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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA
CENTRO DE ARTES - CEART
DOUTORADO EM TEATRO
CLÁUDIA MULLER SACHS
A IMAGINAÇÃO É UM MÚSCULO:
A CONTRIBUIÇÃO DE LECOQ PARA O TRABALHO DO ATOR
FLORIANÓPOLIS-SC
2013
CLÁUDIA MULLER SACHS
A IMAGINAÇÃO É UM MÚSCULO: A CONTRIBUIÇÃO DE LECOQ PARA O TRABALHO DO ATOR
Tese apresentada ao Curso de Pós graduação em Teatro, no Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina, como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em Teatro.
Orientador: Prof.Dr.Edélcio Mostaço
FLORIANÓPOLIS, 2013
S121r
SACHS, Cláudia Muller A imaginação é um músculo: a contribuição de Lecoq para o trabalho do ator./ Cláudia Muller Sachs. – Florianópolis, 2013. 225 f.: il.
Tese (Doutorado) – Universidade do Estado de Santa Catarina, Programa de Pós-Graduação em Teatro, Florianópolis, 2013.
Orientador: Dr.Edélcio Mostaço
Inclui bibliografia.
1. Lecoq. 2. Imaginação. 3. Ator. I. Mostaço, Edélcio. II. Universidade do Estado de Santa Catarina – Pós Graduação em Teatro. III. Título.
792
CLÁUDIA MULLER SACHS
A IMAGINAÇÃO É UM MÚSCULO: A CONTRIBUIÇÃO DE LECOQ PARA O TRABALHO DO ATOR
Tese apresentada ao Curso de Pós graduação em Teatro, no Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina, como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em Teatro. Banca Examinadora Orientador: __________________________________________________________ Prof. Dr.Edélcio Mostaço
Universidade do Estado de Santa Catarina Membro:_____________________________________________________________
Profa. Dra. Marta Isaacsson da Silva Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Membro:_____________________________________________________________
Prof. Dr. Narciso Telles Universidade Federal de Uberlândia
Membro:_____________________________________________________________
Profa. Dra. Sandra Meier Nunes Universidade do Estado de Santa Catarina
Membro:_____________________________________________________________
Profa. Dra. Maria Brígida de Miranda Universidade do Estado de Santa Catarina
Florianópolis, 4 de março de 2013.
AGRADECIMENTOS
Agradeço à CAPES, sem cujo apoio financeiro não seria possível esta
pesquisa.
Ao meu orientador, Prof. Dr. Edélcio Mostaço, pela confiança, pelo apoio e
pela disposição para me apontar caminhos.
Aos professores e secretárias do PPGT, Programa de Pós-Graduação em
Teatro da UDESC, pela incansável presteza e boa vontade.
A todas as pessoas que se dispuseram a ser entrevistadas, filmadas,
fotografadas, compartilhando suas experiências de modo a propiciar este estudo.
Aos professores que me acolheram em Paris por ocasião da Bolsa
“Sanduíche”, especialmente a Prof. Dra. Josette Féral e o Prof. Dr. Jean-François
Dusigne.
Aos pilares firmes da família, especialmente Karin Sachs, Suzi Weber, Beth
Gubert, Vivian de Campos, Mauricio Gubert, que estiveram sempre de braços abertos
para acolher a mim e ao Santiago.
À grande rede de apoio ao longo desses quatro anos, no Brasil e no exterior,
membros da família: Vânia Sachs, Evelise Oliveira, Leonardo e Marjorie Gubert,
Céline Lefebvre. E aos amigos Quica (Marisa) Rozman, Janaína Martins, Dominique
Moaty, Heloise Vidor, Rosane Pinto, Nazaré Cavalcanti, Sérgio Meyer, Ismael
Scheffler, Fábio Salvatti, Cecília Daut, Christine Roquet, Zilá Muniz, Sílvia Lemos,
Ana Cláudia Oliveira, Fani, Vera Collares, Milton do Prado, Maria Paula, Sandra
Siggelkow, Ana e Tato, Escola Anabá, Monsieur Blanzat, Sarah Moaty.
Aos professores que me auxiliaram na caminhada, Marta Isaacsson, Gilberto
Icle, Vera Colasso, Stephan Baumgärtel, Matteo Bonfitto.
Aos meus pais, Raul e Lya, que certamente estariam muito felizes e presentes
nesse momento, por me ensinarem a trabalhar com paixão, a seguir buscando, a viver
com alegria, pelo amor à vida, herança que trago comigo e procuro compartilhar.
E por último, por ser o mais especial, agradeço ao Santiago, sentido maior da
minha vida, pela paciência, pela compreensão, pela parceria, pelo amor e pela alegria.
RESUMO
Sachs, Cláudia Muller. A imaginação é um músculo: a contribuição de Lecoq para o trabalho de ator. 2013. 225f. Tese (Doutorado em Teatro) – Universidade do Estado de Santa Catarina, Programa de Pós-Graduação em Teatro, 2013. Este estudo trata da questão da imaginação no trabalho do ator, incitado por aspectos
da pedagogia de Jacques Lecoq. A pesquisa teve por objetivo uma melhor
compreensão de minha experiência como atriz, diretora, preparadora corporal e
professora por meio da análise conceitual de aspectos dessa pedagogia. São trabalhos
práticos baseados em exercícios codificados, inspirados pela mímica e pelo mimismo
e improvisações que tomam a natureza e sua dinâmica intrínseca como tema principal.
A noção de Fundo Poético Comum é apontada como a visão fundamental dessa
pedagogia, servindo como inspiração para a imaginação do ator, na medida em que
associa sua dinâmica a seus movimentos. Tal noção é abordada com base em
pressupostos oriundos das ciências naturais, da filosofia e do pensamento oriental,
pautando-se principalmente em autores como Gaston Bachelard, Marcel Jousse, Henri
Bergson e Fritjov Capra. Notadamente designada para o tipo de teatro no qual a
importância da prática corporal sobrepõe-se à do texto falado, do qual pode até
prescindir, essa pedagogia visa instrumentar o artista das artes cênicas em suas
diferentes funções, e o ator é incentivado a desenvolver uma atitude de autor do seu
trabalho. São estabelecidas relações com aspectos históricos do teatro francês do
século XX e com as abordagens sobre a imaginação no trabalho do ator em
Stanislavski e Chekhov, assim como o questionamento sobre a atuação enquanto
performer ou ator presentes nos estudos teatrais contemporâneos. O estudo foi
estruturado pela organização da prática em si, mantendo as etapas de apresentação,
alongamento, aquecimento, improvisação e criação, tomando como corpus de análise
experiências como aluna na École International de Théâtre Jacques Lecoq, como
diretora dos espetáculos “O Baile dos Anastácio” e “O Defunto”, como atriz de
“Gueto Bufo”, como professora em várias oficinas de teatro, assim como depoimentos
de colegas, alunos e atores envolvidos nesses processos.
Palavras chave: Ator. Imaginação. Lecoq. Treinamento. Processo criativo.
ABSTRACT
Sachs, Cláudia Muller. The imagination is a muscle: the contribution of Lecoq to the actor’s work. 2013. 225f. Thesis (Doutorate in Theater) – University of the State of Santa Catarina, Theater Post-Graduation Program, 2013.
This study addresses the issue of the imagination in the actor’s work encouraged by
aspects of the pedagogy of Jacques Lecoq. The research aimed at a better
understanding of my experience as an actress, director, body coach and teacher,
through a conceptual analysis of some aspects of this pedagogy. It’s a practice based
on codified exercises inspired on mime and mimism as well as on improvisations that
take the nature and its intrinsic dynamics as the main theme. The notion of Fond
Poétique Comum is identified as the fundamental view of this pedagogy that serves as
inspiration for the imagination of the actors whilst associating its dynamics to their
movement. This notion is discussed based on assumptions derived from the natural
sciences, philosophy and Eastern thought, mainly from authors like Gaston Bachelard,
Marcel Jousse, Henri Bergson and Fritjov Capra. Notably designed for the kind of
theater in which the importance of the body practice overlaps the one of the spoken
text, which it may even be dispensed, this pedagogy aims to instrument the
performing arts artist in their different functions, and the actors are encouraged to
develop an attitude of being the author of their work. Relationships are established
with some historical aspects of the French theater of the twentieth century and the
approaches to the imagination in the actor’s work in Stanislavski and Chekhov, as
well as questions about acting whether as performer or as an actor, present in the
contemporary theater studies. The study was structured based on the organization of
the practice itself, keeping the steps of presentation, stretching, warming up,
improvisation and creation, taking as as corpus of analyses experiences as a student of
the École International de Théâtre Jacques Lecoq, as the director of the shows “O
Baile dos Anastácio” and “O Defunto”, as the actress of “Gueto Bufo”, as a teacher in
several workshops, as well as testimonials of classmates, students and actors involved
in these processes.
Key words: Actor. Imagination. Lecoq. Training. Creative process
LISTA DE FIGURAS
Fig.01 Lutte à La barre par traction et répulsion combinées - Método de Georges
Hébert........................................................................................................................31
Fig.02 Quadro: Estrutura da Proposta Pedagógica.......................................................37
Fig.03 Ator Hamilton Leite em “O Baile dos Anastácio” da Cia.Oigalê.....................52
Fig.04 Cubos de Pirita; Cristal de Ametista; Estibnita com Barita; Hematita............80
Fig.05 Lâmina delgada de rocha vulcânica..................................................................81
Fig.06 Imagem de satélite-“Brasil Visto do Espaço”...................................................81
Fig.07 Desenhos de Lecoq dos Vinte Movimentos......................................................99
Fig.08 As Nove Atitudes............................................................................................103
Fig.09 Oskar Schlemmer – “Danse des Bâtons”, 1928 – Catálogo Danser sa Vie ..105
Fig.10 Espetáculo “Miséria servidor de dois estancieiros” da Cia.Oigalê, 2008......107
Fig.11 Desenhos de Lecoq dos Vinte Movimentos –Éclosion...................................108
Fig.12 Atriz Heloise Vidor – preparação corporal de “Uma Lady MacBeth”...........108
Fig.13 Monges meditando em cachoeiras..................................................................147
Fig.14 Alunos na oficina “Imaginação e criação pelo movimento” durante FITUB –
Festival Internacional de Teatro Universitário -Blumenau-SC, 2012.....................151
Fig.15 Wassily Kandinski - Composition VIII, 1923.......…………………………..152
Fig.16 Ondas do mar; Preparação corporal Cia Oigalê Sequência de 3 fotos...........154
Fig.17 O Baile dos Anastácio - Porto Alegre, 2012……………..............................155
Fig.18 Gare du Nord, Paris…………………………………………………………170
Fig.19 Shopping Centre, Paris…………………………………………………...…170
Fig.20 “Guernica”, 1937. Pablo Picasso....................................................................172
Fig.21 “O Concerto” , 1957. Marc Chagall…………………………………………175
Fig.22 “Naufrágio”, 1805. William Turner………………………………………....177
Fig.23 “Um trigal com Ciprestes”, 1889. Van Gogh..................................................179
Fig.24 Alunos da oficina “Imaginação pelo Movimento” – Blumenau, 2012...........179
Fig.25 “Paisagem com Arco íris”, 1639. Peter Paul Rubens……………………….180
Fig.26 “May–June”, 1973. Francis Bacon.................................................................184
Fig.27 O Baile dos Anastácio – Parque Marinha do Brasil, POA, 2012...................193
Fig.28 Ator Hamilton Leite em “O Baile dos Anastácio”, 2012................................196
Fig.29 Atriz Cláudia Sachs como ‘Filó’ em Gueto Bufo – POA, 1998 e 2001.........200
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO.........................................................................................................9 2 APRESENTAÇÃO..................................................................................................14 2.1 TRAJETÓRIA PESSOAL E PERCURSO DA PESQUISA.................................14 2.2 METODOLOGIA E CORPUS DE ANÁLISE.....................................................18 2.3 BREVE HISTÓRICO JACQUES LECOQ...........................................................23 2.3.1 Rede de Influências...........................................................................................26 2.3.2 Aspectos da École International de Lecoq.......................................................36 3 ALONGAMENTO..................................................................................................42 3.1 PÁGINA EM BRANCO .......................................................................................42 3.2 SOBRE A IMAGINAÇÃO....................................................................................48 3.2.1 Alguns conceitos de Bachelard.......................................................................53 3.2.2 Alguns conceitos de Jousse.............................................................................61 3.2.3 Relações entre Bachelard e Jousse.................................................................64 3.2.4 Imaginação do Ator em Stanislavski e Chekov............................................65 3.3 FUNDO POÉTICO COMUM................................................................................73 3.3.1 Ciências Naturais.............................................................................................77 3.3.2 Filosofia e Vedanta..........................................................................................82 3.3.3 Diálogo entre Ciência e Oriente.....................................................................85 3.3.4 Mimesis.............................................................................................................87 4 AQUECIMENTO ...................................................................................................97 4.1 VINTE MOVIMENTOS........................................................................................97 4.2 TREINAMENTO.................................................................................................112 4.3 ESTUDOS CONTEMPORÂNEOS.....................................................................125 4.3.1 Teatro Total.....................................................................................................125 4.3.2 Atuação e Formação: ator ou performer?.....................................................129 5 IMPROVISAÇÃO ................................................................................................143 5.1 ELEMENTOS......................................................................................................145 5.2 MATÉRIAS ........................................................................................................158 5.3 PINTURA............................................................................................................162 6 CRIAÇÃO .............................................................................................................182 6.1 AUTO-COURS.....................................................................................................182 6.2 DIREÇÃO............................................................................................................188 6.3 ATUAÇÃO..........................................................................................................198 6.4 PESQUISA...........................................................................................................202 CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................207 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................211
9
1 INTRODUÇÃO
Este estudo dedica-se a investigar a maneira como determinadas práticas que
venho utilizando, a partir da pedagogia de Jacques Lecoq, contribuem para o
desenvolvimento da imaginação do ator, a qual torna-se o tema central, à luz do qual
analiso tal prática. A pesquisa tem por objetivo uma melhor compreensão de minha
experiência como atriz, diretora, preparadora corporal e professora por meio da
análise conceitual de alguns aspectos dessa pedagogia por mim utilizados.
Aprofundando a pesquisa apresentada na minha pesquisa de mestrado, quando
realizei um estudo conceitual sobre a metodologia de Lecoq, pretendo identificar sua
utilização em meu trabalho no que diz respeito à relação entre a prática e sua
dimensão poética como potencializadores da imaginação do ator. São modos de
trabalho para desenvolver o corpo poético de que fala Lecoq, que vão materializar
conceitos abstratos a partir de modelos da natureza e da vida cotidiana.
O quê exatamente estou querendo descobrir? Iniciei questionando-me sobre a
relevância da metodologia de Lecoq na formação de atores contemporâneos,
preocupados com questões da performance, da não-atuação, do não-personagem.
Identifiquei a imaginação como competência fundamental para o trabalho do ator
desde sempre, permanente, para além do tempo e da escolha estética e que é bastante
enfatizada em Lecoq e consequentemente em minha própria prática. Assim, passei a
pesquisar a maneira como sua pedagogia induz a imaginação do ator.
Esta pesquisa parte, portanto, de exemplos práticos de minha trajetória
artística e pedagógica para estabelecer relações entre algumas das noções que mais
utilizo, advindas diretamente da pedagogia de Lecoq e das possíveis contribuições
para o desenvolvimento da imaginação no trabalho do ator a partir dessa abordagem.
Para evitar generalizações, destaco noções como, por exemplo, a de “jogo e rejogo”, a
diferença entre mimismo e mimetismo, a de improvisação com os elementos e
matérias, os princípios do movimento por ele propostos, a utilização de modelos para
a criação através da prática de sequências codificadas denominadas Vinte
Movimentos, todas assentadas sobre o fundamento de Fundo Poético Comum.
Parto do problema de que, se a prática de Lecoq trabalha a partir de modelos,
enfocando a forma em movimento, seja em relação à criação de cenas como de
personagens, de que maneira ela contribui para desenvolver a imaginação do ator?
10
Como fomenta a imaginação? Enquanto formação e criação, como se dá esse
processo? Até que ponto ele é induzido e define um estilo característico? Qual a
margem de liberdade de criação imaginativa que essa prática proporciona? Como essa
pedagogia pode ainda ser válida nos moldes do teatro contemporâneo contaminado
pelos estudos da performance?
Ariane Mnouchkine (FÉRAL, 2010) usa a expressão “a imaginação é um
músculo” para falar do trabalho do ator, dizendo que é preciso dar músculos à sua
imaginação como uma forma de ajudar a alimentar seus imaginários. Para ela, esse
seria o músculo mais importante do ator e o qual deve ser exercitado, fortalecido,
trabalhado, pois, do contrário, a imaginação definha, fica fora de forma, atrofia como
qualquer outro músculo. Esse exercício é feito pelo corpo em movimento, livre das
imagens que são clichês e muletas, que são o contrário da imaginação. Essa
musculatura se fortalece quando o corpo está envolvido na criação, em ação, partindo
do real, do corpo que parte de movimentos codificados que tomam as manifestações
da natureza e da vida cotidiana como modelos. Ex-aluna de Lecoq, Mnouchkine
herdou dele essa crença de que é pela prática corporal que a imaginação é exercitada,
fomentada por um mecanismo de associação de ideias que perpassa corpo e mente.
Como continuadora dessa tradição, disponho-me a detectar e a analisar essas
relações a partir dos exercícios que utilizo com alunos e atores, além de minha
experiência pessoal. Definido o campo de estudo como sendo a minha própria prática
enquanto atriz, diretora, professora e preparadora corporal, juntamente com os
depoimentos colhidos a partir das experiências de alunos, de colegas e de artistas
envolvidos, permito-me o mergulho sobre o tema da imaginação do ator e de seus
modos de desenvolvimento ali propiciados. Essa prática, portanto, me é familiar, mas
as teorias que a ela se aliam são variadas, complexas, oriundas da escolha de um
conjunto de autores junto aos quais organizei uma possível leitura das relações com o
tema tratado.
Inspirada na maneira como geralmente procedemos nas práticas teatrais, seja
num curso de longa duração, numa oficina, numa aula, num ensaio, a escrita dessa
tese seguirá o mesmo tipo de encadeamento de exercícios propostos para desenvolver
um tema, que nesse caso, é aquele associado à imaginação. Ao descrever seus
aspectos técnicos, aproveito para apresentar e analisar as ideias e os conceitos
subjacentes em tais práticas. Tomo uma estrutura bastante utilizada para a
11
organização de um curso de teatro que inicia, por exemplo, com todos sentados em
roda, ocasião em que cada participante faz uma rápida apresentação de si: seu nome,
de onde vem, o que faz, o porquê de estar interessado nesse conhecimento. Muitas
vezes o ministrante também apresenta-se rapidamente, embora seja bastante provável
que os que ali estão já tenham informações colhidas previamente sobre ele. No meu
trabalho, também costumo agir dessa maneira, parto de uma breve apresentação sobre
o trabalho a ser realizado ali. Em seguida, inicia-se a prática em si, passando por um
momento de alongamento do corpo, depois um aquecimento com movimentos mais
vigorosos, um trabalho com improvisações e, por fim, a criação mais livre e autoral.
Encerra-se a sessão com os participantes sentados mais uma vez em roda para uma
conversa sobre o que foi realizado, esclarecimentos e compartilhamentos sobre a
experiência vivida.
Sendo assim, organizei o presente estudo dentro desses mesmos parâmetros,
quais sejam: apresentação, alongamento, aquecimento, criação e encerramento, logo,
a maneira como encadeio minha própria prática servirá como fio condutor para
estruturar a reflexão que proponho. Além de usar essas divisões para descrever e
analisar as práticas em si que permeiam toda a tese, permito-me o uso metafórico
desses termos para estendê-las como possibilidades de exposição e de questionamento
de conceitos que as embasam.
Seguindo essa lógica, após uma breve introdução, o segundo capítulo trata da
apresentação da pesquisa, iniciando com meu percurso pessoal até chegar ao tema em
questão. Apresento a metodologia utilizada e o corpus de análise considerado, tal seja,
os trabalhos práticos que serão tomados para tal. Dada a variedade de fontes, a
metodologia é de caráter híbrido, já que, além da observação proveniente da
etnocenologia, há também autoetnocenologia e análise epistemológica. Em seguida,
apresento um breve histórico de Jacques Lecoq, aspectos de sua trajetória de vida, de
pessoas e eventos que constituíram uma rede de influências em sua obra, assim como
aspectos de sua pedagogia que julguei relevantes para a presente abordagem.
Após as devidas apresentações, no terceiro capítulo, proponho um exame
sobre o alongamento corporal para tornar o corpo disponível para o tipo de exercício
que se sucederá, a necessidade de estabelecer um espaço interno, como uma página
em branco, para iniciar o trabalho. Estendo-o metaforicamente para certos
pressupostos que delimitam o universo conceitual dessa pesquisa, ou seja, os limites
12
até onde alcança minha rede de conceitos para acercar o tema da imaginação,
enfocando, principalmente, certos aspectos da filosofia de Gaston Bachelard e da
antropologia de Marcel Jousse, no intuito de estabelecer bases para as análises sobre
esse assunto. No que tange aos estudos teatrais, apresento resumidamente as
abordagens de Stanislavski e Michel Chekhov sobre a imaginação no trabalho do ator,
a fim de contrastá-las com a maneira proposta por Lecoq. Em seguida, analiso a visão
de “Fundo Poético Comum” de Lecoq, estabelecendo relações com aspectos das
ciências naturais, da filosofia, da espiritualidade e das artes, a partir da tomada de
consciência da dinâmica subjacente a todos os eventos.
Sendo uma das premissas básicas a importância do trabalho corporal, no
quarto capítulo proponho um vigoroso aquecimento. Além do aquecimento físico,
envolvendo principalmente os Vinte Movimentos, abordo a questão sobre treinamento
como uma oportunidade para alimentar essa discussão, a fim de tratar de aspectos
contraditórios e questionáveis tais como o valor da repetição de movimentos
codificados, a necessidade de livrar-se de vícios corporais que pode acarretar em
adquirir outros, de estabelecer um estilo e encerrar-se nele, não conseguindo usar
outras linguagens após tal estilo estabelecer-se. Em seguida, proponho aquecer as
articulações propostas pelos estudos teatrais contemporâneos, no sentido de colocar
em perspectiva o presente estudo no que concerne o trabalho do ator hoje. Para tanto,
analiso a visão sobre a imaginação na perspectiva de Constantin Stanislavski (1863-
1938) e de Michael Chekhov(1891-1955), assim como o questionamento sobre o
termo “teatro físico” criado nos anos 80, e as relações entre ator e performer, face aos
estudos que consideram o teatro contemporâneo contaminado pela performance.
No quinto capítulo abordo o universo da experimentação mais livre, com
exercícios de improvisação. Ainda que a improvisação seja uma prática orientada,
com delimitações e restrições como regras do jogo, são introduzidos os temas mais
lúdicos e poéticos, visando proporcionar ao corpo treinado anteriormente
oportunidades de jogos individuais e coletivos. A improvisação é abordada nesse
estudo apenas através dos temas dos elementos, das matérias e da pintura na
qualidade de estímulos imaginativos, como recorte da pedagogia. Tratam-se de
práticas que orientam os alunos e os atores no sentido de observar a natureza e o que
sucede ao redor de si como fonte principal de inspiração a ser transposta para o corpo,
ainda que dentro dos limites propostos pelos exercícios. Procuro, sempre que
13
possível, entrecruzar o discurso com as questões sobre a imaginação, na tentativa de
descrever a prática e assim analisá-la ao longo de toda a tese.
Como prosseguimento do trabalho desenvolvido até então, o sexto capítulo
enfoca a parte de criação propriamente dita, a partir da abordagem de auto-cours, ou
seja, o teatro criado pelos artistas, visando à montagem de um espetáculo ou
experimento a ser mostrado a um público. É o momento em que cada um deve
desenvolver o seu teatro, aplicando esse conjunto de técnicas e de experimentos para
aquilo que é a sua arte, sua construção com o seu corpo, seu teatro, na busca de um
trabalho autoral. A criação vai finalmente entrar em um processo mais pessoal e, por
meio da descrição de processos criativos que culminaram em espetáculos, procuro
avaliar a contribuição que essas práticas podem aportar ao trabalho tanto do ponto de
vista da direção como da atuação. Para finalizar esse capítulo, teço alguns
comentários sobre a realização da pesquisa em si, ou seja, a ótica da pesquisadora.
As considerações finais são como a roda de encerramento do trabalho prático,
na qual se faz uma revisão e uma crítica do que foi feito, experimentado e pensado.
Aproveito para apontar os limites dessa prática e dessa pesquisa, assim como outras
possíveis relações que não foram aprofundadas e alternativas para a continuidade
desse trabalho.
O desafio está posto: aliar as práticas desenvolvidas em sala de aula, em sala
de ensaio, em processos de criação, a aspectos teóricos da ordem da filosofia, das
ciências, das artes. Com a preocupação de entrecruzar esses universos, procuro
descrevê-las o tão detalhadamente quanto possível, para que realmente seja possível
imaginá-las e acercar a experiência vivida, na tentativa de aproximar o leitor daquilo
que normalmente acontece a portas fechadas. Ciente da dificuldade de distanciamento
crítico dado o envolvimento pessoal com o objeto de estudo, procuro apontar alguns
limites dessa prática identificadas ao longo da pesquisa.
14
2 APRESENTAÇÃO
O lugar do imaginário é cada vez mais importante no mundo atual, onde nada torna-se imaginável e tudo pode ser imaginado. (...) a aspiração à liberdade de crenças – àquela de imaginar – anda junto com a liberdade de expressão, intrínseca ao pensamento criador. (PIWNICA, 2010, p.8).
Em uma oficina, aula ou ensaio, inicio normalmente falando um pouco com
os alunos ou os atores, situando-os sobre o que vamos tratar e como as aulas serão
encaminhadas. Prefiro não começar com muita conversa, preferindo ir logo para a
prática, e apresentar os conceitos à medida que vai surgindo a necessidade. No
contexto desse estudo, entretanto, me estendo um pouco mais nas apresentações,
aproveitando o sentido metafórico do termo.
2.1 TRAJETÓRIA PESSOAL E PERCURSO DA PESQUISA
Ao longo dos anos, trabalhei integradamente o jogo dramático, a improvisação
e a criação e fui percebendo que no encaminhamento das aulas era forte o
componente corporal envolvido. Meu interesse estava sempre voltado ao movimento,
aos gestos, aos deslocamentos, à composição plástica, aos desenhos que surgiam a
partir dos corpos dos participantes e entre eles. Atribuo essa minha relação com
movimento ao fato de ter crescido em uma família de tenistas, o que me levou a me
tornar esportista desde a infância, tendo participado de competições de tênis e de
natação, além de praticar basquete, handebol e vôlei na escola, assim como ter aulas
de balé.
Além do interesse por teatro, entretanto, desenvolvi um trabalho profissional
em duas outras áreas, o ensino de línguas e a pintura. Aos 17 anos, quando comecei a
fazer teatro em Porto Alegre, iniciei também minha trajetória na pintura no Atelier da
Prefeitura. Além disso, ingressei na universidade, no curso de Licenciatura em
Ciências – na época me interessava a Física –, e participava do Coral Escola da
UFRGS.
Por contingências familiares, fui para Nova York estudar inglês,
interrompendo estas atividades. Depois dos seis meses previstos, fui para a Europa
15
com uma mochila nas costas e passei um ano e meio viajando e trabalhando em
diferentes países da região. De volta ao Brasil, retomei a faculdade, mas, sentindo a
necessidade de me tornar independente financeiramente, aprofundei meus
conhecimentos de inglês e me tornei professora desse idioma – atividade que exerci
durante 18 anos –, retomando as artes como atividades paralelas.
Uma vez graduada, entrei no curso de Arte Dramática na UFRGS
(Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e, logo em seguida, fui convidada para
atuar numa peça infantil1, onde fazia o papel principal. Era o final dos anos oitenta,
quando estava em voga o chamado teatro físico, impulsionado pela Antropologia
Teatral de Eugênio Barba, que passava pela América Latina, e pelo teatro de imagens
de Gerald Thomas, que foram duas das principais experiências que me influenciaram
na época. Identifiquei-me completamente com aquela linguagem de teatro
praticamente sem texto, no qual era o corpo do ator que falava, com colagem de
imagens, altamente visual e imagético. Passei a perseguir esse tipo de prática, fazendo
cursos com Carlos Simione, do grupo LUME, entre outros imbuídos daquela crença,
com longos treinamentos diários, intensamente corporais, incluindo as técnicas de
exaustão, de acrobacia, de construção de partituras, entre outras. Paralelamente, fazia
sistematicamente aulas de dança contemporânea.
Cursei a universidade durante dois anos, ocasião em que entrei em contato
pela primeira vez com os ensinamentos de Lecoq na disciplina de Expressão Corporal
com Maria Helena Lopes. Naquela época, eu participava de um espetáculo infantil2
no qual eu havia construído cinco personagens diferentes num processo de criação
coletiva, e então surgiu a oportunidade de passar dois meses trabalhando em uma
escola de inglês em Nova York. Dentre os cursos que fiz em Nova York, as aulas de
dança-teatro foram as que mais se aproximaram do estilo de teatro que me interessava
naquela época. Ao invés de retornar ao Brasil, segui para Londres, onde participei de
alguns cursos de jogos teatrais com máscaras, e dali fui para Paris, para a École
Internationale de Théâtre Jacques Lecoq. Cursei o primeiro ano em 1992/93 e, para
grande frustração minha, não consegui retornar para o segundo ano, embora tivesse
1 O Auto das Várias Gentes no Dia de Natal, de Ivo Bender. Porto Alegre, 1988.
2 O Andróide e o Anão, direção de Ben Berardi. Porto Alegre, 1990.
16
sido convidada pelo mestre. A passagem pela Escola3 foi decisiva na minha carreira.
Encontrei ali uma verdade profunda e a ligação com o teatro que até hoje me guia.
Identifiquei-me totalmente com a idéia de Monsieur Lecoq de que seu trabalho
possuía um objetivo duplo, sendo uma parte relativa ao teatro e a outra, à vida. Foi lá
que encontrei a ludicidade corporal que buscava, aliada à questão estética e visual. A
pedagogia de Lecoq representa, para mim, o elo entre meus interesses diversos, uma
vez que o professor também iniciou pelos esportes, referia-se à natureza como fonte
de inspiração e aliava outras artes ao fazer teatral.
Voltei ainda a trabalhar nos Estados Unidos como professora de inglês por
algum tempo. Porém, quando realmente não consegui meios de retornar à Paris,
resolvi voltar para o Brasil. Passei um ano em São Paulo, trabalhando como atriz em
alguns comerciais para a televisão, como assistente em um atelier de pinturas de
decoração e como produtora na Bienal de Artes de 1994. Ainda lá, fui convidada a
participar de um espetáculo4 em Porto Alegre, o que me fez retornar à minha cidade
natal e experimentar maior amplitude de criação, tal como aprendera na Escola.
Assim, o trabalho seguinte, Gueto Bufo – espetáculo com linguagem de bufões que
ficou 11 anos em cartaz –, possibilitou-me consolidar minha experiência como atriz
de teatro. Dentre as experiências mais significativas como atriz, portanto, apenas um
espetáculo partiu de um texto previamente escrito, os outros foram criações coletivas
a partir de ideias, de temas, de objetos, do corpo. Como diretora, realizei trabalhos a
partir de textos, mas sempre partindo de improvisações e do trabalho corporal
aprendido com Lecoq.
Ministrei cursos de interpretação na universidade – UFRGS – e livres, em
forma de oficinas, sendo que algumas delas eram em inglês. A principal linha didática
que utilizo, seja como professora ou como diretora e preparadora corporal, provém do
aprendizado na Escola. Ainda assim, a experiência de 18 anos como professora de
inglês me levou não só a aprimorar a proficiência nessa língua, mas também a
aprofundar os estudos sobre didática e aquisição de linguagem, conhecimento que
aplico também ao ensino de teatro. Embora sendo graduada como professora de
ciências, nunca exerci essa profissão, apenas mantive o interesse nesses assuntos. 3 Para fins de clareza da escrita, utilizarei “Escola” com letra maiúscula sempre que for designar a École Internationale de Théatre Jacques Lecoq.
4 “Parque Extremo de Diversões” – direção Élcio Rocini. Porto Alegre, 1996.
17
Quando resolvi voltar aos estudos, havia sido recém criado o curso de especialização
em Teoria do Teatro Contemporâneo na UFRGS, o qual me despertou tamanho
interesse e satisfação, que dei continuidade com os estudos de mestrado e do presente
doutorado.
O percurso da pesquisa que resulta nessa tese iniciou cinco anos após o
término do mestrado, quando me deparei com os estudos sobre a performance de
Richard Schechner, sobre o pós-dramático de Hans-Thies Lehmann e sobre a
performatividade de Josette Féral, entre outros autores interessados na influência da
performance no teatro contemporâneo. Interessei-me pelo status do ator no contexto
destes estudos, particularmente nas questões sobre o que diferenciava o performer do
ator, e como entender minha experiência de teatro à luz de tais estudos. Tendo como
ponto de partida minha formação baseada em Lecoq, surgiram questões como: onde a
mimesis se encaixa nesse teatro? Não se encaixa? Como fica o trabalho do ator em si?
Como professora e preparadora de elencos, o que vou usar então? O que é ainda
válido, o que é permanente no trabalho do ator? Encontrei em Féral (2008) algumas
respostas, especialmente quando se referia a técnicas de base, à importância do ator
ter presença, ter consciência de seu corpo e do espaço, saber jogar, arriscar-se e
propor. Ainda que a autora não mencionasse diretamente, identifiquei a imaginação
como o principal substrato sobre o qual todas essas competências deveriam se
desenvolver.
Partindo, então, do pressuposto de que a imaginação é uma competência
essencial ao trabalho do ator e que ainda é válida frente aos estudos contemporâneos,
voltei-me para minha experiência, enfocando a prática ancorada principalmente na
pedagogia de Lecoq, em busca de melhor compreender o que é adotado ali como
formação do ator quanto ao desenvolvimento de sua imaginação. Precisava ir além
daquilo que já podia perceber sobre a utilidade dessas práticas, pois antes não havia
atentado para a questão da imaginação em si. Que competências do ator elas
desenvolvem além do treinamento do corpo? O que é fundamental no trabalho do
ator, além de um corpo disponível e consciente? Para que serve essa prática de Lecoq
que envolve a pintura, a poesia, a música, temas que me apaixonam desde que fiz a
escola? Serve para incitar a imaginação! Mas como isso acontece? Quais exatamente
os exercícios que têm esse objetivo e como são incorporados pelos atores? O que
18
buscam esses artistas e o que encontram? Sendo assim, resolvi me debruçar sobre essa
prática com o foco da imaginação em mente.
Tema vasto, de difícil recorte, como estudar isso? Qual metodologia? Sabia
que deveria partir da prática corporal em si, afinal é assim que se desenvolve essa
aprendizagem. Comecei voltando à escola de Lecoq para atualizar minha própria
experiência lá. Através do curso intensivo de verão chamado “a música, a poesia, a
pintura e o jogo do ator” pude entrar novamente em contato com aquilo que identifico
como a essência da pedagogia de Lecoq, que é a compreensão do Fundo Poético
Comum com o próprio corpo. Tornar visível a dimensão invisível das manifestações
da natureza como meio para desenvolver a percepção e a imaginação de forma
concreta e aplicada ao teatro. Ainda nesse curso em Paris, aproveitei para coletar
depoimentos dos colegas – atores, diretores, músicos – com quem trabalhei, assim
como para buscar teorias sobre a imaginação, principalmente, que pudessem apoiar
meus questionamentos.
2.2 METODOLOGIA E CORPUS DE ANÁLISE
A fim de trabalhar com a lógica própria do trabalho do ator e do fazer teatral,
encontrei dificuldades em definir uma metodologia rigorosa. Como aponta Pádua
(2004), no plano da pesquisa, da epistemologia, o método e os procedimentos técnicos
são elementos indissociáveis ao longo do processo de investigação, que está longe de
ser homogêneo, linear, uniforme, não histórico. É necessário levar em conta a
perspectiva de que cada um tem sua visão de mundo, sua concepção de ser humano e
de arte, seus pressupostos ético-filosóficos, que determinam suas diretrizes e
procedimentos para a atividade de pesquisa, seus entendimentos sobre o processo de
produção de conhecimento, bem como sua forma de articulação dos conceitos e das
categorias para a análise da realidade. Nesse sentido, é determinante a relação sujeito-
objeto no processo de conhecimento, levando em conta a objetividade e a neutralidade
da análise das observações e depoimentos, uma vez que a pesquisa também inclui
minha própria experiência como ex-aluna da escola e apreciadora da metodologia de
Lecoq. Também para Japiassu (1994), a metodologia da pesquisa é um domínio da
interrogação epistemológica, onde método e objeto são indissociáveis. A escolha do
19
método se faz a partir do objeto a ser estudado. Partindo do pressuposto de que a
ciência contemporânea é como um conhecimento em processo de construção, um
contínuo re-fazer, fica a exigência de um contínuo re-pensar sobre seu corpo teórico-
prático. É o que estou me dispondo a fazer com esta pesquisa: re-pensar a prática que
utilizo, uma análise reflexiva da experiência de campo.
Com o desenvolvimento das investigações nas ciências humanas, as pesquisas
qualitativas procuraram consolidar procedimentos que pudessem superar os limites
das análises meramente quantitativas, preocupando-se com o significado dos
fenômenos, levando em consideração as motivações, as crenças, os valores e as
percepções individuais de cada participante. Como não estou levando em conta
nenhum tipo de tratamento estatístico, a opção adotada foi a entrevista qualitativa e
centrada, não estruturada, na qual o entrevistador permite que o entrevistado descreva
sua experiência pessoal a respeito do assunto investigado. Além das entrevistas, é
utilizada uma metodologia de inspiração etnográfica, na qual o pesquisador observa e
descreve a prática, deixando-se impregnar pelos temas apresentados.
A metodologia usada é, portanto, híbrida, uma vez que há uma parte de
observação proveniente da etnocenologia, há autoetnocenologia e há análise
epistemológica. Tal como propõe Fortin (GOSSELIN, 2006, p.98), emprego nessa
tese uma espécie de “bricolagem metodológica”5, na qual a integração dos elementos
vem de horizontes múltiplos, que vai do meu próprio olhar como aluna de Lecoq ao
de professora, de artista, de diretora, de preparadora de elencos, ao olhar das pessoas
envolvidas nesses processos, seja diretamente através do contato comigo, seja com o
mestre.
A análise dos dados não é documental, antes, tem a função de “administração
de provas”, como propõe Bardin (2004, p.99) quando se refere a análise de conteúdo
como instrumento metodológico. No nosso caso, trata-se de “provas” da prática
executada e da decorrente percepção de outros artistas que entraram em contato com
ela e compartilharam suas percepções a respeito. Para fins de análise dos dados
coletados, a autora acima sustenta que as respostas a questões abertas, assim como as
entrevistas individuais ou de grupo, são analisadas tendo um tema por base, que aqui
5 Fortin sugere esse termo baseada na proposta de sua colega Monik Bruneau apresentada nessa mesma publicação, Gosselin (2006: 45-56).
20
é a imaginação, que será utilizada como unidade de registro para estudar motivações
de opiniões, de atitudes, de valores, de crenças, de tendências.
Como minha pesquisa trata de um tema tão vasto como a imaginação do ator,
ainda que relacionada à pedagogia de Lecoq, foi necessário encontrar pontos de apoio
para sua verificação, uma vez que tanto a imaginação como a pedagogia são
demasiadamente abertos, podendo acarretar em meras generalizações. Assim, para
tornar a coleta de dados mais objetiva, defini como recorte alguns temas a serem
analisados a partir da questão axial da possível contribuição da pedagogia de Lecoq
ao desenvolvimento da imaginação do ator. São eles: os Vinte Movimentos, a
observação da natureza, o trabalho com os elementos, com as matérias e com a
pintura. A escolha desses temas deu-se por acreditar que através deles seja possível
tocar pontos cruciais de sua pedagogia, tais como as leis do movimento, o Fundo
Poético Comum, sua concepção de mímica, a relação do trabalho do ator com o
espaço e com a natureza, o ator como autor de seu próprio teatro. Foi a partir dessa
escolha que preparei as entrevistas e os encontros realizados nas oficinas que
ministrei nesse período, que me parecem refletir a linha de trabalho que venho
desenvolvendo ao longo de aproximadamente 20 anos.
Importante ressaltar que alguns outros temas relevantes da pedagogia de
Lecoq não são contemplados nesta pesquisa, tais como o uso das máscaras, a
acrobacia, o trabalho com os animais e com outras artes (música e poesia), assim
como os estilos teatrais abordados no segundo ano da Escola. O motivo da ausência
desses aspectos é justamente a tentativa de reduzir o espectro de análise, além da
escolha pessoal que envolve a maior identificação com certos aspectos do que com
outros, escolha essa que me levou a desenvolver e a focar os temas que estou
propondo. Como atriz, acredito que eu utilize todos os aspectos da pedagogia de
Lecoq, ou a maioria deles, uma vez que estão internalizados em minha prática. No
entanto, enquanto professora e diretora priorizo aqueles que me parecem mais
eficazes, principalmente para os fins dessa pesquisa, já que não tenho a oportunidade
de oferecer toda a pedagogia de Lecoq em cursos de curta duração ou mesmo na
universidade, quando há uma ementa a ser cumprida.
De qualquer forma, não podemos esquecer que, como enfatiza Fortin
(GOSSELIN, 2006, p.107), quando o pesquisador procede a uma coleta de dados
sobre a prática de outros artistas, é a partir de seu ponto de vista como artista que ele o
21
faz, e isso vai certamente matizar seu processo de coleta e de análise. A autora
ressalta, baseada nas pesquisas de Jean Lancri e Pierre Gosselin, que o trabalho de
criação artística e o da pesquisa teórica que o acompanha apelam para processos
cognitivos diferentes: “o trabalho de criação artística faz intervir de maneira vantajosa
os processos subjetivos experimentais, enquanto que o trabalho de pesquisa solicita,
de maneira vantajosa, os processos objetivos conceituais”. Fortin sustenta, portanto,
que é necessário admitir que a racionalidade como o imaginário, o conceitual como o
sensível, a razão como o sonho, podem e devem ser objeto de uma apreensão concreta
de informações. Os dados sobre esses diferentes processos podem ser recolhidos por
meios sensíveis e rigorosos ao mesmo tempo.
Foram feitas entrevistas diretas com colegas, alunos e atores, nas quais eram
induzidos alguns dos temas principais, embora eu sempre tenha procurado deixar
espaço para a manifestação livre de comentários e de percepções outras que não só
aquelas por mim preferidas. Essa maneira de proceder gerou bastante material para a
pesquisa e também despertou interesse nas pessoas em conhecer mais sobre o trabalho
de Lecoq.
O corpus de análise dessa pesquisa envolve, portanto, o estágio de verão
realizado na École International de Théâtre Jacques Lecoq intitulado “La poésie, la
musique, la peinture et le jeu du comédien”6; a oficina ministrada durante o Festival
Universitário de Blumenau chamada “Imaginação e criação pelo movimento”; a
direção dos espetáculos “O Baile dos Anastácio” com a companhia de teatro Oigalê
de Porto Alegre e “O Defunto”; a preparação corporal do espetáculo “Miséria,
servidor de dois estancieiros” e “Uma Lady MacBeth”; as entrevistas com os colegas
do estágio, com os alunos da oficina, com ex-alunos da Escola7; a disciplina teórico-
prática do curso de doutorado da UDESC com o professor Matteo Bonfitto intitulada
“Investigação Cênica II: Seres Ficcionais: treinamento, composição e
dramaturgia(s)”; minha própria experiência como ex-aluna de Lecoq, atriz,
professora, diretora e preparadora corporal de elencos, ocasiões em que utilizo os
pressupostos dessa pedagogia como linhas-mestras de trabalho.
6 A poesia, a música, a pintura e o jogo do ator
7 Ex-alunos entrevistados por ocasião da pesquisa de mestrado. Sachs, 2004: anexo 1.
22
O estágio de verão “A poesia, a música, a pintura e o jogo do ator” foi
realizado em Paris de 14 a 23 de setembro de 2011, com encontros diários das 10 às
13h e das 14h30 às 18h30h, totalizando 56 horas. A oficina ministrada durante o
Festival Universitário de Blumenau chamada “Imaginação e criação pelo movimento”
ocorreu de 7 a 9 de julho de 2012, das 8 às 12h, em um total de 12 horas de trabalho
com pessoas com experiência prévia. A direção do espetáculo “O Baile dos
Anastácio” com a Oigalê foi realizada de maio a outubro de 2012, com algumas
semanas intermitentes de trabalho, sempre com encontros diários das 9 às 17h. “O
Defunto” foi o resultado de um processo de quatro meses de ensaio em 2006, à partir
do texto homônimo de René de Obaldia, criado para fins de trabalho de conclusão de
curso de interpretação na UFRGS de uma atriz que fora minha aluna nessa instituição.
As aulas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) ocorreram durante
18 meses em 2005/06, nas disciplinas intituladas Atelier I e Atelier II, nas quais há
um professor de técnicas corporais, um de atuação e um de direção, que trabalham
diariamente em conjunto com um grupo de alunos-atores e alunos-diretores. A
disciplina do professor Bonfitto teve a duração de uma semana em 2010, com
encontros diários que totalizaram 32 horas de trabalho, com uma apresentação aberta
ao público no final.
Lecoq queria uma escola voltada para o artista de teatro, fosse o ator, o diretor,
o dramaturgo, o cenógrafo, o coreógrafo, enfim, que houvesse uma compreensão da
cena, do jogo, do que é levado em conta em uma produção cênica. Quando fiz a
escola, no início dos anos 90, enfocava, então, apenas o trabalho de atriz, mas
desenvolvi lá um olhar e um aparato técnico para as outras funções também. Parece
pertinente, portanto, considerar a prática enquanto cada uma dessas funções que
desenvolvo. Nesse sentido, procuro utilizar como exemplos as práticas de acordo com
o foco de cada capítulo, que implicará diferentes pontos de vista, ainda que todos
meus. Por exemplo, quando descrevo a prática dos Vinte Movimentos e das
improvisações, o ponto de vista é principalmente o da professora, da preparadora de
elencos e da atriz. Já na parte da criação, priorizo o ponto de vista da diretora. São
abordagens que procurei estabelecer para fins de análise, com diferentes exemplos
para os diferentes pontos de vista, ainda que, na prática, estejam todos interconectados
o tempo todo.
23
Existe algo que permeia todas essas experiências: a sequência de aplicação de
técnicas no trabalho, o método que utilizo. Método no sentido de organização de
práticas que me parecem adequadas para o objetivo a que se propõe. O conjunto de
todas essas práticas constitui meu método de trabalho. Como esclarece Mostaço
(2012, p.3), método é aquilo que “resulta de parcelas disto e daquilo, a adaptação de
técnicas heteróclitas ajuntadas a partir de práticas diversas que cada artista invoca e
mobiliza em função de suas necessidades.” Assim como utilizo exercícios
provenientes da pedagogia de Lecoq, lanço mão de outras técnicas na medida em que
sinto necessidade de fazê-lo, alternando ou mesmo substituindo procedimentos
conforme as contingências do momento. Não se trata, portanto, de acreditar em uma
cartilha para o trabalho do ator, mas uma possibilidade que, entre tantas, é a que mais
uso, e que aqui servirá como fio condutor para escrever esta tese.
2.3 JACQUES LECOQ – BREVE HISTÓRICO
Jacques Lecoq nasceu em Paris em 15 de dezembro de 1921. Desde cedo
interessou-se por movimento, tornou-se atleta e envolveu-se com vários tipos de
esportes, especialmente natação, corrida e saltos. Estudou Educação Física e, segundo
ele (LECOQ, 1987, p.108), as sensações físicas guardadas na memória de seu próprio
corpo marcaram profundamente sua pedagogia do movimento. Mesmo durante a
ocupação alemã na França, durante a II Guerra Mundial, continuou trabalhando como
professor de Educação Física e como cinesioterapeuta, atividades que lhe
possibilitaram especializar-se em reabilitação de paralíticos e aprofundar seus
conhecimentos sobre anatomia humana. Nessa época, conhece Jean-Marie Conty
(1904 -1999) , um major da escola politécnica e aviador, jogador de basquete e amigo
de Antonin Artaud (1896-1948) e Jean-Louis Barrault (1910-1994), o que vai suscitar
seu interesse pelo teatro. Junta-se a um grupo de jovens que se refugiava e se escondia
nos chamados chantiers de jeunesse (canteiros da juventude), que procuravam usar a
ginástica, a mímica, o movimento e a dança em oposição à ideologia nazista.
Após a Liberação da França, ingressou na ATEC – Association Travail e
Culture (Associação Trabalho e Cultura), onde realizou seu primeiro treinamento
teatral através de cursos de “improvisações mimadas” com Claude Martin, aluno e
24
membro da companhia de Charles Dullin (1885-1949) – que havia sido colaborador
de Copeau –, e de dança expressiva com Jean Serry, antigo primeiro bailarino da
Ópera de Paris. Participou do grupo Les Aurochs, que criava espetáculos baseados em
improvisação, jogos corporais e movimento espontâneo, com atuação em
manifestações públicas ligadas a causas político-sociais, conforme o próprio mestre
(LECOQ, 1987, p.108).
Em 1945, foi convidado a trabalhar com Jean Dasté (1904-1994), genro de
Jacques Copeau (1879-1949), um de seus seguidores que era totalmente imbuído do
espírito dos Copiaus – grupo que trabalhava com Copeau –, constituindo a companhia
Les Comediens de Grenoble. Responsável pelo treinamento corporal do grupo, iniciou
ali seu trabalho com a mímica e experimentou, pela primeira vez, o jogo com a
máscara nobre, herança direta de Copeau, que mais tarde redimensionou a máscara
neutra, uma das principais bases de sua pedagogia. Dos espetáculos realizados nessa
época, dois foram particularmente importantes: L´Exode (O Êxodo), que utilizava
coro, mímica e máscara, que se tornaram um tema recorrente em sua pedagogia, e Ce
que murmure la rivière Sumida (Aquilo que murmura o rio Sumida), baseado em um
Nô japonês dirigido por Marie-Hélène e Jean Dasté, adaptado por Suzanne Bing,
também com influência direta dos ensinamentos de Copeau, segundo Lecoq (1997,
p.18 e 1987, p.108-109).
De volta a Paris, Lecoq trabalha como professor de expressão corporal na
escola E.P.J.D. (Éducation par le jeu dramatique), baseado nos preceitos adquiridos
em sua experiência em Grenoble. Nesta ocasião é convidado para trabalhar no Teatro
Universitário em Pádua, Itália, onde viveu entre 1948 e 1956 onde, além de professor,
trabalhará também como ator, mímico, coreógrafo e diretor de teatro, cinema e
televisão (LECOQ, 1987, p.108).
Vários aspectos de sua metodologia surgem nesse período, como a opção em
usar a mímica a serviço do teatro e não como arte independente, a utilização das
máscaras e a relevância do universo e da tradição oriundos da commedia dell´arte.
Compreendendo-a como teatro humano, com seus aspectos trágicos e cômicos,
aprendeu as atitudes e movimentos do Arlequim com o ator italiano Carlo Ludovici
(1894-1998), a partir dos quais estabeleceu aquilo que denominou “ginástica de
Arlequim” (LECOQ, 1997, p.19). Despertou também para a importância do coro
trágico, compreendido como um corpo com dinâmica própria, seu equilíbrio em cena
25
como um platô, o que propicia diferentes tensões dramáticas a partir de cada posição
que toma no espaço (LECOQ, 1997, p.20 e 1987, p.112).
Nessa época conheceu o escultor Amleto Sartori (1915-1962), que o
introduziu no universo das máscaras e alertou-o sobre a importância do cuidado em
sua fabricação, para que sirvam para o jogo cênico e não apenas como adereço ou
enfeite. Produto de discussões detalhadas sobre seu conceito, a máscara neutra
fabricada por Sartori em couro é a mesma utilizada até hoje na escola de Lecoq, assim
como o conjunto de máscaras da commedia dell´arte com o qual o escultor lhe
presenteou quando partiu da Itália.
Aliado a Paolo Grassi (1919-1981) e Giorgio Strehler (1921-1997), Lecoq
participou da criação da escola do Piccolo Teatro de Milão em 1951, com uma
ideologia explicitamente antifascista, com o compromisso de atingir públicos das
classes trabalhadoras e de desenvolver uma pedagogia do movimento, como informa
Murray (2003, p.12). Fundamentada sobre a expressão corporal, o jogo com máscaras
e a improvisação, além de aulas de dicção, história do teatro, estudo e interpretação de
textos, dança, esgrima e canto, a escola do Piccolo Teatro acabou definindo as bases
de sua futura escola aberta em Paris. Ali pôde exercitar sua experiência com
espetáculos e aprimorar sua técnica relativa à ação mimada, à análise do movimento,
à acrobacia dramática, aos jogos burlescos, às manipulações, ao ponto fixo, à
identificação com a natureza e ao sentido do coro (SACHS, 2004, p.50).
Lecoq volta a Paris e funda a sua própria escola em 1956, onde passa a
trabalhar exclusivamente como professor, diretor e mentor até 1999, ano de sua morte
naquela cidade. A École Internationale de Théâtre Jacques Lecoq segue funcionando
no mesmo local, embora com outros professores e seus filhos, mesmo após seu
falecimento. A Escola nunca foi um simples veículo para treinar atores com as
habilidades que Lecoq adquirira com Dasté e mais tarde durante o período que passou
na Itália, mas certamente esses anos foram cruciais na construção de uma plataforma
sobre a qual lançou sua pesquisa e desenvolveu sua pedagogia para o trabalho teatral.
26
2.3.1 Rede de Influências
Muitos foram os encenadores e pedagogos8 influenciados direta ou
indiretamente por Jacques Copeau e sua École du Vieux Colombier, que criou um
novo conceito de ator e de sua formação. Jacques Lecoq foi um deles. Embora
proveniente do universo esportivo, e não do literário como Copeau, Lecoq foi
altamente influenciado por suas ideias e crenças sobre teatro, como se pode constatar
ao analisar as bases filosóficas e metodológicas com que embasou sua escola. O
contato com aquela visão de Copeau deu-se através de Charles Dullin e,
principalmente, de Jean Dasté, genro de Copeau e seu ex-aluno, com o qual iniciou
sua atividade teatral profissional e onde descobriu a vontade de ir ao encontro de um
público popular, com um teatro simples e direto. “Nossa juventude se reconhecia no
espírito da escola do Vieux Colombier”, afirmava Lecoq (1997, p.18), acreditando
retomar a caminhada de Copeau9.
Expoente da reteatralização do teatro no século XX, Copeau pode ser
considerado um dos protagonistas do fenômeno do corpo no teatro, por intermédio da
pedagogia que desenvolveu em sua escola, indo da educação física ao mimo em busca
de um ator renovado. Queria salvar o teatro da industrialização, do mercantilismo, do
espírito de cabotinagem, do blefe e do exibicionismo, problemas que detectava no
teatro no início do século XX em Paris. Almejava exercitar sua arte sem comprometê-
la em função de tempo, de falta de imaginação, de sinceridade e de integridade,
segundo Sicard (1995). O corpo dos atores era algo ao qual não se prestava atenção à
época, valorizando-se apenas a voz e a expressão facial como recursos expressivos,
pautando-se na tradição dos chamados “monstros sagrados”10, que não trabalhavam
em um espírito de grupo tampouco com alguma técnica além de seu carisma.
Copeau volta-se para a tradição viva do teatro, buscando resgatar qualidades
essenciais tanto na encenação quanto na formação do ator, aspectos que encontrou no
antigo teatro grego, na commedia dell´arte, no teatro Elisabetano, no de Molière, no
8 Em minha dissertação de mestrado apresento detalhadamente as relações e influências entre Jacques Copeau e Étienne Decroux, Gaston Baty, Louis Jouvet, Charles Dullin, Antonin Artaud, Jean Dasté, Jean-Louis Barrault e Marcel Marceau. Fonte: Sachs(2004, p.36) baseada em Felner(1984), Copeau(1974), Leabhart(1989). 9 Mais detalhes sobre essas relações em Murray(2003), Lecoq(1997 e 1987, p.108-111).
10 Atores renomados como Sarah Bernhardt, Julia Bartet, entre outros. (SACHS, 2004, p.15 e 16)
27
de Shakespeare e no Nô japonês. Queria criar um novo teatro, antinaturalista, com
autenticidade e poder poético. Embora procurando desenvolver um tipo de teatro não
naturalista, além de Jacques Dalcroze(1865-1950), Adolph Appia(1862-1928) e de
Gordon Craig(1872-1966), também Stanislavski ajudou-o a dar corpo à sua
abordagem, de quem apreendeu a importância da sinceridade, da verdade, da ação
ligada a um estado psicológico não gratuito. Segundo Felner (1985, p.39), Copeau
modelou sua escola do Vieux Colombier a partir do Estúdio de Stanislavski que, em
1922, visitou-a em Paris, levando o mestre francês a dizer que “sua presença lá
consagrou seu lugar de trabalho”. É importante observar como as influências foram
se produzindo e, embora Lecoq tenha sempre enfatizado a importância do jogo não
psicológico em sua pedagogia, nela identifico reflexos de Stanislavski relacionados à
verdade, à sinceridade e à naturalidade do ator, aspectos constantemente apontados
nas críticas aos exercícios propostos pelo professor em sua Escola.
A paixão pela simplicidade, um dos principais pilares do movimento
modernista da época de Copeau, presente também na música, na literatura, na poesia,
na pintura e na escultura, é também uma característica significativa da pedagogia de
Lecoq. Assim como a crença de que “menos é mais”, ambos procuraram reduzir o
teatro a seus elementos mais simples, básicos e profundos. Em sua escola, Copeau
usava máscaras com o intuito de exteriorizar os conflitos internos, pois acreditava que
diminuindo o potencial da face para comunicar, obrigaria o corpo a buscar
alternativas para fazê-lo. Este simples “truque” gerou a mímica moderna: a máscara
serviu como um instrumento de renascimento do teatro, como sustenta Leabhart
(1989, p.26). Através da máscara nobre, visava a proporcionar ao ator certa
neutralidade física e mental como um ponto de partida, chave mestra da pedagogia de
Lecoq, ancorada na prática a que denominou máscara neutra, como mencionada
anteriormente.
Para Copeau, a ginástica, a mímica e a dança aumentavam a flexibilidade
corporal do ator, capacitando-o para uma melhor atuação. O objetivo maior das
técnicas físicas era o de que o ator se tornasse criador, que pudesse atuar de forma
colaborativa e igualitária com dramaturgos e diretores. Mesmo havendo uma certa
hierarquia, com Copeau como “le patron”, acreditava nessa maneira de trabalhar. Da
mesma forma, Lecoq, em sua Escola, mantinha uma posição de mestre, de ter a
palavra final, mas ainda assim, incentivava os trabalhos de forma igualitária entre os
28
alunos. Em oposição ao cenário naturalista, propunha um espaço vazio onde o ator
estaria no centro do fenômeno teatral, a serviço da criação: o ator deveria ser tudo,
inclusive seu próprio dramaturgo. Além disso, usava a improvisação no intuito de
livrar o ator da rigidez e desenvolver o trabalho coletivo, libertar os impulsos
criativos, a flexibilidade da mente e do corpo tal qual faziam os antigos atores da
commedia dell”arte. Lecoq continuou essa exploração da commedia dell”arte que
havia se iniciado com Dasté, examinando em sua escola as antigas tradições do coro
grego e do mimo romano acrobático, buscando resgatar essas raízes do movimento no
teatro, segundo Felner (1985, p.147).
Entretanto, como aponta Lorelle (2007, p.223) costuma-se privilegiar a
experiência de Copeau em sua escola como única, correndo o risco de a mistificar,
atribuindo-lhe todo o caráter fundador desse tipo de teatro da metade do século XX na
França com o consequente espraiamento que o sucedeu. Não podemos deixar de
considerar a escola de Dullin, L’Atelier, que surgiu quase que concomitantemente, em
1921, e superou de longe os dois anos de existência da escola do Vieux Colombier,
visto que até hoje ainda mantém-se aberta em Paris, pelo menos com o mesmo nome.
Dullin havia participado de algumas tentativas anteriores de organização da escola do
Vieux Colombier, reunido com um grupo ao redor de Copeau, mas decidiu seguir seu
caminho de pesquisa fundando sua própria escola que, diferente da de Copeau,
associava as funções de formação ao espetáculo, onde os próprios atores de seu grupo
constituiam o núcleo central da escola, conforme Lorelle (2007, p.28). Segundo esse
autor, sem buscar desafiar ou concorrer com Copeau, Dullin baseia sua escola de
atores em métodos que não são novos, mas, ao contrário, datam da própria origem do
teatro, menos “lógicos”, como afirmou em carta à Camille Mallarmé.
O Atelier de Dullin foi um lugar de destaque que formou, entre outros artistas
de renome como Étienne Decroux e Jean-Louis Barrault(1910-1994), Antonin
Artaud(1896-1948). Aliado ao espírito de laboratório de Dullin, Artaud experimenta
ali improvisações nas quais fica impressionado com a habilidade dos atores de
“representarem com apenas algumas palavras, algumas atitudes, alguns jogos,
personagens de nossa humanidade ou mesmo sentimentos abstratos, como os
elementos, o vento, o fogo, os vegetais, ou puras criações do espírito, dos sonhos, e
isto ao vivo, no local, sem texto, sem indicação, sem preparação” (ARTAUD, 1961,
p.171 apud LORELLE, 2007, p.35). Segundo Lorelle (2007, p.35), essa indicação de
29
Artaud demonstra que é a partir dessas técnicas de espontaneidade que surge um
campo de experiências até então desconhecido, no qual se passa a criar personagens
não mais a partir de textos, mas inventando, através das imagens do corpo em
movimento, seres não psicológicos, espécies vivas, forças naturais ou abstratas.
Normalmente reservadas ao poeta, a Ciência – onde a física, as forças naturais, os
elementos são tomados como o objeto –, passa a ser incluída nas práticas
improvisacionais, considerando não só seus aspectos exteriores, mas também a
subjetividade que se possa associar a ela.
Longe do olhar do público, Dullin sustentava a necessidade de um treinamento
corporal para o aluno, como um meio e não um fim, no qual propunha uma
confrontação com a vida sob as mais diferentes formas, em uma relação totalmente
nova com a natureza, como sustenta Lorelle (2007, p.36). Uma primeira parte desse
treinamento consistia na “descoberta do mundo” pelas improvisações com máscaras,
ao curso das quais explorava “uma plasticidade de natureza teatral”, que levaria a uma
“despersonalização forçada”, segundo Dullin, uma vez que ele deveria compor a
partir do exterior, comandado pelas exigências da máscara que substituiria a sua
personalidade. O ator, então, não seria mais somente um intérprete de personagens do
espectro humano, heróis e anti-heróis, mas poderia viver “não personagens”, ou ainda,
o brilho do ser. Dessa forma, Dullin dá as costas à psicologia, transcende as espécies,
os monstros e os gênios não são mais composições impossíveis para os atores, que
irão interpretar o mundo com seus próprios meios. Os meios são o seu próprio corpo
trabalhado de maneira a tal a tornar-se maleável à identificação com os animais, o
vento, o fogo, etc., com temas de pesquisa criativa do ator com seu corpo-ser inteiro,
ainda segundo Lorelle (2007, p.37).
Além da evidente relação da abordagem de Dullin com a de Lecoq, uma outra
influência foi definitiva na formação da Escola de Lecoq: sua experiência na escola
E.P.J.D. (Éducation par le Jeu Dramatique), mencionada acima. A E.P.J.D. surgiu em
1946, como uma associação cooperativa de artistas criada por Jean-Marie Conty,
juntamente com um grupo de atores e diretores como Jean-Louis Barrault, Alan Cuny,
Claude Martin, André Clavé, Marie-Hélène Dasté e Roger Blin. Embora essa escola
tenha existido durante seis profícuos anos, duas vezes mais do que a École du Vieux
Colombier, de Copeau, pouco material se encontra sobre ela. Lorelle (2003; 2007)
resgatou boa parte do material referente a essa escola, que considera uma utopia posta
30
em prática. O autor considera Jean-Marie Conty como “fundador de uma
antipedagogia em matéria de educação artística e de educação em si que foi ignorada
tanto pelo mundo da educação quanto pelo mundo artístico, (...) não havendo traços
de reconhecimento dessa magnífica experiência pelos cientistas porque seu autor não
era somente um cientista e nem pelos artistas porque ele era muito científico”
(LORELLE, 2007, p.165). Segundo esse mesmo autor (LORELLE, 2007, p.196),
no manifesto de 1947 da E.P.J.D. constavam termos significativos para a mudança de
paradigmas do teatro, como aquele denominado de “leis orgânicas”, que mais tarde
seria popularizado pelo conceito de organicidade de Grotowski, que também
conhecera o trabalho de François Delsarte (1811-1871) sobre o assunto, estabelecendo
relações também com sua abordagem. Conty, que fora aviador – amigo e parceiro de
Saint-Exupéry, criou a ligação aérea entre França e Madagascar –, engenheiro e
esportista, antes da escola e do grupo teatral “Les Vivants”, afirmava que tudo o que
fizera pelo teatro devia à Barrault. Faleceu em 1999 no anonimato, e seu livro “Faire
des vivants” é praticamente impossível de ser encontrado.
Como se pode observar, trata-se de um grupo de artistas que estavam todos em
contato entre si, juntamente com Copeau e Dullin, denotando vários aspectos comuns
entre suas abordagens, como parte de um pensamento maior daquela época –
primeiras duas décadas do século XX. A educação dramática reivindicada por Conty
foi parte de um movimento artístico, cujas técnicas circulavam na França,
principalmente, através do contato direto com os Copiaus, pelas descrições de
Chancerel nos Cahiers d”Art Dramatique, pelos membros do grupo Comédiens de
Grenoble associados à Dasté, por uma obra de Charles Antonetti intitulada Drame et
Culture e por algumas anotações de Barrault e de Dullin, como aponta Lorelle (2007,
p.186). Importante ressaltar, entretanto, que esses ensinamentos foram sempre
baseados no aspecto prático, na transmissão oral e gestual pelos cursos que uns e
outros ministravam e praticavam, aspecto que identifico como relacionado
diretamente à própria tradição da arte do mimo e da commedia dell”arte, em que o
conhecimento dessa arte era passado de geração em geração, de mestre para pupilo. O
autor enfatiza a questão da supressão da noção de aquisição de saberes fora da
experiência prática ser uma regra, na qual o valor está na progressão de uma maestria
corporal adquirida e não numa pirâmide de conhecimentos.
31
Até hoje esse aspecto se mantém na Escola de Lecoq, até mesmo após o seu
falecimento, pois trata-se de parte da pedagogia, é um princípio norteador dessa
prática, que enfatiza o desenvolvimento da criação pela via corporal acima de tudo.
Ele salientava que os alunos deveriam preocupar-se com a prática ali desenvolvida,
deixando qualquer interesse mais teórico para mais tarde, após deixarem a Escola. Na
minha experiência como aluna, no início dos anos 90, recordo que o trabalho diário
exigia muito fisicamente e, fora da Escola, tínhamos sempre observações a fazer que
seriam necessárias para o que estávamos desenvolvendo. Essas observações iam
desde a luz do dia, das cores, das pessoas, das linhas do espaço, dos quadros de um
museu, dos materiais de que são feitas as coisas e de como elas se movem – sim, era
bastante material a ser pesquisado, e não era em livros que deveríamos procurar, mas
no cotidiano ao nosso redor.
Como o mestre reconhece (LECOQ, 1985, p.108-109), foi graças a Conty que
ele interessou-se pelo teatro. Como aluno de sua escola, descobriu o valor da
improvisação e do jogo dramático, assistindo a demonstrações de Barrault, e mais
tarde tornando-se professor de ginástica acrobática nesse local. Há muita semelhança
entre a estrutura preconizada por Lecoq e a dessa escola, como, por exemplo, a
duração de dois anos, a importância da prática diária, somando 24 horas por semana,
envolvendo educação corporal, improvisação, mímica, jogo dramático e os temas de
improvisações ligados à natureza, conforme pode-se verificar no curículo exposto por
LORELLE (2007, p.XIV). Entretanto, há uma diferença crucial, tanto da E.P.J.D.
quanto da Vieux Colombier: essas escolas estudavam também textos e história do
teatro, aspectos que na Escola de Lecoq não são enfatizados, fato que acarreta sérias
críticas à sua pedagogia e do qual voltarei a tratar mais adiante neste estudo. Fig.1 – Ginástica de Georges Hebert
Fonte: Lecoq, 1986, p.61
32
A ginástica natural, de Georges Hébert (1875-1957), também influiu de
maneira marcante a pedagogia de Lecoq. Essa “ginástica”, introduzida na escola de
Copeau e depois seguida por Dasté. Hébert, teve importante papel no
desenvolvimento da educação física na França (figura acima). Inspirado em práticas
de povos indígenas quando viajou como oficial da marinha, assim como na força e
flexibilidade dos “button boys”11 e nos ideais físicos da antiga Grécia, Hébert formou
um sistema que rejeitava a mecânica repetitiva do método sueco dominante na época.
Propunha que a educação física fosse ligada à observação e à interação com o meio
ambiente, que o desenvolvimento físico ocorresse através de resistência, de
musculação e de velocidades orgânicas, com exercícios baseados em caminhadas,
corridas, saltos, escaladas, arremessos, levantamento de pesos, natação e defesa
pessoal, segundo Evans (2006, p.27). Enfatizava o uso do corpo de maneira
econômica, eficiente e com propósito definido, contrabalançando os efeitos nocivos
da vida urbana que teria reduzido sua interação com o mundo natural, atrofiando suas
aptidões físicas. Como aponta Felner (1985, p.41), o uso do sistema de Hébert
implicava aceitação de uma nova estética baseada em uma visão não estilizada da
beleza física, independente de qualquer modismo, o que atraiu Copeau, por ali ver
uma oportunidade de desenvolver um corpo natural12 e instintivo, disposto para o jogo
e atento ao mundo ao seu redor. Segundo Evans (2006, p.64), o que Hébert ajudou a
desenvolver foi um senso atlético, flexível e confiante que se tornou uma marca no
trabalho de Copeau e de muitos daqueles que seguiram seus preceitos – entre os quais,
Lecoq.
Embora a improvisação seja considerada atualmente um método
extremamente comum no treinamento do ator, assim como o uso de máscaras com
essa finalidade, na época de Copeau tais recursos consistiam em inovações sem
precedentes na tradição do teatro francês do início do século XX. Essas técnicas eram
realçadas pela utilização do chamado “palco nu” para aumentar a presença do ator, de
maneira tal que, sozinho em cena, ele fosse capaz de ocupar todo o espaço e manter o
foco sobre si. A combinação de um estado interno vivo com outro externo, frio e 11 Os “button boys” são os jovens tripulantes dos navios do exército que subiam nas cordas, trepavam nos mastros e equilibravam-se em minúsculas plataformas em forma de botões lá no alto para saudar os colegas de baixo. 12 Tanto o termo “corpo natural” como “neutralidade” são amplos e controversos. Largamente usados nos escritos de Copeau e de Lecoq respectivamente, referem-se, sobretudo, ao corpo livre de maneirismos, consciente de sua atuação como movimento, sem determinar algo ou alguém em especial.
33
equilibrado, com gestos sustentados e conscientes, foi um dos importantes marcos no
ensinamento de Copeau. Como reforça Gordon (2009, p.139), a prática de iniciar
ensaios com um aquecimento, tanto através de exercícios puramente físicos quanto
com jogos, provém da percepção de Copeau da conexão entre a atividade física e
mental com aspectos da imaginação, o que acabou estabelecendo uma convenção
normativa de ensaios para o teatro ocidental contemporâneo. Da mesma maneira
Lecoq, ao levar adiante a tradição de Copeau, vem utilizando essas práticas para
desenvolver a criatividade de gerações de teatristas desde o final dos anos 50.
Todos esses aspectos mencionados acima sobre Copeau, a não ser o uso da
dança e sua visão sobre o texto ser o centro do evento teatral, são os mesmos que
embasam a Escola de Lecoq, servindo aqui como descrição de suas características.
Tais semelhanças podem ser verificadas na própria estrutura diária das aulas, que
envolvem um período inicial de aquecimento físico através de ginástica e de
acrobacia, seguido de improvisação, com ou sem máscaras, e após, a criação de cenas
no auto-cours. Como aponta Gordon (2009, p.214), assim como Copeau, Lecoq não
fazia distinções entre escrita, atuação, cenografia e direção, uma vez que ambos
consideravam o espetáculo como indistinguível de todas as outras facetas do fazer
teatral. Em sua Escola, Lecoq passa aos alunos os valores estéticos da simplicidade,
da autenticidade e da criatividade, adquiridas ao longo de seu próprio treinamento
com os discípulos de Copeau.
Embora as abordagens de Lecoq e Grotowski referentes ao treinamento de
atores sejam bastante diversas em vários aspectos – e, ao que parece, nenhum deles
invocou o outro em seus escritos ou ensino –, eles estão conectados através da
herança de Copeau, cujo contato se deu para Grotowski por meio de Michel Saint-
Denis (1897-1971), a quem chamava de “meu pai espiritual”, como informa Murray
(2003, p.5). Além dessa herança em comum, ambos acreditavam que o “pulso”
criativo no coração do teatro é o corpo do ator, seus movimentos e suas imobilidades.
Como Hodge (2010, p.xxi) observa na introdução de seu livro sobre o treinamento do
ator, foi Artaud que “chamou um teatro que celebrava os elementos não verbais da
consciência...”13.
13 No original, “[...]He called for a theatre which celebrated the non-verbal elements of consciousness that could ultimately arouse therapeutic emotions within spectators.”
34
O estilo de trabalho da companhia de Copeau, os Copiaus, também vai ajudar
a formar as bases de praticantes experimentais como Grotowski e Barba, pelos longos
dias de trabalho com grande exigência física e comprometimento do grupo. O dia de
trabalho dos Copiaus e dos alunos girava em torno de um programa de exercícios de
ginástica, de mímica, de voz e aulas de teatro pelas manhãs, seguidos de
improvisação, jogos, ensaios, trabalhos de grupo e de criação coletiva às tardes. As
sessões eram também organizadas para trabalhos de confecção de máscaras, canto,
música e design, como relata Evans (2006, p.35), e cada membro era também
incumbido de tarefas e responsabilidades de grupo.
Outro aspecto importante é o jogo. Como aponta Gordon (2009, p.214), no
centro da pedagogia de Lecoq estava a mesma noção de jogo empregada por Copeau,
como um princípio primeiro da imaginação dramática: “atuação era espetáculo14, e
espetáculo incorporava uma vasta gama de habilidades de improvisação, criação
coletiva, escritura e cenografia”. A concepção de jogo de Lecoq baseia-se nas
brincadeiras de crianças, no drama, nos jogos esportivos e nos espetáculos. São ecos
de Copeau, que acreditava que os jogos criavam um espaço para o treinamento do
ator, onde a fantasia, a poesia e a realidade poderiam misturar-se e interagir, em um
espaço de entrega sem inibições, como nas brincadeiras infantis. Uma experiência
inconsciente que, ao mesmo tempo, desenvolve habilidades técnicas, encorajando a
ludicidade, a imaginação, a espontaneidade e a flexibilidade. Inovador no uso de
jogos para atores, seu trabalho antecede o de professores como Clive Barker (1931-
2005) e Keith Johnstone (1933-).
Leabhart (1989, p.93) identifica também relações com as ideias que estavam
em voga na época após a Segunda Guerra Mundial, como as de Delsarte sobre a
trindade “cabeça, coração, pélvis”, e sobre a identificação dos centros “intelectual,
espiritual/emocional e físico”, aspectos básicos de sua pedagogia que apareciam na
palestra-demonstração Tout Bouge. As práticas corporais dessa época influenciaram
tanto a evolução da dança como a do chamado teatro físico, como é possível verificar
ao observar um panorama da dança do início do Século XX aos nossos dias,
apresentado na exposição Danser sa Vie em Paris, 2012, e seu catálogo impresso.
Pode-se identificar muitos pontos comuns com o teatro focado no movimento
14 O autor usa o termo performance no original, referindo-se a espetáculo, atuação, show, e não na acepção de linguagem da performance.
35
provindos de diferentes áreas artísticas como, por exemplo, as propostas
desenvolvidas por Émile Dalcroze (1865-1950), por Rudolf Laban (1879-1978),
Oskar Schlemmer (1888-1943), Vassily Kandinsky (1866-1944), Eadweard
Muybridge (1830-1904), Mary Wigman (1886-1973), Yvone Rainer (1934-), entre
tantos ali mostrados.
Músico suíço nascido em Viena, criador da Dança Rítmica e da Euritmia,
Dalcroze influenciou, além de diversos bailarinos de renome, o influente filósofo
alemão Rudolf Steiner – que até hoje perpetua essa prática nas escolas de educação
fundamental com a pedagogia Waldorf por ele criada e difundida em quase todos os
países ocidentais (inclusive no Brasil). A Euritmia trabalha com deslocamentos no
espaço, com a conjunção de gesto e sons, aliando o peso do corpo à sua cadência
natural, à expressão das mãos e dos braços, seja em relação à música como aos sons
das palavras. Sem se tratar de uma dança, sua Ginástica Rítmica baseou-se
diretamente em Delsarte, agregando uma dimensão plástica e musical ao movimento.
Segundo ele, cada uma das emoções do ser humano são exprimidas por gestos e
atitudes, traduzidas diretamente pelos movimentos do corpo, noção que se funde à
noção da trindade de Delsarte antes mencionada, como foi apontado no Catálogo
dessa exposição (2012:50). No estágio de verão do qual participei em 2011 havia uma
colega alemã que estudou em uma escola Waldorf, que imediatamente associou os
exercícios que fazíamos, relacionados à percepção da música e da poesia, com a
Euritmia.
Curioso observar que, nessa exposição enfocada na arte da dança desde os
anos 1900 aos nossos dias, a performance é apresentada como sua continuidade, com
artistas como Allan Kaprow, Yves Klein, até mesmo Helio Oiticica. Se havia essas
bases comuns entre a dança e o teatro físico, em algum momento houve uma tomada
de rumos diversos, pois, entre os artistas que ali foram apresentados como os
sucessores dessas práticas, não há nenhum ligado ao teatro, à exceção da dança-teatro
de Pina Bausch, mas antes os das artes visuais. A linha que conduz as práticas de
teatro voltadas para o corpo, que um dia foram designadas de teatro físico, até o
presente, na segunda década do século XXI, parece ter-se perdido – possível objeto
para uma próxima pesquisa. De qualquer forma, aqui interessa-nos entender o
universo de ideias que estavam em voga, sabidamente o da relevância do corpo em
movimento como meio de expressão dos estados da alma, de dimensões abstratas,
36
corpos inspirados pela natureza, com uma preocupação técnica e plástica, onde a
geometria das formas direcionava as linhas das diferentes manifestações artísticas.
Independentemente de suas experiências como ator e diretor, Lecoq não é
normalmente identificado como performer. Ainda assim, cabe a lembrança dessa
palestra-demonstração Tout Bouge que ele costumava apresentar entre o final dos
anos 70 e início dos 80, no qual explicava e executava aspectos de sua pedagogia em
seu próprio corpo. Por ocasião de uma exibição em vídeo, que tive a oportunidade de
assistir na Escola, em 2011, verifiquei que ele traçava um panorama que iniciava com
o mimo romano, passava pela pantomima e propunha que a arte do mimo evoluíra
para uma “arte do silêncio”. Ele ali esclarecia que não se tratava de uma imitação da
natureza, mas de encontrar o “gesto de fundo”. Mostrava alguns gestos em diferentes
culturas, ligadas `as diferentes línguas, aspecto que lhe interessava desde essa época e
que segue sendo trabalhado na Escola até hoje, principalmente relacionado ao tema da
poesia. Exemplificando com os tipos da commedia dell’arte, o mestre ressaltava como
uma pequena alteração em pontos como o quadril, o plexus solar e a cabeça,
modificavam a atitude e o caráter da personagem conforme diferentes combinações.
Falava ainda em temas como o coro e o ponto fixo por meio de um ato cômico, que
pode ser entendido como uma performance, na qual o público divertia-se e aprendia
ao mesmo tempo, era o próprio performer, sem representação, mas que sustentava o
caráter de espetáculo.
2.3.2 Aspectos da École Internationale de Théâtre Jacques Lecoq
A grande força da escola está em seus alunos. (…) devemos lutar com eles se queremos conduzi-los a um lugar de verdadeira poesia. Isso pode ser difícil de conseguir. Quando lhes falta a imaginação nós precisamos incitá-los com visões fantásticas de beleza, com a loucura da beleza. (LECOQ,1997, p.34)
Lecoq(1997, p.26) considerava sua escola como uma “viagem”. Sua
pedagogia desenvolve-se ao longo de dois anos, onde o primeiro é dedicado aos
princípios básicos do jogo e da criação dramática, e o segundo à utilização desses
princípios aplicados às diferentes tradições de jogo dramático, do melodrama, da
37
commedia dell´arte, do bufão, da tragédia e do clown. Ao longo de todo o curso, no
entanto, a Escola é organizada em três eixos principais, a saber: a análise do
movimento, a improvisação e o auto-cours ou criação pessoal. Esses eixos encontram-
se apoiados em princípios fundamentais que estabelecem a estrutura de todo jogo
cênico proposto aos alunos e que permeiam todo o ensinamento de Lecoq. Em minha
dissertação de mestrado estruturei sua metodologia de acordo com seus princípios
básicos – quando a conheci no início dos anos 90 –, dividindo-os em três itens
principais: mímica, observação da natureza e leis do movimento, conforme o esquema
abaixo apresentado em Sachs (2004, p.54):
Fig.2 Estrutura da Escola
Estrutura da Proposta Pedagógica
PRINCÍPIOS BÁSICOS EIXOS DA ESCOLA IMPROVISAÇÃO
- Silêncio - Temas - Jogo - Máscaras - Personagens
ANÁLISE DO MOVIMENTO
- Acrobacia - Consciência corporal - Sequências de movimentos
- Mímica segundo Lecoq - Observação da natureza - Leis do Movimento
AUTO-COURS - Criação pessoal
Fonte: Sachs (2004, p.54)
Para os objetivos da presente pesquisa, escolhi estudar apenas alguns desses
temas, como o dos elementos, das matérias e aquele denominado “abordagem às
artes”, principalmente a pintura, onde encontro o aspecto mais abstrato dessa
dimensão que parte da observação da natureza e faz convergir grande parte dos
princípios de sua pedagogia. Em cada tema, tal dimensão é ampla, estudada durante
pelo menos três meses de aulas práticas diárias, quando se experimenta as relações
entre eles e o jogo do ator. É assim que se evidencia a passagem do abstrato ao
38
concreto, do invisível ao visível, da percepção ao corpo e à construção cênica, da
ampliação da imaginação através de práticas corporais.
Sem pretender aprofundar todos os aspectos de sua pedagogia, estudo que já
foi desenvolvido em minha dissertação de mestrado, apresento resumidamente aqui
alguns pressupostos fundamentais, no intuito de situar alguns termos relevantes para a
presente pesquisa. Seguindo o esquema acima, inicio pelos princípios básicos que
consistem da mímica segundo Lecoq, da observação da natureza e das leis do
movimento para, em seguida, abordar o que proponho como os eixos da Escola.
A mímica, para Lecoq, é abordada como uma ferramenta de trabalho, uma
prática a serviço do teatro, sem um fim em si mesma, ou seja, sua utilização
pedagógica não deve ser confundida com o cultivo da arte da mímica. O mestre
defendia a idéia de “mímica aberta”, referente ao ato criativo fundamental, à mímica
escondida em todas as artes, a primeira camada no fundo de todas as artes, o que vai
ao encontro do conceito de mimesis de Aristóteles. Preferia usar o termo “mimismo”
proveniente da antropologia de Marcel Jousse, enfatizando a diferença para com o
“mimetismo”, pois “mimetismo é uma representação da forma e mimismo é a busca
da dinâmica interna do sentido” (LECOQ, 1997, p.33). Aliada a outros princípios e
recursos como as máscaras, por exemplo, a mímica é um dos instrumentos principais
utilizados em sua metodologia, trabalhada principalmente através da análise do
movimento, onde são desenvolvidos os aspectos técnicos. Através de restrições
propostas nos exercícios, tais como a falta do objeto, o estar só em cena, o silêncio, a
rapidez dos movimentos, a expansão e redução do espaço, são trabalhadas
transposições do real que visam propiciar a invenção de outra linguagem.
A observação da natureza, do entorno, do cotidiano, é a fonte primeira de
inspiração para as improvisações realizadas na escola. Observar como os seres e as
coisas movem-se, reconhecer essas manifestações em seu próprio corpo e representá-
las, privilegiando sempre o mundo externo ao interno, em uma clara indução ao jogo
não psicológico. Herança direta da visão de Copeau e das pedagogias que a
perpetuaram, anteriormente mencionadas, a observação e identificação com a
natureza estão no coração da metodologia de Lecoq. Em um mecanismo de “rejogo e
jogo”, provenientes da abordagem de Jousse, que abordamos mais detalhadamente no
item 3.2.2 dessa tese, o aluno deve observar, experimentar em seu corpo e depois
transferir para o jogo teatral, usando para tanto o “método das transferências”. Esse
39
método consiste em transferir o movimento de uma matéria ou um animal, por
exemplo, para um ser humano ou, ao contrário, partir de um ser e inserir tais
características a seus gestos e maneiras. Trata-se de apoiar-se nas manifestações da
natureza para investir em seres, personagens, tipos, ou o que quer que se queira criar.
Conhecer aquilo que chamava de “leis do movimento” é, para Lecoq,
indispensável para a criação artística, principalmente para o teatro. As leis do
movimento organizam todas as situações teatrais, constituindo, para o mestre, a
estrutura mesma do jogo cênico, constituindo o que ele considerava o fundo dinâmico
de sua pedagogia. Tais leis são resumidas por Lecoq (1997, p.100) da seguinte
maneira: “não existe ação sem reação; o movimento é contínuo, nunca para; o
movimento sempre se origina de um estado de desequilíbrio que tende para o
equilíbrio; o equilíbrio está ele mesmo em movimento; não há movimento sem um
ponto fixo15; o movimento sublinha o ponto fixo; o ponto fixo também está em
movimento”. Nelas estão também implícitas os seguintes princípios relacionados ao
movimento do corpo: neutralidade, economia, ponto fixo, equilíbrio, desequilíbrio,
compensação, alternância, apelo ou tomada de impulso16, ritmo, relação com o
espaço, expansão e redução.
Nas aulas de análise do movimento, quando são ensinados os chamados Vinte
Movimentos, estuda-se o ponto fixo de cada movimento no sentido de limpar o gesto,
de referenciar o movimento, assim como no sentido de entender e aplicar seu
significado na cena, em relação aos colegas, aos objetos, ao espaço. A mesma ideia
será transposta para trabalhar o coro, por exemplo, quando o corifeu se destaca do
grupo, o fato dele movimentar-se, ou não, suscita diferentes leituras possíveis sobre
poder, dominação, confiança.
Quanto aos eixos da escola, a improvisação constitui o núcleo central do
processo educacional, age como eixo condutor para a construção da cena e das
personagens, partindo de situações e de temas. Inicia com a investigação do jogo
silencioso em que, a partir da busca de um estado neutro, acontecerá o jogo cênico
15 Ponto fixo é o ponto de referência que evidencia o deslocamento de algo, que fará o contraponto para que o movimento apareça. Pode ser uma parte do corpo ou da cena, como, por exemplo, se todos se movem simultaneamente no palco o sentido do movimento desaparece, necessitando, portanto, de um ponto de referencia a partir do qual os outros se movimentam.
16 No original, em francês, Appel. Em relação ao movimento, em Lecoq, é semelhante à noção de satz utilizada por Eugênio Barba no treinamento segundo a Antropologia Teatral.
40
dos diferentes temas, com ou sem máscara, dali surgindo os tipos e as personagens.
Trata-se de estabelecer o silêncio tanto do ator consigo mesmo, quanto em relação ao
espaço que vai sustentar a cena.
Os três eixos da escola – improvisação, análise de movimentos e auto-cours –
são sempre abordados com base em temas comuns, que estão presentes em todas as
aulas. Diretamente ligados à natureza, à vida, ao cotidiano e à interação entre todas as
coisas, os temas abordados ao longo do primeiro ano da escola são basicamente os
seguintes: os elementos da natureza; os cataclismos; as matérias; as cores; as luzes; as
artes da pintura, da poesia e da música; as palavras; os animais; as paixões.
A concepção dramática de Lecoq está fundamentada na abordagem do teatro
como jogo, que inicia pelo “rejogo”, como foi anteriormente mencionado, como
primeiro estágio no trabalho de improvisação. Nele, os alunos revivem situações
como, por exemplo, o ritmo cotidiano de uma cidade, de um hospital, de uma estação,
etc. O mestre (1997, p.60) utiliza também a expressão “mimodinâmica”17 para referir-
se a esse processo de traduzir as sensações externas em movimentos corporais,
afirmando, por exemplo, que “a verdadeira colocação de um poema em movimento,
algo que a tradução por meio de palavras não consegue praticamente jamais
alcançar”.
O jogo propriamente dito vem depois, no momento em que o ator imprime
outro ritmo, outra medida, outra duração, outro espaço, dando forma à sua
improvisação. São trabalhadas diferentes dinâmicas pelos sete níveis de jogo em uma
escala de tensões assim denominadas: a subdescontração, a descontração, a economia,
a firmeza, o alerta, a irritação, a asfixia, como aponta Sachs (2004, p.80).
As máscaras são utilizadas como instrumentos para auxiliar o ator a soltar
tensões, a aprimorar a expressão de seus movimentos, a ampliá-lo e engajá-lo como
um todo. Utilizando a máscara neutra, Lecoq buscava despertar um estado de
neutralidade, de silêncio, de imobilidade, que viria a ser uma das bases do seu
treinamento. Além dela, trabalha as máscaras larvárias, as expressivas, as utilitárias,
17 Possivelmente inspirado também em Jousse que, embora não utilize esse termo especificamente, forja vários outros a partir da raiz mimo, como, por exemplo, mimodrama, mimograma, mimografismo, mimodramática, mimagem, entre outros, sempre referindo-se à tendência humana de partir da imitação do sentido ou da forma.
41
as feitas pelos alunos e as contramáscaras, sempre no intuito de despertar a percepção
do corpo e de forçar a comunicação através dele.
O trabalho com as personagens parte da construção de seu corpo com base em
algumas características definidas, em um primeiro momento, pelo próprio ator. Ele
vai experimentar figurinos que colaborem em sua construção e deve definir pelo
menos três aspectos de sua personalidade, como, por exemplo, “arrogante, generoso e
nervoso”, que consistem em linhas de força que definirão a personagem,
estabelecendo a estrutura básica para o jogo. São então propostas situações em que
essas personagens irão encontrar-se e colocadas em evidência.
Como esclarecido anteriormente, não me detenho em todos os aspectos da
pedagogia de Lecoq, visto que não são o foco dessa pesquisa. Entretanto, há ainda
dois itens, a análise do movimento e o auto-cours, que estarão presentes mais adiante
nesse trabalho, quando da utilização dos mesmos, recebendo a atenção necessária no
momento devido. Sem a necessidade de estender as apresentações, passemos, então,
para o alongamento propriamente dito.
42
3 ALONGAMENTO
Neste capítulo abordo inicialmente o alongamento corporal necessário para a
saúde do corpo e para abrir espaço para o trabalho criativo, assim como a “página em
branco” de que falava Lecoq. Em sua Escola, o objetivo do primeiro ano é o de
“tornar o aluno disponível para receber os acontecimentos externos, eliminar as
formas parasitárias que não lhe pertencem, retirar tudo o que possa lhe dificultar a
reencontrar a vida em suas formas mais essenciais”(LECOQ, 1997, p.39). O
alongamento, no contexto dessa pesquisa, refere-se também metaforicamente aos
limites conceituais dentro dos quais estou trabalhando, como aqueles referentes à
imaginação, principalmente à luz de Gaston Bachelard e Marcel Jousse, citados por
Lecoq, mas também algumas noções provindas de Bergson e de autores mais
contemporâneos como o filósofo Jean Piwnica. Na terceira parte estendo para a visão
de “Fundo Poético Comum” de Lecoq, a partir de relações com aspectos das ciências
naturais, da filosofia, da espiritualidade e das artes, que vai permear todo o
ensinamento do mestre.
3.1 PÁGINA EM BRANCO
Costumo iniciar o trabalho com uma sequência de exercícios que organizei
baseados principalmente em práticas do ioga. Solicito que o aluno escolha um local
para deitar-se na sala, com o ventre para cima e olhos fechados. Primeiramente, deve
somente procurar escutar os ruídos externos, e atentar para sua respiração naquele
momento, naquele dia, no intuito de estabelecer contato com o aqui e agora. Conduzo
um relaxamento inicial que chamo de scanner, que visa despertar um olhar interno
que passa ao longo do corpo no sentido de relaxar e tomar consciência de possíveis
pontos de tensão. Ao me escutar mencionar determinado ponto, a pessoa deve focar
ali sua atenção, senti-lo pesar e atentar para a superfície de contato de seu corpo com
o chão. Inicia-se com o contato dos calcanhares no solo e, em direção à parte superior
do corpo, atentar para o espaço vazio que se segue até tocá-lo de novo com a barriga
da perna, procurando mapear toda a extensão desse toque para os lados e para o alto,
até o limite com o espaço posterior dos joelhos. Em seguida, a grande superfície de
43
contato das coxas com o solo, até que esse é suspenso na altura da coluna lombar.
Depois as costas, os braços, chegando à “ponte” que se sente entre essa parte e a
cabeça, ou seja, a nuca. Solicito que aproveitem para relaxá-la como se também ela
quisesse tocar o chão. Ao chegar no topo da cabeça, cada pessoa deve voltar
mentalmente seu scanner desde seus pés, refazendo o trajeto e relaxando as partes que
ainda julgar necessário. Em seguida, cada um deve fazer duas ou três respirações
profundas desde os pés até o topo da cabeça e exalar aos poucos, como que
esvaziando-se daquilo que trazia de fora da sala de trabalho. Entrar em contato com a
respiração é fundamental. Essa prática visa, sobretudo, possibilitar um afastamento
das questões do cotidiano para poder entrar num outro espaço propício para a criação.
Após esse relaxamento inicial, segue-se uma sequência de exercícios no solo
que visam principalmente alongar a região da coluna lombar, a nuca, os músculos das
pernas, dos braços e das costas. Costumo sugerir que mantenham os olhos fechados
nessa parte do trabalho para que possam trazer a atenção para si, para sua respiração,
para silenciar, para mudar de atmosfera, para distanciarem-se da vida cotidiana e
abrirem-se para o teatro. No ioga, esses exercícios visam apaziguar a mente, controlá-
la, na medida do possível, propiciar um bem-estar físico através do relaxamento. Para
o ator, além dessa contribuição, sua utilização visa ampliar a noção de aqui e agora,
abrir espaços para a imaginação, ampliar o campo perceptivo com o apaziguamento
da mente, aspectos normalmente passíveis de serem trabalhadas a partir da
intervenção nos padrões respiratórios.
A etapa do alongamento serve como um divisor de águas, pois a maneira
como chegamos da rua pode contaminar todo o trabalho. Com a experiência, cada
pessoa deverá ser capaz de detectar aquilo que melhor lhe convém para se colocar em
um estado propício para o trabalho criativo. Como professora e preparadora de
elencos, no entanto, proponho esta sequência de exercícios que acabo de descrever,
muitas vezes mantida como rotina pelos alunos e atores mesmo depois de
terminarmos o trabalho. Evidentemente, há dias em que pode ser mais conveniente
iniciar com algo oposto, algo bem dinâmico como, por exemplo um jogo tipo pega-
pega, caminhadas pelo espaço, jogos com bolas. Tudo dependerá do dia, da hora, da
temperatura, das condições da sala, da condição dos corpos dos atores, e até mesmo
do humor do grupo.
44
Mesmo não tendo a intenção de comparar sistemas de crenças e práticas
teatrais, julgo pertinente mencionar a influência do ioga na prática de Stanislavski,
como nos informa Carnickle (2009, p.167). O renomado teatrista afirmava que a
tensão física é o maior inimigo da criatividade, pois além de paralisar e distorcer o
corpo, interfere na capacidade mental para se concentrar, fantasiar e usar a
imaginação. Segundo a autora, Stanislavski utilizava muitos exercícios derivados do
ioga com a finalidade de promover relaxamento e controle da capacidade de
concentração, imaginação e comunicação, o que acreditava que levaria o ator a
desenvolver um senso teatral de si. O mestre concebia a comunicação como a
transmissão e o recebimento de raios de energia, como ondas de rádio psíquicas com
as quais se pode entrar em contato através da nossa respiração. A cada expiração,
emitimos raios para o meio ambiente, e com cada inspiração recebemos essa energia
de volta a nossos corpos. Concordo totalmente com ele que, assim como Dullin,
acreditava que atuar exige um estado de relaxamento físico no qual o ator usa apenas
a tensão muscular suficiente para realizar o que quiser.
A fase de alongamento serve igualmente como preparação para o aquecimento
que se seguirá, normalmente com alguns dos Vinte Movimentos, como veremos no
próximo capítulo. Na Escola de Lecoq, o alongamento é normalmente feito com o
professor de acrobacia que, mais do que relaxamento e abertura perceptiva, visa o
alongamento muscular necessário para os movimentos acrobáticos. A acrobacia na
Escola tem um papel destacado, voltado para o desenvolvimento da confiança do
aluno, que vai progressivamente encorajando-se a arriscar-se no espaço e na cena,
experimentando posições do corpo que normalmente não faria. Deve, entretanto, ser
tratada com extremo cuidado para não causar lesões, razão pela qual não costumo
usar nas minhas práticas, a menos que seja com pessoas que já possuam experiência
prévia.
Voltar à Escola vinte anos após tê-la cursado era, para mim, algo que
despertava grande expectativa e curiosidade. Antes de partir para Paris para o estágio
de verão haviam muitas perguntas que eu queria responder lá, tais como: como
conseguirão abordar este tema que é tão complexo, que no curso de formação leva
pelo menos três meses, em 10 dias, apenas 56 horas de trabalho? Há alguma maneira
de abordar esse tema sem passar pela máscara neutra? Passaremos pelas cores, pelas
luzes, pelas matérias, pelos elementos? Usarão os Vinte Movimentos e a acrobacia?
45
Será mantida a organização do curso de formação com as aulas de análise do
movimento, improvisação e auto-cours? Como realmente influencia a imaginação?
Ou serão outras competências do ator, como prontidão, percepção, presença, as mais
enfatizadas? O que é do imaginário do próprio ator e o que lhe é imposto? Qual o real
espaço de criação deixado ao aluno? Como será abordado sem monsieur Lecoq? Será
que usarão os termos Fundo Poético Comum, e outros específicos, já que o próprio
Lecoq raramente usava esses termos em aula? Como estará a escola sem o mestre?
Enfim, eram muitas as questões a serem respondidas.
No primeiro dia do estágio iniciamos com alongamento e acrobacia com o
professor Christophe Marchand18, o mesmo professor com quem eu estudara quando
fiz a Escola em 1992/93. Com larga experiência didática, ele vai ressaltando a
importância do alongamento criterioso da coluna, dos ombros, dos braços e das
pernas, construindo pouco a pouco a confiança nos movimentos. Sua abordagem é a
mesma desde então, iniciando com exercícios de alongamento, em pé, e depois no
solo, do tronco e das pernas, característicos de aulas de ginástica. Com atenção
especial para a coluna lombar, o encaixe do quadril e os ombros, prepara o corpo para
o trabalho de acrobacia com a posição da vela e o impulso para ficar em pé sem o
auxílio das mãos.
Em seguida, no estágio de verão, iniciamos o trabalho com improvisações
silenciosas e com a máscara neutra que, embora fazendo uns poucos exercícios dessa
natureza, serviram para estabelecer algumas normas em relação ao movimento, à
noção de neutralidade e de economia. A neutralidade, para Lecoq, é um estado ideal
de alerta e de repouso ao mesmo tempo, equivalente ao silêncio ou à uma folha de
papel em branco. É um estado ideal que antecede a qualquer ação, um perfeito
equilíbrio, de um ser genérico, sem conflitos, sem marcas, ninguém em especial,
inaugurando a ideia de ser comum, noção que se alia à de Fundo Poético Comum
18 Christophe Marchand foi Professor de Educação Física e do Desporto Educação por 6 anos. Fez o curso profissional na escola de Jacques Lecoq em 1979-1981, após o que se tornou professor de acrobacia dramática lá. Desde 1999, além de acrobacia, também ministra aulas de improvisação. Suas habilidades como professor e suas habilidades específicas em movimento, análise do movimento e acrobacia são apreciadas pelos estudantes há 30 anos. Paralelamente, Christophe Marchand trabalhou como ator e criou uma companhia de teatro – Théâtre de Marguerite – junto à qual ministrou cursos de teatro e dirigiu alguns espetáculos. É regularmente solicitado em estágios na França e no exterior (Barcelona, Israel, Holanda, Chile, Coréia do Sul). Christophe Marchand é também pintor, qualidade que enriquece seus cursos de improvisação com sua experiência pessoal. (Fonte: http://www.ecole-jacqueslecoq.com) Tradução nossa.
46
abordada a seguir. A neutralidade é o ponto zero do corpo e do movimento, o ponto
de partida, que também pode ser tomado como um ponto fixo, como apontado em
Sachs (2004, p.65-66) e Bradby (2001, p.166). Na verdade, trata-se de uma busca
desse ideal, uma convenção que envolve uma postura ereta, com os braços e as mãos
alongados, que por si gera um estar presente e consciente de todo o corpo em relação
a si mesmo, aos colegas e ao espaço ao redor.
A máscara neutra é utilizada para induzir esse estado, eliminar excessos e
maneirismos, para que o ator assimile uma dimensão de “não personagem”, que
deverá guardar como referência básica que antecede a criação. Sua utilização, desde
que foi proposta por Copeau como máscara nobre, visa libertar o ator da “tirania do
rosto”, que naquela época era o principal meio de expressão do ator, e até hoje
mantêm-se essa tendência. Para se compreender a neutralidade, é importante levar em
conta o conceito de economia e de limpeza do gesto, imbricados um no outro, em que
“menos é mais”.
No curso de formação passa-se aproximadamente dois meses exercitando a
máscara neutra, mas, no estágio de verão, foram apenas uns poucos exercícios que,
ainda assim, foram importantes para estabelecer um ponto de partida comum atodos
os alunos, a “página em branco” em que poderemos inscrever o que quisermos, um
vazio antes de querer preencher com qualquer outro, seja personagem, ser fictício,
jogo com objetos, máscara, exatamente da mesma maneira como Monsieur Lecoq
(1997, p.39) costumava falar.
Ao final do primeiro dia do estágio, portanto, algumas das minhas perguntas
iniciais já haviam sido respondidas: a estrutura seguiria a mesma da pedagogia do
curso de formação, com a primeira aula sendo de alongamento e aquecimento
corporal, a segunda aula seria de improvisação e teria um terceiro momento de auto-
cours no fim do dia.
O curso seguiu com essa rotina inicial de preparação voltada para a acrobacia,
com alongamento da coluna lombar e das escápulas: sentados, pernas afastadas,
longas fitas em cada pé, costas eretas, procurávamos empurrar a coluna lombar à
frente, respirando para, aos poucos, tentar aproximar o púbis do chão. Em seguida,
retomamos os exercícios acrobáticos passo a passo. Para a parada de mão, por
exemplo, inicia-se com exercício em duplas, um deitado e outro em pé. Aquele que
está no chão segura nos calcanhares do que está em pé, colocados logo acima de seus
47
ombros; com os braços flexionados, ele se empurra para longe, no chão, enquanto o
que está de pé resiste, firmando-se para o colega empurrar. É um aquecimento das
escápulas, dos ombros, dos braços e pulsos, que consistem nos mesmos movimentos
que serão feitos na posição vertical da inversão (parada de mão), quando também
deve-se empurrar o chão para estabilizar-se em equilíbrio. Para a roda (ou estrelinha),
inicia-se com um pequeno círculo imaginário à frente de cada um, e a pessoa deve
colocar neste espaço uma mão, outra mão, um pé, outro pé. Em seguida aumenta-se o
círculo, mas o movimento deve manter-se o mesmo. Quanto maior vai tornando-se o
círculo, ele passa a ser um reta, e, sem nos darmos conta, estamos fazendo a estrelinha
em linha reta. Pode até parecer banal, mas reconheço ali o valor da pedagogia do
movimento, de construir passo a passo algo que muitas pessoas desistem de antemão
por parecer arriscado. Tanto é assim que, em seguida, experimentamos fazer a roda
descendo de um banco longo, onde iniciávamos a primeira parte do movimento
colocando uma mão e depois a outra ainda sobre o banco, e a segunda parte era feita
no chão. Exercício realizado inicialmente em pares, com um colega sempre dando
suporte, segurando o outro pelo quadril, retirando o rosto da frente para não se
baterem. Esses exercícios de acrobacia são importantes para trabalhar com o medo, o
risco, o impulso, o lançar-se, a confiança, a ampliação de movimento para além do
que acreditamos ser possível de fazer com nosso corpo.
Com os exercícios de alongamento e de acrobacia cada vez mais fluidos, no
quarto dia notava-se claramente uma maior disponibilidade das pessoas para
arriscarem-se, por exemplo, a correr sobre o tatame, fazer duas rodas seguidas em
linha reta e sair dali com controle do corpo. Seguimos com a rotina diária desses
exercícios, que envolviam paradas de mão, apoios com os cotovelos no chão para
fortalecer os músculos abdominais, trabalhando o encaixe do quadril como se
usássemos um corpete ao estilo das mulheres antigas, com o músculo abdominal bem
teso e controlado. Foi notável o quanto as pessoas foram organizando seus corpos,
adquirindo segurança e passando a agir com maior domínio e capacidade de correr
risco, mesmo aquelas que não tinham antecedentes nesse tipo de atividade. Eu
mesma, que há muitos anos não fazia acrobacia, percebi como fui recobrando
confiança e força através do movimento estruturado, permitindo mover-me com maior
liberdade no espaço, com impulso para entrar em cena, para me arriscar. Com a
experiência renovada por este curso voltei a constatar a relevância desses exercícios
48
de acrobacia como bases preparatórias para o jogo do ator, ainda que não tenha o
costume de utilizá-los como tal.
Assim como o exercício no qual ficamos em pé e alongamos os braços e o
corpo em todas as direções procurando tocar uma espécie de bolha invisível que nos
circunda, proponho a seguir algumas questões através das quais se possa examinar
alguns limites até onde alcança o presente estudo no que tange a imaginação.
3.2 SOBRE A IMAGINAÇÃO
Muitos foram os autores que se debruçaram sobre a questão da imaginação e
do imaginário, tais como Henri Bergson (1859-1941), Jean-Paul Sartre (1905-1980),
Gilbert Durand (1921-2012), Jacques Le Goff (1924-), Gilles Deleuze (1925-1995),
para citar apenas alguns dos mais conhecidos, em seus vários campos de atuação. Para
o presente estudo enfoco principalmente alguns conceitos de Gaston Bachelard e de
Marcel Jousse, uma vez que eles figuram entre as declaradas influências recebidas por
Lecoq. Entretanto, além desses dois nomes, recorro também a Bergson, cuja
influência detectei por ocasião dos meus estudos de mestrado, assim como Piwnica,
filósofo que apresenta uma compreensão ampla sobre a imaginação e vai colaborar na
definição de alguns parâmetros para situar o tema. Para situar o tema em relação aos
estudos teatrais apresento alguns dos pressupostos dessa competência do ator
desenvolvidos com base nas abordagens de formação no trabalho de Stanislavski e
Michel Chekhov a fim de contrastá-las com a maneira proposta por Lecoq.
Segundo o dicionário Houaiss (2001, p.1573), imaginar é a faculdade que
possui o espírito de representar imagens, de evocar imagens e objetos anteriormente
percebidos; a capacidade de formar imagens originais; a faculdade de criar a partir da
combinação de ideias. Vale notar que as palavras imagem, imaginação e imaginário
provêm da raiz etimológica do latim imago–ginis, que significa semelhança,
parecença, representação, retrato (pictórico, escultórico, plástico, verbal); também
relacionado à imagem pelo grego eikon. Nesse sentido etimológico, portanto,
imaginação é a representação de um objeto ou reprodução mental de uma sensação na
ausência da causa que a produziu, ou ainda, a capacidade de imitar modelos
exemplares, as imagens, reproduzindo-as, segundo Queiroz (2010). Essa
49
representação mental, consciente ou não, é formada a partir de vivências, lembranças
e percepções passadas, passíveis de serem modificadas por novas experiências.
Ainda segundo Houaiss, em latim o verbo imaginar, imaginor, relaciona-se a
representar na imaginação, sonhar, devanear; o radical imago frequentemente está
presente nos vocábulos imitor, imitaris, que significa procurar reproduzir a imagem,
imitar, arremedar, modelar-se por, copiar, assemelhar-se a, simular, fingir, falsificar.
Como aponta Simões (1999, p.37), há no pensamento ocidental uma
predominância de metáforas visuais aplicadas ao conhecimento, verificável em
palavras como evidência, ponto-de-vista, teoria, ideia (em grego eidos, “forma
visível”), intuição (do latim intuere, “olhar atentamente”), inteligência (do latim intus
legere, “ler dentro”), visão-de-mundo, e tantas outras. Desde os gregos antigos, que
entendiam o ato de pensar como extensão do ato de ver, a visão prevalece na tradição
filosófica posterior como o sentido do próprio pensar19.
A imaginação é definida a partir de diferentes enfoques, por vezes conflitantes.
A tradição filosófica configura dois tipos de imaginação: a faculdade mental de
evocar objetos conhecidos sob a forma de imagens através das sensações ou da
experiência anteriores; e outra, a faculdade da mente em criar e recriar imagens novas,
ainda que a partir de formas sensíveis e concretas. A primeira é chamada imaginação
reprodutora, meramente evocativa, que depende substancialmente das sensações, da
percepção e da memória, simples registro passivo de experiências. A segunda é a
imaginação produtora, emancipada da percepção sensível, essencialmente criadora,
original, simbolizante, poetificante, inventora de novas imagens ou sínteses originais
de imagens.
Para autores como Gilbert Durand (1997, p.18), o imaginário é o conjunto das
imagens e relações de imagens que constitui o capital pensado do homo sapiens, o
grande denominador fundamental para onde convergem todas as criações do
pensamento humano. O antropólogo francês acredita que, para falarmos em
competência do imaginário, necessitamos possuir um vasto repertório daquilo que
seria o imaginário normal e patológico em todas as camadas culturais que a história,
as mitologias, a etnologia, a linguística e as literaturas nos propõem. Necessitamos de
19 Exemplos em português, mas que se pode estender para outras línguas também, como em inglês e em francês diz-se “I see” ou “je voi”, respectivamente, para significar “eu compreendo”.
50
uma soma cultural que ultrapasse o conhecimento das línguas, dos povos, das
histórias, das civilizações. Só então se pode falar sobre o imaginário com o
conhecimento de causa e compreender suas leis. O autor alia-se a Bachelard na
constatação de que a imagem só pode ser estudada pela imagem, e a primeira
constatação revolucionária que sugere é que “este imaginário, longe de ser a “louca da
casa” a que a psicologia clássica o reduz, é, pelo contrário, a norma fundamental
diante da qual a contínua flutuação do progresso científico aparece como um
fenômeno menor e sem significação”.
Criar formas e imagens é a função da imaginação. Ela dá ao indivíduo a consciência de si mesmo, de seu entorno e a liberdade de pensamento: essa, em particular, de imaginar outras formas de existência social ou individual. Pela imaginação, o homem consegue distanciar-se do que é, libertar-se do mundo objetivo.(PIWNICA, 2010, contra-capa)
A imaginação é guiada pela intenção, afirma Piwnica (2010, p.10). É
necessário querer outra coisa em relação àquilo que é para poder liberar a
imaginação. Querer um corpo diferente, no caso do teatro, querer criar um ser
diferente de si. Mesmo se for uma personagem que jogue num estilo realista, com
gestos cotidianos, o ator há de ser capaz de dar espaço para que o corpo seja dessa
personagem, com outro caminhar, outros gestos, outras maneiras de falar, de olhar, de
mover e, sobretudo, outro caráter. Criar espaço para o “outro”, permitir a alteridade
que se instala com a personagem. Segundo esse autor, fora daquilo que se imagina,
não se poderia ver mais do que um cego. Ele sustenta que costuma-se tomar
consciência e interpretar as sensações que vêm do exterior de acordo com a própria
imaginação, e a razão, vinda com a experiência, é um recurso que nos protege dos
extremos aos quais nossa imaginação possa nos conduzir.
Na visão psicanalítica20, o corpo é considerado como essencialmente
imaginário. Se o corpo fosse apenas “natural”, nós seríamos nossas tripas, nosso
sangue, nossos ossos, uma coisa insuportável, que é o “real” – ou um corpo morto,
que pode ser visto como apenas um objeto. O corpo é uma imagem; uma imagem
imaginária. Desde Ovídio, com o mito de Narciso, já há uma predominância dessa
ideia. Narciso se apaixona por ele mesmo, pensando tratar-se de outro, ou seja,
20 Em conversas com a psicanalista e escritora Maria Rosane Pereira Pinto. Porto Alegre, outubro de 2012.
51
apaixona-se por sua própria imagem. Quando se dá conta que é ele mesmo, entra em
crise. A constituição do imaginário é antinatural por excelência – é aquilo que tira o
homem do estado de natureza e o coloca em estado de cultura, fundamental para a
construção do Eu. É a matriz simbólica que tira o ser humano do real, que separa o
bebê de sua mãe, através da imagem de si que vai construindo.
O imaginário é considerado como algo extremamente significativo, que
define a possibilidade da alteridade e o ato social no momento em que a pessoa
identifica-se com os outros, vê-se através dos outros, torna-se um outro para os
outros. O outro é afirmado através da linguagem, como, por exemplo, quando a
criança observa sua imagem num espelho e experimenta a validação de sua mãe que
lhe diz: “olha o João!”. Dessa forma ele se identifica com aquela imagem, que passa a
ser a representação de si. Tal como ocorre com a função primeira do teatro, o modo
como os gregos o usavam para infundir uma dimensão ética, para que as pessoas
olhassem e se identificassem com aquelas ações, com certos padrões de
comportamento e atitudes. Toda a possibilidade de identificação é muito primária,
depende de como a vida acontece desde sua infância, daquilo que lhe serve enquanto
espelho, do que ele reconhece, o que toma por verossimilhante, que é assimilado de
forma inconsciente. Por ser um ser de linguagem, o homem está mergulhado num
sistema de representações de amplo espectro, consistindo-se de uma infinidade de
registros: real, simbólico, imaginário. A linguagem, portanto, não trata-se somente do
modo de dizer as coisas, mas de todos registros que constituem o psiquismo humano,
um sistema de representação que o define como tal, pois só o ser humano tem essa
constituição, e essa é a experiência humana. A arte passa pela questão do imaginário,
que é o que vai nos dar acesso a outros mundos.
A imaginação é a faculdade mais rica que o homem possui. Ela possui a sua disposição todos os recursos do corpo e do espírito humano – sensoriais e intelectuais, é por isso que ela está na origem de toda a criação. À imagem do homem, ela é incerta, instável, capaz do melhor como do pior, mas a cada vez única como a água que corre, sempre a mesma sendo outra, já que ligada ao conjunto de nossos estados de espírito. (PIWNICA, 2010, p.10).
A palavra e a imagem são os dois meios que tem um ser humano para tratar
um não-presente como um presente e de colocar diante dele um objeto desejado.
Como aponta Piwnica (2010, p.14), a imagem pode ser concebida como aquilo que
52
permite reter uma coisa em lugar de várias outras dada sua capacidade de
condensação, como sustentava Freud. Uma presença na ausência, imagens podem ser
tomadas como metáforas, como, por exemplo, no espetáculo “ O Baile...”, há uma
cena em que as personagens dançam com cabides com vestidos pendurados, através
dos quais se pode imaginar uma variedade infinita de possíveis parceiros de baile,
cabendo à imaginação do espectador o seu preenchimento. Outro exemplo de
presença na ausência pode-se observar no espetáculo Café Muller, de Pina Bausch,
com aquelas cadeiras vazias em cena que deixam em aberto toda uma multidão de
possibilidades, pessoas, situações, ideias que poderiam estar ali presentes. O autor
acima sustenta que a imagem permite reter mais facilmente os pensamentos e trazê-
los ao espírito, apreendidas não como pensamentos, obrigatoriamente, mas como
intuição. A imaginação, então, seria constituída principalmente da reprodução dessas
intuições que não são somente fantasia, mas igualmente capacidade de produzir
representações na ausência do objeto.
Fig.3 Ator Hamilton Leite em “O Baile dos Anastácio”.
Fonte: Vera Parenza (arquivo pessoal)
a representação é auto-criação do próprio sujeito, nesse sentido ela é um fazer. (...) Todo o sujeito cria e se cria de maneira contínua fantasmando, sonhando, percebendo. Existe um fluxo representativo-afetivo-intencional que só cessa com a morte. Se a representação é um fazer, reciprocamente ‘fazer é sempre representar’. Todo fazer é um tornar-presente, uma
53
atualização não do que existe em potência, mas antes daquilo que não existe, e toda ação é criação. Ela não é uma simples aplicação de uma representação preliminar, mas a emergência de alguma coisa que não estava ali antes. A representação se manifesta fazendo aparecer, de maneira concreta ou simbólica, a imagem de uma coisa abstrata e, em geral, torna uma coisa presente ou sensível ao espírito, à memória, por meio de uma imagem. Piwnica (2010, p.16)
O ser humano precisa de estímulos do exterior, precisa da relação com os
outros para definir uma representação de si e até mesmo para se desenvolver
fisicamente. Com a evolução biológica, que toca por vezes o meio físico e o meio
social e cultural as capacidades de representação se alargam. Baseado em estudos
filosóficos e psicanalíticos, o autor (Piwnica, 2010, p.17) concebe a representação
como uma atividade originária permanente do homem, um fluxo constante e contínuo,
que deve ao imaginário sua capacidade de dar forma, de criar realidades dotadas de
sentido.
Como antes mencionado, Bachelard e Jousse são pensadores que
influenciaram o pensamento de Lecoq. Embora o mestre nunca tenha se atido a
maiores explicações sobre um ou outro, sempre fiel à sua ideia de que os alunos
deveriam conhecer intelectualmente os fundamentos dos estudos somente após
concluir a Escola, ele deixou registros que mencionam tais relações. Tanto o filósofo
quanto o antropólogo são pensadores com obras vastas e complexas, que aqui serão
abordadas da maneira mais objetiva possível visando o aprofundamento apenas dos
pontos que possam iluminar o entendimento sobre a visão de Lecoq de arte e que
estejam relacionados ao tema da imaginação.
3.2.1 Alguns conceitos de Bachelard
Gaston Bachelard considera o papel da imaginação e da criatividade como
elementos imprescindíveis para a prática científica. Defendia a existência de uma
objetividade material e dinâmica de nosso conhecimento poético do mundo e,
portanto, a imaginação como essencialmente aberta, evasiva, e que, aliada à vontade,
torna-se poder de criação. Para ele, a imaginação não é a capacidade de formar
imagens, mas a de deformar as imagens fornecidas pela percepção. Trata-se de
54
libertar-se das imagens primeiras e transformá-las, de mudá-las, de modificar a
matéria. “Se não há mudança de imagens, união inesperada de imagens, não há
imaginação, não há ação imaginante. Se uma imagem presente não faz pensar numa
imagem ausente, se uma imagem ocasional não determina uma explosão de imagens,
não há imaginação”, Bachelard (2001, p.1).
Na introdução da obra A Água e os Sonhos, o filósofo distingue dois tipos de
imaginação: uma formal, provinda de imagens da forma e uma material, relativa a
imagens provindas diretamente da matéria. A formal é reprodutora, aquela que evoca
imagens na mente de objetos reconhecidos pelas experiências anteriores, e a material
é a produtora, é a criativa, que inventa novas imagens sem mesmo tê-las conhecido,
como a formulação de hipóteses jamais pensadas. Para Bachelard, uma é descritiva e
a outra é criadora, porém não são excludentes, ambas se encontram no momento da
reflexão científica.
A imaginação formal que é centrada no sentido da visão e resulta no
exercício constante da abstração, ficando o homem como mero espectador do mundo
que o rodeia numa espécie de contemplação ociosa e passiva. Bachelard critica a
hegemonia da visão sobre os demais sentidos, uma característica da filosofia
ocidental, lutando contra a “ocularidade” e a “forma”, pois acredita que uma filosofia
que vê com os olhos ainda está presa à contemplação do espetáculo. Para ele, essa
concepção decorre da maneira tradicional de se compreender a imaginação como uma
faculdade de copiar subalterna, que depende do objeto do qual produziria as cópias e
do conceito no qual essas cópias deveriam necessariamente se converter sempre
como alegorias.
Já a imaginação material e dinâmica se opõe à formal pressupondo uma
ação, com o homem intervindo ativamente na matéria como um demiurgo, um
artesão, um manipulador, que age de maneira concreta e concretizante. Bachelard
contrapõe à consagrada filosofia passiva ocular uma filosofia ativa tributária
principalmente da mão, seja dos artistas, dos alquimistas, dos obreiros, de todos os
que agem sobre a matéria para transformá-la. É o trabalho operante e criativo do
homem frente às resistências da matéria, o embate entre as forças humanas e as forças
naturais.
A questão que concerne a capacidade da mão de tocar e transformar a matéria
que torna o Homem um criador, um demiúrgo, é profundamente aristotélica. Essa
55
questão da mão, tal como foi colocada por Aristóteles, inspirou praticamente toda a
Idade Media, quando havia uma enorme valorização do trabalho manual. Toda a
teologia religiosa dessa época vai se referir muito aos trabalhos de Aristóteles, nesse
sentido da valorização dos trabalhos manuais, de que o Homem é um ser produtor por
excelência, que produz objetos diversos com uma gama ampla de funções, tanto
funcionais, como na cerâmica, por exemplo, como estéticos. Isso vai ter ressonâncias
no ponto de vista filosófico enormes.
Alonguemo-nos um pouco nessa direção do pensamento aristotélico, aqui
determinante, que elucida questões fundamentais de todo o pensamento sobre o qual o
Fundo Poético Comum vai se basear. Mostaço (2011)21 esclarece que tudo parte do
princípio de imaterial. Para Aristóteles, tudo o que vive, tanto os seres humanos como
as plantas, animais, enfim, é animado pela dynamis, que pode-se traduzir como
dinâmica ou também como força ou dínamo. A palavra dínamo origina-se na
dinâmica, aquilo que faz o motor funcionar, que imprime um movimento. Uma das
ideias centrais em seu pensamento, o princípio da dynamis, para ele, é universal,
responsável por tudo que é vivente. Aristóteles não fala em pessoa ou ser humano, ele
fala em ‘vivente’. Quando afirma que nós somos zoon politikós, que é normalmente
traduzido como ‘seres políticos’, na verdade termo zoon refere-se não apenas ao
Homem, mas ao Vivente. Politikós porque ele necessita viver em grupo, visto que não
é um ser solitário nem autônomo, como existem alguns seres que o são. Portanto, ele
refere-se ao homem como um zoon politikós porque vive em sociedade, é frágil,
precisa viver em bando, assim como formigas e abelhas, por exemplo, todos precisam
viver de forma gregária. Essa seria a visão mais simples, mas também a mais radical
dessa interpretação de Aristóteles, segundo aponta o professor.
O que diferencia o ser humano dos outros Viventes, é o fato de possuir a
Psyché, a alma, e “a alma age como mão”. Essa é uma frase literal de Aristóteles em
seu livro De Anima, no qual sustenta que a psyché age como mão, no sentido de que
ela possui a capacidade de moldar, de pegar, enfim, de tudo aquilo que a mão é capaz
de fazer. Ainda em outra obra, o filósofo aponta que somos os seres que possuem o
mais perfeito instrumento de todo o universo, a mão, que nos confere a capacidade de
apreensão por conta do dedo opositor, forjando a nossa capacidade de agarrar que
21 Mostaço, Edélcio, em reunião de orientação. Florianópolis, agosto de 2011.
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outros seres não têm. Ferramenta universal porque contém em si inúmeras outras,
como um martelo (bater), uma faca (raspar), uma plaina (aplainar), um alicate
(apertar), enfim, a mão é uma síntese de inúmeras outras ferramentas que foram
criadas com o decorrer do tempo. Quando afirma, então, que a psyché age como mão,
Aristóteles refere-se ao sentido de que ela é capaz de todas essas possibilidades que a
mão tem, portanto a psyché pode moldar, esculpir, alisar, tirar, juntar, fazer formas
das mais variadas, pode medir (é uma medida de tamanho – o palmo, as polegadas). A
mão passa a ser uma espécie de síntese do Homem inteiro, porque ela é a psyché do
Homem. Além disso, na mão encontram-se nossas digitais, que funcionam como
nossa identidade, pois mesmo havendo milhares de seres humanos, cada digital é
única, cada pessoa é única, e essa diferença está na mão.
Há, portanto uma correlação direta entre a questão da mão e o que nós somos,
no sentido daquilo que nos dá a vida e, ao mesmo tempo, nos individualiza. Cada
pessoa possui uma vida diferente da outra, possui mãos diferentes, capacidades
diferentes, independente de seu nível cultural. A habilidade manual tem direta relação
com a imaginação, já que viabiliza a capacidade de inventar, de criar, de manipular,
de formar. Desde a massinha de modelar com que a criança brinca, assim como todos
os materiais plásticos, são meios pelos quais ela desenvolve a motricidade e a
imaginação, na base da experiência direta da mão em contato com a matéria.
Em consonância com esse pensamento, Bachelard defende a autonomia da
imaginação criadora frente à percepção visual. Para ele, a imaginação material cria
novas conexões, novas combinações de signos independentes do mundo
habitualmente percebido apenas pelos sentidos humanos, de tal modo que a imagem
não fique limitada à imaginação formal, somente à visão. A imaginação material é a
capacidade de formar imagens que vão além da realidade, que permitem ao homem
ultrapassar sua própria condição humana. A materialidade das imagens decorre de
uma inspiração orgânica e elementar e, por isso, a imaginação é, no fundo, material e
dinâmica, demonstrando a objetividade material de nossa habitação poética no
mundo, sem jamais esquecer a dinâmica implícita nos elementos.
Para além das seduções da imaginação das formas, a imaginação material
pensa, sonha e vive a matéria, ou ainda – o que dá no mesmo – materializa o
imaginário. Ciência e poesia, portanto, ambas essencialmente ontogenéticas, superam
e renovam o mundo, emanam de uma forte filosofia da energia. Sua filosofia da
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imaginação material postula a atividade, a aplicação, a matéria, a existência da
verdadeira poesia somente quando houver criação de novas imagens que, sendo essa
a sua essência, é um fenômeno da liberdade.
No mesmo sentido, Piwnica (2010, p.14) pondera que “a imaginação
reprodutiva reconecta as representações na ausência do objeto, enquanto que a
imaginação produtiva o faz segundo regras do entendimento; a síntese da imaginação
estando na ocorrência um efeito do entendimento sobre a sensibilidade à qual
pertence a imaginação enquanto tal”.
Bachelard propõe que abandonemos muitas das tradições filosóficas sobre
a realidade do mundo sensível e sobre a clareza do espírito em prol do onirismo ativo
e do devaneio como um caminho para a descoberta das forças vivas da natureza e da
profundidade dos dramas humanos. Segundo ele, (BACHELARD,1989, p.2) onde a
visão nomeia as matérias, a mão as conhece, as maneja, as modela, as torna mais
leves. “Essas imagens da matéria, nós as sonhamos substancialmente, intimamente,
afastando as formas, as vãs imagens, o devir das superfícies. Elas têm um peso, são
um coração.” Ele propõe que se perceba a imagem como uma planta que necessita de
terra e de céu, de substância e de forma, aprofundamento e impulso da matéria, para
assim desenvolvermos uma “imaginação aberta”. A imaginação material opera a
partir do distanciamento da visão, portanto não é contemplativa. Ao contrário, desafia
a resistência e as forças concretas, num corpo-a-corpo com a materialidade do
mundo, numa atitude dinâmica e transformadora, resultante do trabalho direto da mão
humana sobre a matéria das coisas.
No embate entre o homem e o mundo, na dinamologia da mão e da
matéria, o filósofo estabelece a ligação da imaginação material aos quatro grandes
reinos cósmicos – o fogo, o ar, a terra e a água – que, por sua vez, estariam ligados a
um sentimento humano arcaico, a uma realidade orgânica primordial, a um
temperamento onírico fundamental. A doutrina dos quatro elementos é uma das
ideias mais persistentes da cultura ocidental. Desde a antiga medicina hipocrática,
cujos fluidos corporais são humores associados aos elementos. Os quatro elementos
da física são, segundo o filósofo, fontes inesgotáveis para os criadores, são essências
materiais recorrentes, como substâncias elementares que alimentam a criatividade
interminável da arte. Essa associação com elementos ainda está presente em muitas
práticas do nosso mundo contemporâneo, tal como a relação proposta pela pedagogia
58
de Lecoq que exponho aqui, cuja visão está diretamente ligada a esse pensamento,
presente inclusive em seu discurso nas aulas.
Ainda na introdução de A Água e os Sonhos encontramos a proposta
bachelardiana de uma lei dos quatro elementos. Ele estabelece uma classificação das
diversas imaginações materiais conforme elas se associam aos quatro elementos. Para
ele, se toda poética deve receber componentes de essência material, é ainda essa
classificação pelos elementos materiais fundamentais que se deve aliar mais
fortemente às almas poéticas. É preciso que um devaneio encontre sua matéria, que
um elemento material lhe dê sua própria substância, sua própria regra, sua poética
específica, o que está diretamente relacionado à abordagem lecoquiana da busca do
movimento corporal inspirado pela dinâmica das diferentes matérias.
O filósofo propõe associações entre os elementos e tipos de devaneios que
comandam as crenças e as paixões: o fogo e suas imaginações materiais produzem o
temperamento poético do psiquismo ígneo, como a cólera e a ira; o elemento ar, o
psiquismo aéreo, o sonho de voo; o elemento terra, o psiquismo terrestre, o fixo, o
firme; o elemento água, o psiquismo hidrante ou hídrico, o maleável, o penetrante.
Ele considera que um devaneio saudável e feliz é aquele que prolonga a luta entre a
água e a terra, entre a água e o fogo, comparando ao trabalho de um padeiro que
busca a proporção adequada entre a água e a farinha e ao do poeta trabalhando com
misturas imaginárias em direção à beleza das formas. Ao mesmo tempo, Bachelard
sustenta a importância de voltar aos próprios fenômenos, em direta relação com a
fenomenologia, priorizando o estudo das imagens não como coisas, mas como algo a
ser vivido, experimentado, re-imaginado, num ato de consciência que pode restituir
de uma só vez sua intempestividade e sua novidade. A imaginação material implica,
portanto, no comprometimento do corpo com a concretude das coisas. Ele defende
constantemente o trabalho, caracterizado especialmente pelo uso das mãos, que
trabalha com a dinâmica e a resistência da matéria. A materialidade das imagens
decorre de uma inspiração orgânica e elementar. Da mesma forma que se diz que a
vida é, no fundo, química, assim a imaginação é, no fundo, material.
Bachelard prefere o devaneio ao sonho noturno, uma vez que esse último
mostra-se em belas visões ou fantasmagorias que não são de fato experimentadas,
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como se fosse o pensamento de outra pessoa em nós22. Só depois de relatado é que a
identificação do Eu no sonho pode ser encontrada, com auxílio de um psicólogo ou
psicanalista que detecta e interpreta seus símbolos e mistérios. Bachelard rejeita o
conhecimento do sonho como relevante no estudo da imaginação enquanto imagem
estética, preferindo o devaneio, que une de modo paradoxal a evasão e o cogito de
maneira natural e criativa. Acredita, inclusive, que a sensibilidade poética pode ser
educada através do devaneio que nos coloca em simpatia com as palavras e as
substâncias, quando a imaginação torna-se capaz de infundir uma segunda existência
às imagens familiares, criando “metáforas de metáforas”.
Quando aplicado às artes, Bachelard (2001, p.275) referia-se geralmente à
literatura. Acreditava que se deveria estudar o homem literário, que é uma soma da
meditação e da expressão, uma soma do pensamento e do sonho. A predileção pela
literatura indica sua total confiança na emergência do homem através da linguagem.
Para ele, portanto, uma doutrina filosófica sobre a imaginação deve se ater às relações
de caráter material das imagens, mesmo sendo imagens poéticas, pois elas possuem
uma matéria, assim como uma escultura, por exemplo. Assim como seu pensamento
pode ser estendido às outras expressões artísticas como as artes visuais, aqui nos
interessa pensar nas artes cênicas. Quando o filósofo menciona a utilização das mãos
e a necessidade do contato direto com a matéria, associo tal raciocínio ao corpo do
ator. A matéria que se transforma, nesse caso, é seu próprio corpo, a partir da
observação visual de uma matéria (imaginação formal) e da vivência física através de
exercícios específicos (imaginação material). Esses exercícios induzem o ator a
desenvolver a percepção de uma dada matéria em termos de sua textura, densidade,
plasticidade, mobilidade, na medida em que vai experimentando esses movimentos
em seu próprio corpo num processo de imprimir nele essas dinâmicas.
Bachelard (2001, p. 2-3) afirmava que “a imaginação é, antes de tudo, um tipo
de mobilidade espiritual, maior, mais viva, mais vivaz”. Essa ideia de imaginação
aliada ao movimento é uma das molas propulsoras dos exercícios de improvisação
propostos por Lecoq, tendo em mente que “imaginar é ausentar-se, lançar-se a uma
nova vida”, experimentar, arriscar, criar. É forte a presença dos elementos em sua
pedagogia, fundamentais para o trabalho que se segue com as matérias. 22 No Vedanta, por exemplo, o sonho noturno é considerado como experiência tanto quanto o devaneio acordado, tratando-se apenas instancias diferentes da experiência.
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A relação que encontro entre essas questões apontadas por Bachelard e a
prática de formação do ator que utilizo baseada na pedagogia de Lecoq vai além da
aplicação de exercícios com os quatro elementos, mas aponta, sobretudo, à maneira
‘como’ é trabalhada a percepção dos mesmos, que visa chamar atenção para as
matérias em si e suas dinâmicas. Trata-se de trabalhar com as especificidades de cada
matéria de acordo com sua dinâmica, como, por exemplo, a água do mar difere da
água do rio e ambas são diferentes da lagoa e da cachoeira. Todas constituem o
mesmo elemento, mas devido às suas distintas dinâmicas, ao utilizá-las como
inspiração para o trabalho do corpo, elas são capazes de expandir as possibilidades de
movimento em si e, consequentemente, a capacidade imaginativa do ator. Da mesma
maneira se dão os exercícios com as especificidades do fogo (de uma fogueira, de um
fogão, de um palito de fósforo), da terra (do lodo, da terra preta para um vaso, da
terra seca do sertão), do ar (da brisa, da ventania, do ciclone), e assim por diante, os
exemplos vão estar relacionados ao que as pessoas conhecem. Essa é a compreensão
implícita no conceito de Fundo Poético Comum tratado no item 3.3.
Percebo na prática de Lecoq, portanto, a utilização tanto da imaginação
formal quanto da material. A formal podendo estar relacionada à prática que visa à
forma, encontrada nos Vinte Movimentos, por exemplo, e a material em exercícios
como o mencionado acima e como veremos mais adiante quando descrevo as
improvisações com o tema dos elementos e das matérias. Além desse aspecto, há a
constante referencia ao motor interno, ao encontrar no movimento aquilo que lhe
impulsiona, o que também deve ser levado para a cena, procurando encontrar aquilo
que está no centro de seu movimento, o que lhe impulsiona, o motor, o dínamo, a
força.
Quando trabalho com a água, por exemplo, normalmente inicio com a água
do mar, passo para o rio, a cachoeira, para a lagoa, para o lago. Busca-se evocar a
memória de cada uma dessas águas com o corpo. Trata-se de transpor essa memória
visual em cinética, sendo que o foco não está na forma dessas águas, mas sim sua
dinâmica, ou seja, como posso transpor o movimento do elemento para o meu corpo.
Ambos são movimentos. Essa acepção é a que trata da dinâmica interna, da mímica
interna, da mimesis interna, do mimismo, tal seja, a imitação do sentido interno, de
que trata Jousse como disponho a seguir.
61
3.2.2 Alguns conceitos de Jousse
O antropólogo francês Marcel Jousse denominou de Antropologia do Gesto a
ciência que estuda o papel do gesto e do ritmo no processo de cognição, memória e
expressão humanas. Essa ciência visa fazer uma síntese de várias disciplinas, tais
como a psicologia, a linguística, a antropologia, a psiquiatria, a educação secular e
sagrada, os estudos religiosos e a exegética, através da descoberta de leis
fundamentais que comandam os mecanismos lógicos específicos do homem, a quem
ele se referia como o “Anthropos”. A principal dessas leis e mecanismos, é o
"mimismo", que está na origem de todos os processos desde a formação da palavra,
do pensamento ou da ação lógica nas diferentes origens étnicas.
O mimismo é a força específica do Anthropos, o fundamento da expressão
humana, inata e espontânea que existe em todos nós. É uma tendência, uma conduta
pela qual o indivíduo reage às ações que as coisas que o cercam exercem sobre ele
refazendo-as à sua maneira, num mecanismo que ele chamava de “rejogo” 23.
Para Jousse, portanto, o homem é feito de maneira tal que registra tudo o que
o circunda, imprime o universo que o rodeia, para depois expressá-lo, rejogá-lo. Essa
tendência faz com que a criança “rejogue” (refaça) espontaneamente os sons, os
movimentos, os gestos de seu universo.
Gesto, para Jousse (1974, p.58), abrange tudo o que pode ser registrado pelos
sentidos. O pensamento não é nada mais do que a tomada de consciência desses
gestos registrados, de suas aplicações, suas imbricações, suas transposições, suas
inibições. O pensamento e a ação são gestuais, um microscópico e outro
macroscópico. O homem só conhece aquilo que ele recebe em si mesmo e o que ele rejoga. É o mecanismo do Conhecimento por nossos gestos de rejogo. Nós não poderemos jamais conhecer aquilo que está totalmente fora de nós. Não podemos conhecer senão aquilo que absorvemos mais ou menos perfeitamente. Cada indivíduo difere enquanto absorção. Depois que a absorção é rejogada e jogada em nós há a conservação pessoal dos “rejogos”. Essa conservação, vitalmente pessoal, depende da riqueza das absorções e a força da personalidade, pois não somos todos iguais. (JOUSSE, 1974, p.55)
23 No original, em francês, “rejeux”. Trata-se de um dos termos-chave utilizado por Jousse e também por Lecoq. Optei em fazer uma aproximação na tradução para mantê-lo o mais fiel possível a seu significado original. Sendo assim, utilizo e conjugo o verbo “jogar”e “rejogar” como sinônimos de “jouer” e “rejouer” em francês.
62
Importante ressaltar que ao referir-se à absorção, Jousse emprega o termo-
chave de seu pensamento que é a ‘intussepção’24. Segundo Houaiss (2001, p.164),
refere-se ao modo de crescimento dos organismos vivos que se faz por transformação
e incorporação dos elementos formadores; na medicina é a entrada de uma porção do
intestino em outra, uma invaginação, ou ainda, algo que alcança uma absorção tão
profunda que chega à parte interna do corpo, às vísceras.
Dizer antropologia do gesto é o mesmo que dizer antropologia do mimismo,
para Jousse. Mimismo refere-se à busca da dinâmica interna do sentido, através de um
mecanismo no qual há um primeiro momento de absorção daquilo que está fora, e um
segundo, onde o indivíduo refaz aquilo que percebeu, expressando-o à sua maneira. A
reprodução ou a repetição podem ser inibidas, mas o certo é que aquilo que havia sido
visto e gravado permanece disposto a ser reproduzido. É um conhecimento que
permanece impresso no corpo todo, que é de alguma maneira inteligente e expressa
pensamento, visto que o homem memoriza com todo ele. Conforme o antropólogo, a
expressão humana acontece primeiramente com o corpo em sua totalidade, como um
mimetismo global. Por conseguinte, a verdadeira expressão corporal não consiste em
fazer exercícios de braços e pernas para exercitá-los, senão em exercitar todo o corpo
para expressar a realidade que o indivíduo carrega em si.
Aluno de Bergson, Jousse dele herdou vários pressupostos, como o que
sustenta que a inteligência não começa pelos livros, mas pela faculdade de manipular
a matéria e que, portanto, deve-se desenvolver primeiramente a inteligência da criança
nesse sentido, já que ela imita o que lhe rodeia de uma maneira espontânea, descrita
em “O Pensamento e o Movente”. Educar uma criança, nessa acepção, é deixá-la
explorar o mundo, entrar em contato com a realidade ao seu redor, interagir com ela
para que, em seguida, passe a expressar o que recebeu: é permitir-lhe desenvolver o
mimismo de seu espírito por um lado, por outro seu corpo e, por outro ainda, sua
memória, sua linguagem, sua imaginação.
Através de seus estudos antropológicos, Jousse (1974, p.8) chegou ao
entendimento de que há três grandes leis permanentes e universais que, através dos
milênios e de realidades étnicas particulares, regem os desenvolvimentos das línguas,
das mentalidades, das civilizações, das culturas: o Ritmo-mimismo, o Bilateralismo e
24 No original, em francês, intusseption.
63
o Formulismo.
O Ritmo-mimismo é o ponto de partida de sua pesquisa, ao aprofundar a ideia
inicial de Aristóteles de que o homem é o mais imitador de todos os animais. O que se
observa no ser humano espontâneo é sua tendência de imitar, ou ainda mais
exatamente, de mimar25 todas as ações dos seres vivos, todas as atitudes dos seres
inanimados que o circundam. O Anthropos é o microcosmo que reflete como um
espelho e eco do macrocosmo, segundo Jousse (1974, p.16).
Segundo o antropólogo (1974, p.54), é “pelo ‘mimema’ que o homem constrói
sua primeira expressão que é, portanto, não aquilo que chamamos de linguagem, mas
‘mimagem’. É graças à mimagem que funciona o Pensamento. O pensamento sendo
simplesmente uma intelecção de mimemas.” O Bilateralismo se refere à influência da
distribuição dos mimemas em função de sua bilateralidade, não somente no plano dos
gestos expressivos e equilíbrios corporais, no plano do paralelismo nas composições
orais ou literárias, mas também nos domínios mais profundos e delicados da reflexão
humana, já que o homem pensa com todo seu corpo. Isso se dá em função de sua
estrutura bilateral tripla, na qual o homem separa o espaço em frente e trás, direita e
esquerda, alto e baixo, com ele ao centro fazendo a divisão e mantendo-se em
equilíbrio, ocupando um espaço.
O Formulismo, segundo o autor (JOUSSE, 1974, p.18), é a tendência
biológica misteriosa, mas irresistível, à estereotipação dos gestos do homem, sendo
também através dela que se cria a armadura da trama que faz a ligação entre as
gerações e que constitui as mentalidades das culturas, são “formulações” musculares
e sonoras, necessárias para que a interação aconteça. Neste contexto, o elemento
essencial do cosmos é, de acordo com o antropólogo, ainda uma vez baseado em
Bergson, uma ação que age sobre outra ação, e tudo que nos rodeia é, conforme os
físicos, essencialmente energia. Essa energia não é difusa e estática, mas
primordialmente dinâmica, cristalizada em interações universais. Nesse sentido,
relaciono tal entendimento de base científica com a cristalografia, a física e as artes,
como algo de fundo, que na pedagogia de Lecoq torna-se o Fundo Poético Comum.
Os estudos de Jousse são amplos e complexos, extensivos também à 25 Embora não tenhamos essa palavra em português com esse sentido, decidi mantê-la por achar que traduzir por “fazer mímica” ou por “imitação”, por exemplo, muda bastante o sentido original, que se refere à capacidade de produção de gestos e de linguagem com o corpo todo. Portanto, ao longo de todo o trabalho mantenho e conjugo o verbo “mimar”.
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questão da linguagem falada e escrita, relacionando-as com diferentes etnias e
culturas, com as tradições de estilo orais, aspectos que, embora extremamente
interessantes, vão muito além daquilo que toca minha questão de pesquisa. De
qualquer maneira, o cerne de seu pensamento é o mimismo, portanto, ative-me a esse
aspecto, àquilo que poderia relacionar diretamente com Lecoq e com as artes.
3.2.3 Relações entre Bachelard e Jousse: mimetismo e mimismo
Curiosamente, em sua obra Jousse pouco menciona a questão da
imaginação especificamente. Ainda assim, encontro relações entre sua ideia de
mimismo, através do mecanismo de rejogo e jogo, e a de imaginação tanto formal
quanto material de Bachelard.
A imaginação formal de Bachelard refere-se à capacidade reprodutiva a
partir da observação do entorno, que pode-se entender como equivalente ao
mecanismo de rejogo, quando o Anthropos absorve o que está ao redor, acumula os
mimemas, e reproduz essa linguagem por gestos. Já a imaginação material,
capacidade de “deformar” as imagens fornecidas pela percepção, transformando-as,
modificando a matéria, seria comparável à noção de jogo de Jousse, ao momento em
que ele expressa à sua própria maneira, age sobre a matéria, cria.
A imaginação material de Bachelard trata do mecanismo de perceber a
matéria de que são feitas as coisas levando em conta sua dinâmica e substância para,
a partir disso, criar, deformar, transformar, imprimindo sua vontade própria, agir
sobre ela de maneira concreta e concretizante. Para Jousse, o Anthropos absorve tudo
o que está ao seu redor, não só a matéria, mas tudo o que “joga”, que se move, ou
seja, que implica numa dinâmica. Em Bachelard, o homem entra em contato com a
matéria de que são feitas as coisas, as toca. Em Jousse, o Anthropos possui um
mecanismo de vai-e-vem entre o que absorve e o que expressa, sendo ambos jogo,
movimento, o gesto e o ritmo que constituem um ação cognitiva. Quando o
Anthropos se exprime com seu “jogar”, ele está fazendo associações com outros
“mimemas” anteriormente absorvidos de forma única e pessoal, caracterizando,
então, um ato de criação, ou ainda, uma ação imaginante, como diria Bachelard.
Ao que parece, então, tratam-se de procedimentos que se encaixam um no
65
outro, que se equivalem, se complementam, e que, associados, abarcam a
profundidade da visão que sustenta a pedagogia de Lecoq no que se refere ao Fundo
Poético Comum. Essa associação está em consonância com um dos princípios básicos
que embasam a prática de Lecoq, referente à observação da natureza, apontado no
item 2.3.2. No que toca ao exercício teatral, ao desenvolver a atenção, a percepção e a
absorção do entorno, o ator desenvolve sua capacidade natural de rejogo e jogo,
alargando as fronteiras da imaginação – tanto material como formal – em prol de uma
construção estética. Tal mecanismo pode então ser tomado como uma técnica, algo
que se de aprende, que se desenvolve com a experiência, ou ainda, uma maneira de
desenvolver a imaginação do ator através do corpo.
A abordagem de Lecoq usa exemplos baseados na natureza, na observação de
suas manifestações, nas coisas simples e cotidianas, metáforas concretas, como, por
exemplo, as ondas do mar estourando na beira da praia, o vento que balança as
árvores, as anêmonas no fundo do mar. Da mesma maneira, utilizava metáforas
poéticas, numa clara alusão ao universo de Bachelard (2001, p.231), como, por
exemplo, o vento furioso como “símbolo da cólera pura, da cólera sem objeto, da
fúria elementar, aquela que é só movimento, a imagem da cólera cósmica”. Há
também o trabalho com outros temas, como os animais e as cores, que também
seguem a mesma lógica de captar a dinâmica interna de seus movimentos.
3.2.4 Imaginação do ator em Stanislavski e Chekhov
A imaginação cria coisas que podem ser ou acontecer…Cada movimento que você faz sobre o palco, cada palavra que diz, é o resultado da vida adequada de sua imaginação. (STANISLAVSKI, 1963, p.83)
Longe de pretender abarcar as diversas teorias teatrais do século XX, não se
pode deixar, entretanto, de considerar os estudos de Constantin Stanislavski, já que
parte de seu sistema dedicava-se justamente ao tema da imaginação. Para ele, o
processo criativo inicia-se com a imaginação inventiva de um poeta, de um escritor,
do diretor da obra, do ator, do cenógrafo e dos outros participantes na produção: deve-
se desenvolvê-la ou abandonar a atuação. Michael Chekhov, pupilo de Stanislavski,
entrou em conflito com algumas das abordagens de seu professor, optando pela
imaginação e pelo trabalho sobre o personagem sem o uso da memória emotiva como
66
principais fundamentos, entre outros aspectos que veremos a seguir. Dessa maneira,
pretendo estabelecer parâmetros para analisarmos a abordagem de Lecoq para esse
tema a partir daqueles que já se debruçaram especificamente sobre essa relações entre
a imaginação e o trabalho do ator.
Assim como aconteceu com muitos dos teóricos sobre o trabalho atoral, os
estudos de Stanislavski e de seu desenvolvimento foram frutos de sua própria prática
como ator, diretor e pedagogo. Um dos objetivos que sempre permeou seu sistema foi
o de respaldar o ator “de modo que este possa criar a imagem correspondente a seu
papel, revelando nela a vida do espírito humano, e personificá-la naturalmente na
cena segundo as normas da beleza e da arte” (STANISLAVSKI, 1980, p.12). Para
isso, o mestre russo dividia o trabalho em duas partes: o ator sobre si mesmo e o ator
sobre seu papel. Sua obra, no entanto, não foi finalizada e, ao longo dos anos de
pesquisa, sofreu alterações até mesmo de posicionamento quanto a algumas propostas
anteriores. Sua contribuição para o trabalho do ator pode ser dividida em duas fases: a
psicotécnica, que permeiam toda a sua pesquisa, e o método das ações físicas. A
diferença é que na primeira fase o processo imaginário é de caráter fundamentalmente
mental (criação dos onde, do o quê, do porque) e no segundo momento ele é
improvisacional, ou seja, passa à ação.
A psicotécnica foi o método predominante no livro “A Preparação do Ator”,
que enfatiza os processos interiores: o ‘se mágico’, as circunstâncias dadas, a
imaginação, a concentração da atenção, os objetivos, a adaptação, a comunhão, a fé, o
sentimento da verdade e o elemento mais importante daquele momento, a memória
emotiva. Já no método das ações físicas, a ênfase recai sobre os processos exteriores,
o ritmo e o impulso, a ação passa a estar à frente no processo criativo.
No período inicial de suas pesquisas, ele estava mais preocupado com a
questão psicológica e, portanto, acreditava que, como não se pode atuar diretamente
sobre as próprias emoções, pode-se estimular a fantasia criadora e esta despertará a
memória afetiva ou das emoções. Enfocava, portanto, o trabalho na chamada
“memória emotiva” e “psicotécnica”, primeiramente, e, em um segundo momento,
surgiram as “ações físicas”, a “linha da vida”, a “psicofísica”, dentre outros aspectos
importantes de seu Sistema. Ainda assim, o autor manteve a utilização das referências
mais antigas, reelaborando e incorporando-as à sua teoria, como foi o caso do tema da
imaginação.
67
Stanislavski considerava que havia o tipo de imaginação com iniciativa e
aquela que carece de tal qualidade, mas que pode ser provocada, ideias que dialogam
com as concepções de Bachelard apresentadas anteriormente. Para ele, a fantasia
criativa seria um dom fundamentalmente necessário para que o ator possa suscitar os
elementos de emoções experimentadas e reagrupá-las de modo que correspondam às
imagens que surgem de cada um, de suas profundidades secretas, fora do alcance da
consciência.
O treino da imaginação que propunha começava por reforçar a visão interior
com visualizações. O mestre acreditava que podia-se usar a visão interna para ver
todo o tipo de imagens visuais, criaturas vivas, rostos humanos, seus panoramas, o
mundo material dos objetos, lugares, etc., até mesmo sentir coisas na imaginação, ao
impulso da própria memória das sensações e das emoções. O ator deveria ser capaz de
responder todas as perguntas – quando, onde, porquê, como – quando estivesse
impulsionando suas faculdades inventivas, para conseguir uma imagem cada vez mais
definida de uma existência imaginária.
O exercício imaginativo representa para Stanislavski o início do trabalho do
ator, que, dispondo das circunstâncias para a improvisação, pode então prosseguir,
testando suas conjecturas em exercícios direcionados para a composição de seu papel.
O Sistema valoriza a capacidade do ator para tratar com circunstâncias ficcionais
como se fossem reais, para visualizar especificamente detalhes do mundo da
personagem, e devanear ou fantasiar sobre os eventos da peça. Stanislavski (1989,
p.130) ensina que o ator não deve falar sem uma imagem no olho da mente e sugere o
desenvolvimento ou a criação de uma ‘sequência fílmica’ de imagens para
acompanhar o desempenho de cada papel. Essas visualizações abastecem, alimentam
e energizam a imaginação.
A continuidade do trabalho para estimular a imaginação dá-se com a
invocação do “mágico se”, técnica que partiu de um jogo que tomou emprestado de
sua sobrinha e aplicou para o trabalho do ator. Trata-se da suposição de uma situação
real que o ator deve imaginar como se a experimentasse, com diferentes
características, como, por exemplo, ao ver um copo com água ele conjetura: e se isso
fosse um veneno transparente? E se fosse o copo mais antigo da coleção de minha
avó? E se ele estivesse a ponto de se quebrar? E assim por diante.
68
Segundo aponta Vitez (1994, p.25), Stanislavski procurava encontrar meios
para “liberar o ator do “despotismo”” do diretor e de dar-lhe a chance de jogar uma
personagem segundo sua natureza criativa e sua experiência pessoal”. Baseado nos
escritos de P. Erchov, colaborador de Stanislavski, Vitez explica que o método das
ações físicas exige que ao abordar o papel, o ator esteja livre de toda ideia anterior,
que era chamado de “zero” ou de “folha branca” – que parece assemelhar-se com a
noção de página em branco utilizada por Lecoq. Esse procedimento suprimia um dos
modos de trabalho do Teatro de Arte de Moscou, o trabalho dito ‘de mesa’, os longos
períodos de preparação coletiva do grupo em relação à peça e aos papéis. Nesse
método, o diretor divide primeiramente os papéis entre os membros do elenco,
definindo ações elementares em uma espécie de encadeamento da linha de
comportamento da personagem. O primeiro trabalho do ator será o de partir do “zero”
e “executar cada um dos elos dessa corrente com todo seu corpo, toda sua alma, ao
seu modo, sem pensar as ações que se seguirão nem o conjunto da peça, ignorando
mesmo e sobretudo a natureza da personagem que ele vai jogar”, cabendo ao diretor
apenas dizer-lhe se ele executou as ações ou não.
Para Stanislavski, as ações são psico-físicas, ou seja, os processos interiores
são desencadeados a partir das ações físicas, que agem como “iscas”, como uma
espécie de catalisadores de outros elementos do Sistema, que pode inclusive alterar o
funcionamento dos mesmos. Estas são as duas principais características da ação.
Stanislavski constata, então, que a ação é um elemento reproduzível, controlável e
passível de fixação. No fim de sua vida, o mestre russo chegara a pedir que não lhe
falassem de sentimentos, pois percebera que não se podia fixar os sentimentos,
somente as ações físicas. Talvez o elemento mais evidente que pode ser tomado como
exemplo é a memória, expandindo ainda para a utilização de “outras memórias” no
trabalho do ator, como aponta Bonfitto (2002, p.27). Segundo o autor, no processo de
execução das ações físicas, diferentes memórias podem ser evocadas, tanto a de
emoções, quanto a memória das sensações e dos sentidos, ou seja, uma memória
física. A vida física vai refletir na vida espiritual da personagem, não havendo mais
distinção entre a ação interna e externa, o que deverá proporcionar uma interpretação
autêntica, racional e efetiva. O mestre passa a propor a criação por meio do corpo do
personagem como uma espécie de gerador de energia para a criação em geral e, desse
modo, a vida física e a vida espiritual se fundem.
69
Como vimos, essa compreensão e inclusão das ações físicas na prática
desenvolvida por Stanislavski aconteceu mais tarde em sua vida. Embora o mestre
propusesse que se lançasse mão da memória afetiva quando as circunstâncias dadas
pelo texto não fossem suficientes para motivar o ator, a memória emotiva tornou-se a
característica mais conhecida de seu trabalho, e alvo de críticas por todo um vasto
grupo de encenadores que vieram a se opor à abordagem vista como
fundamentalmente psicológica, ou ainda, como sinônimo de teatro psicológico até os
dias de hoje. No presente estudo interessa-nos a visão crítica de Michael Chekhov
(1891-1955), já que dirigia-se justamente para a questão da imaginação. Sobrinho de
Anton Chekhov, Michael era considerado por Stanislavski o mais brilhante ator do
Teatro de Arte de Moscou (TAM) em sua época. Trabalhou com Stanislavski no
primeiro TAM, onde atuou, dirigiu e estudou sob influência direta do seu Sistema.
Mais tarde liderou o segundo TAM, mas devido às contínuas críticas ao trabalho de
seu mestre, acabou por tomar seu caminho e estabelecer seu próprio método de
trabalho de atores. O principal aspecto que criticava era justamente em relação à
imaginação ser motivada por memórias pessoais, o que, para ele, era algo que poderia
levar o ator a um colapso nervoso ou à histeria incontrolada ao lidar com sua vida
dessa maneira. Chekhov chega a recomendar que Stanislavski substituísse a memória
afetiva pela imaginação pura. Para ele, das três funções ativas do espírito – sonhar,
pensar/lembrar-se, imaginar –, somente a imaginação se revelava realmente eficaz na
criação artística, conforme Gordon (apud CHEKHOV, 2006, p.24).
Ambos Chekhov e Stanislavski acreditavam na necessidade de propiciar aos
atores meios de ultrapassar os clichês e as banalidades teatrais herdadas das gerações
precedentes. Entretanto, se para Stanislavski isso implicava em uma pesquisa da
verdade baseada no comportamento humano sob uma lógica principalmente
psicológica, para Chekhov (2006, p.17) o segredo estava no imaginário do ator, para
além do teatro e da vida. Sua técnica repousava sobretudo na utilização de imagens,
essencialmente de ordem instintiva e orgânicas. Propunha o trabalho da imaginação
não com as próprias lembranças do ator, treinava seus alunos a encontrarem fora de
suas experiências pessoais os estímulos exteriores fictícios capazes de agitar sua
imaginação e suas emoções.
Dentre os pilares de sua técnica estão o gesto psicológico, as qualidades, os
centros imaginários, os objetivos e atmosferas. Inspirado largamente na antroposofia
70
de Rudolf Steiner (1861-1925) e em suas lições de Euritmia, Chekhov sugere o
trabalho com as particularidades motoras e gestuais da personagem modelando sua
postura e aparência física. Para ele, visando criar personagens com características
diferentes das suas, o ator deve primeiro visualizar o gestual da personagem com um
corpo imaginário, para então investi-lo. O estímulo deve ser sempre de fora do mundo
privado e interiorizado do ator. Ao imaginar com seu corpo, o ator reagirá pelo
movimento e pelo gesto para restituir ao personagem sua corporização. É uma
abordagem parecida com a de Lecoq, sendo a principal diferença o visualizar, o
imaginar ao invés de observar, entrando em contato com o material.
Uma de suas técnicas mais conhecidas propunha o gesto psicológico a partir
da noção de que existe em todas as línguas expressões que carregam ações e gestos
que atingem o centro da imaginação e são sublimados por ela. O gesto psicológico,
conforme descrito por Chekhov, consiste em expressar um gesto amplo, repleto de
energia e uma clara manifestação da personagem a ser interpretada, de forma que este
gesto rememore absolutamente tudo o que seja necessário para a sua vivência.
Conferir à personagem uma dinâmica interna, usando um gesto físico que, num
segundo momento é suprimido e internalizado, deixando apenas que a memória física
dê uma nova dinâmica à performance do ator. Para ele, todo estado psicológico
individual é inevitavelmente um entrelaçamento de pensamentos (ou imagens
mentais), de estados sensíveis e de impulsões voluntárias. Chekhov exemplifica com
expressões idiomáticas como “tirar uma conclusão”, “matar uma ideia”, “tocar um
problema”, “romper relações”, “saltar de alegria”, entre outras, para esclarecer a
relação entre as palavras e as ações. Segundo ele (CHEKHOV, 2006, p.111), esses
movimentos virtuais atingem o centro de nossa imaginação e são sublimados por ela,
correspondendo aos gestos da vida comum que, ao serem transpostos em termos
psicológicos, são criados no espírito e efetuados materialmente no corpo26.
Sobre os centros imaginários, Chekhov (2006, p.39) cita o exemplo de um
personagem orgulhoso, que terá um centro situado no queixo ou no pescoço, enquanto
que um personagem curioso, o terá na ponta do nariz, sendo que um personagem pode
26 Identifico relações com os ‘atos de fala’ de John Austin (1911-1960) e que foi levada adiante por John Searle (1932-) que embasaram as pesquisas dos performance studies de Schechner. Podemos também estabelecer relações entre o gesto psicológico e os études de Meyerhold, mas não pretendo aprofundar essas associações de ideias por desviarem do foco desse estudo.
71
também dispor de diversos centros, de qualquer forma, tamanho, cor ou consistência.
O professor preocupava-se com o sentido da forma, acreditando que o ator deve ser
sensível à presença plástica de seu corpo assim como ao traçado de seu movimento no
espaço, como um coreógrafo ou um escultor, modelando as formas de seu corpo e do
posicionamento arquitetural aos seus movimentos no espaço, ele aumenta suas
possibilidades expressivas (CHEKHOV, 2006, p.41).
Consideremos alguns exercícios práticos de Stanislavski e de Chekhov para
contrastarmos com os de Lecoq.
Em seu livro “O trabalho do ator sobre si”, Stanislavski (1980) propõe o
seguinte exercício: O ator deve fechar os olhos e imaginar que é uma árvore. Deve
definir sua espécie, o formato e a cor das folhas, a sua idade, a espessura de seu
tronco, a altura de seus galhos e visualizar o lugar onde ela cresceu. Então, deve
escolher um momento em particular de sua vida (de árvore) e criar em sua
imaginação. Qual era o clima? A que horas do dia? O que você podia sentir? Ver?
Ouvir? Quais eventos históricos, como uma batalha, ou românticos, como juras de
amor/promessas de amantes ocorreram debaixo de seus galhos naquele dia? O ator
deve especificar mentalmente todos os detalhes com a maior precisão possível.
Tomemos agora exercícios de Chekhov relacionados às emoções. Por
exemplo: em uma personagem, o aluno tinha como única instrução a de introduzir
uma “intenção de cólera” em seu gesto ou movimento, em vez de partir em busca de
uma motivação interior ou de forçar o passado a ressurgir. Para despertar uma
sensação de tristeza, o aluno deveria imaginar as queixas de uma família rural
lamentando-se sobre a morte acidental e horrível de um filho ou uma filha; outra
sugestão é a de caminhar na atmosfera de uma cidade devastada por uma inundação.
Essa associação de imaginação, de atmosferas e de intenções suplantavam, para seus
alunos, a memória afetiva de Stanislavski. Dessa maneira, Chekhov acreditava poder
levar os intérpretes a seguirem caminhos emocionais mais fortes e mais
individualizados, sem ter que invocar deliberadamente as lembranças pessoais
dificilmente controláveis.
Esse é o mecanismo normal do psiquismo humano, imaginar-se e dar corpo
àquilo que foi imaginado, pois, como mencionado anteriormente, o corpo é imagem.
Nesse sentido o método de Chekhov está em consonância com o pensamento
psicanalítico.
72
Encontro semelhanças com as propostas de Lecoq em relação aos elementos,
porém identifico pelo menos duas diferenças fundamentais. A primeira refere-se à
maneira como os exercícios em Chekhov são empreendidos enquanto visualização e
não enquanto movimento. As relações que ele quer estabelecer remetem a uma
memória dessa árvore, ligada a eventos psicológicos, portanto. Na abordagem de
Lecoq, entretanto, é o movimento da árvore que interessa, e é isso que o ator vai
explorar e trazer para seu corpo e criação, como abordo ao longo desse estudo. Ele
poderá explorar aqueles mesmos aspectos sobre o clima, a idade, o estar presente na
guerra ou no namoro, mas sempre enquanto movimento e não lembrança, ou seja, não
envolve o caráter afetivo, mas sim dinâmico. Antes ligado à natureza em si do que à
emoção relacionada a ela, o motor que a impulsiona que, no caso de Lecoq, serão
reações ao vento, ao clima, à luz, ou seja, sempre fatores externos. Mesmo se os
meios utilizados possam ter pontos em comum com os que propõe Lecoq, tais como o
de observar, Chekhov enfatizará a observação das pessoas, enquanto Lecoq parte da
observação da natureza com seus diversos reinos, que inclui as pedras, as montanhas,
as matérias de que são feitas as cosias, sempre enquanto modos de se moverem ou de
ocuparem um espaço.
A segunda diferença que me parece ainda mais fundamental, refere-se à
condição de dependência da criação a um texto previamente escrito e a uma
personagem previamente descrita. Em ambas as abordagens de Stanislavski e de
Chekhov, o trabalho da imaginação está atrelado ao da construção de uma
personagem a partir de um texto, sobretudo, e mesmo partindo do gesto, ainda são
privilegiados seus aspectos psicológicos. Corporizar, “investir”, visualizar esse ser
humano proposto no papel, dar-lhe verdade, criar-lhe um mundo, dar-lhe carne. Em
seu livro sobre a imaginação criativa, Chekhov refere-se constantemente ao ator como
“intérprete”. O trabalho do ator concebido assim difere radicalmente daquele
desenvolvido por Lecoq, no qual uma das premissas básicas subjacentes é a que o ator
é o autor. Ainda que Stanislavski também buscasse o ator como criador, e mesmo
através do Método de Ações Físicas, há sempre uma personagem como base, como
guia.
Nesse tipo de teatro que não parte de uma personagem ou de um texto, vai
haver a criação de personagens também, mas o ponto de partida é que difere. Nada
impede, porém que se queira montar um texto e construir personagens pré-
73
determinadas, nesse caso, o trabalho da imaginação relacionado ao Fundo Poético
Comum será tomado como base corporal, como modo de disponibilização e de
abertura para a criação, como no nível pré-expressivo de que falava Barba, por
exemplo. Afinal, em um processo de criação, é necessário estar aberto para as
necessidades que tal projeto suscite, não pretendendo fechar as portas para qualquer
outro método que não seja aquele de sua preferência, mas, pelo contrário, é preciso
conhecer diferentes procedimentos possíveis para atingir a meta maior que é a de
fazer arte, de tocar algo mais profundo passível de alcançar aquele que o assiste.
O teatro priorizado nessa pesquisa é aquele que considera a preparação do
corpo fundamental, constituindo-se como o início do processo criativo em si. Nele,
portanto, é praticamente impossível pensar em trabalho do ator sem aquecimento e
sem improvisação com o corpo – são bases dadas. A maneira como o denominamos já
gerou muita controvérsia, parte da qual apresento a seguir.
3.3 FUNDO POÉTICO COMUM
A espinha dorsal da escola é a análise do movimento. Análise do movimento não é necessariamente a análise do corpo, é a análise de todos os movimentos, mesmo de animais, de plantas, das dinâmicas da paixão, das cores, de tudo o que move. Estamos tentando chegar ao fundo do movimento. (LECOQ apud LEABHART, 1989, p.93)
Normalmente, nos escritos de referência sobre Lecoq, são ressaltadas as
questões relativas à mímica, às máscaras, à commedia dell’arte, ao clown, como
apontam Felner (1985), Leabhart (1989), Murray (2007), Hodge (2010), Evans (2006)
e Gordon (2009). Entretanto, há autores como Murray (2003), por exemplo, que
procurou aprofundar os estudos, enfatizando aspectos como a neutralidade, a
disponibilidade, a cumplicidade e o jogo, embora sem deixar de lado outros pontos
significativos. Com outro foco, mas com o mesmo objetivo de aprofundar os estudos
sobre Lecoq, Carasso (apud FÉRAL, 2003) aponta para o fato de que a realidade e a
complexidade do trabalho pedagógico de Lecoq, suas orientações profundas, seu
ensino no dia a dia, são ainda assaz desconhecidos. Em minha pesquisa, o foco está
mais voltado para a dimensão abstrata subjacente ao trabalho prático a partir do
corpo, abordada através da noção de Fundo Comum. É a partir dessa compreensão
74
que procuro estabelecer relações com o teatro contemporâneo e encontrar os aspectos
dessa pedagogia que induzem ao desenvolvimento da imaginação do ator.
A abordagem prática de questões profundas como a do Fundo Poético Comum
foi um dos aspectos da pedagogia de Lecoq que mais me chamou atenção desde que
cursei a Escola, resgatados nos estudos de mestrado, que identifico como diferencial
em seu trabalho e que lhe confere uma dimensão atemporal, ou ainda, uma ligação
com a arte desde sempre, para além de tendências passageiras. Identifico nesse
aspecto relações com a imaginação e com o teatro contemporâneo passíveis de serem
analisadas e assim avançar um pouco na direção das bases subjacentes da pedagogia
que me parecem menos estudadas até o presente.
Para mim, o Fundo Poético Comum está ligado ao ritmo. Quando você pensa nas batidas de seu coração, quando você respira – inspira, expira – tem um ritmo em tudo o que é vivo, na maneira como se vive, há um ritmo para a vida... E quando fizemos o exercício em que estamos procurando o “amarelo de todos os amarelos”, ou o “vermelho de todos os vermelhos”, você diz sim, eu vejo o vermelho, eu sinto o vermelho. Para mim isso conecta com a poesia. (MACPHERSON, 2011)27
Inicia-se, portanto, com os músculos do corpo buscando uma sintonia com a
percepção de que todas as coisas, desde as matérias e os elementos das quais são
constituídas, estão unidas entre si: o fundo das espécies, dos seres, das manifestações
de vida. No fundo que é comum a todos os viventes, no estar vivo, o ser e o estar, a
molécula primeira que funda toda e qualquer coisa existente, no nível biológico,
concreto, material: átomos, partículas, energia. Entrar em contato também com
aspectos mentais que temos em comum, que remetem à noção de arquétipos, mas que
não era abordada dessa maneira por Lecoq. Embora fosse usada por Chekhov e
pudéssemos procurar estabelecer relações entre os dois sob o ponto de vista dos
arquétipos, não sigo nessa direção de pensamento nesse estudo.
À primeira vista, falar em Fundo Poético Comum pode parecer demasiado
abstrato, utópico, demasiadamente geral, ou mesmo ingênuo. Através de sua
pedagogia, Lecoq incita os alunos a encontrar aquilo que é comum a todos, que está
no fundo do nosso ser, para que, a partir daí, se possa encontrar o que é particular, o
que faz a diferença de uns em relação aos outros, cujo diferencial criará seu próprio
27 Atriz canadense Coleen Macpherson, colega no estágio de verão. Entrevista concedida em 23/09/2011, em Paris.
75
teatro, seu próprio texto, compor as próprias personagens e dramaturgias. Se por um
lado parece beirar a total abstração, por outro, os exercícios de Lecoq apresentam-se
como uma maneira concreta de acessar esse conhecimento intrínseco, uma
identificação com a natureza que todas as pessoas reconhecem.
O contato com as camadas mais profundas da natureza onde há uma inter-
relação das diferentes manifestações é aqui trabalhado através de exercícios físicos
que induzem a identificação de suas dinâmicas, de ‘como’ se elas movem e sua
transposição para o corpo e para o jogo cênico. Como anteriormente mencionado,
essa prática visa enriquecer a capacidade expressiva do ator com outras possibilidades
de movimento e de fonte de inspiração, além de contribuir para a eliminação de
formas parasitárias e de vícios de atuação, automatismos impregnados, acessando a
realidade que o indivíduo carrega em si. Ela ativa a capacidade imaginativa à medida
que amplia a palheta de cores, o universo de imagens, de sensações, de possibilidades
de movimentos com seu corpo, de fontes de onde buscar elementos para sua
expressão, para além de si e das memórias pessoais. Essa experiência gera também
uma qualidade na presença do ator, assim como na maneira como ele se movimenta,
constituindo uma bagagem de memória corporal que poderá dispor quando e como
quiser, independentemente do tipo de teatro que queira fazer, mais ou menos
estruturado, mais ou menos realista. O universo de ideias que passa a existir nos e
pelos movimentos corporais e se manifesta no corpo em cena. É a fisicalização dessas
percepções sutis que visam tornar visível o invisível. Essa relação com a imaginação é
o recorte da minha pesquisa, interessa-me verificar de que maneira ela ocorre.
A literatura, a música, as paixões, mas também a experiência do mundo visível são, tanto quanto a ciência de Lavoisier e de Ampére, a exploração de um invisível, consistindo ambas no desvendamento de um universo de ideias.[…]A ideia musical, a ideia literária, a dialética do amor e as articulações da luz, os modos de exibição do som e do tato falam-nos, possuem sua lógica própria, sua coerência, suas imbricações, suas concordâncias, e aqui também as aparências são o disfarce de “forças” e de “leis” desconhecidas. (MERLEAU-PONTY, 1992, p.144)
Lecoq costumava falar, em sua busca de uma “poética da permanência”,
referindo-se ao caráter universal presente em todo e em qualquer fenômeno da vida,
uma linguagem que está presente tanto nas diferentes manifestações da natureza como
em nossos corpos. Mencionava a essência imutável de qualquer coisa que é
permanente, que a diferencia de qualquer outra. Costumava usar como exemplo as
76
árvores. Embora elas existam em inúmeras espécies, tipos, tamanhos, cores, há algo
que lhes é essencial, que vai diferenciá-las de qualquer outra coisa, que faz com que
as reconheçamos como árvores, vivas ou mortas, sua identidade permanente,
independentemente da cultura ou de crenças a ela relacionadas. Essa questão sobre
cultura é questionável e volta a aparecer quando trata-se do tema das cores, que será
abordado no item sobre a pintura.
Em certos exercícios, o professor conduz os alunos a identificarem a “árvore
de todas as árvores”, a “mulher de todas as mulheres”, a “caminhada de todas as
caminhadas”, ou seja, identificar aquilo que lhe é permanente, suas qualidades
essenciais. Experimentar trazer para seu corpo essas qualidades, tornadas visíveis
através de seus movimentos e depois transpostas para as improvisações, sendo então
absorvidas pelo ator nesse processo. O objetivo subjacente em todos esses exercícios
é a constante busca de uma essencialização dos fenômenos da vida, justamente aquilo
que Lecoq chamava de Fundo Poético Comum, presente em todas as suas
manifestações. Fundo Poético Comum é o que nos conecta. Quando você realmente encontra a poesia em todas as outras formas. Não sei como explicar isso com palavras, mas entendo isso. Quando Lecoq nos pede para encontrar ‘o azul de todos os azuis’, ‘a emoção de todas as emoções’, é um grande tema. Acho que ajuda para guiar nosso trabalho, que não é completamente livre, nós tentamos encontrar o que é comum entre todos. Como ele dizia que o amarelo de Van Gogh se movia como um vermelho. Ainda assim, amarelo é amarelo, e a gente pode identificar. E todos passam a identificar. (SCAGLIA, 2011)28
No sentido de desenvolver uma linguagem comum aos alunos, Lecoq explica
que, como trabalhou sempre com pessoas de diferentes culturas e idades, precisava de
algo com o que todas pudessem se identificar e reagir juntas a uma noção do que é
justo no movimento, encontrar referências comuns a todos. No fundo de cada um
temos nossas semelhanças enquanto seres humanos e naturais, parecidos uns com os
outros. Segundo o mestre realata no vídeo de Roy e Carasso (1999), encontrar essa
noção de depósito comum é muito importante porque, “em geral, procuramos, na
educação, reconhecer nos indivíduos suas próprias raízes, saber de onde ele é, você é
você e não um outro. Muito bem, é importante saber que não sou como o outro, mas
em um dado momento, é necessário passar por um denominador comum onde somos 28 Gineva Scaglia, atriz e professora italiana em uma escola semelhante à de Lecoq em Turim, Itália. Colega no estágio de verão. Entrevista concedida em 22/09/2011 em Paris.
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todos iguais, e se for diferente nós veremos!” Ele acrescenta que utiliza a palavra
“poético” para alertar para coisas que somente a poesia pode definir, ou seja, o que há
entre as palavras, o que é invisível, que não podemos definir, mas existe.
Trata-se de achar uma linguagem para traduzir essas dinâmicas internas da
natureza em dinâmicas do corpo e da cena. Essa linguagem é o que a pedagogia de
Lecoq vai proporcionar. Ele mesmo sempre fez referência a essa terminologia comum
para nos expressarmos. Por um lado, temos o aspecto técnico obtido por meio da
análise do movimento, da mímica – ou melhor, do mimismo–, o trabalho com
máscaras, as leis do movimento. Por outro lado, mesmo que possa parecer
contrastante ou separado da prática, está o Fundo Poético Comum, que é a sua
percepção da natureza das coisas, do teatro e da arte, que ele transmite para seus
alunos. O talento e arte de um artista consiste em encontrar em três linhas a essência do que quer que esteja pintando. Na nossa escola tentamos reconhecer elementos na vida que ocorrem antes que a gente as coloque em cena, um reconhecimento de coisas vivas através do corpo, através do mimismo. Desta maneira nós podemos conhecer as árvores, o ritmo do mar, as cores, o espaço das pessoas, tudo o que é vivo e se move que é infinito. (LECOQ apud LEABHART, 1989, p.96)
Para apresentar essa visão de teatro de Lecoq, veremos, primeiramente, o que
entendo por ‘fundo comum’, para então estendermos essa noção para seus aspectos
poéticos. A noção de ‘fundo’, em meu entender, está relacionada com a natureza, que
justifica a insistência em despertar para sua observação. Baseada nessa premissa,
parto na direção das ciências naturais e da filosofia, buscando apoio em autores que
possam embasar alguns pontos da visão de Lecoq, tal como ela me parece. Identifico
aspectos ligados à filosofia ocidental, presentes em Bergson, e à filosofia oriental,
com base em estudos de Vedanta. No universo das ciências naturais abordo algumas
características oriundas da cristalografia, e procuro estabelecer relações entre as
ciências e a filosofia oriental, pautando-me em Capra.
3.3.1 Ciências Naturais
Iniciemos com as ciências naturais, o universo dinâmico de Lecoq. No vídeo
de Roy e Carasso (1999), Lecoq fala de sua paixão pela cristalografia, sobre “a
78
maneira como as rochas começam a passar por uma mutação no momento de sua
saturação, em uma geometria cujos ângulos são iguais para cada matéria”. Por um
lado, o mestre faz um paralelo entre a cristalografia da natureza e os estilos de teatro:
“no momento quando jogamos num jogo primeiro, em uma espécie de
‘subimpressionismo’, basta um pouco para que isso se desenvolva em um estilo, de
forma que há também uma espécie de mutação no organismo teatral que decidirá a
direção e estrutura, e isso faz o efeito de uma cristalografia”. Por outro, e é o que me
parece fundamental para compreender essa noção de ‘fundo’, ele refere-se às
estruturas dos cristais, suas linhas e geometria, suas relações com o espaço, a
dimensão de seus ângulos com associações e medidas rítmicas que ele define como
“decisões da natureza”. O mestre afirma que gosta de fazer viver um espaço, com
uma dimensão com seus ângulos, com relações e medidas rítmicas.
Sem a pretensão de um estudo geológico aprofundado, vejamos algumas
características desse ramo da ciência que possam iluminar tais relações. A
cristalografia é a ciência que estuda os cristais, a maneira como os minerais se
organizam e tomam forma. Os cristais são sólidos nos quais os minerais estão
arranjados regularmente em relação uns aos outros e podem ser estudados de acordo
com essa organização, segundo Groves (1979, p.3). O termo cristal também pode
referir-se a qualquer sólido com estrutura interna ordenada, possua ele faces externas
ou não. Pode-se assim idealizar um conceito mais amplo de cristal como um sólido
homogêneo, possuindo ordem interna tridimensional que, sob condições favoráveis,
pode manifestar-se externamente por superfícies limitantes planas e lisas.
Mineral é um corpo natural sólido e cristalino formado em resultado da interação de processos físico-químicos em ambientes geológicos. Cada mineral é classificado e denominado não apenas com base na sua composição química, mas também na estrutura cristalina dos materiais que o compõem. Em resultado dessa distinção, materiais com a mesma composição química podem constituir minerais totalmente distintos em resultado de meras diferenças estruturais na forma como os seus átomos ou moléculas se arranjam espacialmente (como, por exemplo, o grafite e o diamante). Os minerais variam na sua composição desde os elementos químicos, em estado puro ou quase puro, até silicatos complexos com milhares de formas conhecidas. (WIKIPÉDIA, 2012).
Um átomo é a menor unidade de um elemento que possui as propriedades
desse elemento. A matéria existe em três estados: sólido, liquido e gasoso. As
79
diferenças entre os três estão relacionadas com o grau de ordenação dos átomos. Um
mineral é um sólido natural e inorgânico que possui uma estrutura atômica interna
específica e uma composição química que varia dentro de alguns limites. Os minerais
crescem quando átomos são adicionados à estrutura cristal enquanto a matéria se
modifica do estado gasoso ou líquido para o sólido. Os minerais se dissolvem ou
derretem quando os átomos são removidos da estrutura cristalina. Todas as espécies
de minerais possuem propriedades físicas e químicas bem definidas, como a estrutura
cristalina, clivagem ou fratura, dureza e gravidade específicas, conforme Hamblin
(1995, p.66).
Partindo dessas características da cristalografia, compreendemos que tudo o
que existe é feito de alguma matéria29, a qual, por sua vez, é constituída de um
conjunto de elementos organizados de uma forma específica. Portanto, os quatro
elementos que citamos anteriormente são feitos de elementos químicos, assim como
os seres humanos o são e tudo o que existe, somos todos feitos dos mesmos
elementos, porém com diferentes combinações. Seja qual for o reino – mineral,
animal ou vegetal –, somos constituídos dos mesmos elementos, ou seja, temos todos
um mesmo fundo comum.
Voltando às estruturas que Lecoq mencionou, podemos entender tal relação
com a formação das rochas, quando certos minerais vão disputando o espaço,
expandindo-se, enquanto outros se retraem, empurrando e forjando sua forma
enquanto resfria o magma, por exemplo. Quando pensamos nisso em termos de
movimento, percebemos ações de empurrar, ser empurrado, puxar e ser puxado, as
mesmas que Lecoq menciona como fundamentais para todos os movimentos. Na
verdade, estas são coisas que não podemos ver a olho nu, somente por microscópios,
mas ao sabermos disso já podemos imaginar como acontecem. Estamos, portanto, no
campo da imaginação, impulsionada por exemplos da natureza concreta, ainda que a
nível molecular. Há aquelas que podemos verificar a olho nu, a aparência externa, e
com o auxílio do microscópio podemos observar os arranjos internos. As fotos de
diferentes rochas abaixo nos ajudam a visualizar as linhas, os ângulos, as faces, as
29 Sem deixar de considerar que, segundo a nova ciência, essa matéria é antecipada pela energia, de acordo com estudoas da física quântica e da descoberta do bóson, apontada como a chave para explicar a origem da massa das outras partículas elementares (http://pt.wikipedia.org/wiki/Bóson_de_Higgs – acesso em 13/03/13), aspectos revistos recentemente, mas que não anulam o valor da abordagem apresentada aqui.
80
formas, as composições, enfim, as inúmeras maneiras como a matéria pode se
organizar no reino mineral. Fig.4: No sentido horário: Cubos de Pirita; Cristal de Ametista; Estibnita com Barita; Hematita
Fonte: http://geogallery.si.edu/index.php/en/minerals/all/mineral/
Ainda dentro dessa lógica de organização dos elementos químicos, podemos
observar numa lâmina fina retirada de uma rocha a forma como os minerais estão
colocados e que podem também ser associadas a uma foto de satélite, como mostram
as ilustrações abaixo.
81
Fig.5 Lâmina delgada de rocha vulcânica.
Fonte: Arquivo pessoal
Fig.6 Foto de satélite “Brasil Visto do Espaço”.
Fonte: http://www.cdbrasil.cnpm.embrapa.br. Acesso em 25/01/2013
Anthropos é o microcosmo que reflete como um espelho o eco do macrocosmo. (Jousse, 1974, p.16)
Relações entre micro e macrocosmos, associações entre as diferentes
manifestações da natureza é a contribuição que acredito que a abordagem científica
traz para o entendimento do fundo comum. Importante salientar que são associações
que estabeleço a partir da minha percepção, pois não eram mencionadas em tal
profundidade por Lecoq. Entretanto, constatando por diversos depoimentos de ex-
alunos sobre a importância da observação da natureza em sua pedagogia, tudo me
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leva a crer que, para além dos estudos da ciência, há um senso comum capaz de pelo
menos supor essas relações.
Isso que eu acho interessante, o conhecimento que ele passou para nós é muito baseado nas leis da natureza – é a grande riqueza, é a chave, talvez, do método. (...) Estamos falando de árvore, ele vem sempre num crescente, numa transformação. Não é uma coisa que você aprende, um conceito, você leva aquele conceito na sua cabeça e ele está ali, estático. Não. É um conhecimento em movimento! Ele tem a profundidade do conhecimento dele, a partir da natureza. E a natureza implica, no ser humano, na natureza das coisas que o homem criou no mundo, também, não só a natureza bela, os passarinhos, não, também o vulcão, a bomba, a bomba atômica. Toda a natureza no sentido amplo da palavra. Experimentei essa disponibilidade na escola, e ainda hoje essa experiência é muito importante. Acho que esse estado de disponibilidade para o ator, é fundamental.(NAPOLEÃ0 apud SACHS, 2004, p.156)
Muitos ex-alunos demonstram essa percepção de todo, de comunhão com a
natureza e com os seres a nível científico, ou ainda, com as ciências naturais. Mas
vejamos essa questão do ponto de vista filosófico, aqui abordada a partir de alguns
pressupostos de Bergson (1979, p. 153-206).
3.3.2 Filosofia e Vedanta
Com uma extensa obra, que abarca diversos temas, Henri Bergson foi um dos
filósofos fundamentais do século XX. Em seu ensaio intitulado A Evolução Criadora
(1979, p.160,) o autor sustenta que “não há manifestação essencial da vida que não
nos apresente, em estado rudimentar ou virtual, as características das outras
manifestações”. Segundo ele, a totalidade possui a mesma natureza do indivíduo, de
um movimento, um impulso de liberdade criadora que se insere e transforma a
matéria incessantemente, de sorte que a distinção entre espaço e duração possui um
alcance ainda maior e certamente mais valioso que diz respeito à nossa própria
existência. Ele alega que o movimento evolutivo seria algo simples se a vida
descrevesse uma trajetória única, comparável à parábola descrita por uma bola de
canhão, mas que estamos tratando de algo como uma granada que explodiu em
fragmentos destinados a explodir de novo e assim por diante durante muito tempo.
“Só percebemos o que está perto de nós, os movimentos espalhados dos estilhaços
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pulverizados. É a partir deles que devemos voltar, paulatinamente, até o movimento
original”.
Bergson (1979, p.205) menciona a tendência que cada ser carrega em si
enquanto potencial, como uma planta, por exemplo, que mesmo distinta de um animal
por sua fixidez e insensibilidade, possui ainda movimento e consciência adormecidas
nela como lembranças que podem despertar, assim como um animal pode ser
desviado para uma vida vegetativa. As duas tendências penetravam-se no início,
assim como acontece com a inteligência e o instinto. Sendo assim, ele conclui que
existe uma corrente de existência e uma corrente antagônica, de onde se origina toda a
evolução da vida. Para encontrar uma fonte comum dessa oposição, no entanto,
entraremos ‘nas mais obscuras regiões da metafísica’, afirma o filósofo. Mas,
considerando que “as duas direções encontram-se marcadas na inteligência, por um
lado e, por outro, no instinto e na intuição, “o espetáculo da evolução da vida sugere-
nos certa concepção do conhecimento e também certa metafísica que se implicam
reciprocamente. Uma vez destacadas, essa metafísica e essa crítica poderão derramar
alguma luz, sobre o conjunto da evolução”.
Para a discussão sobre ‘fundo comum’, interessa a noção de evolução, de
origem, da colaboração dessa combinação de filosofia, de crítica e de metafísica que
Bergson propõe aqui. Ele ainda afirma que o corpo extrai do meio material ou moral o
que pode influenciá-lo, o que lhe interessa, ideia que também se alinha à concepção
de Lecoq, baseada no mimismo de Jousse, mencionado anteriormente. E Bergson
salienta, naquilo que concerne à experiência real do tempo, do espaço e do corpo, a
importância do corpo como elo presente entre passado e futuro, e da consciência
como o local onde se evidencia que a realidade é duração, onde se unem a experiência
e a intuição.
Assim como Bergson estabelece tais relações com a natureza, ainda que de
outro ponto de vista, existem diversos aspectos que se entrecruzam e que ecoam
alguns dos fundamentos da visão de Lecoq, entre os quais proponho associações com
a filosofia oriental através de alguns pressupostos dos estudos de Vedanta.
Vedanta é o conhecimento contido no final dos Vedas, os textos chamados de
Upanishads. Outros textos de Vedanta são a Bhagavadgita, o Brahmasutra e os
Prakaranagranthas, textos que também exploram temas de estudo de Vedanta
escritos por diferentes mestres ao longo do tempo. Vedanta analisa a natureza do Ser
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essencial através de seu método de escutar as palavras de ensinamento diretamente de
um mestre, depois refletir sobre o que foi escutado e contemplar o que foi escutado e
refletido, sendo, portanto, a meditação concomitante ao estudo. Segundo Glória
Arieira30, Vedanta não é um sistema filosófico, nem tampouco uma religião, mas uma
tradição de ensinamento transmitido de mestre a discípulo num fluxo perene desde
tempos imemoriais. Assim como não podemos dizer o que veio primeiro, se a árvore
ou a semente, é impossível delinear um começo para esse ensinamento.
O ensinamento do Vedanta – que significa "a meta de todo o conhecimento" –
é um desdobramento claro e profundo dessa verdade essencial e única, sobre a
identidade do indivíduo, aquele que busca o Ser Ilimitado. Baseia-se nas leis
espirituais imutáveis que são comuns às tradições religiosas e espirituais ao redor do
mundo, em que essa meta se referiria a um estado de autorrealização ou de
consciência cósmica. Vedanta menciona a ideia de fundo comum que é Iswara – que
pode ser traduzido por deus –, que é o todo manifestado. Para o Vedanta, não há
separação entre o Eu e o Todo, não há um círculo fechado ao redor de um Eu: o
indivíduo está dissolvido no todo, somos constituídos de uma mesma matéria, os
elementos estão todos em comunicação, “nosso corpo é poeira de estrelas”. Ao invés
de deus, pode-se considerar consciência ou vida.
O ensinamento central dos Upanishads, coletânea de escritos fundantes da
filosofia hindu que encontram-se nos livros dos Vedas, como aponta Frawley (1982),
é justamente sobre a unidade de todas as coisas. As várias forças ou princípios ali
colocados são maneiras de demonstrar tal unidade. São considerados cinco os
elementos básicos – espaço, ar, água, fogo, terra –, que são tomados como uma
sofisticada ferramenta para compreender por analogia a unidade de todas as coisas no
self, que é a vastidão da verdadeira visão dos fenômenos da vida. A unidade de todas
as coisas pode ser reduzida a esses elementos, uma vez que compreendemos que tudo
o que existe são meras combinações desses elementos, então podemos vislumbrar a
unidade em toda manifestação, contanto que tomemos essa analogia num sentido
simbólico, como os antigos faziam, e não apenas no sentido científico. Os cinco 30 Gloria Arieira é Diretora Presidente da escola Vidya Mandir Centro de Estudos de Vedanta e Sânscrito. Estuda desde 1974 com Swami Dayananda, que tornou-se seu mestre de quem escuta os ensinamentos. Responsável pela tradução de vários livros,ministra aulas de Vedanta e de sânscrito em sua escola no Rio de Janeiro. É professora de Maria Nazaré Cavalcanti, ex-integrante do grupo Tear de teatro (PoA), minha professora de ioga e de Vedanta. (http://www.vidyamandir.org.br, acesso em 19/12/12)
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elementos são utilizados para ajudar a direcionar a mente gradualmente, abordando
por vários ângulos e por nomes diferentes a experiência do Todo. Se essa unidade
última será chamada de espaço, de água, de Atma, de Brahma, de olho do sol, de
comida ou de graça, pouco importa, somente importa a questão de que tudo é
compreendido como uma unidade no seu sentido interno.
Trata-se, em última análise, da universalização desses princípios. Por
exemplo, quando você entra em uma sala vazia, ela não está vazia, está cheia de ar. O
ar está em contato com o seu corpo e está em contato com as paredes, que estão em
contato também com o ar externo àquele espaço, todos constituídos de matéria
diversas, com elementos organizados de maneiras diferentes, átomos empacotados
com tensões próprias que vão diferi-los enquanto conjuntos, mas que no fundo são
todos uma coisa só. A água, seja no mar, no gelo das geleiras ou nas ondas, é sempre
a mesma “sopa” de elementos químicos sob influência física, com variações aqui e ali
que vão diferenciá-los, mas que possuem o ‘fundo comum’ de serem água, e que
somos capazes de identificá-la como tal, e de buscar apreender a noção de ‘água de
todas as águas’.
3.3.3 Diálogo entre Ciência e Oriente
A perspectiva de Capra (1983), que entrecruza conceitos, entendimentos e
modos de ver da física quântica com os de algumas filosofias orientais é tomada aqui
como diretamente relacionada à cristalografia, ao empacotamento dos átomos, assim
como a filosofia de Bergson, quando se refere ao entendimento de que todas as
manifestações da natureza estão interconectadas. Nesse livro, Capra estabelece essas
relações para chegar ao denominador comum, à compreensão sobre o aspecto
dinâmico do universo, que entende a natureza como uma rede inseparável de
interações. Encontro, portanto, relações entre a visão de Lecoq sobre o Fundo Poético
Comum e aquela de Capra sobre a unidade de todas as coisas, exposta em sua obra “O
Tao da Física”.
Segundo Capra (1983), as raízes da física, como de toda ciência ocidental,
podem ser encontradas no período inicial da filosofia grega do século VI a.C., em
uma cultura onde a ciência, a filosofia, a religião e as artes não se encontravam
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separadas. O pensamento girava em torno da descoberta da natureza essencial ou da
constituição real das coisas, a que denominavam physis. O termo Física deriva dessa
palavra grega e significava, originalmente, a tentativa de ver a natureza essencial de
todas as coisas.
A exploração do mundo subatômico no século XX revelou a natureza intrinsecamente dinâmica da matéria, mostrando que os componentes dos átomos – as partículas subatômicas – são padrões dinâmicos que não existem como identidades isoladas, mas como partes integrantes de uma rede de interações, que envolvem um fluxo incessante de energia que se manifesta como troca de partículas, ou seja, uma interação dinâmica na qual as partículas são criadas e destruídas interminavelmente numa variação contínua de padrões de energia. As interações de partículas dão origem às estruturas estáveis que edificam o mundo material, as quais não permanecem estáticas, mas oscilam em movimentos rítmicos. Todo o universo está, pois, empenhado em movimento e atividade incessantes, numa permanente dança cósmica de energia. (CAPRA, 1983, p.170)
Essa concepção da física quântica confirma a visão de Lecoq, subjacente a
toda sua pesquisa e consequentemente à sua pedagogia, pois não se trata de uma visão
mística, abstrata ou ilusória, mas de algo concreto, ainda que do reino do invisível, o
que implica uma abertura da percepção da pessoa, mas sobre a qual todos temos uma
compreensão com maior ou menor clareza. A observação da natureza, enquanto
exercício pedagógico para Lecoq, portanto, trata de que o aluno perceba essas
dinâmicas internas, como ele não se cansava de falar, e nelas se “apóie”, procurando
trazer para seu corpo e para a cena a dinâmica desses movimentos. Ele incitava os
alunos a encontrarem os “motores” do movimento e trazê-los para seu corpo e cena,
noção que encontra-se em total sintonia com Capra (1983, p.27), ao sustentar que o
movimento e a mudança são propriedades essenciais das coisas e, portanto, “as forças
geradoras do movimento não são exteriores aos objetos como na visão grega clássica,
mas, ao contrário, são uma propriedade intrínseca da matéria”.
Em outro livro mais recente, “A teia da vida” (1997), Capra faz uma síntese de
descobertas científicas mais recentes tais como a teoria da complexidade, a teoria
Gaia, a teoria do caos e outras explicações das propriedades de organismos, sistemas
sociais e ecossistemas. Confrontando com os paradigmas mecanicistas e darwinistas
aceitos, o autor proporciona novas bases para a discussão política e ecológica que
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estão diretamente ligadas às ideias de interdisciplinaridade e de interligação entre
todos os seres e coisas.
Após analisar as relações estabelecidas para embasarem a noção de ‘fundo
comum’, vejamos como se insere a definição de poético nesse contexto, a fim de
compreender o Fundo Poético Comum. Quando Lecoq afirma que utiliza a expressão
“poético”, ele o faz para alertar para coisas que somente a poesia pode definir, ou
seja, o que está entre as palavras, o que é invisível, que não podemos definir, mas
existe. Voltamos aqui à supremacia da visão que Bachelard criticava, que parece
instaurar a ideia de que se não se pode ver, não existe. Nesse sentido, deve-se atentar
para a noção de Lecoq sobre a observação da natureza que não deve, justamente, ser
compreendida como limitada à visão, mas deve ser vivida com o corpo como um
todo, voltando ao ponto discutido ao longo de todo esse estudo sobre a importância da
prática corporal.
3.3.4 Mimesis
Lecoq refere-se à mímica subjacente a todas as artes, de caráter substancial, a
primeira camada no fundo de todas as artes, o que vai ao encontro do conceito de
mimesis de Aristóteles, consistindo o cerne de sua investigação sobre a arte. A
mimesis, como pensada pelo filósofo, não é uma imitação no sentido de reprodução,
mas sim uma produção, uma criação que transcreve sob uma forma visível e que
move as forças que animam os seres humanos e pode invocar, pela mecânica do
corpo, a imagem do nosso universo, como aponta Alain Rey (LECOQ, 1987, p.11).
Esse modelo oriundo do pensamento grego observa em relação à produção poética,
musical, teatral e artística em geral, diversos aspectos fundamentais dos feitos
humanos, através dos quais podemos reconhecer sua essência e universalidade.
Ao que parece, foi a tradução da palavra “mimar” por “imitar” que ancorou o
início de todo um sistema das artes desde então. “Se Aristóteles quisesse ter dito que
as Artes devem mimar a Natureza e não imitá-la, isso teria certamente mudado muitas
coisas”, afirma Lorelle (1974, p.139-141). O autor procura demonstrar que o mundo
do gesto estende-se para além da imitação, uma arte do espaço e do tempo,
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alcançando desde as bases da expressão humana com rituais que visavam religar os
homens ao deuses até os dias de hoje, perpassando toda a história das artes cênicas.
Como esclarece Mostaço31, Aristóteles empregou em seu texto “Poética” o termo
grego mímesis e foi Horácio, alguns séculos após, quem introduziu o termo imitatio
(imitação) como um correspondente ao grego mímesis. Essa noção horaciana foi a que
prevaleceu na cultura ocidental, ao longo de toda a Idade Média e começo da
Renascença, marcando com uma deformação de origem o estatuto da mímesis grega.
A grande diferença no modo de encarar as funções da cultura, no mundo ocidental,
decorreu em função de uma série de fatores associados à modernidade, tais como a
separação entre alma e corpo, a independência do pensamento abstrato, a
racionalização excessiva e o isolamento da consciência em si, como verificáveis nos
escritos de René Descartes, no século XVII.
Lorelle (1974, p.139) procura estabelecer linhas de uma rede invisível que
conecta a noção de mimar a diferentes campos de estudo, tais como a biologia, a
sociologia, a filosofia, a arqueologia, a etnologia, a psicologia social, a metafísica, o
teatro, a linguística, a comunicação, o Homem. Na biologia, a importância de imitar, a
capacidade mimética, é comum a vários animais, normalmente em função de alguma
necessidade vital; na sociologia, o papel do modelo, como o do Herói, por exemplo;
na psicologia, a pesquisa sobre a ‘identificação’ como base da formação da
individuação; na arqueologia, a relação entre as máscaras e o gesto, considerando que
se o homem necessita de uma máscara para se transformar, a máscara precisa de um
homem para ser animada; na etnologia, a extensão e o valor das técnicas do corpo, a
tentativa de fixação de uma cultura do movimento, desde aquele ritualístico ao
artístico; na psicologia social, o poder da imaginação da sociedade, capaz de captar as
forças obscuras e derivantes do imaginário; na metafísica, a relação entre real e
surreal, a capacidade do homem de colocar ambas instâncias em um só plano
perceptivo; no teatro, a complexidade e a riqueza dos signos gestuais; na linguística, a
existência de uma linguagem do corpo aliada a das palavras; na comunicação, aquilo
que acontece através de signos físicos, ainda que congestionados com maquiagens de
ordem comercial e mercadológica; no Homem, em sua busca de Unidade, de
amenizar o dualismo instituído por nossa cultura ocidental.
31 Edélcio Mostaço em reunião de orientação, Florianópolis,15/01/13.
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O autor acredita que o motivo principal que levou à reaparição da mímica não
foi tanto sua oposição à palavra, ao seu lado silencioso, mas “sua participação ao
longo dos tempos em uma forma muito antiga de cultura, mais imagética, mais
engajada corporalmente, cujo desaparecimento causou um desequilíbrio no homem”.
Trata-se de uma contestação mais profunda à Cultura, descrita com C maiúsculo por
Decroux em 1962, referindo-se a uma forma de cultura onde a palavra tomara o lugar
principal instaurando uma hierarquia que diminuía o papel de outras formas de
comunicação do homem, conforme aponta Lorelle (1974, p.138). Nessa Cultura, “as
formas encontram-se congeladas por não haver mais diálogo entre a ideia e a
corporalidade, entre o pensamento e a forma vivida, entre o espírito e o corpo das
coisas. Onde a noção de “matéria” foi empobrecida, levada a ser tomada sempre e
unilateralmente como servente, a ‘Cinderela da alma’”.
Embora circunscrito às circunstâncias dos anos 70, o posicionamento de
Decroux ainda pode ser considerado atual em relação à mimesis subjacente a todas
essas manifestações. Assim, alio-me a Lorelle quando ele aponta que, desde a mímica
sagrada dos rituais, que almejavam se comunicar diretamente com as forças
fundamentais do ser, os espíritos, até o trabalho do mimo corporal, presente nos
sucessores de Copeau, estes são impulsos assemelhados que surgiram carregados
desse desejo de comunicar algo em profunda conexão com a vida.
Lorelle (1974, p.123) sustenta que Barrault procurava estabelecer a diferença
entre o que denominava “mímica objetiva” e “mímica subjetiva”, sustentando que a
primeira referia-se a movimentos mecânicos puros que visavam gerar objetos e a
segunda estava relacionada aos caráteres e paixões do ser humano. Visão
compartilhada por Marcel Marceu, que desenvolvia em sua escola técnicas aprendidas
com Decroux. Observa-se, mais uma vez, a confluência das visões de arte e de suas
práticas nesses teatristas franceses em meados do século XX, referenciados
anteriormente como influências no trabalho de Lecoq, no item 1.3.1. Evidencia-se a
relação das noções de mimetismo e mimismo, que, ao que parece, estava presente na
época. Lecoq, que inicialmente empregava a expressão ‘mímica de fundo’, chegou ao
termo Fundo Poético Comum para transmitir essa mesma visão.
Toda a qualidade da representação estará na habilidade do ator de colocar em
jogo esta vida secreta, escondida por trás da primeira imagem reconhecida. Para
mimar o mar, por exemplo, não se trata de imitar as ondas no espaço com as mãos
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para fazer compreender que é o mar, mas de captar os diferentes movimentos e
reverberar seus ritmos mais secretos em todo seu corpo, fazer o mar viver nele e,
pouco a pouco, tornar-se o próprio mar, como propunha Lecoq (1987, p.96). Esses
ritmos, sensações, sentimentos, passam a fazer parte dele e a partir daí surgem as
percepções e estímulos para exprimir tais forças através de uma maior precisão em
seus movimentos, com traços mais certeiros, escolhidos, indo além das meras
impressões físicas. Cria-se, então, outro mar, não o mar verdadeiro e concreto nem
sua referência tão somente semiótica, mas um mar poético, jogado com este “algo
mais” que pertence somente àquele ator e que define seu estilo.
A mimesis é verificável no trabalho de arte “como reverberação daquela que se opera na natureza, uma vez que o procedimento encontra-se ligado a um Motor Primeiro, fonte última de todos esses processos, naturais ou não, o impulso primevo da causalidade, coordenando e subordinando às sucessivas mutações, alterações, gerações e corrupções. Aristóteles forneceu este acabamento teórico explicativo a um arcaico conceito de natureza, vigente desde tempos imemoriais na cultura helênica”. (MOSTAÇO, 2002, p.254)
Não esqueçamos, porém, que estamos tratando do aspecto técnico, de um
saber prático que o ator traz e desenvolve. Em grego, techné designa ofício,
habilidade, arte, uma competência profissional oposta à capacidade instintiva ou ao
mero acaso, como aponta Dantas (1999, p.30). É um saber prático obtido
empiricamente e realizado por habilidade, que refere-se a toda atividade humana
realizada de acordo com regras que ordenam a experiência e exigem grande
capacidade de observação, memória e senso de oportunidade, como aponta Chauí
(1994). A técnica transforma a matéria, está ligada à ideia de poiesis, do verbo grego
poien, que significa criar, fabricar, executar, compor, construir, produzir, fazer, obrar;
agir com eficácia, produzindo um resultado. É necessário que o ator, o artista,
desenvolva certas habilidades para que possa criar. Como afirma Aritóteles, segundo
Mostaço (2012), “não há poien sem techné”, portanto, poiesis relaciona-se à ideia de
trabalho como fabricação, construção, composição.
O saber poético é, portanto, um saber criativo. Na poiesis a noção de forma
como modelo ou paradigma é essencial, pois é essa noção de forma que guia e que
orienta o trabalho do técnico, do artesão, do artista, a partir de um ponto de referência
que ofereça certa universalidade para a ação criadora, o modelo do que se vai fabricar,
produzir, ou criar. Como esclarece Dantas (1999, p.42), em arte, poéticas são as
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referências a partir das quais o artista vai se servir, consciente ou inconscientemente,
para realizar suas obras. São as ideias, as compreensões, os entendimentos que se têm
acerca da arte, da vida, do seu ambiente, que estarão presentes na concepção e na
realização das obras. Ela acrescenta que devemos levar em conta tanto o caráter
histórico como o operativo das poéticas. Histórico, no sentido de postularem além de
uma visão de arte, uma visão de mundo, inscritas num contexto maior dos
acontecimentos de uma época. Operativo pelas indicações e princípios que trazem
quanto aos modos de formar, de técnicas a utilizar, de modelos em que se inspirar e
de atitudes a se observar. Sendo assim, há diversas poéticas, mas o essencial é ter uma
que anime e apóie a produção da obra, sem juízo de valor de qual a melhor poética.
Do mesmo modo, Pareyson (1993) afirma que não há uma poética melhor ou
mais importante que outra e elas existem e se legitimam em função do que permitem
realizar. A poética será a marca do artista, seu traço, seu diferencial, a partir de seu
modo de usar as técnicas. Nesse sentido podemos compreender a noção de “poético”
a que Lecoq se refere e que procura induzir o aluno-ator a empregar em sua criação
pessoal, a sua poética, que também está relacionada ao estilo. Estilo, entendido à
maneira de Pareyson (1993, p.38), como modo de formar, no qual está presente a
personalidade do artista, ou ainda, “quando sua personalidade se coloca sob o signo
da formatividade, exigindo o seu modo de formar onde a espiritualidade concreta
torna-se energia formante”.
O Fundo Poético Comum, portanto, envolve toda essa compreensão de ciência
e de arte, do fazer, do construir, do dar forma, da sua expressão própria em conjunção
com sua percepção da natureza em seu sentido mais profundo. São as leis
fundamentais do teatro a que me referi anteriormente e que, como bem colocou
Ariane Mnouchkine no vídeo de Roy e Carasso (1999), não se trata de algo novo, mas
de algo que está presente desde sempre no trabalho artístico, a dimensão abstrata
subjacente a que nos entregamos quando decidimos ser artistas. Na pedagogia de
Lecoq, portanto, encontra-se essa preocupação que vai além da preparação corporal
do ator para atingir a base mesma do teatro, a conexão com as diversas manifestações
da natureza e o ser humano, através da busca da poética das permanências, do “Fundo
Poético Comum”. É algo que ele foi pesquisando ao longo dos anos em sua escola.
Pode-se perceber que essa busca já estava presente desde o início da escola através de
depoimentos de alunos que passaram por ela naquele momento, como aponta Philipe
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Avron no vídeo de Roy e Carasso (1999), ao destacar o que percebia como dimensão
filosófica nesse aprendizado: “a escola fala a linguagem da vida, pois é uma
linguagem de nossas raízes, nossa voz, nosso corpo, de novo em harmonia.”
Partindo da observação das manifestações da natureza e do cotidiano humano,
o aluno-ator deve ser capaz de transpor essas imagens e impressões para a cena e
articulá-las, abarcando as duas funções igualmente necessárias à configuração do
universo cênico, como esclarece o professor de estética Jacó Guinsburg (2001, p.22):
a concreção mimética e a articulação significativa. Assim como Lecoq, esse professor
compreende que o caminho de uma linguagem cênica inovadora está diretamente
vinculado à capacidade de inventar, de agrupar, de fazer interagir signos provenientes
de vários meios. Somente a partir deste material “poderá corporificar-se no palco
outra corporeidade que não é puramente a do ator, mas sim a de uma ideia, cuja
realidade objetiva é abstrata e que, no entanto, deverá de algum modo ser recebida
como se fosse concretamente corporal, ou seja, fisicalizada no corpo de seus
executantes”. Afirma ele:
A concreção mimética é indispensável para que o tipo de ilusão peculiar à cena possa ser criado e apreendido em sua especificidade artística. E a ficção teatral tem que ser percebida imediatamente sob a forma de representação, ou seja, re-presentação. O que é essa re-presentação senão re-presentificar, tornar presentes por atos intencionais e formais de criação, quer dizer, por delegação estética, figuras, imagens, sentimentos, relações e elementos que constituem os seus objetos, reatualizá-los artificialmente por uma assunção corporal, uma concreção mimética, na corporeidade viva do intérprete? (GUINSBURG, 2001, p.24)
No estágio de verão na Escola o termo Fundo Poético Comum foi mencionado
apenas no primeiro dia, na apresentação para os alunos de como seria encaminhado o
trabalho. Durante a conversa de encerramento do curso, perguntei à professora como
ela definiria o Fundo Poético Comum e ela retornou a pergunta para todos nós, para
que respondêssemos baseados no que fizemos. A maioria dos colegas tinha bem clara
essa ideia de transposição das dinâmicas invisíveis para o movimento e a cena, sem
que ela tenha jamais tomado tempo em explicar verbalmente do que se tratava. Para
mim, isto significa uma confirmação daquilo que admiro nessa pedagogia, de ensinar
pela prática e tornar claros conceitos e ideias abstratos. Por outro lado, torna-se
evidente o desapreço pelo uso desses termos, pois eles realmente acreditam que não é
isso que importa, e que não devemos perder tempo querendo explicá-los.
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Ainda assim, acredito na importância de compreender e deixar registros sobre
a profundidade da abordagem do Fundo Poético Comum. Entender a pedagogia de
Lecoq como algo que vai além de ‘fazer elefantinho durante uma tarde inteira’, como
já ouvi falar, por exemplo, pois trata-se de entender a conexão que existe entre seu
movimento, seu peso, seu desenho no espaço, a peculiaridade de suas articulações,
como faz para sentar e levantar. Enfim, existe um infinito de características possíveis
de serem observados em cada animal, em cada elemento, em cada matéria, em cada
expressão artística, em tudo o que nos cerca, e é nesse sentido que vai a ‘observação
da natureza’ de que o mestre tanto falava, sendo sua transposição para o teatro um
grande exercício imaginativo. Então, se há um lado bem rígido em termos de
treinamento, há essa intenção poética subjacente que alimenta a criação artística, que
necessita de um tempo para ser compreendida e absorvida, para quem tiver abertura
para tal. Abertura para o conhecimento científico e espiritual, ainda que Lecoq não
falasse desses aspectos abertamente, pois falava apenas das dinâmicas da natureza,
mas, para quem tem essa conexão com o mundo, logo faz sentido, e o fazer artístico
se alia a tal dimensão.
Nesse sentido, esse teatro está muito distante da performance, principalmente
daquelas manifestações nas quais o performer se machuca, por exemplo, quando ele
faz questão de mostrar aquilo que poderia se considerar o ‘real’ em oposição à ficção.
Acontece que quando estamos em contato com essa compreensão profunda da
natureza e da correlação entre todas suas manifestações, estamos em contato com o
‘real’, com as matérias de que são feitas as coisas, havendo, portanto, aí uma conexão
que alia o poético, o caráter da criação enquanto algo quase espiritual. A compreensão
do que significa o Fundo Poético Comum abre possibilidades concretas no corpo do
ator enquanto imaginação, enquanto caminho possível a seguir, com uma técnica
associada a ele, à mimesis, ao mimismo, à expressão fundamental do Anthropos. É
uma técnica com limites bem definidos, com exercícios estruturados e repetidos ao
longo dos 66 anos de pesquisa de Lecoq em sua Escola, com as devidas variações,
ajustes e buscas, como pressupõe o trabalho de experimentação e de criação.
Ricardo Napoleão, ex-aluno que teve a oportunidade de conhecer um pouco da
vida privada de Lecoq, conta que ele costumava caminhar muito nos fins de semana
nos arredores de Paris, observando e analisando a natureza. Para Napoleão, a própria
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pedagogia podia ser entendida como as árvores, que o mestre usava tanto como
exemplo, quanto ao tempo que leva para crescer, amadurecer, dar frutos.
Para mim a pedagogia de Lecoq pode ser vista como desenhos baseados em movimentos, aí eu os enxergo como um reflexo da natureza, da observação da natureza, do homem mesmo. A observação do movimento, a observação do andar, do nascimento, do desenvolvimento, do animal. Uma capacidade de observar. Por isso quando você chega ao nível acadêmico, é mais simples do que se imagina. A pedagogia não tem complicações. Ela não foi feita para complicar, ela foi feita para existir simplesmente na prática. E talvez isso incomode. Porque uma pessoa, principalmente que talvez tenha passado muito tempo estudando alguma coisa e ali ela tenha percebido que a coisa era mais simples do que ela imaginava. E é isso. ( NAPOLEÃO apud SACHS, 2004, p.157)32
Concordo completamente com Bradby (2006, p.xv), quando ele sustenta que
mais do que ensinar rotinas de trabalhos físicos aos atores, Lecoq visava ajudá-los a
encontrar seu próprio idioma de expressividade física, ao proporcionar uma abertura
para suas “imaginações físicas”. Ajudava-os a observar e a experienciar toda a riqueza
da vida fora da sala de ensaio e a desenvolver uma abordagem criativa e inventiva
para tudo o que fizessem. Lecoq considerava o estudo do movimento fundamental
para uma compreensão mais aprofundada dos diversos aspectos da vida, e, por
extensão, às artes. Seu treinamento era apropriado para escritores, pintores e
arquitetos assim como para atores, tanto que por 20 anos ele ministrou cursos de
exploração física do espaço para estudantes de arquitetura na Escola de Belas Artes de
Paris. Ainda assim, sua abordagem não era de filósofo nem antropólogo, ele não
determinava um conjunto de teorias a serem exploradas de forma discursiva, como
pude comprovar quando fui sua aluna. Sua forma direta e objetiva, mas ao mesmo
tempo, apaixonada de ensinar, despertava também nos alunos tal paixão, que me
levou a pesquisar esse tema, e como podemos também constatar com o seguinte
depoimento:
(...) na vida você vai recolhendo tudo que você acha que serve e que tem a ver com o seu caráter também. Finalmente você é professor, é uma questão de ter uma linha pedagógica e ao mesmo tempo ser capaz de despertar paixão. E no final, a paixão que você vai despertar é a sua paixão! Então, tudo o que para mim vibra, de uma certa forma eu incorporo no meu trabalho. Seja no caminho absolutamente técnico teatral, ou, por exemplo, quando Lecoq fala de Fundo Poético Comum, isso já me abre a poesia da
32 Ator Ricardo Napoleão. Entrevista concedida em Sachs (2004, p.157).
95
própria vida. Então, dentro da minha busca, seja pessoal ou espiritual, ou física,, eu tento passar para eles em que momento eu estou.” (MALHEIROS apud SACHS, 2004, p. 128)
Malheiros é natural de Porto Alegre, mas residente no exterior desde os anos
80. A atriz e diretora conta que trabalha como professora na escola Argos, na Cidade
do México, para onde se dirigem aqueles atores que querem trabalhar em televisão.
Ministra aulas de ‘integração’, que, segundo ela, éa algo intermediário entre a parte
física e a atuação e interpretação, pois a parte de expressão corporal consiste de aulas
de dança e ioga. Ela conta que, nessa escola, leciona de maneira bastante pessoal,
privilegiando a parte de integração de grupo e do ator no espaço, além de trazer textos
para discussões com o grupo, sobre Stanislawski, sobre a ética do ator, por exemplo.
Malheiros considera importante criar uma ética, especialmente considerando o tipo de
ambiente de trabalho no qual vão conviver. Nessa mesma escola, leciona para um
grupo de jovens de 18 a 20 anos, que são mais difíceis, uma vez que consideram os
exercícios infantis e preferem aqueles de reviver situações mais melodramáticas e
realistas como a mulher que traiu seu marido, o pai que abandonou o filho, o noivo
que apaixonou-se por outra, mas vai casar mesmo assim, para citar alguns exemplos.
Mesmo com grupos de alunos-atores com objetivos bem definidos, para um tipo de
linguagem que não é aquela favorecida pela pedagogia de Lecoq, Clarissa afirma que
a utiliza mesmo assim, porém de maneira mais eclética:
Eu sempre uso, não tem como não usar! E o discurso é esse: eu digo para eles (os alunos): “Mover-se é uma questão de sentido comum. Você se move como qualquer ser humano se move e se você não tem capacidade de ler e controlar o seu movimento, alguma coisa não vai funcionar no seu trabalho de ator.” É o Fundo Poético Comum! (MALHEIROS apud SACHS, 2004, p. 129)
Há muitas questões sobre a relação entre a arte e a ciência, e se o jogo é uma
arte ou uma ciência. Carasso, um dos responsáveis pelas entrevistas tanto do livro
quanto do vídeo de Lecoq, comenta algumas reflexões que lhe surgiram a partir do
tempo que passaram juntos para a realização desses projetos.
Não existe, por um lado, uma ciência absoluta feita de saberes confirmados, de conhecimentos, de certezas, e de outro, uma arte incerta, misteriosa, sempre em pesquisa de si mesma e de sua identidade. Arte e ciência têm em comum serem ao mesmo tempo espaços de conhecimentos, de leis, de técnicas e de ares de pesquisa, de mistério e de criação. Artistas e cientistas são ao mesmo tempo técnicos e exploradores. Portanto, a
96
questão da formação, seja ela artística ou científica, traz uma relação que cada um, em seu domínio, saberá entremear entre conhecimento e mistério, entre patrimônio e criação. (CARASSO apud FÉRAL, 2003, p.186)
O autor aponta a especificidade da Escola de Lecoq, afirmando que, enquanto
muitas escolas de teatro oferecem a seus alunos uma grande amplitude de teorias, de
técnicas e de métodos teatrais, – de Stanislavski ao Nô japonês, de Brecht à Artaud –,
Lecoq sugere um caminho exatamente inverso, no qual a natureza precede a cultura.
Segundo Carasso (apud FÉRAL, 2003, p.185), em consonância com Lecoq, as leis do
teatro são leis naturais, mais do que culturais, e as ideias teóricas sobre teatro, mais do
que auxiliarem o jovem ator em formação, podem tornar-se um obstáculo a seu jogo,
pois “o corpo sabe de coisas que a cabeça não sabe”, nos diz Lecoq, mais uma vez
ecoando o mimismo de Jousse. Portanto, esse conhecimento é anterior.
Tais afirmações vêm ao encontro da minha impressão sobre essa pedagogia
que, ao identificar a noção de Fundo Poético Comum como chave para a ignição da
imaginação, impunha um dialogo com a ciência. Sendo assim, me senti compelida a
mergulhar no universo da física e das associações que a ela designo com base nas
afirmações do próprio mestre, como aquelas sobre seu interesse pela cristalografia,
pela filosofia de Bachelard e pela antropologia de Jousse. Todos assuntos complexos
e extensos, e que aqui procurei apresentar de forma pontual, apenas levando em conta
os pontos de contato entre todos eles e em relação à imaginação no trabalho do ator.
97
4 AQUECIMENTO
Realizado o alongamento, passemos para o aquecimento do corpo e das ideias.
Examinarei, inicialmente, a prática de alguns dos Vinte Movimentos que costumo
utilizar com o intuito de estabelecer parâmetros comuns de entendimento sobre o
movimento com os alunos ou atores. Com esses exercícios, introduzo aquilo que
considero importante ser compreendido através do corpo e que deverá delinear a cena
mais adiante. Nesses movimentos estão presentes os princípios propostos por Lecoq
mencionados anteriormente que, para mim, também regem a construção cênica,
constituindo-se, portanto, no principal alicerce do trabalho.
Quanto ao aquecimento das ideias, passaremos pela questão do valor do
treinamento codificado e, em seguida, apresento algumas questões sobre a
denominação de teatro físico ou teatro total, discussão iniciada nos anos 80 e que
ainda não são consensuais. Por fim, pondero aspectos que concernem a atuação no
teatro contemporâneo no que tange à influência da performance no trabalho atoral,
que será considerado como performer ou como ator, questionando o estatuto de
representação. Discussões que aportam temas mais polêmicos, que suscitam
diferentes pontos de vista e por vezes visões que parecem até contraditórias, mas que
abordo aqui no sentido de situar a pesquisa em meio a alguns dos aspectos da teoria
do teatro contemporâneo.
4.1 OS VINTE MOVIMENTOS
Os Vinte Movimentos propostos na pedagogia de Lecoq consistem de
determinadas sequências de movimentos, como o nome já indica, baseadas
principalmente em alguns esportes, na acrobacia e outras atividades. Muito da
experiência de Lecoq como atleta foi trazida para estas sequências, como podemos
observar. A maioria delas está relacionada aos esportes, enquanto outras foram
baseadas em trabalhos, entre as quais a mais conhecida é a do barqueiro (passeur).
Algumas sequências chegam a ter mais de cinquenta movimentos, como o
muro, por exemplo, que implica uma série codificada de alguém que se depara com
98
um muro, salta, prende-se com as mãos, apóia-se para subir, chega no topo, prepara-
se e salta para o chão, tudo feito detalhadamente de maneira a ser repetida tal e qual.
Em outra, como o travelling, são apenas três movimentos: a cabeça que gira e olha
para o lado, o tronco desloca-se naquela direção, o tronco gira e emparelha com a
cabeça, para então recomeçar a sequência.
Para uma compreensão mais acurada, listo aqui os Vinte Movimentos em
questão. Conforme a compilação apresentada em Sachs (2004, p. 96), são eles:
Ondulacion (ondulação); Ondulacioninverse (ondulação inversa); Éclosion (eclosão):
movimentos de abrir e fechar o corpo como um todo; La Brasse(a braçada):sincronia
dos braços em movimentos pendulares até que giram cada um em uma direção;
Equilibre (parada de mão): ficar em equilíbrio sobre as mãos com as pernas
estendidas na vertical; Cabriole (rolinho): no chão, rolagem sobre a cabeça para frente
e para trás; Le Roue (a roda): chamada também de “estrelinha” no Brasil; Travelling
(como o movimento da câmera de cinema): em posição de samurai, cabeça, tronco,
deslocamento, sem oscilações no sentido vertical; Lesneufattitudes (as nove atitudes):
nove movimentos que passam pela postura do arlequim, do samurai, da mesa; Le
Point fixe (ponto fixo): o corpo desloca-se em função de um ponto fixo das mãos;
Bâton (bastão): manipulação de um bastão que gira; Le massue (clava): movimento de
deslocar e golpear com um bastão (clava); Passeur (barqueiro): sequência de 32
movimentos do barqueiro avançando seu barco com uma longa vara que empurra o
chão; Le mure (o muro): sequência de 57 movimentos para transpor um muro,
mencionada acima; Natation (natação): nado de peito feito em equilíbrio sobre uma
perna; Tourniquet (torniquete): giro sobre seu próprio eixo; Disque antique (disco):
lançamento de disco como no atletismo; Poidsaualtère (halteres): levantamento de
halteres em quatro movimentos; Le patinage (patinação): movimento do patinador,
que, embora no mesmo lugar, provoca a ilusão de deslocamento; Grande godille
(remo): remar em forma de oito.
99
Fig.7 Desenho de Lecoq dos Vinte Movimentos.
torniquete barqueiro patinação disco parada de mão
Fonte: Lecoq, 1987
Na Escola de Lecoq essas sequências são aprendidas ao longo do primeiro ano
visando desenvolver os princípios do movimento, constituindo-se numa espécie de
alfabeto, como entendia Lecoq, a partir do qual o ator torna-se habilitado a “escrever”
ou “dizer” o que quiser com o corpo. O professor referia-se constantemente à
importância da arquitetura do corpo e da cena e da instrumentalização do ator para
que, com base neste alfabeto básico, técnico e dramático, possa “desenhar” o seu
próprio projeto.
Identifico na prática de Lecoq dois princípios principais: o trabalho a partir de
modelos e outro que almeja desenvolver a criação pessoal. O grande modelo é a
natureza e suas manifestações, tais como: os elementos (água, ar, terra, fogo e suas
variantes, sólidos, líquidos, gasosos, pastosos, etc.); as matérias ou materiais (papel,
ferro, manteiga, gelatina, açúcar, etc.); os animais (felinos, répteis, pássaros, insetos,
etc.); os cataclismos (enchente, incêndio, vendaval, tempestade, avalanche, terremoto,
etc.). São usados também alguns esportes, tais como a patinação, o levantamento de
pesos, a natação, o lançamento de discos, o remo, como modelos ensinados como
sequências de movimentos codificados. Através dos Vinte Movimentos, portanto, são
transmitidos princípios como equilíbrio, economia, ritmo, compensação, élan,
desenho do corpo no espaço, linhas do corpo, controle, utilizando elementos da
mímica para manipulação de objetos invisíveis. Há ainda outro grande tema utilizado,
intitulado “abordagem às artes”, que toma a pintura, a poesia e a música como
modelos de movimentos, de composição, de texturas, de dinâmicas. O foco central
dessa aprendizagem é aquele de identificar a dinâmica interna de cada manifestação e
procurar transpô-la para seu próprio corpo pelo rejogo e para o jogo com os colegas
de cena, procurando reconhecer o que há como Fundo Poético Comum em todas elas.
100
Nas aulas de análise do movimento na Escola, além de se aprender essas
sequências codificadas, são também desmembrados outros gestos e atividades que
partem da observação de como elas são executados na vida cotidiana e, por meio da
mímica de ação33, são recriadas e organizadas em uma série determinada de
movimentos, passíveis de serem contadas e repetidas. Esse procedimento auxilia o
aluno-ator a aprimorar o gesto, ou mesmo uma cena, em um procedimento semelhante
ao da construção de partituras corporais usadas por Barba e Grotowski. Na Escola são
usadas, por exemplo, atividades como cortar lenha, preparar um coquetel ou navegar
em um barco a vela, que são desmembradas em um número determinado de ações que
devem ser repetidas tal qual aprendidas. Esse procedimento é bastante útil para atores
que não conseguem repetir o que foi feito, para que possam memorizar cenas,
deslocamentos, contracenações.
Ao final do primeiro ano, os alunos da Escola passam por uma prova
individual na qual devem organizar uma sequência própria dos Vinte Movimentos,
com variações de ritmos, de intensidades e de direções, com deslocamentos no espaço
que os torne interessantes para quem assiste. As sequências são apresentadas
individualmente diante de todo o grupo e comentadas pelos professores, fazendo parte
da avaliação final do processo técnico-criativo do aluno. O primeiro ano serve,
portanto, como base para aquilo que será ensinado no segundo ano da Escola, os
estilos teatrais propriamente ditos, chamados de grandes territórios por Lecoq: o
melodrama, a commedia dell’arte, os bufões, a tragédia, o clown.
O objetivo do aprendizado dessas sequências na pedagogia de Lecoq reside na
compreensão pela via corporal das leis do movimento que as embasam, enfatizando a
maneira como cada deslocamento é realizado, como cada parte do corpo desenha uma
trajetória no espaço. Essas noções podem parecer abstratas, mas elas tornam-se
concretas no palco e no corpo do ator, constituindo o que Lecoq (1997, p.32)
considerava o fundo dinâmico de sua pedagogia. Tal como para o mestre, essas
consistem igualmente nas linhas mestras do meu trabalho prático, e que procuro fazer
33 Mímica de ação, segundo Lecoq, é a base para analisar as ações físicas dos seres humanos. Consiste em reproduzir uma ação física com tanta atenção quanto possível, sem nenhuma transposição, em um primeiro momento, mimando o objeto, o obstáculo, a resistência. Para tanto, em sequências de alguns esportes, como a natação e a patinação, por exemplo, de atividades como a do pedreiro, do cortador de lenha, etc., ou o manejo de objetos, como abrir uma mala, fechar uma porta, tomar uma xícara de chá, etc. (Sachs, 2004:60)
101
entender às pessoas que ensino, ao aplicar esses exercícios como ferramentas para a
preparação corporal e para a cena. Exercícios esses que servem também para
estabelecer um diálogo primeiro com os alunos-atores sobre corpo, ritmo e espaço,
uma vez que possibilitam certa organização, controle e consciência sobre o mesmo. O
objetivo é o de propiciar gestos detalhados, próprios para um estilo de teatro que
utilize uma linguagem não cotidiana, mas que pode ser utilizado para outras
linguagens com as quais se queira trabalhar.
Embora sendo vinte movimentos, costumo usar no máximo dez deles quando
estou ensinando, de maneira que me possibilitem poder aprofundar, repetir e
consolidar seus aspectos técnicos. Dentre aqueles que mais utilizo estão: a ondulação,
a ondulação inversa, a eclosão, o travelling, o la brasse (o giro com os braços), as
nove atitudes, o barqueiro, o bastão, o tourniquet. Quando trata-se de um grupo que
já tenha alguma experiência com acrobacia uso também a roda, a invertida, os
rolinhos para frente e para trás. Entretanto, quando o grupo não possui experiência,
prefiro não usar a acrobacia, por exigir um cuidado técnico mais apurado, logo,
considero imprudente tratá-la como se fosse algo simples, pois corre-se o risco de
causar lesões graves e permanentes.
Lecoq inicia a análise do corpo humano baseado em três movimentos que
considera naturais da vida cotidiana: ondulação, ondulação contrária e eclosão. Esses
movimentos podem ser associados à três posições dramáticas, segundo o mestre, que
são “estar com”, “estar para”, “estar contra”34. Ele sustentava que a ondulação é o
primeiro movimento do corpo humano e de diversos outros seres, aquele que dá
suporte à toda locomoção. Progredindo a partir de uma alavanca normalmente
representada pelo chão, o esforço é gradualmente transmitido para todas as partes do
corpo, como pode ser verificado no caminhar humano, por exemplo. Como aponta o
mestre (LECOQ, 1997, p.84), a ondulação é a força motora que embasa todo o
esforço físico que se manifesta no corpo humano, incluindo a noção de empurrar/ser
empurrado e puxar/ser puxado.
A ondulação auxilia a flexibilização da coluna envolvendo, como em todos os
movimentos, o corpo inteiro, que deve estar alerta e participante. A onda começa nos
pés que pressionam o chão, mas é o olhar que conduz o movimento: deve sempre
34 No original, em francês, être avec, être pour, être contre. (LECOQ, 1997, p.84)
102
estar vivo, para fora, no centro do rosto e não desviado para cima ou para baixo. O
olhar deve acompanhar o corpo, delimitando um círculo invisível ao redor de si. Olha-
se para cima no ponto zênite e a partir dali o movimento deve engajar a coluna,
deslocando-se o peso à frente e, de acordo com o princípio do equilíbrio,
desequilibrar-se para se mover. Costumo orientar meus alunos de forma que o olhar
acompanhe os limites da sala de trabalho, percorrendo os cantos do teto, descendo
pelas paredes, passando pelos rodapés, vindo, pelo solo, encontrar a ponta dos dedos
dos pés. A partir dali, deve subir pelo próprio corpo, até chegar ao peito e novamente
lançar-se para o alto, voltando a refazer o trajeto. Deve-se observar a posição dos
braços, não abandonar as mãos, não franzir a testa, não encolher os ombros.
Uma das atrizes da Cia. Oigalê, ao comentar sobre a colaboração desses
exercícios de Lecoq, chama atenção para a ondulation:
Sim, colabora, porque têm essa característica de aquecer a articulação, pois existe no trabalho do ator, principalmente, uma falta de compreensão do seu corpo, falta de um entendimento de como funciona e do que é necessário para que ele esteja disponível para o trabalho. Esse trabalho do Lecoq é legal porque ele vai lubrificando as articulações, é um trabalho todo de dobras e deslocamentos e que vais aos poucos respeitando seu corpo. Quando se faz a ondulation, por exemplo, que vai soltando toda a coluna, ‘deus o livre’ de fazer aquilo direto, de soco, aquilo vai lhe entrevar, mas você vai soltando, vai azeitando esses ossos, essas articulações, os espaços ‘entre’...(PAZ, 2012)35.
A ondulação inversa, como o próprio nome indica, é praticamente o mesmo
movimento, porém invertido. Ao invés de começar pelos pés contra o chão, ele inicia
na cabeça, mas o corpo todo deve ser mobilizado. A diferença é que apóia-se uma
perna para trás, o que desenha duas linhas diagonais com o corpo, o que a ondulação
para a frente não faz. Exige equilíbrio, controle do quadril, força nos músculos das
coxas, firmeza nos pés. Passar por essas linhas serve como aquecimento para As Nove
Atitudes(foto abaixo), que passa também por duas diagonais, além de mudança de
planos em nível baixo e médio.
35 Karine Paz, atriz da Cia Oigalê, trabalha nos espetáculos “Miséria, ...”e “O Baile...”. Entrevista realizada em 30/10/12 em Porto Alegre.
103
Fig. 8 – As Nove Atitudes
Fonte: Lecoq, 2010, p.125
Claramente baseado nos movimentos da commedia dell’arte, As Noves
Atitudes iniciam com a postura do samurai, que demanda a abertura ampla das pernas
tomada como base, os pés firmes no chão, força nas coxas e atenção para não forçar
os joelhos. Os braços estendidos ao longo do corpo, ligeiramente afastados do tronco,
também manterão essa posição ao longo das nove posturas, o que também consiste
num desafio. A partir do quadril, que é desencaixado deslocando-se para trás, o tronco
desce e coloca-se em paralelo ao solo com as costas alongadas, na postura de ‘mesa’.
É comum os alunos não terem noção do quanto devem baixar, para isso a utilização
da imagem de mesa auxilia pela preocupação em não deixar cair nenhum copo
imaginário que estaria sobre ela, de maneira que os alunos vão ajustando seus corpos
sem terem que olhar-se no espelho para tal, mas sim de dentro para fora, ativando
aquele olhar interno despertado anteriormente no exercício do scanner. Seguindo a
sequência, o corpo deve ir erguendo-se aos poucos, tomando então a postura típica do
arlequim, com uma perna flexionada e a outra alongada com o tronco voltado para
104
ela, numa atitude tanto servil de agradecimento como de deferência a alguém
superior. Em seguida, eleva-se o corpo um pouco mais e transfere-se o peso para
chegar à quarta atitude, abertura à frente, olhando no horizonte, e, depois, chega-se à
quinta posição pelo giro do tronco naquela posição. Essa última posição é uma das
que mais exigem do corpo, pois todo ele deve alinhar-se à perna alongada, tendo
como apoio a outra, flexionada, provocando um equilíbrio precário, nada natural, mas
que justamente serve para quebrar padrões estabelecidos. A partir daí o corpo fará
esses mesmos movimentos para o outro lado, descendo como se fosse um espelho dos
movimentos anteriores, o que requer concentração e coordenação para ser alcançado.
O olhar também deve estar alinhado com os membros que traçam linhas diagonais
durante toda a sequência, como se pode observar pelo desenho esquemático que o
próprio professor fez.
Concepção herdada de Conty, o mestre denominava “atitude” um momento
isolado dentro de um movimento, a imobilidade que pode ser colocada no início, no
fim ou em um ponto-chave de uma sequência. Um movimento em seu limite, ali
revela-se uma atitude. Como em uma estátua, imóvel, que expressa toda a grandeza
de um momento em si. As atitudes fornecem uma estrutura para o movimento que vai
além dos gestos naturais. O teatro clássico japonês, o jogo com máscaras da
commedia dell´arte, a ópera de Pequim, empregam esse tipo de acentuação, onde os
movimentos dos atores explodem literalmente em poses monumentais. As atitudes são
eminentemente dramáticas. Solicita-se aos alunos-atores que descubram diferentes
variações, especialmente nas transições de uma atitude para a próxima, de forma que
auxilie ao ator a reter os princípios estruturais que dão suporte a essas atitudes,
mesmo em suas versões menores e mais íntimas a partir das transposições. Para o
mestre, a noção de atitude está sempre presente no trabalho do grande ator, qualquer
que seja o seu estilo de teatro, pois na realidade, as plateias teatrais exigem atitudes
que elas possam seguir. O objetivo maior é a precisão e a clareza dos gestos.
A questão da autoria do ator inicia-se aqui, no momento em que ele domina
esse seu desenhar com o corpo, que sabe o que está propondo visualmente.
Desenvolvendo a consciência em duas mãos, de dentro para fora e de fora para
dentro: essa forma que o corpo adquire vai ser o canal de expressão da sua
personagem, vai ser o que impulsiona sua expressão, que vai ser o veículo para trazer
à tona aquilo que quer “dizer”, ao mesmo tempo em que percebe a imagem que
105
produz no espaço. Se ele compreende tais princípios com seu próprio corpo, ele
poderá estende-los para a cena, por exemplo: o equilíbrio necessário para que se possa
ficar com o apoio na perna de trás numa postura como esta mostrada abaixo, é o
mesmo que vou transpor para uma cena em relação a um objeto ou mesmo ao espaço.
Um dos aspectos que considero mais importantes no exercício desses
movimentos é o de compreender as linhas que o corpo desenha no espaço. Qualquer
parte do corpo que esteja abandonada aparece em cena, diminui a força do ator, a
menos que seja proposital. As mãos, os braços, a posição dos joelhos e do quadril,
todos precisam estar sob controle total do ator. Perceber que o corpo do ator tem uma
forma e que, dependendo de sua posição e da relação com o colega da cena, objeto ou
cenário, um quadro é pintado para o espectador. Dessa maneira desenvolve-se um
cuidado com o aspecto visual e plástico do espetáculo, preocupado com o sentido de
composição, como estudado nas artes visuais. Esse aspecto das linhas aparecerá
durante todo o trabalho, iniciando pela consciência da maneira como o próprio corpo
se desenha no espaço, desenvolvido pelo trabalhado dos Vinte Movimentos, e mais
adiante quando, nas improvisações, trabalha-se com a pintura, que abordo no item 5.3.
Fig.9 – Oskar Schlemmer - “Danse des Bâtons”, 1928
Fonte: Catálogo Danser sa Vie , 2012, p.179
106
Na foto acima vemos Oskar Schlemmer, expoente da Bauhaus, que também
pautava-se por pressupostos bastante semelhantes em relação ao desenho das linhas
no espaço, que aqui exponho enquanto modelo para as linhas do corpo às quais se
referem esses exercícios dos Vinte Movimentos. Em aula não temos essa imagem,
antes, ela parte do olhar interno que busca organizar seu corpo com elas em mente,
essa sim sendo uma busca de dentro para fora. Com o alongamento dos braços que
seguem essas linhas ao infinito, e a consciência das linhas que as pernas desenham, o
corpo tende a tomar um espaço maior, que poderia ser comparado com o “corpo
dilatado” de Barba.
No trabalho de preparação do espetáculo ‘Miséria...’, da companhia Oigalê,
por exemplo, meu o objetivo era o de produzir a corporeidade da commediadell’arte,
pois trata-se de uma adaptação da peça “Arlequim, servidor de dois patrões”, de
Goldoni. Trabalhamos esses mesmos movimentos, além da construção corporal de
cada tipo da commedia e de seu jogo. Na foto abaixo, pode-se identificar as linhas
emanadas dos corpos, a base bem aberta, a composição visual que apresentam, como
descreve o depoimento do ator da Oigalê que participou de ambos trabalhos
‘Miséria...’ e ‘O Baile...’:
O que trabalhamos especificamente de Lecoq e que serviu diretamente na limpeza de movimentos do “Miséria...” foi isso de que o movimento tem início, meio e fim. A limpeza de movimentos se dá a partir disso. Quando tu tensionas de propósito, é um controle do teu corpo, tu sabes onde inicia um movimento e que ele tem um meio e um final. E isso torna-se um jogo orgânico em cena porque eu começo, termino e passo a ‘bola’; o outro começa, termina e passa a ‘bola’. Isso é o que a gente vê em cena, e foi salientado por quem viu de fora. Por mais que a gente racionalize e teorize sobre isso, é interessante quando escutamos de alguém, me serve mais! Quando alguém que vem de fora, que não viu tudo o fizemos, não viu essa parte de treinamento, e diz “gostei do espetáculo de vocês porque tem limpeza de movimentos, os movimentos têm início, meio e fim, que não é o que eu assisto na maioria das vezes, gostei da energia que vocês colocam, as linhas que aparecem, as oposições”…, nossa!, parece que o cara estava junto comigo quando eu estava fazendo a aula! Então isso é que é interessante porque a gente não tentou fazer um trabalho como resultado da técnica do Lecoq. Não, a técnica foi introduzida dentro do organismo e apareceu!(BRASIL, 2012)36
36 Ator da Cia.Oigalê Paulo Brasil. Entrevista concedida em junho/2012.
107
Fig.10 - Espetáculo “Miséria servidor de dois estancieiros” da Oigalê Cooperativa de Artistas Teatrais, 2008. Em cena os atores Mariana Höeler, Bruna Espinosa e Paulo Brasil.
Fonte: Vera Parenza (arquivo pessoal)
A eclosão é um movimento que se abre a partir do centro do corpo,
considerado o ponto abaixo do umbigo. Está associado à ideia de que diferentes
manifestações da natureza possuem o mecanismo de abrir e fechar como, por
exemplo, as flores desabrochando, a luz do dia que clareia e depois volta ao escuro, as
idades do ser humano, as batidas do coração, o piscar dos olhos, para citar algumas.
Inicia-se agachado no chão, procurando ficar do menor tamanho possível para então
abrir-se e levantar simultaneamente até terminar ereto, com as pernas alongadas e os
braços estendidos para cima, semelhante ao final dos exercícios de ginástica olímpica,
porém mantendo-os dentro do seu campo de visão. O importante é mover-se de
maneira constante, com todo o corpo seguindo o mesmo ritmo, sem que nenhuma
parte preceda a outra. A dificuldade é encontrar o equilíbrio e a fluência do
movimento, de forma que o momento em que os dedos da mão estiverem chegando ao
seu máximo de altura seja o mesmo em que os calcanhares estarão tocando o solo e os
joelhos sendo alongados. A eclosão converge uma sensação global de expansão e de
contração, é um exercício de concentração, calma e equilíbrio. Abaixo, os desenhos
108
esquemáticos de Lecoq demonstram o momento inicial (braços abertos de pé) e o
final (agachado com os braços fechando o corpo). Fig.11 – Éclosion
Fonte: Lecoq, 1987. No travelling (foto abaixo) é enfocado, principalmente, a atenção na separação
de um movimento de outro, desenvolvendo assim o caráter de economia e de limpeza
do gesto. Onde ele inicia e onde termina. Quando termina, nem o cabelo pode sacudir,
costumo brincar. A sequência, que consta de apenas três movimentos, segue a
seguinte lógica: você vê, vai em direção à(?), gira o tronco. Serve para trabalhar a
organização e a decupagem do movimento, a consciência corporal, o controle e a
percepção do momento que antecede qualquer ação: o ponto inicial, o trajeto e o
ponto final. Essa prática contribui para suprimir braços que ficam balançando em cena
sem ter porquê, pés que não param em um mesmo lugar, mãos que não sabem o que
fazer. Economia do movimento, só o que for necessário, dentro da ideia de “menos é
mais”, defendida por Copeau. Fig.12 – Atriz Heloise Vidor - Preparação corporal de “Uma Lady MacBeth” - Florianópolis, 2010.
Fonte: Arquivo pessoal
109
A atriz de “Uma Lady Macbeth37” compartilha sua experiência com essa
prática, salientando que sua formação, apesar de ter experimentado diferentes técnicas
corporais, não foi muito pautada pelo trabalho físico, tendo sido “mais
stanislavskiana, partindo normalmente de um texto e criando corpo e ações para a
personagem”. Ela pondera que são caminhos diferentes, sem juízo de valor, mas sua
escolha pode, por vezes, incorrer numa certa falta de precisão corporal, como o hábito
de ficar movendo-se como um pêndulo, indo de uma perna para outra, ou a utilização
de gestos cotidianos, reduzidos apenas às mãos, por exemplo. Para ela, “a limpeza que
aquelas sequências propiciam está relacionada ao momento quando você vai compor,
você pode até fazer um gesto “macarrônico”, mas aquilo torna-se precisamente uma
escolha e não uma falta de escolha – o trabalho com essas sequências, portanto,
mostram-se como um caminho interessante para alcançar limpeza e precisão”.
Outro dos movimentos que costumo usar é la brasse, para a coordenação dos
braços, o uso da gravidade, do peso real do corpo, do ritmo, tanto o deixar cair como
o élan acima, o alcance máximo antes da queda. O exercício auxilia também para
relaxar a parte superior do tronco, braços, ombros e nuca, onde geralmente
concentramos muita tensão, além de abrir o plexo solar, disponibilizando de forma
sutil a parte afetiva para o trabalho. A dificuldade encontrada por muitos em relação à
coordenação desses movimentos auxilia na quebra de padrões mentais, quando a
pessoa deve permitir que o corpo encontre o caminho do movimento por si e menos
pela indução mental, pois, aparentemente, quando se tenta compreender esse
movimento ele torna-se ainda mais descoordenado.
O massue (a clava) consiste em quatro movimentos indicados da seguinte
maneira: inicio na posição do samurai. Vejo uma clava na minha diagonal média.
Desloco-me em sua direção. Eu pego. Golpeio com ela em um determinado ponto do
espaço. Em seguida, vejo outra clava na diagonal, na outra direção. Desloco-me em
sua direção, porém sem largar a primeira clava, que fica fixa naquele lugar, um ponto
fixo no espaço. Eu pego esta nova, olho para a anterior, largo, volto a olhar para a que
acabo de pegar, golpeio em um lugar do espaço e ali fixo o ponto outra vez. Assim
recomeço a próxima sequência38. O movimento de pegar com a mão implica em
37 Heloise Vidor. Entrevista realizada em 26/10/12 em Florianópolis.
38 No original, em francês: Je vois, j’y vais vers, je prends, je frape, je vois an autre, j’y vais vers mais sans lacher le premier que est point fixe. Je prends l’autre. Je frape.
110
quatro movimentos: eu mostro a palma da mão, eu a relaxo ligeiramente, mostro
novamente e então pego o objeto (imaginário). Essa prática vai tornando-se mais
fluida e as mãos passam a ter uma qualidade diferente da cotidiana, na qual pego
rapidamente (algo?) sem nem mesmo me dar conta do movimento ali implícito.
Essa prática visa também à precisão, à economia, ao desenho do gesto, à
concentração, à atenção. São todos exercícios que requerem um rigor total para que
surtam efeito, para que o aluno-ator compreenda que não é de qualquer maneira que
se pode fazer aquilo, como não o é entrar em cena. Princípios que vão sendo
internalizados e expandidos para outros momentos.
No estágio de verão da Escola de Lecoq que fiz como aluna, a professora
Paola39 trabalhou os seguintes movimentos: o travelling, la brasse, le bâton e
éclosion. Após a parte técnica, experimentamos variações de ritmos e de
transposições, como, por exemplo, um maestro regendo uma orquestra que iniciava de
maneira mais convencional e aos poucos ia aumentando o gesto e entrando na
dinâmica de labrasse. Trabalhamos também com a manipulação do bastão
imaginário, lebâton, com enfoque no ponto fixo e na manipulação. A manipulação,
nesse contexto, é um trabalho técnico proveniente da mímica que implica uma
sequência de cinco movimentos com a mão que servem para a manipulação de
objetos, assim como para movimentos expressivos das mãos: inicia-se com a mão
relaxada, mostra-se a palma, pega-se algo imaginário, mostra-se de novo a palma,
relaxa-se a mão. Quando já estávamos com algum domínio sobre esse movimento e
sua dinâmica, passamos a aumentá-lo e diminuí-lo de maneira que outras ideias iam
surgindo sobre o que poderia estar acontecendo.
Além de ser aplicada para o gesto, essa técnica é utilizada para a cena,
possibilitando a transposição dessa linguagem para outras mais realistas, por exemplo.
Experimentamos o mesmo tipo de manipulação com um pequeno carrinho imaginário,
procurando detalhar a maneira de abrir sua minúscula porta e seu porta-malas, assim
39 Paola Rizza. Nascida em 1961, em Milão (Itália), já fazia teatro quando decidiu mudar-se para Paris para fazer escola, de 1983-1985. Estudou também com Philippe Gaulier, Monika Pagneux, Alain e Gautré Guy Freixe. Fundou duas companhias com Christian Lucas: uma focada no burlesco, Felix Culpa, e a Companhia Caza House, focada no teatro de marionetes e no teatro visual. Paralelamente à sua carreira como atriz, continua a investigação sobre marionetes e objetos. A pedagogia a leva, depois, a trabalhar com vários grupos e com o circo (ENACR e CNAC) e, gradualmente, como diretora de espetáculos. Depois de um curso de verão na Escola em 1995, Jacques Lecoq convidou-a a integrar a equipe de professores.
111
como o deslocamento desse objeto, sem, entretanto, abandonar o resto do corpo pelo
fato de estar com o foco nas mãos. Passamos para a manipulação de uma caixinha de
fósforos, também imaginária: abrir, tirar o fósforo, fechar, acender. Um outro
exercício executado com o mesmo objetivo foi o de segurar algo bem pequeno, passar
cuidadosamente para um colega, e receber também algo de alguém. Por último,
fizemos uma improvisação, trabalhando o ponto fixo como sendo uma barra de
segurança do metrô na qual três pessoas seguram-se ao mesmo tempo: o que pode
acontecer ali? Um roubo da carteira? Uma briga por espaço? Surgiram situações
cômicas, inusitadas, absurdas. Em todos esses exemplos de partir de um exercício
técnico e transpor para uma situação cênica, identifico a ideia de imaginação como
músculo que, inicia com uma ação e torna-se outra coisa, num claro mecanismo de
associação de ideias.
Esse é o encaminhamento que normalmente acontece: depois de trabalhados
os movimentos básicos, passa-se aos tratamentos para esses exercícios, tal sejam,
variações para explorar diferentes adaptações do movimento, no intuito de expandir o
seu campo expressivo. Os rudimentos técnicos empregados são: expansão e redução,
equilíbrio e respiração, desequilíbrio e progressão, os quais são aplicados a todos os
outros movimentos e ações físicas. Uma vez conhecidos, portanto, são rearranjados
por meio da experimentação com diferentes ritmos e intenções, passando de uma
técnica corporal à expressão dramática através do método de transferência, onde se
modificam diferentes aspectos para mudar o significado da sequência. Através do
método evolutivo, que vai do mais simples ao mais complexo, são trabalhados
aspectos como expansão e redução de gestos, conexão de gesto e voz, escalas e níveis
de jogo, restrições e dificuldades impostas usadas como provocações de outros
estados e possibilidades.
O método das transferências, para Lecoq aponta duas possibilidades
principais, como o próprio mestre descreve:
Se faço um movimento de lançamento do disco, por exemplo, eu posso lhe transferir a um estado interior; empurrar alguém para fazê-lo cair não é somente um ato físico, posso empurrá-lo para fazê-lo cair, mas posso lhe empurrar para que saia do seu lugar também. Numa sociedade onde a hierarquia é tão forte, podemos lhe empurrar para tomar o poder. Então sempre há esse lado da transferência, uma coisa é análoga a outra, e tudo é relativo à gravidade. É interessante como o corpo humano retém tudo isto! Há também a transferência das coisas da natureza: se eu pego uma matéria, o óleo, e o deixo derramar no chão, esse movimento me produz uma
112
sensação interna, eu tombo e escorrego no chão, me alongo, e digo “desculpa”, ou “obrigada”, ou qualquer outra coisa, mas eu me diminuo diante dos outros, é terrível. Agora, quando algo se diminui, há qualquer coisa que aumenta, se eleva, e tome cuidado, esse que vai se elevar pode se aproveitar disso! (LECOQ no vídeo de ROY e CARASSO, 1999).
O método das transferências consiste em apoiar-se nas dinâmicas dos
elementos da natureza para melhor jogar o ser humano, visando à transposição teatral.
Pode-se partir de algum objeto para humanizá-lo aos poucos ou, ao contrário,
adicionar traços de determinado elemento ao ser humano. Para humanizar, por
exemplo, pode-se partir de um determinado animal ou de um elemento como o fogo e
imprimir neles comportamentos humanos, como falar ou relacionar-se com outros. Na
outra possibilidade de transposição, uma personagem humana pode passar a
demonstrar traços de algum animal ou elemento, como, por exemplo, uma pessoa que
escova os dentes e seu movimento vai se tornando mais rápido, com gestos curtos,
aparecendo o modo como um rato limpa seus bigodes, o que lhe imprime uma
qualidade de neurose ou obsessão; para um bêbado, pode utilizar-se a consistência da
gelatina, o deslocamento do siri, e assim por diante.
As transferências estão diretamente relacionadas à imaginação, à passagem do
real para o imaginário. A imaginação na pedagogia de Lecoq é trabalhada em duas
vias principais, portanto, através desses movimentos codificados e das improvisações,
como mencionamos anteriormente. Voltarei a esse ponto no capítulo 4, quando
abordo a questão da improvisação. Antes, porém, consideremos alguns pontos sobre o
treinamento com gestos codificados.
4.2 TREINAMENTO
A palavra treinamento geralmente vem carregada de um sentido de
adestramento, de submissão a uma aprendizagem e de educação pela repetição,
principalmente. Usada indiscriminadamente no campo artístico, esportivo, militar ou
ainda para animais, suscita a ideia de processo de desenvolvimento de vigor corporal
e resistência através de exercícios sistematizados. Féral (2000) aponta para a
diferença entre os termos ‘treinamento’ e training, palavras que geraram controvérsias
especialmente no final do século passado, dada sua utilização em inglês. Segundo a
autora, o termo training, em inglês, quando aplicado ao teatro, designa tanto o ensino
113
ministrado nas escolas de formação, cursos, estágios e oficinas, como exercícios que
antecedem uma produção específica, e ainda como o treinamento efetuado por atores
como aprimoramento de sua arte sem que visem a uma produção específica. Dessa
forma, training tornou-se um termo genérico que abarca três finalidades diferentes da
prática corporal: formação, produção e desenvolvimento do trabalho do ator.
Conforme Féral, na França o termo training, aplicado ao teatro, teria surgido
mais tarde, com as publicações de Eugênio Barba nos anos 1982 a 1985, tendo sido
antes sempre referido com a palavra ‘treinamento’. A partir dali, tornou-se comum a
utilização do termo training para designar treinamento. No Brasil, no entanto,
incorporamos o termo treinamento desde essa mesma época, que também coincidiu
com a passagem de Barba por nosso país. Entretanto, a controvérsia se dá muito mais
em relação à utilização de treinamentos em si do que à palavra que o designa. Parece
haver uma relação quase unívoca entre treinamento e Antropologia Teatral, quando,
na verdade, o que nos interessa é aquilo que as práticas sistematizadas podem aportar
ao trabalho do ator. Como bem esclarece Féral, nesse mesmo texto, é a mudança na
prática atoral em si que reside a questão, mesmo que ela tenha coincidido com a
evolução das palavras.
A evolução nas práticas acompanharam uma mudança ideológica, revelando
uma nova concepção do que deve ser o treinamento para abarcar a crescente
importância que a figura do ator conquistou. Com o corpo tomando o centro da cena,
uma nova pedagogia se instalou, visando não somente à preparação física dos atores
ou ao acréscimo de competências, mas a “uma educação completa que desenvolveria
harmoniosamente o seu corpo, o seu espírito e o seu caráter de homens”, como
afirmava Copeau (1974, p.134), além de um certo despojamento do ator. De
Stanislavski a Grotowski, passando por Meyerhold, Vakhtangov, Tairov, por um lado,
mas também por Jaques-Dalcroze, Appia, Craig, Reinhardt, Copeau, Dullin, Jouvet,
Decroux, Lecoq, por outro, o século XX foi marcado por novas pedagogias do
trabalho do ator. Todos buscavam desenvolver sistemas para promover um estado de
criatividade ao ator em cena, ainda que cada um tenha formulado exercícios, técnicas
e métodos bastante diversos uns dos outros.
Herdeiro de Copeau em vários aspectos de sua pedagogia, como vimos
anteriormente, Lecoq não utiliza a noção de treinamento, preferindo chamar tal
atividade de preparação corporal. Ainda assim, identifico características de
114
treinamento em sua pedagogia, uma vez que ela reitera certos preceitos apontados por
Féral que o caracterizam. Conforme a autora, no decorrer dos textos desses teatristas
foram reiterados alguns dos princípios fundamentais de um treinamento que
envolvem, principalmente, o contato direto com um mestre, a compreensão de que a
técnica não é tudo, o tempo para a descoberta de si e para a assimilação do
conhecimento ali presente, a prática precisa dos exercícios e a individualização do
aprendizado. Vejamos a pedagogia de Lecoq à luz dessas características.
Em sua Escola, o contato acontecia diretamente com o mestre40, que não só
aplicava exercícios sistemáticos, mas, aos poucos, passava por meio de seus
comentários e críticas ao que era sendo feito, toda a sua visão de teatro e arte. O
contato direto com ele, em minha experiência pessoal, foi um marco tanto profissional
como pessoal, pela clareza das análises que realizava após cada exercício, pela
maneira franca e direta com que tratava os alunos, com a paixão que tinha por aquilo
que fazia, visível em seu olhar e na empolgação ao falar da natureza, da poesia, das
artes. Um olhar apurado para o movimento, para a cena, para o ator. Nas aulas de
grande grupo ele circulava e ia detectando momentos interessantes em alguns alunos,
por vezes chamava todos para verem, e assim íamos compreendendo o que estávamos
buscando, caminhos possíveis. Os depoimentos a seguir de Ariane Mnoushkine e de
Philippe Avron vêm ao encontro dessa mesma percepção:
Quando fiz a escola ela já tinha grande reputação. Sabíamos que na escola não iríamos somente dizer textos, somente desenhar preto sobre o branco, mas que havia o trabalho com as máscaras, com a commediadell’arte – o teatro como eu havia visto no oriente. Fui até ele procurando um professor, mas Jacques Lecoq é mais que um professor, é um mestre. É o corpo que escuta, é o corpo que sofre, que se submete antes de agir. São as leis universais do Teatro. Elas existem, Jacques não as inventou, elas existem muito antes da nossa existência. Mas há poucas pessoas que te relembram sobre elas, e ele foi uma dessas pessoas, ele sabe nos mostrar: ‘ou vocês as obedecem e fazem teatro, ou vocês as ignoram e não querem lhes indicar, e fazem “literatura com figurinos” na melhor das hipóteses’ ele dizia.(Ariane Minoushkine apud ROY e CARASSO, 1999)
No mesmo vídeo, Avron também refere-se a ele como mestre, afirmando que,
no trabalho de ator, “não sabemos como fazer, e precisamos que alguém nos ajude,
nos acolha. As vezes é o diretor que nos ajuda, alguém que nos dê a permissão, e ele
40 Após seu falecimento, em 1999, a escola seguiu funcionando até 2012 sob a liderança de sua esposa Fay Lecoq e de seu filho François Lecoq, além de professores convidados. Com o recente falecimento da sra.Lecoq a escola deve seguir sob a liderança de seu filho.
115
nos dá a permissão”. Carasso (apud FÉRAL, 2003, p.182) afirma que, pelo menos
para um grande numero de alunos, Lecoq foi um mestre. Não que ele se designasse
como tal, mas porque os próprios alunos, com o tempo, assim o consideravam. O
autor sustenta que a dimensão de seu ensino se manifesta pela atitude muito particular
que ele adotava frente aos alunos, por vezes bem próximo a eles e por outras com uma
enorme distância, com a capacidade de ser firme quanto às exigências universais do
teatro e ao mesmo tempo flexível quanto à personalidade dos próprios alunos.
Quanto à compreensão de que a técnica não é tudo, Lecoq costumava incitar
seus alunos à observação da vida cotidiana e das manifestações da natureza. Modelos
em constante mutação, que constituem uma fonte inesgotável de inspiração. Além
disso, insistia na noção de que é somente passado pelo menos cinco anos da
experiência do aluno em sua escola que ele pode realmente avaliar tudo o que ali
aprendeu. Da minha parte, confirmo essa afirmação, pois quando escrevi minha
dissertação de mestrado, dez anos após minha saída da Escola, pude perceber a
profundidade filosófica que embasa essa prática, que até então só percebera através do
trabalho prático, mas que, no momento de aprofundar os conceitos ali subjacentes, foi
como refazer a viagem da qual ele sempre falava.
Da mesma maneira, acreditava na necessidade de uma prática de longa
duração, que possibilitasse o aprofundamento necessário e a compreensão de seus
fundamentos. Ao final do primeiro ano da Escola, cada aluno passava por uma
entrevista individual com Lecoq na qual ele tecia comentários sobre seu
aproveitamento e condições para ingressar ou não no segundo ano. Por ocasião da
minha entrevista, o mestre convidou-me para o segundo ano, o que me deixou
bastante honrada. Entretanto, quando mencionei minha dificuldade financeira naquela
época, que me fazia pensar em fazer o L.E.M.41 ao invés do segundo ano, por ser mais
acessível, Lecoq ficou agitado – até mesmo zangado – , e argumentou que sim, eu
poderia fazer quantos cursos quisesse, que se constituía em um tipo de experiência de
valor, porém, se eu realmente quisesse assumir minha carreira artística como atriz, era
necessário aprofundar um caminho, pelo menos, ao qual os outros viriam ‘colorir’
depois. Por, desaconselhou-me a escolha pelo outro curso, ainda que fosse dentro de
41 L.E.M. – Laboratoire d’Études des Mouvements – curso que faz parte de sua Escola, porém dedicado a construções de estruturas mais ligadas a cenários e composições visuais da cena.
116
sua própria escola, uma vez que acreditava na necessidade da continuidade do
aprendizado, na duração.
Uma outra característica do treinamento apontada por Féral refere-se à prática
justa dos exercícios. Os Vinte Movimentos, aqui em questão, enfatizam justamente
esse primeiro momento da aprendizagem no qual o ator deve tentar executar e
dominar perfeitamente os exercícios. Com finalidades próprias, como mencionamos,
os exercícios são voltados principalmente para o trabalho sobre o equilíbrio, a
respiração, a concentração, a flexibilidade, etc., capacitando o ator para a fase
seguinte, na qual ele deverá utilizar-se dessas técnicas modelando-as, modulando-as,
controlando-as, para improvisar e criar de maneira personalizada. Tal como
Grotowski, Barba, Meyerhold, Decroux, entre outros, Lecoq seguia esse método de
formação em sua escola, cada qual com suas escolhas atreladas aos diferentes gêneros
de representação teatral por eles privilegiados. O exercício de “entrar” numa outra
forma, ou ainda, de adquirir uma forma já existente, copiada e repetida conforme
outrem, tem seu valor na disciplina que aporta ao corpo, fazendo-o obedecer àquilo
que lhe impomos, que mais tarde deverá capacitar-lhe para movimentações que
somente por sua experiência própria e cotidiana talvez não alcançasse.
Fazia tempo que eu não fazia nada tão codificado, como o Samurai e a Mesa, por exemplo. Esse desafio para mim é muito bom! Treinar o corpo com uma coisa diferente daquilo que estou acostumado faz muita falta. Inclusive na faculdade, acho que não tem ninguém que trabalhe assim, codificado, no trabalho de corpo. Eu sentia muita falta de fazer um treinamento assim desde quando eu fiz com Tatiana Cardoso, em Porto Alegre, baseado na Antropologia teatral de Barba, acho isso muito importante... como sair de seu corpo e entrar num outro... (SPILHERE, 2012)42
O valor da repetição de movimentos codificados está no possibilitar que o ator
se exponha a outras maneiras de fazer diferentes do que ele faria ou do que ele já sabe
fazer, de aprender a aprender, de abrir-se àquilo que é diferente de si. É o lado
positivo do “adestramento”43, é um desafio que a própria pessoa se impõe e que vai
42 Marlon Spilhere, Ator e performer, aluno na oficina realizada no FITUB em Blumenau, 2012. 43 Essas questões de treinamento, de disciplina, de discurso do corpo, poder e condicionamento, nos remete aos estudos à luz de Foucault. Para ele, o conceito de disciplina é considerado como uma técnica de poder sobre o corpo, intimamente ligada à questão do poder. Nesse sentido, o treinamento também apresenta formas concretas e sistemas de práticas corporais que fornecem ferramentas de dominação do corpo. A descrição de ideal do corpo do soldado, como descreve Foucault (1975), aproxima-se de um certo ideal de corpo que se pode encontrar na expectativa dos corpos tanto na dança como no teatro. Entretanto, optamos em não aprofundar os estudos nessa direção no presente estudo.
117
alargar não só sua capacidade física com a aquisição desses princípios, mas também
sua confiança e conhecimento. É um sair de si em direção a um outro corpo e outra
forma, quebrar padrões. Nesse sentido, parece uma experiência rica, pois pode ser
expandida para a questão da alteridade implícita na relação entre ator e personagem,
no quanto ele é capaz de afastar-se de si e chegar à personagem.
Além desses aspectos, a repetição relaciona-se, em Lecoq, à herança dos
esportes, inegável referência em sua prática. O mestre entendia o ato teatral como
semelhante ao ato esportivo, que é intencional, tem um objetivo específico, é
praticado aqui e agora individual ou coletivamente, e implica rigor, disciplina,
precisão, tenacidade, concentração, foco. Enquanto Copeau provém do universo
literário, Lecoq provém do esportivo. Desde jovem interessava-se por movimento,
sendo atraído por todos os tipos de esporte, tornando-se atleta. Através daquela
prática, segundo ele, percebeu a geometria dos movimentos e a projeção do corpo no
espaço, sensações que procurava estender à vida cotidiana, procurando estabelecer o
que chamava de “poesia do esporte” em tudo o que o rodeava.
O aspecto disciplinar desse treinamento pode servir como um apoio para o
ator que trabalha sozinho, como podemos constatar neste relato desta atriz durante a
preparação de seu trabalho solo:
Nunca tinha feito um trabalho solo. Então, como nós tínhamos trabalhado sempre juntas o início com aquela prática, sempre que estava sozinha, sem ninguém da direção ou da preparação, eu fazia aquela prática, e parece que aquilo me ajudava a entrar no trabalho. Então, acho que criou-se um ritual de preparação e de entrada para o campo de criação. Depois, eu sempre usava como aquecimento aquelas sequências antes das apresentações, como uma maneira de rápido acessar a tudo o que tinha sido feito na etapa de preparação. Funciona um pouco assim com o filme do Al Pacino também, quando fico um tempo sem me apresentar, eu assisto ao filme e aquele universo volta, então são alguns recursos que a gente tem quando não se apresenta em sequência, que é o que acontece comigo nesse trabalho. (VIDOR, 2011)
A repetição e sistematização dessa prática serve também como uma espécie de
diagnóstico do trabalho do ator com os quais se está lidando. Além de suas aptidões
corporais pode-se constatar outros aspectos relacionados à disponibilidade, à
capacidade de concentração e de observação, que contribuem para o professor ou
diretor escolher exercícios e propostas que se ajustem mais a tal ou qual ator.
118
Também para o preparador de elencos esse “diagnóstico” torna-se útil. Uma vez
detectados os objetivos específicos a serem atingidos para aquele espetáculo, é
necessário encontrar maneiras de ajudar o ator a encontrar ou a desbloquear caminhos
o mais rápido possível, pois normalmente trata-se de processos curtos e intensivos.
Um exemplo disso pode-se verificar no relato desta atriz que cursou a Escola no
início dos anos 80, em sua experiência como professora que apresento abaixo.
Quando questionada sobre o que mais utilizava da pedagogia de Lecoq, declarou que
costuma iniciar com o trabalho sobre os Vinte Movimentos:
O trabalho dos Vinte Movimentos cria uma linguagem básica e comum porque, se você não faz, quando chega na máscara, não tem como exigir a limpeza do movimento, e quando chega na máscara neutra não tem o equilíbrio. É também uma maneira de irmos nos conhecendo e ampliando os limites. (...) Então os Vinte Movimentos criam uma linguagem comum, uma maneira de começar a “trocar as figurinhas” com os alunos e, ao mesmo tempo, vejo o nível de conexão que eles têm com o próprio corpo. É muito fácil você fazer um diagnóstico preciso ensinando e vendo, desde que eles trabalhem sozinhos, (... ) e tem gente que não consegue ir adiante, que meses depois ainda não consegue fazer esse movimento de coordenação motora. Evidentemente, depois vemos que são limitações talvez de uma ordem mais grave, e também porque existem tantos tipos de atores diferentes que eu não posso também ser seletiva nesse sentido. Ele vai funcionar melhor talvez em um outro estilo de teatro, também não posso obrigar que todos tenham uma execução perfeita, embora empurre para isso e faça meus exames e observações, estou sempre trabalhando. (MALHEIROS apud SACHS, 2004, p.156)
Considerando todos os aspectos apontados acima, pode-se enquadrar a
pedagogia de Lecoq como treinamento, pelo menos em relação à prática dos Vinte
Movimentos dela constituinte. Ainda assim, é importante lembrar que sua pedagogia é
fruto de uma pesquisa constante, não foi algo que nasceu pronto, mas que foi sendo
construída ao longo do tempo embasada na experiência direta com os alunos. Assim
como outras metodologias de encenadores que podem hoje ser vistas erroneamente
como sistemas fechados que tenham sido criados independentemente do caráter
prático – como as de Stanislavski e de Meyerhold, por exemplo. Na verdade, é
importante reconhecê-las como organizações de práticas que foram alcançadas de
forma experimental, por meio de pesquisas, normalmente interrompidas somente com
o falecimento de seus proponentes. Assim também ocorreu com Lecoq, embora deva-
se levar em conta que vários aspectos confirmados de sua pedagogia já repetiam-se
praticamente da mesma maneira há vários anos,tais como certos exercícios e temas de
119
improvisação, ou escolha das músicas com as quais trabalhar, que aparentemente
seguem as mesmas.
Como essa análise da contribuição da prática de Lecoq está sendo realizada na
segunda década do século XXI, não podemos ignorar certos parâmetros apontados
pelos estudos da teoria do teatro contemporâneo, dos quais destaco algumas noções
do teatro performativo a partir de Féral, dos estudos da performance de Schechner, e
do pós-dramático de Lehmann.
Questionado sobre o lugar do treinamento ou da prática sistematizada para o
ator no teatro pós-dramático e sobre como pensar a preparação do ator nesse contexto,
Lehmann (2010)44 declarou que o que importa, sobretudo, é a presença e o saber
artístico. Segundo o professor, é importante conhecer outras artes, ter uma formação
ampla que possibilite ao ator participar de diferentes linguagens, pois o ator treinado
em um único tipo de teatro acaba engessado no mesmo e depois não se encaixa em
outras formas de teatro. Além da técnica, convém que ele tenha uma formação em
outras artes, juntamente com tudo o que ele tenha lido, aprendido, vivido, sua
curiosidade em relação ao mundo que o rodeia, sua capacidade de esquecer-se de si
mesmo para estar no aqui no momento presente. Dependerá de sua escolha, ele deve
sempre perguntar-se para que tipo de teatro.
Já Féral (2010), quando interpelada sobre semelhante questão, reconhece a
dificuldade em instituir alguma maneira específica, já que não há mais teorias do jogo
dominantes, mas modelos tão diferentes como as diferentes práticas e estéticas dos
encenadores que se destacam. Interessada na problemática do ator contemporâneo,
Féral (2001) realizou uma série de entrevistas com diversos encenadores sobre a
formação que gostariam de encontrar nos atores, por meio das quais constatou que,
embora já tenha havido uma tendência ao trabalho com atores sem formação, os
diretores de hoje preferem trabalhar com aqueles que possuem uma boa formação e
conhecimento técnico. Richard Schechner (1934-), um dos entrevistados, declarou
que, considerando as diferentes teorias do Oriente ao Ocidente (passando pelos
principais encenadores), pode-se detectar um denominador comum: todas essas
teorias supõem um treinamento. Ele acredita que o ator deve aprender certas técnicas
44 Seminário apresentado na UDESC, Florianópolis,10/08/2010.
120
básicas de jogo, deve ser capaz de dominar e dirigir o corpo e o espírito, de
reconhecer certos acontecimentos à sua volta e responder a eles.
Baseada nessas entrevistas, Féral (2001a) aponta algumas técnicas de base que
permitem ao ator estar presente, estar à escuta, andar, falar, projetar-se no espaço,
relacionar-se com os diferentes materiais da cena, arriscar-se, propor. A autora
destaca características que foram ressaltadas como as competências esperadas do ator,
tais como: desenvolver uma presença, sendo que para isso existem diversas e variadas
técnicas possíveis; transitar entre diversas linguagens e qualidades expressivas;
desenvolver autonomia de criação, considerando a questão da des-hierarquização;
agrupar as práticas que lhe interessam, que sente que lhe auxiliam; questionar, refletir,
falar sobre sua prática; ter o “como” e o “porquê” como norteadores; produzir
sentidos a partir, sobretudo, da relação que estabelece com os materiais de atuação,
modos de articulação e reinvenção dos códigos e convenções teatrais. Interessante
constatar a semelhança entre sua definição das competências desejáveis para o ator e
aquelas apontadas por Lehmann, que servem, portanto, como balizas para esse estudo,
constituindo os principais parâmetros que orientam minha visão sobre o trabalho do
ator.
A partir dessas considerações pergunta-se: como deve ser a formação desse
ator? Um ator jovem, iniciante, é capaz de reunir todas essas competências? Espera-se
dele algo inovador, não ilustrativo, competente, crível e com domínio corporal,
considerando corpo-voz-mente-espírito! Como é o processo de formação para a
atuação desse indivíduo? Será que há alguma escola ou curso universitário capaz de
prepará-lo para tarefa tão complexa? Certamente temos que levar em conta que a
formação de um artista nunca está completa, e que as escolas ou universidades serão
sempre um momento de passagem. Questões inquietantes, principalmente do ponto de
vista da professora e da pesquisadora. Como professora, pela preocupação em
dialogar com outras técnicas e colaborar com a formação de artistas que devem
estabelecer contato com seu momento histórico e social.
Ainda que a palavra treinamento remeta fortemente aos esportes com as ideias
de repetição, eficácia e habilidade, assim como adestrar, condicionar, domesticar,
podendo, desse modo, minimizar a dimensão expressiva, o valor dessas práticas ainda
parecem ter seu lugar assegurado no trabalho do ator. Nesse sentido, alinho-me a
esses autores mencionados acima, no que concerne à necessidade fundamental do ator
121
em algum momento de sua trajetória experimentar um aprofundamento em algum
treinamento e que envolva noções básicas do jogo teatral. O objetivo do treinamento é
justamente o do desenvolvimento do ator no sentido de provê-lo com uma bagagem
que possa carregar consigo em outros trabalhos que venha a desenvolver. E essa
constatação me responde positivamente sobre a validade de Lecoq nos tempos atuais,
pois mesmo parecendo estar ligado a uma estética restrita, reafirma-se justamente por
meio desse estudo, a amplitude de sua proposta.
Ainda assim, devemos levar em conta que, como alertou o professor
Lehmann, essas práticas podem se tornar uma prisão para o ator, no sentido de ele não
conseguir fazer outra coisa depois, usando sempre uma mesma maneira de atuar. Por
mais que cada um dos sistemas de atuação se pretendam abertos, universais e
abrangentes, cada um acaba por construir um certo tipo de corpo e de modos de agir,
como um sistema de crenças. Além da observação desses padrões em diferentes
atores, a experiência com a prática lecoquiana também pode acarretar nisso, pois
embora fique claro durante o curso, assim como nos registros escritos de Lecoq, que
sua pedagogia visa a formar artistas para além de uma linguagem do gesto somente,
pode-se facilmente identificar modos de atuação oriundos diretamente dela. O
depoimento da colega do estágio de verão na Escola reflete essa questão:
O primeiro dia quando cheguei lá pensei, “oh, todos estão se movendo como no livro do Lecoq!” Me chamou atenção que havia um estilo que devia ser seguido, mas, quando experimentei, fui encontrando e entendendo que há muita verdade nesse movimento. Parece que há um estilo, mas agora, quando faço, faz todo o sentido! Eles desenvolvem esse entendimento. Não sei se há realmente esse ponto a alcançar, mas o desafio de procurar! Tem um caminho para o trabalho. Como, para mim, quero ter mais liberdade em criar sem fazer “qualquer coisa”, então isso é algo bem preciso para eu ter como objetivo, tentar tocar (o instrumento) através disso, através das cores. Me dou um jogo, como para jogar futebol. Importante ter uns limites do jogo, como jogar, e assim sei por onde ir. Se não, você não progride. (KIREGNTEIN, 2011)45
É um risco que o ator incorre, o de cristalizar a técnica e de não conseguir ir
além. De qualquer maneira, o que parece realmente importante conquistar é a
consciência da diferença do corpo cotidiano, que sempre expressa, porém com
gestuais comuns, clichês e sensos comuns corpóreos, como aponta Ferracini (2011).
45 Maja Von Kiregntein- Musicista natural da Alemanha. Colega no estágio de verão. Entrevista realizada em Paris, em 23/09/11.
122
Concordo com o autor sobre o que queremos para a cena, que é o corpo aberto a
novas possibilidades, capaz de reconfigurar tempo, espaço e forma, cuja necessidade
justifica empreender um treinamento. Cada um vai configurar o seu corpo, individual
ou em grupo, ao longo de sua trajetória, escolhendo técnicas que melhor o capacite
para seu trabalho, que alargue seus limites, que o insira em um estado de criação.
Ferracini (2011) aponta dois pilares básicos como alicerces do treinamento
que se comunicam em rizoma: memória e vivência. Pautando-se em Bergson, afirma
que a memória acumula o passado e o presente, não somente enquanto lembranças
concretas, mas como “virtuais de memória que vão acumulando-se independentes de
nossa vontade, criando uma espécie de memória ontológica” – visão que ecoa os
pressupostos de Jousse. A atualização constante desses virtuais pode ser mecânica,
como a ação de dirigir um carro, por exemplo, ou sem o controle de nossa vontade,
como acontece quando sentimos um cheiro que nos remete a uma lembrança, como o
autor explica. Nesse sentido, ele afirma que a atualização é uma criação, que recria tal
passado no presente e que pode-se estender para a ideia de uma atualização da
memória corpórea para um fim estético. O ator deveria ser capaz de atualizar essa
memória de forma consciente na medida que fosse capaz de recriar o fluxo poético
dos movimentos aprendidos, adquiridos pela vivência proporcionada pelo
treinamento. O principal resultado deste tipo de trabalho dialoga com a abordagem de
Lecoq, quando considera que trata-se de traços que se inscrevem no corpo,
possibilitando às emoções dramáticas encontrarem um caminho para aflorarem,
construindo uma memória corporal.
Essa noção de memória que Ferracini propõe à luz de Bergson vem, portanto,
ao encontro da ideia de imaginação que proponho aqui, no sentido de que a
experimentação de movimentos a partir da observação da natureza serem
gradativamente registrados enquanto memória corporal, sempre passíveis de serem
alargadas com base em tais modelos que são infinitos. Aqui também pode-se
estabelecer relações com Jousse, em relação ao mecanismo do mimismo, da absorção
até as camadas mais profundas do corpo.
Não apenas a prática com os Vinte Movimentos, mas também as
improvisações com os elementos e as matérias podem ser tomadas como
possibilidades para essa atualização mecânica. Portanto, além de exercitar essas
características técnicas mencionadas, também atuarão como indutoras da imaginação
123
pelo mecanismo típico da mente humana, de associação de idéias. Através do método
das transferências, mencionado acima, procura-se dar outras significações às
sequências, utilizando recursos como a expansão e a redução dos movimentos, que
leva ainda a outras possibilidades de leituras. Como na demonstração de Lecoq e seus
alunos, no vídeo de Roy e Carasso (1999), a partir do movimento do passeur, por
exemplo, que procuram encontrar algo a dizer, associar a uma situação, transpor para
um mecanismo de ação e reação, questionar o que aqueles movimentos suscitam.
Nesse caso, pode-se identificar o mecanismo de distanciamento sugerido por Piwnica
anteriormente, que nesse caso referir-se-ia ao ator que afasta-se de si, de seu corpo
que executa algo, para outro universo, outra pessoa, outra situação, libertando-se do
mundo objetivo, por meio da imaginação.
Pelo mecanismo de associação de imagens, a atenção passa da observação de
seu próprio corpo para uma visão mais ampla, do em torno, da dinâmica do
movimento, de modo a permitir que as ideias surjam ou ainda, investindo-os com um
sentido, numa explícita tentativa de aliar o movimento físico à imaginação. “E como
imaginar, desconhecendo as leis fundamentais do imaginário?” Tomo a pergunta de
Bachelard (2001, p.232) como trampolim para abordar o universo da imaginação.
Para que se possa analisar os diferentes procedimentos que ali sucedem, voltemos à
questão da imaginação em si.
“A imaginação age como uma potência do corpo: sem imagens não haveria
imaginação” (PIWNIKA, 2010, p.14). Sendo assim, reiteramos a importância do
treinamento que implique um alargamento das imagens com as quais os ator, o diretor
e os artistas possam trabalhar. Para o ator, em especial, o treinamento de Lecoq é
relevante por ser uma via a partir do corpo, é um modo de iniciar a construção de
personagens e das cenas. Não é tudo para a construção de um personagem, porque
tem também a construção da cena, a dinâmica da cena, o ritmo, os desenhos que ela
compõe, mas....é... realmente uma maneira de treinar a imaginação!
O jogo se ensina? Sim, se ensina. Há a tendência natural do ser humano de jogar
– homo ludens –, assim como de outros animais. Porém, há o ensinar, o oportunizar, o
criar meios, o aprender maneiras alternativas de jogar, de brincar, de se mover. Com
os esportes, aprendemos maneiras definidas de golpear, assumindo uma série de
regras do jogo, como se faz um golpe de karatê, um jogo de tênis, um duelo de
esgrima, um jogo de basquete, de vôlei e assim por diante. E a imaginação se ensina?
124
Para o ator, pode-se ensinar outras maneiras de se mover, de gesticular, a partir de sua
observação do mundo, pode-se, portanto, estimulá-lo a essa observação, ensiná-lo a
observar e pode-se ensiná-lo a mover-se tal qual, a imitar, a organizar seu corpo de
forma que lhe dê maior controle sobre seu instrumento de trabalho – ele mesmo.
Portanto, sim, se pode ensinar.
Lecoq admirava as ideias de Bachelard sobre a imaginação, que utilizava não só
como embasamento filosófico de seu pensamento, mas, por vezes, usava diretamente
nas aulas, lendo trechos de sua obra, como o que exponho a seguir.
Poderíamos dizer que o vento furioso é o símbolo da cólera pura, da cólera sem objeto, sem pretexto. Os grandes escritores da tempestade (...) amaram esse aspecto: a tempestade sem preparação, a tragédia física sem causa. Pouco a pouco o clichê desgastou a imagem: fala-se da fúria dos elementos sem viver-lhe a energia elementar. A floresta e o mar agitados pela tempestade sobrecarregam, às vezes, a grande imagem dinâmica simples do furacão. Com o ar violento poderemos compreender a fúria elementar, aquela que é só movimento. Encontraremos aí importantíssimas imagens em que se unem vontade e imaginação. [...] Ao viver intimamente as imagens do furacão, aprendemos o que é a vontade furiosa e vã. O vento, em seu excesso, é a cólera que está em toda parte e em nenhum lugar, que nasce e renasce de si mesma, que gira e se volta sobre si mesma. O vento ameaça e uiva, mas só toma forma quando encontra a poeira: visível, torna-se miséria. Ele não exerce todo seu poder sobre a imaginação senão numa participação essencialmente dinâmica; as imagens figuradas fariam dele antes um aspecto irrisório. (BACHELARD, 2001, p.232)
A prática de Lecoq envolve uma parte de treinamento na qual trabalha-se com
os Vinte Movimentos, como vimos acima, e outra mais aberta e lúdica através da
improvisação, que veremos mais adiante no capítulo 4. Considero essas duas
instâncias fundamentais no trabalho de formação do ator, que podem ser abordadas
por diferentes metodologias, mas que sempre devem buscar essas mesmas
capacidades apontadas por Féral anteriormente. Ressalto ainda, entretanto, que essas
capacidades do artista habitam o mundo da imaginação, e, portanto, alimentam-se
dela num vai e vem difícil de apanhar, dada sua natureza fugidia, abstrata e ao mesmo
tempo fundamental do ser humano em seus sistemas mais básicos de representação.
Para que o ator seja capaz de dominar e dirigir o corpo e o espírito, arriscar-se,
propor, etc., ele deve exercitar sua imaginação que, assim como os músculos do
corpo, é o veículo que conduz a criação.
Uma das perguntas que buscava responder com esta pesquisa é justamente
sobre a formação do ator nos dias de hoje e como a pedagogia de Lecoq pode
125
contribuir, em vista de certos parâmetros do teatro contemporâneo. Seguimos,
portanto, com o aquecimento metafórico, através da exposição de questões
controversas que vêm animar a discussão.
4.3 ESTUDOS CONTEMPORÂNEOS
No intuito de situar o trabalho de ator enfocado nessa pesquisa, apresento aqui
alguns pontos de vista a partir de estudos da teoria do teatro contemporâneo. Sendo
assim, teço algumas considerações sobre controvérsias que concernem à classificação
do trabalho dos egressos da Escola de Lecoq enquanto teatro físico ou mímica, ou
ainda ‘Teatro Total’, ocorridas principalmente na Inglaterra dos anos 80, onde
mostrava-se como forte tendência de contraposição ao teatro convencional.
Considerando que estamos na segunda década do século XXI, busco aproximar-me
do momento mais atual do teatro contemporâneo, questionando o status do trabalho
do ator de teatro nesse contexto, discutindo a influência da performance e suas
consequências na prática atoral.
4.3.1 Teatro Total
Alguns esclarecimentos sobre a classificação enquanto gênero teatral em que
se insere comumente a prática de Lecoq me pareceram necessários. Seu trabalho está
associado normalmente ao teatro físico, ao teatro do gesto, à mímica. Entretanto, o
que deve-se considerar, sobretudo, é que trata-se de um tipo de teatro que não
pressupõe um texto ou uma personagem como pontos de partida, embora não os
exclua. O foco do trabalho é o de disponibilizar o corpo para a criação, que tende a ser
de autoria própria ou do grupo de forma compartilhada. Compactuo com
Chamberlain46 (MURRAY, 2007) para analisarmos os percursos trilhados em busca
46 Franc Chamberlain leciona Drama and Theatre Studies na Universidade College Cork, na Irlanda e é professor visitante de Performance Studies and Creative Practice na Universidade de Northampton, Inglaterra. Está editando o Decroux Companion com Thomas Leabhart e trabalhando em uma nova edição do livro de Craig On the Art of the Theatre. (Murray, 2007, p. xvi) Foi coordenador do Mime Festival Workshop in Londres nos anos 80.
126
da definição de uma terminologia capaz de definir tal teatro, por muitos denominado
‘teatro físico’. Embora esse autor refira-se à realidade da Inglaterra, onde esse termo
foi muito discutido para ser aceito pelo conselho de artes que regulamenta o teatro
naquele país (ArtsCouncil).
Baseado em Callery (2001), Chamberlain procura isolar alguns traços-chave
desse teatro, tais como: a importância do ator como criador, mais do que como
intérprete; processos colaborativos e somáticos; a relação aberta entre palco e
espectador. Segundo ele, em meados de 1985 parecia claro o que era teatro físico, e
ele cita vários grupos que se enquadravam nesse guarda-chuva, como o Théâtre de
Complicité, o Footsbarn, Dario Fo, Théâtre du Mouvement e até mesmo Steven
Berkoff – todos ex-alunos de Lecoq. Costumava associar mímica e teatro físico à
virtuose física, enquanto a questão central estava, de fato, na fisicalidade da
experiência. Ele pondera que o teatro físico tornara-se uma maneira de delimitar um
lugar para a mímica nos anos 80, separando-a tanto da dança como da redução
somente ao trabalho de Marcel Marceau (1923-2007). Segundo o autor, a presença do
crescente número de graduados de Lecoq, na Inglaterra, ainda vistos como mímicos e
não como atores, foi um fator importante nesse movimento encontrar um termo para
denominar o teatro que faziam.
Havia também uma certa ideia de que os trabalhos provindos de práticas de
Barba e de Grotowski pertenciam a uma tradição de “teatro de diretor” ao invés de um
agrupamento de performers criadores, de um teatro dirigido por atores. Até hoje ainda
considero válida a diferenciação, que Chamberlain comenta que havia naquela época,
a qual entende que grupos de atores criadores podem trabalhar com um diretor, ainda
que trate-se de diferentes relações entre, por exemplo, Barba e o Odin Teater e
McBurney e o Théâtre de La Complicité. Barba mantém-se no papel de diretor,
enquanto McBurney desloca-se entre os papéis de ator e de diretor. Volto a comentar
essa questão de direção e de modo colaborativo de trabalho no capítulo 5 sobre
criação.
Chamberlain (MURRAY, 2007, p.119) relata que, em 1991, a Federação
Europeia de Mímica designou um grupo de trabalho para examinar questões de
transversalidade nessas práticas. O relato desse grupo sugeriu que ‘gesto’ poderia ser
o elemento transversal que conectaria novos desenvolvimentos no teatro
contemporâneo. Entretanto, o uso de “gesto” como o ponto de partida seria
127
demasiadamente evocativo do “teatro do gesto” de Lecoq, que em inglês é traduzido
como ‘teatro físico’, o que fechou o círculo e não resolveu o problema, pelo menos na
língua inglesa. Ainda que essa tentativa de encontrar saídas para denominar as
diferentes abordagens pudesse acabar tornando-se rígida ou formar guetos, a
identificação dessas linhas abriram a possibilidade para múltiplos cruzamentos.
Ainda segundo esse autor, por volta de 1996, o termo ‘teatro físico’ tornou-se
contestado, em que podia-se identificar duas linhas principais: uma linhagem da
mímica decorrente de Copeau através de Decroux e Lecoq (incluindo Dario Fo), e
uma proveniente da dança que tinha como ícone maior o grupo ‘DV8’. Uma terceira
linha decorrente de Meyerhold, Artaud e Grotowski, que havia estado obscurecida nos
anos 80, era também reconhecida claramente como parte desse campo. Nesse mesmo
ano, o Mime Action Group (MAG) sugeriu o termo “physically-based-theatre” (teatro
baseado na físicalidade), mas foi rejeitado e denominado “Total Theatre Network”
(Rede de Teatro Total), com o objetivo de representar o espectro mais amplo possível
de práticas performativas, com ênfase naquelas de características mais físicas e
visuais. Evidentemente o fato de todo o tipo de teatro engendrar o corpo – mesmo se
for ao manipular objetos – e dar-se a ver, é tomado como garantido, não entrando,
portanto, na discussão da denominação dessas práticas.
O termo “Total Theatre Network” manteve-se até 2005, cobrindo uma grande
diversidade de estilos e de abordagens conectadas ao teatro físico como um
movimento de distanciamento das práticas estabelecidas e da categorização por
críticos, acadêmicos ou mecanismos de fomento. Aos poucos, porém, foi perdendo
sua função por não mais descrever um movimento de renovação no teatro e
performance britânicos, nem uma maneira inovadora de ensinar ou fazer
performance, nem mesmo um termo crítico. Era necessário um novo termo que
abarcasse a diversidade do que estava acontecendo no mundo das artes cênicas, ainda
ligado às características do teatro físico, mas que fosse além. Chamberlain
(MURRAY, 2007, p. 120-121) propõe o termo ‘performance pós-física’ por uma
série de razões que explicita em seu artigo, mas às quais não vamos nos ater aqui.
Importante mencionar que, embora as características que ele descreve se pareçam em
grande parte com as do pós-dramático de Lehmann, ele esclarece que seu termo “não
128
é sinônimo da noção de teatro pós-dramático porque, em um nível bem básico, não há
rejeição fundamental do dramático nem na performance47 física nem na pós-física”.
Assim como afirma McDermott48 (MURRAY, 2007, p.203), concordo que o
chamado teatro físico seja aquele que “pode criar mundos imaginários, alongar a
imaginação”, tendo sempre em conta que a especificidade do teatro é a habilidade de
criar mundos paralelos de maneira presencial, diferencial frente ao cinema, à TV, a
vídeo games e à internet. O autor questiona-se sobre o que é que o teatro físico pode
nos dar que o trabalho com texto não consegue, e sustenta que “o que é interessante
não é somente que uma produção possa ser física, mas que nossas imaginações sejam
alongadas além da mera representação do que está presente, mostrando o que está
acontecendo em cena e o que está acontecendo no olho da imaginação, trabalhando o
corpo para revelar a alma”.
A prática com que trabalho é embasada nesse tipo de teatro e, portanto,
considera o ator como criador de seu próprio teatro, de seus próprios personagens e
não a partir de personagens pré-existentes. Nesse sentido, pretende-se ser um teatro
mais autoral, onde o ator é seu próprio autor, ele não parte de um texto pré-escrito, ele
cria as personagens a partir de um tema, de uma ideia, de uma estória que ele queira
contar. O ator tem a liberdade da criação da personagem, ele não parte de uma
personagem pré-existente. Não tem o trabalho de mesa nos mesmos moldes daquele
tradicional onde é priorizada a compreensão dos aspectos psicológicos da
personagem.Evidentemente, esse não é um princípio normativo, pois deverá ser
sempre flexível ao modo de trabalho que cada encenação suscitar.
Nesse teatro de formas, ou o teatro não-psicológico, o trabalho do ator alinha-
se à tradição do mimo e mais tarde da commediadell’arte, que está(?) sempre
alicerçado pelo jogo corporal, pela improvisação, pela criação de meios para seu
teatro, independente de trabalhar com um grupo ou não, com um diretor ou não,
características que estabelecem-se mais tarde na história do teatro. Acredito que essa
tradição exista até hoje nos trabalhos de clown e de bufão, de criação coletiva, em
47 Performance aqui provém do original em inglês, no sentido de espetáculo e não de arte da performance.
48 Phelim Mc Dermott é diretor de teatro, fundador do Derek Derek Productions e do Improbale Theatre. Trabalhou com o The Tiger Lillies, entre outros, em colaboração com Philip Glass na English National Opera em 2007. Também participa do grupo de improvisação do Comedy Store Players. (Murray, 2007: xix)
129
núcleos de teatro colaborativo, que são formas do teatro contemporâneo que dialogam
com as questões relativas ao teatro performativo e ao pós-dramático. A maneira de
preparar-se desse ator é diferente, pois tem objetivos diferentes daquele que vai
construir uma personagem já existente, com um texto a ser posto em cena. Sem juízo
de valores, nem querer desmerecer tais práticas, pois partir de um texto escrito
implica igualmente num grande desafio.
Esse panorama se propõe a colaborar na justificativa do porquê, nessa
pesquisa, o foco está nos atores que não dependem de um diretor ou um texto
dramático para impulsionar seu trabalho, especialmente aquele que antecede a
abordagem do texto. Atores que criam a partir de temas, de materiais, de estímulos
que não aqueles do texto e da personagem pré-existentes – embora não exclua esse
tipo de construção. Por materiais, entende-se desde o seu próprio corpo até o texto
com o qual trabalha, objetos de cena, figurinos, cenário, luz, memória, espaço,
colegas, enfim, tudo o que compõe a cena, ou ainda “qualquer elemento que adquire
uma função no processo de construção de identidade do próprio objeto”, conforme a
concepção de Bonfitto (2002, p.17). É interessante entender o jogo do ator a partir
dessa relação com os diferentes materiais como ignições para o jogo, que foram
propostos pelo professor Bonfitto na disciplina teórico-prática intitulada
“Investigação Cênica II: Seres Ficcionais: treinamento, composição e dramaturgia(s)”
que pretendia explorar possibilidades de trabalho na fronteira entre ator e performer.
Enfocar no material físico e estrutural que o ator vai trazer para a criação ainda em
estado bruto, para então dar forma. Tomando a questão da influência da performance
no teatro contemporâneo e os conceitos de performatividade e pós-dramático
anteriormente mencionados, procuro estabelecer relações entre o performer e o ator, a
dramaturgia do work in progress e o jogo do ator.
4.3.2 Atuação e Formação: Ator ou performer?
Na prática teatral contemporânea verifica-se uma tendência a tomar a arte da
performance como o novo modelo universal teórico e prático, como afirma Pavis
(2007, p.51). Segundo esse autor, “a inflação da performance em todos os domínios e
como novo paradigma universal vai influenciar nosso objeto de estudo, a mise en
130
scène e a maneira de compreendê-la, em todos os sentidos do termo.” A performance
vem se mostrando importante meio de expressão escolhido para a articulação da
“diferença” nos discursos sobre multiculturalismo e globalização, com enorme
aumento no número de performers e de espaços dedicados à sua realização não
apenas na Europa e nos Estados Unidos da América, mas no mundo todo, como nos
esclarece Goldberg (2006). Essa autora também sustenta que a arte da performance
apresenta-se hoje como importante referência nos estudos culturais, não só no teatro
ou na dança, mas também na filosofia, na arquitetura e na antropologia, acrescentando
que também os estudos acadêmicos voltaram-se para ela, e vêm desenvolvendo uma
linguagem teórica para o exame crítico de seu impacto sobre a história intelectual.
Na mesma linha de pensamento, no prefácio de seu livro, Carlson (2004)
afirma que, em um nível cultural mais amplo, performance continua a desenvolver-se
como uma metáfora central e ferramenta crítica para uma variedade desconcertante de
estudos, cobrindo quase todos os aspectos da atividade humana. Segundo o autor, o
discurso da performance e de seu parceiro teórico ‘performatividade’, dominam hoje
não só o discurso crítico nos estudos culturais, mas também nos negócios, na
economia e na tecnologia. Esse aumento no interesse em performance está
relacionado a uma grande mudança ocorrida na cultura, que passou de “o que” para
“como”. Mais do que o interesse na acumulação de informação social, cultural,
psicológica, política ou linguística, o interesse encontra-se, sobretudo, na maneira
como esse material é criado, valorizado e mudado, como ele vive e opera dentro da
cultura. Seu sentido real é agora procurado em suas ações, em sua prática, em sua
performance. Além disso, valoriza-se o fato de que a performance está associada não
só ao fazer mas também ao re-fazer, incorporando a tensão entre uma forma dada ou
conteúdo do passado e os ajustes inevitáveis de um presente sempre mutante. Isso faz
dela uma operação particular em um tempo de amplo interesse em negociações
culturais – como padrões humanos de atividades são reforçados ou mudados dentro de
uma cultura e como eles são ajustados quando várias culturas diferentes interagem.
O mesmo autor aponta que a divisão entre o teatro tradicional e a performance
art que havia, hoje está bastante diluída, uma vez que as técnicas que antes eram
relacionadas a uma ou a outra linguagem vêm sendo desenvolvidas e trocadas entre
elas através da exploração de novos meios. O interesse que o teatro vem mostrando
131
pela performance desde os anos 70 deve-se fundamentalmente à necessidade de
captar seu frescor, sua pulsação, mesmo que através de uma rejeição ao que está
sendo proposto. O impacto que uma performance pode gerar deixando todos os
envolvidos num estado de alerta, entrega e abertura, é o que o teatro também quer
gerar, mas que às vezes não consegue produzir por suas repetições mornas, atuações e
personagens inverossímeis, textos vazios, apelo plástico sem um conteúdo pulsante.
Evidentemente, nada garante um bom espetáculo ou uma performance interessante,
não se trata aqui de juízo de valores e sim de possíveis pontos de contato. A
performance mantém em comum com o teatro o desejo do encontro, mesmo que em
condições diferentes. O que se pode afirmar com certeza é que uma das contribuições
que a performance trouxe para o teatro foi a quebra de padrões nos âmbitos do
trabalho do ator, do diretor, do professor e do espectador.
Importante difusor desse campo no Brasil, Renato Cohen (1956-2003)
desenvolveu a pesquisa da performance como linguagem, acreditando ser esta uma
arte de fronteira, de ruptura de convenções, formas e estéticas, um movimento de
quebra e de aglutinação, uma função do espaço e do tempo. Segundo o autor (1998,
p.158), “a performance é o elo contemporâneo de uma corrente de expressões
estético-filosóficas do século XX desde o futurismo, o dadaísmo e o happening”. Ele
sustentava que a performance não poderia ser considerada como uma expressão
isolada, tanto pelas características de linguagem, como, por exemplo, o uso da
colagem como estrutura, o predomínio da imagem sobre a palavra, a fusão de mídias,
etc., quanto pelas suas premissas ideológicas, pela liberdade estética, uma arte que se
presta ao combate.
A performance se aproxima do teatro através da expansão do uso de
tecnologias midiáticas, da exploração de estruturas audiovisuais e da maneira como se
relaciona com o espaço e o tempo. Conforme Lehmann (2007), também o teatro
experimental não se orienta mais pelo desdobramento psicológico das ações e das
personagens e se ajusta às influências de ritmos de percepção mais acelerados. Esse
autor sustenta que é possível entender o que chama de teatro pós-dramático como uma
tentativa de conceituar a arte no sentido de propor uma não representação, uma
experiência do real recorrendo à noção de arte conceitual como floresceu nos anos de
1970. O termo “pós-dramático” é, em suas próprias palavras, um conceito guarda-
chuva, amplo, que engloba várias manifestações expressivas teatrais desde os anos 60
132
até agora, século XXI, e que inclui a grande maioria dos nomes mais expressivos da
cena experimental contemporânea. Inclui o chamado teatro concreto, teatro físico,
teatro de imagens, dança, dança-teatro, performance, “peças-paisagem”, entre outros.
Teatro pós-dramático são práticas que envolvem um deslocamento do modelo de
drama tradicional aristotélico que envolve ação, fábula, conflito de valores, tempo,
início, meio e fim. Ele, criou esse conceito para ajudar as pessoas a falarem de suas
próprias experiências contemporâneas49.
Alguns dos parâmetros do pós-dramático apontam o espetáculo como evento,
como acontecimento, obra em aberto, processo, work in progress; a prevalência da
experiência sobre a representação e a ficção; o espectador considerado como
participante da obra, como parte do espetáculo, sendo esse envolvimento do
espectador compreendido como uma situação política, a partir da relação que cada
espectador estabelece com o que está acontecendo. Para Lehmann, é a forma que vai
definir o político, a maneira como trabalhar as informações e não a informação em si,
pois esta está nos jornais, na TV e nas outras mídias. Considera-se ainda a des-
hierarquização das funções, com trabalhos cada vez mais colaborativos e não mais de
diretor, importando sobremaneira o contexto dentro do qual são apresentados. A
mimesis é vista na qualidade de representação e, segundo ele, o momento da
representação não deve desaparecer. O conceito da mimesis e da representação instala
mais um problema do que provê alguma resposta, como se transformasse a
representação mesma em um problema, não só artisticamente como filosoficamente.
É uma estratégia de interrupção entre o real e o fictício. Simultaneidade,
fragmentação, colagem: a cena é reivindicada como ponto de partida e não mais o
texto, que se transforma num elemento da própria representação, ao mesmo nível da
luz, do movimento ou da música. Todos elementos da cena têm o mesmo peso, não há
hierarquia entre imagens, movimentos e palavras, textura que se assemelha à
colagem, à montagem e ao fragmento, não ao curso de acontecimentos estruturado de
modo lógico, interessa promover uma textura de percepção. Não mais um tempo
ficcional, mas o tempo real, ou mais lento, descontínuo, o próprio tempo é um tema.
Os discursos cênicos se aproximam em vários aspectos de uma estrutura onírica,
49 Considerações apresentadas no Seminário Teórico “Além do Teatro Dramático”, UDESC, Florianópolis,10/08/2010.
133
imagens de sonhos. O corpo passa a ocupar o ponto central não só como portador de
sentido, mas em sua substância física e gesticulação.
Para Féral (2008, p.201), a performance redefiniu os parâmetros da arte e do
teatro. No lugar de teatro pós-moderno e de teatro pós-dramático, entretanto, ela
propõe a noção de performatividade como aspecto central no funcionamento dessas
práticas dentro do panorama contemporâneo bastante diversificado, preferindo o
termo “performativo” para designar essas manifestações artísticas.
Para construir a noção de performatividade, Féral (2009) discute o conceito de
performance considerando duas visões: a de conceito antropológico, difundido por
Richard Schechner (1934 - ), para quem o ato performativo caracteriza-se como um
jogo ritual sob três aspectos: being (ser), doing (fazer), showing doing (mostrar o
fazer); e a do conceito oriundo das pesquisas e criações da performance art. Para ela,
no teatro performativo estamos na esfera do acontecimento, que pertence à ordem da
ocorrência (eventness), e não mais na representação. Coloca-se em cena o processo,
realçando o aspecto lúdico do acontecimento, num risco real do performer. Féral
mostra ainda que a performatividade tem a ver com os elementos de desconstrução,
de intertextualidade e de processo. Há uma desconstrução dos signos e o espectador
descobre o prazer em participar dessa experiência, passando a atentar mais para a
execução do gesto, para a criação da forma, para a presença do ator.
Em Schechner, o termo performance toma um sentido muito amplo: ao
abarcar todos os domínios da área da cultura, desde os ritos, esportes, eventos
espetaculares, etc., ele abala definitivamente as fronteiras e limites da arte, trazendo-a
para o plano da mente e da impossibilidade de categorização. Segundo Lehmann
(2007, p.393), Schechner designa como “texto da performance” a totalidade da
situação real da apresentação teatral, enfatizando nela o impulso de presença que
motiva a arte performática. Também para esse autor (2007, p.287), o que está em
primeiro plano, tanto para a performance como para o teatro pós-dramático, não é a
encarnação de um personagem, mas a presença provocante do homem: “a análise e a
reflexão acerca do tempo teatral dizem respeito a essa experiência, que Bergson
distinguiu do tempo objetivável e mensurável como ‘duração’”.
Carlson (2003) acredita que, embora o uso comum do termo performance no
teatro possa parecer associado com habilidade técnica, principalmente por seu
significado em inglês, na verdade o termo está mais relacionado à qualidade de ação
134
duplicada, repetida ou restaurada. Ideia baseada no conceito de “comportamento
restaurado” de Schechner, que refere-se ao comportamento particular dos seres
humanos em que uma pessoa finge que é alguém que não si mesmo. Sob esse título,
Schechner agrupa qualquer comportamento conscientemente separado da pessoa que
o está fazendo – tanto no teatro como em outras atuações, transes, xamanismo, rituais.
Esse conceito, portanto, aponta para uma qualidade de performance na qual não está
envolvida a demonstração de habilidades, mas sim certa distancia entre “self” (ele
mesmo) e comportamento, análogo à relação entre o ator e o papel que ele joga em
cena, a distância entre o ator e a máscara, entre o atuar e o não atuar que veremos em
seguida. Ainda que uma ação no palco seja idêntica a uma na vida real, no palco ela é
considerada “desempenhada”(performed) e fora do palco meramente “feita”(done).
Todas as pessoas têm consciência de desempenhar um ou vários papéis
socialmente, reconhecendo que suas vidas estão estruturadas de acordo com modos de
comportamento repetidos e estabelecidos socialmente. Dessa forma, toda a atividade
humana pode ser potencialmente considerada como performance, ou pelo menos as
atividades feitas conscientemente. A diferença entre fazer e desempenhar, de acordo
com esse pensamento, parece basear-se não no quadro teórico que distingue teatro de
vida real, mas no como se faz, se a pessoa está consciente ou inconsciente da ação em
si e se está sendo observado ao fazê-la. Então, ainda segundo Carlson (2003, p.4), há
dois conceitos diferentes de performance: um envolve uma exibição/exposição de
habilidades, e o outro também envolve exibição/exposição, mas de padrões de
comportamento socialmente codificados. Já quando se trata de teatro, sempre se leva
em conta que serão ações feitas para alguém, para um público que as reconhece e as
valida como tal.
Na busca por uma renovação, de uma revitalização e de um sentido de
experiência para o espectador, o teatro contemporâneo acabou incorporando, portanto,
diversos aspectos da performance, inclusive no trabalho atoral. No trabalho do ator, a
maioria das práticas do século XX – e das práticas dominantes do século XXI –
estiveram voltadas para a construção de personagens ou tipos, de um “outro”,
baseados largamente na noção de representação e de mimesis como imitação. Já na
performance, seus praticantes não baseiam seu trabalho em personagens previamente
criados por outros artistas, mas em seus próprios corpos, suas próprias autobiografias,
suas próprias experiências específicas em uma cultura ou no mundo, tornadas
135
performativas por suas consciências delas e pelo processo de exibi-las para plateias,
como esclarece Carlson (2003, p.5).
Encontro na pedagogia de Lecoq uma série de pontos comuns com essas
noções tanto de pós-dramático como de performativo, tais como o uso da colagem, o
predomínio da imagem sobre a palavra, a ênfase no jogo, o não psicológico e mesmo
o caráter de work in progress das apresentações. Ainda que não fosse encorajada em
sua Escola que essa forma seja a final, a apresentação semanal das cenas que os
alunos constroem ao longo da semana nos auto-cours a partir de determinados temas,
normalmente é algo sem finalização ou fixação, justamente com caráter experimental,
que associo ao work in progress, aberto às críticas dos professores que não
interferiram anteriormente. A maneira como se trabalha no horário designado ao auto-
cours é colaborativa, na qual todos opinam e propõem, um exercício de ceder, de
escutar, de compartilhar, de aceitar - qualidades fundamentais para qualquer atividade
em grupo. Voltaremos ao auto-cours no capítulo 5 sobre criação.
Há algo, porém, que difere bastante a pedagogia de Lecoq em relação à
performance que é o caráter de representação que mantém. A questão da
representação surge como ponto central na discussão do teatro contemporâneo. Até os
anos de 1970, o trabalho do ator era caracterizado pela representação. Quando
falamos em representação estamos falando em mimesis, a mimesis como modelo, em
uma relação em que o ator representa um modelo, e o modelo inspira a representação
do ator. Depois dos anos 70 tudo isso entra em crise: o ator será um performer que é a
qualificação mais ampla possível para substituir a de ator, porque esse atuante
contemporâneo não é mais a pessoa que faz a representação, mas pode-se dizer que é
a representação mais ele mesmo, como esclarece Mostaço (2010)50. Não é mais a
representação pura no sentido aristotélico clássico de espelho, pois tem também ele
mesmo, e isto é fundamental. Portanto, ainda se trata de um trabalho de representação,
mas não mais um trabalho de representação como mimesis. Não é a utilização ou não
de textos, de códigos ou de convenções teatrais e culturais que determinam as
possíveis diferenças entre o ator dramático e o pós-dramático, mas, como foi antes
mencionado, a maneira como trabalha as relações entre os materiais concretos,
abstratos e subjetivos.
50 Edélcio Mostaço, em reunião de orientação, Florianópolis, 3/12/2010.
136
A formação proposta por Lecoq visa à criação de personagens que, mesmo se
não forem seres humanos, são seres ficcionais com certeza. Parte da ideia de máscara,
ainda que não só facial, mas o corpo como máscara, que mantém um espaço de jogo
entre ela e o ator que a porta. Na Escola, quando inicia-se o trabalho com a máscara
neutra, é enfatizado o cuidado que se deve ter em permitir sempre um espaço entre
seu rosto e a máscara, que pode ser transposto para o espaço do jogo, o espaço entre
dois atores, o espaço que permite que algo aconteça “entre”, mas sempre tendo a
representação em uma das extremidades. Nesse sentido, pode-se estabelecer uma
analogia com o continuum atuação e a não-atuação de Kirby onde a atuação seria a
máscara e a não atuação o próprio ator.
Michael Kirby (1931-1997), colega de Schechner na Universidade de Nova
Iorque (NYU), propunha um continuum entre a atuação e a não atuação, baseado em
parâmetros como intenção, afeição, técnica, relação com a platéia e simulação sobre
as quais todas as performances podem ser descritas. Nesse continuum temos em uma
extremidade o não atuar e na outra o atuar, e entre elas identificamos gradações de
representação no comportamento da pessoa. Gradações de personificação, de
simulação, de fingimento, de representação, conforme uma maior ou menor atuação,
ou seja, mais perto de uma personagem ou mais perto de si mesmo. Quando se trata
de performance, o ator não joga um ser ficcional, mas ele mesmo em um estado de
“dar-se a ver”, no extremo da não atuação. O autor exemplifica, citando os
happenings que, segundo ele, demonstraram que nem toda performance é atuação.
Embora atuação fosse às vezes usada, os performers nos happenings geralmente
tendiam a “ser” ninguém ou nada mais do que eles mesmos; nem representavam, nem
fingiam estar em um tempo ou lugar diferentes daqueles dos espectadores. Eles
caminhavam, corriam, diziam palavras, cantavam, lavavam pratos, varriam, operavam
máquinas e aparatos cênicos, por exemplo, mas não fingiam nem personificavam.
Esses extremos, entretanto, não são posições estanques, pode-se ter um ir e vir entre
esses eles. Como explica o autor (Kirby, 1987, p.3), normalmente é relativamente
fácil identificar e reconhecer o atuar ou não atuar, sabemos quando a pessoa está
atuando e quando não, mas há uma escala ou um continuum de comportamento
envolvido, e essas diferenças podem ser pequenas. O autor sustenta que esses casos
podem ser de difícil categorização, e talvez alguns nem deem importância a isso, mas
137
que, na verdade, são precisamente esses casos incertos que podem prover insights na
teoria de atuação e na natureza da arte.
Esse continuum não implica uma escala de valores, como aponta Kirby (1987,
p.20), é uma questão de gosto pessoal que prefere um ou outro tipo de atuação. Os
vários graus de representação e personificação são “cores”, por assim dizer, no
espectro da performance humana; artistas podem usar quaisquer cores que queiram. É
interessante observar que não se trata de considerar se é real ou ficção, se o ator e o
público creem ou não no que é mostrado, se é uma atuação simples ou complexa, se é
o ator ou a personagem, pois ele pondera que o ator é sempre visto em cena, mesmo
jogando uma personagem. Trata-se de graus de atuação, que pendem mais para um
extremo ou outro, e que possuem em si um continuum que se aplica para cada aspecto
individual da atuação, que vai do mais simples ao mais complexo, do mais real ao
mais fictício e assim por diante.51
Na visão de Lecoq, entretanto, os atores não devem falar deles mesmos,
abordagem que se opõe à aproximação com as noções de teatro contemporâneo,
performativo, pós-dramático que propõe a aproximação entre a personagem e o ator,
enfatizando o próprio jogar a si mesmo em cena, usando sua autobiografia como
texto, em que deixa o espectador em dúvida se aquilo que diz e a maneira como age
faz parte da vida real daquele indivíduo ou se é ficção. Para Lecoq, se a personagem e
o ator se tornam um só, o jogo se anula. Aqui reencontramos a ideia sobre o espaço
necessário entre o ator e a máscara para que haja jogo, se a máscara cola no rosto do
ator ele já não tem espaço para jogar. Da mesma maneira, ele não deve colar nos
colegas, mas jogar com eles, formar corpos com eles, mas sempre com algum espaço
para que o jogo possa acontecer. “Se essa osmose pode servir para os grande planos
do cinema psicológico, o jogo teatral deve transpor a imagem até o espectador.”
(LECOQ, 1999, p.71)
Ainda assim, considero que sua prática corporal pode contribuir para a
formação desse performer, no sentido de organização técnica corporal, mesmo se os
desejos de criação sejam outros. Quando os atores criam as personagens, inicialmente
51 Penso também num continuum cujos extremos seriam a ética e a estética, onde o performer estaria mais ligado à ética e o ator à estética. Parece que para o performer a ética é a motivação principal de seu trabalho, o compromisso social e político, ainda que dentro de um enquadramento estético. Um não invalida o outro, é claro que o ator também pode ter uma motivação sócio-política, mas não obrigatoriamente. É uma proposta de discussão que ainda gostaria de aprofundar.
138
não há o mesmo distanciamento que um texto já escrito por uma autor proporcionaria.
Eles iniciam com uma inspiração de alguém que querem mostrar, de um tema que
querem abordar, de algumas linhas como ideia para essa personagem. Associam com
um ou mais animais, definem alguns traços básicos do caráter dessa pessoa. A partir
daí são colocados em situações para que possam reagir a partir dessas pessoas,
buscando suas nuances, seus modos de agir e de se posicionar de acordo com uma
lógica própria que vão criando.
Como aponta Bonfitto (2008, p. 98), o ator vai transitar em zonas de
ambiguidade, sobreposição entre linguagens e estilos como a performance, teatro,
dança, execução de tarefas. O ator não deve mais necessariamente contar um história,
nem se limita a reproduzir códigos e convenções teatrais, ele ultrapassa a ilustração de
situações e circunstâncias para colocar em evidência, por exemplo, a corporeidade e
suas qualidades expressivas.
Tais conceitos que separam ator e performer parecem muito estanques,
quando na prática parece haver uma mescla de ambos ou tendências mais para um
tipo do que outro. Embora essa definição me pareça defasada por não considerar o
ator que cria seu próprio teatro e que pode não ter texto, segundo Pavis (1999, p.31) o
ator é o vínculo vivo entre o texto e o autor, alguém que simula uma ação, fazendo-se
passar por seu protagonista pertencente a um universo fictício, embora ao mesmo
tempo em que realiza ações cênicas, ele continua a ser ele próprio, vive a duplicidade
de viver e de mostrar, de ser ele mesmo e ser outro, “um ser de papel e um ser de
carne e osso, tal é a marca fascinante de seu trabalho”. O performer é definido por
esse autor como “aquele que fala e age em seu próprio nome enquanto artista e
pessoa, e como tal dirige-se ao público, ao passo que o ator representa sua
personagem e finge não saber que é apenas um ator de teatro. De forma redutiva,
portanto, Pavis (1999, p.285) define o performer como aquele que realiza uma
encenação de seu próprio eu, enquanto o ator faz o papel de outro”.
Já em um sentido mais amplo, Schechner (1994, p.166) afirma que o ator é
aquele que quer “entrar” na personagem, “perder-se dentro” do papel, no qual a
personagem é tomada como uma pessoa e o trabalho do ator é o de tornar-se aquela
pessoa. Os ensaios concentram-se em técnicas que ajudam o ator a fazê-lo, usando
dispositivos como lembranças emocionais para ajudá-lo a encontrar seu próprio
passado análogo às experiências da personagem que ele está “retratando”, de forma
139
que ele possa sentir o que a personagem deve ter sentido. No chamado teatro
ambiental52, o diretor eliminou a hipótese de que “há duas pessoas”. Em vez disso, há
o papel e a pessoa do performer, e tanto um quanto o outro são percebidos
visivelmente pelo espectador: “os sentimentos são os do performer estimulados pelas
ações do papel no momento da performance”. Segundo esse autor, o ator some dentro
do papel, enquanto o performer encontra-se em uma relação perceptível com o papel,
e o que o público experiência não seria nem o performer nem o papel, mas a relação
entre os dois. Uma relação imediata que existe somente no aqui e agora da
performance, em que o performer não tenta mascarar suas dificuldades, sua maneira
de lidar com o papel é do maior interesse na performance.
Diferentemente do ator, o performer não tem uma máscara para escudá-lo, não
joga com personagens, mas sim com seu eu “aumentado”. Ele não tem a preocupação
de construir um outro, de pesquisar como é esse outro, seja um tipo, uma personagem
ou qualquer ser ficcional. Como esclarece Bonfitto (2010), “no trabalho do performer,
o processo é completamente diferente daquele do ator, pois a idéia não é buscar um
outro, mas buscar uma expansão do eu, e como se dá essa expansão, em que medida
isso se dá, em que sentido ela se dá, e quais são as práticas envolvidas nisso.”53
Portanto, ele parece se vestir de uma presença que age, propondo assim algo a ser
decodificado, experienciado. Nesse sentido, a definição que parece melhor estabelecer
essas relações foi aquela proposta por Kirby (1983), na qual os performers são eles
mesmos, não estão retratando personagens, estão no teatro, não em algum lugar
imaginário ou representado. O que dizem é certamente verdade, pode-se outorgar que
os performers realmente acreditam no que dizem, que eles realmente sentem que
essas leis são injustas, e ainda assim eles estão atuando.
Na qualidade de atriz pesquisadora, lancei-me em uma experiência prática
para melhor entender como seria essa atuação de si mesmo ou não atuação. A
disciplina teórico-prática oferecida pelo curso de pós-graduação da UDESC
ministrada pelo professor Bonfitto54 iniciou com a pergunta sobre o que cada aluno ali
presente gostaria de fazer enquanto artista naquele momento, ou ainda, qual era o seu
desejo artístico. O meu era o de realizar um solo que trabalhasse com essas questões 52 No original, Environmental theater. 53 Entrevista concedida durante a disciplina na UDESC, Florianópolis, maio 2010.
54 Disciplina do PPGT Investigação Cênica II: Seres Ficcionais: treinamento, composição e dramaturgia(s) com Prof. Dr. Matteo Bonfitto. Florianópolis, 2010.
140
da performance, do atuar e não atuar e do autobiográfico, de experimentar algo que
friccionasse minha prática, normalmente mais voltada para a construção de seres
ficcionais a partir do corpo, herdada da experiência lecoquiana.
Constituímos um grupo juntamente com colegas que possuíam desejos afins.
A primeira proposta sugerida por um deles foi a de escolhermos um trecho do livro de
Nijinski (1998), que um deles trouxera e, a partir dele,deveríamos inserir uma parte
pessoal. Li um parágrafo e imediatamente me veio a lembrança de uma vivência forte
que tive. E o que fazer com aquilo? Optei em me abrir para a experiência e ver onde
iria dar, pois queria algo novo, que envolvesse um risco, que me desacomodasse. Mas
como construir uma cena com esse texto, com esse tema, essa vivência pessoal? Usei
as estratégias sugeridas na primeira parte da disciplina, de trazer materiais e explorar
relações com eles. Trouxe alguns objetos, algumas músicas e um figurino. Vesti uma
camisola de voile rosa com chambre acompanhando e chinelos vermelhos trazidos
pela colega. Esse figurino direcionou o trabalho para uma atuação realista. Dei
segmento ao que estava surgindo, adicionei uma mesinha de vidro que estava na sala,
um aparelho de som que eu manipulava, e me sentia num recinto hospitalar, que era o
local onde ocorria o fato que eu descrevia. Tudo tornou-se muito óbvio, fiquei
encurralada em um tipo de atuação realista e melodramática pelo teor do texto,
embora ainda procurasse manter a maneira como dizia o texto o mais ‘eu mesma’
possível, o mais “não atuação” possível, buscando não criar uma personagem,
diferente do tipo de teatro que costumo fazer. Parecia-me que o figurino havia
“colado” em mim, como se eu recriasse uma mãe que relatava um acontecimento,
coisa que era explicitada no texto, que o figurino tornou a personagem piegas e falso.
Meu hábito de criação a partir do figurino e do corpo só atrapalhavam naquela
situação, tornaram-se uma armadilha.
O professor veio assistir e me sugeriu uma mudança radical no figurino e na
figura que eu estava jogando: invés de uma mulher de chambre, sugeriu uma mulher
elegante, bem arrumada, uma locutora de radio novela da Broadway. A locutora de
rádio me possibilitou um distanciamento entre eu, Cláudia, que tinha passado por
aquela experiência e eu, Cláudia, que estava contando aquela história ali. Até aí, nada
de diferente do que um atuar com personagem, mas o que era diferente é que eu
estava contando algo muito pessoal que eu não contaria para um público
desconhecido. Experimentei a proposta e me senti melhor, mais livre para improvisar,
141
agora com essa figura/tipo para me escudar, pois a outra figura estava muito “colada”
em mim.
O fato de falar sobre minha experiência pessoal em público teve um efeito
curativo para mim, quase terapêutico, um encontro de arte e vida, mas a pergunta
permaneceu: como é essa atuação de si mesmo ou não atuação? Minha vontade de
experimentar um relato autorreferencial se concretizou, mas precisei da máscara da
locutora para fazê-lo. Se isso importa para o público, se era verdade ou não, quais
partes eram verdadeiras e quais não, no teatro performativo não vem ao caso, uma vez
que o limite cambiante entre o real e o fictício é justamente uma das suas
características. Do ponto de vista da atuação, havia uma máscara, tratando-se, porém,
de uma atuação situada mais ao centro do tal continuum, como uma máscara mais
diluída, mais próxima de mim mesma.
Sempre estive mais ligada ao tipo de atuação que Kirby consideraria
complexa, com criação de personagem e mergulho total nele. No experimento
relatado, entretanto, sinto que, pela primeira vez, consegui me afastar um pouco desse
extremo, deixando aparecer um pouco mais de mim mesma, principalmente através
do texto, uma pequena diminuição na “quantidade” de atuação. Ainda assim, há uma
personificação de uma figura que me permite jogar com mais liberdade. Lecoq
costumava falar sobre a propriedade da máscara de propiciar uma maior liberdade de
jogo ao ator, uma vez que sente sua personalidade protegida e se permite atitudes e
ações que em outros contextos teria vergonha de fazer. Essa máscara me remete
àquilo que Kirby chama de “enquadramento” (framing), a que Féral (2008, p.197)
também se refere, na qual, dependendo da situação em que a ação acontece – seja no
palco, nas ruas da cidade, ou através de um vídeo no teatro, por exemplo – haverá
uma leitura sobre o grau de teatralidade envolvido, e a consequente quantidade de
atuação em jogo.
Mas como fica a formação do ator no teatro contemporâneo? Como ele se
desloca de seu eu cotidiano para esse eu expandido sem construção de uma
personagem obrigatoriamente? Em que técnicas, princípios, linhas mestras se baseia?
Certamente, a escolha de linguagem com que cada indivíduo vai querer trabalhar deve
encaminhá-lo para determinada estética e poética, e provavelmente será a partir dela
que vai surgir a necessidade de um tipo de preparação específico. A questão do ator
contemporâneo e as variações propostas por Kirby quanto ao grau de representação
142
utilizado pertence a essa discussão sobre a imaginação em Lecoq, na medida em que
estamos tratando de uma prática que foi criada baseada completamente na
representação, mas que sigo utilizando nos dias de hoje, e portanto deve ser
questionada a maneira como ela seria vista a partir desses estudos. A representação
está diretamente relacionada à imaginação, características ontológicas dos
mecanismos de nossa psique. Portanto, não podemos passar à margem dessa
discussão de mais ou menos representação, uma vez que o ator com quem trabalho
está sujeito a essa controvérsia, e considero importante acompanhar o movimento das
manifestações atuais, contaminadas pela performance, sem acreditar que são tipos de
teatro que não dialogam entre si. Enquanto estivermos conscientes do lugar onde
queremos nos posicionar nele, poderá existir diálogo entre todas essas possibilidades
de representação dentro do continuum de Kirby.
Renomada performer na contemporaneidade, Marina Abramovic (1946-)
utiliza uma série de exercícios como método de trabalho. Como aponta Richards
(2010, p.114), a artista acredita que “é somente através de uma extensa preparação da
mente e do corpo que podemos estar verdadeiramente receptivos e disponíveis às
correntes de energia necessárias para o processo criativo”. Para ela, a primeira coisa a
fazer é “limpar a casa”, e para tanto ela propõe técnicas direcionadas ao
condicionamento físico, à consciência sensorial e receptividade, à memória e ao “re-
lembrar”. “Limpar a casa” me parece semelhante à “página em branco” enquanto
princípio, porém com maneiras diferentes de fazê-lo, são as técnicas que mais lhe
parecerem eficazes que cada um vai escolher.
Parece possível, portanto, estabelecer pontos de contato entre todas essas
abordagens de trabalho de ator. Acredito na capacidade dialógica entre eles, não
deixando de considerar as especificidades de cada um. Continuam existindo certas
competências que se espera de todo ator e que podem igualmente servir como
parâmetros para o performer. Dependendo da necessidade, poderão ser usadas desde
as técnicas desenvolvidas ao longo do século passado, como as de Stanislavski,
Grotowski, Barba, Copeau, Decroux, Lecoq, Peter Brook, até abordagens mais atuais
como os Viewpoints55, vivências e meditações como propostas por Abramovic, ou
ainda uma compliação tomando aspectos de umas e de outras.
55 Técnica desenvolvida por Ann Bogart, os Viewpoints são usados tanto para dança como para o teatro, usando diferentes deslocamentos, dinâmicas e organização no espaço.
143
5 IMPROVISAÇÃO
O treinamento ou preparação corporal para o teatro enfocado aqui é, portanto,
herdeiro ou continuador daquele teatro físico, teatro total, teatro de imagens, seja qual
for a denominação preferida. A prioridade é o movimento e, sendo assim, é
praticamente impossível pensar em trabalho do ator sem aquecimento e improvisação
com o corpo: são bases dadas. Nesse contexto, parece evidente a compreensão de que
a imaginação é um músculo, e é por esse caminho que daremos continuidade à nossa
discussão. A imaginação é trabalhada pela improvisação que implica diretamente em
movimento corporal.
Nesse capítulo inicio com a prática que envolve os elementos – água, ar, fogo
e terra –, que constituem as matérias e que serão a base para a pintura. Todos temas
desenvolvidos no primeiro ano da Escola e que mantenho em minha prática pelo seu
caráter objetivo de trabalhar o corpo de maneira a despertar outras possibilidades de
expressão pelo movimento e de levar à compreensão da noção de Fundo Poético
Comum, expandindo a capacidade imaginativa do ator.
A evolução da pedagogia da Escola dá-se através de temas que são
trabalhados de maneira acumulativa nas diferentes aulas, baseados nos mesmos
princípios. A cada novo tema introduzido, os alunos devem partir para a observação
em diferentes locais onde possam entrar em contato com ele. De volta à sala de aula,
trazem sua experiência e, aliadas às técnicas corporais desenvolvidas nas aulas de
análise do movimento, procuram aplicar ao jogo dramático aquela dinâmica, o pulsar
daquele tema através de seus corpos.
Lecoq não menciona essa relação direta entre aquilo que fazemos nas aulas,
chamadas genericamente de improvisação, e o termo rejogo especificamente. Porém,
baseada em suas declarações a respeito do uso desses termos a partir do entendimento
de Jousse, e do que pude averiguar nos escritos do antropólogo, entendo que há uma
relação direta entre as aulas de improvisação que fazemos inicialmente sendo o rejogo
e depois, a improvisação orientada com situações, o jogo. O mecanismo do rejogo,
como mencionado no item 1.3.2, trata-se de reproduzir os eventos, as manifestações e
as formas que foram observados tal como são, sempre em função de suas dinâmicas.
144
Nesses exercícios de passar pelos diversos elementos, por exemplo, o que se faz é,
portanto, o rejogo, como aquele de fazer a água com o corpo tal qual a percebemos
pela nossa observação que imprime imagens e memória de movimentos. Em seus
escritos, o mestre menciona também o mecanismo de mimodinâmica, que refere-se a
esse mesmo procedimento de traduzir as sensações externas em movimentos
corporais, embora nenhum desses termos sejam utilizados nas aulas práticas. Esses
termos técnicos não são utilizados para explicar os exercícios, nem quando fui sua
aluna na Escola nem atualmente com seus continuadores, aparecendo apenas em suas
entrevistas registradas no livro O Corpo Poético e no vídeo Les Deux Voyages de
Jacques Lecoq, e alguns outros poucos registros escritos. Não usar termos técnicos
em aula está em consonância com sua crença de não tomar a prática como local de
estudo teórico, priorizando o aprendizado do corpo pelo corpo.
Baseado na concepção de Jousse, portanto, Lecoq encaminha o processo a
partir da absorção do mundo exterior para, em seguida, ser expresso com
características próprias de sua maneira de ser, o que constitui o “jogo”. O ator lhe
imprimirá um ritmo, uma medida, uma duração, um espaço, uma forma à partir desses
movimentos meramente repetidos de sua observação para então jogar nos exercícios
de improvisação e criação. Num segundo momento é proposto um tema para se
improvisar, criar, estabelecendo uma situação onde os elementos se confrontarão, por
exemplo.
No jogo são desenvolvidas propostas definidas, situações, oportunidades para
criar relações, enfim, é quando acontece o fazer teatral. Quando trabalhamos em
grupos com os elementos, as matérias, etc., estamos experimentando movermo-nos tal
como, é o rejogo que estamos fazendo, reproduzindo aquilo que vimos,
preferencialmente, ou que lembramos, ou ainda, uma mistura de ambas as coisas.
Esse é o momento de ir povoando a imaginação com possibilidades outras daquelas
que normalmente usaríamos para construir uma personagem, mormente baseadas nas
técnicas de Stanislavski em sua primeira fase, tal seja, características do caráter
baseado em aspectos psicológicos.
Por mais abstrato que seja o tema, por menos realista que seja a encenação,
para Lecoq o jogo deve estar sempre ancorado na vida real e, portanto, tomar esses
aspectos da natureza e suas dinâmicas como base para sua construção artística.
145
5.1 ELEMENTOS
“Escolha um lugar na sala. Pare. Em pé, feche os olhos e cruze as duas mãos
sobre o peito – observe seu equilíbrio, o contato dos pés no solo, os ruídos ao redor, a
sua respiração. Você é uma garrafa no mar. Em alto mar – mar calmo, imenso.
Perceba esse pequeno movimento do alto mar. Aos poucos começam a surgir ondas –
enormes, mas que não estouram. A tendência de qualquer coisa no mar é aproximar-
se da praia, portanto, a garrafa vai seguir esse percurso. Aos poucos vá soltando os
braços e você vai se tornando a água do mar – agora já com ondas maiores que
começam a se armar para estourarem. Ondas estouram na beira da praia e recuam –
como é essa dinâmica? Até onde elas se estendem antes de recuarem? Onde ralentam,
onde aumentam a velocidade? Essas ondas vão escoar num rio (mesmo se na natureza
o caminho é o contrário, do rio em direção ao mar.). O quê modifica? Como se
desloca essa água agora, ela muda de textura também? Do rio, você desemboca numa
lagoa, ampla, calma. Como é a dinâmica dessa água agora? Depois chega num lago
menor, com águas quase paradas. No solo, sinta o lodo do fundo do lago. Ele vai
penetrando seu corpo, vai adensando. Pés, pernas, quadril, tronco, braços, cabeça, vão
tornando-se cada vez mais espessos. Como mover-se nessas circunstâncias?
Experimente sair do lugar, por onde se inicia o movimento? O lodo tem terra e água,
argiloso. A água começa a evaporar, restando somente a terra. Você vai secando, e
como isso afeta seu movimento? Com a dificuldade de mover-se vão surgindo raízes,
deixe-se enraizar, deixe-se tornar uma grande árvore. Que árvore você seria? Que
tamanho são suas raízes? O tamanho das raízes define o tamanho da copa, perceba seu
tamanho, todo o corpo se alonga em direção ao centro da Terra e ao céu – enormes,
firmes, desenhadas no espaço. Uma brisa começa a bater na ponta de seus galhos –
leve, delicada, sutil. A brisa vai aumentando de intensidade, torna-se vento, ventania,
muito forte, até arrancar uma folha da árvore! Você é essa folha que é levada pelo
vento. As rajadas fazem com que ela caia, levante, gire, e você vai se tornando o
próprio vento. O vento passa por uma fogueira e começa a incitar aquele fogo – aos
poucos você se torna o fogo. Grandes labaredas, em todas as direções, umas maiores
outras menores, de diversos tamanhos, direções, intensidades, cores. O fogo vai
diminuindo, até ficar somente algumas pequenas chamas na lenha, brasa, carvão, pó.
Bate um vento e dissipa o pó”.
146
Essa é a descrição de uma maneira como conduzo o exercício para abordar o
tema dos elementos. Muitos já trabalharam com os elementos da natureza como
subsídios para a expressão corporal, porém, como atestam diferentes relatos de
alunos, essa abordagem, baseada nas premissas de Lecoq, é profunda e abre portas
para muitas outras imagens e possibilidades.
Gostei muito do trabalho. Tem algumas coisas que eu já tinha trabalhado algumas vezes, que é a questão das densidades, que á algo que eu trabalho enquanto diretor, eu aplico com quem eu trabalho no Cabaré. É um exercício super recorrente: a gente usa a água e a lama, principalmente. E aqui foi mais profundo do que a gente costuma fazer, você veio com umas imagens que certamente pretendo usar, como a água do mar, depois vai para a cachoeira, depois vai para o lodo, depois evapora, sei lá, dá para ‘pirar’ muito mais nisso, porque já percebi que isso dá uma qualidade de presença muito diferente. Quando tu chegas com uma densidade, com uma consistência, nossa, você cresce, amplia, achei ótimo. (SPILHERE, 2012)56
Busca-se encontrar maneiras como representar a natureza com o seu corpo.
Observar as linhas e os ritmos com que se deslocam e aquilo que esses eventos
provocam no espaço. Enquanto desenho, surge uma composição de imagens,
contínuas ou não, capazes de serem delineadas como num filme quadro a quadro,
dada a capacidade de repetir movimentos com precisão, o cuidado com o gesto
trazido provavelmente da arte da mímica. Costumo alertar os alunos-atores para
trabalharem com os olhos abertos, pois não se trata de terapia, mas de exercícios
técnicos que demandam atenção e consciência para com seu próprio corpo e dos
colegas ao redor. Perceber também o efeito desses movimentos enquanto grupo.
Um exemplo das diferentes linhas que se pode observar é quando olhamos as
águas das cachoeiras em relação às águas do mar e da lagoa. As águas do mar são
organizadas em ondas no sentido mais horizontal, irregulares, com movimentos de
elevação, de suspensão, de descida com maior velocidade, de impulsos de energia
com intervalos constantes que ativam o desenvolvimento do planeta desde sempre. Já
as cachoeiras são verticais, contínuas em sua dinâmica, rápidas, linhas quase retas,
ininterruptas. Nas lagoas, a água parece praticamente parada, com pequenos
movimentos na superfície incitados pelo vento. Todas têm um fundo comum, todas
são água, possuem um ‘fundo’ comum, mas nem por isso são iguais. Essa é a
56 Marlon Spilhere, Ator, performer, aluno na oficina de Blumenau-FITUB, 2012. Entrevista concedida nessa ocasião.
147
dilatação de possibilidades que a prática de Lecoq traz para o fazer artístico. Trata-se
de povoar a imaginação a partir de exemplos concretos, a partir da natureza.
Acho que vai ficando mais claro assim, conforme a gente vai entendo melhor, vai entrando… Essa coisa de observar o mínimo que acontece na natureza, eu não sei bem o que acontece, mas tu começas a parar para olhar e ver “aquela árvore quando bate o vento nas folhas ela mal e mal se mexe”, “mas a palmeira faz assim” (mostra com o braço o movimento). Tu vais notando essas diferenças. A água num copo (pega o copo e olha). Tu começas a criar um olhar sobre isso e isso é muito legal. E passar isso para o corpo eu acho difícil, mas é um processo, tu tens que absorver aquilo que tu enxergas, diferentes de absorver o que tu tateias, acho mais difícil absorver aquilo que tu vês e trazer para o corpo.” (HÖELER, 2012)57
Fig.13: Monges meditando nas cachoeiras.
Fonte: Arquivo pessoal
Quando observamos algo, os olhos percorrem a composição visual de
diferentes maneiras. Nesse trabalho de observação da natureza, procura-se observar e
desenvolver essas maneiras. Tomemos a foto acima, por exemplo. Qual o trajeto que
seus olhos fazem para “ler” essa foto? Quais as linhas que você vê primeiro? Quais as
manchas de cores? Como características como linhas, cores, luz, textura compõe a
imagem? Quais as relações entre elas? As tensões que causam no espaço ao se
entrecruzarem? Além das linhas verticais desenhadas pela água e as horizontais pelas
57 Mariana Höeler, atriz da Cia Oigalê, em entrevista em 10/11/2012.
148
rochas, os quatro monges – traços vermelhos que riscam a tela – nos ajudam a
perceber o impacto que causam os corpos no espaço, no desenho, na tela, na imagem
– uma imagem em movimento, uma imagem dinâmica, uma composição visual. Tudo
isso pode ser expresso pelo corpo, ou pelo menos servir como estímulo para tal.
Trata-se de alimentar a imaginação com essa percepção visual do entorno, da
observação cuidadosa das coisas, das matérias de que são feitas e como se
movimentam em função disso.
Esse tipo de análise da imagem e do movimento se pode aprender na Escola,
principalmente durante o seu primeiro ano, que é dedicado a propiciar a
disponibilidade física, mental e sensorial do aluno, pelo reconhecimento da vida a
partir da observação do cotidiano. Pode-se aprender, depende de cada pessoa, de cada
artista. Segundo o mestre, no primeiro ano não se fala de teatro, mas daquilo que vive
(LECOQ, 1972 apud DE MARINIS, 1980, p.207). Essa percepção é incentivada
constantemente em todos os exercícios, de forma objetiva através do corpo. Essa
compreensão de dinâmica e de composição é justamente o que se quer ter despertada
para o momento do jogo, da brincadeira, da criação. A capacidade de estabelecer
relações com os outros em cena, de estar ao mesmo tempo em jogo e atento à imagem
que está sendo criada de maneira constante. Ter consciência da maneira como se dá o
movimento em cena, das imagens que são criadas, sejam de pessoas, animais, ou
outros seres – sempre a partir do corpo, ‘fazer com o corpo’58.
Na Escola, Lecoq conduz o que chama de “Viagem Elemental” com a máscara
neutra. Nela sucede uma grande travessia orientada da seguinte maneira: inicia ao sair
do mar, avista-se ao longe uma floresta, cruza-se a areia da praia, entra-se na floresta,
busca-se uma saída, depara-se com uma montanha. Escala-se a montanha e no topo
descortina-se uma vasta paisagem: um rio, mais adiante uma planície e, por fim, o
deserto. Desce-se a montanha e cruza-se esses lugares até chegar a tempo para assistir
o pôr-do-sol no deserto (LECOQ, 1999, p.52). Independentemente do trabalho com a
máscara neutra, o que importa é o despertar para os elementos básicos da natureza e
para as diferentes dinâmicas que eles possuem e que são passíveis de serem
transpostas para o corpo. Esse exercício é semelhante àquele que propunha Dullin
58 No original, em francês, “faire corps avec”.
149
denominado ‘descoberta do mundo’, também com máscara, descrito em suas
anotações, como aponta Lorelle (2007, p.35).
Quando perguntado se o que fazia era mímica, Lecoq explicava que “a mímica
que se pode aprender na Escola está na base de toda a expressão do homem, seja
gestual, plástica, sonora, escrita ou falada – a mímica que chamo “de fundo” é a
maior escola de teatro, aquela baseada no movimento” (LECOQ, 1972 apud DE
MARINIS, 1980, p.202). O mestre explica que a Escola encontra sua base no gesto
sob o gesto, no gesto sob a palavra, no movimento dos materiais, dos sons, das cores,
das luzes. É a faculdade que o homem possui de “mimar”, como na concepção de
Jousse, que é identificar-se com o mundo re-executando-o, tomando consciência de
tudo que se move. Voltamos aqui à acepção que trata da dinâmica interna, da mímica
interna, da mimesis interna, do mimismo, ou ainda, a imitação do sentido interno, tal
como expõe Jousse. Por outro lado, é possível compreender pelo ponto de vista de
Bachelard, pela identificação com a matéria que acontece ali.
No estágio de verão, trabalhamos a dinâmica do mar da seguinte maneira: no
salão maior da Escola, um grupo avança ao longo de sua maior extensão, como ondas
do mar. Todo o grupo é uma grande onda, com sua irregularidade, com seu ritmo que
cresce, estoura e vai se espalhando mais e mais lento, até chegar ao seu limite e
começa a retroceder, recuando lentamente e pouco a pouco vai se acumulando para
tornar-se uma grande superfície puxada para a vertical, até que vai se tornar outra
onda que explodirá. Num outro momento, experimentamos fazer a mesma coisa num
espaço bem menor, transpondo aquele deslocamento para o corpo. Como produzir
essa mesma impressão de deslocamento e de variações de ritmos, sem todo aquele
deslocamento?
Realizamos, nessa mesma ocasião, um trabalho sobre as formas, ou seja, sobre
a dinâmica que se pode identificar nelas. Trabalhamos com bastões, de maneira
semelhante ao exercício demonstrado no vídeo de Lecoq (Roy e Carasso,1999).
Iniciamos caminhando pela sala com os joelhos flexionados e os pés deslizando no
chão fluidamente como o deslocamento do teatro Nô. Carregamos um bastão
horizontalmente, com os braços estendidos ao longo do corpo, numa só mão, sem
pressioná-lo. Vamos passando uns pelos outros, pegando bastões e deixando que
peguem também. Não podem haver sobressaltos, é tudo bem suave, mas direto,
objetivo, econômico. Os bastões deslizam em linhas horizontais, seguem uma
150
tendência de moverem-se na direção que apontam, são eles que estão em evidência.
Num segundo momento, em pares, seguramos um único bastão apenas com o dedo
indicador, pressionando-o contra o dedo do colega. Experimentamos as possibilidades
de movimento dessa linha, observando sua relação com nossos corpos e com o
espaço. Pegamos, então, um bastão cada um e os colocamos paralelamente com o
bastão do colega, fazendo uma superfície imaginária, como uma ilusão de ótica.
Experimentamos como se pode mover essa superfície juntos, sem perdê-la, sem
quebrar a ilusão. Em seguida, em grupos de três pessoas, um bastão cada, procuramos
fazer outras formas se moverem. Cada um segura a ponta de dois bastões com uma
mão só na aresta da figura, formando um triângulo com três jogadores, ou um
quadrado com quatro jogadores, ou ainda, como experimentei com uma colega,
intercalando a segunda mão de uma pessoa para outra. Como se move essa forma? A
dica é de seguir a direção das linhas e dos planos. E se adicionarmos uma cor a essa
forma, como isso afeta sua dinâmica? Como se move um quadrado amarelo? É
diferente de um vermelho?
O fato da professora sugerir adicionar uma cor ao triângulo com o qual
trabalhávamos, parece que o deixava mais leve ou mais pesado, conforme ela sugeria
o amarelo e depois o preto. Poder de sugestão? Sim, certamente, pois os bastões eram
os mesmos, num claro exemplo dos mecanismos de associação da mente, que aqui são
diretamente transpostos para a maneira como vou segurar esses bastões, para a
mudança na movimentação dessa forma, para a relação com eles. Além da
experimentação física, esses exercícios agem, portanto, como um despertar para a
observação das formas que se pode ver em torno de nós, para serem transpostas para a
noção de composição para a cena. O fato de ter realizado o exercício com essa colega
que é alemã, musicista, que trabalha com performance, estudou em Nova Iorque,
cursou uma escola Waldorf59 do fundamental ao ensino médio na Alemanha, fez toda
a diferença, visto que é alguém que já possui uma trajetória de trabalho artístico e
corporal, com uma consciência de ritmo, espaço e deslocamento.
As diferentes experiências provindas de diferentes culturas fazem diferença na
Escola de Lecoq. É algo que ele sempre valorizou muito, a troca entre as culturas e a
tentativa de estabelecer bases comuns para todas elas. Nesse sentido também a busca
59 Escola Waldorf, cuja pedagogia é embasada na antroposofia de Rudolf Steiner.
151
da noção de permanência e de fundo comum parecem ecoar seu desejo de atingir o
cerne do teatro com a mímica de fundo, ou seja, a mimesis de que todas as artes são
instrumentos. O instrumento, no nosso caso, é o corpo do ator. Corpo e mente
indissociáveis, premissa básica. Portanto, a pessoa do ator/atriz como agente da
mimesis, cuja techné é a de Lecoq enquanto treinamento físico e enquanto inspiração
ou fonte da natureza como fundo infinito e interconectado de possibilidades concretas
capazes de serem desdobradas em analogias as mais abstratas que a imaginação possa
proporcionar.
A Escola recebia alunos com alguma experiência prévia, não eram
completamente iniciantes, fosse qual fosse seu ramo artístico. Principalmente no
estágio de verão, onde parece que o público é ainda mais eclético. Somente no ano em
que lá estive, 2011, havia colegas da Itália, da China, da Alemanha, do Canadá, da
Turquia, do Brasil, da Espanha, dos Estados Unidos, da Austrália, que eu possa
recordar. Da França havia uma cantora lírica e professora do Conservatório Nacional
de Canto, uma baterista de uma banda de rock, uma estudante de sociologia
interessada em performances políticas de resistência, uma atriz. Essa mistura de
culturas parte em busca dessa compreensão do que é comum entre todas elas,
propondo elementos da natureza como algo que deve ser reconhecido por todas, assim
como a base mesma da arte, a mimesis que está por baixo de toda manifestação
artística.
Fig.14 – Alunos na oficina “Imaginação e criação pelo movimento” – Blumenau-SC, 2012.
Fonte: Arquivo pessoal
152
Observando os corpos dos alunos60 nas fotos acima, podemos reparar nas
possibilidades de movimentos que surgem, mesmo tendo como foco a maneira como
as formas podem se deslocar em função de suas linhas. As linhas puxam ou
empurram-nas pelo espaço possibilitando diferentes imagens. Da mesma maneira
pode-se perceber desenhos diferentes dependendo de onde o corpo do ator se coloca
em relação às linhas.
Além de trabalhar precisão, atenção, foco, percepção espacial, esses exercícios
com os bastões servem também para perceber momentos de transição. Passar do
equilíbrio para o desequilíbrio é o que leva algo a se mover. Até mesmo para
caminhar é necessário desequilibrar, portanto, qualquer movimento, por mais simples
que seja, deve passar por esse estágio. Busca-se que o ator organize seu movimento e
esteja sempre consciente ao passar de um momento da cena para outro, que confie no
desequilíbrio, pois ele é necessário para que o jogo tenha seguimento. Dependendo do
foco almejado há diferentes capacidades que se pode experimentar nesses exercícios,
tais como o jogo do ator com o objeto – fazer do objeto sujeito, colocá-lo em
evidência –, do ator em relação à forma, da forma em relação ao espaço, da maneira
como se segura o bastão, do ritmo do deslocamento, da combinação de mais de uma
forma. Esse exercício com os bastões mostra-se útil também para o trabalho realizado
com a pintura, analisada no item 5.3. No caso dessa combinação de formas, por
exemplo, nos remete a quadros de Kandinski com aquela espécie de jogo de formas
geométricas de uma de suas fases. Fig. 15 – Kandinski - Composition VIII, 1923.
Fonte: http://www.wassilykandinsky.net/ Acesso em 15/01/13
60 Alunos durante a oficina em Blumenau, 2012.
153
No estágio de verão, em Paris, experimentamos também as águas do mar
enquanto linhas no espaço, trabalhadas da mesma maneira com os bastões. Um grupo
de cinco ou seis pessoas ao fundo da sala, com os bastões segurados na posição
horizontal na altura do peito, avançam pelo espaço buscando reproduzir a dinâmica do
mar, com a irregularidade das ondas, através das linhas que os bastões desenham.
Umas mais para cima, outras abaixo, valorizar o objeto e o grupo para alcançar o
“corpo” do mar. Tudo se trata de transpor, de traduzir para o corpo! São expressões
bem enfatizadas lá.
Fizemos essa improvisação de grupo com os bastões, criamos a dinâmica do mar... a coisa toda é sobre encontrar o ritmo, a dinâmica, como podemos jogar juntos e criar essa dinâmica. É sobre escutar uns aos outros, sentir o “pulsar”. Isto é o mar? É o ritmo do mar? E depois transpor esse ritmo para um tema e aparecem coisas que você nunca iria imaginar e seu trabalho transforma-se em algo maior do que aquilo de “ok, você se move para cá, depois vai para lá”. É outra coisa! Na verdade está tocando no invisível, tocando algo mais profundo. (MACPHERSON, 2011)61
Fig.16 Ondas do mar (acima); Preparação corporal Cia Oigalê (Sequência de 3 fotos).
Fonte: Arquivo pessoal
61 Colleen Macpherson , atriz canadense colega no Estágio de Verão da Escola. Entrevista concedida em 23/09/11 em Paris.
154
Fonte: Arquivo pessoal
Com a Cia Oigalê realizamos o mesmo experimento, inicialmente com os
bastões (figuras acima) e depois sem eles, procurando manter a mesma dinâmica, os
mesmos movimentos do corpo e de deslocamento. Esse exercício foi utlizado mais
tarde transposto à dinâmica do vento, e levado para a cena de “O Baile…” nas
passagens em que a personagem Minuana, a matriarca, impunha-se perante todos os
demais, instaurando uma ventania em cena (figura abaixo).
155
Fig.17 Atriz Mariana Hoeler e Ator Paulo Farias em “O Baile dos Anastácio”- Porto Alegre, 2012.
Fonte: Vera Parenza (arquivo pessoal)
Os exercícios costumam ser propostos com instruções objetivas, sucintas, sem
muitas explicações. É no fazer que vamos nos dando conta, é em movimento que
vamos avançando e construindo um entendimento de todos esses aspectos. Ao sair da
sala de trabalho e deparar-se com a rua, as pessoas, os sons, vai-se instalando uma
maneira de ver e de observar constante, e isso é o aprendizado do olhar. Tal como
Lecoq (1997, p.31) afirma, é uma “escola do olhar”. É nesse sentido que a imaginação
vai sendo trabalhada, a partir da atenção ao redor, da observação da natureza de que
falava Lecoq e que identificamos como parte da herança de Copeau, de Hébert e de
todo um pensamento de época, como mencionado no capítulo 1.
Para trabalhar com o fogo com a Oigalê, fomos para o pátio do Hospital São
Pedro, local onde a companhia trabalha, acendemos alguns palitos de fósforos para
observarmos as chamas. Um por um, observamos como ela cresce, como se balança
com o vento e como se extingue: início, meio e fim, como nos movimentos que
fazemos sempre há essa preocupação que visa a limpeza, clareza, quando relacionadas
à consciência do movimento. Em seguida, observamos um pedaço de jornal amassado
ao qual foi ateado fogo: pequenas chamas, no início, depois longas, verticais,
“gordas”, amarelas, e seu conseqüente processo de extinção. Observamos as pequenas
viradas do papel incitado pelo próprio movimento das chamas e as brasas que vão
diminuindo até tornarem-se cinzas pretas que se espalham com o vento. Pode parecer
156
estranho ficar observando uma folha de papel queimar enquanto temos tanto trabalho
a fazer para montar um espetáculo que já tinha até data de estreia, mas a riqueza das
imagens que se pôde observar é muito diferente de somente lembrá-las. Em seguida
os atores procuraram reproduzir o que haviam assistido. O trabalho foi no próprio
pátio onde estávamos, o que foi prejudicial à qualidade dos movimentos, pois
iniciaram no chão e evoluíram a partir dali, mas o solo sujo e irregular dificultou a
liberdade de movimentos e eles não conseguiram evoluir o quanto seria desejável.
Quando voltamos a experimentar o fogo dentro da sequência dos elementos como
descritas anteriormente, a qualidade dos movimentos foi bastante diferente, com mais
nuances, sutilezas e entrega dos atores à experimentação, além da capacidade de
agruparem-se de modo mais interessante, ao comporem a imagem da fogueira. O fato
de ter a memória renovada e a atenção que talvez nunca tivesse sido empregada dessa
maneira e com esse propósito, alterou a capacidade de percepção dos atores
viabilizando diferenças em suas movimentações.
Nesse caso, não nos baseamos na observação ‘automática’, mas na “percepção
atenta” que se refere Sham’s (2003, p.58) em seus estudos sobre o imaginário a partir
de Bergson. Baseado nesse autor, Sham’s refere-se à observação ‘automática’ como
uma espécie de reconhecimento pela distração e a outra como um reconhecimento
atento, assim como existem os movimentos automáticos e os conscientes. Nossa liberdade, nos próprios movimentos pelos quais se afirma, cria hábitos nascentes que a sufocarão se ela não se renovar por um esforço constante: o automatismo a espreita. O mais vivo pensamento se congelará na fórmula que o exprime. (BERGSON, 1979, p.172)
É por causa da tendência em cair no automatismo que o ator deve combater
incansavelmente essa espécie de névoa que pode adormecer sua criatividade.
Automatismo induzido pela repetição e pela falta de atenção a estímulos que, no caso
da natureza como usados por Lecoq, estão sempre a seu dispor. Devemos levar em
conta que a percepção é uma seleção, ela não cria nada, pelo contrário, seu papel é de
eliminar do conjunto de imagens que se vê aquelas que não interessam, ou que não
são suportáveis. Essa compreensão provém não só de Bergson, desdobrada em sua
obra sobre matéria e memória, mas está também na base dos estudos psicanalíticos
provenientes de Freud e seguidos por Lacan. Daí a importância da condução da
observação como oportunidade de o ator dedicar sua atenção e perceber detalhes que
não havia reparado anteriormente.
157
O trabalho com os elementos realizado com a Oigalê contribuiu na pesquisa
relativa ao processo de “O Baile...” principalmente pela afinidade com o tema, que
trata da terra, dos pampas, com o vento Minuano e com o fogo, aqui visto como “a
biblioteca cultural do gaúcho”, que reunia as famílias no local onde assavam o
churrasco e esquentavam a água do chimarrão. Perguntado sobre a contribuição desse
trabalho, um dos participantes afirma:
Esse trabalho contribui muito, fica como um subtexto para o trabalho, contribuindo para a imaginação do ator não só na hora de criar, mas na hora da cena mesmo, de como tu manténs isso. Uma coisa é trabalhar o ar, outra é trabalhar as várias intensidades de ar, (...) e do próprio fogo: esse fogo queima, o fogo azul é mais forte que o amarelo... A questão da imaginação pode ser bem profunda nesse sentido e pode ajudar bastante na criação. (LEITE, 2012)62
O tema dos elementos, na Escola, estende-se aos cataclismos, como, por
exemplo, terremotos, tempestades, incêndios e nevascas. Quando a quebra de uma
situação harmônica é levada ao extremo, pode haver uma perda de controle da
situação, tornando-se uma situação de emergência, onde travamos uma luta para
seguir vivendo frente a estes eventos extremos vindo do exterior. Experimentamos
também o combate entre os elementos, a troca de um para o outro, as situações
cotidianas onde as pessoas têm a característica desses elementos, como que
“incorporam” em suas atitudes. Quando participei como aluna no curso de formação
na Escola, meu grupo criou o ambiente de um bar no qual chegavam algumas pessoas
que haviam escolhido a mesma mesa para sentarem-se. Cada uma delas entrava em
cena com o registro corporal de um elemento, ou seja, como fogo, terra, água ou ar, e
com essa sua maneira de se movimentar e agir, surgiam as relações entre elas e o jogo
ocorria.
62 Hamilton Leite, ator, diretor, produtor, fundador da Cia Oigalê de Teatro. Entrevista concedida em 30/10/12.
158
5.2 MATÉRIAS
O artista dedica sua vida ao que ainda não é real, mas que reside dentro da matéria. (Aristóteles)
No estágio de verão na Escola experimentamos algumas matérias, tais como o
torrão de açúcar, o ferro, a manteiga. Começamos pelo torrão de açúcar:
primeiramente ela pediu para fazermos um torrão de açúcar desmanchando-se na
água. Em seguida, trouxe para a sala um copo d’água onde pudemos observar a
maneira como o torrão de açúcar se desmancha efetivamente: inicia pelas
extremidades, vão caindo uns poucos grãozinhos, depois uns pedaços maiores, como
se ele se ajoelhasse, e então outro pedaço, até que vai dissolvendo todos os
pedacinhos que restam. Voltamos a experimentar com o grande grupo, pesquisando
nos próprios corpos, voltando ao mecanismo de rejogo do material. Apresentamos
individualmente, de três em três alunos, e depois pequenos grupos que constituem o
torrão. A partir daí a proposta foi uma transposição para o jogo do coro: a situação foi
a de uma multidão que inicia de costas e, quando se vira, encontra sua cidade sendo
destruída por chamas. Somos a multidão e vamos nos tornando a própria cidade, que
vai tombando como os torrões de açúcar. Surgiram imagens fortes, emocionantes,
mas sem sentimentalismo, a pura dinâmica da destruição, do trágico. É igualmente
importante assistir aos colegas, quando pode-se constatar uma sobreposição de
imagens, do torrão e da cidade, nesse caso, voltando à ideia de ‘metáfora da metáfora’
antes mencionada.
Do ponto de vista técnico, é evidente a diferença entre a tentativa de mover-se
como o torrão antes e depois de presenciar o evento real da dissolução, o que atesta a
importância dada à observação das coisas como elas são, colhendo da natureza sua
dinâmica própria e singular, observando seus detalhes. É muito diferente a primeira
experimentação, apenas de memória ou suposição, e aquela após a observação do
evento real.
Comentando sobre os elementos e as matérias, a professora chama a atenção
para o fato de que os elementos são ativos, eles provocam os movimentos, mas as
matérias não, elas são movidas por algo, sofrem uma ação, se submetem, são
passivas. Isso se reflete diretamente no trabalho corporal, implica em o ator ativar o
“motor” que os vai mover. Trata-se de transpor, ou ainda, de traduzir os vários temas
trabalhados anteriormente, como as cores, os elementos, as matérias. Usar oposições
159
para colocar algo em evidência, por exemplo: se queres preto, colocas um ponto
branco; se queres mostrar a altura, colocas ao lado de algo que desce, e assim por
diante.
Dando seguimento a essa lógica de trabalho, improvisamos, então, ‘o drama
da manteiga’. Seu processo de derretimento desde que um pedaço é tirado da
geladeira até ser colocado numa panela. Acende-se o fogo e ela vai derretendo-se a
partir das extremidades e depois ferve! Achar a maneira como isso se dá e como
transpor para o corpo essa dinâmica, como parecer manteiga, sentir-se manteiga,
mover-se tal qual. Fizemos um círculo que era a frigideira e observamos vários
colegas derreterem-se como manteiga, o que evidenciou aqueles que se aproximaram
mais da dinâmica do material em si, que encontraram o ritmo desse evento, que se
deram o tempo e a entrega do corpo para esse fim. Em seguida experimentamos algo
bem oposto, o chumbo. Em pares, um é o material e o outro tenta dobrá-lo. Trabalha-
se a resistência, o peso, a densidade, trazendo para o corpo a memória dessas
sensações, percepções, atualizando a memória tanto corporal como imaginativa.
Num segundo momento, depois de experimentar as matérias no próprio corpo,
passamos para uma improvisação em que devemos preparar uma receita para comer:
os diferentes ingredientes, suas diferentes consistências quando puras e quando
misturadas com as outras, a mudança de estado, de consistência da matéria gera algo
trágico. Em grupo, preparamos uma galinha assada com vegetais cozidos ao redor.
Assim, passamos pelos estágios de sermos descascados, partidos, temperados,
alternando o fazer e sofrer a ação com a liberdade que a abstração permite.
Com esse mesmo intuito de ‘treinar’ a observação, paramos para olhar como
um saco plástico amassado se desdobra quando largado no chão durante a oficina de
Blumenau. Para tanto, sugeri que nos sentássemos para observar algumas matérias em
movimento, como um Sonrisal efervescente no copo d’água, assim como um saco
plástico e um papel se desamassando. Uma matéria por vez, atentando para possíveis
mudanças desde o início, seu ápice e a desaceleração do movimento até parar ou se
dissolver completamente. Em seguida propus reproduzirmos esses processos com o
corpo. Quando refizemos esses exercícios no dia seguinte, dessa vez sem a
observação direta dos objetos, pude observar claramente a diferença entre os alunos
que haviam presenciado o fenômeno e os que não. Aqueles que haviam visto traziam
maior detalhamento nos movimentos, maior sutileza, mostravam ritmos e impulsos
160
diferentes baseados nas matérias reais. Os outros faziam movimentos bem menos
claros, dando a impressão que estavam apenas cumprindo uma tarefa solicitada.
Você colocou o saquinho de plástico ali e ficamos observando, isso é muito importante! A gente fez um exercício parecido na aula de Técnicas, só que lá a gente escreveu num papel, tínhamos que falar sobre o papel, por exemplo, que é branco, é reto, é amassado, mas a gente ia escrevendo, o que é diferente de visualizar o papel amassado. Depois até amassamos o papel, mas depois que já fizemos, então é muito num nível mental, falar e depois fazer, e eu gosto dessa coisa assim de fazer e depois falar! Adorei, quero mais!(SPILHERE, 2012)63
Outra aluna dessa mesma oficina, professora de artes onde trabalha teatro com
crianças, comentou que este trabalho com matérias e cores abriram-lhe um caminho
de possibilidades para aplacar as dificuldades que tem em trabalhar o corpo com suas
crianças, “fazer essa relação direta, pois com os pequenos temos que mostrar, ao invés
de dizer ‘faz!’”.
No trabalho com a companhia Oigalê introduzi também o trabalho com os
elementos e posteriormente com as matérias. Improvisamos também com a manteiga
e com a pasta de dente. A manteiga inicia dura, gelada, retangular na geladeira e
depois é colocada numa panela e começa a derreter, fritar, cada um individualmente
no chão, depois vou conduzindo e indico que coloco um punhado de alho picado que
a manteiga envolve e frita, depois um macarrão e eles vão se juntando enquanto
macarrão, quando já estão misturados e por vezes são o macarrão que se separa, por
vezes a manteiga que o envolve.
A pasta de dentes inicia como água e vou conduzindo seu tornar-se mais
espessa ao serem adicionados produtos que lhe conferem a consistência de pasta. Esta
vai sendo colocada dentro de um tubo e tomando sua forma, comprimida para enchê-
lo completamente, ficando ali confinada uns instantes ao ser colocada uma tampa –
tudo imaginário, evidentemente. Num dado momento ele será apertado para ser
colocado sobre uma escova de dentes para ser usado. Como se dá essa saída do tubo?
Experimentar diferentes maneiras, em pé e no chão.
Sempre, nesses exercícios, instruo os atores a experimentarem falarem
algumas frases e observarem a sua voz, que deve servir como alternativas para seus
63 Marlon Spilhere, ator e performer, participou da oficina em Blumenau, 2012. Entrevista concedida nessa ocasião.
161
trabalhos mais tarde. Da mesma maneira, peço que verifiquem se é possível deslocar-
se, e como se dá esse movimento, para encontrar outros caminhos para o corpo. No
caso da pasta de dentes, observar o que modifica na voz e nos deslocamentos quando
a tampa é aberta e sai do tubo, por exemplo. Outras matérias utilizadas foram um
Sonrisal efervescente num copo d’água, um pedaço de plástico fino amassado, um
saco de um plástico mais resistente também amassado e depois solto, um retalho de
espuma de aproximadamente um metro que era dobrado e amassado o máximo
possível e, depois de solto, que fazia uns poucos movimentos bruscos e caía com
leveza de uma vez só.
No exercício do Sonrisal, fui indicando o copo com água, retomando a
sensação de água e o momento em que o Sonrisal foi colocado gerando grande
efervescência. Da mesma maneira conduzi o experimento dos dois tipos de plástico e
da espuma, sempre solicitando o experimento da qualidade da voz naquele ritmo,
naquela textura, naquela dinâmica.
Num segundo momento, propus uma improvisação onde havia um baile no
qual as pessoas iam chegando e estabelecendo as relações entre eles, sendo que cada
um deveria entrar com uma matéria como apoio de sua movimentação e gestos.
Surgiu um homem que queria conquistar todas as moças com seu jeito pastoso, um
brigão que pegava fogo, uma moça que ficava deslocada, com quem ninguém queria
dançar, falava com frases curtas, com o desajeitamento da espuma, e assim por diante.
As fichas vão caindo aos poucos…esse trabalho das formas, da água, da matéria, do corpo…Para mim, uma coisa muito legal é essa pesquisa da água, quando ela deixa de ser água, tu consegues botar uma qualidade no teu corpo! Eu não quero fazer que sou água, mas quando tu tiveres a qualidade dessa água em movimentos de dar a mão, de dar um tapa, ou qualquer ação… A pasta de dente, parece que tem vontade própria, tu apertas o tubo e ela puff, cai pra fora (vai mostrando com o corpo), … cai de outro jeito… ela se molda…(risos) Sim, e tu começas a ver isso em cena, alguém que chega do teu lado e vem te contar uma estória (vai demonstrando chegando perto da colega…) “tri pasta de dente"! Esse é o barato da coisa, quando começas a brincar com isso… (BRASIL, 2012)
Procuramos trabalhar diferentes possibilidades de texturas das matérias, tais
como o duro, o mole, o flexível, o quebrável, o em pó, o líquido, o gosmento, o
opaco, o com brilho, o absorvente, etc. A matéria vista de dentro: o corpo é a matéria
que pode ser manipulada ou não, mas ela mesma não manipula visto que é passiva,
como um chicle na boca sente os dentes, a língua e torna-se bola. Observamos como
162
cada matéria se comporta, suas especificidades, que vão contatar com aquilo que é
comum a todas, e aí tocamos o cerne da visão de Lecoq, o Fundo Poético Comum.
5.3 PINTURA
Tema bastante abstrato para abordar com o corpo, seu desenvolvimento desse
exige a passagem por várias etapas antes de chegar à pintura em si. Na Escola,
envolvem exercícios com rudimentos da linguagem da pantomima, da música, da
percepção do espaço, da luz e das cores. Minha abordagem nem sempre cumpre todas
as etapas dessa mesma maneira, seleciono conforme as condições dos atores e do
tempo disponível para o trabalho. Tanto a pintura quanto a música e a poesia são
temas que estão incluídos naquilo que Lecoq chamava de ‘abordagem às artes’. Numa
medida, todos os três seguem uma mesma lógica de trabalho, o de detectar a dinâmica
intrínseca, procurar reproduzi-las e jogar com elas. O primeiro temas das artes
trabalhado é o da música, depois a poesia e por último a pintura.
Os exercícios de improvisação com a linguagem da pantomima servem como
estímulos para alargar as possibilidades de criação que passam a ir além da realidade,
pode-se fazer coisas que são normalmente impossíveis, como na lógica dos desenhos
animados, que costumam inspirar esse trabalho. A liberdade do jogo nessa linguagem
abre caminhos para a imaginação ao aproximar-se das brincadeiras infantis em que
tudo é possível, tudo pode ser transformado sem nenhuma preocupação com a
verossimilhança, com a lógica conhecida, com parecer absurdo.
No estágio de verão o exercício com a pantomima foi conduzido da seguinte
maneira: iniciamos em duplas com a proposta de um dizer para o outro que ela/ele é
bela/o, convidá-la/o para nadar e ela/ele não aceitar. Sem palavras, mas com o corpo
todo, pode-se usar o que for necessário como argumento para convencer o outro.
Exercício divertido que, embora partindo de uma proposta simples, já anuncia a
dificuldade de encontrar meios para se expressar somente pelo corpo sem ser banal e
explícito. O segundo exercício consistia em desenhar com o dedo uma paisagem que a
pessoa conhece bem, atendo-se aos detalhes, envolvendo concentração e memória.
Em seguida leva-se o braço e depois coloca-se todo o corpo nesse desenho. No
exercício seguinte, desenha-se com o dedo e o braço um rosto que se conheça bem.
Por último, desenha-se um personagem com rosto e corpo com o dedo e em seguida
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todo o braço passa a desenhar, até que “entra-se” nele, dando-lhe movimentos, dando
vida a esse ser. Em todas as etapas, sempre tem-se a oportunidade de olhar o trabalho
uns dos outros, o que vai enriquecendo o imaginário, alimentando a criatividade com
novas possibilidades de movimentos e ideias, estimuladas pela diversidade dos
participantes de diferentes nacionalidades, com maneiras de se moverem e paisagens
assaz distintas. Como o resultado é bastante abstrato, o que fica são impressões,
imagens, alternativas de movimentos. Não visam torna-se cenas, são meios, mas
podem ser desenvolvidas a fundo para mais tarde, desenvolverem-se como linguagens
próprias. Essa é justamente a forma como se formaram as várias companhias ao longo
dos anos da Escola, que inspiram-se em algum aspecto da pedagogia e a desenvolvem
como modo ou estilo próprios.
No final desta aula foi proposta uma improvisação na qual dever-se-ia
escolher uma situação, em grupos de cinco pessoas, e procurar utilizar todas aquelas
possibilidades de expressão relacionadas à pantomima. A situação do grupo do qual
participei foi a de um assalto a uma carruagem que vinha trazendo um casal nobre.
Uma colega fazia o som dos cavalos com uma batucada em seu próprio corpo, eu
cantava uma música de faroeste, tínhamos o casal e o cocheiro à frente: os ladrões os
surpreendem e assim acontece o assalto. O professor avaliava cada apresentação,
introduzindo as regras de utilização do espaço, de foco da ação, de busca de algum
sentido e compreensão de uma narrativa, ou seja, não se trata de total liberdade sem
parâmetros, não é “qualquer coisa” (ce n’est pas n’importe quoi) como costumava
dizer Lecoq. De maneira geral não funcionou muito bem porque, sendo um curso de
curta duração, as pessoas não tinham ainda destreza e limpeza gestual suficientes para
conseguirem aludir às imagens que queriam.
Quando fiz o curso de formação na Escola, esses exercícios sem palavras eram
mais precisos, trabalhávamos muito mais tempo em cada etapa. Nesta experiência do
estágio de verão, foi um tanto escolar, também pela falta de clareza sobre quando
inicia e quando termina a cena, sobre a ação geral e a de cada um. Ainda assim,
começava-se a perceber uma presença diferente nos atores, uma qualidade de
movimento um pouco diferenciado naqueles que começavam a perceber a
necessidade de se afastar de seu corpo e de seus movimentos cotidianos. Foi um
primeiro vôo da imaginação, um empurrão para uma experimentação mais ousada,
mais criativa, sem compromisso com o real, com o coerente, com o possível. É um
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exercício que permite que você acesse a dimensão lúdica, como brincadeira de criança
onde tudo se transforma de um instante para o outro, em que se pode ser tudo, pode-se
mudar de lado, ser a polícia e ser o ladrão. Uma espécie de aval para a liberdade
criativa, ainda que existam regras que vamos assimilando ao assistir aos colegas, tais
como a de não se mover todos ao mesmo tempo, de passar o foco da ação, de deixar
claros os gestos que explicitam a ação, com início, meio e fim definidos. É o primeiro
salto imaginativo mais amplo, a partir de ferramentas relativamente simples, como
essas de desenhar o que se quer e de entrar no desenho possibilitando assim trazer
diferentes objetos e elementos para a cena de forma inusitada. A pantomima tem um
lugar na pedagogia muito mais no sentido de via para a imaginação do que tanto pelo
aspecto técnico, embora ambos estejam intrinsecamente conectados.
Já o trabalho com a música inicia, na Escola, com todos escutando uma
música escolhida pelo professor de maneira bem relaxada, duas vezes, com a tarefa de
observar que sensações suscita, que palavras vêm à mente. Na terceira vez, todos
experimentam movimentarem-se de acordo com a atmosfera da música, que no caso
era melancólica, triste. Como é o caminhar, qual o ritmo desse deslocamento, como o
resto do corpo se engaja? Experimentamos então uma improvisação cujo tema era
“encontro e desencontro”: duas pessoas por vez, sempre com a mesma música para
acessar a emoção, jogar e ser verdadeiro. Observar a tensão entre os dois atores, as
tensões que se produzem no espaço, a qualidade do movimento, a ‘cor’ da cena. No
meu caso, joguei um encontro numa parada de ônibus com a colega Ayça, da Turquia.
A tensão do jogo foi aumentando, deixando transparecer uma raiva, com jogos de
olhares que não se encontram, porém acabei exagerando e perdendo a medida do
verdadeiro e tornou-se caricato, embora cômico, mas que não era a proposta, pois não
era o clima da música. A proposta, afinal, era a de jogar ‘com’ a música, a favor dela,
no espírito dela e não contra, como tornou-se minha proposta. Jogar ‘contra’ a música
é uma outra proposta, que resulta em outra linguagem, que pode ser cômica ou
mesmo a dos bufões.
Entretanto, como tratam-se de exercícios, é importante manter os limites do
jogo proposto, uma vez que são através deles, justamente, que sucede a maneira de
ensinar as regras do jogo, as diferentes possibilidades, não deixando cair no ‘qualquer
coisa’. Afinal, trata-se de uma pedagogia que estabelece essas restrições de jogo como
desafios para o ator e, nesse momento, ainda não se está trabalhando com a criação
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livre, que terá a sua hora. São passos estabelecidos para favorecer a criação, etapa que
por vezes não é bem aceita pelos alunos, que se sentem tolhidos, reclamam não ter a
total liberdade, talvez como herança romântica de ver o trabalho do ator como
dependente apenas da sua inspiração, relegando a técnica a um plano inferior.
O trabalho segue com outro professor de forma bastante semelhante ao
anterior quanto à dinâmica inicial de escutar a música relaxadamente, sem fazer mais
nada, de apenas entregar-se ao escutar. A música escolhida agora é a de Bella Bartok,
compositor favorito de Lecoq para os exercícios, pois ela tem variações intensas,
mudanças de climas, de tons, de instrumentos, sonoridades. Escutar a música e
observar: Que palavras vêm à mente? Alguma forma? Alguma cor? Que material?
Matéria? Formas? Sensações? A primeira proposta foi a de mover-se como “eu sou a
música”, atentando para os diferentes instrumentos e as diferentes dinâmicas. No
segundo momento, mover-se sem a música, mas com ela em mente. No terceiro
momento, estar no espaço ‘com’ a música: como ela te move? Como ela te puxa e te
empurra? Em que direções? Com que força? Com que duração? No quarto momento,
você toca na música com as mãos, como se ela fosse um objeto, deslocando-se pelo
espaço pode-se acariciá-la, tentar pegá-la, acompanhá-la num percurso, segui-la para
onde ela lhe levar, em diferentes direções e níveis, a música é um objeto que pode ser
manipulado, jogado, amassado, preso, e assim por diante. No próximo momento do
exercício, experimenta-se ser puxado ou empurrado pela música, reagindo a esses
impulsos que ela lhe provoca, move-se ‘depois’ dela. No próximo, você é Deus, você
cria a música, seus movimentos são ‘antes’ dela, gerando-a, antecipando o que vem.
Por último, experimentamos jogar o ‘contrário’ da música, momento em que entramos
no universo da loucura, do deboche, do bufão, da farsa, do clown.
Seguindo com as improvisações com o tema da música, no estágio de verão,
fizemos uma preparação com acrobacia e depois trabalhamos ações cotidianas com a
música. A proposta era a de cada um escolher um prato da culinária que sabe fazer e,
somente com mímica, gestos e movimentos do corpo, colocar as ações no ritmo da
música, que era bem rápida, tipo ‘napolitana’. Inicia com os movimentos de tamanho
normal, depois vai aumentando, vai ‘decolando’, sem preocupação com o realismo,
mas mantendo coerência com o que está fazendo. Il faut s’amuser!! Divertir-se com
isso, incluir movimentos virtuoses reais ou sugeridos: podem-se lançar coisas, jogar
para cima e pegar, ou seja, sair da lógica comum realista. Realizamos primeiramente
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individualmente, depois em grupos de três ou de quatro ao mesmo tempo, o que já dá
ares de uma cena. Nesse caso, jogar com as tensões entre os colegas, procurar
estabelecer dinâmicas em relação a eles, como, por exemplo, um vai diminuir o ritmo
enquanto o outro está ‘enlouquecendo’, mas sempre com total controle dos seus
movimentos, dos colegas, da cena, levando sempre em conta que o ritmo inclui pausa.
Trabalhamos também com uma segunda proposta a partir de uma música de
Schubert, em grupos de cinco, na qual todos ‘somos’ a música. Escutamos primeiro,
como das outras vezes, e depois nos movemos. Devemos observar aspectos como a
criação de espaços entre os membros do grupo, não moverem-se todos ao mesmo
tempo. Levando em conta o ponto fixo, criar oposições, tensões, a pulsação da
música, as linhas que podem ser desenhadas, mas sem usar somente os braços, que é a
tendência que se observa. Não se trata de dançar a música, deve-se atentar para não
‘colar’ demais a ela, mas jogar ‘com’ ela, deixando espaços para ela possa aparecer
sozinha, para ela ter a sua vez no jogo e não ofuscá-la com nosso constante mover
‘sobre’ a mesma.
Uma outra proposta de improvisação utilizando o trabalho sobre espaços
internos e externos foi “o Escritor”. Com a mesma música que já havíamos trabalhado
no dia anterior, de Bartok, temos em cena uma cadeira e uma mesa com uma caneta e
algumas folhas. Situação 1: Espaço Externo. O escritor quer escrever, mas há uma
porção de coisas que o distraem, o perturbam, o impedem. São barulhos externos,
carros, porta, vento, vizinhos, o que quiser. A música é esse agente externo, joga-se a
reação em função de seus movimentos. Reforça-se a ideia de jogar com a música, ela
é o parceiro de cena. Observar que a cena tenha um crescento, como a música propõe.
Buscar maneiras de mostrar o que está acontecendo externamente com o corpo e as
ações ou não ações. Como é esse espaço onde o escritor está? Tem janelas? Quantas?
Onde estão? Estão abertas? Como são? Como é o piso? Esta frio? Muito quente?
Mostrar o externo, tomando a música como o apoio: “apoiar-se” nela, nas ações no
espaço. Situação 2: Espaço Interno. Agora a proposta era jogar o contrário, ou seja, a
música está dentro do escritor, ela é o apoio interno para suas emoções, aquilo que vai
impulsionar as ações. Como pode-se mostrar o que se passa internamente? Quais
ações poderão evidenciar esse estado? É importante procurar definir e desenhar o
espaço externo também, mas em função do que se passa internamente.
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De volta à universidade, no Brasil, propus um experimento semelhante
realizado com duas colegas64 no intuito de refazer essa prática com a música e escutar
suas impressões. Intencionava trabalhar com atrizes brasileiras e experientes, verificar
como difeririam seus comentários daqueles das colegas estrangeiras. Já escolher uma
música não foi uma tarefa fácil. Não é qualquer uma que serve para esses fins. A
música precisa ter rompantes, ter ‘climas’, surpresas, para que se possa jogar com ela.
Percebi que na Escola, desde que havia tido aulas com Lecoq e agora, vinte anos mais
tarde, ainda era Bella Bartok e Schubert as mais usadas. Optei por Verdi #6, que tinha
as nuances necessárias para o exercício. Escutamos uma vez com perguntas em mente
como as mencionadas acima sobre cor, palavras, imagens que viriam à mente. Em
seguida, propus os vários aspectos na mesma música, tais como: eu sou a música, eu a
manipulo, eu sou manipulado, eu sou deus, sempre mantendo a conexão com as
matérias, as cores e as palavras.
Observando as imagens captadas em vídeo, observei que a diferença entre as
três atrizes foi significativa, principalmente no que tange suas diferentes raízes
práticas. Num primeiro momento, todas inclinam-se a movimentarem-se como já
conhecem, mesmo dentro das diretivas estabelecidas. Heloise, que trabalhou sempre
mais voltada para o texto e o método de Stanislavski, movia-se mais com os braços e
tronco ou como se fosse um personagem. Bárbara, com trabalho de dança e corpo
predominantemente, como que dançava com a música, e eu, com base em Lecoq,
tendia a desenhar objetos, manipulando mais do que qualquer outra coisa. Como a
música tinha sete minutos, foram surgindo outras possibilidades na medida que
esgotavam-se as referências conhecidas, e é aí que o exercício ganha força e surgem
quebras de padrões, ou seja, o hábito vai dando espaço para a imaginação.
A primeira impressão após o término da música evidencia o prazer de brincar
com essas propostas. A tendência, entretanto, é a de dançar com a música, a maneira
como estamos acostumados, o corpo responde quase que automaticamente a esse
estímulo. Bárbara comenta sobre os contrastes na música, o quanto colaboram para
gerar diferenças entre movimentos fracos e fortes, que propiciam movimentações
mais densas, gerando diferentes estados. A dificuldade é justamente conseguir sair do
padrão, descolar-se da música, e é justamente nesse aspecto que tal prática colabora,
64 Heloise Vidor e Bárbara Biscaro. Encontro realizado na UDESC, 11/11/11.
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na medida em que nos deixamos contaminar por ritmos que não são os nossos, como
oportunidades de alargar as próprias possibilidades. Há um momento em que a música
parece que vai terminar e então recomeça, ou seja, ela “puxa o tapete” do ator,
oportunizando o inusitado. Heloise avalia que em alguns momentos ela é capaz de
visualizar toda uma cena, com um local, pessoas, todo um contexto pronto.
Concluímos, de maneira consensual, que a música em si já preenche a
imaginação, que independente de pensarmos em uma situação ou não, podemos nos
sentir dentro da proposta de qualquer forma. Foi interessante perceber o que ativa a
imaginação de cada uma. A música costuma mexer facilmente com as pessoas, em
maior escala do que a pintura o faz, por exemplo. Acredito que seja por isso que
começamos pela música na Escola, pois já fazemos um levantamento de cores,
imagens, possibilidades, que depois serão fundamentais para a abordagem da pintura.
Numa improvisação desse tipo há altos e baixos, momentos em que nos
desconectamos, o que é normal, é quando caímos nos movimentos habituais. Assim,
esse jogo entre o corpo que já sabe e o corpo que quer saber é uma tensão constante,
principalmente para quem já tem um treinamento, o que tende a aprisionar-nos à
nossa própria maneira de nos movermos. Nesse experimento não tínhamos público, o
faz toda a diferença, pois o olhar do outro colabora para nos organizar. Há uma
medida que vamos encontrando ao se sentir assistidas. “Dar forma é o grande nó.
Como ela vem e como se estrutura, o barro que você vai dando forma”, comenta
Bárbara. Concluímos que essa é a razão pela qual é importante que haja alguém que
assista esse trabalho de ativação corporal, para que possa fazer uso desse material no
momento da criação, pois, do contrário, sua transformação arrisca de não acontecer.
Função normalmente atribuída ao diretor, partir desse tipo de improvisação para
construir o espetáculo faz toda a diferença para o ator, pois contribui no sentido de re-
presentificar a experiência, uma vez que ele poderá re-presentificar aquele gesto com
uma tal cor, uma tal textura, oriundos de tal ou qual estímulo.
Esse olhar treinado para observar a natureza, sua dinâmica e desenhos no
espaço, mencionado anteriormente, vai percorrer também as linhas da arquitetura, em
exercícios propostos com esse fim. O tema da pintura, portanto, inicia-se com
improvisações nas quais são enfocadas os espaços, as luzes, as cores, considerando as
matérias e os elementos que já foram trabalhados enquanto textura e possibilidades
dinâmicas.
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No estágio de verão o professor propôs alguns exercícios para a percepção da
luz, como, por exemplo, a observação das lâmpadas fluorescentes que iluminam a
sala. Ele as liga e desliga algumas vezes para observarmos a maneira como ela se
espalha na lâmpada até ficar totalmente acesa, num primeiro momento, e depois
experimentamos reproduzi-la com o corpo, todo o grupo ao mesmo tempo
experimenta como é ser essa luz, no mecanismo de rejogo. Em seguida assistia-se a
pequenos grupos de quatro alunos para identificar onde poder-se-ia detectar o
movimento mais justo, aqueles nos quais consegue-se identificar a luz que
conhecemos e que tínhamos observado recentemente. Experimentamos também uma
luz externa, de um dia de sol e de um dia nublado, no sentido de perceber como isso
afeta o movimento do corpo.
Passamos para exercícios com o espaço: ver o espaço, ser o espaço. A
proposta de improvisação foi a de um grupo de cinco pessoas ao mesmo tempo, mas
individualmente, chegarem à Gare du Nord. Uma das maiores estações de trens de
Paris, normalmente conhecida por todos por sua importância e beleza, um local
amplo, com pé direito altíssimo, muito bem preservado, com enorme circulação de
pessoas. Mostrar como é esse espaço através do corpo, considerando os diversos
deslocamentos em diferentes direções que acontecem simultaneamente ali, assim
como a luz, a amplitude do lugar, o tamanho, as cores, o espaço interno e externo
(antes de entrar na Gare e estando lá dentro). Depois experimentamos o espaço de
uma adega, oposto ao anterior, escuro, apertado, frio, sem ninguém. O terceiro local
foi a galeria Lafayette, com seu altíssimo pé direito, a quantidade de pessoas
circulando, a luz, o apelo das compras.
Exercícios de difícil execução, nos quais não há certo ou errado, há uma
busca, uma pesquisa que gera maneiras diferentes de se mover e de criar, gerando um
alongamento tal relacionado a essas imagens e sensações. Contribuem para o
desenvolvimento de um olhar para essas características do entorno, que afetam
diretamente a percepção a partir daquelas tentativas de rejogo.
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Fig. 18 Gare du Nord, Paris.
Fonte: Arquivo pessoal
Fig.19 Shopping Centre, Paris.
Fonte: Arquivo pessoal
Na improvisação seguinte, que enfocava ainda os espaços internos e externos,
cada pessoa devia escolher um lugar que quisesse mostrar e os colegas procuravam
descobrir que lugar era. Devíamos atentar para aspectos como se era um local interno
ou externo, qual a temperatura do ambiente, seu tamanho, se é público ou privado, se
havia mais gente presente, se a luz era natural ou artificial. Em seguida, passamos
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para um exercício no qual experimentavam-se espaços externos e internos da própria
pessoa. Cada um escolhia uma situação num lugar onde deveria chegar, mostrar de
forma mais ou menos realista o que se passa nesse ambiente externo a si.
Subitamente, o ator procura mostrar o que se passa dentro de si, o que sente, o que
gostaria de fazer e não pode através de “quebras”, e, em seguida, volta ao “normal”.
Segundo o professor Christophe, o que se quer ver é o imaginário de cada um, o que
ele traz consigo, o que quer trabalhar. Nesses exercícios apoiamo-nos em lugares e
coisas que conhecemos, que temos lembrança de uma experiência, e como nosso
imaginário a recompõe. Para que o corpo possa transpor esse imaginário, ir além dele,
pode-se utilizar todos os recursos trabalhos, como a acrobacia, os Vinte Movimentos
e as improvisações, que visam abrir outras possibilidades de movimentos, para que o
corpo possa sair dos seus hábitos e se distanciar do cotidiano.
Nesse exercício, entretanto, muitos dos alunos acabam por cair num gênero
mais psicológico, demonstrando a dificuldade de atingir-se o distanciamento com o
cotidiano, o que fragilizava a atuação, não atingindo nem o objetivo do não-cotidiano
e nem mesmo uma verdade que nos levasse a acreditar no que ele propunha. Não
voltamos a fazê-lo, infelizmente, mas trata-se de um tipo de exercício que deve ser
repetido para que, aos poucos, se consiga entrar realmente na proposta.
Uma das colegas65 propôs uma sala de aula em que ela entrava, estabelecia
bem o espaço, a presença de colegas, a carteira onde sentava-se e tentava chamar a
atenção da professora. Subitamente ela tem um ataque de impaciência, sobe na
carteira, ‘enlouquece’, e imediatamente depois já está de volta sentada, sorrindo e
ainda com a mão no ar esperando ser atendida pela professora. Esse foi o exercício
que melhor funcionou, no qual era possível identificar os dois espaços de maneira
crível, um salto imaginativo no tempo e no espaço num estalar dos dedos.
Após o trabalho com os espaços, entramos no tema das cores, iniciando pelas
luzes. Na época em que cursei a Escola fizemos ainda exercícios relacionados as luzes
que envolviam a observação e consequentente rejogo de diferentes momentos do dia,
os reflexos das luzes da cidade no chão molhado depois da chuva, a luminosidade de
diferentes estações, e assim por diante.
65 a musicista alemã Maya Von Kiregntein.
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São exercícios de difícil execução, uma pesquisa cujos resultados efetivos já
iniciam no momento em que o ator dispõe seu corpo para essa tentativa, a própria
experiência de passar por essa busca e de observar os momentos em que alguém
alcança essa sutileza, há uma rede de imagens que vai tomando forma, seja
concretamente na cena ou abstratamente na imaginação, ambas acarretando no
alargamento criativo a partir das possibilidades que ali surgem.
Há pinturas que se prestam para esse exercício mais do que outras. É
interessante haver tensão entre as formas e as linhas que se opõe, que se possa
perceber uma dinâmica, algo que talvez uma “natureza morta” não vá propiciar, pelo
menos enquanto exercício, para promover essa leitura pictórica que se está propondo.
Como no exemplo abaixo, é uma pintura que facilita essa percepção de linhas, planos,
contrastes, formas, tensões.
Fig.20 “Guernica” de Pablo Picasso, 1937.
Fonte: http://www.wikipaintings.org/en/search/guernica/1. Acesso em 15/01/13.
Entramos, então, no tema das cores. Tema controverso, uma vez que implica
num descobrir a dinâmica das cores, porém já existe uma espécie de definição para
cada uma delas, o que é questionável. A ideia parte da busca em perceber a dinâmica
das cores, o espaço que usam, o tempo que duram, se ela move-se no nível alto ou no
baixo, qual a intensidade de seus movimentos, se tendem a puxar ou empurrar.
Normalmente trabalha-se com as cores do arco-íris: vermelho, laranja, amarelo,
verde, azul, índigo, violeta. Num primeiro momento, o grande grupo trabalha em
conjunto, ainda que individualmente, procurando mover-se da maneira com a
173
dinâmica de cada cor. Cinco pessoas ficam em cena, experimentam uma dada cor,
depois um por um os demonstra e procuramos detectar onde parece mais preciso, le
plus juste. O mais impressionante é que podemos realmente perceber em quem
identificamos melhor uma dada cor, ou, pelo menos, as cores que não são. Por
exemplo, o amarelo tem uma dinâmica mais rápida, mais luminosa, mais aberta,
diferente de alguém que move-se com ritmos lentos ou com o corpo encurvado,
fechado.
Para Lecoq, depois de muitos anos desenvolvendo esses estudos
experimentais, as dinâmicas das cores já estão mapeadas, e, portanto, os alunos
acabam sendo induzidos a encontrarem aquelas dinâmicas. Pode-se questionar essas
dinâmicas e o fato de ter que ser percebidas da mesma maneira por todos, mas quando
assistimos as pessoas se moverem, vemos que faz sentido aquilo que ele propõe.
Segundo Lecoq, as características e os movimentos específicos de cada cor seriam os
seguintes: amarelo: ritmo rápido, movimentos em todas as direções, para fora, grande,
leve, respira, saltos, histeria; laranja: acrescenta-se torção ao amarelo, mais aberto,
redondo, diminui a intensidade, mas ainda bem dinâmico; vermelho: torção, emoção,
vibrante, concentrado, denso, para dentro, intenso; verde: golpes rápidos, movimentos
bruscos, porém leves e direcionados, aberto, mais denso, para a frente e acima,
buscando amplitude; azul: como que planando, flutuando, amplo, horizonte, grandes
linhas; azul ultramarino ou índigo: infinito, movimentos longos, como que sendo
puxado para o infinito, denso, intenso, profundo, mistério; violeta: fechado, profundo,
amedrontado, opressão, espaço limitado. Essas características foram anotadas quando
cursei a Escola com o professor em 1992, e constatei que seguem semelhantes com os
professores que o sucedem atualmente.
O que é particularmente controverso sobre essa abordagem das cores é, no
meu entender, a questão cultural. A colega chinesa ilumina essa discussão ao nos
informar que na China o vermelho é uma cor alegre, usada para casamentos, que
jamais associaria com violência, peso, densidade, como havíamos sido induzidos a
percebê-la nos exercícios durante o estágio de verão. Da mesma maneira ocorre com
o branco, que no ocidente é considerado a cor da paz, da calma, do casamento, para
eles é usada em funerais. A colega comenta, então, que estava ansiosa em voltar a
Hong Kong e usar essa nova conexão com as cores, experimentar trazer para o
público outras ideias sobre o vermelho, não só a do casamento, podendo trazer à tona
174
a violência, ou a guerra, ou o calor, pois que essas ideias alargaram sua imaginação
para além do mero uso das cores. Ela sustenta que, por ter estado na França e ter tido
a oportunidade de ver o trabalho de outros alunos de outras partes do mundo, era
capaz de ver diferentes vermelhos, diferentes amarelos, diferentes maneiras de pensar,
o que foi uma experiência ímpar em sua vida.
Nesse momento penso que a dinâmica por trás das cores deveria ser a mesma independente do background cultural de cada pessoa. Porque, generalizando, dizer que vermelho é quente ou é frio, são interpretações. Acredito as cores deveriam ser uma língua/linguagem que todo mundo conhece. [...] Deve haver algo em comum, porque quando fizemos o exercício do vermelho, muitos se moveram de maneiras bastante semelhantes, todos se moviam com uma energia similar, então acredito que deva haver algo em comum nas cores [...] Sim, acho que a arte é uma linguagem comum, que ali temos uma linguagem comum para todos. (YANG, 2011).66
Nesse sentido é que aparece a questão cultural, ou seja, a simbologia associada
à determinada manifestação da natureza, neste caso. As cores são ondas luminosas
percebidas visualmente que possuem determinadas frequência que as definem como
tal ou qual, são raios que refletem-se sobre células especializadas da retina que
transmitem informações para o cérebro permitindo sua percepção67. São fenômenos
da natureza que mostram-se para todos os humanos da mesma maneira, enquanto
percepção, independentemente de valores atribuídas a elas. O que pode diferir,
portanto, são as associações simbólicas a elas relacionadas. A busca do ‘amarelo de
todos amarelos’ ou o ‘vermelho de todos os vermelhos’, faz sentido, portanto,
enquanto busca do ‘fundo comum’ a todas elas, daquilo que é sua manifestação
natural. O Fundo Poético Comum refere-se, portanto, àquilo que está além da leitura
simbólica, instancia que as ciências e a espiritualidade, mais do que as artes,
costumam referir-se, o que apresenta-se como um diferencial dessa visão de teatro.
Na abordagem às cores realizamos um exercício que é uma passagem por um
“tubo do Arco-Íris”. Quando ministrado por Lecoq na época que cursei a Escola, o
exercício propunha a passagem por um corredor definido por todo o espaço da sala,
como num corredor onde por hora tudo é violeta, depois azulão, azul claro – e vão se
66 Atriz e poetisa, Adda Yang, Hong Kong, China. Colega no Estágio de verão. Entrevista em 23/09/11, Paris.
67 Definição baseada em http://pt.wikipedia.org/wiki/Cor – acesso em 17/01/13
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seguindo as cores do arco-íris. Devíamos atentar para as seguintes questões: que
sensação cada cor causa? Que movimento cada uma suscita? Que ritmo (mais lento,
mais brusco,etc.)? Você fica com vontade de ficar ali ou de passar rápido? Que ideia
de espaço vem com a cor (é um teto alto, baixo, é amplo, estreito, etc.)?
Já no estágio de verão a improvisação proposta como “tubo do arco-íris” foi
diferente: ao longo da sala há um tubo imaginário das cores do arco-íris delimitado
pela professora, através do qual o aluno desloca-se enquanto ela vai colocando
bastões no chão para marcar a extensão de cada cor. A principal questão a ser
percebida é: Qual o espaço que cada cor usa, tanto na horizontal como na vertical e
em outras direções? Pode-se questionar se os tamanhos são senso comum, ou se
somos induzidos a encontrar esse padrão que já é fruto da pesquisa anterior de Lecoq
que as entendeu assim. De qualquer maneira, faz sentido aquilo que é proposto, é uma
aproximação, não uma verdade inquestionável, que serve para fins pedagógicos, para
que se possa visualizar esses espaços e assim trazer tais qualidades para o seu
trabalho. Fig.21 – “O concerto” - Marc Chagall, 1957.
Fonte: http://www.wikipaintings.org/en/search/chagall/1. Acesso em 15/01/13
Como introdução para o tema da arte da pintura tivemos como tarefa de casa
observá-las em museus de Paris durante o fim de semana. Além de visitar
presencialmente alguns museus, pesquisei na biblioteca do Centre Georges Pompidou
em livros de pintura, enormes, onde pude buscar alguns dos que me são mais
conhecidos e que queria rever, como Chagall, Caravaggio, Miró, Calder, Kandinski.
A seguir apresento relatos do que observei neles, de acordo com o que já conhecia
dessa prática.
176
Michelangelo Caravaggio(1571-1610): Luz e sombra. Subitamente surge da
escuridão um rosto, uma mão, uma parte do corpo. Cenas fortes: decapitação, jogo,
disputas, corpos nus, morte, tortura. Detalhes das mãos, do olhar. Pinceladas suaves
de branco aparecem de vez em quando. Situações, como fotos de momentos
dramáticos da vida daquelas pessoas ali. Pessoas tristes, velhas, enrugadas. Muito
preto, alguns vermelhos.
Wassily Kandinski(1866-1944): A invenção do abstrato. Associava a pintura à
música, com reflexões teóricas comparando a linguagem sonora à imagética. Cores
intensas, fortes, manchas, azuis, pretos, brancos, amarelos, pinceladas, linhas,
algumas formas. Kandinski é tido como o lançador do movimento pela abstração nas
artes visuais, na pintura. Buscava a abstração da música, apoiava-se na música para
pintar. Início do século XX, 1912. Vejo claramente uma relação com esse trabalho,
cem anos depois, no qual apoiamo-nos na pintura, na música e na poesia para transpor
para o jogo do ator. Interessante pensar em “apoios”, agora não mais abstratos, mas
bem concretos, misturados à “vida real”.
Mark Chagall(1887-1985): o livro chama-se Les couleurs de la poesie (as
cores da poesia): amarelo solar, pulsante, alegre; manchas cor de laranja propiciam
profundidade; pinceladas soltas, riscos pretos leves, muitos deles sobrepostos definem
as figuras de seu universo permeado por cabras, flores, galos, cidades, pássaros,
símbolos bíblicos, letras judaicas; azul mais sombrio, denso, noturno; vermelho
pulsante, sangue, paixão, vida e morte, entrega.
Joan Miró(1893-1983): Fundo com diferentes tons, manchas esfumaçadas,
formas geométricas pretas, ligadas por linhas que dão movimento, ritmo, dinâmica.
Parece sempre em movimento. Estrelas. Pouco a pouco as formas ficam maiores e há
os espaços de uma apenas uma cor. Fundos azuis.
Alexander Calder(1898-1976): Leveza, ar dinâmica, movimento em seus
móbiles.
Allan Kaprow(1927-2006): Em 1959 o artista faz o primeiro Happening
jamais feito, “Eighteen Happenings in 6 parts”, onde ele usou os “Rearrangeable
Pannels” (Painéis rearranjáveis) que estão expostos no museu Georges Pompidou.
Esses painéis deveriam ser expostos por cada expositor, em galerias e museus, da
maneira como quisessem. Este novo gênero buscava quebrar as fronteiras entre arte e
vida, entre artes visuais e artes do espetáculo (performance art). Outra textura,
177
espesso, diversidade de objetos, de linhas e planos, espelhos, miscelânea,
versatilidade, multicores, colagem. Sinto como que entrando numa jornada através do seu corpo, explorando a poesia, a pintura, a música e tudo mais, você acaba por conectar com aquela parte de você que nunca imaginou, particularmente porque estamos falando do corpo. Fala-se da mente, do intelectual, mas aqui é através do corpo e de como você abre uma porta de sua imaginação – trata-se de abrir a imaginação! Você começa a ver quais cores estão naquela pintura, como se movem, para onde se dirigem, todo o trabalho está relacionado ao fazer emergir sua imaginação. (MACPHERSON, 2011)68
No estágio experimentamos um jogo de improvisação com o “combate das
cores”. Em grupos de cinco ou seis pessoas, nos dividíamos em duas cores. As
questões a resolver eram do tipo: Como elas se relacionam? Quanto espaço cada uma
toma? Alguma se sobreporá à outra formando uma terceira cor? Trata-se de uma
briga? Os que assistem tentam decifrar que cores eram. Meu grupo jogou com azul e
amarelo. O azul mais condensado, o amarelo brilhava ao redor. Entretanto, faltou
unidade no amarelo, que acabou se dispersando e não passou a ideia da cor, ou seja,
não foi evidenciado e os colegas não decifraram o que fizemos. Houve outro grupo
que fez uma briga entre o vermelho e o verde, na qual era evidente a dificuldade de
misturar essas duas cores. Ao mesmo tempo, podia ser vista como uma cena de
batalha, rica e ampla, passível de ser transposta para alguma situação e vir a tornar-se
parte de um espetáculo. Fig.22 “Naufrágio”, 1805. William Turner
Fonte: http://www.wikipaintings.org/en/search/Turner/1. Acesso em 17/01/13
68 Atriz Coleen Macoherson, Toronto, Canadá. Entrevista concedida em 22/09/2011.
178
A primeira improvisação com o tema da pintura foi a partir de um quadro de
Turner (1775-1851), proposto pelo professor, mostrando uma foto num livro (foto
acima). Os alunos contemplam a figura durante um tempo, enquanto o professor vai
conduzindo a observação chamando a atenção para as linhas, os volumes de cores, a
luz, os contrastes, as tensões entre as formas e as cores, o equilíbrio e desequilíbrio
elas, o trajeto do olhar. Como nosso olhar percorre a pintura, para onde olha-se em
primeiro lugar, e em seguida, e para onde retorna o olhar, qual a leitura que o pintor
propõe. Observar a matéria, o ritmo das pinceladas desse pintor, que é diferente em
cada artista. Em grupos de cinco ou seis pessoas experimentamos mostrar o quadro.
Assistimos uns aos outros e vamos procurando identificar as cores, as formas, as
tensões, os ritmos, as soluções que cada um encontra para transpor determinado
aspecto. No caso desse quadro acima, em especial, surgiam questões sobre como
mostrar esse movimento da água que sobre em oposição ao barco que desce, a tensão
em relação às pessoas na água, as linhas propostas pelas velas e a quebra que a luz
aporta para a estrutura do quadro. São questões de observação, identificação,
transposição.
Normalmente inicia-se com uma imagem que seria a primeira impressão do
quadro e logo passa-se para outras imagens seguindo a dinâmica que acredita-se ser
mais justa para causar a sensação do todo da tela. São enfatizadas as transições, o não
movermos todos juntos para valorizar determinadas instâncias do quadro, assim como
a dinâmica do corpo ao mover-se que seguirá tal ou qual matéria e cor, a composição
com os corpos dos colegas, o espaço que utiliza, as linhas ali presentes, enfim, os
diversos aspectos que haviam sido anteriormente trabalhados aqui fazem sentido, são
o esteio que temos para amparar a improvisação, agora já no campo da criação
embora ainda com regras delimitantes.
Ao assistirmos os trabalhos dos diversos grupos detectam-se as diferentes
maneiras de cada um para alcançar o objetivo. Mesmo quando não se consegue
nitidamente ver o quadro de onde partiram, surgem imagens do grupo e dos atores
ricas, curiosas, matéria bruta para construir cenas. Ao observar o trabalho dos colegas,
pode-se enxergar situações, atmosferas, conflitos, estados dos atores e do grupo de
prontidão e entrega, de jogarem-se num mundo abstrato com a concretude de seus
corpos.
179
Na oficina ministrada em Blumenau propus um trabalho a partir de um quadro
de Van Gogh (1853-1890) mostrado na figura abaixo. O trabalho iniciou com o grupo
observando a foto dessa pintura que escolhi no livro que lhes apresentei. Orientei a
observação no mesmo sentido daquele proposto no curso de verão em Paris. Pedi que
tomassem alguns minutos para se organizarem e em seguida mostrarem o quadro em
grupo, com três trocas de composições que acompanhassem a dinâmica dessa obra.
Fig.23 “Um trigal com Ciprestes”, 1889. Van Gogh.
Fonte: http://www.vangoghgallery.com/. Acesso em 15/01/13
Fig. 24 Alunos da oficina “Imaginação pelo Movimento”- Blumenau
Fonte: Arquivo pessoal
Observando as fotos pode-se notar que os alunos reproduziram a imagem do
quadro como um espelho e não para o público. Pode-se notar principalmente a partir
do rapaz de verde que se coloca como o volume do cipreste à esquerda, enquanto que,
na tela, essa árvore está à direita. Esse experimento foi realizado no terceiro dia de
180
oficina, foi a primeira tentativa após exercícios preparatórios com aqueles mesmos
Vinte Movimentos que costumo usar, mencionados anteriormente, assim como com
cores e matérias. Percebe-se que alguns dos alunos ainda estão muito preocupados
com a forma mimética, usando sobretudo os braços para mimar a forma externa. Ao
seguirmos o trabalho vamos em busca do movimento que essa imagem propõe, com
suas formas, cores, textura, composição. Não basta uma imagem reproduzida, mas é
uma série delas para expressar o movimento que ela traz, levando em conta sua
emanação: intensidade, teor, a tensão entre as cores, as formas, umas em relação às
outras e em relação à moldura, a composição, a pressão do pincel que denota o ritmo
das pinceladas como ficam evidentes em Van Gogh, por exemplo.
Com a Oigalê trabalhamos com um quadro de Rubens (1577-1640), na foto
abaixo, enfocando os mesmos aspectos técnicos. A escolha deste quadro foi em
função de ser uma paisagem com linhas mais abertas e amplas, pelas quais poderia
estabelecer imagens campesinas, que se assemelhassem à ideia dos pampas, universo
pictórico com o qual íamos trabalhar no espetáculo. Surgiram movimentos e
composições interessantes, com o arco-íris sendo “desenhado”com a execução de uma
estrelinha (ou roda, da acrobacia) por uma das atrizes que impulsionava a troca de
posição de todos os outros em cena, que se aglomeravam de um lado como o bloco
escuro das árvores que podemos observar no quadro.
Fig.25 “Paisagem com Arco Íris”, 1638. Peter Paul Rubens.
Fonte: http://www.peterpaulrubens.org/. Acesso em 17/01/13
Em outro dia de ensaio trabalhamos com uma pintura de Rubens, no
intuito de, além da questão técnica das linhas e composições, aproximarmo-nos do
ambiente dos bufões, linguagem que o grupo pretendia usar em seu próximo
181
espetáculo. Importante ressaltar que a cada vez que vamos trabalhar com um quadro
em especial, normalmente através de fotos em um livro, aproveita-se para conhecer
outros quadros, para assim poder observar seu estilo, sua poética, suas pinceladas, as
atmosferas que cria, os temas que aborda, conjunto que vai influenciar na construção
corporal. Nesse caso, portanto, todo o livro serviu como estímulo de criação. O
resultado não foi tão proveitoso como esperado, suponho que pela dificuldade do
elenco em mergulhar no universo da feiura e do grotesco que essas obras abordam, e
que o grupo ofereceu bastante resistência em penetrar. Tanto foi assim, que optamos
por deixar a ideia de bufões, dada a pressa para a construção do espetáculo que já
tinha data de estreia, fato que não permitia o tempo de experimentação necessário
para esse tipo de linguagem.
Esse trabalho dos quadros, de uma maneira geral, me abre muito a percepção para ver o equilíbrio dos corpos no espaço, das formas no espaço. Então se tu conscientizas isso fica tão bom quanto o início, meio e fim do movimento dos corpos em cena. Então isso tudo torna-se um organismo e aí tu consegues o quadro, se isso estiver bem. E consciente, então, nossa! É para isso que eu quero estar aqui trabalhando. (BRASIL, 2012)69
Quando interrogada sobre o trabalho com a pintura no estágio de verão em
Paris, a colega chinesa Adda, comenta que não conhecia a maioria dos pintores com
os quais improvisamos, mas, ainda assim, acredita que o fato não constituía uma
barreira para ela poder contribuir com o grupo:
...conhecia alguns, os mais famosos, pois não tenho a oportunidade de vê-los em Hong Kong. Por exemplo, o pintor com o qual trabalhamos, Carravagio, eu não conhecia antes [...] e mover-se de acordo com essa pintura eu acho muito muito interessante, porque isso me convenceu de que uma pintura ou qualquer forma de arte pode ser uma linguagem comum. Isto é muito lindo e tocante. (YANG, 2011)
69 Ator Paulo Brasil da Cia.Oigalê.
182
6 CRIAÇÃO
Chegamos ao ápice da prática, ao objetivo maior de todo o processo de
preparação até aqui exposto. A criação equivale ao auto-cours na pedagogia de
Lecoq, ou seja, o momento de criar algo, organizado de alguma maneira, sobre um
dado tema para ser mostrado a um público, como foi explicado na apresentação de
aspectos da Escola. Aqui me estenderei também para outras experiências de criações
que resultaram em espetáculos, no sentido de analisá-las quanto às possíveis
contribuições dessas práticas em tais processos criativos, do ponto de vista da direção
e da atuação.
6.1 AUTO-COURS
A improvisação já é uma prática de criação que propicia a transformação do
ator em autor na medida em que permite liberar suas forças criativas. Entretanto, da
maneira aqui exposta, encontra-se ainda limitada a um caminho determinado por um
professor ou diretor, ou seja, são jogos com regras definidas. O espaço para criação
refere-se ao momento mais livre no qual, a partir de todas as práticas anteriores, o
artista vai procurar expressar suas ideias, seus desejos. Na pedagogia de Lecoq existe
um tempo diário reservado para esse tipo de exercício chamado auto-cours, o modo
como Lecoq designa o trabalho que os alunos desenvolvem sozinhos, suas criações
pessoais. Na Escola, a cada sexta-feira os alunos recebem um tema para improvisar,
como, por exemplo, “um lugar, um fato”, “o homem invisível”, “o combate das
matérias”, “um quadro, um pintor”, “a cidade”. Eles organizam-se em pequenos
grupos que trabalharão durante toda a semana sem a supervisão de um professor, por
cerca de uma hora, tempo designado para essa criação, que será apresentada na sexta-
feira seguinte diante de todos os professores e colegas da Escola.
Ao final do primeiro ano, no último trabalho do auto-cours, os alunos
escolhem um tema de seu interesse, concreto ou abstrato, como, por exemplo, “ o
lixo”, “o pão”, “o risco”, “o imigrante”, “o hospital”. Eles saem para as ruas para
observar o cotidiano dos lugares onde se manifesta esse tema, procurando captar tudo
o que faz parte daquele universo. Baseados nessa experiência vivida, criam um curto
183
espetáculo, apresentado nas soirés, uma das poucas ocasiões em que a Escola é aberta
ao público em geral.
Alguns alunos reclamam desse sistema, sentindo-se lesados por pagarem tão
caro por uma escola em que devem trabalhar diariamente um período sem o professor,
somente com os colegas. Alegam, por exemplo, que seria mais proveitoso se fossem
criticados ao longo da semana, para não chegarem no dia da apresentação com
trabalhos precários, como pode acontecer, o que aproxima-se do que sucede em uma
situação qualquer de estreia. No meu entender, são alunos que têm dificuldade em
compreender esse momento como uma aprendizagem, ou uma parte dela, pois estão
acostumados com a concepção hierárquica através da qual um professor é o mestre e
ele o aprendiz, numa atitude passiva, subalterna, filial. Essa atitude é, muitas vezes,
transferida para o diretor, e os atores vão continuar esperando que eles, então, lhe
digam o que fazer. Considero fundamental essa experimentação sem a orientação
direta de um professor, com a dificuldade da criação em grupo, com diferentes
desejos e entendimentos que se entrecruzam em busca de soluções. Há uma diferença
significativa na postura desses atores, uma vez que passam a perceber a necessidade
de sua própria contribuição. Espera-se que o ator pesquise sobre sua personagem, que
busque referências corporais e comportamentais para ela, que encontre as palavras
que ela diria, que construa o universo ao qual ela pertence. O diretor vai dando pistas,
a encenação vai tomando corpo, mas no meu entender, o ator deve trazer sua
colaboração, a partir de sua pesquisa pessoal.
É uma experiência que visa forjar uma atitude artística, onde se é forçado a se
colocar, a contribuir, acarretando um amadurecimento tanto em termos artísticos
quanto pessoais. É também uma oportunidade rara de exercitar a criação
dramatúrgica, aspecto difícil de ser trabalhado sem o apoio do texto. Esse
procedimento contribui para a autonomia do ator frente a seu trabalho, salientando a
capacidade de tornar-se autor de seu próprio teatro, uma crença ali difundida e com a
qual compartilho.
Nesse sentido, o auto-cours pode ser considerado uma prática inovadora em
Lecoq que ecoa no teatro contemporâneo, uma vez que subsidia a valorização da
criação colaborativa. Trata-se de um exercício pedagógico que, além da atuação,
trabalha também a direção e a dramaturgia. É um momento em que todos os atores
são criadores, em que têm a oportunidade de exercerem sua autoria, ainda que em
184
constante negociação com os colegas. O exercício de apresentar semanalmente
desenvolve um sentido de objetividade na criação, de aguçamento do olhar e de
capacidade crítica – tanto ao fazê-la quanto de estar aberto para recebê-la. Baseado na
premissa “não falem, façam”, o auto-cours propicia uma vivência mais próxima à
vida profissional, em que há um prazo determinado para estrear, e o artista deve
contribuir, sem ficar esperando que alguém defina o que ele deve fazer – a não ser que
seja essa a atitude dele esperada.
No estágio de verão, em 2011, foi proposto o auto-cours com um trabalho
sobre a pintura. Chegara o momento da criação de um quadro. Após treze dias de
práticas diárias permeadas de exercícios que identifico como preparatórios, tais como
os rudimentos de acrobacia, de máscara neutra, alguns dos Vinte Movimentos,
improvisações com os elementos, com as cores e algumas matérias, desenho das
linhas com bastões, com os temas da música e da poesia, passamos à pintura.
Surpreendeu-me constatar a maneira como todos os exercícios feitos até então eram
relevantes para o que queríamos desenvolver.
Os professores e os alunos trouxeram livros com diferentes pintores, a partir
dos quais deveríamos definir os grupos em função do artista com o qual quiséssemos
trabalhar. Meu grupo formou-se com seis pessoas em torno das obras do pintor inglês
Francis Bacon e, em consenso, escolhemos o tríptico May–June (foto abaixo).
Fig.26 “May–June”, 1973 - Francis Bacon
Fonte: http://www.francis-bacon.com/paintings/triptych-may-june-1973/?c=72-73.Acesso em 17/01/13
185
Tal como a experiência com o quadro de Turner, fomos instruídos a iniciar
pela estrutura do quadro, pela primeira impressão que ele suscita, pela sensação que
causa. Atentar para onde o olhar é dirigido a partir das linhas, das formas, das cores,
das manchas, considerando as tensões e as relações de equilíbrio e desequilíbrio entre
esses elementos. Fizemos uma primeira tentativa a partir dessas diretivas dadas pelo
professor, dando início ao processo de criação, em grupo, de forma colaborativa.
Decidimos, primeiramente, encontrar as cores e tons daquele quadro, bem como
maneiras de transpor seu equilíbrio na tela para o espaço onde estávamos, buscar
modos de traduzir a imagem do plano bidimensional para o tridimensional. Em
seguida, buscamos com o corpo as matérias que traduzissem a densidade daquelas
formas, que nos “apoiasse” na construção. Que matéria teria esse preto? Surgiram
relações com piche, com vômito, ou ainda, de vômito com a espessura do piche.
Passamos a identificar as formas: os retângulos vermelhos escuros na vertical, os
beges na horizontal, a figura central que parece girar ou torcer várias cores
simultaneamente, e ainda as linhas brancas que demarcam todas essas formas. Parecia
haver um movimento em espiral que girava em tensão…
Iniciamos pelas linhas verticais e uma horizontal presentes na tela, uma pessoa
procurou trazer o vermelho escuro das laterais, outra o preto central, outra trazia essa
figura densa, multicolorida com um movimento contido, outra ainda ficava na lateral
como que empurrando todas as outras, sem se tocarem, dando uma impressão de
compressão, outra tentava estabelecer o retângulo bege de base. As flechinhas brancas
e a lâmpada deixamos para outro momento.
Quanto à composição da tela, nos questionávamos e experimentávamos em
movimento: será que é essa figura central que se move ou é o espaço que se move ao
redor dela? Parece que era o espaço mesmo que se movia ao seu redor, como a
sensação do quarto girando para alguém que bebeu demais. Formamos, então, a
estrutura das linhas brancas com nossos corpos, e aos poucos nos movíamos ao redor
da figura central que, por sua vez, provocava um constante desequilíbrio. Algumas
colegas voltavam para as linhas verticais, mas com um constante movimento de
agrupamento no centro. Uma colega fazia uma torção com o corpo descendo em
“ponte”, até que chegávamos a uma espécie de explosão em diversas direções e
ritmos, que acalmava-se no momento que eu fazia um movimento para a frente me
186
espraiando no solo, inspirada na dinâmica das ondas no mar, em alusão ao vômito que
identificáramos.
Outro grupo trabalhou com um quadro de Van Gogh e o outro ainda com um
de Caravaggio. As diferentes dinâmicas das cores e das formas de cada pintor, o ritmo
de suas pinceladas, a espessura da tinta utilizada, as nuances propiciadas pelas luzes,
eram características que tornavam-se visíveis diante dessa pequena plateia, com maior
ou menor clareza dependendo do grupo. Embora partindo de um modelo, os quadros,
o objetivo final é que possamos ser o pintor. Que se possa pintar o que se queira com
o corpo, seja uma pintura que um diretor queria usar como parâmetro ou algo que
decidimos usar internamente para nos guiar. Por exemplo, se vou fazer uma
personagem de Lorca, posso associar a ele determinadas cores, matérias, dinâmicas,
animais, poesia, música, enfim, uma gama de possibilidades imaginativas que se
abrem para contribuir com a criação.
Percebe-se aqui a influência do alargamento da imaginação, que veio sendo
trabalhada nas improvisações a partir das identificações com a natureza das coisas e
suas dinâmicas, instrumentalizando o corpo no sentido de alargar suas possibilidades
de ritmos, qualidades de presença, percepção de composição no espaço. É com esse
corpo previamente trabalhado que o ator vai formar, vai criar uma linguagem. O
objetivo maior de todo esse trabalho de absorção anterior é justamente chegar a esse
momento com o corpo disponível, com meios concretos, físicos, materializados,
incorporados, com a imaginação desperta fluindo através de movimentos corporais de
cunho poético.
Foi importante constatar como, nesse processo, emergia a vontade e a
necessidade de usar vários exercícios propostos anteriormente, confirmando o acerto
do caminho pedagógico da Escola. Precisávamos das matérias, das cores, da
manipulação e da movimentação dos bastões em formas, das tensões entre nós, de não
nos movermos todos ao mesmo tempo, do mar com bastões, enfim, tudo estava a
serviço da construção daquela tela de Bacon. Para expressar algo tão abstrato havia
várias ferramentas para se lançar mão, gerando uma presença a partir de diferentes
estados e de possibilidades imaginativas inscritas no corpo.
Pode-se reconhecer, portanto, o cuidado com a sistematização dessa
pedagogia, da construção metodicamente encaminhada a fim de prover meios
concretos como ignição para o processo criativo. O ponto de partida poderia ser um
187
texto, uma personagem já descrita em uma obra dramatúrgica ou literária, mas aqui é
um quadro por meio do qual pode-se identificar características da pintura de Bacon,
além da tela em si. Não se trata de expressar de qualquer jeito, há uma linguagem
previamente ensinada para que se possa falar aquela língua da pintura - assim como a
da poesia e a da música - através do corpo.
Embora não mencionasse e talvez nem tivesse conhecimento direto da prática
de Rudolf Laban (1879-1958), muitas das ideias de Lecoq assemelham-se às desse
artista, especialmente no que tange às relações do corpo com o espaço, com o peso,
com as direções, com as linhas e tensões que ele cria e desenha. Entretanto, segundo
Gordon (2009, p.214), a pedagogia de Lecoq nunca alcançou a coerência sistemática
conceitual de Laban. Sem estabelecer uma hierarquia valorativa entre as duas
abordagens, tampouco aprofundar aqui sobre o ensino de Laban, discordo de Gordon,
pois considero a pedagogia de Lecoq bastante sistematizada, com uma evolução passo
a passo que vai induzindo a construção dessas ideias no corpo e, consequentemente,
no jogo do ator, o que justamente constitui seu diferencial perante outras. Entretanto,
sua pedagogia só pode ser inteiramente compreendida através da experiência prática
de colocar-se naquelas situações, vivenciando concretamente aquelas dinâmicas,
pesquisando em si mesmo, com as dificuldades e complexidades que isso acarreta,
reiterando o caráter experiencial e concreto mencionado acima. Sua pedagogia é
altamente estruturada, concatenando todas as aulas ao redor de um tema, que produz
um arsenal de possibilidades físicas e imaginativas a serem utilizadas. Sua
experiência quer como atleta quer como professor de educação física, de reabilitação
corporal e de arquitetura contribuiu, certamente, para alicerçar essa sistematização.
A linguagem corporal, em parte codificada e proveniente de uma pesquisa
com limites definidos – como aqueles referentes às diferentes dinâmicas das cores,
por exemplo –, possui limites estabelecidos a partir de parâmetros previamente
pesquisados por Lecoq. Há uma margem de liberdade para procurar seu próprio
movimento nesse contexto que, entretanto, no estágio de verão não foi possível,
devido à falta de tempo. Mesmo no curso de formação, não havia tempo suficiente
para a experimentação, o que acarretava em uma indução àquelas possibilidades de
movimentos. Na Escola são fornecidas técnicas para tal pesquisa, porém caberá a
cada ator desenvolvê-las, aprofundá-las, experimentar outras nuances das cores, como
os claros e escuros, por exemplo. Pesquisar as cores e também as luzes, de maneira tal
188
que tenha-se diferentes possibilidades de experimentação ao aliar luz e cor, adicionar
brancos e pretos, mexer com a própria palheta de cores, para então jogar com a
maneira como uma estrutura se move no intuito de tornar visível tal pintor e tal
quadro.
6.2 DIREÇÃO
Nos trabalhos desenvolvidos com a companhia Oigalê, apliquei também essas
práticas, porém com objetivos diferentes, um enquanto preparadora corporal e outro
enquanto diretora. Em “Miséria...”, como apontei anteriormente sobre o treinamento
com os Vinte Movimentos, o trabalho foi bem assimilado, alcançando ótimos
resultados. Os atores apropriaram-se da técnica tanto para a criação de suas
personagens bastante fundadas na construção corporal, como para o jogo estabelecido
entre eles. O principal motivo do resultado ter sido positivo, acredito, foi a
confluência entre a prática e a linguagem explicitamente baseada na commedia
dell’arte, o que possibilitou aos atores uma transposição mais direta entre treinamento
e cena. Segundo Hamilton Leite, diretor do espetáculo, o trabalho desempenhado foi
essencial para as linhas de corpo e para o espetáculo como um todo, que usa como
espaço cênico um losango, ou seja, sua concepção utiliza a ideia de linhas dentro de
um espaço e não uma roda, um semicírculo.
Essas linhas do trabalho com (as práticas de) Lecoq, contribuiram não só no corpo, mas foram sendo encontradas nos deslocamentos dos atores nesse espaço cênico já delimitado em losango, e a partir disso se chegou num retalho do figurino do Arlequim, que no caso é o Miséria. Contribuiu, também, trazendo uma maior limpeza e precisão para a atuação e obviamente para a encenação como um todo. (LEITE, 2012)70
Já no trabalho de direção de “O Baile...”, o resultado a partir das técnicas de
Lecoq não foram tão diretamente perceptíveis, ainda que também tenham contribuído
de diferentes modos. Além do uso delas como instrumentalização dos atores, o
70 Ator, diretor, produtor e fundador da Cia. Oigalê de Teatro. Entrevista concedida em 30/10/12 em Porto Alegre.
189
processo criativo foi embasado na ideia de auto-cours, de criação pessoal, de criação
colaborativa, com seus prós e contras.
O convite para a encenação me chegou em um momento determinante dessa
pesquisa, quando eu estava ainda desenvolvendo meus estudos com “bolsa sanduíche”
em Paris e intencionava fazer mais um experimento prático ao voltar ao Brasil. Ainda
que não fosse uma escolha própria, mas uma encomenda, a criação desse espetáculo
suscitava um instrumental para a direção que eu almejava utilizar como parte do
corpus de análise. Assumir essa direção surgiu, portanto, como a possibilidade de
realizar tal experimento, não só em relação ao trabalho de ator, mas também de outro
ponto de vista sobre essa mesma prática.
Quando ingressei no projeto de “O Baile...” já havia um canovaccio71
elaborado com base no material colhido nas pesquisas do grupo realizadas em
diversas cidades no interior do Rio Grande do Sul, e era chegada a hora da montagem,
que deveria resultar num espetáculo de rua. Escrito pelo renomado dramaturgo
brasileiro Luis Alberto de Abreu, propunha como narrativa principal a história do
Baile dos Anastácio, um baile que durou 30 dias. Fato verídico que serviu como fio
condutor para abordar temas como o descaso com as terras do pampa sul americano,
passíveis de serem vendidas para quem pagar mais. De forma alegórica, as terras são
representadas por Pampiana, uma moça cujos pais, Minuana e Riograndino
Anastácio, desejam casar com o pretendente que lhes pareça o mais lucrativo. Os
pretendes representam os interesses sociais, econômicos e políticos, através de um
rapaz de família tradicional da região, um empresário e um candidato político,
respectivamente.
Iniciamos com dois encontros de uma semana cada, com oito horas diárias,
nos quais trabalhamos com várias práticas antes descritas nesse estudo, como o
alongamento, o aquecimento e as improvisações. O elenco era diferente daquele com
o qual havia trabalhado no espetáculo “Miséria...”, com exceção de dois atores.
Embora jovens, a maioria possuía experiência anterior e, além de disciplina e de
disposição para o trabalho, demonstraram rapidez na aprendizagem das sequências e
abertura para mergulharem nos temas dos elementos e das matérias. Abertura de
71 Canovaccio ou canevas, espécie de roteiro utilizado pelas companhias de commedia dell’arte para orientar as improvisações que apresentavam de acordo com o local, o público, o intento da apresentação.
190
espírito, pois há sempre aqueles que julgam demasiado simples ou abstratos esses
temas, apresentando grande resistência para se deixar levar e experimentar o contato
com essa dimensão da dinâmica interna das manifestações. Ainda assim, o trabalho
foi produtivo e prazeroso, como atestam os depoimentos dos atores.
Tu crias uma memória corporal, algo que não é psicológico, não é intelectual, é o corpo que aprende. Não é só eu olhar e observar e entender “ah, ok, é assim mesmo”, e tu vais lá e faz. Não, tu passas pelo processo e ele fica no corpo, impregna, e quando tu precisas, tu “snap” (estala os dedos) e está lá. (PAZ, 2012)72. Todo esse trabalho das linhas fica latente, essa impressão que fica lá. Então se pegarmos uma foto do “Miséria...”, de uma cena qualquer, num momento qualquer, a vamos achar aquilo que trabalhamos agora com o quadro: tem linhas, tem profundidades, tem o equilíbrio das formas no espaço. A gente encontra isso, está lá! O interessante é quando a gente liga as nossas antenas consegue visualizar e conduzir isso dentro de cena para não chegar ali e se colocar num espaço qualquer. Não, eu não estou num espaço qualquer, eu estou no equilíbrio na cena. Então eu tenho que observar quem está onde, pra compor, né? E acho que o legal disso é o resultado, o objetivo, o fim, e a experiência que a gente passa agora te capacita pra chegar lá, te dá um foco. (BRASIL, 2012)73
O cannovaccio de Abreu propunha que “um grupo de atores chegava a uma
praça e começava a contar a história de um baile que durou um mês”. A primeira
questão foi, então, a de definir quem era esse grupo. Como os atores da companhia
haviam manifestado seu desejo de trabalhar com a linguagem de bufões, propus
alguns exercícios para este fim nos dias que se seguiram. Na pesquisa por eles
realizada havia muitas histórias de assombrações e de mortos que se tornaram santos
em algumas pequenas cidades do interior. Experimentamos juntar essas duas ideias,
mas, após alguns dias de tentativas com os bufões, percebi que o grupo não estava
pronto para tal desafio, pois não teríamos tempo suficiente para aprofundar essa
linguagem. Resolvemos que o grupo seria dos mortos sobre os quais havia registros.
Definimos quais deles seriam incluídos e quem faria quais personagens.
A partir dessas escolhas, solicitei que cada ator pesquisasse sobre a sua
personagem dentre o vasto material por eles coletado e registrado em textos, vídeos,
entrevistas, livros, etc. Pedi que escolhessem figurinos do guarda-roupa do grupo
tanto para as suas personagens, como para as dos outros, e, ao vesti-los,
72 Atriz Karine Paz, da Cia.Oigalê, entrevista concedida em junho/2012.
73 Ator Paulo Brasil, Cia.Oigalê, entrevista concedida em junho/2012.
191
experimentassem formas de andar, de fazer gestos, de falar, de se relacionar com os
outros, baseados na vida daqueles que as inspiraram. Propus algumas situações para
eles jogarem com aquelas figuras, como um baile onde cada um chegava e estabelecia
relações com os outros. Essa proposta foi praticamente a mesma que havíamos feito
anteriormente como exercício com as matérias, o que inspirou a improvisação. Agora
com os figurinos, aliavam as matérias como dinâmicas de movimento, como, por
exemplo, a maneira “pasta de dente” como o Negro Maruca – um escravo que fora
enterrado vivo – se arrastava com uma corrente atada ao seu pé, ou ainda a
movimentação em ondas que Maria do Carmo usava para atrair a atenção sobre si –
ela era uma “mulher de vida airada”, livre, com modos não condizentes com a sua
época. O interesse por essas personagens foi tamanho que tomamos muito tempo com
eles, geramos muito material, como a encenação da morte de cada um em três cenas e
depois em três fotos.
Quando o dramaturgo voltou para assistir o trabalho, algumas semanas mais
tarde, porém, alertou-nos para o fato de termos material para dois espetáculos! Se para
o andamento desse processo esse trabalho poderia ser considerado perda de tempo,
enquanto pesquisa foi o momento em que pude constatar o quanto a técnica
alimentava o fogo criativo dos atores, e que contribuiu significativamente no
momento da criação em si.
Como tratava-se de uma montagem profissional, com patrocínio e obrigações
definidas previamente, a partir daquele momento procurei encaminhar a montagem do
canovaccio de forma mais objetiva, propondo improvisações que partiam diretamente
dele, como, por exemplo, “como Zé Joça convenceu o patrão a beber”.
Experimentávamos uma mesma situação com diferentes atores jogando aquelas
personagens e comentávamos o que parecia mais interessante, possibilitando que
todos contribuíssem com sua criação para a cena. Por último, jogavam os atores
designados para os papéis com a proposta de inserir as sugestões, ideias e comentários
precedentes.
Em um mecanismo de vai e vem com o dramaturgo, registrávamos o material
levantado nas improvisações, enviávamos para ele, e depois Abreu nos retornava um
texto rimado, com ritmo de trovas, conciso, inteligente e divertido. Com admiração e
deleite voltávamos então a encaixar esse texto nas cenas e nas personagens, agora
elevadas ao patamar de alegorias. Esse procedimento resultou em um material
192
bastante rico, principalmente para as primeiras cenas, porém tomavam muito tempo,
pois experimentávamos várias alternativas, inclusive com elementos ou matérias
diferentes, o que por fim tornou-se difícil de sustentar, dado o pouco tempo que
restava para a estreia.
Ajustar os textos recebidos àquilo que havíamos criado anteriormente
representava um desafio para todos. A primeira barreira que surgia era a do próprio
corpo do ator, agora mais preocupado em lembrar as palavras certas para acertar a
rima, incorporá-las e torná-las orgânicas. Ao mesmo tempo, sentíamos o alivio de
poder agora trabalhar no sentido de estabelecer as ações, de fixar as movimentações e
repeti-las, possibilitando o aprofundamento em detalhes como de limpeza e de riqueza
dos gestos, do ritmo de cada um e do todo, aos poucos fazendo o polimento
necessário. Como outro estágio da imaginação na criação, agora o trabalho com as
matérias, os elementos, as formas e linhas enfatizadas anteriormente iam voltando,
começando a fazer sentido outra vez, enriquecendo os movimentos, os gestos, o jogo.
Na posição de diretora, colocava-me como uma articuladora das camadas de
entendimentos estéticos provindos da equipe completa do empreendimento. Equipe
composta por artistas de diferentes áreas, que envolvia, além dos atores, o
dramaturgo, três músicos, o cenógrafo, o figurinista, os outros membros da
companhia responsáveis pela produção, a artista gráfica e até mesmo o material da
pesquisa em si. Todos deveriam estar em concordância, todos deveriam ser ouvidos,
todos deveriam e queriam contribuir. E assim foi, uma polifonia dos diversos textos
entrecruzando-se, tecendo o evento. Como textos em movimento, em palavras, em
voz, em música, em metáforas, em símbolos, em imagens, em cores, em formas, em
linhas, como quadros em movimento!
193
Fig.27 “O Baile dos Anastácio” – foto de cena. Porto Alegre, 2012.
Fonte: Arquivo pessoal
Um importante ensinamento proveio dessas circunstâncias. Algo que, na
verdade, eu já vivenciara anteriormente na direção do espetáculo “O Defunto”. Esse
tipo de processo criativo demanda tempo para a experimentação, pois, do contrário,
corre o risco de acirrar a ansiedade dos atores e dos colaboradores, o que contribui
para gerar tensão, má vontade e bloqueio na criação. Não só a parte da construção da
cena em si, mas até mesmo a parte técnica, para que realmente seja absorvida pelos
atores. Com a pressa, reduzimos o tempo de aquecimento, o que implicou uma maior
dependência do diretor, parece que o ator fragilizava-se, esperando ser-lhe indicado o
que fazer ao invés de partir dele a criação. Agravava o fato de que os novos membros
do elenco não haviam trabalhado dessa forma anteriormente, podendo-se perceber a
dificuldade de se colocarem no espaço e em relação aos colegas, aos objetos do
cenário e dos adereços. Ainda que fossem bons improvisadores, capazes de propor e
de responder criativamente às ideias sugeridas, pareciam não ter noção do espaço
como um todo e da movimentação de grupo.
A metodologia de Lecoq atua no sentido de proporcionar ao ator um sentido
de ocupação de seu corpo no espaço, o que significa que, enquanto improvisa,
propondo e/ou aceitando o jogo do colega, o ator propõe um desenho no espaço. A
consciência do corpo no espaço é um diferencial para o ator, que não precisa que
alguém de fora o posicione, ele deve perceber as tensões no espaço e colocar-se de
acordo com elas, jogar com elas, usar esse recurso em sua criação. Desde o início do
processo propus o andamento da criação embebida do espírito – ou da crença – de
executar um processo colaborativo onde todos os artistas envolvidos contribuíssem
194
com seus trabalhos e o meu papel seria o de orquestrar, organizar e desenhar esses
elementos, propondo caminhos para construir as cenas. Assim como o dramaturgo
contribuíra com um roteiro inicial, nessa concepção o ator também seria responsável
por originar suas personagens e o jogo que elas são capazes de propor, ficando a
cargo do diretor a ordenação, a expansão, a combinação, a criação de um desenho que
expressasse as intenções subjacentes. Nesse caso, a crítica ao poder e ao descaso para
com a terra, para com essa região pampiana e para com a mulher.
A falta de prática do trabalho com o auto-cours evidencia-se pela dificuldade
do grupo em trabalhar sem um diretor ou assistente observando. Um membro propõe
algo e antes mesmo de experimentarem aquela proposta, alguém já propõe outra
coisa, e muitas vezes acabam falando muito mais do que trabalhando na prática. Na
Escola passa-se por essas dificuldades, que considero como parte comum em
processos de criação em grupo, mas desenvolvemos essa maneira de trabalhar de
maneira autônoma, que visa encontrar um equilíbrio entre propor, acatar, discordar,
modificar, abrir mão de sua proposta, escutar-se, estar aberto para experimentar
aquilo que não lhe parece o melhor.
O tipo de direção que propus, baseada nos ensinamentos de Lecoq, portanto,
pressupõe atores que tenham autonomia de criação. Para isso, precisam de
vocabulário, de corpo e de imaginação, justamente, para que possam distanciar-se da
atuação realista, criar um universo não cotidiano, um universo alegórico. Quando me
afastei por três semanas do processo, o grupo seguiu trabalhando a parte musical, mas
as cenas não avançaram, e praticamente nada novo foi criado, embora tivessem
indicações, sugestões de um cronograma a ser seguido. O que vem a corroborar com a
ideia de que, sem passar por esse tipo de experiência que propicie alguma autonomia
ao ator, principalmente enquanto ainda em formação, a dependência para com o
diretor se perpetua.
A direção da Cláudia nesse processo foi sempre muito estimulante. Seu domínio técnico (sobretudo no que diz respeito à pedagogia de Jacques Lecoq) contribuiu grandemente na composição dos meus personagens – ao mesmo tempo em que permitia tal liberdade de criação que tornou possível a impressão no espetáculo de marcas muito pessoais de cada um dos envolvidos no trabalho. Evidentemente existiram momentos de dúvidas, hesitações, e mesmo de algumas frustrações. Mas como Anne Bogart, acredito que: “No teatro, nós muitas vezes achamos que colaboração significa concordância. Acredito que concordância demais cria espetáculos sem vitalidade, sem dialética, sem verdade. Concordância irrefletida amortece a energia em um ensaio. Não acredito que
195
colaboração signifique fazer mecanicamente o que o diretor dita. Sem resistência não existe fogo”. (FARIAS, 2012)74
Também Meyerhold enfatizava a importância da liberdade de criação do ator,
da imaginação criativa, da necessidade de o ator ler, de conhecer teatro e arte, de
propor, ser artista e não ficar esperando as ordens de um diretor. Ele organizou a
biomecânica como um sistema de treinamento para que os atores adquirissem um
corpo disponível para o trabalho, para o jogo de colocar palavras, interagir com os
demais e com o público. Costumava afirmar que o teatro é um jogo! É importante
podermos falar de teatro como jogo, usar o verbo “jogar” ao invés de “atuar” e muito
menos “representar”, pois não me parece tratar-se da mesma coisa. Jogar envolve o
lúdico, envolve o prazer, a troca, aspectos que já estão implícitos na própria palavra, e
que diferem da ideia compreendida em atuar e representar.
Uma das características da prática de Lecoq é justamente dar subsídios para o
ator tornar-se mais independente do diretor. Na experiência de direção de “O Baile...”,
percebi a dificuldade dos atores nesse sentido, principalmente com os mais antigos no
grupo. Os mais novos, recém-formados ou terminando a faculdade de Artes Cênicas,
mostravam-se mais abertos, embora sem a mesma experiência de contato com o
público, ainda mais em se tratando de teatro de rua. No trabalho com as matérias e
com os elementos, a abordagem com as artes, que foi o recorte que escolhi para
estudar, o objetivo final é justamente que o ator tenha recursos de onde tirar material
para criar suas personagens. É algo que deve estar anteriormente impresso em seu
corpo, pela experiência, e em sua mente, como fonte infinita de inspiração para a
imaginação, uma vez que se trata da natureza em toda sua amplitude. A compreensão
da natureza como fonte de inspiração é o aspecto que propicia maior autonomia para
o ator, pois é uma pesquisa que ele pode desenvolver sozinho, pode buscar olhando ao
redor, observando o movimento das coisas, como apoio para criar uma personagem
diferente de si, criar um “outro”, deixar-se habitar, trazer à tona esse outro. Acredito
na construção conjunta da personagem que vai surgindo a partir de um tema, de algo
que se quer tratar, abordar, dizer com palavras ou não. Seu caráter vai sendo definido
e vai definindo as ações desse corpo.
74 Ator Paulo Roberto Farias, da Cia. Oigalê e Ato Cia. Cênica de Porto Alegre. Entrevista concedida para publicação do Jornal Informativo Oigalê em dezembro/2012.
196
A partir de características relacionadas principalmente ao caráter de cada uma
das personagens, fomos agregando qualidades relacionadas aos elementos e às
matérias. Pode-se perceber influências da prática lecoquiana no espetáculo quando
Minuana faz a ventania, nas linhas de Pampiana, no cachorro de Zé Joça, qualidades
que foram trabalhadas nessas personagens após a construção primeira em que se
basearam no material de pesquisa empregado como subsídio. Anastácio, o patriarca
da história, gaúcho de tradição, trabalhou bastante as linhas provenientes da prática
dos Vinte Movimentos e das matérias, o que lhe conferiu uma figura rígida, dura e
pouco maleável para quando estava sóbrio e outra para quando estava bêbado.
Fig.28 Ator Hamilton Leite em “O Baile dos Anastácio”
Fonte: Vera Parenza (arquivo pessoal)
Dirigir um espetáculo envolve lidar com diferentes crenças sobre o fazer
artístico. Desde o que é necessário para cada dia de ensaio, o aquecimento ou não do
corpo e como fazê-lo, até a maneira como o diretor deve conduzir o trabalho, se mais
ou menos autoritário. Há aspectos disciplinares que muitas vezes são confundidos
com rigidez. Tomemos, por exemplo, a questão dos horários a serem cumpridos. O
ensaio inicia às 9 horas. Para uns, isto significa que ele deve chegar às 9h, trocar de
roupa e iniciar seu alongamento. Para outros, significa que deve chegar às 8:45, trocar
de roupa e começar o alongamento às 9h. Para outros ainda, significa que deve chegar
às 8:15, trocar, alongar e aquecer o que julgar necessário para estar pronto para iniciar
o ensaio às 9h. Ou seja, cada um tem uma preferência e deve saber o que é melhor
197
para si, o que é desejável. Porém, surgem divergências entre os componentes do
grupo que querem controlar e definir qual a melhor maneira de agir. O mesmo se
aplica à maneira de como iniciar o trabalho, se esse ator tem o hábito de aquecer o
corpo e a voz, ou somente alongar-se, ou passar suas músicas. Como diretora, acredito
que quando o ator chega à sala de ensaio deve saber de si, deve estar pronto para o
trabalho de criação que será proposto para o dia. Enquanto professora, ensino algumas
técnicas, aquelas nas quais percebo a eficácia para tal fim, procuro passar uma noção
ética sobre o trabalho. Como atriz, prefiro chegar antes e me preparar com tempo, mas
entendo que são todas escolhas pessoais que cada um desenvolve com a experiência.
Já no espetáculo “O Defunto”, o processo partiu do texto homônimo de René
de Obaldia e tinha como objetivo principal a montagem de um trabalho de conclusão
de curso. A atriz75 a se graduar convidou também outra atriz com o projeto da
montagem desse texto. “O Defunto” trata do encontro de duas mulheres que
conversam sobre um homem falecido que, aos poucos, revelam uma suposta relação
em que uma delas era a esposa e outra a amante, embora sem ser explícita, causando
leituras dúbias a partir de relatos que chegam ao limite do absurdo. O projeto incluiu
uma oficina aberta ministrada por mim para alunos da universidade que quisessem
praticar gratuitamente, de maneira que formamos um grupo de trabalho com práticas
de Lecoq. Usamos máscara neutra, alguns dos Vinte Movimentos e improvisações
com os elementos, ou seja, semelhante método de encaminhamento de cursos
descritos ao longo desse trabalho. Após alguns poucos meses, precisei interromper os
encontros, seguindo apenas com a direção do espetáculo. Continuamos com algumas
dessas técnicas nos ensaios, mas já de maneira reduzida, com fins mais objetivos de
encenação e de construção de personagens.
Propus, como concepção, que a encenação se passasse toda sobre um tréteau,
um palco medindo 1 metro de profundidade por 2 metros de largura e 20 centímetros
de altura. Exercício aprendido na Escola de Lecoq, o tréteau, por suas dimensões
diminutas, suscita uma linguagem de transposição corporal ao encenar algo de
grandes dimensões ali. Quando fiz a Escola, meu grupo encenou uma “fuga da
prisão”. Com cinco integrantes sobre esse palco diminuto encontramos maneiras de
estabelecer o espaço da prisão, para então surgir um detento que, no pátio, a céu
75 Atriz Lívia Dávalos.
198
aberto, é libertado por alguém que chega em um balão, joga uma corda de dentro de
sua cesta, recolhe o detento e eles partem voando nesse balão.
O trabalho seguiu de forma exitosa, embora me dê sempre a impressão de que,
com aprofundamento técnico dentro daquele universo proposto, ele poderia ter ido
mais longe. O trabalho corporal ali fica muito evidenciado, sendo esse o principal
objetivo, funciona como uma lente de aumento na situação e, consequentemente, na
atuação e na direção. Percebi, novamente, o limite imposto pelo tempo reduzido em
função da estreia, que poderia ter sido compensado pela continuidade para seu
aprofundamento, mas assim não foi. Depois da estreia, muitos atores negam-se a
voltar a improvisar e refazer cenas, nesse caso não foi diferente.
A lógica da criação, nesse contexto, é muito mais a de que as cenas e as
personagens surjam do corpo em experimentação técnica do que a de aplicar a técnica
à cena ou a um determinado personagem, embora não exclua tal possibilidade. O que
se busca é o cruzamento entre a criação racional e a criação do corpo em movimento,
em jogo, fazendo, obrando. É a busca de um ideal, onde não é o pensamento lógico
que dita a maneira como aplicar a técnica à criação, nem o conhecido “trabalho de
mesa” que definirá de antemão as cenas. Trata-se de o ator posicionar-se enquanto
criador, assumir a responsabilidade juntamente com o diretor, para, juntos, fazerem
desse material uma peça, um espetáculo de dança, um número ou uma performance.
6.3 ATUAÇÃO
A experiência de criação de “Gueto Bufo” mostrou-se como aquela em que foi
atingido esse ideal de criação. O tema surgiu em torno de duas moradoras de rua
baseadas na linguagem dos bufões. Minha colega76 havia estudado com Philippe
Gaulier, professor egresso da Escola de Lecoq que atualmente tem sua própria escola,
na qual enfoca justamente os estilos teatrais equivalentes ao segundo ano de Lecoq.
Para a construção dessas figuras fomos para a rua observar o universo dessas pessoas,
coletando ações, maneirismos, atitudes e idiossincrasias que experimentávamos
quando de volta à sala de ensaio – o mecanismo de rejogo anteriormente explicado.
76 Atriz e diretora Daniela Carmona. Porto Alegre, 1998.
199
Experimentamos diferentes possibilidades de deformações corporais com
enchimentos de pano ou espuma, formando, por exemplo, corcundas, barrigas,
grandes seios, inchaços na cabeça. Da mesma maneira, exploramos alguns figurinos,
sapatos e adereços, que influíam na maneira de se mover e mesmo de falar, pois
usávamos também enchimentos na boca. Esses elementos funcionam como restrições
que visam provocar o jogo, tirar-nos do conforto e do universo dos gestos cotidianos.
Colocávamos figurinos e experimentávamos algumas situações, saíamos para a rua e
assim fomos fortalecendo essas figuras que, mais tarde, receberam o nome de Filó e
Vênus. Minha personagem, Filó, fala uma linguagem própria, o Filonês, pois minhas
propostas vinham mais como provocações através dos objetos e da musica do que
propriamente com o texto falado. Já Vênus, que não tem os braços, depende da
companheira, ainda que se considere a mais inteligente e bonita, tornado-se a líder
desse diminuto bando, partindo também da maior facilidade de Daniela para
improvisar textos falados.
Filó passou a existir por si, a ter uma lógica própria que, para mim, estava
(está) diretamente atrelada à sua postura e seu figurino. Ao longo dos 11 anos desse
espetáculo, costumava fazer meu aquecimento por cerca de uma hora e, ao iniciar o
processo de vestimenta e maquiagem, meu corpo tornava-se outro, tornava-se esse ser
que me é extremamente familiar, consistindo em uma parte da minha personalidade
que ali encontrou espaço para se exprimir. O trabalho do bufão, assim como o do
clown, é muito pessoal, insere-se na lógica de “criar seu próprio clown”, uma vez que
ambos são ancorados na expressão do indivíduo, sua blasfêmia e seu ridículo,
respectivamente.
200
Fig.29 Atriz Cláudia Sachs em “Gueto Bufo”
Fonte: Arquivo pessoal
Antes desse trabalho, participei de outro espetáculo77 em que criei figuras a
partir da maneira de andar com latas amarradas aos pés, construindo um duo que
dançava e cantava, assim como outra figura que era líder de uma banda onde cantava
através de um tubo de PVC e os outros membros tocavam uma espécie de xilofone
feito do mesmo material, com sandálias Havaianas como baquetas, entre outras
atrações no estilo de circo de variedades. São todas criações autorais, pessoais, de
seres não realistas, para as quais o aprendizado de Lecoq me deu total suporte.
Comentando sobre o corpo criador a partir de técnicas de teatro físico, o ator
Danilo Dal Farra compartilha sua experiência sobre sua personagem, o Zé:
O Zé é uma forma poética ampliada de mim mesmo que chamo de personagem, porque também não poderia chamar de persona, mas eu sei que sou eu, só não posso deixar que se descaracterize esse código poético que criei para essa peça e, por isso, quanto mais vivo estiver no código, mais posso me manter nele mesmo, mais ele me dá potência para me poetizar, e mais enriquecido e verdadeiro ele fica ao passar por tantas nuances e instigares diferentes. (DAL FARRA, 2012).
77 “ Parque Extremo de Diversões”, direção de Élcio Rocini. O duo era em parceria com a atriz Betha Medeiros – Porto Alegre, 1986.
201
Entrevistada por Schechner em 1998, Julie Taymor78, afirma que, para ela a
experiência que viveu na Escola de Lecoq foi determinante na maneira como trabalha,
ressaltando a questão da abstração aprendida com sua pedagogia, a capacidade de
jogar com diferentes objetos e ‘antropomorfizá-los’.
Em Lecoq, o corpo é um recurso completo que você pode usar para expressar qualquer coisa, incluindo emoções – o que estamos acostumados a fazer como atores. Mas não é sobre "agir" tristemente, mas o que é que há no "triste" que faz com que o corpo torne-se duro ou mole? Que ritmo tem "tristeza"? Portanto, o seu corpo torna-se uma ferramenta. Seu corpo é como pincéis. É totalmente não-caracterológico, em primeiro lugar. [...] O que há numa pessoa magra sobre a angularidade, o que faz alguém se sentir magra? Você deve ser capaz de transformar o seu corpo. Essa parte do trabalho de Lecoq foi incrível para mim. (TAYMOR, 1998)
Quando perguntada sobre a importância da prática como professora e atriz,
Clarissa Malheiros afirma que, para ela, é como uma pequena mala de segredos que o
ator carrega que, por mais básicos que possam parecer, serão sempre pontos de
partida ou de apoio para a criação. Mesmo quando se trata de trabalho comercial,
quando não há muito tempo para ensaiar e, portanto, convém que o ator chegue com
algumas propostas, com o texto decorado (se houver um), para ter com o quê suprir o
diretor.
Se vou trabalhar para a Companhia Nacional Mexicana, por exemplo, não vou dizer que estou trabalhando baseada numa formiga, porque é muito primário. Então é o segredo do ator! É a exploração que você faz sozinho. Você não vai fazer com um diretor, tampouco em grupo, mas é onde alguma coisa importante ficou impressa no seu corpo, como ponto de partida para a concentração do ator, para poder fazer uma proposta de personagem. (MALHEIROS, apud SACHS, 2004:199)
Segundo o relato de um dos atores79 do Théâtre Du Soleil, o trabalho do grupo
segue o seguinte andamento: Pela manhã, o grupo encontra-se com Mnouchkine e a
diretora apresenta-lhes alguns dos temas ou ideias com as quais quer trabalhar. Os
atores, então, escolhem o que querem experimentar, juntam-se a colegas ou não, e
passam cerca de uma a duas horas improvisando. A partir daí, escolhem figurinos no
guarda-roupa da companhia, expõem o que querem fazer para o músico do grupo e
vão almoçar. Quando voltam do intervalo do almoço, “servem o banquete” para a 78 Diretora americana de cinema e teatro, Encenou, entre outros, o bem sucedido espetáculo de bonecos “O Rei Leão” na Broadway. Nova Iorque.
79 O ator Andrea Simmas, Entrevista concedida em Porto Alegre, 11/12/11.
202
diretora. Cada pequeno núcleo mostra sua proposta e ela vai escolhendo, anotando,
modificando, propondo variações a partir delas. Ao que parece, essa prática soa como
a lógica do auto-cours, ou seja, são os atores que apresentam um primeiro material
bruto a partir do qual a diretora trabalhará.
A questão da autoria do ator é, portanto, bastante enfatizada nessa pedagogia,
nessa maneira de fazer teatro, onde o ator é o poeta que obra poesia com seu corpo, é
ele o autor. Certamente o ator sempre será autor da maneira como joga tal ou qual
personagem. Entretanto, seu Hamlet será autoral em uma certa medida, pois que a
personagem será sempre de Shakespeare, e o diretor assinará o espetáculo, sendo
atribuída a ele a interpretação dessa personagem que o ator faz. Portanto, o que se
sustenta aqui é algo diferente, algo que o próprio ator inventará. De qualquer modo,
haverá um nível técnico básico, um instrumental para a profissão de artista de teatro.
Ter o corpo trabalhado, obrado, poetizado, como diria Lecoq, é um diferencial para o
ator, sem que isso garanta o sucesso do trabalho, afinal são muitos os fatores
necessários, como se sabe. Outro exemplo de autoria pode-se observar com o trabalho
do ator inglês Sacha Baron Cohen, conhecido por algumas personagens controversas
como “Borat”, “Bruno” e “O Ditador”, entre outras. Ele estudou com Phillippe
Gaulier, que segue as mesmas bases de Lecoq, mas vai além, especialmente nesse
aspecto relativo à autoria.
6.4 PESQUISA
No âmbito dessa tese, minha criação é toda essa reflexão sobre a relação entre
esses aspectos da pedagogia de Lecoq que utilizo, pautados pelo Fundo Poético
Comum – tanto na forma (linhas, luz, matéria, cores, tamanhos) como na dinâmica – e
a imaginação no trabalho do ator. Essa criação, escrita e ilustrada a partir do meu
ponto de vista como pesquisadora, pode ser considerada uma síntese de todos esses
pontos de vista apresentados. Uma dificuldade que sempre se coloca quando o artista
pesquisa seu próprio trabalho é a falta de distanciamento crítico do seu objeto, que
tende a fundir-se com o próprio artista, transformando-se em uma coisa só. No meu
caso não foi diferente, a paixão pelo assunto e o costume de sua prática por vezes
203
pode ter obscurecido minha capacidade crítica. Ainda assim, procuro identificar
alguns dos limites com os quais me deparei ao empreender essa pesquisa.
Nesse sentido, importante ressaltar o período do “doutorado sanduíche” em
Paris, que tornou-se importante no sentido de possibilitar esse afastamento crítico.
Naquela ocasião, pude conviver com pesquisadores em artes cênicas de diversos
países, agrupados nas aulas dos cursos de pós-graduação da Sorbonne Nouvelle –
Paris 3, da Université Paris 8 e da Fondation Maison des Sciences de L’Homme,
ministradas por Josette Féral, Jean-François Dusigne e Jean-Marie Pradier
respectivamente. Conhecer a variedade de pesquisas desenvolvidas, escutar diferentes
pontos de vista aportados por esses professores e colegas, contribuíram para melhor
situar a Escola de Lecoq frente aos estudos desenvolvidos na França. Ao que parece,
Lecoq não é considerado como mestre da mesma magnitude de Decroux, de Artaud e
dos outros reformadores contemporâneos que o influenciaram. Entretanto, concordo
com Carasso (apud Féral, 2003:179), um dos entrevistadores responsáveis tanto pela
publicação do livro Le Corps Poétique quanto do vídeo de Les Deux Voyages de
Lecoq, que afirma que falta um aprofundamento nos estudos sobre ele, como sobre o
Fundo Poético Comum, sobre o qual discorro nesse estudo, sobre sua visão de teatro,
que parece ser vista como uma coletânea de práticas trazidas de outros artistas, pela
qual ele cobra caro para transmitir e motivo pelo qual, a Escola é, muitas vezes,
considerada como sendo elitista.
Mais do que o preço dos cursos, o que considero elitista é a maneira como a
Escola é até hoje fechada para quem queira pesquisar sobre Lecoq e sua pedagogia.
Os professores e funcionários não fazem a menor questão de facilitar o acesso ao
acervo que possuem, em uma atitude que dá a impressão de que temem que a
divulgação daquele conhecimento cause uma possível diminuição de alunos, ou que
esses possam apropriar-se indevidamente e tirar proveito disso. Tanto é assim que o
vídeo da performance histórica de Lecoq, Tout Bouge, só pode ser assistido em raras
oportunidades nas quais eles fazem sessões abertas dentro da Escola, que tive a sorte
de assistir quando dessa mesma ocasião da Bolsa sanduíche. É proibido tirar fotos
dentro da Escola, não se pode anotar nem durante e nem depois das aulas. Por um
lado, pode-se compreender essa atitude se comparada à de Meyerhold que não queria
deixar registros escritos sobre a biomecânica temendo que acontecesse o mesmo que
sucedera a Stanislavski, que publicou seu primeiro livro e, logo, outros ensinavam a
204
partir dele. Também Lecoq acreditava na importância da transmissão pessoal, via
oral, com ênfase no aprendizado assimilado pela memória corporal.
Frente a esse aprendizado de treinamento codificado proposto na Escola, deve-
se levar em conta que uma prática pautada em modelos externos aos corpos tende à
cristalização, uma vez que existem contornos delimitados de seu alcance. Nesse
sentido, pode-se apontar um limite dessa prática, pois ela não serve para todos, não
serve para corpos que não tenham uma certa aptidão, capacidade, disponibilidade e
mesmo flexibilidade, afinal, nem todos são capazes de responder a ela. Isso implicará
escolhas pessoais, pois parece que quem não se adequa não é incluído, ou ainda, é
excluído. No campo da dança essas diferenças vêm sendo amenizadas por meio de
práticas corporais mais inclusivas, tais como a danceability ou o contato
improvisação, como dos handicapped, por exemplo. Sem esquecer que possuir um
corpo atlético ou ultra treinado não fará obrigatoriamente um bom ator, são questões
de âmbitos diferentes, que envolvem as abordagens estéticas, éticas e mesmo
ideológicas, que podem ser confundidas ao enfocar-se demasiadamente em sua
capacidade física.
Outro limite evidenciado na prática de Lecoq refere-se à ausência do uso do
texto dramático como apoio na criação, como apontado anteriormente. A articulação
entre o gesto, a dinâmica e a palavra é abordada enquanto som, mas não enquanto
discurso portador de sentido. O mestre tinha grande interesse na sonoridade das
diferentes línguas, o que levou-o a desenvolver técnicas de improvisação que
trabalham com a poesia. Ainda que extremamente rica essa experiência,
especialmente pela diversidade de nacionalidades com as quais se tem a oportunidade
de trabalhar na Escola, a opção de evitar o texto é questionável. Passa a ser uma
questão de escolha do aluno que a procura, que vai trabalhar lá aspectos outros que
não esse.
Se em alguns momentos questionei a utilidade de descrever os exercícios, tal
como fiz nesse estudo, o contato com registros de diferentes autores que descrevem as
práticas realizadas por diversos teatristas convenceram-me do contrário. As anotações
de artistas como Barrault, Dullin, Dasté, Stanislavski, Chekhov, para citar alguns dos
que mais me embasei aqui, assim como registros trazidos por autores como Yves
Lorelle, por exemplo, são documentos sem os quais tornar-se-ia praticamente
impossível de compreender como eram desenvolvidas tais práticas, e, sobretudo suas
205
visões de teatro e arte encontradas nos comentários e nas entrelinhas desses escritos.
Como pesquisadora, portanto, essas constatações aproximam-me desses modos de
fazer teatrais, na medida em que também escolho essa tentativa de registro escrito que
possibilite o encontro entre a prática das salas de ensaio e de formação de artistas com
a epistemologia. É como abrir as portas e convidar o público para entrar, desta vez
autorizando as anotações, fotos e registros.
Com o acesso a mais autores que escreveram sobre esse movimento francês de
retomada do corpo sucedida principalmente na primeira metade do século XX,
compreendi que a herança que Lecoq carrega em sua escola vem de outras fontes que
não somente de Copeau, embora tenha sido ele quem desencadeou esse movimento.
Interessante conhecer os encontros dos diferentes artistas que foram criando esses
exercícios e sistemas, construindo experimentalmente os diversos métodos utilizados
para o trabalho do ator. No ato da criação precisamos lançar mão de diferentes
técnicas de acordo com necessidades da obra, cada trabalho pede um método, por isso
a importância de conhecer os diferentes pensamentos e seus modos de fazer. Todos
eles têm limites, por mais bem estruturados que sejam. Todos são históricos, ligados a
diferentes circunstâncias, portanto são datados. Enquanto Chekhov propõe a
imaginação por meio da criação mental da personagem antes de investi-la, passando a
conferir-lhe gestos e intenções, Lecoq, como aglutinador dessas técnicas
desenvolvidas a partir dessa rede de influências à qual me referi nesse estudo, inicia
diretamente no corpo, e é através dele que a criação acontece.
Pesquisar sua própria prática aparece como relevante alternativa não só para
quem a pesquisa, mas para difundir e registrar os diferentes caminhos de criação, que
podem servir como exemplos, como sugestões, como questionamentos. A prática e a
teoria profundamente imbricadas, contribuem para a qualidade do ensino e do
trabalho artístico como um todo.
Assim como reconheço limites na prática de Lecoq, aponto para aqueles dessa
pesquisa, ou seja, aquilo que ela não abarcou. No que tange à escolha dos autores com
os quais trabalhar, deixei autores importantes como Merleau-Ponty e Damásio, por
exemplo, fora da discussão sobre corpo, assim como Carl Jung para discutir a noção
de arquétipo que dialoga com a de Fundo Poético Comum. Da mesma maneira, não
estabeleci relações entre certos princípios da pedagogia de Lecoq e de outros
teatristas como Craig, Decroux, Grotowski, Barba, entre outros, que compartilham de
206
pontos de vistas que podem ser equiparados, nem mesmo Brecht, no que tange à
noção de “cenas de rua”. São aspectos diversos que certamente teriam muito a
contribuir não só para a questão do ator em si, mas também para a compreensão da
posição de Lecoq no cenário do século XX. Devido à extensão que o trabalho
tomaria, evitei-os, entendendo que poderia desviar do meu propósito de aprofundar a
compreensão de Lecoq em relação à imaginação. O mesmo motivo me levou a não
aprofundar o trabalho sobre as máscaras, que sabidamente alavancaram todo esse
modo de fazer teatro ao remover o rosto, principalmente através do uso da máscara
neutra.
A opção de não traçar uma retrospectiva da história do mimo desde os rituais
até a contemporaneidade, assim como de não estabelecer relações entre o universo do
teatro gestual e físico com o contexto brasileiro, com quem seriam os continuadores
dessa tradição no Brasil, ou ainda, a maneira como essas técnicas se refletem no
cenário brasileiro atual inserem-se nesse mesmo caso, o de evitar estender demais a
pesquisa, perdendo, assim, o foco no que eu gostaria de estudar. No entanto, são
caminhos que poderiam ter sido tomados, mas que ficam como possíveis rumos a
serem desenvolvidos a partir do material que levantei nesse estudo.
Constatei também que essas práticas devem ser continuadas. O fato de ter
aulas diárias desse tipo durante um ano, na minha experiência, foi tempo suficiente
para impregnar essa maneira de criar pelo corpo. Para torná-lo poético, lúdico,
disposto a jogar, com um domínio técnico, e assim adquirir maior liberdade, maior
abertura para a criação, é necessário ter continuidade, repetição e disciplina. Nas
diferentes experiências que propus aos alunos, evidenciou-se a diferença que o tempo
de prática aporta ao trabalho. É dessa maneira que pode-se forjar o corpo como um
músculo treinado para imaginar, ou ainda, imaginar através dos músculos, desenhar
com o corpo, formar imagens em movimento, compor, totalmente imerso, em ação,
no ato de formar e deformar em si, a psyché atuando pelo corpo, fazendo, obrando,
mimando, jogando, exercendo, formando.
207
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como se pode constatar, a pedagogia de Lecoq é ampla e utiliza diferentes
ferramentas para a preparação do ator, podendo ser abordada a partir de diferentes
pontos de vista, dependendo da ênfase do estudo. É notável a objetividade, o
pragmatismo, a persistência e a síntese que Lecoq alcançou com sua pedagogia a
partir dos vários preceitos em voga na segunda metade do século XX.
Ao longo do século passado ocorreu uma reconquista do corpo humano, da
psicanálise `a filosofia, contaminando a cena e reconstruindo a fragmentação imposta
pela suposta oposição entre espírito e matéria. Os trabalhos da neurobiologia sobre o
cérebro vêm contribuindo para elucidar caminhos da formação do pensamento,
valorizando mecanismos emocionais e estados da alma que podem passar
despercebidos do consciente, nem por isso deixando de influenciar nosso pensar. O
século XXI traz uma drástica imposição da tecnologia gerando novas mídias que
impõe um ritmo acelerado no acesso e no intercâmbio de informações, afetando os
relacionamentos interpessoais e possibilitando a aquisição de uma infinidade de
objetos eletrônicos. Se por um lado esse aparato pode parecer aproximar as pessoas
pela facilidade de comunicação, por outro os acomoda em ilhas de conforto e de
isolamento. O teatro, que parece andar na contramão desse movimento, resiste
bravamente procurando incorporar essas mudanças, como, por exemplo, trazendo
tecnologia para o palco, fazendo intervenções urbanas, mesclando real e ficção,
desconstruindo narrativas. Ainda assim, depende do ator, de seu corpo presente, vivo
e imaginativo para que se dê o ato teatral. Voltamos às bases fundamentais do teatro
para assegurar aquilo que lhe é permanente, que está no fundo, que é a mimesis
primeva e a expressão do Vivente para seus pares.
Justamente por considerar a complexidade da contemporaneidade é que torna-
se pertinente abordar o trabalho do ator enquanto essência, voltar à ideia de universal,
de contato com a natureza, de jogo histriônico como manifestação primeira do
Anthropos. A prática desenvolvida por Lecoq enfatiza esses aspectos, o que não
significa ter que ignorar as diferenças, as especificidades e as tecnologias do teatro
contemporâneo, mas destacar a importância dessa instância anterior e fundante da
arte. Para que algo seja permanente, ele deve mudar, pois a essência da vida é essa
constante mutação, ‘tudo se move’. Justamente em meio às constantes mudanças e à
208
rapidez de informações a que estamos sujeitos, acredito na volta às origens como
fonte eterna de inspiração e elucidação, e esse é um dos principais motivos pelo qual a
visão de Lecoq me interessa. Não significa fechar-se ao novo, mas sim estabelecer e
rever valores fundamentais na prática do ator relacionados à mimesis e ao jogo através
de uma forma, de uma prática sistematizada, que pode ser desenvolvida tanto
enquanto formação para o ator como também enquanto revisão, se ele já possuir outra
anterior.
Em busca de compreender como a pedagogia de Lecoq colabora para o
desenvolvimento da imaginação do ator, encontrei como fator fundamental a
compreensão da noção de Fundo Poético Comum, que não é algo explicado nas aulas,
mas experienciado de maneira que se vai tomando consciência ao longo dessa prática.
É uma prática corporal estruturada em bases empíricas, conectada com todo um modo
de pensar e de exercer a arte do teatro.
Lecoq não escreveu um método, sua preocupação estava em passar sua visão
pelo contato direto com os alunos, reafirmando a tradição oral de transmissão de
conhecimento pelo contato e pela experiência corporal. O contato com a matéria,
deformando para formar com seu próprio corpo, expressando aquilo que absorve nos
níveis mais profundos do corpo-mente, de todas as manifestações da natureza,
despertar um olhar para ela, para os seres vivos, em micro e macro escala, com
simplicidade. O corpo é treinado com base em ideais de movimento, com modelos
que servem como base mimética para ampliar suas possibilidades plásticas e
imaginativas, exercendo a mimesis no sentido externo e interno. Essa é uma maneira
de interpretar a visão de Lecoq, que engloba aspectos do pensamento de Bachelard, de
Jousse, de Bergson, da ciências naturais e do pensamento oriental.
As manifestações artísticas hoje parecem ter que passar pelo crivo dos estudos
da performance enquanto paradigma de arte contemporânea entre o real e o fictício. O
teatro vem procurando dialogar com isso, incluindo o real e o pessoal do ator,
questionando o caráter de representação. A criação proposta por Lecoq desloca a
preocupação com o texto para a questão da composição física e da cena, a partir de
dinâmicas do movimento. Independentemente de ser uma personagem pré-
determinada por um texto ou não, psicológica ou não, estamos no âmbito da
representação, afinal, tudo é representação! Se para Lecoq o “vilão” era o teatro
psicológico, para os estudos contemporâneos – seja o teatro pós-dramático, o
209
performativo, a performance –, é a representação. Sem aspirar resolver essa querela,
alio-me a Guénoun (2004, p. 132), quando afirma que só o que restou do teatro é o
jogo, diante de nós, em presença de alguém. Segundo o autor, hoje as pessoas vão ao
teatro para “ver teatro”, ou seja, não mais tanto com a expectativa serem levadas a
uma viagem imaginária calcada na realidade com a qual se possam identificar, mas
algo que vá além de um realismo forjado, evidenciando sua teatralidade. Essa
teatralidade é impulsionada pela imaginação, do ator e de todos artistas envolvidos,
que vai conduzir o espectador nessa viagem.
A discussão sobre o que é real e o que é natural, aqui é tomada em nível das
ciências naturais, de empacotamento de átomos, procurando levar em conta também a
compreensão psicanalítica e filosófica. No teatro, precisamos experimentar, mesclar,
inventar, imaginar. A proposta aqui é de tomar a natureza visível e invisível, o fundo
comum das diferentes manifestações como possíveis modelos, e por mais difícil que
seja de encontrar, já é bastante saber o que procurar.
Essa rede de diálogos entre teatro, ciências naturais – física e química,
principalmente –, filosofia e espiritualidade, converge para aspectos que constituem o
meu próprio Fundo Poético Comum. Aquilo que é comum aos meus pontos de vista,
que sou Eu, um empacotamento de átomos com certa quantidade de elementos que,
em suas menores partículas, diluem-se no Todo, e é água, é fogo, é terra, é ar e é
espaço. Por meio do teatro, do jogar, do mimar, procuro exprimir com meu corpo-
mente a minha poética, representificar essa percepção através de uma determinada
linguagem.
A escolha desse tema nasceu do desejo de estabelecer um diálogo entre
ciência, arte e filosofia, relacionados à visão que anima a prática de Lecoq. O motivo
principal foi o que esse conjunto de práticas são aquelas que costumo utilizar com a
finalidade de empreender um caminho para o trabalho de criação teatral pelo corpo,
com a compreensão de que há algo mais profundo que deve servir de fonte de
inspiração. Tomando a natureza e a vida em si, tal fonte estará sempre disponível.
Assim, proponho manter viva essa conexão com o fundo comum – o Fundo Poético
Comum –, esse despertar para a observação e absorção da vida como inspiração para
a imaginação.
As diferentes experiências provindas de diferentes culturas fazem diferença na
Escola de Lecoq. É algo que o mestre sempre valorizou muito, a troca entre as
210
culturas e a tentativa de estabelecer bases comuns para todas elas. Nesse sentido,
também a busca da noção de permanência e de fundo comum parecem ecoar seu
desejo de atingir o cerne do teatro com a mímica de fundo, ou seja, a mimesis de que
todas as artes são instrumentos. O instrumento, no nosso caso, é o corpo do ator.
Corpo e mente indissociáveis, premissa básica. Portanto, a pessoa do ator/atriz como
agente da mimesis, cuja a techné é a de Lecoq enquanto treinamento físico e enquanto
inspiração ou fonte, tomando a natureza como fundo infinito e interconectado de
possibilidades concretas capazes de serem desdobradas em analogias as mais abstratas
que a imaginação possa proporcionar.
Como a árvore, cujas ramificações captam a vida em duas fontes, o Sol e a Água, seu destino é o de mergulhar tanto no ar como na terra, o corpo estabelece a comunicação entre dois mundos separados: o imaginário e o real. (LORELLE, 1974, p.142)
A imaginação do ator na pedagogia de Lecoq, portanto, está diretamente
relacionada à noção de Fundo Poético Comum. A maneira como esse ensinamento se
dá reside nos diferentes exercícios descritos aqui, uma técnica que visa despertar para
essas possibilidades de movimentos, para a criação de linhas no espaço, de ritmos da
natureza, todos aspectos que, embora muitas vezes invisíveis, estão presentes para
quem quiser experimenta-los. Desde as linhas imaginárias que o corpo desenha,
passando pelas dinâmicas e objetos invisíveis, tudo é imaginação. Sendo assim, tudo
serve como alimento para o artista em processo de criação. Acredito, portanto, no
valor dessa prática e por isso continuo a utilizá-la e transmiti-la aos atores que
encontro pelo caminho.
211
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