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UNIVERSIDADE ESTADUAL DA PARAÍBA – UEPB
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
MESTRADO EM LITERATURA E INTERCULTURALIDADE
TEMATIZAÇÕES DO SAGRADO EM “SÃO MARCOS”, DE JOÃO
GUIMARÃES ROSA
José Aldo Ribeiro da Silva
Campina Grande – PB
2016
José Aldo Ribeiro da Silva
TEMATIZAÇÕES DO SAGRADO EM “SÃO MARCOS”, DE JOÃO
GUIMARÃES ROSA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Literatura e Interculturalidade, da
Universidade Estadual da Paraíba, como requisito
parcial para a obtenção do título de mestre.
Orientador: Prof. Dr. Antonio Carlos de Melo
Magalhães
Campina Grande – PB
2016
À professora Silvania Núbia Chagas, cujas aulas,
nos tempos da graduação, inspiraram esta e outras
travessias.
Há homens que passam a vida náufragos no oceano
de sua própria alma. Dentre estes, há aqueles que
somente acham amparo, salvamento e respirar na
amurada de uma palavra, no beiral do verbo. E
acabam por encontrar ali o clarão, o chão, a trilha.
Somos os náufragos para os quais a palavra é ilha.
(Elisa Lucinda, Fernando Pessoa: O Cavaleiro de
Nada)
AGRADECIMENTOS
A Antonio Carlos de Melo Magalhães, por ter tornado este trabalho possível, através
de suas orientações generosas, e também de sua instigante produção científica, que muito
contribuíram para a compreensão de nosso objeto de estudo.
À grande professora e amiga Zuleide Duarte, pelos muitos ensinamentos sobre
literatura, arte e vida – divisores de águas em minha trajetória; pela generosidade com que
partilha afeto e saber em suas aulas; pelas significativas contribuições durante o processo de
qualificação da pesquisa.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Interculturalidade,
pelos valiosos momentos de aprendizagem oportunizados ao longo de minha passagem por
Campina Grande.
Ao professor Eli Brandão, pelas valiosas recomendações na banca de qualificação.
Aos secretários do PPGLI, Roberto e Alda, pela solicitude com que sempre me
atenderam.
A Silvania Núbia Chagas, professora e amiga, a quem dedico este trabalho, por ter
acreditado em mim quando eu próprio duvidava; pelas aulas nos cursos de graduação e pós-
graduação, que intensificaram, de forma decisiva, a minha paixão pela arte literária.
A Anderson Frasão, por ter sido amigo nos melhores e também nos mais desafiadores
momentos desta trajetória.
A Andeilza Santos, pelo constante incentivo e a amizade de longa data.
A Erick Camilo, Adriano Resende e Joselice Messias, incentivadores diretos deste
percurso.
Aos amigos do Colégio Presbiteriano Quinze de Novembro, pela compreensão e apoio
incondicionais.
A Edvaldo Mattias, coordenador pedagógico e grande amigo, pelos valiosos conselhos
e palavras de incentivo.
A Annie Figueiredo e Micheline Chaves, pelos sonhos partilhados e pelas conversas
em que o tempo voava, fazendo leves os esforços exigidos pela caminhada.
A Gabriela Paz, por ter sido a amiga com quem contei em todas as horas e ter
acompanhado tão de perto cada etapa desta trajetória.
A Claudeci Ribeiro, por partilhar comigo suas paixões literárias nas furtivas leituras
que fazíamos entre o ponto de ônibus e os corredores da UEPB.
A Rafaela Dayne, por ter me ajudado desde o momento em que nos conhecemos
durante a seleção de mestrado.
Aos colegas do PPGLI, pelos conhecimentos e inquietações compartilhados que foram
de grande valia para o meu amadurecimento durante as aulas.
A Josefa, minha mãe, pelo carinho com que me recebia a cada retorno à terra natal;
por ter feito com que o regresso compensasse cada momento saudoso dos dias em que estive
longe.
A Antonio Ribeiro, meu pai, por ser exemplo de caráter e determinação.
Aos meus irmãos e sobrinhos, cuja compreensão e apoio tornaram possível a
conclusão desta pesquisa.
Aos amigos, por compreenderem as minhas ausências durante a elaboração deste
trabalho.
RESUMO
Este trabalho, embasado pelos crescentes estudos das interfaces entre literatura e sagrado,
analisa a narrativa “São Marcos”, de João Guimarães Rosa, na perspectiva de rastrear em sua
composição a presença de gestos humanos e elementos configuradores das experiências
numênicas, determinantes na composição do convívio do homem com a sacralidade.
Publicada em Sagarana (2001), a mencionada narrativa, através de um discurso
predominantemente composto em primeira pessoa, coloca em questão as metamorfoses do
olhar humano desencadeadas pelas experiências místicas que o narrador-personagem vivencia
em diferentes momentos de sua trajetória. Sua análise permitiu a apreciação de
posicionamentos adotados pelo homem em sua insuperável busca por transcendência,
propiciando reflexões sobre os cruzamentos e rejuntes que perfazem as experiências religiosas
contemporâneas.
Palavras-chave: Literatura – sagrado – mímesis.
RESUMEN
Este trabajo, basado por los estudios sobre las interfaces entre la literatura y sagrado, analiza
la narrativa "São Marcos", de João Guimarães Rosa, con el objetivo de señalar en su
composición la presencia de gestos humanos y elementos característicos de las experiencias
“numénicas”, determinantes en la composición del vivir humano con la sacralidad. Publicada
en Sagarana (2001), la narración, a través de un discurso compuesto predominantemente en
primera persona, subraya las transformaciones del ojo humano provocadas por las
experiencias místicas que el narrador personaje vive en diferentes momentos de su trayectoria.
Su análisis permitió la apreciación de posicionamientos adoptados por el hombre en su
insuperable búsqueda por transcendencia, favoreciendo reflexiones sobre los cruzamientos y
los rejuntes que hacen posibles las experiencias religiosas contemporáneas.
Palabras clave: Literatura - sagrado - mímesis.
SUMÁRIO
Introdução.......................................................................................................................... 10
Capítulo 1: Entre História e Estória: o lugar do literário na compreensão do
humano...............................................................................................................................
14
1.1. O lugar da mímesis nas reflexões sobre texto literário e realidade............................ 15
1.2. Nas Veredas de Rosa: fronteiras, margens e travessias............................................. 24
Capítulo 2: Uma encruzilhada de singularidades plurais............................................... 35
2.1.Sobre a experiência religiosa na contemporaneidade................................................. 38
2.2. A essência da sacralidade.......................................................................................... 43
2.3. Cruzamentos entre literatura e sagrado...................................................................... 55
Capítulo 3: Nas veredas de Rosa: Espaços da sacralidade.............................................
65
3.1.Um mundo quantificado............................................................................................. 67
3.2.A ambivalência da palavra.......................................................................................... 77
3.3. A ambivalência do sacro na composição do “mundo misturado” de João
Guimarães Rosa.......................................................................................................... 84
3.4. A ordem das árvores na conversão de Caos em Cosmos........................................... 91
3.5. A sacralidade das águas............................................................................................. 100
Considerações Finais......................................................................................................... 106
Referências......................................................................................................................... 109
10
INTRODUÇÃO
A obra do escritor brasileiro João Guimarães Rosa é considerada um divisor de águas
na história da literatura brasileira e vem despertando o interesse de um número expressivo de
estudiosos nos últimos tempos. As pesquisas sobre o fazer literário do autor convergem ao
enfatizar, em seus textos, a recriação de tradições, mitos, costumes, rituais e crenças que
fazem parte do imaginário da multiplicidade de povos presentes em seu país, demonstrando
que o seu acervo literário é um lugar privilegiado para a apreciação da diversidade cultural
brasileira.
Detentor de uma escritura singular, que inova a tradição literária vigente em seu lugar
de origem, tanto pelo grandioso trabalho que empreende com a linguagem quanto pela
maneira como conduz seu projeto literário (colocando lado a lado o popular e erudito,
justapondo elementos provenientes de diferentes culturas), o escritor se notabiliza por fazer
presentes em seus textos as inquietações que mobilizam a convivência entre homem e
sagrado, destacando-se no panorama das Literaturas de Língua Portuguesa por produzir
narrativas que colocam em cena a pluralidade presente no imaginário religioso de seu povo.
Povoadas, em sua grande maioria, por homens religiosos1, que convivem em espaços
por eles percebidos como impregnados de sacralidade, as narrativas rosianas colocam em cena
alguns dos gestos basilares a serem realizados pelo homem em sua busca por transcendência,
possibilitando a reflexão sobre a maneira como a adoção de crenças interfere na constituição
do humano. As crenças recriadas por Rosa disputam e dividem espaço no interior das estórias
contadas, evidenciando as tensões entre o “próprio” e o “alheio” na conformação das
experiências religiosas individuais. Os seres que adquirem vida em sua ficção buscam, no
mundo, elementos que lhes possibilitem a amenização de sua insaciável vontade de
ultrapassar os limites de sua condição, livrando-os da constatação de serem somente
“travessia” em contextos sociais, em muitos sentidos, hostis e limitados. E é essa busca um
dos intensificadores dos diálogos entre o “eu” e o “outro”, entre as tradições e crenças que o
sujeito toma como suas e aquelas que ele tenta denegar em sua trajetória existencial.
Partindo do pressuposto de que a vivência religiosa é, ao mesmo tempo, singular e
plural – por constituir-se como algo individual e irrepetível que se constitui a partir de
inúmeras contribuições, de religiosidades e concepções de mundo várias presentes em um
mesmo contexto social –, esta pesquisa analisa a maneira como os sujeitos discursivamente
1 A expressão é usada de acordo com as teorizações de Mircea Eliade, no livro O sagrado e o profano (2010, cf.
bibliografia), obra em que o autor estabelece distinções entre os homens religioso e a-religioso.
11
recriados nas páginas de uma das primeiras narrativas compostas e publicadas por Guimarães
Rosa – “São Marcos” – experienciam o sagrado, na tentativa de vislumbrar, através das
reflexões sobre o vivido que perpassam o discurso do narrador-personagem, os diálogos,
fraturas e dobras configuradores das experiências religiosas humanas, que por serem
vivências singulares forjadas pela pluralidade do espírito só podem ser avaliadas com maior
profundidade pelo próprio sujeito que as experiencia. De acordo com Rodrigo Portella, “para
se chegar a entender a religião que as pessoas realmente exprimem e vivem, em composições
e empréstimos variados, é preciso chegar aos sujeitos religiosos concretos em suas práticas
cotidianas e à interpretação que eles fazem delas” (MAGALHÃES; PORTELLA, 2008:146).
Acreditamos que uma das vias de acesso que possibilitam o estreitamento de relações com “os
sujeitos religiosos concretos” é a que é ofertada em meio à magia de sentidos encerrada pela
arte literária, já que a literatura é uma das veredas que possibilitam o acesso a aspectos
conscientes e inconscientes que impulsionam o homem em direção à sacralidade, por ser um
espaço em que os desejos e anseios da humanidade se materializam.
O texto literário, enquanto produto mimético, constitui-se em movimentos de
aproximação e distanciamento em relação às imagens da realidade internalizadas pelo seu
autor. Tais movimentos, conforme apontam os estudos de Costa Lima (1995; 2003; 2006;
2012), conferem às produções literárias mais altas a capacidade de serem iluminadas por
diferentes verdades, sem se subordinarem inteiramente a nenhuma delas, isentando o escrito
de qualquer tipo de compromisso direto com a realidade da qual emerge, sem com isso
dissipar a sua capacidade de promover reflexões sobre o real e a existência humana. Embora
não se restrinja à representação da realidade, a obra de arte constitui-se a partir do emprego de
“configurações verbais e/gestuais” socialmente instituídas e que antecedem o indivíduo que
delas se utiliza (COSTA LIMA, 2012: 104). Essas configurações, que Costa Lima chama de
frames, são responsáveis pelo efeito de realidade presente nas produções artísticas, que se
aproximam e distanciam do meio em decorrência dos diferentes graus de sublimação
responsáveis pelo impulso criativo de que a arte resulta, como demonstra Antonio Candido
(1985).
Tendo em vista tais constatações, acreditamos que a análise de textos narrativos nos
quais as relações entre homem e sagrado são tematizadas é elucidativa por colocar em cena as
inquietações, desejos e práticas promotoras dos “encontros” humanos com a sacralidade.
Nesse contexto, “São Marcos” apresenta-se como um campo fértil para a apreciação das
movimentações do homem em sua busca por transcender-se, já que a narrativa focaliza o
12
discurso de um homem a respeito de sua visão de mundo pretérita e a maneira como os
acontecimentos por ele experienciados tornaram imperativa a revisão de sua forma de “ver” e
perceber o mundo à sua volta, problematizando a incompletude humana e a eterna e
necessária exegese desenvolvida pelo ser com o intento de compreender a si próprio e ao
mundo.
Ao longo deste estudo, coloca-se em questão a maneira como as personagens da
narrativa, sobretudo aquela que conduz a maior parte do relato, estabelecem relações com a
sacralidade, tanto do ponto de vista existencial quanto social, e a forma como elas recriam o
que é supostamente vivido ao longo de seus processos de rememoração do passado, na
tentativa de perscrutar o modo como os seres que povoam o universo ficcional em análise
avaliam as suas vivências numênicas e o seu emergir em meio ao cenário em que estão
inseridas. Nesse itinerário, refletimos sobre a forma como o homem percebe a organização do
espaço e a partir dela tenta dissipar a imagem de um “caos” para perceber-se em meio a um
“cosmos” concebido por mãos divinas. Para tanto, empreendemos um percurso disposto em
três capítulos, que se inicia com a reflexão basilar sobre literatura e mímesis – fundamental
para a percepção da maneira como os gestos humanos inserem-se nas malhas discursivas do
literário –, passa necessariamente pelas relações entre literatura e sagrado e conclui-se com a
análise do texto selecionado do autor em foco. Ao longo do desenvolvimento dessa trajetória,
alguns capítulos se impuseram com maior densidade, devido ao papel que as questões em
torno das quais foram edificados desempenham para a leitura que propomos do objeto de
estudo adotado. Disso decorre a maior extensão do capítulo 2 em relação ao primeiro.
No primeiro capítulo, intitulado Entre História e Estória: o lugar do literário na
compreensão do humano, embasados pelos estudos de Costa Lima (1995; 2003; 2006; 2012)
e Wolfgang Iser (2002) problematizamos as relações entre literatura e realidade, avaliando as
contribuições da primeira na ampliação do entendimento que se tem da segunda. Na
sequência, revisitamos alguns dos estudos que compõem a fortuna crítica rosiana, tentando
ressaltar a natureza dos enlaces estabelecidos entre sua obra e o contexto social do qual
emerge. Discutimos, consequentemente, as contribuições da escritura de Rosa no
entendimento das dinâmicas culturais que permeiam o convívio em sociedade, evidenciando a
multiplicidade de pesquisas que tornaram possível a arte cultivada por João Guimarães Rosa.
No segundo capítulo, designado Uma encruzilhada de singularidades plurais,
partimos da consciência contemporânea a respeito do caráter dialógico das “verdades” com o
intento de promover uma reflexão sobre as dinâmicas assumidas pelas vivências religiosas do
13
homem egresso do período moderno. Refletimos também sobre o sagrado e seus inúmeros
diálogos com o literário, expondo algumas das convicções que nos mobilizam no
desenvolvimento desta pesquisa, embasados principalmente pelos estudos de Magalhães
(1997; 2000; 2008, 2012 e 2015) e Sperber (2011). Nesta etapa, discorremos sobre a essência
do fenômeno religioso, tendo como respaldo as contribuições teóricas de Rudolf Otto (2007),
Mircea Eliade (2010) e Octavio Paz (2012). Os percursos teóricos desenvolvidos nesta parte
da pesquisa são cruciais para o desenvolvimento do trajeto analítico realizado em torno da
narrativa de João Guimarães Rosa no terceiro capítulo, por isso não nos privamos de alongar
algumas digressões e de reiterar as questões de maior relevância para a análise da narrativa
rosiana escolhida.
No terceiro capítulo, denominado Nas veredas de Rosa: Espaços da sacralidade,
analisamos “São Marcos”, narrativa componente de Sagarana (2001), primeiro livro de
estórias publicado pelo escritor, com a intenção de demonstrar a maneira como o narrador-
personagem rememora suas supostas experiências numênicas e confere visibilidade às
relações que estabeleceu com o sagrado em determinado momento de sua trajetória
existencial. Nesta etapa, ressaltamos os atos fundacionais da personagem, desferidos com o
intento de estabelecer um “cosmos” organizado no espaço pelo qual transita, em um gesto
apontado por Eliade (2010) como um dos mais relevantes a serem adotados pelo homem
religioso em seu convívio com os elementos da natureza. Nesse percurso elucidativo, questões
como a quantificação de elementos do espaço e sacralização de palavras são apontadas como
determinantes no transcurso das experiências numênicas do narrador-personagem.
Por fim, nas considerações finais, revisitamos as inquietações que nortearam a
pesquisa na tentativa de aferir até que ponto a trajetória empreendida contribuiu para a
ampliação do entendimento das relações entre homem e sagrado e, também, para a leitura do
texto e do autor focalizados.
14
CAPÍTULO 1
Entre História e Estória: o lugar do literário na compreensão do humano
A história não é um registro de eventos mas a iteração de uma estória recontada.
(Roland Walter)
A arte literária é uma das mais altas expressões da cultura de um povo, pois em sua
gênese se materializam sensibilidades e inquietações que mobilizaram e mobilizam a ação e a
reflexão ao longo da história da humanidade, além de se presentificarem formas de
compreensão e percepção do humano e dos fenômenos que a ele se relacionam. O texto
literário diz muito a respeito do homem, uma vez que seus alicerces remontam ao campo das
possibilidades: espaço de desvendamento de dores, alegrias, angústias e desejos,
inconfessáveis em discursos situados em outras esferas do fazer intelectual. E disso decorre a
grande força que a arte da palavra manteve ao longo de sua história. Nos salões nobres ou nas
masmorras, todas as épocas e organizações sociais preocuparam-se em designar um espaço
para o homem que tinha o dizer poético como ofício e isso denota a sua relevância nos
diferentes momentos do percurso trilhado pelas mais diversas civilizações. Não se pode
esquecer que muitos dos manifestos humanos mais significativos permearam as letras de seus
respectivos tempos conferindo à arte também o papel de expressar os anseios de uma época.
A arte, compreendida por Antonio Candido como “um sistema simbólico de
comunicação inter-humana”, “é social em dois sentidos: depende da ação de fatores do meio,
que se exprimem na obra em graus diversos de sublimação; e produz sobre os indivíduos um
efeito prático, modificando a sua conduta e concepção do mundo, ou reforçando neles o
sentimento de valores sociais” (CANDIDO, 1985: 20- 21). As expressões artísticas, portanto,
são, para Candido, “coextensivas à própria vida social, não havendo sociedade que não as
manifeste como elemento necessário à sua sobrevivência”, haja vista que elas são “uma das
formas de atuação sobre o mundo e de equilíbrio coletivo e individual” (CANDIDO, 1985:
70). A literatura surge, assim, no jardim das musas, como arte verbal que, permitindo a
expressão do interno, interfere no meio por, direta ou indiretamente, exprimir sentimentos,
valores, formas de ser e de estar no mundo e maneiras de vê-lo também, contribuindo para a
visualização, edificação, compreensão e ressignificação de condutas humanas. Como muito
bem afirma Marli Fantini, “a literatura de nossos melhores escritores é uma das poucas
veredas a chancelar nosso ingresso no universo da consciência, do simbólico, da reflexão
sobre nossa história e nossos valores culturais” (FANTINI, 2006: 22- 23).
15
Produto mimético por excelência, o texto literário é, nas palavras de Costa Lima
(2003: 45), “um microcosmo interpretativo de uma situação humana”, no qual “o que mais
importa não é a declaração de quais os vencidos e quais os vencedores, mas o entendimento
interno do que leva à porfia e à tensão”, ou seja, a compreensão das forças que impulsionam
ou paralisam o homem diante dos imperativos por ele criados ou a ele apresentados em seu
trajeto existencial. Neste sentido, a obra de arte emerge como campo aberto às tentativas de
compreensão dos processos humanos, justamente por ser o espaço em que se materializam os
gestos de interpretação realizados pelo ser ao se debruçar sobre si mesmo e sobre a sua visão a
respeito do mundo e do existir. Em virtude disso, a compreensão da arte passa, de uma forma
ou de outra, pela reflexão sobre as relações entre a ficção e realidade, problemática que
permanece atual em virtude das inúmeras inquietações que suscita.
1.1. O lugar da mímesis nas reflexões sobre texto literário e realidade
Os diálogos entre arte literária e realidade sempre ocuparam um espaço privilegiado no
plano das divagações sobre o fenômeno poético. A maneira como as duas instâncias dialogam
e mutuamente se alimentam, em uma espécie de canibalismo constitutivo, tem se apresentado
como questão de grande relevância para estudiosos das mais distintas épocas e filiações
teóricas. A clássica diferenciação aristotélica entre os labores do historiador e do poeta, na
qual o estagirita afirma que o primeiro trabalha com aquilo que foi e o segundo com o que
“poderia ter sido” 2, institui-se como gesto inaugural no sentido de iluminar as frágeis e
descontínuas fronteiras que delimitam os espaços ocupados pela ficção e a realidade,
problematizando um campo de raciocínio a ser explorado da Antiguidade Clássica aos dias
atuais.
Antonio Candido (1985: 53) destaca que a literatura surge a partir de negociações entre
o socialmente instituído e o arbitrário, pois
A arte, e portanto a literatura, é uma transposição do real para o ilusório por meio de
uma estilização formal, que propõe um tipo arbitrário de ordem para as coisas, os
seres, os sentimentos. Nela se combinam um elemento de vinculação à realidade
natural ou social e um elemento de manipulação técnica, indispensável à sua
configuração [...] (CANDIDO, 1985: 53).
2 Tal afirmação está presente na Poética (1996), conforme bibliografia.
16
A definição de Candido evidencia que os diálogos entre real e arbitrário se estabelecem
em um processo de transposição para o “ilusório”, ou seja, para os domínios do imaginário,
nos quais os espaços para as experiências possíveis de uma época adquirem amplitude.
Instituída como campo fértil de possibilidades, a arte literária, embora seja comumente
definida pelo seu caráter ficcional e sua falta de compromisso com os acontecimentos da
realidade, se apresenta, muitas vezes, como já observou Alfredo Bosi (1996: 27), como “o
lugar da verdade mais exigente”, de modo a colocar em xeque a suposta consciência das
barreiras que, por muito tempo, se tentou erigir entre a literatura e a realidade e o consequente
equívoco contido na tentativa de separação rigorosa entre os domínios do ficcional e da
realidade. O entendimento das relações entre o real e o literário não pode se esquivar do
questionamento das fundamentações que sustentam cada uma das duas categorias, pois, ainda
que pareçam opostos, realidade e literatura têm o imaginário como ponto de tangência e
nutrem-se de ficções, cada uma a seu modo.
Costa Lima (2003: 40) chama a atenção para o fato de que a realidade “é uma
potencialidade de significações, que efetivamente só desperta ao contato com o significante de
suporte”, ou seja, adquire forma à medida que a ela é associado um significante, sendo o ato
de associação predominantemente parcial e sempre desempenhado por um exegeta, que toma
para si a missão de observar os elementos do “real” diante dele dispostos e convertê-los em
outra coisa, na tentativa de operacionalizar sua verbalização e entendimento. Sua observação
vai ao encontro das problematizações intensificadas, no âmbito da teoria literária, pelos
estudos de Wolfgang Iser (2002), de quem é leitor confesso. Uma indagação fundamental
incitada por Iser, ao refletir sobre os enlaces entre o real e o fictício, é precisamente a que se
segue: “Os textos ficcionados serão de fato tão ficcionais e os que assim não se dizem serão
de fato isentos de ficções?” (ISER, 2002: 957). Com esse questionamento o teórico estimula a
reflexão sobre a inconsistência da oposição clássica entre ficção e realidade, demonstrando o
produtivo diálogo estabelecido entre ambas. Ele enfatiza:
há no texto ficcional muita realidade que não só deve ser identificável como
realidade social, mas que também pode ser de ordem sentimental e emocional. Estas
realidades por certo diversas não são ficções, nem tampouco se transformam em tais
pelo fato de entrarem na apresentação de textos ficcionais (ISER, 2002: 958).
E, a partir dessa constatação, observa que o engendramento do literário se dá a partir de duas
movimentações essenciais, uma de realização e a outra de irrealização, pois na criação da obra
de arte, segundo o autor, a realidade vivencial repetida é transgredida por força de seu
emprego (irrealização) e o caráter difuso do imaginário é transferido para uma configuração
17
determinada (realização) (ISER, 2002: 959). Desse modo, se estabelece no texto ficcional
“uma relação dialética entre o imaginário e o real”, que cria, através de processos de seleção,
combinação e desnudamento, condições para que este último seja melhor compreendido
(ISER, 2002: 983).
Segundo Iser (2002), o texto ficcional se edifica a partir de alguns gestos
fundamentais. São eles os processos de seleção, combinação e desnudamento, chamados pelo
teórico de atos de fingir. A seleção e a combinação seriam responsáveis por integrar
elementos contextuais específicos, que não são em si fictícios, mas passam a ser reforçados e
melhor visualizados pela ausência dos componentes do real não convocados para a
composição do texto literário. Os relacionamentos estabelecidos entre os componentes do real
selecionados seriam potencializados pela transgressão de suas fronteiras e a delimitação de
campos de referência no interior do texto – processos possíveis graças à interlocução que se
estabelece entre os constituintes do real acionados na concepção do texto ficcional. O
selecionar e o combinar seriam atos que fazem mais visíveis os elementos da realidade
convocados ao texto por desvencilhá-los dos “sombreamentos” decorrentes da coexistência
com outros constituintes do mundo real.
Já o desnudamento referido por Iser (2002) encarrega-se de estabelecer um “como se”,
assegurador do pacto ficcional que faz com que o mundo representado no texto não se
represente a si mesmo, mas estabeleça-se como análogo do mundo real e, por isso, contribua
na compreensão dos fenômenos situados nos domínios deste último. O texto ficcional se
abstém de rígidas amarras com a realidade e isso é “desnudado” para o leitor. Desse modo, ele
emerge como sendo outra coisa, em paralelo com a realidade, e, por isso, priva-se de algumas
das censuras impostas pelo princípio de realidade que rege os homens, convidando a
mergulhos mais profundos no imaginário.
Para Costa Lima (2006), as próprias verdades formadoras do real são sempre porosas,
uma vez que, enquanto elaborações humanas, são parciais. Aquilo que é tido como real,
verdadeiro, edifica-se a partir de numerosas ficções, dentre as quais podemos destacar a ilusão
de que a linguagem “espelha” a realidade, ou seja, a ideia de que há uma correspondência
exata entre as palavras e as coisas. Se levamos em conta que no signo verbal se materializam
as ideologias, conforme propõe Bakhtin (2009), percebemos a linguagem também como
“engendradora” de realidades e não só como mediadora entre o homem e o real, de modo a
verificarmos que a ideia de correspondência precisa entre o que elaboramos linguisticamente
e o mundo ao qual nos referimos é uma ficção necessária para o convívio em sociedade, que,
18
por si só, indicia a presença de ficções no que compreendemos como verdadeiro. Neste
sentido, como nos ensina Costa Lima (2006: 269), “o fictício poético se acerca da verdade não
por se manter próximo da realidade, mas por abrir caminhos para o que está sob ela: o real”.
Ernest Cassirer defende que
nenhum processo mental chega a captar a realidade em si, já que, para poder
representá-la, para poder, de algum modo, retê-la tem de socorrer-se do signo, do
símbolo. E todo o simbolismo esconde em si o estigma da mediatez, o que o obriga a
encobrir quanto pretende manifestar. Assim, os sons da linguagem esforçam-se por
“expressar” o acontecer subjectivo, o mundo “interno” e “externo”; porém, o que
captam não é a vida e a planitude individual da própria existência, mas apenas a sua
abreviatura morta. Toda essa “denotação”, que as palavras ditas pretendem dar, não
vai realmente, mais longe que a simples “alusão”; alusão que parecerá mesquinha e
vazia, frente à [...] multiplicidade e totalidade da experiência real (CASSIRER,
1976: 14).
Mediadas pelos signos e símbolos, as representações do real seriam sempre
insuficientes, “abreviaturas mortas” de uma existência que vivamente pulsa. A literatura, tida
consensualmente como espaço ficcional, aparece, nesse contexto como uma história aberta às
sensibilidades, capaz de tornar mais viva a expressão de algumas feições da experiência
humana.
No entender de Wolfgang Iser (2002), ficção e realidade estariam interligadas pelas
redes do imaginário, das quais nenhuma das duas instâncias conseguiria se desvencilhar. O
texto ficcional é tratado nesse contexto como materialidade que, situada nas fronteiras entre
fato e ficto, possibilita o vislumbre das configurações do imaginário ao mesmo tempo em que
convida à reflexão sobre a realidade. O entendimento desses diálogos – entre fictício e real –
torna evidente a relevância do literário na compreensão do mundo e no desvendamento do
humano.
Em Luiz Costa Lima (1995; 2003; 2006; 2012), encontramos uma intensa
problematização das limitações apresentadas pelas oposições radicais entre literatura e
realidade. O autor, mobilizado pela sede dos antigos que os conduziu à reflexão sobre
mímesis, volta-se para o problema da representação literária com o intuito de, munido do
legado aristotélico – que, segundo ele, tem a felicidade de situar no campo teórico algumas
das questões mais relevantes no que se refere à compreensão do mimema3–, ampliar a
compreensão da mímesis enquanto elemento fundamental no processo de composição do
literário. Segundo ele, “a teorização da mímesis só é passível de realizar-se quando a própria
relação entre a palavra declaradora e a realidade declarada é questionada” (COSTA LIMA,
3 Entenda-se como mimema o produto do ato mimético, ou seja, o produto da mímesis.
19
2003: 78), uma vez que se faz necessária, na compreensão das relações entre o real e o
fictício, a consciência de que o verbo é dotado da ambivalente capacidade de,
simultaneamente, “iluminar” e “sombrear o iluminado”, apresentando-se sempre como
“palavra em dobra” (op. cit.: 43), porque dotado de uma opacidade que o impede de
estabelecer uma correspondência exata com o constituinte do real com o qual se relaciona,
como já ficou dito anteriormente. O teórico brasileiro salienta que “a dobra da palavra
significa sua força de engano, sua capacidade de conduzir para este ou para aquele rumo” (op.
cit.: 43), refere-se ao seu poder de conduzir o ser que estabelece uma interlocução por
caminhos tortuosos ao invés de levá-lo precisamente ao local almejado. Suas divagações
sobre as potencialidades do verbo e a suas relações com seus possíveis referentes ressaltam
um ponto crucial na percepção das relações entre palavra e realidade, pois o autor sentencia:
“A quem engana a palavra não é falsa” (COSTA LIMA, 2003: 59), e com isso demonstra a
fluidez da linguagem em meio aos debates entre o que é real ou fictício4, e, conseguintemente,
a porosidade dos alicerces sobre os quais se edifica aquilo que é tido como verdadeiro, pois,
para aquele que é ludibriado, as palavras do mentiroso constituem uma verdade. Segundo o
crítico literário,
Entre o designado e o signo designante há um abismo infranqueável. A busca de
criar uma ponte entre eles assinala apenas a vontade humana de controlar a
insegurança. A “invenção” da verdade é um erro constitutivo, i. e., algo inevitável
para a própria espécie. Depois de ser ele instalado, parece estabelecida a
possibilidade de especular-se sobre qualquer coisa. Ainda: de distinguir-se o
verdadeiro do falso. E, daí, de estabelecer-se uma sólida hierarquia entre os usuários
da ponte preciosa: a linguagem. Tal erro portanto se investe de uma função
pragmática central (COSTA LIMA, 1995: 205).
Diante disso, compreende-se que a própria fé na inquestionabilidade do que é tomado
como verdadeiro apresenta-se como uma ficção necessária à existência de uma “realidade”. A
afirmação do pesquisador se justifica pela sua crença na parcialidade presente em todos os
discursos elaborados pelo homem, pois em sua compreensão, qualquer discurso que se
habilite a iluminar um determinado aspecto do real tenderá sempre a sombrear alguns dos
contornos da figura sobre a qual se detém, haja vista que, por sermos “criaturas históricas, não
podemos deixar de ser parciais”, sendo a exatidão, muitas vezes, “sinônimo de
superficialidade” (COSTA LIMA, 2006: 95). Destarte, “a reconstituição de uma cena passada
desvela e ao mesmo tempo oculta, sem que isso dependa de alguma intenção de fraude de
quem a empreende” (COSTA LIMA, 2006: 111). Desse modo, é possível concluir que mesmo
4 Aqui não nos deteremos com minúcia no debate acerca da verdade e suas possíveis interpretações, pois este é
um dos aspectos a serem explorados com mais detalhes no capítulo seguinte.
20
os discursos aparentemente compromissados com a “verdade” tendem a clarificar mais alguns
aspectos do real que os antecede, deixando outros menos visíveis, ainda que o sujeito que se
dispõe a compor tal discurso não esteja ciente desse processo de escolha que lhe é legado pela
posição social que ocupa e pretenda-se imparcial ao discorrer sobre determinado fenômeno. A
eleição dos que proferem a verdade, por sua vez, implica o estabelecimento de uma hierarquia
e, portanto, o menoscabo de determinados sujeitos em consequência do apreço que passa a ser
nutrido por outros. Isso acontece porque
A ambiência social nos atravessa como se fosse nossa própria natureza. Cultura,
classe, camada, meio profissional parecem-se então a roupas muito leves, tão leves
que a pele não sente que as transporta. Melhor, roupas que se tornam a própria pele,
da qual não nos imaginamos despossuídos. Então julgamos que nossos hábitos,
condutas e práticas são nossos simplesmente porque pertencem à humanidade
(COSTA LIMA, 2003: 85).
Tendo em vista tais constatações, é possível afirmar que a arte literária é um espaço
privilegiado de produção discursiva, haja vista que, como nos ensina Bosi, “pode escolher
tudo quanto à ideologia dominante esquece, evita ou repele” (BOSI, 1996: 16), trazendo a
lume aspectos do real que não são normalmente convocados na descrição que lhes é feita em
meio aos discursos oficiais. Para Inocência Mata, o homem que toma para si o ofício de
escritor,
em pleno domínio e responsabilidade sobre o que diz, ou faz as suas personagens
dizerem – psicografa os anseios e demónios de sua época, dando voz àqueles que se
colocam, ou são colocados, à margem da “voz oficial”: daí poder pensar-se que o
indizível de uma época só encontra lugar na literatura (MATA, 2007: 29).
Vista por este ângulo, a arte literária, para além de sua inquestionável relevância
enquanto processo de sublimação, necessário na expressão do humano, mantém um
importante papel no desvendamento de tudo quanto é colocado à margem da sociedade.
Produto da mímesis, ela é um espaço de desnudamento necessário em meio a comunidades
que elegem, por meio de complexas relações de poder, as verdades a serem propagadas nos
discursos oficiais. Luiz Costa Lima destaca que,
Vista em si mesma, a mímesis não tem um referente como guia, é ao contrário uma
produção, análoga à da natureza [...]. Não sendo o homólogo de algum referente,
tanto ao ser criada, quanto ao ser recebida, ela o é em função de um estoque prévio
de conhecimentos que orientam sua feitura e sua recepção. [...] é este estoque prévio
que leva à aceitação ou recusa da obra, possibilitando ou não a liberação catártica.
Como, ademais, este estoque prévio varia de acordo com a posição histórica do
receptor – i. é., com a ideia de realidade trazida por sua cultura, com sua posição de
classe, com seus interesses etc. – o que o receptor põe na obra é, em princípio,
historicamente variável e distinto do que aí punha o criador (COSTA LIMA, 2003:
70).
21
Essa concepção de mímesis interessa-nos porquanto confere visibilidade ao fato de que
o ato mimético é um construto que, assim como as concepções que se tem acerca da natureza,
se realiza mediante o agenciamento de todo um leque de conhecimentos socialmente
adquiridos, variáveis de acordo com a posição social e cultural do autor e do receptor do
mimema. O texto literário, tendo em vista a sua criação, não seria um agente de segundo plano
no campo das ações atribuídas ao homem, mas uma produção análoga às tentativas de
apreensão da realidade mediadas pela linguagem, embora norteada por princípios e demandas
diferentes das que condicionam a produção dos discursos aos quais os imperativos sociais
atribuem o valor de verdade, pois, como explicita Costa Lima “a ficção não representa a
verdade mas tem por ponto de partida o que produtores e receptores têm por verdade”
(COSTA LIMA, 2014: 52). Como análogo aos discursos oficiais, o produto da mímesis pode
proporcionar o entendimento de ângulos da realidade pouco explorados em outros campos do
fazer intelectual humano, dando lugar “ao indzível de uma época”, como sugere Mata (2007),
que não deixa de ser relevante por ser negligenciado pelos enunciadores que ocupam um lugar
privilegiado nas relações de dominação e poder. Na interpretação do mimema, por sua vez,
entram em cena os olhares do criador e do receptor, que, normalmente, não são coincidentes.
Disso, em parte, decorre a sensação de atualidade legada pelas expressões literárias mais altas,
ainda quando estas carregam marcas evidentes da época que condicionou a sua feitura. De
acordo com Costa Lima:
a mímesis supõe algo antes de si a que se amolda, de que é um análogo, algo que não
é a realidade, mas uma concepção da realidade. Este algo antes permanece em vigor
mesmo quando o produto mimético valoriza o oposto do que seria destacável
segundo os valores então dominantes (COSTA LIMA, 2003: 180).
Neste sentido, o ato mimético funda-se a partir das percepções de seu produtor, que,
por sua vez, estão diretamente relacionadas ao social na medida em que são por ele
condicionadas. A arte surge, de acordo com essa linha reflexiva, como um construto social
que atua em movimentos de aproximação e distanciamento em relação àquilo que a antecede,
já que
O próprio da arte verbal é “fingir” uma alteridade, como maneira de seu feitor –
palavra que engloba tanto o autor quanto o leitor – saber-se a si pelo drible das
resistências oferecidas pela censura do ego. Assim o discurso mimético é uma das
formas do discurso do inconsciente, o qual só é reconhecido como artístico quando o
receptor encontra no texto uma semelhança com a própria situação histórica. A
situação histórica funciona portanto como o possibilitador do significado que será
alocado no texto. A obra, enquanto tal, é um significante a que o leitor empresta um
significado. Ela permanece tomada como artística enquanto a situação histórica
permitir a alocação de um significado ficcional, sendo próprio do ficcional permitir
22
a descoberta, na alteridade da cena do texto, de uma semelhança com a cena dos
valores de quem o recebe (COSTA LIMA, 2003: 81).
Sendo complementados pela atuação de um autor/receptor, os atos miméticos se
processariam, na compreensão de Costa Lima (2003), entre dois vetores fundamentais: o da
semelhança e o da diferença. O vetor da semelhança é responsável pelas associações que o
receptor do texto faz entre a realidade por ele percebida e as conjunturas criadas na concepção
do mimema. Já o vetor da diferença seria responsável pelos processos de desconstrução e
desterritorialização que fazem parte da composição do texto literário, através dos quais aquilo
que antecede a criação é modificado ou até mesmo negado pela produção a ser cultivada nos
desdobramentos do ato criativo, embora ainda permaneça como ponto de referência. A
definição desses vetores torna evidente que o contato com o mimema implica necessariamente
um olhar sobre a realidade e sobre as impressões dela oriundas, instituindo-se como
alargamento de horizontes por parte tanto do produtor quando do receptor do produto da
mímesis. Dessa maneira, conforme enuncia Figueiredo,
O texto artístico deixa de ser uma imagem do mundo para se tornar uma reflexão
sobre ele ao cobrar do receptor a alteridade que lhe é ponto de partida. É pelo
fingimento que a mímesis faz com que o referente emanado pelo texto estabeleça
uma relação com as referências históricas do receptor, assemelhando-se ou
distanciando-se das representações vigentes na sociedade deste último
(FIGUEIREDO, 2013: 52-53).
Para Costa Lima (2003, 2012, 2014), ainda que, no caso específico da obra de arte, o
produto mimético esteja impulsionado de modo mais expressivo pelo vetor da diferença, ele
será sempre engendrado a partir da relação entre semelhança e divergência, até mesmo porque
são as semelhanças percebidas pelo leitor/receptor entre o seu mundo e universo criado que
lhe facultam a imersão neste último, fazendo dele muito mais que um “mundo paralelo”. Para
o teórico,
O não ser guiada por critérios estabilizadores não significa que a obra seja
incomparável ao que a envolve. Ela apenas não é moldada pelo princípio da
semelhança senão que pelo vetor da diferença, em suas diversas formas (a distorção,
a configuração distinta ou oposta, a negatividade, etc.). Por mais radicais que sejam
as formas de diferença, elas sempre mantêm um resto de semelhança, uma
correspondência, não necessariamente com a natureza mas sim com o que tem
significado em uma sociedade, com a maneira como a sociedade concebe a própria
natureza (COSTA LIMA, 2014: 46).
A mímesis, diante disso, “não pode ser pensada a partir do indivíduo, quer o produtor,
quer o receptor. Nela, sempre uma coletividade se faz ouvir. Nessa coletividade de tão
distintos efeitos, é possível enumerarem-se as distinções e as equivalências” (COSTA LIMA,
23
2014: 47). Seu surgimento seria possível graças à existência daquilo que, tomando de
empréstimo um conceito empregado por Erving Goffman, o pesquisador denomina frames
(“molduras”, em tradução para o português), que seriam
configurações verbais e/ou gestuais, estabelecidas anteriormente ao indivíduo que as
emprega, que as terá aprendido por sua convivência no interior de um grupo social –
um estrato de classe ou de um estamento ou de um setor de uma região
geograficamente delimitada – que, sendo de decodificação frequente, incentivam a
interação cotidiana, desde logo dentro do grupo social originário (COSTA LIMA,
2012: 104).
Tais agências seriam de grande relevância na formulação de impressões a respeito de
uma organização social por fornecerem os componentes necessários para identificação de uma
determinada comunidade como tal, na medida em que auxiliam na visibilidade social por
“situar[em] um interlocutor até então desconhecido não só por seu uso da língua, mas por seu
modo de falar, de gesticular, até mesmo de andar” e possibilitarem o entendimento de que “a
interação humana se cumpre através de rituais e formulações simbólicas de que raramente seu
agente está consciente” (COSTA LIMA, 2012: 104). Tais rituais e formulações simbólicas
seriam incorporados e reproduzidos pelo sujeito sem que ele próprio se desse conta, a partir
da internalização e execução de gestos e ações específicos como se estivessem
necessariamente atrelados à condição humana.
Ainda na concepção do autor,
Deuses, mitos e heróis são molduras (frames) destinadas à canalização dos
comportamentos sociais, seja sob a forma do culto a eles prestados, seja sob a forma
de representação explícita e previamente estocadas para que os indivíduos
estabeleçam laços de identidade com seu grupo e seus interesses. Ao lado dos entes
e das forças assim sacralizadas, as sociedades ainda dispõem de meios mais
“profanos”, destinados ao mesmo fim, como o tipo de carro, de roupa, de fumo que
se prefere, o tipo de clube ou de restaurante que se frequenta etc (COSTA LIMA,
2003: 87).
Pensadas sobre este prisma, as vivências religiosas de uma comunidade surgem como
elementos incontornáveis na compreensão das dimensões que tornam possível o
desenvolvimento de processos de identificação. Assumindo a posição de frames/molduras,
eles surgem como componentes que atravessam os atos miméticos por serem internalizados
pelo sujeito em meio ao seu convívio social, impondo-se como pontos de referência em
relação aos quais o mimema desenvolve movimentos de aproximação ou distanciamento.
Em virtude das molduras nas quais se enquadram os gestos desenvolvidos em uma
sociedade e também das oscilações dos produtos miméticos entre os vetores de semelhança e
24
diferença, a mímesis assumiria um caráter mais imitativo ou produtivo em seus
desdobramentos. Conforme elucida Costa Lima:
nos grupos, nas coletividades, nas aglomerações, nas multidões, a mímesis é
fundamentalmente imitativa e, então, passiva. Trata-se aí de estabelecer uma
semelhança que facilite a convergência do recém-advindo com um padrão
reconhecido e modelante. Na obra de arte, ao contrário, trata-se de aprender uma
forma, um estilo, uma técnica, na expectativa de que de seu domínio derive o
caminho da diferença (COSTA LIMA, 2014: 48).
Tendo em vista tais elucidações, o trabalho que pretendemos empreender parte da
constatação de que deuses, mitos, crenças e outros elementos fundamentais para a
constituição do cenário religioso, sendo configurações verbais previamente estabelecidas,
interferem na maneira como o homem enxerga, compreende e se relaciona com a natureza e o
meio social em que se encontra inserido, perpassando, dessa forma, os atos miméticos. De
modo que, observar as relações que o indivíduo estabelece com o seu meio é um esforço
facultador de uma melhor compreensão das dimensões social e simbólica que perfazem o
humano. Sabendo-se que o texto literário é um domínio em que impera a mímesis de
produção, compreende-se que a exegese do literário oportuniza uma produtiva análise dos
gestos conformadores das vivências religiosas do homem. Por isso, na tentativa de analisar a
maneira como o ser estabelece relações com a sacralidade, optamos por perscrutar a escritura
de Guimarães Rosa, por compreendermos suas potencialidades enquanto espaço no qual
importantes traços do imaginário se materializam, instigados pela ausência do compromisso
com a representação do real presente em outras instâncias de produção do discurso.
A análise da obra de João Guimarães Rosa se justifica, ainda, pela profunda imersão
do autor no imaginário tanto do homem de seu país, de modo mais particular – haja vista que
o autor trabalha diretamente com aspectos regionais –, quanto da humanidade em geral – se
consideramos que as questões suscitadas pela sua prosa ultrapassam a esfera do local para
desnudarem problemáticas universais.
Rosa é um dos autores que insistentemente recorreram ao imaginário religioso para
compor os seus artefatos literários, como tentaremos demonstrar mais adiante, a partir de uma
pequena apreciação de estudos que compõem a fortuna crítica do escritor.
1.2. Nas Veredas de Rosa: fronteiras, margens e travessias
Nelly Novaes Coelho (COELHO; VERSANINI, 1975: 1), ao fazer um apanhado sobre
a obra de João Guimarães Rosa, caracteriza o herói nela presente como um ser organicamente
25
integrado no universo, em cuja gênese confluem forças múltiplas. De acordo com a
pesquisadora, na contramão de correntes a ele contemporâneas, marcadas pelo pessimismo e a
desesperança que acompanham a recriação de um homem “dessacralizado”, Rosa confere
vida a seres que tornam visível uma nova atitude adotada pelo homem contemporâneo,
marcada pela “não-rejeição de sua condição humana, a despeito de suas fraquezas e
inevitáveis fracassos, e principalmente pelo obscuro sentimento de pertencer ao universo
cósmico ou de participar de maneira essencial do continuum vital” (COELHO; VERSANINI,
1975: 2). Dessa forma, se afirma nas personagens rosianas “uma nova e selvagem
religiosidade”, “um espírito religioso primitivo, quase violento, de onde a antiga mansidão e
êxtases espirituais, característicos da consciência cristã ortodoxa, estão totalmente ausentes”
(op. cit.: 3), pois, como afirma João Batista Sobrinho, “a expressão do sagrado na literatura
rosiana descola-se de qualquer teologia racionalizante” (SOBRINHO, 2011: 191). As
personagens de Rosa surgem como seres misturados, bons e maus em igual proporção,
plenamente capazes de atos de benevolência ou crueldade segundo os seus interesses e
impressões, sendo por isso reveladoras da pluralidade presente no espírito humano, até
mesmo por não se demonstrarem seguidoras de uma tradição religiosa única.
Coelho (COELHO; VERSANINI, 1975) confere visibilidade a dois aspectos
fundamentais na condução do projeto estético de Guimarães Rosa. O primeiro deles refere-se
à construção de um discurso que tece fios de esperança em meio ao pessimismo reinante nos
anos que acompanham o anoitecer da modernidade, trazendo à baila uma humanidade dotada
de uma alegria que se sustenta apesar dos desconformes da vida “ou talvez devido a eles”,
como insinua a pesquisadora (COELHO; VERSANINI, 1975: 1). O herói rosiano é aquele
cuja vida ensinou “a bailar na desgraça”, para fazer uso de uma expressão cunhada pelo poeta
cabo-verdiano Ovídio Martins5, e cuja necessidade de sobrevivência assegura por si mesma e
apesar de si mesma a manutenção dos olhos fixados na promessa de dias melhores,
resguardada pela certeza do amanhecer que sucede a noite. O outro aspecto fundamental na
produção literária de Rosa, destacado pela autora, refere-se justamente ao pulsar religioso, ao
mesmo tempo inovador e primitivo, que se reflete no comportamento das personagens
presentes nas páginas compostas pelo escritor. Realizados a partir da sedimentação de
tradições religiosas contemporâneas diversas e da reatualização de mitos e ritos antigos, os
encontros entre homem e sagrado emergem no interior da obra rosiana como amálgamas
resultantes de um pulsar “primordial” – “primitivo” no dizer de Coelho (COELHO;
5MARTINS, Ovídio. “Os Flagelados do vento leste”. In: 100 Poemas. Edições Caboverdianidade, Rotterdam,
s/d. p. 11.
26
VERSANINI, 1975) – que incorpora crenças provenientes de tradições religiosas
contemporâneas mantendo, de uma mesma feita, vivos os princípios primevos, que por muito
tempo guiaram o homem em sua incessante busca por transcendência, – e que aparentemente
estão relacionados à gênese da experiência religiosa humana – e ressignificadas as práticas
religiosas presentes em várias comunidades brasileiras. Neste sentido, o passado faz-se
presente nas páginas compostas, dando início a um processo de reatualização de tradições
pretéritas alicerçado nas inquietações da contemporaneidade, em um movimento que, regido
pelos desafios e agitações do presente, coloca o ser diante de suas mais antigas inquietudes.
Desse modo, é possível afirmar que a ficção rosiana funda um tempo arquetípico em que
passado e presente se fundem em um movimento que deixa evidente o fato de que o humano é
uma instância em incessante devir.
Nas páginas compostas por Guimarães Rosa verdades relativizadas são elevadas à
máxima potência. Os universos ficcionais do autor são zonas fronteiriças em que certezas
aparentemente inconciliáveis dialogam e dividem espaço, tornando notório o fato de que a
consciência humana é um terreno escorregadio, no qual a edificação de verdades está sempre
sujeita aos deslizes ocasionados pelo contato e o convívio com o signo da dúvida, instalado
como sombra que, inevitavelmente, se forma a partir da iluminação dos múltiplos ângulos de
um objeto ou fenômeno que se pretende compreender. É mister lembrar que um dos mais
célebres textos do escritor em foco, Grande Sertão: Veredas (2001b6), tem como um de seus
eixos centrais a inquietante afirmação de que “tudo é e não é” (ROSA, 2001b: 27) – assertiva
que deixa visível a possibilidade de convívio entre uma verdade e a sua negação no acervo
literário rosiano. Se a modernidade é acompanhada pelo questionamento das grandes verdades
que por muito tempo alicerçaram e direcionaram a construção dos templos interiores
humanos, como tentaremos demonstrar no próximo capítulo, a obra do escritor mineiro
constitui-se precisamente a partir das dobras ocasionadas pelas dúvidas que atormentam o
espírito humano, motivo pelo qual os poemas em prosa engendrados pelo autor colocam lado
a lado o princípio e a sua negação, demonstrando a validade de um e de outro e o intenso
diálogo que se perfaz entre ambos nas divagações que se processam na consciência humana.
A “selvagem religiosidade” apontada por Nelly Novaes Coelho (COELHO;
VERSANINI, 1975) nas personagens rosianas, em parte, deve-se ao fato de que os “homens
6 Optamos por colocar a letra “b” ao lado do ano do romance mencionado para não confundir as citações dele
provenientes com os fragmentos extraídos de Sagarana, uma vez que trabalhamos com edições dos dois livros
que são do mesmo ano.
27
religiosos7” presentes em seu acervo literário não são mais conduzidos por uma verdade, no
singular, como outrora pareciam ser os adeptos das tradições religiosas antigas. Pelo
contrário, eles se movem nas fronteiras entre os terrenos de diferentes tradições e nutrem-se
de todas elas, na tentativa de saciar a sua sede por transcendência. Em função disso, essas
personagens reverberam, em seus discursos, saberes difundidos por diferentes religiões e, ao
mesmo tempo, questionam implícita e/ou explicitamente as verdades de todas elas. Suas
experiências religiosas remontam ao animismo, que é tido como um dos mais antigos reflexos
da busca humana por transcendência, passando pelas chamadas “religiões do livro” sem
desestimar a sapiência propagada pelas religiosidades cujos fundamentos são transmitidos de
geração em geração mediante o uso da voz, que, como a fortuna crítica do autor veio a
comprovar, é um elemento central para a composição dos seus textos. Tamanho percurso
torna legítimo o emprego da expressão “selvagem religiosidade” na definição do
comportamento das personagens rosianas, pois a religiosidade que surge nos textos do autor é
uma poderosa rede através da qual, hora ou outra, suas personagens sentem-se tentadas a
passar, ainda que para tornar visível a possibilidade da travessia, pois como percebe Kathrin
Rosenfield, “o sertão rosiano é o lugar ficcional onde se elaboram as falhas e as cicatrizes de
uma sociabilidade frágil, as maravilhas e os terrores da humanidade” (ROSENFIELD, 2006:
29), sendo por isso um espaço em que, antes de tudo, se evidenciam as possibilidades do ser.
Segundo Rosenfield, “a originalidade de Rosa está no hábil amálgama de materiais
antigos e modernos com técnicas e estilos até então desconhecidos na literatura brasileira”
(ROSENFIELD, 2006: 86), que confere a sua trajetória escritural um caráter sem precedentes
em nossas letras. De acordo com a pesquisadora, “Rosa aproxima os velhos textos sagrados
das narrativas enraizadas na recitação melódica, cantada ou dançada, igualando o erudito e
popular” (op. cit.: 114). Sua obra institui-se, neste sentido, como ambiente singular forjado
pela diversidade, no qual sagrado e profano são postos lado a lado e tradições diversas entram
em diálogo, seguindo o autor “a trilha do pensamento “selvagem”, mítico e poético, dando
vida e voz às coisas concretas do universo onde situa suas histórias” (op. cit.: 58). Suas
narrativas são marcadas por “uma extraordinária adesão vital aos bichos, às coisas e à
natureza”, o que configura, como já enunciou Nelly Novaes Coelho, a “alegria quase
orgânica” que define o seu herói (COELHO; VERSANINI, 1975: 2).
Para Alfredo Bosi (2006: 431), as estórias de Rosa “são fábulas [...] que velam e
revelam uma visão global da existência, próxima de um materialismo religioso, porque
7 O emprego do termo “homem religioso”, ao longo deste trabalho, é sempre feito tendo em vista a definição de
Eliade (2010) sobre a qual discorreremos de forma mais detalhada no segundo capítulo.
28
panteísta, isto é, propenso a fundir numa única realidade, a Natureza, o bem e o mal, o divino
e o demoníaco, o uno e o múltiplo”. Na visão do crítico, o projeto conduzido pelo autor
apresenta-se como evento sem precedentes em nossas letras pela habilidade com que o seu
idealizador consegue combinar materiais diversos, tanto no plano da linguagem usada para a
contação de estórias, quanto no plano dos processos de seleção e combinação dos
componentes narrativos que configuram os textos.
O intenso processo criativo do qual resultam as narrativas rosianas, contadas e
cantadas, bebe de muitas fontes e, devido a isso, tem proporcionado intensas reflexões sobre
uma multiplicidade de temáticas. Antonio Candido, em apreciação a Grande Sertão Veredas
(2001b), diz o seguinte:
Na extraordinária obra-prima Grande Sertão: Veredas há de tudo para quem souber
ler, e nela tudo é forte, belo, impecavelmente realizado. Cada um poderá abordá-la a
seu gosto, conforme seu ofício; mas em cada aspecto aparecerá o traço fundamental
do autor: a absoluta confiança na liberdade de inventar (CANDIDO, 1978: 121).
E com essas palavras remete a amplitude do projeto estético conduzido por Rosa. Sendo a
diversidade, do povo brasileiro, em particular, e do homem, em geral, um dos pontos cardeais
que orientam a produção literária de Guimarães, é natural que o leitor, munido de diferentes
arcabouços teóricos, encontre, sem exageros, “de tudo” quanto busque em seu exercício
hermenêutico. Segundo Luiz Costa Lima (2006: 242) “clássico é o texto plástico, capaz de se
amoldar a diversas “verdades”, sem que pareça estar sujeito a uma” e a insujeição às verdades
parece ser um dos traços mais marcantes da poesia em prosa concebida por Rosa, como
muitos estudos sobre o autor já apontaram.
Conquanto a assertiva de Candido se destine a iluminação do Grande Sertão,
acreditamos que os atributos conferidos pelo crítico podem, sem exageros, ser estendidos às
outras narrativas que compõem o acervo intelectual legado pelo autor, sobretudo àquelas que
foram publicadas em vida8. Diversas leituras das narrativas rosianas, orientadas pelas mais
distintas buscas, foram empreendidas desde que o escritor colocou em cena as suas estórias e,
embora todas sejam plausíveis e ofereçam contribuições significativas para o entendimento da
obra legada pelo autor, não se pode atribuir a nenhuma delas a descoberta da “verdade” sobre
a escritura rosiana, uma vez que a arte literária apresenta-se como excedente sobre o qual
nenhuma palavra pode ser tomada como definitiva.
8 Não se pode negligenciar que alguns dos textos rosianos publicados postumamente foram entregues ao
mercado editorial antes de receberem “a última demão” devido ao falecimento precoce de seu criador, em 1967
(RÓNAI, 2001: 15/16/17), e, embora tenham um valor inquestionável no conjunto da obra composta por Rosa,
sua não publicação é reflexo da cautela com que o autor conduziu a sua trajetória escritural.
29
Os relatos a respeito do processo de composição do livro de estreia do escritor
mineiro, no universo da prosa, são elucidativos por refletirem o cuidado com que ele
desenvolvia o seu ofício. As narrativas de Sagarana (2001) foram inicialmente compostas no
final da década de 1930, “descansando”, segundo confessa o próprio Guimarães (ROSA,
2001: 25), por sete anos até receberem a última lapidação e chegarem a sua forma definitiva.
Um olhar mais detido para o primeiro conjunto de estórias publicadas pelo escritor, segundo
informa Proença (1958), em um dos mais conhecidos escritos sobre a produção literária de
Rosa, possibilita a antevisão de idiossincrasias de sua prosa que já se faziam visíveis no
primeiro grande livro de sua maturidade:
Quando Guimarães Rosa batizou seu primeiro livro, compondo um vocábulo em que
se fundiam o radical germânico saga e o sufixo rã, ou rana, [...] estava definindo um
programa estilístico. Criava o seu vocábulo, sonoro e claro, sem preocupar-se com o
veto gramatical aos hibridismos e proclamava sua adesão a um conceito de liberdade
artística: daí por diante, utilizaria o instrumento que melhor transmitisse sua
mensagem, sem indagar-lhe a origem ou idade. Dessa liberdade resultam
aproximações que causam estranheza – regionalismos vizinhando com latinismos,
termos da língua oral e da linguagem castiça entrelaçando-se, contiguidades
surpreendentes do português arcaico e de formas recém-nascidas, mal arrancadas do
porão das latências idiomáticas, a estrita semântica dos termos etimológicos e
translações violentas, de impulso metafórico ou não (PROENÇA, 1958: 71- 72).
Embora a citada afirmação de Proença esteja mais centrada nas questões linguísticas
que permeiam a composição das narrativas rosianas, ela nos interessa por evidenciar a
maneira como o autor se apropria de elementos de proveniências diversas sem
necessariamente estabelecer hierarquias entre eles. Popular e erudito são postos em pé de
igualdade e o diálogo entre ambos – que, obviamente, não se restringe aos limites da ficção
rosiana, pois pode ser percebido em estudos de maior fôlego sobre a cultura em geral –
assume uma posição privilegiada na composição das personagens e estórias. Conforme
observa Matos (2010: 426),
trabalhando com a heterogeneidade cultural e hibridismo linguístico, inserindo
outros idiomas no português, Guimarães Rosa rompe com os particularismos de
línguas, território e cultura, a distância da utopia de originalidade isolacionista, o
regionalismo patriótico e provinciano (MATOS, 2010: 426).
A habilidade inventiva de Rosa e seu notório talento na concatenação de ingredientes
de diferentes origens tornam-se visíveis nos aspectos mais significativos de sua ficção. Do uso
da linguagem à tessitura das estórias, uma poética da diversidade se delineia diante dos olhos
do leitor mais atento. Fantini observa que
Quando reconstituímos o ambiente literário, a vida intelectual e profissional de
Guimarães Rosa, tendo sobretudo em vista o constante exercício de conjugar, em
30
sua escrita, diferentes formas de conhecimento e formações discursivas de prestígio
diferenciado (oral e escrito, popular e erudito, saber mitopoético e saber
epistemológico, intuição e razão), não podemos ignorar a contribuição capital de sua
obra ficcional para a ampliação do conceito de literatura e cultura. A partir, por
exemplo, de seu acervo epistolar, é possível identificar-lhe um perfil humano,
intelectual e profissional marcado pelo constante e disciplinado cuidade de si e do
outro, o sentimento de missão, que, em última análise, parece predispô-lo a uma
contínua práxis transformadora de situações concretas em realidades simbólicas. A
profissão de fé literária de Rosa reafirma a sua particular tendência de materializar
crenças e práticas pessoais na criação literária (FANTINI, 2006: 31).
Composto a partir de um intenso processo de pesquisa, análise, escritura e lapidação
do escrito, o conjunto da obra de João Guimarães Rosa, em última instância, diz muito sobre
os diálogos entre tradições literárias e culturas, refletindo dinâmicas basilares na compreensão
das negociações interculturais que fazem parte dos contatos entre povos: a obra rosiana surge
no limiar que dá acesso a inúmeras tendências artísticas e variadas tradições, sem se deixar
possuir totalmente por nenhuma delas. Prova disso é que a prosa de Guimarães trabalha com o
que há de mais específico na cultura de seu país sem, por isso, se deixar cair nas armadilhas
do exotismo e da exaltação gratuita da cor local, justamente porque sua maior preocupação é
falar do humano, como ressalta Eduardo Coutinho:
Escritor regionalista no sentido de que utiliza como cenário de suas estórias o sertão
dos Gerais, e como personagens os habitantes dessa região, o autor transcende os
parâmetros do Regionalismo tradicional ao substituir a ênfase até então atribuída à
paisagem pela importância dada ao homem – pivô de seu universo ficcional.
Enquanto em uma narrativa regionalista tradicional, seja ela de tipo exótico ou de
natureza crítica, a paisagem ocupa o centro da obra e o homem é relegado a plano
secundário como mero representante da região em foco (ele é gaucho ou sertanejo,
por exemplo), na ficção rosiana ele constitui o eixo motriz e a paisagem é vista
através dele. O homem não é mais retratado apenas em seus aspectos típicos ou
específicos, mas antes apresentado como um ser múltiplo e contraditório e em tantas
de suas facetas quanto possível. Do mesmo modo, o sertão, a paisagem que dá forma
a suas narrativas, é não apenas a recriação literária de uma área geográfica
específica, tanto em seus aspectos físicos quanto socioculturais, mas também, e
principalmente, a representação de uma região humana, existencial, viva e presente
na mente de seus personagens – uma região que só pode ser definida como uma
espécie de microcosmo (COUTINHO, 1994: 17).
Por ter como viga mestra a preocupação com o humano é que a prosa rosiana coloca
em cena um sertão que, apesar de trazer consigo as marcas da fauna, da flora e das
problemáticas locais, é o mundo, precisamente por estar sendo exposto através das lentes
humanizadas de suas personagens, que se expõem com as cicatrizes, fraturas e traumas que as
constituem. Na prosa poética de Guimarães Rosa estão presentes todos os ingredientes da
escrita regionalista, no entanto, o que se percebe é que a sua preocupação central volta-se para
os grandes problemas do homem, haja vista que, conforme destaca Nelly Novaes Coelho
31
(COELHO; VERSANINI, 1975: 3), “no marco divisor de águas que foi o ano de 46,
Guimarães Rosa surge realmente como uma presença definitiva; como o primeiro entre os
brasileiros, que logrou captar o mundo regional através de um prisma universal”. Não é
gratuitamente que Riobaldo, protagonista de Grande Sertão: Veredas (2001b) e uma das
personagens emblemáticas do autor, sentencia que “as pessoas não estão sempre iguais, ainda
não foram terminadas – [...] vão sempre mudando. Afinam ou desafinam” (ROSA, 2001b:
39). E com essa asserção expõe uma consciência – não só presente em seu discurso, mas na
constituição dos seres que povoam outros universos ficcionais engendrados por Rosa – de que
o humano se desvenda no “meio da travessia” constitutiva do viver, sempre inacabado, de
cada pessoa. Arguto pesquisador, o criador de Grande Sertão: Veredas demonstra em seu
percurso criativo a consciência de que “toda pessoa, sem dúvida, é um exemplar único, um
acontecimento que não se repete” (RONÁI, 1990: 13), o que conforme já pontuou Paulo
Ronái, é uma das verdades lembradas com maior força pelo autor.
Sandra Vasconcelos, ao discorrer sobre o processo de composição das narrativas
rosianas, destaca o meticuloso processo de pesquisa que fomentava os escritos do autor.
Segundo ela:
Por detrás do trabalho paciente e lento de coleta e armazenamento de documentação
que Guimarães Rosa levou a cabo e que se concretiza na enorme massa documental
existente no seu Arquivo, é possível ver o gesto deliberado e consciente de um autor
que procurou municiar-se de dados de toda ordem para compor seu universo
ficcional. Percorrer seu Arquivo é deparar-se a todo instante com uma vasta coleção
de fragmentos oriundos de tempos e tradições as mais diversas, prontos para sair de
seu estado virtual e construir novos feixes de significação (VASCONCELOS, 1998:
107).
Ao registrar a riqueza do arquivo legado pelo escritor, Vasconcelos apresenta
elementos que justificam a diversidade presentificada nos escritos por ele desenvolvidos.
Ainda de acordo com ela, o contato e o convívio de Rosa com os narradores orais “com os
quais topou ao longo de suas andanças deixaram rastros em sua formação de narrador
erudito”, pois, “assim como sua vida está marcada pelo universo desses narradores, sua obra
está coalhada desses velhos mestres da arte da narração” (VASCONCELOS, 1998: 107).
Sendo os seus textos resultantes de uma profunda alquimia para a qual são convocadas as
mais sofisticadas técnicas narrativas (a exemplo de elementos concernentes à estrutura épica
empregados em Grande Sertão: Veredas, que fazem com que Cavalcanti Proença (1958)
refira-se ao romance como sendo uma “epopeia”), é interessante o fato de neles se
emparelharem o que há de mais característico tanto nas narrativas populares quanto nas
eruditas. Segundo Vasconcelos,
32
O entrecruzamento do narrador oral e do narrador erudito em Rosa faz com que ele
conserve “a alma, o olho e a mão” do artesão, que fia e tece suas histórias
obedecendo a um tempo e um ritmo de trabalho que já desapareceram do cenário
urbano, mas ainda subsistem no espaço do campo, recriado por sua obra
(VASCONCELOS, 1998: 107).
E nos escritos do autor, são recriados muito mais que componentes dos cenários rural
e urbano. O autor, como salienta Marli Fantini:
Em seus depoimentos pessoais, [...] demonstra profundo conhecimento da guerra, da
medicina, do psiquismo humano, dos perigos que rondam o viver, das artes da
diplomacia e do testemunho. Entretanto, são sua refinada sensibilidade para as
construções literárias, as elaborações simbólicas e filosóficas que irão apontar para
os mais extraordinários alcances a que pode chegar um sujeito em construção. A
travessia, uma das mais preciosas imagens da literatura rosiana, materializa o
contínuo processo de passagem do real para o relato, ou seja da insciência para a
consciência da desumanidade para a humanidade. Através do testemunho de
Riobaldo, seu personagem principal, vislumbramos vários valores éticos e estéticos,
e, de troco, a sabedoria maior: no real, o mal e a culpa tenderão a repetir-se porque,
sendo irreversível, o acontecimento vivido é irreparável. Assim sendo, não é no real,
mas na linguagem que se pode superar a culpa (FANTINI, 2010: 78).
A observação de Fantini (2010) é importante por colocar em cena o amplo conjunto de
saberes que tornam possíveis as criações literárias rosianas. Se Rosa é, como observa Ana
Maria Machado (1976: 123), um mestre da palavra para o qual “tudo significa”, é
precisamente através do uso da linguagem que ele nos possibilita a entrevisão de processos
extremante relevantes na compreensão do humano, tais como a sede de transcendência que
faz com que o homem seja, nas palavras de Octavio Paz (2012: 154), “perpétua possibilidade”
de ascensão ou queda.
João Guimarães Rosa, como sublinha Suzi Sperber,
foi um autor especialmente sensível às linhas de força do imaginário brasileiro,
passando a estudar a fundo o que parecia mais fluido, ou inconsciente. Daí seus
estudos espirituais tão abrangentes e diferentes, daí o seu desejo de apreender o
pensamento indígena, oriental, judeu, mulçumano, visto que de forma difusa
chegaram ao Brasil diferentes crenças, costumes, tendências (SPERBER, 2010:
483).
Conforme salienta Sperber (2010), uma das frentes de força que impulsionam o fazer
literário de Rosa é o seu intenso desejo de aprender. Sua ânsia em apreender filosofias de vida
e particularidades culturais materializa-se em suas estórias mediante a criação de um “mundo
misturado” povoado por diferentes crenças, costumes e tendências, que fazem dele um
intelectual que contrariando aos possíveis binarismos presentes em sua época, apresenta,
desde seu livro inaugural, universos ficcionais múltiplos, acima de tudo. Kathrin Rosenfield
(2006: 78) afirma que “o que atormenta o herói rosiano é o problema ontológico, o mistério
33
do ser” e destaca que, nos textos do escritor brasileiro, como reflexo desta inquietude, “o
fundo enigmático da natureza humana” assume posição de destaque (op. cit.: 110).
De acordo com Francis Utéza, no sertão rosiano “o sagrado e o profano sofrem
poluição de continuidade” (UTÉZA, 1994: 70). O ficcionista dá vida a homens religiosos
situados em cenários nos quais o espaço para as experiências numênicas é cada vez mais
limitado pelo confronto entre visões de mundo. A consciência de que as verdades são
limitadas e perecíveis torna suas narrativas universos conflituosos em que o encantamento do
mundo concorre com a visão pessimista do homem dessacralizado, ou a-religioso como
prefere designar Eliade (2010).
Suzi Sperber, após o desenvolvimento de um intenso processo de pesquisa que incluiu
a análise da biblioteca do escritor em questão, revela: “o próprio Guimarães Rosa disse a
Edoardo Bizzarri [em carta inédita] que os temas espirituais lhe eram os mais importantes, o
que fica amplamente confirmado pela existência de uma pasta preparada para publicação sob
o rótulo “Revivência”, contendo apenas textos espirituais” (SPERBER, 1976: 17). A
pesquisadora, após um olhar detalhado sobre as leituras presentes no acervo deixado por
Guimarães, conclui que ele era um homem extremamente preocupado com as questões
relacionadas ao espírito e, em função disso, dedicou-se à leitura de um amplo conjunto de
livros relacionados à temática. Segundo ela, “Guimarães Rosa, revela assimilação das leituras,
sem adesão a uma delas em particular, de modo a conservá-las opostas e contraditórias, como
são. Desta forma põe em questão não só os próprios conceitos – visão de mundo – põe em
questão o intelectual e o existencial” (op. cit.: 127). Tal afirmação ajuda a compreender por
que sua obra é um espaço de diálogo entre elementos aparentemente contraditórios: Deus e o
diabo, bem e mal, tradição e modernidade, sagrado e profano; forças inicialmente tomadas
como opostas são apresentadas na ficção rosiana como instâncias em ininterrupta
interlocução.
Na compreensão de Mikhail Bakhtin, “o homem não tem um território interior
soberano, está todo e sempre na fronteira, olhando para dentro de si ele olha o outro nos olhos
ou com os olhos do outro” (BAKHTIN, 2013: 323) (Grifos do autor). A escritura de João
Guimarães Rosa, forjada nas fronteiras entre o particular e o universal, o próprio e o alheio,
eleva à máxima potência as negociações constitutivas do humano, demonstrando a
instabilidade do território interior no qual as experiências mais profundas do homem se
constituem. Evidenciadoras do caráter dialógico presente na essência da humanidade, as
estórias de Rosa, tecidas pela junção de fios da ficção e da história, permitem o vislumbre de
34
conflitos, diálogos e agenciamentos que perpassam as relações entre homem e sagrado. Dessa
constatação decorre o interesse em analisar a visão mística presente em uma das primeiras
narrativas publicadas pelo escritor, que mobiliza o desenvolvimento desta pesquisa.
35
CAPÍTULO 2
Uma encruzilhada de singularidades plurais
A verdade dividida
A PORTA da verdade estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.
Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só conseguia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.
Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia os seus fogos.
Era dividida em duas metades
diferentes uma da outra.
Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era perfeitamente bela.
E era preciso optar. Cada um optou
conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia. 9
No anoitecer do século XX, Carlos Drummond de Andrade, aliando seu aguçadíssimo
senso crítico à força poética característica de seu fazer literário, traz a lume o poema em
epígrafe, conferindo visibilidade à consciência de que “a verdade”, no singular, há muito
perdera o seu espaço em meio à heterogeneidade das organizações sociais do período
moderno, cedendo seu lugar a uma consciência dialógica que, embora admita a existência da
verdade, aponta para a impossibilidade de a possuirmos, como sugere Todorov (2011) em
apreciação à crítica difundida a partir dos estudos de Mikhail Bakhtin. Ao cunhar a imagem
de uma porta em que só é possível a passagem de meia pessoa, o eu poético aponta não só
para o declínio das grandes verdades, mas torna imperativa a reflexão sobre a incompletude e
a fragilidade das certezas humanas. As palavras do poeta, como sói acontecer, dão conta das
transformações ocorridas na consciência do homem de seu tempo e vaticinam o alvorecer de
uma nova era, na qual a consciência de que as verdades se constituem a partir de uma série de
negociações de sentido – talvez entre as possíveis metades egressas da porta referida pelo eu
poético drummondiano – assume primeiro plano, tornando inevitáveis questionamentos até
9 ANDRADE, C. D. Contos Plausíveis. Rio de Janeiro: Record, 1998.
36
mesmo acerca da consistência dos princípios doutrinários que sustentam as instituições
aparentemente mais sólidas, como as religiosas, por exemplo.
Segundo Aldo Terrin, a epistemologia positivista é o grande alvo das reformulações
que se processam na esfera do religioso hodiernamente. A própria concepção de realidade,
segundo o autor, “parte agora do pressuposto de que a nossa mundivisão não é separável do
significado que damos ao mundo” em uma tomada de consciência que culmina na “mudança
dos paradigmas da verdade” (TERRIN, 1996: 32-33).
O processo de questionamento de verdades até então instituídas trouxe consigo a
impressão de que os tempos modernos seriam responsáveis por uma transformação das
relações entre homem e sagrado, pois, uma vez questionada a firmeza dos sustentáculos das
religiões, presumiu-se que estas últimas não resistiriam à contestação de seus fundamentos.
No entanto, como ressalta Antonio Carlos de Melo Magalhães:
Talvez o projeto inacabado da modernidade tenha justamente na religião o seu maior
embate e derrota. Ao contrário do que foi anunciado, a religião não perdeu a força, a
fé cristã não foi banida, a experiência religiosa negou a ideia de que religião é
expressão somente da alienação. A ideia de que a modernidade se implantaria à
medida em que a religião se retirasse de cena não vingou. A modernidade avançou,
mas a religião também. A modernidade agoniza, a religião recupera lugares perdidos
(MAGALHÃES; PORTELLA: 2008: 23-24) 10
.
A resistência que as manifestações religiosas vêm apresentando através dos tempos
impõe o reconhecimento de que “não vivemos sem verdades que nos orientem e que possam
ser defendidas nas circunscrições de nossa identidade, especialmente nos momentos críticos
da vida” (MAGALHÃES, 2012: 21). Desse modo, o momento decisivo em que a consciência
do caráter relacional da verdade vem à tona não deve ser interpretado como uma ruptura
definitiva do homem com as verdades que o orientam, mas como a admissão da sinuosidade
dos caminhos trilhados pela humanidade em sua tentativa de compreensão do mundo e de
seus fenômenos. Essa admissão é fruto do reconhecimento das fraturas presentes na
constituição do sujeito e da inevitável parcialidade deste – processo que, segundo Costa Lima
(2014), é caudatário das contribuições de intelectuais como Kant, Nietzsche e Freud.
Tendo em vista o que é sublinhado por Magalhães (2012), pode-se afirmar que o que
se coloca em questão, quando se reflete a respeito da consistência do que é tomado como
“verdade” em determinada conjuntura social, não é a existência ou inexistência de
10
As citações referentes ao livro “Expressões do sagrado” (2008) serão precedidas, ao longo deste trabalho, da
indicação do autor responsável pela assertiva que está sendo citada. Esse procedimento faz-se necessário pelo
fato de estarmos lidando com um livro composto por dois autores – Antonio Carlos de Melo Magalhães e
Rodrigo Portella – no qual os pesquisadores optaram por dividir a redação dos capítulos. No índice da edição
utilizada em nosso trabalho tem-se a indicação do autor responsável pela escritura de cada parte da obra.
37
“verdades”, mas “a forma, como atribuímos valor aos conteúdos de um princípio que
consideramos verdadeiro”, uma vez que, como pontua Magalhães (2012: 21), “verdades não
são imutáveis, porque não existe um âmbito fora da própria realidade humana, que é finita,
não infinita”. Sendo fundadas e difundidas em meio a uma realidade finita e limitada como a
humana, é natural que as verdades sejam também finitas e limitadas, deixando de fazer
sentido quando são confrontadas com perspectivas de análise incompatíveis com seus
fundamentos. Como muito bem afirma Luigi Pareyson, em seu estudo sobre o verdadeiro e
suas relações com a interpretação que dele fazemos, “a verdade só é acessível no interior de
cada perspectiva singular” (PAREYSON, 2005: 43).
A consciência de que ninguém consegue atravessar completamente a porta da verdade,
sugerida no poema de Drummond, vai precisamente ao encontro do que afirma Antonio
Carlos Magalhães em suas reflexões. A esse respeito, texto literário e exercício hermenêutico
convergem fundamentalmente ao sugerir a percepção do caráter relacional das verdades
socialmente estabelecidas a partir da compreensão do homem que, como ele, é limitada.
No que se refere especificamente às experiências religiosas, Magalhães (2012: 21)
chama a atenção para as recorrentes metamorfoses as quais as feições divinas se submetem
em decorrência do fato de se deixarem vislumbrar por intermédio das lentes subjetivas que
compõem o olhar humano. Nesse sentido, as divindades são sempre relacionais, assim como
as verdades que em torno delas gravitam.
Em um contexto crivado pela dúvida e pelos insistentes questionamentos em torno
daquilo que é tomado como “verdadeiro”, interessante é observar que o espaço para a religião,
fundamentada no que normalmente se designa “verdades sagradas”, contrariando ao que se
poderia prever, não tenha se restringido. Uma possível explicação, para a manutenção do
espaço interior que o homem reserva para as experiências religiosas, pode ser fundamentada
na gênese da religião, cujo surgimento remonta à origem da humanidade:
a religião não nasce nas estratégias de poder, não tem o seu nascedouro nas
colonizações, não tem sua origem primeira em estratégias de governantes em seu
domínio dos corpos e dos pensamentos, antes ela nasce da dor, do desamparo, da
ausência e da finitude. A religião, quando nasce é, primeiramente, um grito de dor
primordial, é o reconhecimento de nosso ser-para-a-morte, a impossibilidade de nos
realizarmos, o enfrentamento de nossa dolorosa finitude. Daí ser a religião tão antiga
quanto a humanidade, por esta nascer com sua dor de ser passageira e frágil
(MAGALHÃES, 2012: 33-34).
Surgida no nascedouro da humanidade, a religião emerge como brado humano diante
da consciência de finitude. Esta consciência coloca o ser em face das limitações que lhe são
impostas pela sua condição, legando-lhe a angústia de perceber-se efêmero em meio a um
38
universo regido por forças que não consegue compreender completamente e ultrapassam os
limites de seu poder de dominação. Disso deriva a relevância atribuída às experiências
religiosas na formação humana, que pode ser percebida, inclusive, nos discursos efervescentes
dos indivíduos que se declaram ateus em meio a comunidades povoadas por homens
religiosos. Ora, mesmo para o sujeito que não se curva diante dos altares construídos por
nenhuma tradição religiosa, os discursos oriundos das formações discursivas relacionadas à
religião apresentam-se como relevantes por constituírem o objeto diante do qual se opõe e
elabora uma espécie de contradiscurso, somente possível mediante o conhecimento dos
saberes propagados no cenário religioso. Só podemos negar algo que conhecemos muito bem.
E o conhecimento implica aproximação. Não por acaso alguns dos escritores, até onde se
sabe, menos afeitos às práticas religiosas, como Machado de Assis e José Saramago, são
responsáveis pela criação de textos em que elementos cruciais para o universo da religião
assumem posição proeminente, como se pode perceber a partir da breve apreciação de alguns
títulos cuja autoria lhes é atribuída, como “Ressurreição” e “A Igreja do Diabo”, presentes no
acervo literário do primeiro, e “Caim” e “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, detentores de
posições de destaque no conjunto da obra legada pelo segundo.
Com o advento das reflexões que gravitam em torno do caráter relacional da verdade,
intensificadas no período moderno, tem-se uma reconfiguração da maneira como o homem
porta-se diante das instituições religiosas responsáveis pela propagação das chamadas
“verdades sagradas”. Tal processo de reformulação das relações entre homem e sagrado será,
doravante, objeto de nossa análise.
2.1. Sobre a experiência religiosa na contemporaneidade
Labiríntica incursão pelas veredas mais profundas do humano, a reflexão sobre as
relações entre homem e sagrado passa necessariamente por uma encruzilhada em que valores
e crenças de proveniências diversas se encontram, dialogam, disputam e dividem espaço. As
tentativas de análise das experiências religiosas humanas movem-se em um terreno instável,
marcado pelo trânsito de elementos cuja origem perde-se no tempo e no espaço, tamanha é a
velocidade com que incorporam novos traços e novas significações lhe são atribuídas. O
chamado homem religioso, tal como designado por Eliade (2010: 18), ergue seus altares
interiores no limiar entre culturas e mundivivências distintas, sendo o seu imaginário herdeiro
39
de conhecimentos religiosos diversos e promotor de negociações entre distintas tradições
religiosas.
Elemento fundamental na formação identitária de um povo, a religião, como bem
observam Magalhães e Portella,
é algo que fascina, envolve, seduz, faz matar e faz viver. Está dentro dos códigos
vitais, faz parte dos gestos mais profundos de luta pela sobrevivência, é, muitas
vezes, o fundamento de desenvolvimentos culturais e civilizatórios mais complexos.
A mensagem de que há um sentido radical da vida, o desejo da plenitude associado
ao absoluto, os sentidos para além do banal, esta união entre o corriqueiro e aquilo
que o transcende, os grandes gestos de compaixão e compromissos profundos, tudo
isto faz da religião uma busca e uma experiência insuperáveis (MAGALHÃES;
PORTELLA, 2008: 16-17).
Alimentada pelo insaciável desejo humano de transcendência, a religião é um
componente essencial na organização do convívio em sociedade. Sua relevância pode ser
constatada até mesmo na administração do tempo que os homens dedicam às atividades
laborais, pois mesmo as instituições consideradas laicas submetem-se a uma sistematização
cronológica fundada na experiência religiosa de seus antepassados, como se pode perceber ao
verificar a incidência de feriados em dias consagrados às divindades as quais, em algum
momento da história, se credita ou creditou o poder de intervenção na comunidade.
Com o advento da modernidade, no entanto, tem-se, conforme salienta Magalhães, “a
tentativa insistente de pensar a vida e seu sentido sem deuses e sem religião. A modernidade
representa um abalo ao poderio da religião. Um momento ímpar de imaginar a vida a partir de
outros critérios e perspectivas” (MAGALHÃES; PORTELLA, 2008: 29). Dessa forma,
percebe-se que o incessante processo de questionamento dos princípios que fundamentam as
instituições religiosas, somado à reflexão acerca do que, de fato, se pode designar como
“verdade”, deságua na reconfiguração das relações entre homem e sagrado, que, se sempre
tiveram um caráter singular e se desenvolveram no terreno mais íntimo do ser, adotam uma
dinâmica de transformações ainda mais intensa, cujo caráter individual passa a ser bem mais
perceptível. Nesse contexto, a “verdade” passa a ser vista como aquilo “que tem sentido para
o indivíduo em sua vivência particular” (MAGALHÃES; PORTELLA, 2008: 142) e faz-se
necessário, como observa Rodrigo Portella, o reconhecimento de que
a relação do indivíduo com a doutrina normatizada como verdadeira por uma
instituição religiosa e, por outro lado, com sua versão pessoal/vivencial da doutrina
oficial é sempre ambivalente e ambígua, pois o indivíduo, em sua capacidade
adaptável de sobrevivência, revelará, como sua, a versão oficial ou pessoal de algo
conforme as circunstâncias. E, neste ínterim, a pessoa não se vê necessariamente
como contraditória ou infiel. Apenas assume a ambiguidade da vida, do ser humano
e de suas estratégias de sobrevivência num mundo ao mesmo tempo plural e
40
impositivo de modelos, onde o ser humano se acha na dialética do ser ou não ser e
do ser sem ser. E [...] fronteiras doutrinais de fé funcionam e têm sentido mais na
morfologia e semântica das instituições religiosas do que na vida concreta de muitas
pessoas, que percebem religião como um todo, ainda que em formas distintas, mas
não necessariamente impossibilitadas de cruzamentos e rejuntes (MAGALHÃES;
PORTELLA, 2008: 143-144).
Ganham visibilidade, nessa conjuntura, os intensos diálogos que se processam entre as
diversas tradições religiosas no âmago da consciência humana. Nas veredas mais profundas
do ser, “tudo é e não é”, como observa Riobaldo (ROSA, 2001b: 27). Em meio a
encruzilhadas, trânsitos e incessantes diálogos, ocorrem os processos de identificação do
indivíduo, nos quais, como ressalta Portella (2008: 143- 144), surgem as contradições
identitárias resultantes da dinâmica do ser e não ser ou, formulando de outro modo, do ser
sem ser. O sujeito que atravessa os conturbados embates ideológicos da modernidade é
visivelmente plural, sendo a visibilidade de seu caráter múltiplo a grande marca que o
diferencia de seus predecessores. Sua formação identitária se dá mediante a incorporação de
valores provenientes das mais variadas culturas, uma vez que no período moderno a
comunicação entre os membros das diferentes esferas sociais se intensifica notavelmente,
atingindo um patamar nunca antes visto.
Tendo em conta que a formação das identificações culturais se dá, como pontua Stuart
Hall, “ao longo do tempo, através de processos inconscientes” (HALL, 2006: 39), é
necessário admitir que as contradições apontadas por Portella (2008: 143-144), no que se
refere às relações do indivíduo com as várias doutrinas religiosas com as quais entra em
contato, são plenamente possíveis na sociedade contemporânea, como também o eram em
épocas anteriores. O elemento-chave na discussão proposta pelo autor refere-se à admissão da
ambiguidade da vida por parte do sujeito moderno, que de forma muito mais consciente que
seus antepassados insere-se na dinâmica do ser e não ser ou do ser sem ser. “Cruzamentos e
rejuntes” passam a ser feitos de maneira bem mais cônscia na “vida concreta das pessoas”,
uma vez que estas lidam de forma questionadora com as verdades que, como se sabe, a
depender da ótica com que são analisadas, podem ser “também mentira, sendo só meio
consolo” 11
, como sugerem os versos de um poema de Adélia Prado.
De acordo com Stuart Hall, “as sociedades modernas são [...] sociedades de mudança
constante, rápida e permanente”, sendo este o aspecto fundamental que as distingue das
chamadas sociedades tradicionais (HALL, 2006: 14). As divergências entre as modernas
formas de organização social e as de outrora se justificam, ainda de acordo com o mesmo
11
PRADO, Adélia. Poesia reunida. São Paulo: Arx, 1991.
41
estudioso (2006: 25), pelas “transformações associadas à modernidade” que libertaram o
indivíduo de “seus apoios estáveis nas tradições e nas estruturas”, pois antes havia a crença de
que essas
eram divinamente estabelecidas; não estavam sujeitas, portanto, a mudanças
fundamentais. O status, a classificação e a posição de uma pessoa na “grande cadeia
do ser” – a ordem secular e divina das coisas – predominavam sobre qualquer
sentimento de que a pessoa fosse um indivíduo soberano. O nascimento do
“indivíduo soberano”, entre o Humanismo Renascentista do século XVI e o
Iluminismo do século XVIII, representou uma ruptura importante com o passado.
Alguns argumentam que ele foi o motor que colocou todo o sistema social da
“modernidade” em movimento (HALL, 2006: 25).
Do surgimento de um indivíduo soberano, proporcionado pelos movimentos nascidos
no cerne da modernidade, resultaria uma redefinição da posição do sujeito em face dos
saberes doutrinários que em torno dele gravitam, sendo esta redefinição responsável pela
tomada de consciência que faz com que o homem insira-se na já referida dinâmica do ser e
não ser. A soberania do indivíduo moderno em relação às doutrinas, antes tidas como
divinamente instituídas, amplia o espaço para o estabelecimento de vínculos cada vez mais
instáveis com as diferentes tradições religiosas presentes na sociedade. De maneira que as
vivências religiosas estabelecidas a partir da modernidade podem ser, em última instância,
definidas como singularidades plurais. São singularidades porque se processam no âmbito
mais íntimo da vida de cada indivíduo, sendo, por isso mesmo, únicas e irrepetíveis, uma vez
que as experiências vividas por cada pessoa não podem ser experimentadas por outrem com a
mesma intensidade e nas mesmas condições; e são plurais porque se compõem a partir de
diálogos vários entre diversificadas crenças, oriundas de distintas culturas, fazendo-se, em
decorrência disso, compósitas.
De acordo com Aldo Terrin, a religiosidade contemporânea é fruto
de uma cultura que viu ruir todos os seus mitos, as ideologias, a verdade e os
valores. É uma religiosidade amadurecida por meio de um encontro com as formas
expressivas e artísticas em nível non-sense e já se encontra impregnada de
“irracional”, de sensações mais do que ideias, de vontade de crer mais do que de
convicções, de visões e perspectivas deformadoras e de pluralismos indefinidos mais
do que de apegos a tradições, às grandes histórias e aos grandes mitos do passado
(TERRIN, 1996: 9- 10).
As vivências religiosas se formulam a partir de contribuições plurais que as fazem
singulares. E o caráter ambivalente dessas experiências – ao mesmo tempo singulares e
plurais –, leva-nos a concluir, com Rodrigo Portella, que “para se chegar a entender a religião
que as pessoas realmente exprimem e vivem, em composições e empréstimos variados, é
preciso chegar aos sujeitos religiosos concretos em suas práticas cotidianas e à interpretação
42
que eles fazem delas” (MAGALHÃES; PORTELLA, 2008:146), pois, como enfatiza o
pesquisador,
na modernidade secularizante há o enfraquecimento da religião institucional em sua
influência no ordenamento do mundo social e da consciência dos indivíduos e,
consequentemente, em sua vida social. Neste sentido “certezas” e plausibilidades
passam ao território privado, como descobertas pessoais existenciais. As amarras
culturais religiosas, dantes firmes, que procuravam congregar as pessoas em
sociedades numa visão coesa da vida, numa plausibilidade consagrada e bem
conversada, desgastam-se. As pessoas sentem-se livres para buscar, de forma
autônoma, o seu próprio universo de significações diante de um mundo
fragmentado. Mundo de mosaicos. Assim, a própria multiplicidade de movimentos
religiosos atuais e adesões livres e trânsitos em meio deles mostra essa secularização
(MAGALHÃES; PORTELLA, 2008:159-160).
Em um mundo no qual o sujeito assume diferentes identidades, em diferentes
momentos, carregando em si “identidades contraditórias empurrando em diferentes direções”
(HALL, 2006: 13), não é, segundo Portella,
a religião institucional que desaparece, mas a possibilidade de uma delas (ou mais de
uma) ditar um dossel sagrado para a sociedade e para os indivíduos. O que resta é a
presença simultânea de várias agências religiosas, convivendo entre si,
acotovelando-se no mercado de sentidos e eficácias simbólicas, num oferecimento
de seus produtos que, grosso modo, não serão mais adquiridos de forma permanente
e, quando adquiridos, sofrerão as alterações do gosto do freguês (MAGALHÃES;
PORTELLA, 2008: 162).
A posição, frequentemente contestatória, assumida pelo sujeito egresso do período
moderno, acentua os diálogos entre as tradições religiosas por isentar-lhe das amarras
anteriormente impostas pela aceitação de verdades divinas que lhe orientavam a conduta. À
medida que as verdades são dessacralizadas, alarga-se o espaço, na consciência do indivíduo,
para o diálogo entre os preceitos das diferentes instituições religiosas. Em meio a uma
sociedade em que não há mais a total aceitação de verdades universais, aquele que se propõe a
analisar as experiências religiosas humanas é obrigado a enfrentar as armadilhas da
contradição, pois assume o risco de lidar com um objeto de investigação que é ao mesmo
tempo uno e diverso, singular e plural no sentido mais superlativo possível dos dois termos.
No “mundo misturado”, desnudado pelos processos de questionamento que se intensificam a
partir da modernidade, a vivência religiosa passa a ser, na feliz expressão de Guimarães Rosa,
um lugar de “puras misturas” 12
.
12
O termo “puras misturas”, até onde se sabe, foi encontrado nos escritos de João Guimarães Rosa e utilizado,
pioneiramente, por Sandra Vasconcelos, como título para seu estudo sobre a novela “Uma estória de amor”, de
autoria do escritor mencionado.
43
2.2. A essência da sacralidade
Mircea Eliade, em análise ao que se designa “essência do fenômeno religioso”,
estabelece uma distinção entre o que ele chama de “homem religioso” e “homem a-religioso".
Para o autor, o primeiro seria aquele para o qual “toda a Natureza é suscetível de revelar-se
como sacralidade cósmica” (ELIADE, 2010: 18), pois, em sua visão, “o espaço não é
homogêneo: [...] apresenta roturas, quebras; há porções de espaço qualitativamente diferentes
das outras” (op. cit.: 25) (Grifos do autor). Para o homem religioso, as manifestações da
sacralidade, que Eliade chama de “hierofanias”, são responsáveis pela fundação ontológica do
mundo (op. cit.: 26), fixando limites e estabelecendo uma espécie de ordem cósmica a partir
da qual a humanidade situa-se no tempo e no espaço. As noções de tempo e espaço que
norteiam a vida do indivíduo para o qual todo o mundo é um “mundo sagrado” (op. cit. 32) –
principalmente pelo fato deste mesmo mundo ser, na visão do homem religioso, concebido
pelas suas divindades – são, por sua vez, peculiares: ambos os elementos – tempo e espaço –
são, para ele, heterogêneos por apresentarem fragmentos sacralizados cuja relevância é
superior às outras partes que os compõem (atente-se para a questão de que todas as religiões
possuem datas “especiais” que remontam aos acontecimentos míticos tidos como suas
verdades basilares; note-se ainda, que as mais variadas tradições religiosas atribuem um valor
especial a determinados lugares em que acontecimentos supostamente sagrados se
desenvolveram). Tais concepções devem-se ao fato de que, para o homem religioso,
a experiência do sagrado torna possível a “fundação do Mundo”: lá onde o sagrado
se manifesta no espaço, o real se revela, o Mundo vem à existência. Mas a irrupção
do sagrado não somente projeta um ponto fixo no meio da fluidez amorfa do espaço
profano, um “Centro”, no “Caos”; produz também uma rotura de nível, quer dizer,
abre a comunicação entre os níveis cósmicos (entre a Terra e o Céu) e possibilita a
passagem, de ordem ontológica, de um modo de ser a outro. É uma tal rotura na
heterogeneidade do espaço profano que cria o “Centro” por onde se pode comunicar
com o transcendente, que, por conseguinte, funda o “Mundo”, pois o Centro torna
possível a orientatio. A manifestação do sagrado no espaço tem, como
consequência, uma valência cosmológica: toda hierofania espacial ou toda
consagração de um espaço equivalem a uma cosmogonia. Uma primeira conclusão
seria a seguinte: o Mundo deixa-se perceber como Mundo, como cosmos, à medida
que se revela como mundo sagrado (ELIADE, 2010: 59) (Grifos do autor).
Para o homem religioso, o universo é composto por pontos que adquirem centralidade
a partir das significações místicas que lhe são atribuídas. A incidência de uma experiência de
caráter sagrado promoveria quebras no tempo e no espaço, compondo uma espécie de
“realidade” sagrada que caminha paralela ao mundo profano, sendo somente compreendida
44
pelo restrito grupo de “iniciados” conhecedores de sua significação religiosa. Da fundação
ontológica do mundo ocasionada pela manifestação do sagrado resulta a valoração peculiar de
objetos, períodos de tempo e espaços, que, na visão do homem religioso, passam a ser
reveladores de algo que os transcende.
Ao conceito de homem religioso se opõe aquilo que é denominado pelo pesquisador
como “homem a-religioso”. Este teria assumido posição proeminente no seio da modernidade
e se caracterizaria basicamente como aquele que “reconhece-se como o único sujeito e agente
da História e rejeita todo apelo à transcendência. Em outras palavras, não aceita nenhum
modelo de humanidade fora da condição humana, tal como ela se revela nas diversas
situações históricas”, podendo ser definido como o homem que “faz-se a si próprio, e só
consegue fazer-se completamente na medida em que se dessacraliza e dessacraliza o mundo”
(ELIADE, 2010: 165) (Grifos do autor). Entendendo os limites impostos pelas redes de
significações propagadas pelos discursos religiosos como barreiras a serem superadas em sua
intensa busca por liberdade e autorrealização, o homem a-religioso estaria marcado pela
consciência de que “só será verdadeiramente livre quando tiver matado o último Deus” (op.
cit.: 165). Em suas mãos, a mesma espada que outrora defendia os templos, torna-se
instrumento de combate à religião que, do seu ponto de vista, limita as possibilidades de
realização do ser. Neste sentido, seus interesses distanciam-se das crenças do chamado
“homem religioso” e ele, como salienta Eliade, “se constitui por oposição a seu predecessor,
esforçando-se por se “esvaziar” de toda religiosidade e de todo significado trans-humano”,
reconhecendo a si próprio “na medida em que se “liberta” e se “purifica” das “superstições”
de seus antepassados” (op. cit.: 166). Ao tomar a realidade como constructo humano, o
homem a-religioso seria responsável por uma ressignificação das experiências humanas,
resultante da tentativa de descortinar novos horizontes dessa mesma “realidade” a partir de
um rompimento com as “verdades” por muito tempo consideradas universais.
A evidente oposição entre as duas categorias, analisadas por Mircea Eliade, por si só, é
suficiente para iluminar o ininterrupto diálogo que se processa entre elas: só é possível negar
aquilo que se conhece. E a tomada de conhecimento é sempre um gesto em direção ao que se
pretende compreender, ou seja, o movimento de oposição só é possível mediante a réplica.
Em outras palavras, ao tentar se opor às crenças de seus antepassados, o homem a-religioso,
em um movimento involuntário, delas se aproxima, permitindo-se influenciar. Destarte, ele
não consegue furtar-se às influências de seus predecessores. E não poderia ser de outro modo,
pois, como é observado por Eliade, o homem a-religioso seria descendente do religioso, de
45
forma que a relação entre eles não é simplesmente de oposição, mas de continuidade.
Herdeiro de seus antepassados, o homem a-religioso seria aquele que sente um desconforto
causado pelas formas assumidas pelas suas raízes. Sua busca por novas formas de ser e viver é
sempre marcada pelo olhar ao passado, que, como afirma Ana Mafalda Leite, “institui-se
como uma referência insubstituível” (LEITE, 2005: 159). Nas palavras de Eliade, o homem a-
religioso ou profano (como também é designado) “no estado puro é um fenômeno muito raro,
mesmo na mais dessacralizada das sociedades modernas”, pois o sujeito que surge a partir da
modernidade “queira ou não, conserva ainda os vestígios do comportamento religioso, [...]
não pode abolir definitivamente seu passado, porque ele próprio é produto desse passado”
(ELIADE, 2010: 166) (Grifos do autor).
Constituindo-se em uma relação especular com seu antecessor, o homem a-religioso
toma a vivência de seus antepassados como referente que precisa superar. Sua conduta diante
dessa situação passa inexoravelmente pelo diálogo com o outro, numa complexa relação
contestatória que se estabelece como réplica.
Um ponto de tangência entre os dois sujeitos mencionados por Eliade – o religioso e o
a-religioso – reside nos conteúdos inconscientes, que, segundo o pesquisador, são resultantes
de situações existenciais imemoriais, apresentando, por isso, uma aura religiosa, uma vez que
“toda crise existencial põe de novo em questão, ao mesmo tempo, a realidade do Mundo e a
presença do homem no Mundo: em suma, a crise existencial é “religiosa”, visto que, aos
níveis arcaicos de cultura, o ser confunde-se com o sagrado” (ELIADE, 2010: 171).
Partindo do pressuposto de que o homem completamente racional é uma abstração e
admitindo que o sujeito constitui-se por processos conscientes e inconscientes, racionais e
irracionais, Eliade sugere a presença de um elemento irracional na experiência religiosa, que
seria, em parte, responsável pela significância que a ela tem sido atribuída ao longo da história
da humanidade e, ao fazer isso, corrobora o que é postulado por Rudolf Otto (2007), em seu
clássico estudo sobre o sagrado.
Tendo como premissa a ideia de que “se existe um campo da experiência humana que
apresente algo próprio, que apareça somente nele, esse campo é o religioso” (OTTO, 2007:
35), Rudolf Otto desenvolve uma intensa reflexão a respeito do que ele chama de
“numinoso”, elemento que, segundo o autor, antecede toda e qualquer ideia de religião e está
presente em todas as sociedades. Para Otto, as experiências humanas com a sacralidade
partem de uma essência aprioristicamente irracional – numinoso –, que só em seus
desdobramentos posteriores é racionalizada. As tendências humanas de cunho conceitual e
46
moralizante seriam, na visão desse intelectual, posteriores à pulsação interior responsável, em
última instância, pelas experiências consideradas sagradas. O “numinoso” seria uma essência
suprarracional das religiões e, por isso, teria caráter escorregadio, escapando das tentativas de
definição norteadas por princípios racionalizantes.
Precisamente em função de ser um aspecto suprarracional da religião, o numinoso é
apresentado por Otto como um excedente. Suas dimensões ultrapassam os domínios
conceituais da linguagem e, em decorrência disso, não se enquadram completamente na esfera
do conhecimento. A percepção do elemento irracional da religião aconteceria, no entender do
estudioso, por intermédio da sensibilidade.
Como componentes do numinoso, Otto destaca alguns aspectos que assumem
centralidade nas relações entre homem e sagrado, dentre os quais nos interessam
especialmente os aspectos: arrepiante (tremendum), avassalador (majestas), enérgico,
totalmente outro (mysterium), fascinante e assombroso. Vale salientar que, apesar de
estabelecer distinções entre esses elementos, o autor não deixa de demonstrar em seu estudo a
rede de relações que se estabelece entre eles.
De maneira bastante sintética, podemos dizer que o primeiro dos aspectos – o
arrepiante – consistiria em uma espécie de arrepio místico que acompanha a percepção de
uma presença superior e a constatação da própria nulidade diante das forças que regem o
cosmos. Para Otto (2007: 47), este não seria um temor natural, mas uma espécie de
“pressentimento do misterioso” que toma conta do ser ao deparar-se com algo que ultrapassa
os limites de sua compreensão. Seria resultante deste aspecto a sensação humana de
submersão frente ao “arrepiante”, normalmente associada ao “receio” que se experimenta
diante do sagrado. Ao deparar-se com forças para as quais não encontra uma total explicação
e que o surpreendem por sua grandeza, o homem se “arrepia” e o temor surge junto à
percepção da impotência humana em relação ao poder que, a seu ver, rege e organiza o
mundo.
O segundo aspecto, o avassalador ou majestas (como também é designado por Otto),
seria responsável pela extrema valoração dos objetos e seres associados à transcendência e
pela consequente reverência da comunidade religiosa ao que é considerado transcendente. As
oposições indigno versus digno, incompleto versus pleno, imperfeito versus perfeito, tão
comumente utilizadas ao tratar das relações entre o homem e suas divindades resultariam do
aspecto avassalador do numinoso. Ao perceber-se diante da “plenitude do ser, frente ao qual o
si-mesmo se sente como um nada” (OTTO, 2007: 53), caberia sempre ao homem a posição de
47
extremo respeito, expressa, muitas vezes, através dos gestos de reverência adotados diante dos
altares: os atos de curvar-se, dobrar os joelhos, ou baixar a cabeça seriam expressões
corporais pelas quais esse aspecto das experiências numênicas se tornaria mais visível. Há que
se atentar para o fato de que o homem coloca-se sempre em posição de humildade em relação
às forças que, segundo suas crenças, ordenam o mundo em que vive. Merece atenção, ainda
em relação a este aspecto, o fato de que a designação majestas, assim como a posição
submissa do crente em relação ao numinoso, denotam uma aproximação entre o sacro e o
soberano.
Relacionado aos dois primeiros aspectos do numinoso – o arrepiante e o avassalador –
estaria aquilo que o autor denomina “sentimento de criatura”, consequência da sensação “de
afundar, ser anulado, ser pó” (OTTO, 2007: 54) diante dos poderes incomensuráveis que são
atribuídos às divindades. Ora, se há uma entidade criadora em cujas mãos toda a humanidade
está suspensa, responsável pela concepção do homem, este último seria “criatura” concebida
pelas entidades divinas. De forma que a constatação da existência da divindade seria sempre
acompanhada do reconhecimento das limitações humanas, de sua insignificância em relação à
grandeza de seu(s) Deus(es).
Já o aspecto enérgico do nume seria o que, ao ser experimentado, “aciona a psique da
pessoa, nela desperta o zelo” (OTTO, 2007: 55), desencadeando a tensão responsável pelo
“empenho contra o mundo e a carne”, pela “excitação em eclodir em atuação heroica” (op.
cit.). Na compreensão de Otto, este aspecto protegeria as ideias religiosas da “racionalização
indevida”, constituindo o grande fundamento para a contestação de um Deus “filosófico” “de
especulação e definição meramente racionais" (op. cit.). A este aspecto provavelmente se
associa a insistência humana na defesa de “uma verdade”, nunca aceita pelos membros da
comunidade religiosa como sendo questionável ou incompleta. Haveria, assim, um impulso
irracional enérgico que impediria a aceitação de uma abordagem filosófica ou relativizada de
certos fundamentos ou interfaces da experiência numênica. Arriscamo-nos a dizer que, no
íntimo da experiência religiosa humana, a verdade é aquilo que é significativo para o
indivíduo, não podendo ser questionada, uma vez que ainda mais importante que sua
comprovação é a análise de suas interferências no modo de ser e compreender do homem que
a toma como premissa norteadora de sua existência. É imperativo reconhecer que a defesa das
crenças religiosas é movida por forças profundas, diante das quais os argumentos de
contestação mais racionais perdem a força.
48
O totalmente outro seria desencadeador da sensação de estranheza, do “pasmo
estarrecido” provocado pelo que é interpretado como manifestação do sagrado, que se
apresenta como um “objeto realmente “misterioso” [...] “totalmente diferente”, cuja natureza e
qualidade são “incomensuráveis para a minha natureza”” (OTTO, 2007: 59). Também
chamado de mysterium, ele é caracterizado por Otto como incompreensível, pois se situaria
em um espaço para além da esfera do humano e comportaria em si elementos inconciliáveis,
desafiadores da razão na medida em que envolvem situações não explicáveis a partir de
conhecimentos científicos ou princípios racionais. Interessante é perceber que as
manifestações da sacralidade se apresentam para o homem como reveladoras de um
transcendente que escapa dos limites de sua compreensão, embora ele se esforce para explicá-
lo. Nas mitologias que fundamentam as tradições religiosas existe sempre algo não
verificável, impossível de ser comprovado. Estes fundamentos reveladores do “totalmente
outro” tornam-se relevantes, como já ficou dito neste capítulo, pela sua interferência na
maneira como o homem percebe o mundo a sua volta e com ele interage.
Os dois últimos aspectos a serem destacados no estudo de Otto – o aspecto fascinante
e o assombroso – seriam resultantes da ambivalência da sacralidade, que, de uma só vez,
assusta e seduz, atrai e repele, pois, como observa o autor, (2007: 68), “o que o demoníaco-
divino tem de assombroso e terrível para a nossa psique, ele tem de sedutor e encantador. E a
criatura que diante dele estremece no mais profundo receio sempre também se sente atraída
por ele, inclusive no sentido de assimilá-lo”. Permeadas de fascínio e medo, as manifestações
do sagrado seriam ambivalentes justamente por constituírem um território em torno do qual
gravitam forças, aparentemente inconciliáveis, de atração e repulsão. O distanciamento
aparente entre o fascínio e o medo se dissolve, se consideramos que os dois sentimentos não
são necessariamente opostos. O “totalmente outro” impressiona, assusta, mas também fascina.
No que se refere às experiências numênicas, o andar para longe é muitos vezes o que
impulsiona o salto de aproximação. A pertinência do que é sugerido por Otto pode ser
percebida se atentamos para a atração exercida pelas narrativas em torno das manifestações do
sagrado: se, por um lado, nelas há elementos que provocam o assombro, por outro, há também
algo que aguça a curiosidade humana. Outro índice que permite-nos entrever a ambivalência
das hierofanias refere-se às constantes menções ao demoníaco nas mais variadas expressões
culturais: se há um assombro em relação ao que se considera manifestação do mal, há também
um incessante movimento de recriação da figura demoníaca nas narrativas que compõem o
imaginário de diversos povos.
49
Como se pode perceber, a partir dessa breve e limitada descrição dos aspectos do
numinoso mencionados, é difícil estabelecer demarcações rigorosas entre eles, pois as
sensações associadas a cada um dos aspectos relacionam-se, por vezes, aos elementos
apontados como constituintes do outro e isso evidencia o contínuo diálogo que se processa
entre os traços composicionais das experiências numênicas. A nosso ver, mais importante que
a demarcação de fronteiras entre eles, é a observação do caráter ambivalente do elemento
sacro, que, em suma, poderia ser caracterizado como “terrível e soberbo, descomunal e
estranho, esquisito e admirável, assombroso e fascinante, divino, demoníaco e „enérgico‟”
(OTTO, 2007: 79). Na percepção de Otto,
Aquilo que o sentir religioso primitivo capta primeiro em forma de “receio
demoníaco”, aquilo que nele depois é desdobrado, intensificado e enobrecido, ainda
não é algo racional nem mesmo moral, mas justamente algo irracional, diante de
cuja experiência a psique responde de modo singular com os reflexos de sentimento
especiais (OTTO, 2007: 148).
Sendo assim, a pulsação que aviva o sentir religioso mais profundo só em um
momento posterior seria racionalizada a partir da associação a atributos morais. O numinoso,
enquanto categoria que fundamenta o sentir religioso, estaria além dos dogmas e preceitos
morais que só em um momento posterior seriam a ele associados. Isso é perceptível quando
são analisadas, por exemplo, as diferentes maneiras como a sexualidade é tratada pelas
diversas tradições religiosas: enquanto algumas religiões primam pela castidade, outras
promovem a iniciação sexual dos adolescentes. Seguindo essa linha de raciocínio, seria
possível compreender a multiplicidade de faces atribuídas às divindades ao longo da história,
haja vista que, segundo Otto,
O “receio demoníaco” atravessa ele próprio vários estágios, elevando-se ao patamar
do “temor aos deuses” e temor a Deus. O demoníaco [...] passa a ser divino [...]. O
receio passa a ser estado meditativo. Os sentimentos dispersos e confusamente
emergentes transformam-se em religião (OTTO, 2007: 148).
Considerando essa perspectiva, o elemento suprarracional da religião seria um elo
entre divino e demoníaco na medida em que é isento de conteúdos moralizantes e éticos. A
distinção entre as duas instâncias mencionadas ocorreria posteriormente, quando se iniciam as
tentativas de abstração e classificação do pulsar primordial que move as experiências
numênicas. Nesta etapa, o que foi sentido como “receio demoníaco” pode passar a ser
interpretado como “temor” divino. Na esteira do que é proposto por Otto, é interessante notar
a semelhança entre o temor humano em relação às divindades e o medo alimentado em
relação à figura demoníaca. Divino e demoníaco são tidos por algumas das mais difundidas
50
tradições religiosas como domínios opostos; no entanto, as relações que o homem estabelece
com ambos convergem em algumas das sensações que eles lhe causam. Em relação a ambos o
homem experiencia os sentimentos destacados por Otto, sendo-lhe inevitável a impressão de
estranheza provocada pelo fato de imaginar-se diante do “totalmente outro”.
Ao discorrer sobre o sagrado, Eliade (2010) defende a ideia de que a melhor forma de
defini-lo é situando-o em oposição ao profano. Seguindo esta linha de raciocínio, percebe-se
que, deuses e demônios se constituem em oposição a este, uma vez que, para além dos
conteúdos moralizantes, a sacralidade possui um caráter ambivalente que pode ser
interpretado como bom ou mau, a depender do ponto em que está apoiada a observação. Na
bíblia hebraica, para citar somente um exemplo, tem-se a efígie de um Deus onipotente,
criador da humanidade e responsável pelo seu quase que total extermínio em um dilúvio,
fundador e demolidor, com a mesma intensidade. As muitas faces desse Deus evidenciam a
ambivalência que está presente no sacro, sendo este um fenômeno cuja interpretação já está
situada no campo do racional.
Para Octavio Paz, o sagrado faz fronteira com o sublime e o poético, não podendo ser
compreendido como uma “categoria original da qual procedem as outras” (PAZ, 2012: 149),
pois, segundo ele, cada vez que tentamos distingui-lo percebemos que seus supostos traços
distintivos estão também presentes nas outras categorias mencionadas, pois “o homem é um
ser que se assombra; ao assombrar-se, poetiza, ama, diviniza”. Na compreensão do autor, não
há uma relação de sucessão entre sagrado, sublime, poético, devido à estreita relação existente
entre eles.
Na esteira de Otto, Paz define o sagrado como “algo que nos escapa”, pois “transcende
a sexualidade e as instituições sociais em que se cristaliza. É erotismo, mas é algo que
transpassa o impulso sexual; é um fenômeno social, mas é outra coisa. [...] Ao tentar captá-lo,
descobrimos que tem origem em algo anterior e que se confunde com o nosso ser” (PAZ,
2012: 143). O autor coloca o sagrado ao lado do amor e da poesia, ressaltando que
as três experiências são manifestações de algo que é a própria raiz do homem. Nas
três pulsa a saudade de um estado anterior. E esse estado de unidade primitiva, do
qual fomos separados, do qual estamos sendo separados a cada momento, constitui a
nossa condição original, à qual voltamos uma e outra vez (PAZ, 2012: 143).
Nas definições de Paz, o sagrado é tido como um domínio tocado pelas mais altas
expressões do humano: amor, erotismo e poesia são alguns dos âmbitos de nossas vidas
impregnados de sacralidade. Uma reflexão acerca do que diz o autor mexicano conduz-nos,
inevitavelmente, à percepção das relações que se estabelecem, ao longo da história das mais
51
variadas mitologias, entre as expressões humanas referidas. No que se refere ao erotismo, por
exemplo, são inúmeras as passagens mitológicas que fazem alusões ao domínio da
sexualidade ou propõem a conjunção carnal entre humano e divino, assim como sugerem a
fecundação do humano através da intervenção divina: a hierogamia – união entre um deus/
deusa e um(a) mortal – é temática recorrente nas histórias arraigadas no imaginário de
comunidades religiosas que se estabeleceram nos pontos mais diversos do planeta. Já no que
concerne às intersecções entre sagrado e poesia, é preciso enfatizar que, na construção de
templos, imagens e textos relacionados ao universo religioso, o belo é condição sine qua non;
não por acaso, muitas das mais altas expressões poéticas foram concebidas com o claro intuito
de fazer parte do cenário religioso das civilizações diante das quais emergiram. Outrossim, é
válido salientar, que as aparições de elementos relacionados ao sagrado no interior do
território poético são constantes.
Colocado lado a lado com a poesia e o amor, o sagrado, nas reflexões de Paz, é tido
como um dos componentes fundamentais do humano, que promovem o encontro entre as duas
instâncias básicas que tornam possível a tentativa de compreensão do mundo por parte do
homem; são elas o “eu” e o “tu”, ou, nos termos de Mikhail Bakhtin, o “eu” e o “Outro”. É
produtivo atentar para o fato de que os três elementos referenciados pelo poeta mexicano – o
amor, o sagrado e a poesia – são laços em cujas pontas se pressupõe a existência de, pelo
menos, dois seres. Nenhum dos elementos mencionados pode ser, a priori, experienciado por
um ser adâmico que não lança um olhar em relação à outra pessoa. Mesmo o poeta que
compõe um texto centrado em seu “eu” ou o ser empenhando no exercício do amor próprio,
depara-se com o desvendamento de um “outro” contido em si mesmo, no sentido de que mira
para dentro de si mesmo sempre com uma ótica formada em relação ao outro. Não podemos
negligenciar a premissa bakhtiniana de que “eu não estou só quando me contemplo no
espelho, estou possuído por uma alma alheia” (BAKHTIN, 2011: 31), que deixa evidente a
interferência do outro na formação do olhar humano.
De acordo com Bakhtin, “só outro homem pode ser vivenciado [...] como conatural
com o mundo exterior, pode ser entrelaçado a ele e concordar com ele de modo esteticamente
convincente” (BAKHTIN, 2011: 37). Algumas experiências essenciais na construção da
subjetividade, como o nascimento e a morte, por exemplo, só podem ser percebidas de forma
mais plena pela humanidade a partir do olhar em direção ao outro. Até mesmo a formação de
algumas categorias cognitivas, éticas e estéticas, só é possível a partir das relações
52
estabelecidas entre “eu” e “outro”, uma vez que as reações emocionais ao corpo exterior do
outro
são imediatas, e só em relação ao outro eu vivencio imediatamente a beleza do corpo
humano, ou seja, esse corpo começa a viver para mim em um plano axiológico
inteiramente diverso e inacessível à autossensação interior e à visão exterior
fragmentária. Só o outro está personificado para mim em termos ético-axiológicos.
Neste sentido, o corpo não é algo que se baste a si mesmo, necessita do outro, do seu
reconhecimento e da sua atividade formadora. Só o corpo exterior é antedado: ele
deve criá-lo com seu ativismo (BAKHTIN, 2011: 47-48).
Ao ressaltar que a poesia, o amor e o sagrado estão vinculados às raízes mais
profundas do ser, Octavio Paz conduz à constatação de que as mais altas experiências
constitutivas do humano são, precisamente, as que lhe colocam em face do “outro que é ele
mesmo” (PAZ, 2012: 119), levando à percepção de que “somos simultaneamente fruto e boca,
em unidade indivisível” (PAZ, 2012: 143). O sagrado, seguindo a linha de raciocínio traçada
por Paz (2012) – perceptivelmente elaborada em diálogo com as reflexões de Rudolf Otto –, é
compreendido como o grande “salto”, movimento em direção ao Outro que reconcilia a
humanidade consigo mesma, desencadeando, por isso, as sensações enumeradas por Otto em
seu apanhado a respeito da sacralidade. Nas palavras de Paz:
Assombro, estupefação, alegria, é muito rica a gama de sensações ante o Outro. Mas
todas elas têm uma coisa em comum: o primeiro movimento do ânimo é ir para trás.
O Outro nos repele: abismo, serpente, delícia, monstro belo e atroz. E essa repulsa é
sucedida pelo movimento contrário: não conseguimos tirar os olhos da presença, e
nos inclinamos para o fundo do precipício. Repulsa e fascinação. E depois, a
vertigem: cair, perder-se, ser um com o Outro. Esvaziar-se. Ser nada: ser tudo: ser.
Força de gravidade da morte, esquecimento de si, abdicação e, simultaneamente, um
instantâneo dar-se conta de que essa presença estranha também somos nós. Isso que
me repele também me atrai. Esse Outro também é eu. A fascinação seria
inexplicável se o horror diante da outridade não estivesse tingido, desde a raiz, pela
suspeita da nossa identidade final com aquilo que nos parece de tal maneira estranho
e alheio. A imobilidade também é queda; a queda, ascensão; a presença, ausência; o
temor, profunda e inevitável atração. A experiência do Outro culmina na experiência
da Unidade. Os dois movimentos contrários se implicam. No ir para trás já pulsa o
salto para a frente. O precipitar-se no Outro se apresenta como uma volta a algo do
qual fomos arrancados. Cessa a dualidade, estamos na outra margem. Já demos o
salto mortal. Já nos reconciliamos com nós mesmos (PAZ, 2012: 139-140).
A comunhão com o Outro, para o ensaísta mexicano, despertaria no ser os sentimentos
que, segundo Otto, fazem parte do numinoso. O encontro com o “totalmente outro” do
teólogo alemão é visto por Paz como um retorno momentâneo ao que ele considera nossa
“condição original”, somente possível através de uma travessia para uma “outra margem”,
quiçá a “terceira margem do rio” vislumbrada por Guimarães Rosa em uma de suas estórias
mais conhecidas. Reconciliação do homem consigo mesmo, o passo em direção ao Outro seria
53
um movimento atrativo, repulsivo e revulsivo, que se apresenta como um deparar-se com um
desconhecido formado pelos mais íntimos mistérios do ser. O arrebatamento provocado pelo
externo, neste caso, seria resultante do ato de deparar-se com a materialização das
inquietações que estão presentes no interno, em um incessante despertar provocado pelas
experiências relacionadas ao sagrado ou ao poético. Tão profunda e complexa experiência
transcendental se originaria, segundo Paz, de um assombro, muitas vezes causado pelo
contato com os mais singelos componentes do cotidiano:
Atravessamos todos os dias a mesma rua ou o mesmo jardim; todas as tardes nossos
olhos esbarram no mesmo muro vermelho, feito de tijolos e tempo urbano. De
repente, num dia qualquer, a rua dá para outro mundo, o jardim acaba de nascer, o
muro cansado se cobre de signos. Nunca o tínhamos visto e agora ficamos
assombrados por serem assim: a tal ponto e tão poderosamente reais. Sua própria
realidade compacta nos faz duvidar: são assim as coisas ou são de outro jeito? Não,
já tínhamos visto antes isso que vemos pela primeira vez. Em algum lugar, em que
talvez nunca tenhamos estado, já estavam o muro, a rua, o jardim. E a estranheza é
sucedida pela saudade. Parece que nos lembramos e queremos voltar para lá, para
esse lugar onde as coisas são sempre assim, banhadas por uma luz antiquíssima e, ao
mesmo tempo, recém-nascida. Nós também somos de lá. Um sopro nos golpeia a
testa. Estamos encantados, suspensos no meio da tarde imóvel. Adivinhamos que
somos de outro mundo. É a “vida anterior”, que retorna (PAZ, 2012: 140).
As divagações do mexicano colocam em foco a relevância do olhar nas experiências
de encontro com o “outro”. Da sua fala se pode concluir que os componentes de nosso
cotidiano são sempre os mesmos. Nosso olhar é que, surpreendentemente, capta-lhes uma luz
nunca antes percebida, descobrindo neles algo que é, ao mesmo tempo, novo e antigo. De
repente, o objeto cotidiano cobre-se com uma luz anosa, que lhe confere aparência nova; um
processo de estranhamento se sucede e o homem visualiza, a partir do olhar lançado ao
externo, o que está presente no mais íntimo de seu ser. Regresso do homem a si mesmo, as
experiências numênicas e poéticas são apresentadas por Paz como um encontro entre o
homem e “outro”, cuja presença é percebida através da angustiante sensação de sua ausência,
como acontece com a fome que incide na necessidade de encontrar alimento. O “outro” que
jaz oculto na instância mais profunda do ser, na compreensão de Paz, “está sempre ausente.
Ausente e presente”, pois “há um vazio, uma fossa aos nossos pés. O homem vive
descontrolado, angustiado, procurando esse outro que é ele mesmo. E nada pode trazê-lo de
volta a si, exceto o salto-mortal: o amor, a imagem, a Aparição” (PAZ, 2012: 141). Este salto
é sempre um passo em direção ao “Outro”, impulsionado pela nossa sensação de
incompletude e sede de transcendência. Na visão de Octavio Paz, a experiência do sagrado
“não é tanto a revelação de um objeto externo a nós – deus, demônio, presença alheia –, mas
54
um abrir nosso coração ou nossas vísceras para que surja esse “Outro” escondido" (PAZ,
2012: 147). Dessa forma a revelação poderia ser compreendida como “uma abertura do
homem para si mesmo”, uma vez que ele “não está “suspenso na mão de Deus”, Deus é que
jaz oculto no coração do homem” (PAZ, 2012: 148).
Acompanhando os trilhos abertos pelas reflexões de Otto, Octavio Paz acredita que o
divino “concentra em sua forma numinosa a plenitude do ser”, haja vista que o numinoso
pode ser definido como o “augusto”, “noção que transcende as ideias de bem e de
moralidade”, exigindo para si veneração e obediência a partir do sentimento de criatura que
inspira no ser. O pecado original, sob esta perspectiva é visto como índice que, justificando a
mortalidade humana, impõe a veneração de divindades como caminho válido para a tentativa
de alcançar o pleno ser. No entender de Octavio Paz,
Para ser; o homem tem de propiciar a divindade, isto é, apropriar-se dela; mediante a
consagração o homem tem acesso ao sagrado, o pleno ser. Tal é o sentido dos
sacramentos, particularmente o da comunhão. E este é também o objeto último do
sacrifício: uma propiciação que culmina em uma consagração. Mas não basta o
sacrifício de outros. O homem é “indigno de se aproximar do sagrado”, em virtude
de sua falta original. A redenção – o Deus que mediante o sacrifício nos devolve a
possibilidade de ser – e a expiação – o sacrifício que nos purifica – nascem desse
sentimento de indignidade original. A religião afirma assim que culpabilidade e
mortalidade são termos equivalentes. Somos culpados porque somos mortais. Pois
bem, a culpa exige a expiação; a morte, a eternidade. Culpa e expiação, morte e vida
eterna formam duplas que se completam [...] (PAZ, 2012: 153).
Sendo, nas palavras de Paz (2012: 154), “perpétua possibilidade de queda ou
salvação”, o homem sente a necessidade de se manter próximo das entidades que diviniza, em
uma busca pela sacralidade. Sua falta original impede-o de unir-se definitivamente ao pleno
ser e, nesse contexto, somente uma aproximação momentânea torna-se possível. Daí a
importância das imagens construídas pelo poeta, das experiências numênicas vivenciadas
furtivamente pelo homem, das narrativas que propagam a ideia de um tempo original –
espécie de idade áurea –, em um movimento de projeção dos desejos humanos no qual aquilo
que o homem almeja como ponto de chegada é indicado como sendo seu ponto de partida, ou
seja, é sugerido como um “Éden” de onde toda a humanidade foi banida devido à falta
original que legitima a sua mortalidade.
A sede humana por transcendência é uma força que pode impulsionar o ser para o
interior de um templo ou para as páginas de um livro, a depender de suas vivências e
consequentes convicções. Em qualquer das possibilidades citadas, há sempre o encontro com
a efígie do Outro, resultante da superação das fronteiras que demarcam os limites do si
mesmo, em ato direcionado a outra margem da existência – travessia muitas vezes mediada
55
por objetos, palavras ou intervenções de um líder comunitário que atua no sentido de
interpretar e tornar possíveis às experiências religiosas de uma determinada comunidade. Tal
mediador ocupa um espaço limítrofe entre humano e sagrado, sendo, por vezes, considerado
portador de forças místicas capazes de invocar as ações das divindades para o alcance de
determinados fins. Tamanho poder de intervenção nas vivências de uma comunidade confere
ambivalência à figura do mediador religioso: por um lado ele é visto como um homem com
maior capacidade de comunicação com o transcendente e, em decorrência disso, mais
possibilidades de fazer serem ouvidas as preces e desejos dos membros da comunidade; por
outro, ele é aquele cuja força é respeitada e temida, haja vista a sua mesma capacidade de
canalizar o poder das divindades a seu favor. Interessante é observar que um mesmo mediador
religioso pode ser tomado como sacerdote sagrado ou feiticeiro perverso dependendo da ótica
adotada pelos que ponderam sobre as suas relações com a sacralidade. Não é exagerado dizer
que “magia é sempre a religião do outro” 13
, no sentido de que as expressões religiosas
incompreendidas tendem a ser apontadas como práticas de feitiçaria, sendo, desse modo, o
ponto de vista do analista o que determina se ele está diante de um sacerdote ou de um
feiticeiro. É muito difundida a crença de que a magia desenvolve a face negativa da
experiência numênica, ao passo que a religião cultiva a positiva. Essa é, inclusive, como
observa Antonio Magalhães (2008: 40), uma das convicções presentes no exercício teológico
de Rudolf Otto, que deixa registrado em seu estudo o estabelecimento de uma distinção entre
os aspectos positivo e negativo da experiência numênica.
2.3. Cruzamentos entre literatura e sagrado
Discorrer sobre os cruzamentos entre literatura e sagrado é, antes de tudo, refletir
sobre enlaces presentes no campo mais profundo da condição humana. Religião e literatura,
sagrado e poesia, símbolo e palavra se apresentam para a humanidade como vias de acesso à
transcendência. Todos esses elementos têm em comum o fato de impulsionarem a
humanidade para além de sua condição, amenizando as dores ocasionadas pelas sensações de
finitude e desamparo, presentes desde sempre na consciência do homem e responsáveis pela
procura de forças que possibilitem a travessia para outra margem da vida, na qual seja menos
dolorosa a constatação de ser somente passagem em um mundo regido por forças colossais.
Seja através de suas expressões artísticas, seja através de suas divagações filosóficas, o
13
Essa é uma afirmação feita em aula pelo professor Antonio Carlos de Melo Magalhães.
56
homem sempre externou o seu ímpeto de se sentir agente transformador em um mundo cujos
fenômenos, por vezes, ultrapassam os limites de sua compreensão e seu potencial de
dominação. A incontornável limitação humana apresenta-se como ponto de partida para as
expressões humanas mais complexas: arte, religião e poesia atravessaram os tempos
justamente por constituírem experiências fundamentais através das quais o homem vai ao
encontro do Outro, em uma interminável travessia de si mesmo, sempre impulsionada pelo
signo da ausência resultante da incompletude humana. As expressões do humano citadas
possuem muitos elementos em comum. O mais significativo deles, provavelmente, refere-se
ao uso da linguagem, que, sem dúvidas consiste em um lugar comum entre literatura e
sagrado. A arte presente nos templos sagrados, assim como a poesia presente nos textos
clássicos de muitas tradições religiosas, somada a constante presença de componentes do
cenário religioso na gênese dos textos artísticos, são indícios do profundo diálogo que se
estabelece entre arte e sagrado, sobretudo no que se refere ao uso da linguagem enquanto
elemento basilar em torno do qual ambos se desenvolvem. Não se pode deixar de observar
que os grandes textos sagrados são poemas.
Literatura e religião, arte e sagrado, têm sua origem na consciência de incompletude
que acompanha a humanidade desde o berço. Não por acaso, uma das primeiras palavras
proferidas pelo homem exige do aparelho fonador movimentos muito semelhantes aos
realizados no processo de sucção do seio materno. Como observa Alfredo Bosi (2000: 55),
“na falta da sucção, a criança reproduz o gesto bucal, para exprimir mediante a voz o seu
desejo. A primeira palavra nasceria de um ato de suplência” (BOSI, 2000: 55). Suplência que
se dá mediante o uso do verbo para a expressão do desejo. Uma breve observação dos
designativos empregados pelo homem para nomear a sua progenitora traz à tona a constante
associação de fonemas bilabiais a sons vocálicos, anasalados ou não, que remete aos
movimentos realizados pela boca ao sugar o leite materno14
. Ao se dar conta da sua condição
de dependência para a satisfação de seu desejo mais imediato – a alimentação –, o bebê
tentaria suprir a sua carência invocando o ser capaz de sanar as suas necessidades, em um
movimento em direção ao outro que é mediado pelo uso da linguagem e surge como primícia
de uma constante comportamental que o acompanhará ao longo da vida, pois esse gesto se
14
Atente-se para o fato de que à palavra “mãe”, da língua portuguesa, correspondem os termos “madre” e
“mamá”, em espanhol, “mama”, em alemão, “maman”, em francês, “mother” ou “mom”, em inglês, “mamma,
em italiano, “mamo”, em polonês e “мамa”, em russo. Os diferentes termos, apesar de suas variações, compõem-
se a partir da produção de um som consonantal, que implica na união dos lábios, e um som vocálico, que faz
necessária a abertura da boca, de modo a reproduzir os movimentos realizados pela criança no ato obtenção de
alimento nos primeiros dias de vida.
57
repetirá incessantemente durante o seu desenvolvimento, amadurecimento e velhice,
materializando-se através de formas de comunicação mais elaboradas, que se assemelham por
partirem de tentativas de preenchimento de um vazio ineludível. Como diz Octavio Paz, “a
falta é a nossa condição original porque originariamente somos carência de ser” (PAZ, 2012:
156). A tentativa de suprir as carências humanas está sempre ligada ao encontro com o outro,
personificado na figura parental, nos primeiros dias de vida, e amplificado à medida que se
complexificam as relações sociais e os desejos que acompanham o desenvolvimento humano.
A linguagem surge, dessa maneira, como instrumento que faculta a nutrição da carne e
do espírito. O trabalho conjunto dos órgãos do corpo no funcionamento do aparelho fonador
aponta para a relevância de seu uso na sobrevivência humana. Sobrevivência que passa
necessariamente pela expressão dos desejos e a busca de completude e saciedade somente
possíveis através da comunicação com o Outro – personificado em figuras que nos dispensam
afeto, na infância, compreensão, na adolescência, amor, na idade adulta, consolação e alento,
durante toda a vida. Como observa Octavio Paz,
A palavra é o próprio homem. Somos feitos de palavras. Elas são a nossa única
realidade ou, pelo menos, o único testemunho da nossa realidade. Não há
pensamento sem linguagem, tampouco objeto de conhecimento: a primeira coisa que
o homem faz com uma realidade desconhecida é nomeá-la, batizá-la (PAZ, 2012:
38).
A nossa compreensão passa necessariamente pela linguagem, uma vez que, como já
enfatizou Magalhães, “compreendemos mediante as palavras que estão no nosso mundo. Nada
mais bíblico: palavras são as coisas e as pessoas e pelas palavras criamos o mundo,
ordenamos o caos e damos nomes novos às situações e pessoas” (MAGALHÃES, 2000: 158).
Quando se tem em conta que a religião nasce, conforme indicam os escritos de
Magalhães (2012: 33-34) já citados ao longo deste capítulo, com o reconhecimento do ser
para a morte, como uma espécie de tomada de consciência das limitações de nossa condição
impostas pela finitude, percebe-se a pertinência da afirmação de Alfredo Bosi de que “a
poesia que se faz depois da queda é linguagem da suplência” (BOSI, 2000: 144), pois o fazer
poético posterior à consciência do ser para a morte está sempre ligado à sensação de
incompletude que perfaz o humano e o diferencia do divino. A poesia vive, segundo Octavio
Paz,
nas camadas mais profundas do ser, enquanto as ideologias e tudo o que
denominamos ideias e opiniões são os estratos mais superficiais da consciência. O
poema se alimenta da linguagem viva de uma comunidade, de seus mitos, seus
sonhos e suas paixões, ou seja, de suas tendências mais secretas e poderosas (PAZ,
2012: 48).
58
Dessa forma, é natural que as maiores e mais recorrentes inquietações humanas
adquiram centralidade no território poético, já que o poeta é aquele que “recua na correnteza
da linguagem e bebe na fonte original”, colocando a sociedade em confronto com “os
fundamentos de seu ser, com sua palavra primeira” (PAZ, 2012: 49), verbo que quando
primordialmente proferido resultou na criação do próprio homem. É impossível não perceber
nas mitologias a relevância atribuída à palavra. As figuras divinas são aquelas que constroem
realidades a partir do uso do verbo. O fiat lux presente nas narrativas cristãs é somente um dos
exemplos que apontam para o poder constitutivo do verbo e deixa evidente a ideia de que
Ninguém pode escapar da crença no poder mágico das palavras. Nem aqueles que
desconfiam delas. A reserva diante da linguagem é uma atitude intelectual. Só
medimos e pesamos as palavras em certos momentos; passado esse instante,
devolvemos-lhes o seu crédito. A confiança na linguagem é a atitude espontânea e
original do homem: as coisas são o seu nome. A fé no poder das palavras é uma
reminiscência de nossas crenças mais antigas: a natureza é animada; cada objeto tem
uma vida própria; as palavras, que são réplicas do mundo objetivo, também são
animadas. A linguagem, como o universo, é um mundo de chamadas e respostas;
fluxo e refluxo, união e separação, inspiração e expiração. Algumas palavras se
atraem, outras se repelem e todas se correspondem. A fala é um conjunto de seres
vivos movidos por ritmos semelhantes aos ritmos que governam os astros e as
plantas (PAZ, 2012: 58).
Não é por acaso que todas as tradições religiosas se edificam mediante o uso da
linguagem. Mitos, ritos, crenças, lendas, orações e outras práticas que perfazem o universo
religioso constroem-se a partir da seleção e combinação de palavras, conferindo força a
premissa de que a confiança no poder dos vocábulos é uma das crenças humanas mais antigas
que, mesmo após a propagação dos estudos da linguagem que demonstram a complexidade
dos atos de enunciação e ressaltam que a palavra, enquanto signo, é uma “arena” 15
, preserva
o seu poder de influência no agir humano. As invocações e até mesmo as restrições
vocabulares que acompanham a propagação de saberes relacionados ao sagrado são indícios
que apontam para a ideia de que há uma união entre as palavras e aquilo que elas designam. A
crença na força da palavra influi na composição do repertório vocabular dos fiéis a
determinada tradição religiosa, muito frequentemente, propagando termos de invocação aos
santos/deuses e incentivando a reserva diante do uso das designações das entidades as quais se
atribui o poder de influenciar negativamente o agir humano.
15
De acordo com Bakhtin (2009: 67), “cada palavra se apresenta como uma arena em miniatura onde se
entrecruzam e lutam os valores sociais de orientação contraditória. A palavra revela-se como produto da
interação viva das forças sociais”.
59
Octavio Paz (2012) chama a atenção para os diálogos entre literatura e sagrado,
ressaltando que “a poesia é metamorfose, mudança, operação alquímica, e por isso faz
fronteira com a magia, a religião e com outras tentativas de transformar o homem e fazer
“deste” e “daquele” o “outro” que é ele mesmo” (PAZ, 2012: 119). Fundamentada no uso da
linguagem, a poesia quando verbalmente expressa surge, sobretudo no interior do texto
literário, como uma alquimia desenvolvida a partir do uso da palavra. Em meio à amplamente
propagada crença nos poderes contidos no verbo, o poeta aparece como o mago que se
apropria da palavra para mediante o seu uso conferir-lhe nuances únicas – sentidos que se
metamorfoseiam a cada nova leitura, compondo novas roupagens a partir de vestes antigas,
em um fazer que é mágico.
Ao colocar em tela o poder transformador da poesia, Paz insiste na ideia de que “a
poesia leva o homem para fora de si e, simultaneamente, o faz regressar ao seu ser original;
volta-o para si. O homem é a sua imagem: ele mesmo e aquele outro. Através da frase que é
ritmo, que é imagem, o homem – esse perpétuo chegar a ser – é. A poesia é entrar no ser”
(PAZ, 2012: 119). Neste sentido, o ser finito e incompleto, ao imergir em um tempo
arquetípico fundado pela revelação poética que o texto literário condiciona, experiencia um
momento de plenitude que o faz regressar, furtivamente, ao seu estado original, deparando-se
com a efígie do outro que é ele mesmo e, por conseguinte, experimentando o convívio com as
mais exigentes verdades, que, como já sugeriu Alfredo Bosi (1996: 27), têm na literatura,
muitas vezes, o seu maior e mais completo expoente.
Para Octavio Paz,
A operação poética não é diversa do conjuro, do feitiço e de outros procedimentos
da magia. E a atitude do poeta é muito semelhante à do mago. Os dois utilizam o
princípio da analogia; os dois agem com fins utilitários e imediatos: não se
perguntam o que é o idioma ou a natureza, mas se servem deles para seus próprios
fins. Não é difícil citar outra marca: magos e poetas, ao contrário de filósofos,
técnicos e sábios, extraem seus poderes de si mesmos (PAZ, 2012: 60).
A similaridade entre as práticas relacionadas ao sagrado e a operação poética confere
visibilidade ao fato de que poesia e religião brotam da mesma fonte. Como outrora disse o
ensaísta mexicano citado, “o homem imagina-se; e ao imaginar-se ele se revela” (PAZ, 2012:
143). A arte literária é um espaço em que crítica e criatividade assumem posições centrais e,
em virtude disso, é natural que o mais profundo do ser humano venha à tona através da
operação poética que, ao constituir-se como espaço em que a imaginação alça voos mais altos,
é também o lugar em que se amaina a censura que impede o homem de expor seus segredos
inconfessáveis. O poeta é aquele que, à maneira do mago, serve-se da linguagem e da
60
natureza para fins particulares, dizendo muitas vezes “não” a ideologias e convenções sociais
vigentes em seu tempo para, dessa maneira, dizer “sim” aos desejos humanos. Seu trabalho
com a linguagem passa necessariamente pelas inquietações mais profundas do ser, dentre as
quais uma das mais recorrentes refere-se ao convívio com a sacralidade e a ânsia de escapar à
efemeridade inerente à condição humana. Compreende-se, a partir de tais reflexões, que o
texto literário constitui uma privilegiada via de acesso aos sentimentos que perpassam as
experiências numênicas. Se o fenômeno religioso se constitui, conforme enunciam Rudolf
Otto (2007) e Octavio Paz (2012), a partir de gestos humanos conscientes e inconscientes,
sendo por isso muito mais sentido que compreendido, não se pode esquecer que a arte literária
é uma elaboração consciente de espaços ficcionais em que “o inconsciente aflora”, como nos
ensina Adélia Bezerra de Meneses (1995: 13), possibilitando por isso a apreciação de
operações conscientes e inconscientes que embasam as práticas religiosas humanas e o
convívio com o sagrado.
Segundo Octavio Paz,
A experiência poética, como a religiosa, é um salto-mortal: uma mudança de
natureza que é também uma volta à nossa natureza original. Encoberto pela vida
profana ou prosaica, de repente o nosso ser recorda sua identidade perdida; e então
aparece, emerge, esse “outro” que somos. Poesia e religião são revelação. Mas a
palavra poética não precisa da autoridade divina. A imagem se sustenta sozinha, sem
necessidade de recorrer à demonstração racional nem à instância de um poder
sobrenatural: é a revelação de si mesmo que o homem faz a si mesmo. A palavra
religiosa, pelo contrário, pretende revelar-nos um mistério que é, por definição,
externo a nós. Essa diversidade torna ainda mais perturbadoras as semelhanças entre
religião e poesia. Como, se parecem nascer da mesma fonte e obedecer à mesma
dialética, as duas se bifurcam até cristalizar-se em formas irreconciliáveis (PAZ,
2012: 144).
Poesia e religião apresentam-se como desvendamentos do humano que conduzem a
uma imersão nas águas mais profundas do ser, pensando sobre as íntimas inquietações do
homem. Nesse sentido, oferecem o alento e a “felicidade da palavra que nos faltava e nos é
dada” – na feliz expressão de Leyla Perrone-Moisés (1998: 214) –, fazendo-se revelação da
condição original humana e, por isso, ajudando a suprir as suas dolorosas lacunas. Seus
desdobramentos em meio à sociedade, como é observado por Paz (2012), as distanciam,
embora não consigam eliminar as perturbadoras semelhanças existentes entre ambas. Formas
irreconciliáveis em virtude dos papéis que lhe são atribuídos em sociedade, as expressões
religiosas e poéticas caminham lado a lado e estabelecem importantes diálogos, ainda que as
veredas que compõem suas trajetórias se bifurquem. Religião e poesia surgem, dessa maneira
como domínios limítrofes que possuem vários pontos de intersecção, pois, como enfatiza Paz:
61
Tal como a religião, a poesia parte da situação humana original – o estar aí, o saber-
nos lançados nesse aí que é o mundo hostil ou indiferente – e do fato que mais que
qualquer outro a torna mais precária: sua temporalidade, sua finitude. Por uma via
que, à sua maneira, também é negativa, o poeta chega à margem da linguagem. E
essa margem se chama silêncio, página em branco. Um silêncio que é como um
lago, uma superfície lisa e compacta. Dentro, submersas, estão as palavras. E é
preciso descer, ir ao fundo, silenciar, esperar. A esterilidade antecede a inspiração,
como o vazio antecede a plenitude. A palavra poética surge após eras de seca. Mas,
qualquer que seja seu conteúdo expresso, sua significação concreta, a palavra
poética afirma a vida desta vida. Quero dizer: o ato poético, o poetizar, o dizer do
poeta – independentemente do conteúdo particular desse dizer – é um ato que não
constitui, pelo menos originalmente, uma interpretação, e sim uma revelação da
nossa condição (PAZ, 2012: 155).
Para o poeta mexicano, embora literatura e sagrado sejam tentativas de suplência da
falta original presente na gênese do humano, uma diferença fundamental ente ambas residiria
na forma como lidam com a finitude, haja vista que
Ao definir o “pouco ser” do homem com o pleno ser de Deus, a religião postula uma
vida eterna. Assim ela nos redime da morte, mas faz da vida terrestre uma longa
pena e uma expiação da falta original. Ao matar a morte, a religião desvive a vida. A
eternidade desabita o instante. Porque vida e morte são inseparáveis. A morte está
presente na vida: vivemos morrendo. E cada minuto que morremos é vivido. Ao
tirar-nos o morrer, a religião nos tira a vida. Em nome da vida eterna, a religião
afirma a morte desta vida (PAZ, 2012: 154).
Já a experiência poética é vista pelo autor como,
uma revelação da nossa condição original. E essa revelação sempre desemboca
numa criação: a de nós mesmos. A revelação não descobre algo externo, que estava
ali, alheio: o ato de descobrir implica a criação do que vai ser descoberto, o nosso
próprio ser. E nesse sentido pode-se dizer, sem temor de cair em contradição, que o
poeta cria o ser. Porque o ser não é algo dado, no qual se apoia o nosso existir, mas é
algo que se faz. O ser não pode se apoiar em nada, porque o nada é seu fundamento.
Então, não há outro recurso senão captar a si mesmo, criar-se a cada instante. O
nosso ser só consiste em uma possibilidade de ser. Só resta ao ser o ser-se. Sua falta
original – ser fundamento de uma negatividade – o obriga a criar a sua abundância
ou plenitude. O homem é carência de ser, mas também conquista do ser. O homem é
impelido a nomear e criar o ser. Esta é sua condição: poder ser. E nisso consiste o
poder da sua condição. Em suma, nossa condição original não é só carência nem
tampouco abundância, mas possibilidade. Realizar essa possibilidade é ser, criar a si
mesmo. O poeta revela o homem criando-o. Entre o nascer e morrer há o nosso
existir, em seu transcurso vislumbramos que a nossa condição original, se é
desamparo e abandono, é também a possibilidade de uma conquista: a de nosso
próprio ser (PAZ, 2012: 161- 162).
Dessa forma, nota-se que, na concepção de Octavio Paz, embora partam da mesma
sensação de incompletude e passem pela dolorosa percepção da finitude humana, poesia e
religião percorrem veredas diversas no sentido de que a primeira é uma imersão no ser, ou
seja, um mergulho no humano que culmina em um ato criativo no qual se fazem visíveis as
62
possibilidades que constituem nossa condição original. Já a segunda faz o percurso inverso no
sentido de que se move em direção a algo externo, situado em uma instância fora do alcance
humano, cujo acesso é somente possível através da restrição das possibilidades que
constituem o viver. Enquanto a primeira propõe a conquista do pleno ser mediante a
consagração do instante, a segunda defende a renúncia a determinados aspectos do humano
em função de uma consagração posterior à vida. É precisamente a partir dessa enfática
distinção estabelecida por Paz (2012) que se fazem mais nítidos os enlaces e embates que
marcam as relações entre poesia e religião.
Suzi Sperber (2011: 14) chama a atenção para o fato de que o sagrado “não existe em
si mesmo. É um estado, ou é um anelo, apreensíveis conforme o tratamento dado à
caracterização de personagens, espaços, relações, territórios, sempre mediante a palavra”. A
palavra, na compreensão da pesquisadora, é elemento determinante na constituição das
experiências numênicas porque a ela cabe o “poder de nomear e ocultar” (SPERBER, 2011:
14), ou seja, a faculdade de reconhecer, negar e legitimar o vivido.
Tendo-se em vista que a literatura “se encontra nas fronteiras dos saberes,
incorporando crítica e estética, juízo e simbolismo, história e mito, ciência e poesia”
(MAGALHÃES, 2000: 123), considera-se que o texto literário enquanto constructo de
palavras é um espaço para o qual converge o conhecimento verdadeiro das coisas que é
inerente ao belo, como propõe Antonio Magalhães (2000). Quando Octavio Paz afirma que ao
se imaginar o homem se revela (PAZ, 2012: 143), ele traz à tona o fato de que algumas das
experiências humanas mais importantes só podem ser apreciadas através da arte, sobretudo
através da arte da palavra. As experiências religiosas humanas, bem como as relações entre
homem e sagrado, que se circunscrevem cada vez mais ao domínio particular da vida, só
podem ser analisadas de modo mais detido quando nos debruçamos sobre sua representação
artística. Ao ser expresso por meio de palavras, o convívio humano com o sagrado torna-se
visível e, desse modo, pode ser melhor compreendido e analisado em sua pluralidade e
complexidade. Como afluentes de um mesmo rio, literatura e sagrado nutrem-se de uma força
em comum, se entrecruzam, se iluminam e apontam sempre para uma terceira margem da
existência humana.
Adélia Bezerra de Meneses observa que “a sensação obscura de que, na poesia, há
algo que escapa ao racional, há um “mistério” não desvendado, sempre intrigou os humanos”
(MENESES, 1995: 14). A sensação alimentada pelos homens em relação à poesia assemelha-
se aos sentimentos destacados por Otto (2007) e Paz (2012) em relação ao sagrado e a
63
similaridade entre as definições das impressões sensoriais despertadas por ambos os aspectos
do humano, muito provavelmente, devem-se ao fato de que eles hauriram de uma mesma
nascente, como já se tentou demonstrar.
A literatura apresenta-se, segundo Adélia Meneses, como uma “experiência de
transgressão dos próprios limites, de viver vicariamente outras vidas” revelando “uma
realidade que é, antes de tudo, a realidade da alma humana” (MENESES, 1995: 16). Neste
sentido, quando se tem em consideração que aquilo que “dá o vetor à caminhada do homem é
a procura da verdade sobre si próprio” (op. cit.: 16), que tem na busca do humano a sua pedra
angular, é forçoso reconhecer que “o poder que o poeta tem de lidar com a palavra faz dela
um instrumento de desvendar a realidade, de romper o silêncio” (op. cit.: 33), trazendo à baila
aspectos fundamentais do homem, visibilizados quando convertidos em matéria-prima do
fazer poético.
Northrop Frye enfatiza
O homem, ao contrário dos animais, não está nu nem imerso na natureza. Ele está
dentro de um universo mitológico, um corpo de pressupostos e crenças
desenvolvidas a partir de suas inquietações existenciais. De tudo isso, a maior parte
é inconsciente. Isso significa que nossa imaginação pode reconhecer partes desse
corpo, quando apresentados na arte ou na literatura, sem que compreendamos o que
na verdade reconhecemos. Na prática, o que podemos reconhecer desse corpo de
inquietações vem de um condicionamento social e de um legado cultural. Sob este
legado deve haver outro, de raiz psicológica; de outro modo seriam ininteligíveis
para nós formas de cultura e de imaginação que vivessem fora de nossa própria
(FRYE, 2004: 17-18).
Acreditamos, com este autor e com Otto (2007) e Paz (2012), que há uma
fundamentação inconsciente nas práticas religiosas que estabelecem as relações entre homem
e sagrado, assim como no fazer literário, como é observado por Meneses (1995). Por isso,
entendemos que ao perscrutar a arte literária na tentativa de perceber traços formadores da
visão mística das personagens nela presentes se está dando um passo importante na
compreensão das movimentações conscientes e inconscientes que configuram as relações
entre homem e sagrado, promovendo, portanto, uma reflexão sobre aspectos fundamentais
que permeiam as vivências religiosas.
A literatura, como nos ensina Leyla Perrone-Moisés, “aponta sempre para o que falta,
no mundo e em nós” (PERRONE-MOISÉS, 2006: 104), trazendo à luz desejos, anseios,
angústias e inquietações que são inerentes à condição humana e que, por isso mesmo,
atravessam os tempos e ultrapassam as fronteiras que o homem tenta fixar para demarcar
divisões entre os povos.
64
No capítulo seguinte, empreendemos uma leitura de “São Marcos” mobilizados pelas
elucidações dos estudiosos até aqui mencionados. Na análise empreendida, tentamos
demonstrar a relevância das questões teóricas abordadas na compreensão das experiências
religiosas contemporâneas.
65
CAPÍTULO 3
Nas veredas de Rosa: Espaços da sacralidade
São Marcos é uma narrativa de João Guimarães Rosa que evidencia a habilidade do
escritor em entrecruzar cosmovisões na composição de seus escritos e demonstra o quão
relevante é a “selvagem religiosidade”, cuja presença nos textos rosianos é ressaltada por
Nelly Novaes Coelho (COELHO; VERSANINI, 1975), para a condução do projeto estético
do autor. Nessa estória, a perspicácia do homem que se aproxima da natureza com o intento
de concentrar-se em sua observação e estudo se justapõe ao olhar perplexo do ser fascinado
frente a uma flora que lhe causa um misto de admiração e medo, diante da qual suas tentativas
de compreensão parecem fios condutores a um complexo labirinto de incertezas. As
armadilhas encerradas pelas tentativas de análise mediadas pelos sentidos são visíveis desde
as primeiras linhas do relato, quando são evocados os seguintes versos de uma cantiga popular
para espantar males:
Eu vi um homem lá na grimpa do coqueiro, ai-ai,
não era homem, era um coco bem maduro, oi-oi.
Não era coco, era a creca de um macaco, ai-ai,
não era a creca, era o macaco todo inteiro, oi-oi (ROSA, 2001: 261).
A referência à cantiga é um índice que remete aos enlaces entre popular e erudito na
ficção de Rosa, pois os versos que a constituem surgem como convocação das vozes
populares para a tessitura do texto literário. No canto para espantar males, tem-se a constante
imagem de algo que se assemelha a uma coisa, mas na verdade é outra. Seus versos denotam a
impossibilidade de apreensão da verdadeira natureza das coisas, denunciando a imprecisão
das percepções humanas em relação ao mundo e indo ao encontro do que é constatado por
Costa Lima (2006) e problematizado por Magalhães e Portella (2008), quando estes colocam
em cena a porosidade das verdades que asseguram as convicções humanas. Sobressai-se, nos
versos, o registro de impressões equivocadas a respeito de algo visto em meio à natureza:
homem, coco, macaco. Os dois primeiros elementos deságuam no terceiro, tanto do ponto de
vista linguístico (note-se que a palavra “macaco” possui fonemas presentes nas outras duas –
„homem‟ e „coco‟), quanto do ponto de vista imagético (haja vista que o macaco assemelha-se
ao homem e, visto de longe, no alto de um coqueiro, pode ser confundido com seu fruto).
A cantiga, ao referenciar algo que é visto como uma coisa, mas é sempre outra, aponta
para as limitações da visão humana, colocando em questão a fragilidade das certezas
resultantes das percepções sensoriais. O questionamento de certezas é uma das forças que
66
impulsionam a narrativa em análise, pois o narrador-personagem constrói um relato em que
nenhuma informação é segura. Até o seu nome é e, ao mesmo tempo, não é: ele proclama-se
xará do João de Barro, mas faz questão de salientar que na narrativa se chamará também José
(ROSA, 2001: 265); e, com isso, corrobora a sugestão de algo que engana pela aparência,
sendo sem ser, o que acentua a ambiguidade do narrado. A questão do nome do narrador e
suas insinuações em relação a ele são, inclusive, um aspecto digno de nota na estória, pois,
como já enfatizou Antonio Candido, “os ritos de passagem comportam muitas vezes a
atribuição ou acréscimo de um nome, ou revelação do nome verdadeiro, conservado secreto”
(CANDIDO, 1978: 133); e é justamente da descrição de uma espécie de passagem ou
travessia que o relato do narrador-personagem dá conta, de maneira que as insinuações em
torno do nome podem ser encaradas como indícios da transformação iniciática sofrida pelo ser
que rememora o vivido. Estamos, pois, diante de dois homens, o que viveu os fatos relatados
e aquele que os narra, estando ambos distanciados pelas experiências oportunizadas pela vida.
Peça mais trabalhada de Sagarana (2001), como o próprio Guimarães Rosa
confidencia a João Condé, em carta publicada pela Editora Nova Fronteira nas primeiras
páginas do livro citado, “São Marcos” é um mosaico para o qual convergem crenças religiosas
de origens diversas. A sacralidade que embebe o narrado é anunciada desde o título do texto –
São Marcos –, em que se nota a menção a uma entidade sacralizada – haja vista o emprego do
termo “são” junto ao substantivo próprio – a qual a cultura popular credita o poder de intervir
no destino dos homens.
O texto inicia-se com a expressão “naquele tempo”, que pressupõe um considerável
distanciamento entre o momento presente do narrador e o momento em que transcorrem os
acontecimentos contados. Disso decorre uma ambientação narrativa que se distancia das
experiências convencionais e confere ao que é contado um caráter de exemplaridade, à
maneira das grandes parábolas. Segue-se à expressão citada (naquele tempo), a confissão do
narrador de que, na época em que se desenvolveram os acontecimentos relatados, ele morava
no Calango-Frito e não acreditava em feiticeiros. O uso de verbos no passado é um índice que
reforça a distância entre o ponto de vista do narrador no presente e a descrença pretérita
confessada nas primeiras linhas do relato, deixando evidente a transformação ocorrida na
maneira como o homem lida com as crenças predominantes em seu meio. Trata-se da história
de um observador que, com o intuito de admirar a natureza, seus seres e fenômenos, coloca-se
em contato com os habitantes do meio rural. Incrédulo, o homem ridiculariza e desafia João
Mangolô, negro conhecido por ser praticante de feitiçaria, e, em decorrência disso, acaba
67
ficando cego por alguns momentos devido a um castigo imposto pelo feiticeiro mediante a
recorrência ao voduísmo (ou “vuduísmo”, como prefere grafar Rosa na escritura de seu texto).
Ao longo do seu relato, o observador é enfático ao expor sua descrença em relação a
feiticeiros, embora, em gesto de contradição ao exposto, confesse carregar consigo um amplo
estoque de objetos com poderes de proteção contra os supostos “males” que o ameaçam nos
lugares pelos quais transita:
eu poderia confessar, num recenseio aproximado: doze tabus de não-uso próprio;
oito regrinhas ortodoxas preventivas; vinte péssimos presságios; dezesseis casos de
batida obrigatória na madeira; dez outros exigindo a figa digital napolitana, mas da
legítima, ocultando bem a cabeça do polegar; e cinco ou seis indicações de ritual
mais complicado; total: setenta e dois – noves fora, nada.
Além do falado, trazia comigo uma fórmula gráfica: treze consoantes alternadas com
treze pontos, traslado feito em meia-noite de sexta-feira da Paixão, que garantia
invulnerabilidade a picadas de ofídios: mesmo de uma cascavel em jejum, pisada na
ladeira da antecauda, ou de uma jararaca-papuda, a correr mato em caça urgente.
Dou de sério que não mandara confeccionar com o papelucho o escapulário em
baeta vermelha, porque isso seria humilhante; usava-o dobrado, na carteira. Sem ele,
porém, não me aventuraria jamais sob os cipós ou entre as moitas (ROSA, 2001:
261-262).
A passagem transcrita evidencia a grande quantidade de objetos de proteção portados
pelo narrador-personagem. A confissão de que acreditava nas forças protetoras dos artefatos
carregados é meio incoerente quando se leva em conta a sua anunciada descrença em
feiticeiros. E, tendo essa situação vista, o ser que conduz o relato pondera: “só hoje é que
realizo que eu era assim o pior-de-todos” (ROSA, 2001: 262).
Os instrumentos de proteção são acumulados aos montes pelo narrador, sempre em
proporções cautelosamente medidas. Os números se sobressaem na passagem citada como
norteadores da conduta humana diante dos objetos aos quais se atribui significação “mística”,
ocasionando a impressão de que o homem leva consigo os ingredientes de uma fórmula
mágica, que somente quando rigorosamente conjugados podem surtir o efeito desejado. Há
que se chamar a atenção para o lugar privilegiado que números e medidas constantes ocupam
na condução do projeto estético de Guimarães Rosa. Como um alquimista que se debruça
sobre suas fórmulas, o escritor confere mais valia às medidas numericamente representadas,
como se pode perceber ao analisar alguns registros escritos deixados pelo autor, assim como
algumas de suas composições em prosa poética.
3.1.Um mundo quantificado
Todas as coisas dispuseste com medida, e conta, e peso.
(Livro da Sabedoria 11: 21)
68
Talvez seja esta a marca de todas as religiões, por mais longínquas que estejam uma das outras: o
esforço para pensar a realidade toda a partir da exigência de que a vida faça sentido.
(Rubem Alves)
A existência do registro bíblico, em epígrafe, que enfatiza medida, número e peso
como variáveis fundamentais da criação divina denota a importância dos numerais na forma
como o homem religioso toma consciência do mundo e de sua própria condição, uma vez que
elege três noções fundantes, em geral numericamente demarcadas, como atributos de todas as
coisas tocadas pelas mãos divinas. Os numerais figuram na história da humanidade como
componentes organizacionais indispensáveis, cujas múltiplas associações a passagens
mitológicas e pressupostos basilares das crenças presentes nas diversas comunidades
religiosas obrigam-nos a desconfiar da “exatidão” normalmente atribuída a eles. O homem
percebe-se em um mundo quantificado e, em consequência disso, surge em suas práticas e
experiências a necessidade de demarcação numérica.
Qualquer leitura mais atenta dos escritos rosianos revela a proeminência dos números
em sua produção literária. Na já referida carta a João Condé, em que são desvendados alguns
detalhes concernentes ao trajeto composicional de Sagarana (2001), o autor chama a atenção
para o fato de que idealizou um livro com 12 novelas, que lhe ocuparam durante sete meses
de “deslumbramento” e eram escritas em cadernos de 100 folhas. A obra resultante deste
trabalho descansou durante sete anos e foi retrabalhada durante cinco meses “de reflexão e
lucidez” (ROSA, 2001: 25). É perceptível, nas revelações presentes na missiva, a relevância
que alguns números tinham para o escritor: 12 novelas, inicialmente, 7 meses de trabalho, 7
anos de descanso, 5 meses de revisão. Na história em torno da escritura do livro já se percebe
a recorrência a números que se presentificam nas estórias contidas em seu interior. Não por
acaso, o burrinho que assume posição de destaque na narrativa que abre o livro em questão
chama-se “Sete-de-Ouros.
Em “São Marcos” verifica-se que a insistente quantificação dos elementos
constitutivos do espaço intensifica a tonalidade mística do narrado. Em determinados
momentos da estória, como na passagem que transcrevemos no início deste capítulo – em que
são explicitados os objetos de proteção portados pelo narrador –, a demarcação de
quantidades é tão precisa que aproxima o discurso narrativo da exposição dos componentes de
uma fórmula mágica. Conforme já exposto em citação, acompanhavam o narrador em sua
imersão na mata:
“12 tabus de não-uso próprio;
69
8 regrinhas ortodoxas preventivas;
20 péssimos presságios;
16 casos de batida obrigatória na madeira;
10 outros exigindo a figa digital napolitana, mas da legítima, ocultando bem a cabeça
do polegar;
5 ou 6 indicações de ritual mais complicado.”
A soma de todos os elementos citados, salienta o narrador em tom jocoso, é “72, noves
fora, nada” (ROSA, 2001: 262). Ao revisar os números que determinam as proporções de
cada um dos ingredientes da receita, nota-se que o último componente da fórmula não é
quantificado com precisão: são cinco ou seis indicações de ritual mais complicado. A soma
feita pelo narrador só considera os números pares, rechaçando o número cinco. Se, tendo em
vista a imprecisão expressa no último tópico, consideramos o número 5, em lugar do 6, o
resultado da adição seria 71; a prova dos nove, desta feita, levaria ao número 8, que visto por
certo ângulo remete ao símbolo de infinito (∞). A operação matemática feita pelo narrador-
personagem induz o leitor a um resultado que é e não é. É preciso atentar para o fato de que o
resultado se legitima por uma soma forjada pelo contador da estória, e, por isso mesmo, é
digno de desconfiança. Na adição dos números apresentados, o nada dialoga com o infinito,
lembrando que o vazio também pode significar fome e sede, sendo o signo da ausência um
índice que prenuncia o sentimento de falta e, em decorrência disso, a necessidade de busca. A
expressiva quantidade de “amuletos” protetores com que o narrador procura se munir, de certa
forma, revela a intensidade de sua sede de transcendência. O nada se apresenta, no contexto
analisado, como indicação das infinitas possibilidades de procura. Vazio que, apesar das
numerosas tentativas de preenchimento, permanece como espaço em aberto. Indício de uma
intensa necessidade de transcendência que se insinua por meio da exposição de um amplo
rosário de contas formadas pelas crenças que o narrador carrega consigo, apesar de
aparentemente não querer assumi-las como suas. Esse movimento ambivalente em relação às
superstições expostas como pertencentes ao outro, ou, em outras palavras, tomadas de
empréstimo de um imaginário que o narrador não assume como sendo o seu, embora com ele
involuntariamente se identifique, faz-nos recordar as palavras de Octavio Paz:
Assombro, estupefação, alegria, é muito rica a gama de sensações ante o Outro. Mas
todas elas têm uma coisa em comum: o primeiro movimento do ânimo é ir para trás.
O Outro nos repele: abismo, serpente, delícia, monstro belo e atroz. E essa repulsa é
sucedida pelo movimento contrário: não conseguimos tirar os olhos da presença, e
nos inclinamos para o fundo do precipício. Repulsa e fascinação. E depois, a
vertigem: cair, perder-se, ser um com o Outro. Esvaziar-se. Ser nada: ser tudo: ser.
70
Força de gravidade da morte, esquecimento de si, abdicação e, simultaneamente, um
instantâneo dar-se conta de que essa presença estranha também somos nós. Isso que
me repele também me atrai. Esse Outro também é eu. A fascinação seria
inexplicável se o horror diante da outridade não estivesse tingido, desde a raiz, pela
suspeita da nossa identidade final com aquilo que nos parece de tal maneira estranho
e alheio. A imobilidade também é queda; a queda, ascensão; a presença, ausência; o
temor, profunda e inevitável atração. A experiência do Outro culmina na experiência
da Unidade. Os dois movimentos contrários se implicam. No ir para trás já pulsa o
salto para a frente. O precipitar-se no Outro se apresenta como uma volta a algo do
qual fomos arrancados. Cessa a dualidade, estamos na outra margem. Já demos o
salto mortal. Já nos reconciliamos com nós mesmos (PAZ, 2012: 139-140).
A diversidade de movimentos em relação ao outro, sugerida por Paz (2012), de certa
maneira, justifica a constatação do narrador de que só ao rememorar os acontecimentos é que
se dá conta de que, não querendo ser igual aos habitantes do lugar, era a contragosto o pior de
todos (ROSA, 2001: 262), pois, como explicita o poeta e ensaísta mexicano, a tentativa de
distanciamento em relação ao outro não impede o diálogo com ele e é muitas vezes
acompanhada de um forçoso salto em direção à outridade. E só ao se dobrar sobre seus atos
pretéritos o narrador é capaz de perceber que o desapego às crenças provenientes de uma
doutrina específica impõe-lhe a condição de migrante em meio aos territórios religiosos que
se constituem no contexto social pelo qual transita.
Na narrativa, a necessidade de quantificação se faz evidente a partir da referência a
alguns numerais amplamente significativos. O narrador carrega consigo: 13 consoantes
alternadas com 13 pontos, traslado feito em 69, em uma sexta-feira da paixão (ROSA, 2001:
262).
A recorrência ao 13, por si só, já é um índice bastante significativo, pois o número é
normalmente associado aos maus presságios e marca o fechamento de um ciclo e o início de
outro, simbolizando uma fuga à ordem e aos ritmos normais do universo e podendo, por isso
mesmo, representar um recomeço, como pontuam Chevalier e Gheerbrant (2015: 902-903). A
representação da morte como o décimo terceiro arcano do tarot é um dos elementos citados
por Chevalier e Gheerbrant (2015: 902-903) para ilustrar a carga semântica normalmente
conferida ao numeral. E, neste sentido, os números podem ser vistos, em “São Marcos”, como
demarcadores do compasso de um ritmo que desemboca em uma experiência numênica
tomada, pelo narrador, como divisor de águas em sua trajetória existencial.
Ainda no tocante aos numerais já mencionados, é necessário enfatizar que o número
69, que também compõe a ampla lista dos algarismos convocados para mensurar os elementos
presentes na narrativa rosiana, chama a atenção por se tratar de um múltiplo do número 3,
71
que, como demonstraremos a seguir, é um dos algarismos referenciados recorrentemente na
estória em foco.
Na apreciação do lastro simbólico agenciado pela narrativa, merece destaque a
recorrente utilização dos números 3 e 7. O primeiro deles aparece quando o narrador:
designa como Mato das Três Águas o lugar analisado em suas observações da natureza
(ROSA, 2001: 263);
enumera três premissas generalizantes que seriam os “mandamentos” do negro
(ROSA, 2001: 266);
faz referência a 3 águas presentes na clareira explorada: a lagoa grande e dois córregos
(ROSA, 2001: 278);
menciona 3 sendas, ou veredas, que conduzem ao interior da mata (ROSA, 2001:
278);
cita 3 clareiras, com 3 árvores maiores perto das quais todas as outras parecem
externar submissão (ROSA, 2001: 279);
destaca que as ferroadas das formigas encontradas no local machucam o suficiente
para doer 3 gritos (ROSA, 2001: 282);
ouve 3 vezes o dizer “Guenta o relance, Izé!” em 3 momentos nos quais eventos
insólitos se desenvolvem (ROSA, 2001: 265, 285, 289);
percebe 3 tons de azul no horizonte, após vivenciar uma experiência-limite (ROSA,
2001: 291).
Já o número 7 adquire proeminência quando o narrador:
faz menção ao horário em que boa parte dos acontecimentos ocorre (ROSA, 2001:
265);
explica que a oração de São Marcos é composta por 7 ave-marias retornadas (ROSA,
2001: 268);
destaca 7 rumores feitos pela correnteza de um riacho (ROSA, 2001: 279);
compõe um texto com 7 versos, ao elaborar uma espécie de poema com nomes dos
reis leoninos (ROSA, 2001: 274);
ressalta que a maior parte dos fatos transcorre em um dia de domingo – início da
semana, fim do tempo de descanso, primeiro ou sétimo dia da semana, a depender dos
critérios usados para realizar a contagem (ROSA, 2001: 262- 263);
72
menciona a boneca de cera usada para práticas voduístas por Cesária velha, uma das
personagens evocadas ao longo do texto, que foi confeccionada, segundo dizem, em 7
voltas de meia-noite (ROSA, 2001: 263).
Além dos números mencionados, merece também destaque, no texto de Guimarães, a
constante referência à meia-noite, que pode ser interpretada como uma sugestão da operação
matemática de divisão, mais especificamente a divisão por 2. Nesse quadro de referências
nota-se que:
a meia-noite é referida em mais de uma oportunidade, sobretudo quando o narrador
faz alusão a acontecimentos insólitos e/ou objetos que a eles se referem: a boneca de
cera usada para práticas voduístas por Cesária velha foi feita em 7 voltas de meia-noite
(ROSA, 2001: 263); o narrador também traz à tona a crença de que à meia-noite os
porcos viram fera (op. cit.: 267); Aurísio Manquitola, uma das personagens da
narrativa, afirma que, para fazer bom efeito, a oração de São Marcos precisa ser rezada
à meia-noite; supõe-se que Tião Tranjão, outra personagem do universo ficcional
arquitetado por Rosa, adquire força sobre-humana por proferir a reza de São Marcos à
meia-noite;
a sombra de um coqueiro divide precisamente ao meio a habitação de João Mangolô
(homem que o narrador acredita ser adepto às práticas de feitiçaria) (ROSA, 2001:
266);
uma lagoa diante da qual o narrador descansa é parcialmente iluminada pelos reflexos
do sol, parecendo dividida em duas (ROSA, 2001: 280);
A insistência em registrar numericamente os artefatos portadores de significação
religiosa ou aos quais se atribui o papel de mediação entre homem e sagrado, somada à
constância na quantificação pautada em certos números, confere ao texto um status místico
que, por um lado o aproxima das fórmulas mágicas utilizadas pelos magos e, por outro,
remete à precisão necessária para a execução dos rituais. É interessante observar que não
somente os elementos diretamente relacionados ao imaginário religioso são quantificados por
Guimarães Rosa através das cifras que destacamos, pois até mesmo o processo composicional
de Sagarana (2001), descrito pelo autor, revela a ênfase conferida por ele a alguns destes
números. Ganha visibilidade, em “São Marcos”, uma cenarização marcada por registros
matemáticos, na qual das árvores que compõem a paisagem ao fluxo de consciência dos
narradores (não somente o narrador-personagem assume o papel de contador de histórias, ao
73
longo da novela. Temos outras personagens que evocam relatos ao longo de suas falas) se
percebe a presença de um sugestivo lastro numérico.
Na narrativa, os algarismos evocados, é válido enfatizar, são tudo, menos exatos, pois
produzem uma ampla rede de significações apoiadas em seu valor simbólico. A recorrente
menção ao número 3, para começarmos por ele, é reflexo de uma série de fenômenos de
ordem social e religiosa que ao longo do tempo se edificaram em torno do algarismo. Como
observam Chevalier e Gheerbrant, “o três é um número fundamental universalmente. Exprime
uma ordem intelectual e espiritual, em Deus, no cosmo ou no homem”. “Sintetiza a triunidade
do ser vivo”, sendo considerado um número perfeito pelos chineses e fazendo-se fortemente
presente na maneira como o homem compreende e organiza o mundo ao seu redor
(CHEVALIER & GHEERBRANT, 2015: 899). Em seu dicionário de símbolos, Chevalier e
Gheerbrant destacam que o tempo, por exemplo, é triplo, pois se organiza em três instâncias
fundamentais: passado, presente e futuro. Além disso, no cristianismo a perfeição divina está
alicerçada em uma tríade: “Deus é Um em três Pessoas” (op. cit.: 899). Ainda no imaginário
cristão, os reis que se apresentam diante do Messias também são três e acredita-se que
simbolizam as três funções-chave a serem desempenhadas por Cristo: “Rei, sacerdote e
profeta” (op. cit.: 899). O próprio Cristo é aquele que ressuscita ao terceiro dia. Para além das
circunscrições do cristianismo, nota-se na mitologia greco-romana, a presença de três grandes
forças regentes do universo: Zeus, regente do céu e da terra; Posêidon, dos oceanos; Hades,
dos Infernos. Já na religião do antigo Irã tinha-se o intento de se estabelecer uma ordem em
torno da tríade “bom pensamento”, “boa palavra” e “boa ação” (op. cit.: 899). Segundo
destacam Chevalier e Gheerbrant, “o três designa, ainda, os níveis da vida humana: material,
racional, espiritual ou divino” (op. cit.: 902). Vida esta que, em muitas situações, é vista como
um acontecimento que se divide em três etapas fundamentais: aparecimento, evolução e
destruição, ou, em outros termos, nascimento, crescimento e morte (op. cit.: 902). A
organização em torno do número três ultrapassa os domínios do cenário religioso, pois como
sugere Mesquita,
Não é só na religião que este número mágico ocorre, verificando-se a sua existência
em muitos outros campos. Na verdade, a vida humana é tripartida, na sua essência,
pois divide-se em vida material, racional e espiritual. As próprias sociedades antigas
tinham uma composição em três partes: clero, nobreza e povo [...]. Sem esquecer
que as investigações científicas provam a existência de muitas tríades no corpo
humano, acreditando-se mesmo que o número [...] é a base de todas as grandes
funções do nosso organismo. Afinal, não podemos esquecer que a sabedoria popular
acredita no poder mágico do número três, visto como universal, que une a ordem
espiritual com a intelectual. É por isso que o ditado popular português é bastante
74
claro: «Três é a conta que Deus fez!». E, mesmo no Tarot, continua a verificar-se
que este número simboliza a criação, a perfeição divina.
Podemos, pois, concluir que o numeral em causa surge como um símbolo cuja
alçada é universal, estando presente na metafísica, em toda a ação do homem e na
complexidade da natureza (MESQUITA, 2012: 3-4).
Ainda no âmbito das referências ao número 3, temos a evocação de uma imagem em
tríade cercada de círculos, veja-se:
E a lagoa parece dividida em duas, e o diedro é perfeito.
–Chuá...
É a amerrissagem de um pato bravo, que deve ter vindo de longe: tatalou e caiu, com
onda espirrada e fragor de entrudo. [...] Agora singra, rápido, puxando um
enfivelamento de círculos e um triângulo (ROSA, 2001: 281).
Adélia Bezerra de Meneses, retomando a pesquisa que Walnice Galvão desenvolveu
acerca da simbologia das duas figuras geométricas presentes no fragmento supracitado e sua
contribuição para a construção de sentidos em “A hora e a vez de Augusto Matraga”, enfatiza
que as duas formas, aparentemente simples, são dotadas de alta energia simbólica, pois “o
triângulo (equilátero) como símbolo da perfeição, encontrado na iconografia de todas as
civilizações desde tempos imemoriais, tornou-se a representação gráfica da trindade cristã” e
o círculo é, ao mesmo tempo “a mais simples e a mais complexa das formas geométricas, é
figuração da totalidade”, de modo que, “conjugadas, essas duas formas fortes se potenciam”
(MENESES, 2010: 86), amplificando seu poder de sugestão do numinoso e da
transcendência, que, como tentaremos evidenciar, são componentes do campo experiencial
humano determinantes para a trajetória do narrador-personagem.
Já o número 7, também notadamente presente na narrativa analisada, além de ser um
numeral indispensável à organização da vida humana – uma vez que a semana divide-se em 7
dias que do ponto de vista organizacional são base para o planejamento das ações humanas–,
apresenta-se como cifra que, de tão arraigada no imaginário, se repete acentuadamente como
quantificadora fundamental das narrativas bíblicas. Um breve levantamento em torno da
recorrência do número 7 na Bíblia coloca-nos diante de uma criação que acontece em torno de
7 dias (Deus cria o mundo em seis dias e toma o sétimo para seu descanso), 7 altares (Nm
23:4), 7 pães repartidos (Mt 15:36), uma claridade lunar 7 vezes maior, como a luz de 7 dias
(Is 30:26), 7 Igrejas (Ap 1:4), 7 Cartas (Ap 2-3), 7 Selos (Ap 6,1-17), 7 cabeças (Ap 12:3) e 7
dons recebidos (Ap 5:12), para ficar só com estes exemplos que rastreamos dentre os muitos
que as sagradas escrituras oferecem.
Para além das páginas bíblicas, tem-se a associação do número aos sete galhos da árvore
cósmica e sacrificial do xamanismo, aos sete emblemas de Buda, aos sete orixás cósmicos da
75
umbanda e às sete cores do arco-íris, para nos limitarmos a alguns exemplos. Ademais, o
número é geralmente visto como símbolo de um ciclo completo e, entre os egípcios, símbolo
da vida eterna. Além de ser considerado símbolo da perfeição entre muitos povos, como
observam Chevalier e Gheerbrant (2015: 826- 831), a exemplo do povo “dogón”, conforme
constata Marcel Griaule (2009: 30).
A observação dos números que se repetem, no caso da narrativa de Guimarães Rosa,
produz a impressão de que uma ordem que ultrapassa os aspectos composicionais do narrado
determina a disposição dos componentes no cenário em que os acontecimentos se
desenvolvem, haja vista a precisão com que determinados constituintes da ambientação
narrativa estão dispostos no mundo observado pelo narrador (como as 3 árvores e as 3
clareiras, por exemplo). Neste sentido, é válido atentar para o fato de que a simbologia
atribuída aos numerais mencionados é conferida a partir de atos e percepções humanas. Em
“São Marcos” enxergamos o espaço que ambienta os acontecimentos através dos olhos do
narrador-personagem e isso é extremamente importante, se consideramos que Guimarães,
como destaca Ana Maria Machado (1976: 28), é “um autor para quem tudo significa” e em
cuja obra encontramos constatações como a seguinte:
os próprios olhos, de cada um de nós, padecem viciação de origem, defeitos com
que cresceram e a que se afizeram, mais e mais. Por começo, a criancinha vê os
objetos invertidos, daí seu desajeitado tactear; só a pouco e pouco é que consegue
retificar, sobre a postura dos volumes externos, uma precária visão. Subsistem,
porém, outras pechas, e mais graves. Os olhos, por enquanto, são a porta do
engano; duvide deles [...] (ROSA, 2005: 114) (Grifos nossos).
São os olhos do homem que conta a história que percebem a delimitação matemática do
espaço. É o ser que narra o responsável pela habilitação de um cosmos organizado no qual o
sagrado se manifesta e interfere de modo decisivo nas ações humanas, pois as experiências
relatadas tornam-se significativas à medida que são interpretadas pelo narrador e associadas
às crenças que ele consciente ou inconscientemente alimenta. A assertiva bíblica, colocada em
epígrafe, que constata que tudo foi feito com medida, número e peso, é indício que aponta
para a relevância do processo de quantificação na apreensão humana do espaço, haja vista
que, como já observou Erns Curtius, “o número foi santificado como fator constitutivo da
obra divina da criação. Adquiriu dignidade metafísica. Este é o motivo grandioso da
composição numérica na literatura” (CURTIUS, 2013: 645). Os algarismos 3 e 7, nessa linha
reflexiva, se sobressaem até mesmo pela constância com que são convocados a quantificar os
elementos presentes nos textos bíblicos.
76
Para Curtius, “as simetrias e correspondências dos numerais cardinais simulavam uma
ordem aparente que se acreditava sagrada” (CURTIUS, 2013:643). Sendo assim, os numerais
passavam a atuar, não como estruturas externas, mas como símbolos da ordem cósmica
presente nas criações divinas (op. cit.: 652).
Se conforme enuncia Eliade, “o Mundo deixa-se perceber como Mundo, como cosmos,
à medida que se revela como mundo sagrado” (ELIADE, 2010: 59) (Grifos do autor) e o
homem religioso é aquele para quem o espaço possui uma ordenação ontológica decorrente
das manifestações do sagrado, pode-se interpretar a insistente quantificação por meio dos
números 3 e 7, presente na narrativa de Rosa, como gesto fundacional desferido pelo ser
religioso que se encarrega da função de tecer os fios que sustentarão a narrativa, mobilizado
pelo intuito de, convertendo “caos” em “cosmos”, delimitar um espaço que adquire o status
de sagrado na medida em que nele são reconhecidos componentes místicos. Ainda seguindo
esta linha de raciocínio, pode-se tomar a constante sugestão de elementos bipartidos, que
ganha espaço na narrativa por intermédio da repetitiva referência a metades (nas já citadas
passagens em que se faz menção à meia-noite; no trecho em que se enfatiza que o coqueiro
divide ao meio a casa do feiticeiro; quando se faz referência a uma lagoa que, sendo
parcialmente iluminada pelos raios solares, parece dividida em duas, tendo um lado claro e
outro mais escuro), como indício de que os acontecimentos rememorados pelo homem
religioso são por ele percebidos como se estivessem ocorrendo em uma espécie de “centro”.
Na percepção de Eliade, o homem religioso deseja “viver o mais perto possível do Centro do
Mundo” (ELIADE, 2010: 43), já que para ele,
Quando o sagrado se manifesta por uma hierofania qualquer, não só há rotura na
homogeneidade do espaço, como também revelação de uma realidade absoluta, que
se opõe à não-realidade da imensa extensão envolvente. A manifestação do sagrado
funda ontologicamente o mundo. Na extensão homogênea e infinita onde não é
possível nenhum ponto de referência, e onde, portanto, nenhuma orientação pode
efetuar-se, a hierofania revela um “ponto fixo” absoluto, um “Centro” (ELIADE,
2010: 26).
Considerando a assertiva, nota-se que a ênfase na bipartição do tempo (haja vista as
referências à meia noite) e do espaço em que se desenvolvem as ações do narrador (que se
torna perceptível nas menções à divisão do teto da casa do feiticeiro e da lagoa grande) surge
como reflexo de sua percepção do mundo e de seu desejo inconsciente de situar-se no centro
de um ambiente resultante de uma ordem maior que, no seu compreender, surge de um
impulso cosmogônico. Vista sob esta perspectiva, a quantificação se sobressai como indício
de uma antiga tendência humana em tomar o espaço como divinamente organizado baseando-
77
se em princípios e esquemas mentais constantes. Esse percurso fundacional em meio ao
espaço tem na palavra o seu mais significativo instrumento, uma vez que é por intermédio da
designação que o homem conceitua, compreende e se relaciona mais de perto com o mundo à
sua volta. Não é por acaso que a ambivalência das palavras nos domínios do sagrado é uma
das temáticas de maior relevância no desenvolvimento do relato do narrador-personagem,
como tentaremos demonstrar a seguir.
3.2. A ambivalência da palavra
Em todas as cosmogonias míticas, por mais que recuemos na história, sempre poderemos constatar
esta posição de supremacia da palavra.
(Ernest Cassirer).
Ana Maria Machado (1976: 28) ressalta que a grande personagem da obra de Guimarães
Rosa é a palavra. Essa afirmação, legitimada pelo estudo desenvolvido pela autora16
e
reforçada pelos críticos literários anteriores e posteriores à assertiva, lança luz sobre um
aspecto fundamental da obra de João Guimarães Rosa: a sacralização do verbo. Uma leitura
atenta dos textos rosianos impõe a percepção do importante papel desempenhado pela palavra
em sua escritura. Se para os narradores rosianos ela é o instrumento por meio do qual
edificam suas estórias e ressignificam suas experiências, para as personagens que povoam os
espaços transitados pelos narradores, o verbo representa a possibilidade de diálogo com o
cosmos e detém o poder de proteger e amaldiçoar, servindo para a prática do bem e do mal
com a mesma intensidade.
“São Marcos” é uma narrativa em que a palavra assume posição central desde as
primeiras páginas. Já nas linhas iniciais do seu relato, o narrador faz referência à interdição
dos vocábulos associados aos males. Refere-se ele à proibição de certas palavras como
“lepra” e “trovão”, cujo uso é vetado àqueles que não desejam atrair o que por elas é
designado. Sobre o termo “lepra”, afirma o narrador que se deve evitar o nome verdadeiro da
doença referindo-a como “o mal”; já em relação ao fenômeno da natureza, ele enfatiza que ele
só deve ser mencionado quando o tempo está bom mediante o uso do eufemismo “faísca”
(ROSA, 2001: 261). As ressalvas feitas pelo condutor do relato denotam a centralidade da
palavra no universo ficcional rosiano. O verbo, quando “invocado”, aparece na narrativa
como instrumento fundamental para o desencadeamento de males e também para o
afastamento deles. Seu uso é uma faca de dois gumes: condenação e proteção a depender da
16
Ana Maria Machado desenvolve uma profunda investigação acerca da relevância do nome das personagens
rosianas presentes em Corpo de Baile.
78
maneira como se porta aquele que o utiliza. Isso fica evidente ao longo de todo o relato,
principalmente nos momentos em que práticas relacionadas à feitiçaria são referenciadas.
Em um dos “casos” relatados pelas personagens da novela, tem-se a história de uma
lavadeira que se desentendeu com uma mulher, conhecida por Cesária velha, e
repentinamente passou a sentir dores fortes e incessantes em um dos pés. Segundo sabem as
personagens, a lavadeira atentou para o fato de que havia se desentendido com uma pessoa
afeita às práticas de feitiçaria e, ao lembrar-se disso, mandou um portador pedir perdão.
Conta-se que tão logo o perdão foi dado, as dores sumiram. Registra-se, ainda, que, durante os
momentos que antecederam e acompanharam a confecção da “calunga de cera” responsável
pelos sofrimentos da lavadeira, Cesária velha, a feiticeira, proferia as seguintes palavras:
“Estou fazendo fulana!... Estou fazendo fulana!...”, e depois, com a agulha: “Estou
espetando fulana!... Estou espetando fulana!” (ROSA, 2001: 263)
Observa-se, nesta história de tom popular convocada a fazer parte do relato, a relevância
da palavra no contexto recriado. É mediante o uso do verbo que Cesária Velha confere à
boneca confeccionada o poder de representar a sua inimiga. Suas práticas, segundo é contado,
têm a palavra como principal sustentáculo, já que são validadas por meio dela. Sendo também
a palavra de perdão a responsável pela anulação da prática desenvolvida. Em todo caso, se
intui que o voduísmo supostamente desenvolvido pela personagem tem no verbo o seu
alicerce.
É a palavra também fator adjacente à concretização das práticas de feitiçaria de João
Mangolô. O narrador ressalta em seu fazer que, sempre que algo com caráter insólito ocorre
nas imediações da casa do feiticeiro, a expressão “Guenta o relance, Izé!” é ouvida. Essa
expressão se repete em momentos cruciais do texto: quando Zé Prequeté vem de encontro ao
narrador montado a cavalo, perde o controle e misteriosamente cai da montaria (ROSA, 2001:
265); quando o narrador percebe-se cego, sem encontrar uma explicação aceitável para a
escuridão que toma conta de seus olhos (ROSA, 2001: 285); quando a personagem central,
vagueando cega pela mata, a ponto de desistir de suas tentativas de sair do local, invoca, ao
mesmo tempo Deus e o diabo (ROSA, 2001: 289). Desta última feita, o homem que narra
ouve as palavras de Aurísio Manquitola, outro habitante do Calango-Frito com quem dialoga
antes de entrar na mata, dizendo repetidamente: “Tesconjuro! Tesconjuro!” (ROSA, 2001:
290) – falas que o auxiliam na busca por uma alternativa que lhe permita sair da angustiante
situação em que se encontra. Em todas as situações mencionadas, verificamos que o uso da
palavra surge como força impulsionadora dos acontecimentos insólitos que ganham espaço
79
nas páginas da narrativa. Na novela de Rosa o uso da palavra confunde-se com o conjuro e há
sempre o medo de fazendo uso do nome da coisa, colocar-se involuntariamente diante dela.
Neste sentido as palavras do ser que narra e dos seres que povoam o narrado confundem-se
com as do mago que desenvolve seus feitiços e são sempre desencadeadoras de
transformações no homem e no mundo, pois até mesmo o narrador parece realizar uma
travessia pessoal ao repensar seus feitos pretéritos, transcendendo-se a partir da recorrência ao
verbo. A importância creditada à palavra, como se sabe, é observada em todas as civilizações
e se reflete, por exemplo, nas orações que são transmitidas de geração em geração como
portadoras do poder de intervir nos rumos que serão dados à vida dos homens. No seio das
igrejas e na vida concreta dos homens, o verbo sempre ocupou um lugar privilegiado.
De acordo com Francis Utéza, “Rosa pode-se comparar aos mestres que desenvolveram
na sua própria língua a busca da quintessência, a busca desse ponto alfa-ômega do sertão onde
todas as contradições se resolvem, onde não há nem interior nem exterior, nem Oriente nem
Ocidente” (UTÉZA, 1994: 41). O seu sertão, ainda na compreensão de Utéza, é um espaço em
que “o sagrado e o profano sofrem poluição de continuidade” (UTÉZA, 1994: 70). No que diz
respeito particularmente ao campo da linguagem, percebe-se que, em Rosa, não há como
estabelecer uma delimitação rigorosa entre a palavra sagrada e a profana, uma vez que nas
páginas de sua ficção o verbo é desnudado de seus sentidos cristalizados e tomado como se
estivesse a ser inventado no exato momento em que o texto está sendo composto. Exemplo
desse processo de ressignificação de vocábulos é o emprego que o narrador personagem faz
do nome de reis antigos na composição de um poema que ele, dando continuidade ao gesto de
um desconhecido, inscreve no caule dos bambus:
Sargon
Assarhaddon
Assurbanipal
Teglattphalasar, Salmanassar
Nabond, Nabopalassar, Nabucodonosor
Belsazar
Sanekherib (ROSA, 2001: 274)
Desvinculados dos feitos que lhe são atribuídos pela história, os reis emergem como
nomes em torno dos quais se engendra o poético. E, no texto, o narrador enfatiza que
“despojados da vontade sanhuda” eles convertem-se em poema, sugerindo, mais uma vez, a
ambivalência presente no homem e no mundo, que faz com que tudo possa ser outra coisa,
mudadas as circunstâncias. Ao propor um distanciamento entre os nomes e as ações perversas
dos reis antigos para transformá-los em componentes do poema, o narrador coloca em cena
80
um modus operandi que é crucial nos desdobramentos das veredas de Rosa: o autor é aquele
que consegue dar visibilidade ao mais profundo da essência humana, demonstrando o poético
presente nas imagens que em outros contextos poderiam causar desconforto ao leitor. E, ao
tentar expor os princípios que o norteiam na ressignificação dos nomes dos soberanos, o
narrador deixa visível uma das chaves utilizadas por Guimarães Rosa na exploração das
possibilidades do verbo:
Sim, que, à parte do sentido prisco, valia o ileso gume do vocábulo pouco visto e
menos ainda ouvido, raramente usado, melhor fora se jamais usado (ROSA, 2001:
274).
O narrador rosiano é aquele que de tudo desconfia e apesar disso ou, refletindo a partir
de outra perspectiva, em decorrência disso, de todas as possíveis verdades se nutre. O
comportamento do “João-José” presente nas páginas de “São Marcos” é revelador dessa
pluralidade presente nas personagens de Rosa. Ele é um homem que se afirma descrente em
feiticeiros, mas, contrariando ao dito, demonstra ser extremamente supersticioso. O seu relato
dá conta de uma transformação na sua forma de ver o mundo, daí as constantes referências ao
sentido da visão feitas ao longo da narrativa.
As metamorfoses do humano consistem em uma das vigas mestras que conferem
sustentação à narrativa e indícios dessa estruturação se fazem visíveis em vários momentos do
discurso narrativo. Não é a esmo que o narrador pontua que no espaço pelo qual circula “cada
lugar tem indicação e nome, conforme o tempo que faz e o estado de alma do crente” (ROSA,
2001: 279) e, com isso, sugere as mudanças que soem se processar no mundo a partir da
transformação da ótica humana em relação a ele. O narrador-personagem, para além da inicial
descrença no poder dos feiticeiros, costuma zombar de seus supostos poderes, razão pela qual
João Mangolô se encoleriza e decide aplicar-lhe um castigo através da confecção de um
boneco de pano, no qual coloca uma venda e com o qual, conforme se percebe no final da
narrativa, estabelece um vínculo direto com sua vítima. Tem-se com isso o registro de práticas
voduístas na narrativa, que, se inicialmente não são associadas ao uso da palavra nem
descritas pelo narrador com riqueza de detalhes, uma vez que ele provavelmente desconhece
as minudências que envolveram a confecção do boneco de pano, são desfeitas através da
invocação de uma reza tida como perigosa e milagrosa pelos habitantes do Calango-Frito. Em
meio a angústia de não enxergar em um ambiente que, embora conhecido, oferece uma série
de desafios, o narrador, ao supostamente ouvir vozes – não se sabe se vindas de alguém que o
observa ou oriundas de seu inconsciente – recorda-se da oração de São Marcos e a profere. O
resultado disso é um sentimento de raiva inexplicável e uma força que o conduz até a casa de
81
João Mangolô, colocando-o diante do responsável pelo seu sofrimento, e o ajuda a desfazer o
que fora arquitetado pelo feiticeiro para comprometer a sua observação dos elementos da
mata:
E, pronto, sem pensar, entrei a bramir a reza-brava de São Marcos. Minha voz
mudou de som, lembro-me, ao proferir as palavras, as blasfêmias, que eu sabia de
cor. Subiu-me uma vontade louca de derrubar, de esmagar, destruir... E então foi só
a doideira e a zoeira, unidas a um pavor crescente. Corri (ROSA, 2001: 290).
A descrição dos momentos que acompanham a evocação das “palavras mágicas” que
compõem a reza é bastante sugestiva, pois traz à tona os sentimentos que segundo Otto (2007)
fazem parte das experiências numênicas. O terror indescritível mistura-se a uma força
incontrolável; as fronteiras entre racional e irracional se tornam imprecisas (note-se que o
narrador se recorda do que fez, embora não demonstre ter total controle sobre suas ações
quando profere a reza, o que denota um estado de consciência em meio a ações desenvolvidas
quase que inconscientemente); e há, também, o sentimento de fascínio e medo característico
de tais experiências, que pode ser percebido quando se atenta para o fato de que, sem pensar,
o narrador inicia a reza, ou seja, abre espaço para a concretização de um gesto que não lhe
parece adequado e, em seguida, corre, em um ato que pode ser interpretado como
consequência da força sobre-humana adquirida ou movimento de fuga diante de uma ação que
não causa orgulho àquele que a desenvolve.
Se, por uma parte, no que envolve a concepção da prática voduísta responsável pela
cegueira temporária do narrador-personagem, não há possibilidade de verificar até que ponto
o uso da palavra é importante, por outro lado, pode-se dizer que é o verbo que liberta o
homem da magia produtora das “trevas” que lhe comprometem a visão. Desse modo, uma vez
mais, nota-se a centralidade da palavra no contexto recriado.
Em mais de uma passagem da narrativa tem-se referências muito fortes à maneira como,
não só o narrador, mas os habitantes do Calango-Frito, de um modo geral, reverenciam a
palavra. Sá Nhá Rita Preta, cozinheira de João-José, ao costurar-lhe uma manga do paletó que
estava rota, profere as seguintes palavras:
“Coso a roupa e não coso o corpo, coso um molambo que está roto...” (ROSA,
2001: 264).
Esse gesto simples coloca em evidência o fato de que para muitas pessoas não bastam
a pureza das intenções e a coerência dos gestos, são necessárias palavras que validem o que se
está fazendo. Entre intenções e gestos, a palavra se faz necessária para consolidar as ações
desenvolvidas, como uma espécie de cimento usado para solidificar a união entre os
82
componentes de um edifício. Não gratuitamente, Aurísio Manquitola, uma das personagens da
novela, faz a seguinte observação: “É melhor esquecer as palavras... Não benze pólvora com
tição de fogo!” (ROSA, 2001: 268) (Grifos do autor). A narrativa inteira, na verdade, convida
à reflexão sobre a relevância que a palavra, seja ela escrita ou falada, possui na vida de uma
comunidade. Instrumento essencial à transmissão e consolidação das expressões culturais de
um povo, o verbo representa criação e destruição, proteção e risco para o homem que dele se
apropria, daí a recomendação feita pela personagem rosiana de que é melhor não brincar com
as palavras, para não correr o risco de “benzer pólvora com tição de fogo”.
Dotadas de “canto e plumagem” (ROSA, 2001: 274), à maneira dos pássaros, as
palavras adejam no imaginário, sendo relacionadas às mais puras ou deturpadas forças
percebidas pelo homem no mundo que o cerca. Se seu canto e plumagem evocam a leveza do
voo, também lembram ao homem que as alturas lhe são inalcançáveis, forçando a percepção
de que as mais ousadas tentativas de alcançar o alto são também as responsáveis pelas
maiores quedas. O verbo se apresenta na narrativa em questão como possibilidade de
ascensão ou queda. Bem e mal emanam dos vocábulos evocados ao longo da estória, assim
como são por eles invocados cada vez que alguém, intencionalmente ou não, profere as
palavras certas em momentos convenientes ou inadequados. A oração de São Marcos, um dos
elementos centrais na composição do texto rosiano, é tida como a reza brava temida por todos,
capaz de ocasionar acontecimentos assustadores, mas é também o artifício encontrado pelo
narrador para se libertar da cegueira provocada pelo feitiço lançado contra ele por João
Mangolô:
Dá desordem... Dá desordem...
[...]
Às vezes, eu sabia que estava correndo. Às vezes, parava – e o meu ofego me
parecia o arquejar de uma grande fera, que houvesse estacado ao lado de mim.
E horror estranho riçava-me pele e pêlos. A ameaça, o perigo, eu os apalpava, quase.
Havia olhos maus, me espiando. Árvores saindo de detrás de outras árvores e
tomando-me a dianteira. E eu corria.
Mas, num momento, cessou o mato. Um cavaleiro galopou, acolá, e o tinir das
ferraduras nas pedras foi um tom de alívio (ROSA, 2001: 290) (Grifos do autor).
A desordem é prevista pelo narrador antes de executar a reza milagrosa e a execução
desta vem a confirmar os seus temores. Tomado por uma pujança que o ultrapassa e, de certa
forma, o orienta, o narrador consegue chegar à casa do feiticeiro e descobrir um boneco de
pano com os olhos vendados, provavelmente responsável pela cegueira que o acometeu. A
reza brava é responsável pela sua “salvação”, à medida que lhe coloca diante do culpado pelo
seu estado. No entanto, ocasiona “desordem” à medida que o impele para atos de agressão ao
83
feiticeiro. Um impulso agressivo incontrolável toma conta do ser, por instantes, seu relato
parece trazer à tona uma espécie de possessão: uma vontade maior que o homem o domina,
seu autocontrole se perde em meio às ações que pratica e somente lapsos de consciência são
percebidos na rememoração de suas vivências. A impressão de que o homem está possuído
acentua-se quando se considera que ele percebe uma mudança de entonação em sua voz
quando pronuncia os vocábulos que compõem a oração milagrosa e descreve as feições
animalescas que alguns de seus gestos assumiram após findar a reza. Sua respiração é
aproximada a um “arquejar de fera”, uma sensação de horror estranho lhe enrijece “pele” e
“pelos”, homem e animal são coadunados na descrição das ações que procedem da execução
da reza. Algo semelhante a um “transe” acomete o narrador, causando-lhe, como ele próprio
salienta, “um estranho horror”. O “transe” em que o homem se encontra é momentaneamente
quebrado pelo tinir das ferraduras de um cavalo no momento em que ele já se encontra na via
de saída da mata. Nesta altura da narrativa, o sagrado se manifesta de forma arrebatadora,
sendo a palavra, mais uma vez, responsabilizada pela força que promove as transformações
sofridas pelo narrador.
A transformação por que passa a voz de João-José não é um dado isolado na narrativa.
Algo semelhante aconteceu, conforme relata Aurísio, com Gestal da Gaita, outro homem que,
segundo dizem, conhecia e rezava a oração de São Marcos despreocupadamente. Relata
Aurísio que, certa vez, à meia-noite, surpreenderam Gestal da Gaita falando uma língua
incompreensível, inacessível a quem lhe ouvia e que não lhe era comum durante as horas em
que estava desperto. A associação do falar estranho da personagem ao fato, comentado pelo
povo, de que ele rezava repetidamente a “reza brava”, desperta a impressão de que sua
mudança de voz é associada à presença de uma entidade sobrenatural. Visto por outro ângulo,
tal indício conduz à constatação da crença, por parte das personagens, na existência de uma
língua relacionada às práticas sagradas que é inacessível aos não iniciados e até mesmo
incompreensível aos ouvidos daqueles que não estão diretamente vinculados ao universo
religioso do qual emergem tais práticas. Essa impressão é reforçada pelo registro de que a
população do Calango-Frito não se identificava com os sermões de um novo padre, pelo fato
do mesmo proferir seus discursos em língua que todo mundo entende, ao contrário do pároco
anterior que tinha “muito mais latim” (ROSA, 2001: 275).
Dotada de capacidade de transformar o real, a linguagem sagrada é tratada em alguns
pontos da narrativa como o extremo oposto da linguagem utilizada pelo povo. Hermética e
inacessível, ela seria utilizada pelos poucos iniciados e incompreendida pela maioria da
84
população. Seus poderes de transformação são referenciados em mais de uma oportunidade e
reforçados pelo narrador mediante a citação de expressões emblemáticas oriundas de
narrativas presentes no imaginário popular, como a expressão “Abre-te Sésamo” (ROSA,
2001: 275), utilizada na história de Ali-Babá, responsável pela liberação do acesso aos
tesouros guardados em uma espécie de “gruta-cofre”.
Outra potencialidade agenciada pelo uso do verbo, que é problematizada no interior da
narrativa, refere-se à possibilidade de ampliação dos limites mentais mediante o uso da
linguagem – crença há muito tempo consolidada no imaginário popular. O narrador relata que
um tal „Matutino Solferino Roberto da Silva‟, sempre que desejava comprar biscoitos de
caixote, utilizava o termo inventado “talxóts” para se referir ao vocábulo destacado, porque
desejava uma mercadoria de luxo e, a seu ver, a palavra “caixote” pela aparência pobre
deveria ser resultado de uma deformação do vocábulo original. Junta-se a esse registro a
menção a outro conhecido do narrador, chamado Josué Cornetas, que segundo é contado,
ampliou os limites mentais de um terceiro, ensinando-lhes alguns nomes que não eram de uso
corrente entre os representantes do povo. Ambos os exemplos evidenciam que a narrativa de
Rosa torna imperativo o pensamento sobre a relação entre homem e palavra. Uma temática
recorrente nas várias mitologias, que revela que o uso da linguagem institui-se como
experiência religiosa primordial. O “fiat lux” presente na narrativa bíblica e as inúmeras
mitologias criacionistas que colocam em tela divindades cujo intervir se concretiza a partir do
uso do verbo são exemplos que dão conta do poder que o vocábulo detém no imaginário. Um
dos mais populares ditos do cenário religioso cristão funda-se na afirmação de que “o verbo se
fez homem e habitou entre nós”, demonstrando o poder atribuído à palavra nas relações que
se estabelecem entre homem e sagrado.
3.3. A ambivalência do sacro na composição do “mundo misturado” de João Guimarães
Rosa
Inventário de crenças religiosas que compõem o imaginário do povo brasileiro, apesar
de recriador de inquietações maiores que ultrapassam as fronteiras do país de origem de seu
criador, “São Marcos” é um texto em que, como falamos anteriormente, a demarcação de
fronteiras precisas é impossível, pois tudo é e não é. Os acontecimentos narrados carecem de
exatidão, até mesmo porque são evocados por um homem que tenta trazer a lume a própria
experiência religiosa, de maneira que sua interpretação do vivido está alicerçada no terreno da
85
subjetividade. A recorrência à figura do homem que relata o próprio convívio com o sagrado
implica na inquestionabilidade do que é narrado, pois a experiência numênica é intransferível
e irrepetível, sendo o seu próprio caráter pessoal responsável pela sua legitimidade. Situada no
território do eu, a narração dá conta da visão do ser que se debruça sobre suas vivências,
trazendo à tona o registro de suas impressões a respeito das situações pelas quais passou. Mais
importante que verificar a veracidade do que é relatado, em uma narrativa resultante de uma
conjuntura como a referida, é perceber de que forma os discursos com os quais o narrador tem
contato e as experiências que ele afirma ter vivido interferem em sua compreensão do mundo
e o auxiliam na interpretação do que está ao seu redor.
Situado nas fronteiras – entre tradicional e moderno, popular e erudito, crenças
oficialmente aceitas e paganismo, oração e invocação de males –, o narrador é responsável
pela construção de um discurso que confere visibilidade ao caráter, ao mesmo tempo, singular
e plural das experiências religiosas. Tais experiências são singulares porque se relacionam ao
terreno mais profundo de cada ser humano, sendo cada homem único devido ao conjunto de
vivências individuais que o influenciam e modificam; são plurais porque compostas a partir
de interferências de elementos de proveniências diversas, que sedimentados lhe conferem um
caráter compósito. Mesmo que o relato contido em “São Marcos”, em alguns momentos, se
aproxime notadamente das grandes narrativas exemplares – transmissoras dos pressupostos
que compõem o viver de um povo –, não se pode negligenciar a visibilidade, conferida em sua
tessitura, à pluralidade de crenças religiosas que dividem espaço no contexto social que cerca
o narrador, assim como a constante ênfase nas interseções entre o religioso e outras dimensões
da experiência humana.
Ao longo da narrativa, delineia-se um mundo misturado, no qual a ambiguidade do
discurso narrativo constrói um território de incertezas em que as experiências relatadas por
João-José parecem situadas. O discurso do narrador é endossado pelas estórias contadas
através das outras personagens que, estabelecidas em um passado tido como referencia para a
comunidade, conferem força às impressões legadas ao homem pelas situações que vive. As
narrativas encaixadas dentro da história maior reforçam o caráter híbrido da primeira, uma
vez que trazem à tona um universo em que todos são bons e maus ao mesmo tempo.
Um dos mais relevantes índices, que tornam evidentes as misturas presentes na
narrativa, consiste na composição da personagem João Mangolô. Figura emblemática na
narrativa, o negro é apresentado essencialmente como um feiticeiro com o qual o narrador
eventualmente convive. No entanto, os atributos que vão sendo associados ao negro fazem
86
dele uma das personagens mais híbridas do texto em análise. Inicialmente, Mangolô é
caracterizado como “liturgista ilegal” e “orixá-pai” (ROSA, 2001: 262), o que denotaria seu
vínculo com a cultura africana e as práticas por ela influenciadas em território brasileiro.
Posteriormente, sua cor se torna problemática e é ressignificada ao ser justaposta a outros
atributos: “Preto; pixaim alto, branco amarelado; banguela; horrendo” (ROSA, 2001: 266). A
caracterização detalhada da personagem torna visíveis outras feições que estão para além da
condição de negro, pois em sua imagem estão reunidas cores fundamentais para a constituição
do povo brasileiro: preto, branco e amarelo se misturam na figura que de longe é mostrada
como sendo somente negra e isso reforça a percepção da gênese híbrida da personagem.
Acresce-se a isso o fato de que, nas páginas finais do relato, o feiticeiro seja referido como
sendo um “pajé” que carrega consigo uma “ruindade mansa” (ROSA, 2001: 291), o que nos
permite perceber que o mesmo homem que, nas palavras do narrador, é um “orixá-pai” é
também um “pajé”, líder religioso indígena, desenvolvendo suas práticas a partir de valores
africanos, sugeridos pela menção ao “orixá” e também indígenas, insinuados pela referência
ao líder religioso dos índios. Contribuem, ainda, para a percepção do hibridismo presente na
personagem, as invocações de divindades por ela feitas. Em dois momentos fundamentais do
texto rosiano, João Mangolô invoca divindades cristãs. Na primeira ocasião, ao ser chamado
pelo narrador-personagem, o negro enuncia “Senh‟us‟Cristo, Sinhô!” (ROSA, 2001: 266); e
nas páginas finais do texto, ao ser espancado pelo narrador – em ato de vingança contra o
feitiço lançado que resulta em sua cegueira – o negro brada: “Pelo amor de Deus, Sinhô!”
(ROSA, 2001: 290). Ambas as invocações tornam visível a presença de valores cristãos na
gênese da personagem, inicialmente relacionada às religiões africanas, e são dignas de
especial atenção pela maneira como acontecem. No caso da invocação de Cristo, percebe-se
que as palavras que saem da boca da personagem não correspondem exatamente ao nome do
ser divinizado pelo cristianismo. Ao clamar “Senh‟us‟Cristo” a personagem promove uma
junção de nomes, demonstrando que sua enunciação resulta de uma espécie de bricolagem, de
maneira que a divindade cristã apresenta-se de modo diferente, é enunciada de modo peculiar.
Ainda que o intento seja evocar o mesmo Cristo, a maneira como ocorre a invocação é
idiossincrática, com isso, tem-se um dado que endossa a afirmação de Magalhães (2012: 21)
de que os deuses são sempre relacionais. As divindades cristãs, também relevantes para as
vivências religiosas do feiticeiro, são por eles ressignificadas, passando a ser enunciadas e
compreendidas a partir de uma perspectiva própria. Já no segundo caso de invocação de
divindades presentes no imaginário cristão, tem-se o clamor pelo Deus único – perceptível
87
pela inicial maiúscula utilizada na grafia do nome “Deus” –, o que aponta para a pluralidade
que perfaz o imaginário religioso da personagem. Em ambas as invocações, é digno de nota o
vocativo empregado pela personagem para referir-se ao seu interlocutor; João Mangolô usa o
pronome de tratamento “Sinhô”, que aparece sempre com inicial maiúscula, para se referir ao
narrador do texto, o que revela seu sentimento de subalternização para com o seu interlocutor.
Tal forma de tratamento, por uma parte, remete à maneira como os escravos tratavam aqueles
que, no regime escravocrata, tinham poder de mando – sugerindo o fato de que Mangolô,
provavelmente, descende de escravos e, por isso, porta um discurso carregado das marcas
dessas relações de dominação –, e, por outro, pode ser associado (devido a insistente inicial
maiúscula usada no vocativo) à forma de tratamento utilizada para referir-se ao Deus do
cristianismo, sendo indício da verticalidade das relações sociais estabelecidas entre o negro e
o narrador: este último seria um “Senhor” com “s” maiúsculo, remetendo ao tratamento
empregado para clamar pelo Deus único.
As referências ao Deus do cristianismo feitas pelo negro vão ao encontro do que
enuncia Rodrigo Portella em análise às religiões que se desenvolveram em território
brasileiro. Afirma ele
todas as religiões e expressões de religiosidade no Brasil encontram sua interface no
catolicismo. O catolicismo seria uma matriz genérica das relações com o sagrado no
Brasil, pois seu universo simbólico se encontra representado em todas as
manifestações religiosas, mesmo as que vêm de fora do Brasil, ou de forma
assimilativa retraduzida ou de forma opositiva. Assim, o catolicismo torna-se uma
sombra geral na cultura religiosa brasileira. Símbolos e noções conceituais do
cristianismo católico estão na estrutura mental e mesmo material, inclusive das
religiões não-cristãs do Brasil. Não há expressão religiosa no Brasil que, de alguma
forma, positiva, integrativa ou negativa, não faça menção, explícita ou implícita,
discursiva ou simbólica, ao cristianismo de veio católico (MAGALHÃES &
PORTELLA, 2008:135).
A observação do comportamento de João Mangolô na narrativa parece demonstrar a
pertinência do que é dito pelo estudioso. E os atos do negro não são os únicos que evidenciam
os enlaces entre religiosidades de origens distintas na narrativa. Uma das afirmações do
narrador é que em hora de missa não havia ninguém para se consultar com o feiticeiro
(ROSA, 2001: 266), o que nos permite a conclusão de que as pessoas que requisitavam os
serviços do negro eram as mesmas que frequentavam as celebrações religiosas do catolicismo.
Em outro momento do relato, o narrador afirma que os arames que delimitam o espaço
pertencente ao negro estavam baixos, pois o povo preferia se abaixar e passar entre os fios da
cerca ao ir para as consultas com ele (ROSA, 2001: 266), deixando implícita a ideia de que o
movimento de aproximação do povo em relação às práticas desenvolvidas pelos feiticeiros é
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sempre sorrateiro e passa, necessariamente, pela transgressão das cercas que impedem a
entrada nos espaços em que as crenças não oficiais predominam. O ato de se abaixar e passar
entre os fios das cercas, ao invés de utilizar o portão de entrada da casa do feiticeiro,
evidencia que adentrar os espaços das práticas de caráter sagrado atribuídas ao outro é sempre
um ato de violação de fronteiras, que geralmente se tenta desenvolver sem alardes, passando
pela dinâmica do “ser ou não ser e do ser sem ser” que, como observa Rodrigo Portella, está
fortemente presente na maneira como os homens estabelecem relações com as tradições
religiosas presentes em seu meio (MAGALHÃS & PORTELLA, 2008: 143-144). O próprio
catolicismo brasileiro pode ser definido como “um caldeirão identitário” (MAGALHÃES &
PORTELLA, 2008:132), devido aos rejuntes e ressignificações que permitem a sua
composição. Ao definir-se, nas últimas linhas do relato, em conversa com o feiticeiro
agredido, como um homem poderoso, justificando que sua invulnerabilidade se fundamenta
no fato de ter “anjo bom, santo bom e reza brava” (ROSA, 2001: 291), o narrador faz uma
síntese dos elementos que compõem o imaginário religioso do povo brasileiro, remetendo as
complexas relações possíveis entre homem e sagrado.
No mundo misturado engendrado por Rosa, como já ficou dito, tudo é e não é e, neste
sentido, as práticas de feitiçaria, que podem ser tomadas como vinculadas ao mal, são, pelo
que se pode perceber ao longo da narrativa, vistas como forças capazes de ser canalizadas
para a realização dos desejos humanos, sendo tidas como benéficas quando analisadas por
esta ótica. E para evidenciar os encontros entre ações benevolentes e más, o próprio narrador
faz uso de caracterizações em que forças antagônicas se entrecruzam. Gestal da Gaita, que é
uma das personagens presentes nas narrativas menores que compõe a estória contada pelo
narrador, é descrito como um homem “sem preceito e ferrabrás”, mas que “tem bom coração”
(ROSA, 2001: 270). Em sua descrição tem-se, ao mesmo tempo, a evidenciação de qualidades
e defeitos, que convivem em seu espírito, embora possam parecer inconciliáveis em uma
primeira análise.
Bem e mal são indissociáveis no mundo criado nas páginas da narrativa rosiana e isso é
evidente nos mais variados campos do texto, inclusive na evocação da oração de São Marcos
que é ambivalente pelo fato de ser milagrosa e perigosa em uma mesma proporção. Tida pelos
habitantes do Calango-Frito como uma “reza brava”, ela invoca, conforme se percebe na
narrativa, além de uma entidade que, ao que parece, corresponde ao apóstolo São Marcos que
lhe dá nome, um “anjo mau” (ROSA, 2001: 268) – figura paradoxal por se apresentar como
elo entre o divino e o demoníaco. A oração, que ocupa espaço privilegiado ao longo da
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narrativa, reflete, na realidade, a capacidade humana de associar os mais sublimes sentimentos
aos mais torpes intentos. O ato de rezar é ressignificado, pois aparece como a invocação de
entidades que atraem benefício e malefício para quem por elas clama. Se a sacralidade do
mundo implica em uma ordem que é percebida pelo homem religioso, a oração de São
Marcos aparece como uma espécie de contrassenso, pois é apresentada como desencadeadora
de “desordem”. Estamos, pois, diante de um mundo onde a concretização dos desejos
humanos e o desenvolvimento das relações entre homem e sagrado passam pela encruzilhada
em que bem e mal são postos em contato. As personagens parecem colocar em questão o fato
de que as entidades más podem trazer alento, assim com as entidades boas podem ser
responsáveis pelo sofrimento humano, dependendo das circunstâncias e do ponto de vista com
que as ações de tais entidades são interpretadas.
Segundo Rudolf Otto,
sem os elementos racionais, particularmente sem os nítidos elementos morais, o
sagrado não seria o santo do cristianismo. Na sonoridade completa do termo “santo”
como encontramos principalmente no Novo Testamento e como atualmente está
fixado em nossa sensibilidade linguística religiosa, o santo, afinal, deixou de ser o
meramente numinoso em si, nem mesmo no grau supremo deste, mas está agora
sempre impregnado e saturado com elementos morais e pessoais dotados de
finalidade [...].
O “receio demoníaco” atravessa ele próprio vários estágios, elevando-se ao patamar
do “temor aos deuses” e temor a Deus. O demoníaco [...] passa a ser divino [...]. O
receio passa a ser estado meditativo. Os sentimentos dispersos e confusamente
emergentes transformam-se em religião (OTTO, 2007: 148).
As experiências numênicas recriadas por Guimarães Rosa apontam para o aspecto
irracional que antecede as vivências religiosas humanas por colocar em cena a capacidade de
atrair energias boas e más que as práticas sagradas encerram. Situada no ponto de tangência
entre bem e mal, a narrativa está repleta de índices que evidenciam o encontro entre essas
duas instâncias. João Mangolô é um feiticeiro que, pelo que é relatado, tem a capacidade de
promover ações de “amarramento e desamarração” (ROSA, 2001: 262). Suas faculdades lhe
possibilitam ações múltiplas: boas ou ruins, dependendo da perspectiva a partir da qual são
avaliadas, e, em decorrência disso, muitas pessoas lhe procuram, quando não é hora de missa,
em busca de favores.
Ainda no plano das misturas entre bem e mal, outro índice que coloca em evidencia os
laços que atam essas duas instâncias é a descrição feita pelo narrador, ao se questionar a
respeito da existência de um deus que rege as formigas e deparar-se com a enigmática
imagem de um louva-a-deus:
90
Como será o deus das formigas? Suponho-o terrível. Terrível como os que louvam...
E isto é também com o louva-a-deus, que acolá, erecto, faz vergar a folha do
junquilho. Ele está sempre rezando, rezando de mãos postas, com punhais cruzados.
Mas, no domingo passado, este mesmo, ou um qualquer louva-a-deus outro, comeu
o companheiro em oito minutos justos, medidos no relógio – deixou de lado apenas
as rijas pernas-de-pau serrilhadas da vítima, e o seu respectivo colete... Foi-se
(ROSA, 2001: 282-83).
Ao supor terrível o deus das formigas, o narrador torna mais proeminente uma das
faces do sagrado: a face assustadora. A referência ao deus desses insetos salienta o poder de
amedrontar que é conferido às divindades regentes do cosmos. Não se pode deixar de
observar que a ubiquidade conferida aos deuses, embora seja garantia de que os mesmos
observarão e protegerão todos os viventes, é também indício do poder avassalador que eles
detêm. O temor aos deuses é uma das primeiras “virtudes” cultivadas na edificação do espírito
do membro de uma comunidade religiosa. Olhada sob esta ótica, a face divina pode assustar,
ao invés de conferir alento ao que eleva os olhos em sua direção.
O louva-a-deus, por sua vez, é observado, no fragmento transcrito, de maneira
ambivalente. Inicialmente, destaca-se a semelhança entre as suas patas dianteiras e as mãos de
um crente em perpétua reza. Em um segundo momento, apresenta-se a semelhança entre a
postura do inseto e a posição de ataque de um guerreiro com dois punhais cruzados, sempre
prontos a atacar. Por fim, ao fazer-se notar o comportamento canibal do inseto ilumina-se a
capacidade de destruição da qual são dotados aqueles que louvam, reforçando-se a tese de que
“são terríveis os que louvam”, também exposta no trecho citado. Ressalta-se, a esta altura da
narrativa, a capacidade de destruição presente naqueles que se encontram no seio dos templos
dedicados à adoração das divindades e, com isso, se confere notoriedade ao fato de que os
seres humanos são muito “misturados”, não sendo necessariamente bons ou maus, mas
resultantes de complexas relações entre esses dois polos. Não gratuitamente, durante a sua
incursão pela mata, o narrador sugere, em meio às samambaias e samambaiaçus, que convém
meditar sobre a castidade:
Aqui, convém: meditar sobre as belezas da castidade, reconhecer a precariedade dos
gozos da matéria, e ler a história dos Cavaleiros da Mesa Redonda e da mágica
espada Excalibur. Mas não posso demorar. A frialdade do recanto é de gripar um
cristão facilmente, e também paira no ar finíssima poeira de lapidação de
esmeraldas, que deve ser asmatizante (ROSA, 2001: 279).
O discurso é evasivo e abre pouco espaço para que sejam expostas as relações
enxergadas pelo narrador entre as plantas que compõem a paisagem e as belezas da castidade
citadas, deixando muito mais coisas sugeridas do que efetivamente ditas. Merece destaque, no
91
entanto, a menção à espada “Excalibur”. Na famosa história dedicada ao rei Arthur, ela
apresenta-se enterrada em uma pedra, com a parte cortante perfurando a rocha e o espaço feito
para empunhar o objeto posto para cima. Sua imagem, vista de longe, pode ser confundida
com a de uma cruz colocada sobre a rocha e isso conduz à percepção de que cruz e espada
caminharam e, em muitos contextos, ainda caminham juntas, lado a lado com a humanidade,
confundindo-se, justificando-se e sendo intercambiadas, muitas vezes, de acordo com as
necessidades enxergadas por cada comunidade ao longo de sua história. A própria castidade –
referida no trecho citado e insinuada pela menção à espada excalibur, que só poderia ser
retirada por um homem “puro”–, tida em muitas comunidades religiosas como uma virtude,
supostamente aproxima o crente dos céus mediante a imposição da renúncia ao instinto e
abdicação ao desejo – o que, por vezes, acentua o sentimento de angústia e a infelicidade
humana. Como relata Cécile Sagne, “durante séculos o Ocidente cristão condenou os desejos
sensuais e os prazeres eróticos com o mais extremo rigor”, o que pode ser constatando quando
se observa que “os santos cristãos são fundamentalmente celibatários e vivem em castidade
draconiana” (SAGNE, 1986: 8). Por causa disso, “ainda hoje, no inconsciente coletivo, a
noção de vida espiritual está habitualmente associada a princípios de austeridade, de
abstinência e a uma rejeição sistemática do sexo” (op. cit.: 8).
Ao visibilizar a necessidade de se discutir sobre a castidade em meio à clareira, o
narrador ressalta a relevância das questões relacionadas ao terreno da sexualidade na
composição das vivências religiosas do homem, pois, como já enunciou Rubem Alves, “toda
a nossa vida cotidiana se baseia numa permanente negação dos imperativos do corpo”
(ALVES, s. d.: 17).
Ainda no campo das misturas, observa-se que o ambiente em que a narrativa está
situada recompõe o campo experiencial humano em que se desenvolve o convívio com a
sacralidade, visibilizando sentimentos do homem em relação ao que é tido como sagrado.
Nesse movimento de recomposição, os elementos da natureza, de modo mais geral, e as
árvores, mais especificamente, são responsáveis pelo estabelecimento de uma ordem que
sustenta a fundação de um espaço cósmico em que a sacralidade se manifesta.
3.4. A ordem das árvores na conversão de Caos em Cosmos
Na narrativa em análise, um dos mais insistentes gestos do narrador é o de
antropomorfizar as árvores, desenvolvendo um percurso que deságua nas relações entre o
92
humano e o divino. Neste trajeto criativo, as plantas aparecem humanizadas, atuando como
fundadoras de um ambiente sagrado em relação ao qual desempenham as mais variadas
funções. A trajetória do João-José, o narrador-personagem, passa pela aroeira, o joá-bravo, a
sumauveira, muitos bambus, um gravatá, um angelim, um jequitibá rosa e um vermelho, um
jacarandá, algumas imbaúbas, buritis e muitos outros vegetais que, apesar de unidos enquanto
componentes de uma mesma paisagem, são individualizados pelos atributos humanos que lhe
são associados e pelo papel que lhes é atribuído em meio à ordenação do ambiente.
No processo de antropomorfização das árvores, é digna de ênfase a passagem em que
são descritos o joá-bravo, as sumauveiras e os bambus:
No chão, o joá-bravo defende, com excesso de espinhos, seus reles amarelos frutos.
E, de vez em quando, há uma sumauveira na puberdade, arvoreta de esteio fino e
cobertura convexa, pintalgada de flores rubras, como um pára-sol de praia.
[...]
Os bambus! Belos, como um mar suspenso, ondulado e parado. Lindos até nas
folhas lanceoladas, nas espiguetas peludas, nas oblongas glumas... Muito poéticos e
muito asiáticos, rumorejantes aos voos do vento (ROSA, 2001: 273).
Traços do temperamento humano são atribuídos às árvores, como o instinto de
proteção em relação aos filhos, relacionado ao joá-bravo, assim como fases do
desenvolvimento do homem são associadas aos vegetais, como no caso das sumauveiras
relacionadas à puberdade. No caso específico dos bambus, ademais da descrição de rara
beleza e a explicitação de que são eles os vegetais escolhidos pelo narrador e por outro ser
desconhecido para inscrever seus versos, deixando-os gravados no caule das plantas, tem-se a
associação às civilizações do continente asiático em um gesto que se repete na descrição dos
cambarás ruivos que se encontram em torno de uma planta designada colher-de-vaqueiro,
ressaltada como uma das três grandes árvores que se destacam na paisagem:
Um claro mais vasto, presidido pelo monumento perfumoso da colher-de-vaqueiro,
faraônica, que mantém à distância cinco cambarás ruivos, magros escravos,
obcônicos, e outro cambará, maior, que também vem afinando de cima para baixo.
Puro Egito (ROSA, 2001: 280).
As imagens que vão ganhando forma trazem à tona os mais variados atos humanos e
também os contornos assumidos pelo divino, e compreendem desde a aparente reverência
diante de um soberano até os enlaces eróticos que fazem parte das relações afetivas, como é
possível perceber na seguinte descrição das imbaúbas:
Mas, as imbaúbas! As queridas imbaúbas jovens, que são toda uma paisagem! ...
Depuradas, esguias, femininas, sempre suportando o cipó-braçadeira, que lhes galga
o corpo com espirais constrictas. De perto, na tectura sóbria – só três ou quatro
esgalhos – as folhas são estrelas verdes, mãos verdes espalmadas; mais longe,
levantam-se das grotas, como chaminés alvacentas; longe-longe, porém, pelo morro,
93
estão moças cor de madrugada, encantadas, presas, no labirinto do mato (ROSA,
2001: 278).
As imbaúbas enlaçadas pelas ramificações dos cipós-braçadeira aparecem como
corpos femininos envoltos em braços que, a julgar pelo verbo “suportar” empregado na
descrição rosiana, não necessariamente as acariciam, mas estabelecem com elas um vínculo
lúbrico através do qual lhes galgam os corpos. Presas no labirinto do mato, elas se resignam
diante das forças que as enlaçam, em um tom poético que se compõe de sensualidade e
melancolia. E com esta imagem se adensa a composição de um cenário sagrado que aparece
embebido de erotismo, dentro do qual merece ser comentada a descrição árvore que é
apresentada como a primeira dentre as três que se destacam na clareira observada pelo
narrador:
Primeiro, o "Venusberg" – onde impera a perpendicularidade excessiva de um
jequitibá-vermelho, empenujado de líquens e roliço de fuste, que vai liso até vinte
metros de altitude, para então reunir, em raqueta melhor que em guarda-chuva, os
seus quadrangulares ramos. Tudo aqui manda pecar e peca – desde a cigana-do-mato
e a mucuna, cipós libidinosos, de flores poliandras, até os cogumelos cinzentos, de
aspirações mui terrenas, e a erótica catuaba, cujas folhas, por mais amarrotadas que
sejam, sempre voltam, bruscas, a se retesar. Vou indo, vou indo, porque tenho
pressa, mas ainda hei de mandar levantar aqui uma estatueta e um altar a Pan
(ROSA, 2001: 279).
A perpendicularidade do jequitibá-vermelho apresenta-se como símbolo fálico inscrito
em meio à mata. O posicionamento vertical da árvore dá forma à montanha de Vênus
(Venusberg) que se impõe no espaço. A catuaba, também presente no lugar descrito,
apresentada como portadora de folhagens que, por mais amarrotadas que estejam, sempre
voltam a se estirar, contribui para o adensamento na atmosfera erótica concebida pela inicial
alusão. Soma-se a isso a impressão registrada pelo narrador de que, em meio a semelhante
paisagem, tudo “manda pecar e peca” (ROSA, 2001: 279) – afirmação que remete à ideia
defendida por muitas comunidades religiosas de que a manutenção de relações sexuais, sem a
permissão oficialmente concedida através das cerimônias religiosas, constitui um pecado e,
consequentemente, o terreno do erotismo consiste em uma ameaça ao processo de elevação do
espírito. A natureza aparece como algo maior que o narrador, podendo ser tomada como
criação divina, mas, ao mesmo tempo, como aquela que incita o homem a pecar e é
igualmente pecadora. Desconstrói-se, dessa maneira, a visão cristã a respeito do pecado, visto
como prática exclusivamente humana, mediante a apreciação de uma natureza que seria
pecante e responsável pela composição de um cenário libidinoso, em que elementos como a
cigana-do-mato incitam o homem a pensamentos eróticos. Interessante é notar que,
94
precisamente no ponto do relato em que o erotismo ganha visibilidade em meio à clareira, de
certo modo, tida como ambiente sagrado pelo narrador, seu relato explicita uma pressa que,
supostamente, o impede de prosseguir com a descrição da imagem libidinosa que se compõe
em sua mente. A impressão que se tem, a esta altura da narração, é de que o homem tenta se
esquivar dos pensamentos com conotação sexual que lhe surgem em meio ao cenário sagrado,
em uma atitude perfeitamente compreensível se se levam em conta os princípios cristãos que,
como se pode perceber em algumas passagens do texto, estão fortemente presentes na
consciência do narrador-personagem.
Os pesos e medidas com que se avaliam os homens estendem-se ao exame da
natureza, como atesta o seguinte excerto da narrativa:
Todos aqui são bons ou maus, mas tão estáveis e não-humanos, tão repousantes!
Mesmo o cipó-quebrador, que aperta e faz estalarem os galhos de uma árvore
anônima; mesmo o imbê-de-folha-rota, que vai pelas altas ramadas, rastilhando de
copa em copa, por léguas, levando suas folhas perfuradas, picotadas, e sempre
desprendendo raízes que irrompem de junto às folhas e descem como fios de aranha
para segurar outros troncos ou afundar no chão (ROSA, 2001: 280).
Como já ficou dito, percebe-se um movimento no sentido de antropomorfizar os
elementos que compõem a paisagem, na medida em que suas feições são comparadas a gestos
humanos. Esse processo compreende o estabelecimento de hierarquias entre os vegetais, pois,
conforme o exposto nos trechos já citados, o posicionamento de algumas plantas, no entender
do narrador, externa submissão a outras. Além disso, nas alusões aos enlaces eróticos
supostamente estabelecidos entre os vegetais, há sempre o destaque para uma força
dominadora que se impõe e torna possível a conjunção entre os seres. Nas descrições da
vegetação estão expostas as feições de imposição, submissão, proteção e conjunção,
assumidas pelos relacionamentos humanos. A ressalva de que todos os seres presentes na
paisagem são não-humanos, no entanto, distancia o narrador-personagem do que está sendo
descrito, em um movimento de autopreservação que priva o homem do sentimento de estar
tornando visíveis as suas próprias vísceras. Colocados em posição de superioridade ou
inferioridade em relação ao ente que narra, os componentes da natureza, embora
antropomorfizados, são sempre tratados como sendo “outra coisa”, o que insinua um ato
incisivo de preservação de face desferido pelo narrador.
Conforme enunciado acima, em alguns pontos da estória, a impressão deixada pelas
analogias feitas é a de que os elementos da natureza são tomados pelo narrador como
ocupantes de uma instância superior à sua, como se percebe na seguinte descrição da eritrina:
95
Agora, sim! Chegamos ao sancto-dos-sanctos das Três-Águas. A suinã, grossa, com
poucos espinhos, marca o meio da clareira. Muito mel, muita bojuí, jati, urussu, e
toda raça de abelhas e vespas, esvoaçando; e formigas, muitas formigas marinhando
tronco acima. A sombra é farta. E há os ramos, que trepam por outros ramos. E as
flores rubras, em cachos extremos – vermelhíssimas, ofuscantes, queimando os
olhos, escaldantes de vermelhas, cor de guelras de traíra, de sangue de ave, de boca e
báton (ROSA, 2001: 280).
A descrição da eritrina é rica em alusões à imagem materna. Situada no centro da
clareira, ela é tida como o “sancto-dos-sanctos das Três-Águas”, acolhendo sob sua sombra
farta uma diversidade de componentes: ramos sobrepostos, abelhas de muitas espécies,
formigas. Sua presença é remanso em meio às outras figuras presentes na mata, embora
também cause certo desconforto, sobretudo visual, pela ofuscante cor vermelha de suas flores.
A vasta sombra da árvore apresenta-se como abrigo para o qual confluem os outros seres,
inclusive o narrador, que sobre ela afirma que “além de bela, calma e não-humana, é boa, mui
bondosa – com ninhos e cores, açúcares e flores, e cantos e amores – e é uma deusa, portanto”
(ROSA, 2001: 280). Em tal afirmação sobressai-se não só o intento de divinização da grande
árvore, mas a associação da mesma a imagem materna sempre presente nas grandes
mitologias. Seja no cristianismo, seja nas religiões de matriz africana, ou nas de origem
indígena, a imagem da grande deusa mater institui-se como referência incoercível que, de
diferentes formas, se faz presente na vida da comunidade como reflexo dos anseios que se
inscrevem em seu imaginário. A divinização da eritrina apoia-se em dois grandes símbolos: a
árvore e a mãe.
Na descrição da árvore chama a atenção a ênfase na presença de muitos ninhos sobre
ela, o que reforça a sua imagem de grande mãe que acalenta os seres presentes no ecossistema
descrito. Dentre as muitas plantas dispostas pela mata, ela é a única descrita como muito
bondosa, em meio a um universo em que todos são bons e maus. Sua bondade é reafirmada
através da proclamação da confiança que o narrador nela deposita, mediante a constatação:
“–Uf! Aqui, posso descansar” (ROSA, 2001: 280).
Diante da eritrina o narrador se porta como o crente que se encontra no interior de seu
templo, em face do altar erguido em homenagem ao seu deus protetor. A confiança depositada
na sombra da árvore torna-se ainda mais nítida quando, em meio ao desespero por ter ficado
repentinamente cego, o narrador volta-se para ela em busca de proteção, tal como o filho
amedrontado que, no meio da noite, busca consolação no seio materno: “Abraço-me com a
suinã. O coração ribomba” (ROSA, 2001: 285).
96
Soma-se a isso, a ênfase dada pelo narrador ao momento em que, impelido pela
necessidade de sair da mata, ele se afasta do campo de proteção de sua árvore-deusa:
Ando. Ando. Será que andei? Uma cigarra sissibila, para dizer que estou cômico.
Fez-me bem. Mas, onde estarei eu, aonde foi que vim parar? Pior, pior. Perdi o
amparo da grande suinã (ROSA, 2001: 287).
À maneira do filho pródigo que se afasta dos cuidados parentais, ou do apóstata que se
distancia dos preceitos de sua doutrina, em meio à cegueira, o narrador vai para longe da
árvore que sacraliza e, durante a sua peregrinação em busca de uma via de saída da mata, ele
percebe-se sozinho, sem a proteção de sua “deusa”. A movimentação da personagem no texto
rosiano metaforiza um dos movimentos humanos fundamentais: tem-se a imagem do homem
que, ao passar por situações atordoantes, afasta-se da divindade em que acredita e, momentos
depois, sentindo-se desamparado diante das adversidades, é tomado pela sensação de vazio
causada pela constatação de que não pode contar com ninguém para obter consolação em
meio aos percalços da vida. Entre árvores e deuses, edifica-se um discurso narrativo que dá
conta das inquietações universais do homem no que se refere à sua relação com o sagrado.
Inquietações estas que emanam da reflexão sobre a subjetividade do olhar e nela deságuam,
como tentaremos demonstrar mais adiante.
É importante pontuar que a própria clareira, em que se situam o libidinoso jequitibá-
vermelho, a faraônica colher-de-vaqueiro e a bondosa eritrina, possui todos os elementos
necessários para a constituição de um locus amoenus, ambiente fundamental no trajeto
percorrido pelos heróis, haja vista que “a poesia latina que floresceu a partir de 1070
apresenta grande número desses lugares” (CURTIUS, 2013: 254). De acordo com Ernst
Curtius, o lugar ameno, cuja presença no imaginário humano é constatada desde a época dos
grandes impérios, “é uma bela e sombreada nesga da Natureza. Seus elementos essenciais são
uma árvore (ou várias), uma campina e uma fonte ou regato. Admitem-se, a título de variante,
o canto dos pássaros, umas flores e, quando muito, o sopro de brisa” (op. cit.: 252). Entre suas
“delícias”, constantemente estão, segundo o autor, “especiarias, bálsamo, mel, vinho, cedro,
abelhas” (op. cit.: 255). No centro da clareira, sobretudo na vasta sombra da suinã (ou
eritrina), encontram-se os componentes necessários para a composição do cenário clássico, o
que demonstra que a narrativa rosiana se constrói a partir da captação de antigos anseios que
fazem parte das relações estabelecidas entre homem e natureza, entre homem e sagrado.
As imagens oferecidas pelo cenário natural são filtradas pelas lentes humanas que
permitem as percepções do narrador-personagem e possibilitam o estabelecimento das
analogias entre configurações dos componentes paisagísticos e feitios assumidos pelo humano
97
em seus múltiplos aspectos. Essas associações possibilitam a percepção de contradições e
angústias que inquietam a humanidade em sua busca por transcendência.
Luiz Roncari, em apreciação às três árvores que compõem o cenário descrito em “São
Marcos”, avalia que, na novela, “a experiência amorosa é contemplativa, está abstraída e
concentrada num lugar quase sagrado, onde os três arquétipos do amor são representados
como três árvores guias, que podem salvar ou perder o homem” (RONCARI, 2001: 413). Sua
análise, que versa sobre questões amorosas determinantes em algumas narrativas de Rosa,
interessa-nos por apontar para as potencialidades significativas inerentes à trindade instituída
na narrativa em análise. Se, como insinua Roncari, as árvores trazem à tona os três arquétipos
amorosos que marcam as relações humanas, a nosso ver, elas também revelam três grandes
forças que movem o homem em sua busca por transcendência. O erótico jequitibá-vermelho, a
majestosa colher-de-vaqueiro e a generosa eritrina materializam os aspectos avassalador,
majestoso e fascinante que compõem as experiências numênicas, conforme observa Otto
(2007), além de representarem três campos de extrema importância para a vida religiosa de
qualquer comunidade. O sexo, a reverência e o amor, representados pelas três árvores, se
impõem como temáticas a serem discutidas em todas as tradições religiosas. Os deuses, na
posição de figuras parentais por excelência, como veio a demonstrar a psicanálise freudiana17
,
são tidos como entidades amorosas e protetoras, como a eritrina, e dignas do mais profundo
respeito – e consequente reverência –, como a colher-de-vaqueiro, mas também se revelam
determinantes na contenção dos impulsos sexuais – associados na novela ao jequitibá-
vermelho –, por restringirem, mediante a inculcalção de valores, as possibilidades de enlaces
eróticos e satisfação de desejo a serem experienciadas pelo homem. A eritrina e a colher-de-
vaqueiro, seguindo essa linha de raciocínio, remetem às forças que sustentam as divindades,
enquanto o jequitibá-vermelho, até mesmo por ser descrito a partir de características fálicas,
apresenta-se como índice que aponta para as pulsões humanas que interferem em sua vivência
religiosa, colocando-o contra o potencial castrador da figura parental.
O texto de Rosa constantemente se vale das árvores e suas formas para dar vazão aos
sentimentos que constituem as experiências numênicas. Em alguns momentos da narrativa,
tem-se a impressão de que a voz narrante passeia pela mata como quem adentra um templo
antigo e nele encontra os membros de civilizações que lhe são anteriores e, por isso mesmo,
ainda que distantes de seu campo experiencial imediato, fazem parte de seu íntimo e o
17
Conforme FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão. In: FREUD. Sigmund. Obras psicológicas completas de
Sigmund Freud. Edição standard brasileira. Trad. bras. superv. por Jayme Salomão. Vol. XXI. Rio de Janeiro:
Imago, 1996.
98
influenciam. É o que se percebe no seguinte excerto, no qual se tem o deslumbramento diante
da grandeza, que muito se aproxima do assombro destacado por Otto (2007) como integrante
da experiência numênica:
Porque, diante de um gravatá, selva moldada em jarro jônico, dizer-se apenas
drimirim ou amormeuzinho é justo; e, ao descobrir, no meio da mata, um angelim
que atira para cima cinquenta metros de tronco e fronde, quem não terá ímpeto de
criar um vocativo absurdo e bradá-lo – Ó colossalidade! – na direção da altura?
(ROSA, 2001: 274) (Grifos do autor).
No fragmento supracitado temos a comparação do gravatá a um jarro moldado pelas
mãos humanas. Dessa analogia se percebe a sensação do homem religioso de que está diante
de um cosmos engendrado por mãos divinas. A natureza é retratada como criação inexplicável
diante da qual o narrador não esconde o seu fascínio e sente-se motivado a proclamar, por
meio de gritos, o seu sentimento de criatura e admiração.
Mircea Eliade (1998: 213) afirma que “efetivamente, encontram-se árvores sagradas,
ritos e símbolos vegetais na história de todas as religiões, nas tradições populares do mundo
inteiro, nas metafísicas e nas místicas arcaicas, para não falar da iconografia e na arte
populares” e, com essa constatação, evidencia a tendência humana em associar as suas
práticas religiosas à vegetação que faz parte dos ambientes pelos quais transita. Na tentativa
de mapear as relações místicas estabelecidas entre homens e árvores, o autor estabelece
algumas categorizações das relações entre humanidade e vegetais, dentre as quais nos
interessam especialmente as seguintes:
a) A árvore enquanto entidade divinizada: árvore símbolo da vida, da fecundidade
inesgotável, a realidade absoluta; em relação com a grande Deusa; identificada à
fonte da imortalidade (ELIADE, 1998: 215);
b) A árvore enquanto receptáculo, projeção do humano ou elemento a ele ligado: as
árvores antropogenésicas; a árvores como continentes das almas dos antepassados;
o casamento das árvores; a presença da árvore nas cerimônias de iniciação
(ELIADE, 1998: 215).
As categorias que selecionamos, dentre as sete categorizações principais mencionadas
por Eliade (1998), ilustram precisamente as relações estabelecidas pelas árvores no universo
ficcional em análise. Nele se observa a presença de árvores humanizadas, como no caso do
joá-bravo, e árvores divinizadas, como no caso da eritrina, que é o mais acabado exemplo
desse movimento na narrativa. E das afirmações de Eliade se depreende a ancestralidade das
relações que o narrador estabelece com os elementos da natureza, o que coloca em evidência a
continuidade de práticas antigas no fazer do homem contemporâneo.
99
Chevalier e Gheerbrant (2015: 84) ressaltam que a árvore não é por si só objeto de
culto, é sempre “a figuração de uma entidade que a ultrapassa”. Suas inúmeras possibilidades
de valoração simbólica, ainda de acordo com os autores, derivam de sua capacidade de
colocar em comunicação os três níveis cósmicos: “o subterrâneo, através de suas raízes
sempre a explorar as profundezas onde se enterram; a superfície da terra, através de seu
tronco e de seus galhos inferiores; as alturas, por meio de seus galhos superiores e de seu
cimo, atravessados pela luz do céu” (op. cit.: 84). Além disso, a árvore se constitui a partir da
comunicação entre os vários elementos da natureza: “a água circula com sua seiva, a terra
integra-se a seu corpo através das raízes, o ar lhe nutre as folhas, e dela brota o fogo quando
se esfregam seus galhos um contra o outro” (op. cit.: 84). Dessas situações se percebe a
pertinência do simbolismo de “centro” constantemente associado às árvores. Em “São
Marcos” não se pode negligenciar o fato de que o centro da mata em que o narrador-
personagem se encontra é demarcado por uma clareira com três grandes árvores. Além da
simbologia do centro, que como enfatiza Eliade (2010), está presente nas diversas
civilizações18
, percebe-se na demarcação do cerne da clareira a alusão à imagem da tríade
que, como já ficou explicado neste capítulo, é amplamente significativa, sobretudo para a
comunidade cristã cuja grande divindade constitui-se em torno de uma trindade.
O fato é que, representante da regeneração e elemento integrador entre níveis cósmicos
e elementos naturais, a árvore constitui um grande símbolo nas mais variadas tradições
religiosas e, em decorrência disso, sua presença na narrativa rosiana é tão expressiva e
convida a reflexão sobre tão vasto leque de gestos humanos em direção à transcendência. Sua
presença no texto rosiano marca a tentativa de conversão de caos em cosmos, na medida em
que se percebe que o relato do narrador ressalta uma espécie de ordenamento na posição dos
vegetais que visualiza. Veja-se:
Agora vamos retroceder, para as três clareiras, com suas respectivas árvores
tutelares; porque, em cada aberta do mato há uma dona destacada, e creio mesmo
que é por falta de sua licença que os outros paus ali não ousam medrar (ROSA,
2001: 279).
Tratadas como soberanas, as três grandes árvores, apresentadas como tríade suprema,
surgem como detentoras do poder de mando e responsáveis pelo ordenamento da mata. A
atribuição de autoridade às árvores parece fruto dos anseios do homem religioso que procura
18
De acordo com Eliade, na compreensão do homem religioso, “o “verdadeiro mundo” se encontra sempre no
“meio”, no “Centro”, pois é aí que há rotura de nível, comunicação entre as zonas cósmicas” (2010: 42), de
modo que “o homem religioso desejava viver o mais perto possível do Centro do Mundo” (ELIADE, 2010: 43).
100
no “centro” da clareira uma ordem cósmica através da qual a disposição dos elementos na
paisagem faça sentido diante de seus olhos, tornando possível a sua orientação no ambiente
em que se move.
3.5. A sacralidade das águas
Quase me achei em todo mal [...]. Bebe a água da tua própria cisterna e das correntes do teu poço.
Derramar-se-iam por fora as tuas fontes, e, pelas praças, os ribeiros de águas? [...] Seja bendito o teu
manancial [...]. Por que, filho meu, andarias cego pela estranha e abraçarias o seio de outra? Porque os
caminhos do homem estão perante os olhos do SENHOR, e ele considera todas as suas veredas.
(Provérbios 5: 14-21).
Embora esteja mais próximo das reflexões sobre o adultério e suscite outras questões
relevantes para a vida conjugal, o fragmento bíblico em epígrafe é significativo por carregar
em si alguns dos elementos determinantes para a construção da narrativa rosiana. Quando o
provérbio traz à tona a figura de um homem cego, temente ao mal e cercado por muitas águas
e metáforas hídricas, tem-se a evocação de imagens essenciais na construção da novela de
Guimarães Rosa. As semelhanças entre os componentes convocados para o texto sagrado e a
narrativa do escritor mineiro não nos interessam por insinuarem algum tipo de diálogo
intertextual entre os escritos, mas por demonstrarem a recorrência com que problemáticas
como a cegueira e o temor ao mal e elementos como a água – cruciais para o texto de
Guimarães – são convidados a fazer parte dos discursos registrados pelo homem.
Em “São Marcos”, o esforço despendido na percepção de um ordenamento maior
existente em meio aos elementos da natureza não se limita à observação dos vegetais
presentes na mata. A “travessia” iniciática19
do narrador personagem passa necessariamente
pelas muitas águas que estão presentes no ambiente no qual ele se move.
Como já foi explicitado, o narrador empreende o seu percurso em meio ao que ele
designa “Mato das Três Águas”. A denominação do lugar, por si só, já conjuga a simbologia
do número três20
e o elemento água21
. Este último, como observa Eliade (1998: 153), é matriz
19
Interpretamos o percurso do narrador na mata como iniciático porque compreendemos que ele é divisor de
águas na maneira como o homem lida com as práticas de feitiçaria desenvolvidas por João Mangolô. Uma das
afirmações do narrador é a de que, na época em que vivenciou os fatos narrados, não acreditava em feiticeiros.
Neste sentido, os acontecimentos vivenciados podem ser encarados como transformadores da visão de mundo do
homem religioso, na medida em que modificam a maneira como ele enxerga os acontecimentos que se
desenvolvem em seu entorno. 20
Aqui não nos deteremos no significado da trindade, por nós já abordado ao longo deste capítulo. Mencionamos
a associação por considerarmos relevante a junção de dois símbolos tão significativos para o pensar do homem
religioso no estabelecimento de um nome para o lugar em que os feitos do narrador estão ambientados. 21
A junção de grandes símbolos é, aliás, determinante na elaboração de “São Marcos”, haja vista o já
mencionado caso da conjunção entre o triângulo e o círculo que se processa a partir dos movimentos de uma ave
em meio às águas.
101
de todas as possibilidades de existência e, entre seu ciclo de transformação e purificação e as
funções que desempenha na manutenção da vida, surge como essência da vegetação, elixir da
imortalidade, criador da vida e princípio de cura.
No texto, além da designação que já evidencia a relevância do elemento água na
maneira como o narrador percebe a natureza ao seu redor, nota-se ainda a menção a uma série
de outras águas para além das três que dão nome ao lugar:
Pelas frinchas, entre festões e franças, descortino, lá em baixo, as águas das Três-
Águas. Três? Muitas mais! A lagoa grande, oval, tira do seu polo rombo dois
córregos, enquanto entremete o fino da cauda na floresta. Mas, ao redor, há o brejo,
imensa esponja onde tudo se confunde: trabéculas de canais, pontilhado de poços, e
uma finlândia de lagoazinhas sem tampa (ROSA, 2001: 278).
Na citada descrição do ambiente se percebe a força do número três na nomeação do
lugar. O ambiente possui mais que três fontes de águas, mas a força da tríade no imaginário
do responsável, ou dos responsáveis, pela sua designação faz com que somente três delas
sejam consideradas no “batismo” do espaço. Por outro lado, a ênfase nas muitas águas
presentes no ambiente demonstra a relevância do elemento no mundo pelo qual o narrador
transita. Não se pode deixar de lado o fato de que todo o ambiente nos é mostrado através dos
esforços enunciativos do narrador e de sua tentativa de conversão da realidade apreendida em
signos, que como afirma Cassirer (1976: 14) é um gesto alusivo incapaz de dar conta da
concretude do que está “vivo” no mundo.
Segundo Chevalier e Gheerbrant, “as significações simbólicas da água podem reduzir-
se a três temas dominantes: fonte de vida, meio de purificação, centro de regenerescência”
(CHEVALIER & GHEERBRANT, 2015: 15). Ainda de acordo com os autores, enquanto
massa indiferenciada que se adéqua ao recipiente que contém, as águas representam “as
infinidades do possível”, contendo “todo o informal, o germe dos germes, todas as promessas
de desenvolvimento, mas também todas as ameaças de reabsorção”, por isso
mergulhar nas águas, para delas sair sem se dissolver totalmente, salvo por uma
morte simbólica, é retornar às origens, carregar-se, de novo num imenso reservatório
de energia e nele beber uma força nova: fase passageira de regressão e
desintegração, condicionando uma fase progressiva de reintegração e
regenerescência (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2015: 15).
Na narrativa, a imersão do narrador no “Mato das Três Águas” representa um retorno
não às suas origens, mas às origens da humanidade, no sentido de que o relato dá conta de um
encontro entre o homem moderno e o pulsar primordial que o força a ir em busca da
ultrapassagem de sua condição. Os traços do homem a-religioso, presentes na consciência do
narrador, se dissolvem junto com as suas dúvidas a respeito do poder dos feiticeiros. Um
102
homem novo, forjado pelas inquietações antigas, surge em momento posterior à imersão no
“Mato das Três Águas”. Se, a princípio, João-José não acreditava em feiticeiros e zombava de
quaisquer práticas que a eles se relacionassem, é justamente o mergulho simbólico nas “três
águas” que possibilita uma mudança em sua cosmovisão. Neste sentido, o homem que,
inicialmente quer se apresentar como “a-religioso”, embora evidentemente não o seja – como
se pode perceber ao atentar para a grande quantidade de objetos de proteção que ele porta –,
se descobre e, principalmente, se assume como “homem religioso” (ELIADE, 2010),
modificando a maneira como se percebe em meio à comunidade em que está inserido. Ao
apoiar os acontecimentos narrados em uma superfície esponjosa, embebida por muitas águas,
João-José, enquanto voz que reflete sobre o vivido, prenuncia os movimentos de dissolução,
renovação e ressurreição que se farão determinantes em sua trajetória.
A água, como destaca Evaristo Miranda, só na tradição judaica, alimenta “mais de
4.000 anos de seiva criadora” (MIRANDA, 2004: 10). Sua vasta presença nos discursos de
teor cosmogônico justifica-se, conforme elucida Raïssa Cavalcanti, por ela ser comumente
vista como o líquido supremo, “base” e “fonte” “da vida material” (CAVALCANTI, 1998:
39). Ela é a essência indispensável a todos os seres e, como ressalta Miranda (2004: 17), “no
relato bíblico da criação (Gn I), Deus cria os céus, a terra, a luz e os seres vivos. Mas sua
palavra não cria as águas” (MIRANDA, 2004: 17). Estas se impõem como seiva que se
associa ao pó na mão divina para dar origem aos seres, e, em função disso, “a água é vista de
forma geral como a expressão imanente do transcendente. [...] uma hierofania, a manifestação
do sagrado, um modo de aparição de Deus. Por esse motivo, sempre se atribui à água uma
origem celeste, como proveniente do céu” (CAVALCANTI, 1998: 16).
Segundo observa Cavalcanti, “a água simboliza o ventre materno como um espaço
onde se realizam os grandes nascimentos as grandes mudanças; por isso, foi comparada pelos
alquimistas a um laboratório, a um lugar de transformações” (CAVALCANTI, 1998: 162). E
o “Mato das Três Águas”, ponto de concatenação entre as potencialidades sígnicas do número
3 e do elemento água, apresenta-se justamente como o lugar em que a consciência do narrador
se transforma.
O Mato das Três Águas compõe-se de dois córregos e uma lagoa grande. Os córregos,
que evocam a simbologia da travessia a eles inerente – tão significativa nas leituras da obra
rosiana –, são, de acordo com o que pontuam Chevalier e Gheerbrant (2015: 780- 781),
detentores de carga simbólica que aponta para as possibilidades em torno do ser, as chances
de renovação, morte e transformação que acompanham o homem em seu trajeto existencial.
103
Sua presença indicia a sinuosidade do caminho percorrido por João-José, bem como as
incertezas facultadoras de sua inesperada travessia. E, se os córregos são determinantes para a
nomeação do lugar em que transcorrem os acontecimentos relatados, é o lago o símbolo maior
que se apresenta na medida em que, segundo o narrador, sua caminhada o conduz para uma
lagoa grande, em torno da qual se encontram as três árvores “tutelares” de que falamos
anteriormente. Quando se observam as proporções das “três águas” encontradas no ambiente
descrito, nota-se que os rios ali dispostos são pequenos quando comparados ao lago que se
impõe como a terceira dentre as águas que dão nome ao local.
Chevalier e Gheerbrant (2015: 533) registram que o lago é considerado “o olho da
terra” (Grifo nosso). Observação que é compactuada por Raïssa Cavalcanti, em seu estudo
sobre os mitos relacionados à água. Esta ressalta:
O lago nos remete sempre à questão do olhar. O olhar é sempre o veículo de uma
descoberta e de uma revelação. Ver e entender são metáforas. O conhecimento mais
profundo requer um tipo de consciência desperta na qual os olhos internos estão
abertos. O homem, por possuir o sentido da visão tanto interna quanto externa, tem a
possibilidade de contemplar a beleza de Deus diretamente na natureza
(CAVALCANTI, 1998: 225).
Não se pode deixar de enfatizar que a narrativa em análise convida a refletir, desde a
canção popular inserida em sua abertura até a exposição do problema pelo qual passa o
narrador, sobre a relevância do olhar humano em sua interpretação da realidade. Segundo
Cavalcanti, “os lagos e lagoas [...] sempre foram considerados lugares sagrados”
(CAVALCANTI, 1998: 223), espaços santos por excelência porque são lugares tidos como
reveladores do divino, nos quais o sagrado se manifesta, “por hierofania, isto é, de forma
indireta, ou por epifania, de forma direta” (op. cit. 225). Desse modo, “o lago pode ser
considerado simbolicamente um microcosmo, catalisador e revelador da essência do sagrado.
O lago reflete constantemente o céu. E o céu sempre simbolizou a divindade”
(CAVALCANTI, 1998: 225). A isso se acresce o fato de que “pela sua própria forma esférica,
o lago conjuga em si mesmo o simbolismo do Centro e do círculo. [...] O círculo é um
símbolo de Deus, da eternidade” (op. cit.: 236). A lagoa, nessa linha reflexiva, coloca-se ao
lado dos grandes espaços sagrados que permeiam nosso imaginário, demarcando, para o
homem religioso, um centro em relação ao qual se deseja estar próximo para se estabelecer
uma ligação mais forte com a(s) divindade(s). Nas palavras de Cavalcanti,
Na qualidade de Centro, cuja verticalidade reúne as múltiplas dimensões da
existência, o Céu, a Terra, e o Hades, o lago se elege então como um lugar de
comunicação e de relação entre os vários níveis possíveis da experiência humana.
Ele se constitui, então, como um Centro simbólico de onde se originam e para onde
104
convergem as várias correntes de energia cósmica. E, como representação de um
Centro Cósmico, o lago se assemelha a outros símbolos da mesma natureza, como a
Árvore, a Montanha, a Fonte Cósmica, e compartilha do mesmo significado
simbólico (CAVALCANTI, 1998: 236).
Sendo o narrador um homem religioso, ainda que, em alguns momentos, relute em
admitir isso para si mesmo, é interessante observar que ele dirija-se para a clareira a fim de se
aninhar em um grande centro portador de significação mística. Mais interessante ainda é
pontuar que, segundo ele relata, a sua ida para perto da lagoa não se deve a uma tentativa de
meditação religiosa, ou a qualquer experiência que disso se aproxime, mas ao desejo de
desenvolver uma espécie de observação científica. Nas contradições constitutivas do ser, nos
deparamos com um homem que se quer “a-religioso”, mas, sem atentar diretamente para o
significado de suas ações, desenvolve os gestos adotados pelo “homem religioso” e, por isso,
dele se acerca, demonstrando a validade da afirmação eliadiana de que a relação entre os dois
homens – religioso e a-religioso – não é simplesmente de ruptura, mas reveladora de uma
espécie de continuidade (ELIADE, 2010).
As vivências do narrador, ao “pé do lago”, condensam a simbologia aquática e o valor
da lagoa enquanto elemento místico, pois é no momento em que se encontra no “grande
centro”, que o narrador perde o dom da visão, em um movimento que, apesar de ser
apresentado como consequência das práticas voduístas de João Mangolô, pode ser
interpretado como uma espécie de morte iniciática ou revelação súbita que propicia uma
transformação decisiva para João-José. Não se deve esquecer que, conforme já observou
Miranda, “a luz total cega tanto quanto as trevas totais” (MIRANDA, 2004: 29) e, neste
sentido, a cegueira do narrador não é só um acontecimento físico que denuncia os poderes de
um feiticeiro, mas um ato que desvenda ao homem novos horizontes de sua existência, em
uma espécie de iniciação involuntária. Talvez por essa ampliação de perspectivas, o ser se
faça capaz de observar, após a recuperação das vistas, três “qualidades de azul” no horizonte
(ROSA, 2001: 291). Bastante significativa é, ademais, a situação do narrador, que fica cego
precisamente junto ao lugar que, em algumas culturas, é tido como “o olho da terra”, “espelho
dos céus”, normalmente associado ao dom da visão, conforme demonstra Cavalcanti (1998).
Segundo Cavalcanti, “toda iniciação envolve um processo de morte e regeneração, por
isso exige um espaço escuro, secreto e retirado” (CAVALCANTI, 1998: 117-118). No texto
rosiano, para além do caráter reservado da clareira em que se processam os acontecimentos
extraordinários vivenciados pelo narrador, a escuridão necessária ao processo iniciático se
presentifica nos próprios olhos da personagem. A cegueira que acomete o ser, iniciada no
105
momento em que ele se encontra entre o mato e a lagoa – vegetal e água –, marca o
apagamento de sua visão para o surgimento de uma nova percepção de mundo originada em
meio às águas. A isso se segue a execução da “reza brava”, o surgimento de uma força
inexplicável que leva o narrador para fora do meio em que se encontra, retirando-o e
desviando-o das muitas águas que compõem o local, em um ato que pode ser visto como
ressurreição e estabelecimento de novos horizontes sensoriais e mentais. Essas situações
demonstram a recorrência ao poder simbólico das águas, presente em muitas mitologias, que,
nesse contexto, surge como uma espécie de frame (seguindo a linha de raciocínio de Costa
Lima (2012)) acionado na constituição do relato.
A problemática do olhar, evidenciada desde a cantiga para espantar males que abre a
narrativa, insinua-se, dessa maneira, como vetor que atravessa todo o texto rosiano, pois se
insere no relato a partir de elementos explícitos e implícitos em sua tessitura, demonstrando
que a maneira como o homem experiencia o sagrado passa necessariamente pela sua forma de
“ver” a realidade e as “verdades” que a tornam possível.
106
CONSIDERAÇÕES FINAIS
“São Marcos” é um texto elucidativo no conjunto da obra de João Guimarães Rosa
porque permite o vislumbre de alguns aspectos essenciais na concepção de sua prosa.
Marcado pelas referências a componentes da fauna, da flora e da religiosidade, presentes em
uma localidade específica, a novela ultrapassa as fronteiras do regional quando faz uso da cor
local para tornar visíveis as grandes questões que inquietam o homem. Dentre essas questões,
é produtivo destacar: os questionamentos em torno existência de forças maiores que a vontade
humana; os desafios impostos pelo convívio do homem em ambientes nos quais crenças
aparentemente inconciliáveis se misturam e dividem espaço; as dificuldades que acompanham
a abstração de uma experiência numênica; a relevância da edificação de um relato no processo
de autocompreensão; a maneira como a vida inexoravelmente nos “inicia” na medida em que
apresenta respostas inesperadas aos questionamentos interiores que, por vezes, nem sabíamos
que estavam conosco. O local surge, desse modo, como índice que propicia a reflexão a
respeito do universal, daí o desprendimento do autor das amarras do regional.
O que se percebe, após o percurso analítico empreendido ao longo deste trabalho, é
que o universo ficcional engendrado por Rosa é um espaço híbrido, instituído sob o signo da
ambiguidade, no qual as fraturas, falhas e contradições presentes no humano são habilmente
expostas, de modo a demonstrarem a possibilidade de convívio entre um princípio e a sua
negação na consciência humana. Compreendido como “eterna possibilidade”, seguindo as
trilhas deixadas pelas reflexões de Octavio Paz (2012), o homem se apresenta como um ser
atravessado pelo social, que se constitui único, singular, ao incorporar influências múltiplas
que o fazem também plural, sendo sua consciência a encruzilhada em que se processam os
diálogos entre saberes, fazeres e tradições diversas. Essa parece ser a consciência que torna
possível a concepção de “São Marcos”. O narrador inicialmente apresentado como João é
também José. Não acredita em feiticeiros, mas considera necessário o porte de objetos que lhe
protejam dos males. Debocha das crenças alimentadas pelos que estão ao seu redor, todavia,
uma rememoração do vivido revela o quanto era semelhante a todos os “outros” com os quais
conviveu e o quanto incorporou os gestos de cada um deles. Inicialmente se apresenta como
aquele que não acredita nas “verdades” propagadas pelo povo que o cerca, embora
posteriormente faça com que se perceba que ele era o “pior-de-todos”, justamente por não
externar submissão a nenhuma verdade em específico e, em virtude disso, nutrir-se, sem
grandes culpas, de todas as que se apresentam ao seu alcance. Todas essas situações são
107
índices problematizadores dos conflitos da alma humana que se constitui como um espaço de
diálogo entre crenças aparentemente díspares.
João-José, o narrador-personagem, está situado entre saberes populares e eruditos e é
seu posicionamento estratégico que lhe permite o desenvolvimento de ricas reflexões sobre o
convívio entre homem e sagrado. Na condição de observador da natureza, ele se deixa
encantar pelos elementos de um espaço minuciosamente organizado – haja vista o que foi
refletido no terceiro capítulo a respeito dos números que se sobressaem no discurso narrativo.
Por outro lado, a condição de homem “da ciência”, que ele também encarna a partir de seu
ofício de observador da natureza, leva-lhe a duvidar das crenças nutridas pelos membros da
comunidade em que se insere. A “selvagem religiosidade”, apontada por Coelho (COELHO;
VERSANINI, 1975) como uma das características do herói rosiano, manifesta-se na
personagem na medida em que uma de suas inquietudes mais relevantes é precisamente o
conflito entre aceitação e refutação das crenças em sua consciência.
Situado no jogo do “ser ou não ser” que passa incontornavelmente pela dinâmica do
“ser sem ser”, conforme demonstra Portella (MAGALHÃES; PORTELLA, 2008: 143-144),
João-José revela desde a sua curiosa autodenominação, os conflitos internos que lhe impedem
de elaborar uma palavra definitiva sobre si mesmo e sobre o mundo que o cerca. Ele se diz
João, mas salienta que também se chamará José; ele “é e não é”, sendo sem ser. E a
impossibilidade de dar palavras finais sobre os acontecimentos se estende das insinuações em
torno de seu nome à exposição de suas convicções a respeito dos acontecimentos que
testemunhou em sua trajetória existencial. Sua iniciação em meio ao “Mato das Três Águas”
demarca uma mudança de visão facultada por elementos externos e internos. Se é João
Mangolô o responsável pela cegueira que o acomete, por fazer uso de práticas voduístas, é o
próprio contador da história o responsável por proferir a “reza brava” que o faz mudar de voz
e se mobilizar até a fonte de seu problema. A força do feiticeiro fica comprovada mediante a
cegueira, mas é na recuperação das vistas que reside a maior transformação do homem que
adentra a mata. João-José profere a oração de São Marcos e se dá conta de seu poder
avassalador, de sua legitimidade. É dado o grande salto: o homem nunca mais será o mesmo.
Sua iniciação foi feita! E as sombras, que lhe impedem de relatar com precisão o que de fato
ocorreu durante os momentos imediatamente anteriores e posteriores à sua cegueira, apontam
para a impossibilidade humana de externar plenamente através da linguagem os sentimentos
constitutivos das experiências numênicas, como ressalta Otto (2007). Seu relato demarca uma
108
tentativa de autocompreensão, pois é um debruçar-se sobre o passado que justifica o modo de
olhar para o presente.
O diálogo entre bem e mal na conformação das práticas sagradas é outro aspecto que
se sobressai no texto rosiano. O feiticeiro é apresentado como aquele que desempenha ações
de amarração e desamarração; é responsabilizado pelo mal que acomete o narrador, mas é
também procurado pelos habitantes da comunidade, sorrateiramente, quando não é hora de
missa. A oração de São Marcos é vista como “reza brava”, causadora de desordem, mas
também é a via de acesso encontrada por João-José para a cura do mal que acomete seus
olhos. Até mesmo a natureza é apresentada como boa e má, pois a descrição dos componentes
paisagísticos realizada pelo narrador apresenta-se como edênica em um primeiro momento,
constituindo uma espécie de locus amoenus, “cosmos” organizado, como tentamos
demonstrar no terceiro capítulo, mas é também passível de transformar-se em “caos”, quando
a visão do homem se turva e ele é obrigado a se relacionar de forma nova com o ambiente.
Este é, aliás, um dado importante na apreciação da narrativa: quando o narrador perde a
“visão”, o cosmos se converte em “caos”. O paraíso deixa de ser refúgio e passa a ser ameaça.
O olhar apresenta-se, desse modo, como elemento crucial na apreensão da realidade por parte
do homem religioso. E isso demonstra a pertinência da problematização de Costa Lima (2006;
2014) no que diz respeito às relações entre as fraturas do sujeito e as concepções sempre
limitadas em torno do que é tido como real.
Quando Ernest Cassirer (1976) destaca a impossibilidade humana de apreender
completamente a realidade, são colocados em cena entraves concernentes à humanidade e à
linguagem. Esses entraves assumem posição de destaque nos universos ficcionais rosianos. O
discurso narrativo de João-José demonstra a sua consciência das restrições de seu olhar, dos
percalços que distanciam a sua vivência do relato construído em torno dela. A própria locução
adverbial empregada pelo narrador, na abertura de seu texto, – “naquele tempo” (ROSA,
2001: 261) – expõe o distanciamento interposto entre o homem que viveu os acontecimentos e
aquele que dá conta do vivido.
É digno de ênfase, também, o trajeto desenvolvido em torno das árvores e águas
presentes no local em que transcorrem os fatos narrados. Os atos miméticos habilitam um
universo análogo ao real em que as plantas detêm atributos humanos. A mímesis de produção
faculta o desvendamento de posições assumidas pelo homem em relação aos seus deuses,
através da recorrência à prosopopeia – figura de linguagem responsável pela humanização das
árvores. Confiança, sedução, temor e fascínio são alguns dos sentimentos despertados pela
109
flora no coração do vivente que se coloca diante dela. Aspectos equivalentes aos que são
pontuados por Rudolf Otto (2007) como característicos das experiências numênicas. O
mimema torna possível, nesse contexto, a meditação sobre a realidade e o alargamento dos
horizontes de compreensão em torno da mesma. As árvores antropomorfizadas são
reveladoras das relações que se estabelecem entre homem e sagrado, por colocarem em foco
os sentimentos que inquietam o ser posto em face da sacralidade. O amor maternal projetado
na eritrina, o erotismo do jequitibá-vermelho e a imponência da colher-de-vaqueiro
apresentam-se como forças determinantes para o convívio humano com o “numen”. As
atitudes atribuídas às árvores aparecem como frames, na terminologia de Costa Lima (2003),
reveladores de comportamentos humanos, que aproximam o texto literário da realidade, ainda
que aquele se edifique em torno de um universo próprio instituído pela diferença.
O desenvolvimento desta pesquisa nos permite levantar a hipótese de que o sagrado
aparece na narrativa rosiana não somente como um elemento entre outros a ser tematizado
pelo ficcional, mas como força constitutiva do narrado, uma vez que, todas as veredas
presentes no percurso de João-José, de uma forma ou de outra, convidam a pensar sobre as
feições assumidas pela sacralidade no cerne do imaginário. Alentos, dores, atrações e medos
adquirem espaço nas páginas da narrativa. Sem exageros, se pode dizer que todos os
elementos observados pelo narrador, na paisagem, nos animais, estão direta ou indiretamente
articulados às sensações e atos humanos presentes no cenário religioso.
Sandra Vasconcelos, em estudo sobre Guimarães Rosa, enuncia o seguinte: “Em
tempos imemoriais, os homens narravam mitos para resolver mistérios que não chegavam a
compreender. Nos tempos modernos, os homens ouvem e narram histórias para não esquecer
quem são” (VASCONCELOS, 1997: 183). E em “São Marcos” o narrador, ao falar sobre si,
compromete-se a dizer do homem e de suas intermináveis travessias, evocando mistérios que
até agora não fomos capazes de desvendar, recordando-nos, após muitos progressos e
recessões, quem ainda somos.
Ao término desta pesquisa, ressaltamos que, no texto analisado, o narrador-
personagem desafia-se a refletir sobre os caminhos tortuosos trilhados pela humanidade em
sua insuperável busca por transcendência. E, no jogo do texto, nós, os leitores, somos também
desafiados a desenvolver essa instigante travessia, a respeito da qual nenhuma palavra
humana pode ser tomada como definitiva.
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