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A finitude existe? Análise fenomenológica do filme: “Se eu ficar”
A Finitude Existe?
Análise fenomenológica do filme: “Se eu ficar”
Notas da Autora
Sandra Ramos (n.º 24122) é discente do 4.º ano do Mestrado Integrado em
Psicologia Clínica (Turma 3) no ISPA – Instituto Universitário, em Lisboa, ano letivo de
2015-2016.
Este trabalho faz parte da Unidade Curricular com o nome Psicologia
Fenomenológica ministrada pelo Professor Doutor Daniel Cunha Monteiro de Sousa.
A correspondência para o autor deste trabalho pode ser remetida para
[email protected] ou para o ISPA – Instituto Universitário situado na Rua Jardim do
Tabaco, n.º 34, 1149-041 Lisboa, Portugal.
A finitude existe? Análise fenomenológica do filme: “Se eu ficar” 2
Resumo
É certa a finitude do corpo. Mas e quanto à finitude da consciência? Como suporte para
várias reflexões e para procurar responder a esta questão foi analisado o filme “Se eu ficar”
(IMDb, 2015). É explorada a consciência da finitude, os dilemas de um estado de coma, as
angústias inerentes a uma decisão de «ir ou ficar», a luz atrativa relacionada com as
intencionalidades das experiências de quase-morte, a importância do «deixar ir» e salientam-
se estudos que poderão mudar o sentido da experiência humana sobre a vida e sobre a vida da
consciência depois da finitude corpórea.
Palavras-chave: finitude, morte, experiência de quase-morte, estado de coma
Abstract
The finitude of the body is certain. But what about the finitude of consciousness? As a
support for several reflections and to try to answer this question, the movie "If I stay" (IMDb,
2015) was analyzed. The awareness of finitude, the dilemmas of a coma, the anguish inherent
in a decision of 'go or stay’, the attractive light related to the intentionalities of a near-death
experience and the importance of ‘letting go’ are explored. Studies that may change the
meaning of human experience about life and about the life of consciousness after bodily
finitude is also emphasized.
Keywords: finitude, death, near death experience, coma
A finitude existe? Análise fenomenológica do filme: “Se eu ficar” 3
Introdução
Desde os primórdios da humanidade, que a morte terá sido um dos temas de
conversa e, provavelmente, de reflexão. É fácil de imaginar quando os nossos antepassados
mais remotos se foram deparando com a morte natural pela primeira vez: “o que aconteceu?
Já não se mexe. Não comunica. Terá adormecido?” E como as questões requerem respostas e
suscitam hipóteses, tem-se teorizado sobre a finitude do corpo desde que o homem é homem.
Porém a morte continua a ser um mistério que muitos querem descobrir, não fosse ela uma
parte integrante da vida e não há como escapar-lhe, o que lembra uma expressão muito usada:
“para morrer basta estar vivo”. Mas é assim mesmo? O corpo físico cessa as suas funções e
com essa finitude acaba mesmo tudo?
Revisão de Literatura
Ao longo da história da humanidade têm existido diversas representações coletivas
sobre a morte. Por exemplo, na filosofia do Budismo Tibetano (que já existe desde o século
VI a.C.) acredita-se que a alma é eterna e que depois de deixar um corpo ela irá reencarnar
noutro; e assim sucessivamente. É interessante que Tenzin Gyatso, mais conhecido por Sua
Santidade o 14.º Daila-Lama, quando ainda era muito jovem conseguia compreender, sem
dificuldade, os ensinamentos budistas mais complexos, o que normalmente requer muitos
anos de estudo (Rinpoche, 1992). O que não é insólito. “É vulgar que as crianças que são
reencarnações se recordem de objetos e de pessoas das suas vidas anteriores e algumas até
conseguem recitar as escrituras apesar de ainda não lhes terem sido ensinadas” (Dalai-Lama,
1964, p. 24). Esta crença contrasta com a do filósofo grego Epicuro (341-270 a.C.) que
ensinava que a alma é mortal e que desaparecia com o corpo, contrariando o que advogava
Sócrates (469-399 a.C.), cerca de 100 anos antes, que se consolou com a eternidade da alma,
pois, após a sua execução, encontrar-se-ia com os seus familiares a amigos (Yalom, 2008). Já
na idade média (entre os séculos V e XV) faziam-se rituais públicos de despedida onde era
permitido às pessoas despedirem-se de um doente antes do seu falecimento. A morte era vista
como um evento natural e o corpo era tratado com dignidade e com humanidade. Mas a partir
do século XX a morte deixou de ser vista como um fenómeno natural, passando a ser
perspetivada como um fracasso, como uma dinâmica de impotência, um acontecimento
vergonhoso, evitado a todo o custo para dar a impressão de que nada mudou. Os rituais de
despedida perderam-se, já que muitas vezes as pessoas morrem nos hospitais rodeados de
técnicos e de novas tecnologias, em vez de falecerem em casa rodeados da família. Acresce
A finitude existe? Análise fenomenológica do filme: “Se eu ficar” 4
que os sistemas de saúde raramente admitem a finitude dos pacientes, não considerando
momentos para despedidas, tão-pouco a preparação do paciente para a sua finitude física.
Assim que ocorre o falecimento, os técnicos dão rapidamente sequência aos procedimentos
para se verem livres do corpo, que muitas vezes é tratado sem humanidade, sendo mesmo
designado por pacote (Santos & Hormanez, 2013). De facto refletir sobre a nossa finitude
elicita uma certa angústia. Tudo o que se vai construindo, a qualquer momento, pode ser
perdido, sonhos podem ficar por realizar, palavras podem ficar por dizer, assim: de um
segundo para outro. Portanto parece ser importante perceber que a morte e a vida são
interdependentes, existem em simultâneo, já que a morte não é só um momento, pois
começamos a morrer em cada minuto que vivemos; e assim, desde o primeiro minuto de vida,
vamos caminhando para a morte. Ela é iminente e influencia a experiência e a conduta das
pessoas. É também uma fonte de angústia, que é distinguida das outras por angústia de morte
e pode mesmo ser a causa de algumas psicopatologias (Yalom, 1980).
E com a existência de cada vez mais seres humanos, mais técnicos e mais (e
melhores) tecnologias, tem-se aferido, com milhares de pessoas em todo o mundo, uma
multiplicidade de descrições de experiências extracorpóreas e de um possível outro lado da
vida. Podemos ser levados a pensar que as pessoas estão a criar consonâncias cognitivas para
conseguirem lidar melhor com as suas angústias de morte, o que faz sentido, numa perspetiva
ôntica, pois encontrar significados para essas angústias pode ser uma estratégia para as
acalmar e voltar a um funcionamento normal. Porém recentemente a ciência tem encontrado
evidências de uma possível vida que continua, mas é necessária alguma prudência. Como
Heidegger (1889-1976) referia: “não se pode decidir onticamente se, depois da morte um
outro modo de ser, seja superior ou inferior, é ainda possível, se a pre-sença continua a viver,
ou ainda, se ela é imortal, sobrevivendo a si mesma” (1986, p. 29). Então, a finitude existe
conforme defendia Epicuro ou não existe conforme advogava Sócrates? Poderão ter ambos
razão? Poderiam ter tido dois pontos de vistas que não são necessariamente exclusivos?
Análise Fenomenológica
Para tentar responder a estas questões, irei analisar, do ponto de vista da psicologia
fenomenológica, o filme “Se Eu Ficar” (IMDb, 2015), que retrata o drama de uma jovem
(Mia) que é a única sobrevivente de um acidente de viação sofrido com a sua família. Mia
fica em coma e a sua consciência fica fora do corpo; ela tenta comunicar com as pessoas à
sua volta mas não consegue. Para os médicos e para os familiares ela está inconsciente, está
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ligada a máquinas que a mantêm viva, mas na realidade ela está bem consciente (Novi,
Greenspan & Cutler, 2014). Mia sabe o que se está a passar com ela e vai ter de escolher: ou
fica no mundo como “ser-no-mundo” (Heidegger, 1986) e enfrenta o facto de ter ficado órfã e
sem o irmão mais novo (acolhendo uma nova vida, com novas vivências intencionais) ou
escolhe perder a oportunidade de voltar e embarca no desconhecido que é a morte. E como
nos relatos de experiências de quase-morte surge uma luz que a convida a passar para um
outro lado, desconhecido, que contrasta com este lado, que embora seja duro, é conhecido, é
familiar, é onde está o amor e onde está a música. Como escolher? Como viver depois desta
angústia de morte tão intensa? Qual será o mais atrativo? O conhecido ou o desconhecido? A
vida ou a morte?
É certo que o corpo acaba com a morte, mas haverá uma infinitude da consciência
ou não? Para explorar esta problemática existencial escolhi sete cenas do filme relacionadas
com os momentos em que Mia está em coma e a sua consciência está fora do seu corpo.
Cena 1 – A Consciência da Infinitude
Mia acorda deitada na neve, levanta-se, tenta comunicar mas percebe que ninguém a
vê, está invisível para os “seres-no-mundo”, ninguém fala com ela nem lhe explica o que
aconteceu, de repente olha para o seu corpo físico, a sua consciência vê de fora, fica chocada,
desesperada, quer acordar, voltar ao corpo mas não sabe como; ouve os paramédicos a dizer
que ela está em coma, entra na ambulância e vai atrás do seu corpo (00:12:56 até 00:14:40).
Neste momento em que há uma separação do ser, do seu corpo, continuaremos ainda
a falar do “ser-no-mundo” (Heidegger, 1986), uma vez que há consciência da Mia sobre a
vida e o que está a acontecer, o coração dela ainda está a bater, mas estaremos a falar do ser
que é mais do que uma coisa material (idem, ibidem). Ou seja, Mia ainda está viva, a viver
uma experiência extracorpórea e as possibilidades continuam em aberto:
“Enquanto ela é e até ao seu fim, a pre-sença relaciona-se com o seu poder-ser.
Mesmo que, ainda existindo, nada mais possua diante de si e feche para balanço, o
preceder-a-si-mesma ainda determina o seu ser. A falta de esperança, por exemplo,
não retira a pre-sença das suas possibilidades, sendo apenas um modo próprio de ser
para essas possibilidades. Do mesmo modo, ser e estar voltado para tudo sem
qualquer ilusão também conserva em si o preceder-a-si-mesmo” (idem, 1986, p.
15).
A finitude existe? Análise fenomenológica do filme: “Se eu ficar” 6
Mia não sabe como vai voltar ao seu corpo físico, fica confusa, não percebe o que
realmente está a acontecer, está angustiada com esta nova perspetiva e fica a processar a
consciencialização da sua aparente infinitude.
Cena 2 – O Dilema
Mia está a ver a sua própria operação, contínua confusa, ninguém a vê e ninguém
fala com ela, ela grita: “Estou a morrer? É o que vai acontecer?” A Enfermeira diz-lhe ao
ouvido (do corpo): “O segredo é o seguinte: tu controlas tudo. Se vais viver ou morrer, só
depende de ti. Então, busca forças aí dentro de ti!” (00:23:31 até 00:25:24).
Mia está perante o medo da morte, está confusa com o que lhe está a acontecer, o
que pode ser bastante complexo. Segundo Yalom (1980) James Diggorry e Doreen Rothman
recorreram a um questionário para obterem uma listagem dos maiores temores relacionados
com a morte, de onde se salientaram as seguintes possibilidades (que podem estar a ocorrer
na consciência de Mia): o sofrimento que causaria aos que ficassem vivos, os seus projetos
acabariam, o processo de morte pode ser doloroso, deixaria de experienciar a vida, o medo de
uma próxima vida que possa existir, o medo do que acontece ao corpo depois de morto. E
existe ainda um outro temor comum que é o de deixar os filhos, mas este não se aplica a Mia
pois ela ainda é muito jovem e não tem filhos.
Por outro lado observa-se que a enfermeira que cuida de Mia está preparada para
lidar com a morte dos seus pacientes, mas nem todos os profissionais de saúde têm essa
preparação. Estão sim treinados para manter a vida a qualquer custo, sem se preocuparem
com a qualidade relacional que oferecem aos pacientes, nem se lhes estão a providenciar uma
boa morte, projetando-lhes muitas vezes as suas próprias angústias de morte, devido à
reflexão que fazem sobre a finitude cada vez que um paciente não é salvo; mas também se
confrontam com a angústia de não serem suficientemente bons para os salvar, para além de
poderem estar a reviver a finitude de familiares próximos (Santos & Hormanez, 2013). No
filme, embora a enfermeira queira salvar a vida de Mia, e faz tudo o que é fisicamente
possível, também lhe dá motivação e consciencializa-a sobre a sua liberdade de escolha. Este
tipo de atitude é comum em enfermeiros que estiveram entre a vida e morte, dado que:
“Após vivenciarem a experiência de quase-morte, relataram mudanças em relação ao
cuidado oferecido aos pacientes, passando a atendê-los com mais carinho e atenção,
por compreenderem melhor as suas emoções, sentimentos e receios. O fato de terem
vivenciado a experiência de ser paciente em situação crítica propiciou um
A finitude existe? Análise fenomenológica do filme: “Se eu ficar” 7
aprofundamento do conhecimento dos sentimentos presentes nas pessoas
hospitalizadas, tornando mais acessível a elaboração de um cuidado coerente com as
reais necessidades dos pacientes, tanto fisiológicas quanto emocionais, espirituais e
socioculturais” (idem, 2013, p. 2764).
De facto é com grande frequência que as pessoas, que sobreviveram após estarem
perto de morrer, relatam mais vontade de viver, sentem-se renascidas, mudam padrões de
comportamento e encontram novos propósitos, tornam-se mais religiosas e espirituais dando
mais valor à vida. Por vezes têm novas prioridades, tornam-se mais humanas e compassivas,
ficam com um maior sentimento de liberdade a de apreciação pelo presente, com um maior
amor pela natureza, melhor comunicação para com as pessoas queridas e menos medos; em
suma ocorre um considerável desenvolvimento pessoal (Yalom, 1980). Portanto este filme
pode ser representativo de uma dinâmica existencial que, como não se vê, é em geral
descurada pela ciência. Mas vários cientistas (e.g., Lanza & Berman, 2009; Parnia &
Fenwick, 2002; Parnia & Young, 2013; Parnia et al., 2014) têm chegado a algumas
conclusões sobre a distinção entre o corpo e a consciência, que conferem algum grau de
autenticidade à cena do filme onde vemos a consciência de Mia a olhar para o seu próprio
corpo, sem saber o que fazer. Depois a enfermeira tenta ajudar a que Mia faça uma escolha,
isto é, que a sua consciência escolha se quer ir ou ficar, se quer voltar ao corpo ou não, o que
depende essencialmente dela. Esta ideia vai ao encontro do que Lanza e Berman (2009)
explicam: a consciência é a criadora. E assim, conforme sugere a enfermeira, Mia pode criar
a sua história, fazer a sua própria escolha, pois tudo está dependente dela.
Cenas 3 e 4 – Angústias
Mia olha para o seu corpo, ligado a máquinas. Mia ouve que os pais morreram e
fica ainda mais angustiada: ficou órfã. Mas o irmão está vivo. Corre pelos corredores, vai ter
com ele e promete-lhe que nunca o deixará. Entretanto o ex-namorado vem visitá-la mas nos
cuidados intensivos apenas os familiares podem entrar (00:40:48 até 00:44:50).
Mia pensa: “Como vou conseguir encontrar forças para ficar? Qual será a sensação
de acordar órfã? Nunca mais sentir o cheiro das panquecas do pai? Nunca mais conversar
com a mãe enquanto lavamos a louça? Mas como posso ir? A enfermeira disse que eu
controlo isso. Se vou viver, se vou morrer... Só depende de mim. E isso apavora-me mais do
que qualquer outra coisa” (01:06:00 até 01:06:35).
A finitude existe? Análise fenomenológica do filme: “Se eu ficar” 8
Não há como fugir à angústia de morte. Por um lado a angústia da sua própria morte,
por outro a da perda dos seus pais; qualquer que seja a escolha que Mia faça, morrer ou viver,
ela não escapa a esta angústia. E como se ela não fosse suficiente, surge outra angústia: a
incapacidade de comunicar. Nos cuidados intensivos, é habitual que não se deixe entrar mais
do que uma pessoa de cada vez e por pouco tempo, embora com crianças, a presença de um
dos pais tem facilitado a sua despedida e finitude (Santos & Hormanez, 2013). Então Mia
quer ouvir o que o ex-namorado tem para lhe dizer, pois isso poderá ajudá-la a decidir-se;
mas isso é impedido pela burocracia do hospital. Mia quer comunicar, mas ninguém a ouve.
Cena 5 – Desmoronamento
Mia acaba de saber que o irmão faleceu. Nesse momento ela quer que tudo acabe; e
o seu corpo começa a dar sinal de alarme. Uma luz aproxima-se de Mia, mas desaparece. Os
médicos fazem tudo para a salvar. Mia despede-se do ex-namorado no seu pensamento
(01:17:00 até 01:18:35). Para Mia já não há dúvida, com os pais e o irmão mortos, já não vê
sentido na vida; de uma família de quatro só resta ela. A angústia de morte apodera-se de si.
São três perdas muito significativas; como é que Mia consegue encontrar sentido para a vida?
O que vai fazer com a vida sem a sua família de origem? O seu sistema familiar desmoronou:
já não há subsistema conjugal, nem parental, nem fraternal (Minuchin, 1982). Grande parte
dos seus significados desapareceram. Como arranjar forças para novos sentidos?
Cena 6 – E se o amanhã não chegar?
O avô senta-se perto do corpo de Mia e ela tenta falar com ele: “O que é que eu
faço?” De alguma forma, o avô sente a angústia da neta e responde-lhe: “Quero que vivas.
Quero isso mais do que tudo no mundo. Quero que lutes com todas as tuas forças para ficares
connosco. Mas agora que todos se foram... Isso pode não ser o que tu queres. Pode ser difícil
demais para ti se continuares a lutar. Então... Se quiseres ir... Quero que saibas que tudo fica
bem. Sem problema. Eu entendo” (01:24:16 até 01:27:00).
Este avô faz um possível resumo de tudo o que Mia pode estar a sentir. E ao mesmo
tempo faz algo raro: deixar ir. Quer proporcionar uma boa morte à sua neta. Fisicamente já
foi tudo feito e o avô quer facilitar a Mia um ambiente libertador para ela decidir. É uma
atitude importante porque em geral os familiares, os profissionais de saúde e muitas vezes o
próprio paciente recusam-se a deixar ir, contribuindo para uma má morte, evitando a
realidade, quando entram em negação. Não aparenta ser uma boa decisão quando os
profissionais já não têm controlo, mas insistem na manutenção dos tratamentos ineficazes,
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criando falsas esperanças para eles próprios, para os familiares e para os pacientes (Santos &
Hormanez, 2013). No entanto muitos profissionais já perceberam a importância da despedida
e criam um ambiente adequado, onde há tempo para o paciente e a família se despedirem com
privacidade (idem, ibidem). No filme, Mia sente-se grata pela liberdade que o avô lhe deu;
ambos ficam aliviados. A conversa, ainda que fisicamente unilateral, deixa-os mais em paz e
mais abertos para seja o que for que Mia decida. É comum ouvir-se dizer “Ele partiu e eu
nunca lhe disse isto ou aquilo” como se as pessoas ignorassem a finitude de tal forma, que
deixam sempre para amanhã o que poderiam dizer hoje. Mas e se o amanhã não chegar?
Cena 7 – A luz: uma via para outro espaço existencial?
A luz espera Mia. E Mia caminha na sua direção; ela já decidiu. Mas de repente ela
ouve Beethoven, uma das suas músicas favoritas; e dirige-se até ao seu corpo, onde está o seu
ex-namorado. Ele pede-lhe ela para ficar, diz-lhe que fará tudo o que ela quiser. Implora-lhe
que fique. E levou a Mia uma carta que a informa sobre a sua admissão em Julliard: o sonho
de Mia pode-se tornar realidade. Ainda assim ela acha que não pode ficar. Porém o ex-
namorado compôs uma música para ela e começa a tocá-la. Mia vê novamente a luz, começa
a reviver partes da sua vida. Mas abre os olhos. Fez a sua escolha! (01:35:02 até 01:40:00).
Parece que não se pode decidir ontologicamente se a luz, ou seja a representação de
uma fronteira que, ao ser atravessada, marca a morte do corpo físico, é o fim da pre-sença.
Como poderemos saber se surgirá um outro modo de ser onde se continua a viver ou mesmo
a ser imortal? (Heidegger, 1986). Portanto esta imagem de uma luz que aguarda a nossa
decisão, de ir ou ficar, é no mínimo (cientificamente) desafiante. Trata-se de um fenómeno
que é descrito por cada vez mais pessoas. O psiquiatra e psicólogo Raymond Moody (1975)
estuda há décadas pacientes que tiveram experiências de quase-morte e é muito frequente eles
relatarem (após essas experiências) que viram túneis de luz, ou simplesmente percecionaram
uma luz que era atrativa e que fazia com que se sentissem sem dor. Um desses pacientes
descreveu assim a sua experiência:
“Eu estava hospitalizado com um grave problema de rins, e fiquei em estado de
coma por quase uma semana. Os médicos não tinham nenhuma a certeza de que eu
fosse viver. Durante o período em que estive inconsciente senti-me como se tivesse
passado para um plano superior, exatamente como se não tivesse mais um corpo
físico. Uma luz brilhante apareceu-me. Era uma luz tão brilhante que eu não podia
ver através dela, mas estar na sua presença tinha um efeito calmante e maravilhoso.
A finitude existe? Análise fenomenológica do filme: “Se eu ficar” 10
Não há mesmo nenhuma experiência igual na Terra. Na presença da luz, estes
pensamentos ou palavras vieram-me à mente: 'Você quer morrer?' E eu respondi que
não sabia, pois não sabia de nada sobre a morte. Então a luz branca disse: 'Passe para
o lado de cá desta linha e você saberá'. Achei que eu sabia onde a linha estava,
diante de mim, embora não a estivesse a ver realmente. Quando cruzei a linha,
vieram-me as sensações mais maravilhosas – sensações de paz, tranquilidade e o
desaparecimento de todas as preocupações” (Moody, 1975, p. 61).
Para além de Moody (1975) também o neurocirurgião Eben Alexander (2012) e o
médico (investigador especialista em ressuscitamento) Sam Parnia (e seus colaboradores,
2013; 2014) aferem nos seus estudos (com pessoas que tiverem experiências de quase-morte)
que é muito comum ocorrer uma retrospetiva da vida, com uma revisão muito rápida dos
momentos significativos. É o que ocorre com Mia (durante a experiência em que se encontra
fora do corpo) nas duas vezes em que esteve mais perto de morrer, quando estava perto dessa
luz. Portanto o filme aparenta retratar bem as dinâmicas vivenciais que são reportados nos
casos reais. Por outro lado, em relação às músicas usadas e à mensagem vocal do ex-
namorado (que parecem ajudar Mia na sua decisão) tem-se aferido que são importantes para
os pacientes em coma, uma vez que se observam mudanças na expressão facial, alteração da
cadência respiratória e um possível relaxamento e conforto quando ouvem os estímulos
auditivos (Puggina, 2006). Por conseguinte parece ser importante permitir que os familiares
falem com os comatosos, pois isso poderá ajudar a decidir: abraçar uma aparente infinitude
da consciência e a consequente finitude do corpo físico ou regressar com a consciência ao
corpo físico e prosseguir aí a vida.
Discussão
«Se Eu Ficar» é apenas um filme. Mas é rico em conteúdos que despertam cada vez
mais o interesse dos investigadores. Muitos cientistas ainda defendem que é o cérebro que
cria a consciência; então quando há uma paragem cerebral a consciência termina. Mas Parnia
(e seus colaboradores, 2002; 2013; 2014), que se tem dedicado ao estudo da consciência (na
sequência do seu trabalho com ressuscitação cardíaca) chegou a outra conclusão: o cérebro e
a consciência são duas coisas distintas, já que as pessoas que vivenciaram experiências de
quase-morte reportam consciência daquilo que se passa na ressuscitação médica, mesmo
quando o cérebro já está inativo. Está em curso uma investigação através da qual Parnia et al
(2015) pretendem provar a existência da alma: colocam prateleiras altas nas salas de
A finitude existe? Análise fenomenológica do filme: “Se eu ficar” 11
reanimação, com imagens que são apenas vistas a partir do teto; partem da hipótese de que,
para além dos relatos das conversas entre os profissionais de saúde e dos processos técnicos
da sua reanimação (que têm sido descritos pelas pessoas que readquirem a consciência),
quando as consciências saírem do corpo e começarem a ver de cima, vejam e depois relatem
(após a ressuscitação), as imagens colocadas nas prateleiras.
Por outro lado o conceituado médico Robert Lanza (in Lanza & Berman, 2009)
especialista em medicina regenerativa (e conhecido pela sua investigação em células
estaminais e também por várias experiências bem-sucedidas sobre clonagem de espécies
animais ameaçadas de extinção), defende que a consciência não morre e que a morte é uma
criação da mente humana: Lanza explica isso através do Biocentrismo (numa nova teoria
criada por ele) onde teoriza que a consciência é a responsável pela criação do universo,
inversamente à ideia clássica de que o universo é o criador da vida. Na mesma linha de
raciocínio Lanza (ibidem) advoga que é a consciência que cria o corpo, invertendo a ideia que
se tem propagado de o cérebro ser o criador da consciência; e assim ao identificamo-nos com
o corpo, acreditamos que a consciência morre, ou seja, que a finitude corporal coocorre com a
finitude consciencial.
A ciência está então a começar a refutar o que defende Levinas: “A descrição do
fenómeno da morte é feita enquanto se está vivo. E se algo acontecer depois, temos de
admitir que não é da ordem da experiência dos vivos. A possibilidade de que algo acontece
depois, está localizada fora do nosso alcance” (1995, p. 154). Mas este conhecimento está
cada vez mais perto. Os cientistas dedicados às experiências de quase-morte, têm recolhido
múltiplos registos e têm provado que o ser deixa de ser “ser-no-munto” mas continua a ser
qualquer coisa como “ser-fora-do-mundo”, “ser-depois-do-mundo”, ou talvez “ser-noutro-
mundo” ao transitar para um outro espaço existencial onde a vida continua, onde portanto há
uma aparente infinitude da consciência.
Reflexão Crítica
Então, um dia, em que haja uma consciência global da finitude do corpo e da
(aparente) infinitude da consciência, deixará de existir, ou será mitigada, a angústia de morte?
Surgirá outra angústia? Estará a angústia de morte associada à angústia do desconhecido?
Bom, parece que antes temos de saber lidar com a finitude do corpo. O medo da morte tem
criado demasiados tabus. Podíamos estar muito mais preparados para ela (conforme descrito
por Santos & Hormanez, 2013), mas a necessidade de a esconder, de a evitar e de não a
A finitude existe? Análise fenomenológica do filme: “Se eu ficar” 12
enfrentar, tem-nos afastado de tratar aqueles que estão no seu processo de finitude física com
mais dignidade; vivemos como se a morte do corpo não existisse: as pessoas não se
despedem, não deixam os seus pertences preparados para doar, porque nem eles, nem os seus
familiares, nem os seus médicos e cuidadores querem pensar nisso.
O processo de falecimento do meu pai, depois de ter estado treze anos incapacitado
(após um acidente vascular cerebral) e de nos últimos quatro anos ter estado acamado, é um
bom exemplo de como se os familiares estiverem preparados, a finitude do corpo ocorre de
uma forma mais pacífica para toda a família. Lembro-me de pensar, um dia já cansada, que
para além do medo terrível que o meu pai tinha da morte, sobre que outras intencionalidades
o estariam a segurar à terra, a prender à vida no seu corpo já tão debilitado. E pensando que a
minha angústia poderia estar a interferir no processo, uni a minha testa à dele e disse-lhe
baixinho para não o assustar: “Podes ir, eu a mãe ficamos bem, não tenhas medo”. Fiquei
imersa em paz. E no dia seguinte, a meio na noite, chegou a finitude do corpo do meu pai;
deixou de ser um “ser-no-mundo”. Hoje questiono-me: estaria ele à espera que eu estivesse
preparada para o seu “fim”? Estaria a minha angústia a impedir algum processo? Ou teria eu
previsto a sua finitude física naquele preciso dia, tal como no filme analisado, o avô sente a
angústia da neta? Toda a sincronicidade de acontecimentos foi sem dúvida uma experiência
que ficou comigo, que me trouxe crescimento pessoal e que ainda hoje me faz refletir. Talvez
por isso gosto particularmente da cena do filme em que o avô conversa com Mia e deixa-a à
vontade para decidir. Da minha experiência penso que pode ser uma atitude de extrema
importância, bem como que, o deixar ir, pode mudar a perspetiva sobre o que é a finitude.
Conclusão
Sendo óbvia a finitude do corpo, não é óbvia a finitude da consciência, pelo
contrário. Porém é necessária mais investigação para que se possa afirmar definitivamente
que há vida depois da morte. Não era todavia suposto dar uma resposta absoluta à questão
orientadora deste trabalho, mas sim, refletir sobre a finitude. O que é possível concluir é que
a morte continua a ser um dos maiores mistérios para a ciência. Logo, no âmbito da
psicologia clínica, como poderemos nós acalmar as angústias da morte dos pacientes, quando
não sabemos como acalmar a nossa? Uma coisa é certa: todos vamos morrer, os nossos
corpos vão desaparecer. Mas parece que a consciência não morre com o corpo. E então,
continua com novas experiências pelo desconhecido? Onde? Até quando? Infinitamente?
A finitude existe? Análise fenomenológica do filme: “Se eu ficar” 13
Talvez a melhor forma de nos prepararmos para obter respostas seja desmistificando
estes temas, refletindo sobre eles, investigando-os. Pois, paradoxalmente, podemos estar a
recear algo de bom. Já há largos anos que as pessoas que vivenciaram experiências de quase-
morte expressam que ficaram mais compassivas e menos conflituosas. Aparentemente
alguma coisa muito boa nos espera. Então, encarar a morte, e percecioná-la como um
processo natural (já que é interdependente da vida) parece-me ser algo que poderíamos fazer
por nós e por outros seres humanos, pois falar da morte, ajuda a desmistificá-la. Já que é
comum as pessoas perderam o medo da morte, após estarem frente-a-frente com ela,
descrevendo experiências de plenitude e de ausência de dor (Tassell-Matamua & Lindsay,
2015) porque não ver a morte como algo de inevitavelmente bom? Porque não pensar que na
sequência da finitude do corpo algo de potencialmente bom acontece? Parece-me ser
importante que a angústia da morte não nos domine ao ponto de evitarmos falar dessa
finitude que, aparentemente, desvela uma infinitude. Os estudos salientam que os
profissionais de saúde podem criar uma morte boa, quando ajudam os pacientes a falar, a não
deixarem assuntos pendentes, a não deixarem para amanhã o que podem dizer hoje aos
familiares e amigos (Santos & Hormanez, 2013). E se a cada dia que passa, estamos a morrer
(Yalom, 1980), então porque não viver cada dia como se fosse o último, usando bem todos os
sentidos, respirando e vivendo (usando as expressões de Heidegger, 1986) não só como ser
um “ser-no-mundo” mas também como um “ser-para-a-morte”, um ser-total.
Assim sendo e respondendo à questão inicial: a finitude existe? Sim, claro que há
um fim: o do corpo. E com o fim do corpo finaliza a existência, que conhecemos como
humana. Mas será realmente o fim do ser (ou da consciência, sendo preferido este termo)?
Que outra existência desconhecida poderá esperá-lo? Alguns investigadores anseiam chegar a
essa descoberta. Para já é cada vez mais claro que a consciência é independente do corpo e
que com a finitude deste, a consciência continua a existir. Com o desenvolvimento de novas
tecnologias, novas provas muito provavelmente irão surgir. Na verdade Benedict de Spinoza
(1632-1677), citado em Soyarslan (2014, p. 254), já vislumbrava aquilo que se comprova
cada vez mais frequentemente: “A mente humana não pode ser absolutamente destruída com
o corpo humano, mas há uma parte dela que permanece e é eterna.”
A finitude existe? Análise fenomenológica do filme: “Se eu ficar” 14
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