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A finitude existe? Análise fenomenológica do filme: “Se eu ficar” A Finitude Existe? Análise fenomenológica do filme: “Se eu ficar” Notas da Autora Sandra Ramos (n.º 24122) é discente do 4.º ano do Mestrado Integrado em Psicologia Clínica (Turma 3) no ISPA Instituto Universitário, em Lisboa, ano letivo de 2015-2016. Este trabalho faz parte da Unidade Curricular com o nome Psicologia Fenomenológica ministrada pelo Professor Doutor Daniel Cunha Monteiro de Sousa. A correspondência para o autor deste trabalho pode ser remetida para [email protected] ou para o ISPA Instituto Universitário situado na Rua Jardim do Tabaco, n.º 34, 1149-041 Lisboa, Portugal.

A finitude existe? Análise fenomenológica do filme: “Se eu ficar”

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A finitude existe? Análise fenomenológica do filme: “Se eu ficar”

A Finitude Existe?

Análise fenomenológica do filme: “Se eu ficar”

Notas da Autora

Sandra Ramos (n.º 24122) é discente do 4.º ano do Mestrado Integrado em

Psicologia Clínica (Turma 3) no ISPA – Instituto Universitário, em Lisboa, ano letivo de

2015-2016.

Este trabalho faz parte da Unidade Curricular com o nome Psicologia

Fenomenológica ministrada pelo Professor Doutor Daniel Cunha Monteiro de Sousa.

A correspondência para o autor deste trabalho pode ser remetida para

[email protected] ou para o ISPA – Instituto Universitário situado na Rua Jardim do

Tabaco, n.º 34, 1149-041 Lisboa, Portugal.

A finitude existe? Análise fenomenológica do filme: “Se eu ficar” 2

Resumo

É certa a finitude do corpo. Mas e quanto à finitude da consciência? Como suporte para

várias reflexões e para procurar responder a esta questão foi analisado o filme “Se eu ficar”

(IMDb, 2015). É explorada a consciência da finitude, os dilemas de um estado de coma, as

angústias inerentes a uma decisão de «ir ou ficar», a luz atrativa relacionada com as

intencionalidades das experiências de quase-morte, a importância do «deixar ir» e salientam-

se estudos que poderão mudar o sentido da experiência humana sobre a vida e sobre a vida da

consciência depois da finitude corpórea.

Palavras-chave: finitude, morte, experiência de quase-morte, estado de coma

Abstract

The finitude of the body is certain. But what about the finitude of consciousness? As a

support for several reflections and to try to answer this question, the movie "If I stay" (IMDb,

2015) was analyzed. The awareness of finitude, the dilemmas of a coma, the anguish inherent

in a decision of 'go or stay’, the attractive light related to the intentionalities of a near-death

experience and the importance of ‘letting go’ are explored. Studies that may change the

meaning of human experience about life and about the life of consciousness after bodily

finitude is also emphasized.

Keywords: finitude, death, near death experience, coma

A finitude existe? Análise fenomenológica do filme: “Se eu ficar” 3

Introdução

Desde os primórdios da humanidade, que a morte terá sido um dos temas de

conversa e, provavelmente, de reflexão. É fácil de imaginar quando os nossos antepassados

mais remotos se foram deparando com a morte natural pela primeira vez: “o que aconteceu?

Já não se mexe. Não comunica. Terá adormecido?” E como as questões requerem respostas e

suscitam hipóteses, tem-se teorizado sobre a finitude do corpo desde que o homem é homem.

Porém a morte continua a ser um mistério que muitos querem descobrir, não fosse ela uma

parte integrante da vida e não há como escapar-lhe, o que lembra uma expressão muito usada:

“para morrer basta estar vivo”. Mas é assim mesmo? O corpo físico cessa as suas funções e

com essa finitude acaba mesmo tudo?

Revisão de Literatura

Ao longo da história da humanidade têm existido diversas representações coletivas

sobre a morte. Por exemplo, na filosofia do Budismo Tibetano (que já existe desde o século

VI a.C.) acredita-se que a alma é eterna e que depois de deixar um corpo ela irá reencarnar

noutro; e assim sucessivamente. É interessante que Tenzin Gyatso, mais conhecido por Sua

Santidade o 14.º Daila-Lama, quando ainda era muito jovem conseguia compreender, sem

dificuldade, os ensinamentos budistas mais complexos, o que normalmente requer muitos

anos de estudo (Rinpoche, 1992). O que não é insólito. “É vulgar que as crianças que são

reencarnações se recordem de objetos e de pessoas das suas vidas anteriores e algumas até

conseguem recitar as escrituras apesar de ainda não lhes terem sido ensinadas” (Dalai-Lama,

1964, p. 24). Esta crença contrasta com a do filósofo grego Epicuro (341-270 a.C.) que

ensinava que a alma é mortal e que desaparecia com o corpo, contrariando o que advogava

Sócrates (469-399 a.C.), cerca de 100 anos antes, que se consolou com a eternidade da alma,

pois, após a sua execução, encontrar-se-ia com os seus familiares a amigos (Yalom, 2008). Já

na idade média (entre os séculos V e XV) faziam-se rituais públicos de despedida onde era

permitido às pessoas despedirem-se de um doente antes do seu falecimento. A morte era vista

como um evento natural e o corpo era tratado com dignidade e com humanidade. Mas a partir

do século XX a morte deixou de ser vista como um fenómeno natural, passando a ser

perspetivada como um fracasso, como uma dinâmica de impotência, um acontecimento

vergonhoso, evitado a todo o custo para dar a impressão de que nada mudou. Os rituais de

despedida perderam-se, já que muitas vezes as pessoas morrem nos hospitais rodeados de

técnicos e de novas tecnologias, em vez de falecerem em casa rodeados da família. Acresce

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que os sistemas de saúde raramente admitem a finitude dos pacientes, não considerando

momentos para despedidas, tão-pouco a preparação do paciente para a sua finitude física.

Assim que ocorre o falecimento, os técnicos dão rapidamente sequência aos procedimentos

para se verem livres do corpo, que muitas vezes é tratado sem humanidade, sendo mesmo

designado por pacote (Santos & Hormanez, 2013). De facto refletir sobre a nossa finitude

elicita uma certa angústia. Tudo o que se vai construindo, a qualquer momento, pode ser

perdido, sonhos podem ficar por realizar, palavras podem ficar por dizer, assim: de um

segundo para outro. Portanto parece ser importante perceber que a morte e a vida são

interdependentes, existem em simultâneo, já que a morte não é só um momento, pois

começamos a morrer em cada minuto que vivemos; e assim, desde o primeiro minuto de vida,

vamos caminhando para a morte. Ela é iminente e influencia a experiência e a conduta das

pessoas. É também uma fonte de angústia, que é distinguida das outras por angústia de morte

e pode mesmo ser a causa de algumas psicopatologias (Yalom, 1980).

E com a existência de cada vez mais seres humanos, mais técnicos e mais (e

melhores) tecnologias, tem-se aferido, com milhares de pessoas em todo o mundo, uma

multiplicidade de descrições de experiências extracorpóreas e de um possível outro lado da

vida. Podemos ser levados a pensar que as pessoas estão a criar consonâncias cognitivas para

conseguirem lidar melhor com as suas angústias de morte, o que faz sentido, numa perspetiva

ôntica, pois encontrar significados para essas angústias pode ser uma estratégia para as

acalmar e voltar a um funcionamento normal. Porém recentemente a ciência tem encontrado

evidências de uma possível vida que continua, mas é necessária alguma prudência. Como

Heidegger (1889-1976) referia: “não se pode decidir onticamente se, depois da morte um

outro modo de ser, seja superior ou inferior, é ainda possível, se a pre-sença continua a viver,

ou ainda, se ela é imortal, sobrevivendo a si mesma” (1986, p. 29). Então, a finitude existe

conforme defendia Epicuro ou não existe conforme advogava Sócrates? Poderão ter ambos

razão? Poderiam ter tido dois pontos de vistas que não são necessariamente exclusivos?

Análise Fenomenológica

Para tentar responder a estas questões, irei analisar, do ponto de vista da psicologia

fenomenológica, o filme “Se Eu Ficar” (IMDb, 2015), que retrata o drama de uma jovem

(Mia) que é a única sobrevivente de um acidente de viação sofrido com a sua família. Mia

fica em coma e a sua consciência fica fora do corpo; ela tenta comunicar com as pessoas à

sua volta mas não consegue. Para os médicos e para os familiares ela está inconsciente, está

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ligada a máquinas que a mantêm viva, mas na realidade ela está bem consciente (Novi,

Greenspan & Cutler, 2014). Mia sabe o que se está a passar com ela e vai ter de escolher: ou

fica no mundo como “ser-no-mundo” (Heidegger, 1986) e enfrenta o facto de ter ficado órfã e

sem o irmão mais novo (acolhendo uma nova vida, com novas vivências intencionais) ou

escolhe perder a oportunidade de voltar e embarca no desconhecido que é a morte. E como

nos relatos de experiências de quase-morte surge uma luz que a convida a passar para um

outro lado, desconhecido, que contrasta com este lado, que embora seja duro, é conhecido, é

familiar, é onde está o amor e onde está a música. Como escolher? Como viver depois desta

angústia de morte tão intensa? Qual será o mais atrativo? O conhecido ou o desconhecido? A

vida ou a morte?

É certo que o corpo acaba com a morte, mas haverá uma infinitude da consciência

ou não? Para explorar esta problemática existencial escolhi sete cenas do filme relacionadas

com os momentos em que Mia está em coma e a sua consciência está fora do seu corpo.

Cena 1 – A Consciência da Infinitude

Mia acorda deitada na neve, levanta-se, tenta comunicar mas percebe que ninguém a

vê, está invisível para os “seres-no-mundo”, ninguém fala com ela nem lhe explica o que

aconteceu, de repente olha para o seu corpo físico, a sua consciência vê de fora, fica chocada,

desesperada, quer acordar, voltar ao corpo mas não sabe como; ouve os paramédicos a dizer

que ela está em coma, entra na ambulância e vai atrás do seu corpo (00:12:56 até 00:14:40).

Neste momento em que há uma separação do ser, do seu corpo, continuaremos ainda

a falar do “ser-no-mundo” (Heidegger, 1986), uma vez que há consciência da Mia sobre a

vida e o que está a acontecer, o coração dela ainda está a bater, mas estaremos a falar do ser

que é mais do que uma coisa material (idem, ibidem). Ou seja, Mia ainda está viva, a viver

uma experiência extracorpórea e as possibilidades continuam em aberto:

“Enquanto ela é e até ao seu fim, a pre-sença relaciona-se com o seu poder-ser.

Mesmo que, ainda existindo, nada mais possua diante de si e feche para balanço, o

preceder-a-si-mesma ainda determina o seu ser. A falta de esperança, por exemplo,

não retira a pre-sença das suas possibilidades, sendo apenas um modo próprio de ser

para essas possibilidades. Do mesmo modo, ser e estar voltado para tudo sem

qualquer ilusão também conserva em si o preceder-a-si-mesmo” (idem, 1986, p.

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Mia não sabe como vai voltar ao seu corpo físico, fica confusa, não percebe o que

realmente está a acontecer, está angustiada com esta nova perspetiva e fica a processar a

consciencialização da sua aparente infinitude.

Cena 2 – O Dilema

Mia está a ver a sua própria operação, contínua confusa, ninguém a vê e ninguém

fala com ela, ela grita: “Estou a morrer? É o que vai acontecer?” A Enfermeira diz-lhe ao

ouvido (do corpo): “O segredo é o seguinte: tu controlas tudo. Se vais viver ou morrer, só

depende de ti. Então, busca forças aí dentro de ti!” (00:23:31 até 00:25:24).

Mia está perante o medo da morte, está confusa com o que lhe está a acontecer, o

que pode ser bastante complexo. Segundo Yalom (1980) James Diggorry e Doreen Rothman

recorreram a um questionário para obterem uma listagem dos maiores temores relacionados

com a morte, de onde se salientaram as seguintes possibilidades (que podem estar a ocorrer

na consciência de Mia): o sofrimento que causaria aos que ficassem vivos, os seus projetos

acabariam, o processo de morte pode ser doloroso, deixaria de experienciar a vida, o medo de

uma próxima vida que possa existir, o medo do que acontece ao corpo depois de morto. E

existe ainda um outro temor comum que é o de deixar os filhos, mas este não se aplica a Mia

pois ela ainda é muito jovem e não tem filhos.

Por outro lado observa-se que a enfermeira que cuida de Mia está preparada para

lidar com a morte dos seus pacientes, mas nem todos os profissionais de saúde têm essa

preparação. Estão sim treinados para manter a vida a qualquer custo, sem se preocuparem

com a qualidade relacional que oferecem aos pacientes, nem se lhes estão a providenciar uma

boa morte, projetando-lhes muitas vezes as suas próprias angústias de morte, devido à

reflexão que fazem sobre a finitude cada vez que um paciente não é salvo; mas também se

confrontam com a angústia de não serem suficientemente bons para os salvar, para além de

poderem estar a reviver a finitude de familiares próximos (Santos & Hormanez, 2013). No

filme, embora a enfermeira queira salvar a vida de Mia, e faz tudo o que é fisicamente

possível, também lhe dá motivação e consciencializa-a sobre a sua liberdade de escolha. Este

tipo de atitude é comum em enfermeiros que estiveram entre a vida e morte, dado que:

“Após vivenciarem a experiência de quase-morte, relataram mudanças em relação ao

cuidado oferecido aos pacientes, passando a atendê-los com mais carinho e atenção,

por compreenderem melhor as suas emoções, sentimentos e receios. O fato de terem

vivenciado a experiência de ser paciente em situação crítica propiciou um

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aprofundamento do conhecimento dos sentimentos presentes nas pessoas

hospitalizadas, tornando mais acessível a elaboração de um cuidado coerente com as

reais necessidades dos pacientes, tanto fisiológicas quanto emocionais, espirituais e

socioculturais” (idem, 2013, p. 2764).

De facto é com grande frequência que as pessoas, que sobreviveram após estarem

perto de morrer, relatam mais vontade de viver, sentem-se renascidas, mudam padrões de

comportamento e encontram novos propósitos, tornam-se mais religiosas e espirituais dando

mais valor à vida. Por vezes têm novas prioridades, tornam-se mais humanas e compassivas,

ficam com um maior sentimento de liberdade a de apreciação pelo presente, com um maior

amor pela natureza, melhor comunicação para com as pessoas queridas e menos medos; em

suma ocorre um considerável desenvolvimento pessoal (Yalom, 1980). Portanto este filme

pode ser representativo de uma dinâmica existencial que, como não se vê, é em geral

descurada pela ciência. Mas vários cientistas (e.g., Lanza & Berman, 2009; Parnia &

Fenwick, 2002; Parnia & Young, 2013; Parnia et al., 2014) têm chegado a algumas

conclusões sobre a distinção entre o corpo e a consciência, que conferem algum grau de

autenticidade à cena do filme onde vemos a consciência de Mia a olhar para o seu próprio

corpo, sem saber o que fazer. Depois a enfermeira tenta ajudar a que Mia faça uma escolha,

isto é, que a sua consciência escolha se quer ir ou ficar, se quer voltar ao corpo ou não, o que

depende essencialmente dela. Esta ideia vai ao encontro do que Lanza e Berman (2009)

explicam: a consciência é a criadora. E assim, conforme sugere a enfermeira, Mia pode criar

a sua história, fazer a sua própria escolha, pois tudo está dependente dela.

Cenas 3 e 4 – Angústias

Mia olha para o seu corpo, ligado a máquinas. Mia ouve que os pais morreram e

fica ainda mais angustiada: ficou órfã. Mas o irmão está vivo. Corre pelos corredores, vai ter

com ele e promete-lhe que nunca o deixará. Entretanto o ex-namorado vem visitá-la mas nos

cuidados intensivos apenas os familiares podem entrar (00:40:48 até 00:44:50).

Mia pensa: “Como vou conseguir encontrar forças para ficar? Qual será a sensação

de acordar órfã? Nunca mais sentir o cheiro das panquecas do pai? Nunca mais conversar

com a mãe enquanto lavamos a louça? Mas como posso ir? A enfermeira disse que eu

controlo isso. Se vou viver, se vou morrer... Só depende de mim. E isso apavora-me mais do

que qualquer outra coisa” (01:06:00 até 01:06:35).

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Não há como fugir à angústia de morte. Por um lado a angústia da sua própria morte,

por outro a da perda dos seus pais; qualquer que seja a escolha que Mia faça, morrer ou viver,

ela não escapa a esta angústia. E como se ela não fosse suficiente, surge outra angústia: a

incapacidade de comunicar. Nos cuidados intensivos, é habitual que não se deixe entrar mais

do que uma pessoa de cada vez e por pouco tempo, embora com crianças, a presença de um

dos pais tem facilitado a sua despedida e finitude (Santos & Hormanez, 2013). Então Mia

quer ouvir o que o ex-namorado tem para lhe dizer, pois isso poderá ajudá-la a decidir-se;

mas isso é impedido pela burocracia do hospital. Mia quer comunicar, mas ninguém a ouve.

Cena 5 – Desmoronamento

Mia acaba de saber que o irmão faleceu. Nesse momento ela quer que tudo acabe; e

o seu corpo começa a dar sinal de alarme. Uma luz aproxima-se de Mia, mas desaparece. Os

médicos fazem tudo para a salvar. Mia despede-se do ex-namorado no seu pensamento

(01:17:00 até 01:18:35). Para Mia já não há dúvida, com os pais e o irmão mortos, já não vê

sentido na vida; de uma família de quatro só resta ela. A angústia de morte apodera-se de si.

São três perdas muito significativas; como é que Mia consegue encontrar sentido para a vida?

O que vai fazer com a vida sem a sua família de origem? O seu sistema familiar desmoronou:

já não há subsistema conjugal, nem parental, nem fraternal (Minuchin, 1982). Grande parte

dos seus significados desapareceram. Como arranjar forças para novos sentidos?

Cena 6 – E se o amanhã não chegar?

O avô senta-se perto do corpo de Mia e ela tenta falar com ele: “O que é que eu

faço?” De alguma forma, o avô sente a angústia da neta e responde-lhe: “Quero que vivas.

Quero isso mais do que tudo no mundo. Quero que lutes com todas as tuas forças para ficares

connosco. Mas agora que todos se foram... Isso pode não ser o que tu queres. Pode ser difícil

demais para ti se continuares a lutar. Então... Se quiseres ir... Quero que saibas que tudo fica

bem. Sem problema. Eu entendo” (01:24:16 até 01:27:00).

Este avô faz um possível resumo de tudo o que Mia pode estar a sentir. E ao mesmo

tempo faz algo raro: deixar ir. Quer proporcionar uma boa morte à sua neta. Fisicamente já

foi tudo feito e o avô quer facilitar a Mia um ambiente libertador para ela decidir. É uma

atitude importante porque em geral os familiares, os profissionais de saúde e muitas vezes o

próprio paciente recusam-se a deixar ir, contribuindo para uma má morte, evitando a

realidade, quando entram em negação. Não aparenta ser uma boa decisão quando os

profissionais já não têm controlo, mas insistem na manutenção dos tratamentos ineficazes,

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criando falsas esperanças para eles próprios, para os familiares e para os pacientes (Santos &

Hormanez, 2013). No entanto muitos profissionais já perceberam a importância da despedida

e criam um ambiente adequado, onde há tempo para o paciente e a família se despedirem com

privacidade (idem, ibidem). No filme, Mia sente-se grata pela liberdade que o avô lhe deu;

ambos ficam aliviados. A conversa, ainda que fisicamente unilateral, deixa-os mais em paz e

mais abertos para seja o que for que Mia decida. É comum ouvir-se dizer “Ele partiu e eu

nunca lhe disse isto ou aquilo” como se as pessoas ignorassem a finitude de tal forma, que

deixam sempre para amanhã o que poderiam dizer hoje. Mas e se o amanhã não chegar?

Cena 7 – A luz: uma via para outro espaço existencial?

A luz espera Mia. E Mia caminha na sua direção; ela já decidiu. Mas de repente ela

ouve Beethoven, uma das suas músicas favoritas; e dirige-se até ao seu corpo, onde está o seu

ex-namorado. Ele pede-lhe ela para ficar, diz-lhe que fará tudo o que ela quiser. Implora-lhe

que fique. E levou a Mia uma carta que a informa sobre a sua admissão em Julliard: o sonho

de Mia pode-se tornar realidade. Ainda assim ela acha que não pode ficar. Porém o ex-

namorado compôs uma música para ela e começa a tocá-la. Mia vê novamente a luz, começa

a reviver partes da sua vida. Mas abre os olhos. Fez a sua escolha! (01:35:02 até 01:40:00).

Parece que não se pode decidir ontologicamente se a luz, ou seja a representação de

uma fronteira que, ao ser atravessada, marca a morte do corpo físico, é o fim da pre-sença.

Como poderemos saber se surgirá um outro modo de ser onde se continua a viver ou mesmo

a ser imortal? (Heidegger, 1986). Portanto esta imagem de uma luz que aguarda a nossa

decisão, de ir ou ficar, é no mínimo (cientificamente) desafiante. Trata-se de um fenómeno

que é descrito por cada vez mais pessoas. O psiquiatra e psicólogo Raymond Moody (1975)

estuda há décadas pacientes que tiveram experiências de quase-morte e é muito frequente eles

relatarem (após essas experiências) que viram túneis de luz, ou simplesmente percecionaram

uma luz que era atrativa e que fazia com que se sentissem sem dor. Um desses pacientes

descreveu assim a sua experiência:

“Eu estava hospitalizado com um grave problema de rins, e fiquei em estado de

coma por quase uma semana. Os médicos não tinham nenhuma a certeza de que eu

fosse viver. Durante o período em que estive inconsciente senti-me como se tivesse

passado para um plano superior, exatamente como se não tivesse mais um corpo

físico. Uma luz brilhante apareceu-me. Era uma luz tão brilhante que eu não podia

ver através dela, mas estar na sua presença tinha um efeito calmante e maravilhoso.

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Não há mesmo nenhuma experiência igual na Terra. Na presença da luz, estes

pensamentos ou palavras vieram-me à mente: 'Você quer morrer?' E eu respondi que

não sabia, pois não sabia de nada sobre a morte. Então a luz branca disse: 'Passe para

o lado de cá desta linha e você saberá'. Achei que eu sabia onde a linha estava,

diante de mim, embora não a estivesse a ver realmente. Quando cruzei a linha,

vieram-me as sensações mais maravilhosas – sensações de paz, tranquilidade e o

desaparecimento de todas as preocupações” (Moody, 1975, p. 61).

Para além de Moody (1975) também o neurocirurgião Eben Alexander (2012) e o

médico (investigador especialista em ressuscitamento) Sam Parnia (e seus colaboradores,

2013; 2014) aferem nos seus estudos (com pessoas que tiverem experiências de quase-morte)

que é muito comum ocorrer uma retrospetiva da vida, com uma revisão muito rápida dos

momentos significativos. É o que ocorre com Mia (durante a experiência em que se encontra

fora do corpo) nas duas vezes em que esteve mais perto de morrer, quando estava perto dessa

luz. Portanto o filme aparenta retratar bem as dinâmicas vivenciais que são reportados nos

casos reais. Por outro lado, em relação às músicas usadas e à mensagem vocal do ex-

namorado (que parecem ajudar Mia na sua decisão) tem-se aferido que são importantes para

os pacientes em coma, uma vez que se observam mudanças na expressão facial, alteração da

cadência respiratória e um possível relaxamento e conforto quando ouvem os estímulos

auditivos (Puggina, 2006). Por conseguinte parece ser importante permitir que os familiares

falem com os comatosos, pois isso poderá ajudar a decidir: abraçar uma aparente infinitude

da consciência e a consequente finitude do corpo físico ou regressar com a consciência ao

corpo físico e prosseguir aí a vida.

Discussão

«Se Eu Ficar» é apenas um filme. Mas é rico em conteúdos que despertam cada vez

mais o interesse dos investigadores. Muitos cientistas ainda defendem que é o cérebro que

cria a consciência; então quando há uma paragem cerebral a consciência termina. Mas Parnia

(e seus colaboradores, 2002; 2013; 2014), que se tem dedicado ao estudo da consciência (na

sequência do seu trabalho com ressuscitação cardíaca) chegou a outra conclusão: o cérebro e

a consciência são duas coisas distintas, já que as pessoas que vivenciaram experiências de

quase-morte reportam consciência daquilo que se passa na ressuscitação médica, mesmo

quando o cérebro já está inativo. Está em curso uma investigação através da qual Parnia et al

(2015) pretendem provar a existência da alma: colocam prateleiras altas nas salas de

A finitude existe? Análise fenomenológica do filme: “Se eu ficar” 11

reanimação, com imagens que são apenas vistas a partir do teto; partem da hipótese de que,

para além dos relatos das conversas entre os profissionais de saúde e dos processos técnicos

da sua reanimação (que têm sido descritos pelas pessoas que readquirem a consciência),

quando as consciências saírem do corpo e começarem a ver de cima, vejam e depois relatem

(após a ressuscitação), as imagens colocadas nas prateleiras.

Por outro lado o conceituado médico Robert Lanza (in Lanza & Berman, 2009)

especialista em medicina regenerativa (e conhecido pela sua investigação em células

estaminais e também por várias experiências bem-sucedidas sobre clonagem de espécies

animais ameaçadas de extinção), defende que a consciência não morre e que a morte é uma

criação da mente humana: Lanza explica isso através do Biocentrismo (numa nova teoria

criada por ele) onde teoriza que a consciência é a responsável pela criação do universo,

inversamente à ideia clássica de que o universo é o criador da vida. Na mesma linha de

raciocínio Lanza (ibidem) advoga que é a consciência que cria o corpo, invertendo a ideia que

se tem propagado de o cérebro ser o criador da consciência; e assim ao identificamo-nos com

o corpo, acreditamos que a consciência morre, ou seja, que a finitude corporal coocorre com a

finitude consciencial.

A ciência está então a começar a refutar o que defende Levinas: “A descrição do

fenómeno da morte é feita enquanto se está vivo. E se algo acontecer depois, temos de

admitir que não é da ordem da experiência dos vivos. A possibilidade de que algo acontece

depois, está localizada fora do nosso alcance” (1995, p. 154). Mas este conhecimento está

cada vez mais perto. Os cientistas dedicados às experiências de quase-morte, têm recolhido

múltiplos registos e têm provado que o ser deixa de ser “ser-no-munto” mas continua a ser

qualquer coisa como “ser-fora-do-mundo”, “ser-depois-do-mundo”, ou talvez “ser-noutro-

mundo” ao transitar para um outro espaço existencial onde a vida continua, onde portanto há

uma aparente infinitude da consciência.

Reflexão Crítica

Então, um dia, em que haja uma consciência global da finitude do corpo e da

(aparente) infinitude da consciência, deixará de existir, ou será mitigada, a angústia de morte?

Surgirá outra angústia? Estará a angústia de morte associada à angústia do desconhecido?

Bom, parece que antes temos de saber lidar com a finitude do corpo. O medo da morte tem

criado demasiados tabus. Podíamos estar muito mais preparados para ela (conforme descrito

por Santos & Hormanez, 2013), mas a necessidade de a esconder, de a evitar e de não a

A finitude existe? Análise fenomenológica do filme: “Se eu ficar” 12

enfrentar, tem-nos afastado de tratar aqueles que estão no seu processo de finitude física com

mais dignidade; vivemos como se a morte do corpo não existisse: as pessoas não se

despedem, não deixam os seus pertences preparados para doar, porque nem eles, nem os seus

familiares, nem os seus médicos e cuidadores querem pensar nisso.

O processo de falecimento do meu pai, depois de ter estado treze anos incapacitado

(após um acidente vascular cerebral) e de nos últimos quatro anos ter estado acamado, é um

bom exemplo de como se os familiares estiverem preparados, a finitude do corpo ocorre de

uma forma mais pacífica para toda a família. Lembro-me de pensar, um dia já cansada, que

para além do medo terrível que o meu pai tinha da morte, sobre que outras intencionalidades

o estariam a segurar à terra, a prender à vida no seu corpo já tão debilitado. E pensando que a

minha angústia poderia estar a interferir no processo, uni a minha testa à dele e disse-lhe

baixinho para não o assustar: “Podes ir, eu a mãe ficamos bem, não tenhas medo”. Fiquei

imersa em paz. E no dia seguinte, a meio na noite, chegou a finitude do corpo do meu pai;

deixou de ser um “ser-no-mundo”. Hoje questiono-me: estaria ele à espera que eu estivesse

preparada para o seu “fim”? Estaria a minha angústia a impedir algum processo? Ou teria eu

previsto a sua finitude física naquele preciso dia, tal como no filme analisado, o avô sente a

angústia da neta? Toda a sincronicidade de acontecimentos foi sem dúvida uma experiência

que ficou comigo, que me trouxe crescimento pessoal e que ainda hoje me faz refletir. Talvez

por isso gosto particularmente da cena do filme em que o avô conversa com Mia e deixa-a à

vontade para decidir. Da minha experiência penso que pode ser uma atitude de extrema

importância, bem como que, o deixar ir, pode mudar a perspetiva sobre o que é a finitude.

Conclusão

Sendo óbvia a finitude do corpo, não é óbvia a finitude da consciência, pelo

contrário. Porém é necessária mais investigação para que se possa afirmar definitivamente

que há vida depois da morte. Não era todavia suposto dar uma resposta absoluta à questão

orientadora deste trabalho, mas sim, refletir sobre a finitude. O que é possível concluir é que

a morte continua a ser um dos maiores mistérios para a ciência. Logo, no âmbito da

psicologia clínica, como poderemos nós acalmar as angústias da morte dos pacientes, quando

não sabemos como acalmar a nossa? Uma coisa é certa: todos vamos morrer, os nossos

corpos vão desaparecer. Mas parece que a consciência não morre com o corpo. E então,

continua com novas experiências pelo desconhecido? Onde? Até quando? Infinitamente?

A finitude existe? Análise fenomenológica do filme: “Se eu ficar” 13

Talvez a melhor forma de nos prepararmos para obter respostas seja desmistificando

estes temas, refletindo sobre eles, investigando-os. Pois, paradoxalmente, podemos estar a

recear algo de bom. Já há largos anos que as pessoas que vivenciaram experiências de quase-

morte expressam que ficaram mais compassivas e menos conflituosas. Aparentemente

alguma coisa muito boa nos espera. Então, encarar a morte, e percecioná-la como um

processo natural (já que é interdependente da vida) parece-me ser algo que poderíamos fazer

por nós e por outros seres humanos, pois falar da morte, ajuda a desmistificá-la. Já que é

comum as pessoas perderam o medo da morte, após estarem frente-a-frente com ela,

descrevendo experiências de plenitude e de ausência de dor (Tassell-Matamua & Lindsay,

2015) porque não ver a morte como algo de inevitavelmente bom? Porque não pensar que na

sequência da finitude do corpo algo de potencialmente bom acontece? Parece-me ser

importante que a angústia da morte não nos domine ao ponto de evitarmos falar dessa

finitude que, aparentemente, desvela uma infinitude. Os estudos salientam que os

profissionais de saúde podem criar uma morte boa, quando ajudam os pacientes a falar, a não

deixarem assuntos pendentes, a não deixarem para amanhã o que podem dizer hoje aos

familiares e amigos (Santos & Hormanez, 2013). E se a cada dia que passa, estamos a morrer

(Yalom, 1980), então porque não viver cada dia como se fosse o último, usando bem todos os

sentidos, respirando e vivendo (usando as expressões de Heidegger, 1986) não só como ser

um “ser-no-mundo” mas também como um “ser-para-a-morte”, um ser-total.

Assim sendo e respondendo à questão inicial: a finitude existe? Sim, claro que há

um fim: o do corpo. E com o fim do corpo finaliza a existência, que conhecemos como

humana. Mas será realmente o fim do ser (ou da consciência, sendo preferido este termo)?

Que outra existência desconhecida poderá esperá-lo? Alguns investigadores anseiam chegar a

essa descoberta. Para já é cada vez mais claro que a consciência é independente do corpo e

que com a finitude deste, a consciência continua a existir. Com o desenvolvimento de novas

tecnologias, novas provas muito provavelmente irão surgir. Na verdade Benedict de Spinoza

(1632-1677), citado em Soyarslan (2014, p. 254), já vislumbrava aquilo que se comprova

cada vez mais frequentemente: “A mente humana não pode ser absolutamente destruída com

o corpo humano, mas há uma parte dela que permanece e é eterna.”

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