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A ATUAÇÃO CRIMINOSA DO TALIBÃ: Impactos na sociedade civil afegã Caroline Taglietti 1 RESUMO O presente artigo tem como objetivo compreender quão danoso são os impactos provocados pela presença e atuação do Talibã na nação afegã. Para isto, este trabalho encontra-se dividido da seguinte forma: na primeira seção, busca-se um entendimento sobre o local onde o Talibã atua, ou seja, o Afeganistão enquanto Estado falido; na segunda seção, busca-se entender por quais meios o Talibã atua, isto é, se este pode ser considerado uma organização criminosa. E, por fim, na terceira seção, discorre-se sobre o objetivo do presente artigo: o impacto do Talibã na nação afegã, em três áreas estratégicas: islã, educação e política externa. A conclusão é baseada, então, na análise das informações apresentadas na segunda e terceira seção, especialmente, levando-se em conta o pano de fundo da presente questão, qual seja o fato do Afeganistão ser um Estado falido. Palavras-chave: Estados falidos; Afeganistão; Talibã; impacto social ABSTRACT 1 Aadêmica do curso de Relações Internacionais pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI).

A atuação criminosa do Talibã: impactos no Afeganistão

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A ATUAÇÃO CRIMINOSA DO TALIBÃ:

Impactos na sociedade civil afegã

Caroline Taglietti 1

RESUMO

O presente artigo tem como objetivo compreender quão danoso sãoos impactos provocados pela presença e atuação do Talibã nanação afegã. Para isto, este trabalho encontra-se dividido daseguinte forma: na primeira seção, busca-se um entendimentosobre o local onde o Talibã atua, ou seja, o Afeganistãoenquanto Estado falido; na segunda seção, busca-se entender porquais meios o Talibã atua, isto é, se este pode ser consideradouma organização criminosa. E, por fim, na terceira seção,discorre-se sobre o objetivo do presente artigo: o impacto doTalibã na nação afegã, em três áreas estratégicas: islã,educação e política externa. A conclusão é baseada, então, naanálise das informações apresentadas na segunda e terceiraseção, especialmente, levando-se em conta o pano de fundo dapresente questão, qual seja o fato do Afeganistão ser um Estadofalido.

Palavras-chave: Estados falidos; Afeganistão; Talibã; impacto

social

ABSTRACT

1 Aadêmica do curso de Relações Internacionais pela Universidade do Vale do

Itajaí (UNIVALI).

This article’s goal is to understand how damaging are theimpacts caused by the presence and actions of the Talibanin the afghan nation. Thus, the article is divided in threesections. In the first section, we look for a comprehensionabout the place where the Taliban operates, which is theAfghanistan as a failed state. In the second section, we seekto understand through which means the Taliban acts, toconsider if it can be considered a criminal organization. Andin the third section, finally, we talk about t h e main pointof this article: the impacts of the organization in the afghannation, analyzing them in three strategic areas: Islam,education and foreign policy. Thus, the conclusion drawn isthe result of the analysis of the second and third section,especially, taking into consideration the background of theproblem, which is the fact that Afghanistan is a failed state.

Key words: Failed states; Afghanistan; Taliban; social impactIntrodução

Os Estados falidos podem ser entendidos como um dos grande

problemas políticos contemporâneos a serem enfrentados pela

comunidade internacional e por suas vítimas, o Estado

propriamente dito e, principalmente, a sua sociedade civil. No

caso afegão, a presença de uma organização criminosa acaba por

comprometer a singularidade da falência e a dos seus impactos,

pois o efeito de um contamina o do outro. Na medida em que a

própria falência é um desafio para o Estado, pois é um

fenômeno a ser enfrentado, a organização criminosa age pelo

seus próprios meios e é capaz de enfrentar o Estado.

Configura-se, assim, o objeto de estudo do presente

trabalho: estudar o caso afegão, no que diz respeito à atuação

do Talibã, enquanto organização criminosa, e os seus

respectivos impactos políticos no Afeganistão. A questão que

se procura responder é de que forma tais impactos são

negativos, ou seja, quão danosa é a sua presença e atuação

para a nação afegã. Apesar de o país apresentar uma história

já crítica antes do surgimento do Talibã, toma-se como um

turning point o início das atividades da organização para a

história afegã.

Deste modo, a divisão do presente estudo foi feita da

seguinte forma: no primeiro capítulo, busca-se explorar o

conceito de Estado falido, de modo a entendê-lo dentro do

contexto afegão, a fim de identificar as lacunas de autoridade

do Estado afegão. No capítulo seguinte, faz-se a

identificação do Talibã como uma organização criminosa e,

neste sentido, pretende-se explanar, com dados, a atuação do

mesmo, para que se possa deixar claro os meios pelos quais o

Talibã se manifesta. E, por fim, no terceiro capítulo, faz-se

uma análise do impacto da presença e atuação do Talibã em três

segmentos específicos da nação afegã, quais sejam: I) Islã,

II) Educação e III) Política externa. As devidas conclusões do

artigo serão feitas a partir do resultado de tais impactos, ao

passo que o Talibã figura como ponto central da análise do

tema.

1. O Afeganistão enquanto Estado falido

Tomar uma certa situação como dada e condená-la à

imutabilidade de longo prazo inibe a autenticidade histórica

de uma questão. Um Estado não é falido por si só, tampouco o é

somente por causa de outras razões e, neste sentido, há uma

certa carência de razão na falência, por essa última,

justamente impedir o Estado de ser racional e de se fazer

valer enquanto instituição política. Transpor tal ideia para o

contexto do Estado falido afegão é tarefa relativamente

difícil, mas crível.

O embate entre realidade e teoria é central para se entender

os fatores que geram tal fenômeno e o seu impacto necessário,

ou seja, a falta de legitimidade ante a sociedade civil. De

acordo com a ideia de William Zartman (1995, p.2), o propósito

não é apenas aprender sobre o Afeganistão, mas com o

Afeganistão2.

Parte-se da premissa de que há uma carência de

responsabilidade para prover bens públicos conjugada com a

falta de legitimidade do Estado. Como sugere Gomes (2008,

p.13), é necessário compreender em relação à quem e em relação

a que o Estado fracassou e, neste sentido, é igualmente

preciso identificar quais funções o Estado afegão não executa.

Apesar de o Estado moderno não ser universal, conforme pondera

Fukuyama (2005, p.16), tal modelo será usado para fins de

22 Modificação da frase original, qual seja “ O nosso propósito aqui, não éapenas aprender sobre a África –um exercício de interesse atual para umpúblico pequeno- mas com a África - um projeto de importância muitomaior.”

comparação para que se possa entender a funcionalidade

desfavorável do Estado afegão.

As funções do Estado moderno podem ser vistas como uma

espécie de cartilha do Estado, para gerir seu território, de

se fazer valer no mesmo e de ser legítimo para o seu povo. É

feita uma proposta bastante pertinente por Ghani, Lockhart e

Carnahan (2005, p.6), sobre as dez funções centrais que o

Estado deve desempenhar no mundo moderno, quais sejam: (1)

Monopólio legítimo dos meios de violência; (2) Controle

administrativo, (3) Administração das Finanças Públicas; (4)

Investimento em capital humano; (5) Delimitação dos direitos e

deveres dos cidadãos; (6) Provisão de infra-estrutura; (7)

Formação do mercado interno; (8) Administração dos recursos do

Estado- relativos à meio ambiente, recursos naturais e

culturais; (9) Relações Internacionais; E (10) Estabelecimento

do Estado de Direito.

Segundo os autores, a falta de desempenho de parte das

funções estatais caracteriza um Estado como falido. É

interessante observar que os Estados que não considerados como

falidos, também apresentam certos déficits no desempenho de

algumas destas funções, porém, ter capacidade de fazer e fazê-

las de uma forma mal feita, ineficaz, é uma condição, e não

ter capacidade, por falta de consolidação e prática

institucional, por problemas de cunho político, social, e

criminoso no caso afegão, de grave amplitude é outra condição,

é necessário distinguir uma da outra.

Por mais longe que o Afeganistão pareça estar de

desempenhar tais funções, é necessário confrontá-lo com sua

própria condição de falência, e confrontá-lo com o progresso,

conforme Martin Ewans (2008, p.2, tradução nossa), ao afirmar

que "um índice global de “bem-estar nacional” mostrou o

Afeganistão no final da lista(...). É necessário enfatizar

esta terrível situação, pois é justo que devemos medir o

progresso contra a mesma”. Portanto, a ideia de realidade versus

teoria se aplica nesse contexto também como uma forma de

choque de realidade, a fim de deixar a falência em evidência.

Pelo viés das relações internacionais, Kenneth Waltz

(1978, p.117) explica que o Estado se insere no sistema

internacional de acordo com suas capacidades relativas, ou

seja, essas determinam o comportamento do Estado. São tais

capacidades que definem, como o Estado cumprirá os

compromissos e funções, considerados comuns à todos os

Estados. Pela perspectiva do Estado falido, as suas

capacidades são débeis, no sentido de restringir o Estado

tanto no plano interno, enquanto governo e liderança, como no

sistema internacional, enquanto Estado ativo em seus

compromissos.

Zartman, em seu artigo na coletânea Estados falidos:

Desintegração e Restauração da autoridade legítima, explica o porquê dos

Estados entrarem em colapso. O autor explica que tais Estados:

Não conseguem mais realizar as funções que oscaracterizam enquanto Estados. O Estado é umainstituição de autoridade política soberana sobdeterminado território. Tal definição salienta três

funções: o Estado como autoridade soberana- a fontereconhecida da identidade, a arena da política; o Estadocomo instituição -assim, uma organização tangível detomadas de decisão e um símbolo intangível deidentidade; e o Estado enquanto garantidor da segurançapara sua população (1995,p.5, tradução nossa)

O pensamento do autor segue o viés de que a falência

ocorre quando o Estado perde legitimidade sob seu território,

sob seu povo, e sob o próprio aparato institucional. Este

triplo descrédito do Estado atinge principalmente a sua

população, pois esta, na perspectiva adotada neste artigo, é a

vítima necessária da falência, a parte do problema que mais

sofre os impactos desta última.

Para melhor abordagem do tema, é central entender que ao

mesmo tempo que a capacidade institucional é falha, esta está

conectada com a falência social, conforme pondera Zartman

(1995, p.6), visto que a sociedade como geradora de coesão e

apoio, não consegue mais criar, articular o amparo e as

demandas que são as bases do Estado. Esse é um ponto central

para entender a falência do Estado afegão, pois se percebe a

existência de uma relação permanente de desconfiança da

sociedade civil para com o Estado.

Neste sentido, uma das principais falhas do Estado

afegão, quanto à legitimidade, parece estar ligada à projeção

parcial de poder sob o território3. A presença e controle do33 Ver detalhes no mapa do relatório “Transição do Afeganistão: perigos deum rebaixamento no verão” do International Council on Security andDevelopment (2011, p.8).4 De acordo com a descrição no próprio relatório da ICOS (2011, p.5),a instituição é um think tank de política internacional que trabalhacom pesquisas relacionadas à inovação política nas áreas de

Talibã sob determinadas áreas do país enfrentam o Estado, de

modo que suas manifestações, as armadas e explosivas, não

conseguem ser impedidas pelo Exército do Afeganistão, ao passo

que o Estado afegão não parece deter o monopólio legítimo da

violência, e prover segurança aos civis. Visto que, conforme o

relatório do The International Council on Security and Development (2011,

p.17), o ICOS 4, intitulado “Transição do Afeganistão: perigos de um

rebaixamento no verão”, em fevereiro de 2011, 54% dos civis

entrevistados não consideram a polícia afegã efetiva, e 61%

acredita que as Forças Armadas do Afeganistão não são capazes

de prover segurança, nas áreas que as tropas estrangeiras

estão se retirando.

Ainda, Ewans (2008, p.3) coloca que tais forças de

segurança são um alvo particular de ataques do Talibã,

portanto, tais dados levam a crer que o nível não satisfatório

de eficácia da polícia afegã e, o fato de o Talibã ser uma

força presente, com potencial para confrontar àquela, resultam

na dificuldade do Estado afegão para manter o monopólio

legítimo da violência. De acordo com Rotberg (2005, p.3), os

civis acabam por procurar nos senhores da guerra 5, e outros

segurança, desenvolvimento, combate ao narco-tráfico e questões desaúde pública. Em relação ao Afeganistão,o ICOS tem conduzido, desde2007, pesquisas em zonas de conflito, sendo o país em questão umadelas, e no período de 2005-2010, a instituição tem publicadoartigos acadêmicos, documentos e relatórios sobre a situação noAfeganistão a fim de alcançar resultados políticos mensuráveis ediretos.4

55 Conforme Giustozzi (2003, p.3) é um tipo de governante, pode-se dizer,cujas características básicas são a sua independência de qualquerautoridade superior e a sua capacidade militar, visto que conta com seu

atores não-estatais que expressam uma certa solidariedade com

clãs ou etnias e que ofereçam, de certa forma, segurança.

O autor afirma ainda que a violência, por si só, não

condiciona a falência, então, recorre-se à outro componente

deste fenômeno no caso afegão: a partilha de poder entre

Estado e organização criminosa, que acaba por fazer o povo

descrer em ambos, não sendo capaz de reconhecer um governo,

pode-se dizer, de qualificá-lo ou desqualificá-lo como

benéfico, conforme entrevista feita à algumas mulheres em

Cabul, por Harriet Logan (2002, p.13). Nesse sentido, toma-se

consciência de que a relação entre poder central e poder local

é conflitiva, por falta de confiança ou certo alinhamento

desse último poder, e pela imposição de poder daquele

primeiro, e que conforme pondera Poullada (1973 apud ALFONEH,

2007, p.40), consiste em um embate tradicional da política

afegã.

Pelo viés governamental, os processos contraditórios de

tomada de decisão, bem como decisões conflitantes, durante o

percurso histórico entre uma liderança e outra, conforme

pondera Ghani, Lockhart e Carnahan (2005, p.9) solapam a

legitimidade do governo, e continuam a contribuir para a perda

de confiança da sociedade civil ante o governo. Neste sentido,

Gomes (2008, p.26) sugere que as más lideranças que

administram os governos também podem ser um fator potencial

“exército particular”, que é a base do seu poder.

para a falência, ou seja, percebe-se um problema de governança

interna. Ambas as ideias conjugadas mostram que a questão da

boa governança é crítica por si só, no que diz respeito ao

Afeganistão alcançar estabilidade para o Estado atuar, porém,

a própria atuação do Estado é minada pela presença do Talibã,

cujo domínio parcial do território prejudica a presença e ação

do governo.

Neste sentido, Gomes (2008, p.17) afirma que o processo de

construção do Estado afegão é essencial para entender sob

quais bases o Estado surge e se desenvolve, bem como a sua

falência. As causas de tal fenômeno no Afeganistão estariam,

conforme o autor, longe de ser de ordem endógena, em função

das interferências, e quase dominação, externas. Entender tal

processo permite entender como más lideranças ganharam espaço

a crise e vácuo de poder.

Como por exemplo, explica Martin Ewans (2008, p.1), a

invasão soviética no Afeganistão em 1978, e a saída dos

soviéticos, que termina em 1989, podem ser considerados pontos

centrais na história afegã, pois tamanho foi o impacto de tais

acontecimentos para o Estado que foi invadido, literalmente.

De acordo com Nojumi (2002, p.58, tradução nossa) "todo o

Estado, entidades civis e militares, ficou sob o controle

direto dos Sovietes", e que depois foi deixado agir por conta

própria e cujos resultados resultaram na falta de coordenação

política dos Mujahideen6, no surgimento do Talibã, e a66 Segundo Nojumi (2002, p.84), Mujahideen foi um grupo de resistência aossoviéticos no Afeganistão e resultado da mobilização de massa, quereivindicava reformas e mudanças nas instituições políticas, cuja ideologia

posterior ascensão deste último ao poder.

Em concordância com a hipótese de Gomes, a falência

estatal no Afeganistão parece ser sim resultado de um processo

majoritariamente exógeno, mas que não inibe a importância de

fatores sociais singulares da sociedade afegã, tais como a

ideologia nacional, composta pelo Islã, nacionalismo e

modernização, conforme menciona Nojumi (2002, p.3), sendo a

diversidade étnica um fator deste último. Fatores que

influenciaram no processo de formação do Estado afegão e na

estrutura interna de poder que se consolidou no país, e que

acabaram por formar uma herança um tanto complexa, que tornou

a política um campo mais minado que o usual.

Neste sentido, o longo período que data a influência e

posterior invasão soviética (1978-1989), a guerra civil

declarada (1992-1996) e a tomada de poder pelo Talibã (1996-

2001) mostra que o Estado esteve sob comando de más

governanças, de cunho ideológico extremista, que são

consideradas prejudiciais para o processo de maturação

estatal. Visto que, conforme aponta Saikal (2005 apud GOMES,

2008, p.80), “(...)poder e política no Afeganistão sempre

foram personalizados, em vez de institucionalizados.”, ou

seja, a política afegã apresenta características peculiares, e

tal falta de institucionalização da política acabou por

era baseada no Islã, como o fundamento de seus pensamentos. Apesar de teremcontrolado cerca de 60% do território afegão, não foram capazes deimplementar a sua agenda política, econômica e social.

fomentar a falência.

Afirmar o Afeganistão como Estado falido é entender a sua

própria história e realidade, e, portanto, a exposição das

contribuições de diversos teóricos, bem como dos fatos

históricos, foram apresentadas a fim de compreender o choque

entre o conceito e a realidade, e da falência como integrante

do processo de formação do Estado afegão. Após prover os

esclarecimentos sobre o Afeganistão enquanto Estado falido,

pretende-se apresentar outro elemento, que se acredita ser uma

contribuição para a falência, definido como organização

criminosa.

2. O Talibã enquanto organização criminosa

O Talibã, enquanto organização criminosa, apresenta uma

trajetória curiosa e peculiar devido aos acontecimentos que

formaram a história do Afeganistão, e que também moldaram o

seu crescimento e atuação durante os últimos vinte anos. Para

que se possa entender o quadro sócio-político afegão, é

necessário entender melhor o próprio Talibã, a partir da sua

forma de atuação, de modo a conectar tais formas com os meios

de ação característicos de uma organização criminosa.

Lopes (1995 apud FERRO, 2009, p.20) discorre sobre a

suscetabilidade de determinadas sociedades e Estados para o

desenvolvimento do crime, que o acolhem mais facilmente, bem

como a estrutura que o sustenta, a organização criminosa. No

contexto afegão, o momento político no qual emerge o Talibã,

em meio a uma confusão e a crise de liderança nacional por

parte dos Mujahideen explica Nojumi (2002, p. 121), e no qual

ele se expande, através da sua tomada de poder em 1996, era de

uma falta de um partido centralizador, da falta de controle de

uma autoridade central.

Para introduzir o conceito de organização criminosa,

apesar da vasta literatura sobre a definição de tais formas de

organização, optou-se pela conjugação de duas definições. A

primeira referente à resolução E94R012, de 1994, do Conselho

Econômico e Social das Nações Unidas, a qual Ferro faz menção

e na qual está estabelecida o seguinte conceito de organização

criminosa:(...) além do elemento essencial de ter mais indivíduosorganizados em um grupo, inclui a meta de produção delucro, o uso da violência, intimidação e corrupção; oelo hierárquico ou relações pessoais que lhe tornampossível controlar estreitamente as atividades do grupo;o controle econômico de territórios inteiros, a lavagemde lucros ilícitos (...), o grande potencial de expansãopara além das fronteiras nacionais; e a tendência deorganizar operações internacionais juntamente com outrosgrupos de diferentes nacionalidades. (2009, p.389)

Tais características gerais definem uma organização

criminosa, pela ótica das organizações internacionais, de

acordo com Ferro (2009, p.388), que são complementadas pela

segunda, proposta por Franco, que organizou as características

gerais da seguinte forma:

1) caráter transnacional; 2) amplo poder pelo elevadograu de organização; 3) capacidade de provocar danos dealto vulto; 4) multiplicidades de condutas criminosas,atingindo ou não vítimas difusas; 5) emprego de modernas

tecnologias; 6) conexões com outros grupos criminosos;7) produção de atos violentos; 8) poder de corrupção; 9)capacidade de paralisar e fragilizar os poderes doEstado. (1994 apud ANDRADE, 2011, p.3)

Tal combinação de conceitos deve servir como ponto inicial

na avaliação que se pretende neste capítulo, citada

anteriormente. Ambos os conceitos delineam os aspectos

tradicionais das organizações criminosas, outras

complementações serão feitas para mostrar componentes

distintos do mesmo.

Como por exemplo, Andrade (2011, p.3) explica que “as

organizações criminosas assumem características peculiares,

(...)amoldadas às suas necessidades, condições e facilidades

encontradas no território(...)”, portanto, tal ideia acaba por

abranger o Talibã, pois parece claro que o conceito puro de

organização criminosa assume um caráter peculiar quando

conjugado com este, dado o fator ideológico do Talibã, que de

acordo com Ferro (2009, p.370), não costuma fazer parte da

definição de organização criminosa.

Duas observações importantes são feitas por autores

distintos sobre o presente conceito. A começar por Silva (2003

apud ANDRADE, 2011, p.8) que salienta que apesar de a

finalidade tradicional e principal de uma organização

criminosa ser o ilícito lucro econômico, as organizações cuja

conduta criminosa é de caráter terrorista são uma rara exceção

à tal regra, no sentido de que os fins ideológicos, políticos

e religiosos sobressaem-se sob os fins econômicos.

Neste aspecto, a segunda observação é de Peters (2009,

p.33) que explica que o vínculo do Talibã com o comércio de

ópio, e a obtenção ilícita de lucros relacionada à tal

atividade parece ter mudado a natureza da organização, de

caráter ideológico para um mais direcionado ao lucro. Então,

percebe-se que a expansão das atividades do Talibã ligadas às

atividades ilegais faz com que seja necessária uma releitura

da finalidade de tal organização.

Ainda, Peters (2009, p.10) analisa tal questão através de

entrevistas feitas pela própria autora com antigos oficiais

afegãos, paquistaneses e norte-americanos, que afirmaram que a

necessidade de fundos se tornou um objetivo real do Talibã.

Portanto, conclui Peters, a organização passou a contar com

tal forma de financiamento ilícito pelo contato com

contrabandistas, comerciantes, empregados de refinaria de

heroína, relacionados ao comércio de drogas, no período de

1996-2001.

Quanto às formas de atuação para arrecadação de fundos do

Talibã, Peters (2009, p.19) ainda ressalta, que como uma forma

de cobrar impostos dos civis e de contrabadistas, “ (...)

veículos como motocicletas, caminhonetes, telefones celulares,

armas, munição, gasolina, alimento, refúgio, e tratamento

médico para soldados feridos são aceitos como forma de

contribuição”. A tributação, então, como forma de controle do

território e de financiamento das atividades do Talibã, é um

meio de suporte para a sua legitimidade, bem como uma forma da

organização sub-rogar-se no lugar do Estado.

A extensão das atividades atuais da organização acabaram

atingindo outras formas de crime, ao passo que a conclusão de

Peters (2009, p.33, tradução nossa) mostra que “os insurgentes

têm diversificado suas atividades criminais, incluindo

sequestro com resgate remunerado, extorção, e, em algumas

áreas, tráfico humano”, e, portanto, tais fatos demonstram que

ao mesmo tempo que a organização alargou sua atuação criminal,

aumentou a complexidade da mesma.

Os meios de extorção são exemplificados por Peters, ao

relatar que os insurgentes têm extorquido, inclusive,

empresas, visto que:

(...) quando o diretor provincial de uma empresa detelefonia afegã se recusou a pagar os seus “impostos”mensais, na província de Zabul, os combatentes talibãsdanificaram três torres de distribuição de sinal,cortando o serviço na região por uma semana. (2009,p.19, tradução nossa) 7

O fator “multiplicidade de condutas criminosas, atingindo

ou não vítimas difusas” supracitado, fica em evidência neste

exemplo dado pela autora. Da mesma forma, fica claro que não

coolaborar com o Talibã também é uma forma de se relacionar

com a organização.

Pressupõe-se que deve existir uma forma de organizar os

montantes arrecadados. De fato, Peters (2009, p.19) explica o

Talibã procura organizar a sua contabilidade, pode-se dizer,

7 Oficial provincial de Zabul, entrevistado pelo assistente de pesquisa daautora, Cabul, agosto de 2007.

através do seguinte sistema: “coleta regional, através dos

subcomandantes de um distrito, que devem transmitir uma

porcentagem dos fundos arrecadados para o comandante

distrital, que por sua vez, transmite os lucros para uma

espécie de chefe regional, que os transmite para o Comitê

Financeiro Central do Talibã”. Ou seja, percebe-se um certo

nível de burocratização da organização, de um sistema

administrativo que funciona ao seus próprios meios.

Conforme aponta Peters (2009, p.24) tal sistema aparenta

ser de natureza ad hoc e informal, por não apresentar uma

estrutura consistente e explícita, devido ao próprio caráter

da organização. Embora se saiba que existe um certo corpo

organizacional, não se pode saber o nível exato de

organização, ou quão efetivo é o funcionamento desse sistema

enquanto base da organização criminosa em questão. Justamente,

o caráter informal das organizações criminosas, coloca

Monteiro (2012, p.71) é que confere à essas algumas

incertezas, sobre o seu conceito e estrutura. De qualquer

forma, tal informalidade não parece inibir a atuação do

Talibã, e tampouco a sua capacidade de se impôr e projetar

poder no território afegão.

Ainda, quanto às táticas, corrupta e intimidadora do

Talibã, o relatório do ICOS, de fevereiro de 2011, evidencia

exemplos diversos, tal como:

Combatentes talibãs tem garantido à polícia afegã e àunidades do exército instaladas em locais remotos queeles não serão atacados contanto que eles presteminformação sobre a presença de forças estrangeiras na

região e escolta para passagem quando preciso.(2011,p.16, tradução nossa)

A corrupção junto ao poder público deixa a situação mais

complexa, pois acaba por demonstrar que ainda há

possibilidades de o Talibã corromper os meios pelo qual o

Estado tenta prover segurança e de projetar o seu poder no

território. Conforme aponta o relatório ainda, esse tipo de

prática permite que o Talibã tenha vantagens para atuar sem

ter que arriscar a sua própria segurança.

A organização criminosa pode ser vista, então, como uma

fonte potencial de instabilidade, visto que sua atuação é

nociva tanto para a República Islâmica do Afeganistão, como

para sua sociedade civil. O Talibã nutre a rede de crimes,

impõe seus próprios meios de se fazer justiça na sociedade -

através da sua leitura dos fatos, baseada na interpretação

própria do Código do Islã - , bem como parece se impor, não

importa para qual fim, pela corrupção junto ao poder público,

pela intimidação aos civis ou colaboração com os mesmos em

atividades ilícitas. Desta forma, os impactos das ações e

presença do Talibã, enquanto organização criminosa, no

Afeganistão parecem criar uma relação de nexo causal para com

os problemas da nação e do Estado afegãos.

3.O impacto do Talibã na nação afegã

Apesar da amplitude de temas igualmente relevantes que

podem ser tratados, como segurança, o exemplo dos ataques

suicidas em lugares públicos, organização social,

discriminação de gênero, a fraca economia, optou-se por

priorizar a análise em três áreas específicas e estratégicas,

quais sejam: I) Islã; II) Educação; III) Política externa.

A escolha de tais áreas é considerada estratégica pois, em

primeiro lugar, para a análise que se pretende fazer, entende-

se os valores religiosos em um sentido político, ou seja, o

Islã como ideologia política interpretada pelo Talibã, e que

não necessariamente diz respeito à imagem do Islã, enquanto

religião e componente cultural, que o povo afegão tem. Leva-se

em conta, a importância de tal variável no código cultural

afegão, o qual influencia, inclusive, as normas estatais.

Em segundo lugar, no que diz respeito à educação, recorre-

se ao pensamento de Antonio Giustozzi e Claudio Franco (2011,

p.3, tradução nossa), para definir a relevância de tal

serviço, pois no Afeganistão, “(...)o controle sob a educação

é um aspecto crucial em qualquer competição para a influência

política.”. A educação, então, como área de disputa entre o

governo e o Talibã é essencial para entender os impactos que

serão analisados. E, por fim, a política externa como um

instrumento do Estado para mostrar a sua própria diretriz

política nas Relações Internacionais, a fim de esclarecer o

legado do Talibã na política externa afegã, quanto à imagem do

Afeganistão na comunidade internacional.

3.1 Islã

Joshua White (2012, p.3) fala sobre como é recomendável

entender a matriz teórica e base ideológica do Talibã, chamada

Deobandi8, pois permite aclarar o entendimento sobre como a

fonte de autoridade é tendenciosamente persuasiva, quais

valores o Talibã é propenso a promover na esfera pública, bem

como, qual argumentação teológica a organização é suscetível a

adotar. O autor explica que tal matriz teórica está ligada às

instituições de ensino madrassas9, e que prevê uma leitura

tradicional da Lei Islâmica (Shari’ah), que moldou o pensamento

do Talibã, quanto ao modo de organização e de visão de

reformas sócio-políticas.

O modo pelo qual o Talibã enxerga a realidade é composto,

conforme as explicações de White (2012, p.3), pelos

conhecimentos religiosos interpretados na matriz Deobandi,

juntamente com normas tribais dos Pashtun10, que formam uma

espécie de ética islâmica, que pode ser vista como o sentido

8 Segundo White (2012, p.3), “Deobandismo é um movimento reformista doséculo XIX, que tem sua origem no que é hoje o estado de Uttar Pradesh, nonorte da Índia. Em grande parte por meio de sua propagação de instituiçõesreligiosas, as madrassas, tornou-se uma escola de pensamento difundido portodo o norte da Índia, Paquistão e Afeganistão. O movimento Deobandi optoupor enfatizar a educação islâmica clássica e promover as escolas religiosascomo um meio de reformar a sociedade.”9 Conforme Nojumi (2002, p.121) madrassas são instituições religiosas deensino, que abrangem diferentes matrizes teóricas de interpretação da Leiislâmica, e o local onde a maior parte dos comandantes do Talibã foramgraduados, no Paquistão.10 De acordo com Nojumi (2002, p.28), Pashtun é o maior grupo étnico doAfeganistão.

das ações da organização. O autor explica que este caráter

mais Pashtun é composto por menos aprendizado, mais rigidez, de

forma mais propensa a adotar a violência política. Portanto,

essa releitura parece trazer aspectos negativos, bem como

receios sobre como a rigidez dos valores, por exemplo, é

praticada em relação à sociedade.

Não se trata de acusar os valores religiosos, mas sim de

sobre como esses enquanto ideologia são utilizados e

manipulados pelo Talibã, ou ainda, como são vistos pela

população. E, neste sentido, Stig Hansen (2012, p.2) pondera

que “pobreza e falta de instituições estatais podem explicar

um fenômeno interessante, qual seja, a proeminência da

religião, que pode variar de estágio para estágio em um

conflito”. No caso afegão, a proeminência da religião não

parece ser apenas uma forma de refúgio porque a situação

interna ou o Talibã fazem com que aquela se faça importante. A

importância da religião no Afeganistão tem raízes mais

profundas, visto que, de acordo com Nojumi: A fé islâmica, com suas características únicas, temsido um elemento importante da identidade social ecultural para o povo do Afeganistão. (...) O Islãcompletou culturalmente a necessidade de unificação dasnumerosas populações étnico-tribais do Afeganistão.(2002, p.3-5, tradução nossa)

O modo pelo qual o Talibã interpreta o Islã é o ponto

crítico da questão religiosa. Visto que conforme explica

Stéphane Lacroix (2012, p.1, tradução nossa), “o Islã é um

corpus complexo de crença e prática aberta à múltiplas

interpretações, a partir do qual os diferentes tipos de

atitudes políticas podem ser legitimadas(...)”. A religião se

tornou uma ferramenta política, de legitimação de ações e

justificativa de condutas, para o bem e para o mal, ou apenas

para o mal, conforme os fatos apresentados.

Outro exemplo interessante é dado pelo relatório da ICOS11

(2011, p.14), que revela que apenas 8% dos civis entrevistados

aprovam a justiça do Talibã, em termos de utilização dos

valores da organização para a resolução e julmento de

litígios, o que deixa claro o baixo nível de popularidade

quanto aos valores da mesma 12. O Islã tem suas raízes no

Afeganistão muito antes de o Talibã o utilizar como ideologia

política, e o fato de o mesmo ser um componente da ideologia

nacional, como já foi exposto, deixa claro a sua importância

para o povo afegão.

Recorre-se, ainda, à Nojumi (2002, p.226, tradução nossa)

para esclarecer o impacto do Talibã em relação ao Islã, que

afirma que “o regime do Talibã foi uma fonte de choque

cultural para a tradição afegã e os valores islâmicos, bem

como uma força destrutiva ameaçando afegãos e não afegãos”.

Fica claro, então, que há uma divergência entre os valores

islâmicos defendidos pelo Talibã e aqueles que grande parte da

população acredita, ao mesmo tempo que, a imagem do islamismo

no mundo acabou sendo distorcida pela visão apresentada pelo

11 Referente ao relatório “A morte de Bin Laden e a dinâmica local”.

¹²Ainda, de acordo com o relatório, as pesquisas indicam que há umapreferência de se resolver qualquer litígio em cortes ançiãs tribais com43%, e por cortes governamentais 45%.12

Talibã, demonstrando o seu impacto negativo na condução e

prática religiosa da sociedade afegã.

3.2 Educação

Conforme o relatório do The Asia Foundation13 (2011, p.3),

14% dos civis entrevistados acreditam que a educação é um dos

grandes problemas do Afeganistão, no que diz respeito aos

serviços prestados pelo Estado, ao mesmo tempo que há um

índice de aprovação de 85%, quanto às reformas no setor que

estão sendo feitas pelo goveno afegão. Nota-se que a melhora

na educação é um objetivo do governo, e um anseio da

população, mas, inevitavelmente, as reformas ainda enfrentam

alguns obstáculos.

Há uma série de fatores a se levar em conta quando se fala

do período em que o Talibã esteve no poder , especialmente, no

que diz respeito ao seu modo de condução dos assuntos

públicos. Em sua maioria, são vistos de forma bastante

negativa, conforme analisam Giustozzi e Franco:

No período de 1992-2001, a educação provida pelo Estadoainda era controversa, e dessa vez principalmente porcausa de sua ausência. Escolas mal funcionavam naquelesanos, e os novos regimes islâmicos (os Mujahideen e oTalibã) brincaram com a ideia de ‘islamizar’ a educaçãoproveniente do Estado, aumentando drasticamente aquantidade de assuntos religiosos no currículo, mas

13 De acordo com a descrição presente no relatório do The Asia Foundation (2011,p.3), a instituição é uma organização não-governamental, sem finslucrativos, com 18 escritórios na Ásia, com, aproximadamente 60 anos deexperiência na Ásia, coolabora com parceiros do setor público e privadopara apoiar o desenvolvimento institucional, pesquisas políticas paratornar melhor problemas relacionados à governança, sociedade civil,reformas econômicas, desenvolvimento e relações internacionais.

conseguiram realizar poucos esforços em nível defuncionamento do sistema, devido à falta de recursos.(2011, p.1, tradução nossa)

Ainda, após a sua saída do poder, e como forma de ataque

ao novo regime, de acordo com Giustozzi e Franco (2011, p.1),

o Talibã passou a atacar escolas como principal alvo de

manifestação, o que significa que dezenas de professores e

alunos foram mortos, e que o funcionamento de milhares de

escolas foram afetadas.

Existe uma disputa de poder para influenciar a educação

por parte do Talibã, pois de acordo com a opinião do analista

afegão Wahid Muzhda, dada à uma entrevista na Radio Liberty em

2006, a qual Giustozzi e Franco (2011, p.6) fazem menção, a

luta da organização é contra a influência do Estado na

educação. Ao passo que, comandantes talibãs também crêem que

as escolas acabam por ser bases de apoio do Estado, o que

poderia prejudicar os interesses da organização14.

Apesar do que o Ministro da Educação, Faruq Wardak,

declarou em janeiro de 2011 no Fórum Mundial de Educação, de

acordo com Giustozzi e Franco (2011, p.11), que o Talibã não

estaria mais se opondo è educação para as meninas, os ataques

ainda ocorrem por diferentes meios, para além da hostilização

moral, por assim dizer. Como o caso do envenenamento devido à

um pó tóxico, à 120 estudantes, todas meninas, e de 3

professoras na província de Takhar, conforme reportagem de 23

14 Para uma compreensão mais abrangente sobre a oposição do Talibã àsescolas do Estado, ver Giustozzi e Franco (2011, p.7)

de maio de 2012, o que causou a morte das mesmas15. Ainda, em

abril, o envenenamento de água afetou 150 alunas, na mesma

província. É exatamente esse tipo de exemplo que deixa em

evidência a inconstância das ações do Talibã e levam à

descrença das negociações da organização com o governo afegão.

As negociações entre o Ministério da Educação e o Talibã

têm levado a alguns acordos e concessões às demandas 16 desse

último, pondera Giustozzi e Franco (2011, p.9), para garantir

o funcionamento das escolas e diminuir a onde de violência.

Entre negociações e novos ataques, concessões e posturas

controversas, o Talibã reivindica e afirma seu poder.

Portanto, a educação figura como uma área chave para a

influência política, como foi visto, e é uma via de embate e

negociação, que parece deixar o governo afegão à mercê da

organização em questão, dada a sobreposição de posturas do

Talibã.

3.3 Política Externa

15 Talibãs envenenam 120 alunas no Afeganistão. Euronews, Portugal, 25 maio2012. Mundo.Disponível em: <www.pt.euronews.com/2012/05/23/talibas-envenenam-120-alunas-no-afeganistao/> Acesso em: 19 nov. 2012.16 Conforme Giustozzi e Franco (2011, p.9), as demandas diziam respeito àprofessores que o Talibã não aprovava, supostamente, e que por tal razão,foram contratados mulás coonservadores (sacerdotes muçulmanos), parasupervisionar as escolas, em nome do Talibã. As informações foramconcedidas em uma entrevista com Ataullah Wahidyar, Chefe de Gabinete,Ministério da Educação, Cabul, 6 de Outubro de 2009.

Pensar a conexão do Talibã, com a política externa afegã

nos leva, inevitavelmente, ao atentado terrorista aos Estados

Unidos de 11 de setembro de 2001, pela sua relação com a Al-

Qaeda de Osama Bin Laden, bem como pela má reputação que se

construiu do Afeganistão no período entre 1996 e 2001.

Neste sentido, a política externa afegã pós 11 de setembro

parece ter herdado do período anterior um dever, que constitui

uma das áreas que o Ministério das Relações Exteriores do

Afeganistão tem-se dedicado, qual seja enfrentar o terrorismo,

no sentido de se defender de algo que está contra o Estado,

pois, de acordo com o próprio Ministério, “é errado e contra

producente associar terrorismo com uma única comunidade e

fé”17.

O esclarecimento que o Ministério faz é essencial para

mudar uma imagem que ficou marcada de uma forma tão sólida. Ou

seja, a imagem construída pelo regime do Talibã, de um

Afeganistão inclinado a colaborar com grupos terroristas, como

a Al- Qaeda, e cuja ideologia política extremista criou uma

visão única do islamismo no mundo, associada ao terrorismo.

Conforme visto, não se pode crer que as ações e posturas do

Talibã sejam um reflexo da crença do povo afegão no Islã, ou

que tal postura constitua uma política de Estado.

A fim de esclarecer a conexão da Al-Qaeda, de Osama Bin

Laden em específico, com o regime do Talibã, Nojumi (2002,17 Ministério das Relações Exteriores da República Islâmica do Afeganistão.Política externa afegã: Áreas da Diplomacia. Disponível em:<www.mfa.gov.af/en/page/3873.> Acesso em: 2 nov. 2012.

p.227, tradução nossa) afirma que “a conexão familiar de Bin

Laden com o líder supremo do Talibã e suas doações generosas

para tal liderança, propiciou àquele poder para influenciar

áreas importantes das políticas doméstica e exterior do

Talibã”. Desta forma, fica claro que existia uma forte

vinculação do regime do Talibã, aos olhos da comunidade

internacional, enquanto governo a grupos terroristas e que

parecia não deixar claro o limite de atuação do Talibã. Isto

é, até que ponto se podia acusar tal organização de

terrorista, pelo modo como a Al-Qaeda parecia usá-la como

escudo ou como um meio para as suas atividades.

Como resultado das relações exteriores, e por que não

internas também, do Talibã com a Al-Qaeda, tem-se a criação da

Operação “Liberdade Duradoura”, encabeçada pelos Estados Unidos e

Reino Unido, que representou a invasão no Afeganistão 18. O

legado de 11 setembro para a sociedade civil afegã parece ter

sido a continuação de uma guerra interna, com intervenção

externa, cuja repercurssão permanece controversa.

Ainda, o relatório do Secretário Geral da Organização das

Nações Unidas para o Conselho de Segurança, intitulado "A situação

no Afeganistão e suas Implicações para a Paz e Segurança Internacionais” (2001,

p.9, tradução nossa), revela a influência de Bin Laden pela18 De acordo com o trabalho de pesquisa da biblioteca do “House of Commons”(2001, p.9), fornece análise, pesquisa e serviços de informação para osdeputados e seus funcionários, “Em 7 de Outubro de 2001, os EUA e o ReinoUnido informaram o Conselho de Segurança, das Organização das NaçõesUnidas, que tinham começado a usar a força militar em legítima defesa. Estefoi em conformidade com o artigo 51 da Carta da ONU, que reconhece "odireito inerente de individual ou coletivo de legítima defesa" e exige queos Estados denunciem tais ações imediatamente”.

seguinte perspectiva, “o crescente papel de Bin Laden no

processo de tomada de decisão dentro da liderança do Talibã

foi danoso para o papel de alguns líderes talibãs, que eram

considerados mais pragmáticos e moderados”. Talvez os próprios

talibãs não tivessem ideia plena sobre os “contras”, apenas

sobre os “prós”, desta relação com a Al-Qaeda.

Portanto, os efeitos do Talibã na política externa ficam

claros quando da atuação da organização enquanto governo, e

nos efeitos causados por tal atuação, visto que o terrorismo

segue como uma preocupação central do Ministério das Relações

Exteriores, no sentido de buscar um entendimento com o Talibã,

na medida do possível, e demonstrar tal esforço para a

comunidade internacional.

Considerações finais

Após o exposto no presente artigo, entende-se que um

motivo potencial do por que o Estado afegão tem dificuldades

para agir é devido a atuação criminosa do Talibã, pois esta

acaba por pressionar também o Estado. Desta forma, a disputa

de poder, da organização em relação ao Estado afegão, adquire

um aspecto violento e intimidador, apesar de ambos negociarem

em determinados assuntos.

Notou-se que as ações da organização causaram impactos

profundos no Afeganistão quanto ao desenvolvimento da nação,

pois contribuiu para a permanência de um ambiente hostil e

violento, pois a postura rígida do Talibã o conecta à

sociedade por meios coercitivos, intimidadores e pouco

receptivos.

A arrecadação de tributos por parte do Talibã empodera a

organização, pois esta exerce uma função que compete ao Estado

exclusivamente, e a quebra dessa regra é como uma oposição

desleal ao Estado, só que na verdade, é muito mais criminosa

do que desleal. O Talibã age com seus próprios meios e

ideologia, cujo caráter extremista tem condenado a nação afegã

à ataques civis e extorsões, por via ilícitas e violentas.

Neste sentido, o que se percebe é que a própria ideologia do

Talibã não se encaixa na ideologia nacional do Afeganistão,

principalmente no que diz respeito à crença no Islã, visto que

apesar de ser um ponto presente em ambas as ideologias, a

versão do Talibã mostra-se radical e distorcida, prejudicando

a imagem da religião e do próprio Estado, enquanto instituição

vinculada a ela.

Conclui-se que a presença do Talibã é um dos maiores

problemas enfrentados pelo Estado afegão e sua sociedade

civil. Dessa forma, entende-se que a organização priva o

Estado afegão de se fazer mais presente na sociedade e no

próprio território, vendo suas instituições desvirtuadas em

prol de objetivos parciais e não representativos, já que a

sociedade não parece concordar com a ideologia veiculada por

este pequeno grupo, ainda que bastante poderoso.

Por fim, entende-se que o Afeganistão sofreu prejuízos em

termos de desenvolvimento social, econômico e político, que

foram acentuados devido ao regime do Talibã - pois a sua

postura rígida o conecta à sociedade por meios coercitivos,

intimidadores e pouco receptivos- , e que permanecem devido a

sua presença. Visto que, as políticas públicas de tal regime

já tiveram efeitos negativos por si só – bem como as suas

ações após o regime que têm prejudicado o Estado e a

sociedade–, e ainda, a sua política de Estado – a ligação com

a Al-Qaeda – também acabou ocasionando tais efeitos para o

Estado e o povo afegão.

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