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Luís Felipe Zilli do Nascimento
Violência e criminalidade em vilas e favelas dos grandes centros
urbanos: um estudo de caso da Pedreira Prado Lopes
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Sociologia. Área de concentração: Sociologia e Antropologia Orientador: Prof. Dr. Cláudio Chaves Beato Filho
Belo Horizonte Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG
2004
2
Universidade Federal de Minas Gerais Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em Sociologia
Dissertação intitulada Violência e criminalidade em vilas e favelas dos grandes centros urbanos: um estudo de caso da Pedreira Prado Lopes, de autoria do mestrando Luís Felipe Zilli do Nascimento, aprovada pela banca examinadora constituída pelos seguintes professores:
__________________________________________________
Prof. Dr. Cláudio Chaves Beato Filho Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas – UFMG - Orientador
___________________________________________________________________________________ Profa. Dra. Alba Maria Zaluar
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ
__________________________________________________________________________________ Profa. Dra. Corinne Davis Rodrigues
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas - UFMG
Belo Horizonte, 21 de dezembro de 2004
__________________________________________________________________________________ Prof. Dr. Jorge Alexandre Barbosa Neves
Coordenador do Curso de Mestrado em Sociologia da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG
3
Para Milton e Naide, exemplos de dignidade e amor.
A todos aqueles que acreditam que é, sim, possível fazer algo.
4
AGRADECIMENTOS
Agradeço a todos que, direta ou indiretamente, contribuíram na elaboração desta dissertação, e, de forma especial, a algumas pessoas que foram fundamentais para a sua realização:
Aos moradores da Pedreira Prado Lopes, pela confiança, coragem, esperança e respeito.
Ao Professor Cláudio Beato, pela orientação, ajuda, confiança e, principalmente, pela
paciência.
À tenente-coronel Mírian Assumpção e Lima, que me faz ter fé em uma polícia melhor.
Aos muitos policiais militares que, apesar das adversidades, ainda acreditam que é possível
atuar de maneira digna, respeitosa e humana.
À Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte – Urbel, pela solicitude com a qual me
cedeu o Plano Global Específico da Pedreira Prado Lopes.
A Martha Lourenço Vieira, pelo carinho, atenção, paciência e presteza com que me ajudou
na revisão e formatação deste estudo.
Ao amigo João Ribeiro, pelo apoio, incentivo e companheirismo.
A Milton, Naide e Fernanda, pelo apoio e carinho incondicionais.
A Absalão de Carvalho, Daniel Di Lorenzo, Diogo Pinheiro, Luiz Guedes e Rafael Alves,
pela amizade.
À Chyara Sales, pela, amizade, incentivo e pelas longas conversas.
À Isadora, pelo carinho, pela alegria e por me fazer acreditar em mim mesmo.
5
“Vamos fazer uma longa viagem Não para o inferno, Tampouco ao paraíso. Mas uma viagem na vida dura, Na vida simples, na vida triste, De muitas pessoas que como nós, Vivem às margens da sociedade. Vivem sem voz, acuadas e oprimidas. Vamos fazer uma longa viagem A uma cidade que segue sofrendo Que sofre vivendo, que chora sorrindo, E que sangra sem choro Que tenta mudar O destino traçado Para os filhos seus Uma viagem de ida e volta A uma cidade chamada de Deus”.
(MV Bill)
6
RESUMO
Neste estudo, propõe-se uma análise de fatores sociais envolvidos, direta ou
indiretamente, no surgimento e na consolidação de altas taxas de violência e criminalidade
em vilas e favelas dos grandes centros urbanos. Diversos estudos já demonstraram que a
criminalidade não se distribui de maneira uniforme pelas grandes cidades (ADORNO,
1999; BEATO et al., 2001). Existem determinadas regiões nestes centros, nas quais a
violência se manifesta com muito mais intensidade do que no restante do município.
Geralmente, tais regiões se caracterizam por serem vilas, favelas ou bairros pobres e
deteriorados destas cidades. São locais onde as comunidades se vêem assoladas por
gangues juvenis, tráfico de drogas, assaltos e vários outros tipos de crimes.
Nesta perspectiva, o presente estudo se propõe a identificar e analisar quais fatores
tornam tais regiões dos grandes centros urbanos áreas mais propícias à manifestação de
altas taxas de criminalidade violenta. Para realizar tal tarefa, foi efetuado um estudo do caso
da favela Pedreira Prado Lopes, aglomerado localizado na região Noroeste de Belo
Horizonte e que é considerada uma das áreas mais violentas da capital mineira. Tal estudo
foi efetivado sob a lente das teorias da “Desorganização Social”, de Shaw e Mckay (1942),
e da “Eficácia Coletiva”, de Sampson et al. (1997). Tais linhas de pensamento foram
escolhidas para a condução do presente trabalho porque, em última instância, ambas
defendem a idéia de que o surgimento e a consolidação de altas taxas de violência e
criminalidade em vizinhanças pobres e deterioradas dos grandes centros urbanos seriam
conseqüência direta ou indireta de como se articulam, dentro destas comunidades, uma
série de fatores históricos, sócio-econômicos, geográficos, culturais e estruturais.
Pretende-se demonstrar, enfim, que, através da análise sistêmica de como se articulam
tais fatores, pode-se alcançar um entendimento mais amplo das causas da violência e da
criminalidade, assim como obter indicadores que orientem a formulação de políticas
públicas de combate a tais problemas.
Palavras-chave: violência – criminalidade – vilas e favelas – tráfico de drogas – gangues – desorganização social – eficácia coletiva.
7
ABSTRACT
This study aims at analyzing social factors which are directly or indirectly involved
in the sprouting and consolidation of high rates of violence and criminality in small villages
and slums in the urban centers. Several studies have already demonstrated that criminality
is not equally distributed in the big cities (ADORNO, 1999; BEATO et al., 2001).There are
certain regions in those centers where violence manifests itself with much more intensity
than in the remaining parts of the city. Usually, those regions are characterized by decaying
villages, slums and poor districts devastated by youth gangs, drug traffic, robbery and other
kinds of crimes.
Seen in this perspective, this study attempts to identify and analyze the factors
which interfere in such poor spaces in the big urban centers so as to make them more prone
to manifestations of high rates of violent criminality. In order to achieve this objective, a
case study was carried out in a slum – Pedreira Padro Lopes – in the northeast region of
Belo Horizonte. That slum is considered as one of the most violent areas in the capital of
Minas Gerais. The Social Disorganization theory (Shaw and Mckay, 1942), and the
Collective Efficacy (Sampson et al, 1997) made up the theoretical support for this study.
These theories were chosen because they defend the idea of the emergence and
consolidation of high rates of violence and criminality in decaying poor neighborhoods in
the big urban centers as a direct or indirect consequence of the way a series of historical,
socio-economical, geographical, cultural and structural factors interrelate.
Finally, this study attempts to demonstrate, by means of the systemic analysis of
how those factors are intertwined, that it is possible to achieve a wider understanding of the
causes of violence and criminality and to get indicators to guide the formulation of public
policies to face such problems.
Key words: Violence – Crime - shanty towns and slums - drug traffic – gangs - social
disorganization - collective efficacy.
8
LISTA DE GRÁFICOS, MAPAS E FIGURAS
Gráfico 1 – PPL - número de pessoas por domicílio e faixa etária dos ocupantes........... 62 Gráfico 2 - PPL – Renda Total segundo número de domicílios e Renda per capita........ 63 Gráfico 3 – PPL – Renda dos responsáveis..................................................................... 64 Gráfico 4 - PPL – Escolaridade dos responsáveis e Escolaridade dos ocupantes............ 65 Gráfico 5 - PPL – Profissão dos responsáveis pelo domicílio.......................................... 66 Gráfico 6 - PPL – Profissão dos demais ocupantes.......................................................... 67 Gráfico 7 - PPL – Número de domicílios segundo regime de ocupação e Regime de ocupação de domicílios....................................................................................................
70
Gráfico 8 - PPL – Instituições que ajudam a comunidade............................................... 75 Gráfico 9 - PPL – Crimes contra a pessoa: incidência por bairro.................................... 79 Gráfico 10 - PPL – Crimes contra a pessoa na PPL em 2003 ......................................... 79 Gráfico 11 - PPL – Crimes de tóxicos e entorpecentes na da PPL no ano de 2003......... 80 Gráfico 12 - PPL – Crimes de tóxicos e entorpecentes: incidência por logradouro......... 80 Gráfico 13 - PPL – Crimes referentes a tóxicos e entorpecentes: incidência por bairro.. 80 Gráfico 14 - PPL – Crimes contra a patrimônio na região da PPL no ano de 2003......... 81 Gráfico 15 - PPL - Crimes contra a pessoa na região da PPL: incidência por faixa........ 82 Gráfico 16 - PPL - Crimes contra a pessoa na PPL: incidência por dia da semana......... 82 Gráfico 17 - PPL - Crimes de tóxicos e entorpecentes na PPL: incidência por hora....... 83 Gráfico 18 - PPL - Crimes de tóxicos e entorpecentes: incidência por dia da semana... 83 Gráfico 19 - PPL - Crimes contra a patrimônio na PPL: incidência por hora.................. 84 Gráfico 20 - PPL - Crimes contra a patrimônio na PPL: incidência por dia da semana.. 84 Gráfico 21 - PPL – Ações da PM na região da PPL no ano de 2003............................... 86 Gráfico 22 - PPL – Ações da PM na região da PPL: incidência por logradouro............. 86 Gráfico 23 - PPL – Ações da PM na região da PPL: incidência por bairro..................... 86 Mapa 1 - PPL – Concentração de Crimes contra a Pessoa.............................................. 79 Mapa 2 – PPL – Concentração de Crimes contra o Patrimônio....................................... 81 Figura 1 - Modelo de Desorganização Social proposto por Shaw e McKay.................... 24 Figura 2 - Modelo proposto por Sampson & Groves (1989)............................................ 29 Figura 3 - Estrutura hierárquica adotada por quadrilhas de traficantes da PPL............... 142
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.................................................................................................................... 11 1 CONTEXTOS EMPÍRICO E TEÓRICO.......................................................................... 15 1.1. Contexto Empírico......................................................................................................... 15 1.2. Contexto Teórico........................................................................................................... 19 1.2.1. Comunidade X Criminalidade.................................................................................... 22 1.2.1.1. Desorganização Social............................................................................................. 22 1.2.1.2. Controle Social......................................................................................................... 22 1.2.1.3. Eficácia Coletiva...................................................................................................... 27 1.2.1.4. Gangues................................................................................................................... 34 1.2.1.4.1. Origens.................................................................................................................. 36 1.2.1.4.2. Características....................................................................................................... 38 1.2.1.4.3. Formas e Variações............................................................................................... 40 1.2.2. Tráfico de Drogas....................................................................................................... 41 1.2.2.1. Hipótese.................................................................................................................... 43 2. O PROCESSO METODOLÓGICO DE DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA...........................................................................................................................
45
2.1. A construção do corpus da pesquisa.............................................................................. 45 2.2. A observação participante.............................................................................................. 50 2.3. Os relatos orais.............................................................................................................. 51 3 PASSADO E PRESENTE NA PEDREIRA PRADO LOPES.......................................... 54 3.1. A história da Pedreira.................................................................................................... 55 3.2. Diagnóstico social da Pedreira....................................................................................... 59 3.2.1. Caracterização da população...................................................................................... 59 3.2.2. Condições de habitação.............................................................................................. 66 3.3. Demandas e organizações.............................................................................................. 69 3.3.1. Demandas................................................................................................................... 69 3.3.2. As organizações.......................................................................................................... 72 3.4. A violência e a criminalidade........................................................................................ 75 3.4.1. Locais das ocorrências................................................................................................ 76 4. HISTÓRIA DA VIOLÊNCIA NA PEDREIRA PRADO LOPES................................... 86 4.1. A história do tráfico na Pedreira.................................................................................... 87 4.1.1. Décadas de 1970, 1980 e 1990................................................................................... 87 4.1.2. A queda de Roni Peixoto e a “guerra” de 1999.......................................................... 88 4.1.3 2003: A volta de Roni Peixoto e o início de uma nova “guerra”................................ 1015 O PANORAMA ATUAL DA CRIMINALIDADE E ESTRUTURA DO TRÁFICO DE DROGAS NA PEDREIRA PRADO LOPES................................................................
106
5.1. Relatos........................................................................................................................... 1095.1.1. Os moradores.............................................................................................................. 1095.1.2. A polícia...................................................................................................................... 1115.1.3. Os traficantes.............................................................................................................. 1125.2. O cenário........................................................................................................................ 1145.3. O envolvimento............................................................................................................. 1185.4. A organização interna.................................................................................................... 128
10
5.4.1. As drogas.................................................................................................................... 1295.4.2. A venda....................................................................................................................... 1305.4.3. A segurança................................................................................................................ 1335.4.4. As funções e a hierarquia............................................................................................ 1355.4.5. As armas..................................................................................................................... 1405.5. Os moradores................................................................................................................. 1435.6. A polícia......................................................................................................................... 1475.6.1. Polícia e comunidade.................................................................................................. 1485.6.2. Polícia e traficantes..................................................................................................... 1526 ANÁLISE DA VIOLÊNCIA E DA CRIMINALIDADE NA PEDREIRA PRADO LOPES.....................................................................................................................................
154
6.1. Aspectos a serem analisados e estruturas de abordagem................................................. 1576.2. Localização geográfica, configuração ambiental e logística do tráfico........................... 1586.3. Desorganização Social e Eficácia Coletiva...................................................................... 1626.3.1. Histórico........................................................................................................................ 1626.3.2. A Falência das Instituições de Socialização e de Controle........................................... 1656.4. Subcultura da violência.................................................................................................... 1716.4.1. As gangues.................................................................................................................... 1716.4.2. A comunidade............................................................................................................... 1777. CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................................. 1848 REFERÊNCIAS................................................................................................................... 1989 ANEXO 1............................................................................................................................. 20310 ANEXO 2........................................................................................................................... 20611 ANEXO 3........................................................................................................................... 21312 ANEXO 4........................................................................................................................... 230
11
INTRODUÇÃO
Apenas durante os nove primeiros meses de 2004, cinqüenta pessoas haviam sido
assassinadas na favela Pedreira Prado Lopes (PPL), aglomerado localizado na região
Noroeste de Belo Horizonte. Na média, isso significa dizer que, a cada cinco dias, uma
pessoa tombava morta nas ruas daquela que é uma das vilas mais densamente povoadas da
capital mineira, com cerca de 12 mil moradores ocupando uma área de aproximadamente
142 mil metros quadrados. Estes números demonstram que, entre janeiro e setembro de
2004, a PPL possuía uma taxa de 4,16 homicídios por cada grupo de mil habitantes. Apenas
para efeito de comparação, basta observar que, durante o mesmo período, toda a cidade de
Belo Horizonte, que possui cerca de 2 milhões de habitantes, registrou cerca de 900
homicídios, de acordo com pesquisa estatística realizada em 2004 pela Divisão de Crimes
Contra a Vida (DCcV) da Polícia Civil. Estatisticamente, uma taxa de 0,45 assassinatos por
cada grupo de mil habitantes. Podemos afirmar, portanto, que na Pedreira Prado Lopes
matou-se, em 2004, quase dez vezes mais do que no restante da cidade1.
Apesar de apresentar taxas de homicídios desproporcionalmente altas, é preciso
ressaltar que a Pedreira Prado Lopes não constitui um caso atípico. Ao contrário, pode-se
dizer que as taxas de criminalidade registradas naquela localidade se enquadram em um
padrão que atualmente tem se tornado bastante comum em muitos dos grandes centros
urbanos do país. Em Belo Horizonte, por exemplo, estudos já demonstraram que, além da
PPL, outras cinco favelas da cidade também registram altíssimas taxas de violência e
criminalidade (BEATO et al., 2001). Seus índices de criminalidade são tão maiores do que
no restante da cidade que, juntas, estas seis localidades são palco de aproximadamente 20%
de todos os assassinatos cometidos em BH (BEATO et al., 2003). E não há qualquer razão
para acreditar que esta realidade seja diferente em outras grandes cidades do Brasil.
Portanto, é preciso trabalhar de antemão com a idéia de que, tanto em BH quanto em
muitos outros grandes centros urbanos, a violência e a criminalidade não se distribuem de 1 É preciso observar que, apesar de a PPL figurar entre as seis favelas mais violentas da capital há pelo menos seis anos, no ano de 2004 o aglomerado apresentou estatísticas de violência e criminalidade bem superiores às que costumava registrar em anos anteriores. Por exemplo: entre 1998 e 2002, 28 pessoas foram assassinadas na favela. Número bastante inferior aos 50 homicídios cometidos apenas nos nove primeiros meses de 2004. Como será demonstrado mais adiante, o grande número de mortos na Pedreira durante o ano de 2004 deveu-se à instauração de um conflito armado de grandes proporções entre as quadrilhas de traficantes daquela favela.
12
maneira uniforme pelas cidades, como poderiam fazer crer a mídia e o senso comum.
Existem determinadas regiões nestas metrópoles onde a criminalidade se manifesta de
maneira infinitamente mais intensa. Diversos estudos2 já demonstraram que, devido a uma
série de fatores, tais áreas quase sempre se caracterizam por serem vilas, favelas ou regiões
bastante deterioradas destes grandes centros urbanos.
Justamente por isso, o presente trabalho tem como objetivo compreender o que existe
de específico nessas localidades das grandes cidades que faz com que elas sejam assoladas
por taxas de criminalidade muito maiores do que o restante do município nos quais estão
inseridas. Torna-se fundamental entender como é que, nestes locais, uma série de fatores
históricos, sócio-econômicos, geográficos, culturais e estruturais interagiram e interagem
entre si, no sentido de produzir um ambiente propício ao surgimento e à consolidação da
violência e da criminalidade.
Nesse sentido, este estudo analisa, em profundidade, o caso da favela Pedreira Prado
Lopes, aglomerado que, durante o ano de 2004, se constituiu na localidade mais violenta de
Belo Horizonte, devido a sua altíssima taxa de homicídios. Durante o período em que esta
pesquisa foi realizada duas quadrilhas de traficantes protagonizavam um grande conflito
armado na favela, numa tentativa de conquistar a hegemonia do comércio de drogas no
local. No segundo semestre de 2004, quando o presente estudo já estava em sua fase de
conclusão, uma terceira quadrilha surgiu na PPL, em razão de uma dissidência entre os
membros de um dos grupos que já existiam. Entre janeiro e outubro de 2004, 56 pessoas
haviam sido assassinadas na Prado Lopes, vítimas dos combates travados entre as gangues
de traficantes do morro.
Para dar viabilidade a este estudo de caso, foram realizadas 52 entrevistas com
moradores e lideranças comunitárias do aglomerado, além de traficantes e policiais que lá
atuam. Além disso, procurou-se traçar um perfil histórico e sócio-econômico daquela
comunidade, para tentar delinear com a maior precisão possível o cenário dentro do qual o
problema deste estudo se desenvolve. Além das entrevistas, esta pesquisa também contou
com dados das polícias Civil e Militar sobre a favela, além de informações da Prefeitura
Municipal de Belo Horizonte, que possui em seus arquivos um vasto e rico material sobre a
Pedreira Prado Lopes. Também foram utilizados dados de pesquisas do Centro de Estudos
2 ADORNO (1999); BEATO et al.(2001); entre outros.
13
de Criminalidade e Segurança Pública (CRISP), órgão vinculado à Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG).
Para tentar compreender a realidade da violência e da criminalidade da PPL, este
estudo se fundamentará em duas linhas teóricas bastante difundidas na Sociologia do
Crime. A primeira delas, conhecida como a “Teoria da Desorganização Social”, proposta
por Shaw e Mckay (1942), demonstra, em linhas gerais, que vizinhanças que apresentam
características como altas taxas de rotatividade residencial, heterogeneidade
populacional/étnica e baixa coesão social tendem a constituir ambientes socialmente
desorganizados e, conseqüentemente, extremamente criminógenos. A segunda linha teórica,
“Teoria da Eficácia Coletiva”, proposta inicialmente por Robert Sampson e Stephen
Raundenbush (1996), por sua vez, trabalha com a idéia de que, em determinadas
comunidades marcadas pela concentração de desvantagens estruturais, como notavelmente
é o caso de vilas e favelas, a falência de instituições formais e informais de socialização e
controle – como famílias, escolas, igrejas e associações de bairro – seria a principal
responsável pela desarticulação de todo o tecido social daquelas comunidades e,
conseqüentemente, pela completa incapacidade que estas populações demonstram de se
mobilizar para impedir ou controlar o surgimento da violência e da criminalidade.
Observa-se claramente, portanto, que ambas as linhas de pensamento trabalham com a
idéia de que o crime seria conseqüência direta ou indireta de como se articulam, dentro de
determinadas comunidades, uma série de fatores e elementos, históricos, estruturais,
demográficos, sócio-econômicos e culturais. E esta hipótese fundamental também será
adotada pelo presente estudo.
Para uma melhor compreensão do esquema geral de organização deste trabalho,
apresentamos, a seguir, a descrição dos conteúdos de cada um dos capítulos que o
compõem. O primeiro capítulo fará uma breve exposição das duas teorias mencionadas
anteriormente, e contextualizará o tema das gangues juvenis e do tráfico de drogas dentro
da Sociologia do Crime. O segundo capítulo, por sua vez, tratará dos aspectos
metodológicos desta pesquisa: qual linha e procedimentos metodológicos direcionaram o
processo de pesquisa e coleta dos dados e quais fontes de informações foram consultadas.
O terceiro capítulo apresentará uma visão detalhada do caso estudado: trata-se de um
levantamento histórico sobre o surgimento da Pedreira Prado Lopes, bem como uma
14
descrição das principais características sócio-econômicas, estruturais e demográficas desta
comunidade.
No capítulo quatro faremos um histórico da violência e da criminalidade na PPL,
analisando como se deu o surgimento do tráfico de drogas na favela, por volta da década de
1970 e, mais do que isso, em qual situação ele se encontrava ao final do ano de 2004. No
quinto capítulo, faremos uma análise mais detalhada de toda a estrutura vigente no tráfico
de drogas da Pedreira Prado Lopes, assim como da organização interna das gangues ligadas
à sua exploração. Neste capítulo, serão abordados temas como a iniciação dos garotos da
favela no tráfico, a rotina seguida por eles, a hierarquia e as funções exercidas pelos
membros das gangues, as grandes quantias de dinheiro movimentadas pelos traficantes, as
armas que eles utilizam e toda a estrutura logística e simbólica envolvida na atividade do
tráfico. A partir deste cenário, no capítulo seis analisaremos toda a realidade de violência da
PPL, sob o prisma das teorias que fundamentam este trabalho.
15
CAPÍTULO 1: Contextos Empírico e Teórico “Minhas palavras têm a força de uma bala e eu tenho muita munição” (Grafite pintado em um muro da rua Marcazita)
“A farda é informal: chinelo de dedo, bermuda e camiseta. As armas são pesadas: fuzis, pistolas e rifles. A idade é pouca, o risco é alto, e a trajetória de vida, curta demais” (Jornal Folha de S. Paulo, Caderno Folhateen, 10/03/2003). “Guerras do tráfico em pelo menos cinco pontos da cidade estão aterrorizando moradores da Zona Norte à Zona Sul. Em plena Sexta-Feira Santa, traficantes do Morro do Vidigal tentaram invadir a Rocinha. Doze pessoas foram mortas na guerra iniciada naquele dia. E os conflitos parecem não ter chegado ao fim” (Jornal O Globo, Primeiro Caderno, 08/07/2004). “Traficantes do complexo de favelas do vizinho morro do Alemão invadiram o local, mataram duas mulheres e dois homens e provocaram a fuga de dezenas de moradores. Os invasores são da facção criminosa CV - Comando Vermelho” (Jornal Folha de S. Paulo, Caderno Cotidiano, 05/07/2004). “Estudo mostra que uma em cada 14 crianças ou adolescentes envolvidos na venda de drogas é filho de pais que foram assassinados na guerra do tráfico” (Jornal O Globo, Caderno Especial, 04/07/2004).
1.1. Contexto Empírico
Os trechos transcritos acima foram retirados de jornais e revistas que, durante as duas
últimas décadas, acompanharam a verdadeira matança que está em vigor no Brasil.
Fragmentos de realidade que são, estes informes mostram o aspecto mais espetacular e
brutal de uma rotina de violência e mortes que, atualmente, sitia muitas das incontáveis
vilas e favelas dos grandes centros urbanos do Brasil. Para que se tenha uma idéia do
problema com o qual estamos lidando, basta observar que, somente entre os anos de 1980 e
2000, foram cometidos exatos 598.267 assassinatos no país, segundo dados do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2004. Isso corresponde a dizer que, nos
últimos 20 anos, uma pessoa foi morta a cada 20 minutos no Brasil. Baixas infinitamente
mais numerosas do que as que foram registradas na grande maioria das guerras ocorridas no
16
planeta, durante o mesmo período. No entanto as autoridades são unânimes ao repetir o
discurso de que o Brasil não vive uma guerra civil. Justiça seja feita, já não faz mais
qualquer diferença se este genocídio tem ou não reconhecimento oficial. Os números falam
por si só.
As duas últimas décadas também deixaram bem claro que esta matança tem endereço,
idade, classe social, nome e sobrenome. De acordo com uma infinidade de pesquisas
estatísticas recentes realizadas pelo Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crime
(UNODCCP, 2004), a esmagadora maioria destes crimes acontece nas vilas e favelas dos
grandes centros urbanos, principalmente nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro,
Pernambuco e Espírito Santo. Também, na maioria das vezes, o sangue derramado nesta
guerra é de jovens pobres e negros, com idades que variam dos 14 aos 25 anos. As mesmas
pesquisas também demonstram que, pelo menos no Brasil, grande parte destas mortes pode
ser atribuída à sangrenta realidade que gira em torno do tráfico de drogas, dado que também
aparece em outros3 estudos e pesquisas.
Apesar de registrar números absolutos e relativos menores do que o sempre
emblemático estado do Rio de Janeiro, a “guerra” que se instaurou em Belo Horizonte
parece seguir a mesma lógica daquela que se vê em outros estados - tanto no que se refere à
distribuição geográfica dos homicídios, quanto naquilo que diz respeito à idade e ao perfil
sócio-econômico das vítimas. Nos últimos anos, grande parte dos crimes contra a vida
cometidos na capital mineira aconteceram em apenas seis favelas da cidade, o que
demonstra que a violência, definitivamente, não está homogeneamente distribuída por toda
BH. No ano de 2002, por exemplo, 36% dos homicídios registrados em Belo Horizonte
aconteceram em vilas e favelas da cidade, em um espaço que não representa nem 4,3% da
área total de BH. (BEATO et al., 2001). Aliás, no que tange à capital mineira, vale destacar
o impressionante aumento das taxas de homicídios registrados na última década. Em 1990,
274 pessoas foram assassinadas em Belo Horizonte. Em 2003, foram cerca de 1.100
assassinatos. Um crescimento de aproximadamente 400% no número de homicídios em
pouco mais de uma década, de acordo com informações da Divisão de Crimes contra a
Vida (DCcV), da Polícia Civil, em 2004.
3 ADORNO (1999); UNODCCP (2003) ; SOCIAL WATCH (2004), entre outros.
17
Justamente por causa do alarmante crescimento da violência urbana no Brasil, e mais
especificamente em Belo Horizonte, mais do que nunca, torna-se importantíssimo tentar
entender quais elementos estão envolvidos neste processo. Até mesmo para que seja
possível elaborar políticas públicas de reversão deste quadro. E uma vez que grande parte
desta violência e criminalidade concentra-se nas vilas e favelas dos centros urbanos,
coloca-se diante de nós a necessidade fundamental de compreender quais mecanismos
históricos, geográficos, sociais, econômicos e culturais presentes especificamente nestas
regiões contribuíram e ainda contribuem para o desenvolvimento e a consolidação da
violência e da criminalidade.
Nesse sentido, o presente estudo escolheu como campo de trabalho a favela Pedreira
Prado Lopes, um aglomerado localizado na região Noroeste de Belo Horizonte e que,
segundo dados fornecidos pela Prefeitura Municipal, abriga hoje uma população de
aproximadamente 12 mil pessoas. De acordo com pesquisas recentes, a PPL (sigla pela qual
a favela é conhecida entre seus moradores) é uma das seis favelas mais violentas da capital
mineira, com altos índices relativos e absolutos de homicídios, além de uma presença
maciça de gangues ligadas ao tráfico de drogas.
Levantamentos realizados pelas polícias Civil e Militar de Minas Gerais indicam que
a PPL é hoje o principal ponto de tráfico de crack de Belo Horizonte, mercado que
movimenta muitos milhões de reais por ano. Há pelo menos quinze anos, grande parte do
comércio de entorpecentes desta favela é comandada pela quadrilha de um único traficante,
conhecido como Roni Peixoto. E este, por sua vez, de acordo com investigações da Polícia
Federal, seria o “braço direito”, em Minas, do narcotraficante Luiz Fernando da Costa, o
“Fernandinho Beira-Mar”. De tempos em tempos, a comunidade da PPL assiste a alguns
rearranjos de poder dentro da favela. Isso acontece devido ao surgimento ocasional de
novas quadrilhas, que tentam tomar o poder do grupo já instalado. Nas duas últimas
décadas, por exemplo, isso aconteceu duas vezes. A primeira, em 1999, causou uma guerra
que só terminou em 2001, deixando um rastro de 17 mortes. A segunda guerra,
infinitamente mais violenta do que a primeira, explodiu em 2003, justamente durante o
período de realização desta pesquisa. Foram 19 mortes durante o ano de 2003 e outras 35
até julho de 2004, segundo informações da Divisão de Crimes contra a Vida (DCcV), da
Polícia Civil, em 2004.
18
De acordo com apurações preliminares da Polícia Civil, praticamente todos os
homicídios cometidos na PPL, nos últimos 10 anos, possuíam relação direta ou indireta
com o tráfico de drogas. Alguns foram mortos porque deviam pequenas quantias aos
traficantes, outros porque denunciaram a ação das quadrilhas à polícia, e outros tantos em
meio às guerras travadas entre os grupos durante este período. Houve, inclusive, casos de
crianças que foram mortas por balas perdidas, sempre disparadas à esmo no morro. Mas,
como foi dito anteriormente, em praticamente todos os casos, as vítimas eram homens,
jovens, negros e pobres. Em praticamente todos os casos, as vítimas eram soldados do
tráfico, mortos ou feridos por tiros de revólveres, pistolas semi-automáticas, metralhadoras,
escopetas, fuzis ou até mesmo granadas.
Apesar de ser considerada a favela mais antiga de Belo Horizonte, a PPL sempre foi
deixada de lado pelo poder público. Apesar de seus quase 100 anos de existência, os poucos
serviços básicos dos quais o aglomerado dispõe só vieram nas décadas de 60 e 70. As
associações de bairro nunca foram efetivamente capazes de mobilizar a comunidade em
torno das causas que realmente interessam aos moradores e a imensa maioria de sua
população sobrevive em situação de intensa miséria, amontoando-se em meio a uma
configuração ambiental caótica e deteriorada. E foi justamente neste cenário que o tráfico
de drogas se instalou com uma força e uma brutalidade que, arriscamos dizer, jamais foi
vista em Belo Horizonte.
Somente nos últimos dois anos, quando a matança na PPL se tornou impossível de ser
ignorada, as autoridades voltaram seus olhos para a realidade da favela. No entanto, a
resposta estatal só veio sob forma de repressão policial. O que se viu foi apenas um grande
número de confrontos armados, um alto número de denúncias envolvendo policiais
corruptos e violentos com o tráfico de drogas e uma população acuada e completamente
indefesa em meio ao fogo cruzado. Para cada jovem soldado morto em meio à guerra da
Pedreira, vários outros surgiam para tentar assumir o posto deixado vago. Nem mesmo as
prisões de vários supostos gerentes do tráfico nos últimos anos não surtiram qualquer efeito
no movimento financeiro das quadrilhas. Como um tiro que sai pela culatra, a saída de
circulação destes homens fortes apenas abriu espaço para a entrada de outras quadrilhas na
favela, o que só fez aumentar a violência.
19
Por mais que se tente esconder os números desta carnificina, não há mais como deixar
de ver que a solução do problema da violência da PPL e, por que não dizer, da
criminalidade das demais favelas violentas das grandes cidades, não está apenas na
repressão, por mais qualificada que esta possa se tornar. Se existe alguma saída para a
situação de brutalidade e mortes que se instalou nestes guetos urbanos, ela certamente
começa no entendimento real das causas do problema. Começa na compreensão
aprofundada de todos os fatores históricos, culturais, econômicos e sociais que tornaram
possível a consolidação do atual regime de terror, medo e mortes imposto pelo tráfico
nestes locais.
1.2. Contexto Teórico
Dentro da Sociologia do Crime, vários são os modelos analíticos que se propõem a
explicar o surgimento e a consolidação da violência e da criminalidade nos bairros pobres e
degradados dos grandes centros urbanos. Por isso, antes de procurar fazer qualquer estudo
sobre o assunto, é necessário discutir e analisar muito daquilo que já foi dito a respeito
deste tema.
Logo de início, é possível observar que a grande maioria destes estudos se recusa a
trabalhar com a idéia de que as causas para o surgimento do crime devem ser procuradas
nas características individuais dos criminosos. Até porque, a partir do momento em que se
tem a comprovação estatística de que a imensa maioria dos homicídios é registrada em
meio às comunidades pobres das grandes cidades, fica bastante evidente que as causas da
violência e da criminalidade devem ser buscadas dentro destas próprias comunidades e das
mais diversas configurações ambientais, estruturais, sociais e até mesmo culturais
assumidas por elas. É no campo da análise social, e não da análise individual, portanto, que
as causas do crime devem ser buscadas.
Além de estabelecer dentro de qual campo esta discussão deve se desenvolver,
também é preciso, desde já, colocar de lado uma crença muito arraigada no imaginário
popular: a de que existiria uma relação causal direta entre pobreza e criminalidade, como se
a presença do primeiro fator levasse quase que invariavelmente ao surgimento do segundo.
20
Apesar de ainda não haver um consenso pleno a respeito do assunto, diversos estudos4 já
demonstraram que não existe necessariamente qualquer relação causal diretamente positiva
entre pobreza e crime. Nesse sentido, o exemplo da própria cidade de Belo Horizonte
parece ser bastante emblemático. Existem na região metropolitana centenas de vilas e
favelas. No entanto, apenas uma minoria registra índices expressivos de criminalidade. Na
capital propriamente dita, temos apenas seis favelas violentas. Se houvesse necessariamente
qualquer relação causal direta entre pobreza e crime, esta proporção deveria ser, na melhor
das hipóteses, inversa àquela que se observa atualmente (BEATO & REIS, 2000).
A concentração de desvantagens econômicas e estruturais em uma comunidade pode,
sim, propiciar o surgimento de uma série de fatores e estes, por sua vez, contribuírem para
o aparecimento de altos índices de criminalidade. No entanto, não existe qualquer
comprovação empírica de que a pobreza em si seja um causador direto de altos índices de
violência, como demonstram os estudos de vários autores.
“Nesse nó de problemas, muitos fios têm que ser desembaraçados e metodicamente percorridos para que se retome a costura. Um deles é o da relação entre criminalidade e pobreza. As explicações deterministas e reducionistas vêem nos pobres sistematicamente os mais afeitos à criminalidade ou ao uso da violência. Se é inegável que crises econômicas e sociais podem ser associadas ao aumento de certos tipos de crime, a equação não se explica pela relação direta e imediata entre a baixa renda e a criminalidade. Essa equação assim posta, apesar de falsa, acaba por criar estereótipos fortes sobre quem são os criminosos potenciais ou os suspeitos número um, o que vem a se tornar um dos mecanismos mais eficazes na ampliação da criminalidade e no surgimento de uma certa solidariedade entre os que desrespeitam a lei eventualmente e mesmo os que já optaram por uma carreira criminosa, de um lado, e os trabalhadores, de outro. Do ponto de vista meramente estatístico, essa afirmação tem o efeito de uma profecia autocumprida, por serem objeto de suspeita sistemática, sendo presos para averiguação pelo simples fato de estarem perambulando pelas ruas. Desse modo, os trabalhadores pobres, mesmo quando fazem o esforço de manter a identidade de trabalhador no desemprego ou com baixos salários e ganhos, acabam sendo autuados por pequenos delitos. É esse o truque da super-representação dos pobres nas estatísticas ilegais ou criminosas” (ZALUAR, 1994: p 59).
4 COELHO (1978); PAIXÃO (1990); BEATO e REIS (2000); SAMPSON et al. (1997); entre outros Citar alguns exemplos desses estudos.
21
Nas últimas décadas, observamos que vários estudos5 deixaram de seguir esta linha de
raciocínio: ao invés de atribuir o aparecimento de altas taxas de criminalidade a um fator
amplo e genérico como a pobreza, muitos pesquisadores passaram a refinar seu trabalho e a
defender a idéia de que o surgimento do crime em alguns bairros pobres seria conseqüência
direta de como se articulam, dentro destas próprias comunidades, uma série de fatores
sociais, econômicos e estruturais específicos. Passou-se a trabalhar com a hipótese de que o
crime teria sua origem na pouca coesão social de algumas destas comunidades, assim como
na falência de diversas instituições de socialização e de controle social informal, tais como
família, igrejas, associações comunitárias e escolas. Associados, todos estes fatores fazem
com que estas comunidades sejam incapazes de estabelecer valores comuns e de controlar
ou supervisionar o comportamento de seus membros. Isto, por conseqüência, causaria o
surgimento do crime.
Mais uma vez, é preciso ressaltar que todos os estudos que seguem esta linha de
análise procuram formular suas proposições em termos sistêmicos. Ou seja, a comunidade e
a vizinhança são vistas como um complexo sistema de amizades, afinidades e redes de
associação baseadas nas famílias e nas demais instituições comunitárias. A diferença destas
abordagens com relação às demais é que nenhuma proposição é feita de modo a levar em
consideração apenas o indivíduo. Todas as análises são feitas a partir das características do
sistema social, nunca do indivíduo.
Obviamente, existem várias restrições a este tipo de abordagem, uma vez que nem
sempre modelos macrossociológicos mostram-se capazes de fazer predições precisas a
respeito do comportamento individual, justamente por se referirem às propriedades dos
grupos, como destaca Short (1985). No entanto, teorias que trabalham em níveis sistêmicos
possuem a importante capacidade de apontar diversas dinâmicas comunitárias relacionadas
ao surgimento do crime. E se elas forem trabalhadas com a necessária acuidade, podem,
como aponta Bursik (1998), sempre tentar fazer uma análise não apenas da estrutura social,
como também do comportamento individual e, principalmente, das estruturas que fazem a
conexão de uma instância com a outra.
E é fundamentalmente dentro desta linha de raciocínio que o presente trabalho
pretende se desenvolver. A seguir, apresentaremos, em linhas gerais, estudos que se 5 SHAW e MCKAY (1942); BURSIK (1988); BURSIK e GRASMICK (1993); MORENOFF et al. (2001); SAMPSON et al. (1997); entre outros.
22
propuseram a entender os mecanismos pelos quais determinadas comunidades pobres e
socialmente excluídas desenvolvem altíssimos índices de criminalidade. Acreditamos que,
colocados lado a lado, tais trabalhos são capazes de oferecer um painel bastante ilustrativo
daquilo que já foi pensado sobre a relação existente entre comunidade e crime. Mais do que
isso, tais estudos podem ajudar na construção de um modelo que nos permita entender
melhor o surgimento e a consolidação da violência e da criminalidade na favela Pedreira
Prado Lopes e, por que não dizer, em diversos outros aglomerados do país.
1.2.1 – Comunidade X Criminalidade
Não podemos dizer que seja recente na produção sociológica a idéia de que existe
uma estreita ligação entre a configuração caótica e desorganizada assumida por
determinados bairros dos grandes centros urbanos e o aparecimento de altas taxas de
criminalidade – especialmente no que se refere àqueles crimes praticados por gangues
juvenis.
1.2.1.1. Desorganização Social
Já durante a década de 1940, ganharam força, no pensamento sociológico do crime, os
trabalhos desenvolvidos pelo movimento intelectual da Escola de Chicago, principalmente
aqueles elaborados pelos sociólogos Clifford Shaw e Henry McKay (1942). A partir de um
grande survey aplicado na cidade de Chicago, ambos realizaram um estudo que atribui o
surgimento de altas taxas de violência e criminalidade à desorganização social de
determinadas comunidades e à incapacidade que elas têm de conceber valores comuns e,
conseqüentemente, de controlar de maneira efetiva o comportamento de seus membros.
Logo de início, o estudo de Shaw e McKay (1942) aponta duas tendências: a de que a
criminalidade violenta se manifestava com mais intensidade nos bairros pobres e
deteriorados de Chicago e a de que estas comunidades tendem a manter suas taxas de
delinqüência por longos períodos, mesmo apresentando um alto índice de rotatividade
residencial. Como foi dito anteriormente, isso apenas reforça a importância de se analisar
23
de maneira sistêmica o desenvolvimento da criminalidade, assim como a história de
violência pregressa existente em determinadas vizinhanças.
Rompendo com o senso comum, Shaw e Mckay (Idem) também observaram que,
além da situação de pobreza e degradação, as vizinhanças de Chicago que possuíam altas
taxas de criminalidade também se destacavam por ser a moradia de uma infinidade de
minorias étnicas que, tão logo fosse possível, se mudariam para vizinhanças mais atrativas
e menos deterioradas. Ainda de acordo com Shaw e McKay, esta heterogeneidade étnica e a
alta rotatividade residencial impediam que estas comunidades fixassem raízes em seu local
de moradia, que estabelecessem um conjunto de valores e representações simbólicas
comuns e, conseqüentemente, que desenvolvessem um apreço mínimo pela vizinhança
onde viviam. Formava-se nessas comunidades, portanto, um cenário de completa
desorganização social, onde os moradores não eram capazes de conceber valores comuns,
nem se mostravam aptos a formar um corpo social suficientemente coeso para controlar
efetivamente o comportamento de seus membros e, conseqüentemente, impedir o
surgimento de altas taxas de criminalidade.
Ou seja, a teoria clássica da “Desorganização Social”, proposta por Shaw e Mckay
(1942), não propõe a idéia de que a privação econômica gera o crime. Ela propõe a idéia de
que, em um primeiro momento, o processo desordenado de urbanização e a pobreza geram
a desorganização social (concentração de desvantagens econômicas e estruturais, altas taxas
de rotatividade residencial e heterogeneidade étnica). Esta desorganização, como demonstra
Kornhauser (1978), por sua vez, diminui a integração e a coesão existentes entre os
membros de uma comunidade, o que acaba acarretando o baixo poder de manter um
controle social efetivo sobre o comportamento dos indivíduos e, conseqüentemente, sobre o
surgimento do crime.
Vários autores6 têm demonstrado em seus estudos que a violência e a criminalidade
surgiriam com mais intensidade nas comunidades pobres e degradadas das grandes cidades,
portanto, não devido à pobreza em si, mas, sim, devido ao altíssimo grau de
“desorganização social” das mesmas. Em uma vizinhança socialmente desorganizada, o
vínculo moral de um indivíduo com a sua comunidade diminui e, logicamente, também
diminuem os custos morais de se cometer um crime. Como afirma Bursik (1988: p 520) 6 SHAW e MCKAY (1942); BURSIK e GRASMICK (1993); BURSIK (1988); dentre outros.
24
“In it’s purest formulation, social disorganization refers to the inability of local communities to realize the common values of their residents or solve commonly experienced problems. Population turnover and heterogeneity are assumed to increase the likelihood of disorganization for the following reasons: 1- Institutions pertaining to internal control are difficult to establish when many residents are “uninterested in communities they hope to leave at the first opportunity. 2- The development of primary relationships that result in informal structures of social control is less likely when local networks are in a continual state of flux. 3- Heterogeneity impedes communication and thus obstructs the quest to solve common problems and reach common goals”.
O modelo proposto por Shaw e Mckay (1942), na figura 1, a seguir, também
nos ajuda a visualizar as principais proposições da teoria da Desorganização Social:
FIGURA 1
25
Apesar de ter atingido um bom nível de aceitação e de ter embasado vários outros
estudos subseqüentes, da década de 1940 para cá, a teoria de Shaw e McKay já sofreu
sérias críticas e propostas de revisão. Robert Bursik (1988), por exemplo, chama a atenção
para o fato de que a teoria original não fornece variáveis suficientemente detalhadas para
que se possa medir o grau de desorganização social de uma comunidade. Isso faria com que
muitos autores que se disponham a trabalhar com esta linha analítica confundam a
“Desorganização Social” propriamente dita com seu produto. Como ressaltam Bursik
(1998) e Kornhauser (1978), a teoria original deixaria, portanto, uma série de lacunas
teóricas e metodológicas a serem mais bem trabalhadas.
1.2.1.2. Controle Social:
O modelo teórico da “Desorganização Social” proposto por Shaw e McKay exerceu
tanta influência sobre o pensamento criminológico, que diversos estudos posteriores
passaram a adotar seus postulados como base para o desenvolvimento de novas teorias.
Bursik e Grasmick (1993), por exemplo, trabalham no sentido de dar maior precisão à tese
original da “Desorganização Social” e de depurar os mecanismos através dos quais a
concentração de desvantagens (tanto econômicas quanto sociais) em uma comunidade
poderia ser a detonadora de um processo que leva ao aumento das taxas de criminalidade.
De acordo com Bursik e Grasmick (Idem), a teoria de Shaw e McKay não especifica
através de quais processos ou meios a desorganização social de uma comunidade criaria um
ambiente propício para o surgimento de altas taxas de delinqüência. Depurando o que havia
sido tratado em linhas muitas vezes gerais por Shaw e McKay, Bursik e Grasmick propõem
a idéia de que, muito mais do que criar um ambiente criminógeno, a desorganização social
provocaria o enfraquecimento de instâncias formais e informais de controle (como família,
igrejas, escolas, associações comunitárias e diversas outras entidades representativas) em
determinadas comunidades, o que, por sua vez, diminuiria nestes locais o custo social
associado ao cometimento de crimes. Colocado desta maneira, observa-se que o modelo
proposto por Shaw e McKay nada mais é do que uma teoria do “controle social” elaborada
em nível de grupo. Para Bursik (1988:p 521):
26
“The causal linkage between social disorganization and neighborhood delinquency rates was not clearly explicated by Shaw and McKay. In various sections of their work, they freely draw on elements of strain, cultural conflict, and control theories, but the logical implications of those frameworks are at times inconsistent. Given the intimate theoretical connection between processes of rapid ecological change and the social disorganization framework, a control theoretic approach offers perhaps the best general basis for understanding the process. That is, the dynamics of social disorganization lead to variations across neighborhoods in the strength of the commitment of the residents to group standards. Thus, weak structures of formal and informal control decrease the costs associated with deviation within the group, making high rates of crime and delinquency more likely. Framed in this manner, the Shaw and McKay model of social disorganization is basically a group-level analog of the control theory and is grounded in very similar processes of internal and external sources of control”.
Ainda dentro de uma visão sistêmica, Bursik e Grasmick (1993) reforçam a idéia de
que, nas comunidades, o controle social do comportamento dos indivíduos acontece em
dois níveis distintos: o primeiro nível de controle é exercido dentro dos grupos primários de
socialização (amigos, família, redes de afinidades), enquanto o segundo nível de controle é
exercido dentro de instituições formais que coabitam e atuam dentro das vizinhanças
(associações comunitárias, escolas, igrejas e até mesmo a polícia).
Nestas vizinhanças, a desestruturação de instituições como a família (grupo primário
de socialização), a igreja, as escolas e as associações de bairro (grupos formais de
socialização) acarretaria o enfraquecimento destas duas instâncias de controle social em
três esferas específicas: na esfera (a) privada, na esfera (b) paroquial e na esfera (c) pública.
A esfera privada refere-se às relações primárias e pessoais que se estabelecem entre amigos,
parentes e vizinhos. Em comunidades que apresentam altas taxas de rotatividade
residencial, tais relações encontram-se enfraquecidas, assim como o controle social que
deveria ser exercido por elas. A esfera paroquial, por sua vez, refere-se às relações que
moradores de uma determinada comunidade estabelecem com as associações e instituições
locais. Em comunidades onde a população é marcada por heterogeneidade étnica, observa-
se um baixíssimo grau de associativismo e, conseqüentemente, o enfraquecimento de tais
instituições e um baixo grau de controle social. Finalmente, a esfera pública diz respeito à
capacidade que uma comunidade tem de mobilizar aparelhos estatais em prol de si mesma.
27
Ao contrário do que haviam proposto Shaw e McKay, o que está sendo colocado por
Bursik e Grasmick é que a concentração de desvantagens em determinadas comunidades
(tanto econômicas quanto estruturais e sociais) não seriam motivadores diretos do crime,
mas sim indiretos. Em um primeiro momento a pobreza e a desestruturação social minam
as instituições que são responsáveis pela socialização e pelo controle do comportamento
dos indivíduos. Somente então, estas comunidades perdem sua capacidade de estabelecer
uma gama de valores comuns e de resolver internamente seus problemas, criando assim o
cenário adequado para o surgimento da violência e da criminalidade. Como afirmam Bursik
e Grasmick (Idem; p 114):
“It is through these relational networks that the regulatory capacities of a neighborhood become actualized. (...) Most research has focused on two basics types of systemic control. The first, which has been called the private level of control, focuses on the networks that integrate residents into the intimate informal primary groups of a neighborhood. It is through these associations that information is transmitted concerning expectations of appropriate behavior. If those expectations are violated, these networks are utilized to impose various informal sanctions on the offending member. (...) The second or parochial level of control represents interpersonal networks in which communication among members of the system does not have the same degree of intimacy as at the private level. For example, a resident may informally keep an eye in the public activities of local children or may alert fellow neighbors to the presence of outsiders who might be considered threatening. Therefore, this dimension of systemic control in part represent the supervisory capacities of a local community. In addiction, it also represents residential participation in local institutions, such as churches, voluntary organizations, and schools”.
1.2.1.3. Eficácia Coletiva
Ainda na tentativa de elucidar a relação existente entre a configuração assumida por
determinadas comunidades e o surgimento do crime, vários outros estudos procuraram dar
maior consistência teórica e precisão à proposição original de Shaw e McKay. No final da
década de 1980, por exemplo, Sampson e Groves (1989) voltaram a trabalhar com a idéia
fundamental de que a manifestação de altas taxas de criminalidade em certas vizinhanças
seria conseqüência direta ou indireta de como se articulam, dentro destas comunidades,
28
determinados fatores históricos, estruturais, sócio-econômicos, demográficos e culturais.
Ainda tomando como base o estudo original de Shaw e McKay (1942), Sampson e Groves
(1989) trabalham com a idéia de que o crime seria, em última instância, conseqüência da
pouca ou nenhuma capacidade que os moradores de determinadas comunidades possuem de
estabelecer um conjunto de valores e objetivos comuns (pouca coesão social), da falta de
capacidade dos mesmos de controlar ou supervisionar o comportamento mútuo e, além
disso, da pouca ou nenhuma predisposição que os membros destas comunidades têm de agir
em prol do bem comum.
Desta forma, outras duas variáveis foram adicionadas à teoria original de Shaw e
McKay, a fim de conferir a ela maior precisão. Se, na proposição original, a
“Desorganização Social” de uma comunidade seria caracterizada por basicamente três
fatores (baixo status sócio-econômico, heterogeneidade ética e alto nível de rotatividade
residencial), no trabalho de Sampson e Groves (1989), por sua vez, é proposta a idéia de
que outros dois fatores devem ser levados em conta neste processo e, conseqüentemente,
também precisam ser tomados como fomentadores de altas taxas de criminalidade: a
desestruturação das famílias – que minaria a capacidade de supervisão das crianças e dos
grupos juvenis - e o processo de urbanização rápido e desordenado – que, por sua vez,
tornaria praticamente impossível a formação de uma comunidade socialmente coesa e
atrelada a valores e metas comuns. Nas palavras de Sampson e Groves (1989:p 781)
“In a recent contribution to this journal, Sampson argued that marital and family disruption may decrease informal social controls at the community level. The basic thesis was that two-parent households provide increased supervision and guardianship not only for their own children and household property, but also for general activities in the community. From this perspective, the supervision of peer-group and gang activity is not simply dependent on one child’s family, but on a network of collective family control (Thrasher, 1963). In support of this theoretical model, Sampson (1987) showed that macro-level family disruption had large direct effects on rates of juvenile crime by both whites and blacks. (…) Although Shaw and McKay (1942) were primarily concerned with intracity patterns of delinquency, their theoretical framework is consistent with the idea that urban communities have a decreased capacity for social control, compared with suburban and rural areas. In particular, urbanization may weaken local kinship and friendship networks and impede social participation in local affairs” (SAMPSON & GROVES, 1989).
29
A idéia proposta por esses autores pode ser melhor visualizada no modelo esquemático
apresentado na figura 2, a seguir:
FIGURA 2 Modelo originalmente proposto por Sampson e Groves (1989)
Já na década de 1990, ainda na tentativa de encontrar uma explicação mais precisa
para o fenômeno do surgimento do crime em comunidades pobres, Sampson, Raundenbush
e Earls (1997) passam a trabalhar com o conceito de “Eficácia Coletiva”. Segundo esses
autores, o conceito “Eficácia Coletiva” deve ser entendido como um complexo sistema
formado pela coesão social existente entre os membros de uma vizinhança, pela confiança
mútua que se estabelece entre seus moradores e pela disponibilidade que estes têm de
controlar o comportamento mútuo e agir em prol do bem comum. Trata-se de um processo
dinâmico que se manifesta de formas diferentes de uma comunidade para outra e exerce
papel fundamental no que se refere ao controle da violência e da criminalidade. Cabe
observar que, assim como foi feito por Shaw e McKay (1942), Bursik e Grasmick (1993) e
Low economic status Ethnic Heterogeneity Residential Mobility Family Disruption Urbanization
Sparse local friendship network Unsupervised teen-age peer groups Low organizational participation
Crime and Delinquency
30
vários outros, Sampson, Raundenbush e Earls também desenvolvem uma teoria que
trabalha em termos sistêmicos. Ou seja, a comunidade e a vizinhança continuam a ser vistas
como um intrincado sistema de amizades, afinidades e redes de associação baseadas em
instituições como famílias e outras instâncias comunitárias. Nenhuma proposição é feita de
modo a levar em consideração apenas o indivíduo. As análises e proposições são feitas a
partir das características do sistema social, nunca do indivíduo.
Nesta nova proposta de refinamento do estudo original de Shaw e McKay, Sampson,
Raundenbush e Earls iniciam seu trabalho tratando da própria definição do conceito de
“comunidade” que, obviamente, também é analisada em termos sistêmicos. Tal retomada se
faz necessária porque, a partir do momento em que se está disposto a desenvolver uma
teoria que explique o surgimento do crime a partir das características sociais, econômicas,
culturais e estruturais de uma comunidade, é fundamental delimitar com a maior precisão
possível o cenário dentro do qual este estudo irá trabalhar. Tomando como base o conceito
de Sampson e Groves (1989), “Comunidade” seria o complexo sistema de amizades, redes
de afinidades e laços associativos baseado nas famílias e nos processos de socialização
vigentes dentro de uma determinada vizinhança.
Seguindo esta linha de raciocínio, Sampson, Raundenbush e Earls (1997) propõem a
idéia de que, empiricamente, a organização social de uma comunidade pode ser mensurada
em termos da interdependência sistêmica que as mais diversas instituições sociais (tanto as
informais - como a família e as redes de amizades -, quanto as formais – associações
comunitárias, escolas e igrejas) estabelecem entre si, dentro de uma determinada
vizinhança. Uma comunidade organizada seria, portanto, aquela onde a população local
consegue estabelecer um alto nível de coesão social e confiança mútua e,
conseqüentemente, exercer um controle social efetivo sobre seus membros. Ou seja, uma
comunidade que possui um alto grau de “Eficácia Coletiva”. Tal eficácia propiciaria a estas
comunidades a capacidade de supervisionar as atividades de suas crianças, assim como
controlar a formação de grupos juvenis. E, uma vez que o fenômeno da violência
manifesta-se principalmente através de dinâmicas grupais, a capacidade que uma
comunidade tem de controlar as atividades coletivas que se desenvolvem dentro dela torna-
se um elemento chave para o controle do crime e da delinqüência (THRASHER, 1927;
SHAW & MCKAY, 1942; SHORT & STRODBECK, 1965; REISS, 1986).
31
Se, anteriormente, o surgimento do crime e da delinqüência em algumas vizinhanças
pobres e deterioradas era explicado apenas pela presença de uma vasta gama de fatores
estruturais e sociais - como a alta taxa de mobilidade residencial, o baixo status sócio-
econômico, a heterogeneidade étnica, a desestruturação das famílias e o processo acelerado
e desordenado de urbanização, na década de 1990, Sampson, Raudenbush e Earls (1997)
propõem a idéia de que, em termos gerais, as diferentes taxas de crime podem ser
explicadas pelas diferentes capacidades que as comunidades têm de conceber valores
comuns (como a vontade de viver em uma comunidade livre de crimes), de exercer um
controle social efetivo sobre seus membros (controle através de mecanismos informais e
também através da utilização de instituições externas como a polícia) e de solucionar
internamente seus próprios problemas. A diferença nas taxas de violência e Criminalidade
se deveriam, portanto, aos diferentes graus de “Eficácia Coletiva” existentes nas diversas
comunidades.
Assim, o conceito de “Eficácia Coletiva” ganha grande importância, pois remete
fundamentalmente a aspectos como a confiança mútua entre os moradores, o
estabelecimento de redes de afinidades e amizades, além da participação voluntária dos
moradores em associações comunitárias e entidades que visam à melhoria da vizinhança e o
bem estar comum – associativismo. Todos estes aspectos, que podem muito bem ser
entendidos como Coesão Social7, fazem com que se estabeleça, entre os membros de uma
determinada comunidade, a disposição de supervisionar o comportamento dos demais
residentes e, mais do que isso, de intervir em prol do bem comum. Como destacam
Sampson, Raudenbush e Earls (1997):
“We propose that the differential ability of neighborhoods to realize the common values of residents and maintain effective social controls is a major source of neighborhood variation in violence. Although social control is often a response to deviant behavior, it should not be equated with formal regulation or forced conformity by institutions such as the police and courts. Rather, social control refers generally to the capacity of a group to regulate its members according to desired principles – to realize collective, as opposed to forced, goals. One central goal is the
7 No caso, “Coesão Social” é definida por Sampson, Raundenbush e Earls como sendo a capacidade que os moradores de uma comunidade têm de estabelecer uma gama de valores comuns e de se orientar segundo eles.
32
desire of community residents to live in a safe and orderly environments that are free of predatory crime, especially interpersonal violence. (…) In contrast to formally or externally induced actions (for example, a police crackdown), we focus on the effectiveness of informal mechanisms by which residents themselves achieve public order. Examples of informal social control include the monitoring of spontaneous play groups among children, a willingness to intervene to prevent acts such as truancy and street-corner ‘hanging’ by teenage peer groups, and the confrontation of persons who are exploiting or disturbing public spaces. (…) At the neighborhood level, the willingness of local residents to intervene for the common good depends in large part on conditions of mutual trust and solidarity among neighbors. Indeed, one is unlikely to intervene in a neighborhood context in which the rules are unclear and people mistrust or fear one another. It follows that socially cohesive neighborhoods will prove the most fertile contexts for the realization of informal social control. In sum, it is the linkage of mutual trust and the willingness to intervene for the common good that defines the neighborhood context of collective efficacy. Just as individuals vary in their capacity for efficacious action, so too do neighborhoods vary in their capacity to achieve common goals”.
De acordo com esta abordagem, todos aqueles fatores que eram apontados como
estimuladores do surgimento do crime e da delinqüência – baixo status sócio-econômico,
alta taxa de mobilidade residencial, heterogeneidade étnica, etc – passam a ser vistos como
elementos que minam o estabelecimento de “Coesão Social” (confiança mútua,
estabelecimento de valores comuns) e, conseqüentemente, de “Eficácia Coletiva” (conjunto
formado pela coesão Social e pela predisposição dos indivíduos de agir em prol do bem
comum). Comunidades socialmente desorganizadas e, conseqüentemente, com baixo grau
de “Eficácia Coletiva”, perdem a capacidade de controlar o comportamento de seus
indivíduos através de mecanismos formais e informais e de resolver internamente seus
problemas. Conseqüentemente, como ressaltam Morenoff et al. (2001), estes fatores criam
o terreno ideal para o surgimento de altas taxas de criminalidade.
Nota-se que, ao trabalhar com os conceitos de “Coesão Social” e “Eficácia Coletiva”,
Sampson também passou a lidar com o conceito de “Capital Social”, (COLEMAN, 1990;
PUTNAM, 1993; BURSIK, 1986). Ou seja, ele passa a tratar de aspectos da organização
comunitária - como confiança mútua entre os indivíduos, fortalecimento de instituições
comunitárias e coesão - que facilitam a coordenação e a cooperação entre os indivíduos
dentro de um determinado sistema (comunidade) para a produção de benefícios mútuos.
33
Mais uma vez, é preciso ressaltar que esta análise não coloca sua ênfase no individuo, mas
sim no sistema, na estrutura social.
Observa-se que as construções teóricas anteriores ao conceito de “Eficácia Coletiva”
sempre encararam a comunidade como uma rede de sociabilidade primária, ou seja, um
sistema onde a maioria das pessoas se conhece pessoalmente, onde os contatos são feitos
face a face e onde as relações são, em sua grande maioria, pessoais. No entanto, o
crescimento das cidades e o processo cada vez mais acelerado de urbanização tornaram este
tipo de configuração cada vez mais difícil de ser observado.
Sampson et al. (1997,1999), por sua vez, trabalha com a idéia de que as pessoas não
precisam se conhecer pessoalmente, nem necessariamente desenvolver redes de
sociabilidade primária para formarem uma comunidade socialmente coesa e organizada.
Basta a elas compartilharem a mesma gama de valores (querer viver em uma vizinhança
livre de crimes, por exemplo) e dividirem a expectativa de que todos devem intervir em
prol do bem comum e ajudar a manter o controle social. A “eficácia”, no caso, refere-se à
eficiência que uma comunidade demonstra quando se dispõe a realizar uma tarefa como,
por exemplo, manter a ordem social.
Vista desta forma, a “Eficácia Coletiva” nada mais é do que uma construção teórica
que enfatiza as expectativas compartilhadas e o engajamento mútuo dos moradores de uma
comunidade em torno de uma determinada tarefa, que é a manutenção do controle social.
Como ressaltam Morenoff et al. (2001), a comunidade é vista como um conjunto de
moradores que se organizam para produzir um efeito desejado, ou seja, manter a
comunidade livre do crime e da delinqüência.
Além da coesão social, da confiança mútua e da expectativa compartilhada de que
todos agirão em prol do bem comum (elementos fundamentais para que uma comunidade
alcance um alto grau de eficácia coletiva), também é preciso ressaltar o importante papel
que as organizações e instituições comunitárias desempenham no combate ao crime e à
violência. São estas instituições que representam a comunidade politicamente e conseguem
exercer pressão para que instituições governamentais passem a cumprir suas funções
(saúde, escolas, policiamento) da maneira mais correta e eficiente possível, pois a presença
do Estado e de todos os seus serviços exerce papel fundamental na manutenção da
estabilidade e do controle social de uma vizinhança. Nas palavras de Morenoff et al.(2001):
34
“Communities can exhibit intense private ties (among friends, kin), and perhaps even shared expectations for control, yet still lack the institutional capacity to achieve social control (Hunter, 1985). The institutional component of social capital is the resource stock of neighborhood organizations and their linkages with other organizations. Similar to the idea of ‘bridging’ social capital, Bursik and Grasmick (1993) also highlight the importance of public control, defined as the capacity of community organizations to obtain extralocal resources (police protection; block grants; health services) that help sustain neighborhood stability and control. It may be that high levels of collective efficacy come about because of such controls, such as strong institutional presence ad intensity of voluntary associations”.
1.2.1.4. Gangues
Para tentar conceber um modelo analítico que dê conta de explicar de forma
razoavelmente eficiente o surgimento da violência e da criminalidade dentro de
comunidades pobres e deterioradas, torna-se fundamental analisar também, além das
características estruturais e sociais das próprias comunidades em si, a dinâmica dos
processos grupais que geralmente aparecem associadas à prática dos crimes. Especialmente
aqueles que dizem respeito ao surgimento e à atuação de gangues juvenis. Primeiro porque,
como foi dito anteriormente, o crime é, na maioria das vezes, um fenômeno grupal, uma
atuação coletiva. Segundo porque, no caso da favela Pedreira Prado Lopes, aglomerado que
servirá como campo de estudo do presente trabalho, pode-se dizer, sem medo de incorrer
em erro, que praticamente todas as práticas criminosas estão intimamente associadas à
atividade das gangues de traficantes de drogas que ali atuam.
Apesar de não haver até hoje dentro da Criminologia um consenso a respeito daquilo
que se entende como “gangue”, a imensa maioria das definições8 já propostas para o
problema ressaltam dois aspectos em especial: o primeiro é o de que o termo “gangue”
refere-se a um processo grupal. O segundo é o de que o processo social entendido como
“gangue” costuma referir-se à participação de um grupo de indivíduos em comportamentos
8THRASHER (1927); CHAIKEN & CHAIKEN (1990); KLEIN et al., (1991); DECKER & VAN WINKLE (1996);
WEISEL (2002); entre outros.
35
ilegais. Ou seja, a grande maioria das definições dadas até hoje ao termo “gangue”
ressaltam sua natureza coletiva e seu caráter desviante.
Nas últimas décadas, diversos estudos9 propuseram explicações para o problema do
surgimento e da consolidação das gangues, uma vez que este é um processo que, na maioria
das vezes, aparece intimamente associado à manifestação de altas taxas de violência e
criminalidade. Apesar de fazerem uso de diversas formas de abordagem, tais estudos
possuem um traço em comum: trabalham sobre a convicção de que as gangues constituem
um problema tipicamente urbano e que se manifesta, em sua grande maioria, nas áreas mais
degradadas e socialmente excluídas dos grandes centros. Por isso, assim como acontece
com o fenômeno da violência e da criminalidade em si, torna-se fundamental entender as
gangues dentro do contexto das vizinhanças nas quais elas surgem. Como destacam, por
exemplo, Decker e Van Winkle (1996: p 230):
“We believe it is important to understand gang members and their families in the context of the neighborhood they live in. By and large, the members of our samples lived in neighborhoods with few resources. Schools were plagued with difficulties (created in part by members of our samples, housing stock had declined, jobs in the legitimate economy had vanished, and recreation opportunities were hard to find. But not only had the power of formal social institutions been eroded, other mechanisms had lost their ability to control the behavior of neighborhood residents as well. Key among this latter group were neighborhood social control and the family. Viable neighborhoods, with functioning legitimate opportunity structures, go a long way to provide effective controls on behavior, especially for young people. Within the context of declining neighborhoods, families – generally headed by poor single women – often stood alone in their efforts to control the behavior of their children. Living in neighborhoods with limited economic and social capital and generally lacking in these themselves, the families we observed fought a difficult battle up a steep hill”.
9 FAGAN (1989); KLEIN et al. (1991); SPERGEL (1992); DECKER e VAN WINKLE (1996); DECKER e REED (2002); entre outros.
36
1.2.1.4.1. Origens
Entre os estudos já elaborados sobre o tema das gangues, podemos destacar aqueles
feitos pelo sociólogo Thrasher (1927) que, já na década de 1920, estabelecia uma
correlação direta entre as condições sócio-ambientais precárias sob as quais viviam os
jovens em comunidades pobres e o surgimento do crime – mais especificamente aquele
cometido por grupos delinqüentes ou gangues. De acordo com o autor, o processo de
formação de gangues juvenis e o conseqüente aumento das taxas de criminalidade se
manifestava mais efetivamente nestas vizinhanças, devido à falta de estruturas e instituições
sociais que garantissem uma socialização adequada às crianças. Sem a presença mais
efetiva de suas famílias, é justamente nas ruas degradadas dos bairros pobres que estes
jovens têm seus primeiros contatos com as rixas, com as afinidades, com as primeiras
turmas e disputas. A falta de instituições minimamente eficientes de socialização seria
suprida pelo surgimento das gangues, que se encarregariam de fazer este papel junto aos
jovens.
Assim como fizeram Shaw e McKay (1942), Bursik e Grasmick (1993), Sampson
(1997; 1999) e vários outros; Thrasher (1927) enxerga a falência de diversas instituições
sociais como uma das principais causas do surgimento das gangues e, conseqüentemente,
do crime. Nos bairros pobres e deteriorados das grandes cidades, é justamente na ausência
de uma família mais presente, na desestruturação de uma associação de moradores, na
deterioração de uma escola e na falta de atividades supervisionadas que as gangues ganham
seu espaço. Pois é dentro destes grupos que os jovens aprendem as primeiras regras de
convivência e as noções primárias de territorialidade. É dentro das gangues que se
desenvolve a solidariedade entre os membros. Nas palavras de Thrasher (1927:p 6):
“The gang is almost invariably characteristic of regions that are interstitial to the more settled, more stable, and better organized portions of the city. The central tripartite empire of the gang occupies what is often called “the poverty belt” – a region characterized by deteriorating neighborhoods, shifting populations, and the mobility and disorganization of the slum. (…) The beginnings of the gang can best be studied in the slums of the city where an inordinately large number of children are crowded into a limited area. On a warm summer evening children fairly swarm over
37
areaways an sidewalks, vacant lots and rubbish dumps, streets and alleys. (…) In this ubiquitous crowd of children, spontaneous play-groups are forming everywhere – gangs in embryo. Such a crowded environment is full of opportunities for conflict with some antagonistic person or group within or without the gang’s own social milieu. The conflict arises on the one hand with groups of its own class in disputes over the valued prerogatives of gang land – territory, loot, play, spaces, patronage in illicit business, privileges to exploit, and so on; it comes about on the other, through opposition on the part of the conventional social order to the gang’s unsupervised activities. Thus, the gang is faced with a real struggle for existence with other gangs and with the antagonistic forces in its wider social environment. Play-groups easily meet these hostile forces, which give their members a ‘we’ feeling and star the process of ganging so characteristic of the life of these unorganized areas”.
Pode-se dizer, portanto, que as gangues emergem dos grupos ou turmas de amigos
formadas em brincadeiras de ruas entre vizinhos. No entanto, elas só passam a ser
caracterizadas como gangues, de fato, a partir do momento em que se envolvem em
comportamentos desviantes, como também consideram Decker e Van Winkle (1996) e
Zaluar (1994). Muitas vezes, isso acontece quando se coloca frente ao grupo algum tipo de
ameaça. Seja ela vinda de entidades da comunidade ou de alguma turma de um bairro
vizinho. Esta ameaça e os primeiros enfrentamentos fazem com que estes garotos adquiram
um sentimento maior de grupo e, conseqüentemente, de gangue. A essência destes grupos
acaba sendo forjada no confronto, na ameaça, no enfrentamento. O que, em um primeiro
momento, eram apenas turmas, acabam se tornando grupos de conflito com seus primeiro
líderes naturais e suas próprias regras de convivência. E é justamente destes grupos que
emergem as gangues.
38
1.2.1.4.2. Características
Uma característica das gangues ressaltada por diversos autores10 diz respeito à sua
estrita noção de territorialidade. Como parte do processo de definição e até mesmo de
afirmação de suas identidades sociais, cada gangue delimita seu território e será dentro dele
que o grupo estabelecerá suas próprias leis, seus hábitos, suas atividades e condutas. Alguns
autores11 chegam a comparar o território das gangues a feudos modernos, dentro dos quais
vale a lei do senhor das terras. Como barões, os líderes das gangues se encarregam de
organizar a defesa de seu território, a manutenção de sua ordem e a punição dos traidores
ou inimigos. Tanto que, ocasionalmente, quando duas ou mais gangues se estabelecem em
um mesmo território, ocorrem conflitos e rearranjos de poder que podem gerar grandes
ciclos de violência entre os grupos. Geralmente, a contenda só é decidida quando um dos
grupos é eliminado.
Vale observar que, ainda que de forma subentendida, esta característica de conflito e
domínio territorial inerente às gangues acaba por constituir um estímulo muito forte para
que outros jovens de uma comunidade também queiram se tornar membros deste tipo de
grupo. Isso acontece porque, em uma comunidade marcada pela presença das gangues, a
vida pode ser muito difícil e perigosa para aqueles que não fazem parte de nenhuma delas.
Nos bairros pobres e degradados das grandes cidades, o simples fato de pertencer a uma
gangue pode não apenas garantir status, facilidades e regalias a seus membros, como
também proteção contra a ação arbitrária dos demais grupos. Tanto que alguns estudos12
demonstraram que, de maneira geral, as gangues não costumam exercer pressão direta para
que os jovens se unam a ela. Como demonstram Decker e Van Winkle (1996), geralmente,
o assédio acontece no sentido contrário. A pressão psicológica exercida pela ameaça que
vem das gangues de fora da comunidade faz com que a entrada para um destes bandos se
torne uma alternativa perfeitamente viável para garantir a própria segurança.
Além da proteção contra as ameaças externas, o pertencimento a uma gangue também
pode garantir a seus membros uma série de benefícios, tanto instrumentais quanto sociais.
As vantagens instrumentais incluem fatores como o ganho de dinheiro rápido e fácil –
10 CHAIKEN e CHAIKEY (1990); ZALUAR (1994); DECKER e VAN WINKLE (1996). 11 SOARES (2000). 12 ZALUAR (1994).
39
oriundo da venda de drogas ou da prática de diversos outros crimes – e até mesmo a
conquista de moradia. Os benefícios sociais, por sua vez – talvez os que realmente
importam aos jovens que se filiam a uma gangue -, vão desde o poder e o prestígio que o
pertencimento a um dos grupos da vizinhança traz consigo, até o reconhecimento público
em meio a uma comunidade de excluídos.
Na visão de Zaluar (1994) e de Adorno (1999), todos estes fatores atuam como
atrativos para os jovens que, depois de filiados às gangues, acabam se afastando de
instituições como o mercado de trabalho, a família, a escola, a igreja e as associações de
bairro, o que, por sua vez, diminui sensivelmente os encargos sociais de se cometer um
crime. Zaluar (1994: p 143) ressalta a função de agência de socialização que desempenha a
quadrilha entre os jovens:
“Como agência de socialização, a quadrilha parece cumprir uma função sem par. É nela que os jovens iniciados podem passar por um ritual (de fogo) em que provam a sua audácia ou disposição para matar, desafiam o medo da morte e da prisão, enfrentam o perigo maior que pessoas dessa classe social podem enfrentar. Numa subcultura criminosa que marca o espaço exclusivo da masculinidade – o campo da guerra - , o uso da arma de fogo, o primeiro assalto, a primeira morte, são como rituais de passagem que marcam a entrada do menino no mundo dos homens. De fato, essa criminalidade demarca também os limites de uma cultura viril exclusiva, sem matizes, sem a dialética do feminino como contraponto. É um sistema simbólico criado sob o signo da masculinidade apenas. Neste imaginário, o uso de armas, o dinheiro no bolso, as roupas são apenas sinais exteriores que atraem as mulheres, ‘muitas mulheres’ para o homem que consegue adquirir esses sinais. A representação das mulheres, nesse sistema, é de seres inferiores, inaptas para a guerra, dependentes, que precisam ser conquistadas e mantidas como dinheiro e consumo de muitas roupas e jóias. (...) Mas a quadrilha, enquanto um dos centros de reprodução da criminalidade – do ensino das técnicas, da transmissão de valores e das estórias de seus personagens, do reconhecimento de papéis e grandes feitos, da internalização das regras de convívio – opõe-se à família por representar a cultura de rua. Na ótica dos trabalhadores, a quadrilha é uma agência de socialização de seus filhos que compete com a família e que encaminha os jovens para a violência e a morte prematura. Na ótica dos bandidos, a quadrilha é uma ‘escola do crime’, um aprendizado do vício, uma engrenagem da qual não se consegue sair. Todos os entrevistados se referiram aos crimes cometidos porque os ‘colegas chamam’, porque ‘se mistura’, porque ‘vê os outros fazer’, porque ‘se acostuma’, porque ‘só vê lance de tóxico e tiro”.
40
1.2.1.4.3. Formas e Variações
Como destaca Weisel (2002), apesar de as gangues serem quase sempre definidas,
genericamente, como grupos delinqüentes, é preciso observar que elas se organizam de
formas diferentes, o que as torna, inclusive, um problema bastante difícil de ser combatido.
Além disso, muitos estudos já demonstraram que, com o passar das décadas, as gangues
acabaram por se tornar uma forma orgânica e adaptativa de organização, muitas vezes com
lideranças difusas, hierarquia pouco definida e envolvimento em várias frentes criminosas.
Isso fez com que elas se adaptassem às mais diferentes condições de vida, a ponto de serem
capazes de sobreviver em ambientes extremamente voláteis e competitivos.
Além disso, estudos de diversos autores13 demonstram que, tanto no Brasil quanto nos
Estados Unidos, algumas gangues têm se envolvido com atividades que as levam a assumir
contornos similares às quadrilhas do crime organizado. Com o passar dos anos, muitas
gangues deixaram de ser turmas desorganizadas para se tornarem quadrilhas com lideranças
formais, com definição e diferenciação de papéis entre seus membros, com organização de
encontros e reuniões formais, com comprometimento dos integrantes com regras
explicitamente estabelecidas e com objetivos criminosos claramente definidos. De acordo
com Weisel (2002), algumas delas chegam até mesmo a ter participação em negócios
lícitos, contatos com gangues de cidades diferentes, ramificações formalmente constituídas
em presídios e até mesmo envolvimento com políticos.
Nos grandes centros urbanos, é cada vez maior o número de gangues envolvidas com
o narcotráfico, com roubo de carros, com assaltos de grande porte e até mesmo com
contrabando de armas e bens de consumo em geral. Portanto, o que tem sido visto em
alguns casos é uma crescente profissionalização das gangues. Se antigamente os jovens se
uniam às gangues em busca de proteção e por causa de laços de afinidade pessoal e de
companheirismo, hoje em dia muitos destes grupos têm crescido porque representam uma
garantia de status e ganhos financeiros vertiginosos para seus membros.
13 FAGAN (1989); SPERGEL et al. (1991); KLEIN (1995); MISSE (1997); Weisel (2002); entre outros
41
1.2.2. Tráfico de drogas
Tendo em vista que este estudo pretende analisar os mecanismos através dos quais a
violência e a criminalidade surgem e se consolidam no seio de comunidades pobres e
deterioradas das grandes cidades, não se pode deixar de abordar também o papel
determinante exercido pelo tráfico de drogas neste cenário. Em um primeiro momento,
torna-se necessário desfazer uma forte impressão que se formou no imaginário coletivo, de
que existiria uma relação causal direta entre o consumo de drogas e a criminalidade. De
acordo com esta impressão o uso de drogas levaria os jovens ao vício e, conseqüentemente,
à prática de crimes para garantir o sustento deste vício. No entanto, muitos estudos14 já
obtiveram sucesso em demonstrar que, excetuando-se o caso do crack, não existe
necessariamente uma relação direta entre a prática de atos desviantes e o consumo de
entorpecentes. Segundo Chaiken e Chaiken (1990: p 205), por exemplo:
“In short, no simple sequential or causal relationship is now believed to relate drug use to predatory crime. When the behaviors of large groups of people are studied in the aggregate, no coherent general patterns emerge associating drug use per se with participation in predatory crime, age at onset of participation in crime, or persistence in committing crime. Rather, different patterns appear to apply to different types of drug users. But research does show that certain types of drug abuse are strongly related to offenders’ committing crimes at high frequencies – violent crimes as well as other, income-producing”.
Ainda que essas pesquisas tenham demonstrado que não existe necessariamente
qualquer relação entre o consumo de drogas e a prática de crimes, naquilo que diz respeito
ao tráfico de entorpecentes, a questão se torna completamente diferente. No entanto, vários
estudos15 indicam que existe, sim, uma relação direta entre o tráfico (diferentemente do
consumo e do uso) de drogas e o aumento das taxas de criminalidade onde este comércio
acontece. E isso ocorre porque, por ser uma atividade ilegal e desproporcionalmente
lucrativa, a venda de drogas mobiliza uma grande estrutura para garantir sua eficiência.
Várias pessoas precisam trabalhar conjuntamente para cuidar de aspectos como a segurança
14 FAGAN (1989); KLEIN (1991); JOHNSON et al. (1990); CHAIKEN E CHAIKEN (1990); entre outros. 15 ZALUAR (1994); ADORNO (1999); CHAIKEN & CHAIKEN (1990); JOHNSON et al. (1990); entre outros.
42
do negócio, vigilância sobre a polícia e possíveis inimigos, além da manutenção dos postos
de venda. Talvez seja por isso, nos grandes centros urbanos, o tráfico de drogas sempre
tenha aparecido como uma atividade intimamente ligada à atuação de gangues que se
formaram e atuam em bairros pobres e miseráveis. Como afirmam Chaiken e Chaiken
(1990: p 213):
“In all studies that have examined the issue, the relationship between drug use and criminality has been found to be substantially weaker than the relationship between drug sales and other forms of criminality. Most people who sell drugs do so occasionally and privately and are not likely to be involved in predatory crimes. But those who sell drugs publicly, for example in parks, streets, or back alleys, are likely to commit predatory crimes and to commit them at higher rates than people who commit the same type of offenses but do not sell drugs. Some of the robbery and other assaultive crimes committed by offenders who also sell drugs are systemic aspects of the drug trade. Given the highly competitive nature of drug distribution and the obvious lack of official regulation, violence and robbery are sometimes used to drive competitors out of business or to protect a dealer’s money, supplies, and connections. Other assaults and predatory crimes committed by drug dealers arise from their need for money for money for drugs and are opportunistically focused on the first available target – although many addicts are able to sustain their use by committing less serious crimes. However, many predatory crimes are committed by dealers who find vulnerable victims with cash, follow them to a secluded area, threaten or actually injure them, and take their money”.
Segundo Zaluar (1994), é precisamente através das gangues ligadas à exploração do
tráfico que a relação entre o comércio de drogas ilegais e o surgimento de altos índices de
criminalidade aparece de maneira mais evidente. De acordo com a autora (Idem), a partir do
momento em que uma gangue se propõe a atuar no ramo do comércio de entorpecentes,
toda a sua estrutura e modo de atuação precisam ser adaptados para tal fim. Na medida em
que a gangue vai tomando intimidade com a lida do tráfico, cada um de seus membros
começa a desempenhar determinadas funções necessárias para o bom funcionamento da
atividade. Alguns ficam responsáveis pela vigilância – armada ou não - da região onde o
“movimento” vai acontecer. Outros ficarão encarregados apenas da venda direta ao
consumidor, enquanto alguns serão responsáveis pela contabilidade da “firma”.
43
Ainda na visão de Zaluar (Idem), gangues que antes se enfrentavam apenas por causa
de questões pessoais e pontuais, agora, já caracterizando-se como uma quadrilha, passam a
lutar entre si por causa de uma negócio que gera lucros rápidos e exorbitantes. E, por se
tratar de uma atividade ilegal que não possui qualquer instância constituída de mediação de
conflitos, o tráfico de drogas traz consigo verdadeiras guerras entre os grupos envolvidos
em sua lida. Dentro das próprias quadrilhas, qualquer desvio de conduta é punido com
muita brutalidade e, às vezes, até mesmo a morte. Ao redor das quadrilhas de traficantes,
montam-se esquemas de contrabando de armas, roubo de veículos, assaltos a bancos para o
financiamento do grupo, invasões de territórios das quadrilhas rivais e muitas mortes. Por
isso é que, nas comunidades onde o tráfico se instala, constitui-se também um verdadeiro
regime de terror e mortes, mediado pela brutalidade das quadrilhas, pela desorganização
dos constantes e sempre sangrentos rearranjos de poder.
1.2.2.1. Hipótese
Ainda que não nos seja possível esgotar aqui toda a discussão a respeito do
surgimento de altas taxas de criminalidade em favelas e bairros pobres dos grandes centros
urbanos, a exposição do presente quadro teórico pode nos ajudar a contextualizar o
desenvolvimento de tal discussão dentro da realidade específica que observamos em várias
vilas e favelas brasileiras. Isso porque, acreditamos, boa parte da violência que atualmente
se apresenta em tais lugares pode ser perfeitamente compreendida através do uso de uma
abordagem ecológica, mais precisamente, através do referencial colocado pelas teorias da
Desorganização Social e da Eficácia Coletiva.
Ou seja, pretendemos trabalhar com a hipótese de que boa parte da violência e da
criminalidade que observamos em algumas vilas e favelas das grandes cidades brasileiras
pode ser atribuída à pouca ou nenhuma capacidade que os moradores destas comunidades
possuem de estabelecer um conjunto de valores e objetivos comuns (pouca coesão social);
assim como à falta de capacidade dos mesmos de controlar ou supervisionar o
comportamento mútuo (baixo nível de eficácia coletiva). Esta incapacidade, por sua vez,
seria fruto da grande concentração de desvantagens estruturais presentes nestas
comunidades – falta de condições de habitação, alta rotatividade residencial, condições de
44
vida precárias -, assim como do estado de falência e deterioração em que se encontram,
nestes locais, instituições como família, escolas, igrejas, associações de bairro e outras
entidades representativas que, em princípio, deveriam servir como fonte de coesão social e
de controle do comportamento. Esta situação faz com que tais vizinhanças se tornem locais
altamente propícios ao surgimento de gangues e quadrilhas criminosas.
Como já afirmamos, tomaremos como campo de estudo a favela Pedreira Prado
Lopes, localizada na região Noroeste de Belo Horizonte e considerada um dos aglomerados
mais violentos da capital. Ocorrências registradas diariamente nesta favela indicam
claramente que a imensa maioria dos crimes cometidos na PPL possui relação direta ou
indireta com as gangues de traficantes que lá se estabeleceram. Em um primeiro momento,
faz-se necessário traçar um breve histórico da favela, mostrando seu surgimento e seu
processo de ocupação, assim como a situação atual em que ela se encontra. Em seguida,
será preciso demonstrar como a criminalidade surgiu e se desenvolveu na PPL, até chegar
no estágio atual. Somente a partir daí, torna-se possível tentar fazer uma descrição
minuciosa do regime de terror e mortes imposto pelo tráfico de drogas na favela e as
conseqüências desta realidade no corpo social da sua comunidade.
45
CAPÍTULO 2: O processo metodológico de desenvolvimento da pesquisa
“A gente aqui sobrevive no inferno” (D. A. S., 17 anos, traficante da parte baixa da Pedreira Prado Lopes
2.1. A construção do corpus da pesquisa
Considerando que esta pesquisa se propõe a compreender o problema do surgimento
da violência e da criminalidade em comunidades pobres e deterioradas dos grandes centros
urbanos, torna-se necessário adotar uma metodologia de trabalho que permita a descrição
fiel e detalhada de todo o ambiente físico e social de tais vizinhanças, e uma vasta coleta de
dados qualitativos junto aos moradores destas regiões. Como este trabalho tomará como
campo de estudo a favela Pedreira Prado Lopes, aglomerado localizado na região Noroeste
de Belo Horizonte, decidiu-se fazer uso de formas de coleta de dados que permitissem uma
apreensão mais detalhada possível de todas as nuances da vida comunitária, do ambiente
físico, das relações sociais que se estabelecem naquele espaço e, fundamentalmente, das
formas de organização adotadas pelas gangues juvenis que se estabeleceram na PPL.
De antemão, observamos que o primeiro problema enfrentado seria a dificuldade de
inserção em meio ao campo de estudo escolhido. Conseguir permissão para estudar,
entrevistar ou acompanhar o dia-a-dia de gangues ligadas ao tráfico de drogas, por
exemplo, foi uma tarefa extremamente difícil, devido à própria atividade criminosa
exercida por elas e a enorme aversão a contatos externos manifestada pelos seus membros.
Durante quatro anos de trabalho jornalístico, lidei diariamente com a questão da violência e
da criminalidade, principalmente quando estes assuntos estavam relacionados com jovens
moradores de vilas e favelas de Belo Horizonte. Pela experiência que adquiri durante este
período, já sabia que os rapazes envolvidos com o tráfico de drogas seriam extremamente
resistentes a qualquer tipo de abordagem mais direta.
Justamente por isso, foi preciso optar, pelo menos em um primeiro momento, por
uma via indireta de acesso a eles. Foi preciso ganhar a confiança de diversos membros
daquela comunidade e fazê-los entender o objetivo principal deste trabalho. Não há como
46
negar que estes primeiros contatos foram feitos ainda enquanto repórter, nas inúmeras
oportunidades que tive de freqüentar a Pedreira Prado Lopes. Durante estas incursões, fiz
contatos iniciais não apenas com um grande número de moradores, como também com
vários rapazes membros de gangues que atuavam no aglomerado. Cada vez que subia a
Pedreira, anotava telefones, endereços de contato e o nome de possíveis fontes a serem
entrevistadas em minha futura pesquisa.
Para fazer este trabalho, retomei estes contatos e, como foi dito anteriormente, optei
por chegar às quadrilhas de maneira indireta, utilizando não apenas moradores que
conviviam diretamente com os membros das gangues, como rapazes que já haviam feito
parte destes grupos e que, apesar de já terem deixado de atuar neles, ainda mantinham
contato com os atuais membros. Foram precisamente estas pessoas que, além de fornecer
importantes relatos sobre uma infinidade de temas inerentes à pesquisa, fizeram com que
fosse possível entrevistar diversos daqueles garotos envolvidos com o tráfico na Pedreira
Prado Lopes. Além do que, a questão da violência e da criminalidade na PPL é tão
marcante e tão presente no seu cotidiano, que qualquer entrevista realizada no aglomerado
sempre remetia a outros moradores, outras histórias de vida e, conseqüentemente, à
realização de novos contatos. A impressão que se tem é que cada um dos moradores da
Pedreira, por mais alheio que seja às questões da favela, possui uma vivência muito
marcante no que se refere à violência, à brutalidade e ao terror imposto pelas gangues. A
violência do tráfico permeia de tal forma a vida dos moradores, preenche de maneira tão
avassaladora a experiência diária daquelas pessoas, que qualquer entrevistado possui ao
menos um depoimento interessante a fornecer sobre o assunto.
Nesse sentido, foi fundamental a participação de um traficante que conheci apenas
pelo nome de “Fernando”. Em julho de 2002, este rapaz foi preso por policiais militares do
Batalhão Rotam, juntamente com um dos principais gerentes do tráfico da favela. Na
ocasião fiz uma reportagem sobre o caso e tive a oportunidade de realizar uma longa
entrevista com os dois traficantes. Tal entrevista foi publicada em um jornal de grande
circulação de Belo Horizonte e inevitavelmente chegou às mãos dos traficantes da PPL.
Meses depois, voltando à Pedreira pra realizar outra reportagem, me encontrei com
“Fernando” em uma das principais vias do aglomerado. Já livre da prisão, ele me procurou
para comentar que havia gostado muito da reportagem porque, pela primeira vez, um
47
jornalista havia publicado com fidelidade o relato de um traficante da PPL. Batendo com a
mão em meu ombro, ele disse que, daquele dia em diante, eu havia ganhado seu respeito e
que, se dependesse dele, poderia ter livre acesso à favela. Como, na ocasião, “Fernando”
ocupava o cargo de braço-direito de um dos principais gerentes do tráfico da favela, foi
justamente através dele que tive acesso a vários integrantes das gangues da parte baixa da
PPL.
É claro que a metodologia ideal para a realização de tal pesquisa seria uma imersão
não revelada em meio às gangues. No entanto afirmamos, categoricamente, que, em meio
às quadrilhas da PPL, é impossível realizar qualquer tipo de observação participante com o
observador não revelado. Devido ao fato de serem formadas por jovens nascidos e criados
na favela, as gangues são capazes de detectar imediatamente a presença de qualquer pessoa
estranha àquele ambiente. E a presença de um observador, ainda mais um tão “externo”
quanto eu, jamais passaria desapercebida por eles.
O primeiro contato com as gangues da Pedreira aconteceu ainda no ano de 2000,
quando tive a oportunidade de subir o morro como jornalista. Como pesquisador, e já sob o
olhar desta pesquisa, os primeiros contatos foram estabelecidos em 2002, com moradores e
lideranças comunitárias já conhecidas. Com os traficantes propriamente ditos, as entrevistas
iniciais foram feitas de forma bastante esporádicas, uma vez que a sua desconfiança era
muito grande. No entanto, depois das primeiras entrevistas, alguns começaram a indicar
outros e assim por diante. Apesar de toda a resistência que demonstram ao contato externo,
percebe-se que praticamente todos eles sentem uma grande necessidade de falar sobre si
mesmos e sobre suas histórias de vida. Demonstram uma grande carência de falar para
quem realmente os ouça, para quem realmente queira saber de sua vida, de seu dia-a-dia
brutal e violento.
Apesar da rápida sensação de onipotência que o “fazer parte do tráfico” proporciona,
estes rapazes costumam se abrir de forma até mesmo surpreendente àqueles que conquistam
minimamente sua confiança e àqueles que demonstram querer compreender o mundo em
que eles vivem. Como repórter, mantive inúmeros contatos com estes jovens em delegacias,
em instituições para menores infratores e até mesmo nos locais onde eles atuam. A reação é
quase sempre a mesma. Em um primeiro momento, são arredios, ameaçadores e até mesmo
agressivos. Mas, a partir do momento em que o jornalista ou o pesquisador se despe de seus
48
preconceitos e demonstra estar realmente interessado em ouvi-los, eles se desarmam e se
mostram bastante entusiasmados em contar suas aventuras, seus conflitos, seus crimes e sua
violenta rotina de confrontos armados, traições, medos e mortes.
No caso desta pesquisa, optei ser bastante direto com estes rapazes. Mostrar
claramente como pretendia trabalhar e que o estudo não iria trazer qualquer tipo de
constrangimento ou prejuízo aos demais membros daquelas gangues. Nesse sentido, foi
fundamental assegurar que nenhuma das informações obtidas ali seria repassada à polícia
ou a qualquer outra entidade. Foi necessário assegurar a eles que nenhum contato seria
exposto, nenhuma conversa seria gravada em qualquer mídia e nenhuma fotografia seria
feita. A única forma de registro que me foi permitida utilizar foi um bloco de anotações de
campo. Admito que este instrumento foi bastante impreciso e às vezes bastante incômodo.
Mas foi o único aceito pelos traficantes, devido ao tema de estudo, às informações que
estavam ali sendo tratadas e à desconfiança natural que um “estrangeiro” como eu provoca
entre eles.
Mesmo durante as entrevistas com moradores, o uso de um gravador acabava
constrangendo o entrevistado, que em geral era pessoa muito simples e praticamente nunca
conseguia se sentir à vontade para falar de temas ligados à violência quando era colocado
frente a frente com um gravador. Por fim, acabei utilizando apenas o bloco de anotações de
campo, que foi o que me pareceu o instrumento mais adequado ao registro de informações
conseguidas na PPL. Ainda assim, em vários momentos, fui proibido até mesmo de anotar
determinadas informações que iam sendo relatadas pelos entrevistados. Esta postura foi
adotada por moradores e traficantes, principalmente quando o assunto dizia respeito ao
possível envolvimento de policiais no tráfico da favela.
Depois de reiterados contatos e entrevistas, inicialmente realizadas em locais neutros,
como casas de moradores da Pedreira, bares da região central de Belo Horizonte e até
mesmo igrejas e escolas da região Noroeste da capital, conquistei o mínimo de confiança
dos membros de uma determinada gangue e tive autorização para freqüentar, durante um
único dia – e ainda assim com acompanhamento constante - os lugares onde acontecia a
venda de drogas de uma das quadrilhas.
Em uma das fases da pesquisa de campo, também foram feitos contatos com policiais
militares que trabalham de forma velada no aglomerado. Novamente, desta vez com o
49
acompanhamento destes militares, foi possível observar de perto o funcionamento dos
pontos de venda de drogas e a atuação das gangues. Os policiais também foram
entrevistados, no sentido de tentar remontar sua rotina de trabalho, suas experiências na
Pedreira Prado Lopes, assim como as impressões e análises sobre a mecânica do tráfico de
drogas praticado naquele aglomerado.
Ao final do trabalho de campo, foram realizadas 52 entrevistas: 30 com moradores,
sendo 2 com líderes comunitários; 7 com policiais militares, além de 15 com traficantes e
membros de gangues que atuam no aglomerado – estes últimos com idades variando entre
14 e 24 anos, nenhum deles sequer com o segundo grau completo (algumas destas
entrevistas encontram-se em anexo no final deste trabalho). Como foi dito anteriormente, os
primeiros moradores a serem entrevistados foram aqueles com os quais tive contato como
jornalista. Depois de entrevista-los para a presente pesquisa, pedi a cada um deles que me
indicasse um parente, vizinho ou conhecido que também tivesse vivenciado alguma
experiência ligada à violência na Pedreira.
No que se refere aos traficantes, os primeiros contatos foram realizados através da
intervenção de “Fernando”, que me conduziu entre as gangues da parte baixa, me
apresentou para vários integrantes daqueles grupos e convenceu vários deles a conceder
entrevistas para este trabalho. Com os traficantes da parte alta da favela, por sua vez, os
primeiros contatos foram feitos em após uma reportagem que realizei sobre a prisão de um
deles, em outubro de 2003. Ao entrevistá-lo, para minha surpresa, ele disse que já havia
ouvido falar sobre minha presença a Pedreira e sobre a pesquisa que eu vinha realizando.
Rapidamente, expliquei a ele minha pesquisa e disse que tinha interesse de conversar
também com os membros de sua gangue. Sem que os policiais percebessem, ele me passou
um número de telefone e me recomendou que procurasse seu irmão. Dias depois, liguei
para o telefone que havia recebido e consegui falar com o irmão do traficante. Combinei
uma visita à casa dele, ocasião em que pude explicar minha pesquisa. Assim como
“Fernando” havia feito comigo junto aos traficantes da parte baixa da PPL, este rapaz, que
conheci apenas pelo nome de “Carlos”, me guiou entre os traficantes da parte alta da favela.
As entrevistas foram realizadas entre o primeiro semestre de 2000 e fevereiro de
2004, quase sempre dentro da própria Pedreira e, no caso de alguns traficantes que tinham
medo de serem vistos conversando comigo, em bares da região central de Belo Horizonte.
50
Devido à delicadeza do tema pesquisado, as entrevistas não puderam seguir um cronograma
previamente planejado. Houve vezes em que consegui realizar até três entrevistas em um
único dia. Em compensação, houve vezes em que passei dois meses sem conseguir coletar
um único depoimento. Principalmente no que se refere aos traficantes, fui obrigado a
interromper meus trabalhos várias vezes, por conta dos intermináveis conflitos travados
entre as gangues. Somente quando a favela passava por períodos de calmaria, as chamadas
“tréguas”, pude ir até a favela para realizar as entrevistas.
Para garantir uma abordagem mais profunda e completa do tema, optamos por utilizar
conjuntamente duas formas de abordagem metodológica: a Observação Participante e os
Relatos Orais.
2.2. A Observação Participante
A observação participante consiste, basicamente, em coletar dados através da
participação direta na vida cotidiana do grupo ou organização que se pretende estudar. O
observador torna-se, portanto, parte do contexto que está sendo observado. Como afirmam
Schwartz e Schwartz (1995): O papel do observador pode ser formal ou informal, oculto ou
revelado; o observador pode passar muito ou pouco tempo no campo de observação; o papel do
observador participante também pode ser um elemento integrante ou periférico ao contexto
observado.
Ainda segundo Schwartz e Schwartz (Idem), por se tratar de um método em que é
praticamente impossível manter um distanciamento científico de seu objeto de estudo, o
pesquisador que faz uso da observação participante deve ficar atento aos métodos que
utiliza para registrar os dados observados. O tempo decorrido entre os processos de coleta e
registro de dados deve ser o mais breve possível para evitar que imprecisões sejam
cometidas. Como o processo da observação participante se dá em três momentos – registro,
interpretação e recodificação -, é necessário que se tenha uma atenção especial para que
muitas das informações coletadas não sejam adulteradas, perdidas ou interpretadas de
forma enganosa devido a preferências pessoais ou outras questões subjetivas.
Devido ao fato de forçar o pesquisador a conviver diretamente – e às vezes
diariamente - com seu objeto de estudo, a pesquisa feita através da observação participante
costuma obter uma quantidade enorme de dados. Por isso, é preciso que o pesquisador
51
delineie com precisão qual será o fio teórico condutor de seu trabalho e quais aspectos
deverão ser abordados durante a pesquisa.
Outro problema que se coloca para o pesquisador que opta pela observação
participante é a inserção em meio ao objeto de estudo, no caso as gangues da Pedreira.
Resolvida a questão da inserção, como já afirmamos anteriormente, o pesquisador precisa
estar atento para os problemas advindos do próprio método de observação participante. Ou
seja, no caso de um tema de estudo cercado por várias histórias e fantasias promovidas pela
mídia, como é o caso deste estudo, o pesquisador deve ficar atento para não se deixar levar
pelo discurso fácil e proselitista dos membros das gangues pesquisadas.
Por experiência própria, sei que estes rapazes costumam dar contornos irreais a seu
cotidiano. Na tentativa de se colocarem como heróis de uma comunidade oprimida, estes
garotos tendem a criar narrativas fantasiosas e discursos fáceis sobre os motivos que os
levaram a entrar para o tráfico, sobre os confrontos nos quais se envolveram, sobre a
quantidade de dinheiro que ganham com o comércio de entorpecentes e sobre seu falso
domínio sobre uma população que, longe de respeitá-los, apenas os teme.
Na observação participante, de acordo com Becker (1993), as influências advindas da
relação “observador-objeto de observação” devem ser levadas em conta durante todo o
tempo de pesquisa para que não se incorra em erros primários de interpretação ou de coleta
de dados e informações que não sejam a melhor expressão do real. Deve-se tentar também
deixar bem claro até que ponto a presença do observador afeta a vida do grupo observado
nos seus mais diversos aspectos. Enfim, todas estes fatores devem ser considerados, a partir
do momento em que um pesquisador se propõe a fazer um estudo que utiliza uma
abordagem metodológica desta natureza e pretende construir modelos de análise que se
pretendam válidos para as Ciências Sociais.
2.3. Os Relatos Orais
Outra técnica utilizada durante a presente pesquisa foi a dos relatos orais, uma vez
que parte fundamental deste estudo se produziu a partir das entrevistas realizadas com
vários representantes de todos os setores da comunidade estudada, além dos adolescentes
membros de gangues envolvidas com o tráfico de drogas.
52
Em Sociologia, a técnica dos relatos orais nada mais é do que uma forma de se
registrar, na íntegra, a narrativa dos próprios indivíduos pesquisados sobre determinados
assuntos pertinentes ao estudo que se desenvolve. Esta narrativa é colhida através da
realização de entrevistas em profundidade com pessoas que, acredita-se, sejam indivíduos
representativos de uma determinada comunidade ou organização.
No caso deste estudo de caso, as entrevistas foram realizadas com o auxílio de um
bloco de anotações de campo, sem um roteiro previamente construído. A única
preocupação que tivemos foi a de fazer uma lista de assuntos que deveriam ser abordados
para o desenvolvimento satisfatório da entrevista. No que se refere aos moradores e aos
líderes comunitários, as entrevistas trataram das experiências que eles tiveram, e ainda têm,
com a violência das gangues e do tráfico; das opiniões pessoais que cada um possui a
respeito do tráfico e da delinqüência juvenil; da relação que eles mantinham com os
traficantes; da experiência e opinião que cada um possuía com relação à polícia; e das
possíveis alternativas que cada um enxergava para a solução do problema.
Nas entrevistas realizadas com os traficantes, foram abordados temas como a escola,
a família, a entrada para o tráfico – motivações, provas de iniciação, expectativas -; a
vivência dentro do tráfico – rotina, modos de atuação, experiências mais marcantes -; a
questão da repressão e da corrupção policial, além da relação com os moradores.
Com os policiais, as entrevistas abordaram temas como o trabalho investigativo e
repressivo feito na Pedreira; a relação com a comunidade; a relação com os traficantes; a
corrupção policial e a visão que eles possuem sobre as mais diversas formas de violência e
de criminalidade que se instauraram na PPL. A maioria das entrevistas com policiais foi
realizada em locais neutros, ou seja, nem na Pedreira Prado Lopes, nem nos batalhões da
PM.
Devido à natureza do tema tratado e à necessidade de se conquistar um razoável grau
de confiança dos entrevistados, as entrevistas se desenvolveram de maneira bastante
informal, simples e direta. Apesar de sempre ressaltar a função das entrevistas e minha
posição de pesquisador, sempre que possível, tentei estabelecer com o entrevistado um tipo
de interlocução que se caracterizasse mais como um diálogo. Embora bastante amplo, o
roteiro de temas a serem abordados não constituiu uma amarra ao desenvolvimento da
conversa, ao contrário, serviu como um instrumento para o diálogo, uma forma de lembrar
53
ao pesquisador os assuntos que não podiam deixar de ser tratados. Apesar de propiciar um
controle menos rígido da entrevista, acreditamos que esta forma mais solta de diálogo –
mas nem por isso menos orientada - tenha ajudado a revelar aspectos que não haviam sido
previstos em fases anteriores da pesquisa.
Como ressaltam Pereira (1991) e Queiroz (1987), uma das principais vantagens dos
relatos orais é a possibilidade de se estabelecer generalizações a partir do conhecimento
adquirido pelas entrevistas. Tal procedimento torna-se possível a partir do momento em que
se coleta um número suficientemente grande de depoimentos, até que se obtenha aquilo que
costuma ser chamado de “saturação”, ou seja, o momento em que os relatos das mais
diversas fontes ou informantes sobre um determinado assunto começam a se repetir. Assim,
não existe um número padrão que permita ao pesquisador saber quando deve encerrar seu
ciclo de entrevistas. Isso varia de acordo com o assunto pesquisado, com o universo
estudado e com a própria proposta da pesquisa. Cabe ao próprio estudioso perceber quando
os relatos começam a se repetir e já são passíveis de serem considerados generalizáveis.
54
CAPÍTULO 3: Passado e Presente na Pedreira Prado Lopes
Pedreira Prado Lopes: quem hoje vê este nome escrito, quase que diariamente, em
descartáveis páginas de jornal não consegue sequer imaginar toda história de luta,
sofrimento, degradação e violência de uma comunidade que, há aproximadamente 100
anos, formava aquela que é considerada a primeira favela de Belo Horizonte. Presa aos
ditames do factual e à ânsia do espetacular, a imprensa sempre se contentou em apenas
relatar os mais sangrentos episódios da guerra do tráfico que tomou conta da PPL nos
últimos anos. Episódios estes que, definitivamente, não permitem a realização de uma
análise mais aprofundada sobre os mais diversos aspectos históricos e estruturais que, ao
longo dos anos, possibilitaram a consolidação desta realidade de violência e mortes na
favela.
Justamente por isso, antes de fazer qualquer proposição sobre as possíveis causas da
criminalidade na Pedreira, é fundamental analisar a história da formação do aglomerado.
Por si só, tal estudo já pode fornecer indícios bastante significativos de como, no decorrer
de seus 100 anos de existência, a favela veio a se tornar uma das regiões mais violentas de
Belo Horizonte. Uma análise mais aprofundada das origens da PPL, por exemplo, evidencia
que a favela sempre apresentou vários dos aspectos mencionados anteriormente como
elementos favoráveis ao surgimento da violência e da criminalidade. Devido às próprias
características de sua ocupação, a Pedreira sempre apresentou altas taxas de rotatividade
residencial, heterogeneidade populacional, além da extrema concentração de desvantagens
econômicas e estruturais, juntamente com a falência de instituições de controle formal e
informal e um baixíssimo grau de coesão social.
O estudo da história da favela demonstra que todos estes aspectos estão bastante
presentes na gênese do aglomerado, o que tornou a Prado Lopes um ambiente altamente
propício ao surgimento e à consolidação da criminalidade, principalmente aquela ligada ao
tráfico de drogas.
55
3.1 A História da Pedreira
A verdade é que a história da Pedreira Prado Lopes se confunde com a própria
história da construção da capital mineira. Assim como aconteceu com outras regiões da
cidade, a área onde hoje fica a PPL foi ocupada por pessoas que vieram de várias regiões de
Minas e até mesmo de outros estados, atraídas por promessas de prosperidade e
oportunidades de trabalho que, na ocasião, surgiam juntamente com a construção planejada
de Belo Horizonte.
Segundo dados de 1998 fornecidos pela Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte
(URBEL), setor ligado à Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, a origem da Pedreira
Prado Lopes não se difere da origem das demais favelas da cidade:
“Como se sabe, esta foi a origem das primeiras favelas da cidade. Belo Horizonte era uma capital destinada às classes média e alta, não possuindo local para a instalação das pessoas de baixa renda que vinham do interior atrás de condições melhores de vida, seja saúde, emprego, educação, água e luz, ou para os que serviram de mão-de-obra na capital. Restava a elas a invasão de áreas públicas ou particulares, onde surgiram as primeiras vilas e favelas. A Pedreira não fugiu a esta regra, pois as pessoas que nela se instalaram não encontraram nada do que vieram procurar. No início de sua existência, ela não possuía nenhuma infra-estrutura. Não havia água, luz, esgoto, calçamento. As casas não eram ainda de alvenaria, mas de adobe, madeira, latão. Os moradores conseguiam água através de cisternas e minas, usavam fossas e lamparinas”.
Observa-se, portanto, que já em seus primeiros anos de existência, por volta de 1910,
a comunidade da PPL era formada por uma população bastante heterogênea que não
possuía qualquer tipo de identificação com seu novo local de moradia. Desde o primeiro
momento, o processo de formação de uma identidade comunitária se viu bastante
prejudicado, o que fez da Pedreira uma comunidade socialmente pouco coesa. É
interessante observar que tal característica de deterioração do tecido social observada na
Pedreira coincide com aquilo que se afirma na teoria da Eficácia Coletiva de Sampson et al
(1997), como sendo um dos principais fatores de fomento ao surgimento da criminalidade.
56
De acordo com registros da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, a origem do
nome “Pedreira Prado Lopes” remete, em primeiro lugar, à família Prado Lopes, que era
proprietária de vários terrenos naquela que hoje é a região Noroeste da cidade. Em segundo
lugar, à gigantesca pedreira em torno da qual se formaria a vila. E foi justamente nesta
pedreira onde centenas de operários trabalharam durante vários anos, para que o governo
conseguisse matéria-prima para realizar as obras necessárias à construção da recém-criada
capital mineira.
De sol a sol, centenas de operários se revezavam na extração das rochas que
formariam Belo Horizonte, em turnos de trabalho que duravam até 14 horas por dia. E,
somada às precaríssimas condições de salubridade do local, a exaustão de um dia de
trabalho semi-escravo fazia com que muitos deles não conseguissem sequer voltar para
casa. Ficavam por ali mesmo, espalhados em barracas improvisadas que acabariam se
tornando a moradia fixa de muitas famílias. Através desta ocupação, quase que
involuntária, nasceu aquela que é hoje uma das maiores e mais violentas favelas de Belo
Horizonte.
De acordo com os mesmos dados de 1998 fornecidos pela Companhia Urbanizadora
de Belo Horizonte (URBEL), já naquela época, eram bastante precárias as condições de
vida da população que se instalava ao redor da pedreira dos Prado Lopes. Apesar de já ser
uma área ocupada desde os primeiros anos do século XX, sua primeira fonte de água só foi
instalada na década de 20, quando a Prefeitura colocou uma torneira pública no
aglomerado. Durante as madrugadas, várias filas se formavam para que os moradores
conseguissem encher seus latões de água. Era pelo terreno extremamente íngreme da
Pedreira que várias senhoras de idade subiam, diversas vezes ao dia, com baldes de água à
cabeça, levando pela beirada de suas saias as crianças que não tinham com quem ficar em
casa. Devido à completa omissão do poder público, já se formava ali um dos cenários mais
miseráveis e degradantes de que se tinha notícia em toda a recém-criada Belo Horizonte. E
talvez seja justamente em razão deste descaso que se verifica, hoje, o grande descrédito da
população da Pedreira Prado Lopes com relação à política e às instituições públicas de
modo geral.
Nas suas primeiras décadas de existência, o espaço ocupado pela Pedreira Prado
Lopes era bem maior do que o que se observa hoje. Miseráveis barracos de madeira se
57
espalhavam por uma área extensa, formando uma vila que, guardadas as devidas
proporções, lembrava uma cidade do interior. No entanto, o crescimento da capital mineira
fez com que várias mudanças fossem processadas na configuração ambiental da PPL. A
abertura de novas avenidas, como a Presidente Antônio Carlos e a José Bonifácio, e o
surgimento de diversas construções, como o Conjunto IAPI, o Colégio Municipal, o
Departamento de Investigações e o Hospital Odilon Behrens, acabaram por comprimir o
espaço anteriormente ocupado, provocando um grande adensamento populacional e a
reconfiguração de todo o espaço da favela. E isso só fez aumentar o cenário de miséria e
decadência da vila.
Por conta das alterações processadas naquela parte da cidade, várias famílias foram
indenizadas pela Prefeitura e tiveram que se mudar da favela, o que contrastava com a
chegada de centenas de novos moradores. A cada avenida que era aberta na região Noroeste
de Belo Horizonte, a comunidade da Pedreira era obrigada a se rearranjar de maneira cada
vez mais improvisada. Moradores mais antigos contam que, naquela época, centenas de
famílias foram embora do morro, o que descaracterizou a comunidade que vinha se
formando. Os antigos barracos de madeira deram lugar às primeiras construções de
alvenaria. Além disso, a sufocante proximidade das residências fez com que a Pedreira
adquirisse um aspecto ainda mais sujo e desorganizado do que o de antes.
Ainda segundo informações fornecidas pela Companhia Urbanizadora de Belo
Horizonte (URBEL):
“Estes remanejamentos e a freqüente chegada de pessoas na Pedreira, num espaço cada vez mais reduzido, fez com que a esta atingisse um nível de adensamento muito elevado. São comuns os becos com poucos centímetros de largura e moradias com dois ou três pavimentos, conformando-se um quadro de condições precaríssimas de ventilação e insolação. Estes fatores fazem com que as doenças do aparelho respiratório sejam a principal causa de mortalidade na vila - 18%, segundo dados do Distrito Sanitário Noroeste”.
Assim, a vila que, em um primeiro momento, lembrava uma pobre cidade do interior,
passou a se parecer mais com um deteriorado cortiço do que com qualquer outra coisa.
Crianças brincavam em meio ao lixo que se acumulava nas estreitas e opressivas ruas da
favela, enquanto vizinhos se desentendiam e resolviam suas diferenças em acaloradas
58
discussões que o ambiente se encarregava de tornar públicas. Mais uma vez, observa-se que
a história da PPL é marcada por diversos aspectos que tornaram praticamente impossível a
consolidação de um corpo social coeso, como destacam Sampson e Groves (1989). As
péssimas condições de vida e a extrema concentração de desvantagens obrigavam muitas
mães a trabalharem fora, o que tornava impossível a supervisão das atividades
desenvolvidas pelas crianças e adolescentes da favela, que acabavam se criando nas ruas.
Todas estas mudanças estruturais, somadas às mais do que precárias condições de
vida, e o alto índice de migração de novas famílias para a área da PPL fizeram com que a
vila se tornasse uma das comunidades mais densamente povoadas e desorganizadas da
capital mineira. A chegada de novas famílias dia após dia e as constantes mudanças e
alterações do espaço físico da vila acabaram por enfraquecer o corpo social da Pedreira e
dificultaram o aparecimento de instituições de representação comunitária. Tanto que as
primeiras reivindicações populares das quais se tem notícia só vieram a ser feitas a partir da
década de 60 e diziam respeito apenas ao preenchimento de condições básicas de
sobrevivência.
Ainda assim, registros da Prefeitura (URBEL, 1998) demonstram que todas estas
movimentações populares aconteceram de forma fragmentada, uma vez que a comunidade
da PPL ainda não havia sido capaz de organizar uma única instituição representativa – fato
que, aliás, pode ser observado até os dias de hoje. As poucas benfeitorias que se
verificavam na vila, até então, eram conseguidas através da relação pessoal e clientelista
que alguns moradores da favela mantinham com políticos ou empresários.
Depois da instalação da primeira torneira pública, outras foram sendo colocadas aos
poucos mas, ainda assim, com o intervalo de vários anos entre uma e outra. Os primeiros
moradores a conseguirem luz elétrica foram aqueles que viviam nas bordas da vila, junto às
grandes avenidas que vinham sendo construídas na cidade. Ainda assim, a imensa maioria
destas primeiras instalações se deu de forma clandestina, assim como a sua futura
propagação. Alguns moradores simplesmente roubavam fiações de postes e conduziam a
eletricidade até os barracões que ficavam nos limites da vila.
Registros indicam que, depois de alguns meses, estes mesmos moradores começaram
a estender sua conquista aos vizinhos mais próximos, através de ligações igualmente
clandestinas, ou “gatos”, como a população chama esse tipo de procedimento. E foi desta
59
forma que, em meados da década de 60, a maioria da população da PPL conseguiu ter, pela
primeira vez, o acesso à luz elétrica. Nada era feito de forma a atender às demandas da
comunidade, uma vez que não havia qualquer tipo de solidariedade ou coesão entre seus
membros.
O cenário que se via no aglomerado era de completa miséria e deterioração. Esgoto
não canalizado corria a céu aberto, transformando várias ruas da vila em grandes focos de
doenças. E o adensamento populacional servia apenas para agravar esta situação e tornar o
ambiente cada vez mais promíscuo e insalubre. Registros da Prefeitura (URBEL, 1998)
indicam que, na Pedreira Prado Lopes, a conquista sistemática de benefícios básicos, ainda
assim com várias restrições, só veio a acontecer por volta das décadas de 70 e 80, época em
que os moradores da vila começam a demonstrar um nível mínimo, mas ainda rudimentar,
de organização popular.
3.2. Diagnóstico Social da Pedreira
3.2.1. Caracterização da População
Apesar de ter quase cem anos de existência, a Pedreira Prado Lopes é, ainda hoje, um
dos maiores bolsões de pobreza de Belo Horizonte. Em 1998, um grande levantamento
feito pela Prefeitura Municipal demonstrou que aproximadamente nove mil pessoas viviam
no aglomerado, dividindo uma área de apenas 142 mil metros quadrados. O reflexo desta
aglomeração pode ser observado logo que se entra na PPL: ruas estreitas, margeadas por
pequenas e miseráveis casas justapostas. A deterioração do ambiente chama a atenção,
assim como a imensa quantidade de construções erguidas em espaços mínimos.
Ainda de acordo com esse estudo da Prefeitura, a maioria dos domicílios
contabilizados na PPL (63,7%) possui de 2 a 5 ocupantes, o que obedece à média brasileira.
No entanto, o número de moradias que contam com mais de seis ocupantes também é alto:
26,4%. Não é difícil notar que muitas das construções da favela comportam mais de um
domicílio. Conseqüentemente, tornou-se bastante comum na Pedreira a existência de casas
que abrigam duas ou três famílias, em espaços que não comportariam com dignidade nem
mesmo uma.
60
O mesmo estudo desenvolvido pela Prefeitura demonstra, ainda, que a população da
PPL é bastante jovem, com 58,8% dos moradores possuindo 25 anos de idade ou menos, o
que também faz com que a favela seja um local bastante propício para o desenvolvimento
do tráfico de drogas. A juventude da população da PPL também é facilmente observável
nas ruas do aglomerado. Durante os dias, é muito comum ver grupos de crianças brincando
nas ruas, sem qualquer tipo de supervisão de um responsável. Muitas delas passam o dia
inteiro nas ruas da favela, uma vez que os pais trabalham fora e simplesmente não têm com
quem deixar os filhos. Estas crianças acabam sendo criadas nas ruas da comunidade, por
amigos, vizinhos ou por qualquer pessoa que faça parte do dia-a-dia da PPL.
O gráfico 1, a seguir, ilustra os aspectos anteriormente relatados, no que se refere ao
número de pessoas por domicílio e à faixa etária dos moradores:
GRÁFICO 1: Fonte: Urbel / PBH
Observa-se na Pedreira, portanto, um dos aspectos mais ressaltados pela teoria
criminológica de Sampson et al. (1997), que é a completa falência de instituições como a
família e a conseqüente ausência de controle comunitário sobre as atividades grupais
desenvolvidas por crianças e adolescentes daquela comunidade. Como já afirmamos
anteriormente, a falta de supervisão ou acompanhamento das atividades desenvolvidas
pelas crianças e adolescentes cria um terreno extremamente fértil para o surgimento das
gangues juvenis que, em certa medida, acabam por substituir instituições como a família e a
escola como orientadores do processo de socialização destes jovens, conforme indicam os
estudos de Thrasher (1997).
Número de pessoas por domicílio ( % )
0 a 1 Ocup.7,3%
>=10 Ocup. 2,6%
6 a 9 Ocup.26,4%
2 a 5 Ocup.63,7%
Faixa etária dos ocupantes
18 a 2517,6%
15 a 176,9%
11 a 148,0%
7 a 1010,9%
0 a 615,4%
>644,2%
26 a 4019,9%
41 a 6417,2%
61
A mesma pesquisa da Prefeitura ainda demonstra que a imensa maioria da população da Pedreira Prado Lopes é composta por pessoas de baixíssima renda. Segundo o levantamento da Urbel, em 1998, a Pedreira poderia ser caracterizada como uma das regiões que abrigam a população com a pior renda média de toda Belo Horizonte, pior até mesmo do que várias outras favelas da capital. Enquanto em 1998 a renda média das famílias em BH era de aproximadamente R$1.300,00, a renda média da maioria das famílias da Pedreira, cerca de 66% delas, para ser mais exato, era de três salários mínimos, ou pouco mais de R$390,00 na ocasião, como revelam, a seguir, os trechos do relatório da pesquisa e o gráfico 2:
“Os dados levantados mostram que a população se dedica a atividades profissionais de baixa qualificação e remuneração tanto dos responsáveis quanto dos demais ocupantes, o que é confirmado pelo baixíssimo nível salarial da população: a renda média dos chefes de família em Belo Horizonte é de R$ 872,29 e a renda média familiar de R$ 1307,68, e, na Regional Noroeste, onde a vila está inserida, R$ 677,63 e R$ 1096,35, respectivamente. Na Pedreira, por sua vez, 66% das famílias têm renda de 0 a 3 salários mínimos, ou seja, até R$ 390,00, constituindo-se um quadro de extrema pobreza e exclusão social. Tal quadro pode ser visto ainda com a ajuda de outros gráficos relativos à renda, como o de renda per capita e renda dos responsáveis. O próprio fato da Administração Noroeste apresentar uma renda menor que a de Belo Horizonte talvez possa ser atribuído ao grande número de vilas e favelas que pertencem a ela. Pode-se perceber, ainda, que a renda dos moradores da Pedreira está ainda abaixo da de outras vilas de Belo Horizonte” (URBEL, 1998).
GRÁFICO 2: Fonte: Urbel / PBH
A baixa renda média observada nos domicílios da Pedreira Prado Lopes nada mais é
do que o reflexo da renda média dos responsáveis pelo domicílio, como ilustra, a seguir, o
gráfico 3. O estudo da Prefeitura demonstra que, entre a população economicamente ativa,
um alto número de pessoas trabalha por conta própria (20%), realizando biscates ou bicos.
Renda total segundo número de domicílios
1 a 3 S.M.36,6%
A té 1 S.M.29,0%
>10 S.M.2,0%5 a 10 S.M.
12,9%3 a 5 S.M.
19,5%
Renda per capita - Salário Mínimo por pessoa
0,6 a 1 28,0%
0,3 a 0,626,1%
0 a 0,327,4%
>24,6%1 a 2
13,9%
62
Se forem observados os critérios do Dieese, em 1998, o índice de desempregados na
Pedreira Prado Lopes batia na casa dos 30%. Em BH, este índice era de 12,4% (URBEL,
1998). O reflexo desta situação pode ser facilmente observado nas ruas da PPL: é grande o
número de pessoas que, diariamente, ficam pelas ruas da favela sem qualquer tipo de
ocupação.
GRÁFICO 3: Fonte: Urbel / PBH
A mesma pesquisa também demonstra que a imensa maioria da população da Pedreira
Prado Lopes possui baixíssimo grau de instrução. Principalmente os mais velhos que, no
passado, não tiveram qualquer acesso à educação. Atualmente, cerca de 77% dos
moradores da vila possuem apenas o primeiro grau completo. Praticamente 15% dos
moradores não possuem qualquer tipo de escolaridade, enquanto o segundo grau foi
cursado por apenas 6,2% dos habitantes da PPL. Surpreendentemente, a Pedreira conta com
uma boa oferta de escolas públicas no seu entorno, o que provavelmente é suficiente para
atender à demanda de 1º grau da vila. No entanto, uma pesquisa da Prefeitura comprova
que ainda é baixíssimo o número de pessoas na PPL que chegam a completar o segundo
grau. Observa-se claramente que muitos jovens da Pedreira são criados dentro de uma
estrutura simbólica que não valoriza o estudo, o que faz com que, na imensa maioria das
vezes, eles interrompam seus estudos ainda no 1º grau, como podemos observar no gráfico
4, a seguir:
Renda dos responsáveis
1 a 3 S.M.27,5%
3 a 5 S.M.8,5%
5 a 10 S.M.3,0%
>10 S.M.0,2%
Até 1 S.M.60,8%
63
GRÁFICO 4: Fonte: Urbel / PBH
Mais uma vez, observa-se na Pedreira exatamente aquilo que Bursik e Gramick
(1993) afirmam na teoria do Controle Social: em comunidades marcadas pela concentração
de desvantagens econômicas e estruturais, percebe-se a falência de instituições formais de
controle e socialização – escolas, igrejas, etc - o que, por sua vez, cria um ambiente
propício para o surgimento do crime.
O mesmo estudo da PBH (Urbel, 1998) também apontou que, entre os moradores da
PPL, prevalecem as ocupações de pouca qualificação, fato que obviamente está diretamente
ligado à baixa escolaridade da comunidade: observa-se a existência de um grande número
de moradores que exercem as profissões de faxineiro, pedreiro, empregada doméstica,
auxiliar de serviços gerais, vigia, etc. Ainda no que diz respeito à profissão, é fundamental
observar o grande número de mulheres do lar, que se dedicam exclusivamente às atividades
domésticas ou ganham a vida com pequenos serviços eventuais como o de lavadeira ou
costureira. Os gráficos 5 e 6, a seguir, ilustram e confirmam estes dados:
mais Suplet.
Escolaridade dos responsáveis
1ºGrau Suplet.0,9%
2º Grau
0,2%
Sup. ou
0,0%Nehuma 14,9%
1º Grau77,8%
2º Grau 6,2%
1
2
3
4
5
6
0 5 10 15 20 30 35 40 45 50 55 60 65 70 75
1º Grau - 73,1%
2º Grau - 6,2%
1º Supletivo - 0,7%
2º Supletivo - 1,1%
Superior ou mais - 0,1%
Nenhuma - 18,8%
25
Porcentagem ( % )
Esco
larid
ade
Escolaridade dos ocupantes
64
Núcleo: Pedreira Prado Lopes Profissão dos responsáveis pelo domicílio
Quadras: todas as quadras
Profissão dos responsáveis Quantidade
ABS %
Do Lar 155 33,4 Faxineiro ( a ) 31 6,6 Auxiliar de Serviços Gerais 23 4,9 Empregada ( o ) Doméstica ( o ) 21 4,5 Pedreiro ( a ) 19 4,0 Comerciante 18 3,7 Cozinheiro ( a ) 12 2,5
Vigilante 11 2,4
Vendedor ( a ) 11 2,4 Lavadeira 9 2,7 Ajudante de servente pedreiro 8 1,6 Vigia 7 1,4 Segurança 6 1,3 Porteiro ( a ) 6 1,3 Mecânico ( a ) 6 1,3 Motorista 5 1,1 Eletricista 5 1,1 Salgadeira ( o ) 4 0,9 Pintor ( a ) 4 0,9 Operador ( a ) de Máquina 4 0,9 Gari 4 0,9 Camelô 4 0,9 Soldado Militar 3 0,6 Servente de obra 3 0,6 Servente de limpeza 3 0,6 Montador ( a ) 3 0,6 Metalúrgico ( a ) 3 0,6 Marceneiro ( a ) 3 0,6 Costureira ( o ) 3 0,6 Copeiro ( a ) 3 0,6 OUTROS 68 14,5 Total de Responsáveis 465 100
GRÁFICO 5: Fonte: Urbel / PBH
Porcentagem ( % )
Profissão dos responsáveis pelo domicílio
Do Lar-33,4%
Emp.dom.-4,5%
Aux.Serv.G.-4,9%
Faxineiro (a )-6,6%
Vendedor (a)-2,4%
Pedreiro-4,0%
Comerciante-3,7%
Cozinheiro-2,5%
Vigilante-2,4%
Lavadeira-2,7%
Outros-14,5%
0 2,5 5 7,5 10 12,5 15 17,5 20 22,5 25 27,5 30 32,5 35 37,5
s
65
Núcleo Pedreira Prado Lopes Profissão dos demais ocupantes Quadras: todas as quadras
Profissão demais ocupantes Quantidade
ABS % Estudante 381 59,6 Empregada ( o ) Doméstica ( o ) 25 3,9 Do Lar 22 3,4 Auxiliar de Serviços Gerais 18 2,8 Faxineiro ( a ) 17 2,7 Balconista 13 2,0 Office Boy 11 1,7 Ajudante de servente de pedreiro 10 1,6 Biscateiro ( a ) 9 1,4 Gari 7 1,1 Vendedor ( a ) 6 1,0 Secretária ( o ) 6 1,0 Soldado Militar 5 0,8 Babá 5 0,8 Auxiliar de Escritório 5 0,8 Reparador ( a ) eletro-domésticos 4 0,6 Professor ( a ) 4 0,6 Entregador ( a ) 4 0,6 Vigia 3 0,5 Pintor ( a ) 3 0,5 Mecânico ( a ) 3 0,5 Caixa 3 0,5 Vigilante 2 0,3 Vidraceiro ( a ) 2 0,3 Trocador ( a ) 2 0,3 Segurança 2 0,3 Operador ( a ) de Máquina 2 0,3 Metalúrgico ( a ) 2 0,3 Marceneiro ( a ) 2 0,3 OUTROS 61 9,5 Total de demais ocupantes 639 100
Fonte: Urbel / PBH
GRÁFICO 6: Fonte: Urbel / PBH
Profissão dos demais ocupantes
Outros-9,5%
Biscateiro(a)-1,4%
Ajd.Serv.Ped.1,6%
Estudante-59,6%
Emp.Dom.-3,9%
Do Lar-3,4%
Aux.Serv.G.-2,8%
Faxineiro(a)-2,7%
Balconista-2,0%
Office Boy-1,7%
0 4 8 12 16 20 24 28 32 36 40 44 48 52 56 60 64
10 P
rimei
ras P
rofis
.
Porcentagem
Gari-1,1%
66
3.2.2. Condições de Habitação
No que diz respeito ao uso e à distribuição de seu espaço físico, observa-se que a
Pedreira Prado Lopes passa hoje por um processo de verticalização talvez nunca antes
observado em uma favela da região metropolitana de Belo Horizonte. Ocupando uma área
de aproximadamente 142 mil metros quadrados da região Noroeste da capital, a PPL é hoje
um aglomerado que não tem mais para onde se expandir. Limitada pela avenida Presidente
Antônio Carlos e cercada pelos bairros Santo André, Bonfim e Cachoeirinha, a PPL atingiu
sua extensão máxima já na década de 70 e atualmente passa por um processo de
verticalização de suas construções.
Este processo contribui para aumentar a densidade populacional e, ao mesmo tempo,
proporciona o surgimento de residências multifamiliares. Isso acaba por configurar um
ambiente socialmente promíscuo e bastante desorganizado. Observa-se que, devido ao fato
de as residências serem muito próximas umas das outras, não existe a menor possibilidade
de haver qualquer tipo de privacidade. Qualquer discussão é acompanhada por vizinhos e
acaba tornando-se pública. Qualquer assunto torna-se de domínio público, mesmo quando é
tratado entre quatro paredes. Todos sabem da vida de todos e acabam por interferir no
cotidiano alheio com muita freqüência, sem que isso se reflita, necessariamente, em
mecanismos de supervisão e controle. De acordo com o último censo realizado pela
Prefeitura (Urbel,1998), a Prado Lopes abrigava, já em 1998, uma população de
aproximadamente nove mil moradores. Atualmente, a Administração Regional Noroeste
estima que esta população esteja na casa dos 12 mil.
Ainda de acordo com os mesmos registros desse censo, a imensa maioria das casas da
Pedreira é própria (93,1%). Apesar disso, apenas pouco mais da metade da população
reside há mais de 20 anos na vila (57,4%). E, ainda assim, a maioria dos responsáveis pelos
domicílios não é de Belo Horizonte: 55,6% deles são oriundos de cidades do interior de
Minas ou de outros estados. Estes dados demonstram que, além de não oferecer até hoje
uma infraestrutura adequada de moradia à sua comunidade, é relativamente baixo o grau de
consolidação e enraizamento dos moradores na vila. Isso dificulta bastante o
desenvolvimento de laços afetivos dos moradores com a favela, o que acarreta um baixo
grau de coesão social, uma baixa capacidade de articulação da comunidade e,
67
conseqüentemente, uma capacidade reduzida de controlar o comportamento dos membros
da mesma e de resolver internamente seus conflitos.
Uma rápida caminhada pela Pedreira permite ao observador constatar que a grande
maioria das moradias é muito simples e, na maior parte das vezes, está em péssimo estado
de conservação. Os muros de muitas casas, quando não estão sujos por algum tipo de
pichação, estão com a tinta gasta e descascando. Reformas improvisadas, muitas vezes
realizadas com materiais impróprios, deixam sua marca na arquitetura da Pedreira,
caracterizando um cenário de grande opressão, pobreza e decadência. Na citação e no
gráfico 7, do relatório da pesquisa da Prefeitura, a seguir, podemos confirmar estes dados:
“Pelos dados relativos às condições de habitabilidade, tais como nível de acabamento, número de cômodos, número de pavimentos e infra-estrutura, pode-se dizer que a Pedreira Prado Lopes sofre de quase todas as carências possíveis em relação à infra-estrutura. Os becos são quase todos cimentados, mas apresentam péssimo estado de conservação; a rede de esgotos não é oficial, mas comunitária, apresentando problemas constantes (o esgoto também corre a céu aberto em vários locais, devido a estes problemas); o sistema de drenagem convencional é precário ou inexiste; a sujeira e o depósito de lixo em algumas áreas também são problemáticos. Mais à frente desses males estão aqueles que talvez se constituam os mais sérios da vila: as moradias em áreas de risco, a precariedade do sistema viário e o grande nível de adensamento e verticalização das casas. Todas estas condições adversas de habitabilidade certamente contribuem para o processo de marginalidade e exclusão social da população. Não é possível uma vida digna sem condições razoáveis de moradia. Desse modo, quando o padrão de vida se deteriora, a criminalidade e os demais problemas sociais tendem a aumentar” (URBEL, 1998).
68
Núcleo: Pedreira Prado Lopes Número de Domicílios, segundo regime de ocupação
Domicílios na quadra
Próprio Alugado Cedido Outros Quadra
Ocup. Vago ABS % ABS % ABS % ABS % 303 0 282 93,1 5 1,6 16 5,3 0 0,0
Total 303 0 282 93,1 5 1,6 16 5,3 0 0,0
GRÁFICO 7: Fonte: Urbel / PBH
Ainda segundo informações da mesma pesquisa da Prefeitura (Urbel,1998), mesmo
com uma grande população vivendo em uma área relativamente pequena, observa-se que,
dentro da Pedreira Prado Lopes, é muito baixo o número de estabelecimentos comerciais. E
os poucos que ainda existem são, em sua maioria, bares, pequenas vendas, salões de beleza
e outros tipos de pequenos comércios. Nota-se claramente que, além da situação de pobreza
vivida pela imensa maioria da população, a falta de espaço físico dentro da vila constitui-se
em um grande empecilho para o desenvolvimento comercial, assim como já o é para a
construção de novas residências. Mas aproveitando-se desta carência de estabelecimentos
comerciais, nota-se que muitas famílias de moradores prestam serviços informais dentro da
favela, até mesmo como forma de compensar o altíssimo índice de desemprego existente na
comunidade.
No que se refere aos serviços necessários ao bem estar de sua população, PPL é
relativamente bem servida, ainda que problemas ocorram com freqüência. Existe um posto
de saúde dentro da vila – localizado em uma praça que é cortada pela rua Escravo Isidoro -,
além de um grande hospital, o Odilon Behrens, bem a seu lado. Nos últimos anos, a
Próprio - 93,1%
A lugado - 1,6%
Cedido - 5,3%
Outros - 0,0%
0 5 10 15 20 25 30 35 40 45 50 55 60 65 70 75 80 85 90 95
Porce ntage m ( % )
1
2
3
4
Reg
ime
de o
cupa
ção
Regime de ocupação do domicílio
69
população da Prado Lopes tem enfrentado problemas com seu posto de saúde, uma vez que
muitos profissionais têm simplesmente se recusado a trabalhar nas dependências oferecidas
pela unidade. O medo da violência e das constantes ameaças por parte dos traficantes fez,
inclusive, com que o posto fosse fechado várias vezes durante os últimos anos.
A favela conta ainda com uma creche comunitária, com três escolas públicas em seu
entorno e uma escola profissionalizante dentro da própria vila. Apesar de as estreitas ruas
da PPL impedirem a circulação de ônibus em seu interior, a oferta de transporte coletivo
também é farta nos arredores da vila, devido à proximidade com a avenida Antônio Carlos,
um das principais vias arteriais de Belo Horizonte. Também existe um departamento da
Polícia Civil ao lado da favela: o Departamento de Investigações que abriga cinco
delegacias de homicídios, além de unidades especializadas em localização de pessoas
desaparecidas, fraudes eletrônicas e informática, falsificações e defraudações, ordem
econômica e vigilância geral.
3.3. Demandas e Organizações Comunitárias
3.3.1. Demandas
Em 1998, a mesma pesquisa estatística realizada pela PBH na região da Pedreira
Prado Lopes demonstrou que a principal reivindicação dos moradores do aglomerado dizia
respeito à questão da Segurança Pública. De acordo com este estudo, a violência imposta na
favela pelas gangues ligadas ao tráfico de drogas fez com que 21,5% da população local
colocasse como prioridade a construção de um posto policial dentro da vila. Segundo a
maioria dos moradores ouvidos pela pesquisa, a completa ausência de qualquer tipo de
policiamento ostensivo nas ruas do morro tornou possível a existência de gangues que,
constantemente, trocam tiros entre si, usam drogas em via pública e exibem armamento
pesado na tentativa de intimidar os moradores.
Esta realidade, por sua vez, fez com que o espaço público da vila fosse aos poucos
adquirindo uma característica opressiva e ameaçadora. Na Pedreira, é possível ver muros e
fachadas de casas cravejadas por rajadas de tiros. Algumas paredes também possuem
pichações que trazem ameaças à comunidade ou fazem alusão clara às gangues envolvidas
70
com o tráfico. A presença de rapazes armados em alguns pontos da favela faz com que seja
extremamente arriscado circular em algumas regiões do morro, principalmente durante as
noites. Ao mesmo tempo em que impossibilitam uma visão mais ampla do local, os
intrincados e opressivos becos da favela também servem como esconderijo para os
traficantes, que não encontram qualquer dificuldade em se locomover em meio ao labirinto
de vielas e passagens. Ainda segundo informações da pesquisa realizada pela Prefeitura
(Urbel, 1998):
“Grande parte dos moradores da vila não sai à noite, adotando uma espécie de “toque de recolher”. O próprio direito de ir e vir está ameaçado na vila, assim como o desenvolvimento do lazer, da integração entre a população. Outro grande medo dos moradores é ver seus filhos ingressarem no tráfico. O dinheiro fácil gerado por ele e a falta de perspectivas de melhorias financeiras faz com que as drogas sejam um negócio tentador para os jovens. Por tudo isso, o combate ao tráfico e à violência constitui a principal demanda da vila, que caracteriza-se mais urgente inclusive que as melhorias urbanísticas, para a população. Apesar da gravidade do problema, todos os moradores concordam que o tráfico na Pedreira não se desenvolveu ao nível do Rio de Janeiro ou São Paulo; não atingiu ainda o mesmo patamar de criminalidade. No entanto, ele se desenvolve, devendo ser combatido agora, quando ainda é possível”.
Depois do posto policial, todas as reivindicações feitas pelos moradores têm
relação com melhorias urbanas e sanitárias. Ao que tudo indica, isso se deve às precárias
condições de moradia e urbanização da vila. Em alguns pontos da Pedreira, é comum ver
ruas não pavimentadas, com escoamentos de esgoto correndo a céu aberto. Isso se
constitui em um constante foco de doenças para crianças que brincam nestas ruas. Em
alguns outros pontos da favela, a pavimentação das vias é muito precária, o que cria um
ambiente de muita sujeira e aumenta ainda mais a insalubridade do local. Somada ao
adensamento populacional e ao processo de verticalização da favela, a estreiteza das ruas
da Pedreira torna a vila um local abafado e com pouca iluminação natural.
Assumindo a perspectiva de que o criminoso é movido por uma racionalidade que
o impele a cometer os crimes que exijam menor esforço, tragam maior benefício e o
exponham à menor taxa de risco, como demonstram, em seus estudos Clarke (1992) e
Clarke e Cornish (1985), não é possível deixar de observar quanto o ambiente interno da
71
Pedreira Prado Lopes é favorável ao cometimento de atos delituosos. De acordo com
esta perspectiva racionalista do pensamento criminológico, os crimes possuem mais
chance de acontecer quando ofensores em potencial estão em contato com vítimas em
potencial, em um ambiente onde as chances de ele ser detido são mínimas ou, caso ele
seja detectado, possa fugir sem ser identificado ou apreendido, como confirma a
pesquisa de Taylor e Harrell (1996). Originalmente, cabe lembrar que tal tipo de teoria
se refere aos crimes chamados “predatórios”, ou seja, aqueles nos quais existem
ofensores e vítimas. No caso do tráfico, o ambiente da PPL torna-se amplamente
favorável porque privilegia a logística do comércio de drogas. Os intrincados becos e
vielas da favela ajudam os criminosos a se esconder com muita facilidade diante da
chegada da polícia. Por outro lado, os policiais não conseguem ter acesso a todos os
pontos do aglomerado, uma vez que a imensa maioria das ruas da PPL não permite a
subida de viaturas.
Cabe ressaltar, portanto, que o altíssimo grau em que os intrincados becos e vielas
que permeiam a Pedreira se tornaram assustadoramente favoráveis à proliferação do
tráfico de drogas. Nascidos e criados em meio àqueles labirínticos becos e ruas estreitas,
os traficantes podem expor sua mercadoria e, caso sejam surpreendidos com o
aparecimento de policiais ou gangues inimigas, podem desaparecer rapidamente sem
deixar rastros. Além disso, muitas são as ruas da Prado Lopes que, de tão estreitas, não
permitem a subida de carros ou qualquer tipo de veículo, o que dificulta imensamente o
combate aos traficantes, uma vez que toda a geografia e configuração ambiental os
beneficiam.
Ainda segundo informações da mesma pesquisa realizada pela Prefeitura (Urbel,
1998), logo após a construção de um posto policial da favela, as principais reivindicações
da população da Pedreira são as seguintes: 15,1% querem rede de esgoto, 12,5% exigem a
pavimentação de alguns pontos da vila, 12,1% pedem um posto médico – apesar de a vila já
ter um em seu interior -, 9,6% querem a abertura de novas vias e a ampliação das já
existentes e 9,1% reivindicam melhoria nos serviços de limpeza urbana. O fato de a
construção de um novo posto de saúde ter sido citada em quarto lugar na pesquisa pode ser
atribuído a uma questão peculiar da vila. Na década de 80, havia um posto na avenida
Carmo do Rio Claro, na parte baixa da Pedreira. No entanto, já na década de 90, esta
72
unidade foi transferida para a rua Escravo Isidoro, bem no interior do aglomerado, em uma
parte mais elevada do morro. Isso causou muita revolta entre os moradores da parte baixa,
que nunca se conformaram em perder o posto e ter que caminhar para chegar à nova
unidade.
Na citação a seguir, que integra o relatório da pesquisa realizada pela Prefeitura,
podemos verificar quantos aspectos referentes às condições de vida na favela ainda
precisam ser revistos, melhorados e implementados, na tentativa de se acabar com o tráfico
e a violência:
“Deve-se observar que o modo mais eficaz de acabar com o tráfico é atacar suas causas, mais do que tentar abafá-lo. O posto policial citado na pesquisa, talvez não seja o melhor caminho para combatê-lo, pois o aumento da ação policial, dependendo da forma que for realizada, pode inclusive agravar a questão da violência. Alguns dos motivos que levaram o tráfico a se instalar com tamanha força na vila podem ser citados: as precárias condições de habitabilidade e o acesso restrito; a falta de perspectivas de inserção e/ou ascensão social; a população numerosa e jovem da vila, com potencial para ser explorada. Alguns moradores também reclamam do envolvimento da polícia com o tráfico e alegam que o seu desenvolvimento só foi possível com a conivência da instituição. (...) É necessário salientar, ainda, a importância que a abertura de vias pode ter no enfraquecimento do tráfico e na diminuição da violência: mais do que a instalação de um posto policial dentro da Pedreira, é fundamental garantir o acesso e a circulação da vigilância, seja policial ou não. Também as melhorias urbanísticas constituem uma importante arma, na medida em que elevam as condições de vida e de dignidade da população”.
3.3.2. As Organizações
O mesmo trabalho de pesquisa realizado pela Prefeitura de Belo Horizonte em 1998
também observou que a população da Pedreira Prado Lopes possui um baixíssimo grau de
participação e envolvimento com questões que dizem respeito à própria vila. Mantendo
uma característica que remete à própria história de sua formação, os moradores da PPL
demonstram uma grande dificuldade de mobilização e, em sua maioria, mantêm a tradição
de não fortalecer as entidades representativas surgidas dentro da própria comunidade. O
desconhecimento das pessoas é grande, assim como a descrença nos políticos e nas
73
instituições. E, por incrível que pareça, esta característica pode ser bem observada mesmo
nos moradores mais antigos. No gráfico 8, a seguir, nos ajuda a visualizar a situação da
Pedreira no que se refere à pouca representatividade das instituições que ajudam a
comunidade:
GRÁFICO 8: Fonte: Urbel / PBH
Observa-se nesta característica justamente aquilo que é colocado pelas teorias da
“Desorganização Social” e da “Eficácia Coletiva”. Como foi dito anteriormente, o próprio
histórico de como se deu a ocupação da PPL concorreu para que a comunidade de lá se
tornasse socialmente pouco coesa e, conseqüentemente, mais vulnerável ao surgimento da
violência e da criminalidade (SAMPSON & GROVES, 1989; BURSIK & GRASMICK,
1993). A história da Pedreira é marcada pelo grande número de imigrantes vindos de várias
regiões do estado, o que tornou a população local extremamente heterogênea. Além disso,
as constantes reconfigurações dos limites da favela em suas primeiras décadas de existência
fez com que se tornasse alta no local a taxa de rotatividade residencial. Na ocasião das
aberturas das avenidas Antônio Carlos e José Bonifácio, por exemplo, várias famílias
tiveram que ser indenizadas e se mudar da favela. Alem disso, a configuração sempre
miserável da PPL faz com que um dos maiores desejos da comunidade seja se mudar de lá
tão logo seja possível (CRISP, 2002).
Instituições que ajudam a comunidade
Nenhuma38,9%
Outros0,7%
AssociaçãoMoradores
12,1%
Igreja4,2% URBEL
1,6%
Não sabe42,5%
74
Ainda de acordo com a mesma pesquisa feita pela Prefeitura, todas as reivindicações
de melhorias para a PPL estariam concentradas em poucas pessoas ligadas à União Prado
Lopes, uma das únicas associações comunitárias ativas na favela, surgida somente na
década de 70. Nos últimos anos, várias melhorias foram conseguidas por esta associação,
principalmente naquilo que se refere às obras do Orçamento Participativo. Ainda assim, o
nível de informação e participação popular nas reuniões promovidas pela associação
continua muito baixo. Tanto que, de acordo com a Prefeitura, muitos deles não sabem
sequer quais foram as últimas conquistas da entidade, como podemos ver na citação a
seguir:
“Apesar de a população ter comparecido aos Orçamentos Participativos e ter obtido várias conquistas, a maioria da população parece desconhecer o processo do OP e suas motivações. A participação em maior escala nessas conquistas ocorreu provavelmente em função de um trabalho maciço de mobilização da Associação, que, por possuir credibilidade junto aos moradores, conseguiu reuní-los para eventos esporádicos e de maior porte, mas não por um período maior e sistematicamente, devido à sua resistência e acomodação. Por outro lado, os membros da associação reclamam muito da população que, segundo eles, está mal acostumada com processos paternalistas de ajuda, não possuindo o hábito de lutar por seus direitos. Campanhas que envolviam doações, como o ticket de leite, contavam com a presença maciça da população. Nas reuniões de associação, no entanto, a presença é baixíssima”.
Prova maior da desinformação e da desunião que permeiam a vida da comunidade da
Pedreira foi a grande dificuldade encontrada pela Prefeitura em implantar as primeiras
etapas do Plano Global Específico que prevê uma série de melhorias estruturais na vila. De
acordo com um relatório produzido pela Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte
(Urbel), em 1998, muitos moradores temem uma urbanização da vila, por medo de serem
removidos para locais distantes. Apesar de manifestarem desejo de deixar a vila devido as
suas precárias condições de habitação e todo o seu histórico de violência, a proximidade da
Pedreira Prado Lopes com relação ao centro da cidade é uma comodidade muito valorizada
pela comunidade local. Todos temem que a Prefeitura decida mudá-los para outro lugar ou
até expulsá-los, no caso de uma obra de ampliação das ruas da vila.
Nota-se, portanto, muito claramente na Pedreira a completa falência e deterioração de
instituições como família e escola, além da mais do que reduzida participação comunitária
75
nas questões referentes à própria vila. O baixíssimo grau de coesão social, além da ausência
ou deterioração das instituições formais ou informais de socialização e controle do
comportamento, concorre sensivelmente para que a violência e a criminalidade continuem a
assolar a Prado Lopes da maneira como vem acontecendo nas últimas décadas. Observa-se,
portanto, que a favela possui um grau muito baixo de eficácia coletiva e não possui coesão
ou mobilização popular suficiente para conseguir lidar de forma satisfatória com seus
problemas, o que, novamente, confirma os estudos de Sampson et al. (1997).
3.4. A Violência e a Criminalidade
Palco de muitas histórias de sofrimento e conquistas durante a época de sua formação,
a partir da década de 80 a Pedreira Prado Lopes também passa a se destacar por seus altos
índices relativos de criminalidade, principalmente no que diz respeito a ocorrências ligadas
ao consumo e ao tráfico de drogas. Até hoje, diga-se de passagem, observa-se claramente
que, na PPL, toda a questão do crime e da violência está intimamente relacionada com a
rotina das gangues ligadas ao comércio de entorpecentes. Prova disso são os altíssimos
índices de ocorrências relacionadas ao uso, porte ou tráfico de drogas registrados na região
pela Polícia Militar, apenas durante o ano de 2003. E não há razões para acreditar que nos
anos anteriores tenha sido diferente.
Mas antes de analisar as estatísticas policiais na área da PPL, é preciso que se delimite
o espaço dentro do qual estes números foram colhidos. A região da favela Pedreira Prado
Lopes é formada pelo núcleo da favela em si, além de boa parte dos bairros Santo André e
São Cristóvão. Em sua análise, a Polícia Militar também colocou os bairros Bonfim e
Lagoinha como integrantes da região da PPL. No entanto, pode-se observar que estes dois
bairros já estão mais afastados da Pedreira em si, e já não apresentam a mesma
configuração ambiental que fez com que a favela fosse designada como tal. O bairro
Lagoinha, por exemplo, é quase que uma extensão do centro de Belo Horizonte. O bairro
Bonfim, por sua vez, possui características muito diferentes das da PPL, tanto sócio-
econômicas quanto ambientais. Visando dar maior especificidade aos dados da PM, este
trabalho irá considerar como sendo a região da Pedreira Prado Lopes, portanto, apenas a
zona formada pelos bairros Santo André, São Cristóvão, além do núcleo da favela em si.
76
Além disso, apenas três modalidades de crimes serão levadas em conta, por serem
bastante representativas: os “crimes contra a pessoa” (homicídio consumado, homicídio
tentado, agressão, ameaça, estupro e atentado violento ao pudor), os “crimes contra o
patrimônio” (as mais diversas modalidades de furtos e roubos) e os “crimes relativos a
tóxicos e entorpecentes” (a saber, tráfico de drogas e uso ou posse de entorpecentes).
3.4.1. Locais das ocorrências
Se os delitos em questão forem analisados por seu local de ocorrência, observa-se que
61,7% dos “crimes contra a pessoa” registrados na região acontecem dentro da PPL
propriamente dita. Em compensação, apenas 40,5% dos “crimes contra o patrimônio” são
cometidos na região da favela, sendo que insignificantes 2,3% são registrados dentro do
aglomerado em si. Já os “crimes relativos a tóxicos e entorpecentes”, por sua vez,
demonstram a verdadeira natureza do problema da violência e da criminalidade na favela:
85,7% das ocorrências de tráfico, posse ou uso de drogas são registradas na região da
Pedreira. A grande maioria deles, nas principais avenidas do aglomerado, como
demonstram os dados dos gráficos 9,10, 11, 12, 13 e 14 e os mapas 1 e 2, a seguir:
77
CRIMES CONTRA A PESSOA - INCIDENCIA POR BAIRRO
146 29,1 29,1
96 19,2 48,3
96 19,2 67,5
95 19,0 86,4
68 13,6 100,0
501 100,0
BAIRRO
SANTO ANDRE
BONFIM
LAGOINHA
SAO CRISTOVAO
PRADO LOPES
Total
FREQÜÊNCIA PERCENTUALPERCENTUALACUMULADO
CRIMES CONTRA A PESSOA NA REIGÃO DA PEDREIRA PRADO LOPES NO ANO DE 2003
230 45,9 45,9
173 34,5 80,4
72 14,4 94,8
24 4,8 99,6
1 ,2 99,8
1 ,2 100,0
501 100,0
NATUREZA
B32000 - VIAS DE FATO/AGRESSAO
B03000 - AMEACA
B04001 - HOMICIDIO TENTADO
B04002 - HOMICIDIO CONSUMADO
D01000 - ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR
D04002 - ESTUPRO CONSUMADO
Total
FREQÜÊNCIA PERCENTUALPERCENTUALACUMULADO
GRÁFICOS 9 e 10
2003 – Fonte: Crisp / PMMG
Prado Lopes
Senhor dos Passos
SANTO ANDRESANTO ANDRESANTO ANDRESANTO ANDRESANTO ANDRESANTO ANDRESANTO ANDRESANTO ANDRESANTO ANDRE
BONFIMBONFIMBONFIMBONFIMBONFIMBONFIMBONFIMBONFIMBONFIM
CARAS
PEDRO II
AVE JOSE BONIFACIO
RUA PAU DARCO
BEC JOSE BONIFACIO
AVE PR
ESIDE
NTE AN
TON
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ARLO
S
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PCA URUGUAIANARUA SERRA NEGRA
RUA PEDRO LESSA
RUA BEBERIBE
BEC SANTA LUZIARUA CARMO D
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RUA SEVERIANO
DE RESENDERUA ARARIBA
RUA
ALEX
ANDR
E ST
OCKLE
R
BEC VINTE E UM DE ABRIL
BEC
QUI
NZE
DE A
BRIL
ARUA FAGUNDES VARELA
RUA SETE LAGOAS
RU
A PR
ADO
LO
PES
RUA RESPLENDOR
RUA EVARISTO DA VEIGA
RUA CAPITOLIO
RUA ALEM PARAIBARUA TURVO
RUA
FORT
ALEZ
A
RUA RIO NOVO
RUA ITAPEVA
RU
A PE
DR
O L
EOPO
LDO
RUA
BOTE
LHO
S
RUA ITAPECERICA
RUA VASSOURAS
RUA SARACA
RUA CAPARAORUA PADRE EUSTAQUIO
RUA PATROCINIO
RUA PADRE EUSTAQUIO
SINHA SIGAUD
RUA FREDERICO CORNELIO
SAO CRISTOVAOSAO CRISTOVAOSAO CRISTOVAOSAO CRISTOVAOSAO CRISTOVAOSAO CRISTOVAOSAO CRISTOVAOSAO CRISTOVAOSAO CRISTOVAO
LAGOINHALAGOINHALAGOINHALAGOINHALAGOINHALAGOINHALAGOINHALAGOINHALAGOINHA
CARLOS PRATES
NOVA ESPERANCA
C
Concentração de crimes contra pessoa
AltaMédiaBaixaInexistente
Crimes contra pessoa 2000
21a CIA PMMG
Bairros
Favelas
MAPA 1
78
Crimes referentes a Tóxicos e Entorpecentes na Região da Pedreira Prado Lopes no ano de 2003
391 78,2 78,2
109 21,8 100,0
500 100,0
NATUREZA
M06000 - AQUISICAO/POSSE OU GUARDA PARA USOPROPRIO DE SUBSTANCIA ENTORPECENTE
M05000 - COMERCIO E/OU FORNECIMENTO GRATUITO(TRAFICO)
Total
FREQÜÊNCIA PERCENTUALPERCENTUALACUMULADO
Crimes referentes a tóxicos e entorpecentes - incidência por Logradouro
70 14,0 14,0
65 13,0 27,0
60 12,0 39,0
44 8,8 47,8
34 6,8 54,6
23 4,6 59,2
22 4,4 63,6
19 3,8 67,4
11 2,2 69,6
11 2,2 71,8
141 28,2 100,0
500 100,0
LOGRADOURO
JOSE BONIFACIO
ARARIBA
CARMO DO RIO CLARO
SERRA NEGRA
PRESIDENTE ANTONIO CARLOS
MARCAZITA
POPULAR
PEDRO LESSA
DOS CARAJAS
ITAPECERICA
DEMAIS LOGRADOUROS
Total
FREQÜÊNCIA PERCENTUALPERCENTUALACUMULADO
Crimes referentes a Tóxicos e Entorpecentes - Incidência por Bairro
214 42,8 42,8
164 32,8 75,6
54 10,8 86,4
51 10,2 96,6
17 3,4 100,0
500 100,0
BAIRRO
SAO CRISTOVAO
PRADO LOPES
LAGOINHA
SANTO ANDRE
BONFIM
Total
FREQÜÊNCIA PERCENTUALPERCENTUALACUMULADO
GRÁFICOS 11, 12 e 13
79
Crimes contra o patrimônio na região da Pedreira Prado Lopes no ano de 2003
211 14,9 14,9
211 14,9 29,7
198 13,9 43,7
169 11,9 55,6
168 11,8 67,4
97 6,8 74,2
83 5,8 80,1
70 4,9 85,0
65 4,6 89,6
34 2,4 92,0
33 2,3 94,3
15 1,1 95,4
13 ,9 96,3
12 ,8 97,1
10 ,7 97,8
7 ,5 98,3
7 ,5 98,8
6 ,4 99,2
4 ,3 99,5
3 ,2 99,7
3 ,2 99,9
1 ,1 100,0
1420 100,0
NATUREZA
C04009 - FURTO QUALIFICADO CONSUMADO/ARROMBAMENTO A PREDIO COMERCIAL
C04001 - FURTO QUALIFICADO CONSUMADO/ARROMBAMENTO A RESIDENCIA URBANA
C09004 - ROUBO `A MAO ARMADA CONSUMADO (ASSALTO) A ONIBUS/COLETIVO
C04004 - FURTO QUALIFICADO CONSUMADO/ARROMBAMENTO EM VEICULO AUTOMOTOR
C05027 - ROUBO CONSUMADO A TRANSEUNTE
C02002 - FURTO CONSUMADO A TRANSEUNTE EM VIA PUBLICA
C04099 - FURTO QUALIFICADO CONSUMADO/ARROMBAMENTO OUTROS
C02001 - FURTO CONSUMADO A RESIDENCIA
C09020 - ROUBO `A MAO ARMADA CONSUMADO (ASSALTO) A TAXI
C05004 - ROUBO CONSUMADO A ONIBUS/COLETIVO
C02003 - FURTO CONSUMADO A PESSOAS EM ESTABELECIMENTO COMERCIAL
C05020 - ROUBO CONSUMADO A TAXI
C04015 - FURTO QUALIFICADO CONSUMADO/ARROMBAMENTO A DEPOSITOS EM GERAL
C04019 - FURTO QUALIFICADO CONSUMADO/ARROMBAMENTO A ESCOLA PARTICULAR
C04010 - FURTO QUALIFICADO CONSUMADO/ARROMBAMENTO A IGREJA/TEMPLORELIGIOSO
C04007 - FURTO QUALIFICADO CONSUMADO/ARROMBAMENTO A PADARIA
C04014 - FURTO QUALIFICADO CONSUMADO/ARROMBAMENTO A ESTABELECIMENTOPUBLICO
C04008 - FURTO QUALIFICADO CONSUMADO/ARROMBAMENTO ASUPERMERCADO/MERCEARIA
C04005 - FURTO QUALIFICADO CONSUMADO/ARROMBAMENTO A PREDIO HABITACAOCOLETIVA
C05010 - ROUBO CONSUMADO A PREDIO COMERCIAL
C04018 - FURTO QUALIFICADO CONSUMADO/ARROMBAMENTO A ESCOLA PUBLICA
C05001 - ROUBO CONSUMADO A RESIDENCIA URBANA
Total
FREQÜÊNCIA PERCENTUALPERCENTUALACUMULADO
GRÁFICO 14
2003 – Fonte: Crisp / PMMG
P rad o Lo pes
S enh or d os P assos
S AN T O AN D R ES AN T O AN D R ES AN T O AN D R ES AN T O AN D R ES AN T O AN D R ES AN T O AN D R ES AN T O AN D R ES AN T O AN D R ES AN T O AN D R E
B O N F IMB O N F IMB O N F IMB O N FIMB O N FIMB O N FIMB O N FIMB O N FIMB O N FIM
C A R A S
P E D R O II
AVE JO SE BO NIFACIO
RUA PAU DARCO
BEC JOSE BONIFAC IO
AVE PR
ESIDE
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TON
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R U A G A R C A S
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O
BEC
J OS E L A
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RU
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O DE R
ESENDERUA ARARIBA
RUA AL
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DRE S
TOCKL
ER
BEC VINTE E UM DE ABRIL
BEC
QUI
NZE
DE A
BRIL
ARUA FAGUNDES VARELA
RUA SETE LAGOAS
RU
A PR
ADO
LO
PES
R U A R ES PL E N D O R
R U A EVAR ISTO D A VE IG A
R U A C AP ITO LIO
RUA ALEM PARAIBA RUA TURVO
RUA
FORT
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A
RUA RIO
NOVO
RUA ITAPEV A
RU
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O
RUA
BOTE
LHO
S
RUA ITAPECERICA
R U A V A S S O U R A S
R U A S A R A C A
RUA CAPARAORUA PADRE EUSTAQUIO
R U A P ATR OC IN IO
RUA PADRE EUSTAQUIO
S IN H A S IG A U D
RUA FREDERICO CORNELIO
S AO C R IS T O V AOS AO C R IS T O V AOS AO C R IS T O V AOS AO C R IS T O V AOS AO C R IS T O V AOS AO C R IS T O V AOS AO C R IS T O V AOS AO C R IS T O V AOS AO C R IS T O V AO
L AG O IN H AL AG O IN H AL AG O IN H AL AG O IN H AL AG O IN H AL AG O IN H AL AG O IN H AL AG O IN H AL AG O IN H A
C A R LO S P R A T E S
N O V A E S P E R A N C A
C
C oncentração de crim es con tra o pa trim ôn io
A ltaM éd iaB a ixaInex is tente
C rim es con tra o pa trim ôn io 2003
21a C IA P M M G
B airros
Fave las
MAPA 2
80
Crim es C ontra a Pessoa na Região da Pedreira
Incidências por Faixa
Período : 2003
Estatística - 8ª RP M
24 23222120191817161514131211109876 5 4 3 2 1
50
40
30
20
10
0
Crimes Contra a Pessoa na Região da Pedreira Prado Lopes
Incidências por Dia da Semana
Período: 2003
Estatística - 8ª RPM Sab SexQuiQuaTerSeg Dom
110 100
90 80 70
60 50
No que diz respeito aos horários em que tais ocorrências são registradas, nota-se que
os “crimes relativos a tóxicos e entorpecentes” e os “crimes contra a pessoa” seguem um
padrão relativamente parecido. Talvez isso permita até mesmo inferir que ambas as
modalidades podem possuir alguma relação entre si. A maioria dos “crimes contra a
pessoa” (38,1%) acontece entre 18hs e 23hs e, mesmo assim, durante os finais de semana.
A maioria dos “crimes relativos a tóxicos e entorpecentes” (58,5%), por sua vez, é
registrada entre 16hs e 0hs, principalmente às segundas, quartas e sextas-feiras. Já os
“crimes contra o patrimônio”, obedecem a um padrão completamente diferente dos que os
“contra a pessoa” e os “relativos a tóxicos e entorpecentes”. A maioria deles (30,8%)
acontece entre 7hs e 11hs e, ainda assim, aos domingos, segundas e terças-feiras. Vejamos
os gráficos 15 a 19:
GRÁFICOS 15 e 16
81
Crim es Referentes a Tóxicos e Entorpecentes
na Região da Pedreira Prado Lopes - 2003
Incidência por Hora
Estatística - 8ª RP M
24 23 22 21 20191817161514131211109876 5 4 3 2 1
50
40
30
20
10
0
Crim es Referentes a Tóxicos e Entorpecentes
na Região da Pedreira Prado Lopes - 2003Incidência por Dia da Sem ana
Estatística - 8ª RPM
Sab SexQuiQuaTerSeg Dom
100
90
80
70
60
50
GRÁFICOS 17 e 18
82
Crimes Contra o Patrimônio na Região da Pedreira
Período:2003 Incidência por Hora
Estatística - 8ª RPM
24 23 22 21 201918171615141312111098765 4 3 2 1
140
120
100
80
60
40
20
Crimes Contra o Patrimônio na Região da Pedreira Prado Lopes Período: 2003
Incidência por Dia da Semana
Estatística - 8ª RPM
Sab SexQuiQuaTerSeg Dom
260
240
220
200
180
160
GRÁFICOS 19 e 20
83
As ações da PM, em compensação parecem priorizar o combate aos “crimes contra a
pessoa” e aos “crimes relativos a tóxicos e entorpecentes”. Prova disso é que, durante o ano
de 2003, 79,6% das ações da Polícia Militar (batidas, incursões, operações de ocupação e
de presença) foram realizadas na região da Pedreira em si, locais onde se registram também
a maioria dos “crimes contra a pessoa e aqueles relativos às drogas”. A imensa maioria das
ações (78%) acontece de segunda a sexta, caindo drasticamente nos finais de semana –
lembrando que as principais ocorrências de “crimes relativos a tóxicos e entorpecentes”
acontece às segundas, quartas e sextas. A maioria das ações acontece entre 8hs e 10hs
(19,2%), para ser retomada entre 15hs e 20hs (36,5%). Vejamos os gráficos 21,22 e 23:
84
Ações da PM na região da Pedreira Prado Lopes no ano de 2003
683 35,7 35,7
361 18,9 54,5
330 17,2 71,8
284 14,8 86,6
255 13,3 99,9
1 ,1 100,0
1914 100,0
NATUREZA
Y12005 - OPERACOES POLICIAIS DIVERSAS INCURSAO EM FAVELA
Y12009 - OPERACOES POLICIAIS DIVERSAS ORLA DO BOSQUE
Y12001 - OPERACOES POLICIAIS DIVERSAS BATIDA POLICIAL
Y29013 - DISQUE-DENUNCIA REFERENTES A DROGAS
Y12004 - OPERACOES POLICIAIS DIVERSAS PRESENCA
Y04002 - OPERACOES DE COMBATE AO CRIME ORGANIZADO OPERACAOANTI-DROGAS
Total
FREQÜÊNCIA PERCENTUALPERCENTUALACUMULADO
Ações da PM - Incidência por Logradouro
644 33,6 33,6
194 10,1 43,8
150 7,8 51,6
130 6,8 58,4
118 6,2 64,6
93 4,9 69,4
64 3,3 72,8
51 2,7 75,4
470 24,6 100,0
1914 100,0
LOGRADOURO
ARARIBA
JOSE BONIFACIO
PEDRO LESSA
SERRA NEGRA
PRESIDENTE ANTONIO CARLOS
CARMO DO RIO CLARO
DOM PEDRO II
ITAPECERICA
DEMAIS LOGRADOUROS
Total
FREQÜÊNCIA PERCENTUALPERCENTUALACUMULADO
Ações da PM - Incidência por Bairro
911 47,6 47,6
398 20,8 68,4
239 12,5 80,9
183 9,6 90,4
152 7,9 98,4
31 1,6 100,0
1914 100,0
BAIRRO
SAO CRISTOVAO
PRADO LOPES
LAGOINHA
SANTO ANDRE
BONFIM
PEDREIRA PRADO LOPES
Total
FREQÜÊNCIA PERCENTUALPERCENTUALACUMULADO
GRÁFICOS 21, 22 e 23
85
Antes de seguir adiante com esta análise, é preciso fazer algumas considerações sobre
a confiabilidade e a precisão das estatísticas coletadas pela PM. Evidentemente, não é
possível pretender que os números apresentados pela polícia traduzam de forma fiel a real
situação da violência e da criminalidade na Pedreira Prado Lopes. Com exceção dos
homicídios, todas as demais modalidades de crimes obrigam o pesquisador a trabalhar com
uma considerável margem de subnotificação. Principalmente aquelas relativas aos “crimes
relativos a tóxicos e entorpecentes”, que só chegam às estatísticas oficiais quando são alvos
da ação policial. Portanto, devem-se olhar com bastante reserva os números gerados pela
polícia na PPL. Assim como a grande maioria das estatísticas sobre violência e
criminalidade, eles não retratam de forma exatamente fiel toda a realidade de um
determinado cenário.
Mas, ainda que sua precisão e validade sejam questionáveis, tais números ajudam o
pesquisador a dar seus primeiros passos dentro de um cenário completamente
desconhecido. No caso da Pedreira, em especial, indicam caminhos a serem trilhados,
possíveis hipóteses a serem testadas e indicadores a serem levados em conta.
Uma conclusão óbvia a ser tirada dos números apresentados pela PM é a de que a
PPL enfrenta graves problemas com relação ao tráfico e ao uso de drogas. Principalmente
na favela em si, o que indica a forte presença de gangues ligadas ao comércio de
entorpecentes atuando na região. Coincidência ou não, a PPL também é palco de um alto
índice relativo de “crimes contra a pessoa”, o que também pode apontar na direção de uma
consolidação das gangues ligadas ao tráfico de drogas. Enfim, os úmeros registrados pela
Polícia Militar na favela permitem observar que, para entender a questão da violência e da
criminalidade na Pedreira Prado Lopes, é preciso entender a mecânica do tráfico na região,
assim como o modo de agir, as características e a configuração assumida pelas gangues que
lá controla esta atividade.
86
CAPÍTULO 4: História da Violência na Pedreira Prado Lopes “A rebeldia não nos impede de sermos anjos” (Grafite pintado em um muro da rua Carmo do Rio Claro)
Como observamos anteriormente, um dos principais problemas enfrentados pela
comunidade da Pedreira Prado Lopes é a violência do tráfico de drogas e a brutalidade das
gangues ligadas à sua exploração. Prova disso são os altíssimos índices de ocorrências
relativas ao tráfico e ao uso de drogas registrados todos os anos na favela. E, por incrível
que pareça, este não é um quadro recente. Por questões que serão abordadas mais adiante,
pode-se dizer que, há pelo menos duas décadas, grande parte da violência registrada na PPL
mantêm uma relação muito íntima com a rotina das gangues que lá comandam o comércio
de entorpecentes. Justamente por causa desta estreita relação entre violência e tráfico
drogas, a Pedreira Prado Lopes figura desde a década de 1980 entre as regiões com maior
índice de criminalidade de Belo Horizonte.
No ano que esta pesquisa estava sendo concluída, acontecia na Prado Lopes um
confronto entre gangues de proporções jamais vistas em toda a história do aglomerado. Três
quadrilhas de traficantes disputavam o controle do comércio de entorpecentes no morro,
deixando para trás de si um rastro de dezenas de mortos e feridos. Somente nos nove
primeiros meses de 2004, 49 pessoas haviam sido assassinadas na favela, vítimas dos
enfrentamentos entre as gangues ou dos combates com a polícia. Na média, um assassinato
a cada seis dias.
O terror imposto na favela pelo tráfico era tão grande que começava a gerar cenas que
beiravam o surreal. Um destes episódios é bastante lembrado pelos moradores e, creio eu,
merece ser registrado por ilustrar com exatidão aquilo de que estou falando. O fato em
questão aconteceu em uma tarde de junho de 2004, durante um dos intermináveis
confrontos que ocorriam diariamente na favela. Na ocasião, um rapaz de apenas 17 anos
perdeu a vida em plena rua Escravo Isidoro, justamente onde fica o posto de saúde da PPL.
Antes que a polícia pudesse chegar ao local, traficantes encapuzados colocaram o corpo do
rival em um carrinho de mão e atravessaram mais da metade da favela carregando o
cadáver. Sob os olhares perplexos de uma verdadeira multidão, os criminosos jogaram o
87
corpo do rapaz, como se fosse um saco de lixo, no meio da rua Pedro Lessa, na margem
Oeste da Pedreira, já fora dos limites do aglomerado. A polícia, quando chegou, não
precisou entrar na favela para recolher o cadáver e novos confrontos foram evitados. Até
hoje, a maioria dos assassinos daquele rapaz estão soltos, convivendo tranqüilamente em
meio à comunidade da Pedreira.
4.1. A História do Tráfico na Pedreira
4.1.1. Décadas de 1970, 1980 e 1990
Apesar de a Pedreira Prado Lopes ser hoje um dos maiores e mais organizados pontos
de tráfico de drogas de Belo Horizonte, registros da polícia indicam que esta nem sempre
foi uma realidade vivida pela favela. De acordo com um relatório interno produzido em
outubro de 2003 pelo Serviço de Inteligência da Polícia Militar, até o início da década de
1970, o comércio de drogas na PPL sempre havia sido explorado de forma desorganizada,
por várias pessoas diferentes e que não tinham necessariamente qualquer ligação entre si. A
atividade tinha como seu carro-chefe a venda de maconha e não possuía, nem de longe, o
caráter quase que empresarial que possui hoje.
No entanto, já em meados da década de 1980, a polícia começa a receber as primeiras
informações sobre a ação do traficante Roni Peixoto de Souza na favela. Em poucos anos,
já no início da década de 1990, ele conseguiria eliminar praticamente todos os seus
concorrentes e assumir o controle definitivo sobre o tráfico de drogas praticado na PPL. De
acordo com um relatório interno produzido pela PM em 2003, o diferencial de Roni com
relação a seus antecessores era a eficiente rede de contatos que ele havia conseguido
estabelecer com grandes fornecedores de drogas e, conseqüentemente, a grande quantidade
de entorpecentes que ele conseguia trazer para a Pedreira a preços relativamente baixos.
Seus contatos com criminosos do Rio de Janeiro e Nordeste teriam feito com que, em
poucos anos, ele se tornasse capaz de colocar todas as gangues do morro para trabalhar sob
suas ordens. Além disso, Roni Peixoto trazia para Belo Horizonte um tipo de droga que, até
então, ainda não havia se difundido entre os usuários da capital: o crack.
88
Considerado pela Polícia Federal como sendo, em Minas Gerais, o braço direito do
narcotraficante Luiz Fernando da Costa, o “Fernandinho Beira-Mar”, Roni se tornou o
principal fornecedor de drogas para as quadrilhas da PPL, já no final da década de 80. Com
todos os contatos que conseguiu estabelecer em outros estados e até mesmo em outros
países da América Latina, Roni Peixoto passou quase uma década comandando com mão
de ferro a venda de drogas na Pedreira, até ser preso em 1995. Durante este tempo, seus
carregamentos abasteceram todas as quadrilhas da favela que, por incrível que pareça,
sempre foram obrigadas a deixar de lado antigas diferenças pessoais e atuar de forma
relativamente harmoniosa entre si. Diversos policiais civis e militares que trabalham na
região da PPL são unânimes em admitir que, sob o comando de Roni, o tráfico de drogas
que acontecia na Pedreira havia se tornado o mais bem organizado e próspero entre todos
aqueles que se observam nas demais favelas de BH. Considerado por muitos moradores
como um “pacificador” – uma vez que, sob seu comando, o tráfico de drogas da Prado
Lopes praticamente não registrava mortes -, Roni Peixoto continuou comandando o
“movimento” de dentro da cadeia. No entanto, a diminuição de sua interferência pessoal no
dia-a-dia do tráfico fez com que as gangues se desorganizassem e passassem a guerrear
entre si por maiores fatias do mercado das drogas.
4.1.2. A queda de Roni Peixoto e a “guerra” de 1999
Apesar de ter sido ser comandado com mão de ferro durante mais de quinze anos, o
tráfico na PPL não foi imediatamente abalado com a prisão de Roni Peixoto. De acordo
com investigações feitas pelo Serviço de Inteligência da PM, os esquemas de fornecimento
de drogas do velho chefe continuaram funcionando de forma eficiente durante
aproximadamente quatro anos após sua prisão. E toda a logística do tráfico continuou a ser
gerenciada por seus homens de confiança. Até pelo menos 1998, a Prado Lopes continuava
a viver a mesma calmaria dos tempos em que Peixoto comandava pessoalmente a venda de
drogas na região.
No entanto, foi em 1999 que a comunidade da Pedreira começou a sentir na pele os
efeitos mais perversos da prisão de Peixoto: sem a liderança pessoal do traficante, as
incontáveis diferenças pessoais existentes entre as gangues começaram a vir à tona. Ainda
89
que continuasse a dar suas ordens de dentro da Penitenciária Nelson Hungria, em Nova
Contagem, Roni não conseguia mais aparar as arestas que se formavam entre as várias
quadrilhas do morro. A ganância, as acusações mútuas e as intrigas pessoais começaram a
falar mais alto e, ainda que não oficialmente, o grupo acabou se dividindo em várias
facções.
De acordo com um levantamento feito pelo Serviço de Inteligência da Polícia Militar,
quatro gangues distintas passaram a controlar o tráfico de drogas na Pedreira Prado Lopes
durante a década de 1990, poucos anos após a prisão do traficante Roni Peixoto: duas delas
se instalaram na parte alta do aglomerado, enquanto as outras duas consolidaram seu
domínio na parte baixa. Ao que tudo indica, esta divisão já existia antes mesmo de Peixoto
ser detido. No entanto, o comando forte do velho traficante mantinha todos os grupos
atuando sob uma só ordem. Com sua prisão, a divisão entre as quadrilhas ficou mais clara e
finalmente veio à tona uma rivalidade que, ainda que de forma camuflada, sempre existiu
entre os bandos da parte alta e os da parte baixa.
Para os rapazes mais novos no tráfico, especialmente para aqueles que haviam entrado
para o movimento após 1995 e não tiveram a oportunidade de “servir sob o comando do
velho patrão”, a liderança fraca e vacilante que era exercida pelos homens de Roni abriu
espaço para o surgimento de novas ambições. No que se refere aos quadrilheiros mais
velhos, a ausência de Peixoto fez com que se reascendessem antigas rivalidades. E como se
já não bastasse, novos fornecedores de drogas perceberam a crise que estava por se instalar
na PPL e também passaram a oferecer suas drogas às quadrilhas, concorrendo diretamente
com o esquema de distribuição mantido há vários anos por Roni.
Já no primeiro semestre de 1999, pelo que moradores da região contam, o grupo de
Roni Peixoto já estava visivelmente abalado por fortes divisões internas. As quadrilhas não
se entendiam entre si quanto à logística do tráfico, quanto à distribuição e à liderança das
“bocas-de-fumo” e o clima começava a ficar muito tenso na Pedreira. A PPL havia se
tornado um barril de pólvora, prestes a explodir ao menor sinal de fogo. E este sinal veio no
segundo semestre de 1999, quando um traficante da parte baixa da favela assassinou o
irmão de um traficante da parte alta, por causa de uma rixa pessoal. Desde aquele dia, um
grande conflito entre gangues explodiu nas ruas do aglomerado e obrigou a comunidade a
sobreviver em um verdadeiro campo de batalha. Moradores lembram-se da dificuldade que
90
tinham para sair de casa e ir ao trabalho. Alguns contam ainda que, naquela época, a
Pedreira foi dividida em áreas bem delimitadas pelos grupos. Quem fosse morador da parte
baixa do aglomerado, por exemplo, estava proibido de ir até a parte alta. Alguns grupos
chegavam até mesmo a cobrar pedágio para que determinadas pessoas pudessem passar por
certas ruas. Além disso, diferentemente do que havia acontecido em décadas anteriores, as
quadrilhas do final dos anos 90 tinham em suas fileiras uma nova e muito mais violenta
geração de adolescentes, com idades variando entre 14 e 25 anos. Com uma imensa
variedade de armas de fogo em suas mãos e nenhum receio em usá-las, estes rapazes
tornaram o conflito de 1999 muito mais espetacular e sangrento do que os pequenos acertos
de contas que haviam acontecido em outras épocas.
Os grupos que haviam nascido e se criado na parte alta da favela consolidaram suas
bases na região que fica entre as ruas Pedro Lessa, Mariana, Serra Negra e parte da rua
Escravo Isidoro. Lá, eles conseguiram estabelecer pelo menos cinco lucrativos pontos de
venda de drogas, que acabaram por concorrer diretamente com as já tradicionais “bocas-de-
fumo” mantidas na parte baixa da favela. De acordo com os moradores da região, as
quadrilhas da parte alta haviam surgido alguns anos depois da formação daquelas que
atuam parte baixa, mas, devido à dedicação e ao profissionalismo demonstrado na lida com
o tráfico, conseguiram, em pouco tempo, uma clientela razoavelmente fiel e bons
armamentos para defender seu negócio. Sobre a obstinação demonstrada pelos integrantes
destes novos grupos, os próprios rivais costumavam dizer que as quadrilhas da parte alta
eram formadas por rapazes que não sabiam aproveitar o dinheiro, a fama e as mulheres que,
em meio a uma comunidade de excluídos, o narcotráfico é capaz de atrair para os garotos
que dele fazem parte.
“A grana que entra a gente gasta em carro e roupa. A gente tira onda, sabe cumé? O pessoal da parte alta não. Eles só gasta em arma e droga, arma e droga. Por isso é que tão mais bem armado do que a gente. Mas isso não quer dizer nada não, porque revólver não serve pra nada na mão de vacilão. Eu me garanto com qualquer 38” (D. A. S., 17 anos, traficante da parte baixa da Pedreira Prado Lopes, em 31/05/2002).
91
As outras duas quadrilhas, talvez as maiores do morro, haviam se estabelecido há
mais tempo na parte baixa da Pedreira Prado Lopes e ainda mantiveram-se fiéis ao
comando de Roni Peixoto. Os rapazes que faziam parte delas viviam no setor mais
urbanizado do aglomerado, em barracões que se espalhavam pela avenida José Bonifácio e
pelas ruas Araribá, Carmo do Rio Claro e Guapé, vias estas que ficam próximo à entrada
principal da Prado Lopes, junto ao conjunto IAPI e o Hospital Odilon Behrens. Naquela
região, haviam conseguido estabelecer nove pontos de venda de drogas, locais que eram
tradicionalmente freqüentados pela imensa maioria dos viciados em crack de Belo
Horizonte. Foi inclusive esta altíssima movimentação de clientes que fez com que, no meio
policial, as “bocas” das ruas Araribá, Carmo do Rio Claro e avenida José Bonifácio
ganhassem o apelido de “crackolândia”.
Em 1999, foi justamente neste cenário que explodiu na Pedreira Prado Lopes um
conflito entre gangues que só terminaria três anos depois, e que deixaria atrás de si um
rastro de 18 mortes. Durante vários meses, as gangues da parte baixa enfrentaram as da
parte alta, dando uma mostra clara de que o tráfico não possuía mais um comando único e
que somente o mais forte sobreviveria naquele mercado. Até hoje, existem várias versões
diferentes quando se trata de apontar qual dos grupos teria dado o primeiro disparo daquele
confronto. O que se sabe é que a “guerra” – termo que os próprios traficantes costumam
usar para definir a abertura de um ciclo de violência e morte entre as gangues - começou
oficialmente no segundo semestre de 1999, quando o adolescente Renato Nunes de Souza,
mais conhecido como “Babão” e que trabalhava como “soldado” de uma gangue da parte
baixa da favela, matou um dos irmãos do traficante Cléber Pereira de Souza, conhecido
como “Coração”, líder de uma das gangues da parte alta do aglomerado. Apesar de não
saberem o real motivo do assassinato, muitos moradores lembram que, muito violento que
era, “Babão” teria cometido o crime por causa de um desentendimento corriqueiro. Se em
meio às gangues da Pedreira os ânimos já estavam exaltados devido à disputa pelo mercado
das drogas, este assassinato repercutiu como uma verdadeira declaração de guerra, e
constituiu-se no motivo de que todos vinham precisando para resolver suas já insuportáveis
diferenças. Além disso, em um cenário em que os laços de solidariedade entre os membros
das gangues se tornam tão fortes a ponto de suprir a ausência de uma estrutura familiar, não
existe assunto pessoal: o que afeta um afeta a todos. Uma ofensa praticada contra apenas
92
um membro do grupo é tomada como insulto a todo o grupo, o que confirma os estudos de
Thrasher (1927) e Decker e Van Winkle (1996). Por isso, a morte de um adolescente
morador da parte alta, ainda que tenha sido por uma briga pessoal com um traficante da
parte baixa, tornou-se motivo mais do que suficiente para o começo de um enfrentamento
entre as turmas.
Antes de seguir adiante, é preciso esclarecer alguns pontos e terminologias
importantes para a compreensão do contexto descrito. Durante a realização do presente
estudo, muito me chamou a atenção o fato de os moradores da Pedreira, assim como os
traficantes e policiais que lá atuam, utilizarem constantemente o termo “guerra” para
designar o ciclo de enfrentamentos, violência e mortes que ocasionalmente se estabelece
entre as gangues. Evidências colhidas durante a realização desta pesquisa permitem afirmar
que tais ciclos de violência e enfrentamentos são relativamente comuns e, pelo menos no
caso das quadrilhas da PPL, ocorrem sempre quando existe alguma rixa entre os grupos ou
quando a estrutura do tráfico de drogas vigente no local precisa passar por algum rearranjo
de poder. Para as gangues da Prado Lopes, as chamadas “guerras” são, portanto,
instrumentos de resolução de conflitos e discordâncias e até mesmo de renegociação de
papéis dentro da estrutura de poder que o tráfico de drogas estabelece dentro do
microcosmo da favela. Como o comércio de entorpecentes é uma atividade ilegal e não
conta com qualquer instância de mediação de conflitos, a forma mais comumente utilizada
pelas quadrilhas para solucionar suas discordâncias ou inimizades é a via do enfrentamento
armado, da violência coletiva, a via da “guerra”.
Em um primeiro momento, o uso do termo “guerra” pode parecer um tanto quanto
inadequado para definir a rotina de enfrentamentos entre as gangues ou quadrilhas. Até
porque a própria definição de “guerra” é até hoje extremamente controversa. Ainda que se
trate de uma definição bastante genérica, a forma de violência coletiva que historicamente
se convencionou chamar de “guerra” é a do conflito entre nações, como define o Relatório
Mundial sobre Violência e Saúde, da Organização Mundial de Saúde (OMS), de 2002.
Sociologicamente falando, aquilo que se chama de “guerra” seria a última instância de
resolução de discordâncias e renegociação de papéis políticos a ser utilizada por nações ou
Estados, enquanto comunidades humanas que reivindicam (com sucesso) o monopólio do
93
uso legítimo de força física dentro de um determinado território, como afirma Weber
(1946).
Que fique bem claro, portanto, que, ao utilizar o termo “guerra” para nos referirmos
aos enfrentamentos travados pelas quadrilhas de traficantes da PPL, o presente estudo não
faz nenhum tipo de comparação ou analogia entre tais grupos e qualquer tipo de Estado
constituído. É bastante evidente que, excetuando-se o quase que completo monopólio dos
meios de coação e violência dentro de um determinado território, as gangues ou quadrilhas
da PPL não possuem qualquer semelhança com o Estado constituído e nem mesmo podem
ser comparadas a tal. Procura-se apenas uma explicação plausível para o fato de moradores,
traficantes e até mesmo policiais fazerem uso constante do termo “guerra”, para se referir
aos ciclos de violência que tais quadrilhas instauram entre si de tempos em tempos na
Pedreira.
Ao que tudo indica, os ciclos de enfrentamentos armados entre as gangues ou
quadrilhas é chamado de “guerra” porque, assim como acontece com os Estados, eles nada
mais são do que a última instância de resolução de discordâncias e de redefinição de papéis,
mantida entre pelas quadrilhas. Só que, ao invés de se desenrolar dentro do universo
político das nações ou estados, estes rearranjos de poder se desenvolvem dentro do universo
do tráfico de drogas e do microcosmo da favela. Observa-se, portanto, que apesar de serem
chamados de “guerra”, os enfrentamentos entre as gangues da Pedreira constituem somente
mais um tipo de “violência coletiva”, como destaca o trecho, a seguir, do Relatório
Mundial sobre Violência e Saúde, da Organização Mundial de Saúde (2002:p 213):
“A violência coletiva pode ser definida como: o uso instrumental da violência por pessoas que se identificam como membros de um grupo – independente de esse grupo ser transitório ou possuir uma identidade mais permanente – contra outro grupo ou um conjunto de indivíduos com o intuito de alcançar objetivos políticos, econômicos ou sociais”.
Em 1999, por exemplo, foi exatamente isso que aconteceu na Pedreira. O que os
moradores chamam de “guerra”, nada mais foi do que a abertura de um ciclo de “violência
coletiva” entre as quadrilhas para a resolução em última instância de todas as desavenças
pessoais que existiam entre vários membros daqueles grupos e também das discordâncias
que eles tinham com relação ao gerenciamento do tráfico de drogas naquela favela. Na
94
ocasião, como foi dito anteriormente, o estopim para a explosão daquele confronto foi o
fato de o traficante “Babão”, que pertencia a uma quadrilha da parte baixa da favela, ter
assassinado o irmão do também traficante “Coração”, líder de uma das quadrilhas da parte
alta do morro. Moradores do aglomerado contam que, desde aquele dia, todos os
integrantes das quadrilhas passaram a ser vistos pelas ruas da PPL exibindo suas armas com
freqüência e sempre andando aos bandos. Devido ao fato de conviveram no mesmo espaço
geográfico do morro, as quadrilhas da parte baixa se uniram contra as da parte alta, sendo
que a recíproca também foi verdadeira. Aos poucos, determinadas esquinas e bares
tornaram-se pontos fixos de encontro entre os membros de uma destas turmas. Fato este
que, automaticamente, tornava o local proibido para os integrantes do outro grupo. Se as
divisões internas impostas pelo tráfico já haviam, de certa forma, repartido a Pedreira em
várias áreas, o início da “guerra” acabava por formalizar as demarcações que, até então,
eram apenas subentendidas.
De forma lenta e gradual, a Pedreira Prado Lopes começou a se ver sitiada pelo
confronto. Tornava-se cada vez mais difícil ver moradores nas portas de suas casas,
travando uma conversa de fim de noite com vizinhos. Todos se recolhiam ao anoitecer, para
evitar a possibilidade de se ver no local errado, na hora errada. E, apesar das poucas
informações confiáveis que se tinha, a “guerra” circulava de boca em boca pelos
intrincados e degradados becos da favela. Um comentário rápido, uma lamentação, tiros no
meio da noite. Moradores da parte baixa evitavam ir à parte alta, e qualquer movimentação
diferente era prenúncio dos confrontos que, apesar de sempre tão iminentes, aconteciam de
forma muitos mais esporádica do que costuma julgar a mídia e, conseqüentemente, o senso-
comum. Alguns muros da favela, bastante furados a bala, passaram, aos poucos, a ser
testemunhas silenciosas de um conflito que, apesar de abertamente declarado, registrava
relativamente poucas baixas, se comparado ao que se via em outras favelas da capital.
Durante o segundo semestre de 1999, quatro rapazes morreram nessa disputa. No ano
seguinte, este número dobrou. Em todos os casos, o local onde havia sido cometido um
crime contava de uma forma até mesmo óbvia a história do que acontecera. Os corpos eram
sempre encontrados pela polícia em vias públicas bastante movimentadas. Quase todos
eram de rapazes muito novos, que tiveram a vida ceifada por dezenas de balas, geralmente
disparadas por armas semi-automáticas de calibres de uso restrito à polícia ou ao exército.
95
Na grande maioria dos assassinatos, a vítima era executada com dezenas de tiros,
em frente a várias pessoas. Muitas vezes, logo após abater seu rival, os criminosos ainda
atiravam diversas vezes contra sua cabeça, como uma forma de confirmar o sucesso da
ação. Cometidas à luz do dia, estas execuções eram, ao mesmo tempo, um desafio aberto
aos membros da gangue rival e um aviso a todos os moradores da Pedreira para que
estes não tentassem interferir nos negócios do tráfico. Muito mais do que apenas uma
maneira drástica de se livrar dos inimigos, as execuções acabaram por se constituir em
grandes espetáculos públicos com a finalidade de reforçar no imaginário coletivo o
poder dos traficantes. Observa-se muito claramente que, para aqueles garotos, não basta
apenas matar seu rival. É preciso massacrá-lo. Imersos em uma subcultura que apregoa
os valores mais exacerbados da violência, do machismo e da virilidade, é preciso realizar
as execuções na frente de dezenas de pessoas, no meio da rua, em plena luz do dia e da
maneira mais brutal possível, fato que confirma os dados apresentados nos estudos de
Zaluar (1994) e Soares (2000).
Por isso, podemos dizer que os assassinatos praticados por aqueles garotos não são
apenas uma maneira extrema de resolver as rixas, as desavenças, ou as disputas. Não são
apenas um dos muitos instrumentos utilizados por eles nos constantes rearranjos de poder
pelos quais o tráfico de drogas passa na Pedreira. Muito mais do que isso, as execuções
cumprem um papel simbólico. Até mesmo por seu caráter claramente espetacular, elas
interferem diretamente na percepção da violência que se forma no imaginário coletivo da
comunidade. Os assassinatos, quando cometidos na frente de uma multidão, constituem-se
em importantíssimos reforços nas estruturas de poder simbólico do tráfico de drogas
perante a comunidade onde ele se instalou. As execuções são a instância última em que se
apóia todo o poder dos traficantes. A demonstração de que eles estão dispostos a ir até onde
for preciso para manter o seu monopólio da coerção física e dos meios de uso da violência
dentro daquele pequeno espaço que é a favela. Ao matarem um viciado que não pagou a
droga que consumiu, os traficantes estão dando um recado muito claro para os demais. O
mesmo acontece quando um inimigo tomba no meio a uma troca de tiros ou em uma
emboscada, ou ainda quando um morador é morto por ter delatado a quadrilha à polícia.
Em todos os casos, reforça-se o medo que a gangue impõe à comunidade e,
conseqüentemente, o poder que ela exerce sobre os moradores.
96
Em 1999, mais do que em anos anteriores, os moradores da PPL se viram obrigados a
conviver com vários destes jovens assassinos. Eles estavam nos bares, nas ruas, nas vendas,
nos postos de saúde, nas escolas e nas festas. Estes rapazes andavam pelas ruas com armas
sob a camisa e cumprimentavam cada um dos conhecidos como se nada estivesse
acontecendo. Apesar de sempre serem vistos nas “bocas-de-fumo” gerenciando o tráfico da
favela, às vezes alguns deles demonstravam um comportamento tão cordial e prestativo
com vizinhos, amigos e familiares que muitos chegavam a duvidar da má fama que
começavam a carregar.
Com o passar dos meses, os primeiros nomes desta guerra começaram a figurar nos
arquivos da Polícia Civil, na imprensa16 e no imaginário dos garotos mais novos da própria
Pedreira. “Babão”, “Baby”, “Malandrinho”, “Fernando” e “Knorr” tornaram-se nomes
respeitados e temidos na parte baixa da favela, mais precisamente na região das ruas Carmo
do Rio Claro, José Bonifácio, Escravo Isidoro e Pedro Lessa. Na parte alta do morro, bem
onde fica uma antena de transmissão da Polícia Civil, na região das ruas Serra Negra,
Mariana e Marcazita, começavam a circular de boca em boca as histórias protagonizadas
por “Coração”, “Leozinho”, “Grande” e “Mauricinho”. Parte alta ou parte baixa, a
geografia não importava. Todos estes rapazes, alguns com 15, 16 ou 17 anos, começaram a
ganhar fama nas ruas da Prado Lopes pelos crimes bárbaros que passaram a cometer.
Em julho de 1999, por exemplo, um adolescente conhecido como “Baby”, que
começou trabalhando como “vapor” (vendedor de drogas) para a quadrilha de Roni
Peixoto, mas que subiu na hierarquia do grupo e se tornou “soldado” (segurança armado),
ganhou as manchetes dos principais jornais mineiros depois de fugir de um centro de
internação provisória que fica na cidade de Sete Lagoas. Dias após a fuga, ele voltou à
Pedreira para rever a família e executar com 12 tiros o padeiro José Vítor da Silva (21
anos), em plena rua Carmo do Rio Claro. Testemunhas contam que, na ocasião, o rapaz já
chegou à rua de arma em punho, como se surgido de lugar algum. Em alto e bom som, ele
gritou para o padeiro que passava distraído: “Cê me cagüetou, filho da puta?”. Antes que
José Vítor pudesse esboçar qualquer reação ou resposta, “Baby” descarregou todo um pente
de pistola calibre 380 sobre sua vítima. Já sem vida, o padeiro caiu encostado em um muro,
sob os olhares perplexos de dezenas de pessoas que por ali passavam. No local onde
16 Ver reportagens publicadas no jornal Estado de Minas dos dias 31 de julho e 10 de agosto de 1999.
97
cometeu o assassinato, ainda sob os olhares aterrorizados de uma pequena multidão que se
formava, “Baby” utilizou uma lata de tinta spray para, tranqüilamente, escrever em um
muro a sua sentença: “Deus manda, a mãe cria, o Baby mata”. Meses depois, “Baby”
justificaria o crime dizendo que a vítima o havia denunciado à polícia e que, por isso,
estava recebendo o castigo que merecia. A inscrição feita por “Baby” no muro da PPL ficou
intocada durante meses, até que a polícia ordenou que ela fosse apagada.
Aos poucos, este tipo de crime começou a despertar a atenção da mídia que, já em
2000, passou a cobrar das autoridades uma solução para as mortes que vinham se tornando
cada vez mais freqüentes na Pedreira. Em meio àquela guerra, outro episódio em especial
ganhou muita repercussão nos os jornais da capital: a execução do traficante Renato Nunes
de Souza, o “Babão”, um dos principais “soldados” de Roni Peixoto e justamente aquele
que havia acendido de vez o estopim daquela guerra. Na ocasião, com apenas 17 anos, ele
já era apontado pela polícia como autor de pelo menos três assassinatos cometidos na PPL.
Já em 2000, na gíria usada pelos próprios rapazes do morro, dizia-se que “Babão estava
virando bicho”. Sempre armado e travando tiroteios com os adolescentes da parte alta, ele
começava a ganhar fama de “justiceiro” entre os moradores da parte baixa da Prado Lopes.
E, apesar de já existir na Divisão de Crimes contra a Vida (DCcV) três inquéritos que o
investigavam, a polícia não conseguia prendê-lo.
Em uma tarde de janeiro de 2000, no entanto, uma notícia chegou aos ouvidos da
Polícia Civil e foi imediatamente comemorada por vários policiais do Departamento de
Investigações (DI). De acordo com o plantão policial do Hospital Odilon Behrens, “Babão”
havia acabado de dar entrada naquela unidade, mortalmente ferido por 12 tiros, vários nas
costas, no peito e na cabeça. Em poucos minutos, estaria morto. Segundo relato de
testemunhas, o crime teria sido cometido por três rapazes, entre eles o traficante Cléber
Pereira de Souza (20 anos), o “Coração”, que finalmente vingava a morte de seu irmão. Na
época, “Coração” já era gerente de uma das “bocas” da parte alta da favela e tinha sob seu
comando vários “vapores” e “soldados”.
Moradores da Prado Lopes contam que, na ocasião, o confronto que culminou na
morte de “Babão” havia começado na manhã do dia 24 de janeiro, quando “Coração” e dois
de seus soldados - “Cabelinho” e “Leozinho” - tentaram executar “Babão” em uma
movimentada rua da parte baixa da favela. Na emboscada, houve uma grande troca de tiros
98
e “Cabelinho” acabou ferido com um tiro na perna. “Babão”, muito hábil no manejo de sua
arma, mais uma vez saíra ileso.
Já durante a tarde, revoltado com a audácia demonstrada pelos inimigos, “Babão”
colocou sua arma na cintura, uma pistola semi-automática calibre 380, e subiu a Pedreira
para executar “Coração”. Moradores da favela contam que “Babão” ficou enfurecido com a
ousadia do grupo rival e, sem pedir ajuda a nenhum comparsa ou planejar sua ação, decidiu
acabar com aquela briga de uma vez por todas, matando aquele que era o cabeça da gangue
adversária e mentor intelectual do atentado sofrido por ele ainda naquela manhã. A notícia
de que “Babão” estava subindo a Pedreira para matar “Coração” correu a favela como um
raio. Dentro do mundo de representações simbólicas do tráfico, aquele ato tinha uma
significação sem precedentes. “Babão” era um “soldado” que estava indo sozinho até o
território inimigo, para assassinar o chefe do tráfico local. Uma ousadia que, se tivesse
sucesso, certamente garantiria a ele muito prestígio em meio ao tráfico e até mesmo, quem
sabe, no controle da “boca-de-fumo” então chefiada por “Coração” na parte alta da favela.
Até mesmo devido à grande repercussão que a ida de “Babão” até ao quartel general
de seu maior rival teve na Pedreira, naquela tarde, ele não chegou ao seu destino nem
cumpriu sua missão com o mesmo sucesso das outras vezes. Antes mesmo que pudesse
chegar até a casa onde “Coração” costumava se esconder, na parte alta da favela, ele foi
emboscado por dois rapazes na rua Serra Negra e assassinado com 12 tiros. Vários deles
nas costas, no peito e na cabeça. Temido por toda uma comunidade, e ao mesmo tempo
admirado por centenas de garotos carentes de ídolos e referências familiares, “Babão” caiu
em via pública e, praticamente morto, teve sua arma roubada pelos executores.
Na época, a morte de “Babão”, que apesar da pouca idade era um dos mais
importantes e violentos “soldados” de Roni Peixoto, ganhou muito espaço na imprensa17
local, devido à brutalidade da ação de seus executores – segundo exames periciais, Renato
Nunes teria recebido os primeiros tiros nas costas. Já caído no chão e agonizando perante
dezenas de testemunhas, ele tentou se arrastar para dentro de um bar para recobrar o fôlego
e se proteger dos inimigos. No entanto, foi perseguido e executado com uma série de
disparos no peito e na cabeça, em frente a várias de pessoas que passavam pela rua.
17 Ver reportagem publicada no jornal Estado de Minas do dia 25 de janeiro de 2000.
99
Como sempre acontece, quando algum caso consegue grande destaque na mídia18, a
polícia passou a adotar uma postura mais incisiva com relação às quadrilhas da PPL. Em
dezembro de 2000, a gangue da parte alta da favela, justamente aquela que havia sido a
primeira a desafiar o comando de Roni Peixoto, foi desmantelada com a morte do traficante
conhecido como “Grande”, que ocupava o cargo de gerente de uma das “bocas-de-fumo”
daquela região da favela, e a prisão de Cléber Pereira de Souza, o “Coração”. Sem seus dois
principais gerentes, o grupo da parte alta ficou acéfalo e os soldados não souberam dar a
continuidade devida ao negócio. A principal quadrilha da parte baixa também sofreu perdas
consideráveis em dezembro de 2000, depois que “Baby” e “Pernalonga” fugiram do morro
e a polícia conseguiu prender o também traficante Douglas Luiz de Oliveira, o “Knorr”,
“gerente” de uma das mais lucrativas “bocas” daquela região da PPL.
Mesmo sem a presença de qualquer liderança significativa, a “guerra” ainda durou
alguns meses, até que alguns dos principais traficantes do morro foram presos pela polícia,
ou acabaram mortos nos intermináveis confrontos que travaram entre si. Gradativamente, a
paz voltou à Pedreira. Primeiro porque os principais líderes daquele confronto estavam
presos ou mortos. Segundo porque, aos poucos, as quadrilhas haviam resolvido suas
principais diferenças e também perceberam que, assim como na época em que Roni Peixoto
reinava absoluto no morro, todos os grupos poderiam conviver de forma harmoniosa e,
ainda assim, obter lucros exorbitantes.
Ainda hoje, quando são questionados sobre a “guerra” de 1999, vários moradores da
PPL contam que, além da disputa pelo mercado das drogas, uma série de pequenos fatos
pontuais teriam acabado por deflagrar o confronto. Pequenos atritos pessoais, que acabaram
sendo elevados à enésima potência e ganharam contornos catastróficos devido à presença
maciça das armas de fogo trazidas pelo tráfico. Talvez uma discussão mais acirrada em
uma partida de futebol, um tapa na cara, uma namorada perdida para um rapaz do outro
grupo, ou até mesmo um boato maldosamente espalhado na região. Motivos que, jogados
desta maneira em uma folha de papel, podem parecer esdrúxulos para justificar o início de
um ciclo de vinganças e mortes que duraria mais de dois anos. Mas todos são fatos que
adquirem uma significação gigantesca quando os adolescentes são membros de quadrilhas
concorrentes no mercado das drogas e, ao mesmo tempo, estão culturalmente inseridos em
18 Ver reportagem publicada no jornal Estado de Minas do dia 29 de dezembro de 2000.
100
uma estrutura simbólica pautada pelo machismo, pela noção de virilidade, pela presença
ostensiva das armas de fogo e por uma concepção estereotipada da honra masculina, como
demonstra o estudo de Zaluar (1985).
Juízos de valor à parte, o que se observa de fato é que, após entrar para o tráfico de
drogas, todos aqueles garotos, que foram criados juntos brincando nas ruas da favela,
começaram a andar ostensivamente armados, como soldados que esperam a chegada do
inimigo em cada um dos intrincados becos e esquinas do morro. Fato é que a participação
de todos aqueles meninos em quadrilhas de traficantes potencializou antigas desavenças
pessoais. E em um meio que, devido à sua própria natureza ilegal, não possui qualquer
instância de mediação de conflitos, qualquer desavença ou disputa é resolvida com o cano
de uma arma de fogo. Armas estas que, aliás, acabam por ocupar no imaginário destes
jovens uma posição importantíssima no que se refere à definição de suas identidades.
Símbolos fálicos por excelência, as armas de fogo conferem ao jovem o status de “homem
feito”. Com ela na cintura, o rapaz adquire o poder de subjugar seu oponente e provar quem
é mais macho. Segundo Soares (2000: p 269):
“O tráfico de drogas e armas, estabelecido como despotismo territorial, desenvolveu uma subcultura do gueto, refratária aos valores universalistas e ao princípio da equidade, que dão sentido ao conceito de cidadania. É como se houvesse uma regressão ao estagio medieval de desenvolvimento das regras de sociabilidade. Quando o mundo europeu se dividia em baronatos feudais, a lógica da força determinava as alianças e as guerras entre os senhores dos vários territórios, sempre cobiçados e sujeitos a disputas militares. Os homens morriam muito jovens, viviam menos do que as mulheres, mas a sociedade os compensava, reservando-lhes o monopólio do poder, que era masculino” (SOARES, 2000).
Na Pedreira, a desconfiança que os grupos da partes alta e baixa da favela já nutriam
um pelo outro devido à competição que travavam no mercado das drogas se misturou às
antigas e novas desavenças pessoais e gerou um conflito que, a certa altura, ninguém mais
sabia por que havia começado. Durante os anos de 2001 e 2002, alguns remanescentes das
quadrilhas da parte baixa e da parte alta ainda continuaram no morro travando confrontos
ocasionais. No entanto, o tráfico na PPL havia sofrido baixas consideráveis e já não era
mais o mesmo de meados da década de 90. O “movimento” só voltaria a se reerguer no ano
101
de 2003, justamente quando Roni Peixoto ganhou liberdade condicional e, segundo a
polícia, voltou a lutar pelo controle do tráfico da região.
4.1.3. 2003: A volta de Roni Peixoto e o início de uma nova “guerra”
No dia 15 de setembro de 2003, a Vara de Execuções Criminais de Belo Horizonte
expediu o mandado de liberdade condicional do traficante Roni Peixoto, por ele ter acabado
de cumprir dois terços de sua condenação. No mesmo dia em que foi solto, Peixoto foi
recebido na Pedreira Prado Lopes por um churrasco para aproximadamente mil pessoas,
que fechou as ruas Araribá e Carmo do Rio Claro em plena tarde de segunda-feira. Viaturas
da Polícia Civil que tentavam entregar uma intimação no alto do morro foram
simplesmente impedidas de entrar na favela. De acordo com um dos policiais que
participou desta ocorrência, alguns conhecidos traficantes do morro pararam em frente às
viaturas e disseram: “O patrão está de volta e hoje a polícia não entra no morro”.
Apesar de garantir que não possuía mais qualquer envolvimento com o tráfico da
PPL, informações recebidas pelo Serviço de Inteligência da PM dão conta de que, poucas
semanas depois de ser colocado em liberdade, Roni Peixoto já teria reassumido o controle
de praticamente todo o comércio de drogas realizado no aglomerado. O domínio de Roni
sobre as quadrilhas só não foi completo porque um grupo remanescente das antigas
quadrilhas da parte alta, e que mantinha suas “bocas-de-fumo” na região Nordeste da
favela, em uma área conhecida como “Terreirão”, não teria se sujeitado às ordens do velho
traficante. De acordo com membros deste bando, que na ocasião era comandado pelo
traficante Rodrigo Gomes da Fonseca, o “Rodriguinho”, Roni Peixoto teria tentado impor a
compra de seu crack ao preço de R$16,00 o grama, enquanto a quadrilha conseguia adquirir
a mesma quantidade, de um outro fornecedor, por apenas R$13,00. Vejamos, a seguir, o
depoimento de um dos entrevistados da pesquisa sobre Roni Peixoto:
“Cê ouve a gente falando assim e acha que é pagá mó vacilo entrá numa guerra ruim dessa por causa de três conto de diferença, né? Mas pensa comigo aqui, véio. Cada grama de crack rende pra nós quatro pedra. Cada pedra a gente tira a cinco conto. Tem final de semana aqui na boca que a gente vende é quase meio quilo de crack numa noite. Numa noite só véio! Dá umas duas mil pedra. Multiplica isso aí agora pra você vê quem é que tá de vacilão na história. Cê tá me entendendo? O safado do
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Roni tá querendo dá a maior volta em cima de nós. Ele acha que só tem otário aqui na Pedreira. Acha que todo mundo tem que pagá boi pra ele. Com nós né assim não, véio. Aqui no Terreirão nós é sinistro mesmo! (L. G. F. C., traficante da ‘Boca do Terreirão’, região Nordeste da Pedreira Prado Lopes, em 12/10/2003)
A prova de que a volta de Roni Peixoto à PPL interrompeu a relativa tranqüilidade
vivida há dois anos pelo tráfico pôde ser vista na verdadeira guerra que tomou conta da
favela na época da soltura do traficante. Nos últimos meses de 2003, apesar de a PM ter
reforçado o patrulhamento em toda a região do aglomerado, uma nova “guerra” explodiu na
PPL. Em apenas três meses, nove pessoas foram mortas na tentativa que Peixoto fazia de
retomar a hegemonia do tráfico na Pedreira. Ao final de todo o ano, a polícia Civil
contabilizou 19 assassinatos. Os primeiros enfrentamentos desta nova “guerra”
aconteceram na madrugada do dia 05/10/2003, quando uma das gangues supostamente
comandadas por Roni Peixoto se confrontou com a quadrilha do “Terreirão”, deixando um
saldo de uma pessoa morta e dez feridas. Durante o embate, policiais afirmam ter visto
munições traçantes cortando as ruas da PPL, prova definitiva de que os bandos faziam uso
de fuzis durante o confronto.
No dia 26 de novembro de 2003, acuado pela pressão da mídia e do Ministério
Público, o juiz da 3a Vara de Tóxicos de Belo Horizonte acatou um ofício da Promotoria de
Combate ao Crime Organizado e expediu um mandado de prisão temporária para Roni
Peixoto. Em uma megaoperação que mobilizou várias viaturas, dezenas de policiais e até
mesmo um helicóptero, o traficante foi preso na casa de familiares no bairro Justinópolis,
em Ribeirão das Neves. Mostrando tranqüilidade, Peixoto não resistiu à prisão e voltou a
garantir que não possuía mais qualquer envolvimento com o tráfico de drogas. Levado de
volta à Penitenciária Nelson Hungria, Roni permanecia preso pelo menos até setembro de
2004. No entanto, os enfrentamentos entre as gangues continuavam pelas ruas da PPL e não
davam indícios de que iriam terminar tão cedo. Nos nove primeiros meses de 2004, 50
pessoas já haviam sido mortas em meio aos combates que se tornaram quase que diários.
Para tentar abafar a péssima repercussão que a abertura de uma nova rodada de
enfrentamentos entre as gangues na Pedreira estava causando, a PM manteve a favela
ocupada 24 horas por dia durante os últimos dois meses de 2003, utilizando centenas de
homens e até mesmo caminhões táticos conhecidos como “brucutus”. No entanto, para
103
lideranças comunitárias da PPL, a nova ocupação militar nada mais era do que a prova
definitiva de que as autoridades municipais e estaduais não possuíam qualquer política
pública consistente de combate ao tráfico de drogas que se instalou na favela, como
evidencia, a seguir, o relato de um dos informantes entrevistados pela pesquisa:
“Não vamo aceita isso não, aí. Quem que ele tá pensando que é, pô? Só porque o Roni foi o cara durante uns tempo aí tá achando que é chegar assim e empurrá o bagulho dele em nós? Né assim não véio... Não é assim mesmo. Tamo ligado que as outras quadrilhas tudo já pagaram boi pro cara. Mas com a gente não vai tê essa moleza não. Se quisé vai tê que vim aqui pegá. E vai tê guerra, sabe por que? Porque nós é sinistro mesmo, véio. Se vié aqueles cruza caminho pro nosso lado nós senta é o dedo mesmo, tá ligado? Se vié vai tê morte, vai tê guerra” (L. G. F. C., traficante da ‘Boca do Terreirão’, região Nordeste da Pedreira Prado Lopes, em 12/10/2003).
No primeiro semestre de 2004, mais uma vez acuada pelo crescimento vertiginoso das
taxas de criminalidade violenta na PPL, a Secretaria de Defesa Social implantou um
programa de policiamento comunitário na favela, intitulado “GEPAR” – Grupo
Especializado em Patrulhamento de Áreas de Risco -, além de incluir a Pedreira em um
programa de controle de homicídios intitulado “Fica Vivo”. Apelava-se para uma
experiência que já havia sido conduzida na favela Morro das Pedras, na região Oeste, e que
havia conseguido reduzir sensivelmente o índice de criminalidade naquela comunidade.
Em um primeiro momento, o policiamento comunitário surtiu certo efeito.
Praticamente todos os principais líderes da quadrilha do “Terreirão” foram presos, ainda
que muitos moradores da Pedreira insistam em dizer que tais prisões só aconteceram
porque os traficantes leais a Roni Peixoto passaram a trabalhar como informantes da
polícia, repassando aos militares valiosas informações sobre os rivais. Na guerra de
informações, verdadeiras ou não, traficantes do “Terreirão” disseram, na ocasião, que os
integrantes da quadrilha de Roni não eram presos porque pagavam vultosas somas aos
policiais que trabalhavam na favela.
Coincidência ou não, fato é que praticamente todos os líderes do “Terreirão” foram
tirados de circulação pela polícia, assim como a maioria do armamento da quadrilha. Isto
enfraqueceu sensivelmente o grupo e fez com que todos os seus membros tivessem que
deixar a Pedreira em meados de abril e maio de 2004. Por um curto período, a quadrilha de
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Roni Peixoto voltava a dominar praticamente todo o tráfico da PPL, matando apenas alguns
antigos desafetos que se atreveram a não deixar a favela. De acordo com moradores, várias
armas chegaram à Prado Lopes e a quadrilha ganhava dinheiro como nunca.
No entanto, a polícia não parou de investir contra o tráfico. Enquanto a quadrilha de
Roni Peixoto deixava para trás de si um rastro de sangue jamais visto na PPL, um a um
seus líderes começaram a ser detidos. Em maio e junho de 2004, a prisão de dois
importantes “gerentes” da quadrilha de Roni desestabilizou todo o grupo. O primeiro a ser
preso foi o traficante Daniel Acácio dos Santos, o “Malandrinho”, suspeito de vários
assassinatos e tido como o principal responsável pela vitória que o grupo tinha conseguido
meses antes sobre a quadrilha do “Terreirão”. O segundo a ser tirado de circulação foi
Wanderson da Silva Quirino, o “Som”, um dos mais antigos e importantes “gerentes” de
Roni Peixoto.
A prisão destes dois e a apreensão de um grande volume de armas pesadas deixou a
quadrilha vulnerável. Com isso, começaram a surgir as primeiras dissidências dentro do
próprio bando e até mesmo a quadrilha do “Terreirão” voltou ao aglomerado para tentar
reocupar os territórios perdidos meses antes. O principal grupo dissidente do bando de Roni
Peixoto instalou-se na região da rua Marcazita e Escravo Isidoro, parte Nordeste da favela,
próximo ao próprio “Terreirão”. Depois de declarar a sua independência, a “boca da
Marcazita” passou a ser comandada pelos irmãos “Nego” e “Fio”, este último morto pela
Polícia Militar em agosto de 2004, poucos minutos depois de comandar um ataque aos
traficantes da rua Carmo do Rio Claro, uma das mais importantes e lucrativas “bocas” de
Roni Peixoto.
Ainda em agosto de 2004, quando este estudo estava sendo concluído, um grande
confronto entre gangues estava instalado nas Pedreira. Os principais combates eram
travados quase que diariamente entre a quadrilha de Roni Peixoto e os dissidentes da rua
Marcazita. Por terem reconquistado seu espaço há relativamente pouco tempo, os
traficantes do “Terreirão” limitavam-se a observar os confrontos e a conseguir novas armas
para ter condições de defender seus pontos de venda contra novas investidas que
certamente viriam após ser resolvida a contenda entre a gangue da Marcazita e a de Roni
Peixoto, como podemos verificar no depoimento a seguir:
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“O pessoal da Carmo do Rio Claro (quadrilha fiel ao comando de Roni Peixoto) tá matando todos os nossos ‘atividade’ (olheiros ou vigias do tráfico) para poder pegar nossas boca de assalto na manha. Mas não vai tê boi pra eles não porque nós vamo revidá. Pra cada um que caí do lado de cá, vai tombá é dez do lado deles. Já mataram meu irmão na semana passada e isso não vai ficá barato. Vai corrê sangue, vai tê muita morte. O movimento aqui era bom pra todo mundo ficá na moral. Mas eles ficam com o olho grande porque nós tamo prosperando, sabe qualé? E eles não pode vê ninguém ficá bonito na fita que já qué tomá a boca, ao invés de aprendê a trabalhá. Tão vindo aqui direto e reto e zuando o plantão. Então agora não vai te sossego não. Agora vai sê é guerra mesmo” (Traficante conhecido como “Nego”, um dos líderes da gangue da rua Marcazita, em 12/08/2004).
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CAPÍTULO 5: O panorama atual da criminalidade e a estrutura do tráfico de drogas na Pedreira Prado Lopes
“É ‘pou’, ‘pou’, ‘pou’, três pipoco e o cara já deita” (F.P.E., 17 anos, traficante da parte baixa da Pedreira Prado Lopes)
Acreditamos que já tenha ficado claro que é quase impossível falar em violência e
criminalidade na PPL sem falar em tráfico de drogas. Justamente por isso, é preciso
entender como funciona esta atividade na Pedreira. É necessário compreender todos os
aspectos inerentes à sua logística, todos os seus mecanismos de atuação e todas as formas
pelas quais as quadrilhas ligadas à sua exploração exercem seu poder. Mais do que nunca, é
fundamental que se entenda como o tráfico de drogas se consolidou na Prado Lopes da
maneira como se vê nos dias de hoje.
Encravada na região Noroeste de Belo Horizonte e com uma área de pouco mais de
142 mil metros quadrados, a Pedreira é hoje, segundo levantamentos do Serviço de
Inteligência da Polícia Militar, um dos maiores centros de entrada e distribuição de drogas
da capital mineira - até porque está estrategicamente próxima ao centro da cidade e é
servida, em sua margem Leste, pela avenida Presidente Antônio Carlos, um dos maiores
corredores de trânsito de BH.
De acordo com informações recebidas pela polícia, todas as semanas, diversos
carregamentos de crack, cocaína e maconha chegam às mãos dos narcotraficantes da Prado
Lopes, vindos de estados como São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia, além de países como a
Bolívia e o Paraguai. E, em seu rastro, estas drogas também trouxeram para a Pedreira as
armas, os enfrentamentos e as mortes de dezenas de pessoas nos últimos anos. Por isso,
torna-se fundamental, desde já, afirmar que a criminalidade na Pedreira possui, sim, ligação
com o tráfico e o consumo de drogas. Na PPL, todas as gangues se organizam em torno das
atividades inerentes à venda das drogas. E é justamente em função delas que se enfrentam e
se matam.
Portanto, mais uma vez, é preciso ressaltar que, talvez mais do que em qualquer outra
favela violenta de Belo Horizonte, não há como tentar entender a violência e a
criminalidade que se manifestam na Pedreira Prado Lopes, sem antes entender os mais
diversos aspectos assumidos pelo tráfico na região. E não apenas os aspectos monetários da
107
atividade. Em momento algum será colocado aqui que o tráfico representa apenas uma
saída economicamente viável para as dezenas de adolescentes que dele participam na
Pedreira. Muito mais do que uma forma de ganhar dinheiro, o tráfico de drogas é, para estes
garotos, um estilo de vida. É uma maneira de deixar de ser socialmente anônimo e quebrar
o miserável ciclo de discriminação e preconceito aos quais eles são submetidos desde a
infância. Em meio a muitos garotos da PPL, fazer parte do tráfico de drogas tornou-se uma
forma de poder, de status; fazer parte do “movimento” significa ganhar visibilidade social,
ainda que pela força bruta das armas e pelo terror das ameaças.
Durante entrevistas realizadas com rapazes que fazem parte do tráfico a Pedreira,
observou-se claramente que, para eles, fazer parte de uma quadrilha de traficantes significa
fazer parte de uma família, significa ter respeito, admiração, visibilidade. Significa sair do
anonimato imposto pelo fato de viver em uma comunidade de miseráveis e ter uma vida
diferenciada. Uma vida de emoções, de aventuras, de poder, de glórias e lances heróicos.
Uma vida completamente diferente daquela que foi reservada a seus pais19.
Na PPL, o tráfico não se consolidou apenas como mais uma modalidade criminosa. O
“movimento” se arraigou a tal ponto na vida da comunidade que, sem risco de cometer
exageros, pode-se dizer que, entre muitos jovens, ele acabou por constituir-se em uma
subcultura do gueto. Uma subcultura que desestabiliza todas as instituições de sociabilidade
com as quais tem contato, como família, igreja e associações comunitárias, confirmando as
idéias de Soares (2000).
A tirania do tráfico na PPL fez com que todos os valores inerentes à sociabilidade
popular fossem substituídos pelas leis e valores dos grupos armados que atuam na favela.
Passou a valer a lei belicista do mais forte, com suas divisões feudais de território. Em
alguns períodos bastante recentes de sua história, a comunidade da PPL se viu como que
vassala de senhores feudais que, por disputarem o mesmo território, impuseram leis
recorrentes aos tempos em que os povos se orientavam pela barbárie. Afinal de contas,
onde mais, senão em uma favela sitiada pela guerra do tráfico, seria possível observar-se a
imposição de um “toque de recolher”? Onde mais é possível observar o fechamento de
postos de saúde e estabelecimentos comerciais por ordem daqueles que, hoje, se
assemelham a barões ou senhores feudais que exercem o mais tirânico domínio sobre suas
19 Ver Anexo 3: Entrevistas com traficantes da Pedreira Prado Lopes.
108
terras? Onde, senão em uma comunidade impregnada pelos valores de uma autêntica
subcultura da violência, seria possível ver garotos ostensivamente armados, postados em
determinadas esquinas, revezando-se em turnos fixos, como se fossem guardiões de um
castelo prestes a ser atacado?
Por isso, por mais que possa parecer insistente e repetitivo, é preciso que fique
bastante claro que não há a menor possibilidade de se tentar entender a violência a e
criminalidade na PPL sem antes compreender a dinâmica social e a logística do tráfico de
drogas que se instalou na região. Isso porque, ora de forma direta, ora de forma indireta, a
convivência com o tráfico permeia e controla todos os mais diversos aspectos da vida da
comunidade da PPL. Desde os aspectos mais básicos, como o direito à vida e o direito de ir
e vir, até as mais difíceis e trabalhosas conquistas comunitárias, como a implantação de um
posto de saúde na vila e a ampliação de becos e vielas da favela.
109
5.1. Relatos
5.1.1. Os moradores (a) “Eu só fui saber que meu outro filho também tava metido com isso aí no dia que eles arrebentaram a porta da minha casa e entraram aqui pra dentro com as arma na mão. Aquele bando de menino sacudia um tanto de arma e perguntava onde é que tava meu filho. Eles quebraram a casa toda, chutou minha mesa, deu tiro na televisão, quebrou tudo que tinha na frente. Eu disse que não sabia do meu menino, que não via ele tinha uns três dias já. Mas não adiantou porque eles colocou a arma no meu peito e me arrastou para fora de casa. Me deram tapa na cara na frente de todo mundo, chute na barriga e bateram com as arma na minha cabeça. Foi muita humilhação, só eu é que sei. Eles falou que se meu menino não aparecesse para morrer que nem homem, eles ia voltar e matar a família toda. Eu fiquei lá no meio da rua, todo machucado, sem poder fazer nada. Ia fazer o que? E o pior é que todo mundo na rua viu, mas ninguém faz nada porque não tem jeito não. Se você fala qualquer coisa, eles fica sabendo e já vem pra cima de você com aquele tanto de arma e mata mesmo. Todo mundo sabe quem é, mas não adianta porque quando eles tão de guerra - é guerra que eles fala, né? – eles mata mesmo, não quer nem saber quem é. Todo dia o negócio é sair de casa e nem olhar pro lado, porque se eles cisma com você, você tá perdido. E todo mundo vive assim. Esse bando de menino fica no meio da rua de arma na mão e você tem que fingir que não tá vendo nada. Tem vez que, de noite mesmo, eles passa na rua tudo junto, com aquelas touca na cabeça e carregando umas arma grande assim. É tudo uns menino novo, tudo daqui da Pedreira mesmo, mas parece guerra, cê precisa de ver. O negócio é fechar a porta e a janela e fingir que não tá acontecendo nada. Porque quando eles tá assim, pode saber que eles vai matar alguém. E eles pega na covardia. Junta tudo num só e enche de tiro no meio da rua. E mata de graça. Mata porque falou uma coisa que o outro não gostou, mata porque é inimigo, mata por causa de mulher, mata porque ta vendendo droga pra eles. É assim mesmo que acontece e ninguém pode falar nada. Isso aqui é onde o filho chora e a mãe não escuta, moço... O pior disso tudo sabe o que que é, menino? É que as família não tem nada a ver com a guerra deles. Mas sempre é o filho é que faz e a família é que paga. Eu sou viúvo e tenho dois menino. Um, eu morri de tanto falar na cabeça dele, mas não adiantou. Um dia eles pegou meu menino e matou ele com um tanto de tiro no meio da rua. O outro tá preso. E eu acho que é até melhor tá assim mesmo, porque assim pelo menos ele fica vivo” (J. G. F., 65 anos, catador de papel, morador da Pedreira Prado Lopes, em 21/03/2003).
110
(b) “Era mais ou menos umas dez e meia quando comecei a escutar os grito. Pela minha porta deu para ouvir que era um rapaz correndo de uns três que tavam atrás dele. Ele corria pelos beco gritando e batia desesperado nas porta pedindo pelo amor de Deus para abrir. Ele batia, batia, batia, pedia ajuda, pelo amor de Deus. Mas ninguém abria que ninguém é doido de acudir numa situação dessas, né? Os que tava atrás dele só gritava: ‘vai morrê, filho da puta, vai morrê!’ Ai comecei a ouvir só os pipoco. Parecia que eles corria atrás do coitado e atirava pelos beco. Pelo que deu pra ouvir, eles vieram tudo pelo Beco do Profeta e fecharam o rapaz no São Geraldo mesmo. Foi muito tiro, muito tiro, e bem perto da minha porta. Tava um silêncio danado na favela e só dava pra ouvir o cara pedindo pelo amor de Deus, pelo amor de Deus. Eles encheram ele de pipoco e um gritava sem parar: ‘viu mané? Viu mané?’ Foi uma coisa horrorosa, porque você não pode se meter. Tem que ouvir o cara morrê na sua porta e não pode fazer nada. Se entrar no meio, leva azeitona junto com quem eles tá caçando. Tem que ouvir tudo e fingir que não tá acontecendo nada. Às vez você até reconhece a voz de quem é que tá gritando, as voz de quem é que tá cobrando a parada. Aí você até encontra com eles na rua no dia seguinte. Mas tem que fingir que não ouviu nada, que não rolou nada. E assim vai levando a vida. Se o cara morrê cheio de bala na sua porta, você tem que deixar como tá porque senão eles cobra mesmo. E quando eles cisma que cagüetou ou chamou os homi, acabou procê. É caixão e vela preta” (W. S. C., 31 anos, desempregado, morador da Pedreira Prado Lopes em 11/02/2004).
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5.1.2. A Polícia:
(a) “Aquilo é uma guerra, meu irmão. A Pedreira é uma guerra. Eu me atrevo a dizer que é o tráfico mais organizado de Belo Horizonte. Tanto que cê nem vê muita morte por lá. Mas é aquela correria, aquele movimento o dia inteiro. Dia e noite, dia e noite, tem nêgo lá vendendo droga e movimentando na ‘boca’. A gente passa lá à paisana e fica só fragando o movimento. Pega a boca do Terreirão, por exemplo. Lá o movimento é feroz mesmo. Vendem o dia inteirinho... Sem parar. É entra e sai o dia inteiro, precisa de ver. Tem informante nosso que garante que eles movimentam lá é coisa de R$40 mil por dia. Por dia, velho! É por dia que eu to falando, saca? Não é brincadeira não, meu irmão. E as armas então? Tem nêgo lá com PT dourada, cê já viu alguma dessas? Só em filme americano, meu irmão. Outro dia passamos por lá e o Gulu tava lá com essa PT dourada na mão, mostrando pra quem quisesse ver. Tava debaixo do braço dele, parecia um canhão. Deve ser calibre 45 aquilo, nunca vi igual. E cê sabe o que começou a chegar pra eles há pouco tempo? Cê sabe o que? Baby, meu irmão. Fuzil baby calibre 556. Tá vindo tudo do Rio. Essa última leva os cara deram a fita pra gente que chegou numa Kombi., durante o final de semana. Os caras lá tão prontos pra uma guerra. Antes o movimento era todo do Roni Peixoto. Ele mandava em todas as bocas e controlava tudo. Depois que ele foi preso, começou aquela guerra das gangues de cima contra as gangues de baixo. Isso durou uns bons anos, até que sossegou de novo. Agora que o Roni saiu da cadeia, ele quer retomar todo o seu território. Tanto que ele já controla todas as bocas de novo, menos a do Terreirão, que é a única que não abriu as pernas pra ele. E vai ter guerra se esse povo não chegar num acordo lá. Porque ele já mandou avisar que a boca vai ser dele de qualquer jeito e não vai ter conversa, ele vai mandar matar mesmo” (cabo-PM R. S. L., agente do Serviço de Inteligência do 34o Batalhão da Polícia Militar, em 05/11/2003).
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5.1.3. Os Traficantes:
(a) “A Pedreira tá em guerra. Tem muita gente andando armada nas ruas, fazendo a segurança das bocas. O foda é que a Pedreira mesmo era pra ter só uma quadrilha comandando o movimento. Mas tem sempre que aparecer uns cruza caminho, sabe cumé? Cruza caminho é aquele cara que tenta tomar nossas bocas de assalto. Tenta invadir nossa área para tomar nossos pontos de venda. E não era pra ser assim, cara. Não era. A gente tá nessa tem um tempão já e não era para ter guerra. Esses cara da parte alta plantaram na boca tem pouco tempo e já tão querendo tomar nossos ponto de assalto? Qualé, veio? Né assim que funciona não. E o pior de tudo é que não precisava tá essa guerra porque foi todo mundo criado junto aqui mesmo. Não precisava ter guerra. Mas acaba que cada um segue seu caminho, né? É foda também porque a gente vê que eles tão mais bem armado do que nós. Eles têm metralhadora, fuzil, pistola e muita arma pesada. E tão sempre tentando tomar nossas boca de assalto. Direto eles tão descendo de oito ou dez, tudo de touca ninja na cabeça e arma na mão pra tomar nossos ponto. Só que tem que vê que arma na mão de vacilão não serve pra nada, né? O mais importante nessas hora é a disposição. Eu me garanto com qualquer revólver. E eu tenho amor à minha vida, né? Se não andar armado vai pro cemitério mesmo, véio. Meu revólver é meu parceiro e ele não me deixa na mão. Como é que eu comecei? Ah, veio... Comecei de bobeira. Cê sempre começa de bobeira. Comecei fumando maconha. Daí acabei entrando pra essa vida. Primeiro cê fuma, depois começa a vender um pouco, sabe cumé? Aprontando uma correria pra adiantar meu lado, né? Aí, véio, um dia cê acorda e já tá na boca de arma na mão. E o foda é que cê não pára. Não pára porque tira muita grana. Eu mesmo já cheguei a tirar R$900,00 por dia. Aí eu fiz minhas economia que é para última precisão mesmo, saca? Vou deixar tudo pro meu filho e pra minha mulher. Quero garantir o futuro do meu menino pra ele não seguir meu caminho. Mas a grana que entra a gente gasta em carro e roupa. A gente tira onda, sabe cumé? O pessoal da parte alta não. Eles só gasta em arma e droga, arma e droga. Por isso é que tão mais bem armado do que a gente. Medo de morrê? Tenho não, véio. Sei que o destino de quem ta nessa vida é algema ou cemitério. A única coisa que eu sinto falta é da vida que eu tinha antigamente. De poder andar pra todo canto sem preocupação, de poder ir em qualquer lugar, saca? Disso eu sinto falta” (D. A. S., 17 anos, traficante da parte baixa da Pedreira Prado Lopes, em 31/05/2002).
113
(b) Dessas arma tudo aí só o oitão que é meu. Mas foi o pessoal do Vera Cruz que trouxe as arma pra gente. Na Pedreira arma é fácil, fácil. Com R$200,00 você descola um oitão. As PT são mais difícil. Mas com R$350,00 ou R$400,00 cê arruma uma. Não sei dizê se foi a polícia que arrumou pro pessoal do Vera Cruz. Porque isso tudo é arma de polícia, né? A guerra tinha parado no começo do ano, depois que o Babão morreu. Mas a gente agora tá de guerra de novo com o pessoal do Coração. Eu mesmo já troquei tiro com o Coração. E não tenho medo de morrê nessa vida não porque sei que bala perdida ou trocada não tem dono. Olha procê vê cumé que são as coisa. Na quarta passada os homi me pegou e me levô pra delegacia. Me levaram pro juizado e me colocaram na rua de novo. A coisa funciona é assim, véio” (M. F. S., 14 anos, traficante da parte baixa da Pedreira Prado Lopes, ao ser apreendido pela PM no dia 21 de dezembro de 2000, em um barracão da rua Carmo do Rio Claro. Com ele e mais três rapazes, os militares encontraram 200 pedras de crack, três revólveres calibre 38, duas pistolas semi-automáticas calibre 380, uma espingarda e duas submetralhadoras calibre 9 milímetros, em 21/12/2000). (c) “Entrei pro crime com uns 16 anos. Entrei porque era viciado em crack e tinha que sustentá o vício, né? Comecei e metê uns assalto e fazer uns aviões de vez em quando. Eu comprava o bagulho mais barato com o pessoal considerado aí e vendia mais caro pros bacana. Só que em 99 eles mataram meu irmão. Meu irmão que me deu o apelido. E eu corri atrás mesmo. Me vinguei. Matei ele também. Na favela, ou você mata ou você morre. E antes que me matem, eu mato. E a gente vive de guerra. Os contato leva as arma lá pra gente e a gente vive de guerra. Mas eu não tenho esse tanto de homicídio que tão querendo jogar pra cima de mim não. Muitos desses aí foi rival meu que matou e eles fica querendo jogar nas minhas costa. Um cara que a polícia fala que eu matei era meu parceiro. Vê se eu ia jogar parceiro meu pra trás? Eles precisa aprender a trabalhar direito e jogar nas costa de quem deve mesmo. Não é nas minha não” (C. P. S., 20 anos, conhecido como Coração, traficante da parte alta da Pedreira Prado Lopes, preso no dia 28/12/2000, depois de trocar tiros com seis policiais civis em uma rua da favela).
114
5.2. O Cenário
Apesar de incontáveis investigações policiais já terem demonstrado que o tráfico de
drogas possui uma posição consolidada na PPL há mais de duas décadas, um aspecto em
especial chama a atenção nas entrevistas realizadas com moradores da região: praticamente
todos são unânimes ao reclamar que, durante todo este tempo, a opinião pública nunca
tomou pleno conhecimento do verdadeiro regime de terror e violência imposto na favela
pelas quadrilhas ligadas ao “movimento”. Justiça seja feita, durante os dias é muito difícil
notar qualquer movimentação anormal. Isso acontece porque, neste período, grande parte
das quadrilhas da favela se recolhe em seus esconderijos e, conseqüentemente, a
movimentação gerada pelo tráfico vive seu momento de maior calmaria.
Tanto que quem não é morador local é incapaz perceber qualquer tipo de
anormalidade. Durante os dias, os sinais do tráfico são muito discretos e pouco evidentes.
Observa-se um garoto ou ouro parado nas esquinas durante horas a fio sem fazer
aparentemente nada. Observa-se que alguns rapazes ficam simplesmente o dia inteiro
sentados em determinadas calçadas do morro, aparentemente sem qualquer atividade. São
os “olheiros” ou, como eles mesmo gostam de se chamar, os “atividade”. Garotos que
nunca carregam armas ou drogas. Mas que, em troca de pequenas somas em dinheiro ou
porções de drogas, se encarregam de avisar os traficantes de qualquer movimentação
estranha, seja ela da polícia ou de uma quadrilha rival.
Observa-se também que, discretamente, alguns táxis entram no morro sem
passageiros e, minutos depois, retornam igualmente vazios. São os chamados “mulas” do
tráfico, ou seja, taxistas que pegam carregamentos de drogas e ficam responsáveis por levá-
los a outras favelas da capital. Sem passageiros, eles nunca levantam suspeitas da polícias e
o risco de serem abordados em uma blitz é mínimo. Mas, salvo estas raríssimas exceções, o
que se vê é o que se vê em qualquer favela ou vila da capital: centenas de pessoas nas ruas,
ocupadas com seus afazeres e realizando suas tarefas cotidianas. Chama também a atenção
a imensa quantidade de adolescentes e crianças que, fora do período escolar, sem qualquer
ocupação ou atividade supervisionada, passam a maior parte de seus dias brincando pelas
ruas do aglomerado.
115
Durante as noites, em compensação – justamente quando os olhos da opinião pública
se tornam completamente alheios à realidade das favelas -, é possível ver do que os
moradores reclamam durante as entrevistas. É como se a Pedreira se transformasse.
Obedecendo a um toque de recolher informal, a maioria da comunidade se tranca dentro de
casa, para dar lugar a um cenário completamente diferente daquilo que se vê durante os
dias. À noite, determinadas ruas da favela tornam-se proibidas para a população em geral.
Estas pequenas vias são tomadas por grupos de adolescentes ostensivamente armados, que
vigiam qualquer movimentação e determinam quem pode ou não passar por elas. Em sua
grande maioria, são todos garotos criados no próprio morro. Adolescentes que, de um dia
para o outro, se associaram às quadrilhas de traficantes da região e se tornaram o pesadelo
dos moradores da PPL.
É precisamente ao cair da noite, que a Pedreira Prado Lopes deixa de ser apenas o lar
de toda uma comunidade de trabalhadores para se transformar no “paraíso do crack” de
Belo Horizonte. Ao escurecer, as ruas da Pedreira são tomadas por toda sorte de pequenos
criminosos e viciados, que passam noites inteiras entrando e saindo dos becos da favela, em
busca de pequenas porções de droga.
Para garantir a segurança de seu negócio, as principais vias de acesso ao morro são
ocupadas por grupos de garotos que, através de assovios, gritos previamente combinados ou
até mesmo telefones celulares, encarregam-se de manter os traficantes informados sobre
qualquer movimentação suspeita dos inimigos, ou sobre a possível, mas sempre
improvável, chegada da polícia. Se durante os dias a Prado Lopes serve como lar para
milhares de trabalhadores honestos, que saem de suas casas tão logo o sol nasce e só
retornam a elas quando o mesmo se põe, durante as noites, uma verdadeira feira livre das
drogas se instala em suas ruas. Forma-se ali um mercado milionário que, segundo
traficantes e moradores, conta com a conivência ou até mesmo a participação de vários
policiais militares que fazem o patrulhamento da região20. Alguns poucos bares que ficam
nas principais ruas da favela transformam-se em freqüentadíssimos pontos de venda de
drogas, assim como várias esquinas do morro, principalmente aquelas que ficam próximas à
avenida Presidente Antônio Carlos.
20 Ver anexo 1: Entrevistas com líderes comunitários; anexo 2: Entrevistas com moradores da Pedreira Prado Lopes; e anexo 3: Entrevistas com traficantes da Pedreira Prado Lopes.
116
Nos finais de semana, o movimento é muito maior do que durante os dias normais. Na
Pedreira, a grande festa das drogas começa na tarde de sábado e vara a madrugada até a
manhã de domingo. O cruzamento formado pela avenida José Bonifácio com o começo das
ruas Carmo do Rio Claro e Araribá torna-se o ponto mais movimentado da favela. Ao som
estridente de funks ou raps, dezenas de adolescentes circulam pela região, sob os olhares
atentos dos traficantes que controlavam a festa e toda a movimentação. As “bocas-de-
fumo” vendem como nunca e registram uma movimentação financeira assustadora.
Compradores formam filas indianas em frente aos pontos de venda e têm sua atenção
chamada pelos traficantes se provocam algum tipo de tumulto ou se desentendem entre si.
Por conta da intensa movimentação provocada por esta “feira livre das drogas”,
forma-se às margens da Pedreira um cenário de completa degradação e sujeira. Atraídos
pelo grande número de pessoas, pelas drogas e pela imensa quantidade de dinheiro que
circula nas regiões das “bocas-de-fumo”, centenas de mendigos e garotos de rua se instalam
nas adjacências das ruas Araribá e José Bonifácio, formando um dos mais explícitos e
degradantes quadros de miséria humana possíveis de serem vistos na capital mineira.
Completamente drogados de tanto cheirar pequenos panos embebidos de solventes, vários
garotos de rua passam a noite assaltando motoristas nos semáforos da região, como foi
demonstrado em capítulos anteriores. Tudo isso na esperança de conseguir dinheiro
suficiente para comprar algumas pedras de crack que, se obtidas, são avidamente
consumidas no meio da rua, em frente a quem quer que seja. O único cuidado tomado por
estes garotos é o de se afastar um pouco das “bocas-de-fumo”, para não sofrerem alguma
retaliação por parte dos traficantes, que sempre se preocupam com a imagem negativa que
este descontrolado e imprevisível tipo de viciado pode trazer para a porta de seu
“estabelecimento”.
Na gíria policial de Belo Horizonte, os viciados em crack são chamados de “noiados”,
uma referência clara à palavra “paranóia”. Tal termo foi provavelmente adotado porque
esta talvez seja a descrição mais aproximada que já se encontrou para definir o efeito
provocado pela droga. Assim como aqueles que manifestam algum estado paranóico, os
usuários de crack costumam ter reações imprevisíveis, intempestivas e até mesmo
violentas. Como tal comportamento pode atrair a presença da polícia, os traficantes fazem
questão de manter os “noiados” afastados das “bocas-de-fumo”, usando até mesmo de
117
violência, se assim o for necessário. Os viciados também são chamados de “pedretes”, em
alusão às pedras de crack que eles consomem
Além de trazer problemas aos traficantes, sua mendicância por pequenas sobras de
drogas prejudica o movimento dos pontos de venda. Viciados crônicos, alguns “noiados”
rondam as filas de compradores, implorando alguma sobra de droga. E isso irrita os
traficantes que, não raramente, expulsam-nos a tapas, socos ou pontapés de perto das
“bocas”. Trata-se de um cenário de miséria humana dos mais contundentes. Reduzidos a
trapos imundos, os viciados crônicos simplesmente não conseguem se afastar das “bocas-
de-fumo”. Mesmo depois de escorraçados pelos traficantes, alguns continuam voltando aos
pontos de venda e não deixam de fazê-lo enquanto não levam uma surra mais violenta ou
até mesmo um tiro em algum membro do corpo. Alguns estabeleceram até mesmo
pequenos “acampamentos” nas calçadas da avenida Antônio Carlos, próximo a lojas e
postos de gasolina abandonados, para poderem ficar mais perto das “bocas” e tentar
conseguir alguma sobra de crack.
No caso da Prado Lopes, aliás, os “noiados” costumam tirar proveito da proximidade
estratégica que se estabeleceu entre a avenida Presidente Antônio Carlos e as “bocas-de-
fumo” da rua Araribá: basta cometer pequenos assaltos na avenida para conseguir dinheiro
suficiente para comprar o crack. Depois de adquirida nas mãos dos narcotraficantes, a
droga é consumida a aproximadamente 100 metros das “bocas” da Araribá, novamente nas
calçadas próximas à avenida Antônio Carlos. E foi justamente este cenário caótico e
degradado de uma autêntica praça de venda e consumo livre das drogas que fez com que a
região localizada entre a rua Araribá e a Avenida Antônio Carlos fosse ironicamente
batizada no meio policial como “crackolândia”.
Alguns traficantes que atuam na PPL garantem que, somente através do sistema de
varejo, todas as “bocas-de-fumo” da Pedreira juntas negociam, por noite, cerca de dois
quilos de crack. Para se ter uma idéia do poderio econômico deste comércio, deve-se levar
em conta que um grama de crack é o suficiente para confeccionar quatro pedras da droga.
Como cada pedra é vendida, geralmente, a R$5,00 ou R$10,00, chega-se à impressionante
soma de R$60 mil negociados por noite na PPL, em média, apenas em crack. Se esta
contabilidade informal estiver correta, chega-se a um mercado que movimentaria, por mês,
118
a impressionante soma de R$1,8 milhão, ou o equivalente a US$600 mil. Por ano, pode-se
chegar à quantia de US$7,2 milhões movimentados apenas com a venda de crack.
Grande parte de todo este dinheiro é reinvestido na compra de drogas, assim como na
obtenção de armamentos cada vez mais pesados, que servem para garantir a segurança da
quadrilha. Em um mercado que não possui qualquer tipo regulamentação legal, não
sobrevive apenas aquele que consegue oferecer o melhor preço: sobrevive principalmente
aquele que, pela força das armas, consegue estabelecer e manter um ponto de venda em um
local seguro, porém de fácil acesso. Essa característica da territorialidade é fator
determinante porque, no caso da PPL pelo menos, o usuário contumaz de crack sempre
estabeleceu uma relação de fidelidade para com o local onde ele compra sua droga, não
necessariamente com quem a vende. Portanto, o estabelecimento de um bom ponto e,
principalmente, sua manutenção constituem prioridade para o traficante.
5.3. O Envolvimento
Ainda que hoje seja possível observar a participação de vários jovens nas quadrilhas
de traficantes da PPL, pode-se dizer que o envolvimento de todos eles com o tráfico não
aconteceu de forma repentina. Muito antes pelo contrário, a entrada destes garotos para as
quadrilhas foi um processo lento e gradual. Os que atualmente engrossam as fileiras das
gangues, por exemplo, começaram a se envolver com o “movimento” há vários anos, mais
precisamente no início da década de 1990, quando a maioria ainda estava entrando na
adolescência. Vejamos, a seguir, o depoimento de um dos entrevistados:
“Não consigo entender como é que esse bando de menino ficou desse jeito. Quando era pequeno, ficava tudo por aí, brincando junto no meio da rua. Agora fica esse negócio de guerra aí que não dá pra mim entender. Fica andando pra cima e pra baixo com arma na mão, tudo dando tiro um no outro como se fosse inimigo. Mas é tudo menino daqui mesmo, é tudo menino que a gente viu crescer aqui na Pedreira mesmo, como é que pode? Acho que é esse trem de droga que estraga tudo. É esse trem de droga que faz isso com esses menino aí” (J. G. F., 65 anos, catador de papel, morador da Pedreira Prado Lopes, em 21/03/2003).
119
Em uma comunidade relativamente pequena como a Pedreira Prado Lopes, todos
sabem um pouco sobre da vida de todos. Por isso, quando são perguntados sobre os garotos
que hoje fazem parte do tráfico, muitos moradores são capazes de lembrar dos tempos em
que, longe de serem os criminosos temidos que são hoje, eles eram crianças que brincavam
pelas ruas da Pedreira. Muitos rapazes que foram capazes de resistir às tentações do poder e
do dinheiro fácil que o tráfico traz contam, inclusive, sobre as amizades que mantinham
com aqueles que hoje fazem parte do “movimento”. E são justamente estas histórias que
tornam possível tentar traçar, ainda que de forma incompleta e parcial, a história de vida
dos meninos que hoje fazem parte das gangues que atuam na Pedreira.
Observa-se que, assim como a imensa maioria dos garotos da Prado Lopes, todos os
rapazes que hoje fazem parte de alguma quadrilha de traficantes são filhos de famílias
extremamente pobres do aglomerado e, na infância, estudaram em alguma das três
deterioradas escolas públicas que ficam nas proximidades da favela. Moradores mais
antigos da comunidade comentam que, no início da década de 90, era muito comum ver
todos aqueles garotos juntos pela manhã, descendo as ruas da Pedreira para ir à escola.
No entanto, jovens que, naquela época, tiveram a oportunidade de estudar ao lado dos
atuais traficantes confirmam que, já no início da adolescência, praticamente todos eles já
apresentavam um histórico escolar bastante problemático. Com um rendimento muito
abaixo da média e várias repetências no currículo, a maioria deles ia deixando de ter
interesse pelos estudos seguindo aquela que parece ser a sina de quase todos os moradores
da PPL: de acordo com estudos realizados pela Prefeitura Municipal de Belo Horizonte,
cerca de 80% dos moradores da Pedreira abandonam a escola tão logo completam o
primeiro grau, ou até mesmo antes disso21.
Quando perguntados sobre a razão de terem largado os estudos tão cedo, os rapazes
que hoje fazem parte do tráfico costumam oferecer as justificativas mais diversas. No
entanto, praticamente todas as explicações oferecidas dizem respeito à suposta inutilidade
do ensino, do estudo e da escola na melhoria das condições de vida dos favelados. A
imensa maioria destes garotos demonstra não acreditar na melhoria das condições de vida
pela via dos estudos. Todos também são unânimes em dizer que o processo de abandono da
escola aconteceu aos poucos. E que, quando de repente haviam dado por si, perceberam
21 Ver gráfico 4.
120
que, apesar de ainda manterem o hábito de ir ao colégio, já não freqüentavam mais as aulas.
Ir à escola havia se tornado apenas mais uma forma de encontrar amigos e namoradas e, ao
mesmo tempo, de se ver livre das possíveis cobranças dos pais, como revela o depoimento
a seguir:
“Ah, véio... Larguei a escola porque não tinha saco pra aquilo não. As professora ficava falando uns lance que não tinha nada a ver, umas parada que não era a real, saca? Ia ficá lá perdendo meu tempo? Eu não! E você aí que é estudado, me fala o que que eu ia ganhar com escola? Aqui na Pedreira mesmo tá cheio de neguinho aí que ficou uma data ralando a bunda em banco de colégio, que tá cheio de diploma e o escambau aí e, quando vai ver, tá mais duro do que eu. Colégio só funciona pra filho de bacana, tá ligado? Aí o playboy vai pra faculdade, vira dotô e vai cuidar da empresa do papai, né não? Agora o negão aqui vai estudar pra que? Pra ficar me humilhando nessas fila de emprego que nem cachorro? Eu não! Esse negócio de escola não adianta nada pra preto e pobre não, véio. Sei lê e escrevê, tá bom. Meus bagulho eu consigo é no ferro mesmo, tá ligado? E consigo mais que muito neguinho que ralou bunda em banco de escola” (R. P. S. O, 15 anos, traficante da parte baixa da Pedreira, em 12/08/2003).
Mesmo nos primeiros contatos, não é difícil notar que estes rapazes nunca receberam
qualquer espécie de incentivo ou definição positiva que os estimulasse a continuar com os
estudos. Sem poder contar com qualquer tipo de incentivo pedagógico, econômico, social
ou até mesmo cultural, observa-se que, desde muito cedo, todos eles desenvolvem uma
completa descrença no papel exercido pelas instituições de ensino. Com toda a certeza,
pode-se dizer que o próprio fato de serem filhos de um lar historicamente sem estudo
dificulta a criação de imagens e definições positivas com relação ao papel da escola22.
Pareceu-me que estes garotos lidam tão de perto com tantos mecanismos de exclusão social
que, já na infância, forma-se em seu imaginário a idéia de que não será a escola ou o estudo
que os impedirão de repetir a massacrante sina de vida dos pais, que sempre foi de muitas
lutas, mas de pouquíssimas conquistas. Não será a escola que irá melhorar sua vida
miserável e dar a ele a tão sonhada visibilidade social.
A partir do momento em que se observa na PPL a falência da instituição escolar
enquanto instância de socialização, confirma-se exatamente aquela que é uma das
22 Ver anexo 3: Entrevista com traficantes da Pedreira Prado Lopes.
121
principais proposições das teorias da “Desorganização Social” e da “Eficácia Coletiva”. A
profunda descrença no papel dos estudos enquanto instrumento de melhoria de vida, de
crescimento pessoal e de projeção social faz com que centenas de crianças e adolescentes
da Pedreira se tornem extremamente vulneráveis ao assédio financeiro e moral do tráfico de
drogas que, por sua vez, encontra neles a mão-de-obra mais do que ideal. As escolas, por
seu turno, não constituem qualquer tipo de atrativo para os garotos da favela, uma vez que
são mal equipadas, completamente deterioradas e trabalham no limite da precariedade em
todos os sentidos23.
Aliás, no que se refere aos jovens da Pedreira, a formulação de uma imagem negativa
não se restringe apenas aos estudos. Outros valores bastante difundidos entre a comunidade
também parecem ter adquirido uma significação bastante pejorativa para estes garotos.
Durante as entrevistas, observa-se, por exemplo, que muitos deles estabelecem um vínculo
direto entre a rotina diária de um trabalhador com a idéia que usualmente se tem de
escravidão. Conversando com alguns destes rapazes, é possível perceber que, apesar de
todos os valores que lhes são ensinados e dos exemplos de retidão moral que possam ter
tido dentro da própria casa, aos poucos, uma imagem bastante negativa da própria rotina do
trabalho foi se formando no imaginário de alguns deles. Em alguns casos, estes meninos
chegam a estabelecer uma relação quase que direta entre o trabalho humilde e a escravidão.
Apesar de ser sempre cercado de dignidade, o exemplo de vida esforçada - porém
miserável - que estes garotos possuem dentro da própria casa serve, em muitos casos, para
fazer com que muitos deles percam a crença na melhoria de sua condição pela via dos
estudos e do trabalho e procurem soluções alternativas para o futuro. Embora diversas
pesquisas já tenham demonstrado que apenas uma minoria ínfima destes jovens opta pela
via criminosa como forma de ganhar a vida, observa-se claramente que o modelo de um pai
esforçado, digno e que se mata de trabalhar durante dez horas por dia para ganhar dois
míseros salários mínimos exerce infinitamente menos atração sobre alguns destes garotos
do que o modelo do traficante que, além de trabalhar pouco, vive cercado de mulheres e
amigos e tem sempre grandes quantidades de dinheiro à mão. Ao contrário do trabalhador,
que se apresenta sempre humilde e resignado, o traficante é capaz de impor, ainda que
23 Ver anexo 3: Entrevistas com traficantes da Pedreira Prado Lopes.
122
através da exibição ostensiva de armas de fogo, um misto de medo e admiração sobre o
restante da comunidade.
Para muitos destes garotos, a imagem do pai está associada à do escravo, à do “otário”
que trabalha uma vida inteira de forma subserviente e humilhante para fatalmente morrer
anônimo e à míngua24. Ao contrário de tudo isso, a figura do traficante não reproduz no
imaginário destes meninos apenas a imagem do sucesso financeiro. Apesar de moralmente
condenável, o traficante representa, para alguns destes garotos, alguém da comunidade que
deu certo. Alguém da comunidade que conseguiu deixar de ser socialmente anônimo, que
conseguiu o respeito e a admiração dos demais. Alguém que não se sujeitou à uma vida de
escravidão e humilhação. O traficante é alguém forte. Em meio a todas as adversidades de
uma vida sofrida, difícil e miserável, ele é o homem que tomou para si mesmo as rédeas do
próprio destino. Ele é alguém que viverá intensamente, que colecionará aventuras e terá
uma vida repleta de histórias emocionantes para contar, como podemos observar no
depoimento a seguir:
“Minha mãe fica chateada, não gosta que eu mexa com isso não. Mas eu que sô peixe pequeno consigo levantar quase R$300,00 por mês. Quem é forte na boca consegue muito mais. Além disso a gente impõe o terrô, né não? Precisa de vê como é que a mulherada fica doida quando vê a gente com arma na mão, véio. Precisa de vê. E quando a gente sai de uma troca então? Nossa, véio! A gente se sente o bicho. Quando a gente chega num lugar, todo mundo comenta, todo mundo olha com medo. A gente é o terrô, véio. O terrô! Nós é sinistro mesmo” (M. F. S., 14 anos, traficante da parte baixa da Pedreira, em 21/12/2000).
Rapazes que conseguiram continuar nos estudos contam que, já ao final da década de
90, praticamente todos aqueles que hoje fazem parte do tráfico já estavam fora da escola.
Sem poder contar com qualquer atividade que lhes preenchesse o tempo livre, era bastante
comum ver estes garotos todos os dias se divertindo pelas ruas da favela. Sempre em
grupos, jogavam futebol na quadra do Colégio Municipal, freqüentavam os bares, as festas
e começavam a arranjar as primeiras namoradas. Mesmo aqueles garotos que seguiram com
os estudos contam que freqüentavam a escola apenas em meio horário. No restante do dia,
24 Ver anexo 3: Entrevista com traficantes da Pedreira Prado Lopes.
123
o tempo era livre e eles também ficavam nas ruas da favela, participando das brincadeiras
juntamente com os colegas que já não estudavam.
Como a maioria dos pais destes garotos trabalhava fora e não tinha qualquer condição
de supervisionar as atividades desenvolvidas pelos filhos, pode-se dizer que muitos
daqueles rapazes foram completamente socializados nas ruas da PPL, em companhia dos
amigos mais próximos ou de alguns vizinhos que, sem ter emprego fixo, passavam vários
dias da semana sem ocupação nas ruas da favela25.
Observa-se na Pedreira, portanto, mais dois dos principais aspectos mencionados
pelas teorias da “Desorganização Social” e da “Eficácia Coletiva”, que são a completa
ausência de recreações supervisionadas para as crianças e a falta de controle das atividades
grupais que são desenvolvidas por elas nas ruas da favela. Como foi visto anteriormente, a
violência é, na maioria das vezes, um fenômeno grupal; e é justamente a partir da
socialização das ruas, do contato diário com os traficantes mais velhos e das atividades
grupais não supervisionadas que surgem, entre os becos da favela, as primeiras gangues ou
grupos delinqüentes.
Nota-se também, em muitos casos, a completa ausência de uma estrutura familiar que
seja minimamente responsável pela socialização das crianças e pela supervisão das
atividades que ela desenvolve. Isso porque, na Pedreira, não é raro constatar que muitas
famílias não possuem a figura paterna e são chefiadas por mães que trabalham o dia inteiro
fora de casa. Isso faz com que muitas crianças sejam criadas nas ruas da favela, ou deixadas
nas casas de parentes e vizinhos que mal têm tempo de tomar conta de seus próprios
filhos26. Observa-se a existência de uma infinidade de lares multifamiliares, o que propicia
a formação de um ambiente de muita desorganização e promiscuidade, o que se evidencia
no depoimento a seguir.
“O pai e a mãe sai para trabalhar e não têm com quem deixar os meninos. Aí fica tudo por aí, jogado no meio da rua aprendendo coisa errada, convivendo com esses malandro aí. É porque, se você for ver, aqui na Pedreira tem muita gente boa, mas também tem muito malandro ensinando coisa errada para esses menino aí. (...) E não é que o pai e a mãe sejam largado com eles não. É porque se não trabalhar fora, os filho morre de fome. Aí fica tudo o dia inteiro na rua, brincando por conta
25 Ver anexo 2: Entrevistas com moradores da Pedreira Prado Lopes. 26 Ver anexo 2: Entrevistas com moradores da Pedreira Prado Lopes.
124
deles mesmo e tudo que eles aprende é por conta deles mesmo. (...) Vira e mexe você vê uns menino de nove, dez, onze ano tomando conta dos irmão mais novo. E isso não tá certo não, porque é justamente nessa idade é que começa a se envolver com essas malandragem aqui da Pedreira” (M. A. F. J., 42 anos, dona-de-casa e moradora da Pedreira Prado Lopes, em 21/03/2003).
Por isso, ao que tudo indica, é justamente no início da adolescência que muitos deles
começam a se envolver de forma mais direta com os traficantes do morro. Utiliza-se a
expressão “se envolver de forma mais direta” porque, quer seja por ação voluntária ou por
omissão forçada, não há como não reparar que sempre existe algum tipo de envolvimento
entre a comunidade da PPL e os traficantes que atuam naquela localidade27. Situada
próxima à região central de Belo Horizonte e disposta às margens de um dos mais
movimentados corredores de trânsito da capital, a Pedreira Prado Lopes é, há pelos menos
três décadas, um dos principais pontos de venda de drogas de BH. E apesar de a
esmagadora maioria da população local não manter qualquer tipo de envolvimento direto
com a atividade, há muitos anos a comunidade da PPL é obrigada a conviver com a
presença ostensiva de criminosos ligados ao comércio de entorpecentes. Além disso,
sempre foi precisamente nos becos e vielas da Prado Lopes que as quadrilhas ligadas ao
tráfico trataram de recrutar seus membros e de renovar seus quadros. Prova disso é que
todos os grupos criminosos envolvidos com o narcotráfico na Pedreira são compostos por
jovens da própria comunidade. Não há morador que não conheça algum traficante ou que
não assista calado o desfile de vários jovens ostensivamente armados pelas ruas da favela.
No caso dos rapazes que hoje fazem parte do tráfico, o envolvimento aconteceu
gradualmente. Ainda novos, mas sempre atraídos pelo misto de medo e admiração que os
traficantes despertaram em muitos adolescentes de comunidades pobres, vários destes
garotos contam que começaram a se aproximar do “movimento” de maneira informal e
muitas vezes até desapercebida. Aparentemente, isso acontece porque, muito mais do que
uma solução para os problemas financeiros, a entrada para o tráfico é encarada por vários
destes garotos como um novo e fascinante estilo de vida28. A participação em uma
quadrilha de traficantes significa para eles a obtenção de respeito e visibilidade social em
27 Ver anexo 1: Entrevistas com líderes comunitários da Pedreira Prado Lopes; anexo 2: Entrevistas com moradores da Pedreira Prado Lopes; e anexo 3: Entrevistas com traficantes da Pedreira Prado Lopes 28 Ver anexo 3: Entrevistas com traficantes da Pedreira Prado Lopes.
125
meio a uma comunidade de miseráveis e excluídos. Colocar uma arma na cintura e fazer a
segurança de uma “boca-de-fumo” garantirá a eles a certeza de serem reconhecidos nas
ruas da favela. Garantirá a eles uma presença marcante junto às mulheres do morro e o
restante da comunidade.
Moradores da PPL também confirmam que o envolvimento dos meninos com os
traficantes acontece sempre aos poucos, de forma bastante lenta e gradual. Apesar dos
avisos insistentes e até mesmo das proibições muitas vezes impostas pelos pais mais
atentos, muitos daqueles garotos começam a freqüentar os pontos de venda de drogas,
movidos pela curiosidade e pelo fascínio que os traficantes sempre fortemente armados
despertam. Longe da vigilância sempre precária dos pais e com bastante tempo livre, as
conversas com os traficantes, que antes eram rápidas e ocasionais, começam a se tornar
mais demoradas e freqüentes. Ainda que não sejam consumidores de qualquer tipo de
droga, muitos daqueles garotos começam a freqüentar os pontos de venda na curiosidade de
ver como funciona o negócio.
Em meio à comunidade da Pedreira, o simples fato de ser cumprimentado na rua por
um traficante ou poder dizer que é “considerado” de um deles já é suficiente para conferir
status ao rapaz. No campo de futebol que existe dentro da vila, existe um dia que é
reservado apenas para as partidas do pessoal do “movimento”. Nestes dias, não é raro ver
muitos destes garotos colados às margens do terreno, comentando alguma jogada ou até
mesmo torcendo para algum dos times.
Parece que a presença sempre ostensiva de armas de fogo e de muito dinheiro fascina
aqueles meninos, assim como a imagem de prestígio e força que os traficantes emanam.
Moradores contam que, aos poucos, muitos rapazes começam a ganhar a confiança dos
criminosos que passam a lhes pedir pequenos favores. Um recado que é levado de forma
rápida e precisa, a compra de um maço de cigarros ou de um marmitex são recompensados
com pequenas quantias de dinheiro ou até mesmo com algumas buchas de maconha – droga
que é amplamente difundida entre os jovens. Alguns daqueles rapazes contam que é difícil
precisar quando é que alguém deixa de ser um colaborador eventual e passa a ser um
traficante. Muitos chegam a dizer que, quando dão por si, já conhecem de perto toda a
movimentação de uma “boca-de-fumo” e passam a exercer funções definidas na quadrilha.
126
Na maioria das vezes, a aquisição de uma arma de fogo é o símbolo definitivo de que
aquele garoto deixou de ser um prestador de pequenos serviços eventuais e passou a ser um
membro da quadrilha. A posse de uma arma de fogo por parte de um desses rapazes possui
uma força simbólica sem precedentes entre seu grupo de amigos e principalmente entre a
comunidade da favela. No meio da comunidade, uma arma na cintura significa o mesmo
que dizer que o rapaz optou definitivamente pelo estilo de vida do crime, um caminho que,
na maioria das vezes, não tem volta. A partir do momento em que um destes meninos
coloca uma arma na cintura, ele está automaticamente anunciando a todos os seus
conhecidos que deixou de ser apenas um menino. Ele agora é homem feito e como tal irá
ganhar a própria vida pela via criminosa.
Ao colocar uma arma na cintura, aquele adolescente também está anunciando a todo
os seus desafetos que ele está definitivamente pronto para entrar naquele interminável ciclo
de trocas de tiros, mortes e vinganças que se promovem nas favelas entre vários grupos de
adolescentes. Em uma comunidade cujo imaginário muitas vezes ainda é pautado por uma
versão estereotipada da honra masculina, do machismo e da lei do mais forte, empunhar o
“ferro” significa que o menino passou definitivamente para o mundo do crime e, mais do
que isso, que deixou de ser um garoto para se tornar homem.
Aliás, no que se refere à questão da masculinidade, observa-se que a participação em
quadrilhas envolvidas com o tráfico de drogas tornou-se, pelo menos na Pedreira Prado
Lopes, a maneira que alguns jovens encontram de se afirmarem enquanto “homens feitos”
perante os moradores do local. Contribuíram para isso toda a simbologia das quais as
próprias quadrilhas estão imbuídas: a virilidade, a masculinidade, a imposição de suas leis
pela força física e a presença sempre ostensiva das armas de fogo, símbolos fálicos por
excelência. A partir do momento em que fazem parte de uma quadrilha de traficantes, estes
garotos se sentem mais homens, mais fortes, mais viris.
E toda esta sensação de poder e virilidade também parece ser alimentada por algumas
mulheres da comunidade, uma vez que muitas delas demonstram-se atraídas pela aura de
força e masculinidade que emana da figura do quadrilheiro29. Vários destes garotos relatam
que, entre outras coisas, o pertencimento a uma quadrilha fez com que fosse mais fácil
conseguir namoradas ou amantes. Em meio a uma comunidade historicamente violenta e
29 Ver anexo 3: Entrevistas com traficantes da Pedreira Prado Lopes.
127
composta por miseráveis e fragilizados pais de família, a figura do bandido fanfarrão, do
macho forte que tem condições de sustentar e proteger várias mulheres parece exercer
grande atração sobre algumas garotas do local.
Mais uma vez, nota-se que, no seio de toda esta discussão, talvez esteja colocada a
questão da invisibilidade social da qual estes garotos são vítimas. Nascidos e criados em
meio a uma comunidade de excluídos, a impressão que se tem é que estes meninos
convivem, desde muito cedo, com a nítida sensação de serem socialmente invisíveis. Tanto
que, quando perguntados sobre o motivo que os levaram a entrar para quadrilhas de
traficantes, as respostas mais comuns são “dinheiro fácil” e “respeito da comunidade”30.
Observa-se claramente que, mais do que “dinheiro fácil” e “respeito”, talvez estes garotos
estejam apenas querendo deixar de ser “apenas mais um miserável”, em meio a tantos
outros de sua comunidade. Parece que o envolvimento com o tráfico faz com que estes
adolescentes tenham a nítida sensação de serem temidos, respeitados e, por que não dizer,
admirados.
E essa hipótese ganha força quando se observa que, apesar de sempre utilizarem a
desculpa do dinheiro fácil para tentar justificar sua entrada para o tráfico, a imensa maioria
destes rapazes sabe que, assim como “vem fácil”, o lucro obtido com a venda de drogas
também “vai fácil”. O próprio discurso dos traficantes desmonta, portanto, uma das
principais explicações que eles costumam oferecer para justificar a sua entrada no
“movimento”. Aliás, “vem fácil e vai fácil” é uma expressão muito utilizada por eles. Por
incrível que pareça, chegam até mesmo a admitir que, financeiramente, o tráfico só traz
lucros reais para aqueles que conseguem atingir o status de fornecedor atacadista.
Contraditoriamente, quando são questionados de forma mais incisiva e paciente sobre os
reais atrativos e benefícios financeiros do tráfico, estes rapazes demonstram ter plena
consciência de que, se conseguirem sair vivos desta vida, dificilmente terão obtido lucros
expressivos.
Parece estar difundida entre estes garotos um culto a um estilo de vida que, ainda que
breve, é intenso, perigoso e emocionante. Muito mais do que uma rotina regrada, humilde e
parcimoniosa, estes meninos querem viver, de uma só vez, tudo aquilo que há para ser
vivido. Querem conquistar o respeito e a admiração de sua comunidade pela força das
30 Ver anexo 3: Entrevistas com traficantes da Pedreira Prado Lopes.
128
armas, das demonstrações públicas de coragem. Muito mais do que trabalhar de sol a sol
por um salário de fome, querem encher os bolsos de dinheiro e gastá-lo no dia seguinte em
roupas caríssimas, mulheres, bebidas e armas mais poderosas. Quando questionados sobre
os reais motivos de terem entrado para o tráfico, estes garotos demonstram claramente que
não se tratou apenas de uma opção financeira. Ainda que uns pareçam ter mais consciência
do que outros, praticamente todos eles sabem que, no fundo, foi uma decisão moral, uma
decisão relativa à construção de uma identidade social. A entrada para o tráfico não
representa apenas a possibilidade de ganhar dinheiro. Representa a possibilidade de viver
intensamente, de despertar medo e admiração, de obter poder, de fazer parte de um grupo
onde se é a própria personificação da lei, dos juízes e dos executores. Para estes meninos,
muito mais do que “dinheiro fácil”, o tráfico passou a representar a possibilidade real de
conquistar visibilidade social.
5.4. A Organização Interna
Como acontece em muitas empresas tradicionais, na maioria das vezes a entrada de
um garoto para uma quadrilha de traficantes acontece através de funções consideradas
“menores”. E, assim como no mercado formal, as promoções dentro da “empresa” também
irão acontecer à medida que ele demonstrar eficiência e confiabilidade. Ganhar a confiança
de membros bem colocados na quadrilha significa, muitas vezes, a conquista de um posto
mais alto na hierarquia do grupo.
No caso das quadrilhas de narcotraficantes que atuam na Pedreira Prado Lopes,
observa-se que, apesar de serem rivais, todas adotaram formas de organização bastante
semelhantes no que se refere à manutenção de seu negócio. Pelas informações que a polícia
conseguiu, estas organizações ocupam-se, basicamente, de três frentes distintas: a obtenção
das drogas junto a um fornecedor atacadista, a venda das mesmas no esquema de varejo e a
segurança do negócio.
129
5.4.1. As Drogas
Em um primeiro momento, todas as quadrilhas tratam de conseguir um grande
fornecedor de drogas – no caso da PPL, a polícia acredita que a maioria das drogas ainda
venha através dos antigos contatos mantidos pelo traficante Roni Peixoto. Somente no
início de 2003, uma gangue que se estabeleceu em uma área conhecida como “Terreirão”,
na parte nordeste da favela, teria conseguido um fornecedor diferente dos demais e estaria
comprando crack a preços menores dos que aqueles que são cobrados pelos fornecedores
ligados a Roni Peixoto. No final de 2003, uma investigação sigilosa realizada na PPL pelo
serviço de inteligência do Batalhão de Rondas Táticas Metropolitanas (Rotam) apontou que
fornecedores ligados a Roni Peixoto estariam trazendo para a Pedreira drogas do Rio de
Janeiro, de São Paulo e de países como Bolívia e Paraguai. Em compensação, a PM ainda
não havia conseguido rastrear de onde estaria vindo a droga que abastece a quadrilha do
“Terreirão”.
Muito pouco se sabe sobre as rotas de entrada da droga na favela, assim como as
“mulas” que a trazem. Muitas chegam a bordo de táxis, ou dentro de carros que não
possuem qualquer impedimento ou queixa de furto. Sabe-se apenas que, para não correr o
risco de perder grandes carregamentos para a polícia ou para os grupos adversários, os
traficantes fazem chegar ao morro vários carregamentos por dia, sempre em quantidades
menores. Tanto que, dificilmente, a PM consegue apreender “mulas” que transportam mais
de meio quilo de crack para os narcotraficantes da PPL.
As armas chegam da mesma maneira, sempre em carregamentos menores, trazidas em
veículos que não levantam suspeitas. No primeiro semestre de 2004, por exemplo, durante a
finalização desta pesquisa, um traficante da gangue da rua Marcazita chegou a me
confidenciar que, em um sábado à tarde, Roni Peixoto teria enviado cerca de R$50 mil em
armas para membros da quadrilha da rua Carmo do Rio Claro. Para encobrir a chegada do
arsenal, que vinha em uma Kombi, os traficantes daquele grupo teriam forjado um tiroteio
na parte alta da favela, para atrair a polícia toda para lá e garantir a chegada segura das
armas à parte baixa do morro.
130
5.4.2. A Venda
Depois de receber seus carregamentos, os grupos que atuam na Prado Lopes tratam de
organizar todos os aspectos inerentes à venda do material. Ou seja, mobilizam seus esforços
no sentido de conseguir uma forma de estocar a droga, prepará-la para o consumidor final e
estabelecer pontos de venda em locais de fácil acesso. Alguns barracões localizados no
interior da favela servem como centros de estocagem e preparo. E assim como fazem as
quadrilhas do Rio de Janeiro, os traficantes da PPL, chamam de “endolação” o trabalho de
preparo e acondicionamento da droga em pequenos sacos plásticos que serão repassados
aos consumidores finais.
Em geral, os carregamentos são guardados em casas de moradores honestos – que
mantêm uma relação de conivência forçada com os criminosos -, ou em barracões que não
levantam a suspeita da polícia31. E, ainda assim, o material é escondido dentro de caixas
d´água, enterrado nos quintais, colocado em forros de sofá ou em qualquer lugar que não
levante suspeita no caso de uma improvável batida policial. O “bom traficante” jamais é
apanhado com drogas ou armas dentro da própria casa. Aliás, durante as entrevistas, uma
frase, em particular, foi capaz de resumir toda a logística do acondicionamento das drogas.
Questionado sobre o esconderijo dos entorpecentes que vendia, um dos traficantes se
recusou a indicar onde armazenava suas drogas. No entanto, fez questão de afirmar que não
estocava em sua casa absolutamente nada que o comprometesse. Segundo ele, “o bom
malandro não dorme com o ‘flagoroso’ dentro de casa”.
Depois de preparadas, as drogas são distribuídas pelas diversas “bocas-de-fumo”,
onde os “vapores” se encarregarão de vendê-las aos usuários. Na Pedreira, cada “vapor”
recebe uma carga de 90 pedras de crack para vender de cada vez. A pequena quantidade de
drogas entregue a cada vendedor obedece a uma lógica de segurança: se ele for preso pela
polícia, estará com relativamente pouco dinheiro nas mãos e, se já tiver vendido boa parte
da carga, poderá ser autuado apenas pelo crime leve e afiançável de uso de drogas – artigo
16 do código penal brasileiro. Se estivesse com uma grande quantidade de entorpecentes,
31 Ver Anexo 2: Entrevistas com moradores da Pedreira Prado Lopes; e Anexo 3: Entrevistas com traficantes da Pedreira Prado Lopes.
131
poderia ser preso por tráfico – artigo 12 do código penal, ilícito penal infinitamente mais
grave.
No caso da Pedreira, parece nunca ter havido a preocupação de camuflar a existência
dos pontos de venda de droga – característica que, aliás, levanta séria suspeita quanto à
participação da polícia no negócio32. As principais e mais lucrativas “bocas-de-fumo” ficam
na parte baixa do aglomerado, justamente devido à proximidade da avenida Presidente
Antônio Carlos, uma via que dá acesso fácil e rápido a toda a região central de Belo
Horizonte. Conhecidos pontos de venda estabeleceram-se na avenida José Bonifácio e nas
ruas Araribá e Carmo do Rio Claro. Durante as noites, é fácil ver a intensa movimentação
de carros e pedestres nestas regiões, assim como dos traficantes que conseguiram organizar
uma verdadeira feira livre das drogas no local.
Na parte alta da favela, as principais “bocas-de-fumo” foram organizadas nas ruas
Serra Negra, Pedro Lessa, Marcazita e Mariana, três vias de fácil acesso e que delimitam a
região Noroeste e Nordeste do aglomerado. Assim como na parte baixa, organizaram-se ali
vários pontos de venda que recebem a visita diária de centenas de viciados. Acredita-se
que, assim como acontece com os pontos de venda da parte baixa, as “bocas-de-fumo” da
parte alta tenham conseguido prosperar devido à localização estratégica que possuem: as
ruas Pedro Lessa e Serra Negra fazem divisa com o bairro Bonfim e oferecem acesso fácil e
rápido ao Centro de BH. Além disso, também ligam a PPL à favela Sumaré, outro
importante ponto de entrada das drogas em Belo Horizonte, principalmente de cocaína e
derivados como o crack.
Entre o final de 2002 e início de 2003, uma quadrilha se instalou na área conhecida
como “Terreirão”, um ponto localizado na região nordeste do morro e que faz divisa com o
bairro Cachoeirinha. Relatórios internos da PM dão conta de que, apesar de ter se
estabelecido na favela depois das outras quadrilhas e de estar localizado em um ponto de
mais difícil acesso para os usuários, este grupo vem crescendo e ganhando boa freguesia
devido aos baixos preços que vem praticando. Informações recebidas pela polícia indicam
ainda que esta quadrilha vem trabalhando com um fornecedor de drogas diferente dos
demais e que, por isso, estaria sendo capaz de revender seu produto a preços mais
acessíveis.
32 Ver Anexo 3: Entrevistas com traficantes da Pedreira Prado Lopes.
132
Na Pedreira, o contato entre usuários e traficantes acontece de forma bastante direta e
ostensiva. Com razoáveis quantidades de drogas guardadas nos bolsos ou em pequenas
bolsas, os traficantes ficam parados em pontos estratégicos localizados próximos às “bocas-
de-fumo” e, sem qualquer constrangimento, oferecem o produto a qualquer pessoa que
passe por seu campo de visão. Em geral, os consumidores mais assíduos reconhecem com
facilidade um “vapor” e não esperam nem mesmo sua abordagem. Já tratam de se
aproximar deles com perguntas do tipo “tem aí?”. A negociação geralmente é rápida,
porque os consumidores já conhecem a qualidade da droga vendida na PPL e os preços lá
praticados.
Quando a droga de um “vapor” acaba, ele vai até a “boca-de-fumo” ou até mesmo ao
barraco da “endolação” para pegar uma nova carga. Este trabalho também pode ser feito
pelos “aviões”, que são rapazes encarregados de transportar pequenas cargas de drogas
entre os pontos de estocagem e os pontos de venda direta. Os “aviões” também podem fazer
o transporte da droga entre uma favela e outra. No caso da Pedreira, alguns “aviões”
também são encarregados de levar cargas de drogas para vendedores que atuam na região
central de BH. Geralmente, garotos menores de idade são usados para este trabalho, para
evitar prisões desnecessárias de membros mais importantes da quadrilha.
Um fato curioso que pode ser facilmente observado na região da PPL é a grande
movimentação de taxistas nos pontos de venda de drogas. Investigações do serviço de
inteligência da PM indicam que, além de prestar serviços aos traficantes de lá, os motoristas
também são compradores assíduos de grandes quantidades de drogas, que geralmente são
levadas para outras favelas da capital e revendidas a preços mais altos. Não se sabe se eles
compram a droga por conta própria para revendê-la ou se eles já vão à Pedreira a mando de
criminosos de outras favelas. No entanto, o movimento de entra e sai de taxistas sem
passageiros na Pedreira acontece dia e noite, de forma ostensiva e bastante clara. O que,
mais uma vez, levanta graves suspeitas de que exista a participação ou, na melhor das
hipóteses, a omissão de policiais quanto ao esquema.
133
5.4.3. A Segurança
Como se trata de um mercado ilícito e sem qualquer tipo de regulamentação formal,
todas as leis do tráfico de drogas tiveram que ser impostas pelo poder das armas de fogo e
pela medição de forças entre as quadrilhas. Nesse sentido, observa-se que a territorialidade
ou a noção de território tornou-se um fator de fundamental importância entre os grupos que
atuam na Pedreira Prado Lopes. Cada quadrilha vigia o seu terreno de forma ostensiva
contra a ação de possíveis inimigos ou concorrentes. Como que em um acordo tácito, um
bando não vende drogas na área do outro, até mesmo para evitar conflitos desnecessários
que certamente atrairiam a presença da polícia e afastariam os clientes.
Aliás, parece que toda a atividade do tráfico de entorpecentes na Pedreira Prado
Lopes está intimamente permeada pela noção de territorialidade. No que se refere à
segurança, por exemplo, a vigilância dos pontos de venda de drogas não é feita apenas
junto às “bocas-de-fumo” propriamente ditas. Para garantir o funcionamento adequado do
negócio, os traficantes posicionaram um grande grupo de informantes em várias vias de
acesso à favela. Usando telefones celulares ou através de gritos previamente combinados,
os vigilantes são os responsáveis por avisar os traficantes da presença da polícia ou de
grupos rivais. Para que se tenha uma idéia da importância do serviço dos chamados
“olheiros” ou “atividades”, basta dizer que até mesmo rádios-comuicadores de baixa
freqüência já foram apreendidos com traficantes da PPL. Geralmente, este serviço é feito
por adolescentes ou até mesmo crianças que recebem pequenas quantias em dinheiro ou
buchas de drogas para consumo próprio.
Na parte baixa do aglomerado, os “olheiros” ficam em três regiões distintas: no
cruzamento da avenida Presidente Antônio Carlos com rua Araribá, na avenida José
Bonifácio junto à Igreja São Cristóvão e nas imediações do Hospital Odilon Behrens,
próximo ao Departamento de Investigações. Desta forma, o esquema de vigilância
consegue cobrir todas as entradas da parte baixa da favela.
Por sua vez, os traficantes que atuam na parte alta da favela também estabeleceram
postos de vigilância em três pontos distintos: na esquina formada pela parte sul da rua
Pedro Lessa com rua Guapé, nas pequenas ruas que ficam próximas à extremidade norte da
rua Pedro Lessa, já no bairro Santa André, e por praticamente toda a extensão da rua Serra
134
Negra, principal via de acesso à parte alta do aglomerado. Também existem “atividades”
trabalhando na esquina da rua Marcazita com beco Bom Jesus. Vejamos o depoimento de
um dos policiais entrevistados:
“É sempre complicado a gente fazer qualquer incursão na PPL porque os traficantes têm um monte daqueles olheiros espalhados na região. É até engraçado, sabia? A gente chega com a viatura e vê aquele tanto de menino parado nas esquinas. Quando eles vêem que é polícia, começam a gritar ‘Galo’ sem parar. Parece até que é véspera de jogo Atlético e Cruzeiro, mas é o código que eles usam para avisar da chegada da polícia. Quando a gente sai fora, eles gritam ‘Zêro’, que é para avisar que a barra tá limpa. Alguns deles já conhecem todos os policiais pela cara. Por isso, não adianta a gente ir à paisana que dá na mesma. Eles avisam mesmo” (cabo-PM R. S. L., agente do Serviço de Inteligência do 34o Batalhão da Polícia Militar, em 05/11/2003).
Nas imediações dos pontos de venda de drogas, vários rapazes ficam responsáveis
pela segurança armada das “bocas-de-fumo” propriamente ditas. Por uma questão de
segurança, os “soldados”, que é como são chamados os vigilantes armados do tráfico, não
costumam ficar exatamente no mesmo lugar que os vendedores de drogas. Na PPL pelo
menos, eles ficam nas proximidades dos pontos de venda, sempre em uma distância que os
permita, de forma segura, garantir o andamento normal dos negócios e fugir da polícia em
caso de alguma batida na área da “boca”.
Aliás, nota-se que, pelo menos na PPL, as quadrilhas desenvolveram toda uma
logística para tentar minimizar o prejuízos causados pelas possíveis prisões em flagrante. É
claro que existem exceções, mas na maioria dos casos, aquele que vende drogas não
costuma andar armado e está sempre com uma quantidade relativamente pequena de
entorpecentes nas mãos. A recíproca também é verdadeira: quem anda armado raramente
carrega drogas consigo. Isso ajuda a minimizar os prejuízos do grupo, caso algum membros
seja preso. No caso de passarem por qualquer dificuldade com clientes ou com
concorrentes, os “vapores” podem sempre recorrer aos soldados, que invariavelmente
estarão nas proximidades para resolver qualquer problema.
Nas “bocas” consideradas mais problemáticas, que são aquelas que ficam mais
próximas ao território da quadrilha rival ou mais para o interior da favela, alguns
“soldados” fazem questão de mostrar ostensivamente suas armas, para dissuadir qualquer
tentativa de invasão ao seu território. Durante as noites na Pedreira, não é difícil notar a
135
presença de rapazes armados nas ruas Pedro Lessa, Carmo do Rio Claro, Araribá,
Marcazita, Escravo Isidoro e nas imediações da rua Serra Negra.
5.4.4. As Funções e a Hierarquia
Sempre que se refere às quadrilhas de traficantes de droga que atuam nas vilas e
favelas dos grandes centros urbanos, a polícia utiliza a expressão “crime organizado”.
Apesar de todo o exagero que naturalmente acompanha esta definição, observa-se que os
grupos envolvidos com o tráfico na Pedreira Prado Lopes realmente adquiriram, ainda que
de forma primária, um certo nível de organização. Apesar de não haver um único comando
gerenciando todo o comércio de entorpecentes da região – como foi dito anteriormente,
existem cerca de três grupos envolvidos com o tráfico na região e, ainda assim, somente um
deles parece não operar sob as ordens do traficante Roni Peixoto – observa-se que todas as
quadrilhas se organizaram através de uma certa divisão de funções.
Existem membros responsáveis pela venda das drogas, existem membros
responsáveis pela vigilância – armada ou não – do negócio, assim como existem membros
responsáveis pelo transporte das drogas entre os pontos de venda da favela e até mesmo
entre a Pedreira e outras regiões de Belo Horizonte. Em grupos que, em sua imensa
maioria, são formados por adolescentes ou rapazes muito jovens, quem geralmente se torna
líder e acaba por distribuir as funções entre os membros do bando é o “gerente”, ou seja:
aquele que consegue estabelecer um contato permanente com o fornecedor de drogas e,
conseqüentemente, garante o abastecimento de drogas necessário para as atividades do
grupo. Este “gerente”, por sua vez, distribui as tarefas entre os demais membros da
quadrilha, de acordo com o nível de amizade e confiança que possui para com eles. Na
PPL, a polícia estima que cada uma das três quadrilhas possua um “gerente”.
Como foi dito anteriormente, a entrada de novos membros na quadrilha acontece de
forma lenta e gradual, na medida em que estes consigam conquistar a confiança dos
integrantes mais antigos. Em um primeiro momento, estes rapazes recebem tarefas sem
qualquer importância, em troca de “consideração”, ou ainda pequenas somas em dinheiro
ou drogas. Buscam comida, bebidas e cigarros para os quadrilheiros que estão de serviço na
136
“boca”, organizam as filas de clientes, levam recados e qualquer outro tipo de serviço
eventual que não exija responsabilidade ou comprometa o “movimento”.
O “degrau seguinte” a ser galgado por aquele que pretende entrar para uma quadrilha
é o de receber uma função fixa dentro do bando. Assim que consegue conquistar a
confiança dos membros mais antigos, os adolescentes passam efetivamente a realizar um
trabalho dentro do grupo e a receber dinheiro de forma mais regular. Evidentemente que, no
começo, estes rapazes continuam exercendo funções de menor importância. Mas o simples
fato de já terem sido aceitos no grupo significa para estes garotos uma possibilidade real de
crescimento dentro da hierarquia da quadrilha.
Na PPL, é possível observar que um dos primeiros cargos conseguidos pelos novos
membros é o de “olheiro”. Em turnos que podem chegar a até seis horas de “trabalho”,
estes rapazes ficam sentados nas principais entradas do aglomerado, vigiando toda a
movimentação da região. A passagem de qualquer pessoa ou carro suspeito é rapidamente
identificada por estes garotos, que tratam de imediatamente avisar os traficantes do
ocorrido. Alguns deles possuem telefones celulares, outros ligam de telefones públicos ou
emitem gritos previamente combinados com os criminosos. A verdade é que, em um
ambiente como o da Pedreira Prado Lopes, onde praticamente todas as vias são muito
estreitas e todos os moradores são bastante conhecidos, qualquer presença estranha chama
logo a atenção dos olheiros que, dependendo do tempo de atividade na “boca”, conseguem
até mesmo identificar com relativa facilidade a chegada de policiais não fardados ao morro.
Na PPL, a imensa maioria dos olheiros não recebe uma remuneração fixa em troca de seus
serviços. Como quase todos estes rapazes são viciados, eles recebem grande parte de seu
pagamento em pequenas porções de drogas e, ocasionalmente, algum dinheiro. Alguns
deles chegam a trabalhar em troca de roupas e refeições diárias.
Aos garotos de maior confiança, os traficantes da Pedreira delegam o transporte de
pequenos carregamentos de drogas. São os chamados “aviões” ou “mulas”. Na gíria das
gangues da PPL, um rapaz que faz um “avião” ou “correria” é aquele encarregado de
transportar pequenas quantidades de drogas dentro da própria favela. Geralmente, ele leva
os pequenos pacotes de drogas entre as casas que são usadas para armazenar o produto –
que ficam no interior da favela, e as “bocas-de-fumo” que funcionam nas ruas que
margeiam o aglomerado.
137
Ainda na gíria dos traficantes da Prado Lopes, as “mulas”, por sua vez, são aqueles
rapazes que transportam carregamentos um pouco maiores de drogas, até determinados
pontos fora da favela. Recentemente, a polícia conseguiu informações que dão conta de que
muitos taxistas são utilizados para este serviço. Eles pegam os pacotes nas “bocas-de-
fumo” da PPL e levam a droga até receptadores no centro de Belo Horizonte ou até mesmo
para outras favelas da região metropolitana. Este expediente é considerado mais seguro
pelos traficantes porque os taxistas sem passageiros raramente são parados pela polícia. No
primeiro semestre de 2003, uma investigação da Corregedoria da Polícia Civil descobriu
que vários traficantes que atuam no centro de BH são abastecidos com drogas que vêm da
Pedreira. Na PPL, tanto os “aviões” quanto os “mulas” não possuem “salário” fixo. Eles
ganham por serviço prestado à “boca”.
Outra função que também consome os esforços de vários membros da quadrilha está
ligada ao processo de preparação da droga que será vendida ao consumidor final. Para
render mais, a cocaína é misturada a fermento, bicarbonato de sódio e anestésicos. O crack,
que é o produto mais vendido na PPL e a grande fonte de lucro dos traficantes de lá, é
fervido junto a bicarbonato de sódio e novamente cortado em pequenas pedras. Depois de
serem “malhadas”, as drogas são acondicionadas em pequenos embrulhos plásticos, que
serão repassados ao consumidor final. Este processo de embalagem das drogas é chamado
pelos traficantes de “endolação” e é realizado por pessoas de extrema confiança dos chefes
da quadrilha. A escolha dos “endoladores” tem que ser cautelosa, para que a quadrilha não
sofra nenhum “derrame” – furto uma pequena quantidade da droga que está sendo
embalada. Na Pedreira, um “endolador” pode chegar a ganhar R$500,00 por mês,
trabalhando em turnos de seis horas diárias.
Outro cargo existente dentro da hierarquia do tráfico da PPL é o de “vapor”, ou seja,
aquele que será responsável pela venda direta das drogas ao consumidor final. Na Pedreira,
os “vapores” também são criteriosamente escolhidos, uma vez que é ele que, em última
instância, ficará responsável pelo comércio direto dos entorpecentes. Nesse sentido, existe
um rígido controle sobre a quantidade de drogas que ele tem nas mãos para vender e o
dinheiro que deverá arrecadar com a transação ao final de um turno de trabalho, que
também chega a ser de seis horas. Comenta-se na Prado Lopes que a expressão “vapor” foi
138
importada dos traficantes cariocas que, por sua vez, teriam dado este nome aos vendedores
porque eles “evaporam” com a chegada da polícia.
Atualmente, o cargo de “vapor” é um dos mais visados pelos jovens que querem
entrar para o tráfico. Isso acontece porque, além de ganhar a confiança do chefe da “boca” e
receber um salário-base de aproximadamente R$900,00 por mês, um “vapor” possui
chances reais de subir na hierarquia da quadrilha, se trabalhar com disciplina e eficiência.
Além disso, se ele conseguir clientes fiéis, pode aumentar sua margem de lucros.
Finalmente, um dos “cargos” mais respeitados da quadrilha é o de “soldado”. Estes
rapazes são o braço armado do bando. Com suas pistolas semi-automáticas, suas
metralhadoras e até mesmo fuzis, eles são os principais responsáveis pela segurança de todo
o grupo. Na PPL, um “soldado” ganha, em média, R$1.500,00 por mês, para desempenhar
a tarefa que talvez seja a que mais desperta medo e admiração entre os rapazes da
comunidade. Em uma atividade cuja rotina é tão nitidamente permeada pela violência, o
“soldado” é a personificação do instrumento sobre o qual repousa, em última instância,
todo o poder da quadrilha: a força e a ameaça das armas de fogo.
Geralmente, a segurança das “bocas-de-fumo” é feita por garotos que demonstram ter
o que os adolescentes da Pedreira chamam de “disposição”. “Disposição”, no caso,
significa ter “disposição” para matar um inimigo ou um devedor ou, se for o caso,
“disposição” para se arriscar em um tiroteio com quadrilheiros rivais ou até mesmo com a
polícia. O “soldado” é aquele que tem “disposição” para, quando necessário, colocar em
uso o instrumento que é a representação simbólica máxima do poder de coação e destruição
da quadrilha: as armas de fogo. Em algumas ruas da PPL, principalmente naquelas que
ficam próximas aos locais onde funcionam as “bocas-de-fumo”, é possível ver, mesmo
durante os dias, rapazes andando ostensivamente armados. Esta postura, apesar de
arriscada, é o símbolo maior de que aquela área pertence a uma determinada quadrilha e
que este grupo está pronto para enfrentar qualquer um que se atreva a desafiar seu domínio
naquela região.
O escalão seguinte dentro da hierarquia da quadrilha é o de “gerente”. Assim como
aconteceu entre as gangues do Rio de Janeiro, na Pedreira é ele quem controla os soldados,
os vapores e, em última instância, todos os demais membros do grupo. Durante a realização
desta pesquisa, fui informado por mais de uma fonte que, na PPL, um gerente pode chegar
139
a faturar cerca de R$3.500,00 por mês a título de salário e, às vezes, até mesmo uma
pequena participação sobre os lucros da “boca”. Para ser gerente, a pessoa precisa saber
controlar toda a movimentação financeira da “boca”, precisa organizar os turnos de
trabalho dos soldados e vapores, controlar a disponibilidade e o uso das armas da quadrilha,
ter controle sobre o processo de endolação e, mais importante, precisa cuidar para que a
polícia fique longe dos negócios da gangue. Durante as entrevistas feitas na Pedreira, vários
traficantes garantiram que são os gerentes que providenciam, semanalmente, o pagamento
de propinas aos policiais que trabalham na favela33.
No topo da hierarquia do tráfico da PPL, estão os chamados “donos das bocas”, que
são aqueles traficantes que possuem contato direto com os fornecedores atacadistas e
abastecem de drogas e armas todas as gangues do morro. Em última instância, toda a
estrutura das quadrilhas depende dos “donos de bocas”, que fornecem aos garotos todas as
drogas vendidas no morro, assim como as armas necessárias à manutenção do negócio.
Apesar de praticamente nunca se envolverem diretamente nos negócios das “bocas”, os
donos, ou “patrões” são as figuras mais respeitadas dentro do mundo do tráfico.
Na Pedreira, o maior “dono de bocas” do qual se tem notícia é Roni Peixoto de Souza.
Durante o trabalho de pesquisa, ficou muito claro que o respeito e o terror impostos por
Roni na PPL são tão grandes, que os traficantes pertencentes às suas quadrilhas evitam
sequer pronunciar seu nome. Somente os quadrilheiros que não trabalham em bocas
mantidas por ele falam abertamente de toda a sua influência e poder no tráfico da Prado
Lopes. De acordo com policiais que trabalham na favela, Roni seria dono da maioria das
“bocas” da favela, exceção feita somente à do “Terreirão”, mantida por Rodrigo Gomes da
Fonseca, o “Rodriguinho”, e da rua Marcazita que, na ocasião da realização desta pesquisa,
pertencia aos irmãos “Nêgo” e “Fio”.
Vejamos na figura 3, a seguir, um quadro que exemplifica a estrutura hierárquica
adotada por quadrilhas de traficantes da Pedreira:
33 Ver Anexo 3: Entrevistas com traficantes da Pedreira Prado Lopes.
140
FIGURA 3: Estrutura hierárquica adotada por quadrilhas de traficantes da PPL
5.4.5. As Armas
Outro aspecto das gangues da Pedreira Prado Lopes que chama a atenção é a imensa
quantidade e variedade de armas que todas elas possuem. Em outubro de 2003, um relatório
reservado produzido pelo Serviço de Inteligência da Polícia Militar apontou que, na
ocasião, existiam pelo menos cinco fuzis nas mãos de quadrilhas do morro. Além destas
armas, os traficantes também teriam dezenas de pistolas semi-automáticas, revólveres,
metralhadoras, espingardas de grosso calibre e até mesmo granadas, como ressalta o
depoimento do Tenente-Coronel José Anísio Moura, a seguir:
“Recentemente, uma equipe de nosso batalhão estava em uma das principais ruas da Pedreira, quando se viu no meio de um fogo cruzado entre gangues de lá. Era uma noite de sábado e esta equipe teve que se esconder em um dos becos porque a munição que eles usavam acabou. Um sargento conta que, no meio daquela confusão, eles viram tiros de munição traçante cortando os becos da favela. Munição traçante só é
DONO DA
BOCA
GERENTE
VAPORES
GERENTE
SOLDADOS
OLHEIROS
AVIÕES E
MULAS
141
usada em fuzis de guerra. Para que se tenha uma idéia do poder de uma arma destas, basta dizer que um projétil disparado por ela pode atravessar uma chapa de aço com uma polegada de espessura. Em uma favela, um tiro de fuzil como este poderia atravessar quatro barracos na seqüência” (tenente-coronel José Anísio Moura, comandante do Batalhão de Rondas Táticas Metropolitanas – Rotam -, falando sobre um confronto entre traficantes ocorrido na madrugada do dia 05/10/2003, que terminou com uma pessoa morta e dez feridas).
Por mais que tenham feito investigações a respeito, até hoje as polícias ainda não
conseguiram detectar de onde vêm as armas que abastecem o tráfico na Pedreira Prado
Lopes. De acordo com o Serviço de Inteligência da PM, o armamento dos traficantes viria
de várias fontes diferentes, atraído pela grande quantidade de dinheiro e drogas que circula
na favela. Informes da PM dão conta de que as armas quase nunca chegam em grandes
carregamentos. Elas são repassadas aos traficantes no regime de varejo, em um mercado
informal difícil de combater.
Alguns traficantes, por sua vez, contam que muitas das armas que possuem seriam
fruto de apreensões feitas por equipes corruptas das polícias Civil e Militar na região
metropolitana de Belo Horizonte. Segundo eles, alguns policiais já conhecidos no morro
estariam apreendendo armas de gangues de outras favelas e revendendo o material aos
traficantes da PPL34. Os rapazes envolvidos com as gangues contam ainda que um revólver
calibre 38 pode ser adquirido por cerca de R$200,00. Uma pistola semi-automática calibre
380 custaria cerca de R$350,00 às quadrilhas. Uma submetralhadora calibre 9 milímetros
pode ser comprada por R$500,00. Vejamos o depoimento de um dos entrevistados:
“As arma que a gente usa vem de vários lugares. Mas na maioria das vez é os cara mesmo que vai lá oferecer pra gente comprar. Todo dia tem neguinho oferecendo arma lá pra gente comprar. Os cara já tem as manha que lá funciona a boca e vai lá oferecer as arma pra gente. Aí a gente junta uma grana de cada um e compra o que der. A arma fica lá pra segurança nossa mesmo. Nossa gangue tem macaquinha, oitão, doze e PT. O pessoal da parte baixa já tá até com fuzil também” (J. M. M. A., 25 anos, traficante da ‘boca do Terreirão’, preso no dia 07/10/2003, em uma casa da rua Serra Negra. No local, a PM encontrou duas submetralhadoras calibre 9 milímetros, duas escopetas calibre 12, um revólver calibre 38, uma granada, três balanças de precisão, cinco tabletes de maconha, 200 gramas de crack e cerca de R$2.500,00 em dinheiro).
34 Ver anexo 3: Entrevistas com traficantes da Pedreira Prado Lopes.
142
Além de exercer a função óbvia de impor o poder da quadrilha, observa-se que a
posse de armas de fogo acabou por se tornar por si só uma espécie de “coqueluche” em
meio a muitos destes rapazes da Pedreira Prado Lopes. Tanto que praticamente todos os
garotos que se envolvem com as gangues acabam também por se tornar especialistas em
armas de fogo. Apesar de não saber manuseá-las com perícia, pois, obviamente, nenhum
deles teve a oportunidade de freqüentar um curso de tiro, todos sabem na ponta da língua a
marca de várias destas armas, sua nacionalidade, a potência que possuem, o alcance de seus
projéteis, o custo da munição, a capacidade de tiros por minuto e outros detalhes que
somente deveriam ser conhecidos por especialistas em armamentos.
Como que se estivessem comparando brinquedos uns com os outros, alguns destes
rapazes exibem como troféus as armas que conseguiram adquirir e se orgulham de poder
andar com uma boa pistola semi-automática na cintura. Nesse sentido, as preferidas são as
pistolas da marca Taurus calibre 380 – a famosa PT-380 - e as da marca Glock calibre 9
milímetros – a “quadrada”. Recentemente, também têm feito muito sucesso entre os
traficantes as pistolas calibre .40, uma versão mais leve, precisa e mortal do famoso
revólver Magnum. Além de conhecerem tudo sobre as armas de fogo, alguns destes rapazes
chegam, inclusive, a manifestar abertamente suas preferências por determinados tipos de
armamento, dependendo da ação que pretendem realizar, como ilustra o depoimento de um
dos traficantes:
“Essa munição aqui tem ponta oca, ó. É melhor de usar porque derruba o cara na hora. Diz que a bala entra no corpo do cara e abre dentro dele. Arrebenta o cara por dentro e joga no chão na hora, tem a manha? Quando a ponta é fechada que nem a dessa daqui, ó... É a jaquetada. A bala atravessa o cara. É bom porque você pode acertar um tanto de mané que tá de fileira igual soldadinho, né não? (risos) Mas é ruim porque o cara não cai. Aí é foda porque ele já levou caroço, mas continua atirando em você. Eu prefiro com ponta oca mesmo. É ‘pou’, ‘pou’, ‘pou’, três pipoco e o cara já deita” (F. P. E., 17 anos, traficante que atua na parte baixa da Pedreira Prado Lopes, em 17/07/2003).
143
5.5. Os Moradores
“Medo e impotência”. Estas talvez sejam as duas palavras que melhor definem a
relação que, atualmente, a imensa maioria dos moradores da Pedreira Prado Lopes mantém
com os traficantes da região. Em entrevistas realizadas no aglomerado ou até mesmo em
conversas informais, observa-se facilmente que a questão das gangues, do tráfico e da
violência é uma presença constante no imaginário da comunidade da PPL. A presença do
tráfico, das armas e dos confrontos acabou tornando-se uma rotina com a qual os moradores
simplesmente aprenderam a conviver, ainda que de maneira forçada. A impressão que se
tem é que, no decorrer das duas últimas décadas, a violência das gangues acabou por se
tornar parte do próprio corpo social e cultural da vila. A comunidade parece ter se
resignado com sua existência e praticamente todos os aspectos da vida cotidiana são
permeados por sua brutalidade. A impressão que se tem é que a realidade perversa e
violenta do tráfico parece ter corrompido e se entranhado todas as instituições sociais da
Pedreira.
No imaginário de muitos moradores – inclusive no dos mais antigos -, é como se a
violência sempre tivesse existido e estivesse condenada a existir para sempre na Pedreira. É
como se fosse uma característica talhada na própria gênese da favela e nada pudesse ser
feito com relação a isso. Os únicos aspectos que variam nessa história são a intensidade
com a qual esta violência se manifesta, seus arautos, métodos e motivações. Tanto que,
quando são questionados sobre a violência na PPL, muitos dos moradores mais antigos
comentam que ela sempre existiu. Só que, nas décadas de 50, 60 e até mesmo em parte da
de 70, figurava no morro aquilo que muitos chamam de “malandragem”. Uma espécie
saudosista e quase caricatural de “bom malandro” que, apesar de ter envolvimento com
atividades criminosas, respeitava os moradores da região. Vejamos o depoimento de um
dos moradores entrevistados:
“Ah, meu filho... Sempre teve malandragem aqui na Pedreira. Só que não era isso que todo mundo vê aí hoje não. Na minha época mesmo, tinha aí os malandro. Mas eles respeitava a gente. Eles ficava aí com as coisas deles e não mexiam com ninguém. Quando tinha problema, era só entre eles mesmo, por coisa deles mesmo. E resolvia tudo pra lá, não tinha esse negócio de prejudicar o povo da Pedreira que nem esses menino que tão aí hoje não. Hoje é que fica ai essa meninada que não respeita ninguém,
144
que não quer saber se é morador da Pedreira ou não” (J.T.S., 71 anos, marceneiro e morador da Pedreira Prado Lopes, em 12/07/2002).
Um aspecto muito ressaltado pelos moradores durante as entrevistas diz respeito à
nova geração de criminosos da Pedreira Prado Lopes e seu comportamento de completo
desrespeito para com a comunidade. Quando são incentivados a contrapor a violência que
existia em décadas anteriores e a que existe hoje, a imensa maioria dos entrevistados refere-
se diretamente aos vetores desta violência. Muitos não hesitam em comparar as motivações
e características da antiga geração de “malandros” – às vezes lembrada até mesmo com
bom humor - com a brutalidade e a falta de qualquer tipo de limites ou regras das atuais
gangues de traficantes. A maioria dos moradores ouvidos afirma que, enquanto os
“malandros” eram adultos que possuíam um comportamento razoavelmente coerente e
respeitavam os moradores, a “nova geração” de criminosos é completamente imprevisível e
marca sua presença pelas demonstrações públicas de violência extrema e pela exibição
ostensiva das armas de fogo.
A impressão que se tem ao ouvir alguns depoimentos é a de que, enquanto o antigo
“malandro” fazia questão de ter um bom relacionamento com a comunidade e de não
envolvê-la em seus negócios escusos – até mesmo porque precisava do apoio desta
comunidade para se esconder da polícia-, os traficantes que atualmente agem na Pedreira
não se importam muito com a repercussão de seus atos. A diplomacia sedutora e até mesmo
um pouco romântica dos antigos “malandros” foi explicitamente substituída pela “lei do
mais forte” e pela brutalidade das armas de fogo. Inclusive, talvez venha deste sentimento a
origem de uma expressão muito usada na Pedreira: “dedos moles”. Enquanto o “malandro”
de antigamente resolvia boa parte de suas pendências na conversa – e, ainda assim, estas
pendências costumavam se dar apenas entre os próprios “malandros” -, os traficantes de
hoje não dialogam, não discutem, eles “sentam o dedo” – atiram. Demonstrando que estão
dispostos a usar suas armas ao menor sinal de contrariedade, diz-se na Pedreira que eles
têm o “dedo mole”, que o dedo “coça no gatilho”. O depoimento de um dos moradores
evidência essa relação com as armas:
“O problema é esse negócio de droga. Antigamente, a malandragem nem mexia tanto com isso não até porque o morador nem sabia direito como é que funcionava esse negócio de tráfico aí. Agora cê vê que é tudo
145
menino mexendo com esse negócio de tráfico. Tudo menino novo. É arma, é droga, é guerra... Ninguém mais tem sossego aqui na Pedreira... O problema é que esses menino não respeita ninguém. Se eles cisma com você, acabou. Se alguém compra coisa na mão deles e não paga, eles vem em cima mesmo. E não tem perdão, não tem conversa. Eles arrasta no meio da rua, eles coloca arma na cara, dão surra mesmo. Isso quando não mata o sujeito que é pra dar exemplo. Eles dão tiro no meio da rua, queima as lâmpada da rua tudo, fica mostrando arma pra quem quisé ver... E não tem respeito com morador daqui não. Tem dia que eles cumprimenta você e até trata bem, mas tem dia que, se você olha demais, eles perguntam que que tá querendo, se perdeu alguma coisa lá, que é pra sair fora logo que eles acha que tá querendo cangüetá. O negócio aqui é levar a vida e não mexer com eles. Tem que fingir que eles não tão lá e nem querer saber o que ta acontecendo” (J.T.S., 71 anos, marceneiro e morador da Pedreira Prado Lopes, em 12/07/2002).
Em decorrência da violência quase que gratuita demonstrada pela nova geração de
traficantes, observa-se que a relação que a comunidade mantém com estes garotos é de
muito medo e impotência. Nada além disso. Não existe qualquer tipo de relação de
companheirismo, solidariedade ou responsabilidade de um para com outro. Na PPL, a
comunidade não se envolve com os negócios do tráfico. No entanto, a mesma regra não é
seguida pelo tráfico que, com toda a sua brutalidade, costuma se envolver com os assuntos
da comunidade e interferir em vários aspectos da vida cotidiana dos moradores da PPL.
No segundo semestre de 2003, por exemplo, traficantes supostamente ligados a Roni
Peixoto provocaram o fechamento do único posto de saúde da vila, assim como de um
sacolão que é mantido pela Prefeitura na região e vende gêneros alimentícios a preços
simbólicos à comunidade da Prado Lopes. Outra prova da interferência dos traficantes na
vida da população pôde ser sentida pelos membros da Associação Recreativa Comunitária
Amigos da Pedreira Prado Lopes – Arca-PPL. Há vários anos, a entidade desenvolve um
trabalho social dentro da PPL, que consiste em manter escolinhas de futebol e handebol
para os garotos da favela. As aulas são ministradas nas quadras do Colégio Municipal e, até
o final de 2003, beneficiavam cerca de 320 crianças e adolescentes moradoras da vila. Estas
mesmas crianças também costumavam praticar esportes em um campo de futebol que existe
dentro da vila. No entanto, moradores relatam que, desde 2002, este campo vem sendo
muito usado pelos traficantes da região, o que acabou afastando muitas crianças do local.
Os criminosos teriam, inclusive, separado um dia da semana para que o espaço seja usado
apenas pelo pessoal do “movimento”.
146
Em suma, a comunidade é obrigada a conviver com os traficantes e todo o seu regime
de terror. E qualquer possível mal-entendido que possa surgir entre as duas partes é
resolvida sempre pela ameaça, pela violência e pela arbitrariedade dos traficantes e suas
armas. Sem qualquer apoio de entidades governamentais, a comunidade da PPL demonstra-
se completamente impotente frente à ameaça imposta pelo tráfico.
E ainda que os traficantes procurem coibir a ocorrência de violências gratuitas e de
pequenos crimes na região da Pedreira, isso não acontece por qualquer tipo de preocupação
social. Através de seu farto armamento, as gangues exercem o controle sobre a violência
naquela comunidade, simplesmente porque a ocorrência de pequenos crimes poderia levar a
polícia até o local e atrapalhar os negócios. Como “xerifes” de sua área, na PPL os
traficantes não permitem estupros, não permitem roubo aos pequenos estabelecimentos
comerciais, assim como procuram, cada vez mais, afugentar os pequenos viciados que
consomem drogas nas ruas da favela. Mas este papel exercido por eles não pode, em
momento algum, ser confundido com uma possível preocupação social. Uma certa ordem é
imposta apenas para que o negócio da venda de drogas não seja prejudicado35.
E, apesar de se constituírem como um poder local, é preciso que fique claro que não é
possível atribuir a eles a legitimidade de um “Estado Paralelo”. Ainda que, de forma
semelhante ao Estado, seu poder repouse, em última instância, na força das armas que
possui e no monopólio da violência institucionalizada, não é possível atribuir às gangues o
papel de poder legitimamente constituído. O poder das gangues é mantido apenas pelo uso
constante e cada vez mais brutal da violência. Seu domínio é consolidado através da
ameaça e traz consigo toda a efemeridade que esta característica acarreta. Longe de
conseguirem se constituir em poder legítimo em meio à comunidade onde atuam, as
gangues da Pedreira simplesmente reproduzem uma versão torpe da relação dominador-
dominado com a qual todas elas algum dia tiveram contato ao lidar com o aparelho estatal.
35 Ver Anexo 2: Entrevistas com moradores da Pedreira Prado Lopes; e Anexo 3: Entrevistas com traficantes da Pedreira Prado Lopes.
147
5.6. A Polícia
Como foi dito anteriormente, a PPL se viu novamente em meio a uma guerra de
gangues em outubro de 2003, devido à libertação do traficante Roni Peixoto e a sua
conseqüente tentativa de retomar o comando do tráfico de drogas no aglomerado. Na
ocasião, os traficantes da “boca-de-fumo” conhecida como “Terreirão” eram os únicos da
favela que ainda resistiam ao domínio dos homens de Roni e, por isso, vinham travando
combates quase que diários pelas ruas da Pedreira. Assim como aconteceu com a série de
conflitos ocorrida em 1999, a guerra de 2003 também começava a ganhar espaços na mídia
e, por conseqüência, a despertar a atenção da polícia. Já em setembro de 2003, o Comando
de Policiamento da Capital ordenou o reforço do patrulhamento em toda a área da PPL e os
agentes do serviço de inteligência voltaram a produzir relatórios quase que diários sobre a
movimentação das gangues no aglomerado.
Prova disso é que, no dia 7 de outubro daquele ano, duas equipes do Batalhão de
Rondas Táticas Metropolitanas – Rotam - convocaram a imprensa para anunciar que
haviam feito uma incursão bastante proveitosa na Pedreira Prado Lopes, mais precisamente
na área do “Terreirão”. Bastante orgulhosos, os PMs exibiam um suposto traficante preso e
um pequeno arsenal que teria sido encontrado em sua casa: eram duas submetralhadoras
calibre 9 milímetros, duas escopetas calibre 12, um revólver calibre 38, uma granada, três
balanças de precisão, cinco tabletes de maconha, 200 gramas de crack e cerca de
R$2.500,00 em dinheiro. Como sempre acontece, a imprensa registrou o fato e, no dia
seguinte, todos os jornais noticiavam a grande apreensão feita pela polícia.
O que nunca chegou às páginas dos periódicos foi a seguinte declaração, feita ainda
naquele dia, pelo suposto traficante preso. Já longe da presença dos militares, ele revelou a
ponta de um esquema de corrupção, cobrança de propinas, extorsão e favorecimento ao
tráfico que estaria sendo promovido por alguns militares no aglomerado. Vale ressaltar que
as informações dadas por ele foram posteriormente confirmadas por vários outros
traficantes e até mesmo moradores da Pedreira, como revela o depoimento a seguir:
148
“Eu tô rodando de laranja. Os homi chegaram lá no ‘Terreirão’e falaram assim, esses mesmo aí que armaram o fragoroso: ‘Aí, vou mandá a real procês. A guerra docês tá chamando atenção demais, aí. A imprensa tá em cima e sabe cumé, né? Nós vamo tê que mostrá alguma coisa pra eles. Então cês separa aí umas arma e umas parada aí que a gente tá levando mesmo. E pode arrumá aí um docês pra rodá junto com as parada e pra segurá o flagrante’. A parada foi essa. Me pegaram de laranja porque eu só tinha um 10 na ficha. O resto ia tudo sê reincidente no 12 ou tava pedido de 121. A gente ainda jogô na cara deles que a gente já tinha feito o acerto com eles essa semana, mas eles falaram que não tava nem aí, que a imprensa tava de cima e que eles ia tê que mostrá serviço” (J. M. M. A., 25 anos, traficante da ‘boca do Terreirão’, preso no dia 07/10/2003).
A imagem que se tem da polícia parece ser o único ponto de convergência entre os
moradores da Pedreira Prado Lopes e os traficantes que lá atuam: para ambos, a polícia é
corrupta, desrespeitosa e extremamente violenta. Durante as entrevistas realizadas no
aglomerado, tanto moradores como traficantes manifestaram grande repúdio à postura
adotada por algumas equipes da PM que trabalham de forma mais constante na favela. De
acordo com eles, alguns policiais do 34o Batalhão e do Batalhão Rotam teriam participação
ativa nos negócios do tráfico. Através do pagamento semanal de propinas, os traficantes
estariam conseguindo ter acesso a informações confidenciais da polícia como, por exemplo,
as datas das operações que a PM pretende realizar no morro. O pagamento de propinas
também garantiria aos traficantes o direito de operar suas “bocas-de-fumo” sem serem
importunados pelos militares. Os PMs também são acusados de apreender armas e drogas
de uma gangue e revendê-las para outra dentro da própria favela36. Alguns poucos relatos
também dão conta de extorsões praticadas por policiais civis. No entanto, estas seriam
apenas ocasionais.
5.6.1. Polícia e Comunidade
Segundo alguns moradores, sempre circulou de boca em boca na Pedreira a
informação de que as gangues contavam com a conivência da polícia, principalmente a da
Militar. No entanto, a prova definitiva desta “parceria” teria vindo no início do segundo
36 Ver Anexo 2: Entrevistas com moradores da Pedreira Prado Lopes; e Anexo 3: Entrevistas com traficantes da Pedreira Prado Lopes.
149
semestre de 2003, quando uma emissora de televisão divulgou, em rede nacional, imagens
da venda e do consumo de drogas praticadas nas ruas da PPL, fatos que ocorriam em plena
luz do dia, nas imediações das ruas Araribá, Carmo do Rio Claro e avenida José Bonifácio
– mais precisamente na região da “crackolândia”. Nas imagens exibidas, viaturas das
polícias Civil e Militar passavam pelo local, sem sequer importunar traficantes e viciados
que realizavam seus negócios em plena luz do dia, como se estivesse em uma feira livre das
drogas.
A reportagem, que finalmente mostrava a realidade que tomava conta de algumas ruas
da Pedreira, caiu como uma bomba na cúpula da Segurança Pública do Estado. Um dia
depois da exibição das imagens, a Prado Lopes foi ocupada pela PM e a chefia da Polícia
Civil recomendou que, daquele dia em diante, todos os seus agentes prestassem especial
atenção a qualquer movimentação suspeita na região da “crackolândia”. Durante três
semanas, o tráfico da parte baixa do aglomerado viu suas atividades sensivelmente
prejudicadas pelo acirramento da ação policial. No entanto, o caso acabou caindo no
esquecimento e, aos poucos, a PM deixou as ruas do morro para voltar a realizar seu
ineficiente patrulhamento habitual.
Mas foi um episódio que veio logo depois que deu à população da Pedreira a real
dimensão do envolvimento de policiais com o tráfico da aglomerado. Tão logo a PM
desarmou seu esquema especial de policiamento, militares que já trabalham há anos na
favela teriam se reunido com os principais traficantes do morro e anunciado que, daquele
dia em diante, todas as “bocas-de-fumo” teriam que pagar uma quantia semanal, a título de
“proteção”37. Evidentemente, não há como oferecer provas materiais de que tal fato tenha
realmente ocorrido. No entanto, a mesma informação foi obtida durante entrevistas
realizadas separadamente, tanto com moradores, quanto com traficantes da Pedreira Prado
Lopes. O fato é que, em todas as falas, a participação de policiais no tráfico é muito
ressaltada, como podemos verificar no depoimento de um dos moradores da Pedreira:
37 Ver Anexo 1: Entrevistas com líderes comunitários da Pedreira Prado Lopes.
150
“Lembra daquele episódio da ‘crackolândia’, quando a Globo mostrou aquelas imagens de um tanto de noiados na Araribá? Pois é, a imprensa caiu em cima e choveu de polícia na Pedreira durante mais de um mês. Mas foi só a poeira baixar que a polícia saiu. Aí, uma turma de policiais que trabalha há muito tempo aqui na Pedreira sentou com os traficantes e negociou com eles um pagamento semanal pra dar sossego. Cada ‘boca’ iria ter que pagar uma quantia X para não ser incomodada pela polícia de novo. Desde esse dia, tem ‘boca’ na Pedreira que paga coisa em torno de R$10 mil por semana. E todo mundo sabe quem são esses policiais. Tem um lá que fala claramente pra quem quiser ouvir que quem manda ali é ele. Que ele é o príncipe e que a mulher dele vai ter casamento de princesa. E que quem vai pagar são os traficantes. Essa é a polícia que a gente tem na Pedreira” (S. A., 28 anos, funcionário público e morador da Pedreira Prado Lopes, em 20/09/2003).
Por mais absurda que esta consideração possa parecer, é preciso ressaltar que o
fortalecimento das gangues e sua ação praticamente livre não são o principal problema
decorrente da participação de alguns policiais no tráfico da PPL. O maior estrago
provocado por esta conivência policial para com os traficantes é de natureza moral. Digo
isso porque, ainda que de forma arbitrária ou violenta, a polícia foi, ao longo dos anos, o
único braço do Estado a subir a Pedreira. E, a partir do momento em que até mesmo este
segmento do Governo se torna cúmplice da brutalidade das gangues, qualquer resto de
esperança se perde e, ao povo, só resta o silêncio e a resignação.
Em todas as entrevistas em que o tema da corrupção policial é abordado – de forma
espontânea ou estimulada – observa-se que o envolvimento de alguns policiais com o
tráfico acaba por destruir a já desgastada imagem que esta instância do poder público
possui na favela. A população sente-se completamente abandonada, chegando ao ponto de
preferir negociar pessoalmente com os traficantes algumas condições básicas de
convivência. Prova disso pôde ser obtida em dezembro de 2003, quando lideranças
comunitárias se reuniram com os chefes das gangues de Roni Peixoto e do “Terreirão” e
simplesmente imploraram uma trégua nos combates que ambas as facções vinham travando
desde outubro. O acordo, que foi negociado em um território neutro dentro da favela,
estipulava que os combates deveriam ser suspensos pelo menos até o início de 2004, depois
das festas de final de ano38, como confirma o depoimento a seguir:
38 Ver Anexo 1: Entrevistas com líderes comunitários da Pedreira Prado Lopes.
151
“Não estava mais dando para suportar a situação que estava aqui na Pedreira. O pessoal se reuniu com os meninos do movimento e pediu para eles pararem pelo menos até passar Natal e Reveillon. Do jeito que tava não dava pra sair de casa, não dava mais nem pra sair pra trabalhar. Era tiro dia e noite, dia e noite, ninguém mais tava agüentando. Outro dia mesmo, um tanto de gente foi ferida com bala perdida. Uma pegou até mesmo em uma funcionária lá do Odilon Behrens. E a gente sabe que a polícia não tá nem aí porque, enquanto for pobre que estiver morrendo, pra eles tá bom. Isso fora os que levam grana, né? Aí o pessoal achou por bem procurar os meninos e pedir uma trégua pelo menos pra gente poder curtir o Natal em paz” (S. A., 28 anos, funcionário público e morador da Pedreira Prado Lopes, em 19/12/2003).
Obviamente, este acordo entre traficantes e moradores também chegou às páginas dos
jornais e, mais uma vez, repercutiu de forma catastrófica na cúpula da Segurança Pública.
No mesmo dia em que os principais jornais da capital publicaram a notícia, o Comando de
Policiamento da Capital ordenou uma nova ocupação da PPL, desta vez com 125 homens
revezando-se em turnos de 24 horas. Até mesmo um “Brucutu” – veículo militar com
blindagem reforçada, geralmente utilizado para dispersar multidões - foi colocado na
entrada da rua Araribá, para coibir a ação das principais “bocas-de-fumo” da favela.
Como das outras vezes, a ocupação durou pouco mais de uma semana e não produziu
qualquer resultado expressivo. Ao contrário disso, a violência e a arbitrariedade de alguns
militares colocou boa parte da população contra a ação da PM e gerou várias denúncias de
espancamentos, agressões e torturas. Ao responder de forma reativa, como aliás sempre faz,
a polícia apenas aumentou o abismo que existe entre ela e a população da Pedreira. A cada
ação como esta, nota-se que diminui a já pouquíssima confiança que a comunidade da PPL
deposita na aplicação de políticas públicas para resolução dos problemas ligados à violência
e à criminalidade.
Atualmente, graças a vários anos de ações intempestivas, mal planejadas e
simplesmente reativas às pressões da mídia, a imagem que a polícia parece ter junto à
comunidade da Pedreira é a de um órgão meramente repressor, violento e corrupto. Ao
invés de realizar seu trabalho com inteligência e aumentar sua credibilidade junto à
população local, a polícia acaba por se tornar apenas mais um agente de desagregação
social.
152
5.6.2. Polícia e Traficantes
Se, por um lado, a desorganizada e corrupta ação policial no morro serve para acabar
de desmobilizar e calar a voz da comunidade da Pedreira, por outro, ela alimenta de forma
sem igual a estrutura física, financeira e moral das quadrilhas envolvidas com o tráfico.
Durante entrevistas realizadas com traficantes, vários relataram a existência de alguns
poucos grupos de PMs que convivem quase que diariamente com as gangues, em uma
rotina de total promiscuidade. Segundo eles, é muito comum a prática de extorsão das
quadrilhas, e isso acontece aos moldes do que fazia a máfia ao vender sua inoperância a
título de “proteção”. Esta cobrança já teria, inclusive, se tornado uma relação consolidada
entre os dois grupos, com valores previamente acertados e datas de pagamento acertadas
com antecedência.
A venda das armas apreendidas com uma quadrilha para outro grupo rival também é
muito relatada pelos rapazes que participam das gangues. Segundo eles, quando uma equipe
corrupta apreende uma arma com o membro de um grupo, vende-a para o integrante de
outra quadrilha ao invés de levá-la para uma delegacia. O mesmo estaria acontecendo com
pequenas quantidades de drogas, que acabam não saindo do morro. Vejamos o depoimento
de um traficante:
“É tudo uma cambada de safado véio... Esses verme só qué sabê de mordê nós. E morde mesmo! Morde toda semana, todo dia, direto e reto! Chega aqui tudo viradão perguntando ‘cadê o da semana’, querendo sabê onde é que tá as onça – notas de cinqüenta reais. É porque se você dá pra eles mixaria ainda leva tapa na cara. Eles esculacha mesmo, véio, qué nem sabê não... Eles fala que se num quisé roda no 12 tem que pagá. E mesmo quando eles num pega trepado com nada, eles planta a droga e ferra mesmo. Agora, quando eles vem na boca é diferente. É diferente porque eles fica mais coei, tá ligado? Porque aí eles sabe que se esculachá demais o tempo fecha mesmo pro lado deles. Mas se pegá sozinho na rua aí é só humilhação. Eles leva mesmo! E é tudo na mão grande. E a gente tem que pagá, tá ligado? Porque se não pagá eles fica de embaça e não tem jeito de descolá o nosso. E nosso negócio é só descolá o nosso, a gente não qué fazê mal pra ninguém não. Só que esses polícia é tudo um bando de verme, de safado. É tudo safado, véio, tudo safado, ladrão. Tinha é que sentá o dedo neles tudo!” (W. R. O., 21 anos, traficante da parte baixa da Pedreira Prado Lopes, em 13/08/2003).
153
Se na população de um modo geral o envolvimento de alguns policiais com o tráfico
alimenta a descrença no poder público e mina qualquer tipo de iniciativa que a comunidade
poderia ter no sentido de se organizar contra as quadrilhas, nos traficantes, essa
participação desperta o sentimento de completa impunidade e onipotência. A partir do
momento em que as quadrilhas sentem que são capazes de corromper e aliciar o único
braço institucionalizado que poderia combatê-las, elas se sentem intocáveis.
A participação ativa de alguns policiais no tráfico faz com que as quadrilhas da
Pedreira rompam completamente o último fio de respeito que ainda poderia haver pelo
poder público constituído. Elas se tornam senhoras de seu território e sentem-se livres para
impor suas leis, seus caprichos e sua brutalidade. A partir do momento em que as
quadrilhas passam a contar com a omissão, a conivência e, até certo ponto, o apoio do
único braço do Estado que chega à favela, elas se tornam imbatíveis. Uma vez que a
população local está completamente aterrorizada e socialmente desmobilizada, a polícia
significaria a única ameaça real que poderia haver ao poderio das quadrilhas. No entanto,
até ela foi comprada, aliciada e corrompida.
A própria maneira como os garotos do tráfico se referem à polícia já é um indicativo
claro da relação que se estabeleceu entre as duas partes. Durante as entrevistas, aparecem
muito expressões como “verme”, “safado”, “bandido”, “gambé”, “porco fardado”, entre
outras. Longe de representarem o Estado de Direito, os policiais são vistos simplesmente
como um inimigo ou um inconveniente do qual as gangues não podem se livrar. Uma
espécie de “mal necessário”, um “osso do ofício”. Entre os traficantes da PPL, é muito
difundida a idéia de que o dinheiro pode comprar a impunidade; circula no imaginários dos
traficantes a idéia de que só vai preso quem não tem dinheiro para “dar um boi pros homi”.
Entre policiais corruptos e as gangues, acaba por estabelecer-se um promíscuo jogo de
poder, cujas regras são reajustadas à medida em que a quadrilha cresce e ganha poderio
econômico e ascendência sobre a comunidade. Quanto maior e mais poderosa a quadrilha,
mais ela tem que pagar para a polícia. Para o membro de uma grande gangue, tudo é
possível, uma vez que o único empecilho que poderia existir à realização de qualquer
impulso é facilmente manipulável pelo dinheiro.
154
CAPÍTULO 6: Análise da Violência e da Criminalidade na Pedreira Prado Lopes
“Aqui é onde o filho chora e a mãe não escuta, moço”. (J.G.F., 65 anos, catador de papel, morador da Pedreira Prado Lopes).
Uma vez colocado todo este cenário, faz-se necessário investigar quais seriam as
possíveis causas do surgimento e da consolidação do atual regime de violência e medo
imposto pelo tráfico de drogas na Pedreira Prado Lopes. Mais do que isso, torna-se
fundamental explicitar agora em qual medida determinados mecanismos históricos,
ambientais, sociais e culturais presentes na PPL interagiram entre si, no sentido de tornar
possível a existência da realidade que foi anteriormente descrita.
Como afirmamos, ainda no primeiro capítulo deste trabalho, acreditamos que todos
estes fatores precisam ser levados em conta porque, após observar de perto a realidade do
tráfico e das gangues da Pedreira, torna-se impossível explicar o surgimento da violência e
da criminalidade naquela localidade, simplesmente estabelecendo uma relação direta entre
pobreza e criminalidade, como se uma coisa levasse necessariamente à outra. Por mais
tentadora que esta explicação possa parecer, acreditar que dezenas de jovens da PPL foram
levados ao crime unicamente pelo fato de serem pobres significa deixar de enxergar as
milhares de crianças e adolescentes que vivem em condições mais do que precárias naquela
favela e, ainda assim, não optaram pela via criminosa como saída para seus problemas.
Além disso, também significa desprezar todo um universo de significações e representações
simbólicas do qual o mundo do tráfico e das gangues está imbuído naquela localidade
O tráfico de drogas e as quadrilhas ligadas à sua exploração não surgiram na Prado
Lopes apenas porque ali vivia uma comunidade pobre. Tanto que qualquer conversa um
pouco mais demorada com os garotos que optaram por esta via criminosa mostra, de
maneira inapelável, que a entrada para o “movimento” não representa para eles apenas uma
forma de ganhar dinheiro fácil. É óbvio que a possibilidade de lucro rápido também atrai
estes garotos. Mas, se apenas isto fosse fator determinante, creio que cada uma das
incontáveis vilas e favelas de Belo Horizonte enfrentaria problemas nesse sentido. E não é
o que se observa, uma vez que vários levantamentos estatísticos já demonstraram que a
155
capital mineira possui apenas seis favelas efetivamente violentas e assoladas pela
brutalidade das gangues ligadas ao tráfico – entre elas a própria PPL (BEATO et al., 2001).
Além de desmistificar a idéia de que existiria uma ligação direta entre pobreza e
criminalidade, é preciso deixar bem claro que, por mais incrível que pareça, também não é
possível estabelecer um vínculo direto entre a presença do tráfico de drogas em uma
localidade e a ocorrência de crimes violentos. O maior exemplo disso é a favela Sumaré -
que assim como a Pedreira está localizada na região Noroeste de BH. De acordo com
levantamentos da Polícia Civil e do Serviço de Inteligência da Polícia Militar, a Sumaré é
hoje um dos maiores pontos de tráfico de cocaína de Belo Horizonte. Só que,
diferentemente do que ocorre na PPL, uma única facção criminosa gerencia todo o
“movimento” naquela localidade e cuida para que a droga que chega ali seja distribuída
para vários outros aglomerados da capital. Na Sumaré, passam-se vários meses sem que a
polícia registre qualquer tipo de ocorrência de crimes violentos. Ou seja, o exemplo da
Sumaré constitui um claro indicativo de que vários fatores devem ser analisados antes que
se estabeleça uma relação direta entre a presença do tráfico de drogas em uma localidade e
a existência de criminalidade violenta na mesma. Parece-me que a ocorrência de crimes
violentos está muito mais associada à desorganização do tráfico e à existência de várias
quadrilhas que disputam seu domínio do que a sua mera presença em meio a uma
comunidade, como indicam estudos realizados por Misse (1997) e Zaluar (1994).
A própria Pedreira Prado Lopes, que é notoriamente o maior centro de vendas de
crack de BH, registrava relativamente poucos homicídios até pouco tempo atrás, se
comparada com as demais favelas violentas da capital. Entre os anos de 1998 e 2003, por
exemplo, 45 pessoas foram assassinadas na PPL. No mesmo período, foram 160 mortes na
favela do Cafezal, 123 no Morro das Pedras, 141 no Morro do Papagaio, 126 na favela do
Taqüaril e 87 na Cabana do Pai Tomás. Ainda de acordo com levantamentos da Polícia
Civil, praticamente todos estes crimes foram cometidos por membros de gangues ligadas ao
tráfico de drogas, em meio às intermináveis guerras que estes grupos travam entre si pelo
controle da atividade em suas respectivas vilas e favelas (DCCV, 2002). Portanto, parece-
nos bastante coerente dizer que não é simplesmente o tráfico de drogas em si o grande
responsável pela imensa quantidade de homicídios registrados nas favelas citadas
156
anteriormente, mas sim a grande desorganização muitas vezes inerente a este mercado que,
quando não possui um comando único, é sempre disputado a bala por várias gangues.
Ainda que não exista bibliografia específica sobre o assunto, não é difícil inferir que o
número relativamente baixo de homicídios registrado na Pedreira Prado Lopes até 2003
deveu-se justamente ao alto nível de organização atingido pelas gangues que traficam
drogas naquele morro. Na PPL, diferentemente do que aconteceu nas demais favelas
violentas de BH, as gangues sempre tiveram lideranças fortes e conseguiram demarcar, de
forma razoavelmente bem definida, suas áreas de atuação. Isso faz com que o aglomerado
fosse palco de relativamente poucos confrontos entre os grupos e, conseqüentemente, de
poucas mortes. Nas demais favelas violentas da capital, as quadrilhas não conseguiram
atingir um nível mínimo de organização e entraram em uma rotina de enfrentamentos que
deixa para trás de si um rastro de centenas de assassinatos todos os anos.
Nas demais favelas violentas, parece que os grupos não possuem lideranças capazes
de dialogar entre si e não conseguiram delimitar suas áreas de atuação – o que faz com que
os membros de uma gangue invadam constantemente o território da outra. Na PPL, por
exemplo, o tráfico sempre foi dominado por uma só grande quadrilha, que era comandada
pelo traficante Roni Peixoto. Ocasionalmente, assistiu-se ao surgimento de alguns grupos
dissidentes, que se organizaram em novas quadrilhas e tentaram impor seu próprio domínio.
Mas, pelo menos da Pedreira, tal fato é exceção e não regra. Nas demais favelas violentas, a
desorganização do tráfico faz com que a polícia tenha que lidar com o aparecimento de
várias gangues que, dividindo o espaço mínimo de um aglomerado, mantêm entre si
intermináveis ciclos de violência e morte. Um exemplo disso pode ser visto em um
relatório interno produzido pelo serviço de inteligência do Batalhão Rotam que apontava, já
em 2001, a existência de cinco gangues diferentes atuando apenas na favela Cabana do Pai
Tomás.
157
6.1. Aspectos a serem analisados e estruturas de abordagem
Considerando-se especificamente o caso da Pedreira, faz-se necessário identificar e
explicitar como e em qual medida determinados fatores históricos, ambientais, sociais e
culturais presentes na favela interagiram e ainda interagem entre si no sentido de tornar
possível o surgimento de gangues ligadas ao tráfico de drogas naquela localidade e a
consolidação das mesmas nos moldes de como se vê nos dias de hoje. Durante o trabalho
de pesquisa, ficou muito claro que o surgimento e a consolidação do tráfico de drogas e das
quadrilhas envolvidas na sua exploração não ocorreu do dia para a noite naquela localidade.
Ao contrário, foi um processo lento e gradual, cuja configuração consumiu pelo
menos três décadas. Nesse sentido, é possível observar que uma série de fatores e
circunstâncias operaram conjuntamente, no sentido de tornar possível a realidade que se
observa hoje na PPL. E, quando digo diversos fatores, refiro-me especificamente a todas
aquelas características históricas, geográficas, culturais, sociais e estruturais que, segundo
as teorias da “Desorganização Social” e da “Eficácia Coletiva”, acabam por constituir um
ambiente amplamente favorável para o surgimento da violência e da criminalidade em
comunidades pobres dos grandes centros urbanos(SHAW & MCKAY, 1942; BURSIK &
GRASMICK, 1993; SAMPSON et al., 1997).
Como já afirmamos no início deste trabalho, a teoria da “Desorganização Social”
defende a idéia de que o crime tende a se manifestar com mais intensidade em comunidades
que apresentam concentração de desvantagens econômicas e sociais, altas taxas de
rotatividade residencial e uma grande heterogeneidade populacional. Todos estes fatores
concorreriam para diminuir a coesão social daquela comunidade e, conseqüentemente, a
capacidade de resolver internamente seus próprios problemas e controlar o surgimento da
violência e da criminalidade. De acordo com Shaw e McKay, em uma vizinhança
socialmente desorganizada, os indivíduos possuem um baixíssimo grau de vínculo moral
para com a sua própria comunidade. Conseqüentemente, os custos morais de se cometer um
crime também diminuem sensivelmente.
Por sua vez, a teoria da “Eficácia coletiva”, pode ser considerada uma extensão ou
um refinamento da idéia original proposta por Shaw e McKay. Nela propõe-se a idéia de
que o crime se manifestaria com mais intensidade em comunidades que possuem um baixo
158
grau de coesão social e, principalmente, um baixo grau de eficácia coletiva. Ou seja, a
violência e a criminalidade seriam fruto da incapacidade que uma comunidade tem de
estabelecer uma gama de valores comuns entre seus membros e da incapacidade que esta
mesma comunidade tem de controlar o comportamento de seus indivíduos. Coloca-se a
idéia de que a falência de instâncias de socialização primária e controle informal como a
família, a escola, a igreja e as associações comunitárias impossibilitem a comunidade de
controlar o comportamento de seus indivíduos, o que acaba facilitando o surgimento do
crime.
Antes de seguir adiante, é preciso fazer uma ressalva. Ambas as teorias que
fundamentam este trabalho foram elaboradas dentro do contexto histórico, cultural e social
norte-americano de várias décadas atrás. A teoria da “Desorganização Social”, por
exemplo, teve seu embrião gerado na década de 1930, pelos sociólogos Clifford Shaw e
Henry McKay. A teoria da “Eficácia Coletiva”, por sua vez, é mais recente: data das
décadas de 80 e 90. Mas ainda assim foi elaborada levando em conta o contexto social
urbano dos Estados Unidos.
Desta maneira, acreditamos que será necessário fazer todo um trabalho de
transposição e adaptação, no sentido de tornar estas teorias plausíveis para o atual contexto
sócio-cultural brasileiro, mais precisamente para o cenário que se observa hoje na Pedreira
Prado Lopes. De ambas as teorias, alguns aspectos serão deixados de lado, enquanto outros
ganharão mais importância ou serão adaptados para nossa realidade. No entanto, ainda
acredito que as idéias que fundamentam ambas as linhas de raciocínio podem abalizar uma
análise bastante frutífera do processo de surgimento e consolidação da violência do tráfico
de drogas e das gangues na PPL.
6.2. Localização geográfica, configuração ambiental e logística do tráfico
Em um primeiro momento, não há como deixar de abordar a localização privilegiada
que a PPL oferece para a atividade do tráfico. Como já descrevemos anteriormente, a favela
fica na região Noroeste de Belo Horizonte, muito próxima ao centro da capital, entre os
bairros Santo André, São Cristóvão, Lagoinha e Concórdia. Em sua margem Leste, a PPL é
tocada pela avenida Presidente Antônio Carlos, um dos mais movimentados corredores de
159
trânsito da cidade e que faz a ligação entre as regiões Norte e Central de BH. Assim que os
carregamentos de droga chegam à Pedreira, eles encontram escoamento fácil para qualquer
localidade da capital.
Além de a localização geográfica da PPL favorecer a distribuição dos carregamentos
de drogas que chegam à favela, a própria configuração ambiental assumida pela parte
interna da favela estimula a proliferação do tráfico no regime de varejo e torna
extremamente difícil o seu combate. Para a polícia, fica muito difícil reprimir a venda de
drogas, uma vez que o interior da Prado Lopes assemelha-se a um intrincado labirinto
formado por vielas bastante estreitas e mal iluminadas. Grande parte das ruas não possui
mais do que dois metros de largura, o que não possibilita a passagem de veículos ou
viaturas. Além disso, a infinidade de barracões e casebres existentes na favela faz com que
seja praticamente impossível saber quais imóveis servem de esconderijo para traficantes,
armas e drogas.
Para as quadrilhas de traficantes, em compensação, a configuração da PPL oferece
todas as condições adequadas para a manutenção de um negócio ilegal. As poucas e
estreitas entradas da favela podem ser facilmente monitoradas, o que faz com que os
criminosos saibam exatamente quem entra e quem sai do morro. As vielas e ruas estreitas,
ao mesmo tempo em que impedem a subida de viaturas, possibilitam fugas rápidas no caso
da chegada de policiais ou traficantes inimigos. Nesse sentido, aliás, o conhecimento de
todas as entradas, saídas, passagens e atalhos da favela oferecem aos traficantes uma
vantagem considerável sobre a ação policial. O próprio ambiente da favela, com toda a sua
configuração opressiva, miserável, caótica e desorganizada cria um ambiente altamente
criminógeno e oferece uma vantagem psicológica considerável às gangues que ali nasceram
e foram criadas.
Dentro da Pedreira, as gangues ou quadrilhas estão em seu ambiente natural. Foi lá que
elas surgiram e é ali o seu território. Os traficantes se movimentam dentro da favela com
uma facilidade e rapidez incríveis. Eles conhecem com muita precisão cada atalho, cada
passagem, cada esconderijo e cada barracão que pode servir como refúgio em um
momento de perigo. Cada família da favela é conhecida e pode ser coagida a servir
como aliada, no caso de uma entrada repentina da polícia. Durante o trabalho de
160
pesquisa, aliás, vários foram os relatos que apontaram nesse sentido39, ocasionalmente,
muitas famílias da favela são obrigadas a guardar armas e drogas em suas casas, uma
vez que, por estarem acima de qualquer suspeita, não terão seus barracões revistados no
caso de uma batida policial.
Os pouquíssimos telefones públicos que existem na região, justamente aqueles que
poderiam servir para a população denunciar à polícia a atividade das gangues, ficam no
entorno da vila. Ainda assim, alguns deles foram propositalmente danificados pelos
traficantes e, os que sobraram, ficam instalados ao lado de determinadas “bocas-de-fumo”,
o que impede o seu uso como instrumento de denúncia. É o caso de telefones públicos
instalados nas proximidades da rua Serra Negra, na parte alta da favela, e nas ruas Carmo
do Rio Claro e na esquina da avenida José Bonifácio com rua Araribá, principais pontos de
venda de drogas das gangues da parte baixa do aglomerado. Ou seja, os poucos telefones
públicos que existem na PPL acabam por ser de maior serventia aos traficantes do que à
população.
O mesmo pode-se dizer com relação à iluminação pública da favela. Além de a
Pedreira já ser um local naturalmente mal iluminado e abafado, em alguns pontos do morro,
os traficantes ainda se deram ao trabalho de estourar as lâmpadas dos postes, para dificultar
a visibilidade do local. Pode-se observar que determinados becos dentro da favela são
completamente escuros à noite, devido a este expediente. Durante o trabalho de pesquisa na
favela, muitas foram as reclamações neste sentido. Moradores dizem que não é raro ver
alguns rapazes atirando nas lâmpadas, logo que elas são trocadas por agentes da Companhia
Elétrica. Isso prejudica sensivelmente a locomoção da polícia nestes pontos da favela, o
que, em contrapartida, não acontece com as gangues, que já conhecem minuciosamente
estes locais.
Em suma, pode-se dizer que a localização estratégica com relação ao centro de Belo
Horizonte e própria configuração ambiental interna da PPL favorecem bastante a
proliferação do tráfico de drogas e das gangues ligadas à sua exploração. Em medida
inversamente proporcional, também se pode dizer que estes dois fatores prejudicam
sensivelmente o trabalho de repressão, tanto ao tráfico quanto às gangues.
39 Ver Anexo 3: Entrevistas com traficantes da Pedreira Prado Lopes.
161
Além de beneficiar as gangues do tráfico e prejudicar a ação da polícia, a
configuração ambiental caótica e desorganizada da PPL também oferece graves empecilhos
à formação de um corpo social mais coeso, um dos principais aspectos ressaltados pela
teoria da “Eficácia Coletiva”. Não existem na favela muitos espaços de convivência
comum, o que dificulta muito a integração entre os moradores e torna muito prejudicada a
noção de espaço público. O conjunto formado pela avenida José Bonifácio e pela rua
Araribá, por exemplo, tornou-se um dos mais movimentados pontos de tráfico de drogas da
favela, o que afugentou os moradores que lá costumavam se encontrar. O campo de futebol
que existe dentro da vila, que antigamente servia como espaço de confraternização de
famílias e grupos de crianças, atualmente é visto como um ponto de encontro da
marginalidade da favela e evitado pela maioria dos moradores.
O prédio no qual a Prefeitura estuda a implantação de um centro de referência do
cidadão, localizado na rua Araribá, fica justamente em frente ao local que acabou se
tornando o principal campo de batalhas entre os traficantes da região. Devido ao fato de
ficar bem na fronteira entre o território ocupado pelas quadrilhas da parte baixa e as da
parte alta, o local é palco de enfrentamentos diários. Não raramente, a fachada do abrigo
municipal é metralhada em plena luz do dia, por adolescentes que trocam tiros sem se
importar com quem possa estar nas ruas da favela.
A própria praça Escravo Isidoro, que fica em uma região central da favela e abriga o
posto de saúde, vem sendo evitada pelos moradores, uma vez que suas imediações são
palco constante de enfrentamentos entre as quadrilhas do morro. O local ainda é bastante
movimentado, mas os moradores garantem que, aos poucos, vem deixando de sediar as
festas que em outros tempos eram feitas na favela. Aos poucos, devido ao crescimento da
violência do tráfico e ao processo de verticalização da favela, assiste-se na Pedreira o
recrudescimento dos espaços de convivência comum, o que restringe a noção simbólica de
lugar público ou vizinhança e faz com que os moradores sejam praticamente alijados do
sentimento de pertencimento a uma comunidade. Na Pedreira, a violência do tráfico e a
extrema concentração de desvantagens estruturais e sócio-econômicas faz com que seja
praticamente impossível a formação de um corpo social coeso e, conseqüentemente, de uma
comunidade capaz de resolver internamente seus próprios problemas.
162
6.3. Desorganização Social e Eficácia Coletiva
6.3.1. Histórico
Além de fatores geográficos e ambientais, diversos fatores históricos e sociais
também contribuíram para que a realidade do tráfico e das quadrilhas tomasse conta da
Pedreira Prado Lopes. Pode-se até mesmo dizer que a própria história de como a favela se
formou e os traços culturais adquiridos por sua comunidade fizeram com que a violência do
tráfico encontrasse um terreno fértil para se proliferar.
Como já descrevemos anteriormente, a PPL surgiu nas primeiras décadas do século
XX, como uma espécie de vila-dormitório para os operários que trabalhavam na imensa
pedreira que fornecia matéria prima para a construção de Belo Horizonte. Vindos dos mais
diversos cantos do estado e do país, estes operários acabaram por constituir uma vila que,
historicamente, sempre foi marcada pelas condições subumanas de moradia e pela desunião
de sua comunidade. Estudos sobre a história da PPL demonstram claramente que os
primeiros moradores do local não se fixaram ali com a intenção de construir uma
comunidade. Não se estabeleceram naquele terreno íngreme querendo constituir uma
vizinhança. Eles simplesmente levantaram ali uma moradia improvisada, onde poderiam
descansar após um massacrante dia de trabalho semi-escravo na Pedreira que pertencia à
família Prado Lopes. Esta característica vai ao encontro daquilo que é colocado pela teoria
da “Desorganização Social”, segundo a qual a violência e a criminalidade encontrariam um
terreno mais fértil para se manifestar em comunidades marcadas pela baixa coesão social,
que seria provocada pelas altas taxas de rotatividade residencial e pela heterogeneidade da
população local. Nas primeiras décadas do século XX, era exatamente este quadro que se
via na PPL.
Justamente por isso, pode-se dizer que, durante os primeiros anos de sua formação,
nunca houve na Pedreira nenhum movimento por parte da comunidade no sentido de
constituir associações de moradores ou qualquer tipo de entidade representativa. Tanto que
as primeiras conquistas obtidas pela população local se deram através de relações pessoais
e clientelistas que determinados moradores mantinham com políticos da época, que já se
aproveitavam da oportunidade para constituir seus currais eleitorais na recém criada capital
163
mineira. A instalação de torneiras públicas, a chegada de luz elétrica e a pavimentação das
primeiras ruas da vila não se deram em decorrência da mobilização da comunidade. Todas
estas conquistas vieram de forma esporádica e desordenada, tanto que, até hoje, nem todos
os moradores tiveram acesso pleno a estas benfeitorias. Várias famílias da PPL ainda
sofrem com esgotos correndo a céu aberto, com ruas não pavimentadas, com instalações
elétricas improvisadas e diversos outros problemas que afetam sensivelmente as condições
de salubridade da vila.
E toda esta realidade fez com que, historicamente, a comunidade da Pedreira se
tornasse profundamente descrente com relação à atuação do poder público, das entidades
representativas e da força do associativismo. Ela se tornou descrente de si mesma. O
próprio processo de formação das associações comunitárias da Pedreira conta de forma bem
clara a história de desunião, desmobilização e desorganização social daquela comunidade.
Apesar de ter se formado já nas primeiras décadas do século XX, a PPL só vê nascer sua
primeira associação comunitária – A União Prado Lopes - já nos anos 70, mais
precisamente em 1974. Ainda assim, o surgimento desta entidade no morro esteve
intimamente ligado à atuação da Igreja Católica que, com muitas dificuldades, procurava
conscientizar a população local sobre a importância de sua maior participação nos assuntos
da vila. Coloca-se aqui, portanto, justamente um dos aspectos mais importantes apontados
por Sampson et al. (1997) na teoria da “Eficácia Coletiva”, quando ele afirma que a
falência de instituições de socialização e controle como as associações de bairro criariam
um terreno fértil para o surgimento do crime.
No que se refere aos aspectos evidenciados anteriormente, vejamos, a seguir, a citação
de um trecho do relatório da pesquisa realizada pela Prefeitura (Urbel, 1998):
“Na década de 70 foi criado pelo governo estadual o PRODECOM - Programa de Desenvolvimento de Comunidades. O programa teve larga atuação na Pedreira Prado Lopes ao longo dos anos 70 e 80, trazendo muitas melhorias. Ele funcionava através das associações comunitárias locais, transferindo verbas para elas, que deveriam ser revertidas em prol da comunidade. A União Prado Lopes recebeu muitas verbas desse programa. As melhorias ocorridas incluem alargamento e pavimentação de becos, rede de esgotos feita pelos moradores, convênios para ligação de água e luz e outras. Só neste período os moradores puderam fazer sua rede de esgotos, através de mutirão dos moradores e verbas do PRODECOM. Apesar das melhorias, a população faz muitas
164
reclamações a respeito da associação neste período, alegando incompetência e corrupção na administração dos recursos recebidos. De fato, de acordo com todos os entrevistados, o envolvimento e a participação da população como um todo nas questões da vila sempre foi baixo, o que demonstra que a associação nunca obteve uma boa representatividade. Havia também muito estranhamento e desconfiança em relação ao contato que era estabelecido entre os membros da associação e o PRODECOM, inclusive pelo fato de existir remuneração para os representantes comunitários. O já citado descrédito da população à política reforçava a desconfiança e a apatia da maioria, o que fica claramente visível pelas pesquisas realizadas - canais de reivindicação da comunidade: 57,4 % não reivindica; 28,4 % não sabe. Participação em instituições e movimentos locais: 86 % não participa ou freqüenta” (URBEL, 1998).
Observa-se claramente que todo o histórico de desunião e desmobilização da
população da Pedreira Prado Lopes tem grande parte de sua origem na experiência de lidar
com o completo abandono de um Estado que, longe de oferecer as condições básicas para a
consolidação daquele povo, sempre mostrou sua faceta mais omissa, clientelista e
opressiva. Na medida em que foram se consolidando enquanto uma comunidade de fato, os
moradores da PPL sempre obtiveram suas conquistas de forma descoordenada e
independente de qualquer ajuda governamental. Mas, ao contrário do que era de se esperar,
esta vida de lutas e sofrimento não serviu para unir a população local em torno de um ideal
comum. A experiência extremamente negativa com o Estado fez com que os moradores da
Prado Lopes se tornassem descrentes, desesperançosos e visivelmente desmobilizados. Não
se pode falar em coesão social na Pedreira.
E razão não lhes falta para isso. Nota-se que os únicos braços do Estado a subir as
intrincadas ruas da Pedreira são as polícias Civil e Militar. E, como foi dito anteriormente, a
experiência diária dos moradores da favela com os policiais não é das melhores. Durante o
trabalho de pesquisa, a grande maioria dos entrevistados tinha uma história de corrupção
policial para contar. São casos que vão desde a mais simples abordagem desrespeitosa nas
ruas da favela até denuncias gravíssimas de torturas, humilhações, invasões de domicílios,
extorsões, roubos, participação no tráfico de drogas e até mesmo execuções sumárias. E, a
partir do momento em que o único braço do Estado presente na favela deixa de ser uma
entidade minimamente confiável, não resta mais a quem recorrer.
165
A imagem corrupta e violeta que a polícia adquiriu na Prado Lopes tem o poder de
destruir, de antemão, qualquer tipo de iniciativa que a população local pudesse pensar em
ter contra as quadrilhas que lá gerenciam o tráfico de drogas. A partir do momento em que
corre no imaginário da comunidade que só é preso aquele traficante que deixa de pagar as
propinas semanais, como é possível convencer os moradores a denunciar a ação dos grupos
armados à polícia? Como é possível querer que a comunidade se posicione contra os
traficantes, quando corre na favela a história de que existem policiais militares fardados
fazendo escolta para carregamentos de drogas que chegam ao morro? Os moradores
simplesmente não têm a quem recorrer. Não encontram o suporte necessário a qualquer
iniciativa que possam vir a propor para combater o problema das gangues e do tráfico.
É muito fácil perceber que qualquer programa de combate à violência que venha a ser
implantado na PPL deverá, antes de mais nada, combater a corrupção de alguns policiais
que trabalham na favela e investir na reconstrução da imagem da polícia. Logo nos
primeiros contatos com moradores da região, nota-se facilmente que as polícias não
possuem qualquer credibilidade junto à comunidade local. Arraigou-se no imaginário da
população da Pedreira uma imagem extremamente negativa da ação policial, o que,
conseqüentemente, acarretará em uma resistência muito grande a qualquer programa de
segurança que venha a se propor naquele local.
6.3.2. A Falência das Instituições de Socialização e de Controle
Em suma, observa-se que toda a história de desmobilização da população da Pedreira
abriu, naquela favela, lacunas sociais que possibilitaram o surgimento e o fortalecimento de
gangues ligadas ao tráfico de drogas. Hoje, a PPL é uma comunidade minada pela desunião
e sitiada pelo medo. Apesar de viverem colados uns aos outros, amontoando-se em
miseráveis casebres multifamiliares, os habitantes da PPL não participam de muitas
atividades comuns, festas ou confraternizações; atividades estas que, entre outras, deveriam
incutir neles sentimentos de união e pertencimento a uma comunidade. Conseqüentemente,
enfraquecem-se todos os mecanismos de coesão social e, em contrapartida, fortalecem-se
todos os fatores que fazem da Pedreira Prado Lopes uma das comunidades mais
166
socialmente desorganizadas de Belo Horizonte e, conseqüentemente, uma das mais
propícias à manifestação de altos índices de criminalidade.
E toda esta desorganização social mina ainda mais os já cambiantes e combalidos
mecanismos e instituições que deveriam ser responsáveis pela socialização e pelo controle
informal do comportamento popular. Assim como as associações comunitárias, que
historicamente nunca conseguiram mobilizar a população da PPL, outras instâncias e
valores como família, igreja e escola também se vêm extremamente desagregadas naquela
favela. E é curioso notar como toda esta realidade de desorganização social da Pedreira
funciona hoje como um mecanismo que se auto-alimenta: se, em um primeiro momento, a
falência de instituições como a família, a igreja, a escola e as associações comunitárias
serviu como um terreno fértil para a proliferação das quadrilhas e do tráfico na Prado
Lopes, nos dias de hoje é justamente a brutalidade do comércio de entorpecentes que atua
como principal mantenedor de toda a falência social da PPL. O tráfico e toda a sua
brutalidade minam qualquer possibilidade de associativismo, corrompem em todas as
escalas a capacidade de mobilização popular e acabam por decretar a falência de todas as
instituições de socialização e controle de uma comunidade.
Os exemplos desta realidade são muito claros e saltam aos olhos de qualquer
observador que se dispuser a subir as ruas da Pedreira. Como foi dito anteriormente, em
muitas famílias do morro, simplesmente não existe a figura paterna, o que faz com que os
lares sejam chefiados por mulheres que, diariamente, são obrigadas a sair para trabalhar e
não têm com quem deixar os filhos. Estas crianças são socializadas nas ruas da favela, sem
qualquer supervisão ou restrição. O convívio com os traficantes é rotineiro e muitos
começam a se envolver com o “movimento” sem que os pais sequer percebam. Nota-se que
não existe nenhum controle ou supervisão sobre as atividades desenvolvidas pelos grupos
juvenis, o que acaba se constituindo em um terreno extremamente fértil para o surgimento
das gangues.
As igrejas que se instalaram na Pedreira não exercem um papel de liderança ativa,
nem primam pela realização de trabalhos de cunho social. Nota-se que, historicamente, os
padres ou pastores que lá trabalham simplesmente não foram capazes de mobilizar a
comunidade da PPL em torno de um corpo comum de ideais ou projetos. Os poucos padres
que tentaram a tomar as rédeas de algumas iniciativas sociais enfrentaram a resistência de
167
associações comunitárias ou dos traficantes. O último exemplo deste tipo de procedimento
pôde ser visto no final de 2003, quando um pároco local, que possuía uma ascendência
muito grande sobre a comunidade, simplesmente teve que se mudar da Prado Lopes,
supostamente depois de receber várias ameaças da marginalidade local.
Enfim, existem vários indícios que apontam no sentido de que a população da PPL
simplesmente não foi capaz de se constituir enquanto comunidade. Ao longo de seus quase
100 anos de existência, os moradores da Pedreira não foram capazes de assimilar um
conjunto de valores comuns que os permitisse julgar e resolver internamente os problemas
que vivenciam. As instituições sociais que deveriam, pelo menos teoricamente, reforçar o
controle informal sobre o comportamento dos indivíduos encontram-se completamente
falidas ou desestruturadas naquela favela. As famílias, sempre sobrevivendo em condições
miseráveis e completamente carentes de qualquer tipo instrução ou orientação, não
socializam as crianças; as escolas, sempre deterioradas, mal equipadas e sem condições
mínimas de funcionamento, não educam os jovens da comunidade; e as igrejas,
historicamente alheias às questões sociais, não mobilizam a população em torno de ideais e
projetos comuns. Salta aos olhos a incapacidade que a comunidade da PPL tem de se auto-
regular. É muito patente a mais completa incapacidade daquela vizinhança em exercer um
controle minimamente eficiente sobre o comportamento de seus membros, devido à
falência de todas as instituições sociais que deveriam ajudar nesta tarefa. Abandonada à
própria sorte, a PPL é hoje o mais perfeito cenário que se poderia encontrar em Belo
Horizonte para a proliferação da violência e da criminalidade do tráfico de drogas.
A prova da mais completa deterioração de todas as instituições e representações
coletivas que deveriam incentivar a comunidade da Pedreira a exercer o controle formal e
informal sobre o comportamento de seus membros pode ser vista em uma pesquisa
realizada em 2002, pelo Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (Crisp).
De acordo com os dados coletados por essa pesquisa, 55% dos moradores da Prado Lopes
se mudariam para outro bairro se tivessem oportunidade. Questionados sobre os limites de
sua vizinhança, 90% responderam que consideram como sendo sua vizinhança apenas as
cinco ou seis casas mais próximas ou, no máximo, os cinco quarteirões mais próximos de
sua casa. Não existe, portanto, o mínimo senso de coletividade ou comunidade, elementos
fundamentais para que uma vizinhança possua um grau mínimo de eficácia coletiva, ou
168
capacidade de controlar o comportamento de seus indivíduos e resolver internamente seus
próprios problemas.
Vale lembrar que, em uma favela entrecortada por becos e vilelas de toda espécie,
delimitar como sua vizinhança o espaço de cinco ou seis quarteirões, significa não abranger
mais do que 100 metros. Ou seja, observa-se que, na PPL, cada morador está disposto a
tomar conta apenas da própria casa, quando muito das casas muito próximas às dele. A
noção de pertencimento comum a uma vizinhança é extremamente restrita, o que faz com
que todos os mecanismos de vigilância informal sejam enfraquecidos. Tomando-se como
parâmetro este tipo de representação, um morador que vê um traficante vendendo drogas no
final de seu próprio quarteirão não se sente compelido a tomar qualquer providência contra
ele, uma vez que tal delito não está acontecendo dentro de sua restrita noção de vizinhança .
Ainda de acordo com os dados dessa pesquisa, ao serem questionados sobre os
trabalhos voluntários que teriam realizado na comunidade durante o último mês, 94,7% dos
entrevistados responderam que não realizaram nenhum tipo de trabalho neste período.
Particularmente, não vejo porque pensar que tenha sido diferente nos meses anteriores. A
pesquisa demonstra ainda o pouco contato que os moradores locais mantêm com seus
vizinhos, apesar da proximidade quase que promíscua das residências: 55% fazem e/ou
recebem menos de uma visita de vizinhos por semana ou não fazem e/ou recebem
praticamente nunca. Mais uma vez, pode-se observar o baixíssimo grau de coesão e
solidariedade social que existe entre os moradores da Pedreira, o que também ajuda a
enfraquecer todo tipo de mecanismo de controle social e de Eficácia Coletiva.
No que se refere à violência propriamente dita, os dados da pesquisa também
comprovam que a população da Prado Lopes é obrigada a conviver cotidianamente com as
gangues ligadas ao tráfico. Tanto que a percepção da criminalidade na favela manifesta-se
através dos elementos mais explícitos como a constatação de pessoas armadas andando pela
vizinhança e a presença de tiroteios nas ruas da PPL. Ainda de acordo com os dados dessa
pesquisa, 60% dos entrevistados constatam usualmente a presença de pessoas armadas nas
ruas da Pedreira. Quando questionados sobre a constatação de tiros na vizinhança, esse
percentual sobe para inacreditáveis 95%. Questionados sobre a presença de pessoas
quebrando janelas, pichando ou fazendo arruaça na vizinhança, 70% dos entrevistados
respondeu que já viu ou já ouviu falar. No que diz respeito a pessoas xingando, ofendendo
169
ou insultando outras pessoas na vizinhança, 65% dos entrevistados também afirmaram que
já viram ou ouviram falar.
Mas é justamente naquilo que se refere às gangues e ao tráfico de drogas que os dados
da pesquisa demonstram de maneira clara o problema vivenciado pela comunidade da PPL:
95% dos entrevistados já viram ou ouviram falar de pessoas consumindo drogas na
vizinhança, enquanto 90% já viram ou ouviram falar de pessoas vendendo drogas nas ruas
da favela. Outros impressionantes 85% já viram ou ouviram falar de criminosos ou
bandidos circulando nas ruas da vizinhança.
Ou seja, a pesquisa evidencia que a percepção da violência e da criminalidade é uma
realidade extremamente viva no cotidiano da comunidade da Pedreira Prado Lopes. As
representações simbólicas e o imaginário dos moradores são claramente permeados pela
questão da brutalidade das gangues, da violência física e moral do tráfico, da deterioração
da vizinhança, do risco de se sair de casa durante as noites e da mais completa falta de
expectativa de mudanças a curto, médio e até mesmo longo prazo. Esta realidade prejudica
sensivelmente o estabelecimento de laços de sociabilidade e solidariedade entre os vizinhos
e, conseqüentemente, enfraquece os mecanismos de controle informal dos quais a
comunidade poderia dispor. O medo das gangues e de sua violência, além da acanhada
noção de vizinhança que tomou conta do imaginário da população, afeta diretamente a
participação popular em questões da comunidade, enfraquecendo o poder de regulação e
controle que poderiam ter instituições como a igreja, a família, a escola e as associações de
bairro.
Por outro lado, a consolidação de toda esta realidade de desmobilização e
desorganização social da comunidade da Pedreira também faz com que cresça o poder
territorial e psicológico das gangues que lá se envolveram com o tráfico de drogas. A partir
do momento em que o grupo percebe que se instalou no seio de uma comunidade que não
consegue se mobilizar de maneira minimamente satisfatória para combatê-la, ela sente-se
segura para ampliar seus domínios e conquistar mais poder. Ainda que de forma
subentendida, é patente a sensação de controle sobre a favela da qual estes garotos
desfrutam. Após décadas de inércia popular, formou-se na cabeça dos traficantes da PPL a
idéia de que o território do morro pertence única e exclusivamente a eles. Como senhores
feudais que dividiram a Prado Lopes em sítios bem demarcados, eles se dão ao direito de
170
cobrar pedágios e até mesmo de inspecionar mochilas de crianças e sacolas de homens e
mulheres que vão de uma parte a outra do morro.
A falência dos mecanismos ou instituições de controle social, sejam eles formais ou
informais, é tão explícita que, para os jovens ligados ao tráfico na PPL, parece não haver
mais qualquer tipo de custo social vinculado à prática do crime. Aos poucos está se
arraigando naqueles rapazes a percepção de que não é mais necessário esconder suas armas,
de que as casas invadidas não são mais reclamadas pelos antigos proprietários e de que seus
desmandos passam a ganhar legitimidade entre os moradores. O terror imposto pelo tráfico
é tão grande, que a comunidade não tem mais coragem de repreender os adolescentes
ligados às gangues. A presença deles é temida e, muitas vezes, até admirada por outros
garotos que não fazem parte do “movimento”. Como afirma Zaluar (1994:p 9):
“Sem serem formados por escola ou religião que lhes passe uma ética rígida de trabalho, esses jovens aprendem cedo os valores do machismo, o que exacerba ainda mais o caráter humilhante da submissão, negação da marca do homem. Como fazê-los, portanto, admirar e tomar como modelo o pai que se curva a esta árdua rotina, à exploração e ao autoritarismo? Seus heróis são outros. Na falta de um movimento operário forte de onde saíam líderes operários com fama, eles se voltam para os eternos valentes da nossa cultura popular que desafiam, passam rasteira e se negam a este mundo do trabalho. Se antes, por lá, os valentes eram os simpáticos malandros, hoje são os perigosos armados bandidos. A navalha foi substituída pelo “oitão” ou minimetralhadora, o leal corpo a corpo pela tocaia traiçoeira, a lei do mais valente pela lei do mais armado”.
Para aqueles garotos, parece haver cada vez menos custo social em se fazer parte das
quadrilhas ligadas ao tráfico na PPL. Naquela favela, a desagregação de instituições como a
família, a escola, a igreja e as associações de bairro fez com que caíssem por terra uma
infinidade de mecanismos de controle informal que poderia fazer com que fosse
socialmente mais difícil e custoso entrar para o tráfico. Justamente por isso, parece-me tão
pertinente o estabelecimento de uma relação muito estreita entre a desorganização social de
uma comunidade e o surgimento e à manutenção da criminalidade dentro da mesma.
Durante o trabalho de entrevista, pareceu-nos muito claro que os garotos ligados às
quadrilhas percebem de forma muito perspicaz o cenário que se configura ao seu redor.
Ainda que não tratem especificamente disto ou que não tenham transformado este
171
sentimento em um discurso racional, observa-se que eles percebem de forma muito clara a
deterioração do ambiente que os cerca. A percepção de que as paredes, janelas e portas da
vizinhança que foram crivadas de balas não são consertadas, assim como a constatação de
que os moradores já não chamam mais a polícia quando vêm o funcionamento de um ponto
de venda de drogas em plena luz do dia faz com que cresça o cenário de caos e desordem
da favela e, conseqüentemente, o poder do tráfico.
Ainda que de forma intuitiva, os traficantes percebem rapidamente que, naquele local,
ninguém se preocupa ou se atreve a combatê-los. Muitos falam que, há alguns anos,
costumavam “pedir” a alguns moradores honestos que escondessem momentaneamente
carregamentos de drogas dentro de suas casas. O expediente servia para despistar a polícia,
que nunca invadia estes barracões até então acima de qualquer suspeita. Atualmente, não é
raro ouvir relatos de moradores que foram simplesmente expulsos de suas casas, que hoje
servem como armazéns da drogas. Alguns dizem que, nas primeiras vezes em que isso
aconteceu, houve muita discussão e os traficantes precisaram usar de violência para manter
sua posição. No entanto, isso não acontece mais e a resignação tomou conta do aglomerado.
Observa-se que o mesmo acontece com os muros de barracões que foram pichadas por
membros de gangues: ninguém se atreve a limpá-los. Como que se alimentasse um círculo
vicioso, este abandono da Pedreira Prado Lopes por parte de sua população só gera mais
abusos e violência por parte das gangues.
6.4. Subcultura da Violência
6.4.1. As Gangues
Como vimos anteriormente, todo o histórico de desmobilização e de desorganização
social da comunidade da Pedreira Prado Lopes parece ter contribuído de forma decisiva
para que a realidade do tráfico de drogas e das gangues surgisse e se consolidasse naquele
aglomerado da maneira como se vê nos dias de hoje. No entanto, existe outro fator, este de
ordem psicológica e cultural, que parece fazer com que as gangues daquela favela
continuem a ganhar cada vez mais força em meio àquela comunidade. Durante o trabalho
de pesquisa na PPL, pareceu-me bastante claro que o tráfico de drogas que se organizou
172
naquela favela não atrai dezenas de garotos para si apenas por causa da promessa de lucros
rápidos e exorbitantes que ele representa. Para muitos adolescentes e crianças da Prado
Lopes, entrar para o tráfico significa colocar um ponto final na mais massacrante forma de
opressão que eles experimentam desde muito novos: a invisibilidade social.
É óbvio que a promessa de dinheiro fácil chama muito a atenção dos jovens da
Pedreira, principalmente dos adolescentes, sempre tão ávidos por possuir objetos e roupas
de grife que irão conferir a eles um certo destaque em meio a seus pares. Mas, durante as
entrevistas que realizei no morro, pareceu-me muito nítido que fazer parte de uma das
quadrilhas ligadas “movimento” significa muito mais do que isso. Para aqueles rapazes,
fazer parte de uma gangue significa construir uma identidade das mais importantes e
representativas dentro da favela. Significa ser reconhecido nas ruas do aglomerado. Em
meio a uma comunidade formada por milhares de miseráveis anônimos, por inúmeras
pessoas que vivem sem qualquer tipo de perspectivas, ganhar um olhar de respeito, de
medo e de reconhecimento significa muito. E fazer parte de uma gangue garante tudo isso
àqueles garotos.
Na Pedreira, ninguém se atreve a repreender os atos de um jovem traficante. A
ameaça sempre subentendida das armas de fogo garante a eles imunidade contra qualquer
tipo de contrariedade. Bem ou mal, cedo ou tarde, todos se curvam à sua passagem, todos
cedem aos seus desejos e desígnios, por mais absurdos que eles sejam. As meninas do
morro os olham para os traficantes com um misto de admiração, medo, respeito e desejo.
No opressivo e degradado microcosmo da favela, eles são a defesa, a acusação, o juiz, o júri
e o executor. Tudo é possível aos traficantes. São eles que vestem as melhores roupas, usam
as melhores jóias, os melhores tênis e têm os melhores carros. Quem sobe na hierarquia do
“movimento” ganha mais dinheiro e, conseqüentemente, passa a poder exercer de maneira
mais visível o seu poder. A visibilidade exacerbada de todos os signos de poder adquire
uma importância fundamental para aqueles jovens, que fazem questão absoluta de exibir
suas armas, suas jóias e suas roupas caras.
Durante as entrevistas realizadas com os adolescentes que fazem parte do tráfico,
chamou-nos muito atenção a imagem de força e onipotência que emana daqueles garotos.
Dentro de seus territórios, naqueles becos e ruelas imundas, eles se assemelham a senhores
feudais. Eles são os donos do dinheiro, das armas e do próprio direito de ir e vir. Por
173
algumas ruas, só passam aqueles que os traficantes deixam passar. Em determinados
horários, só saem de casa aquelas pessoas que os traficantes deixam sair. O terror imposto
por estes rapazes na Prado Lopes é tão grande que, por maior que sejam as atrocidades por
eles cometidas, ninguém se atreve a denunciá-los, ninguém se atreve a desafiá-los, ninguém
se atreve sequer a levantar a voz para eles.
Filhos de famílias desestruturadas ou, quando muito, chefiadas apenas pela mãe, fazer
parte de uma gangue confere a estes rapazes miseráveis o sentimento de pertencimento a
algo. Confere a estes jovens uma identidade que eles nunca conseguiram formar dentro de
casa ou na escola. Entrar para o movimento dá a eles uma visibilidade social sem
precedentes, ainda que seja apenas dentro do decadente e miserável microcosmo da favela.
E isso é importantíssimo para eles porque, por mais que a Pedreira seja um lugar pobre,
deteriorado e cuja maioria da população vive em condições subumanas, aquele é o espaço
no qual eles vivem. É o lugar em que nasceram, se criaram e constituíram toda sua rede de
relações sociais. Seu mundo de significações e todas as suas representações coletivas estão
ligadas à PPL e à sua comunidade. Para aqueles rapazes, é importantíssimo desfilar pelos
becos e vielas com roupas de marca e jóias vistosas. É importantíssimo fazer parte de uma
turma que, naquele meio, garante a ele proteção contra os inimigos.
Ficou muito claro que a própria formação das identidades de muitos daqueles rapazes
esteve intimamente ligada a todo o processo de socialização oferecido a eles pelas
quadrilhas. Foi em meio a estes grupos que eles aprenderam as gírias que usam. Foi junto a
seus companheiros de gangues que eles aprenderam as mais diversas tarefas ligadas à
atividade do tráfico. Foi em meio às quadrilhas que eles formaram toda a sua personalidade.
Por isso, acredito que não se possa dizer que a entrada de um daqueles jovens para uma
gangue e, conseqüentemente, para o tráfico, tenha sido apenas uma escolha motivada pela
eterna promessa de dinheiro fácil. Parece que entrar para uma quadrilha do “movimento”
foi uma decisão que muitos deles nem mesmo chegaram a ter consciência de que tomaram.
Envolvidos pelo convívio diário com os traficantes, muitos dos garotos mais novos
entraram para as gangues, fascinados com o estilo de vida que os criminosos levam. Tanto
que é precisamente entre as crianças e adolescentes do morro que esta socialização pautada
por valores violentos mostra sua faceta de maneira mais evidente. Toda a realidade de
violência imposta pelo tráfico parece ser rapidamente incorporada pelas crianças do
174
aglomerado que, desde muito cedo, “brincam” de ser traficantes. Não é incomum ver, nas
ruas da PPL, meninos com pouco mais de cinco ou seis anos de idade, empunhando
revólveres e pistolas de madeira, armas com as quais simulam os combates que
ocasionalmente vêem na favela. O próprio linguajar e as gírias utilizadas pelos rapazes do
“movimento” são rapidamente incorporadas pelas crianças que, desde muito cedo, falam
com desenvoltura sobre os “bondes”, as “trocas”, as “PTs”, as “macaquinhas”, as “pedras”
e as “tomadas de assalto”40.
Após entrevistar vários rapazes ligados ao tráfico naquela favela, pareceu-nos que,
entre eles, todas as leis, valores, símbolos e representações coletivas acabaram por se
constituir em uma forma muito particular de subcultura, cujos principais aspectos
normativos emergem da violência e convergem para ela. Vivendo sob a égide das gangues
ligadas ao tráfico, todos os aspectos das vidas destes rapazes são permeados pela violência.
As práticas brutais do tráfico de drogas impregnaram desde as práticas mais banais de sua
rotina até a mais sutil de suas representações coletivas.
Parece que o convívio diário em meio às quadrilhas fez nascer entre os jovens ligados
ao comércio de entorpecentes um sistema de valores sociais e leis que, ao mesmo tempo em
que são uma parte, estão aparte de todo o complexo de leis e valores do resto da sociedade.
Esta subcultura segue preceitos bastante particulares e também possui suas próprias formas
de auto-regulação. Tanto que a violação de suas normas implica punições severas por parte
dos demais membros do grupo, o que acaba por conferir às quadrilhas uma identidade
bastante marcada e distinta. Conversando com os rapazes que fazem parte das gangues da
PPL, percebe-se com muita facilidade que, entre eles, parece existir uma potencialização da
violência enquanto estilo de vida.
Na Pedreira, entrar para uma das quadrilhas do morro é optar pelo pertencimento a
um grupo, cuja socialização se dará através da violência. O próprio processo de formação
das identidades dos membros de uma quadrilha se dará por oposição à dos membros da
outra quadrilha. Os jovens que hoje fazem parte da quadrilha do “Terreirão” se definem, em
primeiro lugar, como inimigos dos jovens que fazem parte das quadrilhas subordinadas ao
traficante Roni Peixoto. E o contrário também é verdadeiro.
40 Ver Anexo 3: Entrevistas com traficantes da Pedreira Prado Lopes.
175
Torna-se bastante curioso ver como, na Pedreira, o fato de pertencer a uma gangue
tornou-se para alguns jovens um processo de definição da própria identidade. É em meio
aos seus comparsas o crime que ele irá definir seu lugar no mundo. A gangue é a instância
que terminará por socializá-lo, dentro dos moldes de uma subcultura pautada pela violência,
pelo machismo de uma visão estereotipada da honra masculina, pela lei das armas de fogo e
do mais forte. As gangues e o tráfico constituem-se enquanto um mundo particular para
estes jovens. Um mundo com leis, linguagem, costumes, vestimentas, representações e
símbolos próprios, cujos princípios são constantemente reafirmados pelos membros mais
antigos das gangues, ao mesmo tempo em que são assimilados pelos novos, através do
convívio e das relações interpessoais.
Em meio a alguns jovens da Pedreira, mais do que uma forma de se defender de seus
inimigos, o uso das armas de fogo e da intimidação parece ter se tornado uma das mais
autênticas e legítimas manifestações dos valores de uma subcultura impregnada e pautada
pela violência. O constante uso da violência que se vê entre as gangues daquela favela é
uma parte integrante do sistema normativo desta subcultura, o que, por sua vez, também
reflete o perfil psicológico dos membros da mesma. Percebe-se com muita clareza que, na
favela, justamente por causa dos preceitos e leis que regem esta subcultura da violência,
fatos como a percepção de uma atitude de desprezo, um olhar mais demorado ou o
aparecimento de uma arma nas mãos de um adversário tornam-se estímulos que devem ter
uma resposta violenta à altura.
Ou seja, muito mais do que apenas gerar condições adequadas para o surgimento de
uma atividade ilícita, que é o tráfico de drogas, todo o cenário de desmobilização popular e
desorganização social presente na Pedreira abriu espaço para que surgisse, entre muitos
jovens daquele aglomerado, uma verdadeira subcultura pautada por valores violentos. Ao
entrar para as fileiras do tráfico, aqueles jovens não estão apenas optando por uma via
criminosa que irá garantir a eles a conquista de dinheiro fácil. Muito mais do que isso, creio
ser possível dizer que, ao se alistar em uma das quadrilhas do morro, aqueles jovens estão
aderindo a todo um estilo de vida que é permeado pela violência em todas as suas
instâncias. A partir do momento em que aqueles meninos colocam uma arma na cintura e
juram fidelidade a uma das facções da favela, eles estão, de uma certa maneira, se
comprometendo a falar, a andar, a pensar, a agir, a vestir e a se comportar de uma forma
176
coerente com os valores, leis e representações simbólicas impostas por esta autêntica
subcultura da violência que é o tráfico de drogas na PPL41.
Durante a pesquisa, foi possível observar, ainda, que esta subcultura possui alguns
parâmetros bem definidos. Alguns destes preceitos já foram, inclusive, bastante citados por
determinadas vertentes da literatura criminológica. Os sociólogos Wolfgang e Ferracuti, por
exemplo, já em 1967, colocavam aqueles que, para eles, eram os aspectos mais marcantes
das subculturas da violência nascidas em vizinhanças pobres dos Estados Unidos. Apesar
de todas as diferenças históricas, sociais e culturais presentes entre uma realidade e outra,
acredito ser possível, pelo menos neste caso, estabelecer um paralelo bastante satisfatório
entre o cenário americano e aquele que se observa hoje na Pedreira Prado Lopes. De acordo
com Wolfgang e Ferracuti (1967:p 158), as subculturas da violência possuiriam as
seguintes características principais:
1- Nenhuma subcultura pode ser totalmente diferente ou totalmente conflitante em relação à sociedade da qual faz parte. 2- Para que seja estabelecida a existência de uma subcultura da violência não é necessário que seus atores compartilhem os mesmos valores básicos e que se expressem através da violência durante todo o tempo. Até porque, caso contrário, qualquer outro tipo de função social se tornaria virtualmente impossível. Membros de uma subcultura da violência precisam carregar armas para se protegerem uns dos outros. Mas eles afirmam que apenas o ato de estarem carregando estas armas se torna um componente simbólico que significa estar disposto a participar da violência. Significa que se está esperando por esta violência e que se está pronto para reagir a ela. 3- A disposição potencial de recorrer à violência em uma variedade de situações enfatiza o caráter penetrante e difuso do tema central desta cultura. O grau e a intensidade com a qual um indivíduo está disposto a recorrer à violência, em resposta à provocação, depende do quanto ele adotou os valores culturais associados à violência. 4- A essência subcultural da violência pode ser compartilhada em todas as idades dentro de uma subsociedade. Mas esta essência é mais proeminente em um grupo etário limitado, que engloba o fim da adolescência e o começo da idade adulta. 5- A contra-norma é a não-violência. A violação da violência normativa é punida com sanções que incluem o ostracismo. 6- O desenvolvimento de atitudes favoráveis à violência em uma subcultura usualmente envolve comportamentos aprendidos e um processo de aprendizado, associação e identificação diferencial. Nem todas as pessoas expostas à presença de uma subcultura da violência absorvem ou
41 Ver Anexo 3: Entrevistas com traficantes da Pedreira Prado Lopes.
177
compartilham estes valores em igual quantidade. Variáveis de diferentes personalidades precisam ser levadas em conta quando se faz uma abordagem psicossociológica da subcultura da violência. Agressão é uma resposta aprendida, socialmente facilitada e integrada como um hábito, na personalidade do agressor. 7- O uso da violência em uma subcultura não é necessariamente visto como uma conduta ilícita. Desta maneira, os usuários não precisam necessariamente lidar com sentimentos como culpa por causa das agressões que cometem.
Apesar de achar que os postulados desses autores podem, por si só, ser aplicados de
maneira muito confortável à realidade das quadrilhas da PPL, podemos ir um pouco além
do que foi colocado por eles. Ao que tudo indica, os valores, leis e representações que
constituem a subcultura da violência não fazem parte apenas da realidade dos subgrupos
que a ela aderiram de forma visível, no caso em questão, as gangues. Pelo menos na
Pedreira, os valores violentos do tráfico já penetraram em todos os segmentos daquela
comunidade. Pelo teor dos depoimentos da população, observa-se que, há muito tempo, a
violenta realidade das quadrilhas deixou de ser apenas um problema pontual para a
comunidade da Prado Lopes. O tráfico e toda a brutalidade de suas quadrilhas, de seus
confrontos, de suas guerras e de suas disputas territoriais já se tornaram um dos mais
expressivos elementos constitutivos de todo o manancial simbólico e cultural da
comunidade da Pedreira.
6.4.2. A Comunidade
Durante a elaboração deste estudo, foram coletados diversos indícios de que o tráfico
de drogas e todo seu sangrento rastro de arbitrariedades, mortes, violações e torturas já
constituem não somente uma subcultura vigente entre as gangues, mas já fazem parte da
própria rede de representações simbólicas de toda a comunidade da PPL. Obviamente, não
no sentido de que todos os moradores compartilham dos valores violentos do tráfico. Mas
observa-se que a violência das gangues está presente em simplesmente todas as situações
de vida daquele povo. Ao longo do trabalho de pesquisa realizado naquela favela, chamou-
nos muito a atenção o fato de praticamente todas as experiências cotidianas da população
local serem intimamente permeadas pela violência do tráfico. Desde a mais insuspeita
178
conversa com vizinhos de muro até a mais abstrata noção de cidadania, todas as
representações coletivas dos moradores da Pedreira parecem ter sido contaminadas pela
simbologia brutal e pelos valores violentos das gangues ligadas ao tráfico de drogas.
O próprio cenário da favela foi transformado por esta simbologia. Inúmeros muros da
PPL carregam pinturas ou grafites que fazem referências claras à brutalidade do tráfico.
Como se já não bastasse a exibição ostensiva das armas de fogo, as gangues também
escrevem mensagens ameaçadoras nos muros das casas, desenham adolescentes
empunhando armas e usando fardas de guerra. Até mesmo os grafites e as pinturas que são
feitas por aqueles que não se envolvem com a criminalidade só expressam a violência e os
conflitos armados protagonizados pelas quadrilhas. Os muros do Colégio Municipal Belo
Horizonte, por exemplo, trazem mensagens de desespero, descrença e desilusão, misturadas
com frases que pedem o fim dos enfrentamentos e das “guerras” na favela.
A impressão que se tem é de que, de maneira lenta e gradual, abate-se sobre o povo da
Pedreira um silêncio bastante opressivo quando o assunto é o tráfico de drogas e as
quadrilhas do morro. É preciso uma boa dose de paciência para fazer com que cada um
aceite relatar suas experiências diárias com os traficantes. O toque de recolher imposto
durante o anoitecer pelos criminosos já parece ser aceito com naturalidade pela população,
como se fosse apenas mais uma “coisa da vida”. O fato de alguns moradores serem parados
no meio da rua e revistados pelos traficantes quando vão de uma parte da favela a outra já
não causa mais tanta estranheza ao povo, quanto mais qualquer tipo de revolta.
Silenciosamente, a comunidade da PPL vai aprendendo a conviver com o tráfico, como se
ele fosse uma força inexpugnável que se abateu sobre a vida de cada um. Como se toda a
sua violência, o seu desrespeito e a sua brutalidade fossem uma realidade irreversível.
Diversos estudos relatam a possível existência de uma relação de reciprocidade entre
moradores de vilas e favelas e quadrilhas de traficantes que atuam nestes locais. O
pesquisador Luke Dowdney (2003), por exemplo, cunhou o termo “reciprocidade forçada”,
para se referir à relação de cumplicidade que, ainda que pela força das armas, se
estabeleceu entre algumas comunidades pobres da cidade do Rio de Janeiro e gangues de
narcotraficantes que agem em seus territórios. Em troca do silêncio dos moradores e da
aceitação de que alguns pontos da favela se tornem pontos de venda de drogas, os
traficantes ofereceriam a manutenção da ordem social local, incentivo econômico ao
179
comércio do aglomerado e fariam investimento em atividades de lazer. Ainda que pela
coerção das armas e pela adoção de uma política de aproximação rasteiramente populista
por parte dos traficantes, estabeleceria-se uma relação de cumplicidade, de “reciprocidade
forçada”. entre criminosos e comunidade.
Na Pedreira Prado Lopes, em compensação, não conseguimos colher qualquer
informação ou indício que aponte no sentido de que o tráfico foi capaz de se aproximar da
comunidade. Muito antes pelo contrário, todos os depoimentos indicam no sentido de que,
longe de ter se estabelecido uma relação de “reciprocidade forçada” entre comunidade e
traficantes, talvez tenha surgido na PPL uma situação de “convivência forçada”. Moradores
e criminosos são obrigados a conviver em um mesmo ambiente, mas pareceu-me bastante
claro que ambos os lados fazem um esforço muito grande para não interferir na vida do
outro. Os moradores, por razões óbvias, procuram não cruzar o caminho do tráfico. Os
traficantes, por sua vez, também procuram não se envolver com moradores, desde que estes
não interfiram em seus negócios.
Na Pedreira, ao contrário daquilo que os estudos mencionados anteriormente
conseguiram atestar em favelas do Rio de Janeiro, não foi possível constatar a existência de
nenhuma política de aproximação por parte dos traficantes em relação à comunidade. Os
criminosos não fazem doações à população local, não investem em atividades de lazer para
a comunidade, nem mesmo se preocupam em preservar os moradores nos constantes
tiroteios que acontecem na favela. Prova disso é que, de acordo com registros da Polícia
Civil, somente durante os primeiros nove meses de 2004, pelo menos três pessoas haviam
morrido na favela vítimas de balas perdidas e várias outras haviam ficado feridas. No
entanto, vale ressaltar que todos estes indícios foram colhidos a despeito do discurso dos
traficantes, que aponta justamente para o contrário, como podemos perceber, a seguir, no
relato de um dos traficantes entrevistados:
“Como é que é nossa relação com morador daqui? Ah, véio... Morador não tem nada a ver com as nossas parada não, tá ligado? Tipo assim, eles tá ligado que a nossa vida é errada mesmo. Que a gente tá no movimento mesmo e que é parada errada. Mas ninguém fica pagando pau nem nada não... Sei lá... A gente não mexe com ninguém não porque a gente nunca sabe o dia de amanhã, né não. Um dia cê paga o mó vacilo pro cara e, quando vai vê, tá precisando escondê no barraco dele, tá precisando plantá uns bagulho na casa dele que é pros homi não te pegá trepado... É
180
osso, véio, não dá pra ficar sem respeito com morador, tem a manha? Porque se esculachá demais, ao invés de te ajudar, é mais um inimigo que cê ganha. E também porque todo mundo tem família aqui na Pedreira, então tem que respeitar, né não? Ninguém qué a mãe passando perrengue. Por exemplo, não dá pra deixá ficá esses noiado tudo jogado no meio da rua com a sua mãe vendo isso, né não? Não dá pra deixá tê assalto aqui porque os homi fica tudo de cima... A gente toma conta do pedaço por causa da gente mesmo e por causa de família da gente que também mora aqui. (...) Às vez tem morador que chega pra pedir uma ajuda. Sabe que no movimento circula as onça mesmo então vem na gente pedir uma força. E se for morador considerado a gente ajuda. Não tem porque não ajudá, tá ligado? A gente dá força pra comprar um arroz, pra consertá uma porta, um barraco, pra fazê umas compra no sacolão, pra comprá um remédio... Isso se for morador considerado, né? Aquele que não fica de vacilo. (...) Acho que é só cada um ficá na sua. É só não ficá de cangüete que não tem erro. Porque não tem coisa pior do que ficá pagando uma de X-9 pros homi. Porque eu vou te mandar a real, véio: se Xnová a gente passa o cerol mesmo, não tem perdão não. E faz pra todo mundo vê mesmo que não tem ninguém pagando comédia aqui não” (C.C.B., 19 anos, traficante da parte baixa da favela, em 21/08/2003).
Apesar de o discurso dos traficantes insinuar uma possível relação de cumplicidade
entre comunidade e criminosos na PPL, depoimentos colhidos junto a moradores da favela
apontam justamente no sentido contrário. Ao que tudo indica, as quadrilhas de traficantes
da Pedreira não se preocuparam em estabelecer uma política de “boa vizinhança” com os
moradores da favela. Sua presença em meio à comunidade foi conquistada e é mantida pela
brutalidade e pelo constante ameaça das armas de fogo. Nem mesmo nas entrevistas
realizadas com familiares de garotos envolvidos com o tráfico consegui encontrar uma
única palavra de apoio ou menção positiva que fosse sobre os traficantes. Diferentemente
do que se poderia pensar, as gangues ligadas ao tráfico parecem não possuir qualquer forma
de legitimidade entre os moradores da PPL.
Sua presença é imposta no local através de constantes demonstrações públicas de
brutalidade, pelos atos de tortura e morte de miseráveis viciados que, devedores da boca, se
vêem obrigados a trabalhar como “olheiros” para os criminosos e se tornam as vítimas
preferenciais das guerras entre as gangues. Acuados e impotentes frente à violência das
quadrilhas, aqueles que moram em barracões localizados nas proximidades das bocas-de-
fumo se tornam obrigados a desenvolver uma falsa relação de cordialidade com os
traficantes, na tentativa de não atrair para si qualquer tipo de desfavor. Aqueles que não
vivem próximo às “bocas”, por sua vez, parecem tentar suprimir de sua rotina a existência
181
do tráfico. Depoimentos colhidos na favela durante a elaboração deste estudo apontam com
muita firmeza no sentido de que praticamente todos os moradores da PPL se viram
obrigados a desenvolver uma infinidade de mecanismos comportamentais que os
permitissem conviver de forma pacífica com os traficantes. No entanto, todos eles os fazem
passar longe de poder dizer que existe qualquer relação de reciprocidade entre os dois
lados.
Particularmente, acredito ser bastante plausível dizer que, atualmente, todos os
moradores da PPL têm plena consciência de todo o prejuízo trazido a eles pela presença do
tráfico. Mas eles se vêem completamente impotentes para tentar mudar esta realidade.
Aliás, a prova da completa ausência de qualquer espaço de negociação entre comunidade e
traficantes pôde ser vista em dezembro de 2003, quando as quadrilhas de Roni Peixoto e do
“Terreirão” se enfrentavam pelas ruas da favela. Acuada pelas muitas mortes que vinham
acontecendo no morro, uma comissão de moradores se dirigiu ao comando de ambas as
gangues e pediu uma trégua, pelo menos durante as comemorações do Natal e do Reveillon.
O pedido foi acatado, mas o fim dos festejos de fim de ano marcou também a volta dos
enfrentamentos na favela e, desta vez, sem qualquer margem para negociação de uma
trégua. Vejamos, a seguir, o depoimento de uma moradora:
“Morei aqui na Pedreira minha vida inteira, mas tem uns três meses só que tô morando aqui no beco Bom Jesus. E hoje eu posso te falar com certeza que meu maior sonho é sair daqui da Pedreira. Cê pode ver que eu tomo conta de cinco menino novo aqui dentro de casa e que nenhum deles tá na rua. Eu não deixo sair porque com essa guerra deles aí pode sobrar bala a qualquer hora pra quem não tem nada a ver com a história. Porque antigamente eles avisavam quando ia ter tiroteio, né? Hoje eles não avisam ninguém não, não tem respeito com ninguém mais. Quem tiver na rua que se dane pra lá. Se pegar, pegou, eles nem olham pra onde é que tá atirando, se tem gente inocente na rua... Eles querem é dar tiro um no outro. Então não dá pra ficar deixando menino na rua não, ainda mais aqui que é pertinho da Marcazita. Coloco aí um desenho na televisão e eles ficam aqui o dia inteiro vendo. (...) Ah, não dá pra ficar envolvendo com eles não, né? Tem até gente que pede umas bobagem ou outra aí pra eles, mas eu nunca pedi não e a maioria também não pede não porque depois o preço é alto, né? Acho que é mais cada um no seu canto mesmo. (...) Por exemplo, eu já vi eles falando por aí que eles não deixam ter roubo aqui na favela, que aqui não vai ter malandro pra atrasar a vida de ninguém. Mas é porque se tiver roubo chove de polícia e atrapalha o movimento deles. Não é porque eles querem o bem de ninguém que mora por aqui, cê tá me entendendo? Eles não fazem nada
182
pela Pedreira não. Aliás, só prejudicam, porque a Pedreira tem essa fama toda por causa deles. Aí, se você vai caçar emprego na rua e diz que mora na Pedreira, já era. Eles pensam que é tudo bandido que mora aqui. Mas a maioria é trabalhador. Por causa de uma meia dúzia de menino que fica andando armado aí, todo mundo paga o pato. E é um inferno, porque cê não arruma emprego, não pode sair de casa depois que fica de noite. Se saiu de casa, tem que voltar antes de ficar de noite porque senão é perigoso demais. Isso aqui é um inferno por causa desse trem de droga, mas a gente vai fazer o que? Polícia que é polícia não faz nada, às vezes fica até de acordo com eles, a gente vai fazer o que?” (J.M.S.B., 25 anos, dona de casa, moradora da parte alta da Pedreira, em 13/08/2004).
Também ao contrário do que se poderia pensar em um primeiro momento, nem
mesmo as famílias que foram obrigadas a conviver com o tráfico de drogas dentro da
própria casa demonstram qualquer tipo de condescendência com o papel exercido pelas
quadrilhas. Durante a realização desta pesquisa, me vi impedido de entrevistar praticamente
todas as mães dos traficantes dos quais colhi depoimentos. No entanto, existem indícios
muito claros de que nenhuma delas aprova a atividade desenvolvida pelo filho, ainda que
ele traga sempre muito dinheiro para a casa. Nas próprias conversas com os garotos do
tráfico, a figura da mãe é sempre citada com muito respeito. A maioria, inclusive, se recusa
a falar sobre os pais ou a família, dizendo sempre que tais pessoas não possuem qualquer
relação com a vida que eles escolheram. Em todos os discursos, a figura da mãe é sempre
mencionada como aquela que aconselha, que tenta fazer com que o garoto saia do tráfico e
que nem sempre aceita as benfeitorias que o dinheiro sujo do filho traz para a família.
Segundo Zaluar (1994):
“Essa visão masculina do mundo do crime é matizada pela referência constante à mãe como freio ao envolvimento com o crime. A descoberta que a mãe pode fazer da origem do dinheiro trazido para casa, a vergonha e preocupação subseqüentes, o sofrimento que ela tem quando o filho está preso são parte de um discurso moral e sentimental que fala das raízes para deixar a vida do crime. A mãe na família desestruturada pela ausência de uma figura paterna não é, portanto, aos olhos dos que vivem a opção entre crime e trabalho, uma causa da criminalidade, mas, ao contrário, é um freio para a continuidade da ação criminosa, ou seja, um estímulo à regeneração” (ZALUAR, 1994:p ).
Pelo que foi possível observar, mais uma vez, abate-se também sobre as famílias uma
grande impotência perante a entrada de algum de seus filhos para o tráfico de drogas. Por
183
mais que as mães procurem manter seus meninos longe das gangues, a partir do momento
em que algum deles se une a elas, muito pouco há para se fazer. Não foi possível localizar
um único caso sequer de mãe que não sabia que o filho estivesse envolvido com o tráfico.
No entanto, elas parecem não ter à sua disposição qualquer mecanismo de combate a esta
realidade. Durante a realização deste estudo, ficou-me uma impressão muito forte de que,
para as famílias da Pedreira, a entrada de um filho para o tráfico de drogas assemelha-se
muito a um fardo imposto pelo destino. Uma vez consumado o envolvimento do rapaz com
uma das gangues da favela, nada mais pode ser feito para mudar esta realidade. Em
pouquíssimo tempo, o garoto passa a ganhar muito mais dinheiro do que o pai – isto
quando a figura paterna é presente em casa. Conseqüentemente, o rapaz envolvido com o
tráfico se livra de qualquer amarra financeira que poderia lhe ser imposta pela família. Em
uma cultura fortemente impregnada por valores machistas, na qual figura do provedor da
casa ocupa uma posição de destaque, este rapaz passa a ter todas as condições que
precisava para ir contra as recomendações de seus familiares e permanecer no tráfico.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
184
De acordo com os registros da Polícia Militar de Minas Gerais, aproximadamente
20% dos 3256 homicídios cometidos em Belo Horizonte, entre os anos de 1998 e 2002,
aconteceram em apenas seis favelas da capital – a saber, Pedreira Prado Lopes, Cafezal,
Taqüaril, Morro das Pedras, Cabana do Pai Tomaz e Morro do Papagaio. Ou seja, um em
cada cinco assassinatos cometidos em BH acontece em localidades que, se tiverem suas
áreas somadas, correspondem a apenas 4,3% da área total da cidade. Estes números se
tornam mais significativos ainda, se observarmos que, apenas em 2002, 36% dos
homicídios registrados na capital aconteceram nestas seis vilas e favelas. Não há como
negar, portanto, que existe uma altíssima concentração de crimes violentos em poucas áreas
de Belo Horizonte. O fato é que a violência e a criminalidade não se distribuem pela cidade
de maneira uniforme.
A primeira hipótese na qual este estudo se ancorou foi a de que não se pode estudar o
fenômeno do crime sem analisar, também, o local e o ambiente onde ele se manifesta.
Diversos indícios nos levam à concluir que existe, sim, uma relação muito íntima entre a
configuração ambiental e social assumidas por determinadas localidades e as taxas de
criminalidade que elas apresentam, como propõem estudos apresentados por Shaw e Mckay
(1942); Bursik (1998); Bursik e Grasmick (1993); Sampson et al. (1997) e Morenoff et al.
(2001). No caso específico das seis favelas mais violentas de Belo Horizonte, parece-nos
muito coerente dizer que existem nelas algumas particularidades que as fazem ter os
maiores índices de criminalidade da capital. Nestes locais, diversos fatores históricos,
estruturais, culturais e sócio-econômicos interagem entre si no sentido de produzir um
ambiente altamente propício ao surgimento e à consolidação de altas taxas de violência e da
criminalidade. Particularmente, acreditamos que é justamente na identificação destes
fatores e na análise precisa de como eles interagem entre si no sentido de produzir um
ambiente criminógeno que se encontram os principais pilares do presente estudo.
Por outro lado, não se pode tampouco ceder à tentação de proceder com
generalizações simplistas e fazer uma associação direta entre pobreza e criminalidade.
Ainda utilizando Belo Horizonte como exemplo, basta observar que existem dezenas de
outras favelas na capital que, apesar de apresentarem os mesmos índices de pobreza que as
seis citadas anteriormente, não registram altas taxas de violência e criminalidade. Portanto,
185
há indícios suficientemente fortes para afirmar que, especificamente nestas favelas,
determinados elementos históricos, culturais, estruturais e sócio-econômicos se articularam
no sentido de produzir tais níveis de violência.
Tendo em vista que o quadro teórico de referência adotado neste estudo fundamentou-
se, basicamente, nas teorias da “Desorganização Social” (SHAW & MCKAY, 1942) e da
“Eficácia Coletiva” (SAMPSON et al., 1997), além de outros estudos que se baseiam em
tais teorias, faz-se necessário explicitar aqui de que forma esse referencial se relaciona com
o objeto de estudo desta pesquisa, com a hipótese inicial de trabalho e com os dados
coletados e analisados ao longo desta dissertação. Inicialmente, é possível afirmar que os
dados coletados na favela indiciam, claramente, a presença de todos os fatores apresentados
nas teorias, confirmando a idéia de que, em função dessas características, determinadas
comunidades tornam-se ambientes altamente propícios ao surgimento e à consolidação de
altos índices de criminalidade. Os dados coletados e analisados indiciam, portanto, que a
Pedreira é hoje uma comunidade com alto índice de desorganização social e baixa eficácia
coletiva, o que, historicamente, permitiu a forte entrada do tráfico de drogas em seu
território e a consolidação de várias gangues ligadas à sua exploração.
Como foi demonstrado em capítulos anteriores, a própria história da formação da
Prado Lopes já nos fornece indícios bastante precisos de como a favela se tornou o que é
hoje: o seu surgimento a partir de uma espécie de acampamento para centenas de operários
vindos das mais diversas regiões do estado, que trabalhavam em uma gigantesca pedreira
localizada às margens de onde hoje é a favela; o fato de algumas famílias estabelecerem
residências no local, de forma improvisada e provisória, na expectativa de se mudar para
um lugar melhor; o fato de terem- se passado anos até que houvesse ali a real intenção de
se formar uma comunidade; o fato de que somente depois de algumas décadas de sua
existência é que a favela passou a receber moradores com a real intenção de constituir um
lar. Ou seja, durante muitos e muitos anos, a PPL nada mais foi do que um dormitório
provisório para operários que vinham do interior e, ainda, não tinham condições de viver
em um bairro melhor. Esta altíssima rotatividade residencial caracteriza exatamente um dos
principais fatores apontados pela teoria da “Desorganização Social”, de Shaw e Mckay
(1942), como sendo um empecilho à coesão social e, conseqüentemente, um fomentador da
violência e do crime.
186
Além da extrema concentração de desvantagens estruturais e sócio-econômicas, ao
final desta pesquisa, podemos também concluir que as alterações feitas no espaço físico da
Pedreira, durante suas primeiras décadas de existência, como a abertura de avenidas, ruas,
além da construção do Departamento de Investigações e do Hospital Municipal Odilon
Behrens, fizeram com que a favela tivesse sua área bastante comprimida. Isso, por sua vez,
causou um grande adensamento populacional e aumentou ainda mais o ambiente de
desorganização e promiscuidade da favela.
Essa reconfiguração do espaço da Pedreira fez com que várias famílias deixassem
suas casas, para se mudar para outros pontos do aglomerado. O ambiente de extrema
miséria e precariedade que se agravava a cada dia favoreceu o surgimento das primeiras
casas multifamiliares, que hoje são bastante comuns no aglomerado. Além disso, a
exigüidade do espaço da Pedreira fez com que a favela passasse por um processo de
verticalização nunca visto antes em nenhuma vila da capital. Enfim, todos estes fatores
concorreram para que a Pedreira abrigue uma comunidade socialmente pouco coesa e
extremamente desorganizada. Uma comunidade onde nenhum dos moradores orienta sua
ação no sentido de promover o bem coletivo e zelar pela segurança e preservação de sua
vizinhança.
Dados coletados e analisados nesta pesquisa também nos possibilitaram ver que toda
esta concentração de desvantagens estruturais e sócio-econômicas contribuiu para que a
comunidade da Prado Lopes demorasse várias décadas para organizar suas primeiras
entidades representativas e, conseqüentemente, para começar a formalizar suas
reivindicações de maneira mais sistemática. A primeira associação de moradores surgiu
apenas em meados da década de 70, quando a população começou a ter consciência de que
precisava agir em conjunto para conseguir promover melhorias na favela, mas, ainda assim,
a imensa maioria dos moradores do aglomerado continuou sem tomar qualquer
conhecimento dos canais de participação popular que começavam a se instalar no seio da
PPL, fato que confirma que a população da Pedreira está muito longe de constituir uma
comunidade socialmente coesa. Além disso, a grande descrença por parte da maioria dos
moradores com relação aos meios de reivindicação reafirma a idéia da falta de coesão
social e da capacidade de mobilização da comunidade.
187
Atualmente, existem apenas duas associações comunitárias na Pedreira Prado Lopes –
A União Prado Lopes e a Associação Recreativa Comunitária dos Amigos da Pedreira
Prado Lopes, a ARCA-PPL. No entanto, representantes de ambas as entidades fazem
exatamente a mesma reclamação: não conseguem mobilizar a população local no sentido de
produzir qualquer reivindicação sistemática que traga melhorias à favela. O próprio
programa do Orçamento Participativo, promovido pela Prefeitura, conta com baixíssima
presença dos moradores, que não se envolvem nas decisões acerca do dinheiro público que
será aplicado na própria comunidade.
Ao final da realização desta pesquisa, os dados coletados e analisados indicaram
também que praticamente todas as instituições que deveriam promover a socialização e a
coesão social entre os indivíduos da Pedreira encontram-se em estado de extrema
deterioração e falência. As escolas públicas que atendem às crianças do aglomerado, por
exemplo, não possuem instalações minimamente dignas, nem mesmo condições
financeiras, estruturais ou sociais de ministrar um ensino de qualidade e manter as crianças
nas salas de aula. Tudo isso, somado à falta de uma estrutura familiar mais definida – é
extremamente comum na Pedreira a existência de famílias que não contam com a presença
da figura paterna e são chefiadas por mães que se vêem obrigadas a trabalhar o dia inteiro
fora – e o histórico de um lar de baixíssima escolaridade, concorre para que as crianças não
contem com qualquer tipo de supervisão e, conseqüentemente, não desenvolvam o hábito
do estudo.
Vale lembrar, ainda, que o nível de escolaridade dos moradores é baixíssimo – 77%
dos possuem apenas o primeiro grau completo, enquanto 15% não possuem qualquer tipo
de escolaridade – o que indica que o estudo não é valorizado entre as famílias da PPL. Em
meio à miserável e difícil vida da favela, observa-se que as crianças são criadas dentro de
uma estrutura simbólica que confere muito mais valor ao trabalho braçal, que garantirá o
sustento da família no final do mês, do que aos estudos formais que não propiciam retorno
prático a curto prazo. Criados em um ambiente de extrema carência e pobreza, as crianças
da Pedreira já nascem representando um “peso” para os pais que, geralmente, não ganham
mais do que um salário mínimo mensal. Portanto, toda a estrutura sócio-econômica e
cultural na qual estas crianças estão inseridas contribui para que elas sejam empurradas
188
rapidamente para fora da escola e dos estudos, em direção ao mercado de trabalho informal
ou ao subemprego.
Filhos de famílias que muitas vezes não contam com a figura paterna e vivendo
amontoados em miseráveis casas que não raramente abrigam várias famílias, as crianças e
adolescentes da Pedreira acabam por se criar por conta própria no degradado ambiente da
favela. Como foi colocado anteriormente por este estudo, vários indícios nos levam a crer
que grande parte do processo de socialização e aprendizado de crianças e adolescentes da
PPL acontece nas ruas do aglomerado, sem qualquer tipo de supervisão por parte dos pais.
Devido à deterioração de praticamente todas as instituições formais e informais de
socialização e controle, todas as atividades grupais desenvolvidas por aqueles jovens
seguem curso sem que a família tome sequer conhecimento delas.
Outro aspecto a ser ressaltado na finalização desta pesquisa é constatação de que,
assim como diversos estudos já demonstraram (SAMPSON et al., 1997; THRASHER,
1927), parece ter sido precisamente a partir das primeiras turmas de amigos e dos
inofensivos grupos de brincadeiras que se formaram os embriões das gangues juvenis que
hoje são responsáveis pela maioria dos crimes cometidos na Pedreira. Brincando em turmas
pelas ruas da favela e sempre longe dos olhos dos pais, foi nas ruas que as crianças fizeram
seus primeiros contatos com os traficantes da região e começaram, gradativamente, a
formar novas gangues e a se envolver com aquelas que já existiam. Assim, os dados desta
pesquisa nos permitem concluir que, na Pedreira, a prática dos primeiros atos delinqüentes
e o envolvimento das crianças e adolescentes com as quadrilhas do tráfico de drogas foram
extremamente facilitados pela falta de supervisão e controle dos processos de socialização e
das dinâmicas grupais desenvolvidas por eles nas ruas da favela.
Sem contar com a presença de uma estrutura familiar mais rigidamente definida e de
qualquer atividade supervisionada que lhes preenchesse o tempo livre, muitos jovens da
Prado Lopes foram socializados pelas próprias quadrilhas do “movimento” que,
simbolicamente, acabaram por se constituir em verdadeiras famílias para aquelas crianças.
E, ao que tudo indica, uma vez dentro das quadrilhas, dá-se início a um processo que é tão
bem descrito por autores como Frederic M. Thrasher (1927), Decker e Van Winkle (1996) e
Alba Zaluar (1994): as crianças e adolescentes acabam sendo criadas em meio a uma
estrutura simbólica pautada pelo machismo, pela virilidade, pela submissão de toda uma
189
comunidade ao despotismo das armas de fogo e da lei do mais forte. Através de um
processo de completa imersão, os jovens da PPL rapidamente incorporam todos os hábitos,
valores e representações simbólicas das quadrilhas. Com armas cada vez mais perigosas na
cintura, todos eles acabam sendo criados dentro de uma verdadeira subcultura da violência.
Todos eles se tornam parte de uma entidade, de uma instituição que acaba por potencializar
todo o seu rancor, todo o seu ódio às humilhações que sofrem desde muito cedo, à
invisibilidade social que experimentam em cada esquina da cidade, à completa falta de
perspectivas e a toda uma vida de submissão e servilismo.
Imersos em uma sociedade consumista e avessos ao exemplo de submissão,
humildade e resignação que possuem dentro das próprias casas, esses garotos se tornam
poderosos dentro das gangues. Ainda que seja apenas dentro do microcosmo social da
Pedreira Prado Lopes, eles se tornam mais do que visíveis, eles passam a ser admirados,
temidos, desejados. Apesar da pouca idade, despertam o medo por onde passam, graças à
ameaça constante das armas de fogo, símbolos fálicos por excelência. Seu modo de falar,
de agir, de andar passa a ser imitado pelos mais novos, que trilham exatamente o mesmo
caminho que anteriormente foi percorrido por eles. Dentro das quadrilhas, tudo é mais fácil
para os jovens da Pedreira. Todas as mulheres do morro estão ao simples alcance de um
olhar, as melhores e mais caras roupas passam a ser sua vestimenta diária e nada lhes é
negado. Dentro do pequeno feudo favelado, eles se tornam absolutos, eles se sentem os
senhores da vida e da morte de toda uma comunidade, uma vez que e a ameaça da
brutalidade das quadrilhas está sempre presente para garantir o seu poder. Além disso, fazer
parte de uma das gangues do morro é a garantia de que ele terá proteção contra as
arbitrariedades das demais quadrilhas.
Outro aspecto que não podemos deixar de ressaltar é a relação que, nos grandes
centros urbanos, se estabeleceu entre as gangues dos bairros pobres e favelas e a atividade
do tráfico de drogas. No imaginário popular brasileiro, sem dúvida alguma com uma boa
dose de razão, a expressão “tráfico de drogas” adquiriu um significado tão ligado à
violência. Entretanto, os dados e as informações teóricas que fundamentaram esta pesquisa
desmistificam esta associação tão direta. Se adotássemos uma definição literal, meramente
denotativa, do que se chama “tráfico de drogas” nada mais teríamos do que a definição de
comércio clandestino de uma substância psicoativa natural ou sintética. No entanto, por se
190
tratar de uma atividade ilegal, e talvez até mesmo por isso exorbitantemente lucrativa, este
comércio adquiriu, em qualquer lugar onde se estabeleceu, um caráter muitas vezes
violento. Sem qualquer tipo de regulamentação ou instância que pudesse mediar conflitos
advindos da concorrência, nas grandes cidades, o tráfico varejista passou a ser controlado
por grupos que, não raramente, passaram a se enfrentar para garantir o controle de fatias
cada vez maiores do mercado.
Nos grandes centros urbanos, estabeleceu-se uma relação muito próxima, portanto,
entre o chamado “trafico de drogas” e as gangues que se formaram nos bairros pobres e
favelas. Aos poucos, muitas destas turmas começaram a perceber o potencial financeiro
desta atividade e se organizaram no sentido de explorá-la. Por outro lado, por ser ilegal, a
venda de tóxicos no regime de varejo se viu sensivelmente beneficiada pela realidade
sócio-econômica que encontrou em guetos e, mais precisamente, pela estrutura adotada
pelas gangues. Por isso, esta relação entre gangues e tráfico de drogas acabou por constituir
uma dinâmica de mão dupla. Se, por um lado, as gangues se organizaram e adaptaram suas
estruturas para explorar o lucrativo mercado varejista dos tóxicos, por outro, toda a
logística necessária à venda de drogas, que é uma atividade ilegal desde a sua produção até
a sua chegada ao consumidor final, só pode se realizar por meio de uma organização de
caráter igualmente fora-da-lei.
As gangues, com toda a sua estrutura verticalizada de poder, com seu caráter
territorial, despótico e violento, acabam por constituir quadrilhas, que são as entidades mais
adequadas para garantir a fluidez de seu negócio. E é justamente a partir da junção destes
dois fatores - o caráter violento, despótico e territorial das quadrilhas e os exorbitantes
ganhos financeiros trazidos pelo comércio de tóxicos - que se consolidou nas favelas das
grandes cidades a perversa dinâmica social que conhecemos hoje como “tráfico de drogas”.
Tanto que, atualmente, aquilo que se convencionou chamar de “tráfico” e todas as suas
disputas territoriais travadas pelas quadrilhas ligadas à sua exploração são hoje uma das
principais causas das mortes violentas registradas nos centros urbanos. Em Belo Horizonte,
por exemplo, dados da Polícia Civil demonstram que aproximadamente 65% dos
homicídios registrados possuem ligação direta ou indireta com o “tráfico de drogas” – a
saber, as disputas entre as quadrilhas de traficantes, as cobranças de dívidas de drogas, etc
(Divisão de Crimes contra a Vida – DCcV / Polícia Civil, 2003).
191
Considerando os dados coletados e analisados na pesquisa, é possível concluir,
também, que a existência das gangues da PPL está intimamente ligada à rotina e à logística
do comércio de tóxicos e entorpecentes, sendo que a recíproca também é verdadeira. Esta
ligação é tão forte, que fica muito difícil dissociar uma instância da outra. Nota-se, com
muita clareza, que é em torno do tráfico de drogas e de sua sempre presente possibilidade
de ganhos financeiros exorbitantes que as gangues se organizam da forma como vemos
hoje. Todo o caráter territorial, violento, despótico e belicista das gangues da Prado Lopes
foi potencializado a partir do momento em que elas assumiram, naquela comunidade, a
frente do comércio varejista de entorpecentes.
Além das mortes de pelo menos 87 pessoas na PPL, durante os últimos quatro anos,
fato que constitui o lado mais visível de sua violência, o tráfico de drogas também acabou
por desorganizar todos os poucos e ineficazes processos associativos e estruturas
simbólicas instituídos naquela comunidade. Se, em um primeiro momento, seu surgimento
e sua consolidação foram facilitados pela desorganização social e estrutural da favela, em
um estágio avançado de sua instalação, o tráfico acabou por inverter nesta dinâmica e
passou a ser, ele próprio, fomentador desta desorganização e da falência das estruturas e
instituições sociais presentes no aglomerado. Assim, é possível concluir, com base nesta
pesquisa, que, onde se instala, o tráfico corrompe policiais, destrói ou desestrutura
associações comunitárias, escolas, famílias, igrejas e todos os valores e representações
simbólicas que estão por trás destas instituições.
Na Pedreira, é através da ameaça constante das armas de fogo, dos espancamentos,
das violências arbitrárias e das execuções sumárias que as quadrilhas cerceiam a liberdade
das associações comunitárias, assim como limitam ou até impossibilitam o trabalho social
que diversas outras entidades se propõem a realizar. Para garantir o andamento eficiente do
tráfico, os quadrilheiros acabam por submeter toda a comunidade ao seu domínio territorial,
impedindo a livre circulação de pessoas por alguns pontos do aglomerado. Algumas
famílias também chegam a ser expulsas de suas casas, porque vivem em pontos
considerados estratégicos da favela. Muitos policiais que trabalham na PPL, por sua vez,
acabam por ganhar a fama de corruptos e violentos, uma vez que constantemente são vistos
aceitando dinheiro de traficantes e negociando pagamento de propinas para que os pontos
192
de venda de drogas possam funcionar livremente, O que contribui sensivelmente para que a
população local perca a confiança na única face que o Estado mostra na favela.
Nas escolas da Prado Lopes, o tráfico impede o trabalho de professores, muitas vezes
chega a impedir o acesso de alguns alunos às aulas, promove rivalidades entre turmas e
chega até mesmo a determinar o fechamento dos colégios, prática que é igualmente adotada
com os pequenos comércios do morro e com o único posto de saúde existente na região.
Além disso, os traficantes determinam quais festas podem ser realizadas na favela e onde
elas podem acontecer, dividem o morro em regiões, algumas das quais não podem ser
freqüentadas pelos moradores depois de certa hora da noite. Enfim, pode-se concluir que,
na Pedreira, as quadrilhas ligadas ao tráfico de drogas conseguiram estabelecer um domínio
territorial que mais se assemelha ao que era mantido pelos antigos barões feudais. Dentro
de seu território, amparados pela ameaça das armas de fogo, eles detêm o poder sobre o
direito de ir e vir, sobre o funcionamento dos estabelecimentos comerciais e das
associações de bairro. Impotente, a população local simplesmente não tem a quem recorrer.
Entretanto, o maior prejuízo trazido pela consolidação do tráfico de drogas na PPL
não é de ordem prática ou cotidiana, mas, sim, moral e simbólica. Na Pedreira, a afirmação
das gangues e de toda a sangrenta realidade do tráfico dissemina entre os jovens toda a
sorte de valores inerentes a uma verdadeira subcultura da violência. O fortalecimento das
quadrilhas ligadas ao comércio de tóxicos expõe todas aquelas crianças e adolescentes a um
grande manancial de representações simbólicas pautadas por valores belicistas; coloca-os
frente a frente com modalidades de relações interpessoais marcadas pelo machismo, pela
imposição do mais forte, pela ameaça das armas de fogo, pelo culto a uma vida de excessos
e pela subversão de todos os valores democráticos do associativismo popular.
Devido ao contato diário com os traficantes, cresce entre os jovens da Prado Lopes
uma visão negativa do trabalho humilde e assalariado, em contraposição à valorização do
ganho rápido e fácil do tráfico de drogas. Causa fascínio o estilo de vida desregrado e
emocionante dos quadrilheiros - sempre cheios de dinheiro, mulheres, armas, roupas de
marca, carros, jóias -, rotina esta que acaba sendo exatamente o contrário da vida humilde,
subserviente, cheia de privações, tediosa e sem a menor expectativa de sucesso à qual está
submetida a massa de trabalhadores que vive na favela. Para os jovens da PPL, o traficante
acaba sendo aquele que tem acesso às melhores roupas, às mais belas mulheres da favela e
193
ao respeito temeroso de toda uma comunidade. O traficante será aquele que, na maioria das
vezes, não precisará temer uma abordagem violenta da polícia. Será aquele que não
precisará se submeter aos desmandos e arbitrariedades das quadrilhas. Para muitas crianças
e adolescentes da favela, a figura do traficante emana poder, força, masculinidade,
capacidade de tomar o destino nas próprias mãos e fazer dele o que bem entender. Ao
contrário do exemplo paterno que vem de dentro de casa, que constitui a própria imagem da
derrota, da sujeição, da humildade, da subserviência e da incapacidade fundamental de se
impor enquanto macho, como ressalta, em seu estudo, Zaluar (1994).
A disseminação dos valores violentos e machistas do tráfico e das gangues incute na
cabeça dos jovens uma definição estereotipada de honra masculina, segundo a qual não
pode haver ofensa sem uma resposta. E, na imensa maioria das vezes, a resposta é a
agressão, a humilhação e muitas vezes a ameaça ou até mesmo o uso da arma de fogo. Esta
estrutura simbólica machista do revide deteriora a capacidade de discernimento e
julgamento dos jovens, que passam a não analisar mais uma determinada ação sob o prisma
do certo ou do errado. Nenhuma ação é julgada por si só como má, criminosa ou errada. O
ato de matar, agredir ou roubar, por exemplo, passa a ser julgado segundo os padrões
morais da subcultura vigente no local. Entre os jovens da PPL, por exemplo, é bastante
comum não ser considerado um criminoso aquele rapaz que vinga a morte de um parente.
Dentro de uma subcultura machista e violenta, o uso de recursos violentos é plenamente
justificável enquanto elemento de manutenção da honra do macho.
Portanto, muitos indícios revelados nesta pesquisa nos levam a concluir que, se em
um primeiro momento a violência das gangues acabou por permear todos os aspectos
práticos da vida na Pedreira, no estágio atual, a consolidação da dinâmica perversa do
tráfico de drogas vem sendo incorporada ao cotidiano dos jovens daquela comunidade, a
ponto de institucionalizar entre eles uma verdadeira subcultura da violência. Os valores, as
estruturas simbólicas e as representações coletivas das gangues e do tráfico vêm se
disseminando de tal forma entre crianças e adolescentes, que todas as suas atrocidades, suas
arbitrariedades e inversões de valores já passaram a ser aceitos como perfeitamente naturais
entre muitos deles. Instalada na PPL por meio da brutalidade das quadrilhas, a estrutura
perversa do tráfico de drogas já começa a se constituir como agência de socialização que
concorre diretamente com as famílias do aglomerado.
194
Dentro das gangues, cada vez mais crianças começam a se pautar por uma cultura
machista, belicista sectária e antidemocrática. A força das armas e a intimidação das
gangues começam, aos poucos, a substituir o poder da palavra, da negociação e dos
princípios mínimos de civilidade. Na Pedreira Prado Lopes, a dinâmica do tráfico de drogas
seduz as crianças, brinca com suas fantasias, subverte toda a estrutura de valores
personificados por instituições como família, escola e igreja. O tráfico intimida e corrompe
agências governamentais, faz surgir na favela uma autêntica subcultura do gueto, contrária
a todos os pressupostos do livre associativismo comunitário. Se, em um primeiro momento,
as gangues e o tráfico conseguiram se instalar na PPL, porque lá encontraram um cenário
de completa desestruturação sócio-econômica, no estágio atual, este processo se
potencializou. Como um mecanismo que se retro-alimenta, hoje em dia é a brutalidade das
gangues e a dinâmica do tráfico que configura o cenário adequado para se corromper,
intimidar, desorganizar e subverter valores ou instituições de socialização e de controle
como família, igrejas, escolas e associações de bairro.
A Pedreira Prado Lopes está hoje sob o domínio do tráfico de drogas e das gangues
ligadas à sua exploração. Todos os aspectos da sua vida comunitária estão impregnados
pela violência das quadrilhas, por suas disputas territoriais e pelos seus valores
antidemocráticos, despóticos e belicistas. Está sendo criada uma geração de crianças e
adolescentes que nunca soube o que é viver em uma comunidade sem medo, sem mortes,
sem confrontos armados. Uma geração que fala as gírias do tráfico, que opera com
representações simbólicas do tráfico, que compartilha todos os valores violentos das
quadrilhas e, mais do que isso, que começa a enxergar nas gangues uma alternativa viável
para a falta de perspectivas sócio-econômicas às quais eles estão fadados desde o
nascimento.
Justamente por isso, qualquer política pública que se disponha a tentar solucionar este
problema não poderá lidar apenas com aspectos estruturais ou legais. Muito mais do que
simplesmente combater as quadrilhas através de um trabalho de repressão qualificada –
intervenção infinitamente mais trabalhosa e precisa do que as sempre violentas, arbitrárias e
corruptas “ocupações” ou “incursões” - será preciso lidar com aspectos simbólicos,
arquitetônicos, culturais, educativos, econômicos, urbanísticos e estruturais da Pedreira.
195
No que se refere à economia local, por exemplo, ficou muito evidente que o dinheiro
do tráfico, apesar de não ser aplicado diretamente na própria PPL, movimenta e aquece o
comércio de diversos estabelecimentos naquela comunidade. Tomemos como base a
estimativa feita em capítulos anteriores, segundo a qual o tráfico de drogas na Pedreira
movimenta pelo menos US$7,2 milhões por ano. Suponhamos que metade deste montante
seja reinvestido no próprio tráfico, para financiar a compra de novos carregamentos de
droga, a compra de armas, o pagamento de propinas à polícia e o pagamento de todas as
pessoas envolvidas com sua logística. Restam pelo menos US$3,5 milhões ao ano nas mãos
dos traficantes que, em sua imensa maioria, vivem na própria PPL e se vêem obrigados a
gastar boa parte deste dinheiro dentro da favela. Portanto, pode-se dizer com boa margem
de segurança que parte da verba do tráfico circula dentro da própria Pedreira, através dos
bares, das vendas, nos barracões que são construídos ou reformados, nas festas que o tráfico
promove e em todos os tipos de comércios e serviços informais existentes dentro do
aglomerado.
Mais uma vez, faz-se necessário ressaltar que durante toda a realização desta
pesquisa, não nos foi possível detectar qualquer tipo investimento direto feito pelos
traficantes em melhorias e benfeitorias para a Prado Lopes. Mas fato é que, ano após ano, o
tráfico movimenta uma soma milionária na Pedreira. E, direta ou indiretamente, este
dinheiro tem que circular. Desta forma, torna-se bastante válido o questionamento de como
ficaria a economia local da PPL, se o dinheiro do tráfico desaparecesse repentinamente da
favela. Justamente por isso, acreditamos que qualquer iniciativa a ser tomada para combater
as gangues e o tráfico da Prado Lopes deverá também contar com um programa de geração
de renda, para que a comunidade não sinta de forma negativa o desaparecimento do
dinheiro das drogas.
Voltando nosso olhar para aspectos eminentemente sociais e tomando como base a
análise feita em capítulos anteriores, concluímos que é preciso intervir de forma a promover
o resgate de instituições como a família, as escolas, as associações comunitárias, as igrejas,
os clubes esportivos e recreativos, a fim de estimular o fortalecimento de instâncias de
socialização e vigilância informal.
Durante a realização desta pesquisa na Pedreira, observamos que existem associações
comunitárias bastante dedicadas a realizar seu trabalho na favela, mas elas não conseguem
196
mobilizar os moradores em torno de questões referentes à própria Pedreira. Isso significa
dizer, portanto, que os moradores não chegam ao ponto de colaborar com os traficantes,
mas também não fazem praticamente nada de efetivo para reprimir sua atuação. Justamente
por ser tão desmobilizada, a comunidade da PPL nunca se envolve diretamente em
nenhuma iniciativa que pretenda a desestruturação das quadrilhas. Desta maneira, seria
extremamente necessário desenvolver na Prado Lopes um trabalho de fortalecimento de
instituições primárias de sociabilidade e socialização. Até mesmo para dar sustentação local
a qualquer iniciativa de combate ao tráfico de drogas que venha a ser tentada.
É necessário também recuperar a pouca ou quase nenhuma confiança que a população
deposita no trabalho policial. É fundamental mudar a imagem violenta e corrupta que a
polícia adquiriu no morro, não injustamente, diga-se de passagem. As constantes ocupações
militares da Pedreira, sempre realizadas para satisfazer as cobranças esporádicas da
imprensa, fizeram com que a população da PPL percebesse a falta de interesse da polícia
em realmente tirar de circulação os verdadeiros traficantes da favela. Nestas grandes
operações, sempre são presos rapazes que ocupam funções menores no tráfico e
apreendem-se sempre pequenas “buchas” de drogas e algumas armas velhas. Por omissão,
vazamento de informações ou até mesmo conivência, nunca se chega aos grandes
criminosos. Criminosos estes que são vistos diariamente nas ruas da favela, conversando
tranqüilamente com os mesmos policiais que sempre participam destas ocupações.
Os dados coletados e analisados durante a elaboração desta pesquisa deixaram muito
claro que é preciso fortalecer não o poder de fogo das polícias, mas sim seu poder de
inteligência e investigação, para que elas passem finalmente a realizar um trabalho de
repressão efetivamente qualificado. É preciso, enfim, fazer com que as polícias se pautem
por uma intervenção mais precisa e menos truculenta. Até porque durante a realização desta
pesquisa, foram colhidos vários relatos de torturas, extorsões, humilhações, invasões de
domicílio e até mesmo vandalismo praticados por policiais. Fato é que a população da
Pedreira não confia na polícia, seja ela Civil ou Militar. E a partir do momento em que a
comunidade não acredita na integridade do único braço do Estado que sobe à favela,
qualquer iniciativa que se proponha a solucionar o problema da violência e da
criminalidade na PPL estará irreversivelmente fadada ao fracasso.
197
É necessário, portanto, recuperar a auto-estima e o sentimento de unidade daquela
população, para que ela se torne, pela primeira vez em toda a sua história, uma comunidade
de fato. Através de uma atuação efetivamente positiva, é fundamental apagar do imaginário
da comunidade a imagem corrupta, despreparada, violenta e oportunista que por lá adquiriu
não apenas a polícia, mas todas as instâncias do Estado. Por mais simplista e óbvia que esta
conclusão possa parecer, não há como deixar de dizer que será preciso que o Estado entre
na Pedreira Prado Lopes. Não com as armas e a violência da polícia, como tem feito há
décadas sem alcançar qualquer resultado, mas com a real intenção de promover ali a
cidadania, o associativismo, a participação popular e a dignidade humana em seu sentido
mais amplo.
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ANEXO 1: Entrevistas com lideranças comunitárias da Pedreira Prado Lopes Entrevistado 1: S. A., 28 anos, funcionário público e morador da Pedreira Prado Lopes. É membro da ARCA-PPL (Associação Recreativa Comunitária Amigos da Pedreira Prado Lopes). Entrevista realizada em 19/12/2004. P: Você vive na Pedreira Prado Lopes há quanto tempo? R: Desde que nasci. Meus pais moram lá há muitos anos e sempre morei lá na Pedreira. P: Por que decidiu desenvolver trabalhos comunitários? R: Porque eu cresci lá e sempre vi a dificuldade daquele povo. Tem muita coisa que precisa ser feita lá, mas ninguém se dispõe a fazer. Aí, quando a Prefeitura começou a fazer o Orçamento Participativo, eu comecei a participar das votações e fui me envolvendo com os assuntos da comunidade mesmo. Depois disso eu comecei a trabalhar na Regional Noroeste, que é quem cuida da área da Pedreira, coordenando o setor do Orçamento Participativo. Mas também faço parte da Arca-PPL (Associação Recreativa Comunitária Amigos da Pedreira Prado Lopes), que organiza escolinhas de esporte para as crianças da Pedreira. Aí foi mais ou menos assim que eu comecei a fazer trabalho comunitário. Porque se você não pegar pra fazer, ninguém faz, né? P: Como avalia o envolvimento dos moradores da Pedreira Prado Lopes em questões da própria comunidade? R: Olha, se você for pensar em como é que era antes, agora é melhor. Mas infelizmente a participação do povo ainda é muito fraca. Já foi bem pior. Como eu te falei, hoje melhorou muito se você for pensar como era antes. Mas ainda dá muito trabalho conscientizar a comunidade da Pedreira que ela precisa se mobilizar pra conseguir as coisas. Hoje o pessoal participa mais do Orçamento Participativo, as escolinhas de esporte também dão muito certo porque os meninos vão mesmo, mas podia ser muito melhor. Parece que muita gente ainda não aprendeu que só a gente mesmo é que pode mudar aquela situação ali. Se ficar esperando de Governo só não vai mudar nada nunca. Mas ainda é muito difícil, muito difícil. Tem que ficar insistindo para o povo participar de reunião, tem que ficar explicando porque é importante cada um ir. É muito complicado porque o povo parece que não acredita muito que pode mudar alguma coisa, sabe como é que é? É complicado pra gente, mas não dá pra desistir não. A gente vai levando. P: Quais são as principais dificuldades enfrentadas por você no trabalho comunitário? R: É que nem eu te falei antes. A dificuldade é convencer os moradores que a participação de cada um é importante. E é um trabalho meio de formiguinha mesmo, porque você fala com um aqui, fala com outro ali, e às vezes tem que ficar pedindo para o povo participar das decisões, para votar no orçamento participativo, para tentar trazer melhorias para a Pedreira. E outra dificuldade também é a situação que a Pedreira vive, né? A coisa das
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drogas, das gangues que tem lá que traz muita dificuldade pra gente. Porque é mais uma coisa contra a qual você tem que lutar, né? P: Como é a relação das lideranças comunitárias com os traficantes? R: Ah, é complicada demais. É complicada porque ao mesmo tempo em que não dá pra bater de frente com esse pessoal, a gente tem que trabalhar pra tentar tirar os meninos dessa, né? Porra, é muito complicado... Só tem menino da comunidade nas gangues, então a gente fica numa situação difícil. Fora que é muita guerra entre eles lá, muita gente andando armada pra cima e pra baixo. E isso coloca medo na comunidade. Todo mundo fica com medo de sair de casa, com medo de chamar a polícia, com medo de tudo. Então isso acaba dificultando demais o trabalho da gente porque fica todo mundo com medo e é complicado você pedir a participação de quem tem medo. A coisa tinha melhorado um pouco, mas com essa volta do Roni agora a situação ficou insuportável de novo. Muita gente morre, a polícia volta pra Pedreira, apronta com todo mundo, esculacha morador, o povo fica com medo e fica muito difícil. Ficou tão ruim que há pouco tempo mesmo a gente parou de esperar a polícia e teve que tomar uma providência. Não estava mais dando para suportar a situação que estava aqui na Pedreira. O pessoal se reuniu com os meninos do movimento e pediu para eles pararem pelo menos até passar Natal e Reveillon. Do jeito que tava não dava pra sair de casa, não dava mais nem pra sair pra trabalhar. Era tiro dia e noite, dia e noite, ninguém mais tava agüentando. Outro dia mesmo, um tanto de gente foi ferida com bala perdida. Uma pegou até mesmo em uma funcionária lá do Odilon Behrens. E a gente sabe que a polícia não tá nem aí porque, enquanto for pobre que estiver morrendo, pra eles tá bom. Isso fora os que levam grana, né? Aí o pessoal achou por bem procurar os meninos e pedir uma trégua pelo menos pra gente poder curtir o Natal em paz. P: Como é a relação da comunidade com a polícia? R: É complicado a gente falar disso... Tem certeza que não vai sair meu nome nisso aí, né? Qualquer coisa eu não te falei nada disso não, viu? Mas cê quer ver como é que funciona a coisa da polícia lá na Pedreira? Lembra daquele episódio da ‘crackolândia’, quando a Globo mostrou aquelas imagens de um tanto de noiados na Araribá? Pois é, a imprensa caiu em cima e choveu de polícia na Pedreira durante mais de um mês. Mas foi só a poeira baixar que a polícia saiu. Aí, uma turma de policiais que trabalha há muito tempo aqui na Pedreira sentou com os traficantes e negociou com eles um pagamento semanal pra dar sossego. Cada ‘boca’ iria ter que pagar uma quantia X para não ser incomodada pela polícia de novo. Desde esse dia, tem ‘boca’ na Pedreira que paga coisa em torno de R$10 mil por semana. E todo mundo sabe quem são esses policiais. Tem um lá que fala claramente pra quem quiser ouvir que quem manda ali é ele. Que ele é o príncipe e que a mulher dele vai ter casamento de princesa. E que quem vai pagar são os traficantes. Essa é a polícia que a gente tem na Pedreira. E quando tem ocupação é pior. Quando não tem imprensa perto eles bordam mesmo. Teve um dia lá que um grupo de PMs pegou um menino no meio da rua e deu uma geral nele. Não encontraram nada com o rapaz lá, mas ficaram humilhando ele. Fizeram ele tirar a roupa no meio da rua e descer a Pedreira quase toda pelado, no meio da rua, pra todo mundo ver. Essa é a polícia que a gente tem na Pedreira. Quando a polícia sobe é pra humilhar morador, pra invadir casa, arrebentar porta, esculachar os outros e arrancar dinheiro de traficante. É complicado.
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P: Qual seria a solução para os altos índices de criminalidade da Pedreira Prado Lopes? R: Na minha opinião, o único jeito de acabar com esse negócio de droga é investir nas crianças. É dar lazer, educação, coisa pra fazer mesmo. Pra tirar aqueles meninos da rua, pro tráfico não ficar enchendo a cabeça deles como enche hoje em dia. Você pega os meninos que vão nas nossas escolinhas de esporte, por exemplo. Só pode freqüentar quem está na escola. E a gente sempre tá martelando na cabeça deles a importância de ser uma pessoa de bem, de não se envolver com essas coisas erradas, de não cair nessa ilusão de tráfico. Porque isso é uma ilusão. Ninguém que entra pra essa vida passa dos 20 anos. Mas é muito difícil porque eles crescem ali dentro e ficam vendo só isso pela frente, é complicado. Acho que é isso. Tem que dar perspectiva pras crianças que estao ali na Pedreira.
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ANEXO 2: Entrevistas com moradores da Pedreira Prado Lopes
Entrevistado 1: J. G. F., 65 anos, catador de papel, morador da Pedreira Prado Lopes. Entrevista realizada em 21/03/2003.
P: Mora há quanto tempo na Pedreira Prado Lopes? R: Ah, meu filho... Tem uns 30 anos já... É... É por aí... Uns 30 anos já. P: Na sua opinião, quais são os principais problemas da comunidade? R: Problema? Ah, é a pobreza, né? É muita miséria, é muita gente sem trabalho. E essas guerra desses menino aí, né? Isso aqui já foi bom de morar. Hoje não é bom mais não. Hoje tem muita gente com arma, muito desses menino andando armado e muito tiro. É muita violência. P: Como é a relação dos moradores da Pedreira Prado Lopes com os traficantes? R: Ah, meu filho... Não tem muita relação não... Não dá pra ficar mexendo com esses menino não, porque qualquer coisa que cê faz eles já acha que tá querendo problema. Aí não dá pra ficar mexendo com eles não. Você vê que eles tá tudo lá mexendo com aquelas coisa deles lá mesmo, mas finge que não vê que é melhor, né? P: Tem algum familiar que se envolveu com o tráfico? R: Teve dois meninos meus que acabou mexendo com isso, sim senhor. Infelizmente teve sim. E não foi porque faltou nada pra eles aqui dentro de casa não que você pode ver que é casa humilde, mas eu sempre trabalhei e nunca deixei faltar nada pra aqueles menino não. Mas eles acabaram entrando pra essa vida sim. P: Já teve alguma experiência com o tráfico ou contato direto com os traficantes? R: É que nem eu tô te falando dos meus menino mesmo. Os dois acabou mexendo com isso. E acaba trazendo a desgraça pra dentro de casa, né? Porque chega numa hora que não tem mais jeito de não vê que o menino tá mexendo com coisa errada. Cê vê que ele tá andando demais com esses menino aí, que só sai na companhia deles. Um deles, o mais velho, eu já sabia que tava mexendo com esse trem de droga. O outro eu demorei pra descobrir porque eu ficava de cima dele pra não cair nessa vida. Mas também não teve jeito não. Eu só fui saber que meu outro filho também tava metido com isso aí no dia que eles arrebentaram a porta da minha casa e entraram aqui pra dentro com as arma na mão. Aquele bando de menino sacudia um tanto de arma e perguntava onde é que tava meu filho. Eles quebraram a casa toda, chutou minha mesa, deu tiro na televisão, quebrou tudo que tinha na frente. Eu disse que não sabia do meu menino, que não via ele tinha uns três dias já. Mas não adiantou porque eles colocou a arma no meu peito e me arrastou para fora de casa. Me deram tapa na cara na frente de todo mundo, chute na barriga e bateram com as arma na minha cabeça. Foi muita humilhação, só eu é que sei. Eles falou que se meu menino não aparecesse para morrer que nem homem, eles ia voltar e matar a família toda. Eu fiquei lá no meio da rua, todo machucado, sem poder fazer nada. Ia fazer o que?
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E o pior é que todo mundo na rua viu, mas ninguém faz nada porque não tem jeito não. Se você fala qualquer coisa, eles fica sabendo e já vem pra cima de você com aquele tanto de arma e mata mesmo. Todo mundo sabe quem é, mas não adianta porque quando eles tão de guerra - é guerra que eles fala, né? – eles mata mesmo, não quer nem saber quem é. Todo dia o negócio é sair de casa e nem olhar pro lado, porque se eles cisma com você, você tá perdido. E todo mundo vive assim. Esse bando de menino fica no meio da rua de arma na mão e você tem que fingir que não tá vendo nada. P: O que você já viu os traficantes fazerem? R: Ah, meu filho... A gente aqui vê coisa que até Deus duvida... Tem vez que, de noite mesmo, eles passa na rua tudo junto, com aquelas touca na cabeça e carregando umas arma grande assim. É tudo uns menino novo, tudo daqui da Pedreira mesmo, mas parece guerra, cê precisa de ver. O negócio é fechar a porta e a janela e fingir que não tá acontecendo nada. Porque quando eles tá assim, pode saber que eles vai matar alguém. E eles pega na covardia. Junta tudo num só e enche de tiro no meio da rua. E mata de graça. Mata porque falou uma coisa que o outro não gostou, mata porque é inimigo, mata por causa de mulher, mata porque ta vendendo droga pra eles. É assim mesmo que acontece e ninguém pode falar nada. Isso aqui é onde o filho chora e a mãe não escuta, moço... O pior disso tudo sabe o que que é, menino? É que as família não tem nada a ver com a guerra deles. Mas sempre é o filho é que faz e a família é que paga. Eu sou viúvo e tenho dois menino. Um, eu morri de tanto falar na cabeça dele, mas não adiantou. Um dia eles pegou meu menino e matou ele com um tanto de tiro no meio da rua. O outro tá preso. E eu acho que é até melhor tá assim mesmo, porque assim pelo menos ele fica vivo. E sabe o que me dá raiva, menino? É que eu não consigo entender como é que esse bando de menino ficou desse jeito. Quando era pequeno, ficava tudo por aí, brincando junto no meio da rua. Agora fica esse negócio de guerra aí que não dá pra mim entender. Fica andando pra cima e pra baixo com arma na mão, tudo dando tiro um no outro como se fosse inimigo. Mas é tudo menino daqui mesmo, é tudo menino que a gente viu crescer aqui na Pedreira mesmo, como é que pode? Acho que é esse trem de droga que estraga tudo. É esse trem de droga que faz isso com esses menino aí P: Como você vê o trabalho da polícia? R: Ah, isso aí nem é bom a gente ficar falando demais não. Sabe por que? Porque é muita coisa errada que a gente vê, né? Esses polícia vem aqui, sabe quem é que faz as coisa errada mas nunca prende quem tem que prender. Então dá pra pensar que tem coisa errada , não é? Aí você não entende porque vê uns polícia aí conversando com uns menino que você sabe que anda na vida errada. Mas eles conversa junto, tudo junto. Então essas coisa é melhor a gente não falar muito não, né?
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Entrevistado 2: W. S. C., 31 anos, desempregado, morador da Pedreira Prado Lopes. Entrevista realizada em 11/02/2004. P: Mora há quanto tempo na Pedreira Prado Lopes? R: Moro aqui tem uns 10 anos. P: Quais são os principais problemas da comunidade? R: Com certeza é o tráfico. Com certeza. A gente não tem sossego pra nada. É muito aperto que a gente passa aqui com esses meninos aí, você nem imagina. P: Como é a relação dos moradores com os traficantes? R: Não tem muita relação não. Cada um fica na sua. É só não mexer com eles que eles não mexe com você. Tem que fingir que não tá vendo nada dessas coisa aí porque senão fica feio pro seu lado. P: Tem algum familiar que se envolveu com o tráfico? R: Graças a Deus não. P: Já teve alguma experiência com o tráfico ou contato direto com os traficantes? R: Contato direto assim não. É que nem eu te falei, né? A gente não mexe com eles e eles não mexe com a gente. Todo mundo faz que não tá vendo e cada um cuida da sua vida. P: O que você já viu os traficantes fazerem? R: Ah, meu irmão... Já vi coisa que até Deus duvida aqui. Aliás, todo mundo que mora aqui já viu. Teve um dia que era mais ou menos umas dez e meia quando comecei a escutar os grito. Pela minha porta deu para ouvir que era um rapaz correndo de uns três que tavam atrás dele. Ele corria pelos beco gritando e batia desesperado nas porta pedindo pelo amor de Deus para abrir. Ele batia, batia, batia, pedia ajuda, pelo amor de Deus. Mas ninguém abria que ninguém é doido de acudir numa situação dessas, né? Os que tava atrás dele só gritava: ‘vai morrê, filho da puta, vai morrê!’ Ai comecei a ouvir só os pipoco. Parecia que eles corria atrás do coitado e atirava pelos beco. Pelo que deu pra ouvir, eles vieram tudo pelo Beco do Profeta e fecharam o rapaz no São Geraldo mesmo. Foi muito tiro, muito tiro, e bem perto da minha porta. Tava um silêncio danado na favela e só dava pra ouvir o cara pedindo pelo amor de Deus, pelo amor de Deus. Eles encheram ele de pipoco e um gritava sem parar: ‘viu mané? Viu mané?’ Foi uma coisa horrorosa, porque você não pode se meter. Tem que ouvir o cara morrê na sua porta e não pode fazer nada. Se entrar no meio, leva azeitona junto com quem eles tá caçando. Tem que ouvir tudo e fingir que não tá acontecendo nada. Às vez você até reconhece a voz de quem é que tá gritando, as voz de quem é que tá cobrando a parada. Aí você até encontra com eles na rua no dia seguinte. Mas tem que fingir que não ouviu nada, que não rolou nada. E assim vai levando a vida. Se o cara morrê cheio de bala na sua porta, você tem que deixar como tá porque senão eles cobra mesmo. E quando eles cisma que cagüetou ou chamou os homi, acabou procê. É caixão e vela preta
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P: Como você vê o trabalho da polícia? R: (Entrevistado sorri e abaixa a cabeça) Tem certeza que cê quer falar disso mesmo? É meio foda pra gente esses trem de polícia. Mas tá aí pra quem quiser ver. Ocê mesmo se vier aqui uma noite, é só ficar ali naquela área da Araribá, da Carmo, da Marcazita ali que cê vê o que eu tô falando. Não precisa nem eu te responder isso aí não. Mas pensa bem. Todo mundo sabe quem é que mexe com tráfico, todo mundo tá vendo porque eles não escondem de ninguém. E por que que os ‘homi’ não pega ninguém? Aí você tira suas conclusões. Entrevistado 3: M. A. F. J., 42 anos, dona-de-casa e moradora da Pedreira Prado Lopes. Entrevista realizada em 21/03/2003. P: Mora há quanto tempo na Pedreira Prado Lopes? R: Moro aqui há uns oito anos, mais ou menos. Acho que é isso mesmo. P: Quais são os principais problemas da comunidade? R: Pra mim é esse negócio dessas gangue aí. É droga, né meu filho. É tudo droga. Esses meninos começam a mexer com isso e começa a desgraça toda. Isso é a desgraça aqui da Pedreira. P: Como é a relação dos moradores com os traficantes? R: Cruz credo, Deus me livre! Ninguém aqui mexe com eles não, meu filho. Cê tá doido? Deus me livre e guarde! Mexer com esse pessoal é morte certa. Cê não vê o tanto de menino que tá morrendo aqui esse ano não? E você ainda acha que alguém de bem vai ficar envolvendo com eles? Não dá não. Eu mesmo faço que nem vejo. Passo reto e nem cumprimento direito. P: Tem algum familiar que se envolveu com o tráfico? R: Graças a meu bom Jesus não. Fico em cima dos meus menino pra eles nem olhar pra esse lado aí. Se eu souber que tá envolvendo com esses malandro eu corto no couro. Aliás, eu acho que todos esses menino que começa a envolver com isso é porque o pai e a mãe não olhou direito. O pai e a mãe sai para trabalhar e não têm com quem deixar os meninos. Aí fica tudo por aí, jogado no meio da rua aprendendo coisa errada, convivendo com esses malandro aí. É porque, se você for ver, aqui na Pedreira tem muita gente boa, mas também tem muito malandro ensinando coisa errada para esses menino aí. E mãe não pode bobear que quando vê menino já tá mexendo com esse trem de droga. E não é que o pai e a mãe sejam largado com eles não. É porque se não trabalhar fora, os filho morre de fome. Aí fica tudo o dia inteiro na rua, brincando por conta deles mesmo e tudo que eles aprende é por conta deles mesmo. E o meu pai que falava que ‘cabeça vazia é oficina do diabo’. Vira e mexe você vê uns menino de nove, dez, onze ano tomando conta dos irmão mais novo. E isso não tá certo não, porque é justamente nessa idade é que começa a se envolver com essas malandragem aqui da Pedreira
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P: Já teve alguma experiência com o tráfico ou contato direto com os traficantes? R: Cruz credo, Deus me livre! To te falando que eu nem olho pro lado deles não. Passo reto e finjo que nem vejo que eles tão ali. P: O que você já viu os traficantes fazerem? R: Eu não vi nada, meu filho. Não vi nada, não sei de nada. Se me perguntar eu não falo porque esse povo tem ouvido até onde Deus duvida. E eles cobra mesmo esse tipo de coisa se ficar conversando fiado por aí. Chega de noite eu fecho a porta da minha casa, fecho a janela, coloco meus menino pra dentro e não sei de mais nada. P: Como você vê o trabalho da polícia? R: Ah, menino... Aqui vive cheio de polícia. Mas só na hora que não precisa. Porque na hora que precisa mesmo não vem. Quando tá cheio desses malandro aí no meio da rua, eles não vem. Só vem mesmo depois que já teve tiro, depois que já matou. Aí enche de polícia e de reportagem. Aí não precisa aparecer mais não porque a desgraça já tá feita, não é não? E quer saber? De polícia também eu quero distância porque quem se mistura com os porcos, come lavagem. Era meu pai que falava isso e ele tá mais é certo. Entrevistado 4: J.T.S., 71 anos, marceneiro e morador da Pedreira Prado Lopes. Entrevista realizada em 12/07/2002. P: Mora há quanto tempo na Pedreira Prado Lopes? R: Ih, tem muito tempo. Moro aqui desde que eu nasci. A Pedreira era muito diferente de hoje, não tinha posto de saúde, não tinha nem o D.I. (Departamento de Investigações) lá em baixo pra você ter uma idéia. Eu to velho de casa (risos). P:Quais são os principais problemas da comunidade? R: Ah, problema aqui é o desemprego, né? Tem muito pai de família aqui que tá sem trabalho. Tenho um monte de vizinho que não consegue trabalhar pra colocar comida dentro de casa, que fica vendo os filho e a mulher aí passando necessidade. Acho que o problema aqui é a falta de trabalho. A falta de trabalho e essas malandragem aí, né? Esses menino que fica com essas coisa que eles chama de gangue aí. P: Como é a relação dos moradores com os traficantes? R: Aí você começou a falar de uma coisa complicada... Ah, meu filho... Sempre teve malandragem aqui na Pedreira. Só que não era isso que todo mundo vê aí hoje não. Na minha época mesmo, tinha aí os malandro. Mas eles respeitava a gente. Eles ficava aí com as coisas deles e não mexiam com ninguém. Quando tinha problema, era só entre eles mesmo, por coisa deles mesmo. E resolvia tudo pra lá, não tinha esse negócio de prejudicar o povo da Pedreira que nem esses menino que tão aí hoje não. Hoje é que fica ai essa meninada que não respeita ninguém, que não quer saber se é morador da Pedreira ou não.
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P: Tem algum familiar que se envolveu com o tráfico? R: Tive não. Graças a Deus tive não... P: Já teve alguma experiência com o tráfico ou contato direto com os traficantes? R: Não tive também não. Não mexo com esses menino não, meu filho... P: O que você já viu os traficantes fazerem? R: (Silêncio) Já vi de tudo, meu filho... Já vi de tudo aqui nessa Pedreira. Coisa que se eu contar até Deus duvida. O problema é esse negócio de droga. Antigamente, a malandragem nem mexia tanto com isso não até porque o morador nem sabia direito como é que funcionava esse negócio de tráfico aí. Agora cê vê que é tudo menino mexendo com esse negócio de tráfico. Tudo menino novo. É arma, é droga, é guerra... Ninguém mais tem sossego aqui na Pedreira... O problema é que esses menino não respeita ninguém. Se eles cisma com você, acabou. Se alguém compra coisa na mão deles e não paga, eles vem em cima mesmo. E não tem perdão, não tem conversa. Eles arrasta no meio da rua, eles coloca arma na cara, dão surra mesmo. Isso quando não mata o sujeito que é pra dar exemplo. Eles dão tiro no meio da rua, queima as lâmpada da rua tudo, fica mostrando arma pra quem quisé ver... E não tem respeito com morador daqui não. Tem dia que eles cumprimenta você e até trata bem, mas tem dia que, se você olha demais, eles perguntam que que tá querendo, se perdeu alguma coisa lá, que é pra sair fora logo que eles acha que tá querendo cangüetá. O negócio aqui é levar a vida e não mexer com eles. Tem que fingir que eles não tão lá e nem querer saber o que ta acontecendo P:Como você vê o trabalho da polícia? R: Polícia? Cê tá é brincando comigo, né? (silêncio) A gente tá sozinho aqui, meu filho... Sozinho... Polícia aqui é o terror. Tem um vizinho meu aqui que a polícia já entrou na casa dele, já bateu nos menino tudo, revirou a casa toda, jogou lata de arroz no chão, chamou todo mundo de ladrão, de preto... É chato a gente ficar falando isso porque tem uns polícia de bem também. Mas é muito pouco. Na maioria das vez é quase tudo malandro igual a esses menino que fica por aí. Às vez você até vê eles andando junto “coliado” um com o outro. Como é que pode isso? É difícil pra mim entender como é que pode. Aí a gente fica sozinho aqui, não tem pra quem pedir ajuda. Entrevistado 5: J.M.S.B., 25 anos, dona de casa, moradora da parte alta da Pedreira. Entrevista realizada em 13/08/2004. P: Mora há quanto tempo na Pedreira Prado Lopes? R: Morar na Pedreira eu moro minha vida inteira. Mas tem pouquinho tempo que eu mudei aqui pra essa casa. P: Quais são os principais problemas da comunidade? R: Uai, é isso aí que todo mundo tá vendo, né? Violência que tá demais. Essas gangues aí que não deixam a gente nem sair de casa.
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P: Como é a relação dos moradores com os traficantes? R: Ah, não dá pra ficar envolvendo com eles não, né? Tem até gente que pede umas bobagem ou outra aí pra eles, mas eu nunca pedi não e a maioria também não pede não porque depois o preço é alto, né? Acho que é mais cada um no seu canto mesmo. Acho que o povo não envolve muito não até porque eles também não fazem por onde. Por exemplo, eu já vi eles falando por aí que eles não deixam ter roubo aqui na favela, que aqui não vai ter malandro pra atrasar a vida de ninguém. Mas é porque se tiver roubo chove de polícia e atrapalha o movimento deles. Não é porque eles querem o bem de ninguém que mora por aqui, cê tá me entendendo? Eles não fazem nada pela Pedreira não. Aliás, só prejudicam, porque a Pedreira tem essa fama toda por causa deles. Aí, se você vai caçar emprego na rua e diz que mora na Pedreira, já era. Eles pensam que é tudo bandido que mora aqui. Mas a maioria é trabalhador. Por causa de uma meia dúzia de menino que fica andando armado aí, todo mundo paga o pato. E é um inferno, porque cê não arruma emprego, não pode sair de casa depois que fica de noite. Se saiu de casa, tem que voltar antes de ficar de noite porque senão é perigoso demais. Isso aqui é um inferno por causa desse trem de droga, mas a gente vai fazer o que? Polícia que é polícia não faz nada, às vezes fica até de acordo com eles, a gente vai fazer o que? P: Tem algum familiar que se envolveu com o tráfico? R: Meu ex-marido já mexeu com isso uma vez, mas já pagou o que devia e hoje é trabalhador. Não mexe mais com isso não. P: Já teve alguma experiência com o tráfico ou contato direto com os traficantes? R: Eu, não. Nunca mexi com isso não e nem olho pro lado deles não. P: O que você já viu os traficantes fazerem? R: Ah, já vi praticamente tudo que cê pode imaginar. É que nem eu te falei. Morei aqui na Pedreira minha vida inteira, mas tem uns três meses só que tô morando aqui no beco Bom Jesus. E hoje eu posso te falar com certeza que meu maior sonho é sair daqui da Pedreira. Cê pode ver que eu tomo conta de cinco menino novo aqui dentro de casa e que nenhum deles tá na rua. Eu não deixo sair porque com essa guerra deles aí pode sobrar bala a qualquer hora pra quem não tem nada a ver com a história. Porque antigamente eles avisavam quando ia ter tiroteio, né? Hoje eles não avisam ninguém não, não tem respeito com ninguém mais. Quem tiver na rua que se dane pra lá. Se pegar, pegou, eles nem olham pra onde é que tá atirando, se tem gente inocente na rua... Eles querem é dar tiro um no outro. Então não dá pra ficar deixando menino na rua não, ainda mais aqui que é pertinho da Marcazita. Coloco aí um desenho na televisão e eles ficam aqui o dia inteiro vendo. P: Como você vê o trabalho da polícia? R: Ah, tem até uns polícia bom aqui que até tenta fazer uma coisa ou outra. Tanto que eles já prenderam uns caras aí que eram o terror aqui na Pedreira. Mas a maioria não presta não. Tem uns que trabalham aqui na Pedreira quase todo dia e que já tão de rolo com esses menino aí. E todo mundo sabe. Mas nós vamos fazer o que? Chamar a polícia pra polícia? Não dá... Não dá...
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ANEXO 3: Entrevistas com traficantes que atuam na Pedreira Prado Lopes Entrevistado 1: D. A. S., 17 anos, traficante da parte baixa da Pedreira Prado Lopes. Entrevista realizada em 31/05/2002. P: Há quantos anos você mora na Pedreira Prado Lopes? R: Desde sempre. Fui criado aqui mesmo. P: Mora com pai e mãe? R: Moro mais não. P: Ainda estuda ou estudou até quantos anos? R: Estudo também mais não. Larguei quanto tinha 15. P: Como se envolveu com o tráfico? R: Como é que eu comecei? Ah, veio... Comecei de bobeira. Cê sempre começa de bobeira. Comecei fumando maconha. Daí acabei entrando pra essa vida. Primeiro cê fuma, depois começa a vender um pouco, sabe cumé? Aprontando uma correria pra adiantar meu lado, né? Aí, véio, um dia cê acorda e já tá na boca de arma na mão. P: Por que se envolveu com o tráfico? R: Ah, véio... Cê entra pra essa vida por causa de tudo um pouco. É grana, é mulher, é pra andá só nos pano fino, tá ligado? Cê acaba entrando pra ganhar moral. P: Como é sua rotina no tráfico? R: Como assim? P: Como é seu dia-dia dentro do tráfico? O que você faz todos os dias? R: Depende... A gente faz de tudo um pouco. Já fiquei na atividade, na escolta... Agora tô na contenção. Fico perto das boca pra sentá o dedo nuns curza caminho aí. Fico meu turno e depois vô pra zuá. Mas muda muito. Depende O lance é ficá na moral com o patrão e ganhar respeito. Aí as “onça” (notas de R$50,00) começa a rolá no seu bolso. P: Como é a situação do tráfico na Pedreira Prado Lopes? R: A Pedreira tá em guerra. Tem muita gente andando armada nas ruas, fazendo a segurança das bocas. O foda é que a Pedreira mesmo era pra ter só uma quadrilha comandando o movimento. Mas tem sempre que aparecer uns cruza caminho, sabe cumé? Cruza caminho é aquele cara que tenta tomar nossas bocas de assalto. Tenta invadir nossa área para tomar nossos pontos de venda. E não era pra ser assim, cara. Não era. A gente tá nessa tem um tempão já e não era para ter guerra. Esses cara da parte alta plantaram na boca tem pouco tempo e já tão querendo tomar nossos ponto de assalto? Qualé, veio? Né assim que funciona não.
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E o pior de tudo é que não precisava tá essa guerra porque foi todo mundo criado junto aqui mesmo. Não precisava ter guerra. Mas acaba que cada um segue seu caminho, né? É foda também porque a gente vê que eles tão mais bem armado do que nós. Eles têm metralhadora, fuzil, pistola e muita arma pesada. E tão sempre tentando tomar nossas boca de assalto. Direto eles tão descendo de oito ou dez, tudo de touca ninja na cabeça e arma na mão pra tomar nossos ponto. A gente não. A gente é da tranqüilidade, tá ligado? A grana que entra a gente gasta em carro e roupa. A gente tira onda, sabe cumé? O pessoal da parte alta não. Eles só gasta em arma e droga, arma e droga. Por isso é que tão mais bem armado do que a gente. Mas isso não quer dizer nada não, porque revólver não serve pra nada na mão de vacilão. Eu me garanto com qualquer 38. O mais importante nessas hora é a disposição. Eu me garanto com qualquer revólver. E eu tenho amor à minha vida, né? Se não andar armado vai pro cemitério mesmo, véio. Meu revólver é meu parceiro e ele não me deixa na mão. P: Como é a relação dos traficantes com os moradores? R: É que nem eu te falei. Cada um na sua. A gente só coloca o terrô em quem fica de embaça pra nós. Se não ficá nas parada errada, se não ficá de leva-e-traz pros homi, tem erro não, tá ligado? A nossa não é atrasar a vida de ninguém. A gente sabe que tá nessa vida, que tá do lado errado mesmo, mas isso é com a gente, tá ligado? O nosso negócio é só descolar o nosso mesmo e não atrasar a vida de ninguém. P: Como é a relação dos traficantes com a polícia? R: De polícia eu não falo não. P: O que sua família pensa de você fazer parte do tráfico? R: Mãe nunca gosta, né véio? Mas vai fazer o que? Chega numa hora que cada um tem que seguir seu destino mesmo. Uns vai pra vida direita e outros vai pra vida errada mesmo. Eu não tô afim de ficá na pindura minha vida inteira. Ficá nessa miséria aqui? Nem fudendo, tá ligado? É assim que funciona. E o foda é que depois que entrou cê não pára. Não pára porque tira muita grana. Eu mesmo já cheguei a tirar R$900,00 por dia. Aí eu fiz minhas economia que é para última precisão mesmo, saca? Vou deixar tudo pro meu filho e pra minha mulher. Quero garantir o futuro do meu menino pra ele não seguir meu caminho. O que você pensa para o futuro? R: Como assim? P: Para seu futuro. O que pensa em fazer no futuro? Como acha que será sua vida no futuro? R: Cê tá querendo saber se eu tenho medo de morrê? Tenho não, véio. Sei que o destino de quem ta nessa vida é algema ou cemitério. E vô te falar que a única coisa que eu sinto falta é da vida que eu tinha antigamente. De poder andar pra todo canto sem preocupação, de poder ir em qualquer lugar, saca? Disso eu sinto falta. Mas é que nem eu te falei. Não rola de ficá nessa pindura pra sempre. Tenho que tentar descolá o meu e vazá daqui, sei lá. Saí fora e arrumá uns trem direito aí. Sei não, véio...
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Entrevistado 2: L. G. F. C., traficante da ‘Boca do Terreirão’, região Nordeste da Pedreira Prado Lopes. Entrevista realizada em 12/10/2003. P: Há quantos anos você mora na Pedreira Prado Lopes? R: Tem uns cinco anos já. P: Mora com pai e mãe? R: Não. P:Ainda estuda ou estudou até quantos anos? R: To estudando mais não. Estudei até a quinta-série e larguei quando tava com 15. Tinha mais saco praquilo não. P: Como se envolveu com o tráfico? R: Quando eu cheguei aqui na Pedreira já tinha o movimento. Na época era tudo do Roni mesmo. Aí eu via como era a vida do pessoal. Porra, todo mundo nos pano, todo mundo cheio das onça no bolso, a mulherada só pagava madeira pros cara do movimento mesmo. Aí eu fraguei que o lance era cê ficá considerado dos cara. Aí cê começa a aprontar umas correria aí pra agilizá seu lado... Pra descolá um também. Aí quando cê vê já tá no movimento também. Vai pegando consideração, consideração e acaba ficando com os cara mesmo porque o pessoal do outro lado da Pedreira começa a te sacar e se vacilá eles senta o dedo mesmo porque já acha que cê tá fechado com os daqui. Então o negócio é entrá mesmo e foda-se, né não? P: Por que se envolveu com o tráfico? R: Uai, é que nem eu acabei de te falar... Envolve porque senão não tem jeito de conseguir as coisa aqui dentro. E fica tudo mais fácil mesmo, vem tudo na mão. As muié tudo vê que cê tá armado e olha diferente. Quer chegar perto, quer vê a arma, daqui a pouco quer dá procê e assim vai. Todo mundo te respeita, todo mundo te olha com medo. É doido demais. P: Como é sua rotina no tráfico? R: Uai, a gente fica no movimento mesmo. Direto e reto na atividade. Vendemo nossas parada mesmo e só ligado nos atividade pra vê se os “homi” vão aparecê. Agora eu tô na frente de uma das “boca” e tenho que prestá conta pro patrão. Mas é tranqüilo. Se não tivesse uns embaça aí o movimento ia tá presidente. P: Como é a situação do tráfico na Pedreira Prado Lopes? R: Tá aí essa guerra que todo mundo tá vendo... Nós aqui do Terreirão contra os verme do Roni. Mas a parada é que nós tamos vendeno muito mais do que as boca dele e aquele otário tá neurado, tá ligado? Já mandou aqui uns recado que vai passá o rodo, que vai sentá o dedo em todo mundo, que vai fazê isso, que não sei que lá mais... Mas vai tê essa parada não porque a gente não vai abrir as perna praquele vacilão não. Tá achando que aqui só tem aqueles paga-pau que tem do lado de lá? Tá achando que a gente vai ficá dando a bunda pra tomá tiro pra ele tirá grana em cima de nós? Nem fudendo!
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Ele quer empurrar cada grama da pedra dele pra nós por 16 conto. Só que tem que a gente consegue é por R$13,00. E isso tá deixando o cara neurado demais porque a gente tá é quebrando a banca daquele otário... Cê ouve a gente falando assim e acha que é pagá mó vacilo entrá numa guerra ruim dessa por causa de três conto de diferença, né? Mas pensa comigo aqui, véio. Cada grama de crack rende pra nós quatro pedra. Cada pedra a gente tira a cinco conto. Tem final de semana aqui na boca que a gente vende é quase meio quilo de crack numa noite. Numa noite só véio! Dá umas duas mil pedra. Multiplica isso aí agora pra você vê quem é que tá de vacilão na história. Cê tá me entendendo? O safado do Roni tá querendo dá a maior volta em cima de nós. Ele acha que só tem otário aqui na Pedreira. Acha que todo mundo tem que pagá boi pra ele. Com nós né assim não, véio. Aqui no Terreirão nós é sinistro mesmo! P: Como é a relação dos traficantes com os moradores? R: A gente num treta com eles e eles num treta com a gente. Fica assim. P: Como é a relação dos traficantes com a polícia? R: (risos) Só tem verme de farda, véio... Só verme. Eu, se eu pudesse, sentava o dedo naqueles vagabundo tudo! Tudo uma cambada de covarde, de vagabundo. Tem é que queimá eles tudo, passá é o rodo. Aparece tudo aqui com aqueles oio vidradão só querendo mordê a gente. E leva mesmo! Leva mesmo! Se pegá trepado leva os ferro, leva o bagulho e ainda esculacha. Tem uma turma aí que eu vô te falar... Se levá menos de R$15 mil por semana eu atravesso essa Pedreira de saia, que nem mulherzinha... P: Você já teve que pagar policiais para ser liberado de um flagrante? R: Eu não. Mas o patrão paga os homi direto, aí, ó... Quem quisé vê, que vê. P: O que sua família pensa de você fazer parte do tráfico? R: Minha família não tá aqui não. Minha família tem nada a vê com minhas coisa não. P: O que você pensa para o futuro? R: Não quero embaçá a vida de ninguém, tá ligado. Quero só fazê o meu aqui na paz. Essa guerra vai tê que acabá e aquele fedaputa do Roni vai tê que aceitá que já era, já passou o tempo dele. Agora aqui é nós mesmo e se vié vai levá azeitona na cabeça mesmo! Não vamo aceita isso não, aí. Quem que ele tá pensando que é, pô? Só porque o Roni foi o cara durante uns tempo aí tá achando que é chegar assim e empurrá o bagulho dele em nós? Né assim não véio... Não é assim mesmo. Tamo ligado que as outras quadrilhas tudo já pagaram boi pro cara. Mas com a gente não vai tê essa moleza não. Se quisé vai tê que vim aqui pegá. E vai tê guerra, sabe por que? Porque nós é sinistro mesmo, véio. Se vié aqueles cruza caminho pro nosso lado nós senta é o dedo mesmo, tá ligado? Se vié vai tê morte, vai tê guerra
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Entrevistado 3: Traficante conhecido como “Nego”, um dos líderes da gangue da rua Marcazita. Entrevista realizada em 12/08/2004. P: Há quantos anos você mora na Pedreira Prado Lopes? R: Tem uns dez anos já. P: Mora com pai e mãe? R: Só com mãe. P: Ainda estuda ou estudou até quantos anos? R: Estudo mais não. Tirei a oitava série e parei. P: Como se envolveu com o tráfico? R: Meu irmão começou a movimentar na Marcazita e eu acabei entrando também. P: Por que se envolveu com o tráfico? R: Porque dá grana, porque via meu irmão cheio de mulher, de pano fino, tem a manha? Por que não? Por que que eu também não posso conseguir o meu que nem todo mundo? P: Como é sua rotina no tráfico? R: Como assim? O que eu faço no movimento? P: Isso. R: Já falei, uai. Eu agora só gerencio. O bagulho chega na mão e eu coloco a molecada pra fazê a correria. Jogo os ferro na mão dos mais considerado, as carga na mão dos mais esperto e fico na supervisão. Antes era eu e meu irmão. Agora não sei como é que vai ser não. P: Como é a situação do tráfico na Pedreira Prado Lopes? R: Uai, cê não tá vendo não? Tá aí pra quem quiser vê. Tá essa porra de guerra aí. Achei que ia ficá numa boa depois que nós passamo o rodo nos cara do “Terreirão” mas só tem cobra aqui nessa Pedreira. Só tem traíra de olho grande.Agora o pessoal da Carmo do Rio Claro (quadrilha fiel ao comando de Roni Peixoto) tá matando todos os nossos ‘atividade’ (olheiros ou vigias do tráfico) para poder pegar nossas boca de assalto na manha. Mas não vai tê boi pra eles não porque nós vamo revidá. Pra cada um que caí do lado de cá, vai tombá é dez do lado deles. Já mataram meu irmão na semana passada e isso não vai ficá barato. Vai corrê sangue, vai tê muita morte. O movimento aqui era bom pra todo mundo ficá na moral. Mas eles ficam com o olho grande porque nós tamo prosperando, sabe qualé? E eles não pode vê ninguém ficá bonito na fita que já qué tomá a boca, ao invés de aprendê a trabalhá. Tão vindo aqui direto e reto e zuando o plantão. Então agora não vai tê sossego não. Agora vai sê é guerra mesmo
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P: Como é a relação dos traficantes com os moradores? R: Morador tudo gosta da gente, véio. Cê não viu eu chegando aqui agora. Todo mundo cumprimenta, todo mundo respeita. Todo mundo vem me dá força por causa do lance do meu irmão... É assim. A gente faz bem pra comunidade, ajuda o lado deles e eles ajudam o nosso lado. P: Como é a relação dos traficantes com a polícia? R: De polícia eu não falo... Desculpa aí, na moral. Mas tô te recebendo na boa, cê tá sendo educado comigo, na moral. Mas dos homi a gente não conversa. Aí cê pergunta pra eles mesmo. Só te falo o que todo mundo sabe: tem polícia bom e tem polícia mau. O resto cê tira suas conclusão aí com seu caderninho. P: O que sua família pensa de você fazer parte do tráfico? R: A mãe sabe que a gente tá no movimento. Sabe que a gente tá na vida errada, que a gente é errado... Sofre. Mas não embaça não. Agora com essa do meu irmão tá foda... Tá foda... P: O que você pensa para o futuro? R: Sei de mais nada não, véio... Sei de mais nada não... Entrevistado 4: M. F. S., 14 anos, traficante da parte baixa da Pedreira Prado Lopes. Entrevista realizada no dia 21/12/2000, ocasião em que o adolescente foi apreendido pela PM. P: Há quantos anos você mora na Pedreira Prado Lopes? R: Desde que eu nasci. P: Mora com pai e mãe? R: Moro sim senhor. P: Ainda estuda ou estudou até quantos anos? R: Estudo sim senhor. P: Como se envolveu com o tráfico? R: Uai, envolvendo... Pega conceito com os cara e acaba entrando pro movimento. P: Por que se envolveu com o tráfico? R: Por que? Uai, porque era o que eu queria. Porque é bom... Minha mãe fica chateada, não gosta que eu mexa com isso não. Mas eu que sô peixe pequeno consigo levantar quase R$300,00 por mês. Quem é forte na boca consegue muito mais. Além disso a gente impõe o terrô, né não? Precisa de vê como é que a mulherada fica doida quando vê a gente com arma na mão, véio. Precisa de vê. E quando a gente sai de uma troca então? Nossa, véio! A
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gente se sente o bicho. Quando a gente chega num lugar, todo mundo comenta, todo mundo olha com medo. A gente é o terrô, véio. O terrô! Nós é sinistro mesmo. P:Como é sua rotina no tráfico? R: Como assim? P: O que você faz durante o dia e durante a noite? R: Uai, fico na correria, na atividade. Arrumo minhas correria aí e tiro o meu. P: Como é a situação do tráfico na Pedreira Prado Lopes? R: Tá essa guerra aí, né? Esses polícia trepado, a gente sentando o dedo mesmo. E tá o terrô, a Pedreira tá o terrô. Por que que cê acha que eu tava trepado? Por que se não andá trepado eles joga pra trás mesmo. P: Todas estas armas são suas? R: Né não, né não. Dessas arma tudo aí só o oitão que é meu. Mas foi o pessoal do Vera Cruz que trouxe as arma pra gente. P: Como foi que você consegui esta arma? R: Na Pedreira arma é fácil, fácil. Com R$200,00 você descola um oitão. As PT são mais difícil. Mas com R$350,00 ou R$400,00 cê arruma uma. Não sei dizê se foi a polícia que arrumou pro pessoal do Vera Cruz. Porque isso tudo é arma de polícia, né? P: Como é a relação dos traficantes com os moradores? R: Como assim? P: Como é que os moradores da Pedreira tratam vocês e como é que vocês tratam eles? R: Uai, normal, aí. Eles repeita a gente e a gente respeita eles. Queremo atrasá a vida de ninguém não. Mas também não pode atrasá a nossa, né? P: Como é a relação dos traficantes com a polícia? R: A gente é bandido, eles é polícia, uai... (risos) P: O que sua família pensa de você fazer parte do tráfico? R: Minha mãe não gosta não. Mas eu ganho meu dinheiro e ela não pode falar nada não... P: O que você pensa para o futuro? R: Ah... Penso nada não senhor. Tipo assim... Tem que acabá essa guerra, né? A guerra tinha parado no começo do ano, depois que o Babão morreu. Mas a gente agora tá de guerra de novo com o pessoal do Coração. Eu mesmo já troquei tiro com o Coração. E não tenho medo de morrê nessa vida não porque sei que bala perdida ou trocada não tem dono. Olha procê vê cumé que são as coisa. Na quarta passada os homi me pegou e me levô pra delegacia. Me levaram pro juizado e me colocaram na rua de novo. A coisa funciona é assim, véio.
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Entrevistado 5: C. P. S., 20 anos, conhecido como Coração, traficante da parte alta da Pedreira Prado Lopes. Entrevista realizada em 28/12/2000, na ocasião de sua prisão por policiais da Delegacia Seccional Norte. P: Há quantos anos você mora na Pedreira Prado Lopes? R: Desde que nasci. P: Mora com pai e mãe? R: Não. P: Ainda estuda ou estudou até quantos anos? R: Estudo mais não. P: Como se envolveu com o tráfico? R: Entrei pro crime com uns 16 anos. Entrei porque era viciado em crack e tinha que sustentá o vício, né? Comecei e metê uns assalto e fazer uns aviões de vez em quando. Eu comprava o bagulho mais barato com o pessoal considerado aí e vendia mais caro pros bacana. Só que em 99 eles mataram meu irmão. Meu irmão que me deu o apelido. E eu corri atrás mesmo. Me vinguei. Matei ele também. Na favela, ou você mata ou você morre. E antes que me matem, eu mato. E a gente vive de guerra. Os contato leva as arma lá pra gente e a gente vive de guerra. Mas eu não tenho esse tanto de homicídio que tão querendo jogar pra cima de mim não. Muitos desses aí foi rival meu que matou e eles fica querendo jogar nas minhas costa. Um cara que a polícia fala que eu matei era meu parceiro. Vê se eu ia jogar parceiro meu pra trás? Eles precisa aprender a trabalhar direito e jogar nas costa de quem deve mesmo. Não é nas minha não. P: Como é sua rotina no tráfico? R: Tem tráfico assim também não, véio... É só umas correria aí... É mais é guerra mesmo. Mais é guerra... P: Como é a situação do tráfico na Pedreira Prado Lopes? R: Tem as guerra aí que cê tá vendo, ué. P: Como é a relação dos traficantes com os moradores? R: Sei não. P: Como é a relação dos traficantes com a polícia? R: (sorri) Sei também não... P: O que sua família pensa de você fazer parte do tráfico? R: Não pensa nada não
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P: O que você pensa para o futuro? R: Penso em sair da cadeia. Porque de dentro da cadeia não dá pra pensar nada não. Entrevistado 6: R. P. S. O, 15 anos, traficante da parte baixa da Pedreira. Entrevista realizada em 12/08/2003. P: Há quantos anos você mora na Pedreira Prado Lopes? R: Desde que eu nasci. P: Mora com pai e mãe? R: Moro. P: Ainda estuda ou estudou até quantos anos? R: Graças a Deus já larguei. P: Por que graças a Deus largou? R: Ah, véio... Porque sim... Larguei a escola porque não tinha saco pra aquilo não. As professora ficava falando uns lance que não tinha nada a ver, umas parada que não era a real, saca? Ia ficá lá perdendo meu tempo? Eu não! E você aí que é estudado, me fala o que que eu ia ganhar com escola? Aqui na Pedreira mesmo tá cheio de neguinho aí que ficou uma data ralando a bunda em banco de colégio, que tá cheio de diploma e o escambau aí e, quando vai ver, tá mais duro do que eu. Colégio só funciona pra filho de bacana, tá ligado? Aí o playboy vai pra faculdade, vira dotô e vai cuidar da empresa do papai, né não? Agora o negão aqui vai estudar pra que? Pra ficar me humilhando nessas fila de emprego que nem cachorro? Eu não! Esse negócio de escola não adianta nada pra preto e pobre não, véio. Sei lê e escrevê, tá bom. Meus bagulho eu consigo é no ferro mesmo, tá ligado? E consigo mais que muito neguinho que ralou bunda em banco de escola P: Como se envolveu com o tráfico? R: Como? Uai... Cê vai entrando, entrando, entrando, quando vê já tá movimentando também, ué... Vai envolvendo com os cara, pegando uns bagulho aí pra fazê umas correria... Cê vai se virando... P: Por que se envolveu com o tráfico? R: Por que? Porque senão ia sê um fudido igual todo mundo aqui. Ia ficá fazendo o que aqui? Trabalhando pra levantá uma merreca? Eu não! Eu consigo no ferro mesmo, véio! E consigo é muito. P: Como é sua rotina no tráfico? O que você faz todos os dias? R: Uai, eu fico vendendo. Pego meu turno e fico vendendo. Os patrão joga o bagulho na minha mão e um pouco do que eu vendê é meu. Quando acaba as pedra eu volto na boca e pego mais pra vendê. E fico nessa correria a noite inteira. É isso que eu faço.
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P: Como é a situação do tráfico na Pedreira Prado Lopes? R: É boa. É boa... O movimento é violento. Eu mesmo vendo é três sacolé de pedra por turno. Dá pra descolá uns 100 conto por noite. O movimento é bom. Só quando tá com guerra que embaça um pouco. Mas os nóia nem liga muito não, eles compra mesmo. P: Como é a relação dos traficantes com os moradores? R: Uai, é normal. A gente não treta com ninguém de bem não. É só não tretá com a gente que não garra nada. P: Como é a relação dos traficantes com a polícia? R: Depende do polícia. Tem uns que sabe que não garra nada pra mim porque eu sô de menor. Então eles nem vem enchê o saco não porque se me levá pra Dopcad eu já to aqui no dia seguinte. Então eles nem perde tempo comigo não. Mas tem uns que leva as pedra e as onça da gente. E fala mesmo que se não levantá grana pra eles, eles vão dá de cima mesmo e sumi com a gente. Aí é foda... Desses aí tem que corrê porque senão não dá pra levantá nada. Eles morde tudo. P: O que sua família pensa de você fazer parte do tráfico? R: Meu pai eu nem vejo direito e minha mãe não sabe não. Tipo assim, eu acho que ela tá ligada, tem a manha? Mas ela não fala nada não. E eu fico na miúda também... P: O que você pensa para o futuro? R: Quero fazer muito dinheiro pra podê saí daqui com minha família. Só isso mesmo. Entrevistado 7: J. M. M. A., 25 anos, traficante da “boca do Terreirão”. Entrevista realizada em 07/10/2003, por ocasião de sua prisão. P: Há quantos anos você mora na Pedreira Prado Lopes? R: Tem uns dez anos já. P: Mora com pai e mãe? R: Não. P: Ainda estuda ou estudou até quantos anos? R: Não estudo não. Fiz até a quarta-série. P: Como se envolveu com o tráfico? R: Entrei tem pouco tempo. Tava morando do lado da boca, via o movimento e direto eles empurrava bagulho pra mocá lá em casa, que os homi não dava geral lá. Aí cê começa a tirá um por fora, né não?
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P: Por que se envolveu com o tráfico? R: Porque dá grana, uai... P: Como é sua rotina no tráfico? R: Tem rotina não. Eu só emprestava a casa pra mocá as parada lá. E eles me dava uma grana e uns bagulho por conta. Eu mesmo não vendia nada não. Só tomava conta do barraco mesmo, que era onde ficava as parada. P: E estas armas que a polícia diz ter apreendido com você? R: Aí cê falou bem! Diz que apreendeu, né? Vou te mandar a real que isso aí não tava comigo não... P: Mas vocês não usam armas para proteger o negócio de vocês? Você não usa alguma arma para proteger o barraco onde ficam as drogas? Como é que conseguem as armas? R: Claro que eu uso. Mas não são essas aí não... As arma que a gente usa vem de vários lugares. Mas na maioria das vez é os cara mesmo que vai lá oferecer pra gente comprar. Todo dia tem neguinho oferecendo arma lá pra gente comprar. Os cara já tem as manha que lá funciona a boca e vai lá oferecer as arma pra gente. Aí a gente junta uma grana de cada um e compra o que der. A arma fica lá pra segurança nossa mesmo. Nossa gangue tem macaquinha, oitão, doze e PT. O pessoal da parte baixa já tá até com fuzil também P: Como é a situação do tráfico na Pedreira Prado Lopes? R: Uai, as parada chega na mão da gente e a gente movimenta, uai. P: Como é a relação dos traficantes com os moradores? R: Morador não incomoda não. Eles fica na deles mesmo e não incomoda ninguém não. P: Como é a relação dos traficantes com a polícia? R: Como assim? P: Como a polícia trabalha com vocês e o que vocês fazem com a polícia? R: Na polícia só tem safado, véio. Tudo safado. Tá tudo no bolso do Roni porque só vem dá de cima de nós aqui. E não cumpre nem o que é combinado. Cê qué sabê a real mesmo? Tem a manha de colocar isso no papel mesmo? Eu tô rodando de laranja. Os homi chegaram lá no ‘Terreirão’e falaram assim, esses mesmo aí que armaram o fragoroso: ‘Aí, vou mandá a real procês. A guerra docês tá chamando atenção demais, aí. A imprensa tá em cima e sabe cumé, né? Nós vamo tê que mostrá alguma coisa pra eles. Então cês separa aí umas arma e umas parada aí que a gente tá levando mesmo. E pode arrumá aí um docês pra rodá junto com as parada e pra segurá o flagrante’. A parada foi essa. Me pegaram de laranja porque eu só tinha um 10 na ficha. O resto ia tudo sê reincidente no 12 ou tava pedido de 121. A gente ainda jogô na cara deles que a gente já tinha feito o acerto com eles essa semana, mas eles falaram que não tava nem aí, que a imprensa tava de cima e que eles ia tê que mostrá serviço. Essa é a polícia que tá me levando pra delegacia. P: O que sua família pensa de você fazer parte do tráfico? R: Não pensa nada não. Eu não moro com minha família não.
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P: O que você pensa para o futuro? R: Agora não tem mais futuro pra mim não, ué. Olha só as parada que os homi tão me colocando pra segurar. Vou rodar no 12 e no 10 e agora vão me colocar pra garrar mesmo. Agora eles acabaram com minha vida. Entrevistado 8: F. P. E., 17 anos, traficante que atua na parte baixa da Pedreira Prado Lopes. Entrevista realizada em 17/07/2003. P: Há quantos anos você mora na Pedreira Prado Lopes? R: Vim pra cá com uns dez anos. P: Mora com pai e mãe? R: Não moro mais não. P: Ainda estuda ou estudou até quantos anos? R: Também não estudo mais não. Fiz até a quinta-série e depois larguei. P: Como se envolveu com o tráfico? R: Como? Que nem todo mundo começa. Devagar, né? Fumando um baseado com o pessoal do movimento mesmo, ficando amigo dos cara. Aí cê começa a movimentar um pra descolá uma grana e quando vê já tá na função. P: Por que se envolveu com o tráfico? R: Porque é bom. Porque dá grana, porque cê pode andá nuns pano da hora, pode comprá uns tênis massa, pode colocá uma corrente doida. E a mulherada respeita, né não (risos). Mulherada vem em cima mesmo, qué nem sabê não. Dá até briga (risos). E com a grana que eu descolei deu pra saí de casa também, né não? Pra não ficá ouvindo aluguel de mãe na cabeça da gente. P: Como é sua rotina no tráfico? R: Como assim? O que eu faço? P: Isso. R: Eu sou soldado. P: E o que você faz como soldado? R: Uai, eu fico de escolta na boca. Quando é meu turno, os atividade dá o toque e eu fico na segurança. Quem subi pra cruzá caminho eu sento é o dedo. Os menino fica lá vendendo e eu fico na vigia. É isso.
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P: Você está sempre armado? R: Lógico. Se eu não ficar ferrado neguinho passa o rato em mim rapidinho. Tem que tá trepado, na mão não segura nada, né não? P: Você entende de armas? R: Não sei se entendo. Sei mexê com elas. Sei atirá, sei escolhê qual é boa, qual é ruim... Sei escolher qual bala dá pra usar melhor na arma. Tipo isso. P: Como assim? R: É porque não é qualquer bala que dá pra usar. Tem que escolhê direito porque senão ela masca e te joga pras cobra. Quer vê? Olha aqui. Essa munição aqui tem ponta oca, ó. É melhor de usar porque derruba o cara na hora. Diz que a bala entra no corpo do cara e abre dentro dele. Arrebenta o cara por dentro e joga no chão na hora, tem a manha? Quando a ponta é fechada que nem a dessa daqui, ó... É a jaquetada. A bala atravessa o cara. É bom porque você pode acertar um tanto de mané que tá de fileira igual soldadinho, né não? (risos) Mas é ruim porque o cara não cai. Aí é foda porque ele já levou caroço, mas continua atirando em você. Eu prefiro com ponta oca mesmo. É ‘pou’, ‘pou’, ‘pou’, três pipoco e o cara já deita. É isso. P: Onde você aprendeu? R: Uai, aprendi mexendo mesmo. Atirando. Quem tá na pista tem que ter essas manha, né não? Senão vai pro saco rapidinho. P: Como vocês conseguem estas armas? R: Chega pra gente aí. As vez é até os polícia que traz mesmo... P: Como é a situação do tráfico na Pedreira Prado Lopes? R: Situação você diz assim, se tem guerra, se não tem? P: Pode ser. R: Tá mais ou menos. Já teve pior. Já teve melhor. Muda muito. Agora tá dando pra levantá o caixa legal. Mas sempre tem uns cruza-caminho, né não? Sempre tem. Mas normal. P: Como é a relação dos traficantes com os moradores? R: É tranqüila. Morador respeita a gente. Vê que a gente só quer tirar o nosso, não quer atrasar a vida de ninguém. Então respeita. E a gente também não fica zuando plantão de ninguém não. P: Como é a relação dos traficantes com a polícia? R: Polícia é verme, é inimigo. Se subir aqui na Pedreira toma tiro. Com nós não tem arrego não. Se subir leva caroço na idéia. P: O que sua família pensa de você fazer parte do tráfico? R: Não pensa mais nada não, porque já saí de casa. Eu que me sustento, então não tem que pensar mais nada, nem ficá falando na minha oreia.
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P: O que você pensa para o futuro? R: Pro futuro? (silêncio) Ah, véio... Tipo assim... Eu tô ligado que quem tá nessa vida vai pra vala cedo. Então eu penso em juntar aí uma grana e sair daqui da Pedreira. Ir pra um lugar melhor pra mim ter minhas coisas aí, pra poder movimentar meus lances, aprontar minhas correrias aí, sei lá... Entrevistado 9: W. R. O., 21 anos, traficante da parte baixa da Pedreira Prado Lopes. Entrevista realizada em 13/08/2003. P: Há quantos anos você mora na Pedreira Prado Lopes? R: Desde criança. Num lembro a idade não, mas é desde criança mesmo que eu moro aqui. P: Mora com pai e mãe? R: Nada. Já saí de casa desde que tinha uns 17 assim. P: Ainda estuda ou estudou até quantos anos? R: Também não estudo mais não. Larguei pouquinho antes de sair de casa. P: Como se envolveu com o tráfico? R: (Sorriso) A gente vai te que falá dessas parada mesmo, né? (silêncio) Tá valendo... Como é que eu entrei é que cê qué sabê? P: Isso. R: Entrei vendendo. Tava precisando levantá uma grana aí, tinha uns 15 anos, mais ou menos. E eu tinha uma chegado que já movimentava aqui na boca. Aí eu peguei uma carga com ele e fiquei vendendo ali na Araribá mesmo. Ele me deu os canal e eu fiquei ali de quequé. Aí cê já sacou qual é a parada, né? Dinheiro vem fácil e vai fácil. Aí cê acaba ficando. P: Por que se envolveu com o tráfico? R: Já falei, ué... Porque tava precisando acertá umas parada aí. P: Como é sua rotina no tráfico? R: Cê qué sabê o que que eu faço hoje? P: Isso. R: Aí cê me compromete, né camarada... Tem certeza que essas parada aí não vai ferrá pro meu lado não né? Olha lá, hein véio... Tô recebendo na consideração do meu parceiro aqui, hein?
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P: Posso garantir que seu nome não será revelado. R: Então tá, mas olha lá, hein... Cê qué sabê o que que eu faço agora, né? Agora tô de soldado. Tem a manha qual é? P: Não. Como é? R: Fico na escolta, ué. O pessoal fica na atividade, agilizando as correria aí e eu fico na vigia. É isso que eu faço. P: Como é a situação do tráfico na Pedreira Prado Lopes? R: Como assim? Cê qué sabê quem é que tá de guerra com quem? P: Pode ser. R: A Pedreira tinha sossegado. Desde aquelas parada lá do Baby, cê tá ligado nisso ai? Tinha dado um tempo. Mas agora tem uns otário aí que tão querendo plantá uma boca aí lá no “Terreirão”. E aquela área é nossa, sabe cume? Aí tá rolando umas treta aí... P: Como é a relação dos traficantes com os moradores? R: Morador não tem nada a vê com nossas parada não. P: Como é a relação dos traficantes com a polícia? R: Polícia? É tudo uma cambada de safado véio... Esses verme só qué sabê de mordê nós. E morde mesmo! Morde toda semana, todo dia, direto e reto! Chega aqui tudo viradão perguntando cadê o da semana, querendo sabê onde é que tá as onça (notas de cinqüenta reais). É porque se você dá pra eles mixaria ainda leva tapa na cara. Eles esculacha mesmo, véio, qué nem sabê não... Eles fala que se num quisé roda no 12 tem que pagá. E mesmo quando eles num pega trepado com nada, eles planta a droga e ferra mesmo. Agora, quando eles vem na boca é diferente. É diferente porque eles fica mais coei, tá ligado? Porque aí eles sabe que se esculachá demais o tempo fecha mesmo pro lado deles. Mas se pegá sozinho na rua aí é só humilhação. Eles leva mesmo! E é tudo na mão grande. E a gente tem que pagá, tá ligado? Porque se não pagá eles fica de embaça e não tem jeito de descolá o nosso. E nosso negócio é só descola o nosso, a gente não qué fazê mal pra ninguém não. Só que esses polícia é tudo um bando de verme, de safado. É tudo safado, véio, tudo safado, ladrão. Tinha é que sentá o dedo neles tudo! P: Você já teve que pagar propina para policiais? R: Eu mesmo não que eles sabe que eu sô caixa ruim. Eles vão é nos patrão, né? Que lá é que rola a verba. P: O que sua família pensa de você fazer parte do tráfico? R: Minha família não pensa mais nada não. Minha mãe já é falecida e meu pai eu não vejo mais. P: O que você pensa para o futuro? R: Pro futuro? Eu queria que a Pedreira ficasse em paz pra nós podê movimentá aqui na moral, tá ligado? Isso aqui é área boa pra todo mundo. É só joga na consideração, na moral que dá pra todo mundo ganha o seu.
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Entrevistado 10: C.C.B., 19 anos, traficante da parte baixa da favela. Entrevista realizada em 21/08/2003. P: Há quantos anos você mora na Pedreira Prado Lopes? R: Desde sempre. Eu nasci aqui. P: Mora com pai e mãe? R: Moro. P: Ainda estuda ou estudou até quantos anos? R: Parei de estudá já. Tinha paciência praquilo não. P: Como se envolveu com o tráfico? R: Comecei movimentando umas parada aí. Agora tô na atividade (vigilância). P: Por que se envolveu com o tráfico? R: Uai, pra ficá bonito na fita, né não? Andá com os pano arrumado, ganha o meu, tê moral com todo mundo. Qué mais? P: Como é sua rotina no tráfico? R: Já falei. Fico na atividade. Fico vendo se vai subi polícia, se tem P2 na área, se tem os inimigo fragando nós. Essas coisa. E se vié eu sento o dedo. P: Como é a situação do tráfico na Pedreira Prado Lopes? R: Agora tá osso porque tem uns vacilão aí que tá dando os ataque na nossa boca, querendo tomá nossas boca de assalto. Mas não vai demorá não e nós vai passa o rodo neles tudo. P: Como é a relação dos traficantes com os moradores? R: Como é que é nossa relação com morador daqui? Ah, véio... Morador não tem nada a ver com as nossas parada não, tá ligado? Tipo assim, eles tá ligado que a nossa vida é errada mesmo. Que a gente tá no movimento mesmo e que é parada errada. Mas ninguém fica pagando pau nem nada não... Sei lá... A gente não mexe com ninguém não porque a gente nunca sabe o dia de amanhã, né não. Um dia cê paga o mó vacilo pro cara e, quando vai vê, tá precisando escondê no barraco dele, tá precisando plantá uns bagulho na casa dele que é pros homi não te pegá trepado... É osso, véio, não dá pra ficar sem respeito com morador, tem a manha? Porque se esculachá demais, ao invés de te ajudar, é mais um inimigo que cê ganha. E também porque todo mundo tem família aqui na Pedreira, então tem que respeitar, né não? Ninguém qué a mãe passando perrengue. Por exemplo, não dá pra deixá ficá esses noiado tudo jogado no meio da rua com a sua mãe vendo isso, né não? Não dá pra deixá tê assalto aqui porque os homi fica tudo de cima... A gente toma conta do pedaço por causa da gente mesmo e por causa de família da gente que também mora aqui. (silêncio) Às vez tem morador que chega pra pedir uma ajuda. Sabe que no movimento circula as onça mesmo então vem na gente pedir uma força. E se for morador considerado a gente ajuda. Não tem porque não ajudá, tá ligado? A gente dá força pra comprar um arroz, pra
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consertá uma porta, um barraco, pra fazê umas compra no sacolão, pra comprá um remédio... Isso se for morador considerado, né? Aquele que não fica de vacilo. Tipo que todo mundo tem família... Acho que é só cada um ficá na sua. É só não ficá de cangüete que não tem erro. Porque não tem coisa pior do que ficá pagando uma de X-9 pros homi. Porque eu vou te mandar a real, véio: se Xnová a gente passa o cerol mesmo, não tem perdão não. E faz pra todo mundo vê mesmo que não tem ninguém pagando comédia aqui não. P: Como é a relação dos traficantes com a polícia? R: Polícia é safado. Polícia é safado. Tem que senta o dedo nesses polícia safado. Tipo assim, tem uns que tem a moral, saca? Que não esculacha não, que chega pra você na moral, que se anda errado e ele pegá, ferra mesmo. Mas também não planta nada , não dá tapa, e fala direito com a gente. Agora tem uns que é safado mesmo, véio. Que planta os bagulho mesmo, que toma da sua mão pra movimenta depois ou planta mesmo. Só procê tê uma idéia, cê sabe o que já teve um que fez comigo? Me pegou com as parada mesmo, aí, tomô da minha mão e só devolveu depois que eu paguei pra ele. Porque se eu fico sem as parada e volto de mão vazia eu tô no sal, né véio. Ai tive que pagá do meu bolso o fedaputa. É isso aí a polícia. P: O que sua família pensa de você fazer parte do tráfico? R: Ah... Mãe enche meu saco. Mas tá bom... Mãe é isso mesmo. P: O que você pensa para o futuro? R: Penso em juntá uma grana legal aí, tá ligado? E sei lá... Arrumar minhas parada aí...
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ANEXO 4: Entrevistas com policiais que trabalham na Pedreira Prado Lopes Entrevistado 1: Cabo-PM R. S. L., agente do Serviço de Inteligência do 34o Batalhão da Polícia Militar. Entrevista realizada em 05/11/2003. P: É policial há quanto tempo? R: Tem uns onze anos já... É por aí... Uns onze anos já P: Trabalha na região da Pedreira Prado Lopes há quanto tempo? R: Tem dois anos. Fiquei um ano ostensivo e agora tem um ano já que tô paisano. P: Como você vê a situação do tráfico na Pedreira Prado Lopes? R: Aquilo é uma guerra, meu irmão. A Pedreira é uma guerra. Eu me atrevo a dizer que é o tráfico mais organizado de Belo Horizonte. Tanto que cê nem vê muita morte por lá. Mas é aquela correria, aquele movimento o dia inteiro. Dia e noite, dia e noite, tem nêgo lá vendendo droga e movimentando na boca. A gente passa lá à paisana e fica só fragando o movimento. Pega a boca do Terreirão, por exemplo. Lá o movimento é feroz mesmo. Vendem o dia inteirinho... Sem parar. É entra e sai o dia inteiro, precisa de ver. Tem informante nosso que garante que eles movimentam lá é coisa de R$40 mil por dia. Por dia, velho! É por dia que eu to falando, saca? Não é brincadeira não, meu irmão. E as armas então? Tem nêgo lá com PT dourada, cê já viu alguma dessas? Só em filme americano, meu irmão. Outro dia passamos por lá e o Gulu tava lá com essa PT dourada na mão, mostrando pra quem quisesse ver. Tava debaixo do braço dele, parecia um canhão. Deve ser calibre 45 aquilo, nunca vi igual. E cê sabe o que começou a chegar pra eles há pouco tempo? Cê sabe o que? Baby, meu irmão. Fuzil baby calibre 556. Tá vindo tudo do Rio. Essa última leva os cara deram a fita pra gente que chegou numa Kombi., durante o final de semana. Os caras lá tão prontos pra uma guerra. Antes o movimento era todo do Roni Peixoto. Ele mandava em todas as bocas e controlava tudo. Depois que ele foi preso, começou aquela guerra das gangues de cima contra as gangues de baixo. Isso durou uns bons anos, até que sossegou de novo. Agora que o Roni saiu da cadeia, ele quer retomar todo o seu território. Tanto que ele já controla todas as bocas de novo, menos a do Terreirão, que é a única que não abriu as pernas pra ele. E vai ter guerra se esse povo não chegar num acordo lá. Porque ele já mandou avisar que a boca vai ser dele de qualquer jeito e não vai ter conversa, ele vai mandar matar mesmo. E é sempre complicado a gente fazer qualquer incursão na PPL porque os traficantes têm um monte daqueles olheiros espalhados na região. É até engraçado, sabia? A gente chega com a viatura e vê aquele tanto de menino parado nas esquinas. Quando eles vêem que é polícia, começam a gritar ‘Galo’ sem parar. Parece até que é véspera de jogo Atlético e Cruzeiro, mas é o código que eles usam para avisar da chegada da polícia. Quando a gente sai fora, eles gritam ‘Zêro’, que é para avisar que a barra tá limpa. Alguns deles já conhecem todos os policiais pela cara. Por isso, não adianta a gente ir à paisana que dá na mesma. Eles avisam mesmo
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P: Como é a relação entre moradores e polícia? R: Depende. Tem morador que gosta, que ajuda a gente. E tem morador que não coopera muito não. Depende. Depende do morador e depende do polícia. P: Como é a relação entre traficantes e polícia? R: Uai, pra mim não tem relação não. Eu sou polícia e eles são bandidos. Não tem relação nenhuma não. Mas pra quem faz um trabalho que nem eu faço, tem muita coisa que cê tem que ficar na miúda, saca? Tem que ver e fingir que não tá nem aí... Senão não levanta informação. Senão não faz serviço bom. Cê acaba tendo que se misturar um pouco com aquele povo. Mas eles são bandidos e eu sou polícia. Isso tá sempre na minha cabeça. P: Existem policiais envolvidos com o tráfico? R: Olha, meu irmão... Eu tenho família, tenho mulher, tenho filho. (Silêncio) Disso aí eu não falo não... P: Como seria a melhor forma de combater a criminalidade na Pedreira Prado Lopes? R: A melhor forma? Olha meu irmão... Não tem jeito de ser só polícia, né? Isso não é trabalho só de polícia. Porque cê vai lá, mata um menino daqueles que nem eu vejo que tem colega nosso que fica doido pra fazer, e não resolve nada porque no dia seguinte tem outro no lugar dele. E prender também não tá adiantando porque eles usam muitos menores e eles não ficam presos. E quando ficam, voltam pior do que quando foi. Então não é só trabalho de polícia. Tem é que dar educação pra aquele povo todo, tem que abrir aquelas ruas, tem que colocar a meninada na escola, tem que dar trabalho pra aquele povo. Acho que é isso. Quer dizer, eu faria dessa forma se eu fosse esses políticos aí. Entrevistado 2: Cabo-PM P. S. S. R., agente do serviço de inteligência do Batalhão de Rondas Táticas Metropolitanas (Rotam). P: É policial há quanto tempo? R: Há nove anos. P: Trabalha na região da Pedreira Prado Lopes há quanto tempo? R: Tem uns seis meses já, desde que o comando do batalhão começou a fazer um novo levantamento sobre o tráfico de lá. P: Como você vê a situação do tráfico na Pedreira Prado Lopes? R: É uma situação difícil. Muita arma, muita droga, muito dinheiro rolando por lá. Nesse tempo que a gente tá por lá fazendo levantamento, tirando foto, pegando informação sobre
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o tráfico, a gente tá descobrindo que a situação é um bem pior do que a gente imagina. Porque geralmente você pensa que é só um bando de menino com arma na mão, dando tiro um no outro, vendendo um pouco de droga. Mas nesse tempo que a gente tá lá, nós já vimos cada coisa que cê nem imagina... P: O que, por exemplo? R: Coisa de tráfico mais organizado mesmo. Rádio comunicador, casas que servem só para guardar a droga, muita arma pesada, até fuzil eles têm por lá. E você vê claramente também que eles têm liderança, que têm quem manda, quem vigia, quem vende, quem gerencia e por aí vai. Essas coisas assim que eu pelo menos não imaginava que iria encontrar na Pedreira como encontrei. P: Como é a relação entre moradores e polícia? R: É boa. Pelo menos nós nunca tivemos problema com morador. Alguns até percebem que a gente é polícia. Porque lugar pequeno cê sabe como é que é, né? Todo mundo sabe quem é da área, quem não é. Então alguns até sacam que a gente é P-2, mas até hoje pelo menos ninguém criou problema não. É bem tranqüilo assim. P: Como é a relação entre traficantes e polícia? R: Aí você tem que perguntar com quem lida diretamente com eles. A gente só levanta informações mesmo. Às vezes a gente até chega a trocar uma idéia com os traficantes porque a gente precisa levantar informações. E não tem jeito, né? Alguns acabam sacando que a gente é da P-2. Mas fica na boa, não costuma ter problema não. Até porque nossa função não é muito fazer prisão de ninguém não. A gente levanta informação pra polícia conseguir os mandados de prisão. P: Existem policiais envolvidos com o tráfico? R: Que eu saiba, não... P: Como seria a melhor forma de combater a criminalidade na Pedreira Prado Lopes? R: Na minha opinião tinha que fazer um trabalho mais inteligente ali dentro. Tinha que dar condição pra gente trabalhar direito. Dar viaturas descaracterizadas mesmo, mais tempo pra gente fazer levantamento, pra gente dar o pulo certo mesmo. Não adianta ficar ocupando a favela que nem o pessoal tem feito não, porque isso não resolve nada. Nunca prende ninguém de peso mesmo. Acho que é isso, tem que fazer um trabalho mais inteligente.
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Entrevistado 3: Tenente-coronel José Anísio Moura, comandante do Batalhão de Rondas Táticas Metropolitanas (Rotam). Entrevista realizada em 05/10/2003.
P: Como é o trabalho que vocês vêm desenvolvendo na Pedreira Prado Lopes?
R: Estamos desenvolvendo um trabalho de inteligência na Pedreira, para tentar coletar o máximo de informações possíveis sobre as gangues que atuam no aglomerado. Justamente para podermos desenvolver ações mais pontuais e eficientes contra estes criminosos. Existem agentes à paisana coletando informações que serão devidamente analisadas por nossa unidade a fim de planejar e de dar mais eficiência ao policiamento que fazemos na região.
P: E o que este levantamento apontou até agora? R: Apontou o que a própria imprensa vem divulgando. Que a saída do Roni Peixoto da prisão fez explodir uma nova guerra entre as gangues porque, ao que tudo indica, ele está tentando reorganizar sua antiga quadrilha e reassumir o poder no tráfico da Pedreira. É justamente por isso que estamos fazendo este trabalho de inteligência. Para identificarmos os líderes e os principais traficantes e tirá-los de circulação o quanto antes. P: Que tipo de estrutura do tráfico vocês encontraram na Pedreira? R: É um tráfico que está muito bem armado. Que está muito bem armado e que movimenta muito dinheiro, porque aquele comércio de crack que eles têm por lá é algo que não existe em nenhum outro lugar de Belo Horizonte. Pelo menos não da maneira que vemos na Pedreira. Para você ter uma idéia, vou te contar um caso. Recentemente, uma equipe de nosso batalhão estava em uma das principais ruas da Pedreira, quando se viu no meio de um fogo cruzado entre gangues de lá. Era uma noite de sábado e esta equipe teve que se esconder em um dos becos porque a munição que eles usavam acabou. Um sargento conta que, no meio daquela confusão, eles viram tiros de munição traçante cortando os becos da favela. Munição traçante só é usada em fuzis de guerra. Para que se tenha uma idéia do poder de uma arma destas, basta dizer que um projétil disparado por ela pode atravessar uma chapa de aço com uma polegada de espessura. Em uma favela, um tiro de fuzil como este poderia atravessar quatro barracos na seqüência. É este o tipo de armamento que os traficantes da Pedreira estão usando. E para combater este tipo de bandido, é preciso uma ação enérgica e inteligente. P: O senhor tem conhecimento de algum possível envolvimento de policiais militares com os traficantes da Pedreira? R: Do Batalhão Rotam posso lhe assegurar que não. Não existe qualquer denúncia contra qualquer policial daqui nesse sentido. E se tal tipo de informação chegar ao nosso conhecimento, posso lhe garantir que será investigada com o máximo de rigor.
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