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Ação civil pública anulação de licenciamento ambiental de atividade madeireira em reserva extrativista 1 PEDRO ABI EÇAB Promotor de Justiça. OSVALDO DOS SANTOS HEITOR JÚNIOR Procurador da República. Excelentíssimo Senhor Doutor Juiz Federal da Vara Federal da Seção Judiciária de Rondônia 2 . Processo n. Classe: Ação Civil Pública (ambiental). Autores: Ministério Público Federal e Ministério Público do Estado de Rondônia. Réus: Estado de Rondônia, Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBIO), Fundação Nacional do Índio (Funai), Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Marcol Ind. e Com. Ltda., Associação dos Seringueiros das Reservas Extrativistas Barreiro das Antas e Rio Pacaás Novos “Primavera” e Cooperativa “Vida Nova”. Procedimento: Inquérito Civil n. 2007001060002975. O Ministério Público Federal e o Ministério Público do Estado de Rondônia vêm, respeitosamente, à presença de Vossa Excelência, ajuizar Ação Civil Pública, com Pedido de Antecipação de Tutela, para o fim de implementar a proteção do meio ambiente em face de: a) Estado de Rondônia, pessoa jurídica de direito público interno, devendo ser citado por seu Procurador Geral, podendo ser localizado na sede da Procuradoria Geral do 1 Publicado na Revista de Direito Ambiental, vol.59, Revista dos Tribunais, São Paulo, 2010. 2 A liminar foi concedida pelo Juízo.

Ação civil pública visando anular licenciamento ambiental estadual e impedir exploração madeireira em reserva extrativista

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Ação civil pública – anulação de licenciamento ambiental de atividade madeireira em

reserva extrativista1

PEDRO ABI EÇAB

Promotor de Justiça.

OSVALDO DOS SANTOS HEITOR JÚNIOR

Procurador da República.

Excelentíssimo Senhor Doutor Juiz Federal da Vara Federal da Seção Judiciária de

Rondônia2.

Processo n.

Classe: Ação Civil Pública (ambiental).

Autores: Ministério Público Federal e Ministério Público do Estado de Rondônia.

Réus: Estado de Rondônia, Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos

Naturais Renováveis (Ibama), Instituto Chico Mendes de Conservação da

Biodiversidade (ICMBIO), Fundação Nacional do Índio (Funai), Instituto Nacional de

Colonização e Reforma Agrária (Incra), Marcol Ind. e Com. Ltda., Associação dos

Seringueiros das Reservas Extrativistas Barreiro das Antas e Rio Pacaás Novos

“Primavera” e Cooperativa “Vida Nova”.

Procedimento: Inquérito Civil n. 2007001060002975.

O Ministério Público Federal e o Ministério Público do Estado de Rondônia vêm,

respeitosamente, à presença de Vossa Excelência, ajuizar Ação Civil Pública, com

Pedido de Antecipação de Tutela, para o fim de implementar a proteção do meio

ambiente em face de:

a) Estado de Rondônia, pessoa jurídica de direito público interno, devendo ser citado

por seu Procurador Geral, podendo ser localizado na sede da Procuradoria Geral do

1 Publicado na Revista de Direito Ambiental, vol.59, Revista dos Tribunais, São Paulo, 2010. 2 A liminar foi concedida pelo Juízo.

Estado de Rondônia, sito à Av. Imigrantes, bairro Costa e Silva, Porto Velho,

responsável juridicamente pelos atos praticados pela Secretaria Estadual de

Desenvolvimento Ambiental – Sedam, sediada na Estrada do Santo Antônio, Porto

Velho;

b) Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama),

Autarquia Federal criada pela Lei 7.735/1989 e vinculada ao Ministério do Meio

Ambiente, dos Recursos Hídricos e da Amazônia Legal, dotada de personalidade

jurídica própria, com sede em Brasília, DF e Representação Estadual situada na Av.

Jorge Teixeira, n. 3.477, nesta capital;

c) Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBIO), Autarquia

Federal criada pela Lei 11.516/2007 e vinculada ao Ministério do Meio Ambiente, dos

Recursos Hídricos e da Amazônia Legal, dotada de personalidade jurídica própria, com

sede em Brasília, DF e Representação Estadual situada na Avenida Lauro Sodré, n.

6.500, Bairro Aeroporto, Porto Velho, RO, CEP n. 78.903-711;

d) Fundação Nacional do Índio (Funai), Fundação Pública, sediada em Brasília, DF, e

com Representação Estadual (Administração Executiva Regional de Guajará-Mirim,

RO) na Avenida Constituição, n. 542, Centro, Guajará-Mirim, RO, CEP n. 78.957-000;

e) Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Autarquia Federal

criada pelo Dec. 1.110/1970, dotada de personalidade jurídica própria, com sede em

Brasília, DF, e Representação Estadual situada na Avenida Lauro Sodré, n. 3.050, Pq.

dos Tanques, Estrada do Aeroporto, Porto Velho, RO, CEP n. 78.904-300;

f) Marcol Indústria e Comércio Ltda., Pessoa Jurídica de Direito Privado, inscrita no

CNPJ/MF sob o 04.901.021/0001-39, com endereço na Rodovia BR 364, Km 1.037,

distrito de Extrema, Município de Porto Velho, representada por seu procurador e

proprietário de fato Ademar Marcol Alfredo Suckel, residente na Av. Leopoldo de

Matos, ao lado da Igreja Católica, Centro, Guajará-Mirim/RO;

g) Associação dos Seringueiros das Reservas Extrativistas Barreiro das Antas e Rio

Pacaás Novos “Primavera”, entidade representativa dos moradores da Reserva

Extrativista do Rio Pacaás Novos, pessoa jurídica de Direito Privado, inscrita no

CNPJ/MF sob o n. 01.829.929/0001-90, com endereço na Av. Dr. Lewerger, n. 22,

Bairro Triângulo, Guajará-Mirim, RO;

h) Cooperativa “Vida Nova”, Cooperativa dos Moradores da Reserva Extrativista

Estadual do Rio Pacaás Novos e Reserva Extrativista Federal Barreiro das Antas,

pessoa jurídica de Direito Privado, com endereço na Avenida Beira Rio, s/n, Bairro

Triângulo,

pelos fatos e fundamentos jurídicos que passa a expor:

1. Fatos e fundamentos jurídicos

Foi instaurado no âmbito do Ministério Público do Estado de Rondônia, 2.ª Promotoria

de Justiça de Guajará-Mirim, o Inquérito Civil n. 2007001060002975, em 27.02.2007, o

qual foi encaminhado para o Ministério Público Federal, Procuradoria da República em

Rondônia, no dia 10.07.2008.

O referido Inquérito Civil foi instaurado com o fito de se empreender investigação a

respeito da existência de plano de manejo madeireiro realizado em conjunto pela ré

Associação dos Seringueiros “Primavera” e pela ré Marcol Indústria e Comércio Ltda.,

referente à Reserva Extrativista Estadual do Rio Pacaás Novos.

No curso da investigação logrou-se êxito em se identificar um esquema para a

implementação de extração de madeira em escala empresarial na Reserva Extrativista

Estadual Rio Pacaás Novos. Tal esquema será pormenorizado um pouco mais adiante,

nesta petição inicial.

Logrou-se êxito também em se identificar atuações desidiosas por parte dos réus,

inclusive dos respectivos órgãos públicos, tudo de modo a afetar diretamente interesses

federais e justificar a competência da Justiça Federal de 1.ª instância para o julgamento

dessa Ação Civil Pública. Sobre isso também discorrer-se-á.

O mencionado Inquérito Civil segue anexo e nele encontram-se juntados diversos

documentos, os quais comprovam cabalmente todas as alegações que serão feitas e a

acusação acima enunciada.

Conforme foi salientado, identificou-se a existência de um plano de manejo madeireiro

realizado por entidade representativa dos seringueiros da Resex Estadual do Rio Pacaás

Novos (Associação Primavera) em conjunto com a empresa do setor madeireiro (Marcol

Ltda.), empreendimento licenciado pelo Estado de Rondônia, por meio da Secretaria do

Estado de Desenvolvimento Ambiental (Sedam) em favor da Cooperativa de

seringueiros “Vida Nova”.

Em um primeiro momento (18.08.2003), as pessoas jurídicas rés Primavera e Marcol

Ltda., celebraram mutuamente um contrato de compra de venda de madeira in natura

integrante do acervo florestal da mencionada unidade de conservação. Tal instrumento

era particular, não contava com a anuência expressa do órgão gestor da Unidade de

Conservação (Sedam) e não possuía licenciamento ambiental (f. e ss. do Inq. Civil).

O representante da 2.ª Promotoria de Justiça de Guajará-Mirim entendeu ser tal negócio

jurídico nulo de pleno direito, e ajuizou Ação Civil Pública visando a respectiva

anulação (f. do Inq. Civil). Esta ação (autos n. 015.2007.001651-1, 1.ª Vara Cível da

Comarca de Guajará-Mirim) foi extinta sem julgamento do mérito em razão da perda do

objeto (f. do Inq. Civil), uma vez que houve a revogação do contrato questionado em

razão da celebração de nova avença, agora com a interveniência da Sedam (f. do Inq.

Civil).

Entretanto, já se antevendo que a ilegalidade persistiria, entendeu-se por bem não fazer

aquela Ação Civil Pública ser acompanhada do Inquérito Civil anexo, mas somente de

cópias dele, tendo as investigações prosseguido nos respectivos autos.

Em linhas gerais, a apuração constatou a existência de plano de manejo madeireiro

surgido da associação entre entidade representativa de seringueiros e empresário do

ramo madeireiro (Ademar Marcol Suckel), de fato o verdadeiro beneficiário do projeto.

Embora desde o início da aproximação tivesse sido possível constatar indícios de apoio

de integrantes do Governo do Estado de Rondônia (por intermédio da Sedam), a

anuência estatal tornou-se expressa a partir do contrato de f. (autos do Inq. Civil),

confirmada por posterior licenciamento.

Do que foi registrado até este momento resulta que existe, portanto, um

empreendimento de exploração florestal por meio de manejo madeireiro no interior da

Reserva Extrativista Estadual do Rio Pacaás Novos, empreendimento este agora

licenciado pelo réu Estado de Rondônia em favor da ré Cooperativa dos Moradores das

Reservas Extrativistas Estadual do Rio Pacaás Novos e Federal Barreiro das Antas (f.

do Inq. Civil).

Para o fim de melhor evidenciar-se a ilegalidade, analisar-se-á o referido plano de

manejo em 2 partes: uma, relativa ao aspecto procedimental do licenciamento, e outra,

relativa ao mérito, isto é, ao objetivo do empreendimento. Portanto, em um primeiro

momento, indaga-se se os requisitos procedimentais para o licenciamento foram

observados. No segundo, se o empreendimento em si pode ser licenciado.

1.1 Vícios existentes no procedimento de licenciamento

1.1.1 Ausência de legitimidade das rés requerentes (Associação Primavera e

Cooperativa Vida Nova)

As Reservas Extrativistas são unidades de conservação cujo uso dos recursos naturais é

exclusivo das populações tradicionais nela residentes (art. 1.º do Dec. 98.897/1990 e art.

18 da Lei 9.985/2000).

Nos termos do art. 4.º do Dec. 98.897/1990, “a exploração autossustentável e a

conservação dos recursos naturais será regulada por contrato de concessão real de uso”.

No mesmo sentido, o art. 23, caput, da Lei 9.985/2000, dispõe que “a posse e o uso das

áreas ocupadas pelas populações tradicionais nas Reservas Extrativistas e Reservas de

Desenvolvimento Sustentável serão regulados por contrato”.

No entanto, embora o ato de criação da Resex Estadual do Rio Pacaás Novos (Dec.

estadual 6.953, de 14.07.1995, f. do Inq. Civil) disponha expressamente no art. 4.º a

respeito da necessidade da celebração de contrato de concessão real de uso, até a

presente data isto não ocorreu, podendo-se fornecer uma explicação muito simples para

não ter sido celebrado tal contrato: o imóvel em que se situa a Resex ainda é de

dominialidade da União e gerenciado pelo réu Instituto Nacional de Colonização e

Reforma Agrária (Incra).

Por esse motivo, embora os seringueiros tenham seu estado fático de posse assegurado,

a ré Associação Primavera (e, tampouco, a recém-criada ré Cooperativa Vida Nova) não

possui legitimidade para requerer o licenciamento do plano de manejo florestal, haja

vista não possuir contrato de concessão real de uso da área, motivo pelo qual a Sedam

não poderia ter expedido autorização para a exploração madeireira.

1.1.2 Ausência de anuência dos réus Ibama e ICMBIO

A Resex Estadual do Rio Pacaás Novos faz divisa com a Resex Federal Rio Ouro Preto,

Reserva Biológica estadual do Rio Ouro Preto, Terra Indígena Rio Negro Ocaia, Terra

Indígena Pacaás Novas, Reserva Biológica estadual Traçadal, Resex Federal Barreiro

das Antas, Parque Nacional Serra da Cutia e TI Uru-Weu-Uau-Uau.

Trata-se de um conjunto de áreas protegidas (terras indígenas e unidades de

conservação) que, juntamente com outras situadas no município de Costa Marques, RO,

estende-se até o Estado do Mato Grosso, além de se encontrar também conectado com

áreas protegidas que se encontram no município de Porto Velho, RO, e se projetam pelo

sul do Estado do Amazonas, com fundamental importância para a preservação da

biodiversidade da Amazônia, representando certamente o último espaço de Rondônia

que sobreviveu em relativa integridade à devastação.

Este conjunto constitui um mosaico denominado Corredor Ecológico Mamoré-

Guaporé-Iteñez (Bolívia), já se que integra também a áreas protegidas daquele país.

Os corredores ecológicos, nos termos da Lei 9.985/2000 (art. 2.º, XIX), são porções de

ecossistemas naturais ou seminaturais, ligando unidades de conservação, que

possibilitam entre elas o fluxo de genes e o movimento da biota, facilitando a dispersão

de espécies e a recolonização de áreas degradadas, bem como a manutenção de

populações que demandam para sua sobrevivência áreas com extensão maior do que

aquela das unidades individuais.

Ainda segundo a Lei 9.985/2000, “quando existir um conjunto de unidades de

conservação de categorias diferentes ou não, próximas, justapostas ou sobrepostas, e

outras áreas protegidas públicas ou privadas, constituindo um mosaico, a gestão do

conjunto deverá ser feita de forma integrada e participativa, considerando-se os seus

distintos objetivos de conservação, de forma a compatibilizar a presença da

biodiversidade, a valorização da sociodiversidade e o desenvolvimento sustentável no

contexto regional” (art. 26, caput, destacou-se).

Justamente por ser contígua à outras unidades de conservação e terras indígenas, a

Resex do Rio Pacaás Novos tem grande parcela de sua área inserida em zona de entorno

destas áreas protegidas.

Nos termos da Lei 9.985/2000, denomina-se zona de amortecimento o entorno de uma

unidade de conservação, onde as atividades humanas estão sujeitas a normas e restrições

específicas, com o propósito de minimizar os impactos negativos sobre a unidade (art.

2.º, XVIII, da Lei 9.985/2000).

Conforme parecer do réu ICMBIO, por meio da chefia da Resex Federal Barreiro das

Antas, que analisou as informações prestadas pela Sedam (por meio das quais não se

registrou qualquer irregularidade no licenciamento ambiental), o empreendimento

encontra-se na zona de entorno desta Unidade de Conservação (f. do Inq. Civil), o que é

claramente observável no mapa de f. (do Inq. Civil), que indica estar praticamente

metade da área do manejo madeireiro no interior da zona de amortecimento.

O art. 27 do Dec. 99.274/1990, faz previsão a respeito da zona de amortecimento, in

verbis:

“Art. 27. Nas áreas circundantes das Unidades de Conservação, num raio de dez

quilômetros, qualquer atividade que possa afetar a biota ficará subordinada às normas

editadas pelo Conama” (destacou-se).

Para regulamentar tal dispositivo, o Conama editou a Res. 13/1990, a qual estabelece:

“Art. 2.º Nas áreas circundantes das Unidades de Conservação, num raio de dez

quilômetros, qualquer atividade que possa afetar a biota, deverá ser obrigatoriamente

licenciada pelo órgão ambiental competente.

Parágrafo único. O licenciamento a que se refere o caput deste artigo só será concedido

mediante autorização do responsável pela administração da Unidade de Conservação”

(destacou-se).

Fica evidente que, sendo o réu Instituto Chico Mendes de Conservação da

Biodiversidade (ICMBIO) o responsável pela administração das unidades de

conservação federais, a ele caberá intervir no licenciamento de qualquer atividade que

possa afetar a biota no entorno de 10 quilômetros destas áreas, perímetro em que o

empreendimento licenciado unicamente pela Sedam encontra-se inserido. Além disso,

sendo o licenciamento ambiental na esfera federal de responsabilidade do Ibama, sua

manifestação é igualmente obrigatória.

Todavia, ignorando o fato de que a Resex Estadual do Rio Pacaás Novos é contígua a

unidades de conservação federais como a Resex Barreiro das Antas e o Parque Nacional

Serra da Cutia, a Sedam licenciou empreendimento visando a extração de madeira sem

sequer colher a anuência do Ibama e do ICMBIO (órgão gestor das unidades federais).

A violação às normas ambientais reveste-se de elevada gravidade, sendo mister ressaltar

que o bem ameaçado é tutelado inclusive na esfera penal, já que o art. 40 da Lei

9.605/1998 dispõe ser crime, punível com pena de reclusão de um a cinco anos, a

conduta de causar dano direito ou indireto às áreas de que trata o art. 27 do Dec.

99.274/1990, ou seja, na zona de entorno da Unidade de Conservação.

Dessa forma, conclui-se que existe vício no procedimento de licenciamento ambiental,

haja vista ser obrigatória a interveniência do órgão gestor das unidades de conservação

federais, motivo pelo qual o ato administrativo encontra-se eivado de nulidade.

1.1.3 Violação ao direito de informação das populações tradicionais

O direito de informação constitui interesse difuso por natureza, típico de terceira

geração, eis que se trata de interesse de uma coletividade indivisível, incomensurável,

ligada entre si por circunstâncias fáticas. O Direito Ambiental reconhece a importância

deste princípio, sendo que a Declaração do Rio de Janeiro, documento elaborado como

resultado da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente (Rio/1992), afirma

no Princípio 10 que: “No nível nacional, cada indivíduo deve ter acesso adequado a

informações relativas ao meio ambiente de que disponham autoridades públicas,

inclusive informações sobre materiais e atividades perigosas em suas comunidades, bem

como a oportunidade de participar em processos de tomada de decisões”.

A Constituição da República (art. 5.º, XIV e XXXIII) garante o acesso indistinto à

informação. Já no plano infraconstitucional, a Lei de Política Nacional do Meio

Ambiente (Lei 6.938/1981) estabelece no art. 9.º, VII e XI, a obrigação do Poder

Público de manter cadastro de informações ambientais e assegurar ao cidadão o acesso a

estas informações. Nesse mesmo sentido, a Lei 10.650/2003 veio garantir a qualquer

indivíduo, independente da comprovação de interesse específico (art. 2.º, § 1.º), o

direito de acesso à informação ambiental, positivando o caráter difuso do acesso à

informação.

Diretamente no que tange às populações tradicionais, o Dec. 6.040/2007, que cria a

Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável das Populações Tradicionais,

estabelece no art. 1.º, X, do Anexo, como princípio, “a promoção dos meios necessários

para a efetiva participação dos Povos e Comunidades Tradicionais nas instâncias de

controle social e nos processos decisórios relacionados aos seus direitos e interesses”.

Entretanto, contrariamente ao que dispõe a legislação ambiental, o empreendimento

fomentado pelo réu Estado de Rondônia (através da Sedam), embora conte com a

participação expressa da diretoria da ré Associação Primavera (entidade representativa

dos seringueiros da Unidade de Conservação), foi acertado com flagrante violação ao

direito de informação das populações tradicionais da Resex do Rio Pacaás Novos, pois

se encontram presentes fundados indícios de que os dados referentes ao projeto foram

acessíveis a uma minoria ligada à diretoria da referida associação. Não bastasse isso,

pairam também suspeitas sobre se as futuras receitas auferidas com a venda da madeira

para a ré Marcol Ltda. serão repartidas de modo igualitário ou as lideranças que já se

beneficiaram de um “mensalinho” pago por madeireiros serão privilegiadas.

Com efeito, conforme relatório produzido pela reconhecida ONG WWF-Brasil

(Diagnóstico da atual situação do manejo florestal comunitário nas reservas

extrativistas estaduais de Rondônia, Rio Branco, 2005), que realizou diagnóstico

socioambiental do projeto, inclusive com diligências in loco, relata-se:

“Embora a Primavera tenha elaborado um calendário de reuniões comunitárias, a

diretoria admitiu que o mesmo não está sendo cumprido. A última reunião de base

ocorreu na comunidade Margarida em função de uma capacitação promovida pela OSR

no âmbito do projeto Amigos da Terra. O apoio deste projeto beneficia diretamente a

Primavera através de recursos para viagens, alimentação dos participantes, ajuda de

custo para dois dirigentes, além dos cursos e eventos. Com exceção deste último

encontro, a Primavera, segundo os moradores, não tem estimulado os encontros de

base. As viagens até as comunidades têm custos elevados, principalmente na compra de

combustível e alimentação. Assembleias Extraordinárias foram frequentes durantes os

levantamentos de campo e a assinatura dos acordos comunitários para aprovação das

atividades na Resex. Porém, desde maio de 2004 a Primavera não promove mais

Assembleias.

(...)

Desta forma, a situação, do ponto de vista dos moradores da Resex, é de falta de

informações precisas sobre o projeto de manejo florestal madeireiro. Os extrativistas,

com exceção de alguns, desconhecem a razão pela qual o projeto não foi implementado

em 2004. Muitos atribuem a Sedam e ao Ibama o atraso, mas não sabem o porquê deste.

Alguns ainda acreditam que a serraria será instalada na Resex e que haverá posto de

saúde e escola na proximidade. Os moradores entrevistados têm conhecimento sobre a

parceria com as empresas madeireiras, que viabilizaram o projeto, mas não conseguem

esclarecer os acordos estabelecidos para saldar a dívida da Associação. Alguns ainda

não sabiam que a Associação continua recebendo R$ 1.000,00 mensalmente dos

empresários.

(...)

As discussões pertinentes a este projeto ficaram concentradas nos representantes da

Diretoria da Primavera e da OSR, nos empresários, técnicos da Apidiá e da Sedam de

Guajará-Mirim, enquanto que, na verdade, deveriam ter sido envolvidos os diversos

atores situados no mesmo contexto socioambiental a qual está submetida a Resex do

Rio Pacaás Novos, tais como a Universidade Federal de Rondônia (Unir), ONGs como

a Kanindé, Ecoporé e Maporé, Funai, entre outros” (f. do Inq. Civil, destacou-se).

Observa-se de modo cristalino que o projeto, além de não ser de amplo conhecimento

das populações tradicionais da Resex, parece ser direcionado a beneficiar lideranças que

já estariam recebendo R$ 1.000,00 mensais.

É inegável que a carência de informação adequada vicia suposto consentimento das

comunidades sobre o projeto, sendo pertinente a observação do ICMBIO, expressa em

parecer do analista ambiental responsável pela Resex Barreiro das Antas (f. do Inq.

Civil):

“A assimetria de poder e conhecimento entre os moradores da comunidade e os

intervenientes de instituições privadas e do poder público, o fato em si de haver

aprovação do projeto pelo conselho deliberativo desta Resex é indicativo somente da

legalidade do que é feito, mas não da legitimidade do processo, tanto do ponto de vista

das comunidades da Resex, quanto de outros atores sociais envolvidos.”

É inegável que uma comunidade sem informações adequadas não pode gerir sua vida e

o destino dos recursos naturais cujo uso a lei lhe outorga, sendo viciada a manifestação

de vontade colhida em meio à desinformação.

Essa imputação de manifestação de vontade viciada não reflete exagero de expressão.

Amolda-se à figura da lesão que, no âmbito do Código Civil de 2002, foi inserida no

contexto dos vícios do consentimento.

A mera transcrição do art. 157 do CC/2002, basta para demonstrar a manifestação de

vontade viciada em razão das diversas circunstâncias em que foi entabulado o contrato,

inclusive em razão da falta de informação.

Reza o art. 157 do CC/2002, verbis:

“Art. 157. Ocorre a lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por

inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da

prestação oposta.”

O conhecimento superficial que se tem a respeito da situação de penúria enfrentada pela

maioria das comunidades tradicionais, e também pela maioria das etnias indígenas, é

suficiente para se presumir, em relação às referidas comunidades, inclusive as que

habitam as Reservas Extrativistas Rio Pacaás Novos e Barreiro das Antas, a premente

necessidade e a inexperiência, pressupostos para a configuração do vício de

consentimento conhecido como lesão. Conclui-se, em consequência, a manifestação de

vontade viciada, causa de anulabilidade do negócio jurídico.

Conforme parecer da advogada Ludmila Caminha Barros sobre os contratos firmados

entre entidades seringueiras e madeireiros, é imprescindível, para ver respeitado direito

à informação e a participatividade:

“Obter formalmente a anuência prévia das comunidades às associações de moradores

para contratar a atividade, discutidas a conveniência e as condições de contratação a

serem observadas para o atendimento dos seus interesses. As comunidades devem se

pronunciar por maioria absoluta, isto é, a decisão deve contar com dois terços dos votos

dos presentes” (f.).

Desse modo, para o fim de garantir o direito difuso à informação destas populações

tradicionais, necessária se faz a realização de audiências públicas, devidamente

fiscalizadas por instituições idôneas (Unir, ONGs, Ibama e ICMBIO), sob pena de

ocorrer dilapidação do valioso patrimônio ambiental sem que benefícios reais do ponto

de vista social (e não apenas gorjetas de madeireiros) sejam recebidos pelos

extrativistas.

Sem informação adequada e fornecida por entidades com credibilidade (o que

certamente não é o caso da Sedam, órgão desprovido de profissionais com gabarito

técnico além de imbuído da política antiecológica do Governo estadual), impossível a

efetivação do princípio da participação popular, consagração do ideal de democracia

participativa.

1.1.4 Violação do direito ao desenvolvimento sustentável das comunidades tradicionais

e à preservação de sua cultura

Todo marco regulatório das populações tradicionais e respectivas unidades de

conservação de uso sustentável visa, em síntese, o desenvolvimento sustentável destas

comunidades, ou seja, seu progresso aliado à conservação da Natureza, por intermédio

de suas práticas de reduzido impacto ambiental.

Quando a legislação estabelece o desenvolvimento das populações tradicionais, atrela

este à conservação de sua herança cultural e histórica. Com efeito, a Política Nacional

de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (Dec.

6.040/2007), entre seus objetivos, busca a melhoria da qualidade vida com a

preservação dos direitos culturais, o exercício de práticas comunitárias, a memória

cultural e a identidade racial e étnica (art. 1.º, XIV, do Anexo).

Entretanto, coisa bem diferente é o que ocorrerá com o manejo madeireiro ora em

análise.

Isto porque a exploração dos recursos naturais será feita em escala empresarial, algo que

seria lícito em se tratando de propriedade privada, porém viola frontalmente o disposto

no Snuc (art. 18 da Lei 9.985/2000). A comunidade da Resex se tornará, em poucas

palavras, uma fornecedora de matéria prima a um empresário da região, sem agregar

qualquer valor ao produto, e sem qualquer atividade relacionada ao seu modo de vida

tradicional.

A utilização econômica dos recursos naturais nas reservas extrativistas tem por

princípio orientador a conservação desses recursos e não apenas a continuidade a

longo prazo de sua exploração. Mais ainda, “esta conservação deverá ser buscada tanto

pelo emprego de formas de produção alternativas àquelas que visam apenas à

maximização dos lucros; quanto pela proteção dos modos de vida e de produção das

comunidades da floresta”, como avaliou corretamente a parecerista à f. (do Inq. Civil).

Neste particular, seria obrigatória, sob pena ilegitimidade do procedimento de

licenciamento, a participação da Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável

dos Povos e Comunidades Tradicionais, órgão responsável pela implementação da

Política Nacional para o Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades

Tradicionais, conforme estabelece o art. 2.º do Dec. 6.040/2007, até porque inexiste, na

esfera do Governo estadual, qualquer política de amparo a estes povos.

1.1.5 Ausência de avaliação do impacto socioambiental

Além do impacto ambiental causado pela abertura de estradas (uma delas já aberta,

conforme se verifica nas f. do Inq. Civil), pela retirada das árvores e navegação fluvial

de carga, ocorrerá inevitável impacto social na Unidade de Conservação.

O empreendimento aqui analisado envolve a instalação de serraria no interior da Resex,

a qual possivelmente empregará muitos operários que não são moradores tradicionais,

disso redundando em choque de culturas e consequente aceleração da descaracterização

cultural, o que viola a finalidade do modelo de reservas extrativistas, e sua intrínseca

preservação dos valores tradicionais.

Além do aspecto social, a vila de operários gerará lixo no interior da Unidade de

Conservação; o transporte da madeira pelo rio Pacaás Novos em pesadas embarcações

visando o escoamento rodoviário certamente acarretará impacto na delicada flora e

fauna subaquáticas. Estes são apenas alguns aspectos que, a primeira vista, saltam aos

olhos e que não foram objeto de análise pela Sedam.

Se tais atividades já geram degradação ambiental em imóveis particulares sujeitos ao

regime ambiental geral, muito maior será o impacto no interior de uma unidade de

conservação, em razão de suas restrições que visam atender à finalidade de conservação

da Natureza.

Assim, com razão o alerta sobre os riscos do empreendimento à zona de entorno de

Unidade de Conservação federal contido no parecer do ICMBIO (f. do Inq. Civil):

“Com a operação da serraria e o adensamento populacional provocado pela necessidade

de agregar os funcionários próximos a ela, haverá uma pressão para exploração de

recursos numa área da Resex Pacaás Novos compreendida na zona de entorno da Resex

Barreiro das Antas.

(...)

Essa agregação populacional, somada à natureza da atividade que será desenvolvida no

local – a exploração madeireira – carrega em si o risco de estabelecer um modelo de

ocupação e uso do solo bem diverso daquele estabelecido para as Reservas Extrativistas

de acordo com o Snuc.”

Além disso, o mesmo parecer demonstra o fundado risco de impacto na zona de entorno

do Parque Nacional Serra da Cutia e Resex Federal Barreiro das Antas (f. do Inq. Civil):

“Considerando o fato de que a Resex Barreiro das Antas está a menos de 10 km do

PMFS, conforme consta na p. da Avaliação Geral do PMFS (SEDAM, 2004), este

empreendimento encontra-se na Zona de Entorno desta Unidade de Conservação, sendo

passível de restrições e, inclusive, embargo conforme estabelece a IN Conama 13/1990.

Sobre a localização do talhão e os igarapés afetados, ver também mapa em anexo.

Quanto ao impacto do PMFS sobre as Unidades de Conservação circundantes, em

especial no Rio Novo, que banha a Resex Barreiro das Antas, ele será expressivo, uma

vez que o talhão mais ao sul da Resex Estadual do Pacaás Novos localiza-se sobre os

Igarapés das Antas e Igarapé Loreto. Esses igarapés são responsáveis pela recarga do

leito do Rio Novo, que sofre naturalmente de diminuição drástica de sua lâmina d'água

na época seca, chegando ao extremo de interromper seu curso.

O Rio Novo tem papel importante para a manutenção da ictiofauna local, servindo

como área reprodutiva e de forrageio das espécies que nele ocorrem (IBAMA, 2006).

Além disso, ele conta também com espécimes raros na Amazônia, como Pimelodella sp

“longa”, sobre a qual há poucos registros de ocorrência (idem, 2006).

Vale lembrar que o Rio Novo tem sua piscosidade reconhecida por comunidades locais,

o que, juntamente com a presença de peixes como Hypopygus lepturus (idem, 2006)

indica não haver perturbação significativa na biota local. Ademais, considerando este rio

como parte da bacia do rio Pacaás Novos, ele é responsável também pela manutenção

da piscosidade deste último e pela alimentação das comunidades ribeirinhas e indígenas

que vivem na região (idem, 2006).

Sabendo-se que haverá distúrbios no leito dos igarapés, conforme consta no mapa dos

talhões do PMFS (p. 97 do Plano de Manejo de Uso Múltiplo) com possibilidade de

assoreamento destes e do Rio Novo, bem como diminuição do fluxo hídrico em seu

curso, a manutenção da qualidade ambiental na Resex Barreiro das Antas encontra-se

sob ameaça com a instalação do PMFS”(destacou-se).

Neste ponto, lembra-se a incidência do princípio da precaução, segundo o qual a

incerteza não deve ser interpretada contra o meio ambiente. No caso, diante dos riscos

de danos não apenas à Resex estadual como à zona de entorno de Unidade de

Conservação Federal, devem ser adotadas as providências necessárias para afastar de

modo peremptório a ameaça.

1.2 Vício existente no mérito do empreendimento: desvio de finalidade das Reservas

Extrativistas

Ainda se os requisitos procedimentais estivessem preenchidos, caberia indagar sobre a

legalidade da venda de madeira in natura existente em Reserva Extrativista à empresa

do setor madeireiro.

Neste ponto, deve-se analisar, ainda que brevemente, o conceito e o marco regulatório

desta espécie de unidade de conservação.

As Reservas Extrativistas foram criadas “especialmente para tentar solucionar a questão

das atividades seringueiras na Amazônia”, tendo dois objetivos primordiais: “Proteção

dos meios de vida e da cultura das populações extrativistas tradicionais e o uso

sustentável dos recursos naturais” (RODRIGUES, José Eduardo Ramos. Sistema Nacional

de Unidades de Conservação. São Paulo: Ed. RT, 2005, p. 176-177).

Com efeito, tal instituto é diretamente ligado à histórica luta dos povos seringueiros,

sendo inclusive o exemplo de Chico Mendes lembrado como um marco desta causa.

Tais reservas foram idealizadas como forma de preservar os povos tradicionais da

floresta, assegurando-lhes tanto o uso da terra (já que o domínio permanece sendo

público) como a preservação de seus conhecimentos tradicionais, que implicavam um

modo de vida em perfeita sintonia com a Natureza. Em resumo, busca-se unir vida

digna à conservação da floresta, concretizando o binômio desenvolvimento sustentável.

O extrativismo, atividade econômica destas populações tradicionais, foi definido pela

Lei 9.985/2000 (art. 2.º, XII) como sendo o sistema de exploração baseado na coleta e

extração, de modo sustentável, de recursos naturais renováveis.

Para estas populações extrativistas tradicionais, o Dec. 98.897/1990, já previa a criação

das Reservas Extrativistas, definidas como “espaços territoriais destinados à exploração

autossustentável e conservação dos recursos naturais renováveis, por população

extrativista” (art. 1.º).

Com o advento do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Snuc), disciplinando

o instituto, a Lei 9.985/2000 deixou claro que:

“Art. 18. A Reserva Extrativista é uma área utilizada por populações extrativistas

tradicionais, cuja subsistência baseia-se no extrativismo e, complementarmente, na

agricultura de subsistência e na criação de animais de pequeno porte, e tem como

objetivos básicos proteger os meios de vida e a cultura dessas populações e assegurar o

uso sustentável dos recursos naturais da unidade” (destacou-se).

O § 1.º do referido artigo expressamente dispõe que “a Reserva Extrativista é de

domínio público, com uso concedido às populações extrativistas tradicionais”

(destacou-se).

Além disso, dispõe o § 7.º:

“A exploração comercial de recursos madeireiros só será admitida em bases

sustentáveis e em situações especiais e complementares às demais atividades

desenvolvidas na Reserva Extrativista (...)” (destacou-se).

Objetiva-se, em resumo, propiciar a solução de dois problemas. De um lado fornecer

aos povos tradicionais da floresta um meio de sobreviver segundo seus usos e costumes

frente à expansão do capitalismo selvagem que depreda os recursos naturais na região

amazônica. De outro, propiciar a preservação dos recursos naturais, pois estas

populações tradicionais viviam em harmonia com a floresta, dela retirando apenas o

necessário para sua sobrevivência digna.

Todavia, sob o frágil manto legal fornecido pela Sedam, os réus Primavera e Marcol

Ltda., visam colocar em prática empreendimento de exploração madeireira que viola

frontalmente as disposições do Sistema Nacional de Unidades de Conservação,

subvertendo o modelo legal das reservas extrativistas.

Isso porque o projeto de exploração, da forma como se encontra planejado e em início

de execução, afasta-se dos princípios orientadores da criação de reservas extrativistas,

destinadas a permitir a vida sustentável das populações tradicionais segundo seus

costumes e suas bases socioeconômicas. Muito pelo contrário, tudo indica que, longe de

serem protagonistas de uma exploração comunitária como prevê o Snuc, os seringueiros

serão “testas-de-ferro” para que o setor madeireiro apodere-se dos recursos florestais de

unidades de conservação.

Com efeito, conquanto a Lei 9.985/2000 seja expressa ao determinar que a exploração

comercial de recursos madeireiros só será admitida em bases sustentáveis e em

situações especiais e complementares às demais atividades desenvolvidas (§ 7.º do art.

18), a Marcol Ltda. e Associação Primavera celebraram, em 18.08.2003, “contrato de

compra e venda de madeira”, dispondo sobre a quantidade e a qualidade de espécies

florestais a serem vendidas pelos seringueiros à empresa do ramo madeireiro (f. do Inq.

Civil).

Em outras palavras, claramente celebraram instrumento de compra e venda cujo objeto

é patrimônio público!

Neste ponto, vale acrescentar que o famigerado contrato foi celebrado antes mesmo de

elaborado o plano de manejo da unidade de conservação (que só seria finalizado em

meados de 2004), documento primeiro e fundamental para que se intente qualquer

exploração dos recursos naturais ali existentes.

Da mesma forma, o novo contrato (f. do Inq. Civil) foi celebrado antes de licenciado o

empreendimento e antes de expedida a autorização para exploração (f. do Inq. Civil)!

A segunda ilicitude do instrumento contratual consiste na fixação de exploração que os

próprios réus definem como “de escala empresarial” (parágrafo único da cláusula sexta,

f., do Inq. Civil) que claramente não ocorreria segundo os usos e costumes dos

seringueiros, já que a cláusula terceira determina que caberia ao Comprador da madeira

(Marcol) “efetuar, a suas custas, todos os procedimentos para extração e transporte das

mesmas”.

Além disso, outro indício de fraude pode ser constatado quando se percebe que, após as

rés Marcol Ltda. e Associação Primavera terem celebrado o negócio ilícito, esta teve

condições de custear o plano de manejo, estudo técnico cujo preço por sua realização é

elevado e que, segundo a Lei 9.985/2000 (art. 12, caput, do Dec. 4.340/2002), deveria

ser custeado por ente público, no caso pelo réu Estado de Rondônia, por meio de sua

Secretaria de Desenvolvimento Ambiental (Sedam).

A grande pergunta é: quem teria custeado tal plano de manejo, já que a Associação

“Primavera”, composta por humildes seringueiros, certamente não possui recursos para

tal?

A própria cláusula quinta do contrato dá a resposta, já que a ré Marcol obriga-se a

“antecipar” a quantia de R$ 277.000,00 “como parte do pagamento pela venda dos

28.000 metros cúbicos das madeiras”. Logo a seguir, pela cláusula sexta, a ré

Associação Primavera obriga-se a emitir notas promissórias em garantia do dinheiro

antecipado. Este endividamento inicia-se em agosto de 2003, ou seja, antes mesmo da

aprovação do empreendimento pela comunidade, o que implica dizer que a

manifestação de vontade da mesma certamente foi influenciada.

Mas a dúvida é espancada quando – inadvertidamente ou não – a cláusula nona deixa

escapar que:

“As Notas Promissórias são garantias de pagamento antecipado para custear os estudos

ambientais necessários e elaboração dos, Planos de Manejo da Reserva Extrativista

Estadual do Rio Pacaás Novos, Plano de Manejo Florestal Sustentável Comunitário em

Escala Empresarial e Plano Operacional Anual da mesma, cujo ônus recai sobre a

Associação” (sic, f. do Inq. Civil).

Em resumo, a ré Associação Primavera vende madeira da Resex para a ré Marcol Ltda.,

que paga antecipadamente R$ 277.000,00 em troca de notas promissórias (pois a

madeira não poderia ser extraída antes de confeccionado o plano de manejo). Estas

notas promissórias por sua vez, segundo o contrato, servirão para pagar o plano de

manejo. Os seringueiros já iniciam o negócio endividados, e pagarão com madeira.

A ironia maior de tudo isso: segundo o contrato original de f. e ss. (que, embora

revogado, bem revela o espírito do empreendimento), a exploração deve ser em “escala

empresarial”, mas o manejo será de caráter “comunitário”! Belos nomes para mascarar

o enriquecimento de entes privados (pessoas físicas e jurídicas) mediante exploração

fraudulenta de patrimônio florestal público.

Outro ponto indicativo de fraude (e possível crime) reside no fato de a área de reservas

extrativistas ser de domínio público (art. 18, § 1.º, Lei 9.985/2000), pertencendo seus

recursos ao ente respectivo (no caso, o Estado de Rondônia), podendo as comunidades

tradicionais apenas deles fazer uso em bases sustentáveis e segundo seus usos e

costumes.

Mesmo com o advento do novo contrato (f. do Inq. Civil), agora com a anuência

expressa da Sedam (o que só ocorreu após a instauração do Inquérito Civil que instrui

essa Ação Civil Pública), a realidade pouco foi alterada, pois, embora um fino verniz de

legalidade tenha sido colocado sob o empreendimento, sua essência continua

manifestamente fraudulenta.

Com efeito, os vícios originais não foram extirpados, já que a ré Associação Primavera

e a ré Cooperativa Vida Nova continuam sendo utilizadas como “testas de ferro” para

que madeireiro possa explorar as vastas florestas intocadas de unidade de conservação,

pagando o valor da madeira bruta à lideranças seringueiras. Conforme o próprio

empresário reconheceu (f. do Inq. Civil), já gastou mais de R$ 1.000.000,00 no projeto.

Nenhum madeireiro experiente em sã consciência investiria tal quantia sem promessa de

resultado recompensador e em respaldo de agentes públicos que providenciassem a

legalização do negócio.

É reproduzido, desse modo, o modelo de servidão que sempre vigorou entre os

seringueiros amazônicos. Se antes endividavam-se com o seringalista ou com o

comerciante do “regatão”, os quais pagavam com o recurso natural do látex da seringa,

agora já estão endividados com madeireiro em mais de um milhão de reais (valor gasto

desde o plano de manejo à construção da nefasta estrada que escoará a madeira) e

pagarão com a preciosa madeira. Nasce uma servidão de longo prazo que será paga com

recursos naturais da coletividade difusa.

Cabe destacar que mesmo que fosse existente o contrato de concessão real de uso

exigido por lei, ainda assim o empreendimento seria ilegal, pois a lei (Snuc) visou

assegurar às populações tradicionais o uso dos recursos naturais mediante extrativismo,

de modo complementar e comunitário, o que inocorre na espécie.

Em suma, ao arrepio da lei, o que se está pretendo implantar na Resex Pacaás Novos e

na zona de amortecimento da Resex Barreiro das Antas é, em poucas palavras, um

projeto de bases empresariais que outorga a particular à exploração de recursos

públicos.

Para isso o Snuc prevê a figura da Floresta Nacional que, nos termos do art. 17 da Lei

9.985/2000, é uma área com cobertura florestal de espécies predominantemente nativas

e tem como objetivo básico o uso múltiplo sustentável dos recursos florestais e a

pesquisa científica, com ênfase em métodos para exploração sustentável de florestas

nativas.

De fato, a ré Marcol Ltda., a ré Associação Primavera (e agora a recém criada ré

Cooperativa Vida Nova) e a Sedam construíram um meio de burlar a necessidade de

processo licitatório para a concessão do uso de Florestas Nacionais ou Estaduais,

propiciando que particular apodere-se de bem público (patrimônio florestal existente em

imóvel do Incra) sem se submeter à concorrência pública.

Em verdade, é fato notório que os madeireiros atuantes neste Estado sempre zombaram

da figura legal das Florestas, haja vista a facilidade de exploração predatória e sem

limites. Todavia, com a escassez de madeira, a pressão sobre os recursos naturais

aumentou sobremaneira, levando o Estado de Rondônia a chancelar a predação no

interior de unidades de conservação, usando ainda o argumento pífio de que isto

acarretará melhoras na condição social das populações tradicionais (lançadas à penúria

pela ausência de política socioambiental estadual).

Desse modo, deve-se registrar que, ainda que fosse cabível tal alienação do patrimônio

público consistente em recursos florestais diretamente a uma empresa (o que certamente

só se alega por amor à argumentação), esta deveria ser submetida à concorrência

pública, de modo que todos os interessados pudessem dela participar, preservando-se

assim o Princípio Republicano (art. 1.º da CF/1988).

Tudo isto foi desrespeitado pelos investigados, ressaltando-se que o réu Estado de

Rondônia, por meio da conduta comissiva da Sedam, incentivou e chancelou toda a

operação.

Na realidade, deve se alertar que o réu Estado de Rondônia, antes mesmo da instauração

do Inquérito Civil que instrui esta ação e expedição da recomendação de f. (do Inq.

Civil), não apenas tinha plena ciência das irregularidades como agiu de forma

contundente para pressionar os seringueiros das Reservas Extrativistas de Rondônia a

aceitar a parceria com madeireiros.

Disso fazem prova documentos que dão conta de que a Sedam suspendeu em

07.02.2007 (f. do Inq. Civil) o plano de manejo da Resex estadual do Rio Cautário (que

era executado de forma comunitária pela comunidade local) e promoveu reuniões com a

Associação Aguapé (que representa a população tradicional daquela Unidade de

Conservação) com a finalidade de “discussão de parceria com a associação do

madeireiro e o sindicato” (f. do Inq. Civil). Em reunião anterior, em 13.02.2007, já

havia sido feita explanação do “interesse do governador Ivo Cassol e do Secretário

Augustinho Pastore em melhorar a vida dos moradores da Reserva Extrativista do Rio

Cautário”, mediante a “parceria entre governo (Sedam), moradores e empresários”,

havendo “empenho do governo em disponibilizar de imediato 10 mil hectares para a

Aguapé em parceria com o sindicato dos madeireiros para se realizar planos de manejo

florestal” (f. do Inq. Civil).

No mesmo documento ainda chegou-se a prometer a cada família a cifra de R$

75.000,00 (o original dizia “R$ 40.000,00”) “neste primeiro projeto”.

Torna-se claro o modus operandi do réu Estado de Rondônia: suspende o manejo

comunitário (f. do Inq. Civil) e depois convoca reunião (f. do Inq. Civil) para propor

famigerada “parceria” com sindicato de madeireiros, chegando ao absurdo de prometer

quarenta ou setenta e cinco mil reais por família, verdadeira propina que os crédulos

seringueiros certamente jamais verão.

Assim, claramente fica evidenciada a existência de política governamental para obter

livre acesso dos madeireiros aos recursos florestais existentes nas Reservas Extrativistas

estaduais. Todavia, tal qual no caso da Resex Rio Pacaás Novos, em que o

empreendimento encontra-se na zona de amortecimento de unidades de conservação

federais, também a Resex estadual do Rio Cautário faz divisa com a Resex Federal de

mesmo nome, havendo a grande possibilidade de haver dano à zona de amortecimento

da segunda.

Conclui-se, assim, que o objeto do contrato (f. do Inq. Civil) e do licenciamento são

ilícitos e violam bens difusos sob tutela não apenas do réu Estado de Rondônia, como

principalmente da União, devendo ser ajuizada medida que vise não apenas o

reconhecimento de sua nulidade e do licenciamento, como também que obtenha

provimento cautelar suspendendo seus efeitos, o que se está fazendo nesse momento.

2. Fixação de responsabilidade

2.1 Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama)

O Ibama, mesmo ciente do empreendimento, conforme demonstram os documentos

acostados aos autos (f. do Inq. Civil), inclusive reconhecendo a ilegalidade do projeto,

absteve-se de adotar as providências administrativas que lhe competiam, notadamente o

embargo da atividade e autuação dos infratores. Tampouco ajuizou qualquer medida a

fim de obstar empreendimento que ele mesmo reconhecia como ilegal.

Além disso, conforme já demonstrado, sua anuência ao procedimento de licenciamento

ambiental é obrigatória, em razão do empreendimento localizar-se em zona de

amortecimento de unidades de conservação federais, que sequer foram consultadas.

2.2 Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra)

O Incra deve obrigatoriamente constar no polo passivo da demanda, haja vista ser o

titular da área em questão.

Além disso, é de se constatar a necessidade de provimento jurisdicional de caráter

mandamental em face desta autarquia e do réu Estado de Rondônia, pois o fato de o

domínio das terras não ter sido transferido do primeiro para o segundo é irregularidade

que não pode perdurar. É notório que a ausência de regularização fundiária é um dos

veículos da devastação da Amazônia e, no caso em tela, tal incúria gera prejuízos para

as populações tradicionais, as quais estão privadas de seus direitos, já que não possuem

contrato de concessão real de uso de suas terras.

2.3 Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBIO)

Trata-se do órgão gestor das unidades de conservação federais em cuja zona de entorno

localiza-se o empreendimento. Embora não tenha cometido irregularidades, é

interessado direto na lide. Além disso, frise-se que, diante da recente Lei 11.516/2007

(que criou tal órgão), paira dúvida se o licenciamento e fiscalização de atividades no

entorno de unidades de conservação federais é de atribuição do Ibama ou da nova

autarquia.

2.4 Fundação Nacional do Índio (Funai)

Consta também nos autos que parcela considerável da área da Resex estadual do Rio

Pacaás Novos tem sido pleiteada por índios da Terra Indígena Rio Negro Ocaia (f. do

Inq. Civil). A revisão dos limites da mencionada Terra Indígena encontra-se em

andamento e inclusive há informação de que tramita inquérito civil na Procuradoria da

República em Porto Velho a respeito do assunto.

É inolvidável que existe interesse do órgão indigenista na área. Desse modo, embora a

Funai não tenha cometido irregularidades, é patente que possui interesse no deslinde da

questão. Isso porque a implementação de atividade exploratória de recursos naturais na

localidade, ainda que submetida a plano de manejo regularmente aprovado (o que, já se

esclareceu acima, não se trata da hipótese dos autos), pode ou não surtir influências no

modo de viver das comunidades indígenas que habitam a circunvizinhança do

empreendimento.

2.5 Estado de Rondônia

Em primeiro lugar, é clara a responsabilidade do Estado de Rondônia, já que seus

agentes, por meio da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Ambiental (Sedam),

estiveram empenhados de forma decisiva em incentivar e licenciar empreendimento em

flagrante violação às normas ambientais. Como já é notório, este ente tem primado por

condutas manifestamente contrárias à preservação do meio ambiente, sob o argumento

(velado ou não) da necessidade de desenvolvimento econômico, falácia amplamente

divulgada à população, o que tem redundado na crença geral existente neste Estado de

que a proteção da Natureza é um empecilho ao progresso.

Seja pela carência de servidores com formação técnica adequada (fruto do mais absoluto

descaso de sucessivos governos), seja pela vontade deliberada de produzir falcatruas, os

projetos incentivados e licenciados pela Sedam tem se constituído em mandato legal

para a dilapidação do bem difuso ambiental, caso do plano de manejo madeireiro em

análise.

Verifica-se que, durante todo o trâmite do Inquérito Civil que instrui essa Ação Civil

Pública, servidores da Sedam empenharam-se em demonstrar a legalidade do

empreendimento, e o Presidente do Inquérito Civil chegou a receber até mesmo a visita

do então Secretário Augustinho Pastore e seu “assessor jurídico” (cargo legalmente

inexistente) Ruy Carlos Freire Filho.

Neste particular, vale destacar que Ruy Carlos Freire Filho foi condenado em primeiro

grau (f. do Inq. Civil) pela prática de ato de improbidade administrativa (Lei

8.429/1992) em razão de ter proferido, na condição de servidor da Sedam, parecer

jurídico nos autos do procedimento investigatório (f. do Inq. Civil), ao mesmo tempo

em que patrocinava os interesses privados da ré Associação Primavera e da ré Marcol

Ltda. em ação civil pública movida pelo Ministério Público Estadual visando à anulação

do primeiro contrato firmado entre aqueles. Referido servidor também foi recentemente

preso, em razão de decisão judicial emanada da Seção Judiciária de Rondônia, por

ocasião da deflagração da “Operação Savana”, que investigava o cometimento de

crimes funcionais que visavam legalizar a exploração ilegal de madeira neste Estado.

Tal condenação (ainda não definitiva, reconhece-se) por improbidade é prova viva de

que o empenho do réu Estado de Rondônia está eivado da suspeita de fraudes, sendo

pouco provável que o assessor jurídico pessoal do Secretário de Estado agisse sem o

consentimento de seus superiores.

Não se poderia deixar de mencionar que o principal interessado no empreendimento, o

empresário do setor madeireiro Ademar Marcol Alfredo Suckel, é personalidade atuante

no meio político-econômico deste Estado, conforme se verá adiante, o que reforça a

suspeita de que a atuação dos agentes do Estado de Rondônia não ocorreu com a

finalidade de buscar o interesse público, mas sim para prestigiar interesses privados em

detrimento do meio ambiente.

2.6 Marcol Indústria E Comércio Ltda.

Referida pessoa jurídica é parte do “contrato de parceria para exploração florestal

comunitária” (f. do Inq. Civil) e principal beneficiária econômica do projeto, já que terá

acesso à imensa área de mata virgem, bem de valor econômico incomensurável, haja

vista a escassez de madeira existente atualmente em Rondônia, consequência de poucas

décadas de exploração predatória.

O ex-sócio administrador Ademar Marcol Alfredo Suckel, embora tenha se retirado da

sociedade dando lugar a um de seus filhos, permanece como procurador com amplos

poderes e, desse modo, proprietário de fato da empresa. É um dos grandes empresários

do setor madeireiro deste Estado, já foi refeito de Vilhena/RO (o que lhe valeu a

condenação no TCE/RO), secretário-adjunto de Estado e candidato derrotado a suplente

de Moreira Mendes para o cargo de senador.

2.7 Associação dos Seringueiros das Reservas Extrativistas Barreiro das Antas e Rio

Pacaás Novos “Primavera” e Cooperativa “Vida Nova”

A ré Associação Primavera é parte do “contrato de parceria para exploração florestal

comunitária” (f. do Inq. Civil) que necessita ser anulado em razão dos já mencionados

vícios, e a Cooperativa “Vida Nova” é a detentora de direito do licenciamento

ambiental, motivo pelo qual devem ser incluídas no polo passivo de eventuais medidas

judiciais.

3. Competência da Justiça Federal

Ao longo de toda esta petição inicial foram tecidas considerações e fornecidos os

fundamentos jurídicos acerca da competência da Justiça Federal para o julgamento

dessa ação.

O fato isolado de se inserir no polo passivo órgãos e pessoas jurídicas relacionados à

União já justificaria a competência da Justiça Federal, ainda que fosse para ser proferida

uma decisão de reconhecimento da ilegitimidade passiva da parte.

Mas, conforme já foi acima bem salientado, inclusive com o fornecimento dos

dispositivos legais relacionados, o objeto do contrato que se impugna nessa

oportunidade é um quadrante que se encontra no interior da Reserva Extrativista

Estadual do Rio Pacaás Novos, quadrante este que se situa nas zonas de amortecimento

de duas Unidades de Conservação Federais, quais sejam, a Reserva Extrativista Barreiro

das Antas e o Parque Nacional Serra da Cutia.

Isso forçaria, conforme já foi esclarecido acima e, inclusive, reconhecido pelos réus

Ibama e ICMBIO, a prévia manifestação dessas instituições a respeito de qualquer

empreendimento, ainda que tal empreendimento seja planejado para ocorrer na zona de

amortecimento.

Ademais, o reflexo que a execução do negócio jurídico trará sob o modo de viver e as

pretensões das comunidades indígenas da região justifica a prévia manifestação da ré

Funai a respeito do empreendimento ora impugnado. Vale ressaltar que a Reserva

Extrativista do Rio Pacaás Novos é vizinha da Terra Indígena Rio Negro Ocaia e da

Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau (conforme se observa no mapa constante na f. do Inq.

Civil).

4. Urgência do provimento jurisdicional

Tendo-se em vista a comunicação de que foi expedida autorização definitiva pela

Sedam para o empreendimento, bem como informações notórias (art. 334, I, do CPC)

no Município de Guajará-Mirim, RO, de que o maquinário está sendo levado rio Pacaás

Novos acima em direção às áreas de extração de madeira, encontra-se caracterizado o

perigo de demora do provimento jurisdicional (periculum in mora), já que o dano

ambiental visualizado é de difícil reparação, haja vista que se trata de floresta de

unidade de conservação em condições ainda primárias.

Além disso, a ameaça ao direito (fumus boni iuris) é clara, haja vista que o bem

ambiental, previsto no art. 225, caput, da CF/1988 como bem de todos e essencial à

sadia qualidade de vida, e concretizado dentre outras formas pelos espaços

territorialmente protegidos (art. 225, § 1.º, III, da CF/1988), ou seja, pelas unidades de

conservação, encontra-se seriamente ameaçado, havendo prova suficiente da violação

das normas relativas ao licenciamento ambiental e ao regime de uso das Reservas

Extrativistas.

Desse modo, a obtenção de liminar visando suspender o licenciamento é vital, e, para

assegurar a efetividade de tal provimento, deve ser cumprida a ordem pela Polícia

Federal e Batalhão Ambiental da Polícia Militar.

5. Responsabilidade penal e por ato de improbidade

Registra-se ainda, a fim de reforçar o convencimento judicial a respeito da necessidade

de concessão das medidas que adiante se pleiteará, que a ilegalidade retratada no

Inquérito Civil anexo extrapola a esfera civil.

Com efeito, a Lei 9.605/1998 dispõe no art. 68 ser crime a conduta do agente público

que deixa de cumprir obrigação de relevante interesse ambiental, quando tinha o dever

legal de o fazer. Na espécie, os agentes públicos (que não podem alegar ignorância da

lei) agiram deliberadamente na ilegalidade, mesmo alertados por recomendação da 2.ª

Promotoria de Justiça de Guajará-Mirim, RO (f. do Inq. Civil), sendo evidente a

existência de interesses escusos, consistentes no favorecimento do grupo econômico

representado pela indústria madeireira.

Além disso, se iniciada a exploração madeireira, haverá a incidência do art. 40 da Lei

9.605/1998.

Outrossim, a conduta dos agentes estaduais da Sedam não apenas é criminosa como

ímproba, haja vista a cabal violação dos princípios da legalidade, da lealdade e da

moralidade (art. 11 da Lei 8.429/1992), sem falar no possível enriquecimento ilícito de

terceiros, à custa do dano ambiental ao erário (art. 10 da Lei 8.429/1992), até porque

tais florestas configuram bens públicos.

Neste ponto, oportuno lembrar que a Lei n. 9.985/2000 dispõe:

“Art. 38. A ação ou omissão das pessoas físicas ou jurídicas que importem

inobservância aos preceitos desta Lei e a seus regulamentos ou resultem em dano à

flora, à fauna e aos demais atributos naturais das unidades de conservação, bem como às

suas instalações e às zonas de amortecimento e corredores ecológicos, sujeitam os

infratores às sanções previstas em lei.”

6. Pedidos

6.1 Antecipação de tutela

A urgência no provimento jurisdicional já foi mencionada acima.

São requisitos para a concessão de tutela antecipada, nos termos do art. 273 do CPC, a

existência de prova inequívoca, o convencimento da Autoridade Judicial a respeito da

verossimilhança das alegações e a existência de fundado receio de dano irreparável ou

de difícil reparação (art. 273, I, do CPC).

O extenso e bem presidido Inquérito Civil que acompanha esta petição inicial concentra

vários documentos que comprovam a existência do contrato e do plano de manejo para a

implementação de atividade empresarial de extração de madeira em grande quadrante

da Reserva Extrativista do Rio Pacaás Novos (quadrante este situado na zona de

amortecimento de Unidades de Conservação Federais), havendo, inclusive, as cópias

dos contratos assinados (f. do Inq. Civil).

Tais contratos foram assinados antes mesmo do licenciamento do empreendimento e da

expedição de autorização para a exploração (f. do Inq. Civil).

As normas jurídicas violadas com a adoção das condutas por parte dos réus são

transparentes em estabelecer a necessidade de prévia existência de contrato de

concessão real de uso das terras para a celebração de uma avença nos termos da que é

ora impugnada.

Os documentos constantes no Inquérito Civil anexo configuram a prova inequívoca,

pressuposto para a concessão de provimento antecipatório.

As diversas normas jurídicas acima mencionadas e transcritas, especialmente os arts.

5.º, XIV e XXXIII, 225, caput e § 1.º, III e 231, da CF/1988; art. 9.º, VII e XI, da Lei

6.938/1981; arts. 2.º, XII, XVIII, XIX, 18, §§ 1.º e 7.º, 23 e 26, da Lei 9.985/2000; arts.

1.º e 4.º, do Dec. 98.897/1990; art. 27 do Dec. 99.274/1990; arts. 1.º, X e XIV e 2.º, do

Anexo, do Dec. 6.040/2007; art. 4.º do Dec. Estadual 6.953/1995 (f. do Inq. Civil); art.

2.º, da Res. Conama 13/1990, entre outros, são suficientes para a constatação da

verossimilhança das alegações e para reforçar ainda mais a existência da prova

inequívoca. Perfaz-se, assim, o requisito do fumus boni juris, inerente a todo

provimento liminar, cautelar ou antecipatório.

O fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação, que materializa o requisito

do periculum in mora, advém da celebração do contrato cuja cópia do instrumento

consta nas f. do Inq. Civil, e do posterior licenciamento pela Sedam (f. do Inq. Civil).

Com isso, não resta mais nada que impeça o início da atividade de extração das

madeiras.

Portanto, verifica-se que nada mais resta para o início das atividades de degradação do

meio ambiente. Notícias correntes no Município de Guajará-Mirim, RO, dão conta de

que o maquinário necessário à extração e ao transporte da madeira já está sendo

deslocado, pela via fluvial e pela via terrestre, para a localidade em que se instalará o

empreendimento.

Por estes motivos, requer-se que seja concedida medida liminar, a título de antecipação

de tutela (ou a título de medida cautelar, se assim se entender, com fundamento do art.

273, § 7.º, do CPC), para se determinar:

a) Aos réus Marcol Indústria e Comércio Ltda., Associação dos Seringueiros das

Reservas Extrativistas do Rio Pacaás Novos e Barreiro das Antas e Cooperativa Vida

Nova, inaudita altera parte (sem oitiva da parte contrária, já que não se tratam de

pessoas jurídicas de Direito Público), que se abstenham de praticar qualquer ato

relacionado à execução dos contratos cujos instrumentos constam nas f. do Inq. Civil,

bem como que se abstenham de praticar qualquer ato de degradação do meio ambiente,

tais como construção de estradas, extração de madeiras, movimentação de maquinário,

instalação de serrarias etc., na área da Reserva Extrativista do Rio Pacaás Novos,

especialmente na área referente ao Plano de Manejo que foi aprovado pela Sedam

(conforme o mapa constante na f. do Inq. Civil), até o final do julgamento desse

processo, sob pena de imposição de multa em valor a ser fixado por esse E. Juízo, e de

prisão em razão do cometimento de crime de desobediência e de infrações ambientais;

b) Ao réu Estado de Rondônia, especialmente por meio da Secretaria de Estado de

Desenvolvimento Ambiental (Sedam), que suspenda a Autorização Para a Exploração

de Plano de Manejo Florestal Sustentável constante nas f. do Inq. Civil, até a decisão

final desse processo, bem como que suspenda quaisquer outras autorizações similares

para a Reserva Extrativista do Rio Pacaás Novos, enquanto a titularidade das terras não

for transferida da União para o Estado de Rondônia, por intermédio Do Instituto

Nacional De Colonização E Reforma Agrária (Incra), sob pena de imposição de multa

em valor a ser fixado por esse E. Juízo;

c) Ao réu Estado de Rondônia, especialmente por meio da Sedam, que inicie

procedimento administrativo para o fim de se declarar a nulidade da Autorização Para a

Exploração de Plano de Manejo Florestal Sustentável, concedida para a Reserva

Extrativista Estadual do Rio Pacaás Novos, sob pena de imposição de multa em valor a

ser fixado por esse E. Juízo;

d) Ao réu Estado de Rondônia, especialmente por meio da Sedam e por meio do

Batalhão de Polícia Ambiental, e ao réu Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos

Recursos Naturais Renováveis (Ibama), que implementem intensa fiscalização na

Reserva Extrativista do Rio Pacaás Novos, haja vista a irregular aprovação de plano de

manejo para a citada área, o que, com certeza, incentivará a prática de crimes

ambientais na localidade;

e) Ao réu Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis

(Ibama), que proceda à apreensão de todo material, maquinário e instrumentos que

sirvam para a prática da degradação do meio ambiente e que estejam localizados na

Reserva Extrativista do Rio Pacaás Novos, inclusive na localidade do quadrante

referente ao espaço em que foi aprovado o Plano de Manejo Florestal pela Sedam, bem

como que proceda ao embargo de atividades poluidoras e de extração de madeira que

esteja sendo praticado pelos réus Marcol Indústria e Comércio Ltda., Associação dos

Seringueiros das Reservas Extrativistas do Rio Pacaás Novos e Barreiro das Antas e

Cooperativa Vida Nova, inclusive com o fechamento e lacração de serrarias instaladas

na referida Unidade de Conservação;

f) À ré Fundação Nacional do Índio (Funai), para que se manifeste quanto ao pleito das

etnias indígenas Uru-Eu-Wau-Wau e Rio Negro Ocaia a respeito do imóvel onde foi

criada a Reserva Extrativista do Rio Pacaás Novos;

6.2 Tutela definitiva

Requer-se, a título de tutela definitiva:

a) A confirmação dos provimentos liminarmente concedidos ou, caso algum ou alguns

dos pedidos liminares não tenham sido atendidos, o deferimento deles, após a realização

da cognição plena e exauriente;

b) A declaração de nulidade dos contratos celebrados entre os réus Associação

Primavera, Cooperativa Vida Nova e Marcol Indústria e Comércio Ltda., contratos esses

cujos instrumentos constam nas f. do Inq. Civil, com a consequente declaração de

nulidade da dívida constituída pelas comunidades extrativistas da Reserva Extrativista

do Rio Pacaás Novos e da Reserva Extrativista Barreiro das Antas, inclusive pelas

respectivas entidades representativas, frente à ré Marcol Indústria e Comércio Ltda. Tal

pedido é fundamentado também, repete-se, no fato de que o objeto dos referidos

contratos é ilícito (patrimônio público) – art. 104, II, do CC/2002 – e no fato de que a

manifestação de vontade que deu ensejo à celebração dos contratos foi viciada, tendo se

configurado no caso o vício do consentimento lesão (art. 157 do CC/2002);

c) A determinação para que os réus Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos

Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e Instituto Chico Mendes de Conservação da

Biodiversidade (ICMBIO) manifestem-se previamente a respeito de empreendimentos

com potencial de degradação do meio ambiente que estejam previstos para serem

implementados na zona de amortecimento da Reserva Extrativista Federal Barreiro das

Antas e na zona de amortecimento do Parque Nacional Serra da Cutia;

d) A determinação ao réu Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra)

para que dê início ao processo administrativo que julgará o mérito da transferência da

propriedade imóvel onde foi criada a Reserva Extrativista do Rio Pacaás Novos da

União para o réu Estado de Rondônia;

Requer-se também a citação dos réus, nas pessoas de seus representantes legais, para,

querendo, contestarem essa Ação Civil Pública, sob pena de revelia e de presunção de

veracidade dos fatos aqui alegados.

Requer-se ainda que seja proferido um julgamento de procedência integral dos pedidos

aqui formulados.

Protesta-se provar as alegações por intermédio de todos os meios de provas em Direito

admitidos, inclusive a prova testemunhal, pericial e documental.

Dá-se à causa o valor de R$ 1.000.000,00, para o fim do art. 258 do CPC, diante do

conteúdo inestimável do objeto da lide.

Porto Velho, 16 de julho de 2008.