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Cartas sem Moral Nenhuma

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CARTAS

SEM MORAL NENHUMA

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OBRAS DO MESMO AUCTOR

Inventario de Junho — I vol,

NO prelo :

Londres DiCaravilhosa— i vol.

a seguir:

Sabina Freire — comedia.

Page 9: Cartas sem Moral Nenhuma

AC Teixeira-Gomes

FU>UWH

CARTAS

SEM MORAL NENHUMA

LISBOA I-lVRAklA F.DITOHA

TAVARES CARDOSO & IRMAO 5, Largo dc Camões, 6

1903

Page 10: Cartas sem Moral Nenhuma

Porto — Imprensa Portuguesa — igo;

Page 11: Cartas sem Moral Nenhuma

TJRA O MEU ^MIGO

LUIZ BOTELHO

Page 12: Cartas sem Moral Nenhuma
Page 13: Cartas sem Moral Nenhuma

I

Sevilha —Janeiro.

Meu querido amigo:

Varias foram as razões que de- moraram tanto o meu agradecimen-

to á sua carta de novembro, avul- tando entre ellas o serio estorvo que

nasce de uma doença de olhos, bas- tante, penso, a antecipar-me na cer-

teza do seu perdilo e que me dis-

pensa de enumerar as outras. Não é grave o mal, mas imper-

tinente, e já lá Vao dois mezes que

1

Page 14: Cartas sem Moral Nenhuma

2

me acho privado de toda a leitura

aturada e escassamente posso cum-

prir com o que seja de imprescíndi-

vel obrigação escrever.

Tudo seria coisa nenhuma sem o cfiei to moral da moléstia, o qual de-

veras me apoquenta. Tenho arreca-

dado por estes olhos tanta impres-

são valiosa, e deve-lhes tanto e tan-

to, a minha* alma, a esses dois infa-

tigáveis transmissores de tudo quan-

to o mundo exterior resume de mo-

vimento, côr ou forma, que um se-

creto presagio, uma suspeita de cas-

tigo não cessa de me remorder no

pensamento: não sejam estes os avi-

sos precursores de outra penalidade

mais forte, correspondente ao meu

tão fundo sensualismo.

Vou porém melhor. Com estas

Page 15: Cartas sem Moral Nenhuma

3

•distracções andaluzas se me teem

desvanecido as inquietadoras imagi- nações e sinto-me hoje tão bem que

ouso até, para conversar com os

meus amigos, valer-me d'esta escri- pta aborrecida, sim, mas que se eu

me ativesse exclusivamente ao pra-

zer que d'ella aufiro quando se tra-

ta d'elles, me tomaria todo o meu

tempo.

O que é para surprehender, e bem se pôde taxar de extravagân-

cia, dada a minha quasi mania epis-

tolar, é o pouquíssimo que eu lhe

escrevo, a v., talvez o mais estreme- , •

eido dos meus amigos, e cm quem

penso com tanta constância. E isso

não provem de julgar cu que as ex-

cessivas occupações da sua vida lhe

empecerão a rapidez nas respostas,

Page 16: Cartas sem Moral Nenhuma

4

roubando-me o beneficio que delias

haveria; para mim, melindres taes

nada significariam no presente caso.

Perscrutando bem vejo que tudo se

origina da natureza dos pensamentos

que a sua lembrança forçosamente

me suggere e que são mais graves,

mais penetrantes, mais em harmonia

com a consciência do nosso destino

e sempre fugindo á esphera dos con-

ceitos «espirituosos» ou vãos, onde

a minha intclligencia se ageita tanto

a meu gosto.

Sem o representar calçando o

cothurno do «imperativo categórico»

nem pel land o-se ao sopro ardente da

«Ethica» acostumei-me a vêr em v.

um exemplo de incorruptível tenaci-

dade e rectidão intransigente, capaz

de resistir a quantas afagosas tenta-

Page 17: Cartas sem Moral Nenhuma

s

Ções incitam ao abandono do cami-

nho direito e isso sem que a bonda-

de se lhe embotasse ou, mais, sem

que se lhe liypertrophiasse o egois* moi e, ainda, sem prejuízo d'esses thesouros dc indulgência que o meu amigo tão liberalmente accnmula em

proveito dos outros.

Scr-lhehia difficil, caro amigo, mesmo á luz de bem deduzidas di-

lucidaçQes, avaliar até que profundi- dade v. influiu na reconstituição da

minha alma e porque, d'esta, a par- to sã seja seu reflexo.. ,

Como escrever-Ihe pois no tom oco que afina toda a correspondeu"

cia «agradavel», urdindo-a cm gra-

cejos comesinhamente inspirados no

convencional scepticismo de que se usa e abusa tantof e, procurando al-

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6

cançar o austero diapasão das «per-

feitas harmonias», como descobrir ex-

pressões que nío enfastiam e, real-

mente alado, provar que ha enver-

gadura bastante a accommetter — es-

perançoso— as máximas alturas, ali-

jado da conspicuidade e purificado

de todo o fartum do Pedantismo?...

Desejaria quando projecto escre-

ver-lhe, querido amigo, dar ás mi-

nhas cartas o cunho irrefragavel do

que 6 infrangivelmcnte bcllo; mas

jóias de um tão puro quilate não

lh'as posso cu offerecer e seria bal-

dada a pretenção de prender á rea-

lidade aquillo que íluctua livremente

no sonho, e só ali. . .

Tal o obstáculo, agora posto de

lado, para cumprir com o que seja

dever restricto.

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7

V. acceita-me a intenção e con-

versaremos acerca do que se nos

deparar pelo caminho plano e sem mais modelado da vida de sem-

pre ..,

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Page 21: Cartas sem Moral Nenhuma

II

Sevilha—Janeiro.

Eis o que me ia pela mal tem-

perada alma, vespera da minha sabi- da de casa:

«N'este vil escaninho do mundo, que a arte não alumiou nem alu-

miará nunca, e onde o indígena se

fortifica com as vaidades do dinhei- ro guardado, ou da usura gadanho- sai a ellas se restringe, e d'ellas ti-

ra a única razão de ser, dias tenho cu, na verdade, deliciosamente tris-

tes, mas o morno dia de hoje é ex-

cedente de amargura!

Page 22: Cartas sem Moral Nenhuma

IO

«Em papa-me o espirito a impres- são — o terror — de que nunca mais

deixarei este buraco do niundo, lo-

gar sem interesse para ninguém, lon-

ge da tangente de toda a civilisa-

ção. Que peregrino acaso, que nau-

frágio, que desventura, poderia tra-

zer aqui a qualquer das mulheres

que eu amo, tao dispersas e absor-

tas no que a vida oíferece de me-

lhor; e onde estão esses senhoris re-

tratos de Piero delia Francesca, ou

essa orgulhosa cathedral deslumbran-

te, em cuja vista a solidão se recon-

forta?. . .

t Convém renunciar a toda a

sympathia, a todo o amor! Ou an-

tes, sem disfarce, empedernir-me no

isolamento, varrer da memoria tudo

quanto lembra essas creaturas que

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11

deixaram de ser meus pares e, so- bretudo, furtar-me á vulgaridade, á

miséria, de admirar incondicíonal-

mente a ambigua primazia de enti-

dades cuja existência é superior só,

talvez, porque palpita nas regiões

privilegiadas, invejadas, para mim, pouco a pouco, pela distancia, pela

ausência, phantasmagoricas... »

Achava-me na praia esbaguando d este modo os meus tormentos e 0 ar que respirava, arrefecido pelo mar, tfio inebriante, de ordinário, tSo

proprio para alagar o coração de es-

perança, resequia-me o peito. Mal-

dosamente corria sobre as delica- das medusas, cuja rara estructura

marchetava a areia de tâo capricho- sos moldes, como nunca em Mura- no artista algum soprou no vidro

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12

tenue, e ia-as pisando, contente de

mudar em escarro nojoso a inflores-

cencia nacarada—violeta e purpura;

carmim, violeta e rosa — d'aquellas

mimosas formas, imagens das mi- nhas phantasias, ali, obscuramente

abandonadas á mercê do tacão de um bruto 1. . .

Em balde se me torvava a con-

sciência clara com o que pungia de

injusto e de perverso n'estas imagi-

nações. 1 ão feliz sempre na minha

vida, tão intensamente feliz, e só por

haver penado cem dias escassos n'es-

se meio hostil, falho de suggestões

afinal tão leves de prescindir, em-

bora figuradas urgentíssimas, tudo se

me cortava em infinitas avenidas de

resentimento e de tédio ao fundo

das quaes luzia teimoso, o festivo,

Page 25: Cartas sem Moral Nenhuma

13

supposto, portico da felicidade, ar* chitectado na miragem da «parti-

da».., A iiora da partida, talvez na

Existência o mais delicioso, esquisito

momento, onde tudo é alacridade, g°so. esperança... Fugir a todas as

Pnsões, mesmo ás mais doces, sup- por que um instante basta para bor-

rar todo o usado scenario da vida

actual e que outra vida começa, en-

redada de incertezas, sim, mas peja- da de larguíssimas promessas, de in*

qutetadorâs visões, de fructuosas chi- meras, nada que se compare a esse

momento de alvorada, tanto mais in- cit.uite quanto mais a miúdo repeti- do ' a cujo feiticeiro rejuvenescimento a alma se dilata illimitadamente. . .

í uz-mc a caminho e logo o es-

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14

pirito se alimpou dos requentados

azedumes. . .

Que lindíssima terra esta, excla-

mava eu, ainda na passagem da pon-

te, e o que temos nós a invejar á

Sicilia do Theocrito e mesmo ao

panorama voluptuoso da Bahia de

Baias? E assim era que n'aquelle

momento, a minha de ordinário tão

embellezadora paysagem algarvia se

idealisava, graças á magnificência do

poente. O ceo alaranjado em pana vq-

se de escumilhas doiradas com fran- jas de purpura, e pelo setim do rio

corriam, leves, para a barra, as ve-

las côr de açafrão, cruzando outras, brancas de cal e curvas, que corta-

vam o ar com o movimento sereno

de azas livres no espaço.

Já fóra da ria, ao entrar na terra

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IS

firme, começou a cahir a noite; mas

iavrava-se ainda na varzea, junto á

estrada e a traz dos bois os rapazes

entoavam, alto, as lamentações do fado, n'um rythmo apressado e rús-

tico.

Nenhum outro ruido perturbava o adormecer dos campos. No povoa-

do proximo, á minha passagem e a meio da rua, ateiou-se um fogareiro em alas; alguém o tomou nas m5os, a altura do rosto, correndo, e as la-

baredas cresceram na escuridilo, em

madeixas de cabelleira solta. A noite esfriou perto de Silves

com o despontar da lua, cuja luz

desmaiada, curta, reintegrava os tor- reões da cidade na sua lendaria ar-

rogância, Tudo rescendia á flor das

amendoeiras, que branquejavam, jun-

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i6

tas, no fundo dos valles, como um

luar mais denso. . . e d'esse perfu-

me se repassava o primeiro somno

da minha viagem...

O dia seguinte foi de alegria sem

mescla, a alma presa no contenta-

mento de viver, só por viver e toda

attenta, ao goso do «momento pre-

sente liberto dos puxões do pas-

sado importuno e do aventar des-

assocegado do futuro.

Eu ia correndo o littoral algarvio

que é um in interrompido jardim, mui-

to povoado de gente e de arvoredo;

as amendoeiras, agora, na realidade

do sol, attrahiam de novo as mi-

nhas imagens, que n'cllas pousavam

de envolta com as abelhas. Havia-as

tao fechadas em flores que perdiam

a sua fornia de arvores e plagiavam

Page 29: Cartas sem Moral Nenhuma

I? "

formas fabulosas, ou ajoelhando, co- roo anjos vestidos de arminho, ou

tremendo dentro de immensos veos de noivas, ou arremettendo, de pé, a rooda dos ursos brancos, ou cor- rendo sobre os esgalhos curvos,—

despropositados aranhiços de flores rosadas.. ,

Mas os tons, do branco de neve,

pulchro, até ao vermelho cereja, nos tjnaes aquella absurda effloresccncia

disparava a sua pyrotechnia chroma- fica, arrebatavam, e a retina, gulosa,

provia-se de festões e grinaldas para 0s sonhos de grande magica.

De ver. me quando, atravez "dos

helices cm que as figueiras da Bar- baria se armam pelas sebes da es-

trada, accendiam-se vastos espelhos de mar, onde a luz se quebrava ao

a

Page 30: Cartas sem Moral Nenhuma

i8

sabor da aragem, em mil facetas ar-

dentes, até que, empecendo-lhes de

todo o brilho, as dunas principia-

ram a ondular, miseravelmente...

Do lado de terra, pouco a pou-

co as serras altas foram-se coando

pelo azul do ceo; as colinas nivela- ram-se; por fim as arvores faltaram:

a estrada rastejou, em lanços rnono-

tonos, na campina lavrada, como um

risco de giz na ardósia limpa. Alar-

gou-se o terreno em planície areno-

sa, malhada com o azebre dos hor-

tejos definhados onde o hálito do

mar se sentia arrefecer e, á vista de

Ayâmonte, um leve aperto do cora-

ção dizia-me já que a saudade da

paysagem familiar e amada começa-

va ali. . .

Page 31: Cartas sem Moral Nenhuma

Ill

Sevilha —Janeiro.

Eu quasi que tornei agora — se bera que atravez de novo prisma — aos meus primeiros amores, a esta

Ilespanha carnal e grosseira mas de cujo poderio e riqueza passada ao

menos se conservam mil maravilho-

sas memorias. O mundo inteiro deu para aqui, no decorrer de séculos, os

primores da sua arte, que as ca- thedraes arrecadaram, conservando-os

ciosamente até hoje na pureza da sua hora primitiva.

Page 32: Cartas sem Moral Nenhuma

20

Fatiei-lhe, por certo, em tempo,

da fabulosa paixão que Sevilha me

inspirou durante annos, paixão rija

e exigente a ponto de me não con-

sentir nem velleidades de resistência

á necessidade forçosa de a vir vêr a miúdo. Aos frequentes rebates da

saudade me punha eu logo a ca-

minho d'esta alliciadora terra e era

sentindo esse mesmo alvoroço, essa

mesma perturbação, que nos causa a

presença da mulher appstecida que

eu me aproximava d'ella.

Era uma entidade cuja vida se

traduzia para mim nas embellezado-

ras manifestações da alegria e da

lascívia, e que se me figurava sem-

pre envolta num manto por tal fór-

ma opulento e de uma tão soberana

magnificência, que á minha visão era

Page 33: Cartas sem Moral Nenhuma

vedado designar-lhe o conjuncto e só á força de ligar detalhes a outros

detalhes lograva reconstituir-lhe algu-

ma das infinitas pregas.

Ao calor da soberba mocidade

que acertei de conservar até tarde

se me exacerbava a embriaguez da

paixão, cegando-me para o que não

fosse elemento de belleza e de pra-

zer a ajuntar ao sentimento já en-

thesourado de uma perfeição acabada e só aqui existente.

Mas, força é confessai-o, essa in-

gente fogueira do enthusiasmo esmo-

receu e consumiu-se, e hoje recordo com a desvalida saudade de tudo o

que se não repete na mesma vida,

os trechos mais turbulentos da vida

de aventuras— que as tive — aqui pas-

sada.

Page 34: Cartas sem Moral Nenhuma

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Eu quereria soltar d'entre essas

aventuras alguns quadros da mais

tragica, d'aquella onde a minha al-

ma ia sossobrando c pintar-lhc a

encantadora figura de uma creança

ambiciosa e intellígente, que fez de

mim o seu idolo e me levantou na

febre do seu amor ás cumiadas da

adoração que só o génio merece;

depois, quando esclarecido na expe-

riência e amesquinhado o ideal de

que eu fôra a miragem, coiitar-lhe

os tormentos nos quaes essa capri-

chosa e cruel menina me fez expiar

a perda da sua illusão. E contar-

lhe mais como fui eu proprio quem

lhe sopeou a imaginação e, no te-

mor da queda irreparável, a chamei

á realidade d'esta vida por um ca-

minho cujas asperezas se amaciavam

Page 35: Cartas sem Moral Nenhuma

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ao amparo dos meus soífrimentos; e como, para satisfazer ao carinho de om amor tão límpido que, em mim,

só podia guiar-se pela probidade, fui eu quem lhe arrancou do coração as ultimas raizes do seu amor, mau

grado o receio de que, ao penoso

esforço, se me afundasse a intelligen- cia e a vidai. ..

Mas não se morre de paixões si-

tnilhantes e tal qual os heroes do romantismo me metti eu pelas cafur- nas da crapula e da devassidão, á

busca — e com êxito — do esqueci-

mento por onde restituísse nova-

mente ao espirito a descuidada in-

diflerença da mocidade.

Dizer-lhe então, meu amigo, as noites sensuaes de Sevilha, essas

noites de cruciante deboche, de bes-

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tialidade, de sadismo, algemado á

embruxada carne de umas bailarinas

desgorjadas e sovadas, mas cujo

suor e cujo sangue me eram suaves

e deleitosos, como no abrazamento

da sede o sumo de sazonados fru-

ctos; de umas bailarinas que resus-

citavam da suffocação do meu cor-

po, do apolear mortal dos meus bra-

ços, para os moventes frisos em

que desdobravam as suas danças en-

gendradas nos mysterios infames de

n3o sei que lascivos e olvidados ri-

tos ou que infernaes liturgias, e se

faziam assim cada vez mais deseja-

das, mais appetecidas, mais necessá-

rias; e d'entre ellas — como num

canteiro de flexuosas papou ias le-

vantinas, dobradas ao peso dos tú-

midos novellos purpúreos em que

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25

florescem — traçar o altivo, puro ja- cto, do lirío branco que foi o cor-

po insexuado da minha — única 1 —

«Rosario», dulcíssima caçoila de per- fumes onde se acoitava a alma en-

xovalhada da rameira — como em

adorado relicário um gaz mepliitico

— corpo, que eu comprei, á viva força violado—o impudor da alma

o2o sujeitara ainda o pejo da sua

carne — corpo mimoso e cheio como

u rosa de cem folhas, por onde me

integrei nas beatitudes de um altís- simo gozo; descrever-ihe a consum-

PÇSo d'essas noites ao ardor d'utna

pungente febre que, gulosa, nos phos-

phorecia em lúbricas faiscas no olhar, °u, languorescente, o encarvoava de

vazias negridões, quando aos arran- cos dos derradeiros espasmos os ner-

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vos se sepultam no lodo da sacieda-

de; e—ao compassivo canto das

violas, o acariciar das dolentes me-

lodias que se tecem em brandas

teias de arpejos abafados—as noites

desveladas, noites sem descanço, no

agoniar das quaes se nos rompem

os nervos retezados, com o desfalle-

cer da consciência e o torvar do

cerebro nos veos da incerteza gemea

da loucura, noites angustiadas, que

nos vomitam para o dia, desampa-

rados espectros—já á luz frouxa dos

primeiros alvores, quando a manha

oscilla levemente no céo e se adean-

ta ás revessas, trazida na immensa

aza d'um cysne branco... Mas deixe-me cobrir de cinzas o

rosto e a cabeça e, arrepellando-me,

bater com fúria n'estes peitos, para

Page 39: Cartas sem Moral Nenhuma

2 7

que me nao doa tanto o corrosivo

remorso de outras noites bem mais

criminosas, relembradas ao travo, que mesmo agora me amaruja, de uns

innocentes corações vilmente desflo- rados; noites singulares, noites de

exaltação e de iniquidade, noites de toda a noite mas breves, mas arden-

tes, das quaes uma só bastava á

polluçSo da mais pura das almas Puras, sorvendo-lhe a candidez e a

castidade para a despenhar na de-

pravação e na infamia já amortalha- da nas dobras lívidas do fastio,. á

violência de unia só noite mais effi- caz do que o rondar de vidas intei- ras, quando atravez do corpo tres-

passado nas mil púas do delicioso cilicio da luxuria se vae para todo

° sempre eivar uma alma que para

Page 40: Cartas sem Moral Nenhuma

todo o sempre ficou perdida. De-

vastou-se a ferro e fogo a espessís-

sima floresta para que aos ouvidos

da nympha graciosa e scismadora

que a habita, chegue o dobre de

finados, eternamente retumbando no

bronze do nosso egoismo.

Pois muito embora — que basta

de imposturai—eu desejaria reviver

os horrores voluptuosos de todas es-

sas noites. . .

Page 41: Cartas sem Moral Nenhuma

IV

Sevilha—Janeiro.

Mas não divaguemos que muito

diverso d agora o meu objectivo,

quando toda a curiosidade de novo s& me concentra nas figurações ex-

cel lentes onde se materialisou a ins-

piração de tanto artista esquadrinha- dor e requintado.

li para melhor resumir, fugindo :i dispersão saborosa e habitual em quem recorda, imagino momentanea-

mente que lhe devia dirigir os pas- sos — peregrino prazer quando não

Page 42: Cartas sem Moral Nenhuma

30

• resvale da phantasia á realidade;

aqui, n'esia hora, até a sua affavel

presença me seria importuna. De

resto v. não ignora que, se acontece

porem-se dois amigos a correr mun-

do de conserva, breve se lhes mu-

dará a afieição em odio.—Imagino

pois que o devia encaminhar nos gi-

ros d'este attrahente labyrintho, c

d'eile delinearei o breve roteiro.

A cathedral é aquella acrea ma-

china gothica, abrolhada de vazados

corucheos que, amparando-se á es-

quinada torre arabe, mais tarde se

fortificou nos envolventes baluartes

da renascença— cujas macissas su-

perficies a arte platcresca cobriu de

escudos e medalhões — se avista de

muito longe, movente e recortada,

ao de cima da fluctuantc casaria da

Page 43: Cartas sem Moral Nenhuma

31

cidade. Porque de longe e de toda

a parte a immensa articulada machi-

na arremeda alguma phantasiada ga-

lera, levando a «Giralda» por mas-

tro á pôpa, navegando em mar coa-

lhado de bateis.

Ali o conduziria eu, caro amigo,

como se fossemos cumprir voto de

peregrinação piedosa, tao depressa

nos encontrássemos em «Sevilha» é ali tornaríamos todos os dias, tenha-o

por certo, mesmo quando houvésse-

mos de permanecer mezes e mezes

na capital andaluza.

Concebida e levantada pelos úl-

timos moldes da arte gothica, em chao que sustivera o templo moiro,

enfeitou-a — exteriormente — a arte ita- liana. Da antiga mesquita só poupa- ram a torre c a tuniida ogiva que

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dá accesso ao «Pateo das larangei- ras». A conservação d'aquella velha

torre, assim intacta nas suas arestas

vivas, e ainda entalhada de geomé-

tricos lavores surprehende; o «Pateo

das larangeiras» é recompensa fali az

ao que a túmida ogiva promettia.

Das numerosas portas da basilica

somente quatro, as mais pequenas,

exigem a nossa attenção e- isso gra-

ças, principalmente, aos altos-relevos

das arcliivoltas, obra exquisita, em

barro cosido, de mestres florentinos

e lombardos. Na «adoração dos pas-

tores* da porta de S. Miguel, certa

figura de turbante, rústica e risonha,

que se adeanta para o presepio, en- tranha-se-nos obstinadamente na me-

moria e ahi se fica a par das mais

vibrantes creações da arte. Algumas

Page 45: Cartas sem Moral Nenhuma

33

imagens de santos, postas nas misu- !as lavradas, ao abrigo de rendados

doceletes, embebem-se em profundas e pias meditações ou exprimem in-

tensamente arroubos mysticos. Com t3o apurada arte lhes ' compuzeram as attitudes que o proprio scepticis-

mo as reputaria verosímeis ou natu-

res.

Por essa mesma porta entrava-

mos ao templo e o dia seria breve

para lhe admirarmos, na magestosa

vastidão, a harmonia das insólitas

proporções e o milagre, mercê do Çua], as altíssimas abobadas se sus- tém na leve ramada que brota dos

pilares, armando em feixes de lias- tes delicadas, de modo a deliciar a

vista por engenhosas convergências e successivas eurhythmias.

Page 46: Cartas sem Moral Nenhuma

34

Ao simples relancear de olhos, no

rápido exame de certos arranjos bem

caracterisados, genuínos, da terra que

pisamos, e embora o coração do tem-

plo—a capei la-mÓr e o còro levanta-

dos no centro do cruzeiro—não res-

plandeça á similhança de chamma

crepitante em vasta urna de crystal,

como em «Leon»; ou pelo tumulto

de figuras e ornatos, deslumbrante,

estonteador, como em «Toledo»; ou

jóia de primorosos lavores, comple-

mentar do mais adoravel dos escrí-

nios, como «Burgos»; ou jacente dia-

dema recamado de esmaltes d'onde

se erguem altivos e floridos thyrsos,

como « Palencia»; ou circulo lanceo-

lado de agudíssimas pontas guardan-

do o mysterio de uma crypta sagra-

da, como «Barcelona»;—ao simples

Page 47: Cartas sem Moral Nenhuma

35

relancear de olhos e rápido exame do interior do templo, bem veríamos tJUe este só poderia ser obra da de- voção hespanhola. ,.

N'esse primeiro dia pois consen-

tiríamos que a imaginação se pren- desse ou se dispersasse, absolutamen-

te livre, nos contornos d'aquellas au-

gustas naves, ao fundo das quaes a

luz chega tremula e desfeita, coada nas cambiantes dos vitraes, como pe- las doiradas frondes de uma floresta

roillenaria.

Isssas mesmas vidraças proporcio- "ariam á nossa visita do dia seguin- te o gostoso thema para admiração e estudo de uma arte preciosa que,

alcançado o ultimo grau de excellen- Clai se perdeu. Permutaríamos as nos- Sas impressões na surpreza de vêr

Page 48: Cartas sem Moral Nenhuma

36

refulgir as prestigiosas scenas bíblicas

em pompas veridícamente orientaes,

mercê das gemmas com que se en-

feitam aquelles faustuosissimos, trans-

lúcidos, quadros.

Então passaríamos revista ás gra-

des que, obra de ferro batido, doira-

do, esmaltado, são também obra da

phantasia hespanhola, nunca attingi-

da, nem por sombras, da arte dos

outros paizes. E de taes prodígios é,

por certo, esta egreja optima parada. Começaríamos no altar-mór, pela ces-

ta de vergas de oiro que o envolve,

armando no ar em teias onde se

prendem, ao amparo dos arabescos,

mil diversas figurinhas; depois iría-

mos ás capei las latcraes, e como o

acaso o désse, á archivolta da «Ca-

pella do Espirito Santo» com a in*

Page 49: Cartas sem Moral Nenhuma

37

florescência extravagante dos após- tolos sahindo, a meio corpo, dos cá-

lices de fabulosos lirios; aos monstros

mythologicos que emirtolduram certos

medalhões nas grades que ladeiam a porta de S. Christovam; e á scena

completa do enterro do Salvador, es- boçada com a amplidão do génio,

que se move no arco da «capella do

Mariscal », e, sem preferencia, ás for- mas caprichosas que guardam a en-

trada de todas as demais capellas.

Viríamos depois um dia todo só para examinar as cadeiras do coro—

hoje quasi restituído da medonha, co-

nhecida, catastrophe que por pouco o não pulverisa e que, eu, agora, para

maior simplicidade darei já como aca-

bado de restaurar — as cadeiras do coro onde um formigueiro de figuras

Page 50: Cartas sem Moral Nenhuma

38

miudinhas ri e vive em scenas sem-

pre diversas, mas como que dispos-

tas 11a mesma incendida realidade, por

combinações ditadas ao sabor de uma

arte imaginosa e superior, a qual, é

certo, também arranca em vôos in-

sensatos para o desvairamento mys*

tico, e outros de nevrose, pelos do- mínios da magia, ou cruelmente sa-

tyricos, e obscenos, assim aquella ex-

cedente pagina da desgrenhada mu-

lher nua, que uma descommunal ser-

pente cerca e aperta em frenéticas

roscas, ao passo que a vai sugando

pelo, . , golpe sexual. ..

E como palpita a carne por essas

formas apenas esboçadas que se ani-

nham ou, levissimamente, se encres-

pam nas molduras do facistol, qual

um sonho gracioso do Miguel Ange-

Page 51: Cartas sem Moral Nenhuma

39

1(V—se elle o tivesse que a dôr o não baldasse!. ..

Logo acudiríamos ás pinturas, ao

S'gante S. Christovam que as dimen- sões da parede onde o puzeram fa- Zeni aqui mais gigante do que em

nenhuma outra parte e, a seus pés, aquelle retábulo — toscano mas já re-

passado de funestas imaginações hes-

Panholas —110 qual uma franzina prin- cezai toda formosura e mimo, sorri

disfarçadamente, por entre lagrimas, junto ao corpo, putrefacto mas ainda

estrellado de chagas vivas, do Chris-

morto. Sobre essas chagas levan- ta ella as mitos diaphanas, flores que

germinaram na pompa das mangas

enfunadas do seu roupão de brocado, a° Premer dos fios de pérolas que as

estrangulam; mãos torneadas no am-

Page 52: Cartas sem Moral Nenhuma

4o

bar pállido que eu vejo, nem sei por-

que, mais erguidas peia noite fóra ir

seguindo a rotação tia lua, se um raio

furtivo lhes vem afagar as doces pal-

mas.

Outros velhos pintores hespanhoes

— aparte as «dolorosas» do Morales

— tomam o colorido de Carpaccios

em retábulos de madeira polilhada.

Mas só aqui será possível ver

quem foi o admirável flamengo,

«Campana», na sua grande obra

«o descimento da cruz», agora na

sacristia nova, e nos retratos de do-

natários d'esse fascinador retábulo da

« Capella do Mariscal». Outro pintor raro, mas sevilhano,

«Luis de Vargas», cujo temperamen-

to reponta nas fórmulas clássicas que abraçou, tem aqui também a sua

Page 53: Cartas sem Moral Nenhuma

41

obra-prima, o quadro, celebrado, «del-

ia gamba ».

Do «Murillo» não direi hoje coisa

alguma que a sua lembrança, agora, me impacienta, mau grado o «Santo

Antonio de Padua» e o «Anjo da Guarda »—tão graciosamente andaluz

■— e a «Immaculada» da Sala capi- tular, e tudo o mais que, d'elle, a

cathedral encerra. Esse, por vezes de-

licioso, mestre era captivo de um es-

pirito plebeu e usando de grosseiros

recursos, em mira a gabos gregários,

usurpou a fama dos consummada-

niente grandes; os Zurbaran, os Roe- las. .. Mas louvaremos os recreativos

frescos do «Cepeda» e esse pequeno quadro da «sacristia dos cálices» com

° passamento de Nossa Senhora, cuja

paternidade íluctua, ao sabor dos ex-

Page 54: Cartas sem Moral Nenhuma

42

pertos, dos píncaros do Durer para

as cumiadas dos Van Eyck (!) e per-

manece sempre, imperiosamente, abso-

luta obra-prima.

De caminho haveríamos de repa-

rar nas esculpturas santas entre as

quaes foi, pela injustiça, assign alada

a primasia ao Crucificado — quasi de

carne e osso — do «Montanezho-

je na «sacristia dos cálices». Este

mestre, no beneficio que soube tirar

da sua arte equiparou-se ao Murillo,

mas plagiário e in tencionada mente,

senSo fundamentalmente achavasca-

do, procurou assombrar o publico

soez por meio de transfusões d'uma realidade crua. N' cl las frisou as raias

do génio e felicíssimo no êxito, du-

rante vida e posthumo, até obscure-

ceu a' gloria d'esse prodigioso «Pe-

Page 55: Cartas sem Moral Nenhuma

43

dro Roldan», cuja obra capitai res-

plandece n'esta mesma basilica, mas a° fundo da despropositada capei la do <Sagrario * onde architectura, or-

namentação, tudo, emfim, se torna liostil a nervos que vibrem por sen-

sações de arte.

Como se tratasse de esculptu- ra passaríamos á «Sacristia nova»

acaba concepção «piateresca» e á qual este rotulo, — t plateresco » —

mais applicavel a trabalhos de ou-

rivesaria, cabe com extrema proprie- dade, pois n'ella tudo lembra, guar-

dadas as proporções necessárias, as

harmonicas phantasias que, primeiro, os grandes cinzeladores italianos se

compraziam em repuxar e lavrar nos metaes preciosos. A abobada é bem uma d'essas celebradas salvas da Re-

Page 56: Cartas sem Moral Nenhuma

44

nascença, invertida sobre columnelos

que dividem as paredes em quadros

graciosamente ornados e veem nas-

cer aos lados das amplas commodas

de cedro entalhado onde se arreca- da o melhor dos paramentos reli-

giosos, mas tudo envolto em linhas

e relevos que se completam e com- binam para alcançar um conjuncto

de leveza, e suprema elegância,

A «sacristia nova» serve de ar-

ca ás preciosidades sem numero, e ao mesmo tempo raríssimas, que são

o thesouro da cathedral, A um can-

to o * Tenebrario» de «Bartolome *

que é de bronze e deveria ser de oiro se outro metal não ha mais es-

timado e digno das tão nobremente

modeladas figuras que o enfeitam;

cm armario especial a «Custodia &

Page 57: Cartas sem Moral Nenhuma

45

afamada de «JoSo de Arfe», nome

consagrado, summidade, que levan- tou ao zenith a ourivesaria; e, de

todos os lados, toneladas de prata, 01 as afeiçoada em gomis, bandejas,

cálices, cruzes, castíçaes, turibulos,

aavetas, lanternas, tudo lavrado e

repuxado e burilado e cinzelado, para d'uma vez se fixar, até nas

niniudencias que s3o do exclusivo

domínio do microscópio, quanto a ^'lora e a Fauna da natureza, da

"Paginação e do sonho, prestam ás

transfigurações da arte. A collecção dos paramentos da-

lia para mezes de serio estudo; ve- lhos brocados onde coalharam refie- xos de carne moça, ou que se en-

crespam como a derme, ao estreme- CIniento do caiafrio, ou que se enru-

Page 58: Cartas sem Moral Nenhuma

46

gam em pregas hirtas sob a lepra

d'oiro oculosa de infinitas gemmas;

outros tecidos de incalculável vetus-

tez, teias poidas onde mal se segu-

ram miúdas flores naturaes tão vi-

vas ainda como na propria hora em

que mãos de princezas as bordaram,

á sombra' de byzantinos claustros;

uns veos de fio de prata estrellados

de pepitas de oiro; entalhos de oiro

mass iço a guarnecer mantos de vel-

ludo cada um dos quaes dava para

vestir de gala a dez imperatrizes;

theorias de ternos bordados á mão

a froco, num mesmo estylo, com as

imagens de todos os santos da corte

do ceo, para arroupar centenas de

padres em determinadas funeções, ca-

sulas de torçal e pérolas, rigidas e

tidas de pé, como cascas d'uma in-

Page 59: Cartas sem Moral Nenhuma

47

ventada especie de tartarugas; sen- daes multicores, de imponderável se-

da, que um sopro de creauça agita e

desfralda, desfranzindo-lhe no ar a superficie illuminada a castellos e leões heráldicos, assim o guião, pe- iegrina relíquia, d'el-rei Fernando o Santo.

Mas o extranho resplendor d'esse

diesouro jaz sobre o altar da sacris- tia, em um desvão que quasi toma a parede de lado a lado, e se paten- teia ao publico, diariamente, a hora llxa> como de costume nas cathe- draes hespanholas. Atravez dos límpi- dos crystaes vê-se então mexer e re-

luzir todo um microcosmo de ouro,

de esmaltes, de pedrarias. Muitas d'es- ias jóias consumiram a vida inteira

d° artista de génio que as engen-

Page 60: Cartas sem Moral Nenhuma

48

drou; eu não tenho o génio neces-

sário para as descrever. . . Registrados que fossem estes pri-

mários retalhos e soltos nós, já, dos

fitos obrigatórios, penetraríamos deli- ciosamente á intimidade do monu-

mento por visitas que outra bússola

não tivessem além do capricho e do

acaso.

São innumeras as capellas que,

por não offerecerem particularidades

tão principaes, nem por isso mere-

cem menor attenção; acharíamos ma-

ravilhas, ainda não maculadas pelo

louvor de assalariados charlatães, ali,

n'aqucllas pequeninas igrejas, redu-

cções da grande basílica, em alvéo-

los que á similhança d'ella, nas min-

guadas proporções, encerram altares,

tribunas, cryptas, sacristias e coros.

Page 61: Cartas sem Moral Nenhuma

49

E, já de vez para os passeios

contemplativos, voltaríamos a miúdo errar, descançar, viver, na magestade das assombrosas naves.

Principiaria então o embeveci- oicnto. Tal recanto ignorado desper- tará inesperadamente, borbulhando

fórmas desusadas, ao clarão de uma

madrugada radeante que se filtrou nos cristaes matizados das jancllas; em certos dias e ainda ao sabor de

determinadas claridades, o oiro, tão

Prodigamente esparso, que envelhe- ceu nas trevas de uns altares cava- dos no coração dos muros, refulgirá a niodo de prodígio e povoará essas

cavernas de sumptuosas chimeras; ncs immensos pan nos das vidraças resurgirão' theorias de personagens

magníficos, descollando se á introção

Page 62: Cartas sem Moral Nenhuma

So

de uma luz propicia: haverá n'ellas

transparências astraes e horrores de poentes e uma vida mysteriosa que

agite em cambiantes os protogonis-

tas d'aquellas scenas... Recrudesce-

rá o vigor — a leal firmeza — na dis-

posição das grades, nos truculentos

Ímpetos com que respondem ás in-

vestidas dos crepúsculos nocturnos,

arremettendo contra a sombra nas

pontas triangulares, nos cardos de

ferro, nas macetas ouriçadas de pá as,

aggressivos remates das suas lanças,

congregando-se em cerradas fileiras,

á entrada das capellas — alabardeiros

gigantes, de guarda a thesouros de

magos. , . Desfallecerão as cores, a

certas horas de encantamento, ven-

cidas pelo arrojo das linhas que se

encurvam aereamente; a população

Page 63: Cartas sem Moral Nenhuma

5i

microscópica, que gorgulha no córo, er>grossará e tomar nos ha posse da imaginação; pela «sacristia nova» accommetteremos a realidade do que era fabuloso nas ® mil e uma noi- tes» . .,

Por fim estabeleceremos morada a'i. n'aquella cathedral; fora d'ella, terra de extranhos, casas de vizinhos,

^al o palacio porque anceia a pom-

posa loucura da nossa phantasial

E eu sei o que vale viver assim, d'gno da inveja de príncipes e de reis. ..

Mas para integrar o gozo urgia viver ali também de noite. O que

Posará então o silencio d'aqucllas na* ves, e a deslumbrante princeza da velha «pietá» hespanhola, se estre-

mecerá ella quando um raio furtivo

Page 64: Cartas sem Moral Nenhuma

52

da lua, decantado nos olhos de ame-

thista d'algum Salomao fulvo que se

estadeie nas vidraças, lhe vier afagar

as palmas das mios ambarinas. . .

Page 65: Cartas sem Moral Nenhuma

V

Sevilha —Janeiro.

Por pouco me não engasgo com a

inchada exposição de bellezas atraz

especificadas, no recheio da cathedral de Sevilha. Não confeiçoei ainda xa- ropada assini tão grossa e não era eu que engulia similhante medicina,

quando fossem outras as mãos que,

mesa do espirito— m'a propi- nassem .. ,

Ó supremo fastio de «descre- ver »[

Muito boa bocca terá V. se a

Page 66: Cartas sem Moral Nenhuma

54

droga lhe chegar ao estoniago sem

nausea...

Que, afinal, eu fui «descriptor»

puxado pelas minhas excellentes in-

tenções e relacionando quanto a mo-

cidade portugueza perde em não vir

aqui «tentear» o que seja arte, vis-

to não ter havido em toda a penin-

sula mais accendido centro artístico

do que este, e á nossa nativa indi-

gência bem conviria ver coisa cm

termos de proporcionar formento á

phantasia que se nos vae resequindo.

Esses jovens íisbonenses, ou por-

tuenses, ou bracarenses, ou o que se-

jam, aqui veem nas «semanas san-

tas » mas para dar ensanchas á pan-

dega indígena, liando, no decorrer

dos breves dias, os deleites dos gy-

neceos áquelles igualmente acírrantes

Page 67: Cartas sem Moral Nenhuma

55

praça de toiros, e apenas conse- guem— na obra da civilisaçâo — ibe*

risar a syphilis.

Hem prevenido desejaria eu con-

clamar o que aqui ha de sublime ou

pittoresco a par dos regalos sensuaes — não para condemnaçSo d'estes — e no tentamen de caracterisar quasi encetei um «guia official* que me

entenebreceria a existência, nos em*

maranhados crepes do aborrecimen- to. se porventura profiasse em o le- var a cabo, correndo todas estas Igrejas e palacios.

Mas sem refransear: á inexperta

juventude portuguesa tflo bem como a prudente, sagaz, velhice luzitana,

Page 68: Cartas sem Moral Nenhuma

56

conviria servir-se d'esta vísinhança afagosa para efieituar sortidas contra

a envolvente estupidez e, fora das

suas redomas — os pequeninos aquá-

rios onde luzem as suas gracinhas — dar realidade aos domínios, hoje ape-

nas illusorios da esthetica cujas cul-

turas, á mingua de adubo convenien-

te, mal conseguem transformar em

forragem vergonhosa.

D'alu resulta a farta insipidez

dos nossos predestinados mestres e

cavillosos psychologos, em todos òs

variadíssimos ramos da Arte, E para lamentar que tão estre-

madas aptidões — assim as ha, sem

duvida — andem ás marradas de en-

contro a meras sombras. Cá fora,

ao menos, os críticos sabem ao re-

dondel para escoucinhar as corpo-

Page 69: Cartas sem Moral Nenhuma

57

1 e<is revelações plásticas e á força c'c lhes assentarem nos peitos as 111 arcas das ferraduras conseguem por Vezes fazel-as verter sangue, provan- d° 9lle esses productos da intelligen- Cla lambem podem encarnar.

Na patria nossa parecem andar as coisas tâo torcidas que até se

Comment am e falseiam obras littera- rias P°r glosas e deturpações de se- gunda e terceira m5o, como nesses dois espeques, o «Schiller» e o «Goe-

the», indispensáveis ao acrobatismo

prefaciai de livrinhos de versos, onde elles devem figurar com a opportu-

'hdade de Pilatos no Credo.

O que admira entSo vêr a quem "em1 por photographias conhece a

^sacristia nova de S. Lourenço», ou d ahobada da «capella Xistina», an-

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58

dar aos boléos com o desgraçado

Miguel Angelo, só porque certos

phantasistas obnoxios abriram coróa

nos phalus de cantaria, a que nós

chamamos «frades de esquinas, e desrespeitosissimamente os trazem a

publico, como características imagens

de um «S. Gonçalo» ou de um

«S. Gil»?

Ha gravosa desproporção cm tu-

do isto, pois nXo ha?

peor ainda quando os críticos

se pranteiam sobre as glorias pas- sadas ., .

Pôde parallelamente vir aqui á

bailia a menina que dizia: «Vae má

mez pra nós, mana, morreu-nos o

nosso pae e agora a mula não mi-

ja.:.»

Page 71: Cartas sem Moral Nenhuma

59

* * *

Sevilha é um muito completo e bem commentado livro d'arte, lumi-

noso em todas as suas paginas, de

fácil comprehensâo e, por vezes,

Profundamente sentido, a ponto de satisfazer as mais nobres exigências estheticas em capitulos que n5o fo- ram reproduzidos ou arremedados: o

austero, extático e expressivo «S. Je-

ronynio do Torrijano» de onde se

derivou toda uma levantada escola de esculptura; as pinturas do «Zur-

baran > cuja especial eloquência se-

greda maravilhas espírituaes, que silo

""cações de natureza divina; a por- tada de «Santa Paula», immorredoi- ra na fragilidade do barro, ornada

Page 72: Cartas sem Moral Nenhuma

óo

e esmaltada qual a ampliação de um amuleto- ritual dos sacerdotes de

cKarnak»; e as rajadas de harmo-

nias trazidas das tragedias cósmicas

para encarecer a paixão do Christo

com que o nosso «Padre Guerreiro»,

mestre de capella da cathedral, nas

suas composições musicaes se ante-

cipou quasi tres séculos aos desva-

riados arrojos dos maestros actuaes.

Para cortejo á cathedral pullu-

iam n'esta cidade egrejas — muitas incondicionalmente merecedoras de

admiração e exigindo minucioso es-

tudo, taes a da «Universidade», de

«Sant'Anna» da « Caridade» — onde sempre, algum surprehendente deta-

lhe serve de preciosa lição artística.

Não cansa ir em busca d'estas

egrejas porque o aspecto das ruas

Page 73: Cartas sem Moral Nenhuma

6i

c> aqui, iliinjitadaraente variado e

attrahentc, emmaranhando-se ainda nas mesmas circumvoluções traçadas

pelos moiros e que hoje apenas se

reproduzem, assim empeçadas, em volta dos bazares naquellas já rarís-

simas cidades levantiscas onde foi

vedado ao europeu sapar á vontade. Ruas tortuosas e estreitas e que a

nimdo mais se adelgaçam, entre pa-

redes altas de prédios cujos telhados

cabecearam até se juntarem para in- terceptar a luz do dia, a qual, por fim, sempre côa pelas portadas das

casas, alumiando su/íicientemente do

mterior dos pateos, vastos estes e

cercados de galerias á moda arabe.

Esses pateos que, scenarios en-

cantadores, lindamente adornados de plantas verdes, desafogam da estrei-

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62

teza das ruas e dao ao transeunte o

risonho espectáculo dos seus vistosos

quadros, íacil é povoal*os convenien-

temente, accommodando em redor

do fio d'agua que repucha no tanque

de mármore e cae sobre as lageas,

familiar, esperto e sonoro, grupos de

airosas raparigas e com ellas a ani-

mação, a vida, o doído canto andaluz

e os movimentos rhythmicos da or-

chestics hespanhola.

O canto é qualificadamente triste

e parece detalhar as maguas de uma

alma namorada ao despedir-se de tu-

do quanto amou.

O anhelo d'aquellas danças que attrahem, juntam, separam dois cor-

pos, de leves alados quasi, na tan-

gente infrangivel de um desejo nunca

satisfeito, denuncia origens sagradas e

Page 75: Cartas sem Moral Nenhuma

63

lrnprime a dignidade propria do sa-

cerdócio a quem as executa com pai-

E uma arte capaz de ennobre- cer scenas triviaes de intimidade ca- seira.

A par da arte que modula os

movimentos do corpo humano, outra se aperfeiçoou aqui, vinda também d° levante, de uma expressão admi- rável, rimando especialmente o ex-

plcndor das côres em sumptuosas

ymphonias muraes: a ceramica. A industria hespanhola- rival da

Ita'iana — robusteceu e fecundou os e'ementos arabes por livres amplia- cões< ás quaes o arrojo — o desacato

Page 76: Cartas sem Moral Nenhuma

64

— só accrescentou diversidade e bri-

lho, sem prejuízo do mimo, de uma

certa graça melindrosa que é pecu-

liar a esta arte.

Convém n3o perder em Sevilha

o ensejo de observar a magnificência

das antigas tapeçarias de azulejos,

tao profusamente colgadas nas pare-

des dos palacios, das igrejas, dos con-

ventos.

Por vezes de uma tonalidade

amortecida, quando expostas á luz

crua, 110 ar livre dos pateos e das

varandas, sensibilisam-se de líquidos

esmaltes no fausto das ante camaras

e dos salões, scintillam na penumbra das alcovas e quasi crepitam, revo-

gando as leis naturaes, para denun-

ciar a sua presença nas trevas dos

santuários e das cryptas.

Page 77: Cartas sem Moral Nenhuma

65

^■rn pequenina e arruinada capei- la, agora ao abandono, da «Casa de las dueiias» o frontal do altar é de

0)ro fiavescente que se alaranja como 11111 c^° d'aurora, no seio de topázios esvaídos; visto um pouco mais de lado craveja-se de esmeraldas reful-

gindo no fundo das aguas puríssimas t,c uma gruta marinha; do ponto

°Pposto veem-se-lhe os leves dese- 11 lios gris e symétricos avultar, como aPplicações de velludò na superfície Selada e lisa de um setim acobreado.

Coincidência milagrosa: por Hes- Panha abundam as ruínas romanas, tenipl°s. amphitheatres, aqueductos,

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66

necropoles; os supremos monumen-

tos sarracenos ficaram encravados no

seu solo. a par das graciosas cons-

trucções bysantinas, de tão miúda

estructura e tão cinzeladas, estas, que

foram modelos consagrados para sa-

crários; o período gothico petrificou

a sua anciosa aspiração mystica, a

poesia das suas crenças, o desvario

das suas imaginações, a ingenuidade

do seu sentir, em cem cathedraes gigantescas, rainhas do enxame de

igrejas e capellas, floridas nas infini-

tas variações do mesmo estylo, que illustram a nação inteira; ao remode-

lar as formulas clássicas, os italianos mandaram para aqui do melhor e

mais exquisito que inventaram, se-

mentes para novas, muito mais li-

vres, atrevidas, pujantes phantasias:

Page 79: Cartas sem Moral Nenhuma

<5;

a renascença hespanliola tomou cara- cter e moldes particulares, divulgan-

do-se nos requintes dornamentação

inconfundível com que todo o pair, ainda hoje se enfeita,

A magestade augusta das múlti- plas arcadas sobrepostas do aquedu-

cto de «Segovia», a obra de magia

por onde se inflorou esse visionado

paço de Sultanas, a «Alhambra»; os

alvéolos arrendados do claustro de «Ripoll», o ideal dos palacios satis- feito em «Salamanca» para gloria

dos «Montrey» de quem tomou o

nome, exemplares de belleza peregri- na que baldam quantos esforços a

imaginação ponha em os aperfeiçoar, estão longe de Sevilha, mas aqui, nas vastas ruínas da «Italica», nas Sl|mptuosidades orientaes do «Alca-

Page 80: Cartas sem Moral Nenhuma

68

zar», nos plate res cos lavores do «pa-

lácio municipal» e nas infinitas divi-

sões d'esse inexploravel universo, a

cathedral, fácil é topar com subsídios suficientes ao conhecimento acabado

do que a arte produziu cm volta do «Mediterrâneo» ou seja no niundo civilisado, depois da vinda do Christo.

Sevilha é dos mais bem ajusta-

dos compêndios que existem da c Ar-

te atra vez as idades modernas».

(Entre parenthesis obscrvar-lhe-

hei sem exagerada modéstia "que os paragraphos findos, todos em cy-

cloides de eloquência, bem pode-

riam pertencer á mortalha do ilius-

Page 81: Cartas sem Moral Nenhuma

6g

tre Dom Emilio; pois sejam elles

mais uma «palma de homenagem s

que a minha adiniraç3o depõe no

pantheon das glorias hespanholas).

Por tanto motivo ponderável é que me n3o canso de repetir; de-

veria ser t Sevilha» o escopo das

romarias estheticas dos nossos pa- trícios.

Mas aproveitariam elles mais

quando aqui viessem dispostos a * vêr» do que quando veem exclusi-

vamente decididos a «gosar»?

Aquelles que respiram e vivem Cm atmosphera assim carregada de tão suggestivos elementos, os mes-

Page 82: Cartas sem Moral Nenhuma

mos sevilhanos pouco lucram. Insen-

síveis á ineítaçSo instante para in-

vestigar de suas curiosidades histó-

ricas nas próprias pedras que pisam;

indiferentes á poesia de um ines-

gotável manancial de lendas varonis

e romances divinamente phantasia- dos, herança do seu passado he-

róico e aventuroso; alheios á intrín-

seca estimaçílo que requerem as ma-

nifestações tilo patentes da solici-

tude artística dos seus antepassados,

mais parecem fructos peccos penden-

tes por fios de guita de uma arvore

que o seu peso esterilisa.

Á sua lembrança occorre-me re-

petir o dito de certos gaiatos que

matraqueavam um pobre companhei-

ro cujo pae morrera de mal-bruto:

« de teu pae só herdaste o bruto».

Page 83: Cartas sem Moral Nenhuma

7'

E porque os não havemos de

considerar libertos da tradição im-

portuna?

Tal velhinho teso e secco como

boneco de sabugo; o redenhoso, re*

foucinhádo notário cujo vozeirão sôa fundíssimo e parece, * derivado dos

calcanhares, arrastar para fóra as

trovoadas intestínaes; o cavalheiro

importante e pisa mansinho, que passa colleando como um cysne; o sara-

cotear das esculpturaes nadegas dos

toureiros, quando não parece que as levam em andores — a vaidade da

belleza plastica, no homem, é talvez

° único ridículo de que clle não

conseguirá libertarse —; tudo reçu-

pittoresco «natural * e esponta- »eo, não inspirado nos ancestraes ensinamentos.

Page 84: Cartas sem Moral Nenhuma

73

As damas, em sua apregoada

formosura, tão pouco plagiam os

modelos que lhes legaram, á laia

de figurinos, os mestres da pintu-

ra. Deixam desenvolver livremente a

ucharia das suas formas até ao acu-

me da monstruosidade, perturbando

e empecendo a circulação por estas

ruasinhas estreitas. Assim aquella

.senhora que, ha pouco, trancava a «calle Martin Villa s, obrigando a

retroceder quem em sentido contra-

rio vinha.

Que mulher! que assombrosa

mole! que roda de saia, que volu-

me de ventre, que dimensões de

pousadeiro, forte, circular, pomposo

como a pôpa d'uma galeota hollan-

deza! Um signal pardo que lhe cres-

cia na face esquerda tinha traça de

Page 85: Cartas sem Moral Nenhuma

73

verruga ferrea, desvio de blindagem, ou quando menos insignia, distincti-

ve de petrecho guerreiro. Era mu-

lher apropriada a exercícios para

manobras alpinas; de se lhe mari- nhar pelas obras da frente e des-

cer pelas trazei ras com o auxilio de

cordas de nós e escadas de incêndio.

Para acudir a tudo isto, penso eu, exhibem os chupados indígenas

do sexo forte, no sitio proprio, como

em idoneo escapara te, volumes que,

a não serem artefactos de embustei-

ros, excedem o pão de trinta réis,

torcido em forma de garrocho, com o

qual certo pintor parisiense de gran- de fama augmentava a freguezia, en-

feitando-se quando tinha de retratar,

estando presente o modelo, alguma dama d'alta gerarchia.

Page 86: Cartas sem Moral Nenhuma

74

Verdadeiramente os nossos patrí-

cios bem fazem em impregnar o sen-

lido de volições didácticas, todas ade-

quadas ao campo d essa sciencia es-

pecial, se aqui vecm e n"estas ma- nhas são elles exccllentes mestres. E

por vezes ainda mais industriosos quando inutilisados, tal um velho

mendigo lá da minha terra que pu-

nha toda a sua complacência em

exhibir a enorme potra que o afíligia

e assim invocava fructuosamente a

caridade publica.

Page 87: Cartas sem Moral Nenhuma

. ■ - . - • . - • . - - . ~

VI

Cadix — Fevereiro.

* Deixei me ficar, esquecido, todo

o mez de janeiro em Sevilha níSo

a passear utn gallo, como ha quem

julgue ser occupação minha favorita,

mas a' tomar sol, comquanto inve-

joso d'aquelles que realmente vivem de passear gallos, chupando cigarri-

nhos e repimpando se 110 sabor das

fortunas e venturas que lhes hão de

trazer as chimericas victorias d'essas

aves, nas luctas t3o estimadas do

publico sevilhano.

Page 88: Cartas sem Moral Nenhuma

As manhas na cathedral ou no

museu; as tardes nas «Delicias» —

jardim rescendente, paraizo de ma-

foma que a tarde povoa de huris

obesas—e dois passeios fora de por-

tas: Alcalá e Carmona.

«Alcala» é o rebanho do casa-

rio caiado andaluz a trepar na en-

costa íngreme de uma alta collina; guardam-no as ruínas do formidável

castello cujos torreões espreitam to-

do o horisonte em volta; uma ri-

beira melancólica, o «Guadairai, ser-

penteia ao fundo do valle, por can-

tos mimosos de paysagem que os

pintores de Sevilha celebram.

A cidade acastellada de «Car-

mona» coroa outra collina mais le-

vantada que a de «Alcala» e serve

de peanha ao alcaçar ainda orgulho-

Page 89: Cartas sem Moral Nenhuma

77

so na desformidade das suas ruínas,

cuja grandeza se abalou, por certo,

n'algum estremecimento da terra. É

uma povoação silenciosa, habitada

por lavradores e beatas, onde super- % abundam as igrejas faustuosas. As

ruas animam um quasi nada ao cahir

da tarde, quando os lavradores vol-

tam do campo e o estrupido dos ca- vallos chama ás janellas as meninas

curiosas ou namoradas. Lindos são

os ginetes que elles montam com as

pernas encolhidas nos estribos cur-

tos á maneira arabe. Depois ouvem- se as fontes a cantar, abundantes e

solitárias, junto das portas monu-

nientaes que defendem a cidade con-

tra todas as turbulências do pro-

gresso.

A tarde da minha sabida de Se-

Page 90: Cartas sem Moral Nenhuma

vilha era tépida que nem de prima-

vera; perto da estação cantava-se e

bailava-se. O comboio silvou, festivo,

e metteu por entre pomares de la- ranjeiras em fiôr que tapavam o ho-

risonte; só a cathedral apparecía, ar-

mando longe, no esmalte do céo, os

cardos dos seus corucheos. Mas de-

pressa a paysagem se limpou do ar-

voredo e, suavemente, por collinas

abatidas e varzeas infinitas ondulou

até «Jerez »,

A cidade do bom vinho não en-

cerra maravilhas. Algumas igrejas pequenas, de escrupuloso gothico.

Mas a fachada do * Cabildo Viejo»

e os seus truculentos grupos, — de inspiração naturalista pelos moldes

da renascença allemS — accendem

110 espirito uma desacostumada sur-

Page 91: Cartas sem Moral Nenhuma

79

preza que se raciocina gostosa-

mente.

Fóra de portas as ruínas da

«Cartuxa s vastíssimas e confusas.

Todo o claustro grande desfeito,

gasto; pulverisado em parte, ou me-

ro esboço do que foi. O refeitório

ainda intacto nas suas linhas do mais nu ogival, tem a desacatar-lhe o as-

pecto austero a estouvada ornamen-

tação dum púlpito plateresco, e o

claustro pequeno, de architect ura flo-

rente e gracil como a ampliação de

um canteiro de lyrios desabrochados,

por tal modo o roeu a carcoma, sem

lhe tocar nas tenuíssimas nervuras,

que a sua existência parece prodígio

de scenographia.

De «Jerez» a «Cadix» vai uma

hora de caminho, passando ao lado

Page 92: Cartas sem Moral Nenhuma

So

das extensas salinas de «Puerto de

Santa Maria», especie de Memphis

com as pyramides caiadas, e «Puerto

Real», povoação risonha onde se pre- sente que as ruas vão dar alegre-

mente ao mar, o que deve ser a su-

prema consolação d'uma rua. . . A vaporosa «Cadix» das manhãs

ciaras, cuja mancha rosada fascina o

viajante na derrota do «Estreito» é

uma cidade horrorosamente triste.

Cercada de muralhas ás quaes o mar

arremette raivoso e lamentoso, açoi-

tada dos ventos, imniove) na perpe-

tua agitação da agua, atulhada de al-

tissimos prédios inexpressivos e mor-

tas alvenarias de casernas, tudo a

ageita para encerro de degredados.

Ao forasteiro anonymo ou impu-

dico— feliz em summa — resta no em-

Page 93: Cartas sem Moral Nenhuma

Si

tanto o apreciável recurso de explo-

rar dia e noite as ruas tortuosas que

se enredam ao redor da cathedral:

o bairro dos pescadores e das mere-

trizes.

A mesa do hotel — recurso dos tí-

midos— pom peiam tres proeminentes

figuras: o coronel inglez, o tenor e a

dama deste, que chupa pelos dedos

afuzados quantos molhos lhe cahem no prato, quando não ejacula tril-

los ferinos, remexendo circularmente

dois olhos como dois busios, á som-

bra do seu chapéu de palha, onde

esfuziam mais pennas de capão do que nas barretinas de todo uni re-

gimento de «bersaglieri». .. O tenor é tenor italiano typíco,

do fortíssima grenha luzente, satis-

feitio de si só e triste da pobre gen-

Page 94: Cartas sem Moral Nenhuma

82

te que ri3o é elle, o burro, sempre

a benzer o ar com as mSosinhas gor- das, faiscantes de joalheria falsa e a

ajuntar o sebo da barba rosquilha

numa faustuosa gravata cor de fer-

rejo.

Vivem os dois em santa harmo-

nia com o coronel inglez o qual, no

regresso da índia, aqui arribou por

lhe ter peorado a mulher, senhora

invisível mas canora também, tanto

quanto lh'o exigem os intestinos

mortificados. É minha visinha de

quarto.

Baixinho, cheio, reforçado, ex-

pressão de supremo espanto nos olhos

redondos, nada inglez, nada guerreiro,

o coronel tem muito de velha judia

barbada e é fóra de duvida que hon-

tem á tarde, á mingua de leite, a

Page 95: Cartas sem Moral Nenhuma

S3

cujo regimen está condem nada a do- lorida esposa, elle a consolou met-

tendo-lhe nos lábios o bico hirsuto

duma têta escorrida, generosamente

exhumada da sua, d'ellc proprio, ca- misa de flanela. . .

Os demais hospedes são de so-

menos importância, muitos d'elles em-

barcarão comigo amanhã 110 «Mont-

serrat» que vae para a cHavana»

com escala nas c Canarias».

Page 96: Cartas sem Moral Nenhuma
Page 97: Cartas sem Moral Nenhuma

1 VII

A BORDO DO «MONTSEKRAT» f JHrr-,

Fevereiro, 8,

Merecerá a pena de narrar a pe-

quenina aventura, legitimamente hes-

panhola, que insufílou certa alegria ao episodio do meu embarque, esta

manha ?

Foi o caso que, seguindo á risca as prescripções da «Compafiía trans-

atlântica j, tomei ás dez horas o re-

bocador atracado ao caes para ser-

viço dos passageiros do «Moutserrat».

Page 98: Cartas sem Moral Nenhuma

86

— «A las diez en punto, Caballe-

ro, e sepa v. que el vaporcillo es gratis»_ dissera-me ao escriptorio da

companhia um senhor de mais bar-

bas do que a mythologia punha nos queixos de Neptuno,

Mas a meio caminho de bordo

surgem das carvoeiras tres figurões

de zarzuella—andrajosos, para real-

çar os galões doirados dos bonés —

e começam a cobrar tantas pccetas

por cabeça e mais tantas pccetas

por volume de bagagem. Um d'elles requisitava, mellifluo, a espórtula; o

segundo, diligente, ministrava bilhe-

tinhos impressos; o terceiro, desa-

vergonhado, recolhia a paga n um

mialhciro de igreja e assim a coisa

quasi que revestia cores honestas.

Quando chegou a minha vez re-

Page 99: Cartas sem Moral Nenhuma

«7

cusei-me ao pagamento e com tanta

pachorra o fiz e em tão acertados

termos, protestando voltar a terra

para averiguar da justiça d'aqueile

inesperado imposto, que alguns pas-

sageiros exigiam já a restituição das

quantias pagas.

A repentina apparição de outro

comico — quasi nada menos esfranga-

lhado e muitíssimo mais agaloado —

que, por dulcíssimos modos e capti-

vantes falias deixava ao meu alve-

drio decidir a contenda a bordo pe-

rante o agente da companhia, con- seguiu calar-me, permittindo seguir na cobrança e leval-a a cabo sem

°utro incidente.

Chegados ao «Montserrat» não somente ninguém insistiu pelo paga- mento a que me recusara, mas, ven-

Page 100: Cartas sem Moral Nenhuma

88

do-me ficar no rebocador com geito

de querer voltar a Cadíx, o quarto

comparsa veiu para mim, tio insi-

nuante como affectuoso, a sorrir, todo

finorio, assim a modo de collega ou

de quem me cobiçava para o seu

elenco: — «Suba v., caballero, que no

nos debe v. ni un centimito. , .

Todo esto no fue mas que una

equivocacion. ..»

E foi elle quem auxiliou os gal- legos na conducção das minhas ma-

las até á camara do vapor, não lhes consentindo acceitar gorgeta alguma.

— i Repito, caballero, no nos debe

v. nada. Todo esto no fue mas que

pura equivocacion. . .»

Mas um quarto d'hora depois já

o velhaco me «apresentava» ao com-

Page 101: Cartas sem Moral Nenhuma

8g

missario da polícia gaditana o qual

carrancudissimamente exigia provas

certas da minha identidade.

—«Pues tiene v., caballero, to-

das las serias de un capitan crimi-

nal que buscamos...»

Por milagre levava comigo papeis

bastantes a suffocar as argucias poli-

ciaes de um Pina Manique. Satisfei-

ta a quadrilha não me contive que

não dissesse alto c bom som o bem

que d'ella pensava e o bonito, então,

foi vêl-os, atrapalhados, para masca-

rar a patifaria irem dar com um gi-

gantesco biscainho ruivo, o qual tam-

bém «tenia todas las sefias dei capi-

tan criminal» —os mesmos signaes

que em mim correspondiam a uma

estatura mediana e barba preta. , .

Page 102: Cartas sem Moral Nenhuma

90

Fevereiro, 9.

O tempo que vinha calmo mu-

dou de tarde e embora o ceo sere-

no, apenas muito esgaseado para o

lado do norte, nSo indicasse a olhos

de profano indícios de tormenta, a agitação do mar sobre ser grande

crescia gradualmente.

Era convite indeclinável para a

cama onde me fui metter ainda sem

excessivo esforço acrobático. Mas lo-

go principiou o magnifico bailado,

por balanços rythmicos e espaçados,

do impulso da vaga dando paralela-

mente ao eixo do barco, que depres-

sa se alteraram com alternativas sur-

prehendentes, tomando o navio 11'uma

arredouça entre oscillações leves e

Page 103: Cartas sem Moral Nenhuma

91

arrem et tidas impetuosas, de lhe pôr

a quilha ao ar. . .

Refiectía-se o movimento dentro

do barco. No meu camarote mexe-

ram-se as malas, chocaram os fras-

cos no lavatório, resvalaram as almo-

fadas do sofá e a mais e mais a es-

curidão se povoou de formas move-

diças que se buscavam e se encon-

travam com baques amortecidos, e

se dispersavam, deslisando silenciosa-

mente. Malas, bancos, sapatos, al-

mofadas, em preparativos d'investir

as paredes hesitavam, á sirnilhança

de entes autonomos, parando, receo-

sos, em volta dos pés fixos do lei-

to e do sofá. Pelo cristal redondo

da clarabóia "coava uma amarellenta

reverberação de luz mortiça c lon-

gínqua a afírouxar e a alterar as li*

Page 104: Cartas sem Moral Nenhuma

92

nhãs e os contornos de tudo quan-

to me cercava.

De repente o barco teve um es-

tremecimento convulsivo, obrigando

o lavatório a cuspir todos os seus

frascos e juntamente o estojo de

viagem cujo recheio de vidro e aço

se espalhou no tapete.

Eu via agora juntarem-se as for-

mas volumosas—mais volumosas, pe-

sadas, e por assim dizer brutaes —

das malas, dos bancos, das almofa-

das, as espertas facetas dos frascos

de toucador que retiniam e rolavam

miudamente pelo chao, e, mercê da

pontinha de febre que entrara co-

migo, cada vez mais me ennovelava

nos cobertores, espavorido com a

ideia de pousar os pés no tapete,

preferindo a conjectura de me se-

Page 105: Cartas sem Moral Nenhuma

93

pultar, inteiro, nas ondas, a ex-

pôr-me, nu, ás gélidas punções de

uma tesoura aberta, ou das puas do

cristal estalado das caixas dc sabo-

nete .. ,

O vento, no emtanto, assobiava

com sibilos de respiração cançada,

mas fazia-o ás vezes discretamente,

amimando-me por clareiras de re-

pouso, a suggerir-me afifoitesas de

peixe, como se tudo isto se pas-

sasse, normalmente, no seio de uma

baleia adormecida... Passageiras acal*

mias no horror do medo, pois eu ia pouco a pouco desviando a atten-

çâo do risco proprio para me en-

volver 11a calamidade commum, e

todo ouvidos para os retumbantes

cataclismos que occorriam pelo na- vio fóra e m'os trazia, diabólica-

Page 106: Cartas sem Moral Nenhuma

94

mente orchestrados, a musica da de-

vastação e da ruína. . .

Na sala de jantar desabavam ri-

mas, torres, de pratos sobre par-

ques de copos e logo adeante sol- tavam-se camadas de bandejas, dis-

persando se com um som que pare-

cia abrir em fórma de leque, e arre- banhava outros sons bruxoleantes,

mas humanos, assim de imprecações

e de risos quasi extinctos. . . Um

episodio novo conccntrou-me outra

vez os sentidos nos limites do meu

beliche, O cubo de zinco onde se

baba a clarabóia quando lhe bate o

mar, saltou do alvéolo e cahíu es-

trondosamante no chão, despedindo

um jacto de agua que veiu molhar-

me o travesseiro; durante alguns

instantes tudo parou e cmmudeccu

Page 107: Cartas sem Moral Nenhuma

95

corno que escutando o vascolejar da

agua que ainda lhe ficara dentro...

Então duas portas bateram ao mes-

mo tempo, no corredor; bateram ri- jo, trincolejando ferragens mal pre-

gadas, com o ruído relasso de mui-

tas tijellas a desfazerem-se em cacos.

Foi signal este para a continuação

da batalha entre os meus moveis,

os quaes, de concerto, se atiraram

ao cubo de zinco, levando-o repeti-

das vezes ao ar, forçando-o a verter

todo o seu liquido até que, vazio e

sonoro, o arremessaram para debai- xo do lavatório onde permaneceu o

resto da noite em sobresaltos e tre-

mores. . .

Quando acordei da passagem bre- ve pelos sonhos quasi delirantes de

um som no febril, mudara completa-

Page 108: Cartas sem Moral Nenhuma

96

mente o regimen que regulava os

movimentos do barco, cujo eixo, ago-

ra, cortava perpendicularmente o eixo

das vagas, E com que esforço o fa-

zial Como se não desconjuntava todo,

ou como se não afundia de vez, n'es-

ses momentos de angustiosa suspen-

são, de arquejante paragem, em equi-

líbrio sobre a aresta da onda ou,

inerte, 110 seio da montanha fluida!

O navio tremia todo, revolvendo

os intestinos de ferro, rangendo as

articulações, arrastando cadeias, jo-

gando-se ao mar, ficando perdido, a

popa toda fora da agua, exasperado

pelo giro solto dos helices inúteis, .

Mas de envolta com tanto ruido

proprio da lucta pavorosa que se

travava, o quer que fosse gemia a

espaços, chorando lagrimas sentidas,

Page 109: Cartas sem Moral Nenhuma

97

no referver d'aquelle embate de ele-

mentos insensíveis. O que era que

assim se lamentava tão doridamen- te?. . ,

Ao atropello dos arrancos violen- tos que me exacerbavam as sensa-

ções pavidas, toda a minha angustia

ora buscar nos meandros tenebrosos

de uma anatomia phantastica, á qual

a hallucinação sujeitava o interior do

monstro onde eu jazia, a origem, a

razão dessas lamentações tão fundas, e tão breves que se furtavam ás agu-

díssimas espias dos meus sentidos, para os inquietar de novo se por

acaso outro fito os absorvia um mo-

mento , ,

■ . . mas essas lamentações perse-

guem-me e, evidentemente, nascem do mar, e cercam o navio, e são-me

T

Page 110: Cartas sem Moral Nenhuma

98

segredadas á cabeceira do meu lei-

to. . . E, se realmente existem se-

reias, mulheres cruzadas de peixes,

folgando cm grutas de coral, á luz

lunar das pérolas, sobre o velludo verde das algas flacidas, quanto lhes

nao custará a passagem do immun-

dissimo monstro que é um vapor,

sempre a conspurcar o seio immacu-

lado das aguas!,.. Ah! eu compa-

deço a dôr das sereias!...

Page 111: Cartas sem Moral Nenhuma

99

Feverfiro, IO.

— f Amphitrite, és tu?. . .> — mur-

murava eu, no desfecho de um delei- toso sonho submarino, para o creado

que vinha prevenir da proximidade

do jantar e me annunciava também

a volta do bom tempo.

Comi pantagruelicamente e fui di-

gerir a copiosa refeição sobre o tom-

badilho, recostado em preguiçosa ca- deira articulada, banhando-me de luar

branco e a vista entretida a seguir- ihe as esteiras da tremulina accesas

pelo mar fóra. Sentia-se o ar morno o embebido d'aromas das noites de

setembro no Algarve e a memoria

pesquisava pelo passado themas apra-

Page 112: Cartas sem Moral Nenhuma

IOO

ziveis que viessem completar a feli-

cidade da hora presente.

Toda uma riquíssima série deri-

vou da palavra «Montserrat» lida ao

luar sobre as taboas d'um bote de

bordo e ao luar surgiu ali logo, da

superfície rasa do mar, tal como nas

planícies da Catalunha, o barbara,

golpeado, contorno da mole abrupta

onde o convento d'aquelle nome

está.

V. conhece descripções do mos-

teiro e também, decerto, estampas que reproduzem a agglomeração das

cilíndricas pedras perpendiculares, al-

tas de quinhentos metros e mais,

que caractcrisa essa estranha serra

de <t Montseri at» e lhe dá aspectos

de orgão no qual reboassem os con-

certos cosmogonicos. . .

Page 113: Cartas sem Moral Nenhuma

101

Muitos outros mosteiros da Cata-

lunha vieram apoz este expôr ali os seus melhores trechos: grutas circula-

res em que se ageitam as perspecti-

vas darcos miudamente lavrados nos

porticos românicos; as projecções ca-

prichosas de que a lua reveste as

sepulturas históricas nos claustros go- thicos; a magnificência geométrica

das salas capitulares, com o echo

lamentoso dos refeitórios vazios; as

meias trevas que empapam, desfigu- ram, dilatam, as naves dos templos

abandonados; as cicloides aereas onde

poisam, leves, os lanços d'escadaria aos pateos abbaciaes e as ruínas gar-

ridas occultando as suas lepras nos

largos pannos das trepadeiras gulo- sas e espessas, nas cercas hortadas

d esses mosteiros que, a exemplo de

Page 114: Cartas sem Moral Nenhuma

102

«Poblet# e «Santas Creus», foram

também fortalezas, pantheons e alca-

çares reaes, por onde eu peregrinei

toda uma lua propicia de maio...

Mas singrando assim, feliz, a

phantasia aproou direito a outras

terras preferidas, para chamar outra impressão mais completa, mais for-

te, mais definitiva. Sítios são esses por onde se co-

mia ainda ha bem poucos annos o

pão de trigo rústico, perfumado, tri-

gueiro e levemente glutínoso, de

quando a industria das farinhas bal-

buciava as suas primeiras trapaças.

Comi d'esse pão com surpreza e de-

licia, pensando ser do mesmo que a «Sulamitis» mastigava nas pérolas

dos seus dentes. Pão trigueiro, ma-

cio, á imagem do ventre d'ella:

Page 115: Cartas sem Moral Nenhuma

103

«monte de trigo cercado de açuce-

nas»; ventre morno, minheiro, com

efifluencias de pão quente, para ser

beijado c mordido. . .

Não julgue que eu viajava en-

tão na Palestina mas em Portugal e

se me soccorria de comparações taes

— favoritas na prosperidade da mi-

nha vida imaginativa—era para me-

lhorar o sabor ao pão e n'elle ta-

lhar formas mimosas e vivas, como

as devia ter a gracil donzella, e por

essas formas haurir os balsamos de

que se ungiam e, assim, levado pelo

guia minucioso e indulgente da Bí-

blia, transportar me aos frescos hor-

tos da Siria de Salomão, quando

na realidade eu ia, suffocado pela

calma de um dia de julho, atraves-

sando os pinhaes de Aljubarrota, a

Page 116: Cartas sem Moral Nenhuma

104

caminho do mosteiro de «Santa Ma-

ria da Victoria».

Comecei a divisar por entre os

alamos da estrada as agulhas da

«Batalha» ao cahir da tarde, já

quando o sol arrefecido pouco mais

era do que uma braza a extinguir-

se em tenuc poeira de cinzas aver-

melhadas. Pouco depois, alumiado

por esta claridade prestigiosa que

lhe deixava a base envolta em ful-

vas penumbras, !evantava-sc o mo-

numento no mais encantador dos

seus aspectos, soltas pelas abobadas,

prezas nos cardos dos espigões, cin-

gidas ás arestas dos muros, as ren-

das de pedra que o enfeitam. A luz

do sol poente inflammava essas ren-

das, recortando-lhes os desenhos em

fundos esmaltados: matiz d'oiro so-

Page 117: Cartas sem Moral Nenhuma

105

bre oiro, frágeis relevos preciosos

subtilisados por mudanças successi-

vas de effeítos fulgurantes..,

Não me puz a desembainhar es-

toques de critico para retalhar con-

venientemente a sensação recebida:

contemplei emquanto durou o cre-

púsculo e depois sopeei a impaciên-

cia na leitura dos «Luziadas», espe-

rando a hora em que, alta já a lua, o sacristão iria mostrar-me os claus-

tros.

Levantou-se a lua pelas transpa-

rências esverdeadas do horisonte que

parecia recuar lentamente, já cerca

da meia noite, 110 absoluto silencio

onde tudo cahira em redor do po-

voado. Aguardara a apparição da luz

phantasmatíca no alto de uma colli- na que melhor vista dá sobre o mo"

Page 118: Cartas sem Moral Nenhuma

io6

numento: sombra mossiça ouriçada

de sombras agudas, tomando á clari-

dade incerta das estrellas relevos de

um instante, logo absorvidos por ou- tras sombras mais vagas. O luar ba-

fejou o grande corocheu de poeira

alvacenta, como o primeiro, frio, re-

flexo da aurora, mas promptamente

se fez opalino e mais penetrante, in-

sinuando-se nos lavores das agulhas,

nos liríos de pedra que anieiam as

cornijas, nas teias de frisos que arri-

piam a superfície das paredes e mer-

gulhando, por fim, na tinta opaca

em que se condensava o interior dos

claustros, libertou das trevas toda

aquelta maravilha e como que a re-

fundiu em espumas de prata fina. . .

Em noites taes a vista nilo se

detem na rude fórma natural das

Page 119: Cartas sem Moral Nenhuma

io;

coisas, nias passa-as á alma que as

transfigura e, luar ainda mais doce,,

mais fecundo, mais intimo, as devol-

ve, repassadas de poesia, puras subje-

ct ivações, enlevo da imaginação, or-

gulho do pensamento,Essa noite foi

juntar-se áqucllas — numerosas, inol-

vidáveis— passadas a reconstituir len-

das do alto das varandas da «Alham-

bra», que dominam quasi a pique,

de bem alto, a cidade, branca de cal,

derramada na veiga fragrante; essa

noite ficou a par d'aquella em que, na

ilha «Caprea» visitei a «gruta azul»;

e as noites contemplativas por entre

os cyprestes de «Scutari»; e as noi-

tes d'apaziguamento no immutavcl

scenario do «Nilo»; e, as mais ra-

ras de todas, as noites de «Veneza»

de luar venenoso, 110 ataúde das

Page 120: Cartas sem Moral Nenhuma

ioS

gondolas que vSo mollemente direi-

to ao Lido, ao agasalho das quaes

a luxuria se exacerba divinamente. . .

Mas essa noite antecipou-se erra-

damente a outra, absoluta, que para

mim só o meu querido amigo, Frank

Holman, o pintor, fixou em moldura de oiro, n aquclle quadro que eu res-

guardo das polluções dos philisteus,

onde a sua alma deu realidade á vi-

sito fluctuante, desfallecente, incerta,

das apparições ephemeras, as formas

silenciosas que a noite cria e que mal,

a custo, se reflectem, ou morrem, ou

repousam na laguna, como sombras

coadas de outras sombras. , .

Page 121: Cartas sem Moral Nenhuma

VIII

Santa Cruz de Tenerife

Março.

Cheguei a amimar o projecto de

vêr miudamente todas quantas ilhas ha n'este archipelago das Canarias,

que são muitas, e, segundo contam,

todas egualmente dignas de estudo,

mas o clima, a brandura do clima

tão bafejado de aragens mornas, tào

preguiçoso, minou-me a energia e

porque as communicações não apre-

sentem aqui facilidades extremas só

Page 122: Cartas sem Moral Nenhuma

I IO

vou aonde forem carruagens e d'este

modo limito as minhas digressões á

«Grande Canaria» e a «Tenerife».

Eu nSo sou d'aquclles que figu-

ram de antemão a paysagcm das re-

giões que visitam; a realidade des-

mancha acintosamente os quadros

da phantasia e assim a decepção ou,

pelo menos, a contrariedade tornam?

se frequentes e perturbam o goso de

ver. Mas a ideia bem arreigada que

me suggeriam umas ilhas já do tem-

po dos romanos sujeitas ao rotulo

de «afortunadas» e, depois, civiltsa-

das ao calor da «renascença», orgu-

lhosas do seu «Pico»—o seu «Tei-

de» — visinhas dos tropicos, era qua-

si paradisíaca e quaesquer serras pel-

ladaa, ou áreas áridas, ou de cara-

cter menos assignalado, com que a

Page 123: Cartas sem Moral Nenhuma

I [ I

principio deparava, tinha-as quasi na

conta de offensas pcssoaes. ..

O clima foi-me d'csta vez bafo *

lustral nos meus resentimentos, res-

tituindo- mc a paz confortativa ao es-

pirito alvoroçado e balouçando-me na

vida suave de uns dias inintcrrompi-

damente aprazíveis . . Deixeí-me de

lançar em rosto ao «Pico» —ao

«Teíde»—as intangíveis bellezas do

«Etna», e conformei-me na supposta

indigência pittoresca d'estas ilhas a

ponto que tudo agora me é surpre-

za e delicia. . .

Nào lhe encareço os meus últi-

mos dias, passados em «Orotava»;

o magnifico vaile deslumbra 110 seu

revestimento de opulenta verdura vi- çosa, mas povoado de condemnados

que ali esperam allivio a insanáveis

Page 124: Cartas sem Moral Nenhuma

112

softrimentos e, á custa de penosos,

mal encobertos esforços, alardeiam

sorrisos de felicidade, entristece o fo-

rasteiro são a quem repugnam paro-

dias dos « Campos-EIyseos ». , ,

E tão flagrante o contraste da

natureza a ferver de seiva crassa em

volta dos seres definhados, cuja vida

se esvae no doloroso dessorar lento,

que a ideia de um «Ser Superior»

infinitamente poderoso e bom, ganha ali foros de abominável escarneo., .

Busquemos diversão á molesta

lembrança e busquemol-a aqui, em

«Santa Cruz», no hotel do nosso

patrício, se bem que internacional

Camacho, onde se hospeda o ma-

gnetisador «O.» com a mulher e a

filhinha. Que extravagantes olhos

são os dessa gentel

Page 125: Cartas sem Moral Nenhuma

ii3

Comem á meza na minha frente e eu não me canço de perscrutar os olhos da creança, que teem as íris de aventurina c scintillam, meio

Cerrados, no rosto esmaecido, como

° brilho de certas estrellas rompe

ã alvura leitosa de um ceo satura- do de luar. Devo soccorrer-me de

dulcíssimo lyrismo para alludir á mi-

sericordiosa ternura que parecem de- cantar os olhos, húmidos de inefla- vel luz, da mãe; e o geito das

niãos, todas caricias de arminhos,

polvilhando perfumes! ..

ltsta gente estraga-me o esto- mago, onde os remoinhos de tanta

poesia encruam as chorudas igua- nas do Camacho. . .

Sem embargo suspeito que le- garei da «Grau Casaria» melhores

Page 126: Cartas sem Moral Nenhuma

114

recordaçOes, . . Ali não ha «Pico»

nem «Valle d'Orotava» mas sítios

como «San Mateo», serra armada

em pequenos calvários de presepio,

que são outros tantos cestos de ver-

dura a coar fontes cristallinas em alvéolos de rochas cinzentas.

Depois, em «Tenerife» não ha

mais do que uma única estrada, a

de «Orotava», via sagrada por on-

de só transitam landós pomposos,

aos tirões intermittentes de umas pilecas vacillantes e estafadas, em-

quanto que a «Gr an Canaria» é sul-

cada de estradas e existe n'ella uma

raça de cavai los pequenos, fogosos

e infatigáveis, excedentes para sella,

os quaes também tiram as leves s tartanas» da ilha tão lestos que

vôam e essa febre dc movimento

Page 127: Cartas sem Moral Nenhuma

US

ao ar livre encanta, quando não é

indispensável, á mingua de melhor

excitante, na vida acanhada das ilhas pequenas. . ,

De duas relativamente largas jor-

nadas, aos pontos extremos de «Agiiimes # e « Agaete», conservo

lembranças vivas, que reproduzem

pan nos de paysagem muito diversa em serie apressada de mutações.

Ambas as estradas serpenteiam á

beira-mar mas aquelta, de «Agiii-

mes», passa primeiro ao travez da

rocha viva, por elevadíssimos arcos,

sobe, depois, a excessivas alturas,

junto de um abysmo onde o mar

vae aguçando os gumes de muitos

leixões retalhados e dispostos cm cir- culo, sobre os quaes pairam bandos

de abutres, e entra, em seguida, pela

Page 128: Cartas sem Moral Nenhuma

116

terra dentro cortando o mais tene-

broso vaile que os meus olhos vi-

ram. É uma região formada de es*

coreas mineraes sem outra vegetação

a empecer-lhe a cor ferrugenta, além

dos fartos molhos de cactos gigan-

teos que a largos espaços crescem,

e cujas delgadas ramificações cylin-

dricas se extorcem, cmmaranhadas,

e agitam no ar as extremidades sol-

tas, de verdosas serpentes iradas...

Na igreja de «Telde», povoação situada a meio caminho de «Agiii-

mes», vcem-se pinturas «desculpá-

veis » e um retábulo de esculptura

delicada; são, julgo eu, os únicos

vestígios d'arte que as «Canarias»

encerram. . .

Perto de « Aguimes» um leito

sécco de ribeira, semeado de pedre-

Page 129: Cartas sem Moral Nenhuma

i'7

gulho negro, amplo bastante a per-

mittir passagem ao Amazonas, aguar-

da os enxurros que as serras lhe en-

viam com frequência.

Entre «Las Palmas» e «Agaete» ha tres léguas dc estrada quasi toda

no littoral. Alguns lanços imitam ar-

redoiças com as pontas presas em

duas eminências nivelladas e a cur-

va a roçar na babugem do mar;

outros foram abertos, a meia altu- ra, nas paredes lisas de fundíssimas,

assombrosas, exeavações que sobem do mar a pique; outros estiram se

ao lado de extensas varzeas planta-

das de bananeiras, resguardando-as

da areia da praia.

Convém passear sósinho no «valle de Agaete» que é magestoso e* pro-

picio a evocações sobrenaturaes, fe*

Page 130: Cartas sem Moral Nenhuma

nS

chado, como a arena de um circo,

em serras sobrepostas cujos cimos

as nuvens occultam. Lembrar-Me-hei também, decerto,

de «Las Palmas» a capital da «Gran

Canaria» que uma ribeira polluida

divide em duas encostas accidenta-

das e pittorescas, d'onde reluz o mar

por todas as perspectivas, e dos vi-

rentes jardins em socalcos sobem as

palmeiras a espanejar o ceo; lem-

brar-me-hei, saudoso, das suas airo-

sas mulheres, indolentes e morenas,

cujo olhar, dardejado sob a alvíssima mantilha de 13, desassocega e pertur-

ba o forasteiro desvalido; e lembrar-

me-hei, sorrindo, da hospedaria de

«Dona Pino» aviario exotico, ruidoso,

tumultuado caravançará, onde entra

e sáe quem quer, e come e bebe

Page 131: Cartas sem Moral Nenhuma

119

quem quer, e paga quem quer por-

que ali — embora s Doria Pino» pros-

pere— ninguém pede ou presta con-

tas; e lembrar me-hei, eternamente,

mesmo nos ceiestiacs saraus, das fei-

ções, do sorriso, dos olhos leaes

d'cssa menina que cm noite de tbea*

tro eu contemplei durante os tres

actos da peor ganida das zarzuellas;

não era um lypo liespanhol mas um

rosto amoravel de portugueza quasi

envergonhada de ser tão linda. . ,

Page 132: Cartas sem Moral Nenhuma
Page 133: Cartas sem Moral Nenhuma

IX

Funchal — Abril.

O «Aline Woermann», o sujo • vapor que me trouxe das Cariarias

á Madeira, approximou-se de terra emquanto eu dormia; foi já quasi

no ancoradoiro que eu vi, do tom-

badilho, a ilha toda estofada em ve-

getação de um profundo verde-gar-

rafa, subir como um panno de vel-

ludo esticado, que as nuvens esti-

vessem puxando do mar.. .

Cortina espessa, húmida e fera-

cissima, sem delineamentos nem con-

Page 134: Cartas sem Moral Nenhuma

122

tornos, absorvendo tudo no seu ni-

velado plano ascendente, appareceu-

me tal a convencionada anti these

das ilhas clássicas do Mediterrâneo,

descarnadas, sinuosas de recortes ca- prichosos, cujo effeito é meramente

ornamental e repugna a qualquer

suggestão utilitária como abundancia,

riqueza, fertilidade... N'estes enfei-

tes do mar c do ceo, peanhas pro-

picias a obra d'arte humana, onde

uma columna truncada ainda realça

tão bem como o cabuxão no en-

gaste de oiro, apurou a nossa raça

os modelos definitivos da paysagem

espiritual e poética, escravisada á

architectura.

A primeira impressão da «ilha

da Madeira» — tenebrosa e farta — é

flagrante desacato a esses modelos

Page 135: Cartas sem Moral Nenhuma

123

respeitáveis c vem trilhar nos, a des-

peito de tudo, a esthesia que hon-

ramos. . ,

Mas como chega depressa a re-

conciliação e como esmaece a appa-

rente hostilidade suavisada cm tre-

chos surprehendentes, infinitamente diversos c de engenhoso arranjo...

Pois haverá no mundo paysagem

mais alliciadora do que esta que eu

disfructo agora mesmo, do jardim embalsamado e silencioso da «Quin-

ta Vigia»? Tudo é immobilidade e soccgo

no panorama em gris que a minha

vjsta abrange: mar de calmaria, adamascado, com a sua orla borda-

da de barcos em relevo—cascos de

seda frouxa e mastreações de retroz

— á luz egual, branca, branda, que

Page 136: Cartas sem Moral Nenhuma

124

o alto ceo leitoso côa do sol que

se não vê; as verduras mossiças da

serra alliviando-sc da espessura em

verduras mais tenras, ao contraste

dos casaes caiados e longe, sombre-

jando o horisonte, uns arremedos

de Capri, ilhas perdidas cujas cor-

covas montam por sobre a ultima

linha do mar. . .

Os jardins aereos da «Quinta Vi-

gia » são refugio inviolável a quem

busca isolamento durante o dia, e

o predilecto logar de reunião, du-

rante a noite, para quem não pres-

cinde de diversões mundanas — com

paradas á roleta. — «Faraizo com sol

e inferno com lua» — sentenciará,

talvez, o moralista minaz e impor-

tuno. Eu não tnoraliso, amigo, bem

sabe e venho aqui de dia, quan-

Page 137: Cartas sem Moral Nenhuma

do fico no «Funchal» a descançar

dos meus continuados passeios pela

serra.

Dentro da cidade não lia local

mais adequado a retiros intellectuaes

e, decerto, merecem preferencia a

quaesquer outras as horas de calor,

comtanto que se aviste e oiça o

mar, para, socegado o corpo, abrir

ensanchas á imaginação e sen til-a

então largar panno, pouco a pouco,

buscando rumo, e hesitar na derrota

até que, ao leve sopro do mais for-

tuito indicio, se faça de vela direito

a remotas, desconhecidas, almejadas

plagas. . .

Hoje vim aqui mais porque o

desejava chamar á minha presença

e lhe queria dar participação e di-

zer-lhe muito bem da vida sã e

Page 138: Cartas sem Moral Nenhuma

126

feliz que levo n'esta ilha selvagem: o local é egualmente propicio para

fugazes devaneios c evocações affe-

ct uosas.

Eis a fornia como emprego o

meu tempo.

Subo á serra logo de manhã

cedo e é já noite cerrada quando volto ao hotel, moido como um sal,

bem disposto a entrar de surpreza

no plenissimo remanso do sonmo

solto. ., Trinta kilometros d'exerci-

cio na livre amplidão do ar impol-

luto e dez horas forras ás prodiga-

lidades da vida, dez horas de cris-

talina insensibilidade, limpas de reali-

dades e de sonhos. , . em cama fófa.

O meu creado, que é também

o meu guia, espera-me á primeira

ascensão do elevador junto á igreja

Page 139: Cartas sem Moral Nenhuma

do í Monte», obrigado ponto de partida para quasi todas as excur-

sões na serra.

É já unia elevação grande, o

«Montei, e o seu accesso, ao tirar

da locomotiva arquejante, pela Ín-

greme pendente acima, remette-nos

á phantasia de certos contos diabó-

licos onde se violam sem escrúpulo

as leis naturaes. A paysagem tor-

na*se ludibrio da vista, invertendo perspectivas, deturpando curvas, ma-

chucando casas, bandeando rochas,

cavando abysmos infernaes sob a

gaze esverdinhada das trepadeiras

em flôr, desencantando valles idytli-

cos a meio de ravinas lobregas e re-

voltas, arrancando os pinhaes á sua perpendicularidade magestosa para

os arrojar como feixes de lanças

Page 140: Cartas sem Moral Nenhuma

128

d'encontro aos broqueis espelhados dos tanques d'agua...

Todos estes elementos de discór-

dia, aquietados á paragem do eleva-

dor, tecem, sumptuosamente, a dal-

matica, a capa de asperges, admira-

çSo e enlevo dos olhos, sob a qual o «Monte» avoluma desde a roda

do mar ao adro da igreja. Os pi-

nhaes fazem-lhe o fundo de vellu-

do escuro, cercados e lavrados da

doirada ramagem das carvalheiras,

por onde reluz a pedraria das fon-

tes. ,.

K dentro de uma canastra de

verga, assente em duas tiras de ma-

deira ensebada —trenó rústico —que

eu desço, á tarde, do «Monte» á

cidade, resvalando vertiginosamente

pelos declives arrebatados da cal-

Page 141: Cartas sem Moral Nenhuma

I2Ç)

çacia estreita, onde ha traços quasi

vertícaes cuja passagem provoca an-

gustias de queda mortal...

Os meus primeiros passeios fo-

ram pelos pinhaes que se alastram

por cima do «Monte» á cata de

novas perspectivas, com mira nos

cabeços de granito quasi inaccessi-

veis que a miúdo calvejam na den-

síssima vegetação das mattas, em-

prezas por vezes temerárias mas ge-

nerosamente recompensadas na exul- tarão dos horisontes larguíssimos, a

mais e mais despejados ao successi-

vo desdobrar de ondulações monta-

nhosas.

Adeantei-me depois para léste,

dando volta á escavação fragosa do

«Curral pequeno», descançando na

passagem da «Choupana»—trecho o

Page 142: Cartas sem Moral Nenhuma

de composição alpestre — ate aos

prados da «Camacha», campina, em

planos curtos de relva, quebrada

por sebes de vimeiros.

A poente visitei «Camara de

Lobos» que é um porto de pes-

cadores fechado em rochas de ba-

salto, crespas como ficam as gottas

de chumbo derretido que as crean-

ças deitam na agua fria, para tirar

sortes, em vespera de S. João. Ahi

perto levanta-se do oceano uma des- propositada mole, de temeroso es-

boço elephantino, aguentando a en-

costa risonha do vastíssimo valle

que deu entrada aos descobridores

da ilha.

A estrada que liga «Camara de

Lobos» ao «Funchal», nos lanços

arrojados, no modo de galgar as

Page 143: Cartas sem Moral Nenhuma

I3i

agrestes, apertadas ravinas, nos en-

curvamentos pittorescos por onde se

esquiva, plagia agradavelmente a es-

trada de «Posilipo».. ,

Mas se as paysagens observadas

até aqui embora preciosas não esca-

pam á humilhação das analogias de-

primentes, urge notar-lhe que divisei

aspectos de irrefutável originalidade

na minha recente jornada ao «Curral

grande» ou «Curral das freiras».

Esta pavorosa depressão geoló-

gica encerra 110 circulo das suas

muralhas de granito negro, á pro-

fundidade de mil metros, um vastís-

simo e deslumbrante tapete de tin-

tas fundidas a primor em culturas

variadas e prosperas. Tal é a sur-

preza de encontrar assim entregue

á monstruosa agglomcraçSo de ro-

Page 144: Cartas sem Moral Nenhuma

r32

chas bravias, a guarda d'aquella ma-

ravilhosa alfaia, cujo desenho e co-

lorido somente se explicariam nas

combinações de uma arte reflectida

e consummada, que não sopeamos a

phantasia e, á incitação do conjun-

ct© fabuloso, para ali trasladamos

instinctivamente quadros mythologi-

cos, imaginando que ali mesmo se

congregaram os exércitos de titans

para occultar o seu palladio, antes

de accomnictter o ceo.. .

Prcstava-se a luz á visão per-

feita, exaltada na transparência do

ar que accendia as côres como cris-

tal puríssimo, das alturas onde me

assomei. Tudo ali era pintura; ne-

nhum relevo perceptível destrinçava

as arvores da outra vegetação mais

chã; as casas denunciavam-se no ri-

Page 145: Cartas sem Moral Nenhuma

133

gor geométrico das .suas manchas e

movimento algum traduzia o gorgu-

ihar do homem n'aquelle fundo ma-

tizado onde a impressão de isola-

mento absoluto, de alheamento ex-

piatório, de natureza enclaustrada,

sobrepujava a qualquer outra. . .

O meu guia, a quem não foi

indifferente o assombro que se me

transluzia no rosto, prometteu-me

passagens ainda mais portentosas

n'esta ilha desconhecida. Fallou-me

do sitio de « San t'Anna» como se

pintasse a thebaida dos poetas; er-

gueu a mão, lentamente, sobre os

abysmos e aguçou no espaço uma

ponta diabólica: o «Pico ruivo»; os

seus grandes olhos reflectiram cam-

biantes infinitas: eram as cascatas

do «Rabaçal».

Page 146: Cartas sem Moral Nenhuma

134

Calculo que um niez chegará,

escassamente, para tudo isto, pois

a ilha é extensa, eu ando a pc e

os caminhos sSo de cabras. . .

No regresso, voltando do «Curral

grande», entrei para descançar n'uma

especie de boceta oval, toda alcati-

fada a musgo rôxo, genuina gruta

de poema pastoril, a cuja entrada

rectangular pendia uma cortina de

agua desfiada, e os fios tSo juntos

e distinctos como nos reposteiros

de miss an ga japonesa.

* ♦ *

A approximaçâo de um grande

vapor branco, ha meia hora já

aproado ao «Funchal», que deve

Page 147: Cartas sem Moral Nenhuma

135

ser um a Castle» conduzindo tropas

frescas para o iCabo», vein ata*

lhar-me a febre epistolar.

Vou deixal-o, por agora, amigo.

Não quero perder o ensejo de

admirar ainda uma vez o aprumo,

a elegância, o asseio dos nossos

cruéis alliados. Os mesmos soldados

rasos, apoz travessias medonhas na

promiscuidade das casernas fluctuan-

tes, desembarcam limpos, garridos

quasi, empertigados nos seus mo-

destos uniformes de kaki engomina-

do, c mais guapos do que os aju-

dantes de campo da Magestade

portugueza em dias de parada. . .

Também os desejo ver duas

horas depois, na occasião de re-

gressar a bordo, amarfanhados, mas

não combalidos, pelos eft eitos das

Page 148: Cartas sem Moral Nenhuma

•3^

bebe rage us venenosas—que sob o

rotulo de «Madeira genuíno velho»

os taberneiros lhes ministraram —

distribuindo pontapés e soccos, em

guisa de paga, aos assassinos que

os perseguem, . .

Vem a pello notar-lhe que a

guerra do «Transvaal» ateou na po-

pulação madeirense o fogo da dis-

córdia. Por serem de diversa ten-

dência partidaria muitos namorados

retractaram as promessas matrimo-

niaes, muitos amigos se esbofetearam publicamente, e muitos co herdeiros,

embora de maioridade, exigiram par-

tilhas judiciaes. Ou elles não fossem,

os dignos filhos da briosa raça por-

tuguesa, capazes de affrontar as

maxímas catastrophes para que «Ro-

berts» ou «Kruger» levem virtual-

Page 149: Cartas sem Moral Nenhuma

137

mente a melhor nas suas conten-

das, n'esse empenho tao accesos

como indiferentes a tudo quanto

lhes vae por casa e sem animo

para — ao menos — metter facas aos

cevados nacionaes que lhes trans-

formaram a patria em pocilga. .

Este bonito — ardente — periodo

deve ser relido ao som da «Portu-

gueza» assobiada, ou do «Hymno

da Restauração > na guitarra con-

soante, caro amigo, a musica das

suas actuaes disposições patrióti-

cas. .,

Aproveitarei a tarde para dar

uma volta pela cidade que ainda

não vi; nem sequer entrei á Sé. Contento-me, quando vou a caminho

do «Monte», em parar um momen-

to deante da torre quadrada que

Page 150: Cartas sem Moral Nenhuma

US

se ergue das abobadas do abside.

É um arranjo de linhas e de eôr

altamente pittoresco.

A construcçfto ampara-se a gi-

gantes toscos — rematados por agu-

díssimos fusos de pedra torcida en-

tre os quaes corre uma renda ma-

nuelina—para formar terraço. Apoia- do em parte n'este, e sustido late-

ralmente por gigantes mais solidos,

outro terraço mais elevado cerca-se

de balaustres, donde se levanta o

carnpanario de pedra negra faustuo-

samente mitra do d'azulejos claros. A

ramagem de duas viçosas palmeiras,

que repuxam dos alicerces, espaneja-

lhes as pedras carcomidas.

Page 151: Cartas sem Moral Nenhuma

Funchal — Abml-

Não eram fal lazes as promessas

do meu creado e guia Gregorio e

pela primeira vez tias minhas pere- grinações senti a realidade, logo de

chofre, sanar as desconfianças gera-

das no encarecimento prévio.

Verdade seja que o rapaz não

especificara taes ou taes caracteres

de encanto — impertinentes croques

da esthetica official a que a repulsa

acode instinctivamente — mas gene-

ralisando, evocara com ingenuidade

uma região sublime.

Page 152: Cartas sem Moral Nenhuma

140

Levei quinze dias dineffavel rego-

sijo contemplativo ena «Sant'Anna»

a filtrar a alma por sitios. tão altos,

tão luminosos, tão desafogados, que

m'a restituíam límpida, serena, per-

meável ás mínimas irradiações de

belleza exterior. Movimentos, formas,

cores, reverberavam-se-nie no cére-

bro por clarões iriados da alegria

de viver.

Durante essas duas semanas ali-

jei saudades, raciocínios, concupiscên-

cias, philosopliias. . .

Eu sorvia o mundo pelos senti-

dos, abrindo os olhos ás perspecti-

vas infinitas, aos ceos ampliados na

circuinferência do mar que a eleva-

ção das montanhas dilata, as prodi-

giosas transfigurações da paysagem,

ora apparecendo em miniaturas es-

Page 153: Cartas sem Moral Nenhuma

i4t

maltadas, nas profundíssimas cavida-

des dos valles, pelo rasgSo de uma

nuvem opaca, ou, deslocada no cai-

xilho movei do arco-iris, esbatendo- se sob a musselina fluGtuánte das

neblinas leves, ou sepultando-se nos

nevoeiros crassos, que a abafam por

fim em borrões quasi líquidos — re-

domas de vidro cheias de fumo ne-

gro... E, logo, á súbita rajada do

vento a resurreiçâo das mattas cer-

radas que sobem pelas encostas ar-

rebatadamente, como exércitos, le-

vando, a modo de guiões, nas pon-

tas mais altas dos pinheiros farra-

pos de névoa doirada; e na volta do atalho, a terra a resvalar por

vinte espinhaços, varetas de um le-

que meio aberto cujo panno mati-

zado o mar arredonda.

Page 154: Cartas sem Moral Nenhuma

14~

Ao cahir da tarde o sol obliquo

ardia nas poças dc agua tão violen-

tamente que encandeava c mais in-

tensa do que á excitação do álcool

a vida accelerava-se na embriaguez

das excessivas altitudes. . . O meu

som no era suave e continuava du-

rante a noite o embevecimento dos

dias generosos, em sonhos cujas ima-

gens buscavam o meu travesseiro,

bailando como pérolas brancas nas

resteas de luar. . .

A travessia do «Funchal» a

«Sant'Anna» foi trabalhosa, com

chuva e cerração, por caminhos

suspensos á laia de escadas de

corda sobre despenhadeiros apoca-

lypticos.

Apoz cinco léguas de marcha,

quando luzia a redempçilo na fór*

Page 155: Cartas sem Moral Nenhuma

143

ma já perceptível do campanario

de «Sant'Anna» obscureceu-se es-

pantosamente o ceo e despejou

agua a cantaros. Para me animar o meu guia observou, no tom so-

cegado que lhe é peculiar:

— «D'aqui á hospedaria pouco

mais ha de meia légua... mas não

tarda que seja noite e bem pôde

succedcr que não encontremos lá

ninguém. , . Na verdade com o

tempo assim quem espera hospe-

des?. . . A mais. d'isso deve haver

transtorno nos arames e talvez o

despacho desta manha não che-

gasse. , . s

* Sant'Anna» é uma larga dis-

persão de cabanas de colmo, arre-

dada das quaes, na pendente da

riba-mar, sobre um grande terraço

Page 156: Cartas sem Moral Nenhuma

144

ajardinado, está a construcçSo in-

gle za que recebe os forasteiros por

favor especial e ajuste c aviso an-

tecipados.

A tal meia légua durou duas

horas sempre com agua por cima

do artelho e a perspectiva de en-

contrar a hospedaria fechada . . Mas esperavam-me. . .

Despi-me; confiei o fato enchar-

cado a uma das duas bruxas sa-

turninas a cujo cuidado fôra com*

mettido o trato da minha pessoa.

Jantei na cama e adormeci ao som

da tempestade que durou pela noite

fóra e era deliciosa de ouvir nos

interludios do somno, . .

Amanheceu o dia seguinte ines-

peradamente formoso e a chuva náo

incommodou mais durante a minha

Page 157: Cartas sem Moral Nenhuma

145

permanência ali; tempos vários, fres- cos, de ventos e nevoeiros e muita

nuvem a empannar o ceo de for-

nias em perpetua evolução, como

estudos para ornamentações cada

vez mais faustuosas. . . O tempo,

emfim, que melhor convém a di-

gressões alpestres.

Fui ao «Santo da Serra» e ao

«Pico ruivo», custosas jornadas que

alternavam em dias de mais ener- gia com as visitas aos povoados

visinhos e ás fragas da costa.

Em volta de «Sant'Anna» o

campo bem cultivado e fértil, repar-

te*se infinitamente em pequenos re-

talhos por sebes tecidas de roseiras,

hortênsias e lírios. A industria tem

chegado ali ao extremo de prender ao flanco das rochas aprumadas no

to

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146

mar, pequenos canteiros de verdura,

sobrepostos em cadeia d'alcatruzes,

por sitios cujo accesso se deve re-

putar empreza para loucos. Certo

dia, buscando passagem de um para

outro d'esses graciosos alegretes

aereos, vi-me nos braços da morte

aventurado por uma çimalha que

não tinha dois palmos de largo; á

direita alisava-se a rocha como pa-

rede betumada de cisterna, e ao la-

do esquerdo a aresta d'outra parede

egualmente lisa que profundava du-

zentos metros até ao mar.

Parei e disse para o meu crea-

do: — 1 Não imaginava que o cora-

ção pezasse tanto,.,; se não volta-

mos para traz perco o equilíbrio. . .»

Muito serenamente, — a julgar

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147

pela firmeza da voz — o Gregorio

replicou:

— * Voltar aqui não se pode.,. Isso que o senhor sente é falta de

costume, mas eu o amparo se fôr

preciso. . . »

Não foi preciso porque bastou

para me suster a confiança 110 seu

auxilio. Livre de perigo reparei que o rapaz estava livido.

— >0 que tens tu?...»

— i O senhor dizia aquillo para

me metter medo não c verdade?. . .

Como é que eu o havia de am-

parar?. .. j

E o caso fez-Ihe decerto abalo

porque á noite tinha febre. Mas as

bruxas saturninas á força de escaida- pés e lambedores deram-no por bom

ao dia seguinte,

Page 160: Cartas sem Moral Nenhuma

14-S

Algo socarrão o Gregorio com*

mentava:

— * São muito caridosas aquellas

senhoras... qual d'ellas a melhor!..,

A desdentada disse logo que me não deixava passar a noite sósinho

e mandou deitar a outra. . . que não quiz ir... e ficaram ambas á minha

cabeceira... Davam cada suspiro

que mettia dó...»

O Gregorio ainda não tem vinte

an nos: é alto, forte, bem feito. A

cabeça de construcção latina, a testa

lisa e breve, o cabello frisado, quasi

ruivo, os olhos côr de avelã verde e

um pouco apartados do nariz. Nem

um pêllo de barba a pungir-ihe a tez peceguenta; as commissuras dos lá-

bios abertas em cheio na carne e reviradas como pequeninas pétalas

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149

de rosa. Uma cara que sorri, intrin-

secamente luminosa, mas de expres- são ambígua, inquietadora ate. Ves-

tido com a tunica de setim, curta,

quinhentista, estaria bem no séquito

d'algum rei mago dos frescos do Lui-

ni. Eu recordo-me de lhe ter manda-

do photographias de «Saronno»; re-

pare o meu amigo no pagem que

leva a espada e a coroa d'el rei Bal-

thazar: é o meu Gregorio.

Mas bem mais curiosa ainda do

que a expressão da sua physionomia c a extravagância dos seus conceitos.

Duma vez que cu lhe observava a respeito d um grupo d'estrangeiros:

— * Teem ar de se aborrecer va-

lentemente. . ,»

— tTeem.—respondeu — É de-

certo gente muito capaz...»

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ISO

— i EntSo ?!»

— i Pois en penso que esta gen-

te enfastiada que se põe a correr

mundo corn tanta fadiga e tanta des-

peza é só por amor á verdade, para

ter o direito de dizer «já vi», quan-

do se fosse mentirosa podia do mes-

mo modo dizer «já vi» e ficar-se

muito bem repimpada em casa.»

Em cSant'Anna» encontrando-nos

á porta do telegrapho com uma chus-

ma de creancinhas, disse eu: — «Talvez sejam todas do tele-

graphista. . .»

— k Com certeza...»

— «Pois tu conhecel-of. ,»

— «Nilo senhor, mas os telegra-

phistas sâo todos assim . é do

officio. . .»

E, esclarecendo, a ceres cent ou que

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i5i

o tele graph is ta é prolifico, o phar-

maceutic© irrascivel, o confeiteiro

desdenhoso, o sapateiro brigão, o

latoeiro politico...

O Gregorio traz o casamento

justo com uma rapariga do «Mon- te» que é deveras mimosa e linda,

mas em «Sant'Anna» descobriu lá

para as húmidas profundezas do

«Calhau de S. Jorge» uma especie de prima, assim como elle de olhos

verdes e cabellos côr de cannella, e mal soavam Ave-Marias sumia-se.

Porque me andasse sempre a fallar na «sua grande amizade» á noiva

pareceu-me bem reprehendelo:

— «Pois tu níio tens vergonha ff.. Olha que isso é uma traição que

estás armando á tua moça...»

—«Deixe o senhor lá que nao

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152

ha. bicho mais velhaco do que é a

mulher. ..»

— « Não percebo. . . »

— «Ora adeus! Isto não é nada

para o que ella ainda me ha de fa-

zer a mim...» e cem as mãos ar-

rebitou um caracol de cabello de

cada lado da testa. Os disparates e as momices do

Gregorio toleram-sc, graças á singe-

leza desaffectada que revelam, e as-

sim coavam, sem arrepios, no embe-

vecimento da minha vida.

Para rematar o prazer d'esses

dias de «Sant'Anna» a situação do

hotel reservava me, nas horas seden-

tárias, o seu admirável panorama,

cuja tribuna era um grande jardim

abandonado.

Ao centro a casa, sob a exube-

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153

rancia festiva das flores de um bu-

ganvil que lhe bucolisava a fachada,

fazia de caramanchão, sustido, rasti-

camente, em torcidos troncos de par-

reiras; nos festões de purpura des-

bota do buganvil, emmaranhavam-se

as vides com a viçosa alacridade das hastes novas que abrem ao sol as

folhas de cristal doirado.

O jardim, todo, em volta, cele-

brava a gloria de vegetar livremen-

te, por desvairadas composições chro-

maticas e promiscuidades subversi-

vas dos bons preceitos de cultura.

O cálice dos lirios rôxos enfeita-

vam a hirsuta grenha dos buxos ou-

tr'ora tosquiados; dois cyprestes agu-

dos viam-se liados até meio na rede

das trepadeiras multicores, como ban- da ri lhas de honra; presos á mesma

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154

moita, os botões de rosa, cheios, pe-

sados, amarellos com geito de li-

mões, as estrellas de velludo gasto

das rosas negras, as crespas borlas

fartas das arregaçadas rosas côr de

carne. Outras rosas desfolhadas ma-

culava m de sangue os cortes de bro-

cado resccndente, tecidos por jacin-

thos e narcisos em canteiros ainda

geométricos. Arvores immensas de

camélias, tão inçadas de flores que

pareciam fingidas, a mettcr-se ainda em cima nos enredos de florínhas

brancas dos jasmineiros de Italia e,

suspensas nas pernadas d'urn carva-

lho único, exorbitante, os chalés

de glycinias sumptuosamente franja-

dos. . .

Parte do jardim tornara-se impe-

netrável pela densíssima vegetação

Page 167: Cartas sem Moral Nenhuma

155

que o enchia, mas via-se, de longe,

d'esse miolo dc verdura, alar a fluên-

cia magnifica das bananeiras esté-

reis, os leques malabares das pal-

mas an5s, as vergastas dos bambus

e, ardendo como fachos accesos, os

thyrsos alaranjados dos cactos flo-

ridos. .. Do lado opposto e ao abri-

go do biombo de loureiros entrete-

cidos de heliotropos cujas flores, na

sombra lúcida, lhes recamavam a fo-

lhagem envernisada de gottas azu-

ladas, o tanque d aguas verdosas, tor-

queza oval, reflectia por entre rolos

dc limos trechos de ceo profundo.

Era ali que durante os crepúsculos

se distillavam os perfumes mais acti-

vos.

O jardim vivia o momento su-

premo do seu explendor, hora im-

Page 168: Cartas sem Moral Nenhuma

156

perial, fulgurante, perdulária, que se

encurtava para se níío repetir mais,

exhausta em voluptuosidades arreba-

tadas e caprichosas; e essa hora di-

vina foi para mim só. . .

Levanta-se o terraço — especie de

planalto — que o jardim occupa quasi sobre o mar a sueste, e, livre por

todos os lados, graças á amplitude

de successivos valles, descobre em

redor a immensa região de serranias

revoltas, que enchem o horisonte de

cimos recortados como um abeceda-

rio turco e garram, para o sul, na

ponta de S. Lourenço...

A ilha saturada de agua resuda

agora em fontes, cascatas e ribei-

ros, cujo murmúrio ouvido no jar-

dim, como um solo de flauta mo-

dulado a distancia, os melros acom-

Page 169: Cartas sem Moral Nenhuma

157

panham briosamente chilreando em

côro. Mas o que ia no ceo nSo eram

meras combinações ornamentaes; as

nuvens davam ali espectáculos or- denados, de accessivel comprehensão

como depressa verifiquei. Comedias

e tragedias e autos e farças. Os protagonistas eram uns mons-

tros de algodão nevado, e appa- rencia vagamente ursina que, dois

dias depois da minha chegada, asso-

maram ao horisonte lá dos lados

de leste e nunca mais desampara-

ram a scena. Se por acaso o ven-

to norte os obrigava a acolher-sc

a bastidores, eil-os que, resurgindo

de oeste, iam tranquillamente acas-

tellar-se nas cristas da serra, le-

vando o ceo ás costas, como coisa

Page 170: Cartas sem Moral Nenhuma

158

mitito sua e do seu uso intimo.

Armavam todas as tardes umas ap-

paratosas tendas de setim bordado

a froco, cujas franjas desciam até

ao mar, e n'eilas se recolhiam ao

cahir da tarde, em magestosa pro-

cissão, com os Reis á frente, a

quem o Gregorio chamava Dom Fa-

brício e Dona Giralda.

Passaram alguns dias em bata-

lhas que pelo methodo a que tudo

obedecia mais pareciam torneios, e

era de ver, durante os terríveis re-

contros, como se abolavam as res-

pondentes couraças e que jorros de

sangue lhes corria das feridas e

vinham pelo ceo abaixo juntar se,

a poente, nimi lago de purpura.

DVsse Iago levantou se uma tarde

um dragílo horrendo que arremettcu

Page 171: Cartas sem Moral Nenhuma

159

dc fauces escancaradas direito ao

sol. Correu-lhe ao encontro Dom Fa-

brício, despedindo chammas do ar-

nez de diamante. Mas o dragSo le-

vou-o de vencida, arpoou-o com as

garras, enguliu o sol e rolou para

o mar escabujando e dando urros. . .

Depois fez se entre os monstros

a grande paz cm que os deixei. Sa-

hiam com a aurora a apascentar os

rebanhos d ovelhas de prata e des-

ciam invariavelmente, sem mais des-

vio, a pendente do mar onde passa-

vam as noites. Só uma vez os vi

fora d'agua depois do sol posto: es-

tavam todos á roda da lua a estu-

dar, talvez, algum maravilhoso phe-

nomeno que nós não percebíamos cá

da terra

Page 172: Cartas sem Moral Nenhuma

IÓO

Difficilimo será imaginar região

mais bruscamente accidentada do que

aquella por onde se passa na jorna-

da entre «Sant'Anna», «Fayaí» e

«Machico». Por toda a parte a ve-

getação pullula e as mesmas rochas

desapparecem sob espessíssimos man-

tos de musgo, de modo que um

estofo solto parece cobrir o esque-

leto da ilha, sustendo-se nas de-

pressões em regaços de velludo e

sellando-lhe os espinhaços de feltro

brando. Certos caminhos desenros-

cam-se nas gargantas dos algares,

pelos debruns dos despenhadeiros, á

laia de serpentes; outros s3o como

frágeis laços de nastro atirados a

esmo aos lombos cheios; outros ris-

cam as penhas escuras e perpendi-

culares de zig-zags — as linhas que-

Page 173: Cartas sem Moral Nenhuma

161

' . bradas das faíscas eléctricas nos ho-

risontes plúmbeos. . .

Embarquei em «Machico» para o «Funchal» e hoje cá estou outra

vez na «Quinta Vigia» a dar-lhe

conta das minhas finezas emquanto

não apparecem uns inglezes chega-

dos á ilha na minha ausência, os

quaes me emprasaram — em bilhete

de visita que o Gregorio me levou

esta manha ao quarto — para um

encontro aqui, esta tarde.

É gente com quem me avistei

ha dois annos na «Sicilia»; falíamos

então na possibilidade de visitar jun-

tos a Madeira, esta primavera, pala-

vras imprudentes a que eu não li-

guei sentido algum, mas não assim os

inglezes cujo primeiro cuidado foi bus-

car-me pelas hospedarias do Funchal.

.

Page 174: Cartas sem Moral Nenhuma

l62

Pensei cm esquivar-me á entre-

vista, mas o Gregorio disse-me que

iam também duas senhoras e uma

d'ellas era «tal quais a imagem da

Rainha Santa que sahe na procissão

de Terceiros da freguezia do Monte

c que é a coisa mais linda que exis-

te na ilha. . .

Sempre quero vèr. . .

Page 175: Cartas sem Moral Nenhuma

XI

Funchal—Maio.

A Sé do Funchal tem tres na-

ves. . .

Mas tres noites seguidas, leva-

das, íntei rinhas, a acariciar—a ado-

rar— o corpo saboroso de urfla dese-

jada creatura até então vista só de

relance, embora a miúdo, quando

essa creatura vence a prova da nu-

de;: e, depois, evoluciona na memo-

ria, como pelas transparências glau-

cas de um aquario, em attitudes vo-

Page 176: Cartas sem Moral Nenhuma

164

luptuosas; tres noites assim exigem

honras de precedência sobre todas

as cathedraes do mundo... Por isso

e comquanto eu saia agora mesmo

da Sé do Funchal, vou fallar-lhe da

minha Cecilia. . .

Era um perfil idealisado á ma-

neira dos cunhos gregos que eu

divisei, argênteo quasi, no interior

penumbrento de uma casa térrea,

de passagem para o «Monte». Ex-

pressão muito fina e o quer que

fosse de longinquamente, subtilisada- mente, caprino; olhos claros sob a

leve curvatura das sobrancelhas ne-

gras e dois rolos de cabello loiro,

levemente arcados também, e parai-

lelos ás sobrancelhas, alisando-se so-

bre a testa para unirem as pontas

detraz da cabeça.

Page 177: Cartas sem Moral Nenhuma

i6s

— e Quem é aquella rapariga,

Gregorio?»— inquiri sobresaltado.

— « Não sei dizer quem se-

ja. .. »— respondeu muito natural-

mente.

Mas a graciosa figura tornara-se

infallivel, á nossa passagem, na ja-

nella terrea, e o seu olhar acceso

perseguia o Gregorio e parecia im- »

portunal-o como reflexo do sol cm espelho■ movei. , .

— «Não resta duvida..,, aquella

mulher conhece-te, Gregorio. . . »

— «Talvez!...; eu é que nunca

a ví mais gorda, . . »

No emtanto, a certeza de que

existia ou existira entre os dois

qualquer ligação mysteriosa, torna-

va-se cada dia mais evidente, gra-

ças ao affinco da rapariga em es-

Page 178: Cartas sem Moral Nenhuma

166

perar a nossa appariçãò e o enleio

do Gregorio a quem o seu olhar

torturava.

— «Gregorio, tu mentes... lu

conhece*la como aos teus dedos. . . »

— «juro que nâo. . mas o se-

nhor verá,.. Hoje mesmo vou tra-

tar de saber quem ella é. . . »

No dia seguinte: — «Então, Gregorio, quem é a

mocinha?»

— «Valha-me Deus que me esque-

ceu de todo... Já agora indagarei quando voltarmos de Sant'Anna. . .»

Deitei inculcas por outras vias

de modo a poder apurar o negocio

na volta de Sant'Anna e logo lhe

soube o nome e a historia. Chama-

va-se Cecilia e nascera no «Monte»

onde tivera namoro com um primo

Page 179: Cartas sem Moral Nenhuma

167

que a seduzira e depois a deixara

por outra. Vivia por conta de um

inglez rico e zeloso que a amava

com delírio mas, agora, a distancia,

pois andava ausente, O primo sedu*

ctor e o Gregorio eram uma e a

mesma pessoa. Existiam suspeitas

de que ella llie perdoara; durante

a ultima romaria em S, Roque hou-

ve quem os visse conversar e, como

nunca faltam alcoviteiras, a noiva

do Gregorio teve logo noticia do

caso e ali mesmo, no adro da igre-

ja, lhe deu um faniquito. As infor-

mações accrescentavam a titulo gra-

tuito : sabe-se que o Gregorio tem

muito bom dinheiro grangeado na

lida do * Monte», com os carrinhos

dc verga e ao serviço dos estran-

geiros; alem d'isso por morte dos

Page 180: Cartas sem Moral Nenhuma

i68

paes ficatn-lhe para cima de tres

contos e a noiva é o melhor par-

tido da freguezia. Tudo gente de

peso, em sumtna..,

— «Então, Gregorio, já desco-

briste alguma coisa?...»

—«Ah!. . . Parece que a rapa-

riga c lá do norte da ilha; vive na companhia da mãe e está por con-

ta de um inglez muito rico e muito

cioso que lhe prometteu casamen-

to. . . e não a larga nem um ins-

tante. .. »

— «Pois, Gregorio, meu rapaz,

já agora acaba o favor e averigua

como c que eu poderei fallar á ra-

pariga, ou á mãe, ou mesmo ao in-

glez rico c ciumento, se isso fòr in-

dispensável, porque, de todos os

modos, tenho resolvido não deixar

Page 181: Cartas sem Moral Nenhuma

169

a ilha sem primeiro dormir com a

mocinha. . . »

— «Isso sim!...»—exclamou elle

visivelmente escandalisado. Eu não

prosegui, esperando ensejo mais

opportuno de voltar ao assumpto.

Depois vieram os encontros com

os meus amigos inglezes em pas-

seios, almoços e merendas no cam-

po a que o Gregorio assistia sem-

pre e sempre com os olhos a fugi-

rem-lhe para a «imagem da rainha

santa». A «linda imagem» arran-

java-se pelos moldes pre-raphaelicos:

posturas serpentinas, gestos fluidos,

e bandós crespos de cabcllos ver.

melhos a comerem-lhe as faces. . .

E ia-me parecendo a mim que o

motivo predilecto das suas medita-

ções era a plastica do Gregorio,

Page 182: Cartas sem Moral Nenhuma

I JO

com tal frequência o seu olhar o

buscava e 11'clle descançava. . ,

Um dia, á queima-roupa:

— «Gregorio, e a respeito da

Cecilia?...»

— «Qual Cecilia?... Pois já lhe

sabe o nome?...»

—«Sei tudo e sei o que tu lhe

fizeste. . . O que mal comprehendo

é esse teu egoísmo ferrenho, essa

tua teima cm não quereres repartir

dc um quinhão que te não perten-

ce. Olha, para teu castigo, serás tu

quem ni'a ha de arranjar. . , »

— «O senhor anda muito enga-

nado comigo.,.; para tudo servirei

eu menos para isso. ..'»

— « Veremos.. . »

Volvidos dois dias fomos á quin-

ta do s Palheiro Ferreira » que é a

Page 183: Cartas sem Moral Nenhuma

171

propriedade mais bem cuidada e

mais celebre da ilha, verdadeiro

apanagiò de casa reinante. Em si-

tuação explendida et á similhança

dos parques inglezes, armando, ao

acaso, sobre um prado uniforme,

egual, de relva viçosa, os canteiros

de flores, os grupos de arvores ra-

ras, as alamedas pomposas de car-

valhos, de castanhos, de plátanos,

os pequenos labyrinthos de pinhei-

ros, os lagos reflexivos e as fontes

sussurrantes, limpa de toda a rus-

ticidade inconveniente, nao será fá-

cil inventar scenario mais apro-

priado para idyllios perversos do

que o recinto d'aquella cmbclleita-

dora quinta. . .

Por favor muito especial dos

seus donos ali pudemos passar quasi

Page 184: Cartas sem Moral Nenhuma

172

um dia todo. jantamos alegre-

mente n'uma clareira vazia e sole*

mne como qualquer sala de thro-

no... A companhia, numerosa, com-

binara-se na proporção observada

pela raça humana: com excesso de

mulheres.

Mas a mais cdosa das senhoras

presentes não tinha ainda trinta

annos, e todas conheciam «Nápo-

les», a «Urnbria» e o «Baude-

laire»... Houve um momento de

quasi absoluta expansão, durante o

qual a alma desafogou sem escrú-

pulo, a caminho das maximas in-

dulgências. . . Os vinhos, de excel-

lente escolha, accendiam o enthu-

siasmo. ..

Depois da refeição dispersamo-

nos pela quinta.

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173

A providencia, provavelmente,

deparou-me dentro de um caraman

chão o invejável grupo que a «san-

ta imagem» e o meu Gregorio lá

foram representar. . . Ambos cala-

dos, como é proprio de esculptu-

ras. . . Ella tinha as faces desmaia-

das e a mão direita niettida pela

abertura da camisa branca do rapaz

em cujo peito os anneis dos seus

inquietos dedos reluziam... Preten-

dia a desfallecente menina, suftbca-

da pelo exorbitante calor que fazia,

amparar-se ao hombro do seu com-

panheiro? Assim devia ser e decerto

assim o comprehendera elle, quando

desveladamente lhe passou o braço

musculoso á roda da cintura. . .

— «Gregorio,—disse-lhe eu n'essa

mesma noite—os meus amigos in-

Page 186: Cartas sem Moral Nenhuma

174

glezes queriam levar-te d'aqui a dias

a Sant'Anna; vae também a «Rai-

nha santa»,.. Mas eu não te deixo

ir; direi que preciso de ti, se me

não proporcionas meio de estar com

a Cecilia, , . Entendes?. .. »

— «O senhor pode fazer o que

quizer e eu estou por tudo, mas no

que diz respeito á Cecilia escusa de

profiar... Eu não sirvo para taes

recados... »

Sem embargo ao outro dia de

manhã cedo entrava-me no quarto

e, sc bem que em voz sumida e

tom despeitado, rcsolveu-se satisfa-

toriamente:

— «Se quizer, a rapariga espera-o

esta noite ás oito horas...» — De-

pois, humilde: — «Mas um grande fa-

vor lhe tenho eu a pedir. . . »

Page 187: Cartas sem Moral Nenhuma

i?5

— «Dize lá... »

— «É que a não beije nos

olhos. ,. »

E assim o prometti,..

A Cecilia tem a consciência exa-

cta de quanto vale despida. Vi-

veu até aos dez annos descalça, na

serra, e os pés, perfeitos, conser-

va-os intactos mau grado as elegan-

tes botinas de tacão alto, a cujo

molde os sujeitou, vae para dois

annos, por culpa do amante. Este

senhor é homem dissoluto, conforme

deprehendi do que ella a seu res-

peito referiu, e photographoua re-

petidas vezes, em diversas posições

estudadas, nua, mas conservando-

se de meias e botinas. . . Para

arranjar fundos aos quadros colga-

va nas paredes colchas preciosas

Page 188: Cartas sem Moral Nenhuma

176

de que ella me mostrou a collecçíío

admirável.

Eu observeilhe:

— «O teu amante além de li-

bertino parece-me homem de pou-

quíssimo gosto.. . Tu és incompa-

ravelmente mais formosa descalça e

para t'o provar vamos repetir as li-

ções que elie te deu mas sem bo-

tinas nem meias...»

Ás attitudes académicas ajuntava

cila outras de sua invenção; a mais

attrahente era de joelhos sobre a

cama,* sentada nos calcanhares, com

um sorriso malicioso e quieto, a

apontar para mim os bicos dos

seios hirtos, cada um em sua

mão. .. Era imagem que o poeta

acceitaria para pôr á entrada do

palacio da Ventura.

Page 189: Cartas sem Moral Nenhuma

177

Em um dos momentos de mais

enlevado extasis, quando eu, esque-

cido da promessa feita, lhe ia bei-

jar os olhos — sorvel-os como duas

gottas de vinho generoso — ella cer-

rou os docemente e pareceu-me que

os seus lábios murmuravam: « Gre-

gorio. » Aos meus labíos acudiu

o mesmo nome como se o fosse

de alguma divindade tutelar. . ,

Julguei de outra vez surprehcn-

der-lhe nos olhos claros uma levíssi-

ma tinta de melancolia.

— «Que tens tu?»—perguntei.

—«Nem eu sei bem. .. Dese- java ser cabra e comer de bruços

a herva verde. . . »—e o seu rosto

tomou a mais lídima expressão ve-

getativa

Page 190: Cartas sem Moral Nenhuma

l7s

Voltemos á Sé que ainda hoje

nao desmerece da referencia feita

por Damião de Goes: «sumptuoso

templo». É de tres naves, o tecto

de cedro artezoado, em rosas octo-

gonas, com pinhas vazadas e pinhas

pingentes, alternando, e tudo embu-

tido a marfim e madrepérola, no

melhor estylo hispano-arabe,

A capella-niór, manuelina,—infe-

licissimamente com a pintura das

cadeiras do coro retocada a azul

celeste e caca de anjinho; a capella

do Santíssimo lavrada e cosida em

oiro, resplandecente, riquíssima, e o

thesouro da irmandade recheado dc

ostentosas alfaias do bom tempo de

D. Toão v; muito azulejo curioso,

de fabrica portúgueza, em largos

pannps historiados a figuras azues.

Page 191: Cartas sem Moral Nenhuma

179

Alguns painéis de forte colorido,

pelos retábulos e a joia por excel-

lencia, a celebre cruz que D. Ma-

noel offereceu a qual tão apreciada

foi em Lisboa, na Exposição de ar-

te ornamental, que por pouco não

fica lá esquecida. É com effeito

objecto para ensandecer a quem

lhe antegostar a posse: as delica-

díssimas figurinhas dos quadros da

paixão, que lhe enxameiam os bra-

ços, parecem obra italiana, ..

* * *

Depois da minha ultima carta

dei fim ás digressões pela ilha indo

a «S, Vicente» e ao «Rabaçal».

Fui embarcado d'aqui á «Calheta»

Page 192: Cartas sem Moral Nenhuma

i So

que c um cordão de casas, suspen-

so do espinhaço da serra, á simi-

Ihança dos rosários de pimentos que

se vêem ás portas das vendas hes- panholas. . ,

O trecho fragoso da costa que

o vapor percorre despeja, agora,

dos alcantis sobre o mar infinitas cascatas, como se a ilha fosse uma

immensa concha de granito a tras-

bordar agua clara.

Vae-se da «Calheta» ao «Raba-

çal » em continuada ascensão por lombos ouriçados de pinheiros no-

vos e fundos barrancos vestidos de

giestas amarellas d'oiro que o ven-

to açafroa aos sulcos — os sulcos

deixados pelo roçar, leve, dos de-

dos sobre um estofo de pellucia. . .

Atravessa-se á luz de archotes um

Page 193: Cartas sem Moral Nenhuma

i8i

kilòmetro dc tunnel — o «Furo» —e

desemboca-se na região das «aguas

loucas», o «Rabaçal», onde tudo se

desfaz em cristaes líquidos a correr

para os abysmos de velludo verde.

Ali, ainda subsiste a primitiva

vegetação cm urzes que attingem

dimensões de carvalhos grandes e

nas dragoeiras da índia, arvores

quasi fabulosas, com troncos aber-

tos e cavados a modo de grutas

amplas no seio da rocha. . .

' Desfazcm-se os rochedos em agua

que lhes rebenta do coração e re-

puxa c brilha e cae, silenciosa, nos

tapetes de musgo.

Uma estreita cornija que serpen- teia sob o lençol, pejado de cam-

biantes, de extensa cachoeira dá

accesso ao assombroso meio cyiin-

Page 194: Cartas sem Moral Nenhuma

1 82

dro, cavado no granito, onde esíii-

siam com desordenada violência, es- padanando em leques ou vergastan-

do em cordas grossas, dezenas de

fontes, e sobre ellas, de altura es-

pantosa e tomando-as todas dentro

de uma luminosíssima cupula de vi-

dro prismático, outra cascata a des- fechar n'outro .mais vasto cylindro,

fôjo temeroso e sem fundo por

cujos recessos a vegetação espon-

josa lhe absorve e abafa o ruido. . .

li o «Risco» e o «Sitio das

vinte e cinco fontes».

As serras de < S, Vicente» e

«S. Boaventura» pedem para ser vistas por miúdos e «vividas» du-

rante mezes. O genero pastoril, a

não ter nascido na imaginação dos

poetas que buscavam scenarios ade-

Page 195: Cartas sem Moral Nenhuma

183

quados a idyllios rústicos entre al-

mas Candidas, inspirou-se, decerto,

em regiões parecidas a esta, se as

ha: murmuram os ribeiros, chilreiam

as aves. choram as fontes e as

grandes arvores agitam brandamente

sobre os prados matizados a som-

bra caridosa das suas ramas, ..

* Aônia» e «Pérsio» por lá andam

perdidos. . ,

Mas afim de satisfazer a todos

os gostos também não escasseiam

ali vestígios de convulsões tremen-

das, com perspectivas tragicas, To-

pa*se a caminho do «Curral gran-

de» com uma escadaria colossal de

basalto que, sendo infinita não leva

nem ao ceo nem ao inferno. , , ; é

uma expressão de anciedade petri-

ficada.

Page 196: Cartas sem Moral Nenhuma

I S4

Os meus amigos inglezes parti-

ram houtem para « Sant'Anna» e

d'ahi seguirão até «Ponta Delgada»

com ideia de regressar ao «Fun-

chal » pelo «Curral grande», É ex-

cursão para quinze dias; acompa-

nha-os o Gregorio.

Fui com elles até ao «Monte».

À despedida o Gregorio disse-me:

— «Já sei que lhe beijou os

olhos. , . ; é como quem beija ca-

beças de passarinhos...»

— «Tu estás doido rapaz!...

Adeus. . . »

O Gregorio chorou e deu-me a

entender que era com pena de me

deixar. Elie sabe que depois de

Page 197: Cartas sem Moral Nenhuma

iSs

amanha embarco no < Cabo Verde»

para Lisboa e suppõe, ajuizadamen-

te, que nos não tornaremos a ver.

Embora vivêssemos quasi dois Ine-

zes juntos—ou por isso mesmo que

vivemos quasi dois mezes juntos

— a sua commoçao — desinteressada

— surprehendeu-me, . .

A «imagem da rainha santa»

que não percebera a conversa mas,

com os olhos gulosos embuscados

num immenso molho de goivos,

cravos e rosas, espreitava o Grego-

rio, exclamou, arrebatada, ao vêr-lhe

as lagrimas:

— «Que bellissiino coração o

d'este rapaz!., , »

Eu desejaria encontrar-me com

elle só para lhe ouvir a relação ve-

rídica das suas actuaes aventuras.

Page 198: Cartas sem Moral Nenhuma

186

Mas empenho baldado, talvez; o

Gregorio é poeta que não intenta

fazer versos: discreto, cauteloso e

dissimulado, portanto. ..

Page 199: Cartas sem Moral Nenhuma

XII

Funchal —Maio.

Com a desapparição d'aquella

gente alliviei da pesada nuvem que se me ia condensando na alma; eu

sentia-me já preso aos mexericos

insinuantes e deleitáveis que são o

chorume da ociosidade civilisada e

morto por desafivelar a imprescindí-

vel mascara da hypocrisia sociável...

Não sem uma pontinha de sauda-

de; a saudade que fica das escra-

vidões voluntárias.

Cahi de novo em mim, na mi-

.

Page 200: Cartas sem Moral Nenhuma

I8S

nha liberdade de monologar, no

men theatrinho intimo onde o actor

e o publico — imaginação e consciên-

cia— se entendem a primor.

A minha consciência 6 um es-

pelho impudico e muito límpido,

cobiçoso de todas as imagens que

brilham. ..

Passeei na cidade com a alegria

do encarcerado que se começa a

gosar do indulto, já podia olhar le-

vianamente, demoradamente, libidi-

nosamente para quem passava a

meu lado, na rua, sem incorrer na

pena de explicar ou disfarçar a sen-

sação que os olhos denunciavam. . .

Para tirar a prova á realidade

da minha alforria fui verificar se

era, com etTeito, absolutamente isen-

ta de influencias damninhãs a astral

Page 201: Cartas sem Moral Nenhuma

I 89

impressão que registrara da cruz de

D, Manoel e monologuei: t O trabalho é assombroso mas

miudinho, . . As scenas da Paixão

valem tanto como .quaesquer outros

adornos de joalheria.. . O Christo

não soffreu o que dizem, nem mui-

tíssimo menos, tal qual o apresen-

tam 11'esta cruz de prata... É uma

obra hybrida, de composição alle- mã onde se prenderam as preten-

ciosas figurinhas italianas que a en-

xameiam, sem originalidade 110 con-

juncto ou nos detalhes; parece coisa

que um habilissimo ourives vene-

ziano lavrasse, destinada á exporta-

ção. Na Italia o explendor da de-

cadência deslumbrava os povos bár-

baros. . . Nós davamos oiro e etn

troca exigíamos jóias que oiro va-

Page 202: Cartas sem Moral Nenhuma

190

lessem. O barro vil, o bronze pa-

taqueiro, o mármore abundante, pa-

reciam indignos dos nossos lares.,.

Os bandidos queriam oiro que ou-

tros bandidos depois levaram,,, Por

isso viemos facilmente a esta po-

breza de Job. , , Uma esculptura do

«Donatello» seria corrida á pedrada

na corte de D. Manoel, ou, peor,

enxovalhada pelas chufas do «Gil

Vicente» — que os ourives da famí-

lia assopravam... Mas que ideia

faço eu do que ia pela corte de

D. Manoel f... A esculptura em

Portugal 1... Quando descobrirão os

nossos críticos argutos que o «Mi-

guel-Angelo» era filho da «Seve-

ra»?,..»

Tornei ao meu passeio e como

o dia fosse bem fadado deparou-se-

Page 203: Cartas sem Moral Nenhuma

191

me na igreja de S. Pedro outra

maravilha, pelo menos ao nivel

d'aqnella.

E um triptyco pintado em ma-

deira, que está na sacristia sobre a

com mo da dos paramentos, a qual

lhe serve de peanha. Para preen-

cher o vao da parede, aonde o

trasladaram de outra antiquíssima e

extjncta capclla de S. Pedro, ajun-

taram lhe de cada lado um santo

de invenção local e moderna. Estes

desalmados additamentos são de

molde a realçar a belleza peregri-

na da obra antiga e tornal-a per-

ceptive! a profanos intelligentes ou

broncos; sem embargo, e embora ali

permanentemente exposta vae para

um século, ainda não conseguiu

arrancar aos frequentadores ou vísi-

Page 204: Cartas sem Moral Nenhuma

tantes da igreja palavra alguma de

louvor ou admiração.

Tão grande é a nossa penúria

em obras d'esta natureza que me

pareceu justo detiunciar-lhe a im-

portância ao parocho, pessoa dis-

creta, cujo entendimento se alumiou ao fogo das minlias explicações. . .

No seu alvoroço correu a commúni-

ca r o milagre ao Bispo. Para maior

tranquillidade minha, commetti a

mu dos excedentes photographos

que aqui ha a incumbência de re-

produzir o trjptyco, O meu amigo

receberá a seu tempo um exemplar

da photograpbia; no emtanto e afim

de completar a informação eu ajun-

to pormenores.

É um verdadeiro triptyco, com

os painéis lateraes susceptíveis de

Page 205: Cartas sem Moral Nenhuma

193

serem dobrados sobre o painel do

meio, como se fecham as portas de

um armario. Uma figura de corpo

inteiro — tres quartos do natural —

em cada quadro.

O do centro representa S. Pedro

visto de frente, a cabeça um pouco

inclinada para a direita e rematan-

do a leve inflexão do corpo. Com

a mão esquerda segura as pregas

do manto e com a direita, erguida

á altura do peito, empunha a chave

doirada do ceo, sustendo no ante-

braço um livro aberto. O manto,

escarlate, arrasta pelo chão desco- brindo acima da cintura a tunica

de burel por cuja cava, onde se

dobra a gola da camisa branca,

avulta o pescoço nú. Velho, calvo,

corado, de barba branca, typo rus- ts

Page 206: Cartas sem Moral Nenhuma

194

tico, de expressão jovial, bondoso

e são, como convém á figura que

reproduz. O fundo do quadro ima-

gina a larga paysagem em volta

de um lago, ou ria, ou braço de

mar sereno, onde as margens se

alcantilam de roclias agudas. Ao

lado direito, cm proporções de mi-

niatura, o episodio da vida do pes-

cador que deixou a barca no mar

e vem, descalço, por dentro d'agua,

direito ao Christo que o espera na

praia; depois, a perspectiva circular

dos rochedos e vegetações que se

entremeiam, á esquerda, de edifícios

consideráveis ate dar no casario de

uma cidade fortificada. Pela inter-

cepção das margens, que a perspe-

ctiva encaminha para o alto do

quadro, a alvorada põe em volta

Page 207: Cartas sem Moral Nenhuma

195

da cabeça do santo o resplendor

da sua luz branca. . .

Ribas pittorescas com trechos de praia arenosa; florestas fruindo

luz; aguas fluidas, sob a ampla

concha do ceo, a desfallecer em

tons attenuados de uma doçura li-

leacea, toda a admirável paysagem

esbatida a meias tintas onde a figu- ra principal ganha relevo, este fun-

do pacificador e luminoso é quasi

a alma do santo commentada.

O quadro da direita representa

S. André. Vestido de escuro, a ca-

beça a tres quartos, o corpo incli-

nado para a frente, uma das mãos

arrimada á cruz cm fórma de x

na qual padeceu o martyrio, a atti-

tude, a expressão do rosto de quem

rebate com ironias os assomos da

Page 208: Cartas sem Moral Nenhuma

i g 6

brutalidade aggressiva e insoftri-

da. .. É uma figura de homem

vigoroso, na pujança da vida, su-

periormente bello. As dimensões do

quadro só consentem que o fundo

appareça e tome importância sobre

a cabeça do santo, reproduzindo

um canto de região montanhosa.

O quadro da esquerda c obra

prima de symbolism o manifesto. Tu-

do quanto o dogma christão deve

á tenacidade agitadora, ao imperia- lismo intellectual de S. Paulo en- contra-se ali escripto, naquella figu-

ra imperturbavelmente severa e enér-

gica, a um tempo meditativa, intel-

ligcnte, poderosa e obstinada. . . A

cabeça apparece quasi de perfil in-

clinada para o peito; sobre a tuni-

ca rôxa cinge-se o manto de um

Page 209: Cartas sem Moral Nenhuma

197

branco reflectido de azul; na mão

direita um livro fechado, na esquer-

da a espada nua. O que se vc da

paysagem, ao fundo, é em linhas

convulsas por onde assoma uma

nesga de floresta tenebrosa ou tor-

reja um casteilo minaz.

A classificação d'esse triptyco

deve apresentar diffi cu Idades ainda

aos mais expertos. O valor subje-

ctivo— sem quebra de perfeição na-

turalista—das paysagens que lhe to-

mam o fundo fal-o, talvez, derivar

da escola de * Bruges» e contem-

porâneo do < Gerard David»; mas

a obra está absolutamente limpa

dos trechos ornamentaes, bordados

e alfaias, que constituíam as deli-

cias dos pintores flamenges de en-

tão. E é sem duvida trabalho de

Page 210: Cartas sem Moral Nenhuma

198

grande mestre, assim de um cPa-

tinier» ampliado, que estudasse a

fundo os venezianos, grande in tell i-

gcncia para quem a technica não

tinha segredos e que pôz todo o

seu saber e toda a sua arte na

creaçiío typica de tres figuras capi-

tães da Igreja,

Como typos nada conheço supe-

rior em pintura alguma e a compo-

sição, o colorido, o desenho são, de-

certo, de um poderosíssimo artista.

Mas que seja flamengo, ou, ain-

da, allemão — o Holbein não repudia-

ria o S. André — pouco importa a

quem lhe não gosa o sentido archeo-

logico ou histórico e sim a actuali-

dade da belleza que persiste na har-

monia do colorido, no engenho da

composição e pelo vigor do desenho.

Page 211: Cartas sem Moral Nenhuma

199

A satisfação de ter disfructado

alegria tão pura corno essa que o

exame do triptyco me proporcionara

—junto á gloriola de o haver des-

coberto — tornaram-me communicati-

vo. Ao jantar dei a noticia ao meu

visinho, o africanista Trivier, que

sem demora a passou ao compa-

nheiro e assim, de commensal em

commensal, rastilhou em torno^da

grande «meza redonda», provocan-

do pasmo.

Os oito carecas do topo da

meza — hospedes fixos, funccionarios da magistratura e do fisco — cujas

cabeças lisas, esphericas e resequi-

das clamavam por tiros de laranja,

Page 212: Cartas sem Moral Nenhuma

200

como um jogo vivo de < pau bo-

lado » e me sup punham < naturalis-

ta á cata de bichos», miraram-me

com intensivo desdem, attribuindo a

ruina da nação á voracidade cúpida

dos ferros-velkos, que vendiam a es-

trangeiros as nossas preciosidades

por dez réis de mel coado. (D esta

arte se exprimiram, textualmente...)

Uma senhora que frequenta a

meza com intermittcncias — embora constante, eternisada, na gravidez

progressiva c horrenda que a traz

sujeita a uma especie de balão ca-

ptivo — e ali, affectando fastio mor-

tal, devora moelas de gallinha ás

dúzias como se isso fosse a «Fata-

lidade », perguntou, indolente, a um

dos mais esbrugados do * pau bo-

lado» :

Page 213: Cartas sem Moral Nenhuma

201

—«Ó Francisquinho, então va-

lerá muito, valerá mais de cem

mil réis?. .. »

O personagem brazileiro que to-

ma vinho Madeira velho tão caute-

losamente como se lhe tivesse de

contar as gottas e discreteia ácerca

da politica europca com a auctori-

dade de quem varresse o lixo das

chancelarias; um, que diz senten-

ciosamente, 110 seu fallar amaricado;

«Quando chove faz húmido...» .e

pergunta ao Trivier, em tom de

quem propõe problemas á Wronski,

— sempre na sua linguagem pipia-

da — «O senhor me fará favor de

dizer, o senhor que já por lá an-

dou, quando é que começa o inver- no ali pelo meio da Africa, ali por

baixo do Equador...»—a que o

Page 214: Cartas sem Moral Nenhuma

202

Trivier responde com decencia! —;

pois o personagem brazileiro relan-

ceon-me um olhar indulgente e dis-

sertou sobre a «sua, d'elle, Italia

artística» tao satisfeito de si que,

ao perorar, tragou de contente, de

uma vez só, coisa de trinta e cinco

réis de vinho Madeira velho, — a

avaliar por cento e dez o custo

de cada deciiitro.

Este brazileiro é casado com

uma dama teutonica que resume

as feições de feto numa expressão

mais fechada do que o «nó cego»

e traz pela mão um menino liybri-

do o qual se apresenta com certo

ar de «Delfim preso no Templo»

e para se entreter, emquanto a

sopa n3o arrefece, põe a nado den-

tro do prato numerosas esquadras

Page 215: Cartas sem Moral Nenhuma

203

de papel, sahidas do inexhaurivel

arsenal de um jornal velho. ..

Generalisou-se a conversa como

se a noticia . galvanisasse o espirito,

aliás fnnebre, d'aquella assembléa.

«Um do Porto natural» falia-me

de S. Pantaleào, seu padroeiro, que

está enterrado na capella da San-

tíssima Trindade da Igreja da Sé —

V. averiguará da verdade de t3o

arrojada asserção! — e o batoteiro

empedernido philosopha a trouxe-

mouxe, de sua conta e risco:

— «A mocidade é o «prazer de

viver»; perto dos quarenta annos

principia a «curiosidade de ver»; a

velhice é a «saudade da vida»...»

A certo cavalheiro pratico aco-

dem reflexões amargas de fel:

— «Desgraçado paiz! Aqui, no

Page 216: Cartas sem Moral Nenhuma

204

Funchal, da linda casa onde habi-

tou Colombo, relíquia venerada, ro-

magem de estrangeiros illustres,

ainda perfeita não ha dez annos,

só resta uni cliché photographíco:

arrazaram-na por causa das elei-

çOes. . . N'esta ilha abençoada não

ha aporto», não ha « estradas».

e chamaremos infames aos ingiezes

se nos derem o que nos falta só

a troco de uma substituição de

bandeira? Chamaremos infames aos

americanos quando elles, em nome

da humanidade e a troco de sa-

crifício egual — leve! — levantarem e

accenderem nos Açores os pharoes

de que os Açores carecem para

não serem mais, em mãos de por-

tnguezes, o terror da navegação uni-

versal ...»

Page 217: Cartas sem Moral Nenhuma

205

— «As ilhas adjacentes (assim as

chamam, não é verdade?) — atalhou

mansamente um sábio russo — são,

em verdade, incomparáveis. , . Se

os pellados, desolados rochedos do

archipelago grego se não enfeitas-

sem com as loucuras de tanto cs-

criptor imaginoso, quem lhes resus-

citaria a vida poética tão gracio-

sa das suas lendas, assim pclladas,

aridas e desoladas como ellas se

apresentam... Na Madeira a man-

teiga é excellente, . . »

— «A Madeira! quem falia aqui

da Madeira?,..—barafustou o re-

dactor principal do «Independente»,

— Paysagens limpas de alvenarias,

flor que chupa a seiva nas mesmas

suppurações da terra!... Procuran-

do concretisar, para tranquillidade

Page 218: Cartas sem Moral Nenhuma

20 6

da alma inquieta por tão desacos-

tumadas apparencias, mau grado

o desejo de sopear a imaginação,

evitando os destempcros hugolinos,

quem c que a lembrança d'este pa-

rai 7.0 não sente ferver-lhe no peito

o cachão das phrases syntheticas. . , A ilha da Madeira é, minhas se-

nhoras e meus senhores, uma teta

uberrima da Africa negra, . . »

Alguém que não parecia tolo

disse-me então:

— «O senhor viaja e deve ser

feliz. Com impressões e reminiscên-

cias de viagem não ha solidão nem

degredo completos mas uma perpe-

tua illuminação da alma e da intel-

ligencia por evocações continuas...

Assim se prolonga a mocidade...»

—«Boa receita para prolongar

Page 219: Cartas sem Moral Nenhuma

207

a mocidade — desafinou um estou-

vado — não cançar de tecer planos

e projectos embora lhe adiemos a

realisação para um futuro cada vez

mais distante, como se a vida não

tivesse fim, . . »

Não o deixaram terminar; al-

guém berrou, dominando o vozerio:

— «O que está o cavalheiro a

asnear para alii ? Não me falle na

Hespanha I Em Hespanha não ha,

nunca houve arte! A Hespanha é

isto: «Faça favor de me dar um

palito»— diz o freguez ao creado

do café. — « Bois não...» — respon-

de este e muito grave e correcto

tira da algibeira do colete um feixe

de palitos sujos e servidissimos e

offcrece-lh'os. — A Hespanha! Bem

se deixa vér que o cavalheiro nunca

Page 220: Cartas sem Moral Nenhuma

2CS

visitou o nosso museu das Janellas

Verdes...»

Este é o derradeiro eco da con-

versação animada que, á meza de

um hotel bem frequentado, se ori-

ginou da noticia da minha desco-

berta... Tenho lido a miúdo ex- tractos de sessões magnas de no-

táveis academias litterarias e artís-

ticas muito mais insensatos e muito

menos curiosos.

Para terminar a minha carta

que será certamente a ultima — o

«Cabo Verde» espera-se aqui ama-

nhã cedo — e para fazer as despe-

didas á Madeira, respigando nas

Page 221: Cartas sem Moral Nenhuma

209

minhas sensações apoz a deliciosa

ceifa, foi ainda ao socego umbroso

da ^Quinta Vigia» que recorri — a

«Quinta Vigia» das horas de gran- de calma. Esta cesta de flores,

posta em peanha de basalto cujo

plintho o mar lambe, foi o ninho

preferido, ninho de silencio, onde

a miúdo vim macerar as minhas •í.

saudades em ondas de perfumes,

movidos e avivados pelo hálito do mar. ...

Mas a ilha já bem pouco me

importa!

N'uma capclla de folhagem ver- de, atapetada de folhas seccas, es-

conderijo esquecido dos jardineiros,

nicho aberto para o mar largo,

nSo são essas sensações, agora, que

o coração me festeja, mas as sau- u

Page 222: Cartas sem Moral Nenhuma

210

dadcs do mar que embala, o niai"

que de tão perto me provoca, sau-

dades que eu vou matar,

A lembrança de uma pequena

ilha morre depressa na memoria;

fica-nos delia uma vaga imagem,

fingida, a boiar á tona do mar distante; é um navio desmantella-

do que já não levanta ferro, in- » valido, incapaz de seguir viagem. . .

D'estes perfumes, d'estas flores,

da vida livre e encandeada no res- plendor que assoma ás arestas das

montanhas — e as sestas breves jun-

to ás fontes claras — e a ancia fú-

til de subir, para que a redoma

do ceo abranja um circulo de mar

mais vasto — e a caça dolosa aos

desejos fugitivos nas pupillas dos

olhos que se esquivam —e a espe-

Page 223: Cartas sem Moral Nenhuma

21 I

rança da virgindade a violar — e a

impressão dos teus seios, ó minha

extravagante amiga, que amadure-

ceram ao calor das palmas destas

mãos —; é de tudo isto que eu

teci a mortalha com a qual te

enterrei já, ilha encantadora e sel-

vagem, n'este jardim onde o per-

fume da rosa vence todos os mais

perfumes. , As minhas phantasias, os meus

desejos, as minhas esperanças, sol-

tei-as agora mesmo pelo mar fóra

com ordem para não voltarem mais

aqui. .,

Sem embargo não c somente o

mar que me perturba; aqui ainda

me fica um rasto de saudade. . .

Em redor de mim os cravos

poisam nas craveiras, espertos, corno

Page 224: Cartas sem Moral Nenhuma

212

batidos de passarinhos: ha cravos

vermelhos, da còr do fogo, que ar-

dem ao sol, pequeninas chammas

que vão desapparecer. . .

Não são os cravos. , ,

Os cravos tecni o perfume das

vodas do campo; aqui, 11'este jar-

dim, o cheiro da rosa vence todos

os mais perfumes, H que ainda

aqui paira o aroma da « rosa in-

tangível » que os poetas adoraram,

essa fluida imperatriz cuja incontes-

tável realeza o profuso, excessivo

manto, que lhe punha nos hom-

bros o cabcllo solto, apregoava.

Foi aqui que elia soffreu os tor-

mentos da sua pubescencia dolo-

rida. . .

Para que servem as palavras,

onde estão as palavras preciosas,

Page 225: Cartas sem Moral Nenhuma

213

os vocábulos redondos, lisos e iria-

dos como pérolas, e as phrases

gemmadas de amethystas, e as ex-

pressões infantis que acariciam como

o roçar de um frouxel de seda,

e os frontaes rígidos dos dísticos

brônzeas que eternisam a memo-

ria, onde está o thesouro do poeta

digno de enfeitar os cabellos sol-

tos dessa imperatriz de dezeseis

annos?. . . É na febre de celebrar

a gloria de cabellos taes que fer-

mentam os rhythmos novos!.. .

Eu penso também, agora, 11'essa

imperatriz desgraçada que viveu

neste jardim uni anno inteiro da

sua mocidade.

Com o halo da piedade e uma

coroa de desdens e, nas nifios bran-

cas, os gumes de ironias, trouxe-

Page 226: Cartas sem Moral Nenhuma

214

ram-na a publico como quem mos-

tra uma relíquia monstruosa; mas

a sua belleza feiticeira, os episódios

cruciantes da sua existência, a sua

tragedia final — que tão acertada-

mente rematou o seu poema — e

os perfumes do seu coração, espar- sos, que alguém condensou em li-

vro— o livro da idolatria, o livro

prostrado, do adorador desilludido,

humilde e generoso — fixando a cur-

va da vida ociosa pelos traços me-

lodiosos do vòo da abelha, consa-

graram-lhe o prestigio. Envolta no

manto verdadeiramente régio dos

seus finos cabellos soltos a sua

imagem illumina a lenda!

É 11'este jardim que convém

pensar, respira ndo á farta o ar

vivo, nas fundíssimas minas de car-

Page 227: Cartas sem Moral Nenhuma

215

vão, nas vidas gastas, inteirinhas,

pelas pequeninas células tenebrosas,

que um movimento leve — frequente

— de terreno converte em sepul-

turas.

Quem não pensará também na

delicia com que o assassino agu-

çava a ponta da lima aspera que

havia de penetrar a carne mimosa

da imperatriz.,. A tragedia, no emtanto, não foi perfeita e se o

scenario de «Lueerna», apurado nas

decantações visuaes de um Turner,

convinha, appetecia se que a victi-

ma fosse mais nova... Mas tão criminoso ou mais do

que a lamentável creatura vou eu

impunemente fruindo a graça esthe-

tica das coisas; abençoada época se

assim nos permitte viver, anony-

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216

mos, ao abrigo de grandes e de

pequenos.

E clamo sem compaixão: a

poesia do marinheiro que recorda

saudosamente a família e o lar, é

inferior á poesia do marinheiro que

tudo esquece para só pensar no

mar...

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ÍNDICE

CARTAS PAG. I I

I I 9 II I " 19 I V 29 V 5? V I 75

VI I 8; VII I 109

I X 121 X 139 X I i6i

XI I 187

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Page 235: Cartas sem Moral Nenhuma

'

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