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95 Cultura material e identidade étnica na arqueologia brasileira: um estudo por ocasião da discussão sobre a tradicionalidade da ocupação Kaiowá da terra indígena Sucuri’y JORGE EREMITES DE OLIVEIRA* Resumo: Neste artigo, o autor apresenta uma análise geral sobre a analogia direta entre cultura material e identidade étnica na arqueologia brasileira. Analisa de modo específico a associação entre populações portadoras da tradição Tupiguarani, assim definida na época do Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas (Pronapa, 1965-1970), e grupos étnicos lingüisticamente ligados ao tronco tupi. Para esses grupos, tem sido atribuída uma identidade ou etnicidade genérica de “guarani”. O referido problema é discutido com mais profundidade por ocasião da apreciação de um laudo pericial sobre a terra indígena Sucuri’y, localizada no município de Maracaju, no estado de Mato Grosso do Sul. No laudo analisado, a associação entre cultura material e identidade étnica remete ao debate a respeito do direito à terra por parte de uma comunidade indígena. Durante o estudo elaborado, o autor questiona os resultados finais da perícia produzida para a justiça federal e argumenta que existem evidências que sustentam a tese de que aquela área é, de fato, tradicionalmente ocupada pelos Kaiowá, de acordo com o que determina o Artigo 231, § 1°, da Constituição Federal de 1988. Palavras-chave: arqueologia brasileira; identidade étnica; índios Kaiowá. A associação direta entre uma cultura material do período pré-colonial com a identidade étnica de grupos conhecidos etnográfica e/ou historicamente tem sido bastante comum ao longo da história da arqueologia brasileira. Salvo melhor juízo, essa tendência se acentuou no país por conta das influências teórico-metodológicas difundidas a partir do Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas (Pronapa), desenvol- vido entre 1965 e 1970, sob a coordenação de Betty J. Meggers e Clifford Evans, da Smithso- nian Institution, de Washington, Estados Unidos. Daquela época até os dias de hoje, muitos trabalhos foram e seguem sendo produzidos, sob diferentes formas, a partir de uma perspectiva que conjuga abordagens histórico-culturais com técnicas, métodos e teorias difundidos posterior- mente no país, principalmente a partir da década de 1980, a exemplo dos recorridos na arqueologia processual (Nova Arqueologia) e na pós-proces- sual. Muitos trabalhos que assumiram essa pers- pectiva buscaram a sistematização de uma gama considerável de dados empíricos, em geral na tentativa de produzir sínteses regionais, rever certos paradigmas e propor novos modelos inter- pretativos. Em casos assim, o diálogo interdis- ciplinar tem sido bastante profícuo. Refiro-me, por exemplo, ao uso da arqueologia como forma de perceber a história indígena e ao diálogo com * Pesquisador do Laboratório de Arqueologia, Etnologia e História Indígena da Faculdade de Ciências Humanas, Uni- versidade Federal da Grande Dourados – UFGD. E-mail: [email protected].

2007 - Cultura material e identidade étnica na arqueologia brasileira: um estudo por ocasião da discussão sobre a tradicionalidade da ocupação Kaiowá da terra indígena Sucuri`

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Cultura material e identidade étnica naarqueologia brasileira: um estudo por ocasião

da discussão sobre a tradicionalidade da ocupaçãoKaiowá da terra indígena Sucuri’y

JORGE EREMITES DE OLIVEIRA*

Resumo: Neste artigo, o autor apresenta uma análise geral sobre a analogia direta entrecultura material e identidade étnica na arqueologia brasileira. Analisa de modo específico aassociação entre populações portadoras da tradição Tupiguarani, assim definida na épocado Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas (Pronapa, 1965-1970), e grupos étnicoslingüisticamente ligados ao tronco tupi. Para esses grupos, tem sido atribuída uma identidadeou etnicidade genérica de “guarani”. O referido problema é discutido com mais profundidadepor ocasião da apreciação de um laudo pericial sobre a terra indígena Sucuri’y, localizadano município de Maracaju, no estado de Mato Grosso do Sul. No laudo analisado, aassociação entre cultura material e identidade étnica remete ao debate a respeito do direitoà terra por parte de uma comunidade indígena. Durante o estudo elaborado, o autorquestiona os resultados finais da perícia produzida para a justiça federal e argumenta queexistem evidências que sustentam a tese de que aquela área é, de fato, tradicionalmenteocupada pelos Kaiowá, de acordo com o que determina o Artigo 231, § 1°, da ConstituiçãoFederal de 1988.

Palavras-chave: arqueologia brasileira; identidade étnica; índios Kaiowá.

A associação direta entre uma culturamaterial do período pré-colonial com a identidadeétnica de grupos conhecidos etnográfica e/ouhistoricamente tem sido bastante comum aolongo da história da arqueologia brasileira. Salvomelhor juízo, essa tendência se acentuou no paíspor conta das influências teórico-metodológicasdifundidas a partir do Programa Nacional dePesquisas Arqueológicas (Pronapa), desenvol-vido entre 1965 e 1970, sob a coordenação deBetty J. Meggers e Clifford Evans, da Smithso-nian Institution, de Washington, Estados Unidos.Daquela época até os dias de hoje, muitos

trabalhos foram e seguem sendo produzidos, sobdiferentes formas, a partir de uma perspectivaque conjuga abordagens histórico-culturais comtécnicas, métodos e teorias difundidos posterior-mente no país, principalmente a partir da décadade 1980, a exemplo dos recorridos na arqueologiaprocessual (Nova Arqueologia) e na pós-proces-sual.

Muitos trabalhos que assumiram essa pers-pectiva buscaram a sistematização de uma gamaconsiderável de dados empíricos, em geral natentativa de produzir sínteses regionais, revercertos paradigmas e propor novos modelos inter-pretativos. Em casos assim, o diálogo interdis-ciplinar tem sido bastante profícuo. Refiro-me,por exemplo, ao uso da arqueologia como formade perceber a história indígena e ao diálogo com

* Pesquisador do Laboratório de Arqueologia, Etnologia eHistória Indígena da Faculdade de Ciências Humanas, Uni-versidade Federal da Grande Dourados – UFGD. E-mail:[email protected].

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a antropologia histórica, com a história culturale com a etnoistória.1

Experiências desse tipo não podem serdesprezadas, tampouco serem alvo de críticascaricaturais sem que se faça uma análise apu-rada sobre o assunto. Não obstante esta reali-dade e longe de querer apresentar uma revisãoexaustiva sobre o tema, entendo que o maiorproblema de muitos estudos está na associaçãodireta entre tradições e estilos ceramistas comgrupos étnicos identificados a partir de registrostextuais incompletos, produzidos desde o inícioda conquista ibérica nas Américas.

O caso mais conhecido parece estar ligadoà interpretação da trajetória de grupos étnicosvinculados ao tronco lingüístico tupi, à famílialingüística tupi-guarani (com hífen) e à línguaguarani, para os quais segue sendo atribuída umaidentidade ou etnicidade genérica denominadaguarani. Em situações desse tipo, uma tradiçãotecnológica ceramista, como a denominada naarqueologia brasileira de Tupiguarani (semhífen), tem sido diretamente associada aos falan-tes de uma língua indígena, a guarani.2 A partirdesses dois elementos (tradição ceramista elíngua nativa), muitos arqueólogos têm freqüen-temente identificado, de um ponto de vista etice não emic, vários grupos étnicos como sendo“Guarani”.

Nessas associações não raramente mudan-ças socioculturais decorrentes dos contatos entreos grupos étnicos, e entre eles e os europeus eeuro-americanos, têm sido pouco enfatizadas oupraticamente ignoradas. Isso também decorrede uma leitura sincrônica e homogeneizante dedados etnográficos, lingüísticos e históricosproduzidos desde tempos coloniais, o que dificultaa percepção dos intercâmbios e das trocas cultu-

rais que ocorreram entre grupos étnicos culturalou geograficamente próximos.

Um dos estímulos a essas analogias partiuda tese de doutorado de José Joaquim JustinianoProenza Brochado, intitulada An ecologicalmodel of the spread of pottery and agricul-ture into eastern South America, defendida em1984. Este trabalho foi apropriadamente consi-derado por Pedro Paulo A. Funari et al. (1999,p. 1) como a “síntese mais genial” já feita porum arqueólogo brasileiro, embora infelizmenteela não tenha sido traduzida para o português epublicada no país. Brochado assim afirmou emuma célebre frase bastante conhecida e repro-duzida por muitos de nós:

Portanto, a primeira coisa que considerei aquié que a arqueologia do leste da América do Suldeve ser vista como a pré-história das popu-lações indígenas históricas e atuais. Se nãoforem estabelecidas relações entre as mani-festações arqueológicas e as populações queas produziram, o mais importante terá seperdido. Assim as conotações etnográficas dastradições e estilos cerâmicos não devem serevitadas, mas, pelo contrário, deliberadamenteperseguidas. (Brochado, 1984, p. 565)

A proposta do autor remete à idéia de umaarqueologia como forma de perceber a históriaindígena, conforme apontado anteriormente.Nessa perspectiva, a trajetória dos gruposétnicos pré-coloniais, portadores de tecnologiasceramistas identificadas na arqueologia, teriauma continuidade histórica e cultural em temposcoloniais ou até mesmo nos dias de hoje. Semlevar em conta esse paradigma, “o mais impor-tante terá se perdido”, ou seja: (1) a possibilidadede um diálogo mais estreito entre arqueologia,etnologia e etnoistória, não apenas para apontarcontinuidades ou permanências, mas tambémdescontinuidades e mudanças socioculturais, e(2) as vantagens de se ter um corpus de dadosetnográficos e etnoistóricos para a formulaçãode modelos arqueológicos relevantes para ainterpretação do passado pré-colonial. Em suaopinião, portanto, as analogias entre gruposétnicos atuais e tradições e estilos cerâmicosdevem ser “deliberadamente perseguidas”,sobretudo do ponto de vista da funcionalidadedas vasilhas cerâmicas.

1. Em língua portuguesa, a palavra etnoistória também podeser grafada com hífen e “h” (etno-história), de modo seme-lhante à grafia em espanhol (“etnohistoria”), que é feitasem hífen e acento agudo, conforme consta nos trabalhosde Eremites de Oliveira (2003b) e Alves da Silva & Eremitesde Oliveira (2005).

2. O termo tupi-guarani, grafado com hífen, refere-se a umafamília lingüística. Valendo-se da analogia histórica direta,uma tradição tecnológica ceramista foi definida com o mes-mo nome durante a realização do Pronapa, porém sendografada sem hífen (Tupiguarani) para evitar o inevitável: aconfusão entre tradição arqueológica, família lingüística eidentidade étnica.

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O maior problema de sua proposta consiste,nos dias de hoje, no estímulo ao uso deliberadode analogias históricas diretas entre tecnologiasceramistas do passado pré-colonial e gruposétnicos conhecidos na etnologia. A situação émais bem observada na vinculação da tradiçãoceramista Tupiguarani, assim definida no âmbitodo Pronapa, como explicado anteriormente, comgrupos étnicos da família tupi-guarani. Nestecaso em particular, língua e cerâmica sãoapontadas como elementos que identificariamgrupos étnicos de língua guarani nas chamadasterras baixas da América do Sul. O modeloapresentado desconsidera a auto-identificaçãodos grupos e o fato de eles terem diferentesformas de organização de sua cultura. Estas sãoduas questões relevantes para a percepção daidentidade ou da etnicidade dos grupos étnicos,sobretudo se levados em conta os aportes deFredrik Barth (1998 [1969]), autor da clássica“Introdução” aos Grupos étnicos e suas fron-teiras, dentre outras obras, e de Sian Jones(1997), autora de The archaeology of ethnicity.Constructing identities in the past and present.

Desde a divulgação da tese de Brochado(1984), muitos modelos interpretativos foramrevistos e outros tantos propostos para repensara tradição Tupiguarani. Há uma bibliografiabásica e uma discussão interessante sobre oassunto nos trabalhos de Francisco S. Noelli(1993, 1999/2000), Noelli et al. (1996), AndréLuis R. Soares (1997, 2003) e Solange N. deOliveira Schiavetto (2003).

Em seu tempo, o macromodelo construídopor Brochado serviu para explicar, dentre outrascoisas, as prováveis rotas de deslocamento eexpansão territorial de grupos étnicos lingüisti-camente filiados ao tronco tupi e à família tupi-guarani. Esses grupos, na condição de agricul-tores (ou horticultores, quer dizer, “agricultoresincipientes”, como preferem alguns) e ceramis-tas, teriam partido da Amazônia para ocuparoutras áreas mais ao sul e a leste do subcon-tinente. A partir de seus estudos, trajetóriasnativas milenares vêm sendo revistas e delibe-radamente reconstituídas. Exemplo disso podeser constatado em trabalhos bem-sucedidoscomo o dossiê Antes de Cabral: arqueologiabrasileira, organizado por Walter Alves Neves(1999/2000), Pré-história da Terra Brasilis,

organizado por Maria Cristina Tenório (1999), ePré-história do Brasil, de Pedro Paulo Funari& Francisco S. Noelli (2002), dentre outraspublicações mais recentes.

Diante dessa situação, acredito ser neces-sário analisar criticamente o uso de analogiashistóricas na arqueologia brasileira, o que porvezes ocorre em desconsideração às diferençasétnicas e aos processos de mudança sociocul-tural, conforme dito amiúde. Uma discussãodesse nível chama a atenção, ainda, para novosproblemas relacionados ao uso dessas aborda-gens em situações que envolvem a reivindicaçãode direitos por parte de comunidades indígenas.Este último assunto foi o que mais me motivoua escrever este trabalho, cujas discussões foramlevadas a público durante o XIII Congresso daSociedade de Arqueologia Brasileira, ocorridoem Campo Grande, em setembro de 2005, e na25ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizadaem Goiânia, em junho de 2006.

A questão que mais tem me intrigado ulti-mamente diz respeito à atribuição de umaidentidade étnica “Guarani” à cerâmica datradição Tupiguarani que ocorre na região platina,assim como uma identidade homônima queantropólogos, arqueólogos e historiadores vêmsistematicamente atribuindo aos Chiriguano,Ñandeva, Mbyá e Kaiowá. Em Mato Grossodo Sul, por exemplo, apenas os chamadosÑandeva se auto-identificam como Guarani,conforme discutido na recente tese de doutoradode Beatriz dos Santos Landa (2005). Os Kaiowáque vivem no Brasil, por seu turno, se auto-identificam como Kaiowá, e não raramenteexplicitam sua identidade aos mais desavisadosque se referem a eles como Guarani. No Para-guai, por outro lado, eles se autodenominam Pai-Taviterã, segundo consta no clássico Etnogra-fía guaraní del Paraguay contemporáneo:los Pai-Tavyterã, de Bartomeu Melià et al.(1976). Mas há, certamente, muitas semelhan-ças em comum entre esses quatro grupos, o quenão sustenta a atribuição, de nossa parte, destaou daquela identidade a eles, em desconsi-deração à sua autodenominação étnica, ou seja,ao seu etnônimo. Talvez a maior semelhançaentre eles esteja mais no plano cosmológico ereligioso, segundo apontaram Eduardo Viveirosde Castro (1987) e Levi Marques Pereira (2003),

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do que propriamente na organização social, naadaptação ecológica ou na cultura material,contrariando o que muitos arqueólogos e etnois-toriadores propuseram.

Entendo que o termo guarani vem sendousado, desde tempos coloniais, para se referir aum Guarani genérico, “de papel”, assim criticadopor Maria Cristina dos Santos (1999).3 No entan-to, esse mesmo Guarani tem sido de grandeutilidade para a confecção de colchas de retalhosetnográficos ou para a construção de um “mons-tro” do tipo Frankenstein, conforme apontouSoares (2003), com o propósito de formularmodelos interpretativos globalizantes, de longoalcance e ambiciosos em termos de abrangên-cia espaço-temporal. Para essa tarefa, algunsarqueólogos têm atribuído um incomensurávelvalor etnográfico às obras Vocabulário de lalengua guaraní (1640) e Arte de la lenguaguaraní (1640), do padre jesuíta Antonio Ruizde Montoya,4 produzidas no século XVII, comose elas equivalessem aos Argonautas do Pací-fico Ocidental, de Bronislaw Malinowski,publicado em 1922, ou mesmo a alguma obradesse nível produzida mais recentemente. Nãose trata aqui de desmerecer o valor dessestrabalhos, pelo contrário. Acredito, porém, queem alguns casos as obras de Montoya não têmmerecido a devida apreciação crítica e a neces-sária relativização, como, aliás, convém fazer aqualquer fonte textual analisada para a constru-ção de modelos interpretativos nas áreas dearqueologia, etnologia e etnoistória. Essa situa-ção parece estar relacionada, também, à poucaexperiência em pesquisa etnográfica que algunsarqueólogos necessitariam ter com gruposétnicos de língua guarani, algo que seria rele-

vante para fazer uma leitura mais crítica e relati-vista em relação às duas obras mencionadas.

Exemplo disso por ser observado no usoexagerado que se tem feito de palavras emguarani para a criação de modelos referentes àsubsistência, ao sistema de assentamentos, aoterritório e à organização social dos grupos étni-cos que têm nesse idioma sua língua materna.Como ocorre entre muitos grupos sul-ameri-canos, uma mesma espécie de planta ou animalpode ter duas ou mais denominações na taxo-nomia indígena. Uma realidade assim pode levarum pesquisador menos familiarizado com aobservação participante, e valendo-se da taxo-nomia utilizada na biologia moderna, a interpretaruma única espécie como sendo várias. Situaçãosemelhante se verifica com palavras polissê-micas como o termo tekoha, o qual tem sidomais empregado no sentido físico de território emenos usado como rede dinâmica de relaçõessociais que ocorre em determinado espaçogeográfico (ver discussão em Noelli, 1993; Mura,2004; Pereira, 2004). O problema se torna aindamais complexo se consideradas as variaçõesdialetais entre os grupos de língua guarani, algoque inclusive foi observado pelo referido padreda Companhia de Jesus. Neste sentido, parafra-seando Viveiros de Castro (1987, p. xxii), autordo prefácio de Lendas da criação e destruiçãodo mundo como fundamentos da religião dosApapocúva-Guarani, de Curt NimuendajuUnkel (1987), diria que essa questão lembra o“etimologismo” que, “diga-se de passagem, éendêmico nos arraiais da tupinologia”.

De todo modo, os valorosos esforços dealguns colegas em prosseguir e ir mais além como paradigma de Brochado (1984, p. 565), apre-sentado no início deste artigo, têm culminado naelaboração de trabalhos brilhantes sobre osGuarani genéricos. Obras como a de Noelli(1993), Sem tekohá não há teko: em buscade um modelo etnoarqueológico da aldeia eda subsistência guarani e sua aplicação auma área de domínio no delta do Rio Jacuí-RS, e a de Soares (1987), Guarani: organiza-ção social e arqueologia, são importantíssimaspara a arqueologia brasileira e por isso as críticasaqui apresentadas não devem ser vistas comoalguma forma de depreciação caricatural. Amonografia produzida por Noelli (1993), por

3. Nesse trabalho, a autora fez algumas apreciações incon-sistentes e pouco elegantes em relação à obra da antropólo-ga de origem eslovena Branislava Susnik, ex-diretora doMuseu Etnográfico Andrés Barbero, de Assunção, Paraguai,falecida em 1996. Algumas de suas apreciações foram pormim refutadas em um ensaio elaborado em 2003 e publica-do naquele país (ver Eremites de Oliveira, 2003a).

4. Ver, por exemplo, as seguintes publicações de AntonioRuiz de Montoya: (1) Montoya, A. R. de 2002. Vocabulá-rio de la lengua guaraní (1640). Transcrição e transli-teração de Antonio Caballos. Introdução de Bartomeu Melià.Asunción: Cepag, 407p. (2) Montoya, A. R. 1993. Arte dela lengua guaraní (1640). Edição fac-similar. Transcriçãode Antonio Caballos. Introdução de Bartomeu Melià.Asunción: Cepag, 307p.

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exemplo, é a melhor dissertação de mestrado jáfeita por um arqueólogo brasileiro, um trabalhode fôlego que sem dúvida alguma equivale ousupera muitas importantes teses de doutoradodefendidas em universidades do país e doexterior.

O termo Guarani, portanto, não correspon-de a um único e grande povo indígena monolíticoe fossilizado no tempo e no espaço. Os chama-dos subgrupos, parcialidades ou fragmentos,aí sim, correspondem a grupos étnicos especí-ficos que se identificam e são identificados comoKaiowá, Mbyá ou Guarani (como no caso dosÑandeva), por exemplo. Essa idéia parte daconcepção barthiana de que o fenômeno daetnicidade e da identidade étnica é observávelem situações de contato e definição de limitesentre as culturas. Como perceber um fenômenoassim a partir de registros textuais incompletos(etnoistóricos) e evidências arqueológicas? Istoporque, dentre outras coisas, a prática discursiva,analisada por meio de procedimentos teórico-metodológicos de natureza antropológica, consti-tui um desenvolvimento relativamente recenteno campo das ciências sociais.

Desde fins do século XIX e meados do XX,muitas dessas diferenças étnicas emergiram eainda seguem emergindo a partir da definiçãodas fronteiras entre os Estados nacionais. OBrasil e o Paraguai são dois exemplos bastanteconhecidos. Segundo Melià (2004), com a defi-nição das fronteiras desses dois países, foramerguidos muros de Berlim dividindo territóriostransnacionais dos Kaiowá, Mbyá e Ñandeva.Em tempos coloniais, por outro lado, muitosgrupos de língua guarani se identificavam paraos padres da Companhia de Jesus de acordocom o nome de sua principal liderança ou dolugar de ocupação tradicional, conformeregistrado em trabalhos como o de Ítala IreneB. Becker (1992), Lideranças indígenas nocomeço das reduções jesuíticas da Provínciado Paraguay, uma das precursoras da etnois-tória no Brasil.

Com efeito, o problema central está no fatode termos eleito um determinado tipo de tecno-logia ceramista, associando-a a uma línguanativa, para construirmos elementos de identi-dade étnica a grupos que identificamos comoGuarani, mas que, em sua maioria, não se

identificavam e não se identificam dessa manei-ra. Ora, se a idéia de raça, língua ou cultura foisuperada para a identificação de grupos étnicos,conforme proposto por Barth (1998 [1969]), porque teríamos de seguir atribuindo esta ou aquelaidentidade a partir de uma tradição tecnológicaceramista supostamente ligada a grupos delíngua guarani? Este é um grande problema aser pensado e repensado na arqueologia brasi-leira, para o qual não tenho aqui uma fórmulapara sua definitiva solução. No entanto, parafra-seando Nelson Rodrigues, citado por Viveirosde Castro (2002) na epígrafe do artigo “O nativorelativo”, tenho a impressão de que o Guaranigenérico, tal qual o imaginamos ou idealizamosna academia para a proposição de modelosinterpretativos de longo alcance, nunca existiude verdade.

Além de apresentar algumas consideraçõesteórico-metodológicas pontuais, quero aquientrar em uma discussão mais delicada, a qual,ultimamente, tem sido uma de minhas maiorespreocupações no que se refere ao uso daarqueologia para a identificação de terras indí-genas no Brasil, sobretudo no Mato Grosso doSul.

Conforme é amplamente conhecido nahistoriografia e na literatura etnológica, nesseestado existem muitos conflitos fundiários entrecomunidades indígenas e fazendeiros e, às vezes,até com colonos que foram assentados pelogoverno central no antigo sul do Mato Grosso,atual Mato Grosso do Sul.5 Em conflitos dessetipo, a apreciação de direitos é feita pela justiçafederal, e o que se tem observado são processosde desterritorialização de comunidades indígenas,os quais geralmente decorreram da expansãode frentes econômicas da sociedade nacional eseus desdobramentos posteriores. Essa situaçãofoi gradativamente acirrada após o término da

5. A criação do Mato Grosso do Sul, a 22ª unidade da federa-ção, se deu por meio da Lei Complementar n° 31, de 11/10/1977, promulgada na época do governo Ernesto Geisel, openúltimo general a assumir a Presidência da República naépoca do regime militar (1964-1985). Esse novo estadosurgiu do desmembramento da parte meridional do antigoMato Grosso, uma área de 358.159 km2, e foi implantado apartir de 1°/1/1979. Na historiografia regional, é comum oemprego do termo antigo sul de Mato Grosso para se referirà região compreendida pelo atual Mato Grosso do Sul antesda data de sua criação.

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guerra entre o Paraguai e a Tríplice Aliança(1864-1870), isto é, nas últimas décadas do sécu-lo XIX e no decorrer do século XX. No entanto,a partir da década de 1980, sobretudo, os Kaiowáe os Guarani (Ñandeva) iniciaram um movimen-to étnico-social pela retomada de parte de seusantigos territórios, algo que parece estar longede terminar (cf. Brand, 1997; Moreira da Silva,2002; Pereira, 2003; Stefanes Pacheco, 2004).

Nesse contexto regional, desde a décadade 1990 especialistas em arqueologia têm sido

Figura 1: Mapa do estado do Mato Grosso do Sul com a indicação do município de Maracaju, onde estásituada a terra indígena Sucuri’y.

intimados pela justiça federal a elaboraremlaudos periciais para averiguar se determinadasáreas em litígio são ou não de ocupação tradi-cional indígena, conforme determina a legislaçãobrasileira. Por isso, durante a produção de umaperícia judicial, a busca pelo Guarani genérico,monolítico e fossilizado no tempo e no espaço,supostamente identificado por fragmentos cerâ-micos da tradição Tupiguarani, associada a umalíngua de mesmo nome, pode se converter emum problema de dimensões políticas preocu-

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pantes. E este problema não foi, certamente, oque motivou Brochado (1984) a redigir suabrilhante tese de doutorado.

Para ser mais específico, passarei a apre-sentar uma análise a respeito do laudo pericialsobre a terra indígena Sucuri’y, cujo relatóriofoi apresentado por um arqueólogo à 1ª Vara da1ª Seção Judiciária de Campo Grande, MatoGrosso do Sul, conforme consta nos autos doprocesso n° 97.0864-9. Essa terra indígena, cujaárea reivindicada é de 535 hectares, faz partedo território de uma comunidade Kaiowá esta-belecida no município de Maracaju, nas proxi-

midades da serra de mesmo nome. Dessa área,apenas 65 hectares estão sendo atualmenteocupados por 167 indígenas, divididos em 39famílias, segundo dados obtidos em fins denovembro de 2006, quanto estive naquela aldeia.Na área ocupada pelos Kaiowá funciona umaescola municipal localizada nas coordenadasUTM 695.104 E e 7.604.744 N, a uma altitudede 368 m.

Ao analisar o laudo judicial em questão,cheguei à conclusão de que o perito do juízodirecionou grande parte de suas investigaçõespara a história pré-colonial (“pré-história”) daárea em litígio. Isso fez com que ele concentras-se sua análise mais na imemorialidade e menosna tradicionalidade da ocupação indígena. Foi aessa estratégia impertinente que o perito maisrecorreu durante os trabalhos de campo e issoele próprio explicou na página 1.267 dos autos:

A questão principal, que permanecia aberta, erase os dados arqueológicos coletados duranteas diligências periciais estavam relacionadosao passado da Comunidade Indígena Kaiowáde Sucuri’y. Decidiu-se, em comum acordo, queseria necessário realizar novas escavaçõesarqueológicas na área em litígio, isto com oobjetivo de se tentar determinar se houve ounão essa vinculação temporal.

Seguindo procedimentos comuns na arque-ologia pré-histórica, os quais remetem à idéiade imemorialidade, o perito chegou à seguinteconclusão, que consta nas páginas 1.278 e 1.279dos autos:

A análise anterior nos permite pensar que acomunidade de Sucuriy é originária de umprocesso etno-histórico que desenvolveu-sena área do município de Maracaju, muitoprovavelmente precedente a este século e que,portanto tem, a mesma, direito a um espaçodefinido e suficiente para a preservação ereprodução de seu modo de ser étnico nocontexto espacial que foi palco dos aconteci-mentos de seu passado.Por outro lado, ao nosso ver, também não éjusto que o problema do espaço vital necessá-rio à revitalização cultural indígena seja solu-cionado através da desapropriação sumária debens particulares (réus) que, com certeza, não

Figura 2: Vista panorâmica de parte da terra indígena Sucuri’y,tendo ao fundo a cidade de Maracaju. Foto: Jorge Eremites deOliveira (nov./2006)

Figura 3: Habitação de uma família kaiowá na terra indígenaSucuri’y. Foto: Jorge Eremites de Oliveira (nov./2006)

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são os responsáveis diretos, nem indiretos,pelos infortúnios que assolam os índios nopassado e no presente na região. Os réus adqui-riram as terras que atualmente ocupam produti-vamente (que são parcialmente objeto da lide)de forma perfeitamente legal e em nenhummomento praticaram o esbulho de terras indíge-nas. Finalmente, ao nosso ver, a justiça só serárestabelecida na questão quando os índiostiverem direito à [sic.] permanecer definitiva epacificamente em um espaço necessário à suasobrevivência, com qualidade de vida e deacordo com suas tradições, por eles aceito comotal. Como, por falta de provas inquestionáveis,as diligências periciais não conseguiram carac-terizar a área em litígio como de posse perma-nente e ininterrupta por parte dos indígenas,cabe ao Governo Federal, por meio dos órgãospúblicos habilitados para tal, solucionar oimpasse, já que, constitucionalmente, a prote-ção e tutela das comunidades indígenas sãode sua responsabilidade.

No tocante a esse aspecto, o mais plausívelseria o arqueólogo ter concluído que, com basenos preceitos constitucionais, em especial oArtigo 231, § 1°, da Carta Constitucional de1988, e nas provas por ele arroladas, a terraindígena Sucuri’y é ou não, de fato, uma áreade ocupação tradicional indígena. A polêmicamaior segue residindo na seguinte questão: oautor entendeu que seria necessário buscar“provas inquestionáveis” para caracterizar aárea em litígio como sendo de “posse perma-nente e ininterrupta”, por parte dos indígenas,desde tempos imemoriais até os dias de hoje.Esta é uma interpretação particular e equivocadaque ele fez da lei, com a qual a assistente técnicado Ministério Público Federal, a antropólogaElaine Amorim Carreira (2000), rebateu demaneira contundente e esclarecedora em seuparecer, conforme consta nas páginas 1.367 e1.368 do processo:

As noções de ocupação permanente e deterras tradicionalmente ocupadas não se refe-rem ao império de um passado remoto e nemchegam a privilegiar as relações temporais, mas,sim, dizem respeito a maneiras típicas de envol-vimento com o espaço, que podem ou nãoserem imemoriais e ininterruptas. A lógicahistórica exige esse entendimento porque sabe-

mos hoje da inexorável realidade dos aconteci-mentos ocorridos no passado, que reiterada-mente seguiram uma política deliberada deexpulsões e reduções das sociedades indíge-nas, deslocando-as continuamente de seusterritórios tradicionais. Por isso, o permanentedo texto constitucional refere-se a fatos concre-tos e efetivos da ocupação costumeira sobredeterminada área, de modo mais ou menosestável e duradouro – em contraposição aestâncias temporárias e eventuais –, mas nãorequer indicar, e nem poderia dado o contra-senso histórico, exclusivamente os processosde ocupação continuada e seqüencial de terrasindígenas. A lei não busca amparar direitosétnicos de povos abstratos, situados em algumlugar do passado. Busca sim amparar direitosde povos vivos e contemporâneos.

Não se limitando a titubear na hora de dizerse a área em litígio é ou não de ocupação tradi-cional indígena, o expert do juízo ainda apre-sentou seu ponto de vista particular acerca doque entende ser justo ou injusto para a reso-lução do litígio. Nesse aspecto, em específico,ele deu a entender que estava se colocando naposição do próprio magistrado, ou de um profun-do conhecedor de direito constitucional e ope-rador do direito, quando da apresentação de umasentença. Por isso, o arqueólogo finalizou seutrabalho remetendo a solução do impasse à açãode órgãos governamentais. Paradoxalmente, aconclusão do arqueólogo contradiz as provas queele mesmo arrolou nos autos, conforme expli-cado adiante.6

O perito afirmou, ainda, segundo consta napágina 1.268 do processo, que ele deu início aescavações arqueológicas com o seguinte obje-tivo:

Iniciamos as escavações objetivando-se en-contrar vestígios arqueológicos passíveis de

6. O referido arqueólogo compartilha a idéia de que “a ques-tão da terra indígena é, pela legislação em vigor, um proble-ma de âmbito federal, e é muito difícil achar culpados porerros cometidos no passado, ainda mais quando isso aconte-ceu havia muitas décadas”, segundo consta em um artigo desua autoria publicado nos Anais do VI Encontro de Históriade Mato Grosso do Sul (Campo Grande, UCDB, 2004, pp.13-29.). Este ponto de vista é, em grande medida, inconsisten-te, haja vista que pode servir como um tipo de álibi parajustificar certas análises equivocadas a respeito dos proces-sos de esbulho e espoliação de terras tradicionalmente ocu-padas por comunidades indígenas no Mato Grosso do Sul.

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datações laboratoriais, tais como carvões ououtros vestígios orgânicos e/ou fragmentos decerâmica arqueológica, os quais permitiriam,inclusive, a identificação étnica de seus pro-dutores [...]. (grifos meus)

A respeito das “datações laboratoriais”, oarqueólogo certamente estava se referindo aouso de dois métodos físico-químicos para adatação absoluta: (1) datação radiocarbônica,feita por meio da análise do carbono-14 (C14),encontrado em restos orgânicos como ossoshumanos e carvões de antigas fogueiras antró-picas; (2) datação por termoluminescência (TL),utilizada para a datação de cerâmica e materiallítico, por exemplo. Ambos os métodos tambémsão comuns em arqueologia pré-histórica e emoutras subáreas da arqueologia, mas não consti-tuem métodos tão precisos como a argüição doperito pode levar a pensar.

Em se tratando de datações pelo métodoradiocarbônico, sabe-se que este método “édemasiado impreciso para ser útil nos 400 anosdo passado mais recente”, conforme explicaramCollin Renfrew & Paul Bahn (1998, p. 135),autores do Arqueología: teorías, métodos ypráctica. Por outro lado, segundo os mesmosautores, o método de datação por termolumi-nescência, embora útil para datas dos últimosdez mil anos, ainda “é menos preciso que estena exatidão de suas datas” (Renfrew & Bahn,1998, p. 135).

Ora, se os dois métodos não são tão preci-sos assim e se datas antigas remetem mais àidéia de imemorialidade, pode-se deduzir,portanto, que esse procedimento metodológiconão seria o mais recomendado para a realizaçãodos trabalhos de perícia. Contudo, caso o peritotivesse encontrado fragmentos de cerâmicatipicamente Tupiguarani, conforme é ampla-mente conhecida na arqueologia sul-americana(ver La Salvia & Brochado 1989), datada, porexemplo, de 450±70 AP,7 não haveria comoassociá-la diretamente aos Kaiowá de Sucuri’yse ela não fizesse parte da memória social ou

possuísse sentido de tradicional para a comuni-dade indígena.8 Por este e outros motivos é quesigo argumentando que procedimentos metodo-lógicos e linhas argumentativas comuns naarqueologia pré-histórica não são, pois, apro-priados para esse tipo de trabalho.

Uma das questões que o expert deveriater esclarecido diz respeito, por exemplo, ao inícioda ocupação da região pelas frentes de expan-são econômica da sociedade nacional, algo queaconteceu entre fins do século XIX e as primei-ras décadas do século XX. Por esse motivo, ofundamental da perícia seria esclarecer se,quando a cadeia dominial teve início, a terra eraou não ocupada pelos Kaiowá de Sucuri’y, emseu sentido mais amplo, pois os indígenasalegaram terem sido vítimas de processo deesbulho.9 Caso tenha ocorrido o espólio de suas

7. AP significa anos “Antes do Presente”, no qual o presen-te é, por convenção, o ano de 1950. Em inglês, essa sigla éBP (Before Present). No caso dessa data hipotética, o sinal“±” indica a margem de erro da datação, para mais ou paramenos.

8. O “sentido de tradicional” a que me refiro está ligadoàquilo que uma comunidade indígena dá significado de tradi-cional nos dias hoje, de acordo com seus usos, costumes etradições, tal qual determina a Constituição Federal. Sobreo assunto, além dos trabalhos mencionados ao longo desteartigo, alguns outros são bastante elucidativos: (1) Carneiroda Cunha, M. (Org.). 1987. Os direitos do índio: ensaios edocumentos. São Paulo, Brasiliense; (2) Dallari, D. de A.1994. Argumento antropológico e linguagem jurídica. In:Sampaio Silva, O. et al. (Org.). A perícia antropológica emprocessos judiciais. Florianópolis, Editora UFSC, p.103-114; (3) Pacheco de Oliveira, J. 1994. Instrumentos debordo: expectativas e possibilidades do trabalho do antro-pólogo em laudos periciais. In: Sampaio Silva, O. et al.(Org.). A perícia antropológica em processos judiciais.Florianópolis, Editora UFSC, p.115-139; (4) Souza Filho,C. F. M. de. 1998. O renascer dos povos indígenas para odireito. Curitiba, Juruá; (5) Afonso da Silva, J. 2001. Cursode direito constitucional positivo. 19. ed. São Paulo,Malheiros; (6) Barbosa, M. A. 2001. Autodeterminação:direito à diferença. Prefácio de Dalmo de Abreu Dallari. SãoPaulo, Plêiade/Fapesp; (7) Barbosa, M. A. 2001. Direitoantropológico e terras indígenas no Brasil. São Paulo,Plêiade/Fapesp; (8) Pacheco de Oliveira, J. 2001. Os Caxixósdo Capão do Zezinho: uma comunidade indígena distantede imagens da primitividade e do índio genérico. Relató-rio encaminhado à Funai. Rio de Janeiro, Museu Nacional/UFRJ; (9) Monteiro, P. et al. 2004. Direitos indígenas noBrasil. Novos Estudos, São Paulo, 69:57-70; (10) Leite, I.B. (Org.). 2005. Laudos antropológicos em debate.Florianópolis, NUER/ABA; (11) Souza Lima, A. C. de &Barreto Filho, H. T. (Org.). 2005. Antropologia e identifi-cação: os antropólogos e a identificação de terras indígenasno Brasil, 1977-2002. Rio de Janeiro, Contra Capa Livra-ria/Laced/CNPq/Faperj/IIEB.

9. Para analisar a cadeia dominial da área em litígio, faz-senecessário recorrer ao livro Os Corrêa, os Ponte, os Alvesno planalto e serra de Maracajú: origem histórica, árvoresgenealógicas, do advogado e ex-delegado de polícia AltinorBarbosa Ferreira (1993). Essa obra de caráter memorialistae genealógica foi escrita com base em pesquisas cartoriais einformações orais registradas pelo próprio autor.

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terras, seria ainda necessário esclarecer comoesse processo se deu, quais os indivíduos que ofizeram, como reagiu a comunidade de Sucuri’ye qual foi a ação do órgão indigenista oficial, aFundação Nacional do Índio (Funai), no episódio.

Se o esbulho foi feito pelos primeiros ocu-pantes não-índios para conseguirem títulosimobiliários da área, então, salvo melhor enten-dimento, toda a cadeia dominial da área não temvalidade à luz da legislação brasileira, indepen-dentemente da opinião do perito sobre o que eleentende ser ou não justo.

Além do que já foi explicado até o momento,há outras questões que precisam ser pontuadasneste trabalho.

Em primeiro lugar, conforme consta napágina 1.267 dos autos, o perito afirmou que suasdiligências foram feitas após “o estudo dabibliografia especializada, análise de fontesprimárias e leitura dos autos”. Em seu relatórioconsta a relação de 105 títulos, da página 1.285à página 1.294 dos autos. Do total, ao menos 41trabalhos, ou seja, 39,05% do total da bibliografiaarrolada, referem-se à arqueologia pré-histó-rica.10 Essa outra constatação também atesta,como dito antes, que o arqueólogo recorreupreferencialmente a procedimentos metodo-lógicos e argumentos comuns nessa subárea dadisciplina, não dando a devida importância paraa literatura etnológica e etnoistórica referenteaos Kaiowá. A estratégia dele de direcionar ostrabalhos periciais mais para averiguar a imemo-rialidade da ocupação indígena na área em litígioconstitui, nesse caso em particular, um vícioobservado ao longo de sua perícia.

Igualmente, no decorrer das respostas aosquesitos elaborados pelas partes, o perito sequer

chegou a fazer referência a 10% das obras porele relacionadas na bibliografia final de seurelatório. Nas páginas 1.265 e 1.269, por exem-plo, há referência a um trabalho de sua autoriaque não foi encontrado na relação bibliográficada página 1.289 dos autos. Provavelmente oautor se referiu a sua tese de doutorado, emespecífico à parte em que ele analisou a tecno-logia lítica de grupos pré-coloniais que ocuparama Serra de Maracaju em tempos imemoriais,assunto que em nada contribui para a elucidaçãodos acontecimentos.

Outras obras importantes, aí sim relevantespara o esclarecimento dos fatos, não foramarroladas e discutidas no laudo pericial. Este éo caso da tese de doutorado de Antonio Brand(1997), denominada O impacto da perda daterra sobre a tradição kaiowá/guarani: osdifíceis caminhos da palavra. A referidamonografia é um trabalho de fôlego que contéma relação de vários documentos e um mapa dasáreas de ocupação tradicional kaiowá e ñandevano estado e, por isso, definitivamente não pode-ria ter sido ignorada. Há ainda clássicos queigualmente não foram discutidos, a exemplo deAspectos fundamentais da cultura Guarani,de Egon Schaden (1974), dentre muitas outrasobras que o profissional tinha ciência na época,conforme um livro de sua própria autoria, cujaprimeira edição é de 1992. Esta constataçãotambém foi feita de maneira semelhante pelaassistente técnica do Ministério Público Federalem seu parecer, de acordo com o que constanos autos.

Fontes desse tipo deveriam ter sido anali-sadas e discutidas para responder, por exemplo,ao primeiro quesito apresentado pelo juízo: “1.Estabeleça o Senhor Perito o local e o períodoem que os índios Guarani-Kaiowá habitavam–ocuparam (no sentido amplo de caçar, pescar ecoletar) a área mencionada na petição inicial,se isso ocorreu”. Como não o foram, as respos-tas também não são consistentes do ponto devista histórico e antropológico.

Em segundo lugar, o levantamento arqueo-lógico foi concluído com base em informaçõesorais obtidas de membros da comunidadeindígena. Isso é o que geralmente se chama delevantamento oportunístico de sítios arqueoló-

10. A bibliografia arrolada no laudo pericial é praticamentea mesma que o autor relacionou em sua tese de doutorado,defendida em 1996 na USP, cujo tema central tem a vercom a pré-história de antigos grupos indígenas que se esta-beleceram no planalto de Maracaju-Campo Grande, inclu-indo o município de Maracaju. Nesse trabalho, há um subitemde número 3.2, intitulado “Panorama etno-histórico da re-gião de Maracaju”, em que o perito fez um resumo da ocupa-ção indígena no município homônimo, desde temposimemoriais até momentos mais recentes, tratando inclusi-ve do processo de esbulho a que os indígenas dizem tersofrido na década de 1980. No entanto, esse não é umtrabalho de sólida base etnográfica, até porque esta não foia principal proposta do arqueólogo para a realização de suapesquisa.

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gicos.11 Trata-se de um procedimento pertinentepara trabalhos dessa natureza, desde quedirecionado para averiguar a tradicionalidade daocupação indígena e caso o pesquisador tenhaentendido o idioma cultural do grupo.

Diversos pontos arrolados durante a perícia(antigas residências, lugares de valor mágico-religioso, aterros sob forma de montículos,prováveis sepulturas humanas, trilhas, áreas decaça etc.), associados à toponímia em línguaGuarani conhecida para a região, à memóriacoletiva da comunidade e a fontes textuaismencionadas no processo, chamam a atençãopara a tese de que os Kaiowá estão ocupandoaquela área de acordo com seus usos, costumese tradições. Essas provas vão ao encontro danoção de oguata, palavra que em guarani serefere a um modus vivendi caracterizado porgrande mobilidade espacial, no sentido de andar,caminhar, circular, viajar e transitar, conforme éamplamente conhecido na literatura etnológicae etnoistórica. A noção de oguata não deve servista como algum tipo de nomadismo ou peram-bulação errante, sem direção certa e ausentede estratégias de territorialidade. Pelo contrário,tem a ver com mobilidade espacial em uma áreareconhecida como território tradicional para ospróprios Kaiowá.

Registra-se, contudo, e mais uma vez, quenão é a ocorrência de evidências arqueológicasimemoriais, como artefatos líticos e cerâmicos,que poderiam ou não comprovar a tradiciona-lidade da ocupação indígena na área periciada.A comprovação deveria ter sido feita, também,por meio da análise minuciosa de outras evidên-cias materiais, tais como: “latas velhas”, “solade sapato”, “entulho de lixo”, locais de impor-tância simbólica para atividades de caça (comoo registrado como ogatawa), “alto topográfico”onde teria existido uma oga pysy etc.12 Todasessas evidências foram arroladas pelo expert

da justiça federal nas páginas 1.262 e 1.263 dosautos, mas sobre elas não foi apresentadaqualquer análise etnográfica ou arqueológica àaltura do que se faz na antropologia ou nasubárea da arqueologia histórica, respectiva-mente.13 Tampouco sobre o material arqueoló-gico imemorial recolhido in loco, como osartefatos líticos, foi apresentada uma análisemeticulosa, o que atesta ainda mais a fragilidadeda perícia. Por vezes, foram feitas aindareferências a suposições do tipo “aparentemen-te” e “provavelmente”, as quais, associadas aodescrédito dado à memória e à tradição oral dosKaiowá, assim como à literatura etnológica eetnoistórica, contribuíram para corroborar aconclusão final do perito, reproduzida anterior-mente.

Em terceiro lugar, as entrevistas com algunsindígenas, transcritas e anexadas nos autos,também sustentam a tese da ocupação tradicio-nal kaiowá da terra indígena Sucuri’y. Elas aindaapontam para o processo de esbulho que osíndios afirmam ter sofrido. Sem embargo a essaproposição, entendo que, à luz da história oral eda etnografia, teria sido de bom alvitre se o peritotivesse tido alguns momentos a sós com acomunidade indígena.14 Dessa forma, ele pode-ria ter realizado entrevistas e observaçõesetnográficas com vistas a recolher maioressubsídios para a elaboração do laudo. Em outros

11. Sobre esse assunto existem vários trabalhos publicadosno país, como o estudo pioneiro realizado pelo arqueólogoWalter A. Neves (1984) no estado de São Paulo, denomina-do A evolução do levantamento arqueológico na bacia doAlto Guapeí, SP.

12. Oga pysy é uma unidade residencial tipicamente kaiowá,feita de madeira e coberta com capim sapé, onde geralmen-te residia uma família extensa, denominada te’yi. Há tam-bém construções com esta mesma denominação que eram eainda são destinadas a rituais religiosos, às vezes até com

outras configurações arquitetônicas. O perito grafou estapalavra de maneira equivocada (oga pysi), pois em guaranio “y” não tem o mesmo som que o “i”. Ogatawa, por suavez, se é que o perito registrou corretamente esta outrapalavra, refere-se a um “povoado” ou ainda a um lugar devalor simbólico. Em guarani a palavra “oga” significa casa,local, moradia, e “táva” ou “tawa” diz respeito a povo,aldeia, povoação, localidade (cf. Krivoshein de Canese &Acosta Alcaraz, 1997).

13. A arqueologia histórica pode ser entendida “como oestudo arqueológico dos aspectos materiais em termos his-tóricos, culturais e sociais concretos, dos efeitos domercantilismo e do capitalismo que foi trazido da Europaem fins do século XV e que continua em ação ainda hoje”(Orser Jr., 1992, p. 23) [itálico no original].

14. Na opinião de Verena Alberti (1990:1-2): “Se podemosarriscar uma rápida definição, diríamos que a história oral éum método de pesquisa (histórica, antropológica, socioló-gica etc.) que privilegia a realização de entrevistas compessoas que participaram de, ou testemunharam, aconteci-mentos, conjunturas, visões de mundo, como forma de seaproximar do objeto de estudo. Como conseqüência, o mé-todo da história oral produz fontes de consulta (as entrevis-tas) para outros estudos, podendo ser reunidas em um acer-vo aberto a pesquisadores. Trata-se de estudar aconteci

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momentos, os assistentes técnicos das partestambém poderiam fazer as entrevistas e obser-vações etnográficas com os mesmos indivíduos,igualmente a sós, juntando elementos para aelaboração de seus estudos.

Desconheço a prerrogativa de o perito terde fazer um laudo judicial em consenso com osassistentes técnicos, haja vista o conflito deinteresses, ou ainda de ele estar legalmenteobrigado a realizar ou participar de entrevistascoletivas, não podendo contar com momentos asós para as partes envolvidas no processo.Entrevistas coletivas, aliás, quando feitas porvários entrevistadores ao mesmo tempo (perito,assistentes técnicos e outros), podem criar umambiente tenso e induzir a análise dos entrevis-tados para a obtenção de respostas que convêma uma das partes. Este é um dos motivos pelosquais elas devem ser evitadas, sob pena de secair em subjetivismo profissional que podemacular a imparcialidade do laudo pericial.

Mais ainda, o processo de ocupação tradi-cional e o esbulho a que os Kaiowá se referemfazem parte da memória social de toda umacomunidade e não de um único indivíduo. Essamemória recua há mais de cem anos, conformeconsta na página 1.266 dos autos, e, por sercoletiva e pautada por uma conduta articulada,deveria ter sido analisada com maior refino eprofundidade.15

Em quarto lugar, está transparente que aspesquisas arqueológicas realizadas na área emlitígio causaram constrangimento aos indígenas,pois alguns deles alegaram “ter havido violação

de sepulturas”, quer dizer, a profanação de túmu-los, de acordo com o que foi registrado pelopróprio perito na página 1.267 dos autos. Signi-fica dizer que lugares sagrados não deveriamter sido perturbados por meio de escavaçõesarqueológicas, pois constituem locais que, inde-pendentemente de terem ou não esqueletoshumanos, são de grande significado para osKaiowá.16

Esse tipo de procedimento contraria certasorientações comuns nas ciências sociais, con-forme se pode atestar através de uma leitura doartigo “Restos humanos e arqueologia histórica:uma questão de ética”, de Tania Andrade Lima(1994).17 Entretanto, se o perito tivesse encon-trado restos humanos memoriais, será que have-ria como datá-los tão precisamente pelo métodoradiocarbônico, como explicado anteriormente?Mas, em supondo ainda que pudesse vir a datá-los com 100% de precisão, o passo seguinte teriade ser a realização de exames comparativosentre o DNA dos ossos humanos resgatados eo DNA de todos os membros da comunidadede Sucuri’y? Seria realmente necessário tudoisso para dar crédito à memória social coletivade uma comunidade indígena, às evidênciasmateriais encontradas in loco e às fontestextuais conhecidas? Em minha opinião, defi-nitivamente não. Este é um típico exemplo deinabilidade etnográfica, apoiada em uma mate-rialidade radical, algo que não se deve fazer paracompreender o idioma cultural de um grupoétnico.

Daí a pertinência da análise apresentadapor Rosely Aparecida Stefanes Pacheco, cujo

mentos históricos, instituições, grupos sociais, categoriasprofissionais, movimentos, etc., à luz de depoimentos depessoas que deles participaram ou os testemunharam”. En-tretanto, quando no contexto de perícias judiciais do tipoda que aqui está sendo analisada, esses depoimentos oraisnão devem ser confundidos com depoimentos tomados emjuízo, tampouco o método da história oral pode ser conside-rado como um procedimento metodológico mais preciso ouque se sobrepõe em relação ao método etnográfico.

15. Entre povos indígenas sul-americanos, antropólogosgeralmente não conseguem fazer diagramas de parentescoindicando mais de cinco gerações das quais descende umindivíduo de referência, denominado ego (“eu” em latim).Não é de se estranhar, então, que a memória coletiva dosKaiowá possa recuar em torno de uns 150 anos, haja vistaque uma geração tem em média de 20 a 25 anos. O que vaialém dessa cronologia está no campo do imemorial e suainterpretação exige muita habilidade etnográfica eetnológica.

16. A prática arqueológica não se dá apenas por meio deescavações arqueológicas. Evidências materiais encontra-das na superfície dos terrenos também podem ser analisadascom bastante sucesso, conforme comprovado em váriosestudos publicados no Brasil (ver Caldarelli, 1997; Caldarelli,1999; Eremites de Oliveira, 2002).

17. Durante o XIII Congresso da Sociedade de ArqueologiaBrasileira, um grupo de antropólogos e arqueólogos brasilei-ros, preocupado com questões dessa natureza, propôs, du-rante a assembléia da SAB, a apreciação de um documentosobre o assunto. O documento, que foi aprovado pelos pre-sentes com apenas um voto em contrário, solicita do Insti-tuto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)que não autorize projetos de pesquisa que impliquem a esca-vação de sepultamentos humanos em terras indígenas e emterras de descendentes de negros escravizados, sem que oresponsável pelos estudos tenha a expressa e prévia autori-zação formal por parte das comunidades interessadas.

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estudo realizado é de grande relevância para acompreensão dos conflitos fundiários entreíndios e fazendeiros no estado. Segue o que elaescreveu sobre o tema:

Diante do exposto, no antigo sul de MatoGrosso, como em outras áreas do país, no queconcerne aos direitos indígenas às suas terras,sempre se vislumbrou o modelo de ação quefortemente privilegia o campo jurídico, visando,nesse sentido, encontrar registros que atestema antiguidade da ocupação. Segundo estalógica, a ausência de meios documentais decomprovação de um vínculo pretérito entre osremanescentes indígenas e as terras reivindi-cadas inviabilizaria qualquer tentativa de recu-perá-las. Entre aqueles signatários desta idéia,sua atenção para a solução dos litígios fundiá-rios regularmente está centrada na Escrita doEstado, como se somente esta fosse a formamais importante de constituição de direitos, emdetrimento de outras evidências de ocupação.(Stefanes Pacheco, 2004, p. 41)

Sabendo que os Kaiowá constituem umgrupo étnico de tradição oral, não haveria oporquê de desprezar duas categorias de provas:(1) a memória social da comunidade; (2) as evi-dências materiais memoriais que atestam suapresença na área em litígio. Proceder de modocontrário sugere o comprometimento da própriaimparcialidade do laudo pericial e/ou atesta ainabilidade do profissional nomeado pelo juízo.

Além do mais, os Kaiowá comumente nãotêm “cemitérios” iguais aos da sociedade nacio-nal: recintos bem delimitados para guardar osmortos, consistindo em áreas mantidas limpas evisitadas em datas especiais; sepulturas comsímbolos cristãos, principalmente cruzes; mortosenterrados em urnas funerárias de madeira, emposição de decúbito dorsal etc. Quando o sãodessa forma é porque houve influências deadministradores do órgão indigenista oficial e/ou de missionários religiosos (católicos e/ouevangélicos). Esta constatação é largamenteconhecida na literatura etnológica e etnoistória,desde tempos coloniais, conforme pude cons-tatar in loco junto à comunidade Kaiowá dePanambizinho (Eremites de Oliveira & Pastore,2002), em Dourados, no ano de 2001, e maisrecentemente, em 2005, junto à de Taquara, emJuti, ambas no Mato Grosso do Sul.

Para os Kaiowá, o lugar onde os mortosforam sepultados, sobremaneira em se tratandode indivíduos com prestígio social, como caci-ques e rezadores, não é um espaço veneradopelo grupo. É um lugar que deve permanecerno passado e quase que apagado da memóriados vivos. Muitas vezes os locais de enterra-mento correspondem a antigas residências ondeas pessoas viveram, as quais logo após a partidado morto foram abandonadas e destruídas comfogo. Acompanhando os mortos, geralmente sãoenterrados ou deixados ao lado das sepulturasvários de seus pertences. Hoje em dia essespertences podem ser desde um colar de contasaté uma bicicleta. Eles acreditam na dualidadeda alma, quer dizer, que as pessoas têm duasalmas, uma carnal (anguery) e outra espiritual(ñe’e). A alma carnal permanece com o defuntoe não deve ser lembrada, pois traz más influên-cias à saúde e à convivência social dos membrosda comunidade. Portanto, locais sagrados ondeestão os mortos não deveriam e não devem serprofanados por escavação alguma, sob pena deperturbar a ordem social e espiritual dos indí-genas.18

Acrescenta-se ainda que a área em litígiosofreu muitos impactos ambientais negativos, aexemplo de desmatamentos, queimadas eformação de pastagens para bovinos, motivo derápidas transformações na paisagem local.Impactos assim causaram, indubitavelmente, adestruição de evidências materiais sobre apresença indígena em Sucuri’y, sejam imemo-riais, sejam tradicionais. Este assunto tambémnão foi aprofundado no laudo, mas deveria fazerparte de uma avaliação arqueológica geral daárea periciada.

Em quinto lugar, ainda que o perito tenhaavaliado que as informações orais dos índiosforam contraditas por não-índios, o que não éraro quando entrevistas são feitas em umcontexto de disputa judicial, está cristalino queparte dos depoimentos dos Kaiowá vai ao

18. Há muitíssimas fontes escritas sobre a religiosidade dosgrupos étnicos de língua guarani. A produção mais relevanteteve início com os padres da Companhia de Jesus, no séculoXVII, conforme se pode comprovar por meio de uma aná-lise apurada de obras analisadas por Melià et al. (1976,1987), Chamorro (1995, 1998), Pereira (1999, 2004) eMura (2004).

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encontro de certas fontes textuais. Exemplo dissoestá na clareza com que o esbulho de indígenasestá presente na memória de descendentes dosprimeiros não-índios que fundaram o municípiode Maracaju. Isso tanto é verdade que na página1.277 dos autos o arqueólogo fez menção a umtrecho do livro Maracaju e sua gente, deFrancisco Bernardes Ferreira & Albino Pereirada Rosa,19 publicado localmente em 1988. Adécada da publicação do livro coincide com adécada em que os Kaiowá afirmaram que foramexpulsos da área. Nesse livro consta ipsis litteriso seguinte:

Durante os primeiros anos de adaptação dafamília Alves de Lima na região do Planalto daSerra de Maracaju, nem sempre as coisas corre-ram em paz. Havia muitas aldeias indígenas,espalhadas desde as cabeceiras dos rios SantaMaria e Brilhante, até as margens do Paraná.Os índios constituíam uma ameaça permanentepara os fazendeiros que, por diversas vezes,tiveram de empregar de muita astúcia, e atémesmo o uso de armas de fogo para rechaçaros seus ataques traiçoeiros e perigosos. Como decorrer do tempo, depois de muita luta e atéde combates sanguinolentos, teve lugar umaaproximação pacífica dos grupos em litígio,permitindo o estabelecimento de um clima depaz e maior tranqüilidade. (Ferreira & Rosa,1988, p. 111)

A transcrição acima apresentada foi escritapor Francisco Bernardes Ferreira, responsávelpela redação da segunda parte da obra citada(da página 73 a 167). Faz parte de um livro produ-zido por dois renomados memorialistas da região,pessoas conhecedoras do direito e autores deum livro sobre a história de Maracaju. Nessapassagem, também citada na página 93 da tesede doutorado do perito, estão claros alguns

pontos cruciais para o conhecimento de direitos:(1) que muitas aldeias indígenas estavam esta-belecidas na região quando ali chegaram osprimeiros não-índios fundadores do município,entre fins do século XIX e primeiras décadasdo XX, quer dizer, em tempos memoriais;20 (2)que os contatos iniciais entre os índios e essesfundadores não foram pacíficos, tendo havidoaté o emprego de armas de fogo para rechaçaros primeiros ocupantes nativos da região, osquais foram vistos como “uma ameaça perma-nente”; (3) depois desses conflitos supostamentehouve “o estabelecimento de um clima de paz emaior tranqüilidade”, o que teria ocorrido quandose consolidou o processo de esbulho dos índiosde grande parte da área por eles ocupada demaneira tradicional.

É isso o que resumidamente diz um estudosobre a história de Maracaju, escrita por homensimportantes da política local, e é isso o que emlinhas gerais os Kaiowá explicaram para o peritoe para os assistentes técnicos. Ambas as versõesnão são contraditórias, pelo contrário, são con-fluentes e fazem parte de uma mesma históriapresente na memória coletiva de índios e não-índios.21

Essa ainda é a mesma realidade sócio-histórica de muitas outras regiões do antigo suldo Mato Grosso, hoje Mato Grosso do Sul, ondeatualmente há conflitos fundiários envolvendoíndios e fazendeiros. A questão central residena origem da estrutura fundiária estadual. Elaestá no fato de o antigo estado do Mato Grossoter se apoderado de territórios indígenas, o quese deu com a promulgação da ConstituiçãoFederal de 1891, declarando-os como terrasdevolutas para depois serem repassadas aterceiros. Muitos desses terceiros primeiramente

19. Albino Pereira da Rosa nasceu em Maracaju, no dia 13de junho de 1914, graduou-se em direito pela antiga Univer-sidade do Brasil, no Rio de Janeiro, foi auxiliar de ministrona Procuradoria Geral, procurador de autarquia da Previ-dência Social e autor de livros jurídicos. Francisco BernardesFerreira nasceu em Uberaba, Minas Gerais, no dia 21 dejaneiro de 1903, trabalhou em Maracaju como proprietárioda Farmácia Popular e também em fazendas de gado daregião, chegando a exercer as funções públicas de juiz depaz, vereador, promotor interino da justiça e prefeito da-quele município. Portanto, os autores do livro Maracaju esua gente foram pessoas cultas, por assim dizer, quevivenciaram o processo histórico regional no século XX.

20. Segundo o referido expert: “Em 8 de junho de 1924, oGoverno do Estado de Mato Grosso elevou o pequeno aglo-merado à categoria de Distrito da Paz, sob a jurisdição daComarca de Nioaque. No ano de 1928, quando a populaçãourbana girava em torno de mil pessoas e a rural, em dez mil,a região desmembrou-se de Nioaque e o distrito foi promo-vido a [sic.] sede do município de Maracaju”. Esta informa-ção consta na p. 106 da tese de doutorado do perito dajustiça federal.

21. Além dos Kaiowá, os Ofayé-Xavante, cujos descenden-tes vivem hoje em Brasilândia, também tiveram suas terrasespoliadas na região de Maracaju e adjacências, conformeconsta no livro de Carlos Alberto dos Santos Dutra, a obraOfaié: morte e vida de um povo (Dutra, 1996).

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promoveram a expulsão dos nativos de seusterritórios e, posteriormente, obtiveram, por partedos órgãos estaduais de controle fundiário, asdevidas certidões imobiliárias para a legalizaçãode suas propriedades.

Ao analisar situações desse tipo, a partirdo estudo de vários processos judiciais noestado, Moreira da Silva assim resumiu a situa-ção:

No Mato Grosso do Sul, notadamente no terri-tório kaiowá e ñandeva, o processo de espolia-ção de terras indígenas pelas frentes de expan-são econômica, com apoio oficial, realizou-se àrevelia de todo o ordenamento jurídico de prote-ção aos direitos indígenas vigentes, inclusiveo Alvará de 1680 que nunca foi revogado.(Moreira da Silva, 2002, p. 149)

Stefanes Pacheco, por sua vez, igualmenteanalisando vários processos judiciais, fez duasinteressantes avaliações sobre o assunto.

A primeira:

É certo que os indígenas foram atropelados pelaação estatal, sendo este o principal responsávelpor grande parte dos infortúnios que assolamestas sociedades; porém, o Estado não agiusozinho, estava amparado por uma classe ávidade benesses e que via nestas terras uma formade resolver seus anseios. (Stefanes Pacheco,2004, p. 36)

A segunda:

O resultado é uma trama de títulos que vêmtentando obstaculizar o questionamentojurídico por parte dos indígenas no tocante aseus direitos de acesso a terra. (StefanesPacheco, 2004, p. 41)

A seguir, passo a registrar o que próprioperito do juízo escreveu em um subitem de suatese de doutorado, elaborado sem a realizaçãode observação participante (pesquisa etnográ-fica), porém centrado em uma análise históricacom base em fontes textuais produzidas por não-índios.22

Primeira:

Na década de oitenta do século XIX, a regiãodo planalto maracajuano assistiu, concomitan-temente à expansão da atividade ervateira, àchegada de novas levas de colonos, principal-mente família oriundas do sul de Minas Gerais.Diversas fazendas de gado foram constituídasna área do atual município de Maracaju e oscolonos passaram a disputar, com os indígenas,a posse das vastas planuras maracajuanas.A resistência indígena à invasão de seu terri-tório ancestral não foi pacífica, isto podemosobservar, por exemplo, na descrição feita porum historiador municipal [sic.] a seguirproduzida: [...].

A citação que o arqueólogo apresentou é amesma reproduzida anteriormente, transcrita dapágina 111 do livro Maracaju e sua gente(Ferreira & Rosa, 1988), e por isso dispensauma outra menção.

A segunda:

A família Alves de Lima foi uma das dezenasque se instalaram no planalto nessa época.Porém, entre todas, esta merece destaque noâmbito deste trabalho, pois foram os membrosdessa família os que se instalaram pioneira-mente na área compreendida entre o córregoCachoeira e o rio Santa Maria, onde esta [sic.]localizado o sítio “Maracaju-1”, fundando aí afazenda Pulador, na confluência do córregoPulador com o Cachoeira. Esta fazenda existeainda nos dias de hoje [...].

Terceira:

Muito provavelmente, nas primeiras décadasdeste século [século XX], a região que estamosenfocando ainda abrigava, talvez, algumascentenas de índios kaiowás dispersos entre osbosques remanescentes da cobertura originalou vivendo agregados nas recém-instaladasfazendas como mão-de-obra desqualificada,conservando ainda parte de seus costumes euma obstinação em preservar o seu modo deser, isto no território onde mantêm relaçõessimbólicas com seu passado e antepassados.A partir da década de 1940, o panorama ambien-tal e sócio-econômico passou por aceleradasmudanças. Nos primeiros anos dessa década otronco ferroviário da ‘Noroeste do Brasil’,ligando Ponta Porá a Campo Grande, estava

22. As quatro citações apresentadas a seguir foram copiadasda tese de doutorado do perito: primeira (p.93), segunda (p.94), terceira (p.106) e quarta (p.107-108).

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concluído. A facilidade de acesso e a de circula-ção de mercadorias daí advindas viabilizou,pelos anos seguintes, o crescimento das ativi-dades agropastoris e o processo de urbani-zação do município. O espaço vital para osíndios reduziu-se proporcionalmente ao ritmodo desenvolvimento econômico.

A quarta foi escrita após o autor fazerreferência ao estudo de identificação que Santos(1986) elaborou e que foi apresentado à Funai:

Em 1983, algumas famílias indígenas que viviamagregadas em fazendas da região retornaram àárea pretendida como território imemorial, nasproximidades da Fazenda Sete Voltas. Outrasfamílias se reagruparam, em 1984, em um lotenas margens da rodovia Rio Brilhante-Mara-caju, e mais algumas na periferia da cidade deMaracaju. Diversos atritos ocorreram entre osíndios e alguns fazendeiros, estes apoiados poralgumas autoridades municipais. As tensõesaumentaram e, no meio do ano de 1986, umaação conjunta, realizada pela Prefeitura Munici-pal, pela Polícia Militar do Estado e pelo Terra-sul, com apoio de alguns fazendeiros, desalojouos índios do município, enviando-os para oPosto Indígena de Dourados.A convivência com grupos étnicos distintos eo congestionamento demográfico do PI deDourados desgastou as relações dos recém-chegados com os habitantes tradicionais dolugar. A desarmonia e os graves problemassócio-culturais de PI de Dourados os forçou,novamente, a procurar um local onde pudessemrealizar o assentamento tribal.Atualmente, a auto-denominada comunidadeSucuri [sic.] [...], enquanto aguarda umdesfecho para o processo demarcatório de suasterras, está instalada em uma área urbana de 5hectares, cedida a título de comodato pelaPrefeitura de Rio Brilhante, no distrito dePrudêncio Thomaz (Aroeira), e resiste sobrevi-vendo da venda de artesanato nas margens darodovia BR-163.

As citações apresentadas são relevantespara a compreensão da história dos contatosentre os Kaiowá e a sociedade nacional e parao esclarecimento dos fatos. Nas passagens, oautor registrou o termo “território imemorial”para se referir à área reivindicada pelos Kaiowáe apresentou um sucinto panorama acerca dosprocessos de desterritorialização e reterrito-

rialização enfrentados pela própria comunidadede Sucuri’y. A análise que ele fez em um capí-tulo específico de sua tese de doutorado vai aoencontro daquilo que em linhas gerais os Kaiowálhe disseram anos depois, quando o arqueólogo,na condição de perito do juízo, esteve com osíndios para a realização do laudo judicial emanálise.

A constatação apresentada reforça aindamais a tese da tradicionalidade da ocupaçãoindígena em Sucuri’y e a do esbulho a que osKaiowá alegam ter sofrido. Também corroboraa avaliação de que o perito cometeu vícios aobuscar provas imemoriais sobre a posse perma-nente e ininterrupta, desde tempos imemoriaisaté os dias de hoje, a respeito da presençakaiowá na área em litígio. No caso em tela, operito não esclareceu as razões da supostamudança de seu posicionamento quanto aodireito de posse dos Kaiowá em relação às terrasque reivindicam em Maracaju, e o porquê,especificamente, de a comunidade indígena nãoter vínculos históricos e culturais (tradicionais)com a área periciada, contrariando a análise aquiapresentada.

Mais recentemente, em 2006, a justiçafederal no Mato Grosso do Sul acatou um pedidodo Ministério Público Federal sobre a necessi-dade da realização de nova perícia em Sucuri’y,desta vez não mais arqueológica e sim antro-pológica. Em seguida, o juízo nomeou umetnólogo para a realização dos novos estudos,cujos resultados indicaram que aquela área emlitígio é terra tradicionalmente ocupada pelosKaiowá.

Conclui-se, portanto, que a relação entreidentidade étnica e evidências arqueológicas éum tema que ainda precisa ser debatido commais profundidade na arqueologia brasileira.Trata-se de um assunto polêmico e, até certoponto, delicado sob vários aspectos. Não obstan-te essa realidade, defendo a tese de que o usode analogias históricas ou etnográficas diretasé algo inapropriado para a atribuição desta oudaquela identidade étnica a evidências arqueo-lógicas de um passado pré-colonial. Por estemotivo principal é que se faz necessário superarum antigo paradigma histórico-cultural, qual seja,a de que a etnicidade ou a identidade étnica deveser tratada como um fenômeno estático, fossi-

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lizado no tempo e no espaço e que surge defora para dentro dos grupos étnicos. Pelocontrário, é um fenômeno dinâmico que emergedo interior dos grupos étnicos para a exterio-ridade, em situações de contatos interculturais.

Ademais, o que pode parecer apenas umprocedimento teórico-metodológico impertinentee inadequado, restrito ao debate acadêmico, podese converter em problemas políticos de grandesproporções em que direitos de grupos étnicospodem estar sendo objeto de avaliação na esferajudicial. Daí a necessidade iminente de a arqueo-logia brasileira aprofundar o diálogo com outroscampos do conhecimento, sobretudo com aantropologia, mas não se esquecendo da históriae até mesmo do direito, incorporando novosaportes teórico-metodológicos e superandocertas defasagens que tem em relação à arqueo-logia mundial.

Agradecimentos

Quero aqui agradecer a todos os amigose amigas com os quais mantive interlocuçãodurante os estudos que culminaram com aelaboração deste artigo, em especial aos colegasdo Laboratório de Arqueologia, Etnologia eHistória Indígena da UFGD, que gentilmenteleram as primeiras versões do trabalho eapresentaram críticas e sugestões de granderelevância para sua finalização. São eles:Graciela Chamorro, Levi Marques Pereira eProtásio Paulo Langer. As idéias aqui apresen-tadas, contudo, são de minha inteira respon-sabilidade. Meus agradecimentos também sãode igual proporção à amiga Tania Andrade Lima,com quem tenho compartilhado muitas de minhaspreocupações sobre os rumos da arqueologiabrasileira.

Abstract: In this paper the author presents a generalanalysis on the direct analogy between material cultureand ethnic identity in the Brazilian archaeology. Itanalyzes in a specific way the association amongpopulations bearers of the Tupiguarani tradition, definedlike this at that time of National Program of theArchaeological Researches (Pronapa, 1965-1970), andethnic groups linguistically linked to the stock tupi. Forthose groups it has been attributed an identity or genericetnicidade of “guarani”. This problem is discussed with

more depth by occasion of the appreciation of a judicialstudy on the Indigenous Land Sucuri’y, located in themunicipal district of Maracaju, Mato Grosso do Sul State,Brazil. In the analyzed decision, the association betweenmaterial culture and ethnic identity sends to the debateregarding the right to the land on the part of an indigenouscommunity. During the elaborated study, the authorquestions the results ends of the expertise produced forthe federal justice and it argues that evidences that sustainthe thesis exist that that area is, in fact, traditionally busyfor Kaiowá, in agreement with what it determines theArticle 231, § 1°, of the Federal Constitution of 1988.

Key-words: Brazilian archaeology; ethnic identity;Kaiowá indians.

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