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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAIS SOCIAIS
MODESTO CORNÉLIO BATISTA NETO
COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE: DESAFIOS E LIMITES DA
CONSTRUÇÃO DEMOCRÁTICA
NATAL-RN
2017
MODESTO CORNÉLIO BATISTA NETO
COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE: DESAFIOS E LIMITES DA
CONSTRUÇÃO DEMOCRÁTICA
Dissertação apresentada à banca examinadora do
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais –
PPGCS/CCHLA/UFRN, como requisito parcial para a
obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais.
Orientador: Prof. Dr. Homero de Oliveira Costa
NATAL-RN
2017
COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE: DESAFIOS E LIMITES DA
CONSTRUÇÃO DEMOCRÁTICA
Dissertação apresentada à banca examinadora do
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais –
PPGCS/CCHLA/UFRN, como requisito parcial para a
obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais.
Orientador: Prof. Dr. Homero de Oliveira Costa
Aprovada em 22 de junho de 2017.
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. Homero de Oliveira Costa (UFRN)
Orientador
Prof. Dr. José Antonio Spinelli Lindoso (UFRN)
Examinador Interno
Prof. Dr. Robério Paulino Rodrigues (UFRN)
Examinador Externo ao Programa
Prof. Dr. Rodrigo Freire de Carvalho e Silva (UFPB)
Examinador Externo à Instituição
Para Rivair Neto e as futuras gerações, que
vocês sejam vitoriosos nas batalhas que
perdemos no nosso tempo histórico.
Em memória de Jacob Gorender, em nome de
todos que lutam por uma outra civilização.
AGRADECIMENTOS
Agradeço à minha família, em especial às mulheres. Minha mãe, Maria José, minha tia
Margarida Maria, minha irmã Ana Guilhermina e minha companheira, Emanuella Palhares.
São essenciais. Sem essas mulheres, qualquer caminhada seria mais longa, qualquer tarefa
seria mais dura, qualquer travessia seria mais turbulenta. Apesar de todos os pesares, sem
raízes profundas, até mesmo as árvores de almas velhas sucumbem nas tempestades cinzas.
Minha gratidão ao meu orientador, professor Homero de Oliveira Costa, que entendeu
a relevância deste trabalho e acreditou na minha capacidade, quando eu mesmo duvidei. O seu
auxílio foi indispensável à conclusão do presente trabalho. Os dois anos de atividades ao seu
lado, foram um tempo que me enriqueceu sem precedentes, sem comparativos. É impossível
não registrar que das experiências mais extraordinárias da vida acadêmica, conhecer de perto
Anita Leocádia Prestes pareceu-me como conhecer um pouco mais a história do Brasil, em
carne viva e cérebro. Sem Homero Costa, esse encontro não passaria de uma ambição de
historiador.
Sou grato aos muitos trabalhadores invisíveis. Sem eles, a universidade jamais
funcionaria: aos que limpam, constroem, imprimem e servem, meu muito obrigado. Os
professores da UFRN que tiveram uma contribuição significativa na minha formação
acadêmica e também pessoal, merecem ser citados. Os professores Robério Paulino, Gabriel
Vitullo, Lincoln Moraes, Spinelli, César Sanson e Ana Patrícia Dias, tornaram o marxismo
mais compreensível, ajudaram-me a compreender o mundo do trabalho e suas desigualdades,
mas, acima de tudo, foram capazes de mostrar que o significado do trabalho do cientista
social, não deve ser apenas compreender o Brasil e sua sociedade, nas suas facetas mais
singulares, mas ajudar à mudar a realidade concreta das coisas.
Quero agradecer os secretários do PPGCS, Otânio Revoredo Costa e Jefferson
Gustavo Lopes. Ambos são responsáveis por um conjunto de tarefas que são indispensáveis
ao funcionamento deste departamento de pós-graduação. Apesar de todas os afazeres, sempre
atenderam de forma solicita as demandas de todos os mestrandos. Registro também um
agradecimento especial ao meu tio, Ítalo Gonzaga Gê, ele que deu-me reiteradas
demonstrações de apoio, suporte e estímulo.
Se os amigos são a família que escolhemos para compartilhar os festejos e dissabores
da existência humana, é motivo de felicidade poder contar com uma família extensa, o que é
raro. Os companheiros de Ciências Sociais, tornaram-se bons amigos. Na graduação e no
mestrado, conheci pessoas que levarei pelo resto da vida. João Vitor Curió, Artur Freire,
André Machado e Alexandre Souza. Foram com eles que dividi os primeiros dias na
universidade. Após o ingresso no mestrado em Ciências Sociais, a convivência e as conversas
com Juliana Magalhães, Ana Lucas, Rômulo Dornelas e Bosco Teixeira só serviram de
acréscimos para a vida.
Os bons amigos são como o Sol, não precisamos vê-lo todos os dias para sabermos de
sua existência. O tempo da terna infância e da juventude, o tempo da luta por uma outra
sociedade e o tempo presente e imediato, são os tempos que fazem de um indivíduo uma
criatura indispensável. O biomédico Neto Monteiro, os professores Ângelo Magalhães e
Magnus Gonzaga, os meus advogados Max Ferreira, Johnata Macêdo, João Paulino e Diogo
Filho, com esses tive e tenho o inestimável orgulho de ter dividido as trincheiras da militância
política. Aos amigos e irmãos Anildo Neto, Italo Gonzaga Jr., Fabiano Dreschsler, Wilson
Filho, Ítalo Luan Barbosa, Stênio Filho, Adriano Gabriel, Raul Basílio, Leonardo Bezerra,
Leonardo Basílio, Bruno Goulart e Yuan Soares, minha gratidão por compartilhar boa parcela
dessa existência.
Por fim, registro um agradecimento especial a professora Jovelina Santos, quadro do
Departamento de História da UERN em Açu. Sem o seu ímpeto, ousadia e encorajamento,
talvez não fosse possível ter concluído caminhadas tão importantes. Se todas as construções
começam pelos alicerces, Jovelina Santos foi um dos pilares que me permitiu erguer-me não
apenas como historiador ou cientista social, mas como algo muito mais importante, que é
resistir e erguer-se em cada tropeço, como gente.
Há um quadro de Klee que se chama Angelus
Novus. Representa um anjo que parece querer
afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus
olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas
asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto.
Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós
vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma
catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína
sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria
de deter-se para acordar os mortos e juntar os
fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e
prende-se em suas asas com tanta força que ele não
pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele
irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as
costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o
céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso.
Walter Benjamin
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo analisar o papel da Comissão Nacional da Verdade
(CNV), instituída através da Lei Nº. 12.528 de 18 de novembro de 2011, pela presidente
Dilma Rousseff, com o intuito de apurar as graves violações de direitos humanos, afim de
efetivar o direito a memória e a verdade histórica. Tomamos o seu Relatório Final como
principal fonte de pesquisa, o documento que contém mais de 4 mil páginas, dividido em três
volumes. O primeiro traz um panorama da repressão, apresentando o modus operandi da
ditadura, os agentes responsáveis por violações como tortura, estupro, execuções e ocultação
de cadáver e recomendações que congregam medidas para o avanço na política de efetivação
dos direitos humanos e da democracia no Brasil. O segundo volume traz textos temáticos e
aborda questões como a repressão contra indígenas, comunidades campesinas, militares,
igrejas cristãs, dentre outras. O terceiro volume é exclusivamente dedicado às vítimas da
ditadura, elucidando as circunstâncias da morte e desaparecimento de 434 casos. Analisamos
a comissão e seu relatório, tendo como principal instrumental teórico o materialismo
histórico. Neste sentido, foram fundamentais os seguintes autores: Marx (1996, 2009) Walter
Benjamin (1987), Henri Lefebvre (2013), Ellen Wood (2011), Noam Chomsky (2003), Mike
Davis (2008), Noberto Bobbio (1986), Osvaldo Coggiola (2016), Celso Furtado (1973),
Florestan n (2015), Weffort (1989), Milton Pinheiro (2014) e Spinelli (2014). A Comissão,
que trabalhou por dois anos e sete meses, revelou um panorama de continuidade de graves
violações de direitos humanos, tais como a tortura difusa e contínua e a execução
extrajudicial, promovidas por agentes dos organismos de segurança do Estado. Partindo do
objetivo geral do trabalho, que foi o de identificar se a Comissão cumpriu suas metas definas
em Lei, as principais constatações estabelecidas foram que a comissão logrou êxito na sua
missão institucional, revelando o atraso do Brasil em matéria de direitos humanos, analisamos
ainda que o processo de transição democrática e a governabilidade de coalizão no Brasil, em
especial suas características, implicaram por formar as limitações da própria Comissão
Nacional da Verdade e do desenvolvimento da democracia brasileira.
Palavras-Chave: Comissão Nacional da Verdade. Democracia. Direitos Humanos.
ABSTRACT
The purpose of this paper is to analyze the role of the National Truth Commission (CNV),
established through Law no. 12,528 of November 18, 2011, by President Dilma Rousseff, in
order to investigate serious violations of human rights, in order to realize the right to memory
and historical truth. We take your Final Report as the main source of research, the document
containing more than 4000 pages, divided into three volumes. The first presents a panorama
of repression, presenting the modus operandi of the dictatorship, the agents responsible for
violations such as torture, rape, executions and concealment of corpses, and recommendations
that bring together measures for the advancement of the policy of human rights and
democracy in Brazil . The second volume brings thematic texts and addresses issues such as
repression against indigenous peoples, peasant communities, military, Christian churches,
among others. The third volume is exclusively devoted to the victims of the dictatorship,
elucidating the circumstances of death and disappearance of 434 cases. We analyze the
commission and its report, having as main theoretical instrument historical materialism. In
this sense, the following authors were fundamental: Marx (1996, 2009) Walter Benjamin
(1987), Henri Lefebvre (2013), Ellen Wood (2011), Noam Chomsky (2003), Mike Davis ,
Osvaldo Coggiola (2016), Celso Furtado (1973), Florestan (2015), Weffort (1989), Milton
Pinheiro (2014) and Spinelli (2014). The Commission, which has been working for two years
and seven months, has shown a continuity of serious human rights violations, such as
widespread and continuing torture and extrajudicial execution, carried out by agents of State
security agencies. Based on the overall objective of the work, which was to identify whether
the Commission met its legal goals, the main findings were that the commission succeeded in
its institutional mission, revealing Brazil's human rights backlog, That the democratic
transition process and the governability of coalition in Brazil, especially its characteristics,
imply for forming the limitations of the National Commission of Truth itself and the
development of Brazilian democracy.
Keywords: National Truth Commission. Democracy. Human rights.
LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS
ABDDH - Associação Brasileira de Defesa
de Direitos do Homem
ACNUR - Alto Comissariado das Nações
Unidas para os Refugiados
AI -5 – Ato Institucional nº 5
AL – América Latina
ALN – Aliança Libertadora Nacional
ANL – Aliança Nacional Libertadora
ANPUH – Associação Nacional de
História
BG – Batalhão de Guardas
CEA – Conferências dos Exércitos
Americanos
CEDI – Centro Ecumênico de
Documentação e Informação
CEMDP - Comissão Especial sobre
Mortos e Desaparecidos Políticos
Cenimar – Centro de Informações da
Marinha
CIA - Central Intelligence Agency
CIDH - Comissão Interamericana de
Direitos Humanos
CIE – Centro de Informações do Exército
Ciex – Centro de Informações do Exterior
CIGS - Centro de Instrução de Guerra na
Selva
CISA – Centro de Informações de
Segurança da Aeronáutica
CNV – Comissão Nacional da Verdade
Conadep – Comissão Nacional sobre o
Desaparecimento de Pessoas
DEOPS – Delegacia Especializada de
Ordem Política e Social
DINA - Dirección Nacional de Inteligencia
DOI - Destacamento de Operações de
Informações
DOI-CODI - Destacamento de Operações
de Informações do Centro de Operações de
Defesa Interna
DOPS – Departamento de Ordem Política
e Social
ECA – Estatuto da Criança e do
Adolescente
EPU – Exame Periódico Universal
ESG – Escola Superior de Guerra
EUA – Estados Unidos da América
FHC – Fernando Henrique Cardoso
Funai – Fundação Nacional do Índio
GPS - Global Positioning System
HCE – Hospital Central do Exército
JK - Juscelino Kubitscheck
LAI – Lei de Acesso à Informação
LGBT - Lésbicas, Gays, Bissexuais e
Transexuais
MR-8 – Movimento Revolucionário 8 de
outubro
OAB – Ordem dos Advogados do Brasil
ONU – Organização das Nações Unidas
PCB – Partido Comunista Brasileiro
PIN – Plano de Integração Nacional
PNDH – Programa Nacional de Direitos
Humanos
PNUD - Programa das Nações Unidas para
o Desenvolvimento
POR-T - Partido Operário Revolucionário
Trotskista
PPGCS - Programa de Pós-graduação em
Ciências Sociais
PSOL – Partido Socialismo e Liberdade
SIAN - Sistema de Informações do
Arquivo Nacional
SIM – Subsistema de Informação sobre
Mortalidade
SNI – Serviço Nacional de Informação
STF – Supremo Tribunal Federal
STJ - Superior Tribunal de Justiça
UERN – Universidade do Estado do Rio
Grande do Norte
UFRN – Universidade Federal do Rio
Grande do Norte
UNE – União Nacional dos Estudantes
UPP – Unidade de Polícia Pacificadora
URSS - União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas
USA – United States of America
USP – Universidade de São Paulo
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...……...………..……….….…...…..……………….......…...……..
CAPÍTULO I: A COMISSÃO DA VERDADE NO BRASIL……........…..……….
1.1 TRANSIÇÃO DEMOCRÁTICA E COMISSÕES DA VERDADE NA
AMÉRICA LATINA...............…..………..…………………....….………..………….
1.2 COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE: PERCURSO HISTÓRICO..……….
1.3 O RELATÓRIO PARCIAL: PRIMEIROS PASSOS.....................…........………
CAPÍTULO II: O RELATÓRIO FINAL DA COMISSÃO NACIONAL DA
VERDADE......…...…………….…………...……………..….….…….……...……..
2.1 O RELATÓRIO DA CNV.…...……………..………….…………………..……..
2.2 OS EMBATES SOBRE O RELATÓRIO..…...…...……….....………..…………
CAPÍTULO III: DEMOCRACIA E DIREITOS HUMANOS NO BRASIL:
DESAFIOS E POSSIBILIDADES....…….…...…........…..……….....…………….
3.1 BRASIL, O PAÍS DAS VIOLAÇÕES………......……………...………………..
3.2 CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES DA CNV..…………………………….
CONSIDERAÇÕES FINAIS.….…..…….…...…..….……………..……………....
REFERÊNCIAS……....…..….…....……...……..…...…….….…...…………………
13
17
17
30
45
55
55
79
91
91
100
121
125
13
INTRODUÇÃO
A democracia e seu futuro, os regimes políticos, os direitos humanos e as ações do
Estado brasileiro são temas atuais que têm a atenção de vários ramos do conhecimento
científico, a história, a ciência política, a sociologia, dentre outras. Essas temáticas não são
abordadas apenas pela academia, na imprensa e entre os movimentos sociais. Muito tem se
discutido sobre a democracia brasileira e inevitavelmente sobre o passado recente do país,
marcado pela barbárie autoritária da ditadura militar. O cinquentenário do golpe militar de
1964, festejado por setores conservadores em 2014 e amplamente discutido nas universidades
e entre organizações sociais, mostra que este é um dos grandes debates nacionais da
atualidade.
Para apurar as graves violações aos direitos humanos, identificar seus autores e os
locais onde as práticas de execução, tortura, desaparecimento forçado e ocultação de
cadáveres foram cometidos durante a ditadura (1964-1985), a presidente Dilma Rousseff
instituiu, por meio da Lei 12.528, a Comissão Nacional da Verdade, que após dois anos e sete
meses de trabalho, apresentou o seu relatório final, que foi organizado em três volumes e
contêm 4.328 páginas.
O objetivo deste trabalho foi o de analisar o relatório da Comissão Nacional da
Verdade e seu papel para o desenvolvimento da democracia brasileira e suas instituições, o
cumprimento dos objetivos instituídos para esta organização, seu alcance e limites. Neste
sentido, usamos o materialismo histórico como principal referencial teórico-metodológico.
Neste contexto a importância de Walter Benjamin (1987) é essencial, tanto para compreender
que a construção da história não ocorre sob os pilares de um passado estático e vazio, mas em
um tempo saturado de “agoras”, assim como o ofício do historiador é o de “escovar a história
a contrapelo”, observando as contradições do processo histórico, as tensões e interesses que
cercam à ótica sobre o passado e nosso tempo histórico.
O trabalho da Comissão Nacional da Verdade teve limitações impostas pela
governabilidade de coalizão e pelas próprias características da transição democrática no
Brasil? Esta foi a pergunta de partida que orientou nosso trabalho. Esta hipótese se confirmou
na nossa análise, abrindo um debate sobre a ausência de aspectos cruciais da reconstrução
14
histórica do período investigado pela CNV, como a participação de lideranças civis no golpe e
na consolidação da ditadura militar, ausentes no relatório.
As formas como enxergamos nosso próprio passado, nossas práticas e ações e os
significados que a estes são atribuídos forjam uma cultura hegemônica que legitima o modo
de vida das sociedades. A cultura e sua própria transmissão não é isenta de ideologias
autoritárias. Para Walter, “nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um
monumento da barbárie” (BENJAMIN, 1987 p.7). O Brasil, fundado na barbárie genocida, no
autoritarismo reacionário e no convênio entre as elites que historicamente tornaram o
princípio da representação política, em seu filho bastardo, não construiu uma cultura de
democracia e justiça. Essa cultura autoritária tem na ditadura militar, no seu legado e no
massacre dos povos excluídos, suas principais expressões contemporâneas.
Henri Lefebre (2013), também nos fornece um aporte teórico, no sentido de rejeitar as
hierarquias postas em vigor na sociedade e, o mais importante, apresentando o materialismo
“como uma sociologia cientifica com consequências políticas” (LEFEBRE, 2013, p.18), o que
significa dizer que o objetivo do nosso trabalho também é ter como efeito uma compreensão
mais adensada sobre os avanços e retrocessos da democracia no Brasil, tendo como ponto de
vista o trabalho da Comissão Nacional da Verdade, que revela o tamanho do atraso brasileiro
em efetivar os direitos humanos e garantir os direitos democráticos mais fundamentais.
Destacamos a importância do progresso das pautas dos direitos humanos para o Brasil,
mas entendemos que, apesar do avanço de direitos democráticos, os limites impostos pela
lógica do capitalismo são claros e bem definidos. Para Ellen Meiksins Wood,
fundamentalmente, em essência a democracia e o capitalismo são incompatíveis, já que os
imperativos do lucro, tornam os elementos da democracia em mercadorias. “O capitalismo
coexiste com a democracia formal e a democracia formal deixa fundamentalmente intacta a
exploração de classe” (WOOD, 2011, p.173).
A caracterização que fazemos sobre a democracia contemporânea e o papel que os
Estados Unidos da América exerceram na América Latina em meados do século XX, em
especial no contexto da Guerra Fria, patrocinando a campanha ideológica anticomunista,
arquitetando o surgimento de ditaduras e apoiando governos autoritários para garantir seus
interesses econômicos, baliza-se em Noam Chomsky (2003), Mike Davis (2008), Celso
Furtado (1973), Osvaldo Coggiola (2016), Enrique Serra Padrós (2008) e Florestan Fernandes
15
(2015), dentre outros. A reação de setores da esquerda e do campo progressista ao avanço
autoritário ocorreu com a eclosão da luta armada, em maior ou menor grau em diferentes
países, fenômeno lucidamente analisado por Jacob Gorender (2014).
O enfraquecimento dos regimes militares e o acordo entre as elites na América Latina,
mas especificamente no Brasil, possibilitaram a transição à democracia. Neste contexto,
Francisco Welffort (1989), Milton Pinheiro (2014), Dierter Nohlen (1994), Teresa Schneider
Marques (2010) e Antonio Spinelli (2014) fornecem os subsídios necessários à compreensão
do processo de transição e suas consequências, como as iniciativas circunscritas à justiça de
transição e à luta pelo direito à verdade, memória e justiça, conceitos trabalhados por Renan
Quinalha (2013) e Simone Pinto (2010), dentre outros.
Nosso primeiro capítulo tem a preocupação de apresentar um panorama, mesmo que
limitado, dos processos de transição democrática na América Latina, destacando os
surgimentos das comissões de verdade como iniciativas circunscritas à justiça de transição e
instituídas por governos, parlamentos, pela justiça e mesmo por acordos de paz. A cultura da
impunidade, como define Baltasar Garzón (2005), é um problema que precisa ser enfrentado,
e para tal, é indispensável responsabilizar os agentes que foram autores de graves violações
aos direitos humanos. Países como Bolívia, Equador, Uruguai, El Salvador, Chile, Guatemala,
Panamá, Peru, Paraguai, Honduras e Argentina instituíram suas respectivas comissões e
obtiveram consequências que resultaram das especificidades do processo de cada país.
Ainda neste capítulo inicial, buscamos apresentar o percurso histórico da instituição da
Comissão Nacional da Verdade no Brasil, seus trâmites burocráticos, as tensões que se
estabeleceram entre movimentos sociais e militares e o seu relatório parcial, apresentado ao
final de um ano de trabalho, trazendo um balanço deste primeiro ano de atividades da
comissão, tais como à tomada de depoimentos e audiências públicas.
O segundo capítulo faz um breve resumo do relatório final da Comissão Nacional da
Verdade e mostra os embates sobre o relatório protagonizados por setores políticos de matizes
ideológicas distintas, o que demonstra o quão heterogêneo é a visão destes setores sobre o
relatório. Destacamos a compreensão que o Clube Militar, organização fundada em 1887,
formada majoritariamente por oficiais da reserva das Forças Armadas, fez do relatório, assim
como o de movimentos sociais e entidades vinculadas aos direitos humanos.
16
Encerramos nosso trabalho com o terceiro capítulo, que apresenta e discute as
recomendações da Comissão Nacional da Verdade para o avanço da democracia com a
efetivação dos direitos humanos, garantias fundamentais e indispensáveis do Estado
democrático de direito. A transição para a democracia no Brasil, feita sob medida para não
atingir ou prejudicar os agentes do terrorismo de Estado e as autoridades civis que
endossaram esse projeto, repôs as eleições regulares da democracia representativa e um
conjunto de direitos, mas não foi capaz de abolir praticas autoritárias perpetradas pelos
organismos de segurança do Estado. O legado da ditadura militar se materializou no entulho
autoritário que permanece em estruturas e práticas do Estado e seus agentes. É no sentido de
corrigir aparatos legais e constitucionais, que servem como beneplácito para a continuação
dessa cultura autoritária, que as recomendações da Comissão Nacional da Verdade se dirigem.
Vale destacar, ainda sobre as recomendações da CNV, que elas, ao tempo que
apontam caminhos para reformulações necessárias no sistema jurídico e penal, também
mostram o atraso que o país atravessa em matéria de direitos humanos. As execuções
extrajudiciais nas periferias, a tortura como método continuo e difuso dentro das
penitenciarias, a criminalização dos movimentos sociais e o endurecimento do Estado penal,
ao longo dos últimos anos, aparecem como componentes deste cenário de atraso. É certo
também afirmar que as recomendações são indicações que precisam ser encaminhadas pelo
Estado, através de projetos de leis presentados pelo Governo Federal ao parlamento, assim
como medidas do próprio Poder Judiciário. As recomendações por si só não se efetivam, caso
o avanço da pauta dos direitos humanos não ocorra nos mecanismos de aprovação do Estado.
17
CAPÍTULO I: A COMISSÃO DA VERDADE NO BRASIL
1.1 TRANSIÇÃO DEMOCRÁTICA E COMISSÕES DA VERDADE NA AMÉRICA
LATINA
As rupturas dos regimes autoritários e a transição no caminho da consolidação
democrática são processos povoados de disputas, tensões e incertezas. Nos países que
viveram as experiências das ditaduras, é evidente que a superação da cultura do autoritarismo
não depende apenas de um dispositivo jurídico que restitua direitos e garantias
constitucionais. As consequências do terrorismo de Estado patrocinada pelas ditaduras não se
dissipam com rupturas institucionais, mas permanecem vivas como sequelas de uma cultura
da arbitrariedade que se impregna na burocracia estatal, no funcionamento da máquina
pública, nas instituições e na sociedade.
As tendências e forças autoritárias foram expressivas na América Latina do século
XX. Essa história recente tem sido marcada pela espoliação e pela violência na periferia do
capitalismo, sob o beneplácito do autoritarismo militar. A América Latina, especialmente a
partir dos anos 1960, teve várias ditaduras militares, nas quais os princípios da
autodeterminação dos povos e a soberania nacional foram sistematicamente desrespeitadas.
Em nenhum continente ou região do mundo, entre os anos de 1960 e 1980, houve o avanço de
tantos regimes militares quanto na AL. “Na América Latina, mais de dois terços dos países
que a compõem viviam uma situação de exceção”, esclarece Martin-Chenout (2009, p.225).
A proliferação dos Estados de exceção mudou profundamente as estruturas dos
estados nacionais: a vida política, o regime jurídico, o mundo do trabalho, a educação e a
cultura, o meio ambiente. A imprensa e os artistas passaram a conviver com a regulação da
censura e operam-se as modificações típicas do processo de militarização da sociedade. A
sociedade sob controle, cívica, obediente e resignada, passou a ser a aspiração de uma casta
militar que esteve à frente do Estado em muitos países. A população sofreu um duro golpe
pela restrição de liberdades e pagou um preço alto pelo declínio econômico, após décadas de
ditaduras à serviço do capital estrangeiro.
De acordo com Weffort (1989, p.21) “os regimes militares nos legaram estruturas
autoritárias de Estado muito mais consolidadas do que as que existiam antes deles”. Ao
18
referir-se a América Latina, Weffort aponta que a ditadura brasileira iniciada em 1964
inaugurou a fase das ditaduras latino-americanas de padrão moderno, amparados na estrutura
burocrática e na capacidade da violência legitimada, constituindo instrumento de coerção
institucional e regular. Após o golpe de 1964 no Brasil, os regimes de caráter burocrático-
autoritário se estenderam à Argentina (1966), ao Chile (1975) e ao Uruguai (1973).
As ditaduras latino-americanas deflagraram Estados de exceção, na maioria dos casos
ferindo as exigências do direito internacional dos direitos humanos, suprimindo direitos que
não poderiam ser derrogados mesmo em situações de crises ou guerras. “Estados de exceção,
com duração, exorbitante podem ser constatados no Paraguai e na Colômbia, Argentina,
Brasil, Chile, El Salvador e Uruguai também conheceram Estados de exceção de longa
duração, afirma Martin-Chenout (2009, p. 232). O resultado dessa política foi a ratificação da
negação de direitos básicos e a difusão de uma guerra contra opositores e dissidentes dos
regimes.
Os índices de repressão política na Argentina, Brasil e Chile, dentre outros países,
demonstram com clareza que os regimes militares converteram os Estados em draconianas
máquinas de moer gente e aniquilar opositores. Como diz Eduardo Galeano (2002):
Meio milhão de uruguaios fora do país. Um milhão de paraguaios, meio milhão de
chilenos. Os barcos zarpam repletos de rapazes que fogem da prisão, do fosso ou da
fome. Estar vivo é um perigo; pensar, um pecado; comer, um milagre. (...) A
ditadura é um costume de infâmia; uma máquina que te faz surdo e mudo, incapaz
de escutar, impotente para dizer e cego para o que está proibido olhar. O primeiro
morto da tortura desencadeou, no Brasil, em 1964, um escândalo nacional. O morto
número dez na tortura quase nem apareceu nos diários. O número cinquenta foi
normal. A máquina ensina a aceitar o horror como se aceita o frio no inverno
(GALEANO, 2002, p. 84-85).
A repressão galgou uma escalada da violência bárbara, numa região dominada pelo
militarismo que levou a cabo a tortura, o desaparecimento forçado e o assassinado de dezenas
de milhares de pessoas. Meio milhão de argentinos exilados, mais de 60 mil presos políticos
no Chile e muitas torturas e assassinatos são estatísticas dos países que atravessaram a
experiência nebulosa das ditaduras. As movimentações militares, os recursos financeiros e
humanos utilizados, as forças envolvidas para a consolidação de golpes de Estado com a
19
tomada do poder e a consequente imposição autoritária foram elementos mobilizados
ideologicamente por um projeto de poder. Esse projeto histórico de poder, encabeçado pelo
militarismo, mas pensado pela burguesia, foi vitorioso no sentido da dimensão política e o seu
caráter fascista e corporativo confessou-se nitidamente antidemocrático e reacionário.
Os militares também teriam formulado o seu próprio “projeto histórico”, em geral de
sentido neoliberal e modernizador. (...) O projeto histórico dos militares envolve a
ideia sinistra – alias, de ressonâncias nitidamente totalitárias, em que pesem suas
origens supostamente liberais – de que eles estariam diante de uma sociedade
enferma, como tal merecedora de tratamentos de choque e de um empenho de
regeneração sob direção das Forças Armadas. (...) Na linguagem deles, foi um
projeto antiestatista, anticomunista, antipopulista, e anti-revolucionário. (...) um
projeto confessadamente anti-democrático, de cunho fascista ou corporativista.
Como se sabe, e como é próprio da lógica perversa dos movimentos reacionários,
eles derrubam a democracia em nome da defesa da democracia (WEFFORT, 1989,
p. 19-20).
O projeto histórico dos militares, relevado por Weffort (1989), justifica
ideologicamente o extermínio de milhares de pessoas numa cruzada internacional contra o
comunismo. Esse projeto pertencia aos militares na medida em que foram estes atores que
executaram um trabalho prático, na sua dimensão política e armada, mas não foram eles os
sócios majoritários, nem os principais formuladores deste projeto. O papel que os Estados
Unidos da América e a burguesia cumpriram neste processo foi fundamental e imprescindível,
especialmente em um período tomado pelas tensões da Guerra Fria.
A vitória da Revolução Cubana, em 1959, acendeu o sinal de alerta nos EUA, que
redobraram a atenção na observação das movimentações políticas dos países latino-
americanos, redirecionando recursos financeiros e humanos para patrocinar golpes de Estado,
no sentido de manter a América Latina como sua área de influência, impedindo o crescimento
de tendências políticas de caráter reformista e popular-progressistas naquele momento,
convenientemente classificadas como socialistas/comunistas. A polarização entre os blocos
socialista (URSS) e capitalista (EUA) corroborou para forjar as condições ideológicas para
intervenções estadunidenses, justificando a supressão da democracia em nome da defesa da
20
democracia. A estratégia internacional dos EUA operou em uma dimensão continental para
frear “excessos esquerdistas”, orientando-se pela Doutrina de Segurança Nacional.
Nestes termos, a “guerra ao comunismo internacional” serviu como discurso oficial
estadunidense, álibi ideológico para viabilizar ingerências políticas, justificar invasões na
aplicação da política de segurança hemisférica. Frente a Revolução Cubana e o avanço de
pautas de esquerda e governos populares, como os de Goulart, no Brasil e Allende, no Chile;
o conjunto dessas ações serviam a uma estratégia continental. “Para o tio Sam, era preciso
responder à situação revolucionária continental com uma política contrarrevolucionária de
dimensão equivalente”, caracteriza José de Queiroz (2015, p.105). Vale destacar que nos
marcos desta estratégia continental, a burguesia teve um importante papel durante a ditadura.
O ingresso de grandes empresas nos países da América Latina constituiu “superpoderes” em
economias frágeis e intermediárias, como esclarece Celso Furtado (1973).
Convocadas para atuar na América Latina com uma série de privilégios, fora do
controle da legislação antitruste dos Estados Unidos, e com a cobertura político-
militar desse país, as grandes empresas estadunidenses terão necessariamente que
transformar-se em superpoder em qualquer país da região. Cabendo-lhe grande parte
das decisões básicas com respeito à orientação dos investimentos, à orientação da
tecnologia, ao financiamento da pesquisa e ao grau de integração das econômicas
regionais, é perfeitamente claro que os centros de decisão representados pelos atuais
estados nacionais passarão a plano cada vez mais secundário. (...) As grandes
empresas com sua elevada capitalização, particularmente quando apoiadas por
muitos privilégios em países subdesenvolvidos como os da América Latina, têm
efeito semelhantes aos de certas grandes árvores exóticas que são introduzidas em
determinadas áreas: drenam toda a água e dessecam o terreno, provocando um
desequilíbrio na flora e na fauna, com o surgimento de pragas e coisas parecidas
(FURTADO, 1973, p. 41).
Sobre essa relação entre o empresariado e os militares, Wladimir Pomar formula uma
caracterização sobre o caráter burguês-militar do regime de repressão. Os desdobramentos
históricos e as parcerias firmadas entre empresas e o núcleo repressivo da ditadura mostram
que esta caracterização se fundamenta nas classes que, de fato, fizeram parte da direção
política e econômica do país.
21
É isso que tem levado muitos estudiosos, mesmo de esquerda, a proclamar que o
golpe e a ditadura tiveram um caráter cívico-militar. Ou seja, não teria havido uma
ditadura militar, mas sim uma ditadura civil-militar. Talvez, para serem mais
precisos nessa linha de raciocínio, devessem falar de uma ditadura burguesa-militar,
já que a burguesia foi aquela que realmente lucrou com o regime militar, e se
manteve fiel a ele até seus estertores. (POMAR, 2014, p.71)
A estratégia estadunidense “anti-insurreição” contemplou um conjunto articulado de
ações cirúrgicas em diferentes áreas. Essas ações se estenderam pelo terreno da política
diplomática as questões econômicas e militares. Os exércitos nacionais paulatinamente se
tornaram forças auxiliares dos EUA em seus próprios países e os aparelhos ideológicos e
materiais se materializou Escola Militar do Caribe, posteriormente School of Americas, que
permitiu a otimização de investimentos dos EUA e a inserção de sua política de segurança
para a AL.
A Escola Militar do Caribe na zona do Canal de Panamá, escola que desde 1961 teve
o centro das suas atividades no treino “anti-insurrecional” (ou “contra-insurgente)”
dos oficiais latino-americanos nela inscritos. A economia de esforços que este
investimento militar significava para os EUA está ilustrada por estas cifras, de 1967:
o custo médio de um soldado norte-americano era de 5.400 dólares, o de um das
forças armadas “complementares”, 540. O Programa de Assistência Militar (PAM)
foi o pilar de sustentação das Forças Armadas numa série de países (Bolívia,
Republicada Dominicana, Equador, Honduras, Guatemala, Panamá, Paraguai, a
Nicarágua somozista), onde os exércitos se transformavam numa espécie de
apêndice das Forças Armadas norte americanas (COGGIOLA, 2014, p.55).
A maioria das intervenções e golpes de Estado, na América Latina, tiveram os
interesses estadunidenses como diapasão e originaram ditaduras e consequente militarização
dos regimes políticos. “Alguns pontos em comum de todos os regimes militares são evidentes:
dissolução das instituições representativas, falência ou crise aguda dos regimes e partidos
políticos tradicionais, militarização da vida política e social em geral”, enumera Coggiola
(2014, p.61), que aponta que o desenvolvimento dependente das Forças Armadas dos países
latino-americanos, que viveram seus processos de modernização intermediados por missões
estrangeiras, assim como a falta de visão estratégica do nacionalismo burguês de base militar
22
que, mesmo no seu auge nas décadas de 1940 e 1950, se mostrou incapaz de formular um
projeto de unidade continental que quebrasse a espinha da dominação imperialista na AL.
Essas condições, na conjuntura da Guerra Fria, lançaram as bases para o avanço do
imperialismo estadunidense, que balizou o surgimento de uma onda de ditaduras e abriu o
ciclo de militarização na AL.
Os regimes não se originaram nem se tornaram a direção de um movimento de massas,
não se institucionalizaram no esteio da ideia do “partido único”, mas no domínio de uma casta
de militares sob o Estado, tendo os EUA como principal articulador internacional. É
necessário indicar o papel dos EUA na emergência de regimes autoritários na AL, pois o
autoritarismo latino-americano e a diplomacia dos EUA fazem parte de uma mesma história,
indivisível. Quase todos os países da América Latina atravessaram períodos de repressão,
liderada por militares. Na maioria dos países da América Central e do Sul, os anos de
continuada repressão estabeleceu uma tradição de violência atroz, impunidade e
esquecimento. A violência foi perpetrada por agentes do Estado que tinham absoluta certeza
de não serem responsabilizados e, mesmo após a democratização de vários países, a
impunidade desses agentes continua.
A maioria dos regimes militares na AL foi resultado de processos específicos em cada
um dos países, mas a militarização da vida social e as sequelas do autoritarismo são
semelhanças convergentes em todas as ditaduras. Os processos de transição para a democracia
possuem suas diferenças e semelhanças, algumas poucas ocorreram por colapso, mas em sua
maioria, as transições foram viabilizadas por acordos entre as elites, sob o beneplácito da
casta militar e da burguesia, como indica Nohlen (1994).
Em geral, pode-se dizer que os processos de negociação entre as elites autoritárias e
seus opositores, assim como no interior dos seus respectivos círculos, tiveram um
papel muito mais importante nos processos de democratização latino-americanos
dos anos oitenta que se supôs no início (NOHLEN, 1994, p. 5).
No Brasil, a saída da ditadura ocorreu por uma transição acordada. Spinelli (2014, p.
49) aponta que “a transição brasileira contou com um importante grau de imposição por parte
dos militares e incluiu a celebração de um pacto implícito”. As imposições dos militares
garantiram que o processo de abertura democrática controlada (ou lenta, gradual e segura)
23
fosse conduzida pelos militares. O pacto celebrado pelo processo de democratização teve os
próprios militares como principais signatários e o setor da oposição civil moderada, como
subscritor, caracterizando-se como a típica transição pactuada.
As transições têm suas particularidades e é importante esclarecê-las. Santos (2007, p.
89) classifica três tipos distintos de transições políticas: transação (transição pactuada),
afastamento voluntário ou colapso. Em linhas gerais a transação ocorre quando o regime
perde força e opta por conduzir o Estado ao processo de democratização. O afastamento
voluntário assemelha-se ao primeiro, mas diferencia-se na sua gradação de influência, já o
colapso diz respeito aos regimes autoritários que são derrotados politicamente, dando espaço a
emersão de um novo regime, oxigenado e sem grilhões que lhe impeçam de passar sua
história recente a limpo, reformar instituições e avançar em pautas fundamentalmente
democráticas.
À medida que os governos militares e seus partidários descobriram, por sua vez, de
maneira simétrica, que o autoritarismo não era mais viável no contexto da depressão
econômica dos anos 1980 e da globalização, os dois campos encontraram-se no
meio do caminho, na América Latina. Já no Leste europeu, os membros das
nomenklaturas de todo tipo tiveram ou de retratar-se, fantasiando-se de democratas,
ou de reconverter-se no setor econômico, tomando conta dele, ou, ainda, no caso dos
mais velhos, retrair-se em exílio interior (HERMET, 2001, p. 29-30).
Hermet (2001) mostra as diferenças entre as transições nos países da América Latina e
do Leste, apontando os imperativos econômicos conjunturais que constituíram as condições
para as transições. Grosso modo, as ditaduras latino-americanas gradativamente foram
perdendo força frente as exigências do mercado, da globalização e dos aspectos da conjuntura
econômica e política internacional, enfrentando também o crescimento das contestações
internas e a perda de apoio popular.
Vale destacar também que as transições políticas da AL não são casos isolados. “Na
realidade, elas fazem parte de uma grande maré democrática que alcançou proporções
mundiais no final do século XX”, salienta Schneider Marques (2010, 67). Neste contexto,
cientes de que uma transição era imperativa, os militares optaram por dirigir o processo
transitório, inviabilizando qualquer possibilidade de revanchismo e garantindo segurança
24
jurídica para os agentes de Estado, através da concessão de anistias. A maioria das transições
foi feita por cima (envolvendo acordos de paz e acordos extraoficiais entre as elites), distante
de setores populares, movimentos sociais, organizações de direitos humanos, partidos de
esquerda e lideranças políticas do campo progressista.
No Brasil, a Lei de Anistia, de 1979 “estende seus benefícios aos crimes conexos,
perdoou os que se envolveram nos porões do regime com a prática da tortura e do assassinato
de opositores políticos” (SPINELLI 2014, p. 54). É importante apontar que o legado da
estrutura repressiva não se resume a anistia concedida a torturadores, que legitima praticas
violentas e se fortalece na tradição do esquecimento. Quanto maior o silêncio sobre as
atrocidades dos regimes autoritários, mais forte se torna as tendências ou as práticas que se
tributam ao autoritarismo e a repressão. Esquecer o extermínio é parte do próprio extermínio,
explica Jean Baudrillard (2003). Neste sentido, combater a amnésia política e social é
fundamental para uma transição política que busque a superação do legado autoritário e o
encontro do povo de diferentes nações, com sua própria história.
Uma transição democrática deve garantir eleições periódicas, livres, diretas e
transparentes, o direito ao sufrágio universal e auto-organização, a liberdade de imprensa e a
de organização em partidos políticos, além de um conjunto amplo de reformas
democratizantes das instituições, que, sob a égide de uma ditadura, não seriam possíveis.
Apesar de todas as mudanças burocráticas necessárias no funcionamento do Estado, estas não
são suficientes para a consolidação da democracia. É necessário discutir os abusos que foram
cometidos durante a vigência de regimes truculentos, esclarecer casos, indicar
responsabilidades, reparar vítimas e impedir que a amnésia política impeça o futuro da
democratização, dando espaço as tradições autoritárias fundadas no esquecimento e na
violência. Não existe uma fórmula única para tratar dos abusos e lidar um com um passado
marcado pelo desrespeito aos direitos humanos, mas quase todos os países se apoiam em
iniciativas da justiça de transição para auxiliar as transições políticas.
A justiça de transição ou transicional não significa um tipo especifico de justiça, mas
um conjunto de iniciativas que servem ao processo de democratização de sociedades que
passaram por experiências autoritárias e, sobre sua conceituação, trataremos melhor adiante.
Vale destacar que a transição política democratizante é um processo que tem início, mas não
deve ser considerada conclusa em muitos casos, por dois motivos: primeiro, porque o entulho
25
autoritário não se dissolve das instituições em um curto prazo e segundo porque “para um
estado democrático, o estar em transformação é seu estado natural: a democracia é dinâmica”,
como esclarece Bobbio (1986, p.9).
A consolidação da democracia em um país é um processo povoado de tensões,
avanços, retrocessos e reviravoltas. “Nem mesmo no caso mais avançado do Uruguai, onde se
trata de reconstruir a democracia, poderíamos dizer que estamos diante de uma democracia
consolidada”, aponta Weffort (1989, p.7), que considera que é próprio da atmosfera das
transições serem cercadas de incertezas. Contudo, muitas são as iniciativas tomadas na
América Latina, no sentido da democratização, obtendo-se resultados satisfatórios. A
instituição de comissões de verdade é um remédio utilizado pelos países que optam por tratar
sua amnésia política e passar sua história a limpo
O objetivo de uma comissão de verdade é reconciliar a memória nacional à história.
Trata-se de promover o encontro de um país com sua história, de levar no banco dos réus
criminosos impunes. Como diz Baltasar Garzón (2005).
A história da impunidade em todos os povos é a história da covardia dos que
geraram, mas também dos que a consentiram ou a consentem posteriormente. Em
todas as hipóteses a história está marcada por grandes discursos de justificação e de
chamadas à prudência de modo a não romper os frágeis equilíbrios conseguidos em
troca da não exigência de responsabilidades dos perpetradores ou que a referida
exigência se realize com moderação. Da mesma forma, abundam discursos
justificativos (GARZÓN, 2005, p. 172).
A constituição de Comissões de Verdade, que visam a apurar violações e abusos aos
direitos humanos, tem sido uma iniciativa promovida em vários países que viveram sob
ditaduras. Desde 1974, mais de vinte comissões de verdade foram criadas na América Latina,
por iniciativas de Governos e parlamentos ou por acordos de paz. As comissões receberam
nomenclaturas diferentes, possuem suas especificidades, mas buscam o mesmo objetivo e
amparam-se na legislação internacional dos Direitos Humanos. São órgãos temporários,
algumas foram acompanhadas pela ONU e maioria concluiu seus trabalhos com relatórios,
deixando as punições para a justiça dos respectivos países.
26
Realizamos uma catalogação das Comissões da Verdade na América Latina e as
classificamos em quatro grupos: 1) as que fracassaram; 2) com trabalhos insatisfatórios; 3)
com trabalhos satisfatórios e 4) de referência internacional na defesa da verdade, memória e
justiça.
As experiências de Comissões da Verdade na Bolívia e Equador, não foram exitosas.
Na Bolívia, em 1982, foi criada a Comissão Especial de Inquérito sobre Desaparecidos, primeira
comissão fundada na AL. A comissão coletou testemunhos sobre 155 casos de desaparecimentos
forçados, mas, sem apoio político e a estrutura de trabalho necessário, se dispersou sem apresentar um
relatório final. No Equador, a Comissão de Justiça e Verdade foi criada em 1996 com três membros de
organizações internacionais de direitos humanos e tinha a responsabilidade de encaminhar ao
Judiciário as evidências nos casos apurados, mas, sem recursos suficientes, ela encerrou suas
atividades com apenas cinco meses, sem apresentar um documento final e sem encaminhar as
investigações à justiça. Em ambos os casos, elas sequer conseguiram concluir seus relatórios
finais, não obtiveram êxito em encaminhar os casos de abusos à justiça e foram dispersadas,
em virtude da falta de apoio institucional.
No Uruguai, foi criada a Comissão de Investigação da Situação de Pessoas Desaparecidas e
Suas Causas, em abril de 1985. No entanto, seu relatório final tratou dos desaparecimentos,
mas não sobre os casos de tortura e prisões ilegais, em virtude de seus limites legais. O
relatório, apesar de público, foi pouco divulgado e é pouco conhecido.
Em El Salvador, A Comissão da Verdade foi criada em 1991 por um acordo de paz entre as
partes envolvidas na guerra civil e a ONU. O seu primeiro relatório, apresentou doze casos de
execuções cometidas pelas forças armadas e recomendou a dispensa de todos os militares e civis
citados pelo documento. O governo e os militares tiveram uma reação negativa, alegaram que a
comissão havia ultrapassado seus marcos legais e uma anistia foi aprovada poucos dias após a
divulgação do relatório, impedindo a punição dos envolvidos com as violações de direitos humanos.
Assim, as comissões de El Salvador e Uruguai elaboraram relatórios, mas não
conseguiram cumprir a missão que lhes foi confiada, ou seja, a de divulgar amplamente os
casos e buscar punições. No caso uruguaio, pela fraqueza do alcance do relatório e no caso
salvadorenho, por um imbróglio político, que impediu que houvessem punições efetivas
frente todas as evidências coligidas pela comissão.
As comissões de verdade instituídas no Chile (1990), Guatemala (1994), Panamá
(2001), Peru (2001) e Paraguai (2003), tal como o Comissionado para a Proteção de Direitos
27
Humanos de Honduras, Leo Valladares, nomeado em 1992, conseguiram, em maior ou menor
gradação, desemprenhar papéis fundamentais pelo reconhecimento histórico das violações,
promovendo o direito a verdade, esclarecendo as responsabilidades do Estado frente os abusos
e propondo recomendações pela reparação as vítimas e seus familiares. O trabalho dessas
comissões deve ser considerado satisfatório e importante para a reconciliação entre um país e
sua história.
Em Honduras, 179 casos de desaparecimentos provocados pelas forças armadas foram
esclarecidos. No Chile, a Comissão Nacional de Verdade e Reconciliação entregou seu
trabalhou final e obteve do governo o reconhecimento oficial das violações a direitos
humanos e um pedido formal de desculpas feito pelo presidente Patrício Aywin, em nome do
Estado. A reparação financeira e a concessão de benefícios médicos e educacionais as vítimas,
e seus familiares foi uma recomendação realizada pela comissão que se concretizou com a
abertura da Corporação Nacional para Reparação e Reconciliação. A Comissão para o
Esclarecimento Histórico da Guatemala empreendeu enormes esforços para coletar o maior
volume de depoimentos, resultando na entrega de seu relatório, que registrou mais de 42 mil
vítimas, contabilizando mais de 23 mil assassinados. O esclarecimento desses casos é
essencial à memória nacional.
No Panamá, A Comissão de Verdade contou com a assistência de organizações
nacionais e internacionais de direitos humanos, que lhe auxiliaram com informações. O seu
relatório final foi entregue em abril de 2002.
No Peru, a Comissão de Verdade e Reconciliação apresentou o seu relatório com 69
mil casos de mortos e desaparecidos, em sua maioria, da comunidade indígena. Este
esclarecimento não faz parte apenas da história peruana, mas lança uma luz sobre o imenso
massacre indígena que se operou neste país, um dos maiores da história recente da América
Latina.
No Paraguai, a Comissão de Verdade e Justiça teve o volumoso trabalho de esclarecer
as violações nos 35 anos da ditadura militar de Stroessner, marcada pela repressão e violência.
Além da Comissão de Verdade e Justiça, a Comissão Nacional de Direitos Humanos
trabalhou um programa de compensações às vítimas da ditadura. Sobre o desempenho da
Comissão de Verdade e Justiça, esclarecem Alarcon e Mandelli:
28
A Comissão teve por objetivo investigar as violações aos direitos humanos
cometidas por agentes estatais e paraestatais entre 1954 e 2003; seu foco principal
recaiu sobre os 35 anos de ditadura de Stroessner. O relatório é resultado de uma
série de audiências públicas temáticas, mais de duas mil entrevistas e testemunhos, e
da consulta aos arquivos da ditadura paraguaia que já vieram a público. Em seus oito
tomos, podem ser encontrados dados estatísticos sobre a repressão, descrições dos
métodos do terror de Estado, listagem de vítimas e detalhes de alguns casos
paradigmáticos das práticas de prisão, tortura, violência sexual, exílio forçado,
desaparecimento e execução de opositores e lideranças populares. Pela primeira vez,
pôde-se ter uma imagem mais precisa do alcance da repressão que vitimou a
sociedade paraguaia. A Comissão de Verdade e Justiça contou quase 20 mil
detenções arbitrárias ou ilegais, mais de 18 mil opositores torturados, mais de três
mil exilados, 336 desaparecidos e 59 executados. Durante o regime de Stroessner,
um em cada 67 adultos foi torturado. É também notável o número de cidadãos
paraguaios que desapareceram enquanto estavam exilados em países vizinhos – 102
na Argentina e sete no Brasil –, em prováveis ações da operação Condor. Mas o
relatório foi além: a grilagem de terras incentivada pela ditadura e a distribuição
ilegal de terras públicas a latifundiários e apoiadores do regime, que atingiu 28% das
terras aráveis do Paraguai, é tema de um dos volumes. Violações contra mulheres,
crianças e povos indígenas, mesmo quando não apresentavam motivações
explicitamente políticas, também foram abordadas, entendidas como
responsabilidade do regime autoritário. Os trabalhos da Comissão resultaram
também em dez denúncias judiciais contra violadores, bem como em uma lista de
177 recomendações ao poder público paraguaio. Entre elas, dar continuidade à busca
pelos restos dos desaparecidos políticos, preservar antigos centros de tortura como
espaços de memória, alterar nomes de ruas e outros locais públicos que
homenageiam violadores, e solicitar a outros países que abram seus arquivos
relacionados à violação de direitos de cidadãos paraguaios (ALARCON e
MANDELLI, 2011, p. 56).
As comissões citadas acima tiveram um trabalho satisfatório no esclarecimento das
violações pelos regimes autoritários latino-americanos, Na América Latina, apenas a
Argentina deve ser apontada como a referência internacional na defesa da verdade, memória e
justiça, pois foi o único país que levou centenas de envolvidos com torturas e assassinatos ao
banco dos réus, condenando mais de duzentos militares e civis, alguns a pena perpétua.
29
A Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (Conadep), em apenas
nove meses, ouviu mais de sete mil depoimentos e entrevistas. O trabalho da comissão foi
responsável por reunir informações que serviram para mais de duas mil denúncias contra
torturadores. Além do julgamento de oficiais e da abertura de processos na Justiça, a comissão
teve um grande alcance na divulgação de seu trabalho, o relatório “Nunca Más” documento 9
mil desaparecidos e tornou-se um best-seller, testemunhos de vítimas foram lidos em rede
nacional de televisão e a defesa dos direitos humanos e a condenação da ditadura se tornou e
continua, sendo um elemento nacional da vida política argentina. O alcance dos trabalhos da
Conadep não se restringiu a apuração dos acontecimentos, mas foi capaz de avançar na justiça
pelas condenações dos algozes da ditadura e pautou nacionalmente o debate sobre verdade,
memória e justiça.
Compreendendo que uma comissão de verdade, em maior ou menor grau, obedece a
três estágios de atuação, o relato de história, a construção moral e as consequências políticas,
é correto afirmar que apenas a Conadep, na Argentina, conseguiu, na América Latina, um
efetivo e expressivo resultado nestes três níveis. Ela foi capaz de esclarecer o período de
repressões na ditadura argentina com base em testemunhos e documentos, conseguindo
didaticamente a reprovação social da violência cometida pelo arbítrio de um Estado de
exceção e causando consequências políticas com a punição, com prisão perpétua de oficiais
que estiveram nos porões e gabinetes da ditadura. A experiência argentina deve ser vista como
referência e exemplo de transição democrática e trato com a história.
As comissões de verdade tem um papel importante para a história de um país que
atravessou períodos autoritários. Elas possuem um papel pedagógico para a democracia.
Trata-se de esclarecer as circunstâncias da morte de jovens que foram executados sem o
direito a um tribunal e deixaram pais aflitos que não puderam sepultá-lo. Essas histórias foram
silenciadas por muito tempo, porque incomodam, mas contá-las, reconhecendo as
responsabilidades do Estado e seus agentes, entendendo que mesmo a reparação justa é
insuficiente para os parentes e amigos que perderam um íntimo, é um antídoto forte contra
uma amnésia que tem como principal sintoma uma profunda incompreensão do presente,
fatalmente originada na incompreensão do passado. É neste sentido que apresentamos
panoramicamente as experiências das comissões verdade na América Latina, para tratar do
30
percurso histórico que antecede a criação da Comissão Nacional da Verdade no Brasil e seu
respectivo trabalho.
1.2 COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE: PERCURSO HISTÓRICO
No ano de 2014, registrou-se o cinquentenário do golpe militar no Brasil. Neste
período, muitas universidades, movimentos sociais, entidades e organizações de direitos
humanos, associações de familiares de presos e desparecidos políticos retomaram, com mais
vigor, o debate sobre democracia e ditadura. O tema ganhou a atenção de editoras que
anunciaram novas publicações e relançamentos de livros vinculados ao tema. Eventos
acadêmicos e debates foram promovidos por professores e coletivos de militância de várias
matizes ideológicas, atingindo uma parcela da população escolarizada em instituições de
ensino básico e superior, em círculos de militância política e ativismo social.
Em Brasília, no aniversário do cinquentenário do golpe, a presidente Dilma Rousseff
fez um pronunciamento no Palácio do Planalto, onde enfatizou a importância das conquistas
democráticas. Na Sede da OAB, o então Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo,
participou de solenidade onde em ato simbólico pediu perdão em nome do Governo brasileiro
as vítimas da Ditadura. No Senado, parlamentares pediram revisão da Lei de Anistia na sessão
especial que lembrou o golpe. Em uma manifestação intitulada de “escracho”, vários cartazes
foram afixados na frente da casa do ex-chefe do DOI-Codi e coronel reformado do Exército,
Brilhante Ustra. Vários atos em capitais e grandes cidades, como Brasília, São Paulo, Porto
Alegre, Belo Horizonte e Salvador repudiaram o golpe, homenagearam os mortos e
desparecidos políticos.
Contudo, o golpe civil-militar também foi comemorado por parte da sociedade no ano
de seu cinquentenário, naquele momento em proporções menores as manifestações de repúdio
à ditadura. Um ano depois, em 2015, houve um robusto crescimento de manifestações que
pediam o impeachment da presidente Dilma Rousseff e multiplicaram-se atos por uma
intervenção militar no Brasil. Uma parcela da sociedade brasileira idealiza a ditadura como
um regime a-corrupto de paz social e o autoritarismo brasileiro como parte de uma ideologia
conservadora mostra-se vivo e presente. “O fascismo não perdeu, como realidade histórica,
nem seu significado político nem sua influência ativa. O fascismo, como ideologia e utopia,
31
persistiu até hoje, tanto de modo difuso, quanto como uma poderosa força política
organizada”, esclarece Florestan Fernandes (2015, p.33).
Análogo ao fascismo analisado por Florestan, o mesmo pode-se dizer as tendências
autoritárias no Brasil.
A intervenção militar de 1964 fez parte de uma estratégia continental, que tinha os
EUA como fiador e a burguesia brasileira e os militares como parceiros do consórcio
imperialista que atuou pela substituição de presidentes eleitos por sócios dos interesses
estadunidenses nos países latino-americanos, como Brasil e Chile.
O resultado do golpe foi uma ditadura, de caráter burgo-militar, como define Milton
Pinheiro (2014), que perdurou por 21 anos. O golpe de 1964 é caracterizado pela “tomada do
poder e o estabelecimento de uma ditadura de classe comandada pelo grande capital”, como
afirma Monteleone (2016, p.10). “Washington garantiu apoio aos seus tradicionais aliados
militares e lhes forneceu ajuda, porque os militares eram essenciais a estratégia para conter
excessos esquerdistas do Goulart, presidente eleito”, esclarece Chomsky (2003, p.289). A
histérica bandeira do combate ao comunismo internacional serviu como álibi ideológico para
os EUA e seus parceiros, avançando contra princípios democráticos básicos como a imprensa
livre, a autodeterminação dos povos e a liberdade de expressão e auto-organização,
falsificando a realidade e posteriormente a história. Desmistificar os papéis dos principais
atores da trama da Ditadura: os EUA, a burguesia brasileira e os militares, é acertar contas
com o passado e promover a reconciliação do Brasil com sua própria história.
Quase 30 anos após o fim do regime, interregno temporal suficiente para um balanço
honesto sobre a ação terrorista do Estado brasileiro durante a ditadura, foi instalada a
Comissão Nacional da Verdade, através da Lei nº 12.528, de 18 de novembro de 2011. Os
movimentos sociais pelo direito à verdade, memória e justiça, que têm empreendido uma luta
histórica pela apuração das graves violações aos direitos humanos e pela responsabilização e
punição dos autores de tortura, assassinatos e desaparecimentos forçados, conquistaram um
importante avanço com a instituição da CNV.
A ditadura brasileira, iniciada com o golpe de 31 de março de 1964, converteu o país
em um Estado de Exceção. Um conjunto de direitos e liberdades civis e individuais foram
desrespeitadas e a ditadura se tornou responsável direta pela morte de centena de pessoas,
estudantes, trabalhadores, religiosos, jornalistas, artistas e setores médios que se bateram
32
contra as atrocidades protagonizadas pelos militares. Além das mortes, mais de 20 mil presos
políticos e um lastro de torturas e desaparecimentos forçados são registros das nebulosas
práticas da ditadura e da história contemporânea brasileira. As graves violações humanitárias
não foram registradas apenas do Brasil. É importante pontuar que a ascensão do autoritarismo
foi um fenômeno continental na América Latina.
Várias ditaduras militares, entre as décadas de 1960 e 1970, foram apoiadas pelos
Estados Unidos, inclusive a ditadura militar brasileira. O contexto da Guerra Fria que
polarizou o mundo entre os blocos dos EUA e do chamado Free World e o da União
Soviética, respectivamente socialista, torna-se um aspecto essencial para entender a ação
binária que os parceiros estadunidenses adotaram frente os agrupamentos de esquerda na
América Latina.
No Brasil, ainda durante a ditadura militar, teve início a luta pelo esclarecimento das
versões oficiais de desaparecimentos e assassinatos por motivação política. A conhecida
história da estilista Zuleika Angel Jones, conhecida também como Zuzu Angel, que
empreendeu inúmeros esforços para encontrar seu filho, Edgar Angel Jones, estudante de
Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e militante do Movimento
Revolucionário 8 de outubro (MR-8), que foi preso 14 de junho de 1971 por agentes do
Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica e dado como desaparecido, é um exemplo
da luta de familiares de presos e desaparecidos políticos pelo direito à verdade histórica,
memória e justiça. Zuzu Angel, tal como muitas outras mães, não conheceu, através do Estado
e da justiça, a verdade sobre o destino dado ao seu filho. Ela fez da moda uma ferramenta de
denúncia, mas em 1976, foi vítima de um atentado que culminou com sua morte.
O relatório final da CNV, ao versar sobre o mandato legal da comissão, que tem o
direito internacional como diapasão e exemplo, aponta o primeiro marco legal sobre o direito
à verdade.
Coube ao direito internacional humanitário, destinado a regular situações de conflito
armado, a primeira referência normativa ao direito à verdade. Em 1949, as
Convenções de Genebra já fixaram regras a respeito de registro e fornecimento de
informações sobre as vítimas de conflitos armados, bem como sobre a obrigação das
partes em facilitar as investigações feitas pelos membros das famílias dispersadas
pela guerra. Contudo, o reconhecimento explícito do direito das famílias a saber
33
sobre o ocorrido com seus entes deve ser atribuído ao Protocolo Adicional I às
Convenções de Genebra, de 1977. Seus artigos 32 e 33 tratam do direito das famílias
de conhecer o destino de seus membros, ao término dos períodos marcados por
hostilidades, bem como da obrigação das partes envolvidas no conflito de localizar
as vítimas, ou os despojos das vítimas cujo paradeiro permaneça ignorado (CNV,
2014, p. 34).
Um ano após a morte de Zuzu Angel, em 1977, o Protocolo Adicional I às
Convenções de Genebra, em seus artigos 32 e 33, estabeleceu a responsabilidade dos estados
em localizar o paradeiro e despojos de vítimas que sofreram graves violações de direitos
humanos marcadas pela hostilidade de conflitos armados e outras intempéries da história
recente.
O avanço da legislação que tratava das questões humanitárias teve um novo capítulo
escrito no Brasil em 1979. A criação dos Comitês Brasileiros de Anistia, em 1978,
impulsionou manifestações públicas pelo retorno dos exilados e o lançamento de um conjunto
de ações: debates, panfletos, abaixo-assinados e a edição de livros que tiram do isolamento os
presos políticos. As mobilizações ganham as ruas e simpatizantes no Congresso, como o
senador Teotônio Vilela. O Governo se mostrava reticente a conceder anistia, mas o avanço
da campanha e uma greve de fome de 32 dias dos presos políticos levaram o presidente João
Baptista de Oliveira Figueiredo a girar a tática governamental sobre o tema. Costa (2001, p.
86), com base no Projeto Brasil Nunca Mais, aponta que “naquele momento, havia no Brasil
cerca de 200 presos políticos, 128 banidos, 4.877 punidos por Atos de Exceção, 263
estudantes atingidos pelo artigo 477 e cerca de 10 mil exilados”.
A campanha teve como palavra de ordem “Anistia ampla, geral e irrestrita” e o general
presidente João Batista Figueiredo sancionou a Lei Nº 6.683, de 28 de agosto de 1979. Em
linhas gerais, a anistia concedida não foi a projetada pelos comitês e serviu também para que
os militares se auto anistiassem, com a extensão do perdão a torturadores. Mas também
simbolizava um processo de abertura dentro da institucionalidade, que serviu para fortalecer
as condições para outras movimentações políticas, como as “Diretas Já” de 1985.
A Anistia de 1979 e a derrota da emenda constitucional que previa Eleições Gerais em
1985, impulsionada pela campanha das “Diretas Já”, segundo Spinelli (2014, p. 61) “protegia
os militares contra pretensões revanchistas e permitiria que eles exercessem uma discreta
34
tutela sobre o governo civil, adiantando a competição real com a oposição, em reeleição
direta, para 1991”.
A sucessiva queda de regimes autoritários na América Latina, a perda de legitimidade
da ditadura brasileira, o avanço de mobilizações, como as pela liberdade dos presos políticos
com o processo de anistia e o pedido de eleições gerais para 1985, forjaram as condições para
um processo de abertura.
A distensão “lenta, gradual e segura”, publicamente iniciada com o general e
presidente Ernesto Geisel, em 19741, avançou sob o comando de Figueiredo e teve importante
marco com a eleição de Tancredo Neves pelo colégio eleitoral em 1985, o primeiro presidente
civil desde 1964. Em decorrência de sérios problemas de saúde, Tancredo veio a falecer em
21 de abril de 1985.
José Sarney, que havia tomado posse interinamente como presidente desde 15 de
março daquele ano, passou à titularidade da Presidência da República. Neste sentido, é
importante destacar que ele foi um aliado dos militares e gozava de confiança das cúpulas do
poder militar, um agende político sob o controle do diapasão autoritário.
Após a ascensão de um civil à Presidência, a Constituição de 1988, que ensejou ampla
mobilização da sociedade, teve papel fundamental como novo marco constitucional que
fundamenta o Estado democrático de direito e restitui uma série de direitos e garantias civis.
O processo de abertura possibilitou maior organização e várias associações de familiares de
presos e desaparecidos políticos, a exemplo das Madres de Plaza de Mayo, na Argentina,
assim como entidades de direitos humanos, foram fundadas, em um contexto favorável a
organização e à luta pelo direito à verdade, que tomou novos contornos pós-ditadura. A
abertura dos arquivos da Ditadura, a punição de torturadores com a revisão da Lei de Anistia e
a indenização e reparação histórica se tornaram bandeiras importantes, assim como a
instituição de uma comissão da verdade.
A luta pela democracia e pela verdade histórica tem uma dimensão não apenas
humanitária, mas também política. O Relatório da IV Reunião Anual do Comitê de
Solidariedade aos Revolucionários do Brasil, documento datado de fevereiro de 1976,
1 É importante citar que o presidente Ernesto Geisel aprovou uma série de medidas autoritárias como o
fechamento do Congresso em 1º de abril de 1977, além de reformas que permitiam e reforçava uma confortável
predomínio do Governo nas esferas legislativas. Essas medidas fizeram parte de um arsenal judicial que
reforçava o poder do Governo em conduzir um processo de abertura tutelada.
35
encontrado no acervo pessoal do ex-senador e líder comunista Luiz Carlos Prestes, apresenta
uma lista de 233 torturadores da cidade de São Paulo. A historiadora Vivi Fernandes de Lima
(2012) relata, em um dossiê sobre Prestes, o significado deste documento que registrou os
nomes de algozes do regime e buscou preservar essa memória, uma ação política de combate
ao esquecimento e de denúncia ao autoritarismo.
Este não foi o único dossiê produzido por militantes políticos e ativistas de direitos
humanos durante a ditadura. O certo é que eles têm um sentido muito claro: reivindicar uma
história onde as memórias dos que foram vítimas não desapareça ou seja enterrada. Calveiro
(2013) afirma que nos campos de concentração/extermínio na Argentina, havia-se quase uma
obsessão: alguém deveria sobreviver para contar fora da prisão o que aconteceu com os que
foram presos.
Para o filósofo Walter Benjamin (1987, pp 3, 14) “somente a humanidade redimida
poderá apropriar-se totalmente do seu passado” e a “história é objeto de uma construção cujo
lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de ‘agoras’. Ela é um salto
de tigre em direção ao passado”.
A promulgação da Constituição Cidadã de 1988 restituiu uma série de garantias
fundamentais suspensas pela ditadura brasileira. No cenário internacional as obrigações dos
Estados com as vítimas de graves violações de direitos humanos, também foram ratificadas
em 1988, em função da decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, como
apresenta Simone Pinto (2010):
Em função da decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, relativa ao
caso Velásquez Rodríguez vs. Honduras, em que ficou definido que todos os
Estados, estão sujeitos a quatro obrigações: a) tomar medidas para prevenir
violações aos direitos humanos; b) conduzir investigações quando as violações
ocorrem; c) impor sanções aos responsáveis pelas violações e d) garantir reparação
para as vítimas. Estes princípios foram reafirmados em decisões subsequentes e
adotadas também por decisões da Corte Européia de Direitos Humanos e por
tratados e resoluções da ONU (PINTO, 2010, p. 129).
No Brasil, o que pode ser apontado como o episódio de maior importância no percurso
das reivindicações por verdade, memória e justiça, pós-Constituição de 1988, foi a instalação
da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, a CEMDP. O presidente
36
Fernando Henrique Cardoso (FHC), que sofreu pressão política de grupos de familiares de
presos e desaparecidos políticos, tomou a iniciativa de abrir diálogo. O Ministério da Justiça,
através do Ministro Nelson Jobim, recebeu pela primeira vez, em 1995, representantes da
Comissão de Familiares de Presos Políticos, Mortos e Desaparecidos e do grupo Tortura
Nunca Mais. O resultado dessa interlocução foi a aprovação e a sanção presidencial de Lei nº
9.140, de 4 de dezembro de 1995, que afirmou a responsabilidade do Estado sobre os crimes
praticados por agentes estatais durante a ditadura e criou a CEMDP. A própria comissão faz
referência à importância da lei.
Ela afirmou a responsabilidade do Estado pelas mortes, garantiu reparação
indenizatório e, principalmente, oficializou o reconhecimento histórico de
que esses brasileiros não podiam ser considerados terroristas ou agentes de
potências estrangeiras, como sempre martelaram os órgãos de segurança. Na
verdade, morrera lutando como opositores políticos de um regime que havia
nascido violando a constitucionalidade democrática erguida em 1946
(BRASIL, 2007, p. 30).
A CEMDP, instituída em 1995 pelo presidente FHC, concluiu seu trabalho com a
publicação do seu relatório final “Direito à Verdade e à Memória” em 2007, já sob o mandato
do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. É importante ressaltar que antes da conclusão dos
trabalhos da CEMDP, em 2005, por determinação presidencial, foram retirados mais de 20
milhões de páginas sobre a ditadura do extinto Serviço Nacional de Informação, o SNI e
recolhido ao Arquivo Nacional.
Registre-se ainda que essas iniciativas estavam ancoradas nas determinações da ONU,
em especial da Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas Contra o
Desaparecimento Forçado, que ocorreu em 2006 e diz que “toda vítima tem o direito de
conhecer a verdade sobre as circunstâncias de um desaparecimento forçado e o destino da
pessoa desaparecida, bem como o direito a liberdade de buscar, receber e difundir
informações com esse fim”. Essa discussão é apresentada por Rafael Neves (2012, p.156), que
ressalta que “os direitos humanos não podem ser entendidos desvinculados do exercício do
poder político”. No que diz respeito ao direito à verdade, a CNV destaca a atuação do Alto
37
Comissário para Direitos Humanos e a publicação de O Estado sobre o direito à verdade que
define as dimensões individuais e coletivas sobre o direito à verdade.
O direito à verdade recebeu atenção, ainda, do Alto Comissariado para Direitos
Humanos a partir de 2006, quando foi publicado o Estudo sobre o direito à verdade,
que define o direito de saber a “íntegra e completa verdade” sobre as causas que
levaram à vitimização, as causas e condições para as graves violações de direitos
humanos e de direito humanitário, o progresso e os resultados de investigações, as
circunstâncias e razões para o cometimento de crimes internacionais, as
circunstâncias em que as violações ocorreram e, finalmente, a identidade dos
perpetradores. O direito à verdade assume duas dimensões: 1) individual: o direito à
verdade impõe a obrigação do Estado de apresentar informações específicas sobre as
circunstâncias das graves violações, inclusive a identidade dos autores e no caso de
morte e desaparecimento, sobre a localização dos restos mortais; e 2) coletiva: o
Estado está obrigado a fornecer informações acerca das circunstâncias e razões do
ocorrido (CNV, 2014, p. 35).
Importantes avanços na legislação internacional que trata das violações aos direitos
humanos foram registrados no começo do século XXI e quando esse anteparo jurídico versa
sobre as violações que ocorreram em decorrência de rupturas institucionais e a consequente
emergência de ditaduras, uma demanda por reparações da justiça e por transição à democracia
surge. Para atender esta demanda por justiça e democracia, surge o conceito de justiça de
transição ou justiça transicional que visa a transição democracia com consolidação do Estado
democrático de direito e reparação as vítimas de regimes autoritários. Este conceito é
explicado nos seus pormenores por Simone Pinto (2010) e Honório Quinalha (2013), que
apontam a emergência dessa temática na agenda política latino-americana.
O conceito de justiça de transição surgiu no final da década de oitenta e início da
década de noventa principalmente em resposta às mudanças políticas ocorridas na
América Latina e no Leste Europeu. Da junção de demandas por justiça e por
transição democrática, o termo justiça transicional foi cunhado para expressar
métodos e formas de responder a sistemáticas e amplas violações aos direitos
humanos. Assim, justiça transicional não expressa nenhuma forma especial de
justiça, mas diversas iniciativas que têm por intuito reconhecer o direito das vítimas,
38
promover a paz, facilitar a reconciliação e garantir o fortalecimento da democracia
(PINTO, 2010, p. 129).
Para Quinalha:
O tema justiça de transição ingressou, com posição de destaque, na agenda política
latino-americana. As discussões relativas ao legado do passado autoritário nessas
democracias recentes sempre estiveram em pauta pela persistente atuação de
movimentos sociais de ex-presos e de familiares de desaparecidos políticos. Mas
essas pautas adquiriram excepcional visibilidade e receberam maior atenção dos
governos na região apenas durante a primeira década do séc. XXI, em especial nos
últimos cinco anos. No caso brasileiro, demonstrações contundentes disso podem ser
verificadas, especialmente, a partir do ano de 2007. Uma série de iniciativas e
respostas recentes por parte do Estado atesta que esse tema começou a ocupar um
espaço público relevante e passou a ser objeto de intensas polemicas na sociedade e
no interior do próprio governo (QUINALHA, 2013, p. 22-23).
Os avanços de 2005, 2006 e 2007 foram importantes para basilar as discussões em
torno da 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos que ocorreu em 2009 e recomendou
a criação de uma Comissão de Verdade e Justiça. A tensão entre as reivindicações dos
movimentos sociais e o governo de conciliação de classes do ex-presidente Lula resultou em
embates internos. Os movimentos e entidades de direitos humanos reivindicavam uma
comissão de verdade e justiça, buscando não apenas o avanço na política de efetivação da
verdade histórica, mas também a punição dos perpetradores de direitos humanos e as reformas
estruturais fundamentais ao processo de transição e consolidação democrática. Edson Teles
(2012) aponta os personagens dos embates internos do governo:
A instalação de uma Comissão da Verdade e Justiça é uma reivindicação antiga das
entidades de direitos humanos, ex-presos políticos e familiares de mortos e
desaparecidos. Em dezembro de 2008, a proposta de criação de uma comissão foi
apresentada e votada na XI Conferência Nacional de Direitos Humanos, justamente
sob a forma de uma ‘Comissão de Verdade e Justiça’. O ano seguinte foi marcado
por uma queda de braço entre o então secretário de Direitos Humanos, Paulo
Vannuchi, que defendia a proposta saída da conferência, e o então ministro da
Defesa, Nelson Jobim, que defendia uma comissão apenas da ‘verdade’,
39
representando os interesses dos militares. Logo depois, apresentou-se o III Programa
Nacional de Direitos Humanos, no qual constava uma proposta de Comissão da
Verdade, sem o acréscimo da Justiça (TELES, 2012, p. 38).
O grupo de trabalho que formulou o anteprojeto de criação da comissão foi formado
em 13 de janeiro de 2010, por força de determinação presidencial e foi comandada por
Erenice Guerra, então secretária-executiva da Casa Civil.
Em 12 de maio de 2010, o projeto de criação da CNV, a Lei nº 12.528, era
encaminhada por Lula ao Congresso Nacional, onde tramitou em regime de urgência, sendo
sancionada em 18 de novembro de 2011, pela presidenta Dilma Rousseff.
A CNV foi instalada em 12 de maio de 2012. Os conselheiros indicados foram
Claudio Lemos Fonteles, ex-procurador-geral da República; Gilson Langaro Dipp, ministro
do Superior Tribunal de Justiça; José Carlos Dias, advogado, defensor de presos políticos e
ex-ministro da Justiça; José Paulo Cavalcanti Filho, advogado e ex-ministro da Justiça; Maria
Rita Kehl, psicanalista e jornalista; Paulo Sérgio Pinheiro, professor titular de Ciência Polícia
da Universidade de São Paulo (USP) e Rosa Maria Cardoso da Cunha, advogada criminal e
defensora de presos políticos. Registre-se que, com a renúncia de Claudio Lemos Fonteles,
em setembro de 2013, sua vaga foi ocupada por Pedro Bohomoletz de Abreu Dallari,
advogado e professor titular de Direito Internacional do Instituto de Relações Internacionais
da USP.
Gilson Dipp não participou do período final dos trabalhos da CNV e se afastou da
comissão por problemas de saúde. A comissão contou com a participação de um conjunto de
assessores, um núcleo pericial, pesquisadores, consultores, colaboradores e o estabelecimento
de muitos acordos de colaboração com outras comissões de verdade, memória e justiça
legislativas, comissões dirigidas por seções da Ordem dos Advogados do Brasil ou criadas no
âmbito das universidades e demais instituições de ensino, assim como comitês da verdade de
entidades de classe, como a União Nacional dos Estudantes2.
A CNV celebrou ainda parcerias internacionais com embaixadas e centros de arquivos
e pesquisa de outros países. O caráter republicano da comissão e os rígidos mecanismos de
2 O relatório final da Comissão da Verdade da UNE pode ser acessado aqui:
http://www.une.org.br/noticias/confira-o-relatorio-final-da-comissao-da-verdade-da-une.
40
apuração utilizados devém ser ressaltados como componentes de um instrumento essencial ao
avanço da justiça de transição no Brasil.
O relatório final da CNV considera que foi de fundamental importância para o
desenvolvimento de seus trabalhos que a Lei de Acesso a Informação (LAI), a Lei nº 12/527,
tramitada concomitantemente com a lei que criou a Comissão. A LAI forneceu um suporte
jurídico necessário para que as investigações da CNV pudessem ser as mais amplas possíveis
e contassem com o fornecimento de informações por parte dos órgãos públicos. A aprovação
da LAI, foi classificada pela Comissão da seguinte forma:
Foi determinante, para os trabalhos da CNV, que o processo legislativo que produziu
a Lei nº. 12.528/2011 tenha se dado simultaneamente àquele que conduziu à
aprovação da Lei nº. 12.527/2011, de Acesso à Informação (LAI). A edição de uma
lei de acesso à informação de interesse público garantiu maior transparência à
administração pública, restringindo a possibilidade da classificação de informações,
o que beneficiou o trabalho da CNV. Com efeito, o dispositivo da LAI que veda a
restrição de acesso a informações ou documentos versando sobre violações de
direitos humanos, praticadas por agentes públicos, foi, por vezes, utilizado pela
CNV. Cite-se, a título de exemplo, que, após resistência inicial das Forças Armadas
em permitir o acesso às folhas de alterações de militares, a CNV fez prevalecer a
interpretação conjunta das duas leis para caracterizar tais informações como de
caráter administrativo, sendo-lhe autorizado, pelo Ministério da Defesa, o acesso aos
dados da vida funcional de mais de uma centena de oficiais. A vigência da LAI
permitirá a continuidade, em momento posterior ao encerramento dos trabalhos da
CNV, da busca da efetivação do direito à memória e à verdade histórica,
possibilitando seu exercício por pessoas ou entidades, públicas e privadas, desejosas
do acesso irrestrito a informações ou documentos que versem sobre violações de
direitos humanos (CNV, 2014, p. 22).
O percurso histórico até a constituição da CNV foi marcado por percalços,
dificuldades e entreves. Foi preciso quase 30 anos do fim do regime militar para instalar no
país uma Comissão que tivesse como papel central esclarecer as graves violações aos direitos
humanos.
Esta foi a comissão possível de se formar no Governo Lula. Na lei que a institui,
atribui-se à CNV a missão de “efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a
41
reconciliação nacional”. Destaque que a comissão não tem caráter persecutório ou
jurisdicional, o que significa que ela não tinha poderes de condenar, no sentido jurídico,
perpetradores de direitos humanos, mas pôde fazer recomendações para o avanço do processo
de transição a redemocratização, classificada por nós como incompleta. Nos artigos 3º e 4º da
Lei nº 12.528, estão delimitados os objetivos da comissão e os recursos aos quais pôde
recorrer.
Art. 3º - São objetivos da Comissão Nacional da Verdade:
I - esclarecer os fatos e as circunstâncias dos casos de graves violações de direitos
humanos mencionados no caput do art. 1º;
II - promover o esclarecimento circunstanciado dos casos de torturas, mortes,
desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e sua autoria, ainda que
ocorridos no exterior;
III - identificar e tornar públicos as estruturas, os locais, as instituições e as
circunstâncias relacionados à prática de violações de direitos humanos mencionadas
no caput do art. 1o e suas eventuais ramificações nos diversos aparelhos estatais e na
sociedade;
IV - encaminhar aos órgãos públicos competentes toda e qualquer informação obtida
que possa auxiliar na localização e identificação de corpos e restos mortais de
desaparecidos políticos, nos termos do art. 1o da Lei no 9.140, de 4 de dezembro de
1995;
V - colaborar com todas as instâncias do poder público para apuração de violação de
direitos humanos;
VI - recomendar a adoção de medidas e políticas públicas para prevenir violação de
direitos humanos, assegurar sua não repetição e promover a efetiva reconciliação
nacional; e
VII - promover, com base nos informes obtidos, a reconstrução da história dos casos
de graves violações de direitos humanos, bem como colaborar para que seja prestada
assistência às vítimas de tais violações.
Art. 4º - Para execução dos objetivos previstos no art. 3º, a Comissão Nacional da
Verdade poderá:
I - receber testemunhos, informações, dados e documentos que lhe forem
encaminhados voluntariamente, assegurada a não identificação do detentor ou
depoente, quando solicitada;
II - requisitar informações, dados e documentos de órgãos e entidades do poder
público, ainda que classificados em qualquer grau de sigilo;
42
III - convocar, para entrevistas ou testemunho, pessoas que possam guardar qualquer
relação com os fatos e circunstâncias examinados;
IV - determinar a realização de perícias e diligências para coleta ou recuperação de
informações, documentos e dados;
V - promover audiências públicas;
VI - requisitar proteção aos órgãos públicos para qualquer pessoa que se encontre
em situação de ameaça em razão de sua colaboração com a Comissão Nacional da
Verdade;
VII - promover parcerias com órgãos e entidades, públicos ou privados, nacionais ou
internacionais, para o intercâmbio de informações, dados e documentos; e
VIII - requisitar o auxílio de entidades e órgãos públicos.
Art. 4º - Para execução dos objetivos previstos no art. 3o, a Comissão Nacional
da Verdade poderá:
I - receber testemunhos, informações, dados e documentos que lhe forem
encaminhados voluntariamente, assegurada a não identificação do detentor ou
depoente, quando solicitada;
II - requisitar informações, dados e documentos de órgãos e entidades do poder
público, ainda que classificados em qualquer grau de sigilo;
III - convocar, para entrevistas ou testemunho, pessoas que possam guardar qualquer
relação com os fatos e circunstâncias examinados;
IV - determinar a realização de perícias e diligências para coleta ou recuperação de
informações, documentos e dados;
V - promover audiências públicas;
VI - requisitar proteção aos órgãos públicos para qualquer pessoa que se encontre
em situação de ameaça em razão de sua colaboração com a Comissão Nacional da
Verdade;
VII - promover parcerias com órgãos e entidades, públicos ou privados, nacionais ou
internacionais, para o intercâmbio de informações, dados e documentos; e
VIII - requisitar o auxílio de entidades e órgãos públicos.
§ 1º. As requisições previstas nos incisos II, VI e VIII serão realizadas diretamente
aos órgãos e entidades do poder público.
§ 2º. Os dados, documentos e informações sigilosos fornecidos à Comissão Nacional
da Verdade não poderão ser divulgados ou disponibilizados a terceiros, cabendo a
seus membros resguardar seu sigilo.
§ 3º. É dever dos servidores públicos e dos militares colaborar com a Comissão
Nacional da Verdade.
§ 4º. As atividades da Comissão Nacional da Verdade não terão caráter jurisdicional
ou persecutório.
43
§ 5º. A Comissão Nacional da Verdade poderá requerer ao Poder Judiciário acesso a
informações, dados e documentos públicos ou privados necessários para o
desempenho de suas atividades.
§ 6º. Qualquer cidadão que demonstre interesse em esclarecer situação de fato
revelada ou declarada pela Comissão terá a prerrogativa de solicitar ou prestar
informações para fins de estabelecimento da verdade (BRASIL, 2011. p.1).
A CNV, em seus sete objetivos norteadores, buscou cumprir a difícil tarefa de
esclarecer as circunstâncias em que se deram as graves violações a direitos humanos,
desnudar as localidades de repartições e órgãos públicos onde ocorreram as violações, efetivar
o direito a verdade histórica e promover a “reconciliação nacional”, fazendo apontamentos
que como recomendações contribuam para o processo de democratização do Estado
brasileiro.
O caráter republicano, anteriormente ressaltado, se expressa também no veto a
membros ou dirigentes de partidos políticos e cargos comissionados de todas as esferas da
administração pública (federal, estaduais e municipais) que não puderam ocupar os cargos de
conselheiros da Comissão. Buscou-se, tanto no desenvolvimento do trabalho, quanto na
versão final do relatório, a narração estrita dos fatos o amparo na legislação brasileira e
internacional sobre direitos humanos.
O trabalho já desenvolvido pela CEMDP foi usado em larga escala pela CNV, que lhe
serviu como base para várias apurações. Contudo, “o trabalho da CNV foi capaz de fazer
justiça a trabalhadores rurais, indígenas e clérigos assassinados durante a ditadura, o que em
regra não pôde ser apreciado pela CEMDP” (CNV, 2014, p.27). O marco temporal das
averiguações da CNV se deu do dia 18 de setembro de 1946 à 5 de outubro de 1988 e as
investigações não se limitaram somente ao território brasileiro, buscando esclarecer as
violações ocorridas no exterior, dando destaque a Operação Condor3 e estabelecendo
colaborações internacionais para investigação com profundidade deste evidente caso de
terrorismo de Estado.
3 A Operação Condor foi uma aliança entre as ditaduras instaladas nos países do Cone Sul na década de
1970 — Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai — com o intuito de realizar atividades
coordenadas, de forma clandestina e à margem da lei, para monitorar, sequestrar, torturar, assassinar e fazer
desaparecer militantes que faziam oposição aos regimes militares do continente.
44
O marco organizacional da CNV foi a Resolução nº. 01, que aprovou o seu regimento
interno, definindo seu funcionamento, as atribuições dos conselheiros, suas diretrizes
organizativas com a definição de grupos de trabalho e subcomissões. A comissão organizou
os grupos com eixos temáticos específicos, promovendo a descentralização da investigação e
a autonomia de pesquisa. Sobre essa organização dos trabalhos a própria CNV informa:
A partir de dezembro de 2012, as atividades de pesquisa da CNV passaram a ser
desenvolvidas basicamente por meio de grupos de trabalho coordenados pelos
membros do Colegiado, contando, cada um deles, com assessores, consultores ou
pesquisadores. Tal forma de organização teve por intuito permitir a descentralização
das investigações e a autonomia das equipes de pesquisa. Pautada nessas diretrizes
iniciais, a CNV estabeleceu 13 grupos de trabalho, segmentados pelos seguintes
campos temáticos: 1) ditadura e gênero; 2) Araguaia; 3) contextualização,
fundamentos e razões do golpe civil-militar de 1964; 4) ditadura e sistema de
Justiça; 5) ditadura e repressão aos trabalhadores e ao movimento sindical; 6)
estrutura de repressão; 7) mortos e desaparecidos políticos; 8) graves violações de
direitos humanos no campo ou contra indígenas; 9) Operação Condor; 10) papel das
igrejas durante a ditadura; 11) perseguições a militares; 12) violações de direitos
humanos de brasileiros no exterior e de estrangeiros no Brasil; e 13) o Estado
ditatorial-militar (CNV, 2014, p. 51).
A CNV contou oficialmente com 217 colaboradores diretamente ligados à Comissão e
teve sua sede instalada em Brasília, tendo escritórios no Rio de Janeiro e São Paulo. O prazo
de entrega do relatório final foi prorrogado por sete meses por força da Medida Provisória nº.
632, de 24 de dezembro de 2013, estendendo o trabalho da CNV, que chegou ao fim ao longo
de 31 meses. As resoluções nºs 12, 13, 14, 15 e 16 designaram Pedro Bohomoletz de Abreu
Dallari a Coordenação da CNV em 16 de novembro de 2014 e o reconduziram a esta função
até a conclusão dos trabalhos da comissão e sua respectiva extinção.
Os trabalhos da CNV foram concluídos com a entrega do relatório final em sessão no
Palácio do Planalto no dia 10 de dezembro de 2014, onde estiveram presentes a presidenta
Dilma Rousseff e autoridades dos poderes Legislativo e Judiciário. O relatório é dividido em
três volumes, o primeiro contém dezoito capítulos que visam apresentar as estruturas, relações
e fatos envolvendo graves violações aos direitos humanos, evitando uma perspectiva analista
ou valorativa, buscando a apresentação fatídica da realidade em toda sua “crueza”. O segundo
45
volume traz uma coletânea de textos temáticos assinados pelos conselheiros, enquanto que o
terceiro volume é dedicado integralmente as vítimas e elucida as circunstâncias das mortes de
434 desaparecidos político, que tiveram como algoz a ditadura.
O relatório final da CNV é um documento histórico com uma extensa documentação
que pode ser acessada por pesquisadores e a população. Rosa Maria Cardoso da Cunha,
advogada e cientista política, membro e ex-coordenadora da CNV, afirmou em 25 de julho de
2013, em debate promovido pela ANPUH na UFRN, que a verdade produzida pela Comissão
deve ser a verdade das vítimas e dos sobreviventes. A Comissão é parte do percurso de luta
dos movimentos sociais e de avanço das políticas de justiça de transição no Brasil. Ela é um
capítulo da história e não encerra ou esgota o debate e as reivindicações por memória,
verdade, justiça, punição e reparação.
1.3 O RELATÓRIO PARCIAL: PRIMEIROS PASSOS
O relatório parcial, intitulado “Balanço de Atividades – 1 ano de Comissão Nacional
da Verdade” publicado em 2013, apresenta o funcionamento da comissão e suas distintas
atividades: audiências, principais periciais, parcerias firmadas com ministérios, Embaixadas,
universidades e centros de pesquisa e informação. O documento contém 23 páginas onde se
esclarece a pesquisa documental, a gestão de informações, as tomadas de depoimentos e as
relações institucionais da CNV.
Dentre as principais atividades elencadas, a comissão cita a exumação do ex-
presidente João Goulart, com a participação de especialistas internacionais na execução de
pericias que tinham como fim esclarecer as circunstâncias de sua morte em dezembro de
1976. A perícia ocorreu a pedido da família e a CNV — em coordenação com o Ministério
Público Federal e a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e Polícia
Federal, envolveu laboratórios do Brasil, Portugal e Espanha, além de peritos da Argentina,
Uruguai e Cuba. Apesar do resultado dos exames não terem detectado substâncias venenosas,
a tese de envenenamento não pode ser descartada, já que as substâncias poderiam ter sumido
do corpo após quatro décadas da morte de Goulart.
A família de Jango acredita que ele teria sido assassinado por envenenamento, em uma
ação que contou com o beneplácito da CIA e das ditaduras do Brasil e Uruguai, no âmbito da
46
Operação Condor. Em 2002, o ex-agente uruguaio Mario Barreiro Neira, preso no Brasil por
tráfico de armas, afirmou que Jango foi assassinado por uma decisão conjunta dos governos
do Brasil, Uruguai e Estados Unidos. As duas versões da morte do ex-presidente, o
envenenamento e o infarto do miocárdio, não podem ser descartadas, mas as diligências da
CNV foram importantes no sentido de esclarecer as obscuridades em torno da morte do ex-
presidente. Se tais diligências tivessem sido tomadas anteriormente, logo no retorno da
democracia no Brasil, teriam tido efeito mais efetivo e esclarecedor, mas o país paga o preço
pelo atraso em não passar a limpo sua própria história, sendo o último da América Latina a
instituir uma comissão de verdade.
O relatório parcial não detalhou as especificidades da exumação do corpo de João
Goulart, não colocou em evidencia o debate histórico sobre a ditadura brasileira. O relatório
teve um caráter panorâmico de apresentação das atividades e elencou uma importante relação
de documentos que foram resgatados pela comissão. Para elucidar a extensão da
documentação em mãos da CNV, pode-se citar o caso específico de Minas Gerais, onde foram
encontrados 2 milhões de páginas de documentos na Coordenação Geral de Segurança da
Polícia Civil, que assumiu as funções do DOPS a partir de 1970. O “Relatório Figueiredo”,
que foi considerado desaparecido por décadas, contém 7 mil páginas e trata da questão
indígena, também foi resgatado pela comissão e é imprescindível para detalhar a repressão
sofrida pelos indígenas brasileiros, como cita a própria comissão:
Esse documento contém informações sobre várias formas de violação de direitos
como maus tratos e assassinatos de índios, perda de terras indígenas para
fazendeiros e empresários, desvio de verbas, negociatas e negligência com
populações em extinção. A descoberta deste relatório contribuirá para a
compreensão das violações de direitos de povos indígenas em toda a extensão do
território brasileiro, no período de investigação da CNV, 1946 – 1988 (CNV, 2013,
p. 6-7).
A CNV se empenhou na recuperação documental, constituindo um esquema efetivo de
investigação com base nas estruturas de informações instaladas em Ministérios, Autarquias,
Fundações, Universidades, Empresas e outros órgãos, além, claro, dos dados recolhidos junto
ao Serviço Nacional de Inteligência (SNI), um importante núcleo de informação e inteligência
da ditadura. Além da recuperação de documentos em acervos nacionais a comissão cumpriu
47
missões internacionais junto a Embaixadas e Centros de Informação e Pesquisa de outros
países.
As ações da CNV, as parcerias de colaboração firmadas, servem não apenas para
lançar luz sobre a repressão da ditadura brasileira, mas para esclarecer o papel da The School
of Americas na articulação pela repressão internacional, que teve como diapasão a política
estadunidense, consorciada a um leque de ditaduras na América Latina. O resgate de
documento que a CNV realizou é um passo adiante para esclarecer a história latino-americana
e a própria comissão elenca as missões que realizou e seus respectivos resultados.
Em missões internacionais organizadas pela CNV, foram identificados vários
acervos de interesse, bem como iniciada a pesquisa exploratória, com apoio do
governo da Argentina, nos Arquivos da Chancelaria, do Arquivo Nacional da
Memória, da Secretaria de Direitos Humanos e nos processos da Fiscalía General de
la República Argentina. Foram identificados na Chancelaria 66 caixas de
documentos sobre o Brasil e recolhidas, na Embaixada do Brasil em Buenos Aires, 9
pastas de documentos remanescentes. No Paraguai, foi pesquisado todo o conteúdo
do Balanço de Atividades CNV “Arquivo do Terror”, resultando em cinco mídias
digitais completas, com 43 pastas sobre mortos desaparecidos e outros temas do
período, e 68 fichas de brasileiros presos no Paraguai, entre outros documentos.
Com relação aos exilados e refugiados, 14 casos paradigmáticos foram destacados
na pesquisa feita no Arquivo do Clamor. Foram, ademais, identificadas 50
organizações de proteção aos direitos humanos no exterior, onde se buscarão mais
detalhes sobre a perseguição a estrangeiros nos períodos de repressão: 25 na
América do Sul, 9 na América do Norte, e 16 na Europa.
Outros arquivos mostram, ainda, que, no caso do Uruguai, o serviço secreto daquele
país teria conseguido, com a ajuda de Brasília e Buenos Aires, sequestrar e levar de
volta para as prisões de Montevidéu 110 refugiados políticos que estavam no Brasil
e na Argentina entre 1976 e 1979. Cerca de 3.300 latino-americanos chegaram ao
Brasil entre 1977 e 1982 em busca de asilo político e fugindo da tortura. Contudo, o
status de refugiado teria sido dado para apenas 1.380 deles e todos teriam sido
transferidos pelo ACNUR a locais “seguros” a pedido do governo brasileiro, a
grande maioria para a Europa. Quase 90% deles eram argentinos ou uruguaios.
Documentos atestam colaboração – como troca de informações, monitoramento,
troca de fotos, sequestros e expulsões – entre Brasil, Argentina e Chile até o início
dos anos 80.
48
Em relação aos mortos e desaparecidos, junto à Direção de Verdade, Memória e
Justiça do Paraguai já se estabeleceu cooperação para investigar 6 novos casos de
paraguaios mortos no Brasil no ano de 1960. Durante a audiência pública realizada
pela CNV em Porto Alegre, divulgou-se uma lista de 17 casos de desaparecimentos
forçados de brasileiros na Argentina, na Bolívia e no Chile, objeto de investigações.
Estão sendo feitas gestões junto aos órgãos competentes para obter listas de alunos;
de pessoas que ministravam cursos; e o conteúdo das instruções dadas no Centro de
Instrução de Guerra na Selva (CIGS) e na Escola das Américas (The School of
Americas, SOA), bem como informações referentes às Conferências dos Exércitos
Americanos (CEA), todos espaços de articulação e fortalecimento da repressão
internacional, com o ensino das técnicas de tortura e monitoramento de exilados e
perseguidos políticos (CNV, 2013, p. 15-16).
Além das missões estrangeiras, a CNV trabalhou em contato direto com a sociedade.
As pessoas que procuraram seus serviços, registrando solicitações variadas: envio de
informações, pedido de informações, reclamações, denúncias, oferecimento de depoimentos,
sugestões e elogios. Para responder a estas demandas, a CNV instituiu uma coordenação de
Ouvidoria no âmbito de sua Secretaria-Executiva, no intuito de institucionalizar o contato
com a sociedade, no recebimento de colaborações à atividade-fim da CNV. A Ouvidoria
funcionou com um sistema eletrônico de gerenciamento de demandas, onde foram registradas,
pela internet, um total de 864 solicitações, até 17 de maio de 2013, como mostra a tabela
abaixo.
49
TABELA 1- Solicitações recebidas pela CNV até 2013
Fonte: Relatório “Balanço de Atividades – 1 ano de Comissão Nacional da Verdade” – Comissão Nacional da
Verdade, 2013, p. 23.
Frente as expectativas e polêmicas que cercaram a criação da CNV, que sofreu duras
críticas de parlamentares, militares e setores conservadores, causando burburinho na
imprensa, consideramos baixa a procura pela Comissão. Mais da metade das pessoas que
buscaram a comissão, 467 (54%), solicitavam informações. Envios de informações (12%),
denúncias (8%) e o oferecimento de depoimentos (4%) somam 24%, demonstrando a parcela
que contribuiu diretamente com a prestação de informações que foram compiladas pela CNV.
Apenas 11 pessoas (1%) daquelas que procuraram a comissão no seu primeiro ano tiveram
elogios para registrar.
Somente no ano do golpe, em 1964, no Brasil, calcula-se que a repressão promoveu 50
mil prisões por motivações políticas e, levando-se em consideração o número de pessoas
afetadas pela ditadura é que consideramos, não apenas as solicitações encaminhadas à
comissão, como também os depoimentos coletados, abaixo do esperado no primeiro ano de
atividades, somando um total de apenas 268 depoimentos, entre agentes e colaboradores do
regime, vítimas militares e vítimas civis e testemunhas.
50
TABELA 02 – Depoimentos prestados à CNV
Fonte: Relatório “Balanço de Atividades – 1 ano de Comissão Nacional da Verdade” – Comissão Nacional da
Verdade, 2013, p.11.
O gerenciamento de solicitações fez parte dos trabalhos internos da comissão; a
tomada de depoimentos ocorreu em sua maioria em sessões abertas de interrogatório, que
tinham o intuito de esclarecer as circunstâncias de graves violações de direitos humanos, tais
como mortes, desaparecimentos forçados, ocultações de cadáveres e sua autoria. Dentre os 37
agentes e colaboradores do regime militar que prestaram depoimentos, um dos mais
significativos foi o do depoente Ustra.
O coronel do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra foi chefe do Destacamento de
Operações Internas (DOI-Codi) de São Paulo entre 1970 a 1974, em plena vigência do Ato
Institucional nº 5, período do auge da repressão. O seu interrogatório ocorreu em 10 de maio
de 2013, no Centro Cultural Banco do Brasil, em Brasília. Ustra sustentou a tese de que o
trabalho dos agentes das Forças Armadas serviu para “preservar a democracia” frente a
atuação de “grupos terroristas”. Disse que não poderia ser responsabilizado por “seguir
ordens” e evocou a prerrogativa de permanecer calado, respondendo algumas poucas questões
para negar violações, afirmando que o seu livro intitulado A verdade sufocada já expressava
seu depoimento por escrito.
51
A sessão foi coordenada por Claudio Fonteles e José Carlos Dias, membros da
Comissão, que rechaçou a tese sustentada por Ustra, que as mortes de Sônia Maria de Moraes
Angel Jones e seu companheiro, Antônio Carlos Bicalho Lana, ambos militantes da ANL,
teriam ocorrido por combate em tiroteio e não sob tortura e custódia do DOI, coordenado pelo
coronel Ustra. Ustra foi confrontado com documentos oficiais secretos em que constava um
relatório de estatísticas do DOI, que contabilizavam entre 1970 até outubro de 1973, o número
de 1.786 pessoas presas, além de 47 pessoas mortas até dezembro de 1973, no DOI paulista.
Confrontado com documentos que relatavam uma sessão de tortura a Gilberto Natalini, o
coronel se negou a fazer uma acareação com o mesmo, para esclarecer circunstancialmente o
episódio.
O depoimento de Ustra4 durou 67 minutos e está disponível no canal da CNV na
plataforma de vídeos Youtube, onde estão registradas mais de 54 mil visualizações. Ele não
foi o único do DOI-Codi de São Paulo a ser interrogado. O coronel Homero Cézar Machado5
também prestou um depoimento de 42 minutos, com mais de 4 mil visualizações na
plataforma de vídeos da CNV. O então sargento e analista do DOI-Codi, Marival Chaves Dias
do Canto6, que eixou o Exército em 1985, prestou importantes informações e revela que
execuções como a do sargento Onofre Pinto, ocorrida no massacre de Medianeira, no Paraná,
em julho de 1974, só foi decidida após consulta ao Centro de Informações do Exército.
As sessões públicas de tomadas de depoimento promovidas pela CNV colocaram
agentes da repressão, entre oficiais e militares da reserva, analistas e colaboradores, no banco
de depoentes, confrontados com vasta documentação oficial, que era considerada
confidencial, secreta e ultrassecreta, aberta para estudo por força da LAI7, assim como
depoimentos prestados por vítimas como o que foi prestado pela aposentada Darci Miyaki8,
que conta que foi violentada sexualmente e submetida a sessões de tortura, tornando-se uma
mulher estéril. O depoimento de 19 minutos tem mais de 14 mil visualizações.
4 Tomada Pública de Depoimentos de Agentes de Repressão: Coronel Ustra. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=pWsv4EndpfY. Comissão Nacional da Verdade - CNV. 5 Tomada Pública de Depoimento de Homero Cézar Machado. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=16KziI34Gso. Comissão Nacional da Verdade - CNV. 6 Tomada Pública de Depoimentos de Agentes de Repressão: Marival Chaves. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=pKcnTDCcDuw. Comissão Nacional da Verdade - CNV. 7 Lei nº. 12.527/2011, de Acesso à Informação (LAI). 8 Audiência com vítimas do DOI-Codi SP: Darci Miyaki. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=QlFUhHGktTU. Comissão Nacional da Verdade - CNV.
52
Estes esclarecimentos cumprem dois papéis importantes: fornecem mais subsídios
para o esclarecimento circunstancial de casos de tortura e assassinatos, mas também tem o
importante significado político de poder confrontar os colaboradores da ditadura com a
história factual, com os depoimentos das vítimas. O principal significado político dos
depoimentos serve pela condenação de bárbaras práticas de violência perpetrada por
motivações políticas, passando a limpo a história brasileira, para varrer obscuridades de um
terreno histórico, necessidade basilar para afirmar os valores da democracia que se funda
numa tradição histórica que não esconde episódios de violações a direitos humanos, mas os
condena moral e politicamente.
Apesar de apenas 207 vítimas e testemunhas terem concedido depoimentos para a
CNV, é importante ressaltar que cada depoimento tem um valor pedagógico para a
democracia e educativo para a sociedade. No depoimento prestado à CNV, as declarações
finais Darci Miyaki foram:
A nossa renúncia, a nossa postura de hoje, eu repito o que o vereador disse à pouco:
não se trata de vingança, não se trata de revanche, jamais, jamais faríamos o que eles
fizeram conosco, no entanto se a Comissão Nacional da verdade, nossos militantes,
não levarem esses fatos, esses fatos são fatos educadores, que vão formar as novas
gerações, caso não façamos isso, os Amarildos continuarão, porque tudo continua
igual, as delegacias torturam, matam, sequestram e desaparecem com os corpos. Era
isso que eu tinha a dizer (Audiência com vítimas do DOI-Codi SP: Darci Miyaki.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QlFUhHGktTU. Tempo: 17:54-
19:07).
Parte dos depoimentos coletados pela CNV ocorreu em audiências públicas
promovidas pela comissão, que ao longo de um ano, realizou quinze audiências em nove
Estados. No Nordeste brasileiro, foi apenas realizada uma audiência, em Pernambuco. A
maioria das audiências se concentrou pelos estados do Sul do país. No Rio de Janeiro foi onde
houve o maior número de audiências (4), como mostra o mapa abaixo.
53
FIGURA 01 – Mapa das audiências da CNV
Fonte: CNV, 2013 (Relatório “Balanço de Atividades – 1 ano de Comissão Nacional da Verdade” –
Comissão Nacional da Verdade, 2013, p.9)
Além de apresentar o panorama de atividades da comissão, com audiências,
solicitações, depoimentos registrados e missões, o relatório parcial coloca em evidência o
funcionamento interno da CNV, que é constituída de um colegiado de sete membros e
subcomissões e grupos de trabalhos e apoio. O certo é que as organizações de familiares e ex-
presos políticos, que acompanharam de perto o desenvolvimento dos trabalhos empreendidos
pela CNV, contestaram as divergências internas que atrasaram os trabalhos da Comissão.
As críticas supracitadas foram endereçadas à CNV através de uma carta aberta,
subscrita por 26 organizações de familiares de ex-presos políticos e apresentada à sociedade
no dia 15 de julho de 2013. No documento, um pedido: que as divergências internas não se
transformassem em ataques pessoais e públicos, numa triste demonstração de
descompromisso com a verdade e a história. Nessa mesma carta, as organizações solicitaram a
imediata substituição do membro Gilson Dipp, que se retirou da comissão por motivos de
saúde, para recompor o quadro de membros, tal como o retorno de Claudio Fonteles, que
renunciou em setembro de 2013 por divergências internas e não retornou à comissão, tendo
produzido 150 textos durante sua permanência.
54
Na carta divulgada pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos, consta a
acusação que a CNV dificultava a participação da população e, principalmente, dos atingidos
pela ação da ditadura militar, como citam as divergências que levaram ao afastamento de
Fonteles: “A não revelação pública dos nomes dos torturadores, da cadeia de comando das
atrocidades e dos crimes cometidos causaram a divergência de Fonteles, com o qual nos
identificamos e nos solidarizamos nessa hora". A carta pedia ainda o aumento do número de
audiências e a unidade no trabalho para que todos os arquivos da ditadura sejam abertos.
Além do relatório parcial que discute o funcionamento interno da CNV, as resoluções9
que estabelecem o regimento interno da comissão dispõem sobre sua atuação, instituem
grupos de trabalhos e designam seus coordenadores gerais, mostrando documentalmente os
passos institucionais da CNV. O certo é que, apesar das críticas que foram feitas à CNV, o
principal legado já apontado pela própria comissão no seu relatório de um ano de atividades
era a construção “de um Sistema de Informação capaz de reunir de forma organizada o
conjunto de informações produzidas, recebidas e pesquisadas pela CNV” (CNV, 2013, p. 8),
se realizou por força do Decreto nº 8.378, de 15 de dezembro de 2014, que criou, no âmbito
da Casa Civil da Presidência da República, uma estrutura administrativa temporária, a qual
coube organizar o acervo produzido pela CNV ao longo dos seus dois anos e sete meses de
atividades. Esse acervo encontra-se sob a guarda permanente do Arquivo Nacional e pode ser
acessado pela internet através do no Sistema de Informações do Arquivo Nacional (SIAN).
Apesar das críticas formuladas à CNV, o trabalho de um ano de atividades foi
êxito e um enorme acervo com informações oficiais, anteriormente classificadas como
sigilosas, estão disponíveis para pesquisadores e a sociedade. O trabalho da comissão não
deve ser analisado apenas pelos relatórios que produziu, mas pelas reparações possíveis
realizadas, pelo reconhecimento factual do Estado brasileiro das atrocidades patrocinadas pela
ditadura e especialmente pelos desdobramentos políticos que produziu.
9 Resoluções. Disponível em: <ttp://www.cnv.gov.br/institucional-acesso-informacao/resolucoes.html>.
Acessado em 10 de novembro de 2016.
55
CAPÍTULO II: O RELATÓRIO FINAL DA COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE
2.1 O RELATÓRIO DA CNV
No dia 10 de dezembro de 2014, uma cerimônia no Palácio do Planalto marcou a
entrega do relatório final da CNV, com a presença da presidenta Dilma Rousseff, autoridades
dos poderes Legislativo e Judiciário. O então coordenador da comissão e substituto de
Fonteles10, Pedro Dallari, apresentou um balanço positivo dos trabalhos dirigidos pela CNV,
que resultaram na coleta de 1.200 depoimentos, abertura de várias diligências em unidades do
Estado onde foram praticadas torturas e assassinatos, dezenas de sessões e audiências públicas
em todo o território nacional, em 20 unidades da federação e no Distrito Federal e, por fim, na
entrega do relatório final, disponível no sítio da comissão na internet. Dallari agradeceu
também a contribuição de comissões de verdade que foram formadas em assembleias
legislativas, câmaras, universidades, sindicatos, secções estaduais da OAB e demais
organizações.
A saída de dois membros da CNV, novas nomeações, questionamentos e críticas por
parte de organizações de direitos humanos e de familiares de ex-presos políticos,
manifestações de contestação de setores conservadores, divergências internas e a prorrogação
do prazo de entrega do relatório final: estes foram alguns dos entraves que fizeram parte do
percurso da comissão até a finalização de seu trabalho. O relatório final com mais de 4 mil
páginas e esclarece um grande volume de casos; atendeu parcialmente às demandas pela
verdade histórica, sem atingir os interesses dos herdeiros da ditadura. O extenso relatório deve
continuar sendo motivo de muitos debates e as divergências que provavelmente serão
apresentadas não começaram com a entrega do relatório. Elas são muitas e, em alguns casos,
antigas e inconciliáveis.
O intenso trabalho da CNV frente a crises internas e o volume de afazeres da comissão
não pôde ser concluído no prazo de dois anos, sendo prorrogado por sete meses pela Medida
10 O ex-Procurador Geral da República, Cláudio Fonteles, entregou no dia 18 de junho de 2013, sua carta
de afastamento da Comissão Nacional da Verdade. Fonteles assegurou que sua renúncia era definitiva. O gesto
fragilizou a relação de confiança entre a CNV e os grupos de familiares de ex-presos políticos e expôs as
divergências internas do colegiado sobre temas sensíveis como a divulgação de investigações, revisão da Lei da
Anistia, com punição a agentes do Estado que atuaram na ditadura.
56
Provisória nº.632 de 24 de dezembro de 2013, estendendo as atividades da CNV, que
chegaram definitivamente ao fim ao longo de 31 meses, com a entrega do relatório final.
A presidente Dilma Rousseff, ao participar da cerimônia de entrega do relatório final,
elogiou o trabalho da comissão, ressaltando seus objetivos e se comprometeu com as
recomendações e propostas apresentadas pela CNV. “Nós, o Governo Federal, vamos nos
debruçar sob o relatório, vamos olhar as recomendações e propostas da comissão e delas tirar
todas as consequências necessárias”, assegurou a presidenta. O advogado criminalista e
membro da CNV, José Carlos Dias, enfatizou que seria imprescindível ao processo de
reconciliação nacional, que as Forças Armadas reconhecessem os erros cometidos durante a
ditadura.
As divergências sobre a revisão da Lei da Anistia de 1979 também marcaram a
cerimônia de entrega do relatório final da CNV. O jurista e membro da Comissão, José Paulo
Cavalcante, disse que o colegiado tentou constitui convergências, mas informou que não foi
possível constituir um consenso sobre a revisão da Lei de Anistia que, segundo Cavalcante,
não é consenso na sociedade brasileira. Rosa Cardoso ressaltou os pactos internacionais de
direitos humanos assinados pelo Brasil e afirmou que a Lei de Anistia não tem validade frente
os tribunais internacionais. José Carlos Dias afirmou que não se pode interpretar a anistia
como instrumento da impunidade, alegando que os agentes de Estado que torturaram e
mataram, cometeram crimes comuns de lesa-humanidade e de violações de direitos humanos,
não crimes políticos, consequentemente não deveriam ser protegidos pela lei. Esse dissenso,
inclusive, está registrado no relatório final, nas recomendações sobre o tema da anistia.
A CNV considerou que a extensão da anistia a agentes públicos que deram causa a
detenções ilegais e arbitrárias, tortura, execuções, desaparecimentos forçados e
ocultação de cadáveres é incompatível com o direito brasileiro e a ordem jurídica
internacional, pois tais ilícitos, dadas a escala e a sistematicidade com que foram
cometidos, constituem crimes contra a humanidade, imprescritíveis e não passíveis
de anistia. Relativamente a esta recomendação – e apenas em relação a ela, em todo
o rol de recomendações –, registre-se a posição divergente do conselheiro José Paulo
Cavalcanti Filho, baseada nas mesmas razões que, em 29 de abril de 2010, levaram
o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental nº 153, com fundamento em cláusulas pétreas da Constituição
57
brasileira, a recusar, por larga maioria (sete votos a dois), essa tese (CNV, 2014, p.
965).
Pedro Dallari enfatizou o trabalho empreendido pela comissão para fazer o maior
resgate possível da documentação comprobatória das graves violações de direitos humanos e
citou o caso dos prontuários médicos do Hospital Central do Exército (HCE), que, segundo
informações oficiais, só haviam sido arquivados após 1983. Contudo, uma diligência levou a
comissão a descobrir três prontuários médicos do HCE, encontrados no arquivo pessoal do
general e então presidente Emílio Garrastazu Médici, anteriores há 1983, onde constam
informações médicas sobre Francisca Abigail Paranhos, Vera Sílvia Magalhães e Dalva
Bonet, três presas políticas que foram submetidas a maus tratos, tortura e desnutrição dentro
de instalações hospitalares. Dalva desenvolveu um quadro de epilepsia em virtude das sessões
de choques elétricos, tendo crises compulsivas por mais de dez anos. As consequências da
tortura permanecem no corpo e na mente da torturada e as diligências da comissão não só
revelaram os abusos cometidos dentro do hospital, como provaram que essas violações eram
conhecidas no Palácio do Planalto e pelo presidente.
A sede da comissão foi instalada em Brasília e contou com escritórios de apoio
sediados no Rio de Janeiro e São Paulo. Para realizar o trabalho de pesquisa e diligências, a
CNV contou oficialmente com 217 colaboradores, um conjunto de assessores, consultores e
pesquisadores, divididos entre equipes que trabalharam entre comitês, grupos de trabalhos e
núcleos como o Comitê de Relatoria, Gerência de Projetos, Núcleo Pericial, grupos de
comunicação, arquivo, logística e revisão. Essa equipe foi constituída por servidores públicos
nomeados para a CNV ou cedidos de outros órgãos da administração pública e por
pesquisadores contratados por intermédio do Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD), além de contribuições de muitas comissões de verdade, em
especial de universidades brasileiras, que firmaram acordos de cooperação técnica com a
CNV.
O relatório final da CNV é dividido em três volumes. O primeiro volume contém
dezoito capítulos. O segundo volume apresenta uma coletânea de nove textos temáticos que
abordam as violações de direitos humanos no meio militar, aos trabalhadores, camponeses e
nas igrejas cristãs, aos povos indígenas e nas universidades. Os textos abordam ainda o papel
58
de civis como colaboradores da ditadura e a resistência da sociedade civil. O terceiro volume
é dedicado ao esclarecimento dos casos de 434 mortos e desaparecidos.
Os dois primeiros capítulos do primeiro volume são dedicados a informar sobre o
mandato legal da comissão, sua organização interna, suas atividades e o relacionamento
institucional que a comissão manteve com as Forças Armadas, órgãos públicos, sociedade
civil. Nestes capítulos iniciais, a comissão apresenta as cooperações internacionais com
Embaixadas e organismos de direitos humanos dos Estados Unidos da América, Alemanha,
Paraguai, Chile, Uruguai, Argentina, dentre outros, além de parceria firmada com a
Organização das Nações Unidas (ONU), por intermédio do Programa das Nações Unidas para
o Desenvolvimento (PNUD) e pesquisas junto ao Alto Comissário das Nações Unidas para
Refugiados (ACNUR), em Genebra, na Suíça.
Os esclarecimentos sobre as mortes dos presidentes Juscelino Kubitschek e João
Goulart e do educador Anísio Teixeira encerram o segundo capítulo do relatório, que atesta a
inexistência de elementos que apontem a morte de Kubitschek como causa da ação de agentes
da ditadura; sobre a exumação dos restos mortais de Goulart e das pesquisas encaminhadas
pela comissão, chegou-se a conclusão que não se pode descartar ou afirmar a hipótese de
envenenamento. As investigações sobre o falecimento de Anísio Teixeira não foram
concluídas até a entrega do relatório, aguardando-se a exumação do corpo sob a
responsabilidade do Instituto Médico Legal do Distrito Federal. O esclarecimento dessas
mortes é uma demanda pela verdade que interessas as famílias e servem para esclarecer as
conexões entre as citadas mortes e as suspeitas de mando.
O terceiro, quarto, quinto e sexto capítulos tratam do contexto histórico investigado
pela comissão (1946-1988), as estruturas do Estado voltadas para a repressão: órgãos e
procedimentos da repressão políticas, assim como a participação do Brasil em graves
violações no exterior, tal como a aliança repressiva internacional formada pelas ditaduras no
Cone Sul que instituíram a Operação Condor, com acompanhamento da Central Intelligence
Agency (CIA), dos EUA. A desclassificação de documentos anteriormente classificados como
secretos, assim como as investigações feitas pela comissão revelaram que oficiais dos serviços
de Inteligência da Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai, Uruguai, Peru e Equador,
fizeram parte como países-membros da Operação Condor, em um acordo colaborativo que
59
reuniu os aparelhos repressivos, tornando mais efetiva e implacável a repressão internacional
contra opositores políticos. O relatório da CNV esclarece as fases e diligências da operação:
O novo acordo político-militar procurou formalizar a união dos aparelhos
repressivos do Cone Sul para neutralizar os opositores aos regimes autoritários da
região. A operação desdobrou-se em três fases. Na Fase 1, houve a formalização da
troca de informações entre os serviços de Inteligência, com a criação de um banco
de dados sobre pessoas, organizações e outras atividades de oposição aos governos
ditatoriais. Na Fase 2, aconteceram operações conjuntas nos países do Cone Sul e a
troca de prisioneiros, mobilizando agentes da repressão local envolvidos na
localização e prisão de opositores caçados por governos estrangeiros. A Fase 3
consistiu na formação de esquadrões especiais integrados por agentes dos países-
membros, assim como por mercenários oriundos de outros países (neofascistas
italianos e cubanos anticastristas), que tinham por objetivo a execução de
assassinatos seletivos de dirigentes políticos.7 Essa terceira fase, a mais arrojada e
secreta, ficou caracterizada por execuções, como o assassinato de um ministro do
governo Allende (1971-73) e o do ex-chanceler Orlando Letelier, morto por atentado
a bomba executado por agentes da DINA em Washington, em setembro de 1976
(CNV, 2014, p.221-222).
O capítulo sétimo trata dos métodos e práticas de graves violações de direitos
humanos e suas vítimas. Traz um quadro conceitual dessas violações que explica as práticas
de detenção ilegal ou arbitrária, tortura, execução sumária, arbitrária ou extrajudicial,
desaparecimento forçado e a ocultação de cadáver. O capítulo oitavo e nono versa sobre
detenções ilegais e a tortura.
O décimo capítulo, que tem como título "Violência sexual, violência de gênero e
violência contra crianças e adolescentes", tem o importante significado de mensurar o alcance
do aparelho repressivo da ditadura e sua dimensão patológica que indiscriminadamente
atingiu mulheres grávidas, homossexuais e crianças. A violência sexual vitimou mulheres e
foi utilizada como método de tortura física e psicológica. Neste quadro de violações, inserem-
se: estupros, humilhação ininterrupta, desnudamento forçado, abortos provocados, separação
de filhos e tortura contra companheiros e familiares. “A violência sexual, exercida ou
permitida por agentes de Estado, constitui tortura. Por transgredir preceitos inerentes à
60
condição humana, ao afrontar a noção de que todas as pessoas nascem livres e iguais em
dignidade e direitos” (CNV, 2014, p. 400).
O relatório da CNV apresenta depoimentos de vítimas e identifica a sistemática das
sessões de violência sexual como prática de tortura, uma dimensão importante para
compreender as gradações da crueldade perpetrada. É salutar perceber que a violência que
muitas vezes não atingia apenas as mulheres ou homens que passaram por humilhações
sexuais, por vezes na presença de seus conjugues e filhos, mas todo núcleo familiar. O trauma
deixado pela ação repressiva não é apenas individual, mas coletivo. “O termo “trauma”
designa a sequela produzida por um evento desorganizador das defesas psíquicas” (CNV,
2014, p. 426). A ação repressiva da ditadura também alcançou crianças e adolescentes e as
consequências dos traumas não se resumem aos danos físicos; eles permanecem e se
expressam de várias formas, seja através de debilidades psíquicas ou outras interdições. No
testemunho de Eva Teresa Skazufka, capturada em junho de 1970 pela Oban, em São Paulo,
compreende-se essas sequelas:
Durante um mês, Eva e seu filho Fernando, de um ano, eram obrigados a
comparecer ao DOPS. Com apenas 30 dias de vida, sua filha Kátia também
acompanhava a família.
“O DOPS me pegava todo dia de manhã de camburão. Pegava eu e meus dois filhos.
Todos os dias de manhã tinha hora marcada, umas nove horas mais ou menos e a
gente passava o dia inteiro no DOPS [...] E o que acontecia entre mim e a Kátia, eu
amarrei ela no meu corpo, entende? Enquanto eu estava no DOPS, ninguém tirava
ela do meu colo [...] ela estava amarrada. Os dois filhos são sequelados [...]. A Kátia
acha que eu não devia ter tido filhos [...]. Eu nunca conversei com eles sobre isso
[...] Hoje se sabe muito bem que [...] o bebê sabe de tudo, né? Sente tudo, né? Pode
não saber, mas as sensações estão lá, né? [...] Ela esteve internada várias vezes, a
Kátia, em clínica. Por quê? Porque eu posso dizer que umas 15 vezes ela tentou o
suicídio. E sempre na minha frente. Sempre na minha frente” (CNV, 2014, p. 428).
A CNV pautou temas importantes como a violência contra setores marginalizados,
uma discussão pouco explorada nos debates sobre as consequências traumáticas da ditadura
brasileira. O trabalho da comissão confrontou o senso comum sobre os contornos da
repressão, que alcançou as mulheres por sua condição de gênero, crianças e adolescentes,
pessoas LGBT, camponeses e indígenas. Esses “marcadores sociais de diferença foi um
61
avanço nas formulações sobre a reparação histórica” no país, considera Renan (QUINALHA,
2015, p.88).
O capítulo décimo primeiro trata das execuções e mortes decorrentes de tortura. O
capítulo esclarece como as execuções tornaram-se sistemáticas no aniquilamento de
opositores políticos após 1964, apresenta pesquisas, depoimentos e perícias que desmascaram
as versões oficiais e esclarecem circunstancialmente o caso de mortes decorrentes de tortura e
homicídios. No período coberto pela pesquisa da CNV (1946 a 1988), foram registrados 191
mortes por execução sumária e ilegal ou em decorrência de tortura. O relatório mostra como o
período mais duro da repressão ocorreu entre 1969 a 1974, quando a ditadura atingiu o maior
número de mortos, somando 98 vítimas, 51% do total de mortes em virtude de homicídios e
tortura perpetrado por agentes do Estado. O Ato Institucional nº.5 (AI-5), promulgado em 13
de dezembro de 1968, foi o prelúdio do período mais duro da ditadura. Esses casos de mortes
estão expressos no quadro temporal abaixo que ratifica que o maior número de baixas
ocorreram logo após o golpe de 1964 e a instituição do AI-5.
FIGURA 02 – Mortes por período na ditadura militar
Fonte: CNV, 2014 (Quadro geral da CNV sobre mortos e desparecidos políticos. CNV, 2014, p. 439)
Os EUA monitoraram com precisão a situação política do Brasil, especialmente após
1964, acompanhando com detalhes os desdobramentos internos do país, o que inclui os meios
62
coercitivos adotados pelo Estado: tortura, execução e desparecimentos forçados, graves
violações de direitos humanos informadas pelo aerograma identificado, com o código A-90,
encaminhado ao Departamento de Estado norte-americano pelo Consulado-Geral dos Estados
Unidos, no Rio de Janeiro, em abril de 1973.
O documento intitulado “Detenções generalizadas e interrogatórios psicofísicos de
suspeitos de subversão”, de autoria do cônsul Clarence A. Boonstra, traçava um panorama da
situação nacional onde enfatizava o recrudescimento da repressão, o avanço de prisões
arbitrarias e a sofisticação dos métodos de tortura. O Consulado-Geral americano destacava
que “ainda que mantidos os tradicionais meios usados para ‘obtenção de informação’ como
eletrochoques e ‘pau de arara’ – um sistema de coerção mais novo, sofisticado e elaborado,
vem sendo usado para intimidar e aterrorizar suspeitos” (CNV, 2014, p. 441). O sistema ao
qual Boonstra se refere diz respeito ao uso combinado de salas refrigeradas e salas com piso
de metal que emitiam eletrochoques continuamente, podendo o preso passar até dois dias
privado de comida e água.
A ditadura entendeu qualquer militância popular como terrorismo, transformou
militantes em terrorista subversivos e os elevou a categoria de inimigos. Os militares ecoaram
o anticomunismo estadunidense, adotaram como diapasão a lógica binária do autoritarismo na
sua luta anti-insurrecional. Sobre esse caráter binário adotado tanto no regime militar
brasileiro, quanto no argentino, Pilar Calveiro é esclarecedora:
As lógicas totalitárias são lógicas binárias, que concebem o mundo como dois
grandes campos contrários: o próprio e o alheio. E, além de imaginar tudo aquilo
que não é idêntico a si mesmo é parte de outro ameaçador, o pensamento autoritário
e totalizador entende que o diferente constitui um perigo iminente ou latente, que
deve ser extirpado. A redução da realidade em duas grandes esferas pretende, em
última instância, eliminar as diversidades e impor uma realidade única e total
representada pelo núcleo duro do poder, o Estado. Trata-se de uma construção do
tipo bélico, que reduz a realidade política aos termos do enfrentamento militar, de
modo que se move a partir de noções de amigo-inimigo, batalhas guerras e
aniquilamento (CALVEIRO, 2013, p. 88).
No Brasil, os militares se pautaram por uma lógica binária e atacaram militantes de um
amplo conjunto de organizações políticas, algumas que inclusive não optaram pela luta
63
armada como estratégia de resistência contra o regime militar. Ciente desta situação a CNV
traçou um quadro onde mostra o número de militantes, por organização política, mortos em
virtude de execuções sumárias e tortura. A Aliança Libertadora Nacional (ALN) foi uma
organização fundada por Carlos Marighella, que defendeu a luta armada como ação política
para supressão do regime militar, perdendo o maior número de militantes; calcula-se que 14%
faleceu vítimas de torturas ou execuções. Vale destacar que Marighella foi eleito pelos órgãos
de repressão como o inimigo número um do regime militar. Os estudantes somaram 6%, os
sindicalistas 5%, líderes camponeses 3% e os estrangeiros 2% dos mortos.
GRÁFICO 02 – Demonstrativo dos mortos de acordo com a organização que compunham
Fonte: CNV, 2014 (Quadro geral da CNV sobre mortos e desparecidos políticos. CNV, 2014, p. 444).
64
Após o golpe de 1964 e o recrudescimento da repressão, o exemplo da vitoriosa
Revolução Cubana influenciou parte da esquerda no Brasil, que optou pela luta armada.
“Guerrilhas fervilhavam na América Latina dos anos 1960. Na Colômbia, Venezuela,
Nicarágua, Argentina e Peru. Algumas dessas guerrilhas se confinaram em lugares isolados e
remotos, enquanto outras viveram um momento efêmero” (GORENDER, 2014, p. 91). No
Brasil, a esquerda entendeu como falido o caminho pacífico para a superação do regime
militar, mas este consenso não converteu a esquerda a ter uma unidade pela tática da luta
armada. É importante ressaltar que muitos dos que foram executados pela ditadura não
participavam das guerrilhas. Sobre as movimentações da esquerda frente ao dilema da luta
armada, Jacob Gorender é esclarecedor:
A luta armada não travada contra o golpe de direita, tornava-se imperiosa quando os
golpistas já tinham o poder nas mãos. Se tal raciocínio se cristalizou em axioma,
nem por isso unificou a esquerda. A questão da luta armada se acrescentavam
outras, concernentes ais antecedentes partidários e doutrinários, a influências
teóricas de origem nacional e internacional, pressões de países socialistas, limitações
regionais (GORENDER, 2014, p. 89).
O trabalho da CNV teve o mérito de mostrar factualmente que os EUA acompanharam
e monitoraram as violações de direitos humanos causadas pela ditadura, identificar os
períodos mais duros da repressão, a vinculação às organizações políticas das vítimas e
promover o esclarecimento circunstanciado de casos de mortes decorrentes e execução e
tortura, com base em novas perícias, exames documentais dos antigos órgãos estatais, assim
como tomada de depoimentos de testemunhas, vítimas e agentes estatais.
O Núcleo de Perícias da CNV, por vezes, apontou “elementos insustentáveis” das
versões oficiais sobre as mortes de militantes políticos. Essa pesquisa revela os padrões de um
esquema organizacional que serviu para forjar mortes, justificar violações e mortes. A
ditadura buscou ocultar as reais circunstâncias de assassinatos e os órgãos de segurança
constituíram versões falsas, que foram reproduzidas em jornais e tiveram uma cobertura legal
com laudos médicos falsos. Entre as principais versões falsas de morte, destacam-se
confrontos com armas de fogo, correspondentes a 32% dos casos identificados, 17%
65
suicídios, 15% mortes em manifestações e 5% correspondentes a atropelamentos e acidentes
automobilísticos. O depoimento de agentes do regime mostra o padrão adotado pelos
mecanismos de repressão:
Em relação à prática das execuções sumárias, Cláudio Guerra, ex-delegado do
DOPS/ES, em depoimento prestado no dia 23 de julho de 2014 na sede da CNV em
Brasília, relatou que executou, a pedido do SNI, três militantes em São Paulo, um
em Recife e “dois ou três” no Rio de Janeiro. Guerra também declarou que agentes
envolvidos na repressão, como ele, eram designados para “simular teatros” de
tiroteios ou de fato executar militantes políticos em estados diferentes daqueles onde
atuavam oficialmente, para evitar que autoridades locais pudessem ser vinculadas
aos homicídios. O ex-delegado revelou ainda que participou de pelo menos uma
simulação de tiroteio – a do militante da ALN Merival Araújo, morto sob tortura em
14 de abril de 1973, depois de permanecer preso por uma semana no DOI-CODI/RJ.
As execuções, conforme o mesmo depoimento, eram decididas por órgãos de
repressão e realizadas de acordo com procedimentos já estabelecidos. Os agentes
que participavam dessas operações, segundo o ex-policial, passavam por
treinamentos não apenas para técnicas específicas de execução, mas também para
procedimentos de ocultação de corpos, eliminação de vestígios e elaboração de
falsas versões de morte, sempre com o objetivo de atribuir a responsabilidade do
crime às próprias vítimas (CNV, 2014, p. 446-447).
A importância do trabalho da CNV é ímpar para a história brasileira e inestimável para
os familiares e amigos de vítimas da ditadura, que tiveram o direito de conhecer as
circunstâncias da morte de seus parentes que haviam sido negadas. As versões falsas de morte
escondem as atrocidades que foram perpetradas por agentes do Estado e nega as violações
sofridas por militantes como no caso de Eduardo Collen Leite que foi preso, torturado por
meses e teve a morte atribuída a um tiroteio:
Eduardo Collen Leite, da ALN, foi preso em 21 de agosto de 1970, no Rio de
Janeiro, e assassinado pela equipe do delegado Sérgio Paranhos Fleury depois de
109 dias de tortura ininterrupta. (...) A falsa versão dizia que o militante teria sido
morto em troca de tiros ao resistir à prisão, mentira repetida no laudo médico
assinado pelos legistas Aloysio Fernandes e Décio Brandão Camargo, de 8 de
dezembro de 1970 (CNV, 2014, p. 449).
66
A importância de um relatório de Estado reconhecer que a causa mortis de militantes
foi falsificada é importante como reparação histórica e serve as famílias e amigos das vítimas
que não tomaram conhecimento das reais circunstâncias que levaram as vítimas óbito. O
reconhecimento do Estado brasileiro desses casos, amparado em pesquisas rigorosas, ratifica
as denúncias que circulam em torno da burocracia estatal que omitiu e mentiu com o
beneplácito de alguns médicos, setores da imprensa e da justiça sobre as mortes de presos
políticos. Neste sentido, resgatamos a narrativa de Gorender sobre a morte do operário e
estudante Olavo, militante trotskista do Comitê Regional de São Paulo do Partido Operário
Revolucionário Trotskista (POR-T), que sofreu enfermo com insuficiência renal e outras
debilidades causadas em virtude das severas sessões de tortura:
Olavo foi um operário-estudante e conseguiu ingressar na Escola Politécnica da
USP. (...) Durante vários dias, os delegados Josecyr Cuoco e Ernesto Milton Dias o
submeteram a torturas intensivas: pau-de-arara, choques elétricos, espancamentos
violentíssimos, queimaduras e afogamentos. O prisioneiro não abria nenhuma
informação, o que levou os torcinários a aumentar a dose dos suplícios. No dia 6 de
maio Olavo apresentou anúria e edema nas pernas. Sintomas de insuficiência renal,
efeito de certa frequência da aplicação de choques elétricos e pau-de-arara. (...) Já no
dia 8 o preso foi retirado em estado de coma e as autoridades atribuíram sua causa
mortis ao suicídio por meio de injeção intravenenosa do inseticida Paration. Não se
explicou como um preso no porão do DEOPS teria oportunidade de adquirir o
inseticida, seringa e agulha de injeção (GORENDER, 2014, p. 134-135).
O capítulo décimo terceiro do relatório da CNV apresenta casos emblemáticos de
violações de direitos humanos contra militares, trabalhadores, sindicalistas, camponeses,
membros de organizações políticas e de organismos da sociedade civil. O décimo quinto
capítulo busca esclarecer os casos de vítimas e violações circunscritos a guerrilha do
Araguaia.
Os capítulos 15º, 16º e 17º tratam, respectivamente, dos locais associados a violações
de direitos humanos, as autorias e a relação entre o Judiciário e a ditadura. Esses capítulos
revelam que a ditadura utilizou navios mercantes da Marinha como prisões. Raul Soares,
Canopus, Custódio de Mello, Princesa Leopoldina, Bracuí e Guaporé foram os seis navios-
67
prisões utilizados. Para servirem como um presídio, os navios passaram por adaptações,
dividindo o espaço interno como os porões e camarotes em pequenas celas, coletivas e
individuais. “Outros pontos, como a área onde a água da caldeira era fervida, o frigorífico e o
local de despejo de fezes, também chegaram a ser utilizados como solitárias ou como locais
de punição para presos” (CNV, 2014, p. 823).
A decisão de transformar navios mercantes em navios-prisões era de competência do
Ministério da Marinha, sob orientação do Estado-Maior da Armada e só deveria ser tomada
em virtude de conflagração (guerra ou revolta). Os trâmites burocráticos revelam que o núcleo
duro da ditadura tinha total ciência dos navios-prisões que foram utilizados somente no ano de
1964 em virtude de um conjunto de condicionantes: a superlotação carcerária e o isolamento
cujo preso era submetido, além das dificuldades de acesso de advogados, familiares e
imprensa. Os navios foram palco de prisões arbitrárias, sessões de tortura e humilhações
contra militares e sindicalistas ligados a atividades costeiras. Ademar dos Santos, líder
sindical dos portuários, revela em depoimento que passou por 92 dias de incomunicabilidade
no navio Raul Soares. Além do desgaste físico e repetidos problemas de saúde que os presos
tinham, ameaças de serem jogados ao mar não eram raras. O relatório apresenta depoimentos
que caracterizam os tipos de violações dentro das embarcações. O relato do médico Thomas
Maak confirma as violações.
O depoimento de Thomas Maak confirma a tortura no Raul Soares:
A arbitrariedade de castigos e punições era flagrante. O mais comum era colocar
prisioneiros em cela inundada como foi o caso quando eu cheguei ao navio, ou em
cela com temperaturas muito altas ou baixas, ou malcheirosas. O coletivo de
prisioneiros no porão me pedia para eu fazer alguma coisa, como médico. Em geral
eu me dirigia ao comandante do navio e lhe dizia que a punição estava abalando a
saúde do prisioneiro e eu lhe pedia para parar. O caso mais grave que vi foi o de
Tomoshi Sumida, que era frequentemente encarcerado na “cela quente e fria” e
realmente sua saúde estava sendo afetada. Mandei avisá-lo que ele deveria requerer
ajuda médica (no caso eu), e eu daria um jeito de convencer o comandante do navio
de parar a tortura (o comandante do navio tinha realmente um medo enorme que
algum dos prisioneiros morresse no navio, um medo que se devia menos a
compaixão por prisioneiros, do que o medo que os outros prisioneiros se
revoltassem) (CNV, 2014, p. 826).
68
Além de identificar os locais de graves violações de direitos humanos, revelando a
utilização de navios como prisões, fato pouco explorado pela historiografia brasileira, a CNV
avançou na identificação de agentes da repressão. O relatório da comissão revela que houve
treinamentos especializados para interrogatórios e torturas, padrões de conduta e rotina que
institucionalizaram a tortura como prática de Estado. O relatório mostra como agentes
especializados em práticas que violam gravemente os direitos humanos estavam lotados
oficialmente na máquina pública: gabinetes de ministérios, nas estruturas do Exército,
Marinha e Aeronáutica, serviços de inteligência, delegacias da Política Federal, dentre outros,
como o DOPS e DOI-CODI.
O relatório identificou agentes públicos autores de graves violações de direitos
humanos. Os nomes são apresentados em ordem alfabética, onde constam posição e
hierarquia na carreira do serviço público e, respectivamente, época de atuação e vítimas. A
identificação da autoria de torturas, execuções e desparecimentos forçados era uma das
principais demandas das organizações de direitos e associações de familiares de presos
políticos, que também lutam por responsabilização e punição. Dentre os nomes identificados e
apresentados no relatório, consta o do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, suas práticas e
vítimas:
(71) Carlos Alberto Brilhante Ustra (indicado também na Seção B)
(1932-) Coronel do Exército. Comandou o Destacamento de Operações de
Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) do II Exército
entre setembro de 1970 e janeiro de 1974, período em que ocorreram ao menos 45
mortes e desaparecimentos forçados sob a responsabilidade dos agentes do DOI-
CODI de São Paulo. Teve participação direta em casos de prisão detenção ilegal,
tortura, execução, desaparecimento forçado e ocultação de cadáver. Recebeu a
Medalha do Pacificador com Palma em 1972. Vítimas relacionadas: José Idésio
Brianezi e José Maria Ferreira de Araújo (1970); Eleonora Menicucci de Oliveira,
Antônio Pinheiro Salles, Aylton Adalberto Mortati, Flávio Molina Carvalho,
Joaquim Alencar de Seixas, José Milton Barbosa, José Roberto Arantes de Almeida,
Luiz Almeida Araújo e Luiz Eduardo da Rocha Merlino (1971); Criméia Schmidt de
Almeida, Danilo Carneiro, Gilberto Natalini, Iuri Xavier Pereira, Alex de Paula
Xavier Pereira, Gélson Reicher, Ana Maria Nacinovic Corrêa, Lauriberto José
Reyes, Hiroaki Torigoe, Marcos Nonato da Fonseca e Luiz Eurico Tejera Lisbôa
(1972); Alexandre Vannucchi Leme, Arnaldo Cardoso Rocha, Edgard de Aquino
69
Duarte, Luiz José da Cunha, Francisco Emmanuel Penteado, Ronaldo Mouth
Queiroz, Cristina Moraes de Almeida, Helber José Gomes Goulart, José Carlos da
Costa (1973) (CNV, 2014, p. 884-885).
A institucionalização da repressão com padrões e rotinas e a identificação de agentes
responsáveis por violações precisa ser compreendida também dentro da esfera da justiça. Para
tal é preciso entender a relação entre o judiciário e o regime militar. Neste sentido, o relatório
destaca a atuação do Supremo Tribunal Federal, da Justiça Militar e comum. A pesquisa
documental e bibliográfica procedida para a confecção do relatório apresenta uma análise de
decisões do STF relacionada às denúncias de violações de direitos humanos, em segmentação
cronológica. O ordenamento jurídico do regime militar era de caráter híbrido: vigorava-se a
Constituição de 1946 como uma base constitucional de caráter permanente, contudo "havia
uma ordem de base institucional, de caráter transitório, que vigoraria o tempo que fosse
necessário para consolidar o projeto político dos militares", com base nos Atos Institucionais
(CNV, 2014, p.935). A garantia do habeas corpus, suspenso em 13 de dezembro de 1968, por
força do Ato Institucional nº 5 (AI-5), nos casos de crimes políticos ou contra a segurança
nacional, é exemplo desse ordenamento que concedia cobertura legal a perpetração de
violações.
O sistema de justiça que se forjou após o regime de 1964 deve ser visto como reflexo
do projeto de poder dos militares. Reflete a militarização da sociedade também nas esferas do
judiciário. Neste sentido, se assegurou à Justiça Militar o papel de protagonista nos
julgamentos referentes aos crimes “contra a segurança nacional”; as demais esferas do
judiciário, incluindo a Suprema Corte, atuaram majoritariamente em consonância com
diapasão ideológico do projeto de poder então em voga, de forma que os juízes nomeados
eram cientes que sua colaboração com o regime deveria ser efetiva. Paulatinamente, a Justiça
Militar se consolidou como a principal instância punitiva política da ditadura. A ditadura
militar se alicerçou na burocracia autoritária e os três poderes que compõem o Estado
brasileiro sofreram as consequências desse fenômeno.
Conclui-se que a omissão e a legitimação institucionais do Poder Judiciário em
relação às graves violações de direitos humanos, então denunciadas, faziam parte de
um sistema hermético mais amplo, cautelosamente urdido para criar obstáculos a
70
toda e qualquer resistência ao regime ditatorial, que tinha como ponto de partida a
burocracia autoritária do Poder Executivo, passava por um Legislativo leniente e
findava em um Judiciário majoritariamente comprometido em interpretar e aplicar o
ordenamento em inequívoca consonância com os ditames da ditadura (CNV, 2014,
p. 957).
O entulho autoritário do Brasil contemporâneo é, em certa medida, um legado dos 21
anos de ditadura militar, ancorados numa ampla tradição histórica de violações que tem
origem antes mesmo da formação do Estado-nacional brasileiro. O entendimento da Suprema
Corte que estende a Lei de Anistia como óbice a punição de militares que perpetraram graves
violações de direitos humanos, cometendo crimes de lesa-humanidade imprescritíveis, é parte
do legado autoritário que corrobora por uma cultura de impunidade aos que são próximas as
esferas de poder.
A identificação dos responsáveis pelas práticas de tortura, execução, desaparecimento
forçado e ocultação de cadáver, dentre outras violações, assim como o esclarecimento dos
locais onde foram praticados os referidos crimes e a relação entre os poderes do Estado, em
especial a condescendia da Justiça, são elementos essenciais que constam no relatório. Nestes
termos, apesar das críticas e impasses que a comissão atravessou, o relatório alcançou o
objetivo de evidenciar de forma factual as graves violações de direitos humanos, seus autores
e locais onde foram praticados, esclarecendo as circunstâncias da época e a relação entre os
poderes. Um importante e nítido avanço para a verdade histórica do país.
O volume II do relatório da CNV, apresenta nove textos temáticos que foram
elaborados sob a direção de conselhos da comissão.,Parte desses textos integrou vítimas,
familiares e pesquisadores. As pesquisas desenvolvidas pelos grupos de trabalho, no âmbito
da própria comissão, substanciaram os dados coligidos e apresentados. O volume refere-se às
violações de direitos humanos sofridas por determinados segmentos sociais: militares,
trabalhadores urbanos, camponeses, indígenas, homossexuais, membros de igrejas cristãs,
docentes e estudantes universitários. O papel que os civis cumpriram no golpe de 1964 e a
resistência da sociedade as violações são os temas abordados que fecham o volume. Cada
texto apresenta os responsáveis por sua elaboração.
O texto intitulado Violações de direitos humanos no meio militar abre o volume II do
relatório e foi elaborado sob a coordenação de Rosa Cardoso com a contribuição de
71
pesquisadores da CNV, Paulo Ribeiro da Cunha, Wilma Antunes Maciel, Guilherme Bravo e
João Vicente Nascimento Lins, integrando parte das atividades do Grupo de Trabalho sobre a
Perseguição a Militares. O desenvolvimento histórico das Forças Armadas, os embates
políticos e tensões resultados de revoltas nos quartéis, entre 1930 e 1932, balizou um
movimento interno que forjou a Doutrina Góes Monteiro, que erradicou a política no Exército
pela política do Exército e seus códigos de conduta. O resultado direto dessa doutrina foi
restringir as atenções da política nacional ao Alto Comando, ratificando a lógica e o caráter
conservador e autoritário do militarismo brasileiro. Destaque que a Fundação da Escola
Superior de Guerra (ESG) e a Doutrina de Segurança Nacional, fundada e forjada sob a
influência americana e francesa potencializou “exponencialmente o antagonismo entre os
militares e a sociedade” (CNV – Vol. 2. 2014, p. 14).
A perseguição a militares com inclinações ideológicas de esquerda não começou com
o golpe de 1964. Os militares nacionalistas, socialistas e comunistas foram duramente
perseguidos e sofreram com expulsão e reforma, processos, prisões arbitrárias e torturas,
praticas que se registram desde o começo dos anos 1950 e se intensificam nos anos 1960. É
importante destacar que as denúncias de prisões ilegais contra oficiais são encaminhadas por
cartas-denúncias à presidência da Associação Brasileira de Defesa de Direitos do Homem
(ABDDH). O caso do capitão Joaquim Inácio Batista Cardoso, levado à prisão preventiva e
60 dias de incomunicabilidade, ocorreu contra o parecer da Promotoria, violando os direitos
humanos fundamentais e o princípio do devido processo legal. Essas violações também
alcançaram o major Leandro José de Figueiredo Júnior, o capitão Joaquim Miranda e o
tenente da Aeronáutica Mauro Vinhas de Queiroz.
Na década de 1950, procedeu-se com prisões arbitrárias contra oficiais que passaram a
ser costumeiramente torturados a partir de 1964. Contudo, os marinheiros e praças recebiam
tratamento brutal, como registra o depoimento que trata do marinheiro José Pontes de
Tavares, barbaramente torturado em 1953:
Na mesma noite, foi entregue à Polícia Civil (DOPS), onde foi espancado
barbaramente por mais de uma hora, levado nu para uma cela cheia fezes e coberta
com pó de serra. Esfregado nesses dejetos, é forçado, em seguida, a ingerir uma dose
cavalar de óleo de rícino. Permaneceu nesse local sob espancamentos constantes e
purgativos em número de seis, até o dia 18 sem comer e sem beber absolutamente
72
nada. No dia 23 redobram-se os espancamentos e sevícias, sendo praticado consigo à
força atos de pederastia, introdução no reto de cassetete, untado de pimenta, e de
dedos; foi- lhe esfregado pimenta nos olhos; cuspiram-lhe dentro da boca; com um
alicate puxaram-lhe o pênis; com um cano de borracha esmagaram lhe os testículos.
Durante tais sevícias de mais de três horas caiu em estado de coma. Para recobrar os
sentidos jogavam-lhe baldes de água fria no corpo. Assim, sob esse regime,
permaneceu até o dia 30 de junho, sem comer, sem beber. No dia 1o de julho baixou
ao Hospital Central do Exército, com o ouvido purgando, sem poder andar, quase
morto. Esteve também preso em uma cela do Batalhão de Guardas (BG), onde foi
espancado pelo capitão Adriano Freire, acompanhado de outro oficial. Conduzido no
dia 10 de agosto para o Presídio da Marinha, foi arrastado violentamente para uma
solitária pelo sargento carcereiro Pedro Guanabara de Miranda, que comandava 16
soldados, todos de baioneta calada. Na solitária, permaneceu até o dia 26 de
setembro de onde foi tirado para um túnel (prisão 4). Durante esse período (de 13 de
junho a 26 de setembro) esteve debaixo de completa incomunicabilidade (CNV –
Vol. 2. 2014, p. 17).
As cartas-denúncias que foram enviadas ao parlamento brasileiro e a ABDDH
identificavam os locais das prisões ilegais e os responsáveis. Instalações militares nas cidades
do Rio de Janeiro, Natal, Salvador, Fortaleza, Recife e Porto Alegre serviram como centros de
tortura. As práticas mais sádicas de tortura, como o esmagamento de testículos com alicate,
ocorreram contra vários militares, que também tinham suas barbas arrancadas. Determinados
prédios das Forças Armadas passaram por reformas e algumas instalações se tornaram em
campos de concentração, com celas minúsculas de concreto e nenhuma ventilação. Estima-se
que entre 1946 e 1964, aproximadamente 1 mil militares foram perseguidos. Além deste
primeiro período, o relatório revela um diagnóstico que contabiliza um total de 6.591
perseguidos militares (entre Exército, Marinha, Aeronáutica e Forças Policiais) atingidos pela
perseguição promovida após o golpe de 1964, como revela o quadro:
73
QUADRO 01 – Demonstração dos militares das forças armadas perseguidos pela ditadura militar
Fonte: CNV, 2014 (Comissão Nacional da Verdade – Volume 2. 2014, p. 13)
A dura perseguição aos militares também ocorreu em escala internacional. A Operação
Condor articulou a execução de quadros militares identificados com organizações de
esquerda, nacionalistas e comunistas. Os militares que recorreram ao exílio estiveram, na sua
maioria, no Uruguai e bo Chile, espalhando-se por outros países após a progressiva retirada de
liberdades democráticas em 1973, em ambos os países. Em busca de novos refúgios, os
militares recorreram em sua maioria a Suécia, havendo registros de imigração para Cuba,
Alemanha Oriental, Hungria, França, Moçambique, Angola e Guiné.
A Operação Condor foi a responsável pela captura e execução do major do Exército
Joaquim Pires Cerveira, membro do PCB, que foi sequestrado por uma articulação entre os
órgãos de segurança e repressão do Cone Sul em 1973, na Argentina. Outros casos de
execução sumária foram registrados contra militares exilados. O arquivo do SNI, pesquisado
pela comissão, revela um total de 278 militares perseguidos no Exterior, como revela o
quadro:
74
QUADRO 02 – Demonstração dos militares das forças armadas perseguidos pela Operação Condor
Fonte: CNV (Comissão Nacional da Verdade – Volume 2. 2014, p. 41)
Se no Exterior, apenas três quadros das Forças Policiais foram perseguidos como
releva a comissão, o mesmo não pode ser dito da perseguição sofrida pelos policiais no Brasil.
Registra-se mais de 200 nomes de oficiais e praças das forças policiais estaduais que sofreram
intensa vigilância nos seus postos de trabalho, vítimas de expulsão ou transferência para a
reserva. O maior número de perseguidos se concentrou nos estados de São Paulo, Rio de
Janeiro, Rio Grande do Sul e Minas Gerais:
75
QUADRO 03 – Demonstração dos militares estaduais perseguidos pela ditadura militar
Fonte: CNV, 2014 (Comissão Nacional da Verdade – Volume 2. 2014, p. 38)
Ainda tratando da perseguição aos militares, o relatório apresenta elementos
importantes que esclarecem o aperfeiçoamento de métodos de tortura amparados em novas
tecnologias de repressão à época. O “método inglês” consistia em infligir agudo sofrimento e
perturbação sem deixar marcas de agressões físicas, utilizando-se de alto-falantes com sons
ensurdecedores e constantes, luzes florescentes fortíssimas e alteração de temperatura, em um
cubículo onde o preso poderia ficar confinado por mais de vinte horas. A introdução da nova
técnica de tortura não significou uma atitude de amenização do sofrimento dos perseguidos
políticos; pelo contrário, ampliou-se o leque de possibilidades de tormento e a brutalidade das
torturas não deixou de ser ministrada.
O coronel Vicente Sylvestre, preso em julho de 1975, foi brutalizado e para não ir a
óbito, precisou de intervenção médica. No depoimento de Sylvestre, é mencionada a tortura
sofrida pelo tenente da Reserva da Polícia Militar de São Paulo, José Ferreira de Almeida,
militante do PCB, que foi preso em julho de 1975 e foi encontrado morto. O depoimento
ilustra como a tortura cumpria um papel de tormento e desmoralização:
76
Quando eu estava na Polícia Militar de volta, chega a notícia que o tenente José
Ferreira de Almeida havia se suicidado dentro do DOI-CODI. Um choque tremendo,
não havia condições de se suicidar no DOI-CODI. [...] Era humanamente
impossível, não tinha instrumento para isso. [...] Mais tarde ficamos sabemos que ele
foi vítima de tortura dentro DOI-CODI e introduziram no ânus um cabo de vassoura,
quebrando na ponta e perfuraram todo o intestino dele. Ele morreu sem o corpo
deixar nenhum vestígio, nenhum hematoma, nada. [...] E esse caso ficou
praticamente desconhecido da história dos presos políticos (CNV – Vol. 2, 2014, p.
45)
O relatório da CNV demonstra ainda como as perseguições a militares persistiram
mesmo com o fim formal da ditadura militar, com a eleição pelo colégio eleitoral de Tancredo
Neves em 1985 à Presidência da República, sendo substituído por José Sarney, após grave
enfermidade que o levou a óbito. O soldado do Exército Luiz Cláudio Monteiro da Silva foi
preso entre 1986-1987, sendo acusado de subversão por ter sido “pego” lendo artigos sobre o
professor Darcy Ribeiro dentro dos alojamentos militares.
O depoimento de Luiz Cláudio mostra como teve a carreira militar interrompida, as
consequências físicas de seus interrogatórios e como os elementos da repressão se enraizaram
pela estrutura estatal brasileira, ratificando graves violações de direitos humanos sob a
vigência de um regime de suposta redemocratização. Neste sentido, é importante apontar que
as dimensões mais perversas da tradição autoritária se fazem presente no Brasil atual no nível
de letalidade da polícia militar, nas torturas perpetradas por agentes estatais de segurança, na
situação prisional brasileira e na criminalização dos movimentos sociais. Nos alongaremos
adiante sobre a relação entre o trabalho da CNV e as nuances do Estado de exceção à
brasileira. Contudo, é importante ressaltar que após o término do trabalho da comissão, outras
iniciativas de organizações de direitos humanos apontam a necessidade de instituir outras
comissões que tratem sobre temas como a escravidão e a violência policial.
O terceiro volume do relatório da CNV é completamente dedicado às vítimas. São 434
mortos e desaparecidos indicados pela comissão, porém, este número não é definitivo e o
próprio relatório esclarece que pesquisas e investigações devém continuar para ampliar os
dados sobre as vítimas da ditadura.
77
Para a Comissão Nacional da Verdade, o rol de vítimas exposto não é definitivo. As
investigações sobre as graves violações de direitos humanos ocorridas no período
enfocado pela Comissão – de 1946 a 1988 – devem ter continuidade e, notadamente
no que se refere à repressão contra camponeses e indígenas, a produção de um
quadro mais consolidado de informações acarretará a identificação de número maior
de mortos e desaparecido (CNV, 2014, p. 25).
O relatório traz os perfis das 434 vítimas, sendo 191 mortos e 243 desaparecidos. A
estrutura dos perfis foi dividido em oito partes: dados pessoais, bibliografia, considerações
sobre o caso anteriores à instituição da CNV, circunstâncias da morte ou desaparecimento,
identificação do local, identificação da autoria, fontes principais de investigações e conclusões
e recomendações. A CNV registra que em oito casos apontados no Dossiê Ditadura, não
constam no relatório em virtude da comissão não ter conseguido caracterizar a
responsabilidade do Estado; dentre os nomes que não constam no relatório, está o de Djalma
Maranhão, prefeito de Natal-RN, deposto em 1964 pela ditadura.
No terceiro volume do relatório da CNV, o perfil do jornalista iugoslavo Vladimir
Herzog apresenta uma ficha com sua foto, os nomes de seus pais, data e local de nascimento e
morte, tal como a organização política em que atuava: o PCB. O resumo biográfico de Herzog
informa sua formação acadêmica em Filosofia pela USP, apresenta sua família e sintetiza a
atuação como destacado jornalista na BBC de Londres, na TV Cultura no Brasil e outros
organismos de comunicação. No dia 25 de outubro de 1975, Herzog foi convocado a
comparecer no Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa
Interna (DOI-CODI do II Exército) em São Paulo para prestar depoimento, comparecendo
voluntariamente a repartição, onde foi morto no mesmo dia, aos 38 anos, deixando esposa e
filhos. Uma versão oficial falsa que indicava a morte de Herzog como suicídio por
enforcamento foi amplamente divulgada e a sociedade repudiou a versão oficial com
manifestações.
A CNV apresenta considerações sobre o caso Herzog até a instalação da referida
comissão, dando destaque ao Relatório do Ministério da Aeronáutica de 1993, que endossa a
versão oficial falsa de suicídio por enforcamento nas dependências do DOI do II Exército.
Frente às manifestações negativas da opinião pública, foi instalada, no final de outubro de
1975, um Inquérito Policial Militar que continuou a ratificar a versão oficial como um
78
“quadro típico de suicídio por enforcamento”, apoiado na falsificação de relatório
criminalístico, laudos médicos e periciais, posteriormente descobertos, após abertura de Ação
Declaratória movida pela família de Herzog contra a União, onde, em 1978 o Estado
brasileiro foi condenado pela prisão arbitrária, tortura e morte de Vladimir Herzog. O relatório
esclarece ainda que “a versão de suicídio pôde ser desmantelada pelos depoimentos
contraditórios dos médicos legistas Harry Shibata, Arildo de Toledo Viana e Armando Canger
Rodrigues” (CNV, 2014, p. 1796).
A CNV identificou a autoria da morte de Herzog e apontou a cadeia de comando
desde a Presidência da República, ocupada pelo general Ernesto Beckmann Geisel, até o
Comando do DOI/CODI de São Paulo, chefiado pelo tenente-coronel Audir Santos Maciel.
No quadro de graves violações de direitos humanos no caso de Herzog, citam-se
nominalmente os autores das referidas violações, as funções ocupadas, as condutas praticadas,
os órgãos aos quais pertenciam e os locais associados às violações. São sete pessoas indicadas
no quadro de autorias, entre investigadores da polícia, comandante, capitão de brigada e
médicos legistas, responsáveis por tortura e morte, emissão de documentos, laudos e inquérito
fraudulentos.
Um dos encaminhamentos da CNV foi conduzir requerimento da família Herzog ao
poder judiciário de São Paulo, que retificou a causa mortis de Vladimir Herzog, com a
emissão de uma nova certidão de óbito encaminha a sua família, onde consta e esclarece-se
que a morte do jornalista ocorreu em função de “lesões e maus-tratos sofridos durante os
interrogatórios em dependência do II Exército (DOI-CODI)”.
Apesar do trabalho da CNV ter alcançado resultados satisfatórios com o
esclarecimento de casos de mortes e desaparecimentos até então inconclusos, ter reconhecido
a responsabilidade do Estado brasileiro pelas violações perpetradas e encaminhado como
recomendações ações de reconhecimento e reparação, o alcance da comissão não foi mais
amplo em função da negativa das Forças Armadas em contribuir efetivamente com o processo
de esclarecimento e reconciliação entre o país e sua história. Vale destacar que muitas lacunas
na história das violações da ditadura militar permanecem abertas.
Mesmo com o esforço dispensado durante os trabalhos não foi possível desvendar a
maior parte dos casos de mortes e desaparecimento ocorridos durante os anos de
1964 a 1988. As lacunas dessa história de execuções, tortura e ocultação de
79
cadáveres de opositores políticos à ditadura militar poderiam ser melhor elucidadas
hoje caso as Forças Armadas tivessem disponibilizado à CNV os acervos do CIE,
CISA e Cenimar, produzidos durante a ditadura, e se, igualmente, tivessem sido
prestadas todas as informações requeridas, conforme relatado no Capítulo 2 do
volume 1 do Relatório da CNV. As autoridades militares optaram por manter o
padrão de resposta negativa ou insuficiente vigente há cinquenta anos, impedindo
assim que sejam conhecidas circunstâncias e autores de graves violações de direitos
humanos ocorridas durante a ditadura militar (CNV, 2014, p. 28-29).
O relatório da Comissão Nacional da Verdade tem o status de um relatório de Estado e
foi o resultado do trabalho de 31 meses de integrantes com diferentes matizes ideológicas.
Frente às condições adversas que a comissão enfrentou, como a substituição de membros,
conflitos internos e a recusa dos militares em colaborar, é certo que a CNV conseguiu um dos
melhores resultados que poderiam ser alcançados. O apoio político que o Governo Federal
deveria ter conferido a comissão nas polêmicas envolvendo a colaboração militar prejudicou o
trabalho da CNV e ratificou o caráter conciliatório que tem sido adotado por todos os
governos desde a redemocratização, como se passar a história brasileira recente a limpo,
esclarecer, julgar e punir violadores não fosse palpável na ainda jovem democracia brasileira.
2.2 OS EMBATES SOBRE O RELATÓRIO
Os debates e controvérsias envolvendo a instalação da Comissão Nacional da Verdade,
sua composição e ações, assim como o relatório final, são muitas como de militares,
militantes, intelectuais e associações de familiares de presos políticos. O debate público
esteve presente na grande imprensa e em veículos de comunicação associados à organizações
políticas e sociais nos meios acadêmicos e entre as entidades de direitos humanos.
O Brasil foi o último país da América Latina a instalar uma comissão da verdade.
Entre o fim formal da ditadura em 1985 e a instalação da aludida comissão, foram vinte e sete
anos. Antes da instalação comissão, o debate sobre a necessidade da instituição da Comissão
teve resposta negativa por parte de setores conservadores das Forças Armadas, enquanto que
os delegados da 11º Conferência Nacional de Direitos Humanos defendiam uma comissão de
“verdade e justiça”. O projeto encaminhado e aprovado no Congresso criou a CNV, com
limites claramente demarcados: sem infligir constrangimento ou punição aos militares.
80
O trabalho da CNV resultou em um relatório de mais de três mil páginas, nas quais
estão identificados 230 locais onde ocorreram torturas e execuções contra opositores ao
regime militar, 377 pessoas são indicadas como autores de graves violações contra os direitos
humanos, entre militares, policiais, delegados das policias Federal e Civil e médicos legistas.
São listados 434 vítimas, entre mortos e desaparecidos. A CNV identificou também mais de 6
mil militares perseguidos. Um conjunto de vinte e nove recomendações, entre medidas
oficiais, reformas legais e prosseguimento de ações da comissão, é parte essencial para a
consolidação democrática e superação do entulho autoritário que permanece na
institucionalidade brasileira. O saldo do trabalho da CNV também deve ser medido pelas
consequências políticas e sociais que conseguiu produzir e, neste sentido, é imprescindível
entender que o avanço de políticas que salvaguardem os direitos humanos não ocorre
dissociado do exercício efetivo e legítimo do poder político, tema que retomaremos adiante.
No campo da direita conservadora, são muitas as críticas que se formularam contra o
trabalho da CNV. Neste espectro, é o Clube Militar, organização fundada em 1887 com o
lema “Democracia, Soberania, Unidade Nacional e Patriotismo”, formada majoritariamente
por oficiais da reserva das Forças Armadas, que apresenta o maior número de formulações
sobre as ações da Comissão Nacional da Verdade.
O general Marco Antonio Felício da Silva expressa com fidedignidade a lógica
predominante entre os militares conservadores. O artigo intitulado “O famigerado relatório da
CNV”, o general acredita que a democracia brasileira foi direcionada nos últimos governos
para o “socialismo bolivariano”, alega que os militares necessitam ter mais presença nos
debates de interesse nacional, tendo posicionamentos claros frente a “instabilidade política”,
os retrocessos econômicos, a questão da segurança e da corrupção, tal como “a execrável
política indigenista”, classifica. O general Marco Antonio argumenta ainda que haja um
processo de “invasão” de cubanos, venezuelanos e haitianos no país e, nestes termos, exige
“um claro posicionamento” das Forças Armadas.
Ao tratar propriamente da Comissão Nacional da Verdade, o general Marco Antonio,
classifica a CNV como a expressão de um “revanchismo afrontoso”, alerta que a comissão foi
eivada de “ilegalidades” em sua composição e em suas diligências, embora não nomeie as
referidas ilegalidades. Para o general, os reais objetivos da comissão necessitam ser
81
“denunciados”, pois buscam a “substituição da real verdade histórica”. O general, assim se
expressa:
Denunciamos tais objetivos: Condenação de militares por crimes contra a
humanidade, culpa da cadeia de comando, atingindo os presidentes militares, como
mandantes e sabedores das “atrocidades cometidas”, pedido de desculpas, pelos
comandantes militares, à Nação, modificação ou erradicação da Lei da Anistia e,
consequentemente, substituição da real verdade histórica, através da manipulação de
fatos isolados, por uma nova estória cretina e mentirosa (SILVA, 2017, p.1).
No artigo intitulado “Exigir e não negociar”, o general Marco Antonio Felício da Silva
comenta o III Programa Nacional de Direitos Humanos e alerta que a publicação do texto pelo
Governo Federal serviu para “acordar importantes lideranças” para o “processo de subversão
social e político que se desenvolve no país, visando a tomada do poder e implantação de uma
ditadura comunista” e afirma que os militares são a “barreira tradicional à consecução dos
objetivos da dominação marxista”. Os argumentos alçados nos artigos do general se articulam
entre o preconceito conservador raso e o repetido juízo de valor. A realidade, à revelia do que
sustenta o general, mostrou-se completamente diferente: os governos dos presidentes Lula e
Dilma, mantiveram duradouras e estreitas relações com setores conservadores e burgueses,
ocupantes de espaços importantes e estratégicos na esfera federal.
Contudo, em torno da polêmica envolvendo o trabalho da CNV no Clube Militar, não
se restringiu apenas as publicações do general Marco Antonio. Reis Friede, professor, jurista e
Desembargador Federal, teve o artigo intitulado “A unilateralidade do Relatório Final da
Comissão Nacional da Verdade e Possíveis Implicações Jurídicas”, publicado pelo Clube
Militar. O trabalho de Friede é diferente. Apesar de essencialmente conservador, o autor
esclarece sobre a necessidade da efetivação dos direitos humanos no Brasil e da superação de
graves problemas como a questão prisional e as violações perpetradas contra negros, mulheres
e indígenas. Friede aponta que sempre houve a necessidade da instituição de uma comissão de
verdade que apurasse todas as violações cometidas, assentado a investigação sob o princípio
da imparcialidade e é em torno da questão da imparcialidade que o autor formula suas
principais elaborações e críticas sobre o relatório da CNV.
82
Reis Friede afirma que o trabalho da comissão foi contaminado ideologicamente. Para
o autor, em virtude da comissão não ter investigado os crimes praticados pelas esquerdas,
constitui uma violação à Lei que instituiu a própria CNV, uma “ofensa ao princípio da
imparcialidade, assentado no art. 2º, § 1º, II, da Lei nº 12.528/11” (FRIEDE, 2015, p.3). No
campo do direito, Friede classifica que o trabalho da Comissão Nacional da Verdade foi
“absolutamente unilateral”. Para o autor as investigações não se deram dentro dos limites da
Lei e o próprio colegiado, em última instância, infringiu a concretização do direito à memória.
Friede afirma que a imparcialidade, como princípio reitor das atividades legais da CNV,
deveria garantir uma investigação que apurasse os “excessos” de “ambos os lados”. O autor
argumenta que os militantes de esquerda foram autores de graves violações de direitos
humanos. Sem contextualizar as condições objetivas que se operaram em torno da resistência
à ditadura, Friede afirma que militantes também deveriam constar entre os violadores:
Não entendemos como a CNV, afastando-se das premissas normativas, e
desperdiçando tempo e dinheiro público, possa ter se omitido quanto ao exame e
esclarecimento completo dos fatos históricos. Não conseguimos compreender a
razão pela qual a relação de nomes de supostos agentes torturadores não contenha,
em necessária adição, o rol daqueles que, também supostamente, e durante a luta
armada, tenham praticado assassinatos, explosões e sequestros, atos tipicamente
terroristas e igualmente ofensivos aos direitos humanos (FRIEDE, 2015, p. 7).
Para Friede, além da ocultação dos nomes dos militantes de esquerda que
supostamente teriam cometido crimes, a CNV promoveu uma condenação moral ao listar os
nomes dos demais militares. Reis Friede afirma que, assim como os locais onde se praticavam
torturas foram indicados, os “aparelhos” de militantes também deveriam ser apontados pelo
relatório da comissão:
Embora o art. 4º, § 4º, da Lei nº 12.528/11 disponha que as atividades da CNV não
teriam caráter persecutório, o que se viu ao longo do período de atividades foi uma
nítida e indisfarçada ânsia acusatória, para não dizer inquisitória, aspecto que se
comprova pela ampla exposição (proposital ou involuntária) na mídia de
depoimentos colhidos de determinados agentes públicos. Não que tais depoimentos
não devessem ser difundidos pelos meios de comunicação, convém esclarecer. Mas
que fossem tomados também os depoimentos de pessoas ligadas à luta armada e a
83
atos de terrorismo, cujos nomes estão aí. Não que os locais de tortura, as chamadas
"casas da morte", não devessem ser localizadas e divulgadas, mas que os
denominados "aparelhos", onde se tramavam ações de indiscutível conteúdo
terrorista, bem como era alimentado o desejo nada democrático de se instalar no país
a ditadura do proletariado, também o fossem (FRIEDE, 2015, p. 8).
Destaque que os ditos “aparelhos”, por vezes, serviram para esconder militantes que
eram procurados pela polícia e corriam sérios risco de morte. É corretor afirmar que a tortura
colocava em risco a vida, a integridade física e psíquica de militantes. Comparar os ditos
“aparelhos” com os centros de tortura e exceção é uma afronta à realidade da história
brasileira, uma comparação que por si só é absurda, por pressupor e insinuar que o alcance da
luta armada seria comparável ao poder de fogo das Forças Armadas, o que compreendem um
considerável contingente de homens que compõem um exército treinado e fortemente armado,
que age com o beneplácito do Estado sob o arco da legalidade condescende.
Friede considera que a Comissão Nacional da Verdade não alcançou os objetivos para
os quais foi criada. O trabalho da CNV não é considerado apenas insatisfatório; o autor
caracteriza que as ações do colegiado incorreram em crime de improbidade administrativa em
virtude da edição da Resolução Interna nº 2, que estabelecia que os agentes públicos seriam
investigados como autores de graves violações de direitos humanos. A saber, a Resolução
Interna nº 2, no seu Artigo 1º, estabelece:
À Comissão Nacional da Verdade cabe examinar e esclarecer as graves violações de
direitos humanos praticadas no período fixado no art. 8o do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias, por agentes públicos, pessoas a seu serviço, com apoio
ou no interesse do Estado” (CNV, Resolução Interna Nº 2, de 20 de agosto de 2012).
Embora a Lei que criou a CNV não indique textualmente que militantes de esquerda
também devessem ser investigados por crimes contra a humanidade, para Reis Friede, o
princípio da imparcialidade pressupunha a obrigação da comissão em investigar “ambos os
lados”, tanto a “extrema direita torturadora” e a “extrema esquerda terrorista”. A edição da
resolução, como ato de ofício, supostamente teria transitado fora das balizas da Lei
12.528/2011, que criou a CNV, para convenientemente afastar militantes de investigações da
84
comissão. Neste sentido, Friede sustenta que os membros da CNV poderão ir ao banco dos
réus por força de uma ação civil de improbidade administrativa.
Seria cabível, em tese, manejar a ação popular, na forma da Lei nº 4.717, de 29 de
junho de 1965, cujo art. 1º estabelece que qualquer cidadão será parte legítima para
pleitear a anulação ou a declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio da
União, sendo certo que o art. 2º da mesma lei considera nulos os atos lesivos ao
erário nos seguintes casos: incompetência, vício de forma, ilegalidade do objeto,
inexistência dos motivos e desvio de finalidade. Na hipótese ventilada, seria possível
afirmar que o relatório final elaborado, enquanto ato de ofício típico a ser produzido
pela CNV, conforme determinação contida no art. 1121 da Lei nº 12.528/11, teria
sido praticado com desvio de finalidade, notadamente quanto ao fim estipulado pelo
art. 3º, I, da mesma lei, qual seja, esclarecer os fatos e as circunstâncias dos casos de
graves violações de direitos humanos mencionados no caput do art. 1º, durante o
período de 18 de setembro de 1946 até 5 de outubro de 1988, independentemente de
quem os tenha perpetrado, uma vez que a lei nada menciona a respeito da autoria.
Assim, ao deturpar o fim legal, limitando as apurações a apenas um dos lados
envolvidos nas atrocidades cometidas, a CNV acabou elaborar o relatório final
visando a fim diverso daquele previsto na Lei nº 12.528/11. Ademais, é
perfeitamente possível que haja responsabilização civil por eventuais danos
materiais e morais causados às pessoas eventual e açodadamente listadas como
supostos torturadores, cuja imagem, tendo em vista a ampla divulgação dada pela
mídia ao relatório final, encontra-se extremamente atingida (FRIEDE, 2015, p. 14).
Friede ecoa, senão o desejo idêntico da direita conservadora, ao menos, expressa o
mesmo rechaço sobre a Comissão Nacional da Verdade. Contra a comissão, se apontam
supostas ilegalidades e o argumento da falta de imparcialidade nas investigações. Para
corroborar com a tese que a “extrema esquerda terrorista” era tão vil quanto a “extrema
direita”, Friede compara a esquerda brasileira com os radicais islâmicos que assassinaram os
chargistas da revista Charlie Hebdo em janeiro de 2015, em Paris. Sob essa perspectiva, o
autor insiste que a atuação da esquerda no Brasil foi tão danosa para os direitos humanos
quanto os setores conservadores, inclusos neste contexto: os agentes de Estado, apontados
como torturadores. A comparação que Friede sustenta é uma conexão eivada por um absoluto
anacronismo histórico raso: tanto a esquerda brasileira que enfrentou a ditadura quanto o
85
terrorismo islâmico possuíam motivações avessas e estavam localizadas em contextos
geopolíticos distintos.
Reinaldo Azevedo combina argumentos do general Marco Antônio Felício e Reis
Friede e afirma que a Comissão Nacional da Verdade escondeu 121 cadáveres de supostas
vítimas de ações armadas da esquerda. Azevedo sintetiza o relatório da CNV como
“mistificação, revanchismo e farsa” e se soma a Reis Friede na defesa das investigações
contra os militantes de esquerda, já que o artigo 3º da Lei n° 12.528/2011, define-se como
objetivo da CN, a investigação de violações de direitos humanos “nos aparelhos estatais e na
sociedade”. “Quando se fala em crimes cometidos na sociedade, isso inclui também aqueles
praticados por terroristas. A comissão os ignorou. Insisto: as pessoas assassinadas pelas
esquerdas desapareceram do relatório final, o que é uma indignidade” (AZEVEDO, 2014,
p.1).
O general Marco Antonio Felício da Silva e o jurista Reis Friede tiveram suas críticas
contra a Comissão Nacional da Verdade publicadas e amplamente divulgadas pelo Clube
Militar e por setores conservadores. Reinaldo Azevedo, como então colunista da Veja, revista
semanal de maior circulação do Brasil, com tiragens acima de 1 milhão de exemplares, fez
severas críticas à CNV. Os argumentos expressos por Reis Friede, Reinaldo Azevedo e o
general Marco Antonio balizaram as principais posições dos setores conservadores nos
debates públicos. Em linhas gerais, a diferença fundamental entre os três é que Reis Friede se
fundamenta na ciência do direito, Reinaldo Azevedo no saber midiático e Marco Antonio
Felício da Silva, única e exclusivamente, tem como base os preconceitos conservadores.
Para Reinaldo Azevedo, “uma comissão oficial da verdade, é, acima de tudo, uma
comissão da mentira oficial” (AZEVEDO, 2015, p.1). Na interpretação do general Marco
Antonio Felício da Silva, a CNV significa afronta as Forças Armadas, desrespeito e
revanchismo ligados ao projeto de poder do “socialismo bolivariano”. Entre os três, Friede é o
único que julga louvável a iniciativa de instituir uma comissão para apurar e investigar
violações, contudo, aponta irregularidades, vícios e crimes no trabalho da CNV, mesmo que
ancorado em sua interpretação jurídica, essencialmente unilateral. Os três se abstém de
comentar os atos de tortura perpetrado por militares, mas insistem em classificar como
“terrorismo” as ações da esquerda no Brasil, tomando-as por uma proporção irreal.
86
Reis Friede menciona uma “extrema direita torturadora”, pressupondo que a tortura foi
o resultado dos arroubos de um setor militar mais sádico, quando na realidade um conjunto de
comprobações documentais provam que a tortura, no Brasil, foi executada de forma
sistemática como política de Estado. Nas diretrizes da denominada doutrina de guerra
revolucionária, amplamente utilizadas pelas Forças Armadas brasileiras, previa-se o uso de
tortura como método de interrogatório para obtenção de informações. A participação de
militares brasileiros em cursos ministrados pela Escola das Américas, dirigida pelos EUA, a
partir de 1954, comprovada através de documentos estadunidenses que a instrução para o uso
de tortura foi realizada. A comprovação documental coligida as tomadas de depoimentos de
militares e vítimas de tortura que comprovam os abusos, tal como os laudos médicos e a
cadeia de comando identificada nas estruturas estatais, tornam uma constatação irrefutável a
indicação da tortura como método sistemático e política de Estado no Brasil. Sobre os cursos
que versaram sob técnicas de tortura, ministrado pela Escola das Américas, a CNV, informa:
Os cursos e treinamentos foram ministrados para milhares de alunos de países da
América Latina e do Caribe; envolvendo, entre outros temas, técnicas de
contrainsurgência, operações de comando, treinamento em inteligência e
contrainteligência, operações de guerra psicológica, operações policiais-militares e
técnicas de interrogatório para serviços de inteligência. Manuais de instrução
inicialmente considerados secretos, utilizados em cursos na Escola das Américas,
foram desclassificados pelo Departamento de Defesa norte-americano em meados da
década de 1990, e revelaram como se dava o treinamento militar relacionado à
prática de tortura e a outras graves violações de direitos humanos (CNV, 2014, p.
330).
Se entre a direita conservadora existe um consenso sobre o balanço negativo, tanto da
instituição quanto das atividades da Comissão Nacional da Verdade, o mesmo consenso não
se reproduz na esquerda. Os diversos setores da esquerda brasileira adotaram posicionamentos
diferentes frente ao trabalho da CNV. Movimentos sociais e organizações de direitos humanos
também não tem um balanço unitário sobre a comissão, as posições são muitas e diversas:
desde o apontamento da CNV como retumbante fracasso até o entendimento que a comissão
cumpriu todos seus objetivos e concluiu sua missão, logrando êxito máximo.
87
O PCB, em artigo intitulado “Quantos lados tem a Comissão Nacional da Verdade?”,
assinado por Pedro Estevam da Rocha Pomar, já ecoava as críticas de familiares de vítimas da
ditadura no período de instituição da CNV. Para Pomar, o Governo Dilma foi covarde por não
permitir um avanço no sentido da punição dos militares, ancorado no estandarte da
“reconciliação nacional”. O Governo constituiu uma comissão plural, com o caráter de Estado
e não de Governo, delineando claramente os limites da comissão, para que não causasse
constrangimento as Forças Armadas ou ensejasse punições. Pomar lembra que o Comitê
Paulista pela Memória, Verdade e Justiça protocolou, no Gabinete Regional da Presidência da
República, o pedido de que Dilma revogasse a nomeação de Gilson Dipp, que havia atuado
junto a Corte Interamericana de Direitos Humanos, contra os familiares dos guerrilheiros do
Araguaia. “O ministro do STJ atuou como perito na CIDH, em nome do Estado brasileiro,
contra os familiares dos guerrilheiros do Araguaia. Não possui, portanto, a isenção requerida,
nos moldes da própria lei que criou a Comissão” (POMAR, 2012, p.23).
Em reportagem veiculada pela Folha S. Paulo, Cecília Coimbra, presa política durante
a ditadura e uma das fundadoras do Grupo Tortura Nunca Mais, classificou como “frustrante”
o relatório final entregue pela CNV. Coimbra se disse frustrada, revoltada e indignada, para
ela a comissão suavizou a narrativa dos abusos cometidos pelos militares, substituindo o
termo “tortura” pela usual terminologia das “graves violações de direitos humanos” e taxou o
documento como “superficial”.
A Comissão Municipal da Verdade de São Paulo, presidida pelo vereador Gilberto
Natalini, preso e torturado durante a ditadura militar, apresentou um balanço positivo dos
trabalhos da CNV, considerando o relatório como um documento amplo, profundo, que
representou uma investigação de envergadura e esclareceu bastantes casos. Mas, entre as
comissões, houve uma polêmica a respeito da morte do ex-presidente Juscelino Kubitscheck:
a Comissão Municipal da Verdade de São Paulo sustenta que JK e seu motorista, Geraldo
Ribeiro, foram vítimas da ação da ditadura no acidente automobilístico fatal em agosto de
1976. “Segundo a comissão, um grupo de trabalho formado por mais de 20 professores e
pesquisadores das universidades de São Paulo (USP) e Presbiteriana Mackenzie concluiu que
ele foi assassinado” (CRUZ, 2014, p.12), informa reportagem da Agência Brasil. No entanto,
após pesquisa, a CNV não refutou a versão oficial da morte, que está registrada como um
acidente ocasional.
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Uma das principais figuras públicas do PSOL, Luciana Genro, em artigo intitulado “A
verdade não pode ser ignorada”, apresenta um balanço positivo dos trabalhos da CNV e, em
especial, do caráter oficial do reconhecimento das violações e identificação das vítimas do
terrorismo de Estado perpetrado pela ditadura. Luciana afirma que o trabalho da comissão, em
especial as recomendações realizadas, são essenciais ao processo de redemocratização.
Contudo, aponta que é necessário que o Governo, a Suprema Corte e o país não desrespeitem
as recomendações da CNV, como estão sendo desrespeitadas as decisões da Corte
Internacional de Direitos Humanos:
A impunidade dos violadores do passado é o lastro para a impunidade dos
violadores do presente. O ciclo de violência não acabou e nem vai acabar enquanto
só mudem os algozes e as vítimas, mas não se transformem as estruturas. Por isso,
outras recomendações da CNV também são de extrema relevância: desmilitarização
das polícias estaduais, modificação do conteúdo curricular das academias militares e
policiais para promoção da democracia e dos Direitos Humanos, proibição de
comemorações oficiais do dia do golpe, extinção da Justiça Militar estadual,
supressão de referências discriminatórias das homossexualidades no Código Penal
Militar, eliminação da figura do auto de resistência à prisão, fim da Lei de
Segurança Nacional, dignidade no tratamento aos presos, dentre outras. Resta saber
agora se a presidenta Dilma, ela mesma ex-presa política que foi torturada, e o
Supremo Tribunal Federal, vão ignorar as recomendações da Comissão Nacional da
Verdade da mesma forma que ignoraram as recomendações da Corte Internacional
de Direitos Humanos (GENRO, 2014 p.1).
No nosso entendimento, parte considerável das críticas formuladas pela direita
conservadora não encontram lastro na justiça, na realidade histórica ou nas ciências sociais.
As acusações apontadas contra a comissão não chegaram sequer a serem protocoladas na
justiça. A CNV concluiu a missão para qual foi instituída, cumpriu um importante papel para
o processo de redemocratização, mas o seu alcance poderia ter sido maior e seu trabalho teria
mais relevância se houvesse empenho e força política empreendidas para levar julgar e punir
os perpetradores de graves violações aos direitos humanos.
Deve-se entender com precisão as condições políticas e as correlações de forças, nas
quais a CNV esteve inserida e desenvolveu o seu trabalho. O processo de abertura
democrática e a própria democracia brasileira e seus claros limites, como a recusa das Forças
89
Armadas em reconhecer os abusos de lesa humanidade cometidos, são as principais
condicionantes que interferiram no trabalho da comissão. “E essa transição à brasileira,
negociada pelo alto, controlada pelas forças do regime autoritário, lenta e duradoura imprimiu
suas marcas não apenas à democracia, mas também à Comissão Nacional da Verdade”
(QUINALHA, 2015, p.9).
Renan Quinalha (2015) aponta que os problemas que a CNV enfrentou também se
originam nos recuos e mudanças do PNDH-3, por influência de setores conservadores do
Governo Federal, em especial do Ministério da Defesa, Nelson Jobim, que atuou
representando os interesses dos militares herdeiros da ditadura. As mudanças operadas
serviram para deslocar a ação direta do Estado, pela discussão no debate público, impedindo a
responsabilização civil e penal de agentes do regime. Nestes termos, a comissão serviu para
atender parcialmente as demandas por esclarecimentos e pela verdade histórica, sem atingir
frontalmente os militares.
A presidente Dilma Rousseff nomeou os sete membros da CNV e, sem exceções, os
nomeados apresentaram trajetórias de sucesso profissional em suas respectivas áreas, contudo,
alguns sem tanta familiaridade com os direitos humanos. As nomeações foram feitas sem uma
consulta prévia as famílias dos mortos e desaparecidos e organizações de direitos humanos.
Os seus integrantes encontraram dificuldades em dirigir um trabalho unitário de colegiado,
fragmentando o trabalho, o que levou, por exemplo, a prorrogação do prazo de entrega do
relatório final. Essa situação, abertamente apresentada na imprensa, desmonta a tese da direita
conservadora que aponta todos os membros do colegiado como esquerdistas radicais, o que
está enormemente distante da realidade.
A CNV teve um papel importante por ter colocado a questão dos direitos humanos em
pauta nas discussões nacionais. Desde a redemocratização, é salutar compreender que foi
nestes últimos anos que os direitos humanos mais receberam atenção oficial no Brasil,
tornando-se, em certa medida, um tema recorrente na imprensa. A instituição da Comissão
Nacional da Verdade impulsionou a formação de uma rede ampla de comissões dedicadas a
colocar a ditadura no banco dos réus da história, criadas no âmbito do poder público dos
Estados, universidades, sindicatos, organizações e entidades como OAB e UNE. A CNV não
conseguiu se firmar como protagonista e dirigente deste movimento, nem estabeleceu
90
institucionalmente um mecanismo de compartilhamento de dados e investigações que
agrupasse e organizasse sistematicamente os trabalhos das demais comissões.
Apesar de um saldo positivo dos trabalhos da CNV, a postura não colaborativa das
Forças Armadas não contribuiu para o processo de reconciliação nacional. Os militares não
pediram desculpas pelos crimes cometidos, não reconheceram os abusos praticados e, por
vezes, negaram colaborar com a CNV. O Governo, por sua vez, foi vacilante e não endossou
como deveria os trabalhos da comissão. Renan Quinalha, sintetiza essa relação:
Os mesmos acordos e a lógica da governabilidade que possibilitaram a instituição da
CNV de acordo com o pacto da reconciliação também selaram os limites do seu
funcionamento. O que nenhum governo democrático teve força ou vontade política
para fazer ficou relegado à comissão: alterar a correlação de forças com os setores
que sustentaram a ditadura para aprofundar a democratização do Estado e da
sociedade, submetendo as corporações militares ao poder civil (QUINALHA, 2015,
p.11).
A Comissão Nacional da Verdade cumpriu seu papel institucional, dentro dos limites
que lhes foram impostos. Deve-se considerar o trabalho da comissão como exitoso: os sete
objetivos elencados pela lei que a criou foram alcançados, senão em sua totalidade, ao menos
parcialmente. O que a CNV não conseguiu atingir foram os objetivos desejados pelos
familiares dos mortos e desaparecidos e militantes de direitos humanos. A esperança
depositada pela parcela da sociedade não foi alcançada e este demérito não pode ser creditado
ao colegiado nomeado pela então presidente Dilma, mas à conjuntura política, ao entulho
autoritário persistente e à postura do próprio Governo, que poderia ter ido mais a fundo no
debate e nas medidas de responsabilização e punição dos que permanecem impunes, frente
aos crimes de lesa-humanidade, imprescritíveis. O trabalho da CNV chegou ao seu fim ao
longo de trinta e um meses, mas a luta por verdade, memória e, em especial, justiça, devem
continuar, como a própria comissão preceitua. A luta pela punição de torturadores
provavelmente permanecerá como uma luta inglória, mas, pela memória dos que foram
objetivados pela ditadura militar brasileira, esta continua sendo uma bandeira que precisa ser
levantada.
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CAPÍTULO III: DEMOCRACIA E DIREITOS HUMANOS NO BRASIL: DESAFIOS
E POSSIBILIDADES
3.1 BRASIL, O PAÍS DAS VIOLAÇÕES
O Brasil é um país marcado pela violência. Os episódios de selvageria que
caracterizam o processo histórico brasileiro são muitos: entre a colonização e o fim do
império, o país viveu a ferocidade do genocídio indígena, adotou a escravidão como principal
modo de produção por quase quatro séculos, levando a morte milhões de negros e índios. A
história recente brasileira também possui as nódoas indeléveis de graves violações aos direitos
humanos. A ditadura militar que teve início em 1964 e perdurou por 21 anos, deixando como
legado uma tradição autoritária que se expressa nos níveis de letalidade da polícia, na
repressão contra movimentos sociais, no autoritarismo institucional. Entretanto, essa não é
uma realidade exclusiva do Brasil e muitos países, em especial na América Latina, sofrem
com os mesmo problemas. As problemáticas que envolvem a violência, o medo e a questão da
segurança tornam-se, cada vez mais, uma atual questão global.
Realizada na província da Cascais, em Portugal, a Conferência de Estoril, evento
internacional destinado a discutir os desafios da globalização, contemplou um debate sobre
segurança pública na edição de 2011, onde o escritor moçambicano Mia Couto apresentou um
texto intitulado Murar o Medo, onde aponta as consequências geopolíticas e os objetivos que
a narrativa do medo busca alcançar no mundo atual. Para o autor, o preço cobrado pela
construção simbólica do terror é alto: a justificativa para atrocidades. Enquanto a fome atinge
um em cada seis pessoas no planeta, gastou-se apenas em 2010, 1,5 trilhão de dólares
estadunidenses em armamentos militares. “Em nome da luta contra o comunismo cometeram-
se as mais indizíveis barbaridades. Em nome da segurança mundial foram colocados e
conservados no poder alguns dos ditadores mais sanguinários de toda a história”, afirmou
Couto.
Mia Couto fala das consequências catastróficas que a “construção do terror” levou ao
continente africano e cita as intervenções externas. “As elites africanas continuam a culpar os
outros pelos seus próprios fracassos”, classifica Couto, que também aponta como relevante o
debate sobre as violências praticadas contra minorias, em especial contra as mulheres: uma
92
em cada três mulheres foi ou será vítima de violência física ou sexual durante sua vida,
assegura o autor. O escritor moçambicano não atribui diretamente responsabilidades, contudo,
para o filósofo estadunidense Noam Chomsky, a brutal exploração das mulheres, incluindo a
prostituição forçada, seja pela situação social ou por outrem é: “característico dos milagres
econômicos nos reinos da democracia capitalista” (CHOMSKY, 2003, p.291). Para Chomsky,
o imperialismo norte-americano foi o projeto vitorioso dentro da lógica da globalização
capitalista e os frutos dessa vitória são despojos arrancados tanto do continente africano
quanto da América Latina e outros territórios.
Noam Chomsky cita o aumento significativo da pobreza no Chile na década de 1970 e
as violações de direitos humanos perpetradas contra trabalhadores no Brasil, após o golpe de
1964. Em ambos os países, a intervenção dos Estados Unidos da América foi determinante
para a ascensão e consolidação de ditaduras, regimes autoritários que se pautaram pelo
terrorismo de Estado em guerra contra a sociedade civil, responsáveis pelo alto grau de
violência praticado contra opositores políticos. É evidente que Chomsky não é o único a
creditar um conjunto de mazelas sociais, problemas econômicos e guerras em países pobres
ou subdesenvolvidos à intervenção dos EUA. O historiador estadunidense Mike Davis
classifica os EUA como uma “nova Roma” e aponta diretamente o imperialismo do referido
país como responsável pela morte de meio milhão de crianças no Iraque, como resultado de
sanções impostas ao país. Davis cita intervenções “desastrosas” dos EUA no mundo árabe,
Irã, Iraque, Afeganistão, Indonésia, Arábia Saudita, Marrocos e Emirados Árabes.
Estabelecendo um diálogo entre Mia Couto, Chomsky e Mike Davis, é possível
caracterizar com precisão a quem serve a narrativa do medo, que evoca e conjuga liberdade e
segurança numa equação que raramente resulta em tempos de paz. “Eis o que nos dizem: para
superarmos as ameaças domésticas, precisamos de mais polícia, mais prisões, mais segurança
privada e menos privacidade. Para enfrentarmos as ameaças globais, precisamos de mais
exércitos, mais serviços secretos e a suspensão temporária da nossa cidadania”, cita Couto.
Mike Davis tem o mesmo entendimento. “Em nome da nossa segurança, é preciso
transformar o mundo exterior em zona de tiro para a CIA” (DAVIS, 2008, p.26). Para
Chomsky, a política externa dos EUA tem trabalhado, por vezes, no sentido de conter a
democracia. Davis afirma que o povo norte-americano não pode ser responsabilizado pelas
decisões tomadas pelo governo e critica ainda a narrativa diplomática estadunidense, que se
93
vale do termo “liberdade” para justificar o papel do país em interferências na periferia do
capitalismo.
Para preservar o controle sobre a economia mundial, prostituíram o nome da
liberdade para apoiar a dominação de bilionários sobre os pobres. Tudo isso e muito
mais, no entanto, foi feito em nome do povo norte-americano. “Made in USA” é a
marca que se vê em alguns dos episódios mais sinistros da história recente (DAVIS,
2008, p. 25).
Geralmente, os discurso políticos hegemônicos, que se pautam pela defesa da
segurança, elegem um malfeitor que deve ser obliterado e coincidem com a paulatina perda de
liberdades individuais e garantias democráticas, na busca pelo objetivo delimitado: o
aniquilamento do “inimigo” para a aquisição da segurança para o corpo social. Em nome do
combate ao comunismo internacional, os EUA trabalharam para erguer e manter ditaduras que
se espraiaram pela América Latina em meados do século XX. Em nome do combate às armas
nucleares, invadiu-se o Iraque recentemente. Hoje, no Brasil, justifica-se o aniquilamento de
jovens negros da periferia em nome do combate ao crime organizado.
Não por coincidência, entre os anos 1950 e 1960, registrou-se um fluxo de
investimentos direitos dos EUA na América Latina na cifra de 3,8 bilhões de dólares e neste
mesmo período, houve a transferência aos cofres estadunidenses de 11,3 bilhões, resultando
no lucro líquido de 7,5 bilhões (COGGIOLA, 2014). No Iraque, empresas americanas
comandam a reconstrução da indústria petrolífera, ao tempo que o setor armamentista e suas
principais empresas, Lockheed Martin, Raytheon, Northrop Grumman e General Dynamics,
respondem por 40% das armas comercializadas no planeta, somando juntas 105 bilhões de
dólares em contratos com os EUA. No Brasil, o colapso do sistema prisional e a superlotação
com um déficit acima de 250 mil vagas em presídios, justificam o forte avanço de
privatizações das prisões e consequente e inevitável, privatização da justiça. Neste sentido, é
importante ressaltar dois elementos caracterizados no debate sobre segurança. Primeiro, o
discurso do terror e do medo são produzidos propositalmente para justificar medidas que não
corroboram para a constituição de uma cultura de paz. Segundo, a existência de uma relação
entre a economia globalizada e o encarceramento em massa de classes populares nas
Américas.
94
A historiadora Nashla Dahás (2015) retoma o pensamento do sociólogo Zygmunt
Bauman e mostra como a globalização econômica e a reorganização do Estado a partir dos
anos 1970, com a desmobilização do Estado de bem-estar social, o surgimento de novas
políticas punitivas e a volatilidade dos deslocamentos de investimentos, capitais financeiros e
bases industriais por todo planeta, acabou por produzir uma economia que gerou párias da
miséria, marginalizados em periferias que ocupam cada vez mais as prisões. Dahás traça um
paralelo entre a miséria produzida pela economia globalizada e o crescimento da população
carcerária na maior parte dos países. Os Estados Unidos, por exemplo, tem a maior população
carcerária do mundo, somando mais de 2 milhões de encarcerados, em sua maioria negros e
pobres. O Brasil tem a 4ª maior população carcerária do globo, são mais de 600 mil presos de
um sistema prisional completamente falido e caduco, marcado por repetidas violações aos
direitos fundamentais dos apenados.
A ação violenta da polícia, em desrespeito ao conjunto de direitos civis e liberdades
individuais, é um dado apontado por Nashla Dahás, que elucida que as ações mais repressivas
do maquinário de coerção do Estado são justamente contra os mais pobres e vulneráveis. “A
policia tente a agir como guarda de fronteira entre ricos e pobres” (DAHÁS, 2015, p.40). A
historiadora também afirma que os estabelecimentos prisionais servem como política de
aniquilamento das parcelas sociais empobrecidas que estão à margem dos circuitos
econômicos e aponta que o a superação de regimes autoritários e o retorno da democracia
formal nos países da América Latina, não teve efeito efetivo na abolição de práticas violentas
e ilegais, como a tortura e o desaparecimento forçado:
Embora os direitos à vida, à liberdade e à integridade pessoal sejam reconhecidos
pela maioria das sociedades modernas, e a tortura e a discriminação racial sejam
consideradas crimes, a violência oficial continua, compondo o retrato mais fiel do
fracasso dessas democracias no que diz respeito ao controle legitimo da violência. A
volta do constitucionalismo democrático na América Latina teve efeito mínimo na
erradicação das práticas autoritárias dessas sociedades. Os governos civis não tem
obtido êxito em proteger os direitos fundamentais de segmentos especialmente
vitimados. Hoje o principal alvo da arbitrariedade policial são os mais vulneráveis: o
pobre e o negro, o trabalhador rural e o sindicalista, os grupos minoritários, as
crianças e os adolescentes abandonados, os usuários de drogas, os detentos que
superlotam as penitenciárias. A prisão arbitrária e a tortura tornaram-se práticas
95
policiais muito comuns em quase toda a América Latina e os homicídios
extrajudiciais são chocantemente corriqueiros, inclusive o assassinato de meninos de
rua por policiais fora de serviço e a repressão aos trabalhadores rurais em luta por
terra e por direitos trabalhistas no norte e no nordeste brasileiros. O Brasil é um
exemplo cruel de como a má distribuição de renda pode se refletir nas taxas de
crimes e de violência oficial (DAHÁS, 2015, p. 39-40).
Além dos altos níveis de violência oficial e os numerosos casos de violações de
direitos humanos na América Latina, é importante perceber que os índices de apoio à
democracia como regime político, recentemente caíram na região. O Latinobarómetro, um
amplo estudo que já tem 21 anos e contemplou 20 mil pesquisas realizadas nos 18 principais
países da América Latina, constatou que o apoio a democracia na região caiu de 56% em 2015
para 54% em 2016. Neste cenário de crescimento do descrédito na democracia, o Brasil ocupa
uma posição que inspira cuidados. Em artigo que comenta o estudo, publicado pelo El País,
se relata que: “O Brasil lidera o pessimismo com a democracia: o apoio a esta forma de poder
diminuiu 22 pontos porcentuais no país, passando de 54% em 2015 para 32% neste ano.
Numa lista de 18 países, o Brasil é o segundo país mais pessimista, à frente apenas da
Guatemala (30%)” (CUÉ, 2016).
O estudo produzido pelo Latinobarómetro indica que uma das razões do descrédito
recente com a democracia ocorre em virtude das crises econômicas e o consequente alto
índice de desemprego. No Brasil, além dos problemas econômicos, soma-se uma trajetória
histórica de violações que o tornam, o país da punição por excelência.
Os contornos do direito moderno, o qual surgiu no século XVIII, lançaram uma nova
compreensão sobre as execuções das penas e as injustiças advindas destas. Em 1764, Cesare
Beccaria publicou Dos delitos e das penas, uma obra que contestava a esfera punitiva do
direito na Europa e teve importante influência nos modelos punitivos que se adotavam até
então. O cárcere passa ser entendido não apenas como ação punitiva, mas o espaço no qual o
criminoso poderia se reabilitar como individuo sociável. “O horror do dilaceramento da carne
humana, da tortura, do sangue jorrado em praça pública cedeu lugar ao confinamento: dentro
dos muros da prisão, a aplicação do Direito traria benefícios ao corpo social” (PEDROSO,
2015, p.16).
96
As mudanças que ocorreram por força do pensamento jurídico moderno influenciaram
nas medidas que foram adotadas por D. Pedro II, no Brasil. Os castigos corporais cederam
espaço para a privação da liberdade como castigo por excelência e iniciativas que destinavam
atividades laborais aos presos foram esboçadas como expressão dos modernos sistemas penais
da Europa e EUA. Apesar de avanços na modernização do sistema punitivo brasileiro, o
encerramento não deixou de ter um claro recorte de classe e as violações praticadas no interior
dos presídios ou “casas de correção” não desapareceram ao longo do século XIX, não
cessaram com o advento da República e permanecem atualmente. Sobre o encarceramento
brasileiro durante o Império, pode-se afirmar que, ainda hoje, perdura uma herança dessa
experiência. A historiadora Marilene Antunes, descreve:
O encarceramento no caso brasileiro, não se limitava àqueles ideais da modernidade
penal: a prisão tornava-se um grande deposito de grupos que demandavam
vigilância por parte do governo imperial, reproduzindo de forma mais aguda as
relações de poder daquela sociedade, além de presos sentenciados, eram enviados
para a Casa de Correção mendigos, loucos, menores e vadios – todo aquele que,
segundo o Código Criminal de 1830, “não tinham ocupação honesta e útil de que
possa subsistir” (...) Também permaneciam reclusos, sob o controle do Estado,
escravos em depósito ou já vendidos, à espera das disposições finais da justiça. (...)
Em São Paulo, uma Casa de Correção abriu suas portas em 1852. Na Bahia, a Casa
de Prisão com Trabalho foi inaugurada em 1861. Os lugares escolhidos eram sempre
áreas distantes do núcleo central da cidade, para onde se levavam condenados ou
pessoas aguardando julgamento, além de órfãos e menores “vadios”, escravos e
africanos livres (SANT’ANNA, 2015, p. 12-14).
Apesar do déficit prisional brasileiro, parte majoritária da população reconhece os
problemas do sistema prisional, mas não deseja e até repudia a construção de presídios em
suas cidades. Os presos não são vistos como cidadãos e devem desaparecer da vista da
população. No século XX, a rejeição popular levou os sucessivos governos brasileiros a
constituírem os presídios longe das cidades, uma prática antiga e recorrente, que expressa uma
política de higienização social. O exemplo mais claro desta política foi a utilização da ilha de
Fernando de Noronha, localizada a cerca de 543 quilômetros de Recife, como depósito de
apenados. A ilha tornou-se a maior colônia penal do país em 1737, sob a gestão do Império.
Na primeira administração de Getúlio Vargas, Fernando de Noronha foi utilizada como lugar
97
de exílio para presos políticos, tendo sua prisão definitivamente fechada somente em 1957,
como afirma o historiador Peter Beattie (2015).
Os problemas no sistema prisional brasileiro só se avolumaram com o tempo, os
excessos de violência praticados por agentes do Estado no interior das prisões, as negações de
direitos fundamentais, as péssimas estruturas sanitárias prisionais, um sistema jurídico que é
incapaz de assegurar justiça em condições de igualdade entre classes sociais distintas foram e
são alguns dos principais elementos, que forjaram o sistema penal brasileiro. As mazelas
enfrentadas por apenados: além da privação da liberdade, doenças e violência, motivaram
fugas e rebeliões. As fugas de presos das prisões permanecem como um problema atual, esta
problemática desperta os sentimentos de medo e insegurança na população, demonstram os
vários casos de corrupção policial e a negligência e incompetência do Estado na tutela de
apenados.
As prisões brasileiras, ao lado das periferias das grandes cidades, se converteram nos
principais centros de violações de direitos humanos e as reações dos grupos sociais, por vezes
brutalizados pela coerção institucional, resulta no agravamento da violência. O historiador
Dirceu Franco Ferreira (2015) cita a primeira grande rebelião e fuga em massa no Brasil,
ocorrida na ilha Anchieta, no litoral norte do Estado de São Paulo, em 1952. É importante
esclarecer que o Instituto Correcional da Ilha Anchieta (ICIA) era marcado pela fome,
alimentação de baixa qualidade e insuficiente, espancamento constante de presos e
atendimento médico precário, por péssimas condições de vida e as longas penas a serem
cumpridas, foram as razões que motivaram a rebelião e a fuga em massa. A crise aberta com a
rebelião tornou imperativa a ação do Estado, que respondeu à situação, elevando a carga de
repressão. O processo de pacificação do ICIA contou com assassinatos, execuções sumárias,
tortura e espancamentos. O resultado da opção que o Estado brasileiro tomou para lidar com a
questão dos presídios só teve como consequência a superlotação carcerária, o aumento da
repressão institucional e o agravamento da violência nas suas mais diferentes manifestações.
Observando apenas os dados de São Paulo, onde, em 1952, registramos a primeira
grande rebelião no país, veremos um aumento significativo da população carcerária. No
intervalo de dez anos, a população custodiada cresceu seis vezes, saltando de 1.027 reclusos
em 1949, para 6.066 em 1959, como indica Franco Ferreira (2015). O Estado brasileiro
constituiu ao longo do seu processo histórico um modus operandi autoritário, repressor e
98
violento, para tratar da questão do preso. As formas como o Estado conduziu suas ações no
campo da justiça penal constituíram um modelo penal ineficiente, marcado pela superlotação
carcerária e sua incapacidade de ressocializar e reintroduzir o apenado na sociedade. A
negação sistemática de direitos e o autoritarismo que impera entre as instituições de justiça do
país, constituem um permanente de estado de exceção, como aponta Dirceu Franco Ferreira:
Sem incorrer no risco de exagerar o peso do autoritarismo em nossa sociedade,
pode-se afirmar que na área penal vive-se em permanente estado de exceção. Entre a
rebelião na ilha Anchieta, em 1952, e o massacre do Carandiru 40 anos depois, o
cenário continuou o mesmo. A maior parte da população custodiada até hoje não
tem acesso à justiça e aos direitos básicos de cidadania. Os detentos seguem se
rebelando, e o estado insiste na mesma resposta: violência desproporcional dos
agentes de repressão e endurecimento do regime penal (FERREIRA, 2015, p. 29).
A crueza do Estado de exceção brasileiro e seu modelo penal permanecem,
atualmente, como uma máquina draconiana de moer gente pobre. O alcance desta máquina
não se limita aos homens presos. Ela atinge crianças, adolescentes, mulheres e idosos. Os
casos de policiais que atiram e matam crianças e adolescentes, em áreas periféricas, são
muitos e se multiplicam recentemente. No bairro de São Caetano, em Salvador, Bahia, Mirela
do Carmo Barreto, de apenas seis anos, foi morta na noite do dia 17 de março de 2017,
atingida por uma bala letal disparada por policiais. Segundo as informações da Secretaria de
Segurança Pública, os policiais que participaram deste episódio estavam em diligência e
seguiam o GPS de um celular roubado, quando foram surpreendidos por bandidos que
dispararam contra os policiais, dando início ao tiroteio.
A máquina de repressão do Estado brasileiro se bate contra crianças e adolescentes.
Basta observar o genocídio da juventude negra nas periferias das grandes cidades. O discurso
ideológico conservador estigmatiza o “menor”, justifica a ação virulenta da polícia contra
adolescentes e considera o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), um empecilho para o
estabelecimento da ordem e de uma suposta moral. O Brasil, somente em 1990, com a
promulgação do ECA, reconheceu os direitos dessa parcela da população compreendida como
jovens e adolescentes. Além de um reconhecimento tardio desses direitos, o país ainda não
logrou êxito em efetivá-los. “A categoria ‘menor’ acabou ganhando notoriedade como
99
expressão estigmatizadora: circunscrevia o horizonte de crianças e adolescentes pobres ou
abandonados das grandes cidades à fatalidade do trabalho precoce ou da delinquência”
(ALVAREZ; LOURENÇO, 2015, p.32).
Os dados coligidos do começo do século XXI, sobre crianças em situação de risco no
Brasil, mostram que, em 2002, para cada dez crianças, uma trabalhava. Nos últimos anos,
com o avanço de políticas sociais, a situação de miséria em que parte considerável da
população brasileira estava inserida, foi mitigada, contudo, a efetivação dos direitos das
crianças e adolescentes ainda é um objetivo a ser perseguido. Segundo, Susane Rocha de
Abreu:
São 866 mil crianças de até 14 anos alistadas como trabalhadoras no país, sendo que
esse número inclui apenas as crianças que trabalham nas piores modalidades de
trabalho infantil, segundo a Organização Internacional do Trabalho, como o trabalho
escravo ou forçado, a venda e o tráfico de crianças, as atividades ilícitas (como a
produção e o tráfico de drogas), os trabalhos perigosos à saúde ou à segurança de
crianças (como trabalhos em carvoarias, no corte de cana, na fabricação de tijolos
etc.), entre outros. Estão excluídas dessas estatísticas, por exemplo, as prostitutas
mirins e as milhares de crianças, geralmente meninas, que fazem trabalhos
domésticos no Brasil (ABREU, 2002, p.5).
A condição de miséria em que está mergulhada uma parcela significativa de crianças,
adolescentes e suas famílias, frente a uma situação que mescla altos índices de desigualdade e
um forte autoritarismo exercido pelos mecanismos de segurança do Estado findam por
impedir a efetivação dos direitos humanos das juventudes, como coloca em risco a vida de
milhares de jovens pobres. Nenhuma polícia de um país civilizado do mundo mata mais do
que a polícia do Rio de Janeiro e muitas dessas mortes são registradas como “autos de
resistência”, ocorrentes em que, supostamente, a polícia agiu em legitima defesa ou no intuito
de “vencer a resistência” de suspeitos de crimes. Os “autos de resistência” são herança da
ditadura militar. Foram e são utilizados para designar mortes resultantes de ocorrências
policiais. “No ano de 2007, os autos de resistência atingiram seu ápice: foram contabilizadas
1.330 casos no estado do Rio. Alguns dados surpreendem, como o alto número de “menores”,
ou seja, crianças e adolescentes que supostamente resistiram à ação policial e foram mortos”
(MISSE; GRILLO; NERI, 2015, p. 56).
100
Missi, Grillo e Neri (2015) consideram o procedimento administrativo conhecido
como “auto de resistência”, criado em 1969 pela Superintendência de Polícia do então Estado
da Guanabara, no ápice da repressão política promovida pela ditadura militar, como uma
licença legal para matar, ancorado no imperativo moral de “matar bandido”. Este é apenas um
dos mecanismos institucionais do Estado, que é parte da herança institucional da ditadura e
ainda está em plena vigência, apesar das vítimas que produz, especialmente nas periferias. A
opressão que o Estado exerce contra grupos marginalizados, como indígenas, sem-terra,
apenados, mulheres, comunidade LGBT e jovens compõe um extenso cenário de violações
que não poderia ser abordado neste trabalho em sua totalidade. Entretanto, é vital abordar
parcialmente essas questões para entender que o trabalho da Comissão Nacional da Verdade
não é voltado exclusivamente para o passado histórico brasileiro, mas em especial para o
presente.
Neste sentido, vale destacar que a efetivação dos direitos humanos no Brasil ainda se
apresenta como uma realidade distante e que as recomendações da Comissão Nacional da
Verdade buscam não apenas reparar abusos cometidos durante a ditadura, mas evitar que o
Estado continue a violar direitos fundamentais. Para tal, a CNV, constituiu suas conclusões e
recomendações, na busca da promoção dos direitos humanos, com avanços nos marcos legais
do país.
3.2 CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES DA CNV
Um dos principais objetivos da Comissão Nacional da Verdade foi apresentar as
conclusões de seu trabalho, atendo-se as atividades realizadas e os fatos examinados,
expressos no relatório circunstanciado da comissão, oferecendo recomendações como estava
previsto no artigo 3º, que definia então seus objetivos, tal como: “recomendar a adoção de
medidas e políticas públicas para prevenir violação de direitos humanos, assegurar sua não
repetição e promover a efetiva reconciliação nacional” (CNV, 2014, p. 962).
No marco de suas atribuições institucionais a CNV apresentou suas principais
conclusões, versadas quatro pontos: [1] – comprovação das graves violações de direitos
humanos; [2] – comprovação do caráter generalizador e sistemáticos das graves violações de
direitos humanos; [3] – caracterização da ocorrência de crimes contra a humanidade; e, [4] –
101
persistência do quadro de graves violações de direitos humanos. No que diz respeito as
recomendações apresentadas pela CNV, foram oferecidas vinte e nove recomendações,
divididas entre dezessete medidas institucionais, oito reformas constitucionais e quatro
medidas de seguimento de ações iniciadas, estimuladas ou indicadas pela comissão.
A primeira conclusão que a CNV alcançou foi a comprovação das graves violações de
direitos humanos, expressas e configuradas pelas práticas sistemáticas de “detenções ilegais e
arbitrárias e de tortura, assim como o cometimento de execuções, desaparecimentos forçados
e ocultação de da cadáveres por agentes do Estado brasileiro” (CNV, 2014, p. 962). A
comissão pôde documentar a ocorrência dessas graves violações entre 1946 e 1988,
notadamente com maior intensidade no período ditatorial de 1964 à 1985, coligindo através
de pesquisas as evidências irrefutáveis que comprovam os fatos e acontecimentos
comprobatórios de violações, minuciosamente detalhados no Relatório. Vale destacar que a
própria CNV pôde valer-se de um dados anteriormente colhidos por órgãos públicos,
entidades da sociedade civil, vítimas e seus familiares, o que contribuiu para a sequência do
trabalho da comisso.
No quadro de mortos e desaparecidos políticos da CNV, pôde ser comprovado 434
vítimas, entre mortos e desaparecidos. Frente as condições oferecidas a comissão e as
adversidades enfrentadas, como a não colaboração das Forças Armadas, este foi o número de
casos que a comissão conseguiu esclarecer, embora, o próprio relatório esclareça que os
números de vítimas supera os citados no próprio documento:
Esses números certamente não correspondem ao total de mortos e desaparecidos,
mas apenas ao de casos cuja comprovação foi possível em função do trabalho
realizado, apesar dos obstáculos encontrados na investigação, em especial a falta de
acesso à documentação produzida pelas Forças Armadas, oficialmente dada como
destruída. Registre-se, nesse sentido, que os textos do Volume II deste Relatório
correspondentes às graves violações perpetradas contra camponeses e povos
indígenas descrevem um quadro de violência que resultou em expressivo número de
vítimas. Esses números certamente não correspondem ao total de mortos e
desaparecidos, mas apenas ao de casos cuja comprovação foi possível em função do
trabalho realizado, apesar dos obstáculos encontrados na investigação, em especial a
falta de acesso à documentação produzida pelas Forças Armadas, oficialmente dada
como destruída. Registre-se, nesse sentido, que os textos do Volume II deste
102
Relatório correspondentes às graves violações perpetradas contra camponeses e
povos indígenas descrevem um quadro de violência que resultou em expressivo
número de vítimas (CNV, 2014, p. 963).
O número de pessoas afetadas diretamente pela ação do Estado durante a ditadura é
superior aos 434 mortos e desaparecidos, indicados pela CNV. Uma parcela significativa da
sociedade brasileira, espraiada entre os mais diferentes grupos, sofreram duras retaliações e
tiveram que suportar humilhações e ameaças. Apenas no ano go golpe militar, em 1964,
foram milhares de prisões arbitrárias registradas pelos próprios órgãos de segurança da
ditadura. No volume 2 do Relatório, que versa sobre as violações contra militares,
trabalhadores, camponeses, indígenas, religiosos de diferentes igrejas cristãs, dentre outros,
mostra um quadro ainda mais amplo do abrangência das ações da máquina de repressão do
Estado.
Os próprios policiais militares, após o AI-5 de 1968, sofreram dura repressão. 237
policiais militares, em dez estados da federação, foram demitidos ou reformados (CNV, 2014,
Vol. 2, p. 38). O número de exilados da Aeronáutica, Exército, Marinha e Forças Policiais,
somavam 278, num quadro de 2.692 exilados em 1979, ou seja, mais de 10% dos que
solicitaram abrigo em outros países, eram militares.
Tratando-se ainda da instituição do AI-5, a CNV indica um endurecimento da política
indigenista, mais agressiva. Além da criação de presídios para indígenas, o Plano de
Integração Nacional (PIN), publicado em 1970, baseava-se na construção de estradas e na
ocupação da Amazônia, ignorando as nações indígenas que habitavam aquele território e
elegendo a Transamazônica como principal obra, tal como das BR 163, 174, 210, 374, o que
simbolizava mais de 2 milhões de quilômetros quadrados de terras expropriadas, cortando
terras de 29 etnias indígenas, acarretando em remoções forçadas. Para a execução do
programa com a colonização desejada, a Funai assumiu um papel avesso ao indicado por sua
missão institucional. A Funai, dirigida pelo general Bandeira de Mello, “firmou um convênio
com a Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) para a “pacificação de 30
grupos indígenas arredios” e se tornou a executora de uma política de contato, atração e
remoção de índios de seus territórios” (CNV, 2014, Vol. 2, p. 209).
O projeto de ocupação territorial da ditadura, esteada por um grande aparato de
repressão, foi direcionado contra o povo indígena, causando desaparecimentos, mortes e a
103
ocupação de terras tradicionais. Esta ação de tomada de territórios, nomeada de “pacificação”
pelo Plano de Integração Nacional (PIN), foi patrocinada pela Funai e “legaram ao povo
Parakanã, por exemplo, cinco transferências compulsórias entre 1971 e 1977, além da morte
de 118 indígenas, o equivalente a 59% da população original”, já em 1970, “cerca de 700
Parakanã foram transferidos de seu território tradicional, entre os rios Tocantins e Xingu”
(CNV, 2014, Vol. 2, p. 229).
A influência e a repressão que a ditadura exerceu se fez presente na Amazônia entre os
indígenas, entre os trabalhadores nas fábricas e grandes empresas e até mesmo nas igrejas.
Entre 1968 e 1978, foram presos 273 cristãos engajados no trabalho pastoral da igreja
católica, como mostra os dados do Centro Ecumênico de Documentação e Informação
(CEDI):
104
TABELA 03 – Demonstrativo de prisões de cristãos
Fonte: CNV, 2014 (Vol. 2, p. 168)
Vale destacar que as ações que foram impetradas contra clérigos e cristãos na igreja,
não se resumiram apenas as prisões arbitrarias, as expulsões, banimentos e o posterior exilio
em vários países, alcançaram padres, frades, diáconos, teólogos e outros cristãos, que
mantinham relações com o trabalho de base junto aos trabalhadores urbanos e rurais. Entre
1964, anos do golpe, e 1981, essas ações foram registradas:
105
TABELA 04 – Demonstrativo de clérigos e leigos excluídos
Fonte: CNV, 2014 (Vol. 2, p. 175-176)
Esse quadro de violações, além dos mortos e desaparecidos registrados, mostra que as
ações da ditadura foram extensivas a um grande número de grupos sociais e não deve ser
analisada somente pelo número de cadáveres que constam oficialmente. Entretanto, a
comprovação circunstanciada das vítimas fatais da repressão, são de suma importância para
descartar definitivamente a tese de que o resultado da tortura e da morte se deu em virtude dos
“arroubos” de grupos mais sádicos. A ação da ditadura foi danosa e como comprova a
segundo conclusão do Relatório da CNV, teve um caráter generalizado e sistemática no
106
tocante as graves violações de direitos humanos. Sob uma perspectiva binária, a ditadura
operou para aniquilar opositores e montou todo um aparato para esta finalidade, como versa a
segunda conclusão do Relatório:
Conforme se encontra amplamente demonstrado pela apuração dos fatos
apresentados ao longo deste Relatório, as graves violações de direitos humanos
perpetradas durante o período investigado pela CNV, especialmente nos 21 anos do
regime ditatorial instaurado em 1964, foram o resultado de uma ação generalizada e
sistemática do Estado brasileiro. Na ditadura militar, a repressão e a eliminação de
opositores políticos se converteram em política de Estado, concebida e
implementada a partir de decisões emanadas da presidência da República e dos
ministérios militares. Operacionalizada através de cadeias de comando que, partindo
dessas instâncias dirigentes, alcançaram os órgãos responsáveis pelas instalações e
pelos procedimentos diretamente implicados na atividade repressiva, essa política de
Estado mobilizou agentes públicos para a prática sistemática de detenções ilegais e
arbitrárias e tortura, que se abateu sobre milhares de brasileiros, e para o
cometimento de desaparecimentos forçados, execuções e ocultação de cadáveres. Ao
examinar as graves violações de direitos humanos da ditadura militar, a CNV refuta
integralmente, portanto, a explicação que até hoje tem sido adotada pelas Forças
Armadas, de que as graves violações de direitos humanos se constituíram em alguns
poucos atos isolados ou excessos, gerados pelo voluntarismo de alguns poucos
militares (CNV, 2014, p. 963).
O caráter generalizado do terrorismo de Estado adotado pela ditadura contra a
sociedade é uma conclusão que se alicerça na ampla pesquisa realizada pela CNV. As mais 40
mil prisões arbitrárias ocorridas apenas em 1964 é um dado concreto. Os locais associados as
graves violações de direitos humanos constituíam uma cadeia de escala nacional de repressão,
estiveram presentes em vinte e dois estados e em todas as regiões do Brasil, respondendo as
cadeias de comando que partiam das altas esferas do poder executivo. Nos estados do Rio de
Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, havia oitenta e oito locais onde as ocorrências de tortura,
prisões arbitrárias, desaparecimentos e execuções, foram registradas. O mapa abaixo,
apresenta esse quadro.
107
FIGURA 03 - Locais de graves violações de direitos humanos (1964-1985)
Fonte: CNV (2014, p. 830)
A quarta conclusão da Comissão Nacional da Verdade, aponta que os crimes
cometidos por militares ou civis, contra os mais diferentes setores sociais, constitui um ataque
do Estado contra a população civil e sob as condições de serem atos desumanos, praticados
sistematicamente, caracterizam-se por crimes contra a humanidade, ferem “normas
imperativas internacionais – ditas de jus congens, o direito cogente, inderrogável e
peremptório” (CNV, 2014, p. 963). Nestes termos, como crimes de lesa-humanidade, os
ilícitos como prisão arbitrária ou ilegal, tortura, desaparecimento forçado, execução sumária
108
ou assassinato político e ocultação de cadáver, cometidos por agentes do Estado, são
imprescritíveis e portanto não podem ser anistiados. Esta conclusão da CNV, corrobora com o
entendimento dos mecanismos de justiça internacional, entre eles a Corte Interamericana de
Direitos Humanos.
A quinta e última conclusão da CNV, indica que o quadro de violações aos direitos
humanos persistem na realidade brasileira contemporânea e entende que a permanência desta
situação ocorre em parte pela impunidade com que o país tratou e trata esse dramático estado
de coisas. “Esse quadro resulta em grande parte do fato de que o cometimento de graves
violações de direitos humanos verificado no passado não foi adequadamente denunciado, nem
seus autores responsabilizados, criando-se as condições para sua perpetuação” (CNV, 2014, p.
964).
Sobre a persistência de um amplo quadro de violações, o nível de letalidade da polícia
militar e a questão das prisões são dois elementos do drama social brasileiro, na realidade
atual do país. Para o sociólogo Rafael Godoi (2016) a “tortura difusa e continuada” persiste
como elemento central do repertório das práticas policiais, expressão do punitivismo
primitivo que o Estado adota na gestão de conflitos sociais e nas cadeias. “A persistência da
tortura no Brasil é explicada em termos históricos: uma herança do nosso longo passado
escravocrata e um legado da ditadura militar que a transição democrática não pôde apagar”
(GODOI, 2016, p. 7).
A sociedade brasileira, historicamente marcada pela violência e pela brutalidade,
registra continua e paulatinamente, o crescimento de mortes por homicídios, ostenta números
que assemelham-se aos de países em guerra civil. O Subsistema de Informação sobre
Mortalidade (SIM), vinculado ao Ministério da Saúde, é o órgão do Governo que apresenta
dados oficiais sobre mortes no Brasil, desde 1979, sendo a fonte básica e mais segura sobre
essa temática. É debruçado sobre esses dados que Weifelfisz (2005), indica que entre 1979 e
2003, mais de meio milhão de pessoas foram vítimas de armas de fogo no país. Deste total,
206 mil mortos, eram jovens. A barbárie brasileira produz milhares de morto e desaparecidos,
especialmente entre jovens e pobres.
O Mapa da Violência 2016, lança no debate sobre segurança pública, uma
preocupação especial sobre o controle de armas de fogo no Brasil, ao tempo que demonstra
como o crescimento da violência é uma realidade assustadora, o que corrobora o
109
entendimento que as políticas policialescas adotadas pelo Estado, não tem surtido efeito no
sentido de amenizar ou reverter esse quadro. Weifelfisz (2015), mostra que entre 1980 e
2014, morreram perto de 1 milhão de pessoas, o que representa um crescimento de 415,1% de
mortes no período indicado. Apesar do alto número de armas não registradas e nas mãos de
criminosos, o aparato oficial de coerção do Estado, sustenta um comprovado índice de
letalidade já que “95% da utilização letal das armas de fogo no Brasil tem como finalidade o
extermínio internacional do próximo” (WEIFELFISZ, 2015, p. 15).
Em 2014, 44.861 pessoas foram vítimas por armas de fogo no país, deste total, apenas
372 foram caracterizadas como acidentes. Além do alto número de mortos, os
desaparecimentos forçados e a ocultação de cadáveres como tática de repressão da ditadura,
persistem nas práticas de milicianos, traficantes e policiais. O caso do ajudante de pedreiro,
Amarildo Dias de Souza, ocorrido em julho de 2013, é emblemático: o inquérito da Policia
Civil concluiu que Amarildo foi torturado e morto, mas seu corpo nunca apareceu e 25
policiais de uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) do Rio de Janeiro, foram acusados de
participação no crime. Amarildo, tornou-se um símbolo dos desaparecidos e da letalidade
policial, mas este não é um caso isolado. “Estima-se que no Brasil, desaparecem anualmente
entre 40 mil e 50 mil pessoas” (ARAÚJO, 2015, p. 63).
O quadro de violações de direitos humanos que foi produzido pelo terrorismo de
Estado na ditadura, não apenas persistiu até os dias atuais, como ampliou-se. Sem o
imperativo ideológico da guerra ao comunismo e aos subversivos, a violência oficial buscou
outros pretextos e justificativas morais, tais como a guerra as drogas e ao crime. O alvo da
ação repressora do Estado na ditadura teve um recorte político claro, atingindo setores da
esquerda e do campo progressista, hoje a ação policial tem sido voltada contra as camadas
populares, mas também contra movimentos sociais, reprimindo greves, manifestações,
ocupações de terra, dentre outras atividades políticas. O Estado brasileiro não afiança as
garantias e direitos fundamentais que são alicerce da democracia, é histórica a negação dos
direitos mais elementares, mas avolumam-se no governo vigente, práticas e posturas
autoritárias. Homero de Oliveira Costa (2016), caracteriza este cenário:
O que se observa é o recrudescimento do Estado penal e de um processo de
criminalização dos movimentos sociais, que antecede este governo. No entanto, é
fato que vão se acumulando ocorrências do emprego de medidas que sinalizam uma
110
perigosa escalada antidemocrática. As violações à Constituição, as agressões à
democracia se banalizam. Retiram-se direitos e se afronta o Estado democrático de
Direito. Dessa forma, um Estado cada vez mais autoritário vai ganhando espaço,
fenômeno que se expressa numa tendência crescente de suspensão do direito de
reunião e de manifestação política, em abusos de poder e de autoridade. E esse
fenômeno não é específico do Brasil (COSTA, 2016).
Diante de um cenário onde as violações de direitos humanos persistem, a CNV
elaborou as vinte e nove recomendações que encerram o primeiro volume de seu Relatório. A
comissão recebeu sugestões de órgãos públicos, entidades da sociedade civil e cidadãos,
condensando e sintetizando as propostas apresentadas. Foram oferecidas, em agosto e
setembro de 2014, 399 propostas de recomendações.
As recomendações apresentadas pela comissão tem o intuito de acabar ou amenizar
situações degradantes, aperfeiçoar e modernizar o aparato legal em sintonia com os
fundamentos internacionais dos direitos humanos e garantir avanços na promoção de valores
democráticos para o país, portanto é difícil fazer um recorte ou seleção das principais
indicações da CNV. Neste sentido, apresentamos todas, detendo-nos em mais detalhes em
algumas determinadas recomendações, como será possível observar.
As primeiras recomendações indicadas pela CNV foram as Medidas Institucionais e
as seis primeiras propostas apresentadas pela comissão, foram destinadas diretamente às
forças de segurança. A primeira recomendação pede o reconhecido pelas Forças Armadas, de
sua responsabilidade institucional pela ocorrência de graves violações de direitos humanos na
ditadura (1964 - 1985), sem excluir a responsabilidade individual que pode recair sobre os
agentes públicos que tiveram conduta ilícita. O fato das Forças Armadas não reconhecerem
sua responsabilidade direta por milhares de tragédias ocorridas em função do terrorismo de
Estado perpetrado pela ditadura, deixa uma ferida aberta na história contemporânea brasileira
e impede a reconciliação nacional entre o povo brasileiro, suas instituições e história.
A segunda e a terceira recomendações, pedem respectivamente a responsabilização
jurídica dos agentes públicos que deram causa às graves violações de direitos humanos, tal
como, a aplicação de medidas administrativas que garantam “o ressarcimento ao erário
público das verbas despendidas” (CNV, 2014, p. 967) por agentes que foram autores de
práticas que ocasionaram na condenação do Estado brasileiro em função de violações aos
111
direitos humanos. Em relação a segunda recomendação, vale destacar que a CNV considera
nula os dispositivos da Lei de Anistia, para os crimes de lesa-humanidade. A recomendação é
clara:
[2] Determinação, pelos órgãos competentes, da responsabilidade jurídica –
criminal, civil e administrativa – dos agentes públicos que deram causa às graves
violações de direitos humanos ocorridas no período investigado pela CNV,
afastando-se, em relação a esses agentes, a aplicação dos dispositivos concessivos de
anistia inscritos nos artigos da Lei no 6.683, de 28 de agosto de 1979, e em outras
disposições constitucionais e legais
A CNV considerou que a extensão da anistia a agentes públicos que deram causa a
detenções ilegais e arbitrárias, tortura, execuções, desaparecimentos forçados e
ocultação de cadáveres é incompatível com o direito brasileiro e a ordem jurídica
internacional, pois tais ilícitos, dadas a escala e a sistematicidade com que foram
cometidos, constituem crimes contra a humanidade, imprescritíveis e não passíveis
de anistia (CNV, 2014, p. 965).
A quarta recomendação pede a proibição da realização de eventos oficiais em
comemoração ao golpe militar de 1963, compreendendo o ato como incompatível com os
princípios que regem o Estado democrático de direito. As quinta e sexta recomendações
trazem a preocupação da educação em direitos humanos junto as forças militares e pede
reformulações nos concursos e nas avaliações continuas das Forças Armadas e na área de
segurança pública, no sentido de valorizar os fundamentos da democracia e dos direitos
humanos, indicando também modificações no conteúdo das academias militares e policiais.
A sétima e oitava recomendações diz respeito a retificação da causa de morte no
assento de óbito de pessoas que foram vítimas de graves violações de direitos humanos, é
indicado que esta atualização também seja realizada nos sistemas de informação da justiça e
da segurança pública e de forma geral, em todos os registros públicos. “A manutenção dessas
informações penaliza vítimas de violações aos direitos humanos, quando sua condição de
vítima já foi, inclusive, objeto de reconhecimento pelo Estado brasileiro” (CNV, 2014, p.
968). Estas retificações atendem uma demanda por verdade histórica, reivindicada pelos
familiares de mortos e desaparecidos políticos e o reconhecimento do Estado de que as
112
pessoas alcançadas pelo braço da repressão eram vítimas e não criminosos, serve a memória
nacional e a democracia.
A nona e décima recomendações pede a criação de mecanismos para prevenção e
combate à tortura em todos os estados do Brasil, assim como a desvinculação dos institutos
médicos legais e órgão de perícia criminal das secretarias de segurança pública e das policias
civis, sendo indicado a criação nos estados de centros avançados de antropologia forense, que
possam realizar pericias com plena autonomia ante a estrutura policial, sendo, inclusive, capaz
de conferir melhor qualidade a provas técnicas.
O caso do atendimento de presos pelas Defensorias Públicas e a questão das prisões e
do sistema prisional são objeto e preocupação da 11ª, 12ª, 13ª e 14ª recomendações. A décima
primeira recomendação pede o fortalecimento das Defensorias Públicas, entendendo que o
contato do defensor público com o preso é “a melhor garantia para o exercício pleno do
direito de defesa e para a prevenção de abusos de direitos fundamentais, especialmente tortura
e maus-tratos” (CNV, 2014, p. 969). No Brasil, tortura e maus-tratos são práticas cotidianas
vividas no interior dos presídios, o número de pessoas detidas ainda sem acesso a advogados é
alto, tornando a demanda por justiça uma questão central dentro do sistema penal do país.
Neste esteio, busca-se nas recomendações 12ª, 13ª e 14ª, a significação do sistema prisional e
do tratamento dado ao preso, a criação de ouvidorias externas ao sistema penitenciário e o
fortalecimento dos Conselhos de Comunidade para acompanhamento dos estabelecimentos
penais. No marco da significação deste sistema prisional a CNV considera fundamentalmente
necessário abolir procedimentos humilhantes como a revista intima:
Entre outras medidas, é necessário abolir, com o reforço de expresso mandamento
legal, os procedimentos vexatórios e humilhantes pelos quais passam crianças,
idosos, mulheres e homens ao visitarem seus familiares encarcerados. Não se pode
mais obrigar todos os visitantes a ficar completamente nus e a ter seus órgãos
genitais inspecionados. Essa prática deve ser proibida em todo o território nacional
(CNV, 2014, p. 969).
Um dos resultados mais comuns da tortura, são as sequelas que elas deixam na vítima.
Esta lógica não se aplica somente à tortura física ou psicológica, mas também a outras formas
de graves violações. As investigações conduzidas pela CNV que resultaram no seu Relatório,
113
mostram os muitos casos de pessoas, inclusive crianças, que vivem com sérios problemas
psicológicos, traumas, fobias e transtornos. O caso de mulheres que sofreram violência sexual
e foram acometidas por doenças psicossomáticas são ilustrativas das implicações da violência
perpetrada pelo terrorismo de Estado. Em alguns casos, o resultado desses transtornos foi o
suicídio. Carlos Alexandre Azevedo, com apenas um ano e oito meses de vida, foi preso e
torturado, em 14 de janeiro de 1974, no Deops paulista e sua mãe, Dermi Azevedo, credita o
suicídio do jovem como sequela da tortura. “O suicídio é o limite de sua angústia” (CNV,
2014, p. 423). Neste sentido, a décima quinta recomendação indica a necessidade de garantir
atendimento médico e psicossocial permanente às vítimas de graves violações de direitos
humanos. “As vítimas de graves violações de direitos humanos estão sujeitas a sequelas que
demandam atendimento médico e psicossocial contínuo” (CNV, 2014, p. 970).
A promoção dos valores democráticos e dos direitos humanos na educação e o apoio à
instituição de órgão de proteção e promoção de direitos humanos, são as preocupações
pontuadas pelas duas últimas recomendações da CNV como medidas institucionais. A décima
sexta recomendação indica que haja a inclusão na estrutura curricular das escolas públicas e
privadas e universidades, conteúdos que contemplem “a história política recente do país e
incentivem o respeito à democracia, à institucionalidade constitucional, aos direitos humanos
e à diversidade cultural” (CNV, 2014, p. 970). A décima sétima recomendação, dentre outras
iniciativas, coloca a necessidade da criação e funcionamento de secretarias de direitos
humanos na esfera do poder público, nos estados e municípios.
No Brasil, o número de cidades com órgãos relacionados aos direitos humanos é
insuficiente, embora haja avanços nos últimos anos. A reportagem de Flavia Villela (2015)
pela Agência Brasil, revela que mais da metade dos municípios do país não tem órgão ou
estrutura administrativa vinculada a pauta dos direitos humanos, já nas 27 unidades da
Federação todos têm órgão responsável pela política de direitos humanos, entretanto apenas
Maranhão, Paraíba e Sergipe têm secretarias exclusivas. “Menos de 6% dos municípios
brasileiros têm conselhos municipais de Direitos Humanos. Entretanto, apesar de baixo, a
pesquisa mostra que o percentual é bem melhor que em 2009, quando apenas 1,4% das
cidades tinha conselhos desse tipo” (VILLELA, 2015). Já o descrédito de parcela significativa
da população com a democracia e a dificuldade de compreender o significado dos direitos
humanos, devém-se, em parte, a ausência dessas temáticas na formação escolar.
114
Conclusa suas recomendações como medidas institucionais, a CNV apresenta oito
reformas constitucionais e legais que tem um sentido abrangente quanto as estruturas da
legislação e busca sepultar um entulho autoritário que permanece presente no arcabouço
jurídico brasileiro. A décima oitava recomendação, sendo a primeira como reformulação
normativa, indica a revogação da Lei de Segurança Nacional - Lei nº 7.170, de 14 de
dezembro de 1983, que foi instituída quando a ditadura permanecia em vigor e
inevitavelmente reflete doutrinas que não são compatíveis com os princípios da Constituição
de 1988 e o Estado democrático de direito. Neste sentido que a CNV recomenda: “impõe-se a
revogação da Lei de Segurança Nacional em vigor e sua substituição por legislação de
proteção ao Estado democrático de direito” (CNV, 2014, p. 971).
Embora o direito internacional dos direitos humanos, formulada através de acordos e
tratados que o Brasil subscreve, a CNV elege como sua décima nona recomendação, o
aperfeiçoamento da legislação brasileira para tipificação das figuras penais correspondentes
aos crimes contra a humanidade e ao crime de desaparecimento forçado. Como já supracitado,
o Brasil tem entre 40 à 50 mil desaparecidos por ano, um dado alarmante que revela um
quadro de graves violações e tendo uma legislação obscura sobre estipulação de penas para
este crime, dentre outros, que a CNV recomenda:
O direito internacional dos direitos humanos identificou – por meio de tratados
internacionais dos quais o Brasil é parte, entre eles o Estatuto de Roma, constitutivo
do Tribunal Penal Internacional – condutas cuja gravidade é extrema e que não
podem ser admitidas em nenhuma circunstância. Nesse sentido, recomenda-se o
aperfeiçoamento da legislação brasileira para que os tipos penais caracterizados
internacionalmente como crimes contra a humanidade e a figura criminal do
desaparecimento forçado sejam plenamente incorporados ao direito brasileiro,
inclusive com a estipulação legal das respectivas penas. A previsão legal do
desaparecimento forçado como tipo penal autônomo é, como afirmou a Corte
Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund e outros versus Brasil,
uma obrigação imposta ao Estado brasileiro pelo direito internacional dos direitos
humanos (artigo 2o da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, artigo 3o da
Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas e artigo 4o
da Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra os
Desaparecimentos Forçados). O pronto cumprimento do dever de criar um tipo penal
autônomo, que contemple o caráter permanente desse crime, até que se estabeleça o
115
destino ou paradeiro da vítima e se obtenha a certificação sobre sua identidade, é
fundamental para a coibição do desaparecimento forçado, uma prática ainda presente
no Brasil (CNV, 2014, p. 971).
A desmilitarização das policias militares estaduais é a vigésima recomendação da
CNV. O tema não é novo e já gerou muitos embates. A lógica binária que prevalece nos
organismos militares, tendo por missão a proteção de “aliados” e o aniquilamento do
“inimigo”, resulta na incidência de execuções extrajudicial de civis e no aumento de mortes,
mesmo entre policiais. O Conselho de Direitos Humanos da ONU já havia indicado a medida
como parte do relatório elaborado pelo Grupo de Trabalho sobre o Exame Periódico Universal
(EPU) do Brasil. A CNV entende que o papel da polícia é o atendimento ao cidadão. “Torna-
se necessário, portanto, promover as mudanças constitucionais e legais que assegurem a
desvinculação das polícias militares estaduais das Forças Armadas e que acarretem a plena
desmilitarização desses corpos policiais, com a perspectiva de sua unificação em cada estado”
(CNV, 2014, p. 971-972).
Sobre a Justiça Militar à vigésima primeira e vigésima segunda recomendações,
pedem a extinção da Justiça Militar estadual e a exclusão de civis da jurisdição da Justiça
Militar federal, circunscrevendo suas competências aos efeitos das Forças Armadas. Para a
comissão a justiça militar “deverá ter sua competência fixada exclusivamente para os casos de
crimes militares praticados por integrantes das Forças Armadas” (CNV, 2014, p. 972). Já a
décima terceira recomendação pede a supressão de referências discriminatórias contra as
homossexualidades na legislação, apontando como exemplo, menções pejorativas no do
Código Penal Militar de 1969.
As duas últimas recomendações nos marcos das reformas constitucionais, as
recomendações vigésima quarta e quinta, pedem o fim da figura do “auto de resistência à
prisão” na legislação processual penal e a introdução da audiência de custódia no
ordenamento jurídico brasileiro, para prevenção de tortura e de prisões ilegais. Os “autos de
resistência”, como já citamos anteriormente, é o dispositivo jurídico que permite que as
mortes e lesões corporais, sejam registradas como “resistência seguida de morte”. O certo é
que o número de pessoas mortas por intervenção policial é alto, entretanto, as investigações
para apurar essas ocorrências não recebem a atenção necessária, o que permite que o uso do
dispositivo do “auto de resistência” possa servir como justificativa para mortes extrajudiciais.
116
As audiências de custódia, por sua vez, coíbem práticas ilegais, como a tortura e a prisão
arbitrária, garantindo que o indivíduo que foi detido, tenha contato com a autoridade judicial
em até vinte e quatro horas após ter sido preso.
As quatro recomendações que encerram o rol de propostas da CNV são medidas de
seguimento das ações da comissão. A vigésima sexta recomendação pede o estabelecimento
de um órgão permanente com atribuição de dar seguimento as ações e recomendações da
CNV. O trabalho desenvolvido pela comissão e o grande volume de informações coligidas
pela CNV põe como necessário o “estabelecimento de um órgão de seguimento com funções
administrativas, com membros nomeados pela Presidência da República, representativos da
sociedade civil” (CNV, 2014, p.973) no sentido de dar sequência à atividade desenvolvida
pela CNV. Dentre as missões que este órgão teria, constaria o monitoramento do
cumprimento das recomendações da CNV, com acesso aos poderes para requisitar
informações; apoio as medidas de reparação coletiva aos camponeses e indígenas; organizar,
coordenar e promover atividades públicas que informem parcelas significativas da população
sobre violações de direitos humanos, dentre outras.
A vigésima sétima recomendação é o prosseguimento das atividades voltadas à
localização, identificação e entrega aos familiares ou pessoas legitimadas, para sepultamento
signo dos restos mortais dos desaparecidos políticos. A CNV encontrou uma série de
dificuldade para fazer a localização de restos mortais dos desaparecidos políticos e esta
situação coloca como imperativa a necessidade de um órgão que continue este trabalho da
comissão, dotada de recursos suficientes para realizar as diligências elencadas nesta
recomendação. A vigésima oitava recomendação pede a preservação da memória das graves
violações de direitos humanos, uma medida politicamente pedagógica, necessária para uma
política de paz e não repetição das atrocidades que se seguiram após o golpe de 1964.
Nas últimas duas recomendações da CNV, há uma preocupação com a história
contemporânea brasileira, em especial, em relação a ditadura militar (1964-1985) e sua
herança de injustiças, os seus sentidos e significados que se tiram desta trajetória, para os
familiares de mortos e desaparecidos, mas também para as novas gerações de brasileiros que
nasceram sob o solo de uma democracia ainda movediça, que lhes apresentou apenas uma
face do autoritarismo policial, mas não do terrorismo político contra as ideias de seu tempo.
Para preservar a memória das graves violações de direitos humanos que foram perpetradas por
117
um Estado de terror, em respeito aos que foram vítimas, entre eles, milhares que lutaram pela
democracia, a CNV recomenda que se instituía e instale-se em Brasília um Museu da
Memória, além de:
a) cassar as honrarias que tenham sido concedidas a agentes públicos ou particulares
associados a esse quadro de graves violações, como ocorreu com muitos dos
agraciados com a Medalha do Pacificador;
b) promover a alteração da denominação de logradouros, vias de transporte, edifícios
e instituições públicas de qualquer natureza, sejam federais, estaduais ou municipais,
que se refiram a agentes públicos ou a particulares que notoriamente tenham tido
comprometimento com a prática de graves violações (CNV, 2014, p. 974).
No Brasil, em capitais, pequenas e medias cidades, são muitas as ruas e avenidas que
homenageiam os presidentes militares ou quadros das Forças Armadas, diretamente
vinculados as graves violações de direitos humanos, inclusive alguns torturadores. Em São
Paulo, trinta e nove ruas homenageiam pessoas que infligiram os direitos humanos durante a
ditadura militar. O projeto “Ruas da Vergonha” com o lema “Quem matou ou torturou não
pode virar nome de rua”, é dirigido pelo Núcleo da Memória11 e apresenta uma petição para a
retirada do nome de torturadores de ruas e avenidas. Esta iniciativa do Núcleo da Memória
cumpre um papel que também cabe ao poder legislativo, além do congresso nacional, nos
municípios e estados, nas câmaras municipais e assembleias legislativas.
A última recomendação da CNV, a vigésima nona, entende que o prosseguimento e
fortalecimento da política de localização e abertura dos arquivos da ditadura militar é
essencial para a memória do país. A comissão conseguiu avanços significativos na localização
dos dados e informações de arquivos da ditadura e recomenda que este avanço não cesse com
o fim do seu trabalho, para tal, a CNV recomenda que o acervo das Forças Armadas e seus
centros de informação – Centro de Informações do Exército (CIE), Centro de Informações da
Marinha (Cenimar) e Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (CISA), Centro de
Informações do Exterior (Ciex), que funcionou no Ministério das Relações Exteriores, seja
integrado numa plataforma única em todo país, com vinculação ao Serviço Nacional de
11 Acesse: https://www.nucleomemoria.org.
118
Informação (SNI). Além da instituição deste banco de dados a CNV recomenda que as
seguintes ações:
Recomenda-se, também, que tenha prosseguimento a localização, em missões
diplomáticas e repartições consulares brasileiras, da documentação relativa ao
período da ditadura militar, recolhendo-se esse acervo ao Arquivo Nacional.
Recomenda-se, também, a continuidade da cooperação internacional visando à
identificação, em arquivos estrangeiros e de organizações internacionais, de
documentação referente ao período de investigação da CNV.
Devem-se estimular e apoiar, nas universidades, nos arquivos e nos museus, o
estabelecimento de linhas de pesquisa, a produção de conteúdos, a tomada de
depoimentos, o registro de informações e o recolhimento e tratamento técnico de
acervos sobre fatos ainda não conhecidos ou esclarecidos sobre o período da
ditadura militar.
Nos termos da legislação vigente, devem ser considerados de interesse público e
social os arquivos privados de empresas e de pessoas naturais que possam contribuir
para o aprofundamento da investigação sobre as graves violações de direitos
humanos ocorridas no Brasil (CNV, 2014, p. 975).
Essas medidas encerram o rol de recomendações apresentada pela CNV. É certo que
algumas dessas indicações já haviam sido feitas pela ONU, pela Anistia Internacional,
organizações e entidades vinculadas a promoção dos direitos humanos. Todas as medidas
apresentadas pela CNV buscam enterrar o entulho democrático deixado pela ditadura,
contudo, a aplicação dessas recomendações dependem da correlação de forças que está
estabelecida no país, as forças políticas no Congresso e na Presidência da República.
No Governo Temer, assumiu o Gabinete de Segurança Institucional, o general do
Exército Sérgio Westphalen Etchegoyen, o primeiro general da ativa a criticar publicamente
as investigações realizadas pela Comissão Nacional da Verdade, taxando a comissão de
“patética e leviana”. O pai de Sérgio Westphalen, o general Leo Guedes Etchegoyen, é
indicado pela CNV, entre os militares responsáveis por graves violações de direitos humanos
durante a ditadura, o que gerou o repúdio da família do general e muitas críticas ao trabalho
da comissão. Em nota assinada pelo atual ministro de Temer e sua família, a comissão é
acusada de não respeitar os princípios do contraditório e da ampla defesa. A publicação da
nota ocorreu quando a presidente Dilma ainda estava à frente do Palácio do Planalto e o
119
Governo não tomou nenhuma medida de sanção em desfavor do general, o que mostra que
mesmo o governo do campo progressista não atuou politicamente para fortalecer o trabalho da
comissão, o que ocorreu em outras oportunidades em polêmicas que envolviam a CNV e as
Forças Armadas.
As vinte e nove recomendações da CNV, postas em prática, representariam um avanço
significativo na construção de uma nova cultura política no país e um progresso expressivo
nos direitos democráticos, alicerçada no respeito aos direitos humanos e ao Estado
democrático de direito, coibindo práticas ilegais e contendo a violência oficial patrocinada
pelos organismos de segurança com maior vigor nas periferias e contra grupos socialmente
excluídos. Entretanto, não é provável que o Governo Temer tome medidas para que as Forças
Armadas reconheçam seu papel na ditadura ou a Suprema corte brasileira, reveja sua posição
sobre a Lei de Anistia, para julgar criminalmente militares e civis envolvidos com graves
violações de direitos humanos na ditadura.
O Governo vigente segue um caminho inverso ao apontado pela CNV. Na recente
crise prisional brasileira, com rebeliões que causaram a morte de centenas de presos em
penitenciárias do país, ocorrida entre o final de 2016 e o começo de 2017, revela que o
Governo não está preocupado com a humanização do sistema prisional, mas repete a política
usual no Brasil, contendo à força rebeliões, sem no entanto, buscar resoluções factíveis para a
superlotação carcerária. “Temer tem esvaziado os órgãos voltados aos direitos humanos. Fato
marcante desse desmonte foi a substituição de parte do Conselho da Comissão de Anistia sem
a participação da sociedade civil, nomeando pessoas com posições políticas simpáticas à
ditadura” (BARROSO, 2016).
Os limites do relatório da CNV não podem nem devem ser ocultados, e uma das
principais críticas que são feitas por setores ligado à luta dos direitos humanos é o número
subestimado de mortos e desaparecidos confirmados pela comissão. A própria CNV, alerta
sobre esse quadro e apresenta como necessária a continuidade do trabalho de investigação
para a localização de ossadas e vestígios materiais das vítimas da ditadura, feita por um órgão
criado para este fim, como indica uma das iniciativas institucionais recomendadas pela
comissão.
O trabalho da CNV foi finalizado, atendendo os imperativos institucionais e os
objetivos delimitados pela Lei Nº 12.528, de 18 de novembro de 2011, e é justamente os
120
avanços democráticos que a comissão formulou em suas recomendações, que prova o atraso
do Brasil na efetivação dos direitos humanos. A luta por memória, verdade e justiça, encerra
um de seus capítulos com o trabalho da CNV, mas é justamente este capítulo que torna ainda
mais necessário à luta por democracia e sem o esforço coletivo da sociedade e do Estado
brasileiro, a história recente do país continuará sendo uma história de violações.
121
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O que apresentamos neste trabalho de pesquisa não esgota todas as possibilidades de
análises, no entanto, frente às limitações e as condições em que a pesquisa foi realizada,
procuramos fazer e apresentar o melhor trabalho que poderia ser feito. Muitas possibilidades
permanecem em aberto para pesquisas futuras.
Em uma de suas obras, Max Weber estabelece uma distinção entre ciência e arte. Uma
obra artística considerada “acabada” é um ícone para ser apreciado; ela envelhece, mas não
torna-se ultrapassada: representa a arte de um artista em determinado momento histórico. Na
ciência, o destino da obra científica é justamente o de lançar novas hipóteses, as indagações
que dela resultam são uma contribuição para aqueles que buscam aprofundar a temática
abordada. O progresso da ciência ocorre, neste sentido, quando a compreensão sobre
determinados aspectos e elementos é superada ou aperfeiçoada, ou quando uma análise mais
lucida é alcançada tendo por base o que já foi produzido.
Marx (1996), ao refutar a tese hegeliana, que a ciência filosófica seria a única e
verdadeira, reconhece que todo começo é difícil, em todos os ramos da ciência. Nosso
trabalho não busca refundar os conceitos da ciência política, mas apresenta um objeto (o
Relatório da Comissão Nacional da Verdade). Em alguns artigos, cientistas sociais e
historiadores discutiram a concretização da justiça de transição no Brasil, as construções da
memória, a arquitetura institucional do sistema de segurança, mas valendo-se apenas de partes
do relatório, ou não tomando a comissão como principal objeto. Este trabalho teve como foco
uma análise do Relatório da Comissão nacional da Verdade, algo que ainda não havia sido
feito em trabalhos acadêmicos.
O Relatório da Comissão Nacional da Verdade tem mais de 4 mil páginas, dividido em
três volumes. O trabalho de análise e síntese é árduo, tratando-se de um documento tão
extenso e com muitos aspectos importantes, que não poderiam deixar de ser citados e
analisados. A análise documental não significa apenas formular as perguntas para os dados
que são apresentados, mas entender em quais condições e de que forma esses dados foram
produzidos e organizados.
O fato de ser um documento de Estado denota a sua relevância. Mas não se pode nem
se deve compreendê-lo sem se referir ao contexto de sua construção. Daí a necessidade de um
122
debate, mesmo que introdutório, sobre as transições democráticas, em especial na América
Latina e em países que, como o Brasil, viveram muitos anos sob ditaduras e que, depois,
constituíram também Comissões da Verdade. É preciso compreender o contexto para entender
os posicionamentos e as reações da sociedade (imprensa, militares, militantes, comissões de
familiares de mortos e desaparecidos etc).
Em relação a Comissão Nacional da Verdade, apresentamos seu percurso, os trâmites
burocráticos e os relatórios parcial e final.
O fato da presidenta Dilma Rousseff ter prorrogado por sete meses o prazo para
conclusão e entrega do Relatório da Comissão Nacional não estava contemplado no
cronograma de execução da nossa pesquisa e assim, tivemos de esperar até a conclusão e
apresentação do relatório final. O extenso documento exigiu uma leitura atenta para evitar que
aspectos importantes não deixassem de ser mencionados e analisados, assim como também foi
necessário identificar os vazios, os silêncios e as ausências.
O relatório parcial da CNV, após um ano de atividades, com os treze grupos de
trabalho, não contemplou, entre outros aspectos, questões internacionais que envolviam a
ditadura brasileira ou o papel da diplomacia estadunidense adotada nos anos 1960. Apenas
grupo de trabalho intitulado “Contextualização, fundamentos e razões do Golpe Civil-Militar
de 1964” abordava brevemente a situação internacional em que o Brasil estava inserido. O
relatório final ampliado trouxe nos capítulos quinto e sexto elementos importantes, como a
participação do Estado brasileiro em graves violações no exterior e as conexões internacionais
na aliança repressiva do Cone Sul, destacando a influência dos EUA sobre as Forças Armadas
na América Latina.
Trouxe também um capítulo sobre a autoria de graves violações, esclarecendo as
condutas, praticas, a gestão da tortura e das execuções extrajudiciais, identificando as cadeias
de comando e o mais importante, apontando os agentes militares responsáveis pelos atos.
Apesar do esclarecimento sobre isso, deixou-se de mencionar os agentes civis que estiveram
envolvidos com o golpe e a consolidação da ditadura militar. São aspectos importantes, que
deveriam ser esclarecidos mas que não foram. Assim, se o trabalho da comissão foi revelador
em muitos aspectos, em outros, como a participação de lideranças políticas, não houve
aprofundamento, o que expressa também os seus limites.
123
O certo é que a busca por verdade e as reivindicações por reparações, por uma política
de justiça e memória não começaram com a Comissão Nacional da Verdade e nem se
encerram com ela. A comissão constitui um capítulo privilegiado da luta por verdade,
memória e justiça. O Brasil, como já reiteramos, foi o último país da América Latina a criar
uma comissão de verdade e isso se justifica pelo descaso do Estado brasileiro com a pauta dos
direitos humanos. “Essas lutas pela reparação histórica ficaram à margem da agenda política
da redemocratização, com todas as lideranças privilegiando outras pautas e celebrando o
discurso vazio da reconciliação nacional” (QUINALHA, 2015, p.43).
Existem três conclusões que podem ser tiradas do papel da Comissão Nacional da
Verdade e seu Relatório final. Primeiro, é necessário reconhecer que a comissão cumpriu sua
tarefa institucional, atendendo integralmente os imperativos legais e os objetivos para ela
definidas. A comissão empreendeu uma investigação que contemplou o período fixado pela
Lei nº 12.528, foi capaz de identificar a autoria e as cadeiras de comando que resultaram em
graves violações de direitos humanos, tais como a tortura, execução e ocultação de cadáver e
apresentou as recomendações finais que congregam medidas necessárias à efetivação de
direitos fundamentais e ao avanço da democracia brasileira.
Destacamos que, do ponto de vista institucional, o trabalho da comissão foi logrado de
êxito, embora tenha ocorrido à prorrogação para o prazo de entrega do Relatório final da
CNV, este foi entregue e como um documento de Estado, contém um valor significativo para
a história e a democracia no Brasil.
A segunda conclusão diz respeito ao atraso brasileiro em matéria de direitos humanos,
o que pode ser expresso pelo sistema prisional, absolutamente ineficiente, em todos os
sentidos: em muitos casos, não garante sequer a reclusão como pena aplicada pela Justiça.
Por fim, a instituição da Comissão Nacional da Verdade e seu relatório não são um
capítulo à parte da transição democrática e da democracia. Os limites da CNV, a força política
e o apoio institucional para as reformas defendidas no Relatório, a ausência da contribuição de
civis com o regime de terrorismo de Estado no seu documento final, dentre outras, não são um
resultado exclusivo do trabalho da comissão ou de sua composição, mas de um processo mais
amplo, que envolve e reflete a própria transição democracia brasileira e suas características:
pactuada por cima entre as elites, fundada sob acordos que garantiam cobertura política e
jurídica aos agentes e sócios da ditadura. A CNV é um capítulo distinto da luta por verdade,
124
memória e justiça e, apesar da democracia brasileira ser marcada mais por violações do que
avanços, a superação da cultura do autoritarismo não se constitui apenas de capítulos sobre
progressos institucionais na área de direitos humanos, mas do avanço da consciência coletiva
e da luta por um novo marco civilizatório.
125
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