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Ação civil pública – anulação de licenciamento ambiental de atividade madeireira em
reserva extrativista1
PEDRO ABI EÇAB
Promotor de Justiça.
OSVALDO DOS SANTOS HEITOR JÚNIOR
Procurador da República.
Excelentíssimo Senhor Doutor Juiz Federal da Vara Federal da Seção Judiciária de
Rondônia2.
Processo n.
Classe: Ação Civil Pública (ambiental).
Autores: Ministério Público Federal e Ministério Público do Estado de Rondônia.
Réus: Estado de Rondônia, Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos
Naturais Renováveis (Ibama), Instituto Chico Mendes de Conservação da
Biodiversidade (ICMBIO), Fundação Nacional do Índio (Funai), Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (Incra), Marcol Ind. e Com. Ltda., Associação dos
Seringueiros das Reservas Extrativistas Barreiro das Antas e Rio Pacaás Novos
“Primavera” e Cooperativa “Vida Nova”.
Procedimento: Inquérito Civil n. 2007001060002975.
O Ministério Público Federal e o Ministério Público do Estado de Rondônia vêm,
respeitosamente, à presença de Vossa Excelência, ajuizar Ação Civil Pública, com
Pedido de Antecipação de Tutela, para o fim de implementar a proteção do meio
ambiente em face de:
a) Estado de Rondônia, pessoa jurídica de direito público interno, devendo ser citado
por seu Procurador Geral, podendo ser localizado na sede da Procuradoria Geral do
1 Publicado na Revista de Direito Ambiental, vol.59, Revista dos Tribunais, São Paulo, 2010. 2 A liminar foi concedida pelo Juízo.
Estado de Rondônia, sito à Av. Imigrantes, bairro Costa e Silva, Porto Velho,
responsável juridicamente pelos atos praticados pela Secretaria Estadual de
Desenvolvimento Ambiental – Sedam, sediada na Estrada do Santo Antônio, Porto
Velho;
b) Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama),
Autarquia Federal criada pela Lei 7.735/1989 e vinculada ao Ministério do Meio
Ambiente, dos Recursos Hídricos e da Amazônia Legal, dotada de personalidade
jurídica própria, com sede em Brasília, DF e Representação Estadual situada na Av.
Jorge Teixeira, n. 3.477, nesta capital;
c) Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBIO), Autarquia
Federal criada pela Lei 11.516/2007 e vinculada ao Ministério do Meio Ambiente, dos
Recursos Hídricos e da Amazônia Legal, dotada de personalidade jurídica própria, com
sede em Brasília, DF e Representação Estadual situada na Avenida Lauro Sodré, n.
6.500, Bairro Aeroporto, Porto Velho, RO, CEP n. 78.903-711;
d) Fundação Nacional do Índio (Funai), Fundação Pública, sediada em Brasília, DF, e
com Representação Estadual (Administração Executiva Regional de Guajará-Mirim,
RO) na Avenida Constituição, n. 542, Centro, Guajará-Mirim, RO, CEP n. 78.957-000;
e) Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Autarquia Federal
criada pelo Dec. 1.110/1970, dotada de personalidade jurídica própria, com sede em
Brasília, DF, e Representação Estadual situada na Avenida Lauro Sodré, n. 3.050, Pq.
dos Tanques, Estrada do Aeroporto, Porto Velho, RO, CEP n. 78.904-300;
f) Marcol Indústria e Comércio Ltda., Pessoa Jurídica de Direito Privado, inscrita no
CNPJ/MF sob o 04.901.021/0001-39, com endereço na Rodovia BR 364, Km 1.037,
distrito de Extrema, Município de Porto Velho, representada por seu procurador e
proprietário de fato Ademar Marcol Alfredo Suckel, residente na Av. Leopoldo de
Matos, ao lado da Igreja Católica, Centro, Guajará-Mirim/RO;
g) Associação dos Seringueiros das Reservas Extrativistas Barreiro das Antas e Rio
Pacaás Novos “Primavera”, entidade representativa dos moradores da Reserva
Extrativista do Rio Pacaás Novos, pessoa jurídica de Direito Privado, inscrita no
CNPJ/MF sob o n. 01.829.929/0001-90, com endereço na Av. Dr. Lewerger, n. 22,
Bairro Triângulo, Guajará-Mirim, RO;
h) Cooperativa “Vida Nova”, Cooperativa dos Moradores da Reserva Extrativista
Estadual do Rio Pacaás Novos e Reserva Extrativista Federal Barreiro das Antas,
pessoa jurídica de Direito Privado, com endereço na Avenida Beira Rio, s/n, Bairro
Triângulo,
pelos fatos e fundamentos jurídicos que passa a expor:
1. Fatos e fundamentos jurídicos
Foi instaurado no âmbito do Ministério Público do Estado de Rondônia, 2.ª Promotoria
de Justiça de Guajará-Mirim, o Inquérito Civil n. 2007001060002975, em 27.02.2007, o
qual foi encaminhado para o Ministério Público Federal, Procuradoria da República em
Rondônia, no dia 10.07.2008.
O referido Inquérito Civil foi instaurado com o fito de se empreender investigação a
respeito da existência de plano de manejo madeireiro realizado em conjunto pela ré
Associação dos Seringueiros “Primavera” e pela ré Marcol Indústria e Comércio Ltda.,
referente à Reserva Extrativista Estadual do Rio Pacaás Novos.
No curso da investigação logrou-se êxito em se identificar um esquema para a
implementação de extração de madeira em escala empresarial na Reserva Extrativista
Estadual Rio Pacaás Novos. Tal esquema será pormenorizado um pouco mais adiante,
nesta petição inicial.
Logrou-se êxito também em se identificar atuações desidiosas por parte dos réus,
inclusive dos respectivos órgãos públicos, tudo de modo a afetar diretamente interesses
federais e justificar a competência da Justiça Federal de 1.ª instância para o julgamento
dessa Ação Civil Pública. Sobre isso também discorrer-se-á.
O mencionado Inquérito Civil segue anexo e nele encontram-se juntados diversos
documentos, os quais comprovam cabalmente todas as alegações que serão feitas e a
acusação acima enunciada.
Conforme foi salientado, identificou-se a existência de um plano de manejo madeireiro
realizado por entidade representativa dos seringueiros da Resex Estadual do Rio Pacaás
Novos (Associação Primavera) em conjunto com a empresa do setor madeireiro (Marcol
Ltda.), empreendimento licenciado pelo Estado de Rondônia, por meio da Secretaria do
Estado de Desenvolvimento Ambiental (Sedam) em favor da Cooperativa de
seringueiros “Vida Nova”.
Em um primeiro momento (18.08.2003), as pessoas jurídicas rés Primavera e Marcol
Ltda., celebraram mutuamente um contrato de compra de venda de madeira in natura
integrante do acervo florestal da mencionada unidade de conservação. Tal instrumento
era particular, não contava com a anuência expressa do órgão gestor da Unidade de
Conservação (Sedam) e não possuía licenciamento ambiental (f. e ss. do Inq. Civil).
O representante da 2.ª Promotoria de Justiça de Guajará-Mirim entendeu ser tal negócio
jurídico nulo de pleno direito, e ajuizou Ação Civil Pública visando a respectiva
anulação (f. do Inq. Civil). Esta ação (autos n. 015.2007.001651-1, 1.ª Vara Cível da
Comarca de Guajará-Mirim) foi extinta sem julgamento do mérito em razão da perda do
objeto (f. do Inq. Civil), uma vez que houve a revogação do contrato questionado em
razão da celebração de nova avença, agora com a interveniência da Sedam (f. do Inq.
Civil).
Entretanto, já se antevendo que a ilegalidade persistiria, entendeu-se por bem não fazer
aquela Ação Civil Pública ser acompanhada do Inquérito Civil anexo, mas somente de
cópias dele, tendo as investigações prosseguido nos respectivos autos.
Em linhas gerais, a apuração constatou a existência de plano de manejo madeireiro
surgido da associação entre entidade representativa de seringueiros e empresário do
ramo madeireiro (Ademar Marcol Suckel), de fato o verdadeiro beneficiário do projeto.
Embora desde o início da aproximação tivesse sido possível constatar indícios de apoio
de integrantes do Governo do Estado de Rondônia (por intermédio da Sedam), a
anuência estatal tornou-se expressa a partir do contrato de f. (autos do Inq. Civil),
confirmada por posterior licenciamento.
Do que foi registrado até este momento resulta que existe, portanto, um
empreendimento de exploração florestal por meio de manejo madeireiro no interior da
Reserva Extrativista Estadual do Rio Pacaás Novos, empreendimento este agora
licenciado pelo réu Estado de Rondônia em favor da ré Cooperativa dos Moradores das
Reservas Extrativistas Estadual do Rio Pacaás Novos e Federal Barreiro das Antas (f.
do Inq. Civil).
Para o fim de melhor evidenciar-se a ilegalidade, analisar-se-á o referido plano de
manejo em 2 partes: uma, relativa ao aspecto procedimental do licenciamento, e outra,
relativa ao mérito, isto é, ao objetivo do empreendimento. Portanto, em um primeiro
momento, indaga-se se os requisitos procedimentais para o licenciamento foram
observados. No segundo, se o empreendimento em si pode ser licenciado.
1.1 Vícios existentes no procedimento de licenciamento
1.1.1 Ausência de legitimidade das rés requerentes (Associação Primavera e
Cooperativa Vida Nova)
As Reservas Extrativistas são unidades de conservação cujo uso dos recursos naturais é
exclusivo das populações tradicionais nela residentes (art. 1.º do Dec. 98.897/1990 e art.
18 da Lei 9.985/2000).
Nos termos do art. 4.º do Dec. 98.897/1990, “a exploração autossustentável e a
conservação dos recursos naturais será regulada por contrato de concessão real de uso”.
No mesmo sentido, o art. 23, caput, da Lei 9.985/2000, dispõe que “a posse e o uso das
áreas ocupadas pelas populações tradicionais nas Reservas Extrativistas e Reservas de
Desenvolvimento Sustentável serão regulados por contrato”.
No entanto, embora o ato de criação da Resex Estadual do Rio Pacaás Novos (Dec.
estadual 6.953, de 14.07.1995, f. do Inq. Civil) disponha expressamente no art. 4.º a
respeito da necessidade da celebração de contrato de concessão real de uso, até a
presente data isto não ocorreu, podendo-se fornecer uma explicação muito simples para
não ter sido celebrado tal contrato: o imóvel em que se situa a Resex ainda é de
dominialidade da União e gerenciado pelo réu Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária (Incra).
Por esse motivo, embora os seringueiros tenham seu estado fático de posse assegurado,
a ré Associação Primavera (e, tampouco, a recém-criada ré Cooperativa Vida Nova) não
possui legitimidade para requerer o licenciamento do plano de manejo florestal, haja
vista não possuir contrato de concessão real de uso da área, motivo pelo qual a Sedam
não poderia ter expedido autorização para a exploração madeireira.
1.1.2 Ausência de anuência dos réus Ibama e ICMBIO
A Resex Estadual do Rio Pacaás Novos faz divisa com a Resex Federal Rio Ouro Preto,
Reserva Biológica estadual do Rio Ouro Preto, Terra Indígena Rio Negro Ocaia, Terra
Indígena Pacaás Novas, Reserva Biológica estadual Traçadal, Resex Federal Barreiro
das Antas, Parque Nacional Serra da Cutia e TI Uru-Weu-Uau-Uau.
Trata-se de um conjunto de áreas protegidas (terras indígenas e unidades de
conservação) que, juntamente com outras situadas no município de Costa Marques, RO,
estende-se até o Estado do Mato Grosso, além de se encontrar também conectado com
áreas protegidas que se encontram no município de Porto Velho, RO, e se projetam pelo
sul do Estado do Amazonas, com fundamental importância para a preservação da
biodiversidade da Amazônia, representando certamente o último espaço de Rondônia
que sobreviveu em relativa integridade à devastação.
Este conjunto constitui um mosaico denominado Corredor Ecológico Mamoré-
Guaporé-Iteñez (Bolívia), já se que integra também a áreas protegidas daquele país.
Os corredores ecológicos, nos termos da Lei 9.985/2000 (art. 2.º, XIX), são porções de
ecossistemas naturais ou seminaturais, ligando unidades de conservação, que
possibilitam entre elas o fluxo de genes e o movimento da biota, facilitando a dispersão
de espécies e a recolonização de áreas degradadas, bem como a manutenção de
populações que demandam para sua sobrevivência áreas com extensão maior do que
aquela das unidades individuais.
Ainda segundo a Lei 9.985/2000, “quando existir um conjunto de unidades de
conservação de categorias diferentes ou não, próximas, justapostas ou sobrepostas, e
outras áreas protegidas públicas ou privadas, constituindo um mosaico, a gestão do
conjunto deverá ser feita de forma integrada e participativa, considerando-se os seus
distintos objetivos de conservação, de forma a compatibilizar a presença da
biodiversidade, a valorização da sociodiversidade e o desenvolvimento sustentável no
contexto regional” (art. 26, caput, destacou-se).
Justamente por ser contígua à outras unidades de conservação e terras indígenas, a
Resex do Rio Pacaás Novos tem grande parcela de sua área inserida em zona de entorno
destas áreas protegidas.
Nos termos da Lei 9.985/2000, denomina-se zona de amortecimento o entorno de uma
unidade de conservação, onde as atividades humanas estão sujeitas a normas e restrições
específicas, com o propósito de minimizar os impactos negativos sobre a unidade (art.
2.º, XVIII, da Lei 9.985/2000).
Conforme parecer do réu ICMBIO, por meio da chefia da Resex Federal Barreiro das
Antas, que analisou as informações prestadas pela Sedam (por meio das quais não se
registrou qualquer irregularidade no licenciamento ambiental), o empreendimento
encontra-se na zona de entorno desta Unidade de Conservação (f. do Inq. Civil), o que é
claramente observável no mapa de f. (do Inq. Civil), que indica estar praticamente
metade da área do manejo madeireiro no interior da zona de amortecimento.
O art. 27 do Dec. 99.274/1990, faz previsão a respeito da zona de amortecimento, in
verbis:
“Art. 27. Nas áreas circundantes das Unidades de Conservação, num raio de dez
quilômetros, qualquer atividade que possa afetar a biota ficará subordinada às normas
editadas pelo Conama” (destacou-se).
Para regulamentar tal dispositivo, o Conama editou a Res. 13/1990, a qual estabelece:
“Art. 2.º Nas áreas circundantes das Unidades de Conservação, num raio de dez
quilômetros, qualquer atividade que possa afetar a biota, deverá ser obrigatoriamente
licenciada pelo órgão ambiental competente.
Parágrafo único. O licenciamento a que se refere o caput deste artigo só será concedido
mediante autorização do responsável pela administração da Unidade de Conservação”
(destacou-se).
Fica evidente que, sendo o réu Instituto Chico Mendes de Conservação da
Biodiversidade (ICMBIO) o responsável pela administração das unidades de
conservação federais, a ele caberá intervir no licenciamento de qualquer atividade que
possa afetar a biota no entorno de 10 quilômetros destas áreas, perímetro em que o
empreendimento licenciado unicamente pela Sedam encontra-se inserido. Além disso,
sendo o licenciamento ambiental na esfera federal de responsabilidade do Ibama, sua
manifestação é igualmente obrigatória.
Todavia, ignorando o fato de que a Resex Estadual do Rio Pacaás Novos é contígua a
unidades de conservação federais como a Resex Barreiro das Antas e o Parque Nacional
Serra da Cutia, a Sedam licenciou empreendimento visando a extração de madeira sem
sequer colher a anuência do Ibama e do ICMBIO (órgão gestor das unidades federais).
A violação às normas ambientais reveste-se de elevada gravidade, sendo mister ressaltar
que o bem ameaçado é tutelado inclusive na esfera penal, já que o art. 40 da Lei
9.605/1998 dispõe ser crime, punível com pena de reclusão de um a cinco anos, a
conduta de causar dano direito ou indireto às áreas de que trata o art. 27 do Dec.
99.274/1990, ou seja, na zona de entorno da Unidade de Conservação.
Dessa forma, conclui-se que existe vício no procedimento de licenciamento ambiental,
haja vista ser obrigatória a interveniência do órgão gestor das unidades de conservação
federais, motivo pelo qual o ato administrativo encontra-se eivado de nulidade.
1.1.3 Violação ao direito de informação das populações tradicionais
O direito de informação constitui interesse difuso por natureza, típico de terceira
geração, eis que se trata de interesse de uma coletividade indivisível, incomensurável,
ligada entre si por circunstâncias fáticas. O Direito Ambiental reconhece a importância
deste princípio, sendo que a Declaração do Rio de Janeiro, documento elaborado como
resultado da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente (Rio/1992), afirma
no Princípio 10 que: “No nível nacional, cada indivíduo deve ter acesso adequado a
informações relativas ao meio ambiente de que disponham autoridades públicas,
inclusive informações sobre materiais e atividades perigosas em suas comunidades, bem
como a oportunidade de participar em processos de tomada de decisões”.
A Constituição da República (art. 5.º, XIV e XXXIII) garante o acesso indistinto à
informação. Já no plano infraconstitucional, a Lei de Política Nacional do Meio
Ambiente (Lei 6.938/1981) estabelece no art. 9.º, VII e XI, a obrigação do Poder
Público de manter cadastro de informações ambientais e assegurar ao cidadão o acesso a
estas informações. Nesse mesmo sentido, a Lei 10.650/2003 veio garantir a qualquer
indivíduo, independente da comprovação de interesse específico (art. 2.º, § 1.º), o
direito de acesso à informação ambiental, positivando o caráter difuso do acesso à
informação.
Diretamente no que tange às populações tradicionais, o Dec. 6.040/2007, que cria a
Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável das Populações Tradicionais,
estabelece no art. 1.º, X, do Anexo, como princípio, “a promoção dos meios necessários
para a efetiva participação dos Povos e Comunidades Tradicionais nas instâncias de
controle social e nos processos decisórios relacionados aos seus direitos e interesses”.
Entretanto, contrariamente ao que dispõe a legislação ambiental, o empreendimento
fomentado pelo réu Estado de Rondônia (através da Sedam), embora conte com a
participação expressa da diretoria da ré Associação Primavera (entidade representativa
dos seringueiros da Unidade de Conservação), foi acertado com flagrante violação ao
direito de informação das populações tradicionais da Resex do Rio Pacaás Novos, pois
se encontram presentes fundados indícios de que os dados referentes ao projeto foram
acessíveis a uma minoria ligada à diretoria da referida associação. Não bastasse isso,
pairam também suspeitas sobre se as futuras receitas auferidas com a venda da madeira
para a ré Marcol Ltda. serão repartidas de modo igualitário ou as lideranças que já se
beneficiaram de um “mensalinho” pago por madeireiros serão privilegiadas.
Com efeito, conforme relatório produzido pela reconhecida ONG WWF-Brasil
(Diagnóstico da atual situação do manejo florestal comunitário nas reservas
extrativistas estaduais de Rondônia, Rio Branco, 2005), que realizou diagnóstico
socioambiental do projeto, inclusive com diligências in loco, relata-se:
“Embora a Primavera tenha elaborado um calendário de reuniões comunitárias, a
diretoria admitiu que o mesmo não está sendo cumprido. A última reunião de base
ocorreu na comunidade Margarida em função de uma capacitação promovida pela OSR
no âmbito do projeto Amigos da Terra. O apoio deste projeto beneficia diretamente a
Primavera através de recursos para viagens, alimentação dos participantes, ajuda de
custo para dois dirigentes, além dos cursos e eventos. Com exceção deste último
encontro, a Primavera, segundo os moradores, não tem estimulado os encontros de
base. As viagens até as comunidades têm custos elevados, principalmente na compra de
combustível e alimentação. Assembleias Extraordinárias foram frequentes durantes os
levantamentos de campo e a assinatura dos acordos comunitários para aprovação das
atividades na Resex. Porém, desde maio de 2004 a Primavera não promove mais
Assembleias.
(...)
Desta forma, a situação, do ponto de vista dos moradores da Resex, é de falta de
informações precisas sobre o projeto de manejo florestal madeireiro. Os extrativistas,
com exceção de alguns, desconhecem a razão pela qual o projeto não foi implementado
em 2004. Muitos atribuem a Sedam e ao Ibama o atraso, mas não sabem o porquê deste.
Alguns ainda acreditam que a serraria será instalada na Resex e que haverá posto de
saúde e escola na proximidade. Os moradores entrevistados têm conhecimento sobre a
parceria com as empresas madeireiras, que viabilizaram o projeto, mas não conseguem
esclarecer os acordos estabelecidos para saldar a dívida da Associação. Alguns ainda
não sabiam que a Associação continua recebendo R$ 1.000,00 mensalmente dos
empresários.
(...)
As discussões pertinentes a este projeto ficaram concentradas nos representantes da
Diretoria da Primavera e da OSR, nos empresários, técnicos da Apidiá e da Sedam de
Guajará-Mirim, enquanto que, na verdade, deveriam ter sido envolvidos os diversos
atores situados no mesmo contexto socioambiental a qual está submetida a Resex do
Rio Pacaás Novos, tais como a Universidade Federal de Rondônia (Unir), ONGs como
a Kanindé, Ecoporé e Maporé, Funai, entre outros” (f. do Inq. Civil, destacou-se).
Observa-se de modo cristalino que o projeto, além de não ser de amplo conhecimento
das populações tradicionais da Resex, parece ser direcionado a beneficiar lideranças que
já estariam recebendo R$ 1.000,00 mensais.
É inegável que a carência de informação adequada vicia suposto consentimento das
comunidades sobre o projeto, sendo pertinente a observação do ICMBIO, expressa em
parecer do analista ambiental responsável pela Resex Barreiro das Antas (f. do Inq.
Civil):
“A assimetria de poder e conhecimento entre os moradores da comunidade e os
intervenientes de instituições privadas e do poder público, o fato em si de haver
aprovação do projeto pelo conselho deliberativo desta Resex é indicativo somente da
legalidade do que é feito, mas não da legitimidade do processo, tanto do ponto de vista
das comunidades da Resex, quanto de outros atores sociais envolvidos.”
É inegável que uma comunidade sem informações adequadas não pode gerir sua vida e
o destino dos recursos naturais cujo uso a lei lhe outorga, sendo viciada a manifestação
de vontade colhida em meio à desinformação.
Essa imputação de manifestação de vontade viciada não reflete exagero de expressão.
Amolda-se à figura da lesão que, no âmbito do Código Civil de 2002, foi inserida no
contexto dos vícios do consentimento.
A mera transcrição do art. 157 do CC/2002, basta para demonstrar a manifestação de
vontade viciada em razão das diversas circunstâncias em que foi entabulado o contrato,
inclusive em razão da falta de informação.
Reza o art. 157 do CC/2002, verbis:
“Art. 157. Ocorre a lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por
inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da
prestação oposta.”
O conhecimento superficial que se tem a respeito da situação de penúria enfrentada pela
maioria das comunidades tradicionais, e também pela maioria das etnias indígenas, é
suficiente para se presumir, em relação às referidas comunidades, inclusive as que
habitam as Reservas Extrativistas Rio Pacaás Novos e Barreiro das Antas, a premente
necessidade e a inexperiência, pressupostos para a configuração do vício de
consentimento conhecido como lesão. Conclui-se, em consequência, a manifestação de
vontade viciada, causa de anulabilidade do negócio jurídico.
Conforme parecer da advogada Ludmila Caminha Barros sobre os contratos firmados
entre entidades seringueiras e madeireiros, é imprescindível, para ver respeitado direito
à informação e a participatividade:
“Obter formalmente a anuência prévia das comunidades às associações de moradores
para contratar a atividade, discutidas a conveniência e as condições de contratação a
serem observadas para o atendimento dos seus interesses. As comunidades devem se
pronunciar por maioria absoluta, isto é, a decisão deve contar com dois terços dos votos
dos presentes” (f.).
Desse modo, para o fim de garantir o direito difuso à informação destas populações
tradicionais, necessária se faz a realização de audiências públicas, devidamente
fiscalizadas por instituições idôneas (Unir, ONGs, Ibama e ICMBIO), sob pena de
ocorrer dilapidação do valioso patrimônio ambiental sem que benefícios reais do ponto
de vista social (e não apenas gorjetas de madeireiros) sejam recebidos pelos
extrativistas.
Sem informação adequada e fornecida por entidades com credibilidade (o que
certamente não é o caso da Sedam, órgão desprovido de profissionais com gabarito
técnico além de imbuído da política antiecológica do Governo estadual), impossível a
efetivação do princípio da participação popular, consagração do ideal de democracia
participativa.
1.1.4 Violação do direito ao desenvolvimento sustentável das comunidades tradicionais
e à preservação de sua cultura
Todo marco regulatório das populações tradicionais e respectivas unidades de
conservação de uso sustentável visa, em síntese, o desenvolvimento sustentável destas
comunidades, ou seja, seu progresso aliado à conservação da Natureza, por intermédio
de suas práticas de reduzido impacto ambiental.
Quando a legislação estabelece o desenvolvimento das populações tradicionais, atrela
este à conservação de sua herança cultural e histórica. Com efeito, a Política Nacional
de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (Dec.
6.040/2007), entre seus objetivos, busca a melhoria da qualidade vida com a
preservação dos direitos culturais, o exercício de práticas comunitárias, a memória
cultural e a identidade racial e étnica (art. 1.º, XIV, do Anexo).
Entretanto, coisa bem diferente é o que ocorrerá com o manejo madeireiro ora em
análise.
Isto porque a exploração dos recursos naturais será feita em escala empresarial, algo que
seria lícito em se tratando de propriedade privada, porém viola frontalmente o disposto
no Snuc (art. 18 da Lei 9.985/2000). A comunidade da Resex se tornará, em poucas
palavras, uma fornecedora de matéria prima a um empresário da região, sem agregar
qualquer valor ao produto, e sem qualquer atividade relacionada ao seu modo de vida
tradicional.
A utilização econômica dos recursos naturais nas reservas extrativistas tem por
princípio orientador a conservação desses recursos e não apenas a continuidade a
longo prazo de sua exploração. Mais ainda, “esta conservação deverá ser buscada tanto
pelo emprego de formas de produção alternativas àquelas que visam apenas à
maximização dos lucros; quanto pela proteção dos modos de vida e de produção das
comunidades da floresta”, como avaliou corretamente a parecerista à f. (do Inq. Civil).
Neste particular, seria obrigatória, sob pena ilegitimidade do procedimento de
licenciamento, a participação da Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável
dos Povos e Comunidades Tradicionais, órgão responsável pela implementação da
Política Nacional para o Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades
Tradicionais, conforme estabelece o art. 2.º do Dec. 6.040/2007, até porque inexiste, na
esfera do Governo estadual, qualquer política de amparo a estes povos.
1.1.5 Ausência de avaliação do impacto socioambiental
Além do impacto ambiental causado pela abertura de estradas (uma delas já aberta,
conforme se verifica nas f. do Inq. Civil), pela retirada das árvores e navegação fluvial
de carga, ocorrerá inevitável impacto social na Unidade de Conservação.
O empreendimento aqui analisado envolve a instalação de serraria no interior da Resex,
a qual possivelmente empregará muitos operários que não são moradores tradicionais,
disso redundando em choque de culturas e consequente aceleração da descaracterização
cultural, o que viola a finalidade do modelo de reservas extrativistas, e sua intrínseca
preservação dos valores tradicionais.
Além do aspecto social, a vila de operários gerará lixo no interior da Unidade de
Conservação; o transporte da madeira pelo rio Pacaás Novos em pesadas embarcações
visando o escoamento rodoviário certamente acarretará impacto na delicada flora e
fauna subaquáticas. Estes são apenas alguns aspectos que, a primeira vista, saltam aos
olhos e que não foram objeto de análise pela Sedam.
Se tais atividades já geram degradação ambiental em imóveis particulares sujeitos ao
regime ambiental geral, muito maior será o impacto no interior de uma unidade de
conservação, em razão de suas restrições que visam atender à finalidade de conservação
da Natureza.
Assim, com razão o alerta sobre os riscos do empreendimento à zona de entorno de
Unidade de Conservação federal contido no parecer do ICMBIO (f. do Inq. Civil):
“Com a operação da serraria e o adensamento populacional provocado pela necessidade
de agregar os funcionários próximos a ela, haverá uma pressão para exploração de
recursos numa área da Resex Pacaás Novos compreendida na zona de entorno da Resex
Barreiro das Antas.
(...)
Essa agregação populacional, somada à natureza da atividade que será desenvolvida no
local – a exploração madeireira – carrega em si o risco de estabelecer um modelo de
ocupação e uso do solo bem diverso daquele estabelecido para as Reservas Extrativistas
de acordo com o Snuc.”
Além disso, o mesmo parecer demonstra o fundado risco de impacto na zona de entorno
do Parque Nacional Serra da Cutia e Resex Federal Barreiro das Antas (f. do Inq. Civil):
“Considerando o fato de que a Resex Barreiro das Antas está a menos de 10 km do
PMFS, conforme consta na p. da Avaliação Geral do PMFS (SEDAM, 2004), este
empreendimento encontra-se na Zona de Entorno desta Unidade de Conservação, sendo
passível de restrições e, inclusive, embargo conforme estabelece a IN Conama 13/1990.
Sobre a localização do talhão e os igarapés afetados, ver também mapa em anexo.
Quanto ao impacto do PMFS sobre as Unidades de Conservação circundantes, em
especial no Rio Novo, que banha a Resex Barreiro das Antas, ele será expressivo, uma
vez que o talhão mais ao sul da Resex Estadual do Pacaás Novos localiza-se sobre os
Igarapés das Antas e Igarapé Loreto. Esses igarapés são responsáveis pela recarga do
leito do Rio Novo, que sofre naturalmente de diminuição drástica de sua lâmina d'água
na época seca, chegando ao extremo de interromper seu curso.
O Rio Novo tem papel importante para a manutenção da ictiofauna local, servindo
como área reprodutiva e de forrageio das espécies que nele ocorrem (IBAMA, 2006).
Além disso, ele conta também com espécimes raros na Amazônia, como Pimelodella sp
“longa”, sobre a qual há poucos registros de ocorrência (idem, 2006).
Vale lembrar que o Rio Novo tem sua piscosidade reconhecida por comunidades locais,
o que, juntamente com a presença de peixes como Hypopygus lepturus (idem, 2006)
indica não haver perturbação significativa na biota local. Ademais, considerando este rio
como parte da bacia do rio Pacaás Novos, ele é responsável também pela manutenção
da piscosidade deste último e pela alimentação das comunidades ribeirinhas e indígenas
que vivem na região (idem, 2006).
Sabendo-se que haverá distúrbios no leito dos igarapés, conforme consta no mapa dos
talhões do PMFS (p. 97 do Plano de Manejo de Uso Múltiplo) com possibilidade de
assoreamento destes e do Rio Novo, bem como diminuição do fluxo hídrico em seu
curso, a manutenção da qualidade ambiental na Resex Barreiro das Antas encontra-se
sob ameaça com a instalação do PMFS”(destacou-se).
Neste ponto, lembra-se a incidência do princípio da precaução, segundo o qual a
incerteza não deve ser interpretada contra o meio ambiente. No caso, diante dos riscos
de danos não apenas à Resex estadual como à zona de entorno de Unidade de
Conservação Federal, devem ser adotadas as providências necessárias para afastar de
modo peremptório a ameaça.
1.2 Vício existente no mérito do empreendimento: desvio de finalidade das Reservas
Extrativistas
Ainda se os requisitos procedimentais estivessem preenchidos, caberia indagar sobre a
legalidade da venda de madeira in natura existente em Reserva Extrativista à empresa
do setor madeireiro.
Neste ponto, deve-se analisar, ainda que brevemente, o conceito e o marco regulatório
desta espécie de unidade de conservação.
As Reservas Extrativistas foram criadas “especialmente para tentar solucionar a questão
das atividades seringueiras na Amazônia”, tendo dois objetivos primordiais: “Proteção
dos meios de vida e da cultura das populações extrativistas tradicionais e o uso
sustentável dos recursos naturais” (RODRIGUES, José Eduardo Ramos. Sistema Nacional
de Unidades de Conservação. São Paulo: Ed. RT, 2005, p. 176-177).
Com efeito, tal instituto é diretamente ligado à histórica luta dos povos seringueiros,
sendo inclusive o exemplo de Chico Mendes lembrado como um marco desta causa.
Tais reservas foram idealizadas como forma de preservar os povos tradicionais da
floresta, assegurando-lhes tanto o uso da terra (já que o domínio permanece sendo
público) como a preservação de seus conhecimentos tradicionais, que implicavam um
modo de vida em perfeita sintonia com a Natureza. Em resumo, busca-se unir vida
digna à conservação da floresta, concretizando o binômio desenvolvimento sustentável.
O extrativismo, atividade econômica destas populações tradicionais, foi definido pela
Lei 9.985/2000 (art. 2.º, XII) como sendo o sistema de exploração baseado na coleta e
extração, de modo sustentável, de recursos naturais renováveis.
Para estas populações extrativistas tradicionais, o Dec. 98.897/1990, já previa a criação
das Reservas Extrativistas, definidas como “espaços territoriais destinados à exploração
autossustentável e conservação dos recursos naturais renováveis, por população
extrativista” (art. 1.º).
Com o advento do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Snuc), disciplinando
o instituto, a Lei 9.985/2000 deixou claro que:
“Art. 18. A Reserva Extrativista é uma área utilizada por populações extrativistas
tradicionais, cuja subsistência baseia-se no extrativismo e, complementarmente, na
agricultura de subsistência e na criação de animais de pequeno porte, e tem como
objetivos básicos proteger os meios de vida e a cultura dessas populações e assegurar o
uso sustentável dos recursos naturais da unidade” (destacou-se).
O § 1.º do referido artigo expressamente dispõe que “a Reserva Extrativista é de
domínio público, com uso concedido às populações extrativistas tradicionais”
(destacou-se).
Além disso, dispõe o § 7.º:
“A exploração comercial de recursos madeireiros só será admitida em bases
sustentáveis e em situações especiais e complementares às demais atividades
desenvolvidas na Reserva Extrativista (...)” (destacou-se).
Objetiva-se, em resumo, propiciar a solução de dois problemas. De um lado fornecer
aos povos tradicionais da floresta um meio de sobreviver segundo seus usos e costumes
frente à expansão do capitalismo selvagem que depreda os recursos naturais na região
amazônica. De outro, propiciar a preservação dos recursos naturais, pois estas
populações tradicionais viviam em harmonia com a floresta, dela retirando apenas o
necessário para sua sobrevivência digna.
Todavia, sob o frágil manto legal fornecido pela Sedam, os réus Primavera e Marcol
Ltda., visam colocar em prática empreendimento de exploração madeireira que viola
frontalmente as disposições do Sistema Nacional de Unidades de Conservação,
subvertendo o modelo legal das reservas extrativistas.
Isso porque o projeto de exploração, da forma como se encontra planejado e em início
de execução, afasta-se dos princípios orientadores da criação de reservas extrativistas,
destinadas a permitir a vida sustentável das populações tradicionais segundo seus
costumes e suas bases socioeconômicas. Muito pelo contrário, tudo indica que, longe de
serem protagonistas de uma exploração comunitária como prevê o Snuc, os seringueiros
serão “testas-de-ferro” para que o setor madeireiro apodere-se dos recursos florestais de
unidades de conservação.
Com efeito, conquanto a Lei 9.985/2000 seja expressa ao determinar que a exploração
comercial de recursos madeireiros só será admitida em bases sustentáveis e em
situações especiais e complementares às demais atividades desenvolvidas (§ 7.º do art.
18), a Marcol Ltda. e Associação Primavera celebraram, em 18.08.2003, “contrato de
compra e venda de madeira”, dispondo sobre a quantidade e a qualidade de espécies
florestais a serem vendidas pelos seringueiros à empresa do ramo madeireiro (f. do Inq.
Civil).
Em outras palavras, claramente celebraram instrumento de compra e venda cujo objeto
é patrimônio público!
Neste ponto, vale acrescentar que o famigerado contrato foi celebrado antes mesmo de
elaborado o plano de manejo da unidade de conservação (que só seria finalizado em
meados de 2004), documento primeiro e fundamental para que se intente qualquer
exploração dos recursos naturais ali existentes.
Da mesma forma, o novo contrato (f. do Inq. Civil) foi celebrado antes de licenciado o
empreendimento e antes de expedida a autorização para exploração (f. do Inq. Civil)!
A segunda ilicitude do instrumento contratual consiste na fixação de exploração que os
próprios réus definem como “de escala empresarial” (parágrafo único da cláusula sexta,
f., do Inq. Civil) que claramente não ocorreria segundo os usos e costumes dos
seringueiros, já que a cláusula terceira determina que caberia ao Comprador da madeira
(Marcol) “efetuar, a suas custas, todos os procedimentos para extração e transporte das
mesmas”.
Além disso, outro indício de fraude pode ser constatado quando se percebe que, após as
rés Marcol Ltda. e Associação Primavera terem celebrado o negócio ilícito, esta teve
condições de custear o plano de manejo, estudo técnico cujo preço por sua realização é
elevado e que, segundo a Lei 9.985/2000 (art. 12, caput, do Dec. 4.340/2002), deveria
ser custeado por ente público, no caso pelo réu Estado de Rondônia, por meio de sua
Secretaria de Desenvolvimento Ambiental (Sedam).
A grande pergunta é: quem teria custeado tal plano de manejo, já que a Associação
“Primavera”, composta por humildes seringueiros, certamente não possui recursos para
tal?
A própria cláusula quinta do contrato dá a resposta, já que a ré Marcol obriga-se a
“antecipar” a quantia de R$ 277.000,00 “como parte do pagamento pela venda dos
28.000 metros cúbicos das madeiras”. Logo a seguir, pela cláusula sexta, a ré
Associação Primavera obriga-se a emitir notas promissórias em garantia do dinheiro
antecipado. Este endividamento inicia-se em agosto de 2003, ou seja, antes mesmo da
aprovação do empreendimento pela comunidade, o que implica dizer que a
manifestação de vontade da mesma certamente foi influenciada.
Mas a dúvida é espancada quando – inadvertidamente ou não – a cláusula nona deixa
escapar que:
“As Notas Promissórias são garantias de pagamento antecipado para custear os estudos
ambientais necessários e elaboração dos, Planos de Manejo da Reserva Extrativista
Estadual do Rio Pacaás Novos, Plano de Manejo Florestal Sustentável Comunitário em
Escala Empresarial e Plano Operacional Anual da mesma, cujo ônus recai sobre a
Associação” (sic, f. do Inq. Civil).
Em resumo, a ré Associação Primavera vende madeira da Resex para a ré Marcol Ltda.,
que paga antecipadamente R$ 277.000,00 em troca de notas promissórias (pois a
madeira não poderia ser extraída antes de confeccionado o plano de manejo). Estas
notas promissórias por sua vez, segundo o contrato, servirão para pagar o plano de
manejo. Os seringueiros já iniciam o negócio endividados, e pagarão com madeira.
A ironia maior de tudo isso: segundo o contrato original de f. e ss. (que, embora
revogado, bem revela o espírito do empreendimento), a exploração deve ser em “escala
empresarial”, mas o manejo será de caráter “comunitário”! Belos nomes para mascarar
o enriquecimento de entes privados (pessoas físicas e jurídicas) mediante exploração
fraudulenta de patrimônio florestal público.
Outro ponto indicativo de fraude (e possível crime) reside no fato de a área de reservas
extrativistas ser de domínio público (art. 18, § 1.º, Lei 9.985/2000), pertencendo seus
recursos ao ente respectivo (no caso, o Estado de Rondônia), podendo as comunidades
tradicionais apenas deles fazer uso em bases sustentáveis e segundo seus usos e
costumes.
Mesmo com o advento do novo contrato (f. do Inq. Civil), agora com a anuência
expressa da Sedam (o que só ocorreu após a instauração do Inquérito Civil que instrui
essa Ação Civil Pública), a realidade pouco foi alterada, pois, embora um fino verniz de
legalidade tenha sido colocado sob o empreendimento, sua essência continua
manifestamente fraudulenta.
Com efeito, os vícios originais não foram extirpados, já que a ré Associação Primavera
e a ré Cooperativa Vida Nova continuam sendo utilizadas como “testas de ferro” para
que madeireiro possa explorar as vastas florestas intocadas de unidade de conservação,
pagando o valor da madeira bruta à lideranças seringueiras. Conforme o próprio
empresário reconheceu (f. do Inq. Civil), já gastou mais de R$ 1.000.000,00 no projeto.
Nenhum madeireiro experiente em sã consciência investiria tal quantia sem promessa de
resultado recompensador e em respaldo de agentes públicos que providenciassem a
legalização do negócio.
É reproduzido, desse modo, o modelo de servidão que sempre vigorou entre os
seringueiros amazônicos. Se antes endividavam-se com o seringalista ou com o
comerciante do “regatão”, os quais pagavam com o recurso natural do látex da seringa,
agora já estão endividados com madeireiro em mais de um milhão de reais (valor gasto
desde o plano de manejo à construção da nefasta estrada que escoará a madeira) e
pagarão com a preciosa madeira. Nasce uma servidão de longo prazo que será paga com
recursos naturais da coletividade difusa.
Cabe destacar que mesmo que fosse existente o contrato de concessão real de uso
exigido por lei, ainda assim o empreendimento seria ilegal, pois a lei (Snuc) visou
assegurar às populações tradicionais o uso dos recursos naturais mediante extrativismo,
de modo complementar e comunitário, o que inocorre na espécie.
Em suma, ao arrepio da lei, o que se está pretendo implantar na Resex Pacaás Novos e
na zona de amortecimento da Resex Barreiro das Antas é, em poucas palavras, um
projeto de bases empresariais que outorga a particular à exploração de recursos
públicos.
Para isso o Snuc prevê a figura da Floresta Nacional que, nos termos do art. 17 da Lei
9.985/2000, é uma área com cobertura florestal de espécies predominantemente nativas
e tem como objetivo básico o uso múltiplo sustentável dos recursos florestais e a
pesquisa científica, com ênfase em métodos para exploração sustentável de florestas
nativas.
De fato, a ré Marcol Ltda., a ré Associação Primavera (e agora a recém criada ré
Cooperativa Vida Nova) e a Sedam construíram um meio de burlar a necessidade de
processo licitatório para a concessão do uso de Florestas Nacionais ou Estaduais,
propiciando que particular apodere-se de bem público (patrimônio florestal existente em
imóvel do Incra) sem se submeter à concorrência pública.
Em verdade, é fato notório que os madeireiros atuantes neste Estado sempre zombaram
da figura legal das Florestas, haja vista a facilidade de exploração predatória e sem
limites. Todavia, com a escassez de madeira, a pressão sobre os recursos naturais
aumentou sobremaneira, levando o Estado de Rondônia a chancelar a predação no
interior de unidades de conservação, usando ainda o argumento pífio de que isto
acarretará melhoras na condição social das populações tradicionais (lançadas à penúria
pela ausência de política socioambiental estadual).
Desse modo, deve-se registrar que, ainda que fosse cabível tal alienação do patrimônio
público consistente em recursos florestais diretamente a uma empresa (o que certamente
só se alega por amor à argumentação), esta deveria ser submetida à concorrência
pública, de modo que todos os interessados pudessem dela participar, preservando-se
assim o Princípio Republicano (art. 1.º da CF/1988).
Tudo isto foi desrespeitado pelos investigados, ressaltando-se que o réu Estado de
Rondônia, por meio da conduta comissiva da Sedam, incentivou e chancelou toda a
operação.
Na realidade, deve se alertar que o réu Estado de Rondônia, antes mesmo da instauração
do Inquérito Civil que instrui esta ação e expedição da recomendação de f. (do Inq.
Civil), não apenas tinha plena ciência das irregularidades como agiu de forma
contundente para pressionar os seringueiros das Reservas Extrativistas de Rondônia a
aceitar a parceria com madeireiros.
Disso fazem prova documentos que dão conta de que a Sedam suspendeu em
07.02.2007 (f. do Inq. Civil) o plano de manejo da Resex estadual do Rio Cautário (que
era executado de forma comunitária pela comunidade local) e promoveu reuniões com a
Associação Aguapé (que representa a população tradicional daquela Unidade de
Conservação) com a finalidade de “discussão de parceria com a associação do
madeireiro e o sindicato” (f. do Inq. Civil). Em reunião anterior, em 13.02.2007, já
havia sido feita explanação do “interesse do governador Ivo Cassol e do Secretário
Augustinho Pastore em melhorar a vida dos moradores da Reserva Extrativista do Rio
Cautário”, mediante a “parceria entre governo (Sedam), moradores e empresários”,
havendo “empenho do governo em disponibilizar de imediato 10 mil hectares para a
Aguapé em parceria com o sindicato dos madeireiros para se realizar planos de manejo
florestal” (f. do Inq. Civil).
No mesmo documento ainda chegou-se a prometer a cada família a cifra de R$
75.000,00 (o original dizia “R$ 40.000,00”) “neste primeiro projeto”.
Torna-se claro o modus operandi do réu Estado de Rondônia: suspende o manejo
comunitário (f. do Inq. Civil) e depois convoca reunião (f. do Inq. Civil) para propor
famigerada “parceria” com sindicato de madeireiros, chegando ao absurdo de prometer
quarenta ou setenta e cinco mil reais por família, verdadeira propina que os crédulos
seringueiros certamente jamais verão.
Assim, claramente fica evidenciada a existência de política governamental para obter
livre acesso dos madeireiros aos recursos florestais existentes nas Reservas Extrativistas
estaduais. Todavia, tal qual no caso da Resex Rio Pacaás Novos, em que o
empreendimento encontra-se na zona de amortecimento de unidades de conservação
federais, também a Resex estadual do Rio Cautário faz divisa com a Resex Federal de
mesmo nome, havendo a grande possibilidade de haver dano à zona de amortecimento
da segunda.
Conclui-se, assim, que o objeto do contrato (f. do Inq. Civil) e do licenciamento são
ilícitos e violam bens difusos sob tutela não apenas do réu Estado de Rondônia, como
principalmente da União, devendo ser ajuizada medida que vise não apenas o
reconhecimento de sua nulidade e do licenciamento, como também que obtenha
provimento cautelar suspendendo seus efeitos, o que se está fazendo nesse momento.
2. Fixação de responsabilidade
2.1 Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama)
O Ibama, mesmo ciente do empreendimento, conforme demonstram os documentos
acostados aos autos (f. do Inq. Civil), inclusive reconhecendo a ilegalidade do projeto,
absteve-se de adotar as providências administrativas que lhe competiam, notadamente o
embargo da atividade e autuação dos infratores. Tampouco ajuizou qualquer medida a
fim de obstar empreendimento que ele mesmo reconhecia como ilegal.
Além disso, conforme já demonstrado, sua anuência ao procedimento de licenciamento
ambiental é obrigatória, em razão do empreendimento localizar-se em zona de
amortecimento de unidades de conservação federais, que sequer foram consultadas.
2.2 Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra)
O Incra deve obrigatoriamente constar no polo passivo da demanda, haja vista ser o
titular da área em questão.
Além disso, é de se constatar a necessidade de provimento jurisdicional de caráter
mandamental em face desta autarquia e do réu Estado de Rondônia, pois o fato de o
domínio das terras não ter sido transferido do primeiro para o segundo é irregularidade
que não pode perdurar. É notório que a ausência de regularização fundiária é um dos
veículos da devastação da Amazônia e, no caso em tela, tal incúria gera prejuízos para
as populações tradicionais, as quais estão privadas de seus direitos, já que não possuem
contrato de concessão real de uso de suas terras.
2.3 Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBIO)
Trata-se do órgão gestor das unidades de conservação federais em cuja zona de entorno
localiza-se o empreendimento. Embora não tenha cometido irregularidades, é
interessado direto na lide. Além disso, frise-se que, diante da recente Lei 11.516/2007
(que criou tal órgão), paira dúvida se o licenciamento e fiscalização de atividades no
entorno de unidades de conservação federais é de atribuição do Ibama ou da nova
autarquia.
2.4 Fundação Nacional do Índio (Funai)
Consta também nos autos que parcela considerável da área da Resex estadual do Rio
Pacaás Novos tem sido pleiteada por índios da Terra Indígena Rio Negro Ocaia (f. do
Inq. Civil). A revisão dos limites da mencionada Terra Indígena encontra-se em
andamento e inclusive há informação de que tramita inquérito civil na Procuradoria da
República em Porto Velho a respeito do assunto.
É inolvidável que existe interesse do órgão indigenista na área. Desse modo, embora a
Funai não tenha cometido irregularidades, é patente que possui interesse no deslinde da
questão. Isso porque a implementação de atividade exploratória de recursos naturais na
localidade, ainda que submetida a plano de manejo regularmente aprovado (o que, já se
esclareceu acima, não se trata da hipótese dos autos), pode ou não surtir influências no
modo de viver das comunidades indígenas que habitam a circunvizinhança do
empreendimento.
2.5 Estado de Rondônia
Em primeiro lugar, é clara a responsabilidade do Estado de Rondônia, já que seus
agentes, por meio da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Ambiental (Sedam),
estiveram empenhados de forma decisiva em incentivar e licenciar empreendimento em
flagrante violação às normas ambientais. Como já é notório, este ente tem primado por
condutas manifestamente contrárias à preservação do meio ambiente, sob o argumento
(velado ou não) da necessidade de desenvolvimento econômico, falácia amplamente
divulgada à população, o que tem redundado na crença geral existente neste Estado de
que a proteção da Natureza é um empecilho ao progresso.
Seja pela carência de servidores com formação técnica adequada (fruto do mais absoluto
descaso de sucessivos governos), seja pela vontade deliberada de produzir falcatruas, os
projetos incentivados e licenciados pela Sedam tem se constituído em mandato legal
para a dilapidação do bem difuso ambiental, caso do plano de manejo madeireiro em
análise.
Verifica-se que, durante todo o trâmite do Inquérito Civil que instrui essa Ação Civil
Pública, servidores da Sedam empenharam-se em demonstrar a legalidade do
empreendimento, e o Presidente do Inquérito Civil chegou a receber até mesmo a visita
do então Secretário Augustinho Pastore e seu “assessor jurídico” (cargo legalmente
inexistente) Ruy Carlos Freire Filho.
Neste particular, vale destacar que Ruy Carlos Freire Filho foi condenado em primeiro
grau (f. do Inq. Civil) pela prática de ato de improbidade administrativa (Lei
8.429/1992) em razão de ter proferido, na condição de servidor da Sedam, parecer
jurídico nos autos do procedimento investigatório (f. do Inq. Civil), ao mesmo tempo
em que patrocinava os interesses privados da ré Associação Primavera e da ré Marcol
Ltda. em ação civil pública movida pelo Ministério Público Estadual visando à anulação
do primeiro contrato firmado entre aqueles. Referido servidor também foi recentemente
preso, em razão de decisão judicial emanada da Seção Judiciária de Rondônia, por
ocasião da deflagração da “Operação Savana”, que investigava o cometimento de
crimes funcionais que visavam legalizar a exploração ilegal de madeira neste Estado.
Tal condenação (ainda não definitiva, reconhece-se) por improbidade é prova viva de
que o empenho do réu Estado de Rondônia está eivado da suspeita de fraudes, sendo
pouco provável que o assessor jurídico pessoal do Secretário de Estado agisse sem o
consentimento de seus superiores.
Não se poderia deixar de mencionar que o principal interessado no empreendimento, o
empresário do setor madeireiro Ademar Marcol Alfredo Suckel, é personalidade atuante
no meio político-econômico deste Estado, conforme se verá adiante, o que reforça a
suspeita de que a atuação dos agentes do Estado de Rondônia não ocorreu com a
finalidade de buscar o interesse público, mas sim para prestigiar interesses privados em
detrimento do meio ambiente.
2.6 Marcol Indústria E Comércio Ltda.
Referida pessoa jurídica é parte do “contrato de parceria para exploração florestal
comunitária” (f. do Inq. Civil) e principal beneficiária econômica do projeto, já que terá
acesso à imensa área de mata virgem, bem de valor econômico incomensurável, haja
vista a escassez de madeira existente atualmente em Rondônia, consequência de poucas
décadas de exploração predatória.
O ex-sócio administrador Ademar Marcol Alfredo Suckel, embora tenha se retirado da
sociedade dando lugar a um de seus filhos, permanece como procurador com amplos
poderes e, desse modo, proprietário de fato da empresa. É um dos grandes empresários
do setor madeireiro deste Estado, já foi refeito de Vilhena/RO (o que lhe valeu a
condenação no TCE/RO), secretário-adjunto de Estado e candidato derrotado a suplente
de Moreira Mendes para o cargo de senador.
2.7 Associação dos Seringueiros das Reservas Extrativistas Barreiro das Antas e Rio
Pacaás Novos “Primavera” e Cooperativa “Vida Nova”
A ré Associação Primavera é parte do “contrato de parceria para exploração florestal
comunitária” (f. do Inq. Civil) que necessita ser anulado em razão dos já mencionados
vícios, e a Cooperativa “Vida Nova” é a detentora de direito do licenciamento
ambiental, motivo pelo qual devem ser incluídas no polo passivo de eventuais medidas
judiciais.
3. Competência da Justiça Federal
Ao longo de toda esta petição inicial foram tecidas considerações e fornecidos os
fundamentos jurídicos acerca da competência da Justiça Federal para o julgamento
dessa ação.
O fato isolado de se inserir no polo passivo órgãos e pessoas jurídicas relacionados à
União já justificaria a competência da Justiça Federal, ainda que fosse para ser proferida
uma decisão de reconhecimento da ilegitimidade passiva da parte.
Mas, conforme já foi acima bem salientado, inclusive com o fornecimento dos
dispositivos legais relacionados, o objeto do contrato que se impugna nessa
oportunidade é um quadrante que se encontra no interior da Reserva Extrativista
Estadual do Rio Pacaás Novos, quadrante este que se situa nas zonas de amortecimento
de duas Unidades de Conservação Federais, quais sejam, a Reserva Extrativista Barreiro
das Antas e o Parque Nacional Serra da Cutia.
Isso forçaria, conforme já foi esclarecido acima e, inclusive, reconhecido pelos réus
Ibama e ICMBIO, a prévia manifestação dessas instituições a respeito de qualquer
empreendimento, ainda que tal empreendimento seja planejado para ocorrer na zona de
amortecimento.
Ademais, o reflexo que a execução do negócio jurídico trará sob o modo de viver e as
pretensões das comunidades indígenas da região justifica a prévia manifestação da ré
Funai a respeito do empreendimento ora impugnado. Vale ressaltar que a Reserva
Extrativista do Rio Pacaás Novos é vizinha da Terra Indígena Rio Negro Ocaia e da
Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau (conforme se observa no mapa constante na f. do Inq.
Civil).
4. Urgência do provimento jurisdicional
Tendo-se em vista a comunicação de que foi expedida autorização definitiva pela
Sedam para o empreendimento, bem como informações notórias (art. 334, I, do CPC)
no Município de Guajará-Mirim, RO, de que o maquinário está sendo levado rio Pacaás
Novos acima em direção às áreas de extração de madeira, encontra-se caracterizado o
perigo de demora do provimento jurisdicional (periculum in mora), já que o dano
ambiental visualizado é de difícil reparação, haja vista que se trata de floresta de
unidade de conservação em condições ainda primárias.
Além disso, a ameaça ao direito (fumus boni iuris) é clara, haja vista que o bem
ambiental, previsto no art. 225, caput, da CF/1988 como bem de todos e essencial à
sadia qualidade de vida, e concretizado dentre outras formas pelos espaços
territorialmente protegidos (art. 225, § 1.º, III, da CF/1988), ou seja, pelas unidades de
conservação, encontra-se seriamente ameaçado, havendo prova suficiente da violação
das normas relativas ao licenciamento ambiental e ao regime de uso das Reservas
Extrativistas.
Desse modo, a obtenção de liminar visando suspender o licenciamento é vital, e, para
assegurar a efetividade de tal provimento, deve ser cumprida a ordem pela Polícia
Federal e Batalhão Ambiental da Polícia Militar.
5. Responsabilidade penal e por ato de improbidade
Registra-se ainda, a fim de reforçar o convencimento judicial a respeito da necessidade
de concessão das medidas que adiante se pleiteará, que a ilegalidade retratada no
Inquérito Civil anexo extrapola a esfera civil.
Com efeito, a Lei 9.605/1998 dispõe no art. 68 ser crime a conduta do agente público
que deixa de cumprir obrigação de relevante interesse ambiental, quando tinha o dever
legal de o fazer. Na espécie, os agentes públicos (que não podem alegar ignorância da
lei) agiram deliberadamente na ilegalidade, mesmo alertados por recomendação da 2.ª
Promotoria de Justiça de Guajará-Mirim, RO (f. do Inq. Civil), sendo evidente a
existência de interesses escusos, consistentes no favorecimento do grupo econômico
representado pela indústria madeireira.
Além disso, se iniciada a exploração madeireira, haverá a incidência do art. 40 da Lei
9.605/1998.
Outrossim, a conduta dos agentes estaduais da Sedam não apenas é criminosa como
ímproba, haja vista a cabal violação dos princípios da legalidade, da lealdade e da
moralidade (art. 11 da Lei 8.429/1992), sem falar no possível enriquecimento ilícito de
terceiros, à custa do dano ambiental ao erário (art. 10 da Lei 8.429/1992), até porque
tais florestas configuram bens públicos.
Neste ponto, oportuno lembrar que a Lei n. 9.985/2000 dispõe:
“Art. 38. A ação ou omissão das pessoas físicas ou jurídicas que importem
inobservância aos preceitos desta Lei e a seus regulamentos ou resultem em dano à
flora, à fauna e aos demais atributos naturais das unidades de conservação, bem como às
suas instalações e às zonas de amortecimento e corredores ecológicos, sujeitam os
infratores às sanções previstas em lei.”
6. Pedidos
6.1 Antecipação de tutela
A urgência no provimento jurisdicional já foi mencionada acima.
São requisitos para a concessão de tutela antecipada, nos termos do art. 273 do CPC, a
existência de prova inequívoca, o convencimento da Autoridade Judicial a respeito da
verossimilhança das alegações e a existência de fundado receio de dano irreparável ou
de difícil reparação (art. 273, I, do CPC).
O extenso e bem presidido Inquérito Civil que acompanha esta petição inicial concentra
vários documentos que comprovam a existência do contrato e do plano de manejo para a
implementação de atividade empresarial de extração de madeira em grande quadrante
da Reserva Extrativista do Rio Pacaás Novos (quadrante este situado na zona de
amortecimento de Unidades de Conservação Federais), havendo, inclusive, as cópias
dos contratos assinados (f. do Inq. Civil).
Tais contratos foram assinados antes mesmo do licenciamento do empreendimento e da
expedição de autorização para a exploração (f. do Inq. Civil).
As normas jurídicas violadas com a adoção das condutas por parte dos réus são
transparentes em estabelecer a necessidade de prévia existência de contrato de
concessão real de uso das terras para a celebração de uma avença nos termos da que é
ora impugnada.
Os documentos constantes no Inquérito Civil anexo configuram a prova inequívoca,
pressuposto para a concessão de provimento antecipatório.
As diversas normas jurídicas acima mencionadas e transcritas, especialmente os arts.
5.º, XIV e XXXIII, 225, caput e § 1.º, III e 231, da CF/1988; art. 9.º, VII e XI, da Lei
6.938/1981; arts. 2.º, XII, XVIII, XIX, 18, §§ 1.º e 7.º, 23 e 26, da Lei 9.985/2000; arts.
1.º e 4.º, do Dec. 98.897/1990; art. 27 do Dec. 99.274/1990; arts. 1.º, X e XIV e 2.º, do
Anexo, do Dec. 6.040/2007; art. 4.º do Dec. Estadual 6.953/1995 (f. do Inq. Civil); art.
2.º, da Res. Conama 13/1990, entre outros, são suficientes para a constatação da
verossimilhança das alegações e para reforçar ainda mais a existência da prova
inequívoca. Perfaz-se, assim, o requisito do fumus boni juris, inerente a todo
provimento liminar, cautelar ou antecipatório.
O fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação, que materializa o requisito
do periculum in mora, advém da celebração do contrato cuja cópia do instrumento
consta nas f. do Inq. Civil, e do posterior licenciamento pela Sedam (f. do Inq. Civil).
Com isso, não resta mais nada que impeça o início da atividade de extração das
madeiras.
Portanto, verifica-se que nada mais resta para o início das atividades de degradação do
meio ambiente. Notícias correntes no Município de Guajará-Mirim, RO, dão conta de
que o maquinário necessário à extração e ao transporte da madeira já está sendo
deslocado, pela via fluvial e pela via terrestre, para a localidade em que se instalará o
empreendimento.
Por estes motivos, requer-se que seja concedida medida liminar, a título de antecipação
de tutela (ou a título de medida cautelar, se assim se entender, com fundamento do art.
273, § 7.º, do CPC), para se determinar:
a) Aos réus Marcol Indústria e Comércio Ltda., Associação dos Seringueiros das
Reservas Extrativistas do Rio Pacaás Novos e Barreiro das Antas e Cooperativa Vida
Nova, inaudita altera parte (sem oitiva da parte contrária, já que não se tratam de
pessoas jurídicas de Direito Público), que se abstenham de praticar qualquer ato
relacionado à execução dos contratos cujos instrumentos constam nas f. do Inq. Civil,
bem como que se abstenham de praticar qualquer ato de degradação do meio ambiente,
tais como construção de estradas, extração de madeiras, movimentação de maquinário,
instalação de serrarias etc., na área da Reserva Extrativista do Rio Pacaás Novos,
especialmente na área referente ao Plano de Manejo que foi aprovado pela Sedam
(conforme o mapa constante na f. do Inq. Civil), até o final do julgamento desse
processo, sob pena de imposição de multa em valor a ser fixado por esse E. Juízo, e de
prisão em razão do cometimento de crime de desobediência e de infrações ambientais;
b) Ao réu Estado de Rondônia, especialmente por meio da Secretaria de Estado de
Desenvolvimento Ambiental (Sedam), que suspenda a Autorização Para a Exploração
de Plano de Manejo Florestal Sustentável constante nas f. do Inq. Civil, até a decisão
final desse processo, bem como que suspenda quaisquer outras autorizações similares
para a Reserva Extrativista do Rio Pacaás Novos, enquanto a titularidade das terras não
for transferida da União para o Estado de Rondônia, por intermédio Do Instituto
Nacional De Colonização E Reforma Agrária (Incra), sob pena de imposição de multa
em valor a ser fixado por esse E. Juízo;
c) Ao réu Estado de Rondônia, especialmente por meio da Sedam, que inicie
procedimento administrativo para o fim de se declarar a nulidade da Autorização Para a
Exploração de Plano de Manejo Florestal Sustentável, concedida para a Reserva
Extrativista Estadual do Rio Pacaás Novos, sob pena de imposição de multa em valor a
ser fixado por esse E. Juízo;
d) Ao réu Estado de Rondônia, especialmente por meio da Sedam e por meio do
Batalhão de Polícia Ambiental, e ao réu Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis (Ibama), que implementem intensa fiscalização na
Reserva Extrativista do Rio Pacaás Novos, haja vista a irregular aprovação de plano de
manejo para a citada área, o que, com certeza, incentivará a prática de crimes
ambientais na localidade;
e) Ao réu Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
(Ibama), que proceda à apreensão de todo material, maquinário e instrumentos que
sirvam para a prática da degradação do meio ambiente e que estejam localizados na
Reserva Extrativista do Rio Pacaás Novos, inclusive na localidade do quadrante
referente ao espaço em que foi aprovado o Plano de Manejo Florestal pela Sedam, bem
como que proceda ao embargo de atividades poluidoras e de extração de madeira que
esteja sendo praticado pelos réus Marcol Indústria e Comércio Ltda., Associação dos
Seringueiros das Reservas Extrativistas do Rio Pacaás Novos e Barreiro das Antas e
Cooperativa Vida Nova, inclusive com o fechamento e lacração de serrarias instaladas
na referida Unidade de Conservação;
f) À ré Fundação Nacional do Índio (Funai), para que se manifeste quanto ao pleito das
etnias indígenas Uru-Eu-Wau-Wau e Rio Negro Ocaia a respeito do imóvel onde foi
criada a Reserva Extrativista do Rio Pacaás Novos;
6.2 Tutela definitiva
Requer-se, a título de tutela definitiva:
a) A confirmação dos provimentos liminarmente concedidos ou, caso algum ou alguns
dos pedidos liminares não tenham sido atendidos, o deferimento deles, após a realização
da cognição plena e exauriente;
b) A declaração de nulidade dos contratos celebrados entre os réus Associação
Primavera, Cooperativa Vida Nova e Marcol Indústria e Comércio Ltda., contratos esses
cujos instrumentos constam nas f. do Inq. Civil, com a consequente declaração de
nulidade da dívida constituída pelas comunidades extrativistas da Reserva Extrativista
do Rio Pacaás Novos e da Reserva Extrativista Barreiro das Antas, inclusive pelas
respectivas entidades representativas, frente à ré Marcol Indústria e Comércio Ltda. Tal
pedido é fundamentado também, repete-se, no fato de que o objeto dos referidos
contratos é ilícito (patrimônio público) – art. 104, II, do CC/2002 – e no fato de que a
manifestação de vontade que deu ensejo à celebração dos contratos foi viciada, tendo se
configurado no caso o vício do consentimento lesão (art. 157 do CC/2002);
c) A determinação para que os réus Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e Instituto Chico Mendes de Conservação da
Biodiversidade (ICMBIO) manifestem-se previamente a respeito de empreendimentos
com potencial de degradação do meio ambiente que estejam previstos para serem
implementados na zona de amortecimento da Reserva Extrativista Federal Barreiro das
Antas e na zona de amortecimento do Parque Nacional Serra da Cutia;
d) A determinação ao réu Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra)
para que dê início ao processo administrativo que julgará o mérito da transferência da
propriedade imóvel onde foi criada a Reserva Extrativista do Rio Pacaás Novos da
União para o réu Estado de Rondônia;
Requer-se também a citação dos réus, nas pessoas de seus representantes legais, para,
querendo, contestarem essa Ação Civil Pública, sob pena de revelia e de presunção de
veracidade dos fatos aqui alegados.
Requer-se ainda que seja proferido um julgamento de procedência integral dos pedidos
aqui formulados.
Protesta-se provar as alegações por intermédio de todos os meios de provas em Direito
admitidos, inclusive a prova testemunhal, pericial e documental.
Dá-se à causa o valor de R$ 1.000.000,00, para o fim do art. 258 do CPC, diante do
conteúdo inestimável do objeto da lide.
Porto Velho, 16 de julho de 2008.