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O debate atual sobre a teoria dos princpios
e a distino das espcies normativas entre
princpios e as regras devem ser atribudos a
Ronald Dworkin. Desde a edio do texto O
modelo de regras I o arcabouo hermenutico
positivista sofreu um enorme abalo. O edifcio
de uma hermenutica tributria do aguilho
semntico, ou seja, aferrada ao exame do texto
em termos convencionalistas, pragmatistas,
realistas ou meramente positivistas apresentou
rachaduras insanveis.
Desse modo, se vamos abordar a questo
de uma distino entre regras e princpios,
desde j deixamos claro que estamos
examinando o problema sob o ponto de
vista de diferentes espcies de normas
jurdicas, o que, de plano, afasta um conjunto
REGRAS E PRINCPIOS: POR UMA DISTINO NORMOTEORTICA
lvaro Ricardo de Souza Cruz*
RESUMO: O autor aborda a distino entre regras e princpios a partir de uma distino
normoteortica, expondo as diversas teorias em um esforo de no cair na armadilha do
sincretismo imprprio do emprego de teorias incompatveis entre si.
amplo que a doutrina usualmente designa
como princpios e que, na verdade, so
postulados jurdicos, ou seja, tanto condies
de possibilidade para o conhecimento
quanto condies destrancendentalizadas
para o reconhecimento da validade desse
conhecimento sistema jurdico. Assim,
postulados devem ser entendidos como
elementos sem os quais soobram a coerncia,
a integridade e a consistncia do Direito,
sob o ponto de vista propedutico de um
paradigma cientfico especfico. Desse modo,
a supremacia da Constituio, a unidade,
a concordncia prtica, a subsidiariedade
dentre outros, devem ser compreendidos
como postulados jurdicos e, por conseguinte,
exorbitam o interesse desse captulo que vai
Desde que essa supremacia no seja entendida em termos positivistas, ou seja, que a mesma pressupunha a abertura da identidade do sujeito constitucional. Nesse sentido, sugerimos a leitura de nosso artigo Poder Constituinte e Patriotismo Constitucional.
* Procurador da Repblica em Minas Gerais Mestre em Direito Econmico e Doutor em Direito Constitucional pela UFMG, Professor da Graduao e da Ps-Graduao da Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais.
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se ater exclusivamente ao exame do campo
de normas jurdicas.
Feitas tais consideraes, haveria de
se perguntar qual a utilidade de examinar
a teoria dos princpios quase cinqenta
anos depois da contribuio de Dworkin.
A resposta vem de imediato: pelo fato de o
modo de operar o Direito no Brasil ser ainda
claramente ligado ao que ele denominava
aguilho semntico, isso , a uma forma
convencionalista de operao do Direito. Tal
constatao vem, no somente do cotidiano
de nossos juzes, procuradores, promotores
e advogados, mas tambm na multiplicao
de textos normativos que se aferrram idia
iluminista de que uma boa lei possa resolver
nossos problemas. Desse modo, temas como
os do requisito da repercusso geral para o
conhecimento de recursos extraordinrios
e da smula vinculante, a distino
entre atos administrativos vinculados e
discricionrios, a profuso de mudanas
legislativas na tramitao dos recursos no
Cdigo de Processo Civil, nada mais so do
que reminiscncias de uma cincia do Direito
ligada filosofia da conscincia.
Portanto, a teoria dos princpios de
Dworkin descortina no Direito a perspectiva
de uma hermenutica crtica e ps-positivista.
Logo, precisamos levar a srio a questo da
superao dos parmetros hermenuticos dos
paradigmas jurdico e filosfico anteriores.
Soma-se a essa constatao o fato de que
h, na doutrina, uma profuso de conceitos
e classificaes sobre regras e princpios.
A distino entre princpios e regras virou moda. Os trabalhos de direito pblico tratam da distino, com raras excees, como se ela de to bvia, dispensasse maiores aprofundamentos. A separao entre as espcies normativas como que ganha foros de unanimidade. E a unanimidade termina por semear no
Assim, vamos expor algumas dessas teorias
de maneira a deixar clara nossa viso sobre o
tema, tendo em vista um esforo de no cair na
armadilha cada vez mais comum na doutrina
brasileira: o sincretismo imprprio do emprego
de teorias incompatveis entre si.
Desse modo, percebemos, mesmo com
o risco inerente de reducionismo a qualquer
classificao, que o estudo da principiologia
jurdica assume trs paradigmas distintos:
o clssico, o moderno e o contemporneo.
O paradigma clssico ignora ou no mximo
vislumbra um papel secundrio aos princpios
jurdicos. O paradigma moderno assume
a juridicidade dos mesmos e os coloca em
posio de destaque no ordenamento jurdico
em funo de sua abstrao, generalidade,
abertura textual. Em sntese, os princpios
mais o conhecimento crtico das espcies normativas, mas a crena de que elas so dessa maneira, e pronto. (vILA, Humberto. Teoria dos princpios. Da definio aplicao dos princpios jurdicos. . ed. So Paulo: Malheiros, 00, p. 8).
Canotilho resume os critrios de distino entre regras e princpios nesse paradigma: a) Grau de abstraco: os princpios so normas com um grau de abstraco relativamente elevado; de modo diverso, as regras possuem uma abstraco relativamente reduzida. B) Grau de determinabilidade na aplicao do caso concreto: os princpios, por serem vagos e indeterminados, carecem de mdediaes concretizadoras, enquanto as regras so susceptveis de aplicao directa. C) Grau de fundamentalidade no sistema das fontes de direito: os princpios so normas de natureza ou com um papel fundamental no ordenamento jurdico devido sua posio hierrquica no sistema das fontes (ex. princpios constitucionais) ou sua importncia estruturante dentro do sistema jurdico (ex. princpio do Estado de Direito). D) Proximidade da idia de direito: os princpios so standards juridicamente vinculantes radicados nas exigncias de justia (Dworkin) ou na idia de direito (Larenz); as regras podem ser normas vinculativas com um contedo meramente funcional. E) Natureza normogentica; os princpios so fundamento de regras, isto , so normas que esto na base ou constituem a ratio de regaras jurdicas, desempenhando, por isso, uma funo normogentica fundamentante. (CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e Teoria da Constituio. Coimbra; Almedina, 997, p. 04/05).
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se tornam fundamento axiolgico do Direito.
Por fim, as correntes contemporneas se
esforam por reafirmar sua distino para
com as regras a partir dos ganhos do giro
lingstico, no sentido de construo de bases
ps-positivistas para o Direito. Cumpre, pois,
o exame sinttico de cada uma delas de modo
a demonstrar que nossa doutrina, de modo
geral, os emprega de forma assistemtica e
no cientfica. Cumpre tambm verificar se as
teorias contemporneas so suficientemente
racionais como suporte terico para tal
distino, de modo a evitarmos que a Cincia
caia em uma fundamentao dogmtica.
Nesse sentido, o interesse remanescente
sobre o paradigma clssico s ganha alguma
relevncia se considerarmos que a maior
parte do ensino jurdico e o modo de
produo do Direito no Brasil ainda so
preponderantemente positivistas. Desse
modo, a hermenutica jurdica evolui de uma
completa indiferena em relao a eles at
a admisso de sua cogncia normativa em
carter subsidirio.
O paradigma do Estado Liberal de Direito
conformou a atividade jurisdicional mediante
uma diviso qualitativa dos poderes, de
forma que o ato legislativo fosse entendido
como um provimento estatal fruto da vontade
geral ou da maioria, em um contexto de
uma democracia representativa com suporte
no pensamento de Locke e de Montesquieu,
e o ato jurisdicional, um ato de cognio da
legalidade posta.
O Direito, enquanto ordenamento, ao estabelecer limites universais preponderantemente negativos (no furtar, no matar, etc., como traduzido, por exemplo, por Fichte) , ento, visto como o conjunto de regras que delimitam os espaos de liberdade de um indivduo as linhas demarcatrias da fronteira em que
termina a liberdade de um indivduo e em que se inicia a liberdade de outro. Assim, o paradigma do Estado de Direito ao limitar o Estado legalidade, ou seja, ao requerer que a lei discutida e aprovada pelos representantes da melhor sociedade autorize a atuao de um Estado mnimo, restrito ao policiamento para assegurar a manuteno do respeito quelas fronteiras anteriormente referidas e, assim, garantir o livre jogo da vontade dos atores sociais individualizados, vedada a organizao corporativo-coletiva, configura, aos olhos dos homens de ento, um ordenamento jurdico de regras gerais e abstratas, essencialmente negativas, que consagram os direitos individuais ou de gerao, uma ordem jurdica liberal clssica. claro que sob este primeiro paradigma constitucional, o do Estado de Direito, a questo da atividade hermenutica do juiz s poderia ser vista como uma atividade mecnica, resultado de uma leitura direta dos textos que deveriam ser claros e distintos, e a interpretao algo a ser evitado at mesmo pela consulta ao legislador na hiptese de dvidas do juiz diante de textos obscuros e intrincados. Ao juiz reservado o papel de mera bouche de la loi.4
A hermenutica limitava-se ao esforo
sinttico e semntico dos textos jurdicos a
partir de mtodos de deduo e subsuno,
tpicos da conhecida proposta de Savigny5.
4 CARvALHO NETO, Menelick. Hermenutica Constitucional sob o paradigma do Estado Democrtico de Direito, p. 5/44, p. /4, sem destaque no original.
5 Em contraposio com o primado do costume que defender ulteriormente, Savigny equipara ainda no seu curso o Direito positivo ao Direito Legislado. Todavia, a legislao acontece no tempo e isto conduz concepo de uma histria do Direito que estreitamente se conjuga com a histria do Estado e a histria dos povos, visto que a legislao uma actividade do Estado (p. 17). Alm disso, SAVIGNY distingue uma elaborao interpretativa (sistemtica) do Direito. Como objecto da interpretao aponta ele a reconstruo do pensamento que expresso na lei, na medida dese colocar na posio do legislador e deixar que se formem, por esse artifcio, os respectivos ditames. Para esse fim a interpretao
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A concepo iluminista de um Direito racional
trazia consigo a viso da generalidade e
da harmonia das regras jurdicas, como
contraponto pluralidade de fontes normativas
e de jurisdies tpicas do Antigo Regime.
Logo, o intrprete navegava em um lago de
guas mansas de regras. O Direito era um
todo compacto da qual nenhuma relao
humana poderia ter escapado do gnio
do legislador.
Nesse contexto, os princpios jurdicos
eram absorvidos como expresso de
cunho poltico do legislador, tpico do
constitucionalismo do sculo XIX, no qual,
seja pelas tradies revolucionrias francesas
de oposio aos desmandos do judicirio, seja
pela ausncia de uma formao democrtica
como na Prssia e na recm-criada Alemanha,
as Constituies eram vistas muito mais por
seu carter de documento poltico, tal como
na Declarao Universal dos Direitos
do homem e do cidado, do que por sua
juridicidade, tal como se via na Amrica
desde Madison v. Marbury (80).
Por conseguinte, no possvel falar que
a tese de normas programticas nascidas no
princpio do sculo passado tenha surgido
to-somente como forma de se negar
eficcia aos direitos sociais e coletivos.
Essa reao contrria ao surgimento de um
novo constitucionalismo, dito social, tem
supedneo em prticas constitucionais muito
mais antigas.
Todavia, as dificuldades de encontrar-se
sempre a priori a norma que se adequaria
precisa de trs elementos: um elemento lgico, um elemento gramatical e um elemento histrico (p. 9). (LARENz, Karl. Metodologia da Cincia do Direito. Traduo de Jos Lamego. . ed. Lisboa: Fundao Calouste Gulbekian, 997, p. 0-).
perfeitamente ao caso concreto, tpico
ainda de uma maneira de pensar ligada
filosofia da conscincia, no tardaram a
mostrar suas mazelas e dificuldades. De
certo, uma interpretao literal, declarativa,
gramatical, mesmo auxiliada pelos elementos
sistemtico, lgico e finalstico puderam
fazer face aos desafios do Direito.
Desse modo, constataram-se duas formas
de reao na teoria do Direito. De um lado,
as antinomias e anomias, que eram desde h
muito conhecidas, pelo menos desde o tempo
da jurisdio cannica e, mesmo antes, com
os glosadores, passaram a admitir o emprego
subsidirio da analogia, dos costumes e
dos princpios gerais do Direito. A simples
constatao da nossa Lei de Introduo ao
Cdigo Civil exemplifica o raciocnio acima.
E, de outro, a tese da discricionariedade
judicial, decorrente da crena que a jurisdio
no poderia conduzir a uma nica resposta,
passa a difundir-se, em especial pelo trabalho
de Kelsen.
A concepo de um Direito voltado para
um modo de operar legalista, destitudo
de qualquer reflexo sobre os detalhes do
caso e que se apresentava galvanizado pelo
A teoria usual da interpretao quer fazer crer que a lei, aplicada ao caso concreto, poderia fornecer, em todas as hipteses, apenas uma nica soluo correcta (ajustada) e que a justeza (correo) jurdico-positiva desta deciso fundada na prpria lei. Configura o processo desta interpretao como se se tratasse to-somente de um acto intelectual de classificao e de compreenso, como se o rgo aplicador do Direito apenas tivesse que pr em aco o seu entendimento (razo), mas no a sua vontade, e como se, atravs de uma pura actividade de inteleco, pudesse realizar-se, entre as possibilidades que se apresentam, uma escolha que correspondesse ao Direito positivo, uma escolha correcta (justa) no sentido do direito positivo.(KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Traduo de Joo Baptista Machado. 4. ed. Coimbra: Armnio Amado, 979, p. 47).
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apego legalidade estrita, mostrou toda
sua insuficincia pela inrcia/colaborao
do Judicirio alemo durante os horrores
de Auschwitz. Toda a tradio do direito
romano-germnico de observncia dos
ditames da lei e de procura pela vontade do
legislador se chocava diante da cumplicidade
do Reichsgericht diante dos arbtrios e
atrocidades nazistas.
Ser sob esse contexto que perceberemos
o surgimento de novos ventos no
constitucionalismo, em especial o surgimento
da tpica de viehweg e, no tocante teoria
dos princpios, o nascimento de uma nova
forma de abordagem. Agora, tanto positivistas
quanto os adeptos de um jusnaturalismo
renascido se posicionavam favoravelmente
juridicidade dos princpios. E, mais ainda,
concediam-lhes uma posio de primazia
dentro do ordenamento jurdico.
A primeira teoria aquela que identifica os princpios com normas gerais ou generalssimas de um sistema. Desde o incio do sculo, autores como Del vechio e Bobbio tentaram compreender os princpios jurdicos como fruto de processos de generalizao operados pela Cincia do Direito. Del vechio afirmou, por exemplo, que os princpios gerais so descobertos por intermdio da generalizao crescente de outras normas do ordenamento jurdico (Del vechio, 948:5), ou seja, pela induo podemos partir de regras que regulam situaes especficas e inferir da princpios superiores a essas regras, que passam a poder ser aplicados dedutivamente. J Bobbio afirmou que os princpios gerais do direito so, to-somente, normas fundamentais ou generalssimas do sistema, as normas mais gerais.7
A concepo pela qual os princpios
pudessem ser deduzidos por meio da
7 GALUPPO, Igualdade e Diferena, p. 70.
generalizao de regras, a despeito de
lugar comum entre os operadores do Direito
no Brasil, vem, desde a dcada de 950,
sendo questionada. Josef Esser, nessa
oportunidade, j constatara que a maior ou
menor generalidade dos princpios em relao
s regras no poderia ser um critrio racional
de distino, uma vez que nem todo princpio
se origina de um processo de generalizao.
Contudo, no so poucos os autores
tributrios dessa viso, tanto na doutrina
ptria quanta na aliengena. Em suas
variantes, os princpios assumem a condio
metanormativa por meio da percepo de
algumas caractersticas que os definiriam:
desse modo, uns optam pelo fato que os
princpios exprimiriam os valores retores do
ordenamento jurdico; outros vem seu trao
distintivo no seu maior grau de abstrao;
outros derivam seu raciocnio em torno do
que entendem ser uma maior indeterminao
da sua tipicidade (fatie specie). No entanto,
seja qual for a tese, todos passam a sustentar
um papel de proeminncia dos princpios no
ordenamento jurdico, chegando alguns a
entender haver uma hierarquia entre eles e
as regras no qual os princpios estariam em
posio privilegiada.
Quando se refere ligao dos princpios
com os valores, no se pode esquecer
da contribuio de Canaris. A seu ver, os
princpios conteriam um contedo axiolgico
puro e se distinguiriam das regras porque
dependeriam destas para sua concretizao.
Desse modo, eles passam a ser entendidos
como normas que dariam fundamento a todo
o ordenamento jurdico.
Com a caracterizao do sistema como ordem teleolgica ainda no foi, contudo, dada resposta segunda pergunta essencial: a dos
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elementos constitutivos nos quais se tornem perceptveis a unidade interna e a adequao da ordem jurdica. No entanto, ficou j esclarecido que se deve tratar de valores, ainda que isso no possa constituir a resposta final, pois se mantm a questo mais vasta de que valores se trata: todos ou apenas alguns? (...) Mas isso significa que, na descoberta do sistema teleolgico, no se pode ficar pelas decises de conflitos e dos valores singulares, antes se devendo avanar at aos valores fundamentais mais profundos, portanto at aos princpios gerais duma ordem jurdica; trata-se, assim, de apurar, por detrs da lei e da ratio legis, a ratio iuris determinante. Pois s assim podem os valores singulares libertar-se do seu isolamento aparente e reconduzir-se procurada conexo orgnica e s assim se obtm aquele grau de generalizao sobre o qual a unidade da ordem jurdica, no sentido acima caracterizado, se torna perceptvel. O sistema deixa-se, assim, definir como uma ordem axiolgica ou teleolgica de princpios gerais de Direito, na qual o elemento de adequao valorativa se dirige mais caracterizao de ordem teleolgica e o da unidade interna caracterstica dos princpios gerais.8
J destacamos anteriormente o problema
de traduzir-se um comando normativo de
carter deontolgico em um plexo de ordens
meramente teleolgicas. Logo, consideramos
repetitivo reproduzirmos essa crtica, eis
que ningum nega que o Direito como
subsistema social reproduz valores todo o
tempo. A questo que sua forma de operar
no pode se dar em torno do emprego de
valores, sob pena de perdermos com isso
qualquer possibilidade de legitimidade do
mesmo. Preferimos anotar que o trao de
diferenciao entre as espcies normativas em
8 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemtico e conceito de sistema na cincia do Direito. . ed. Introduo e traduo de A. Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundao Calouste Gulbekian, 00, p. 7/78.
torno de seu carter axiolgico insuficiente
por uma outra razo e, para tanto, um
exemplo ilustrativo: a preservao da vida
humana, de certo, um valor que nosso
ordenamento jurdico leva em conta como
algo que Canaris, de certo, julgaria como um
valor fundamental. Logo, deveria vir sempre
estruturado sob a forma de um princpio.
Contudo, parece-nos tambm ser lugar
comum a idia de que o artigo do Cdigo
Penal se estruture como uma regra. Da a
pergunta: ora, esse mandamento (regra) no
traria subjacente a si um valor fundamental
de todo o ordenamento jurdico?
Contudo, essa concepo que v princpios
como valores que informariam todo o Direito
encontra ressonncia na lngua portuguesa.
Celso Antnio Bandeira de Mello sustenta que
os princpios so os mandamentos nucleares,
o alicerce do sistema jurdico, eis que seriam a
base e diretriz para a correta compreenso dos
mesmos. Somente pelo auxlio dos princpios
seria possvel ao intrprete alcanar uma
viso unitria do ordenamento jurdico. Desse
modo, a violao de um princpio seria muito
mais grave do que a transgresso de uma
regra, eis que implicaria uma ofensa no a
um mandamento especfico, mas ao sistema
como um todo9.
Canotilho enxerga a Constituio formada
por intermdio de normas de distintos
graus de densidade semntica, de modo
a diferenciar regras de princpios e, indo
alm, para classificar os princpios dentro
de uma hierarquia normativa em princpios
estruturantes, princpios constitucionais
9 Cf. MELLO, Celso Antnio Bandeira de. Elementos de Direito Administrativo. So Paulo: Revista dos tribunais, 980, p. 0.
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gerais, princpios constitucionais especiais
ao lado das demais normas (regras)
constitucionais.0 Desse modo, no s percebe
haver uma hierarquia entre regras e princpios
como tambm uma valorao possvel entre
as normas constitucionais principiolgicas.
A tese de Canotilho esbarra, na atualidade,
na moderna concepo de unidade que permeia
a Constituio, desde a contribuio de Otto
Bachof e, posteriormente, com o trabalho
de Mller sobre o postulado denominado
de concordncia prtica entre possveis
antinomias constitucionais. Contudo, curioso
anotar que o prprio Bachof se posicionava
tambm por meio da proeminncia do princpio
da isonomia, de modo que, conjuntamente
com a noo da dignidade da pessoa humana,
pudesse ser a matriz substantiva do texto
constitucional, sem se dar conta de que tal
posio afetaria sua maior contribuio para
o constitucionalismo mundial.
Nessa esteira, Geraldo Ataliba, dando
seqncia a uma longa tradio no direito
brasileiro, sustenta a viso de que as regras
jurdicas teriam sua aplicao condicionada
pelos princpios, de modo a reconhecer uma
hierarquia entre essas espcies normativas.
Mas por que os princpios teriam tal
posio? Na opinio de Miguel Reale, os
princpios se aproximariam da noo de
valor, tornando-se verdades fundantes de
um sistema de conhecimento, como tais
admitidas por serem evidentes ou por
0 Cf. CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 4. ed.
Cf. BACHOF, Otto. Normas constitucionais inconstitucionais. Traduo de Jos Manuel M. Cardoso da Costa.Coimbra: Almedina, 994.
ATALIBA, Geraldo. Repblica e Constituio. So Paulo: Revista dos tribunais, 985.
terem sido comprovadas, mas tambm pela
necessidade da prxis. A postura de Reale
se aproxima da posio de Karl Larenz que,
por sua vez, concebe os princpios como uma
etapa entre as normas jurdicas e os valores.
Desse modo, os valores seriam concepes
de justia dominantes na sociedade ethos
jurdico dominante e que guiam a atividade
hermenutica4.
So vrios os problemas de tais concepes.
Canotilho, Ataliba, Bachof acabam por no
distinguir as normas jurdicas dos valores
a elas subjacentes. Est claro que qualquer
ordenamento jurdico traz consigo a expresso
de valores que tem a pretenso de contribuir
para a estabilizao das expectativas racionais
de comportamento. Contudo, tal como visto,
o Direito opera sob um cdigo binrio que o
faz distinto da noo de gradualidade inerente
aos valores.
Ademais, quando Larenz expe seu ponto
de vista, com suporte em zippelius, deixa
claro transparecer sua viso comunitarista
da sociedade: ele entende haver um ethos
REALE, Miguel. Lies Preliminares de Direito. So Paulo: Saraiva, 988, p.99.
4 Na verdade, o princpio maioritrio no , enquanto tal, critrio de justeza, mas, no entanto, ZIPPELIUS refere com o ethos jurdico apenas as idias que podem compreender-se como a concretizao da idia de Direito, dos princpios bsicos de uma tica da vida social, facto que no deixar de importar para que aspirem a um reconhecimento. Uma vez que o juiz aplica o Direito em nome dessa comunidade jurdica, s pode ter em conta a tica nela vigente, que pervive (em maior ou menor grau) nos membros dessa comunidade, conformando-lhes o comportamento e o critrio de julgamento. Nesta medida, damos razo a ZIPPELIUS. O conceito de ethos jurdico encerra um elemento emprico e um elemento normativo, no indicia apenas os resultados de um inqurito de opinio. (LARENz, Karl. Metodologia da Cincia do Direito. Traduo de Jos Lamego. . ed. Lisboa: Fundao Calouste Gulbekian, 997, p.74).
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jurdico dominante capaz de fornecer
quais seriam os valores dominantes para
fins da aplicao do Direito. Contudo, em
sociedades profanizadas como as atuais fica
difcil estabelecer de modo a priori quais os
contedos desse ethos, eis que os projetos
pessoais e as concepes do que seja vida
boa so os mais distintos em termos de
religio, moral, tica, economia, opo sexual,
etc. Nesse sentido, quando Habermas toma
a concepo de direitos humanos universais,
essencialmente liberdade e igualdade, o faz
como condies para o discurso que se abrir.
Logo, no cai em um possvel retorno a
polis grega.
Por fim, as percepes de generalidade
incorrem em um erro srio. Primeiro, porque
no so todos os princpios que podem
ser generalizados a partir de regras. De
outro lado, alguns seriam to amplos que
acabariam sendo generalizao de todo o
ordenamento jurdico, tal como o princpio
do Estado de Direito e o princpio do
Estado Democrtico, se observada a prpria
classificao de Canotilho.
Por exemplo: o princpio federativo, adotado pela Constituio Brasileira, seria uma generalizao de qu? O princpio da legalidade generaliza quais normas? (...) Esse no pode ser, portanto, o critrio adotado. No se nega com isso que, na maioria das vezes, os princpios possuam maior grau de generalizao. O que se quer dizer que a generalidade no uma causa, mas, quando muito, uma conseqncia do conceito de princpio, e no diferencia essencialmente, mas s geralmente as duas categorias.5
Boulanger procura responder a objeo
colocada por Galuppo em outras bases. Para
5 GALUPPO, Igualdade e Diferena, p. 7, sem destaque no original.
ele, est claro que a generalidade no um
trao que per se possa distinguir regras de
princpios, eis que presente em ambas as
espcies normativas. Contudo, sustenta que
a forma de incidncia da generalidade
diferente quando se est diante de regras e de
princpios. No primeiro caso, a generalidade
se manifesta de forma especial, visto que
a regra incidiria em uma situao jurdica
determinada, a despeito da pluralidade de atos
ou fatos por ela regulados. J no tocante aos
princpios, no h uma situao determinada
de modo a priori para sua incidncia.
Destaque-se que a posio de Boulanger
no isolada na doutrina. Eros Grau anota
tambm o apoio de Crisafulli7 a esse critrio
estrutural relativo generalidade das espcies
normativas. Em sua viso,
(...) os primeiros se caracterizam pela sua maior generalidade, em relao s ltimas; o preceito contido no princpio geral compreende no uma s hiptese determinada, mas uma srie indeterminada de hipteses, qualquer das quais suscetveis de ensejar inmeros e diversos facti species; por outro lado, desde o critrio funcional, os princpios so normas escritas e no escritas das quais logicamente derivam as normas particulares tambm estas escritas ou no escritas e s quais, inversamente, se chega a partir destas ltimas (p. 9). Assim, o critrio estrutural da generalidade no seno conseqncia necessria da considerao do critrio funcional: os princpios gerais, porque dotados de generalidade mais ampla, compreendem
Cf. BOULANGER, Jean. Principes gneraux du droit positif et droit positif. In Le Droit Priv Franais au milieu du XXe sicle (tudes offertes a Georges Ripert). Paris: LGDJ, 950.
7 CRISAFULLI, vechio. Per la determinazione Del conetto dei principi generali Del Diritto. In:In: Revista Internazionale de Filosofia Del Diritto, v. XIX.Ano XXI, srie II, jan. abr. de 94.
45
uma srie indeterminada de facti species (dados ou possveis) distintos (p. 40).8
De modo simplista, as teorias de Boulanger
e de Crisafulli podem ser metaforizadas por
meio de jogos de salo, tal como o buraco
e o xadrez. Desse modo, enquanto as regras
podem ser vistas como qualquer carta de
baralho que tem um lugar certo para ser
encaixada, os princpios podem ser vistos
como o coringa que pode entrar em qualquer
posio. Da mesma forma, no jogo do xadrez,
todas as peas tm uma forma espcie de
movimentao, enquanto apenas a Rainha
pode valer-se de mais de uma maneira para se
mover. Assim, os princpios se aproximariam
do modelo da Rainha, enquanto as regras
ficariam com a figura das outras peas.
A despeito de ser uma tese de palatabilidade
fcil, refutar sua sustentao no difcil
porque, mesmo se voltssemos a uma
gramtica hermenutica tradicional, a tese
da indeterminao da tipicidade no se
sustentaria. Primeiro pelo fato de que essa
tese no explicaria a questo da analogia.
Desse modo, uma regra utilizada para uma
situao absolutamente diversa daquela para
o qual teria sido concebida originariamente
pelo legislador. Poderia, ento, seus adeptos
dizer; ora, mas o emprego da analogia
excepcional e na atualidade em razo da
inflao legislativa os casos de analogia
sero cada vez menores. No entanto, essa
rplica no convence simplesmente porque
procura contornar o problema, algo que no
ocorre como os bices seguintes. E o segundo
pode vir ainda dentro dos limites da filosofia
8 GRAU, Eros. A ordem econmica na constituio de 1988 (interpretao e crtica). . ed. So Paulo: Revista dos tribunais, 99, p. .
da conscincia. O prprio positivismo
legalista j percebera, por meio da tcnica
da voluntas legis, que uma regra pode ser
aplicada para um sem-nmero de casos no
concebidos originariamente pelo legislador.
Logo, aqui no se trata de uma exceo, mas
de algo que ocorre permanentemente.
Contudo, o problema principal dessa
forma de se distinguir as espcies normativas
no foi alcanado simplesmente porque no
superou os limites do positivismo jurdico e
da relao sujeito/objeto na cincia jurdica.
A questo est justamente no fato de que tais
suposies mantm ainda como possvel a
dicotomia entre fato e norma, seja ento regra
ou princpio. A questo da indeterminao
da facti specie ou da abstrao tipolgica
da norma parte de uma anlise sinttico/
semntico dos textos legais, algo j de
h muito superado pelo giro lingstico.
Assim, analisar textos legais fora de seu
contexto de aplicao pode, no mximo,
gerar preconceitos de fundo metafsico no
intrprete, eis que no h norma desconectada
de sua faticidade.
Assim, acreditamos superada tambm a
suposio de que a baixa densidade pudesse
ser assestada to-somente contra certas
expresses caracteristicamente polissmicas,
vagas, porosas. Algum poderia insistir: tudo
bem, a classificao reconhece tal limitao
e preferimos aderir a ela, mesmo sabendo
que estaremos retornando ao positivismo.
Nesses termos, a taxionomia seria cientfica?
A resposta negativa. Primeiro, porque tal
retorno j no se faz possvel, simplesmente
porque o nvel de racionalidade a que
chegamos no admite esse passo para trs.
Segundo, porque tal classificao no teria
encontrado um critrio lgico para diferenciar
46
as espcies normativas, eis que todo texto
aberto a inmeras interpretaes. Em outras
palavras, tambm as regras teriam uma
tipicidade/conceitualidade aberta. O problema
de tal classificao est exatamente no fato de
se dizer que alguns textos (regras) admitem
uma univocidade de sentidos e que outros
(princpios) no. Contudo, desde Heidegger
sabemos que essa premissa, mais do que
metafsica, irracional e no cientfica.
No olvidamos que, a despeito de termos
por claro que toda comunicao humana
pressupe contrafaticamente um mdium
lingstico, assiste razo hermenutica
contempornea no sentido de que no
possvel apriorsticamente sustentar que um
termo seja poroso/aberto e outro no, ou
mensurar essa vagueza de modo a permitir
um retorno subreptcio s concepes de
aplicao silogstica para os dispositivos
que forem tidos por mais precisos. Gnther,
atento questo, posiciona-se sobre o tema:
Contra a tese da hermenutica alegou-se que uma indeterminao da norma somente ocorreria em casos de termos polissmicos, vagos, porosos e que ainda precisam ser preenchidos com valores, bem como em casos de aplicao de termos disposicionais. Neste caso, um significado deveria ser fixado e fundamentado por meio de cnones de interpretao, juzos antecipados e preceitos da dogmtica. Como demonstraram as reflexes acima a respeito da lgica de argumentaes da adequao, exigem-se regras de uso lexical para garantir a justificao externa de uma deciso jurdica. No entanto, a sua justificao externa no consegue justificar a seleo vinculada a uma determinao de significado de sinais caractersticos situacionais, a partir de uma descrio situacional integral.9
No entanto, os esforos do paradigma
moderno de estabelecer uma distino entre
9 GNTHER, Teoria da argumentao, p. 99.
as regras e os princpios no se esgotaram nas
teorias acima descritas. Desse modo, cabe
aqui ainda anotar duas outras tentativas: a
primeira ligada noo da positividade e a
segunda em torno de uma anlise morfolgica
empreendida por Joseph Esser.
O critrio da positividade para as regras
e da transcendncia para os princpios
bem simples: os princpios poderiam ser
ou no positivados e as regras precisariam
necessariamente ser positivados. Assim,
mesmo que revogadas, as regras teriam
tido vigncia algum tempo atrs como
normas jurdicas e os princpios poderiam
ser incorporados no direito sem um texto
legislativo especfico, tal como se processa
atualmente com os chamados princpios
abertos e anteriormente com os princpios
gerais de Direito.
A objeo tambm no relevante.
Primeiro, porque o Direito no criao
exclusiva do Estado, tal como se percebe
claramente com os costumes. Segundo,
porque os princpios no so criados pelo
julgador ou pela doutrina, e sim reconstrudos
a partir do Direito em sua totalidade,
envolvendo aqui algo que vai seguramente
muito alm de textos positivados. Acrescente-
se a isso que, em geral, aqueles que sustentam
esta tese ligam-na tambm questo da
generalidade. Contudo, ficaria o problema:
ora, se os princpios so generalizaes de
regras, como ento eles poderiam abdicar
da positividade?0
0 O ponto central a ponderar, ao deles cuidarmos, o referido a no transcendncia dos princpios gerais do Direito. Com efeito, eles no constituem criao jurisprudencial, por outro, externamente ao ordenamento ou Constituio. Assim, a autoridade judicial, ao tom-los d modo decisivo para a definio de
47
Os ltimos esforos do presente paradigma
se devem aos trabalhos de Josef Esser e Robert
Summers. vejamos, pois, cada um deles.
Esser, por sua vez, v a distino sob
um enfoque original: ele sustenta que os princpios
no configurariam mandamentos e sim diretrizes,
critrios e justificao para a aplicao do
Direito. Em outras palavras, o critrio de
distino das espcies normativas seria o
fundamento que cada uma, regra e princpio,
exigiria para a tomada de uma deciso.
Nesse sentido, Esser entendia que os
princpios forneceriam motivos para que o
intrprete pudesse empregar esse ou aquele
mandamento, enquanto as regras exigiam
uma argumentao que se ligaria diretamente
prpria deciso. Logo, os princpios no
seriam em si mesmos mandamentos, mas
apenas instrues para o emprego das
regras. Os princpios constituiriam parte do
Direito positivo, no como mandamentos
autnomos, mas como uma (pr)condio
para o funcionamento das regras. Desse modo,
o princpio da funo social da propriedade
pode ser concebido como integrante do Direito
positivo, eis que inerente compreenso do
prprio instituto do direito de propriedade,
conferindo-lhe causa e justificao para
seu emprego.
O modelo de Esser parte do pressuposto
de um modelo de Direito problemtico, ou
seja, ligado pratica judicial (jurisprudncia)
e pela prudncia aristoteliana (phrnesis),
muito provavelmente por influncia da tpica
terminada soluo normativa, simplesmente comprova a sua existncia no bojo do ordenamento jurdico, do Direito que aplica, declarando-os. (Grau, A ordem econmica na Constituio de 1988, p. 9).
ESSER, Josef. Princpio y norma en la elaboracin jurisprudencial Del Derecho Privado. Traduo deTraduo de Eduardo valenti Fiol. Barcelona: Bosch, 9.
de viehweg. Seu ponto de partida era, pois,
uma contraposio ao sistema fechado de
Direito em torno de uma concepo piramidal
do ordenamento jurdico. Assim, o papel do
magistrado na revelao de princpios confere
uma abertura ao Direito que ia bem alm dos
limites positivistas da sua poca.
Galuppo anota com razo que a
contribuio de Esser antecipa conceitos
centrais do paradigma contemporneo
da teoria dos princpios por duas razes.
Primeiro, por reconhecer a dualidade dos
planos de aplicao e de justificao das
normas jurdicas. Depois, porque admite
que a argumentao discursiva essencial
Segundo Esser, o ato de aplicar a lei est inserido em um juzo antecipado valorativo, que integra cada norma em um sistema teleolgico aberto, orientado por princpios. semelhana de Kriele, tambm Esser, ao fazer essa observao, orienta-se pelo exemplo de um modo de pensar em termos do Direito de caso, que considera cada situao nova luz da ratio decidendi de casos previamente decididos e de sua correlao por meio de princpios. O princpio (...) domina a interpretao de norma de rule [regra],ou seja, domina a direo da seleo prvia e do reconhecimento de fatos que podem ser juridicamente levantados na realidade objetiva, e do reconhecimento de observaes que podem ser juridicamente levantados na realidade objetiva, e do reconhecimento de observaes que podem ser juridicamente levantadas no precedent (precedente). (Gnther, Teoria da argumentao, p. 40).
No caso do modelo axiomtico, ou seja, aquele cujo centro de gravidade a construo de um sistema hierarquizado, o ponto de partida por excelncia o Cdigo. Segundo Esser, o pensamento axiomtico desvaloriza e/ou ignora os princpios valorativos abertos, as doutrinas, mximas, parmias, etc. (...). Em lugar deles pe em primeiro plano as rationes legis, os princpios formais e a estrutura da lgica jurdica. (Galuppo, Marcelo. A contribuio de Esser para a reconstruo do conceito de princpios jurdicos. Belo Horizonte: Editora da Faculdade de Direito da UFMG: Revista de Direito Comparado, n. 0, maio/999, p. 7/44, p. 4).
48
conformao do Direito4. Acrescentaramos
um terceiro aspecto: a busca pela distino
das espcies normativas passa a ser seguida
na aplicao do Direito5.
Nesse sentido, o trabalho de Esser, datado
da dcada de 950, parece esforar-se para
dar um passo alm das concepes kelsenianas
para a conformao do Direito, ao entender
que o ordenamento jurdico conteria mais do
que regras. Contudo, o passo ainda tmido,
se visto com olhos atuais. Isso porque sua
teoria s concebe os mandamentos jurdicos
sob uma estrutura morfolgica hipottica
condicional, ou seja, que somente as regras
poderiam ser mandamentos/normas jurdicas
e, como tais, apenas elas poderiam se encaixar
no modelo (ainda kelseniano) do se A,
deve ser B. Em outras palavras, as regras
se estruturariam sob a dualidade hiptese/
conseqncia enquanto os princpios seriam
to-somente fundamento para as decises
para a aplicao dessa ou daquela regra.
Todavia, seu esforo em vo, como bem
demonstra Humberto vila:
(...) a existncia de uma hiptese de incidncia questo de formulao lingstica e, por isso, no pode ser elemento distintivo de uma espcie normativa. De fato, algumas normas que so
4 Cf. GALUPPO, A contribuio de Esser para a reconstruo do conceito de princpios jurdicos, p. 40.
5 Apenas como alerta ao leitor, deve ficar claro que tais antecipaes no aproximam Esser das teorias contemporneas.
Um princpio jurdico no um preceito jurdico, nem uma norma jurdica em sentido tcnico, eis que no contm nenhuma instruo vinculante de tipo imediato para um determinado campo de questes, mas requer ou pressupe a cunhagem judicial ou legislativa de tais instrues. ((ESSER, Josef. Princpio y norma en la elaboracin jurisprudencial Del derecho privado. Barcelona; Bosch, 9, p. 5, traduo livre e sem destaque no original).
qualificveis, segundo esse critrio, como princpios podem ser reformuladas de modo hipottico, como demonstram os seguintes exemplos: Se o poder estatal for exercido, ento deve ser garantida a participao democrtica (princpio democrtico); Se for desobedecida a exigncia de determinao da hiptese de incidncia de normas que instituem obrigaes, ento o ato estatal ser considerado invlido (princpio da tipicidade).7
Os exemplos de vila no param por
a. Nesse sentido, o princpio da legalidade
tributria pode ser expresso tanto nos moldes
do artigo 50, inciso I, da nossa Carta
vigente8, quanto da seguinte maneira: se
houver instituio ou aumento de tributo,
ento a instituio ou aumento deve ser
veiculado por lei. Da mesma maneira o dito
princpio da anterioridade tributria9: se
houver instituio ou aumento de tributos,
ento s podem ser abrangidos fatos geradores
ocorridos aps o incio da vigncia da lei que
os houver institudo ou aumentado0.
Esser no percebe que a morfologia de
uma norma jurdica no predetermina sua
interpretao. Ele no percebe ainda que a
dialtica hermenutica promove uma fuso
de horizontes entre o texto interpretado e o
intrprete de modo que nem um nem o outro
7 vILA, Teoria dos princpios, p. .8 Sem prejuzo de outras garantias asseguradas ao
contribuinte, vedada Unio, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municpios:
I exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabelea;
9 Sem prejuzo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, vedada Unio, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municpios:
III cobrar tributos:a) em relao a fatos geradores ocorridos antes
do incio da vigncia da lei que os houver institudo ou aumentado;
0 Cf. vILA, Teoria dos princpios, p. /4.
49
possam de modo a priori fixar sentidos
prvios. Dito de outro modo, a forma de
exteriorizao de um texto no tem o condo
de fixar a maneira pelo qual ser compreendido
pelo seu intrprete. Desse modo, Esser se
mostra ainda ligado a uma concepo de
interpretao anterior ao giro lingstico-
pragmtico, eis que ela ainda se mantm
ligada a padres da relao sujeito-objeto.
Essa ltima tese de Esser pode ser
associada tese de Summers, que sustenta
que os princpios produziriam razes
substantivas ou finalsticas enquanto as regras
trariam consigo apenas razes de correo ou
autoritativas. A despeito de tambm orientar
sua contribuio em torno da aplicao do
Direito, a obra de Summers traz mais uma
vez associao direta noo de princpios
como valores que consistiriam em um pano
de fundo para a aplicao do Direito, que, no
fundo, ficaria restrito s regras. vila resume
de forma interessante esse ponto de vista:
Por exemplo, a interpretao do princpio da moralidade ir indicar que a seriedade, a motivao e a lealdade compem o estado de coisas, e que comportamentos srios, esclarecedores e leais so necessrios. O princpio, porm, no indicar quais so, precisamente, esses comportamentos. J no caso das regras (...) o aplicador tambm pode considerar elementos especficos de cada situao, embora sua utilizao dependa de um nus de argumentao capaz de superar as razes para cumprimento da regra. A ponderao , por conseqncia, necessria. Isso significa que o trao distintivo no o
SUMMERS, Robert. Two types of substantive reasons: the core of a theory of common law justification. In: The Jurisprudence of Laws Form and Substance (Collected Essays in Law). Alderhot, Ashgate, 000,Alderhot, Ashgate, 000, p. 55-.
tipo de obrigao institudo pela estrutura condicional da norma, se absoluta ou relativa, que ir enquadr-la numa ou noutra categoria de espcie normativa. o modo como o intrprete justifica a aplicao dos significados preliminares dos dispositivos, se frontalmente finalstico ou comportamental, que permite o enquadramento numa ou noutra espcie normativa.
Seria por demais simplista rejeitar a tese
de Summers to-somente por ele sustentar
que apenas na aplicao das regras seria
necessria a considerao dos elementos
especficos da situao concreta. No que esse
seja um problema pequeno. Mas acreditamos
haver outro bice to srio quanto o primeiro,
mas que no bvio para o leitor comum.
Summers procura a distino das espcies
normativas na argumentao especfica para
o emprego de princpios e regras. Mas, qual
seria esse problema?
Para compreend-lo melhor importante
deixar claro que seu trabalho se esfora
muito para implementar a superao do
positivismo legalista entendido aqui no
sentido de haver um imperativo obedincia
cega aos textos legais. Logo, a noo de
rightness reasons (fundamentos de correo)
poderia justificar no caso concreto porque o
intrprete teria deixado de aplicar uma regra
que aparentemente lhe fosse adequada. Ou
seja, as regras exigiriam uma argumentao
especfica para serem ou deixarem de serem
aplicadas no intuito de obteno de uma
deciso correta para cada caso.
Contudo, Summers no percebe que, no
apenas as regras, mas todo Direito exige do
intrprete o emprego de razes de correo
vILA, Teoria dos Princpios, p. 40/4, sem destaque no original).
50
com o fito de alcanar a resposta correta na
sua aplicao. No , pois, possvel dizer que
o operador do Direito empregue apenas as
razes de correo quando for trabalhar to-
somente com parte do ordenamento jurdico,
ou seja, as regras. De fato, subjacente ao
esforo de Summers est o preconceito,
em sentido gadameriano, de que os princpios
seriam por demais abstratos e que, por
conseguinte, s poderiam colaborar mediante
a consecuo de fins para a aplicao
do Direito.
Por conseguinte, consideramos ser intil
continuar desfiando os mesmos argumentos
de outros doutrinadores ligados ao paradigma
moderno, eis que as mais diferentes tentativas
operadas para estabelecer a distino entre
as espcies normativas nesse paradigma
acabaram esbarrando nas limitaes da
filosofia da conscincia e nas insuficincias
de uma hermenutica alienada da histria
efetual e do mundo da vida. Assim, percebe-se
que todo esforo empreendido no sentido
de buscar sinttica ou semanticamente
caractersticas morfolgicas tpicas de
regras e de princpios deu em nada. Curioso,
no entanto, observar que, a despeito de
tal constatao, no so poucos os que na
doutrina nacional continuam divulgando tais
teses, agora ligadas tambm s contribuies
do paradigma contemporneo, como se
fossem compatveis.
Assim, pode-se dizer que Ronald Dworkin
inaugurou o paradigma contemporneo
da teoria dos princpios, buscando agora
proceder distino por meio do modo
de operao/aplicao das regras e dos
princpios. Nesse sentido, Dworkin foi o
primeiro a empreender tal esforo e o fez
ainda na dcada de 90.
Para melhor situar o contexto em que o
texto The Model of Rules I foi escrito, preciso
entender que nosso autor estava empenhado
na superao das diferentes formas de
hermenutica judiciria que, poca, eram
inteiramente tributrias do positivismo,
do utilitarismo ou de algumas variaes
originais da common law norte-americana, o
convencionalismo4 e o pragmatismo.
De modo sinttico, Dworkin sustenta que
a forma de aplicao das regras se submete
ao modelo do tudo ou nada (all or nothing),
no sentido de que em caso de antinomia entre
regras, uma delas ser considerada invlida.
O positivismo possui como esqueleto algumas poucas proposies centrais e organizadoras. (...) (a) O direito de uma comunidade um conjunto de regras especiais utilizado direta ou indiretamente pela comunidade com o propsito de determinar qual comportamento ser punido ou coagido pelo poder pblico. Essas regras especiais podem ser identificadas e distinguidas com auxlio de critrios especficos, de testes que no tem a ver com seu contedo, mas com o seu pedigree ou maneira pela qual foram adotadas ou formuladas (...) (b) O conjunto dessas regras jurdicas coextensivo com o Direito, de modo que se o caso de alguma pessoa no estiver claramente coberto por uma regra dessas (...) ento esse caso no pode ser decidido mediante q aplicao do direito.Ele deve ser decidido por alguma autoridade pblica, como um juiz, exercendo seu discernimento pessoal, o que significa ir alm do direito na busca por algum outro tipo de padro que o oriente na confeco de nova regra jurdica ou na complementao de uma regra j existente. (DWORKIN, Levando os direitos a srio, p. 8)
4 Existem diferenas bvias entre o convencionalismo e as teorias semntico-positivistas que discuti no primeiro captulo. Mas h uma importante diferena. As teorias semnticas afirmam que a descrio que acabamos de apresentar se concretiza e se aplica por meio do prprio vocabulrio jurdico, de modo que seria uma espcie de auto-contradio dizer que o Direito confere direitos para alm daqueles estabelecidos por mecanismos sancionados por conveno. A concepo convencionalista do direito, ao contrrio, interpretativa: no faz nenhuma afirmao lingstica ou lgica dessa natureza. (DWORKIN, O Imprio do Direito, p. ).
51
Logo, se a hiptese de incidncia da regra
viesse a ser atendida, sua conseqncia
deveria ser aplicvel, exceto se a norma
fosse tida por invlida5. A seu ver est claro
que regras podem ter excees; contudo, se
a lista for longa demais, ela poder acabar
se transformando em outra regra, ou seria
desajeitado demais recitar toda a lista de
casos excepcionais descritos na norma. Por
conseguinte, ele sustenta que se uma lei civil
determina que a validade de um testamento
seja a presena de trs testemunhas, de certo
que se o documento for assinado apenas por
duas pessoas ele no ser tido por vlido.
Mas no assim que funcionam os princpios apresentados como exemplos nas citaes. Mesmo aqueles que mais se assemelham a regras no apresentam conseqncias jurdicas que se seguem automaticamente. Quando as condies so dadas. Dizemos que o nosso direito respeita o princpio segundo o qual nenhum homem pode beneficiar-se dos erros que comete (a ningum dado valer-se de sua prpria torpeza). Na verdade, comum que as pessoas obtenham vantagens, de modo perfeitamente legal, dos atos jurdicos ilcitos que praticam. O caso mais notrio o usucapio se eu atravesso suas terras sem autorizao durante muito tempo, algum dia adquirirei o direito de cruz-las quando o desejar. H muitos exemplos menos dramticos. Se um homem abandona seu trabalho, rompendo um contrato, para assumir outro emprego mais bem pago, ele pode ter que pagar indenizao a seu primeiro empregador,
5 A diferena entre princpios jurdicos e regras jurdicas de natureza lgica. Os dois conjuntos de padres apontam para decises particulares acerca da obrigao jurdica em circunstncias especficas, mas distinguem-se quanto natureza da orientao que oferecem. As regras so aplicveis maneira do tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula, ento ou a regra vlida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou no vlida, e neste caso em nada contribui para a deciso. (DWORKIN, Levando os direitos a srio, p. 9).
mas em geral ele ter direito de manter seu novo salrio. Se um homem foge quando est sob fiana e cruza a fronteira estadual para fazer um investimento brilhante em outro estado, ele poder ser remetido de volta priso, mas ele manter os lucros.
Desse modo, percebe-se que os princpios
no fixam absolutamente sua aplicao, eis
que exigem uma atitude reflexiva do intrprete
de modo a respeitar-lhe sua dimenso de peso.
Assim, no existem princpios contraditrios
e sim princpios que concorrem entre si. E a
soluo de tal concorrncia no deve seguir
a proposta de discricionariedade inerente ao
positivismo, mas uma reflexo que traduza
os aspectos mais relevantes e profundos da
moralidade poltica.
Ao contrrio de Alexy, esse procedimento
no pressupe uma gradao, mas uma cesso
de um princpio diante do outro no caso
concreto, por meio de excees de aplicao.
Um dos dois princpios deve ceder nestas
circunstncias (Dworkin, 88:70), e no
necessariamente em outras circunstncias.
Ao contrrio de Alexy, Dworkin parte do
pressuposto de que o que move essa deciso
a exigncia contingente de prosseguimento
da jurisdio e do processo, ligadas
Integridade do Direito:
exigido de mim que encontre um lugar em toda interpretao geral de nossa prtica legal para todos os princpios (...). Nenhuma interpretao geral que negasse qualquer uma delas seria plausvel; a Integridade no poderia ser satisfeita se qualquer um deles fosse completamente rejeitado. Mas a Integridade exige que alguma soluo de sua coliso competitiva (...) seja tomada (...). A Integridade exige isto porque exige que eu termine a questo.7
DWORKIN, Levando os direitos a srio, p. 40.7 GALUPPO, Igualdade e diferena, p. 88.
52
Galuppo j antecipa algumas diferenas
entre a proposta de Dworkin e aquela
procedida por Alexy. No entanto, entendemos
que a teoria dos princpios do segundo foi
fruto do esforo do autor de refinar a viso
do primeiro. Assim, Alexy vai procurar
construir uma distino no mbito da
aplicao normativa, tal qual fez Dworkin.
Mas, quais so suas particularidades?
Para Alexy, a distino entre regras e
princpios deve ser compreendida como
um elemento essencial para a passagem
da hermemutica positivista para uma
hermenutica ps-positivista. Nesse sentido,
os princpios so normas jurdicas prima
facie38, eis que plasmariam mandados
de otimizao aplicveis sob distintas
possibilidades fticas. Desse modo, os
princpios se distanciariam das regras por
assumir uma dimenso de peso pela qual seria
impossvel para o intrprete fixar de antemo
suas conseqncias normativas.Desse
modo, o eventual choque principiolgico se
resolveria pela lei de coliso, por meio da
qual, partindo-se da idia da ponderao de
valores9, busca a formulao de regras de
8 Para Alexy, tanto las reglas como los princpios son normas porque ambos dicen lo que debe ser. Ambos pueden ser formulados con ayuda de las expresiones denticas bsicas del mandato, la permison y la prohibicin. Los principios, al igual que las reglas para juicios concretos de deber ser, aun cuando sean razones de un tipo muy diferente. La distincin entre regals y principios es pues uno distinticin entre dos tipos de normas. (ALEXy, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estdios Constitucionales, 997, p.8).
9 Alexy percebe o problema de trabalhar axiologicamente o Direito. Contudo, a despeitoContudo, a despeito de pretender escapar de tal engodo, acaba por justificar a forma de aplicao do Direito por meio de uma argumentao utilitarista de um mtodo que possibilitaria racionalizar as escolhas entre os meios e fins das medidas impugnadas.
prevalncia que permitiriam que os princpios
viessem a ser tratados deontologicamente, ou
seja, sob a lgica do tudo ou nada.
Seu raciocnio privilegia uma anlise
hermenutica que levaria em conta tanto
possibilidades normativas quanto fticas,
eis que as regras de prevalncia40 somente
poderiam ser justificadas com base em uma
considerao das circunstncias especficas
de cada caso concreto.
De outra banda, as regras seriam normas
jurdicas que expressariam mandados
definitivos, eis que mero exame subsuntivo
permitiria verificar o enquadramento (ou no)
de suas premissas hipotticas ao caso.
A distino entre princpios e regras segundo Alexy no pode ser baseada no modo tudo ou nada de aplicao proposto por Dworkin, mas deve resumir-se, sobretudo, a dois fatores: diferena quanto coliso, na medida em que os princpios colidentes apenas tm sua realizao normativa limitada reciprocamente, ao contrrio das regras, cuja coliso solucionada com a declarao de
40 Ou seja, a determinao de uma relao de preferncia , de acordo com a lei da coliso, o estabelecimento de uma regra (ALEXY, 1993b:103) que vale naquelas (e somente naquelas) condies fticas e jurdicas. Isso significa que quando um tribunal diz que em um determinado caso (ou seja, sob dadas condies fticas e jurdicas) um princpio precede a outro, ele diz, em essncia, haver uma regra (que deve ser aplicada de modo incondicional e absoluto) que manda aplicar, naquele caso, aquele princpio, ou melhor, que determinados princpios apiam a aplicao de regras conflitantes (ALEXY, 1993b:100). A ponderao dos princpios implica a existncia de uma regra segundo a qual em toda situao em que o condicionamento ftico forem exatamente os mesmos, prevalecer sempre um nico e mesmo princpio. Como ele afirma, como resultado de toda ponderao jusfundamental correta, pode-se formular uma norma de direito fundamental adstrita, com carter de regra, sob a qual pode ser subsumido o caso (ALEXY, 1993b:98 e 134). (GALUPPO, Igualdade e diferena, p. 77).
53
invalidade de uma delas ou com a abertura de uma exceo que exclua a antinomia; diferena quanto obrigao que instituem, j que as regras instituem obrigaes absolutas, no superadas por normas contrapostas, enquanto os princpios instituem obrigaes prima facie, na medida em que podem ser superadas ou derrogadas em funo dos outros princpios colidentes.4
Em relao diferena quanto coliso,
Alexy percebe a construo de standards
discursivos especficos para cada caso
concreto (regras de prevalncia)4, enquanto
para as hipteses de antinomias entre regras,
ele procurava refinar perspectiva de
Dworkin4 outras clusulas de exceo alm da
questo da validade. Por clusulas de exceo
podemos entender tanto a possibilidade de
enumerao de hipteses excepcionais para
a incidncia das regras quanto s clssicas
modalidades de afastamento da incidncia
de uma das regras. No primeiro caso, estaria
o exemplo da proibio dos discentes de
deixar a sala de aula durante o perodo de
magistrio e a exceo em relao a eventual
aviso de incndio. De outro lado, alm do
critrio hierrquico (pelo qual a regra
4 vILA, Teoria dos princpios, p. 0).4 (...) las condiciones, bajo las que un principio
prevalece sobre outro, forman el supuesto de hecho de una regla que determina las consecuencias jurdicas del principio prevalecente. (ALEXy, Robert. Derecho y razn prtica. Mxico: Distribuiciones Fontamara,Mxico: Distribuiciones Fontamara, 99, p. 7)
4 Se duas regras entram em conflito, uma delas no pode ser vlida. A deciso de saber qual delas vlida e qual deve ser abandonada ou reformulada, deve ser tomada recorrendo-se a consideraes que esto alm das prprias regras. Um sistema jurdico pode regular esses conflitos atravs de outras regras, que do precedncia regra promulgada pela autoridade de grau superior, regra promulgada mais recentemente, regra mais especfica ou outra coisa desse gnero. (DWORKIN, Levando os direitos a srio, p. 4).
hierarquicamente superior afasta a regra de
condio inferior), que tecnicamente seria o
nico ligado questo da validade, caso a
entendamos por conformidade com os ditames
formais e matrias de norma superior, no
seria irracional acrescentar outras solues
operadas no caso de antinomia de regras,
quais sejam, pelo emprego ao recurso das
chamadas clusulas de exceo, os critrios
cronolgico (pelo qual a lei mais recente
revoga/afasta a lei anterior), da especialidade
(pelo qual a regra mais especfica para o caso
afasta a regra de carter mais geral) e o da
territorialidade (para a soluo de coliso de
normas jurdicas oriundas de ordenamentos
jurdicos distintos).
Quanto obrigao, os princpios vo
requerer um exame das possibilidades
fticas para sua aplicao, ligando a lei da
coliso aos subprincpios da adequao e da
necessidade. J o problema das possibilidades
normativas, Alexy formula sua conhecida lei
da ponderao, pela qual quanto maior seja o
grau de prejuzo no tocante ao cumprimento e
observncia de um princpio, maior dever ser
o grau de importncia para o adimplemento
do outro.
Debaixo de cerradas crticas quanto
i r r a c iona l i dade 44 de sua l e i da
44 Diferentemente do que preconiza a doutrina da ponderao, no so necessrias compresses ou renncias por parte de qualquer dos interesses conflitantes. A idia de que algo deve ser perdido no processo de soluo de um tal conflito , concessa venia, to incorreta como afirmar que um valor mais importante ou mais pesado do que o outro dentro do sistema, ainda que em determinado caso. Os critrios dessa medida jamais so exteriorizados pelos tericos da ponderao, mas antes deixados confortavelmente, sob o manto da tpica, ao subjetivismo do intrprete.
Pior ainda se afigura defender que as compresses sejam recprocas, a fim de que um princpio no seja
54
ponderao45, Alexy procura defender-se em
textos posteriores nos quais procura explicitar
critrios mais claros para o emprego da
engolido pelo outro. Parte-se da idia, de duvidosa
correo, segundo a qual melhor ver dois princpios
sendo aplicados numa intensidade menor que ver um
aplicado em detrimento do outro. Em suma, chega-se
a defender que melhor aplicar 30% (supondo que
a aplicao de um princpio possa ser objetivamente
pesada, o que duvidoso) de dois princpios colidentes
que 100% de um e 0% de outro. Com isso tamanhas podem
ser as compresses que srio o risco de alcanar-se
uma soluo que no tutele suficientemente qualquer dos
interesses em jogo,nem proteja suficientemente qualquer
das partes. (SILvA, Antnio Henrique Corra. Coliso
de princpios e ponderao de interesses: soluo ruim
para problema inexistente. Rio de Janeiro: manuscrito,
00, p, 0-, p. 7).45 Habermas entende que a maneira pela qual Alexy
concebe as leis de coliso e de ponderao implica uma
concepo axiologizante do direito, pois a ponderao,
nos moldes pensados pela teoria dos princpios jurdicos
como mandados de otimizao, s possvel porque
podemos preferir um princpio a outro, o que s faz
sentido se os concebermos como valores, pois apenas
porque so concebidos como valores que os seres
podem ser objeto de mensurao pela preferebilidade,
constitutiva do prprio conceito de valor, uma vez que o
valor, como aponta Lalande, pode ser entendido como o
carter das coisas consistindo em que elas so mais ou
menos estimadas ou desejadas por um sujeito ou, mais
ordinariamente, por um grupo de sujeitos determinados
(LALANDE, 1960: 1183. Grifos meus). Ao assumir
tal posio Alexy confunde as normas jurdicas (e em
especial os princpios) com valores, o que torna sua
teoria inconsistente, pois, de um lado, Alexy afirma:
A diferena entre princpios e valores se reduz a
um ponto. O que no modelo dos valores prima facie o
melhor , no modelo dos princpios, prima facie devido; e
o que no modelo dos valores definitivamente melhor ,
no modelo dos princpios, definitivamente devido. Assim,
os princpios e os valores se diferenciam em virtude de
seu carater deontolgico e axiolgico respectivamente.
No direito, do que se trata do que devido. Isto fala em
favor do modelo dos princpios (ALEXY, 1993b:147).
Mas, de outro, ao tentar resolver o problema
dos conflitos entre os princpios, o autor adota um
procedimento tpico da axiologia. (GALUPPO, Igualdade
e diferena, p. 79/80).
lei da ponderao4. Contudo, ao invs de
melhorar, sua posio acaba por destruir
definitivamente sua construo original, eis
que passa a admitir regras de prevalncia
em abstrato, como bem observa Meyer:
Para possibilitar uma metodologia ainda mais detalhada, Alexy apresenta uma escala de interferncia num princpio jurdico e no interferncia em outro: esta pode ser leve (light), moderada (moderate), sria (serious). Essas interferncias so concretas, como ele reconhece; mas pode haver certas medidas ou pesos definidos em abstrato, segundo a relao de um princpio com outro independentemente das circunstncias de um caso concreto. O direito vida, por exemplo, teria um peso em abstrato maior do que o direito de liberdade de ao.47
Alexy parece no perceber que, ao admitir
possibilidades de que a lei da ponderao
possa estabelecer-se de forma desconectada
da realidade, sua teoria acaba definitivamente
retornando ao paradigma positivista. Primeiro
porque pretende cindir a interpretao
em duas, eis que seu ps-positivismo se
limita aplicao dos princpios enquanto
o emprego de regras ainda ficaria sob a
gide do positivismo48 e de seus mtodos de
4 Cf. ALEXy, Balancing and subsumption, p. 440.47 MEyER, As sentenas intermedirias no marco
de uma compreenso constitucionalmente adequada do controle jurisdicional de constitucionalidade ao paradigma procedimentalista do Estado Democrtico de Direito, p. .
48 Alexy divide as normas jurdicas em duas categorias, as regras e os princpios. Essa diviso no se baseia em critrios como generalidade e especialidade da norma, mas em sua estrutura e forma de aplicao. Regras expressam deveres definitivos e so aplicadas por meio de subsuno. Princpios expressam deveres prima facie, cujo contedo definitivo somente fixado aps sopesamento com princpios colidentes. (AFONSO DA SILvA. O proporcional e o razovel, p. 5).
55
interpretao49. Segundo, porque, ao dizer
que as regras de prevalncia da ponderao
podem ser fixadas abstratamente em
carter definitivo, abandona qualquer
perspectiva lingstico-pragmtica legada
pela hermenutica como analtica existencial,
desde Heidegger e Gadamer50. Logo,
49 Portanto, ao se falar em nova interpretao constitucional, normatividade dos princpios, ponderao de valores, teoria da argumentao, no se est renegando o conhecimento convencional, a importncia das regras ou a valia das solues subsuntivas. Embora a histria das cincias se faa, por vezes, em movimentos revolucionrios de ruptura, no disso que se trata, aqui. A nova interpretao constitucional fruto de evoluo seletiva, que conserva muitos dos conceitos tradicionais, aos quais, todavia, agrega idias que anunciam novos tempos e acodem a novas demandas.(BARCELLOS, Ana Paula de; BARROSO, Lus Roberto. O comeo da histria: a nova interpretao constitucional e o papel dos princpios no Direito Brasileiro. AFONSO DA SILvA, Lus virglio (Org.). Interpretao constittucional. So Paulo: Malheiros, 005, p. 75).
50 curioso observar que a doutrina nacional tributria do pensamento de Alexy parece ter se antecipado na possibilidade de uma ponderao em abstrato, como se percebe da passagem seguinte: Quando se fala em ponderao, a imagem que em geral se formar na mente do leitor a do magistrado colocado diante de um complexo caso concreto para o qual no h soluo pronta no ordenamento ou, pior que isso, para o qual o ordenamento sinaliza com solues contraditrias diante das quais caber a ele decidir o que fazer: ningum pode ajud-lo e no h a quem recorrer. O quadro que se acaba de descrever corresponde, sem dvida, a um momento da tcnica da ponderao, mas apenas a um, ou a uma das formas possveis da sua manifestao. Tanto assim que possvel imaginar uma outra cena. Um grupo de professores se encontra para debater o conflito potencial que existe entre, e.g., a liberdade de imprensa e de informao e a intimidade, honra e vida privada. No encontro, diversos questionamentos so formulados na tentativa de demarcar as fronteiras de convivncia desses bens protegidos constitucionalmente: (...) Ora, o que os professores reunidos esto fazendo tambm uma forma de ponderao, s que se trata de uma ponderao em abstrato. (BARCELLOS, Ana Paula de. Alguns parmetros normativos para a ponderao constitucional. BARROSO, Lus Roberto (Org.). A nova interpretao constitucional. Ponderao, Direitos fundamentais e relaes privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 00, p. 0, sem destaque no original).
perdem-se at mesmo as condies de
possibilidade para o conhecimento, que dir
ento das condies de validade do mesmo.
Alexy e seus seguidores no percebem
o problema e diante das crticas propugnam
cada vez mais uma racionalidade em torno
de frmulas matemticas do peso na lei da
ponderao, como se com isso fosse possvel
tornar racionalizvel sua teoria. Tal como as
avestruzes que escondem suas cabeas na
terra para no ver o perigo, Alexy no percebe
que sua dicotomia de espcies normativas
no tem como subsistir no estgio atual de
racionalidade filosfica e cientfica.
Ademais, seus seguidores parecem no
perceber que a posio de Dworkin jamais
esteve ao lado das idealizaes discursivas
de Alexy. Com supedneo em Aleinikoff,
podemos dizer que Dworkin jamais
abandonou uma concepo deontolgica
do Direito, eis que no instante em que
fala de dimenso de peso para a aplicao
dos princpios no se submete lgica do
prefervel, pois se no os chamados por
ele argumentos de princpio no seriam
trunfos necessrios na operacionalizao do
Direito. Para Dworkin, ponderar significa
refletir, avaliar, pensar, ou seja, procurar
ser honesto para consigo, para com sua
histria de vida e de uma comunidade de
princpios diante de um caso, enquanto para
esses seguidores, ponderar implica a adoo
de uma teoria particular de interpretao
axiolgica do Direito baseada na justificao
e na racionalidade do tipo matemtica.5
5 In sum, balancing is not inevitable. To balance the interests is not simply to be candid about how our minds and legal analysis must work. It is to adopt a particular theory is interpretation that reuires justification. (ALEINIKOFF, Alexander. Constitutional law in the age of balancing. The yale Law Journal, vol. 9, n 05, abr. 987, p. 00).
56
Um dos erros centrais da tcnica de
ponderao de valores o de no perceber
que a dvida inicial diante de um caso
concreto que conduz percepo de que
haja dois princpios em coliso no passa
de um uma antecipao, ou seja, de um
preconceito do operador do Direito. Contudo,
nem sempre isso ocorre. Nesse processo
comum tanto a soluo nos incorrer de
forma imediata quanto o operador do Direito
constatar que no lhe ocorre nenhuma feliz
idia sobre o problema. Mas, como mera
antecipao, desde Gadamer aprendemos
que devemos lidar com ela de modo a evitar
que essas felizes idias possam conduzir
o processo hermenutico pelo caminho
do decisionismo.
Depois, preciso ficar claro que nenhum
caso concreto pode ser limitado comparao
de dois princpios. Dito desse modo, quando
lembramos do caso do habeas corpus
n. 77-4, apreciado pelo Supremo da
dcada de 990, aparentemente tnhamos
dois princpios em coliso: o princpio da
intimidade do filho ansioso por confirmar a
paternidade daquele que ele julgava ser seu
pai e, de outro lado, o princpio da integridade
fsica e moral. Contudo, a questo de certo
envolvia outros princpios? Desse modo,
os princpios da liberdade de locomoo e
da dignidade da pessoa humana, de certo
estavam envolvidos. Assim, diriam os
adeptos da ponderao, o trabalho deveria ser
armar a equao, colocando em cada lado
da balana todos os princpios em questo.
A resposta dada pelo Supremo baseou-se na
noo do devido processo legal, de forma a
impedir que algum fosse obrigado a fazer
prova contra si mesmo. Ora, o problema
que a tcnica da ponderao no percebe
que a deciso jamais partir da controvrsia
entre dois princpios, pois a argumentao
envolve sempre todo o Direito. A resposta
encontrada pelo senso de adequabilidade
dos envolvidos na questo e aqui se trata
de um processo e jamais de uma deciso
solipsista do juiz de modo a examinar
todo o ordenamento do Direito em face das
circunstncias relevantes do caso concreto.
Contudo, deixemos de lado um pouco a
perspectiva de Dworkin para nos aprofundarmos
um pouco mais na teoria dos princpios que d
suporte aos adeptos da ponderao de valores.
Assim, que, a despeito de todos os problemas
acima elencados, a perspectiva de Alexy vem
ganhando cada vez mais adeptos na doutrina
nacional. Alguns de seus discpulos buscam
garantir a pureza de suas lies contra aquilo
que denominam de ecletismo, tentando realar
as incongruncias do emprego da tcnica da
ponderao por nossos tribunais, tal como em
Afonso da Silva; outros procuram demonstrar
novas perspectivas para o uso da ponderao,
tal como em Humberto Bergmann vila e
Ana Paula Barcellos. Desse modo, cumpre
que adentremos no debate entre puristas
e alternativos defensores da ponderao
de valores.
Barcellos sustenta que, alm dos critrios
apontados por Alexy, seria necessrio
acrescentar dois elementos suplementares,
quais sejam, o da indeterminao de seus efeitos
e o da multiplicidade de meios para atingi-los5.
Para tanto aduz, por exemplo, que o princpio
do pleno emprego possa ser concretizado pelas
mais variadas polticas pblicas.
5 Cf. BARCELLOS, Ana Paula. A eficcia jurdica dos princpios constitucionais: o princpio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 00, p. 54).
57
Quanto ao aspecto da generalidade,
seria desnecessrio tocarmos novamente no
assunto. Quanto ao segundo aspecto, Afonso
da Silva sustenta e a nosso ver com
razo que qualquer direito fundamental
tem uma dupla dimenso, uma positiva, que
demanda uma ao, e outra negativa, que
exigiria uma omisso. Assim, quando se trata
do direito de propriedade, tanto necessrio
que haja poltica pblica de garantia de
casa prpria para os mais carentes quanto
preciso que todos respeitem e abdiquem
de aes que ofendam tal direito. E, por
conseguinte, a questo da multiplicidade de
meios para atingi-lo seria uma caracterstica
apenas parcial dos princpios, eis que incidiria
somente na sua dimenso positiva, alm do
que inafastvel tambm das regras que dariam
suporte ao prprio princpio.
Se examinarmos as normas de direitos fundamentais, veremos que quase todas elas impem tanto uma omisso quanto uma ao. A liberdade de imprensa, por exemplo, impe tanto omisses a no-existncia de censura, por exemplo quanto aes a garantia de uma imprensa plural, com o combate a monoplio, poderia ser uma delas. O mesmo vale para o direito vida, j que o Estado deve abster-se de matar vedao da pena de morte, por exemplo e, ao mesmo tempo, garantir que a vida dos cidados no seja ameaada, criando e mantendo, para isso, aparatos policial e judicial eficientes, ou na elaborando leis penais eficazes, dentre outras providncias. A multiplicidade de meios para atingir efeitos pretendidos, citada por Ana Paula de Barcellos, , portanto, uma caracterstica apenas parcial dos princpios, ou seja, ela somente aplicvel ao mbito positivo deles, no estando presente no seu aspecto meramente negativo, conhecido como direito de defesa.5
5 AFONSO DA SILvA, Lus virglio. Princpios e regras: mitos e equvocos acerca de uma distino. Belo Horizonte: Del Rey, Revista Latino Americana de Estudos constitucionais, p. 07-8, p. 4/5).
Em nosso sentir, tal caracterstica no
logra distinguir as espcies normativas nem
mesmo de forma parcial. Ora, quando se
trata de direito vida, de certo, devemos
incluir textos de cunho penal, tal como a que
tipifica o homicdio, seja culposo ou doloso,
por exemplo. Assim, todos, e pelas mais
variadas formas de absteno (diligncia no
trnsito, cuidado na dispensao de remdios,
vigilncia para com as crianas, apenas a
ttulo de exemplificao) devem garantir
o direito vida, impedindo a prtica de
homicdios. Todavia, para os cultores de tal
distino, tal dispositivo no seria uma regra?
Ora, mais uma vez o problema de no se
compreender a hermenutica de modo crtico,
dentro do refinamento lingstico-pragmtico
acaba acarretando esse tipo de distino, a
nosso ver desarrazoada.
Quanto tese de Humberto vila, a
importncia de sua colaborao para o
desenvolvimento da teoria dos princpios
significativa no contexto nacional. E, quanto
s crticas que lhe so dirigidas por Afonso
da Silva, cremos ser, em sua maioria,
descabidas. Contudo, uma delas acerta em
cheio: no h como negar que de todas as
hipteses que vila elenca como casos de
coliso de princpios apenas uma delas pode
ser enquadrada a partir da perspectiva de
Alexy. veja:
Para demonstrar sua tese, Bergmann vila sugere que as colises entre princpios sejam classificadas em quatro categorias distintas; () a realizao do fim institudo por um princpio leva realizao do fim determinado pelo outro; nesse caso, no haveria que se falar em mxima medida, mas somente em realizao na medida necessria; () a realizao do fim institudo por um exclui a realizao do fim determinado pelo outro; nesse caso, o problema s poderia ser solucionado com a
58
rejeio de um dos princpios. Esse tipo de coliso seria, segundo ele, semelhante aos casos de conflito entre regras. Isso o leva a afirmar que a diferena no est no fato de que as regras devem ser aplicadas no todo e os princpios na mxima medida. Ambas as espcies de normas devem ser aplicadas de modo que o seu contedo de dever ser seja realizado totalmente; () a realizao do fim institudo por um s leva realizao de parte do fim determinado pelo outro; (4) a realizao do fim institudo por um no interfere na realizao do fim buscado pelo outro. Examinemos as quatro categorias propostas por Humberto vila com um pouco mais de ateno. Salta aos olhos, logo de incio, que apenas a segunda delas configura uma coliso de princpios. Nas outras trs hipteses, simplesmente no h coliso.54
Contudo, a contribuio de vila para uma
melhor compreenso da teoria dos princpios a
ns parece essencial. E a razo simples: vila
desconstri a tese de Alexy segundo a qual as
regras somente poderiam ser aplicadas sob o
modelo subsuntivo do tudo ou nada. Em sua
opinio a ponderao de valores poderia ser
perfeitamente aplicvel para as regras e no
apenas para os princpios. Assim, tambm as
regras teriam seu modo de operar definido por
uma dimenso de peso, simplesmente porque
a dimenso axiolgica do Direito no est
circunscrita aos princpios: ela permeia todo
o ordenamento jurdico55.
54 AFONSO DA SILvA, Lus virglio. Princpios e regras: mitos e equvocos acerca de uma distino, p. 0).
55 Tambm no coerente afirmar que somente os princpios possuem uma dimenso de peso. Em primeiro lugar, h incorreo quando se enfatiza que somente os princpios possuem uma dimenso de peso. Como demonstram os exemplos antes trazidos, a aplicao das regras exige o sopesamento de razes, cuja importncia ser atribuda (ou coerentemente intensificada) pelo aplicador. A dimenso axiolgica no privativa dos princpios, mas elemento integrante de qualquer norma jurdica, como comprovam os mtodos de aplicao que
Desse modo, a dimenso de peso no
seria um atributo especfico dos princpios,
capaz de os tornar distintos das regras. Na
verdade, a dimenso do peso seria uma
caracterstica da deciso estabelecida em
funo das circunstncias concretas de cada
caso concreto. E d uma srie de exemplos
capaz de confirmar sua tese.
O primeiro deles particularmente
interessante porque aborda matria de cunho
penal, no qual prevalece a concepo de que
sua tipologia seria fechada e, desse modo, mais
afeta concepes positivistas de uma tcnica
subsuntiva. vila demonstra justamente o
contrrio: o caso se liga aplicao do artigo
4 do Cdigo Penal, pelo qual a relao
sexual praticada com menor de 4 (quatorze)
anos deve-se ter por presumida a violncia.
Contudo, a despeito do teor do texto legal, o
Supremo vem considerando circunstncias
particulares no previstas pelas normas, tais
como a aquiescncia da vtima e sua aparncia
fsica e (ou) mental de pessoa com idade
superior ao limite do tipo5.
relacionam, ampliam ou restringem o sentido das regras em funo dos valores e fins que elas visam a resguardar. As interpretaes, extensiva e restritiva, so exemplos disso. Em segundo lugar, h incorreo quando se enfatiza que os princpios possuem uma dimenso de peso. A dimenso de peso no algo que j esteja incorporado a um tipo de norma. As normas no regulam sua prpria aplicao. No so, pois, os princpios que possuem uma dimenso de peso: s razes e aos fins aos quais eles fazem referncia que deve ser atribuda uma dimenso de importncia. A maioria dos princpios nada diz sobre o peso das razes. a deciso que atribui aos princpios um peso em funo das circunstncias do caso concreto. (...) Vale dizer, a dimenso de peso no um atributo emprico dos princpios,justificador de uma diferena lgica relativamente s regras, mas resultado de juzo valorativo do aplicador. (vILA, Teoria dos princpios, p. 50/51, sem destaque no original).
5 Cf. STF, turma, HC 7.-9, relator Min. Marco Aurelio, DJU 0.09.99.
59
Outro deles se liga construo do conceito
de improbidade administrativa. Dessa vez o
Supremo absolveu Prefeita Municipal que
contratou um nico gari, pelo perodo e nove
meses, sem a realizao prvia de concurso
pblico, em desacato ao disposto no artigo 7,
inciso II da Constituio Federal. Na ocasio,
o Supremo entendeu que sua condenao
feriria o princpio da razoabilidade, eis que
no ficou constatado pelas provas documentais
e testemunhais qualquer prejuzo aos cofres
pblicos locais57.
vila menciona ainda um terceiro caso,
curioso tambm por entrar em uma seara na
qual a maioria dos nossos operadores do Direito
julga ser privativa ou, melhor dizendo, mais
afeioada tcnica da subsuno de uma
conceitualidade fechada. Observe:
A legislao tributria federal estabelecia que o ingresso no programa de pagamento simplificado de tributos federais implicava a proibio de importao de produtos estrangeiros. Se fosse feita importao, ento a empresa seria excluda do programa de pagamento simplificado.Uma pequena fbrica de sofs, enquadrada como empresa de pequeno porte para efeito de pagar conjuntamente os tributos federais, foi excluda desse mecanismo por ter infringido a condio legal de no efetuar a importao de produtos estrangeiros. De fato, a empresa efetuou uma importao. A importao, porm, foi de quatro ps de sofs, para um s sof, uma nica vez. Recorrendo da deciso, a excluso foi anulada por violar a razoabilidade, na medida em que uma interpretao dentro do razovel indica que a interpretao deve ser feita em consonncia com aquilo que, para o senso comum, seria aceitvel perante a lei. Nesse caso, a regra segundo a qual proibida a importao para a permanncia no regime
57 Cf. STF, Turma, HC 77.00-4, Relator Min. Marco Aurelio, DJU .09.998.
tributrio especial incidiu, mas a conseqncia do seu descumprimento no foi aplicada (excluso do regime tributrio especial), porque a falta de adoo do comportamento por ela previsto no comprometia a promoo do fim que a justificava (estmulo da produo nacional por pequenas empresas).58
Afonso da Silva, percebendo o perigo
potencial de imploso da teoria dos princpios
alexyana, procura responder tal assertiva.
Porm, em nossa opinio, no bem-sucedido.
vila sustenta ancorado na opinio de Hage59
que a dimenso de peso no fixada pela
estrutura da norma, mas do uso que se faz da
mesma, ou seja, que o peso fixado em razo
das circunstncias de cada caso concreto.
Para contradit-lo, Afonso da Silva afirma
que diante de uma coliso de princpios o
que se aplica no o dever-ser prima facie
de um princpio e sim o dever-ser constitudo
pela regra prevalecente oriunda da prpria
ponderao0. Assim o dever-ser prima
facie do princpio, que lhe permite ser
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