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REVISTA OLHAR – ANO 9 – N o 16 – Jan-Jul/2007 63 A PERCEPÇÃO EM MERLEAU-PONTY E A VIDÊNCIA POÉTICA DE RIMBAUD ($/0 M,1"#&4 6,=C&$10 Y RESUMO: A percepção é o tema central da losoa de Merleau-Ponty. No entanto, vários estu- diosos argumentaram que ele não foi bem sucedido em deni-la satisfatoriamente. Nosso estudo mostrará que Merleau-Ponty compreenderá a percepção, de modo suciente, a partir de sua lei- tura da poesia de Rimbaud. PALAVRAS-CHAVE: MERLEAU-PONTY; RIMBAUD; PERCEPÇÃO Perception in Merleau-Ponty and Poetic insight in Rimbaud. ABSTRACT: Perception is the central theme of Merleau-Ponty’s philosophy. However, several studies have argued that he never really succeeded in dening it satisfactorily. Our inquiry will show that Merleau-Ponty arrives at a adequate understanding of perception through his study of Rimbaud’s poetry. KEYWORDS: MERLEAU-PONTY; RIMBAUD; PERCEPTION Quarenta anos após sua morte, a obra de Merleau-Ponty ainda é pouco conhecida. São relativamente recentes os estudos que discutem de modo mais técnico suas noções cen- trais, ou que interroguem sua relação com as losoas com as quais dialogou, como as de Descartes, Bergson, Husserl ou Heidegger. No entanto, em meio ao interesse relativamen- te crescente por sua obra, são raros os estudos que discutem uma dimensão importante: sua relação com a poesia de Rimbaud. Será esse o objetivo de nosso estudo, mas ele deve levar em conta duas objeções iniciais. A primeira é de ordem geral, e parece apontar para um sério problema no estudo que propomos. É que a tentativa de estudar a obra de Merleau-Ponty pela discussão de sua relação com a arte pareceria problemática por de- terminar a losoa através de algo que lhe seria externo. A compreensão efetiva da obra de um lósofo não requereria antes que investiguemos suas questões como sendo ques- tões losócas, que não as dissolvamos nas diversas relações que essa obra manteria com domínios exteriores à losoa? Pareceria assim que nossa proposta não poderia chegar a resultados losócos importantes, podendo no máximo ilustrar “artisticamente” idéias preconcebidas a respeito da obra de um lósofo. Essa objeção parece bem fundada, mas na verdade ela não chega a constituir um verdadeiro impedimento para nosso estudo. Não partimos de um pressuposto geral qualquer sobre como uma losoa deveria ser estudada, apenas procuramos discutir algo que é uma das características principais da obra de Merleau-Ponty, que é o fato de ela tomar a arte como um campo privilegiado de investigação. Nosso estudo não se perguntará sobre o fundamento de tal relação, mas apenas: o que Merleau-Ponty encontra na poesia de Rimbaud?

A percepção em Merleau-Ponty e a vidência poética em Rimbaud

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REVISTA OLHAR – ANO 9 – No 16 – Jan-Jul/2007 63

A PERCEPÇÃO EM MERLEAU-PONTY E A VIDÊNCIA POÉTICA DE RIMBAUD

($/0'M,1"#&4'6,=C&$10Y

RESUMO: A percepção é o tema central da fi losofi a de Merleau-Ponty. No entanto, vários estu-diosos argumentaram que ele não foi bem sucedido em defi ni-la satisfatoriamente. Nosso estudo mostrará que Merleau-Ponty compreenderá a percepção, de modo sufi ciente, a partir de sua lei-tura da poesia de Rimbaud.PALAVRAS-CHAVE: MERLEAU-PONTY; RIMBAUD; PERCEPÇÃO

Perception in Merleau-Ponty and Poetic insight in Rimbaud.ABSTRACT: Perception is the central theme of Merleau-Ponty’s philosophy. However, several studies have argued that he never really succeeded in defi ning it satisfactorily. Our inquiry will show that Merleau-Ponty arrives at a adequate understanding of perception through his study of Rimbaud’s poetry. KEYWORDS: MERLEAU-PONTY; RIMBAUD; PERCEPTION

Quarenta anos após sua morte, a obra de Merleau-Ponty ainda é pouco conhecida. São relativamente recentes os estudos que discutem de modo mais técnico suas noções cen-trais, ou que interroguem sua relação com as fi losofi as com as quais dialogou, como as de Descartes, Bergson, Husserl ou Heidegger. No entanto, em meio ao interesse relativamen-te crescente por sua obra, são raros os estudos que discutem uma dimensão importante: sua relação com a poesia de Rimbaud. Será esse o objetivo de nosso estudo, mas ele deve levar em conta duas objeções iniciais. A primeira é de ordem geral, e parece apontar para um sério problema no estudo que propomos. É que a tentativa de estudar a obra de Merleau-Ponty pela discussão de sua relação com a arte pareceria problemática por de-terminar a fi losofi a através de algo que lhe seria externo. A compreensão efetiva da obra de um fi lósofo não requereria antes que investiguemos suas questões como sendo ques-tões fi losófi cas, que não as dissolvamos nas diversas relações que essa obra manteria com domínios exteriores à fi losofi a? Pareceria assim que nossa proposta não poderia chegar a resultados fi losófi cos importantes, podendo no máximo ilustrar “artisticamente” idéias preconcebidas a respeito da obra de um fi lósofo. Essa objeção parece bem fundada, mas na verdade ela não chega a constituir um verdadeiro impedimento para nosso estudo. Não partimos de um pressuposto geral qualquer sobre como uma fi losofi a deveria ser estudada, apenas procuramos discutir algo que é uma das características principais da obra de Merleau-Ponty, que é o fato de ela tomar a arte como um campo privilegiado de investigação. Nosso estudo não se perguntará sobre o fundamento de tal relação, mas apenas: o que Merleau-Ponty encontra na poesia de Rimbaud?

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O objetivo específi co de nosso estudo levanta, no entanto, outra objeção. É que, à primeira vista, Merleau-Ponty não parece discutir muito a poesia, pois ele discute sobre-tudo a pintura, estando sua obra pontuada por referências a pintores como Cézanne, Paul Klee, Marx Ernst e Matisse. Esse aparente privilégio da pintura seria compreensível na medida em que ela se “ajustaria” de algum modo ao tema da percepção. Ora, a percepção não é um tema qualquer em sua obra, mas é justamente sua questão central. Ela é tão central que aparece direta ou indiretamente nos título de muitos de seus textos, como A Fenomenologia da Percepção (1945), O Primado da Percepção e suas Conseqüências Filo-sófi cas (1946), O Olho e o Espírito (1960) e O Visível e o Invisível (1958-1961). Seria então o “primado da percepção” que determinaria o papel periférico da poesia em sua obra, porque seu aspecto discursivo seria pouco compatível com o caráter mudo da percepção. Mas as coisas não são tão simples como poderia parecer nessa primeira abordagem, pois se é verdade que a percepção seria um elemento importante na obra de Merleau-Ponty, a questão é, no entanto, a de compreender o sentido de sua importância. Não há pala-vra em fi losofi a que possa ser considerada auto-evidente, sequer um termo tão familiar como percepção. Para Merleau-Ponty, sua aparente familiaridade vem de ela nos mos-trar elementos que parecem igualmente familiares, como as outras pessoas, as árvores, as paisagens, e tudo aquilo que percebemos de modo “natural”. No entanto, aquilo que percebemos, não o percebemos como se fosse uma singularidade isolada, mas enquanto participando de algo mais geral, e ao qual tradicionalmente nos referimos com a palavra “mundo’”. A percepção concentra assim um problema fi losófi co decisivo, o de nossa rela-ção com o mundo. Ela é por esse motivo mais do que uma questão a ser determinada, é o pólo em função do qual a fi losofi a de Merleau-Ponty se constitui:

É verdade, ao mesmo tempo, que o mundo é isto que vemos e que, en-tretanto, devemos aprender a vê-lo. No sentido de que devemos igualar pelo saber esta visão [...] fazer como se não soubéssemos nada, como se tivéssemos que tudo aprender.1

Nosso objetivo aqui será o de compreender um momento da investigação de Mer-leau-Ponty. Trata-se de um momento importante, porque, como veremos, ele explicitará o sentido da percepção. E o inusitado é que essa explicitação será feita pela interrogação que Merleau-Ponty realizará da poesia de Rimbaud. Iniciaremos o estudo desse momento pela tentativa de dissolver uma impressão errônea acerca da percepção em Merleau-Pon-ty, que ela seria oposta à linguagem.

1. Introdução à percepção em Merleau-PontyPara que iniciemos a investigação da percepção em Merleau-Ponty, discutiremos uma frase pertencente a uma de suas “notas de trabalho”. Nessas “notas”, Merleau-Ponty escre-ve rapidamente pensamentos acerca de questões que desenvolve nos textos a serem pu-blicados. No entanto, não se trata para ele de fi xar conceitos numa folha de papel, mas de desenvolver uma investigação. Mesmo tendo uma escrita rápida e empregando freqüen-temente abreviações, essas notas são exercícios fi losófi cos completos. Sua importância é denunciada pelo fato de que geralmente cada uma possui um título. O título daquela que estudaremos é “A Filosofi a do Sensível como Literatura”; dela leremos apenas a seguinte frase:

1 Le Visible et l’invisible, p. 18.

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O sensível é […] tesouro sempre pleno de coisas a dizer para aquele que é fi lósofo (quer dizer, escritor).2

Essa frase é surpreendente, porque apesar de ser um pouco vaga ela possui um tom incisivo. Em uma primeira leitura, talvez diríamos que seu caráter indeterminado viria de ela se iniciar pela estranha expressão “o sensível”. Para falar do mundo, Merleau-Ponty não emprega a expressão fi losófi ca tradicional “mundo sensível” como faz, por exemplo, Kant no título de sua dissertação Sobre a Forma e os Princípios do Mundo Sensível e do Mundo Inteligível.3 Com isso, Merleau-Ponty parece nos iniciar a um mundo que é iden-tifi cado exclusivamente ao sensível, parecendo dizer implicitamente que não há mundo inteligível, que o sensível é todo o mundo. Será que Merleau-Ponty seria um niilista para quem tudo que pertenceria à ordem da idéia, da verdade e da universalidade se encontraria aniquilado? O mun-do em Merleau-Ponty signifi caria então a morte da fi losofi a? Mas é difícil ver um problema dessa or-dem nessa frase, porque nela não há nenhuma ne-gação. Essa frase é afi rmativa, afi rmando o mundo e a fi losofi a. Ela parece mesmo dizer que de algum modo a fi losofi a possuiria uma relação privilegiada com o mundo. Com essa primeira leitura, as coisas começam a fi car mais interessantes, convidando-nos a retirar essa frase de sua indeterminação. Para tanto, concentraremos nosso esforço de interpreta-ção em seu início:

O sensível é […] tesouro sempre pleno […].Ao nos concentrarmos apenas nessas seis pa-

lavras, inesperadamente essa frase ainda soa estra-nha. Ao lermos que “o sensível é tesouro sempre pleno”, não chegamos a uma compreensão estável, pois as palavras “sensível”, “tesouro”, “sempre”, “ple-no” parecem vibrar nessa frase. Como poderíamos dissolver sua indeterminação? São tantos os pon-tos pelos quais essa frase parece nos escapar que não sabemos bem por onde começar. O que é mais inesperado, é a introdução de um pensamento pela expressão “o sensível”?; é o fato de que ao invés de esse início ser explicado ele ser antes complicado pela palavra “tesouro”?; ou é termos chegado a uma afi rmação acerca do mundo que é da ordem de uma fábula, apresentando-o como um “tesouro sempre pleno”? Nossa tentativa de discutir essa frase em detalhes não conseguiu dissolver sua indeterminação, parecendo tê-la aumentado ainda mais. Devemos tentar um outro modo de leitura que o seguido até aqui: ao invés de analisá-la de modo crítico, procurando compreender como é possível afi rmar o que afi rma, a tomaremos do mesmo modo como aparentemente Merleau-Ponty

2 O trabalho fi losófi co de Merleau-Ponty é continuamente acompanhado pela redação de “notas de trabalho”. As mais conhecidas são aquelas publicadas em anexo ao fi nal de O Visível e o Invisível, mas a redação dessas notas não se restringe a um período ou a uma obra em particular. A nota que citamos encontra-se em Le Visible et l’invisible, pp. 305-306.3 Dissertação de 1770 na qual Kant apresenta o caráter a priori do espaço e do tempo, e que foi redigida em latim com o título De mundi sensibilis atque intelligibilis forma et principiis.

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au-Po

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encara a atividade de escrever tais “notas”, como se tratando de uma formulação fi losófi ca completa. Tentemos lê-la então sem qualquer esboço de crítica:

O sensível é […] tesouro sempre pleno de coisas a dizer para aquele que é fi lósofo (quer dizer, escritor).

Essa frase é bem direta. Ela afi rma que, em seu acesso ao mundo, o fi lósofo o vê como “pleno de coisas a dizer”. E ela também afi rma que com isso a fi losofi a descobre que de algum modo seu olhar seria próximo daquele que acompanha a atividade do escritor – o que indica que, de fato, a percepção não seria oposta à linguagem. Ao deixarmos de procurar justifi car ou provar o que essa frase diz, somos levados simplesmente ao duplo problema que ela coloca, o da relação fi losofi a-escrita, percepção-linguagem. Isso que ela afi rma não é uma tese dogmática, mas um sentido que necessita ser aprofundado, e o aprofundaremos justamente ao procurarmos nessa frase os recursos necessários para compreendê-la. Como dissemos, essa frase afi rma algo sobre o sensível e sobre a fi losofi a. No entanto, ela é uma dessas coisas que a fi losofi a diz, o que signifi ca que ela não se en-contra fora da situação que descreve, e por isso, o que ela afi rma também se aplica a ela. Essa frase encontra-se, portanto, ancorada no mundo de que fala, vindo daí seu tom in-cisivo e indeterminado.4 Ela é incisiva porque não faz meras afi rmações “sobre” o mundo e “sobre” a fi losofi a, mas é a fi losofi a falando a partir de seu contato com o mundo. Mas esse contato é justamente a fonte de sua ambigüidade, porque seu enraizamento no mun-do determina que ela não tenha distância para fundamentar o que afi rma a seu respeito.

Com isso podemos compreender uma conhecida defi nição que Merleau-Ponty oferece do fi lósofo:

[O] fi lósofo […] tem inseparavelmente o gosto da evidência e o sentido da ambi-güidade.5

Mas retornemos à nossa “nota de trabalho”. Pelo que vimos, a frase que estudamos seria importante para nos iniciar ao problema da percepção em Merleau-Ponty por indi-car sua proximidade com a linguagem, já que o “ver” da fi losofi a seria explicado pelo “ver” da escrita. É verdade que o sentido desse “ver” é pouco claro, e assim não progredimos na compreensão da questão da percepção; mas um caminho de compreensão talvez se abra se investigarmos a proximidade anunciada com a escrita. E existe algo que permite precisar seu sentido: é que essa nota não reivindica uma proximidade com toda forma de escrita possível, mas, como mostra seu título, apenas com literatura. Tanto isso é verdade que ao dizer que o mundo seria um “tesouro pleno de coisas a dizer”, essa frase parece assumir um estilo especifi camente literário. Para que possamos compreender melhor o sentido da percepção, realizaremos na seqüência o estudo de um momento da literatura que Merleau-Ponty considera decisivo: Rimbaud. Começaremos nos concentrando em dois textos, em suas chamadas “Cartas do Vidente”.

2. Merleau-Ponty e a vidência poética de RimbaudAs “Cartas do Vidente” são duas cartas que Rimbaud escreveu quando tinha 17 anos, mais precisamente em 13 e 15 de maio de 1871. Ele era então amigo de um professor de fi losofi a, e muito se especulou acerca da possível presença da fi losofi a da época nestas cartas.6 Mas nada de anterior as explica, já que aquilo que as sustenta é a própria poesia,

4 Merleau-Ponty considera que esse enraizamento tem um sentido mais geral: não se trata apenas dessa frase, mas de toda linguagem, como afi rma, por exemplo, nas Notes de cours 1959-1961, p. 202: “A linguagem [encontra-se] incrustada no visível e tem aí seu lugar.”5 Éloge de la philosophie et autres essais, p. 10.6 Ver a esse respeito o estudo de Pierre Brunel que considera que o tema da superação do sujeito, presente nas preocupações da fi losofi a ao fi nal do século XIX, teria sido importante para Rimbaud.

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pois elas são, como Rimbaud afi rma na segunda carta, “prosa sobre o futuro da poesia”.7 Diversos artistas se impressionaram com elas, e em O Olho e o Espírito Merleau-Ponty se refere a um deles, Marx Ernst, reproduzindo o que dissera a seu respeito:

[Assim] como o papel do poeta, depois da célebre carta do vidente, consiste em escrever sob o ditado do que se pensa, do que se articula nele, o papel do pintor é de chegar ao cerne do que nele se vê.8

Temos aqui uma estranha formulação, e normalmente esperaríamos de um fi lósofo uma crítica ou uma justifi cação qualquer, mas isso não ocorre: Merleau-Ponty simples-mente a aceita. Ele a tomará por uma declaração da arte sobre si mesma, por uma decla-ração de intenções que aponta para uma aspiração que a orientaria a partir de então. É em parte por signifi car essa nova direção, que dissemos que Merleau-Ponty considera a obra de Rimbaud um momento decisivo da literatura. No texto de preparação de seu último curso no Collège de France, Merleau-Ponty falará dessa importância de modo explícito ao dizer, a propósito da primeira “Carta do Vidente”, que “Rimbaud [é uma] etapa radiante em uma evolução da literatura que começou antes e continua depois dele.”9 Ora, a impor-tância de Rimbaud não se limita à literatura tomada em sentido estrito, porque vimos que existiria uma íntima relação entre fi losofi a e literatura. Assim, parece existir em Rimbaud algo que seria importante para constituição da própria investigação fi losófi ca de Merleau-Ponty. Como ela encontra-se centrada na questão da percepção, talvez possamos encon-trar na leitura que Merleau-Ponty realiza desse autor pistas que permitam compreender o sentido da percepção.

Essa parece ser uma estranha tentativa: encontrar na fi losofi a de Rimbaud algo que explique o sentido da percepção em Merleau-Ponty. Mas caso seja possível encontrar essa ligação, então pelo menos evitaremos uma difi culdade com que muitos estudiosos da obra de Merleau-Ponty se defrontaram, com a aparente ausência de defi nição satisfatória da percepção em sua obra. Essa ausência determina duas atitudes: ou se considera impli-citamente que a percepção seria algo evidente, e com isso não se discute seu estatuto – ou então se considera que ela seja problemática, e com isso é a própria fi losofi a de Merleau-Ponty que parece problemática.10 É verdade que, no período inicial de sua obra, a per-cepção encontra-se defi nida de modo meramente negativo, como na Fenomenologia da Percepção, que a contrasta aos “preconceitos clássicos” a seu respeito.11 Esse livro afi rma que a percepção não é uma atividade do homem, que ela não é composta por um voca-bulário de sensações e que não se encontra subordinada à esfera intelectual – mas fi ca em suspenso o que ela é.12 E quando em sua obra fi nal Merleau-Ponty passa a caracterizá-la positivamente, muitos estudos julgam essa tentativa incompleta ou mesmo problemática. Diversos são os termos pelos quais Merleau-Ponty procurará caracterizar a percepção, como “quiasma”, “reversibilidade”, “entrelaçamento”, “pivô”, apenas para citarmos alguns

Em sua interpretação, ele considera que a fi losofi a de Taine teria uma importância decisiva. Ver Rimbaud, projets et réalisations, p. 67.7 Rimbaud, Œuvres complètes, p. 269.8 Citado por Merleau-Ponty em L’Œil et l’esprit, p. 30. 9 Notes de cours 1959-1961, p. 187.10 Como representante dessa posição crítica, pode-se consultar o texto de Renaud Barbaras, “Life and Perceptual Intentionality”.11 Esse é justamente o título do primeiro capítulo da Fenomenologia da Percepção, “Os Preconceitos Clássicos e o Retorno aos Fenômenos”.12 Esse livro escapa ao problema da defi nição da percepção por remetê-lo a um outro problema, o do corpo. O capítulo que marca esse deslocamento chama-se justamente “A Teoria do Corpo Próprio já é uma Teoria da Percepção”.

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dos mais empregados. Essa profusão talvez indique algo problemático, que ele teria fi cado insatisfeito com os resultados alcançados em cada um deles. Mas a que se deveria essa di-fi culdade em pensar a percepção por si só? Talvez a algo que dissemos ao início de nosso texto, que ela tem um sentido relacional, e assim, para pensá-la, somos necessariamente levados a outros problemas...

Nossa tentativa de procurar na poesia de Rimbaud algo que permitiria precisar o sentido da percepção procura contornar esse problema. Consideramos que Rimbaud ofereça tal possibilidade por ser, como vimos, um momento importante da literatura. E mais que isso, devido à relação entre fi losofi a e literatura, sua importância não permanece limitada ao âmbito da arte, mas concerne o domínio mais vasto de nossa relação com o mundo. É por esse motivo que a afi rmação de que Rimbaud seria uma “etapa radiante” da literatura se revelará pouco após na seqüência desse curso como possuindo uma dimen-são fi losófi ca essencial, pois Merleau-Ponty dirá que tal importância se deve a que nele ocorreria:

Talvez, mudança da relação com o ser.13 Ou seja, nossa relação com o mundo se encontraria transformada em Rimbaud de

modo radical, de modo tão radical que ela teria um novo estatuto ontológico. Veremos a seguir que esse novo estatuto concerniria de modo particular a percepção. Para que possamos compreender aquilo que na obra de Rimbaud apontaria para um novo sentido para a percepção, discutiremos a seguir aquela passagem de sua primeira “Carta do Vi-dente” que mais teria atraído a atenção de Merleau-Ponty. Rimbaud enviou essa carta a seu antigo professor de literatura, Georges Izambard, para recusar seu pedido de retorno à escola que abandonara repentinamente no ano anterior. Essa fuga foi tão mais ines-perada porque até os 16 anos Rimbaud realizara estudos brilhantes, ganhando prêmios e elogios ofi ciais por seus poemas em francês e latim. Rimbaud responde a seu pedido ridicularizando seus colegas de escola, o apego de seu professor ao cargo e mesmo a poe-sia que esse escreve. Mas sua recusa não pode ser reduzida a uma espécie de inadaptação social, pois ela encontra sua razão em sua relação com a poesia. E assim Rimbaud dirá nessa primeira carta:

Agora eu me encrapulo o máximo possível. Por que? Eu quero ser po-eta, e trabalho para me tornar vidente: você não compreenderá isso, e eu quase não saberia te explicar. Trata-se de chegar ao desconhe-cido pelo desregramento de todos os sentidos. Os sofrimentos são enormes, mas deve-se ser forte, ter nascido poeta, e eu me reconhe-ci poeta. Não é absolutamente minha culpa. É falso dizer: eu pen-so: dever-se-ia dizer: pensam-me – desculpe pelo jogo de palavras. Eu é um outro. Tanto pior para a madeira que se descobre violino, e des-prezo aos inconscientes que discutem aquilo que ignoram inteiramente!14

É verdade que esse trecho mostra a recusa de Rimbaud em se adequar à sociedade. No entanto, o que ele mostra é, sobretudo, que essa recusa não se origina de uma irres-ponsabilidade juvenil, mas de uma exigência de ordem superior, a de querer ser poeta. Esse querer não é arbitrário, pois Rimbaud quer ser poeta por se reconhecer poeta, por ter nascido poeta. É a poesia que dá o tom aqui, é ela que coloca suas exigências, mesmo exageradas – “os sofrimentos são enormes”. O tornar-se poeta não se mede pela oposição à moral da época ou por qualquer outro elemento externo, pois a medida do fazer poesia da poesia é interna a ela, é da ordem de uma vidência em direção ao desconhecido. Se

13 Notes de cours 1959-1961, p. 187.14 Rimbaud, Œuvres complètes, p. 245.

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Rimbaud se descobre poeta, é por descobrir a poesia fazendo-se nele em uma “alquimia” secreta – assim como “a madeira […] se descobre violino”.

Muito se discutiu sobre se Rimbaud teria mantido tal compreensão da poesia até o fi nal de sua produção poética. Diversos comentadores consideram que ele não a teria mantido, recusando-a explicitamente em alguns poemas de seu livro Uma Estação no Inferno. Mas em sua leitura de Rimbaud, Merleau-Ponty não se interessou por esse tipo de discussão, importando para ele apenas o que a vidência permitiria compreender acer-ca da percepção. E Merleau-Ponty realmente considerará que ela teria um papel central, como se pode ver pela “nota de trabalho” que citaremos a seguir:

[...] reencontrar o homem enfi m face a face com o mundo mesmo […] é reencontrar essa visão das origens, o que se vê em nós, como a poesia reen-contra o que se articula em nós, sem que o saibamos (Marx Ernst […]).15

Deve-se levar em conta dois elementos que são apresentados nesse trecho. O pri-meiro é que nele Merleau-Ponty identifi ca pura e simplesmente a percepção à vidência. Não há uma mera “proximidade”, uma relação vaga entre elas, mas percepção signifi ca vidência. Ora, isso signifi ca que a percepção é pensável – signifi cando ela um “chegar ao desconhecido”. A difi culdade que muitos comentadores sentiram em defi ni-la não se en-contra ligada, portanto, a uma insufi ciência, mas em ela se defi nir por sua relação com o desconhecido. O segundo elemento a ser observado nesse trecho é que ele se refere a uma outra característica da vidência que também se aplica à percepção: é que ela permite o en-contro do homem com o mundo, sendo esse encontro dito pela palavra articulação. Tal-vez isso explique os termos com que Merleau-Ponty pensa a percepção em sua obra fi nal, pois noções aparentemente inusitadas e heterogêneas como “quiasma”, “reversibilidade”, “pivô” e “entrelaçamento” possuem em comum o fato de serem modos dessa articulação. Na seqüência fi nal de nosso estudo, não procuraremos explicar cada um desses termos, mas nos concentraremos no sentido unitário da vidência enquanto articulação.

3. A vidência como estrutura de articulaçãoDiversos estudos da obra de Merleau-Ponty sublinham a importância do Curso de Lin-güística Geral de Saussure para a compreensão da mudança que ocorre em sua obra nos anos 50. O que se procura explicar é o surgimento do tema da linguagem, pouco discu-tido na Fenomenologia da Percepção, mas decisivo em sua obra fi nal.16 Com esse “novo” tema, seria todo um horizonte de questões que se abriria, residindo nele a origem do novo tipo de investigação que ocorre na parte fi nal de sua obra.17 Se adicionarmos a isso o fato de que esse texto critica o projeto da Fenomenologia da Percepção, compreende-se que muitos estudos apontem para algum tipo de incompatibilidade entre “percepção” e “lin-guagem”. Entretanto, os resultados a que chegamos não permitem falar de uma mudança radical, da substituição da percepção pela linguagem, porque vimos que esses termos não são tomados por Merleau-Ponty como excludentes.18 Mesmo que inicialmente sua obra não consiga desenvolver o tema da linguagem, seu projeto sempre foi o de compreender

15 Le Visible et l’invisible, p. 261. Nota de setembro de 1959, “Pregnância Empírica e Pregnância Geométrica (E. Brunszwik)”. 16 A Fenomenologia da Percepção realiza uma breve discussão da linguagem no capítulo “O Corpo enquanto Expressão e Linguagem”.17 Ver a esse respeito o estudo de Mauro Carbone, “La Dicibilité du monde. La Période intermé-diaire de la pensée de Merleau-Ponty à partir de Saussure”.18 Françoise Dastur em “Le corps de la parole”, p. 64, recusa por outras razões a importância de Saus-sure para Merleau-Ponty, indicando que ele possuiria uma proximidade maior com Humboldt.

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sua relação com a percepção porque, afi nal de contas, uma fi losofi a da percepção é uma fi losofi a que fala da percepção.19 Assim, sempre se colocou no horizonte de sua pesquisa a relação entre a linguagem e a experiência muda perceptiva, mas será apenas pelo apro-fundamento na vidência poética que Merleau-Ponty compreenderá positivamente sua unidade. É por esse motivo que, ao comentar a primeira “Carta do Vidente” em seu curso fi nal, ele terminará por dizer:

[...] problema único: o visível e o signifi cado poético entrelaçados.20

Se há uma mudança em sua obra, não se trata da mudança de projeto, mas de um aprofundamento no projeto original de investigar a percepção. Será como parte desse aprofundamento que se mostrará que percepção e linguagem constituem um “proble-ma único” – algo que já fora dito naquela “nota de trabalho” que analisamos ao início de nosso estudo. Esse problema único é a vidência da linguagem. Na maioria das vezes, negligenciamos esse poder em nosso uso prosaico da linguagem, mas podemos também evidenciá-lo em alguns usos específi cos, como na fi losofi a e na literatura:

[A fi losofi a] faz ver pelas palavras. Como toda literatura.21

É porque a fi losofi a faz ver pelas palavras que os fi lósofos sempre foram atraídos por aquelas que lhes permitiriam deter-

minar suas questões de modo pleno. Mas por quais palavras Merleau-Ponty teria sido atraído em seu esforço por ver o

mundo? Existem duas respostas a essa questão. A mais evidente é que ele não teria sido atraído por nenhuma em particular, porque não se trata para ele de encontrar conceitos determinantes, mas de realizar um uso literá-rio da linguagem na fi losofi a. Assim se explica a fl uidez de sua escrita e a diversidade de termos que emprega para falar de nossa experiência. Mas existe ainda uma segunda resposta para essa questão, uma resposta me-nos evidente. Apesar da diversidade de termos com os

quais sua fi losofi a trabalha, ela é continuamente atraída por uma palavra singular, pelo verbo “haver” em seu uso

impessoal: há. A formulação “há” (“il y a”) é empregada continuamente em seus textos, de modos tão diversos que sua

importância pode passar desapercebida. Fala-se ao longo de sua obra de um “há puro”, de um “certo há”, de que “há o mundo”, “há o ser”, “há algo”. Esse termo ritma seu pensamento de modo discreto, articulando os diversos sentidos em jogo em nosso encontro com o mundo. Alguém poderia considerar estranho que, ao chegar-mos ao centro do pensamento de um autor, encontremos tão pouco, apenas o termo “há”. Como uma única palavra poderia articular nosso encontro com o mundo? Algo comple-xo dessa ordem não requereria antes um sistema de categorias, um conjunto de gêneros supremos ou uma estrutura conceitual qualquer?

Para compreendermos como o “há” pode ser em Merleau-Ponty a articulação de nosso encontro com o mundo, nos dirigiremos a um poema de Rimbaud que o emprega de modo repetido. Trata-se do poema “Infância”, que se encontra ao início das Iluminações:

19 Desde a Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty cita uma frase das Meditações Cartesianas de Husserl: “É a experiência [...] ainda muda que se trata de conduzir à expressão pura de seu pró-prio sentido” (Phénoménologie de la perception, p. X).20 Notes de cours 1959-1961, p. 186.21 Le Visible et l’invisible, p. 319. Nota de novembro de 1960, “Política – Filosofi a – Literatura”.

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No bosque, há um pássaro, seu canto te pára e te faz corar.Há um relógio que não soa.

Há uma fenda com um ninho de bichos brancos.Há uma catedral que desce e um lago que sobe.

Há um pequeno carro abandonado nos arbustos, ou que desce o cami-nho correndo, ornado de fi tas.

Há uma troupe de pequenos atores com fantasias, percebidos na estra-da através da orla do bosque.

Há enfi m, quando se tem fome e sede, alguém que te expulsa.22

Esse poema de Rimbaud é único em sua obra. O há se repete nele em um ritmo que não se sobrepõe àquilo que ele introduz. E o que ele introduz são imagens singu-lares, imagens sem relação imediata entre si e que apesar disso são aspectos do mesmo bosque. Isso parece concordar com o que Verlaine escreveu no prefácio das Iluminações ao publicar esse livro à revelia de Rimbaud, que seu título não se referiria à palavra fran-cesa Illuminations, mas à palavra inglesa Illuminations, que traduziríamos em português por iluminuras.23 O poema “Infância” parece corresponder justamente a um conjunto de imagens preciosas que, como as iluminuras, recortam o bosque e o iluminam com seu colorido particular. Temos conjuntos completos, “uma troupe de pequenos atores com fantasias”, “uma catedral que desce”, “um lago que sobe”, “um pequeno carro abandonado”. Cada imagem não explica a outra de modo imediato, mas todas se articulam nesse “há”.

O bosque é um lugar em que as coisas ganham relevo, e assim algo banal como um relógio defeituoso surge como um verdadeiro acontecimento, importando que o relógio não soe. Mas ao mesmo tempo, ele mostra a singularidade de cada coisa. No verso “há uma fenda com um ninho de bichos brancos”, a palavra “fenda” é dita sem coordenação com a palavra “ninho”. O ninho não é algo que qualifi que a fenda como se ela fosse um lugar de proteção ou, contrariamente, como se fosse uma cloaca infestada por vermes. A relação entre “ninho” e “fenda” é deixada livre, e desta liberdade algo inesperado pode surgir, algo indeterminadamente vivo como “bichos brancos”. Esse conjunto de elemen-tos distintos mostra esse bosque como um lugar pouco acolhedor. Ao início, o canto do pássaro “te pára”. Ao fi nal, quando se tem sede e fome, “alguém te expulsa”. Esse bosque nos concerne, sua diversidade nos assedia, mas ele nada garante.

Caso procurássemos retornar agora a Merleau-Ponty para pensar o sentido do ter-mo “há” em sua obra, nos sujeitaríamos à crítica aparentemente convincente de que, com isso, subordinaríamos a fi losofi a a um elemento exterior. Mas vimos ao início de nosso estudo que essa crítica é potencialmente correta enquanto injunção ao estudo de uma fi losofi a em sua problemática específi ca, mas que deixa de ter valor se procura determi-nar o que uma fi losofi a pode ou não pode fazer. Essa crítica não se aplica a nosso estudo de Merleau-Ponty porque ele não apenas reivindica uma proximidade com a literatura, mas termina por compreender a percepção pela vidência poética de Rimbaud. Podemos então perguntar legitimamente: em que o “há”, que ritma o poema “Infância”, explicaria a articulação da vidência da percepção em Merleau-Ponty? Ora, vimos que esse termo mostra o bosque como o lugar de ocorrência de elementos heterogêneos, e que esse lugar seria estranho ou mesmo inóspito. Isso signifi ca que o caráter indeterminado do “há” é

22 Rimbaud, Œuvres complètes, p. 177. É curioso notar que em 1962 Heidegger se refi ra ao “há” nesse poema em sua discussão da questão do ser. Ver o “Protocolo de Tempo e Ser” em Zur Sache des Denkens, p. 23.23 Ver a “notice” de Verlaine nas Illuminations – Coloured Plates, pp. 1-2. Esses são, aliás, os dois títulos empregados em português: a tradução de Lêdo Ivo, que tem por título Uma Temporada no inferno e Iluminações, e a mais recente, Iluminuras – Gravuras Coloridas.

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justamente o que permite que não vejamos simplesmente o mundo de um outro modo, mas que nos relacionemos com ele como desconhecido.

Esse desconhecido é ao mesmo tempo o que permite a individuação e a singulari-zação de cada coisa. O há é o que permite a articulação do desconhecido pela qual seus diversos aspectos ganham relevo, ou, em outros termos, é o que permite que ele seja visto como um “tesouro sempre pleno de coisas a dizer”. Assim, o “há” permite que o mundo reúna as possibilidades mais diversas sem se reduzir a nenhuma delas.

4. O mundo compreendido pelo desconhecidoA descoberta do mundo que ocorre em Merleau-Ponty se dá pela dissolução da dicoto-mia metafísica entre um mundo sensível e um mundo inteligível. “O sensível” é pensado como incluindo em si tudo o que tradicionalmente se atribuiria ao “inteligível”, sendo por isso sua obra dirigida a pensá-lo como a “origem da verdade”.24 Nosso estudo da percep-ção explicitou que Merleau-Ponty estuda esse mundo como desconhecido, e assim ele escapa às compreensões tradicionais de berço da humanidade, kósmos harmônico, con-junto da criação ou objeto da ciência. O sentido do mundo que se mostra pela vidência é a de algo que nos escapa, e no qual não nos sentimos em casa.

Assim, contrariamente ao que poderia parecer à primeira vista, a revalorização do sensível não o apresenta como aquilo que resolveria os “falsos problemas” da fi losofi a tradicional, recuperando um elemento que incompreensivelmente ela teria deixado de lado. Merleau-Ponty compartilha com ela o mesmo movimento de investigação radical em direção à verdade, mas, em seu caso, a necessidade de a investigação fi losófi ca não se guiar por signifi cações previamente estabelecidas não determina que se ignore o proble-ma do mundo. É verdade que para Merleau-Ponty o mundo é o lugar onde ocorre a sedi-mentação de signifi cados, sendo ele em parte o mundo de referências comuns da cultura – o que fornece seu aspecto pretensamente familiar. Mas, radicalmente compreendido, o mundo é compreensível pelo desconhecido, não permitindo por isso o reconforto de uma tradição instituída. É esse desconhecido que “atua”, ao revelar os singulares em seu caráter único e estranho, mostrando que o mundo não resulta da atividade doadora de sentido de uma subjetividade. É devido a sua relação com o desconhecido que o mundo possui sua contextura própria, articulando-se em momentos diversos. Nosso encontro com ele ocorre enquanto uma dessas articulações. Vimos que ele ocorre em nós “sem que o saiba-mos”. No entanto, isso não quer dizer que sejamos determinados pelo mundo, mas antes que nós e mundo nos comunicamos através desse desconhecido, articulando-nos sem que ocorra uma síntese explicativa total. Esse articular signifi ca, portanto, que há homens, mundo, coisas, e que sua existência não é da ordem do em-si, pois o que dá o peso próprio a cada um é justamente a articulação do heterogêneo.

BIBLIOGRAFIABARBARAS, Renaud. Life and Perceptual Intentionality, in Research in Phenomenology, 33: 2003.BRUNEL, Pierre. Rimbaud, projets et réalisations. Paris: Honoré Champion, 1983. CARBONE, Mauro. La Dicibilité du monde. La Période intermédiaire de la pensée de Merleau-Ponty à partir de Saussure, in Recherches sur la philosophie et le langage, nº 15, 1993.DASTUR, Françoise. Le corps de la parole, in Chair et langage. Fougères: Encre marine, 2001.HEIDEGGER, Martin. Zur Sache des Denkens. Tübingen: Max Niemeyer, 2001.MERLEAU-PONTY, Maurice. Éloge de la philosophie et autres essais. Paris: Gallimard, 1975.MERLEAU-PONTY, Maurice. L’Œil et l’esprit. Paris: Gallimard, 1985.

24 Sendo A Origem da Verdade o título inicialmente projetado por Merleau-Ponty para o texto que conhecemos sob o nome de O Visível e o Invisível.

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MERLEAU-PONTY, Maurice. Notes de cours 1959-1961. Paris: Gallimard, 2000.MERLEAU-PONTY, Maurice. Phénoménologie de la perception. Paris: Gallimard, 1995.MERLEAU-PONTY, Maurice. Le Visible et l’invisible. Paris: Gallimard, 1996.RIMBAUD, Arthur. Iluminuras – Gravuras Coloridas. São Paulo: Iluminuras, 1996.________. Les illuminations – Coloured Plates. Paris: Arléa, 1997.________. Œuvres complètes. Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard, 1963.________. Uma Temporada no inferno e Iluminações. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1ª edição 1957; Rio de Janeiro, Francisco Alves, 3ª edição, 1982.

YTito Marques Palmeiro é professora da PUC-Rio.

Cézanne: No parque de Château Noir

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