View
220
Download
0
Category
Preview:
Citation preview
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXIII Encontro Anual da Compós, Universidade Federal do Pará, 27 a 30 de maio de 2014
www.compos.org.br 1
UM PISCAR DE OLHOS: experiência estética e vida
cotidiana1 I IN THE TWINKLE OF AN EYE: aesthetic experience and
everyday life 2 EDUARDO ANTONIO DE JESUS
Resumo: Tomando duas obras de Rivane Neuenschwander refletimos sobre
experiências estéticas que se fazem no confronto entre os espaços da arte e a vida
cotidiana, construindo seus sentidos justamente na passagem de um a outro,
reafirmando, com isso, uma potência estética na vida ordinária. Especialmente
quando os circuitos midiáticos, como aponta Christoph Türcke, acionam um
espetáculo ainda mais complexo, como uma busca constante por sensação
modulando outras subjetividades, essas obras aponam outros caminhos menos
óbvios. Para tanto partimos da literatura de Ingo Schulze e apropriamos das
reflexões de Deleuze e Guattari em torno da obra de Kafka trazendo-as para o
contexto da arte.
Palavras-Chave: Experiência estética. Vida Cotidiana. Arte contemporânea.
Abstract: Taking two works of Rivane Neuenschwander reflect on aesthetic
experiences that are done in the confrontation between the spaces of art and
everyday life, building his senses just in passing from one to another, confirming
thereby the aesthetic power in ordinary life. Especially when the media circuits, as
Christoph Türcke points, trigger an even more complex spectacle, as a constant
quest for feeling modulating other subjectivities, these works show us other less
obvious ways. For this purpose we start from Ingo Schulze literature and
appropriated the reflections coming from Deleuze and Guattari around Kafka
literature bringing them into the context of art.
Keywords: Aesthetic experiences. Everyday life. Contemporary art.
1. Sem epifania no domingo ao entardecer
Uma casca de laranja retirada inteira, absolutamente inteira. A sensação provocada
por essa imagem corriqueira no narrador de “Nada de literatura ou epifania no domingo ao
1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação e Experiência Estética do XXIII Encontro Anual da
Compós, na Universidade Federal do Pará, Belém, de 27 a 30 de maio de 2014. 2 Professor do Programa de Pós Graduação em Comunicação Social da faculdade de Comunicação e Artes da
PUC Minas. Doutor pela ECA-USP, edujesus@uol.com.br
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXIII Encontro Anual da Compós, Universidade Federal do Pará, 27 a 30 de maio de 2014
www.compos.org.br 2
entardecer” conto de Ingo Schulze, traduz, de forma sutil e delicada, as potências criadoras
das experiências ordinárias e comuns. Schulze logo na primeira linha do conto já sinaliza
“talvez eu apenas tivesse bebido demais” para sugerir que a experiência torne-se ainda mais
ordinária, demonstrando inicialmente certo descrédito pelo que sua filha, em determinado
momento da narrativa, descobre: a casca de uma laranja inteira, mas logo depois eles
descobrem juntos algo mais:
Nós dois observávamos a casca de laranja e com ela o milagre de existir a casca de
laranja, o milagre de todos e o de tudo existir, o milagre por inteiro, na lata. Mais do
que isso não há a dizer, não me pergunte por explicações. Nós compreendemos o
milagre de nossa existência. Ponto. Você quer que eu diga que eu nos vi sentados
no colo do universo? Mas eu não vi apenas nó, eu vi todos e tudo. e qualquer
pessoa, qualquer coisa, ams não como a gente costuma passar os olhos por algo, e
sim como se qualquer pessoa, qualquer coisa, como se tudo estivesse bem próximo.
(SCHULZE, 2009, 195)
A literatura de Schulze está repleta dessas narrativas diretas, quase sem poesia e sem
qualquer traço extraordinário, típico das experiências mais cotidianas. Como afirma Marcelo
Backes, tradutor de alguns dos livros de Schulze no Brasil, o escritor “arranca lirismo do
cotidiano e extrai seu humor melancólico daquilo que aparentemente é mais banal”
(BACKES, 2009, 333), como a casca de laranja que descortina toda esse milagre na tarde
enfadonha de um domingo de verão no campo e, que no correr da narrativa, passa de modo
tão fugaz quanto surgiu. No início do livro, Schulze lança mão de uma citação da poeta
austríaca Friederike Mayröcker, que de certa forma dá o tom do seu livro “Celular – 13
histórias à maneira antiga” (2009):
Então um dia seguiu ao outro
sem que as questões fundamentais
da vida tivessem sido solucionadas.
Esse conjunto de histórias de pessoas pachorrentas, sem graça, de vidas comuns, sem
qualquer atrativo ou corte sensacional parece mostrar a dimensão da vida cotidiana como um
dia que segue ao outro sem qualquer solução, como sugere o poema de Mayröcker. A
singularidade das narrativas de Schulze reside justamente nessa forma extremamente comum
e simples de contar as histórias. Tudo é muito direto. Um texto sem muitas sofisticações
estilísticas3, que assusta a muitos pela aspereza das histórias e por serem explicitamente
3 Especialmente em Celular, Schulze entra em contato mais direto com a vida cotidiana. Esse traço pode ser
percebido também em “Vidas Novas”, apesar do sofisticado e elaborado ritmo do romance, que se constroi em
distintos tempos de um mesmo personagem através de três interlocutores, as narrativas tomam o cotidiano como
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXIII Encontro Anual da Compós, Universidade Federal do Pará, 27 a 30 de maio de 2014
www.compos.org.br 3
banais, apesar de algumas se situarem em contextos históricos importantes como a queda do
muro de Berlim. No entanto, para falar do fato histórico Schulze recorre aos acontecimentos
banais e as vidas comuns. Tudo parece tão banal e ordinário que acaba por nos arremesar
numa inquietante dimensão poética daquelas vidas comuns.
A força singular da literatura de Schulze reside justamente nessa aparente
despretensão, nessa condição ordinária da experiência igual a qualquer outra. Não há
qualquer forma poética, palavra ou ação que amenize a dureza da condição cotidiana, aliás
como observa Backes, é “a profundidade do banal”. Tudo é absolutamente comum. Igual a
qualquer outro dia, a qualquer outra pessoa, a qualquer um. É possível perceber que tanto nas
histórias que narra, quanto no modo de narrá-las, Schulze acaba por criar uma espécie de
resistência sutil – a moda do escrivão Bartlebly de Melville – em relação ao extremo alarido
típico do mundo contemporâneo. Talvez as narrativas banais de Schulze promovam uma
inversão, já que nos domínios da Sociedade da Sensação (TÜRCKE, 2009) o que importa é a
exclusividade, o destaque e a extrema visibilidade. Esses pontos tornam-se ainda mais
acentuados pelos processos midiáticos tanto aqueles vindos dos esquematismos da
comunicação de massa, quanto os que dão visibilidade ao self-design4 nas diversas redes
sociais. Ambos processos, como as reflexões de Türcke demonstram, dão consistência a uma
forma avançada de espetáculo indo mais longe e de forma, algumas vezes, ainda mais
perversa do que os sentidos inicialmente desenvolvidos por Guy Debord. Como afirma
Türcke5: “emito logo existo”. De algum modo, parece que quem não emite não existe aos
olhos das poderosas mediações comunicacionais contemporâneas.
A surpresa na literatura de Schulze é que ela parece nos captar justamente por essa
banalidade, nos arremessando, sem escalas, para uma espécie de densidade da vida cotidiana,
elemento central, apesar do caráter histórico e político dos contextos logo anteriormente e em seguida a queda
do muro de Berlim. O mesmo ocorre em “Adam e Evelyn” (2013), mais recente livro de Schulze traduzido ao
português, que parece dar prosseguimento ao conjunto de estratégias discursivas e narrativas, presentes na obras
anteriores. 4 Boris Groys tem usado esse termo para caracterizar as relações entre arte contemporânea, mídia e visibilidade
aproximando os circuitos midiáticos das questões políticas e dos modos como, atualmente, nos construímos,
nesses espaços midiáticos, para sermos vistos. Conferir: GROYS, Boris. The obligation of self-design. E-flux
Journal #0. Nova York, 2008. Disponível em: http://www.e-flux.com/journal/the-obligation-to-self-design/.
GROYS, Boris. Self-Design and Aesthetic Responsibility. E-flux Journal #7. Nova York, 2009. Disponível
em: http://www.e-flux.com/journal/self-design-and-aesthetic-responsibility/ 5 Em seu livro “A sociedade excitada” Christoph Türcke empreende uma complexa discussão retomando as
noções do espetáculo vindas de Debord e ancoradas na tradição crítica de Adorno e Horkheimer para posicionar
a comunicação e as contemporâneas formas de emissão.
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXIII Encontro Anual da Compós, Universidade Federal do Pará, 27 a 30 de maio de 2014
www.compos.org.br 4
promovendo com isso uma forma contundente e paradoxalmente silenciosa de experiência
estética. Apesar do fato narrado no conto ser uma espécie fugaz de interrupção do cotidiano,
paradoxalmente na forma de narrar, ou mesmo no contexto nas quais surge, essas fugazes
epifanias não parecem interromper a vida cotidiana, mas sim gerar uma espécie de
continuidade através de um artifício que parece despistar, no meio da vida ordinária, a
potência inventiva da experiência estética que ali se constrói. Como um caminho circular,
entrar no universo de Schulze sutilmente nos desloca da vida cotidiana, para a ela nos
conduzir novamente, mas já transformados. Tomados pelo tom banal da narrativa do autor,
talvez seja possível conseguir, ao sair dela, retomar e experimentar, de outros modos a vida
cotidiana, dando valor a seu ritmo silêncioso e ordinário, algo que escapa ao traço
espetacular, característico dos modos de articular conteúdo e visibilidade no atual sistema
midiático que vem transformando tudo em sensação. Cristoph Türcke reflete sobre a noção,
em entrevista a Eduardo Losso (2011, p. 33), tomando a mudança de sentido da palavra
sensação ao longo do tempo:
No início dos tempos modernos, na época do renascimento, sensação nada
significava senão percepção no sentido meio banal, percepção de qualquer coisa.
Ao longo da idade moderna o significado incluiu percepção de alguma coisa, ou
seja, sensação de uma coisa particular, excepcional, incomum, descomunal, a ponto
de se transformar de um significado subjetivo, quer dizer, sensação do excepcional,
para o próprio excepcional, ou seja, o sensacional no sentido atual: o chamativo, o
descomunal. Essa mudança retrata, em termos linguísticos, um grande processo
social ao longo do qual a sociedade moderna das massas se formou, uma massa
cada vez mais excitada e impelida, determinada por choques audiovisuais.
De alguma forma, a literatura de Schulze ao mostrar esses traços mais ordinários da
vida, acaba por se distanciar desse universo da sensação apontado por Türcke. Essa
estratégia, que percebemos em Schulze, ocorre em outros domínios. Para refletirmos sobre a
potência dessa forma de experiência estética que nos devolve mais atentos a dimensão
estética das tramas da vida cotidiana, vamos aqui relacionar duas obras para pensarmos como
se processam também no domínio da arte essas formas da experiência estética que também
geram uma resistência ao recorrente espetáculo típico do mundo contemporâneo.
Nos interessam aqui as experiências estéticas que se constróem justamente porque
desejam se confundir com a vida cotidiana, mesmo que tenham uma sinalização, uma forma
de alcance e visibilidade bem contornados, por exemplo, a literatura ou os espaços dedicados
a arte. A potência desses trabalhos está distante de uma epifania e se colocam nessa via que
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXIII Encontro Anual da Compós, Universidade Federal do Pará, 27 a 30 de maio de 2014
www.compos.org.br 5
nos retira da vida cotidiana, até mesmo pelos lugares nos quais circulam, para a ela nos
conduzir novamente, mas com novas percepções do nosso entorno e do nosso lugar,
viabilizando com isso, traços mais sutis de um processo de subjetivação, que busca outras
modulações, diferentes e distantes de uma “subjetividade padronizada que tira seu valor de
sua cotação no mercado dos mass-mídia” (GUATTARI, 1991, p. 163)
2. Experiência estética na vida cotidiana e as pequenas crises
Sabemos, com Gumbrecht, que a experiência estética por si só se distancia da vida cotidiana
e como afirma o autor “é algo que invariável e meta-historicamente, não está à nossa
disposição em situações cotidianas” (GUMBRECHT, 2007, p.50). Acreditamos e
concordamos com a perspectiva proposta pelo autor. No entanto, nos interessam contextos
mais ambiguos e fronteiriços, as experiências estéticas que, ao contrário das analisadas em
seu artigo, são provocadas por obras de arte que estruturalmente trazem uma
intencionalidade, mas para tal, ao contrário, elas não são como interrupções na vida cotidiana,
mas querem trazer vestígios do cotidiano para o universo da arte operando como uma espécie
de rota de fuga dos espaços dedicados a arte para a intimidade de nossas casas, como na
epifania da casca de laranja narrada por Schulze. Para tal usam de estratégias diversas para
se colocarem de forma despistada dentro do universo da arte, nos levando a transformar, as
vezes de forma contuntende, nossa relação com aquilo que é da ordem do mais ordinário que
habita nossa vida diária.
Assim como Gumbrecht, também não acreditamos mais em uma suposta repetição da
fusão entre arte e vida proclamada pelas vanguardas históricas no iníco do século XX para
explicar essas experiências estéticas. Gumbrecht considera “impossível alcançar esse
objetivo, (…) porque a fusão da experiência estética com o cotidiano neutraliza aquilo que há
de mais particular na experiência estética” (GUMBRECHT, p. 51, 2006). Para o autor, “os
momentos da experiência estética se parecem com pequenas crises” (GUMBRECHT, p. 51,
2006) e por isso a distância entre experiência estética e vida cotidiana. Mais uma vez,
concordamos com Gumbrecht, até mesmo porque no domínio da biopolítica6 torna-se cada
vez mais difícil essa aproximação pelo viés apontado pelas vanguardas e criticado pelo autor,
6 Conferir: GROYS, Boris. Art in the age of biopolitcs: from artwork to art documentation. IN: GROYS,
Boris. Art Power. Cambridge: MIT Press, 2008
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXIII Encontro Anual da Compós, Universidade Federal do Pará, 27 a 30 de maio de 2014
www.compos.org.br 6
entre outros. Aqui gostaríamos de complexificar a situação das relações entre experiência
estética e vida cotidiana, sob a nítida influência da literatura de Schulze, mas trazendo
algumas obras que parecem mesmo querer, antes de fundir arte e vida, como nas vanguardas,
nos (re)conduzir à vida cotidiana, fazendo dela um arcabouço no qual podemos perceber a
força das experiências estéticas que ali habitam.
Diferente de Gumbrecht, aqui fazemos um caminho contrário indo das obras para a
vida cotidiana, para perceber a potência das experiências estéticas no trânsito e na passagem
entre esses dois contextos. As experiências estéticas que nos interessam destacar fazem um
caminho contrário ao proposto por Gumbrecht. Não se trata de interromper o fluxo cotidiano
para aí surgir a experiência estética, mas sim tentar de alguma forma somar-se a esse fluxo,
confundir-se com ele. Tentar uma inserção no fluxo da vida cotidiana em uma espécie de
movimento duplo: de um lado essas produções absorvem alguns dos traços, muitas vezes os
mais precários e sutis, entre as muitas dimensões da própria vida cotidiana, mas com uma
nítida intenção estética seja na forma de exposição, no tipo do circuito ou na estratégia de
visibilidade. De outro reforçam um gesto sutil de cada vez mais aproximar-se de uma quase
desaparição na complexa paisagem cotidiana (especialmente habitada pelas imagens dos
circuitos transnacionais de comunicação), quase nos enviando diretamente para o âmbito da
nossa própria vida cotidiana, mas abertos para outras percepções e formas de experimentá-la.
O que vemos ali nos parece tão familiar que torna-se nosso, aqueles poucos vestigios, dizem
de nós, como a casca de laranja no domingo familiar diz do universo ao narrador de Schulze.
Sabemos do risco de tentar estabelecer uma inversão dessa natureza nas complexas
constelações teóricas que tratam da experiência estética. No entanto, percebemos em algumas
obras uma forma despistada de entrar no cotidiano, qualquer que seja esse, reconfigurando
formas de perceber tanto o entorno quanto a si próprio. Um jogo sutil, no qual o menor
movimento pode apontar para uma inserção que ameaça desmontar, em algumas vezes, a
própria forma mais tradicional do espaço expositivo. Uma pergunta que um observador
perplexo poderia fazer é: “Afinal onde estou em um museu ou na minha própria casa?” ou
“Porque minha própria casa, meu caminho, aparecem aqui, desse jeito?”, o que de forma
intensa já colocaria em ação a experiência estética.
Nas experiências estéticas geradas por algumas obras de arte o desejo não é de “ser” a
vida cotidiana em si nem tampouco de apropria-la, criar zonas de aproximação ou gerar
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXIII Encontro Anual da Compós, Universidade Federal do Pará, 27 a 30 de maio de 2014
www.compos.org.br 7
pequenas crises, mas parecem apropriar de sua dinâmica e buscar nos seus vestígios, mesmo
os mais apagados, modos de construir seus processos de significação e, muitas vezes, alterar
os modos de inventar as possíveis relações entre sujeito e obra.
3. Imagens (quase) ausentes
Segundo Paulo Herkenroff toda a obra de Rivane Neuenschwander busca “ser apenas
um diálogo infinito do olhar com o peso das pálpebras num piscar de olhos”
(HERKENROFF, 2010, 58). Isso fica nítido em diversos procedimentos, materiais e
estratégias usadas pela artista em seus trabalhos. Talvez por isso, Herkenroff aproxime esse
modo de produção de Neuenschwander da noção de infra-slim (ou infra-mince) de Marcel
Duchamp. O artista, em suas “Notas” (1945) comenta a noção: “É infra-mince o calor do
assento que se acaba de deixar (...)” (DUCHAMP, 1989). O preciso comentário de
Herkenroff, aponta para uma forma de construção e formalização presente em uma
significativa parte das obras de Neuenschwander que assume essa forma tênue e sutil que
quase desaparece. É preciso ter atenção redobrada ao espaço expositivo que, apesar de estar
sinalizado e devidamente preparado para receber as obras, traz sinais tão sutis que muitas
vezes o público pode não perceber. Os caminhos poéticos propostos por Neuenschwander nos
possibilitam uma espécie de reencontro potente com a nossa própria condição cotidiana.
Sugere, muitas vezes, mais uma ausência, um tempo “que-acabou-de-passar” mas que nos
deixou um pequeno sinal de que algo aconteceu. São manchas que vão surgindo no piso
conforme as pessoas pisam, pequenos papéis amassados grosseiramente emendados (esses
que fazemos nos bares com rótulos de cerveja ou pedacinhos de qualquer papel) que tornam-
se pequenos volumes, quase escultóricos, calendários feitos com as datas de validade de
diversos produtos perecíveis ou mesmo relógios que só se movem em 00:00. Tudo é tão
fugaz, tão absolutamente cotidiano, quase igual ao que vejo no meu entorno mais íntimo e
familiar que corremos o risco, como afirma Herkenhoff, de num piscar de olhos, não
percebermos mais. Talvez daí seja possível pensarmos nesse modo de ser da experiência
estética que pode nos reconduzir ao cotidiano, transformados e com a nítida sensação de que
aqui também, nesse mundo comum e ordinário, podemos, mesmo sem qualquer epifania, nos
abrir para uma dimensão estética que habita o nosso cotidiano mais banal, sem tirá-lo dessa
condição.
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXIII Encontro Anual da Compós, Universidade Federal do Pará, 27 a 30 de maio de 2014
www.compos.org.br 8
Neuenschwander em sua instalação “Andando em círculos” (2000) usa um tipo
especial de cola transparente aplicada ao chão, em forma de circulos, que “se tornam cada
vez mais visíveis à medida que o visitante anda pelo espaço expositivo trazendo poeira e
outras partículas que grudam na cola, criando um registro de sua visita”
(NEUENSCHWANDER, p. 104, 2010). Com isso, a sujeira de nossos sapatos faz aquela
marca tênue tornar-se dia a dia mais escura e densa. A estratégia é ao mesmo tempo simples e
muito potente. Nada mais do que poeira e pequenos resíduos que se descolam e passam a
habitar o espaço expositivo tornando a marca cada dia mais densa e escura. A ação do tempo
é uma marca indelével da presença dos que passaram ali, no entanto, sinalizada não por uma
imagem ou nome, mas por aquilo que carregamos conosco distraídamente. O tempo passa e o
espaço guarda as lembranças, vestígios sem qualquer valor, mas que denunciam uma
presença que esteve ali. Neuenschwander, assim como W.G. Sebald, parece sinalizar para as
memórias que o espaço pode guardar. Em “Austerlitz”, Sebald nos mostra um personagem
que tenta reconstruir sua história percorredo os lugares que passou ainda criança num fuga
coletiva do nazismo. Junto com muitas outras crianças judias, Austerlitz foi enviado a outro
país para escapar da morte anunciada.
Tudo o que lembro de Pilsen, onde fizemos uma parada, disse Austerlitz, é que
desci à plataforma e fotografei o capitel de uma coluna de ferro fundido, porque ele
suscitara em mim um reflexo de reconhecimento. O que me inquietou ao vê-lo não
foi, porém, a questão de saber se a complicada forma do capitel, recoberta por uma
crosta cor de fígado, de fato impregnaram a minha memória quando na época, no
verão de 1939, passei por Pilsen com o comboio de crianças, mas a idéia, absurda
em si mesma, de que essa coluna de ferro fundido, cuja escamação da superfície
parecia aproximá-la da natureza de um ser vivo, lembrava-se de mim e, se assim
posso dizer, disse Austerlitz, era testemunha daquilo que eu próprio não recordava
mais. (SEBALD, p. 216-217, 2008)
O espaço pode se lembrar de nós, porque deixamos marcas sutis de nossa passagem
por ele. Como Austerlitz, Neuenschwander nos leva a pensar sobre essa memória do espaço,
talvez nos reconduzindo a inúmeras marcas que criamos, muitas vezes de forma inconsciente
ou pela força do tempo, nos espaços pelos quais transitamos, especialmente os domésticos
que guardam marcas de muitos tempos e memórias. O quadro que ficou durante anos na
mesma posição e que pela força da luminosidade marca a parede ou mesmo os livros e papéis
que guardados revelam manchas e áreas desbotadas que marcam o passar do tempo. Os
círculos de Neuenschwander parecem nos reconduzir a esse lugar, a essa experiência de
perceber o tempo passar mudando tudo, aos poucos. Com isso nos arremessa para essa carga
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXIII Encontro Anual da Compós, Universidade Federal do Pará, 27 a 30 de maio de 2014
www.compos.org.br 9
poética de uma experiência estética que se completa quando regressamos e percebemos
semelhanças entre os círculos de Neuenschwander e as inúmeras marcas que reconhecemos
nos espaços que habitamos. Um trânsito.
Já em “Um dia como outro qualquer” (2008) Rivane distribui no espaço expositivo e
também em outros locais, que de alguma forma se relacionam com a exposição (como
restaurantes, hotéis e museus), 24 relógios (flip-clock) modificados. Os relógios no lugar dos
números que marcam horas, minutos e segundos, assim como os dias do mês, são colocados
apenas zeros, dando a nítida sensação que o tempo não passa, ou melhor que passa mas sem
avançar, sem mudar. Tudo zerado. Mais uma vez se repete o gesto de despistar as referências
mais diretas, subvertendo a função do relógio e de alguma forma sinalizando os tempos
lentos, mornos e sem muita mudança típicos do universo mais doméstico e cotidiano. Não se
trata de um tempo midiático, ligado a uma espécie de urgência do tempo presente, mas de
uma duração, mais densa e complexa que habita os espaços cotidianos. É inevitável não
aproximar essa obra de Neuenschwander e a epígrafe que abre o livro de Schulze. Tudo
parece operar na mesma voltagem, colocando um ritmo típico do cotidiano, uma sequência
quase sem interrupção, como os zeros que passam e marcam, sem marcar efetivamente, as
horas.
Em ambas as obras os procedimentos são simples, tomando situações, contextos e
dispositivos que habitam a vida cotidiana e nos permitem fazer um caminho de volta partindo
da arte para vida, traduzindo isso como uma experiência estética. O infra-mince de Duchamp,
apontado por Herkenroff, é preciso para qualificar esse gesto. A calor do assento que se acaba
de deixar ou o ruído provocado por uma calça de veludo quando se caminha, como mostra
Duchamp, qualifica essa experiência vindas de percepções muito sutis, quase silenciosas,
como nas obras de Rivane.
A potência desta forma de experiência estética está justamente nesse silencioso
caminho aberto entre os espaços expositivos que frequentemente se caracterizam por um
agenciamento apaziguado entre dentro e fora, traço peculiar típico da complexidade do
chamado Cubo Branco7 que isola, sobremaneira, a arte de seu entorno mais imediato. Nestas
7 Conferir: O’DOHERTY, Brian. No interior do cubo branco: A ideologia do Espaço da Arte. Brian
O’Doherty. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXIII Encontro Anual da Compós, Universidade Federal do Pará, 27 a 30 de maio de 2014
www.compos.org.br 10
obras de Rivane, o campo de tensão se configura tanto pelas obras em si quanto pelo modo
como ocupam o espaço. O modo de ocupar e nos convocar no espaço expositivo,
especialmente pelas caracteristicas relacionais da obra com o entorno, nos permitem,
metaforicamente, sair do espaço expositivo indo em direção aos espaços domésticos e
cotidianos. Na primeira, as manchas se constróem ao longo da exposição, materializando o
vestígio das presenças. Já nos relógios, a possível aproximação entre a obra instalada no
espaço expositivo e em outros lugares como hall de hotéis e restaurantes, promove um
estranhamento que se constrói no trânsito entre as amarras do cubo branco e os espaços
ordinários da vida cotidiana. As obras em questão absorvem uma certa dinâmica típica da
vida cotidiana e quando colocadas no espaço expositivo, parecem nos arremessar de dentro
para fora, indo do espaço expositivo para a cotidianeidade de nossas experiências e vivências
mais domésticas e íntimas. Esse trânsito pode nos transformar, nos sinalizar a potência dessas
situações mais comuns no processo de construção de nossas subjetividades. Se por um lado
somos assediados pelas formas de subjetivação vindas dos meios de comunicação, como
vimos com Guattari, as obras de Neuenschwander sinalizam um outro lugar. Ao contrário do
destaque, da extrema visibilidade, da construção da celebridade ou do ritmo mais acelerado
de uma significativa parcela do audiovisual contemporâneo, experimentamos um outro
contexto mais silencioso, sutil e fundamentalmente singular, talvez menor.
4. Uma arte menor
Um dos modos de compreender essa potente, e de alguma forma resistente, experiência
estética que parte das obras de arte e nos devolve para a vida cotidiana, talvez seja aproximá-
la das reflexões empreendidas por Deleuze e Guattari em torno da literatura de Franz Kafka.
Para os filósofos, a literatura de Kafka era uma literatura menor:
Uma literatura menor não é a de uma língua menor, mas antes a que uma minoria
faz em sua lingua maior. No entanto, a primeira característica é, de qualquer modo,
que a lingua aí é modificada por um forte coeficiente de desterritorialização.
(DELEUZE e GUATTARI, 1977, p. 25).
Não nos cabe aqui entrar em toda a vasta cartografia de conceitos vindas desse livro
de Deleuze e Guattari, pelo espaço exíguo desse ensaio. Por isso, vamos nos ater a essa
questão, de forma mais pontual, para pensarmos, mais especificamente, sobre esse “forte
coeficiente de desterritorialização”.
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXIII Encontro Anual da Compós, Universidade Federal do Pará, 27 a 30 de maio de 2014
www.compos.org.br 11
Fazendo uma apropriação, passamos a manejar a reflexão de Deleuze e Guattari no
contexto da arte, promovendo aproximacões com as obras de Rivane Neuenschwander que
colocamos em relevo nessa reflexão, para pensar essas experiências estéticas que se dão nos
contextos e espaços institucionalizados da arte, mas nos conduzem para fora em direção aos
espaços cotidianos da vida ordinária.
Poderíamos, tomando em uma acepção mais direta, posicionar as duas obras de
Neuenschwander como um gesto menor se as compararmos com os procedimentos
grandiloquentes frequentemente usados no contexto da arte contemporânea tanto pelos
materiais quanto pelas estratégias expositivas e composições formais de muitas obras.
Mesmo que frequentemente a artista use materiais frágeis como delicadas cascas de alho,
poeira, fragmentos de papeis, temperos em pó e imagens recompostas pela acão da chuva ou
de formigas, entre outros, seria imediatista aproxima-la por esse recorte das noções
empreendidadas pelos autores na reflexão sobre Kafka. Apesar de central para a percepção
das obras de Neuenschwander, não é exatamente esse o principal ponto que aproxima as
obras das questões propostas por Deleuze e Guattari em torno da literatura menor de Kafka.
Podemos, expandindo a noção, notarmos que o que há de menor nas obras é
justamente o modo como elas nos endereçam ao nosso universo cotidiano. A experiência
estética se desterritorializa do espaço expositivo, para efetivamente fazer sentido quando, de
alguma forma, entramos em contato com objetos e formas muito semelhantes que habitam
nosso entorno doméstico mais imediato. Para nos acercarmos dessa noção e toma-la no
ambiente da arte e das experiência estéticas que buscamos sublinhar, precisamos nos
aproximar da línguagem, questão central para o desenvolvimento das reflexões de Deleuze e
Guattari em torno da literatura de Kafka, como nos mostra Schollhammer:
Mas como entender esta prática motivada por “um forte coeficiente de
desterritorialização”? No caso histórico de Kafka, trata-se de um escritor que
escreve em alemão como parte de uma minoria judia em Praga e, portanto, é
desterritorializado triplamente. Não escreve em tcheco, a língua da sua pátria, não
escreve em iídiche, a língua da sua comunidade, mas escreve num alemão
deficitário, deslocado da língua maior. Assim, a desterritorialização da língua de
Kafka expressa a ruptura do seu compromisso nato com as ideologias de uma língua
materna, estofo da consciência nacional e conteúdo de uma identidade orgânica que
naturalmente representa. (SCHOLLHAMMER, 2001, p. 63)
Toda uma complexidade se desdobra em torno da “literatura menor”de Kafka e que, como
nos mostra Schollhammer, está fincada nas tensões entre a língua alemã e tcheca e,
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXIII Encontro Anual da Compós, Universidade Federal do Pará, 27 a 30 de maio de 2014
www.compos.org.br 12
naturalmente nas dimensões do poder e das ideologias que essas passagens de uma língua a
outra sugerem. Fazendo a passagem e abandonando um foco nos materiais que a artista usa,
escapando assim de uma visão mais direta que poderia, de forma equivocada, aproximá-las
da noção desenvolvida por Deleuze e Guattari, o que vemos é esse deslocamento da língua
maior. Ao experimentarmos as obras de Rivane estebelecemos uma conexão direta não
apenas com o universo da arte e seus repertórios, comentários e poéticas estabelecidas, a
língua maior, mas com os espaços que habitamos em nossa intimidade. Esse parece tornar-se
o ponto central para a fruição. Só entra na obra quem faz a ponte entre o espaço expositivo e
as tensões típicas da vida cotidiana e doméstica, seus embates, seus tempos e sua dinâmica.
As obras, naturalmente se situam no campo da arte, mas se desterritorilizam pra
reterritorializar a vida cotidiana com tempos e memórias percebidos de outra forma. A
experiência estética, dessa forma, se coloca na margem do oficial, no trânsito entre dentro e
fora, na passagem fundamental entre os espaços da arte e os outros, rompendo com a
primazia do cubo branco e “deslocando da língua maior”. Talvez seja esse deslocamento o
vetor de desterritorialização que potencializa as experiências estéticas produzidas pelas obras
de Rivane Neuenschwander caracterizando, ainda mais, um produtivo trânsito entre os
espaços da arte e nossa vida cotidiana. Experiência estética de passagem, de fluxo, de
trânsito. Potência do deslocamento, que ao contrário de nos convocar para pensar apenas nos
domínios da arte, nos dá novos impulsos a uma experiência estética que se faz justamente na
distância que podemos tomar da obra, nos aproximando de nossos espaços e vivências
cotidianas. No trajeto entre um e outro podemos nos transformar, perceber como
experimentamos uma dimensão estética da experiência nos mantendo ligados aos espaços e
tempos cotidianos, com seus ritmos lentos, com poucos acontecimentos e sensações. Talvez
tanto Schulze quanto Neuenschwander estejam nos convocando a tomar a literatura e as artes
plásticas de modo a reafirmar suas potências transformadoras das dimensões cotidianas de
nossas vidas, nos alertando que tanto a partir de uma casca de laranja quanto de um conjunto
de manchas no chão de uma galeria nos colocamos em trânsito de volta a cotidianeidade, nos
encontrando com o mais comum e banal, onde parece residir a epifania que nos espera.
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXIII Encontro Anual da Compós, Universidade Federal do Pará, 27 a 30 de maio de 2014
www.compos.org.br 13
Referências
BACKES, Marcelo. Epifania numa casca de laranja. IN: SCHULZE, Ingo. Celular – 13 histórias à maneira
antiga. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Imago, 1977.
DUCHAMP, Marcel. Notas. Madrid: Tecnos, 1989.
LOSSO, Eduardo Guerreiro Brito. Legítima defesa cotidiana: 'Sociedade excitada: filosofia da sensação', de
Christoph Türcke. In: Matos, L.H.L; Pinto, M.S.; Fazollo, S.A.B.; Rosito, V.. (Org.). Calígrafo. Nova Iguaçu:
Edur-UFRRJ, 2011, v. , p. 31-36.
SCHOLLHAMMER, Karl Erk. As práticas de uma língua menor: reflexões sobre um tema de Deleuze e
Guattari. IN: Ipotesi (UFJF), Rio de Janeiro, v. 5, n.2, p. 59-70, 2002.
SCHULZE, Ingo. Celular – 13 histórias à maneira antiga. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
SEBALD, W.G. Austerlitz. São Paulo: Cia. das Letras, 2008.
Recommended