio. Mas são elevados os custos
simbólicos da sua acção.
Os jovens que vivem nesses bairros, quando
procuram trabalho, ganham sentimentos de
vergonha em referir o seu local de residência,
que foi título de notícias.
A população mais politizada desse bairro
rejeita de forma vincada as perspectivas
impostas pelos media. Torna-se necessário que
a generalidade da população rejeite a visão
produzida pelos jornalistas.
Os jornalistas locais conseguem ter consciência
da visão real, estão próximos dos moradores.
Considera-se que as desgraças e reivindicações
devem ser expressas nos media, pois só assim
são reconhecidas pelo poder político.
«Os jornalistas são
certamente, repelidos
pelos jovens delinquentes
que não querem ser
reconhecidos nem
fichados pela polícia. Mas
são rejeitados também
pela população desses
conjuntos que vê ser
fabricada, nas
reportagens televisivas e
nos artigos dos jornais,
uma imagem
particularmente negativa
do subúrbio.»
«Comerciantes explicam
que eles, em geral,
tinham boas relações com
os jovens; professores, se
bem que enfrentem
grandes dificuldades nos
colégios, acham
excessivo que se fale de
“explosão social”»
«O poder teme
particularmente a produ-
ção (ou co-produção)
pela mídia desse tipo de
acontecimentos […]
porque, mesmo muito
momentaneamente, eles
podem tomar uma
dimensão política
considerável […]»
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A principal oposição aqui presente é entre os
media e o poder político.
Por vezes, os mecanismos gerais, como o
Ministério da Cidade, apenas acabam por anular
a acção daqueles que actuam localmente, os
assistentes sociais e os professores.
Os jovens sentem marginalização e exclusão.
A tendência para agrupar as famílias na mesma
zona, incluindo lá as ditas famílias pesadas,
produz reacções de conotação racista.
O desemprego torna-se particularmente
insuportável, os roubos tornam-se recorrentes.
«Para tentar
compreender, seria
necessário interrogar as
pessoas comuns sobre sua
vida quotidiana, tomar o
tempo, por exemplo ,de
constituir a história de
Vaulx-en-Velin.»
«É porque eles se sentem
integrados que eles vivem
mal sua não-integração
objectiva. Eles sentem
como injustiça o
desemprego que os
atinge mais fortemente
que os demais franceses:
subqualificados porque,
por razões culturais, eles
têm fraco desempenho
escolar, eles denunciam
os empregadores que, é o
menos que se pode dizer,
estão longe de se
disporem hoje a
contratar
preferencialmente jovens
de origem estrangeira.»
«O roubo é até mesmo
uma espécie de esporte
que cadencia o tempo
vago desses adolescentes
desocupados […]»
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O carro, visto como um símbolo de integração
no mercado de trabalho, é frequentemente
roubado ou vandalizado.
A ordem das coisas
Ali é um jovem beur de 20 anos, filho de
imigrantes, com origens na Argélia, em terra de
agricultores. O seu pai está bem
financeiramente como operador-analista numa
indústria química. Já a sua mãe é analfabeta,
falavam árabe em casa. O filho era a esperança
do casal, que se encontrava no momento da
entrevista em espera para saber se iria para a
classe superior na escola.
Junto com Ali estava também o seu
companheiro de imóvel, François.
Na escola, Ali enfrentou grandes dificuldades, a
língua era uma barreira para aprender a ler;
fecha-se num papel de duro, o que lhe foi
conduzindo ao fracasso escolar, levando-o à
delinquência social.
François ficou-se pela terceira série, vivia longe
da escola e não era assíduo às aulas.
«[…] o carro representa
de fato, para esses
jovens, o bem de
consumo por excelência,
objecto de números
investimentos.»
«Dividido entre os
sentimentos de milagre
(de todos os seus
companheiros do bairro,
apenas dois chegaram ao
fim) e o do fracasso (ele
sabe, no fundo, que sua
carreira escolar está
terminada), ele vive, e
diz muito lucidamente, a
defasagem entre a escola
e o “bairro”.»
«[…] ignorando comple-
tamente o francês
quando de sua entrada
tardia para a escola e só
falando árabe em família
[…], ele tem muita
dificuldade em aprender
a ler […]»
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Estes dois amigos têm tudo em comum, menos
a sua origem étnica, que em momento algum a
destacam. Ali é, neste caso, o que fica em
desvantagem, ao localizar-se no primeiro da
dicotomia imigrantes/nacionais.
Há uma solidariedade absoluta entre os dois.
Os dois pertencem ao mesmo grupo, são
igualmente estigmatizados, vistos como hostis.
Há uma fatalidade de todo aquele conjunto.
Ali refere que é quando se juntam a ele, na
terceira série, um grupo de crianças vindas do
conjunto, que o seu destino escolar piora.
«[…] François e Ali são
amigos inseparáveis e
falam com muita tristeza
do momento quando eles
terão de se separar,
porque está na ordem das
coisas.»
«É assim que, quando Ali
lembra o que lhe têm
valido seus problemas
com a polícia e a justiça,
e que ele chama suas
“besteiras” […] é
François quem,
identificando-se, evoca
as circunstâncias
atenuantes: “Bem, foi
quando nós precisamos
de dinheiro. Quando nós
precisamos muito de
grana, quando, digamos,
vimos belos blusões ou
belas calças e tudo”»
«[…] uma fatalidade,
todos aqueles que estão
amontoados nos lugares
de rejeição social, onde
as misérias de cada um
são redobradas por todas
as misérias nascidas da
coexistências e
coabitação de todos os
miseráveis […]»
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Entrevista com Ali e François
François diz que o emprego é escasso. No lazer,
por vezes fazem muitas asneiras e as pessoas
da vizinhança protestam e chamam a polícia.
Só há um campo de handebol para dois
conjuntos o que causa alguma rivalidade, são
várias gangues.
Os problemas recaem sempre sobre os mais
velhos.
A polícia vai falar com os pais deles, mas que,
com o tempo, foram habituando-se.
François não ia às aulas, tal como Ali, porque
era longe. Em contraponto, argumentam que a
escola que lhes é próxima é para os melhores,
para os inteligentes.
Ali menciona que a escola começou a ir mal a
partir da 6ª série, quando reencontrou os seus
companheiros. Ninguém do conjunto de Ali
frequenta as aulas, e os professores parecem
não ligar.
Apenas dois ou três vão às aulas, o resto
trabalha ou fica em casa.
Roubaram, mas não durou muito tempo. Era
por diversão; quando se chateavam deixavam
de o fazer.
«Sim, sobre os mais
velhos. Sobre o irmão
mais velho (de Ali) e um
outro grande.»
«Não tem jeito porque,
se estivéssemos na escola
ao lado, mas nós
estávamos, não sei
quantos quilómetros…»
«Bombons, bolos,
perfume e tudo. Mas os
mais velhos, eles
tomavam bebidas
alcoólicas; é isso que
acabou com muitos
rapazes, o álcool e depois
a droga.»
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Durante a noite, foram frequentes as vezes em
que Ali não tinha permissão para entrar nos
clubes, enquanto François tinha.
Há rapazes de outros conjuntos que aparecem
com droga para vender.
François já praticou desportos de defesa
pessoal, como simulações ou boxe.
Ali acredita que lhes faltam raparigas, que
possam impedir-lhes de fazer asneiras.
Não conversam nem ligam muito a política.
Quando Ali tinha cerca de 16 anos roubou uma
mota. Deixou-se apanhar pela polícia;
chamaram os seus pais. O pai ficou muito
chateado.
François vive há 19 anos naquele conjunto,
conhece toda a gente, estão lá todos os seus
companheiros. Só se vê a mudar se for para se
casar e organizar a sua vida. Ali diz que
gostaria de mudar, mas iria sentir saudades.
Têm consciência de que não passaram toda a
sua vida juntos. Um dia terão que se separar.
«Quando estávamos com
garotas, elas podem
falar, as garotas, dizer
“Oh! este é meu colega,
ele está comigo e tudo”.
Mas isto também não
funciona.»
«Ah! Eles vêm com droga.
Quando não têm dinheiro
para comprar, bem, eles
roubam.»
«Sim, ele queria me
desconjuntar. É normal,
hein. Eu o compreendo
[…] graças a ele não fiz
mais besteira.»
«Se um rapaz arranja
trabalho, ele avisa os
outros. E depois (…) É
melhor.»
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No conjunto deles a maioria mal sabem ler ou
escrever.
Ali não gostava de ler na escola, mal sabe ler.
Considera que a maioria dos seus colegas lê
como robô, palavra por palavra.
Há confrontos entre famílias, mesmo dentro do
próprio conjunto, algo que François classifica
como perigoso, já que alguns têm armas,
droga.
As raparigas olham-nos como delinquentes,
pelo sítio onde moram. A rapariga com quem
François está também é do conjunto, mas ainda
não se pretende casar com ela, precisa que ela
também trabalhe. Já Ali, refere que não tem
encontrado raparigas sérias, são difíceis de
encontrar.
Os pequenos do conjunto começam cedo a
fazer asneiras. François diz que com 10 ou 9
anos já o fazem. Entram nos jardins dos outros
e roubam cerejas. Ali acha que os pequenos
começam ainda pior, já que eles começaram
com bicicletas e agora qualquer menino de 13
ou 14 anos já fuma.
«Nós, nós somos pelo
menos 20 ou 30. Bem, há
quantos que sabem ler?
Bem, eu falo ler bem. Há
10. Os outros lêem mal.»
«Um rapaz, lá, Eric, tinha
seu aparelho, o outro
queria tomá-lo e depois
seu companheiro veio
defendê-lo; eles
brigaram, seu irmão
desceu, ele chamou seu
irmão.»
«Não, elas não são sérias.
É só você virar as costas,
bem, pronto, você não a
vê mais. Ela já está com
outro.
«Sim, sim, depois do
cigarro, o que é que isso
vai-lhe causar, isso vai
virar vício. Depois eles
quererão estar bem. Eles
vão começar a pegar. Há
um rapaz em nosso
conjunto, que idade ele
tem? Ele deve ter uns 15
anos, bem ele, ele faz
tudo, ele toma comprimi-
dos, haxixe, álcool […]
Ele abandonou a escola e
tudo. Ele perdeu-se.»
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Uma família integrada
Maria, com 50 anos, é uma mulher espanhola,
militante do partido comunista e muito activa
na associação de inquilinos.
É oriunda de uma família camponesa de 10
filhos e vem para França no começo dos anos
60, sem ainda sequer ter completado os 18
anos, por falta de emprego na sua aldeia.
Na França conheceu o seu marido, também
espanhol, e que deixou o país por
circunstâncias similares. Têm dois filhos, com
24 e 16 anos no momento da entrevista.
Os primeiros tempos em Villeneuve são
recordados com carinho, uma zona repleta de
espaços verdes e agradáveis. Com o andar dos
anos, constroem-se mais prédios, a dinâmica da
zona muda, sobe o desemprego para os jovens.
Os roubos multiplicam-se, os prédios degradam-
se, muitas famílias saem, e surgem problemas
de coabitação.
Maria viveu durante muito tempo a ilusão de
voltar ao seu país, e isso impediu-lhe de ganhar
o incentivo para sair de Villeneuve, que
encarou como uma residência provisória. Tem
consciência que este local é um perigo para os
seus filhos, expostos a focos de delinquência.
«Maria D. mora em
Villeneuve, conjunto
residencial construído há
uns 20 anos no subúrbio
de um grande centro
urbano. Desalojada por
causa da reurbanização
do centro da cidade onde
ela morava há uns 10
anos, ela foi transferida
para essa ZUP no começo
dos anos 70, logo no
início da construção dos
primeiros prédios.»
«Depois ela lembra os
problemas de coabitação
que se multiplicaram
entre a população
europeia e uma
população de origem
árabe cada vez mais
numerosa […]»
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É uma mulher independente, ao contrário das
argelinas, que vivem sob a dominação
masculina.
A distância cultural e social que separa Maria
do país que a acolheu é muito menor que a que
separa a generalidade das mulheres argelinas.
Maria e seu marido foram bem sucedidos e
tentaram abrir caminho para os filhos.
Os filhos dos argelinos tipicamente recusam a
condição dura de operário e desprezam os pais
que se submetem a essa exploração.
Também ao nível da fecundidade nota-se
diferenças. Maria voluntariamente limitou-a,
tendo apenas dois filhos, em contraponto às
numerosas famílias norte-africanas. Nestas
famílias numerosas, o pai limita-se a corrigir os
erros dos filhos, sem grandes resultados para os
que se comportam mal.
Maria compreende estas famílias, está próxima
deles. Mas ainda assim preocupa-se, já que
sofre agressões quotidianas que esses jovens
cometem. Ela saiu-se bem na vida graças aos
seus esforços.
«Não sou francesa, mas
sou europeia, é
exactamente a mesma
coisa.»
«O filho mais velho de
Maria D., que trabalha na
oficia de seu pai, pode
pensar em seguir o
exemplo paterno e se
preparar para assumir o
pequeno negócio familiar
[…]»
«Com efeito, o tamanho
dessas famílias torna
quase sempre impossível,
nessas zonas urbanas, um
controle estrito e
efectivo de todos os
filhos por parte dos
pais.»
«Longe da resignação e
do fatalismo ou, ao
contrário, dos projectos
totalmente irreais que
caracterizam frequente-
mente as fracções mais
baixas da classe operária,
Maria D. mostra uma
atitude de reinvindição
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Entrevista com Maria D.
É sistemático o controlo e investimento que
Maria faz nos seus filhos.
No caso de Frederico, fazia planos de que ele
fosse para a Inglaterra. E foi por isso que, em
conversas com a assistente social da escola,
descobriu que ele estava a faltar às aulas.
Ficou surpresa: não tinha recebido nenhum
aviso em casa.
Maria afirma que irá sempre lutar pelo filho, já
que cada um só tem uma vida.
Maria relata alguns episódios de vandalismo no
bairro, roubaram-lhe o apartamento.
razoável; é preciso
buscar, pela luta,
melhorar mas sem querer
o impossível.»
«Ele passou raspando e
eu já fui chamada duas,
três vezes porque ele
começava a não mais
respeitar os professores e
tudo isso. Eu lhe disse,
“ah! bom?”, eu lhe passei
um sabão e acreditava
que isso ia melhorar; ele
terminou a sexta rente,
mas terminou.»
«Quando eu soube que
ele não mais obedecia
aos professores, eu disse,
não posso mais deixá-lo.
Porque se eu o deixasse,
ele ficaria entre os
garotos que procedem
mal, que não mais
obedecem aos
professores.»
«Quando eles roubaram o
apartamento, fizeram um
buraco na porta, eram
portas… [pouco
resistentes], fizeram um
buraco na porta e
entraram […] Levaram a
televisão, um toca-fitas,
um aparelho de som que
os meninos tinham, fitas
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Apesar de tudo, Maria não quer sair de
Villeneuve.
Participa activamente em associações, já tendo
discutido algumas vezes com árabes, que
reivindicam tudo.
As associações argelinas eram dominadas pelos
homens, as mulheres ficavam em casa.
Não se considera racista, pelo contrário, acha
que os árabes são mais.
Os jovens são assolados com o problema do
desemprego. Maria refere que não tem os
problemas que existem em Villeneuve; há
famílias que vivem bem, trabalham e têm
carros. As famílias com problemas são as
famílias numerosas, seja de que nacionalidade
forem.
cassete, garrfas.»
«Se há pessoas ruins,
ouça, há pessoas ruins em
toda parte, e o senhor
sabe que não há ladrões
só em Villeneuve porque
minha irmã mora em T,
[comuna vizinha] e, outro
dia, roubaram-lhe o
carro, então…»
«Isso me chateava
porque, quando eu era
jovem, não possuía nada
e era feliz e vivia
contente, e eles não o
são […]»
«Eles, às vezes, chegam à
porta e, quando vêem
muitos europeus, não
entram. É preciso que
eles estejam em maioria,
os árabes. Isso, eles,
hein, não é preciso dizer
que somos racistas, os
mais racistas são eles.»
«[…] todas as famílias
numerosas apresentam
problemas. De qualquer
nacionalidade que
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Com luta, com esforço, com maior aplicação na
escola, Maria acredita que dessa forma os
jovens conseguem um emprego.
Maria insistia para que o filho fosse todos os
dias ao centro de emprego procurar trabalho.
Mas refere que há jovens que com o subsídio de
desemprego se sentem satisfeitos e não
procuram emprego.
sejam. Excepto quando
os pais são severos e
correctos que… Mas a
maioria são os árabes.
São as famílias mais
numerosas.»
«Porque os jovens, uma
vez que encontram
trabalho, tornam-se
sérios. À parte os jovens
que vadiam, como já lhe
disse agora mesmo,
porque há jovens que
vadiam, mas, enfim, é
uma minoria […]»
«Eu lhe juro, se eu tiver
boa saúde, para mim não
há desemprego.»
«Sou a primeira a me
levantar todos os dias às
sete horas ou às seis e
meia para trabalhar e vou
deixar o mais novo
dormir, ou ficar sem
fazer nada? Enquanto
meu marido e eu
trabalhos como cães? Ah!
não! Mas eu sei também
que nem todo o mundo é
como eu.»
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Um mau investimento
Dona Tellier é a presidente do comité de
defesa dos comerciantes da sua cidade. São
fortes os riscos que este pequeno comércio
sofre nos bairros de torres e nos grandes
conjuntos. Registaram-se incidentes de roubo
num pequeno centro comercial, com artigos
desportivos raros e cobiçados. Dona Tellier
tornou-se comerciante tarde, apenas aos 50
anos, após ter estado noutras actividades sem
ligação ao comércio.
Foi eleita conselheira municipal, ficando
encarregue da vida desportiva. A instalação da
loja seria uma forma de aplicar a experiência
obtida.
Entrevista com Dona Tellier
Os produtos da loja de desporto eram muito
procurados por jovens.
A loja foi vista como uma provocação a quem
não tinha acesso àqueles artigos. Dona Tellier
sofreu três roubos, só foram apanhados à
terceira.
«O revés que representa
para ela a destruição de
sua loja, em parte devido
à sua inexperiência, é
tanto mais doloroso
porque esta falência é
também o fracasso de um
projecto de promoção,
pa-cientemente
construído.»
«Recusando-se a tornar
as pessoas responsáveis
por sua infelicidade, ela
busca, numa análise
militante da escola e do
mercado de trabalho, os
meios de compreender,
se não de suportar, o que
lhe acontece.»
«[…] sem cessar, eu tinha
jovens que queriam pegar
esses artigos sem pagar;
mas, enfim, é verdade
que esses artigos são
muito cobiçados.»
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Todos os estabelecimentos comerciais, antes de
serem incendiados, foram vandalizados. Os
jovens provocam, mesmo tendo a Dona Tellier
oferecido roupa através de leilões.
Os jovens sofrem com o desemprego, difíceis
condições de vida. Ambicionam um poder
aquisitivo que só poderão ter com trabalho.
«[…] apesar de tudo, eu
tinha uma clientela que
era muito, muito
simpática e depois é
preciso dizer também
que eu conhecia desde
quando estou nesta
cidade.»
«[…] havia um número
enorme de drogados que
vinham e eu já havia
alertado também os
eleitos, todo o mundo
estava ao par e é preciso
dizer que nada foi feito
[…]»
«[…] esses jovens que
vinham, eles vinham
procurar roubar, mais as
palavras, mais os
insultos. Agressivos,
muito, muito agressivos.»
«Duas vezes quando eles
entraram na loja, eram
duas horas da manhã, e é
de facto engraçado
quando a companhia de
vigilância avisa: “vá
depressa à sua loja que
ela está prestes a ser
arrombada”.»
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Dona Tellier vê o seu futuro confuso, incerto.
Afirma que quando não se tem bagagem
universitária, tem de se trabalhar a dobrar.
A reabilitação
Hocine é um dos mais antigos moradores do
conjunto habitacional. Chega a França nos anos
70 e é um operário qualificado da estrada de
ferro tunisina. Aqui arranja um emprego na
montadora de uma fábrica de camiões. Durante
os anos 80, o conjunto onde vive degrada-se, os
seus moradores são essencialmente
desempregados, famílias problemáticas.
O senhor Hocine procura, acima de tudo,
defender a boa imagem do conjunto.
Entrevista com a família Hocine
Hocine foi um dos primeiros a chegar ao
conjunto. No inicio havia um bom inter-
relacionamento.
«Eu me lembro de que
quando fui eleita, eu
fiquei doente. Quantos
jovens eu recebi, o
tempo todo, que se
vendiam por qualquer
preço, que estavam
dispostos a varrer os
estádios, que me pediam
um emprego, um
emprego municipal,
dispostos a tomar conta
das praças de esporte ou
a varrer o ginásio, com
diplomas, é loucura.»
«Dona Hocine mantém
seus filhos em casa para
preservá-los das
violências do conjunto,
ela tem vontade de
mudar-se para um lugar
mais calmo, mas seu
marido não quer. Trair a
solidariedade seria trair-
se a si mesmo, além disso
ele se empenha na
transformação do lugar.»
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Hocine quis permanecer mais alguns anos no
conjunto, para depois voltar para a sua terra.
O público do conjunto mudou, os antigos
partiram, vieram novos. Hocine tentou
construir amizades, mas foram tentativas
falhadas.
Alguns vizinhos decidiram criar um comité de
inquilinos.
No início eram oito pessoas no comité, agora
apenas duas.
Hocine comenta que costuma visitar uma idosa
de 87 anos, que mora no conjunto desde a sua
criação, dá-lhe apoio, verifica se precisa de
alguma coisa. E afirma que faria isso com outra
pessoa qualquer, independentemente da sua
nacionalidade.
«E depois, não sei quem
chegou, bom; começaram
a ir embora os franceses,
alojaram árabes, quer
dizer, de minha raça […]»
«Quando chegaram, eu
tentei. Mas havia pessoas
que não queriam falar
com ninguém. E,
mediante os trabalhos de
reabilitação, constatei
que havia muita
imundície; que eles
jogavam sacos de lixo do
oitavo andar […]»
«São 94 moradores (…)
Naquele momento, eu
disse, “o único meio era
constituir uma comissão
de inquilinos, eu lhe
asseguro, antes, eu não
queria ter aqueles
problemas, eu disse:
“façam o comité, estou
com vocês, eu lhes darei
a mão”.»
«[…] ela vivia… mas ela
perdeu o marido; ela se
encontra completa e
totalmente sozinha […],
hoje está lá, amanhã
pode ser que… não esteja
mais lá.»
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O isolamento das pessoas é cada vez maior. O
conjunto torna-se uma espécie de ponto ode
encontro da droga.
Os pais dos jovens não fazem nada a respeito,
não os educam, diz Hocine.
É o Departamento, ao substituir franceses por
árabes, que cria o gueto.
Para Hocine, voltar a mudar depois de todo o
tempo passado em França, seria como voltar a
ser estrangeiro.
A senhora Hocine não tem a mesma opinião,
quer mudar-se: procura um local mais calmo; é
estranho agora, afirma não ser racista, mas
sente-se diferente por ter visto todos os seus
vizinhos mudarem-se. O casal toma atenção aos
filhos, com ligeiros traços de intranquilidade:
saem pouco.
«Um pai me disse: “ouça,
você sabe, a nova
geração…” e eu disse:
“não, não é a nova
geração”, e eu disse:
“não incrimino os
rapazes, jamais incrimino
os filhos, incrimino
vocês, vocês são os
únicos responsáveis […]»
«Não fomos nós, o gueto,
que o criamos, foi a
sociedade, e eu não
quero incriminar o
Departamento […]»
«[…] os imigrantes não
são os espanhóis, não são
os portugueses, não são
os turcos, não são… Os
imigrantes são os norte-
agricanos, são os
tunisianos, os argelinos,
os marroquinos!»
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Tentam dar tudo o que os filhos pedem, um
computador, brinquedos. O mais velho quer ser
piloto, o segundo ainda não sabe.
Hocine já tentou alertar outros pais sobre erros
que os filhos tenham cometido, mas eles não
acreditam, pensam que o filho é um santo. Mas
ele quer que lhe digam caso o seu filho faça
alguma asneira.
Casado e com filhos, torna-se difícil refazer a
vida na Tunísia. Tem responsabilidades. Tenta
garantir que não falte nada aos filhos, que
tenham tudo o que precisem para ter êxito.
«Estou começando a
trabalhar, eu me privo,
ela se priva. Eles não se
privam. Eu lhes digo: “Eu
sou liberal, meu único
sucesso para mim é que
vocês tenham êxito em
seues estudos, é tudo;
nada quero de vocês;
nada quero de vocês
porque, quando vocês
estiverem grandes, vocês
vão me… não, não quero
absolutamente nada.»
«Ficar aqui. Estou
inteiramente habituado
como aqui. Mas, senhora,
os que são racistas dizem
que a França é para os
franceses. Mas nós,
somos o quê? Antes nós
éramos o quê? Vivíamos
com os franceses,
morávamos com os
franceses e íamos à
escola com os franceses,
nós éramos vizinhos. E
eu, pessoalmente, jamais
deixei, jamais reneguei a
França. A França é minha
segunda pátria. Veja
você, eu sou grato a ela.»
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Hocine acredita que as televisões contribuem
para uma imagem negativa do conjunto, e
considera a informação mentirosa.
A última diferença
Raymond T. é zelador de imóveis. Casado,
cinquentão. Partilha com a mulher um
apartamento grande, mas escuro, num
conjunto suburbano.
Parou de estudar aos 13 anos, sem ter
aprendido nada. Começou a trabalhar cedo.
Aos 25 anos deixa a sua terra natal para se
mudar para uma metrópole regional.
Teve uma vida difícil, e talvez por isso seja
mais compreensivo com os jovens com quem
partilha a tarefa de zelador.
Thierry e Christian partilham visões próximas.
De origem popular, pertencem a famílias
numerosas. São felizes no seu conjunto, onde
cresceram e nunca deixaram. Mas não aceitam
bem a crescente degradação dessas zonas.
Christian tem 35 anos. Pertence a uma família
de cinco filhos. Após o pai sofrer um acidente
de trabalho, Christian e seus irmãos ficaram
algum tempo na assistência pública, já que a
mãe não conseguia cuidar deles.
Thierry, com 38 anos, é mais repressivo. O mais
velho de 8 filhos, tem origens populares. A
família foi abalada com a morte prematura da
mãe. É casado há mais de dez anos com Sylvie,
com quem já tem dois filhos.
«[…] tudo o que eles
dizem dos subúrbios é
falso.»
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Sylvie recebeu uma educação menos rigorosa
que a de Thierry. Opta sempre pelo diálogo e
discussão com os jovens, considerando que a
persuasão é mais eficaz que a repressão. Com
um capital cultural de importância relativa,
denuncia o seu passado militante de esquerda.
Os dois zeladores permanecem na zona, porque
não podem ou não querem ir para outro lugar.
Não caíram mais baixo na sua trajectória social
graças a uma educação severa.
Eles sabem que os jovens sofrem com o
desemprego.
Os dois zeladores vêem partir, com raiva
contida, os melhores moradores, os franceses
que se mudaram. Os zeladores não
compreendem os sentimentos de injustiça que
fomentam o comportamento desviantes dos
jovens do conjunto.
Entrevista com Christian, Thierry e Sylvie
Villeneuve foi construída para os argelinos, que
vivam em barracas.
«Foi sem dúvida porque
Thierry só conseguiu sair-
se ao preço de uma
conduta moral muito
estrita, única barreira
para não cair
socialmente, que ele foi
levado a reagir com força
contra o comportamento
dos jovens do conjunto e,
por um ressentimento
compreensível, a se
tornar repressivo por sua
vez.»
«[…] o desemprego pesa
sobre esses jovens de
uma maneira […] mais
aguda que sobre eles e
reconhecem que esses
comportamentos
desviantes são causados
principalmente pela
situação de anomia
criada pela imigração
[…]»
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Só haviam argelinos, havia um bom
entendimento. Como as pessoas vivem
amontoadas naqueles alojamentos, acabaram
por se desgastar e foram saindo, conta
Christian.
Thierry conta que as famílias que entretanto
vieram causaram distúrbios. Os pais
trabalhavam, mas entretanto aposentam-se.
Mas os filhos, agora adultos, estão
desempregados, roubam, arrombam, consomem
droga. Christian revela que foi a partir de 81
que o conjunto começou a degradar-se, e que
não são apenas os jovens norte-africanos,
também os franceses se juntam a eles, com
idades entre os 18 e os 20 anos.
Thierry acha que a solução passa por retirar do
conjunto as famílias mais problemáticas.
São sempre as mesmas pessoas que fazem
asneiras, que roubam, que vandalizam.
Christian diz que, tendo um carro, não o
podemos deixar sozinho dois minutos, pois
podemos voltar para o encontrar com um pára-
brisas partido, ou com o rádio roubado.
Thierry acredita que alguns jovens nunca vão
trabalhar na vida. São jovens que só gostam de
fazer asneiras, vão para a prisão, são soltos,
portam-se bem algum tempo e repete-se o
ciclo.
«[…] é também preciso
dizer uma coisa, tudo o
que pertence ao
Departamento, ele põe lá
dentro quem quer, então
traz pessoas que antes
estavam numa empresa
auto-administrada, eram
indesejáveis, foram
mandadas embora e as
recolocaram aqui.»
«Eu, há uma coisa, eu, é
minha opinião, eu digo,
não consigo
compreender, bom, são
os pais, porque deixam
rapazes que têm… idade
média é 14, 15 anos…
toda a noite.»
«É preciso encontrar um
terreno longe de
Villeneuve e, depois,
propor a essas famílias,
as que são
verdadeiramente
indesejáveis, colocá-las
nesses alojamentos e
deixar que se
entendam.»
«E, além do mais, para
eles… é um orgulho ir
para a cadeia (…) Os
grandes é que empurram
os menores […]»
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Christian assume-se como racista, mas não para
todos, apenas para aqueles que cometem
asneiras.
Ambos confessam que já foram ameaçados, e
conhecem outros zeladores que também já
foram ameaçados.
Christian comenta que à noite eles são mais
numerosos, vão para fora e gritam até de
manhã.
Thierry afirma que se lhes disseram alguma
coisa, eles vingam-se nos carros. Ou estouram
os pneus, segundo Christian.
Os dois referem que o que lhes cansa no
trabalho é o stress, e não o trabalho em si.
Com a constante expectativa de vir a sofrer
ameaças, ficam com os nervos à flor da pele.
Thierry pensa que a solução é dar-lhes uma
surra ocasional.
Contudo, consideram o trabalho agradável.
Thierry não quer mudar, sempre viveu em
Villeneuve. Refere que as famílias
problemáticas deviam ser dispersadas pela zona
e não aglomeradas lá. São os norte-africanos
que estão na prefeitura, que trabalham lá.
Thierry acha que apenas eles conseguem
emprego.
«Se você disser qualquer
coisa [aos jovens], você é
racista. Eu não concordo.
Conheço e tenho
companheiros tunisianos,
argelinos… […] “eu sou
racista com os
bagunceiros, é tudo”.»
«É à noite que eles são
numerosos […] quando o
tempo está bom, […] eles
foram dormir quando nós
estávamos indo para o
trabalho.»
«O que a rapaziada
precisa não é de cadeia,
é de uma boa surra de
tempos em tempos, isso
os acalmaria muito
melhor que metê-los no
xadrez, porque eles
ficam na cadeia um mês
ou dois, eles voltam […]»
«É o que dizem, é preciso
ficar bronzeado, colocar
um pouco de graxa,
tornando-se como eles,
que você terá tudo.»
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Thierry confessa que por vezes é inútil reparar
as coisas lá, já que os jovens voltam a destrui-
las. Aponta a culpa na droga.
Sylvie entra na conversa. Refere que ficou lá
em baixo uma hora a conversar com os jovens.
Estão desinteressados com a vida, não sentem
ter futuro, sofrem de racismo por todo o lado.
Considera que esses jovens adquiriram uma
certa mentalidade, já que roubam desde cedo,
já com 4 ou 5 anos.
Thierry acha que eles já não respeitam
ninguém, nem professores.
Thierry acha que eles não valorizam sequer
aquilo que lhes é dado, referindo-se a um
galpão que lhes foi dado, com mobília, pintado,
e que passado oito dias estava todo quebrado,
tendo sido fechado.
Sylvie argumenta que eles, sendo árabes, que
não têm emprego, e por isso recorrem à
violência, que não deve ser encarada como
praticar o mal, mas como um grito de atenção.
Sylvie pensa que a base está em tentar
construir, em apelar aos jovens que se reúnam
para construir algo, em vez de apenas destruir.
Thierry responde com o caso de um ginásio,
que o prefeito cedeu aos jovens para
utilizarem, e que acabou por ser usado como
local de consumo de droga e álcool.
«Eu digo, enquanto
houver droga haverá
desordem. Ah! a droga, é
um flagelo sagrado […]»
«Com eles é: “queremos
isso, queremos isso,
queremos isso”, no final
das contas, é dado a eles
e isso não os impede de
roubar.»
«Eu, eu conheço um que
bate no pai porque o pai
não lhe empresta o
carro.»
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Christian acredita que qualquer um pode
encontrar emprego. Sylvie discorda.
Sylvie acha que é a mentalidade das pessoas
que deve mudar.
Sylvie diz estar contente em certa medida pelo
local onde vivem, pois permite o convívio com
várias raças.
Thierry diz que os filhos não são educados no
racismo.
Sylvie refere ainda sentir-se desorientada
politicamente, não sabe para onde ir, todos lhe
desagradam.
«Não, não é tão evidente
assim. São jovens sem
nenhuma qualificação…»
«Não, é preciso dialogar,
dialogar, é preciso ouvir
as pessoas e todo o
tempo, é preciso não
soltá-los. É como uma
propaganda intensiva,
mas é isso, é preciso…
falar, falar, falar, falar.»
«[…] não são educados no
racismo, como faz meu
irmão com os filhos dele.
Na casa dele, a mais
nova, que tem cinco,
quatro anos, ela está no
maternal, ele não pára
de lhe dizer. “os árabes
são bosta”.»
82
Anexo II
Notícia 1
FRANÇA
Sarkozy lidera com mão de ferro um
Estado enfraquecido 15 setembro 2010 SPIKED LONDRES
Policiamento da comunidade, à moda francesa. Um oficial da CRS (polícia antimotim). AFP
A expulsão dos ciganos não é um simples caso de racismo, mas uma política que denuncia a profunda
crise da República Francesa, afirma um defensor inglês das liberdades civis.
Josie Appleton
A expulsão de ciganos decretada pelo Presidente Nicolas Sarkozy suscitou protestos dentro e fora do país. Claro
que as imagens da polícia francesa a limpar acampamentos ciganos é chocante e reprovável: foram despejados
cerca de 40 acampamentos e 700 pessoas ameaçadas de expulsão. Esta campanha não é o resultado de um
complexo de racismo ou agressividade do Presidente francês, mas de um esforço específico do Estado francês.
O Estado francês foi o mais centralizado da Europa. Fez da burocracia uma arte, ao construir uma intrincada teia
de instituições públicas de elite que inclui desde o presidente, que preside, ao autarca local em cada cidade ou
aldeia. Neste momento, o Estado francês está gravemente enfraquecido. Há muitas regiões – as chamadas
“zonas sensíveis” – ocupadas sobretudo por populações imigrantes, onde o Estado tem pouca ou nenhuma
importância e onde a polícia só entra fortemente armada.
Nestas áreas, existe sempre uma tensão latente, prestes a explodir. Foi um incidente deste género que deu
origem à expulsão dos ciganos. A 16 de julho, um jovem cigano passou de carro pelo ponto de controlo de Saint
Aignan (Loire), levando um polícia no capô do carro. Ao passar no posto de controlo seguinte, foi alvejado pela
polícia. No dia seguinte, 50 ciganos provocaram desacatos com machados, destruindo um posto de polícia e
83
outros edifícios governamentais. Foi no seguimento deste incidente que Sarkozy reprovou um “determinado tipo
de comportamento do povo nómada” e afirmou que os residentes dos acampamentos ilegais seriam desalojados.
Espanha tem quase o dobro dos ciganos de França
Houve um outro incidente que levou Sarkozy à sua segunda grande iniciativa de verão: a intenção de retirar a
nacionalidade a qualquer cidadão francês “de origem estrangeira” autor de crimes violentos. Isto começou depois
de a polícia ter alvejado um assaltante à mão armada em Grenoble, provocando uma série de distúrbios no
bairro de imigrantes e trabalhadores da cidade. “Parece Beirute! Juro que parece Beirute!”, afirmou uma
residente local com o alarido dos carros da polícia e dos helicópteros. Uma escalada de violência como esta
poderá acontecer a qualquer momento em muitas áreas de França. Uma simples operação de rotina com a
polícia a prender um motociclista pode dar azo a uma escalada de violência e ao deflagrar de um confronto entre
população e polícia.
Estes acontecimentos não resultam da revolta inerente às populações imigrantes. De facto, comparando com
França (400 mil), há quase o dobro dos ciganos em Espanha (725 mil) e 300 mil no Reino Unido. Mas só em
França é que existe uma forte tensão entre os ciganos e o Estado que resulta, sem dúvida nenhuma, das
relações do Estado francês – ou a falta delas – com as populações imigrantes.
Ao contrário do Reino Unido, a França não foi capaz de criar instituições oficiais intermédias relativamente às
preocupações governamentais de ordem social. No Reino Unido, o Estado pôs em marcha um verdadeiro
arsenal de instituições antissociais, incluindo novos poderes locais (ordens para comportamentos antissociais,
zonas de distúrbios, multas de ocorrências) e novos funcionários públicos (de apoio comunitário, guardas de
subúrbios). Embora possa dizer-se que isto não dá grandes frutos, conseguiram reinstalar novas formas de
contacto entre populações distintas e o Estado e cumprem uma função disciplinadora.
Relações militarizadas com os subúrbios
Quando tentou instaurar “contratos de segurança local”, Nicolas Sarkozy queixou-se dos resultados desoladores:
“22 contratos em 2007, oito em 2008 e um em 2009”, um número que no Reino Unido teria sido rapidamente
alcançado pelas autoridades locais. França revela uma impressionante arquitetura do poder central – todas
aquelas redes e instituições públicas de topo – embora afastadas e isoladas da sociedade.
Quando todas as tentativas de comunicação falharam, a França militarizou ao máximo as suas relações com os
problemáticos subúrbios. Ao passo que o Reino Unido possui “funcionários de apoio comunitário” – que andam
de um lado para o outro de blusão e chamam a atenção às pessoas que mandam pastilhas para o chão – a
França tem uma “brigada anticrime” que é, no fundo, um força de intervenção armada e treinada para conflitos
de rua.
As pessoas que vivem em áreas sensíveis olham para estas brigadas armadas geralmente como um exército
invasor. Não são apenas os mais novos que reagem assim. “Vão para casa!”, gritava uma mulher mais velha ao
84
ver a polícia a posicionar-se em Grenoble. Num outro incidente, uma mulher com filhos foi presa por ter mordido
um polícia na perna. Estes confrontos são, literalmente, uma “guerra” entre uma pesada máquina estatal e uma
população à margem.
Ação presidencial com efeitos reais na vida das populações
Como afirma Denis Muzet, sociólogo, os ciganos funcionam em primeiro lugar como símbolos da desordem
contra a qual o Estado declara guerra. Entretanto, a lei que retira a nacionalidade a um cidadão francês “de
origem estrangeira” demonstra que o que está em causa é especificamente uma hostilidade em relação ao
Estado. Os crimes pelos quais as pessoas seriam desnacionalizadas envolvem, basicamente, ataques aos
representantes do Estado, não apenas polícias, mas também outros funcionários públicos.
Este verão, Nicolas Sarkozy e o seu executivo participaram em eventos mediáticos através dos quais o Estado
aproveitou para recuperar terreno perdido. O ministro do Interior, Brice Hortefeux, patrulhou pessoalmente as
ruas de Grenoble na ronda da noite, como se conseguisse, por ele próprio, devolver a segurança à nação.
Imagens do Estado a reclamar áreas desgovernadas visavam o público em geral. Hortefeux afirmou, numa
entrevista: “De facto, as ações realizadas sob as ordens do Presidente da República unem o povo francês”.
Os ataques aos símbolos da desordem – ciganos ou delinquentes – são dirigidos à maioria, de quem o Estado
também se encontra afastado, mas a questão, como refere Denis Muzet, é que isto não passa de um “gesto
presidencial sem efeitos práticos na vida diária das pessoas”. As sondagens de opinião mal se ouviram ao longo
da ofensiva de verão. Por ser uma representação televisiva, os telespetadores franceses não se comoveram. O
resultado final destes ataques simbólicos é o maior agravamento das relações entre Estado e minorias e o maior
distanciamento entre forças policiais e população.
85
Anexo III
Notícia 2
EXTREMA-DIREITA
O contágio do medo 21 setembro 2010 LA STAMPA TURIM
Estocolmo, 16 de setembro de 2010. Um cordão policial interpõe-se entre un militante dos Democratas da Suécia (em
primeiro plano) e manifestantes "anti-racistas". AFP
A afirmação do partido Democratas da Suécia (DS) nas legislativas de 19 de setembro não é um caso
isolado. Em todas as sociedades do norte da Europa, outrora admiradas pela sua abertura e pela sua
coesão, a desconfiança em relação à imigração dá força aos partidos abertamente xenófobos.
Enzo Bettiza
O resultado da votação sueca assume um significado que faz da Suécia o campeão das profundas alterações
que, há alguns anos, estão a abalar o panorama político da Europa do Norte, outrora imune às tempestades,
neuroses e medos endémicos reinantes nas regiões meridionais e orientais do Velho Continente. O significado
histórico e emblemático daquilo que se tornou patente nas urnas vai muito além de um simples ajustamento ou
deslocação dos votos da esquerda para a direita.
O primeiro elemento impressionante é, com efeito, a confirmação daquilo a que The Economist chama "a
estranha morte da social-democracia sueca". Durante anos, os socialistas europeus – e não só – admiraram e
observaram, na nação guia da Escandinávia, um socialismo democrático, simultaneamente austero e generoso,
capaz de combinar um fisco muito exigente e uma despesa pública pesada com uma economia forte e uma
qualidade de vida elevada. Os países vizinhos e semelhantes – a Finlândia, a Dinamarca, a Noruega e até a
Holanda – tentavam imitar com sucesso a lição que continha em si uma notável – e por vezes audaciosa –
tolerância no setor dos direitos civis, concedidos tanto aos cidadãos nacionais como aos imigrantes.
86
Suecos cansados do modelo socialista são indulgentes com os estrangeiros
Depois do misterioso assassinato, nunca completamente esclarecido, do primeiro-ministro Olof Palme, em 1986,
as primeiras sombras começaram a pairar sobre o paraíso social-democrata de Estocolmo. A estabilidade
política principiou a turvar-se, os conservadores chegaram ao Governo e, em 1994, a Suécia assinou o tratado
de adesão à União Europeia.
Com o alargamento progressivo da UE à Europa oriental pós-comunista, os suecos, já cansados de um modelo
socialista demasiado severo para com os seus compatriotas e demasiado indulgente para com os estrangeiros,
foram também eles confrontados com dois problemas insidiosos que o conjunto da Europa vive há vários anos: a
crise económica aliada à imigração não controlada.
No plano económico, os conservadores moderados do primeiro-ministro Frederik Reinfeldt, no poder desde
2006, souberam enfrentar a crise com sagacidade e competência, sem desmantelar as bases do sistema social-
democrata mas corrigindo os seus excessos ideológicos e alargando a margem de manobra do setor privado,
através de medidas liberais. O compromisso funcionou, o PIB aumentou e o desemprego diminuiu. Hoje, a
Suécia ocupa uma posição de vanguarda entre as economias mundiais. O contraste com as dificuldades
enfrentadas por vários países europeus é mais do que notável: é quase esmagador.
A neurose das civilizações culturalmente mais abertas
Contudo, o perigo que atormenta os países escandinavos e muitos outros países europeus acabou por se abater
sobre esta Suécia economicamente recuperada e estabilizada. Esse perigo está presente, com uma força
particularmente neurótica, em Estocolmo, em Helsínquia, em Copenhaga, em Amesterdão, na parte flamenga da
Bélgica: ou seja, exatamente nos berços das civilizações nórdicas mais evoluídas, aquelas que, até anteontem,
eram culturalmente mais abertas à tolerância e à convivência com quem vinha de fora, com o exilado, com o
imigrante em busca de alimento e de proteção.
A herança de tolerância, de caridade humana, legada às terras nórdicas glaciais pelo protestantismo e pela
social-democracia, como que se diluiu no enorme medo dos migrantes, que vagueiam e batem às portas de todo
o Velho Continente. O curto-circuito provocado pelo medo da invasão de estrangeiros – um medo ancestral, que
muitas vezes qualificamos com demasiada facilidade de "xenofobia" – está a fomentar uma contrapartida política,
inclusive na muito cortês Suécia. Com efeito, foi aqui que se verificou uma enésima "primeira vez", com a
ultrapassagem do limiar eleitoral de 4% pela extrema-direita de Jimmie Aakesson e com a embaraçosa entrada
do seu partido no Parlamento.
Não sabemos o que poderá acontecer em Estocolmo, nos próximos dias. Em contrapartida, sabemos que o
medo está a propagar-se no Norte. Na Finlândia, pela voz dos "verdadeiros finlandeses", que exaltam a
"dignidade das tradições da floresta". Na Dinamarca, o Partido do Povo, que baseia a sua campanha no "perigo
dos imigrantes", está em alta. Na Holanda, o Partido da Liberdade de Geert Wilders tem 24 assentos
parlamentares e mantém ligações cada vez mais estreitas com os consanguíneos nacionalistas flamengos do
87
Vlaams Belang. Todos, incluindo os radicais nacionalistas de Budapeste e de Bucareste, vão reunir-se, em fins
de outubro, em Amesterdão, para homenagear o já lendário Wilders.
Como pode ver-se, o caso sueco está longe de ser um caso isolado. A Europa ficou mais pequena, enquanto o
medo, que seria necessário estudar e não apenas rejeitar em nome de um "politicamente correto" anémico,
aumenta e torna-se mais omnipresente. Não basta condenar desordenadamente os "vilões": seria preciso
também esforçarmo-nos por explicar e compreender o motivo por que eles passaram a sê-lo – do Báltico ao
Danúbio.
88
Anexo IV
Notícia III
DEBATE
Imigração, inevitável e indispensável 25 maio 2011 TROUW AMSTERDAM
Trabalhadores agrícolas norte-africanos sazonais no Sul de França. AFP/Anne-Christine Poujoulat
A imigração é benéfica para a Europa, assegura um grupo de pessoas eminentes, entre as quais Joshka
Fischer, Javier Solana e Timothy Garton Ash. Uma mensagem que os dirigentes europeus deveriam
escutar, escreve um jornalista holandês.
Hans Goslinga
Em pleno debate sobre a imigração na Europa, o grupo de eminentes personalidades sob a liderança de Joschka
Fischer apresentou, a 11 de maio, um relatório (“Viver em conjunto”: Conjugar a diversidade e a liberdade na
Europa do séc. XXI) cuja principal mensagem é a seguinte: Se não aprender a cultivar a sua diversidade, a
Europa deixar-se-á atrasar inevitavelmente no plano demográfico.
Por uma simples razão essencial: sem imigração, a população ativa diminuirá em cem milhões de pessoas nos
próximos cinquenta anos, enquanto a população total aumenta e envelhece. A Europa deverá, portanto, abrir-se
à imigração e à diversidade na sociedade. Na verdade, não podemos pedir aos imigrantes que renunciem à sua
religião, cultura ou identidade quando chegam à fronteira.
Na opinião deste grupo composto por oito personalidades, entre as quais o antigo secretário-geral da NATO,
Javier Solana, a antiga comissária europeia, Emma Bonino e o académico e autor, Timothy Garton Ash, também
nada há de mal no facto de os imigrantes trazerem a sua bagagem cultural, desde que respeitem a lei.
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A diversidade é uma realidade na Europa
Melhor ainda, a chegada de novas culturas pode contribuir para a criatividade de que a Europa necessita, hoje
mais do que nunca. Uma mensagem difícil de transmitir. Contraria completamente o discurso populista que
transforma a migração em massa numa ameaça para o Ocidente.
Joschka Fischer, antigo ministro alemão dos Negócios Estrangeiros e a sua equipa apelam insistentemente junto
das potências líderes da Europa, não só na esfera política, mas também no mundo da cultura, dos órgãos de
comunicação social e do ensino, para que se insurjam contra os falsos profetas. Consideram que os políticos das
grandes correntes, ao submeterem-se ao populismo, tornando-se, desta forma, mais atraentes aos olhos dos
cidadãos, não cumprem a sua missão de liderança.
O presidente Nicolas Sarkosy, o primeiro-ministro David Cameron e a chanceler alemã Angela Merkel deveriam
lembrar-se disso. Nos últimos tempos, estes dirigentes europeus declararam sucessivamente que a sociedade
multicultural tinha falhado. Fischer e a sua equipa, que trabalham para o Conselho da Europa, evitam utilizar este
termo que, na sua opinião, não se sabe verdadeiramente se representa uma ideologia ou uma realidade.
Limitam-se a constatar que, na Europa, a diversidade é uma realidade, que foi uma realidade e que o continente
não pode desviar-se desta realidade sem trair o Estado de direito democrático e se quiser continuar a ter um
papel num mundo confrontado com a poderosa concorrência da China, do sudoeste asiático, da Índia e do Brasil.
A imigração é uma bênção
No mesmo dia, e estritamente pelas mesmas razões, o Presidente dos EUA, Barack Obama, num longo discurso
proferido na cidade de El Paso, junto da fronteira mexicana, defendeu a legalização dos clandestinos presentes
nos Estados Unidos, estimados em 11 milhões de pessoas. Não façamos confusão: nos EUA, a imigração é tão
controversa como na Europa.
Também lá, suscita uma hostilidade violenta. Também lá, constatamos a mesma hipocrisia: os clandestinos são
bem-vindos para fazerem os trabalhos mais humildes em troca de salários magros. E a disponibilidade desse
tipo de trabalhos é atrativa. Um outro ponto em comum é a migração de sul para norte. Atualmente nos EUA, um
em cada seis americanos tem origem latino-americana; este ano, esta categoria ultrapassou o número da
população negra e o espanhol é oficialmente a segunda língua do país.
Na Europa, a pequena ilha de Lampedusa é, agora, o símbolo da atração exercida pela Europa próspera e
democrática sobre as populações da África e da Ásia. Esta migração do sul para norte irá, provavelmente,
continuar e, na opinião de Obama e Fischer, trata-se de uma bênção, desde que se mantenha controlada. Mas,
existe uma diferença fundamental entre os Estados Unidos e a Europa. Obama pode incluir os seus argumentos
em defesa da imigração num grande discurso sobre a história e a força do seu país.
90
Quando se dirigiu à multidão presente em El Paso, disse: “Vejam a Intel, a Google, a Yahoo e o eBay, as
grandes empresas americanas que nos colocam na vanguarda do setor das altas tecnologias. Adivinhem quem
fundou cada uma destas empresas. Um imigrante”.
No mês passado, em Washington, apanhei um táxi cujo motorista era originário da Etiópia. Confessou-me com
algum sarcasmo: “O sonho americano é uma ilusão para a maioria das pessoas, mas é o que nos motiva”.
A Europa não tem este tipo de histórias estimulantes. No continente agora sobressai uma história negativa aqui
ou ali e os argumentos económicos e culturais em prol da imigração já não são o tema principal da atualidade e
do debate político.
VISTO DE ESPANHA
Imigração é sempre um ganho
Perante a imigração, “a Espanha sai a ganhar”, afirmam a El País os professores universitários María Bruquetas
Callejo e Francisco Javier Moreno Fuentes: segundo eles, “os trabalhadores estrangeiros, diabolizados durante a
recente campanha eleitoral [em Espanha] pelo crescente populismo xenófobo, trazem mais dinheiro aos cofres
do Estado do que recebem”. “Os números desmentem os preconceitos”, escrevem os professores porque, no
que diz respeito à proteção social, os imigrantes são “contribuintes líquidos”, porque são jovens e a sua taxa de
atividade é superior à da população autóctone. Atualmente, menos de 1% dos que recebem uma pensão, em
Espanha, são imigrantes, apesar de representarem 10% da mão-de-obra. Da mesma maneira, Callejo e Fuentes
sublinham que a proporção das despesas de saúde e educação consagradas aos imigrantes passou de 1%, em
2000, para, respetivamente, 5 e 6% em 2007, continuando a ser inferiores à proporção da população imigrante
em relação à população total (12%). Os dois professores afirmam, também, que “a concentração dos imigrantes
em alguns bairros e comunidades provocou desequilíbrios na procura e oferta de serviços sociais e, por isso
mesmo, uma deterioração e uma degradação desses serviços”, e por esse motivo, “a responsabilidade é
diretamente atribuída aos imigrantes pelos habitantes”. É por essa razão, concluem, que “a intervenção das
administrações públicas é crucial para reduzir a impressão de uma concorrência na utilização dos recursos raros
que alimenta a xenofobia”.
91
Anexo V
Notícia IV
ESLOVÁQUIA-HUNGRIA
Guerras de línguas, poder e fronteiras 31 julho 2009 HETI VILÁGGAZDASÁG BUDAPESTE
Foto de Teo Dias.
Bratislava aprovou recentemente uma lei que impõe o eslovaco como língua obrigatória nos locais
públicos. Budapeste rejeita esta disposição e fala numa deriva nacionalista eslovaca. Nesta discussão,
vêm ao de cima velhos conflitos entre dois países que partilham uma fronteira e uma história em comum.
László Tamás Papp
O método faz lembrar a política para as minorias de Ceauşescu: de agora em diante, todos os médicos húngaros
têm de falar em Eslovaco com os seus doentes húngaros, mesmo que nem uns nem outros o desejem. De forma
igualmente surrealista, o orador de um evento cultural tem de dizer em Eslovaco as palavras que transmitem o
seu saber, ainda que o público seja 100% húngaro.
Esta lei , que denota uma clara aversão aos húngaros, gerou a unanimidade entre os partidos parlamentares
húngaros. À semelhança da polícia religiosa de um Khomeini ou dos talibãs, as autoridades de Bratislava
funcionam agora como uma "polícia linguística". Ironia da História: os "fundamentalistas étnicos" da consciência
nacional dos dirigentes eslovacos copiam, com o atraso de uma guerra, os piores exemplos do nacionalismo
magyar de outrora.
"Nunca reconhecerei outra nação que não a húngara sob a autoridade da santa coroa da Hungria", disse Lajos
Kossuth [1802-1894]. A sua política marcada pela falta de visão conduziu ao fracasso da guerra de
independência. Em 1848, baseando-se no seu chauvinismo, os Habsburgos lançaram as minorias étnicas contra
os húngaros. Em vez de promoverem uma autonomia federativa, os políticos húngaros tentaram manter
estruturas centralizadoras. O que contribuiu para a perda de dois terços do território húngaro, em 1920 [com o
92
Tratado de Trianon].
Uma lei que agrada à extrema-direita húngara
Os nossos vizinhos desenvolveram o seu nacionalismo de Estado, da mesma maneira obtusa, segundo critérios
étnicos e recorrendo à assimilação forçada. Na época das democracias modernas, uma política nacionalista
deste tipo – assente no desejo de vingar golpes sofridos há um século e meio – não tem justificação. Apesar
disso, é esse tipo de política que eles praticam.
No que lhe diz respeito, a UE limita-se a murmurar num tom de reprovação e a fazer de árbitro sem convicção.
Enquanto os extremistas da Europa observam o que se passa em Bratislava. "O que se passa lá, vai passar-se
também aqui", pensam sem dúvida. Com os imigrantes ou com as minorias religiosas. Com todos aqueles que
eles acham antipáticos. Na Hungria, a censura linguística na Eslováquia reforça as posições do Jobbik [partido
de extrema-direita]. Esta lei inflama a demagogia étnica. E incita os extremistas a dar uma aparência jurídica às
suas discriminações.
É caso para perguntar por que razão agem assim os responsáveis do Estado eslovaco. Do ponto de vista
económico, o seu país é o primeiro "da turma". Então porquê? É precisamente por isso. Estamos a descobrir que
fazer cortes nas prestações sociais e reestruturar o sistema acarreta imensos sacrifícios. Na Eslováquia, a
demagogia nacionalista surgiu para aliviar as tensões. "Quando há menos pão no Estado providência, demos-
lhes um pouco mais de circo nacionalista!" É esta a receita da política eslovaca.
Se a União Europeia não levantar a voz, a jovem Nação que é a Eslováquia pode transformar-se num jovem
Estado delinquente, o que conduzirá a um impasse sangrento, tanto para os eslovacos como para os húngaros.
Porque onde florescem os pogroms, os frutos da prosperidade económica apodrecem.
VISTO DA ESLOVÁQUIA
"Já não fazemos parte do Império húngaro"
A nova lei da língua, aprovada para "proteger" o Eslovaco e assinada em 17 de Julho pelo Presidente eslovaco
Ivan Gašparovič, tornou-se uma nova causa de dissenção entre as duas margens do Danúbio. "Todos os
cidadãos eslovacos têm o direito de se exprimir na língua nacional eslovaca, em território eslovaco", explica o
primeiro-ministro Robert Fico , no diário SME. Trata-se de uma reacção às fortes críticas do Parlamento húngaro
e do Partido (eslovaco) da Coligação Húngara (SMK), que defende os direitos da minoria húngara que vive no
sul do país.
A intervenção dos húngaros na legislação eslovaca irrita os dirigentes do país. "Fico: A lei
não será revogada, nós não estamos no império húngaro", titula o SME. "Os partidos
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políticos húngaros ficariam contentes se, no sul do pais, os eslovacos aprendessem Húngaro
para ali viverem", garante Fico no mesmo jornal. Por seu turno, o ministro da Cultura, Marek
Maďarič, que esteve na origem da lei, lamenta que "a política húngara tenha ficado
bloqueada no século XIX. Os húngaros pensam que podem continuar a ditar a lei aos
eslovacos".
A lei eslovaca divide os dois países mas congrega os cientistas. "Esta lei é desvantajosa para
os húngaros e também para os eslovacos", declara um linguista eslovaco, que assinou umaa
petição internacional lançada pela Academia de Ciências de Budapeste. Para eles, aquele
diploma é "um absurdo linguístico", escreve o SME. E, para sublinhar que a lei não atinge
apenas o Húngaro, o site checo de informação Aktualne.cz salienta que até "o popcorn e o
fastfood vão desaparecer da Eslováquia".
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Anexo VI
Notícia V
IMIGRAÇÃO
O falhanço da integração ao estilo sueco 11 maio 2010 LA STAMPA TURIM
Centro comercial de Rosengard. AFP
Os bairros populares de Malmö, que foram recentemente palco de escaramuças entre jovens imigrantes
e a polícia, são testemunho da dificuldade em integrar uma população que parece recusar o modelo
escandinavo e que se fecha naquilo que já é qualificado como o "gueto da nova Suécia multiétnica".
Gianni Armand-Pilon
O Volvo rola com velocidade e mete pela Amiralsgatan, a via que atravessa o bairro popular de Rosengard, o
"jardim das rosas" de Malmö. A música grega que invade o habitáculo contrasta com a tímida Primavera sueca.
Andreas Konstantinidis ultrapassa uma série de quiosques de venda de kebabs [carne assada num espeto
vertical] e falafels [bolinhos de grão-de-bico fritos] com dísticos em Árabe, em seguida entra numa pequena
avenida ladeada de árvores e estaciona. Para lá da cerca de madeira, rodeada por três edifícios de
apartamentos de renda social, podemos ver o parque onde Zlatan Ibrahimovic deu os primeiros pontapés numa
bola. Em toda a volta, só se vêm mulheres de véu, que regressam a casa com as compras.
Não há um dia sem confrontos entre imigrantes e polícia
Andreas Konstantinidis é o presidente daquilo a que aqui se chama o gueto da nova Suécia multiétnica. Chegou
a Malmö em 1974, ano da invasão de Chipre pela Turquia. Conhece cada uma destas ruas, cada um destes
edifícios e as histórias da difícil integração dos seus 23 000 habitantes de 170 nacionalidades diferentes, com
uma esmagadora maioria de nacionais de países mergulhados na guerra e em conflitos: Iraque, Afeganistão,
Palestina, Somália. A percentagem de desempregados ronda os 90%: estes sobrevivem graças às famosas
prestações sociais escandinavas.
95
Os incidentes violentos de finais do mês de Abril não são novidade [entre 28 e 29 de Abril, um grupo de jovens
do bairro, de cara tapada, vandalizou escolas, quiosques, caixotes dos lixo e automóveis, para protestar contra a
detenção de um deles. A rebelião só acalmou com a intervenção da polícia]. Não há um dia em que os jornais
não noticiem confrontos com a polícia e tensões entre as minorias imigrantes e a maioria – cada vez mais
reduzida – de suecos de gema (180 000 pessoas, num total de cerca de 270 000 habitantes).
Os jornais sublinham que, na origem destas tensões, está o facto de a maioria dos estrangeiros serem
refugiados políticos. Por outras palavras, não vieram para a Suécia em busca de uma vida melhor: estão aqui
apenas por necessidade e acabaram por exportar para esta zona pacata os conflitos que incendeiam os seus
países distantes.
Uma cidade pós-industrial convertida em esquizofrénica
Que fazer? No seu pequeno escritório da Câmara Municipal, Mattias Karlsson, de 33 anos, membro da direcção
nacional da Sverige Demokaterna, uma espécie de Liga do Norte à moda sueca, é claro: "O único meio é
bloquear a imigração. As estatísticas oficiais, já preocupantes, escondem o descalabro dramático de Malmö. Não
referem, por exemplo, que as crianças filhas de pais suecos já são uma minoria em relação às crianças com pelo
menos um dos progenitores nascido no estrangeiro. Na Administração Pública, já há muitas pessoas contratadas
com base num único critério – falar Árabe. Nas piscinas, organizam-se aulas separadas para homens e
mulheres. A celebração do Natal está a perder-se, por receio de discriminar a população muçulmana. Sem falar
nos delitos, 90% dos quais são cometidos por estrangeiros e cujas vítimas são suecas, em 90% dos casos.
" Karlsson não esconde as intenções do seu partido: "Nas eleições de Setembro próximo, vamos ultrapassar a
barreira dos 4% e entrar no Parlamento. Em Malmö, já estamos nos 7,5% e contamos duplicar a nossa votação."
O que se passa é que Malmö, como muitas cidades pós-industriais, parece ter uma vida esquizofrénica. Feita de
receios alimentados por uma boa dose de populismo fácil mas, também, de expectativas diversas. Por um lado,
a fatia dos rendimentos produzidos pela indústria – a começar na indústria portuária – caiu, nos últimos 40 anos,
de 50 % para 12%, mas, por outro lado, o enorme impulso dado pela imigração contribuiu para baixar a média de
idade da população para níveis que fazem sonhar o resto da Europa e que elevaram Malmö ao estatuto de
cidade jovem e na moda.
Muitos judeus têm medo e mudam-se para Israel
"É uma questão de ponto de vista", admite Kent Andersson, o social-democrata que é presidente da Câmara
adjunto de Malmö. E explica: "Como todas as grandes mudanças, aquela por que esta cidade está a passar tem
aspectos positivos e negativos. Vejo isso quando apresento as estatísticas sobre a idade média dos habitantes.
Os professores universitários ficam entusiasmados: ‘Que sorte, têm o futuro garantido!’ Em contrapartida, se falar
sobre isso com um polícia, tenho a certeza de que ele vai abanar a cabeça e dizer: ‘Tenho muita pena de si,
deve ter cá uma destas taxas de delinquência juvenil…’ Uns e outros têm razão mas, pessoalmente, acho que é
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preferível ter todos estes jovens para educar – sejam quais forem as dificuldades de integração – do que não ter
nenhuns, como acontece na Dinamarca."
É uma questão de ponto de vista, de facto. Andreas Konstantinidis, por seu lado, recusa-se a baixar os braços:
"Um grande número das pessoas que vivem em Rosengard não se sentem suecas e não querem ser suecas.
Talvez seja preciso investir mais meios na escola para os fazer mudar de ideias. Acontece que acredito no
modelo deste país e tenho a certeza de que essas pessoas acabarão por ter sucesso, como aconteceu comigo."
Entre os 2 000 membros da comunidade judaica muito poucos partilham esta opinião: "Está a iludir-se. Malmö
tornou-se uma província do Médio Oriente. Os nossos estudantes recebem ameaças de morte. Quando
entramos nas turmas para falar sobre o Holocausto, os estrangeiros saem porque se recusam a ouvir-nos.
Muitos dos nossos já fizeram as malas e partiram para Israel."
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Anexo VII
Notícia VI
A EXTREMA DIREITA NA EUROPA/ 5
Os turcos ainda assustam os austríacos 6 abril 2010 LE MONDE PARIS
Manifestação do FPÖ contra as mesquitas em Hohenems, Vorarlberg. Com o cachecol, o líder do partido, Heinz-
Christian Strache.
No próspero Land austríaco do Vorarlberg, o Partido Austríaco da Liberdade (FPÖ) obteve mais de um
quinto dos votos agitando o espectro da “invasão” dos imigrantes turcos, que ameaçam “a paz social”.
Joëlle Stolz
Em meados da década de 1950, ainda podia ver-se uma cruz gamada talhada na própria rocha da montanha
que se eleva atrás do castelo de Hohenems. Os militantes nazis desta cidade do Vorarlberg, no extremo
ocidental da Áustria, quiseram marcar, desde o início da sua chegada ao poder em 1938, o fim da “dominação
judaica”: as forças conjugadas dos Alpes e do nacional-socialismo deviam perseguir os miasmas estrangeiros aí
aclimatados desde há três séculos.
Hoje, a maior parte dos habitantes ignora que a “rua do Mercado” se chamava “rua dos Cristãos”, e que a actual
“rua da Suíça”, bordejada de belas casas, era a “rua dos Israelitas”. A fábrica têxtil dos irmãos Rosenthal, os
pioneiros do algodão estampado, há muito que fechou. As grandes famílias judias de Hohenemes, que tinham
ligações desde Alexandria a Constantinopla, não são mais do que uma recordação.
Os novos medos
Os medos de uma parte da população têm hoje outro nome. “O problema é sobretudo a imigração turca”, explica
Horst Obwegeser, 47 anos, dono de uma empresa de electricidade e chefe da secção local do Partido austríaco
da Liberdade, o FPÖ, a principal força da direita populista. “Não queremos tornar-nos numa pequena Istambul”,
diz ele.
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Este discurso, angustiado e ameaçador – é preciso “sancionar” os pais que negligenciam o alemão, enviar os
atrasados linguísticos para “escolas especiais” -, encontra eco. Nas eleições municipais de 14 de Março, o FPÖ
obteve, em Hohenems 22,6% dos votos (mais 9,79% do que em 2005).
Nas eleições legislativas de 2008, atingiu 17,5% a nível nacional e, desde então, mantém-se com cerca de 20%
de intenções de voto nas sondagens. Aberto sobre o espaço germânico em volta do Lago Constança, o
minúsculo Vorarlberg é o mais próspero dos Lands austríacos e berço de empresas de ponta. É nesta região
privilegiada, onde a omnipresença das montanhas impregna a identidade colectiva, que se implanta a retórica
xenófoba. Como é possível não ligar o sucesso do referendo anti-minaretes organizado, na Suíça, pelo partido
de Christoph Blocher (cuja agência de comunicação trabalha para o FPÖ), aos incidentes que perturbaram o
Liechtenstein?
A imprensa de Vaduz suspeita que um núcleo extremista tenha atacado com cocktails Molotov um restaurante
turco, em finais de Fevereiro, e vários prédios habitados por imigrantes. Um jovem agrediu um estudante turco
num autocarro batendo-lhe com uma garrafa na cabeça. No fim de 2008, os neo-nazis do Liechtenstein e da
Suíça abriram uma verdadeira guerra aos turcos tendo como resultado dois feridos graves. É muito, para um
país de 35 mil e 800 habitantes.
O "excesso de estrangeiros"
“O Ocidente nas mãos dos cristãos” é um dos slogans favoritos do FPÖ, inconformado com o facto de o Islão se
ter tornado a segunda religião da Áustria, com 500 mil crentes. Tal como a Caríntia, o antigo feudo do populista
Jörg Haider, o Vorarlberg adoptou, em 2008, uma regulamentação que permite recusar construções “não
conformes com os costumes locais”. Ou seja, os minaretes. O Museu Judaico de Hohenems respondeu
organizando – na véspera das eleições legislativas, em Setembro de 2008, e antes das regionais de Vorarlberg,
em 2009 – dois colóquios com título provocador: “Como construir um minarete conforme aos costumes locais?”
O director do Museu, o alemão Hanno Loewy, foi tratado por um dirigente do FPÖ como “judeu exilado vindo da
América”.
“Cumpro apenas a missão que foi atribuída ao Museu desde que abriu, em 1991”, defende-se M. Loewy
continuando: “Correndo o risco de incomodar alguém, trata-se de contribuir para uma sociedade multicultural”.
Obwegeser, por seu lado, denuncia uma “Überfremdung”, esse “excesso de estrangeiros” que compromete a paz
social. “Nos jardins-de-infância”, diz ele, “60% das crianças vêm de famílias de imigrantes” onde a natalidade é
superior à das famílias de cepa austríaca. Há cerca de 30 mil pessoas de origem turca em Vorarlberg. “Somos
16% da população total do Land, mas 25% da população escolar”, afirma Attila Dincer, secretário-geral da
Plataforma Turca de Vorarlberg, que agrupa uma dezena de organizações. Acrescenta que há cerca de 600
empresas geridas por turcos, empregando quatro mil pessoas.
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Basta observar o afável Senhor Dincer a conversar, em inglês, com o embaixador dos Estados Unidos na
Áustria, durante um encontro orquestrado pelo Museu Judaico, para se perceber o potencial desta comunidade
que se integra no Vorarlberg tal como outrora aconteceu com os trabalhadores italianos. Mas não sem conflitos.
Em 2005, havia sete candidatos de origem estrangeira nas listas municipais do “pequeno Land”. A 14 de Março
deste ano eram já 76, e os novos cidadãos austríacos pesaram de maneira visível graças aos “votos
preferenciais” que permitem favorecer um candidato mal colocado. “Por este caminho, em breve teremos um
presidente de Câmara turco!”, alarma-se Obwegeser. Em qualquer caso, o Vorarlberg terá um cemitério
muçulmano: a dois passos do velho cemitério judeu de Hohenems.
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