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Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Faculdade de Formação de Professores
Mestrado Profissional em Letras
Amanda dos Santos Angra Ouverney
Estratégia metacognitiva no processo de leitura: contos do gênero fantástico
São Gonçalo
2016
Amanda dos Santos Angra Ouverney
Estratégia metacognitiva no processo de leitura: contos do gênero fantástico
Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação ProfLetras, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Área de concentração: Linguagens e Letramento.
Orientadora: Profª. Dra. Iza Quelhas
São Gonçalo
2016
CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/CEHD
Autorizo apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta
dissertação, desde que citada a fonte.
______________________________________ ___________________
Assinatura Data
O95 Ouverney, Amanda dos Santos Angra. Estratégia metacognitiva no processo de leitura: contos do gênero fantástico / Amanda dos Santos Angra Ouverney. – 2016.
288f.
Orientadora: Profª. Dra. Iza Quelhas. Dissertação (Mestrado Profissional em Letras) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Formação de Professores.
1. Leitura – Teses. 2. Língua portuguesa – Teses. I. Quelhas, Iza. II.
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Faculdade de Formação de Professores. III. Título.
CDU 372.41
Amanda dos Santos Angra Ouverney
Estratégia metacognitiva no processo de leitura: contos do gênero fantástico
Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação ProfLetras, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Área de concentração: Linguagens e Letramento.
Aprovada em 02 de dezembro de 2016. Banca Examinadora:
_________________________________________________
Prof.ª Dra. Iza Quelhas (Orientadora)
Faculdade de Formação de Professores - UERJ
_________________________________________________
Prof.ª Dra. Denise Brasil Alvarenga
Universidade Federal Fluminense
________________________________________________
Prof.ª Dra. Mairce da Silva Araújo
Faculdade de Formação de Professores - UERJ
São Gonçalo
2016
DEDICATÓRIA
Dedico aos meus pais, Siunia e Paulo que continuamente me ensinaram a avançar à
procura de meus sonhos com persistência e firmeza.
Ao meu amado Felipe que nestes últimos meses vem sendo uma forte fonte de
influência, me encorajando e incentivando a continuar no momento em que a fadiga e
desânimo chegam.
E, especialmente, à minha filha Lívia, a pessoa com quem mais aprendi na vida e que
constantemente compreendeu minha ausência, mesmo reclamando a atenção que lhe faltava.
A todos vocês que contribuíram incrivelmente para a obtenção deste sonho, dedico
este trabalho.
AGRADECIMENTOS
Embora o estudo já realizado, também há bastante a ser construído, várias angústias e
somente uma convicção: tenho bastante a retribuir a muitas pessoas.
A Deus, pela presença, pela oportunidade de avançar meus estudos, melhorando, dessa
maneira, como indivíduo e como profissional.
À minha mãe, pela modelo de vida, pelo estímulo constante aos estudos, através do
incentivo e pelo ensinamento de firmeza e fé.
À minha família, pela tolerância nos momentos de distanciamento, nos momentos em
que tive que dedicar-me unicamente aos estudos.
À minha orientadora, Professora Dra. Iza Quelhas, pela generosidade em partilhar
comigo seu conhecimento.
Aos meus professores, que, comprometidos com a educação, dedicaram muito do seu
tempo em favor do aprimoramento profissional de seus alunos.
Aos meus colegas que, nos momentos de agonia e dúvida, ajudaram-me
constantemente com uma palavra de conforto e estímulo.
Aos meus alunos, uma vez que sem o auxílio deles, nada teria sido realizado.
A todos, MUITO OBRIGADA!
Ensinar inexiste sem aprender e vice-versa e foi
aprendendo socialmente que, historicamente,
mulheres e homens descobriram que era possível
ensinar. Foi assim, socialmente aprendendo, que
ao longo dos tempos, mulheres e homens
perceberam que era possível – depois, preciso –
trabalhar maneiras, caminhos métodos de ensinar.
Aprender precedeu a ensinar, ou em outras
palavras, ensinar diluiu-se na experiência
fundante de aprender (FREIRE, 2002, p. 12-13).
RESUMO
ANGRA, Amanda dos Santos. Estratégia metacognitiva no processo de leitura: contos do gênero fantástico. 2016. 132f . (Dissertação de Mestrado Profissional em Letras - Profletras) – Faculdade de Formação de Professores. Universidade do estado do Rio de Janeiro, São Gonçalo, 2016.
Já é largamente publicado por pesquisas o baixo desempenho em compreensão leitora de alunos do Ensino Fundamental e do Ensino Médio, situação igualmente percebida pelos professores que trabalham diretamente com este público. Mesmo com essa constatação, o ensino da leitura permanece até determinado ponto estagnado, uma vez que não é sempre que são percebidos indícios de alteração na metodologia usada para explicar este processamento de vital importância para a participação do indivíduo na sociedade em que grande parte da comunicação se dá pela escrita. Se os dados apontam para a necessidade de mudar a maneira como o ensino de leitura tem sido realizado há, concomitante a isto, o receio em saber como realizar essa mudança. Qualquer alteração admite, porém, um apoio teórico que oriente seus agentes sobre a melhor maneira de atuar no sentido de atingir as metas almejadas. Desta maneira, o ensino necessita contemplar a forma como se dá o processamento cognitivo da informação, a fim de que a prática educativa possa intervir sobre os processos que não estão se realizando de maneira adequada. Partindo dessa perspectiva, se torna relevante e necessário o ensino de estratégias de leitura. O discente necessita aprender a manejar o texto, a constatar o momento em que não está conseguindo construir o sentido das informações, a perceber possíveis motivos da dificuldade e planejar soluções para o mesmo. A meu ver, ensinar a compreender envolve explicar estratégias de leitura, isto é, aparelhar o aluno de ferramentas de que possam dispor para relacionar as informações textuais ao seu conhecimento de mundo e, dessa maneira, desenvolver o sentido do material que lê. Proponho-me precisamente neste trabalho a apresentar o resultado de uma pesquisa que se apóia em uma metodologia de ensino da leitura, baseada na estratégia metacognitiva de preditibilidade na leitura de contos do gênero fantástico, que se constitui numa maneira de abordar o texto capaz de levar o aluno a refletir sobre seu processo de leitura, tornado-o mais consciente do sentido que está sendo construído.
Palavras-chave: Leitura. Ensino. Metacognição. Preditibilidade.
ABSTRACT
ANGRA, Amanda dos Santos. Metacognitive strategy in the reading process: tales of the fantastic genre. 2016. 132f. (Dissertação de Mestrado Profissional em Letras - Profletras) – Faculdade de Formação de Professores. Universidade do estado do Rio de Janeiro, São Gonçalo, 2016.
The poor performance in reading comprehension of elementary and high school students is already widely published by researches, a situation equally perceived by teachers who work directly with this public. Even with this observation, the teaching of reading remains to a certain point stagnant, since it is not always that signs of change are detected in the methodology used to explain this processing of vital importance for the participation of the individual in the society in which much of the communication Is given by writing. If the data point to the need to change the way reading teaching has been conducted, there is concomitant fear of knowing how to make that change. Any change, however, admits theoretical support that guides its agents on how best to act in order to achieve the desired goals. In this way, teaching needs to contemplate how the cognitive processing of information is given, so that the educational practice can intervene on processes that are not being carried out in an appropriate way. From this perspective, the teaching of reading strategies becomes relevant and necessary. The student needs to learn how to handle the text, to verify the moment when he is not managing to construct the meaning of the information, to perceive possible reasons for the difficulty and to plan solutions for it. In my view, teaching to understand involves explaining reading strategies, that is, equipping the student with tools that they can use to relate textual information to their world knowledge, and thereby develop the meaning of the material they read. I propose precisely in this work to present the result of a research that is based on a teaching methodology of reading, based on the metacognitive strategy of predictability in the reading of tales of the fantastic genre, which constitutes a way of approaching the text capable of leading The student to reflect on his reading process, made him more aware of the sense that is being constructed.
Keywords: Reading. Teaching. Metacognition. Predictability.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 - Currículo mínimo da Secretaria Estadual de Educação ................................52
Gráfico 1 - Índice de Desenvolvimento da Educação Básica ........................................46
Gráfico 2 - Faixa etária dos alunos ................................................................................47
Quadro 1 - Etapa 1: Motivar .......................................................................................... 69
Quadro 2 - Etapa 2: Pensar sobre o pensar ....................................................................76
Quadro 3 - Produzir e consolidar ..................................... ............................................ 99
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................. 12
1 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA ................................................................... 18
1.1 Concepções de leitura ....................................................................................... 18
1.2 Metacognição e leitura ...................................................................................... 26
1.3 Metacognição no contexto de aprendizagem ................................................. 30
1.4 A preditibilidade como estratégia metacognitiva ........................................... 34
1.5 A leitura de contos do gênero fantástico para exercício da preditibilidade. 38
2 METODOLOGIA ............................................................................................. 44
2.1 O contexto de aplicação da pesquisa ............................................................... 44
2.2 O cenário escolar ............................................................................................... 45
2.3 Os sujeitos da pesquisa ..................................................................................... 47
2.4 Instrumentos da pesquisa ................................................................................. 50
2.5 Construção da proposta de intervenção ......................................................... 51
3 PERCURSO DA PESQUISA E RESULTADOS ........................................... 58
3.1 Diagnóstico ......................................................................................................... 58
3.2 Trajetória ........................................................................................................... 68
4 ANÁLISE DOS RESULTADOS ...................................................................... 110
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................... 113
REFERÊNCIAS .............................................................................................. 115
APÊNDICE A – Memorial da Pesquisadora apresentado aos
alunos.................................................................................................................
118
APÊNDICE B – Autorização para Desenvolvimento de Projeto de
Pesquisa ..............................................................................................................
119
APÊNDICE C – Formulário de autorização para os alunos participarem
da pesquisa ........................................................................................................
120
ANEXO A – Ler devia ser proibido ................................................................ 121
ANEXO B – Solfieri .......................................................................................... 123
ANEXO C – A Ficha Nº 20.003 ........................................................................ 127
ANEXO D – As formigas .................................................................................. 129
APRESENTAÇÃO
O silêncio na sala de aula era característico: a hora da leitura. Assim ocorria o
momento mais agradável das aulas de Língua Portuguesa quando eu ainda era aluna. A
atividade de leitura sempre foi tão agradável pra mim, que impulsionou minha escolha
profissional ao ingressar, ainda aos dezessete anos, no curso de Letras da pequena faculdade
da cidade do interior, cuja motivação era a oportunidade de propagar esses momentos junto às
possibilidades de aprendizado que eles me proporcionaram.
Contudo, o início da carreira no magistério reservou algumas surpresas. Meus alunos
não percebiam as aulas e, especialmente o ensino de leitura, da mesma forma. Logo notei que
havia falta de concentração durante essa atividade e a presença constante do comentário “não
entendi” por grande parte da turma. O encantamento sobre o texto surgia apenas durante
minha leitura em voz alta ou durante a leitura feita de forma colaborativa entre mim e eles.
Percebi, assim, que os estudantes não possuíam a habilidade de ler e compreender o texto com
autonomia.
Esse fato se repetia independente do ano de escolaridade, já que lecionava tanto nos
anos finais do Ensino Fundamental, quanto no Ensino Médio e a constatação era sempre a
mesma. Mas esse contínuo não produzia respostas nem mudanças sobre a situação e, tanto as
orientações curriculares, quanto os documentos oficiais, asseguravam o direito pela
aprendizagem da leitura, mas não apresentavam proposta de intervenção que pode ser
aplicada quando o aluno não compreende o que lê - o que dificultava minha percepção clara
sobre o problema e, ainda mais, minhas ações para tentar saná-lo.
Assim, durante dez anos de magistério, observei a recorrência da inabilidade leitora
nos alunos principalmente do Ensino Fundamental em escolas públicas e isso me instigou a
estudar abordagens de pesquisa e intervenção sobre o ensino de leitura.
12
INTRODUÇÃO
O Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA)1 confirmou propensão
presente em outras avaliações nacionais e internacionais: o Brasil obteve na área de leitura,
em 2012, 410 pontos, ficando na 58ª posição do ranking entre os 65 países avaliados. A
pesquisa mostra que 49,2% dos estudantes brasileiros conseguem no máximo entender a ideia
superficial de um texto, compreendem apenas textos com tema familiar e são capazes somente
de relacionarem de forma simplificada as informações lidas ao conhecimento cotidiano, os
estudantes brasileiros não seriam capazes de atribuir sentido ao que leem, ainda que "saibam
ler". Apesar desses dados sobre a competência leitora dos alunos brasileiros advirem de um
sistema de avaliação de larga escala aplicado ao contexto brasileiro múltiplo, plural e diverso,
ainda assim seus resultados refletem a realidade presente no micro-contexto da sala de aula:
alunos dos diferentes anos de escolaridade do ensino fundamental mostram ainda grande
dificuldade nas tarefas de leitura, pouco domínio dos mecanismos que envolvem a
compreensão e grande dependência do professor para compreenderem os textos.
Partindo desse contexto, constatei a necessidade de nós, professores, em contribuirmos
para o desenvolvimento da competência leitora é constante e crescente, não só pelo interesse
em apresentar registros e estatísticas favoráveis, mas principalmente por nosso compromisso
em tornar os alunos cidadãos capazes de exercer sua cidadania. Nesse sentido, os Parâmetros
Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental ressaltam:
Essa responsabilidade é tanto maior quanto menor for o grau de letramento das comunidades em que vivem os alunos. Considerando os diferentes níveis de conhecimento prévio, cabe à escola promover sua ampliação de forma que, progressivamente, durante os oito anos do ensino fundamental, cada aluno se torne capaz de interpretar diferentes textos que circulam socialmente, de assumir a palavra e, como cidadão, de produzir textos eficazes nas mais variadas situações. (BRASIL, 1998, p.19)
Tal responsabilidade contribui para um presente desconforto a cada vez que ouço
comentários de colegas ou profissionais afins dizendo que “o aluno x não sabe ler” e é ainda
pior com a generalização: “os alunos não sabem ler” ou “não entendem nada do que foi lido”.
Além disso, não é raro ouvir dos próprios estudantes a colocação “não entendi nada” após
1 O Programa Internacional de Avaliação de Estudantes, o PISA, é uma avaliação internacional coordenada e elaborada internacionalmente pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). O Brasil participa como convidado desde a primeira edição, em 2000. Essa organização global tem por objetivo ajudar os países membros e convidados para desenvolverem melhores políticas na área da educação.
13
realizarem uma leitura, sem contar os baixos resultados obtidos nas avaliações de Língua
Portuguesa.
Sabendo que esses alunos foram alfabetizados, surgem os questionamentos: por que
não conseguem entender o texto lido? Como contribuir para o desenvolvimento de
habilidades de leitura nos estudantes? Que tipo de estratégia pode ser ensinado aos alunos
para que eles desenvolvam a compreensão leitora?
Esses questionamentos aliados à vivência constante desse panorama da educação
tornaram o problema da inabilidade leitora o foco da minha preocupação como docente, o que
me instigou a pesquisar formas de reverter esse quadro e a possível eficácia dessas propostas.
Assim, há mais de dez anos, enquanto ministro minhas aulas de Língua Portuguesa,
percebo uma postura aparentemente apática por parte dos alunos que não compreendem o que
leem, diante dos textos. Observei ainda, que os leitores proficientes das minhas turmas
apresentavam postura muito mais ativa quando liam. Tal observação, advinda da prática em
sala de aula e de troca de informações, entre colegas do ofício, reitera o que afirma Kleiman:
O aluno poderá tornar-se ciente da necessidade de fazer da leitura uma atividade caracterizada pelo engajamento e uso de conhecimento, em vez de uma mera recepção passiva. Recipientes não compreendem. (KLEIMAN, 2000, p.26)
Sobre o tema, Solé (1998) defende que as intervenções pedagógicas do professor não
são muito frequentes durante sua leitura com a turma e destaca:
O problema do ensino da leitura na escola não se situa no nível do método, mas na própria conceitualização do que é leitura, da forma em que é avaliada pelas equipes de professores, do papel que ocupa no Projeto Curricular da Escola, dos meios que se arbitram para favorecê-la e, naturalmente, das propostas metodológicas que se adotam para ensiná-la. (SOLÉ, 1998, p. 33)
Como afirma Rojo (2009), se os alunos forem questionados a respeito do que é ler na
escola, as respostas possíveis serão sobre a forma de ler – sozinho, em voz alta, em jogral –
para posterior avaliação da compreensão por meio de perguntas cuja abordagem seria a de
localizar ou repetir informação. Assim, básicas capacidades de leitura têm sido ensinadas e
avaliadas na escola, enquanto outras são praticamente ignoradas e é isso o que expõem os
resultados de diversos exames e avaliações externas como ENEM, SAEB e PISA – o país
somou 410 pontos em leitura, dois a menos do que a sua pontuação na última avaliação e 86
pontos abaixo da média dos países da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento
Econômico). Ou seja, alunos que possuem compreensão leitora insuficiente para a leitura
cidadã na atual sociedade urbana, globalizada e altamente letrada.
14
Rojo (2009) também defende que o acentuado fracasso escolar dos meios populares no
país dava-se nas séries iniciais, nos últimos séculos. Contudo, a tendência atual é que esse
fracasso ocorra também nas séries finais, devido ao contato escolar que a criança passa a ter
com a linguagem por meio do ensino-aprendizagem da leitura e da escrita.
Verifica-se ainda que, quanto à democratização das vagas e o aumento da
escolarização, o fracasso escolar fica ainda mais evidente e indissociável do aprendizado da
leitura. Estudiosos da sociologia da educação, através de dados estatísticos e culturais,
afirmam que a escola não é igualitária, visto que muitos tenham acesso a ela, não têm
idênticas condições de aprendizagem, já que o sucesso dos alunos e a maneira de tratar suas
dificuldades diferem, entre tantas outras questões que poderiam ser enumeradas, de acordo
com o meio social a que pertencem. Assim, ainda que a escolaridade seja obrigatória e
prolongada ela não é suficiente para desfazer o fracasso em leitura, como sublinham
especialistas no assunto, a solução é escolarizar mais e mais alunos e por mais tempo, o que
se revela, mais adiante, insuficiente para tornar o sistema educacional igualitário.
Sobre isso, Boruchovitch (2001) afirma que para formar um leitor competente é
necessário nele desenvolver habilidades variadas, desde a decodificação de palavras, frases e
parágrafos, até a escolha das melhores estratégias de leitura, retenção, aprendizagem e
avaliação do conteúdo lido, realização de inferências e utilização adequada da informação
aprendida, que possibilitará a compreensão leitora.
Além disso, este trabalho também evidencia outra habilidade: a importância da
ativação do conhecimento prévio - um conjunto de ideias, representações e dados que servem
de sustentação para um novo saber – concepção que se desenvolveu a partir das investigações
do cientista suíço Jean Piaget a partir da perspectiva do desenvolvimento intelectual. Para
entender como a criança passa de um conhecimento mais simples a outro mais complexo,
Piaget conduziu um trabalho por décadas no Instituto Jean-Jacques Rousseau e no Centro
Internacional de Epistemologia Genética, ambos em Genebra, Suíça. A partir da observação
exaustiva de como os pequenos comparavam, classificavam, ordenavam e relacionavam
diferentes objetos, ele compreendeu que a inteligência se desenvolve por um processo de
sucessivas fases. Assim, dependendo da qualidade das interações de cada sujeito com o meio,
as estruturas mentais - condições prévias para o aprendizado, conforme descreve o suíço em
sua obra - vão se tornando mais complexas até o fim da vida. Em cada fase do
desenvolvimento, elas determinam os limites do que os indivíduos podem compreender.
15
No ano de 1960, esse tema também foi objeto de atenção do pensador da Psicologia da
Educação, o americano David Ausubel e foi considerado, possivelmente, um dos primeiros a
usar a expressão conhecimento prévio.
De acordo com Ausubel (1960), o que o aluno já sabe - a ideia-âncora, na sua
denominação - é a ponte para a construção de um novo conhecimento através da
reconfiguração das estruturas mentais existentes ou da elaboração de estruturas novas.
Quando a criança reflete sobre um conteúdo novo, ele ganha significado e torna mais
complexo o conhecimento prévio. Para o pesquisador, o conjunto de saberes de uma pessoa é
essencial por ser o fator isolado mais importante influenciador da aprendizagem.
A partir da ênfase em aspectos distintos do conhecimento prévio, as visões de Piaget e
Ausubel se complementam na visão de que para aprender qualquer assunto são necessárias
estruturas mentais que deem conta de novas complexidades e também conteúdos anteriores
que ajudam a assimilar saberes.
Assim, esta pesquisa entende a leitura como “um processo de interação entre o leitor e
o texto no qual o conhecimento prévio do leitor exerce forte influência.” (SOLÉ, 1998, p.32).
Desse modo, à medida que a criança cresce e amplia suas experiências, adquire
conhecimentos que a ajudarão nessa atividade. Nesse sentido, “a leitura não é compreendida
como um processo de mera decodificação do código impresso, pois envolveria o
conhecimento prévio, como as experiências cotidianas e com leituras anteriores” (BRAGA &
SILVESTRE, 2002, p.47), e sua integração com o conhecimento adquirido durante a leitura.
Essa integração entre o conhecimento anterior com as informações novas contidas no texto
possibilitaria a transposição do estímulo textual para um nível mais elaborado de inferências.
Como vários investigadores sugerem, a leitura é uma competência básica na sociedade
atual para possibilitar as práticas de letramento que, segundo Barton,
designam tanto os comportamentos exercidos pelos participantes num evento de letramento quanto às concepções sociais e culturais que o configuram, determinam sua interpretação e dão sentido aos usos da leitura e/ou da escrita naquela situação particular (BARTON, 1993, p. 7).
Além disso, o domínio da atividade leitora é imprescindível para a aprendizagem das
ciências, da matemática, da história, da política, das artes, da literatura ou de outras culturas e
convívio em sociedade. Enfim, a leitura constitui a base de todas as aprendizagens, inclusive
as escolares. E é por isso que o fracasso escolar no âmbito da leitura tem sérias consequências
e que se tornam imensuráveis para a formação cidadã, bem como para o desenvolvimento
pessoal, social e o acesso às oportunidades para ascensão econômica. Em âmbito maior, o
16
déficit em leitura pode comprometer o crescimento educacional, profissional, tecnológico,
científico de uma sociedade letrada. Portanto, como defende Morais (1997, p.45), “a leitura é
uma questão pública e um ato social”.
Assim, à luz de estudos psicolinguísticos, esta pesquisa objetiva examinar alguns dos
processos de aprendizagem da leitura no âmbito educacional, buscando sugerir a implantação
ações favoráveis à formação de leitores autônomos e de leituras eficientes, através de
estratégia metacognitiva.
Ou seja, será analisada a aplicação de uma das estratégias metacognitivas de leitura – a
preditibilidade – para a construção de uma aprendizagem mais autônoma, no sentido de que
os aprendizes possam conhecer, monitorar e posicionar-se, de forma reflexiva quanto aos seus
próprios processos de aprendizagem durante a leitura, na tentativa de levar o indivíduo a
refletir sobre o seu próprio pensamento enquanto lê para, assim, testar a eficácia dessa
estratégia metacognitiva em desenvolver no aluno sua competência leitora e superar
possíveis dificuldades de compreensão.
Este trabalho também objetiva motivar os alunos para o hábito da leitura, através do
contato e estudo de textos atrativos e condizentes com o interesse da faixa etária. Busca
também proporcionar maior compreensão leitora sobre os textos lidos através da autonomia e
da desautomatização da leitura, além de oferecer o conhecimento e a ampliação do repertório
de contos do gênero fantástico. Também tem como propósito provocar maior reflexão sobre o
texto, exercitar a ativação do conhecimento prévio e a habilidade de testar hipóteses durante a
leitura.
Considerando a dificuldade do ensino da leitura acentua-se com determinadas
propostas metodológicas adotadas para ensiná-la, esse trabalho pretende testar hipóteses e
possibilitar o uso de estratégia de leitura a fim de proporcionar aos leitores em formação a
compreensão e autonomia sobre seu próprio processo de aprender, reflexões sobre suas
práticas de leitura, controle dessas práticas e do processo de construção do sentido do texto e
de compreensão.
Percebo que a maioria dos alunos, ao realizarem a atividade de leitura, utilizam apenas
determinadas estratégias cognitivas de compreensão, com princípios que regem o
comportamento inconsciente e automático do leitor. Assim, ao tomar por base as reflexões
sobre leitura presentes na corrente teórica da Psicolinguística, evidencia-se a necessidade do
ensino de estratégias metacognitivas que segundo Kleiman (2013, p. 75-76) “são fatores que
influenciam na compreensão dos textos, referindo-se à capacidade que o sujeito tem de
apreender e, ainda mais, controlar e manipular suas habilidades para aprender”.
17
Dessa forma, proponho o conhecimento e uso de uma dessas estratégias
metacognitivas, pressupondo que possibilitará ao aluno aprendê-la explicitamente até que o
torne consciente do uso dessa habilidade e exercite esse conhecimento enquanto lê. Ou seja,
considerando que o ensino de leitura é um dos focos da educação básica e que é parte da
função social da escola, pretendo refletir sobre a importância da preditibilidade antes, durante
e depois da leitura, despertando no discente o monitoramento da compreensão da leitura feita
por ele próprio, através da previsão, a fim de que adquira o domínio progressivo dessa
estratégia e, mais tarde, utilize-a com autonomia.
O tipo de leitura priorizado neste trabalho é a leitura de contos do gênero fantástico.
Essa escolha deve-se ao interesse que o gênero desperta nos leitores, independente de sua
idade, assim como adéqua-se ao contexto da pesquisa, e, principalmente à faixa etária e aos
interesses dos alunos pesquisados. Também considerou-se a riqueza de possibilidades
presentes em suas próprias características, porque explora e requisita a criatividade, ultrapassa
os limites entre o natural e o sobrenatural ou do impalpável.
Ao apresentar e exercitar a estratégia da preditibilidade nos contos do gênero
fantástico, esta pesquisa pretende colaborar com a melhoria da compreensão leitora, através
das intervenções realizadas por mim com meus 23 alunos do 9º ano do Ensino Fundamental
da escola estadual CIEP 322, Mozart Cunha Guimarães, situada na cidade de Bom Jardim –
RJ, cujo trabalho possui prévia aceitação da proposta por parte da direção dessa instituição,
bem como dos demais professores da turma, também pelo constante interesse e participação
da comunidade em todas as propostas que objetivam melhorias na aprendizagem dos
estudantes.
A referida turma foi selecionada devido à identificação com a proposta, através do
interesse que demonstraram em participar da pesquisa, da necessidade em desenvolverem a
competência leitora, além da afinidade com o gênero (observada em outras atividades de
leitura) que será objeto de leitura, também pelo fato da faixa etária ser condizente com os
tipos de atividades que serão realizadas e coerentes com a aprendizagem do conteúdo
proposto.
Ao discutir e avaliar o efeito de uma atividade metacognitiva desenvolvida em sala de
aula sobre o desempenho de leitura dos alunos estudados, a pesquisa propõe formas de
melhoria do ensino na educação básica e pretende propiciar ao estudante um trabalho
favorecedor da compreensão leitora e, consequentemente, do exercício de sua cidadania.
18
1 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
1.1 Concepções de leitura
É axiomático que o conceito de leitura tem mostrado diferentes acepções ao longo dos
estudos científicos sobre os processos em torno do ato de ler, respeitando-se a variedade de
teorias que subsidiam tais acepções. Muitas exposições sobre o assunto são semelhantes e
complementares, por isso, esta pesquisa apreciará diversas ponderações de diferentes autores
sobre leitura. Como concebe Kleiman (1993, p. 10), por exemplo, que descreve a leitura como
“uma prática social que remete a outros textos e outras leituras”, isto é, uma prática que
envolve diversos elementos como experiências vividas, sistema de valores, crenças e atitudes
do leitor, refletindo ainda o grupo social em que foi criado. A autora afirma ainda que
o mero ato de passar os olhos pela linha não é leitura, já que leitura implica uma postura ativa por parte do leitor, uma atividade de procura no seu passado, lembrança, experiência e conhecimentos. (KLEIMAN, 2009, p.27)
Para Smith (1989, p. 111), “a aprendizagem da leitura é apenas a tentativa de dar
sentido ao que se lê, e o esforço para ensinar a ler, portanto, é apenas o de tornar aquela tarefa
interessante e compreensível”. Segundo o autor, a leitura acontece quando fazemos perguntas
ao texto escrito e, se obtemos as respostas a essas perguntas, significa que compreendemos o
texto e que, além disso, esse processo é implícito, não temos consciência dele, mas apenas
“das decisões tomadas pelo cérebro”. Assim, como defende Smith (1989), a leitura não deve
ser considerada como um tipo especial de atividade, mas como algo que envolve aspectos
muito mais amplos do pensamento e comportamento humano, uma compreensão da leitura
não pode ser adquirida sem levar em conta a natureza da linguagem, por exemplo, as várias
características do cérebro humano e suas estruturas cognitivas complexas.
De acordo com Goodman (1990), o processo de leitura é comum para todas as línguas,
independentemente das diferenças na ortografia, do nível de capacidade com o qual se usa
esse processo, da estrutura do texto e do propósito que possa ter o leitor no momento de ler.
Para compreender o processo de leitura, é necessário compreender de que maneira o leitor, o
escritor e o texto contribuem para ele. Ou seja, a relativa capacidade de um leitor em
particular é importante para o uso exitoso do processo, mas também é relevante o propósito
19
do leitor, a cultura social, o conhecimento prévio, o controle linguístico, as atitudes e os
esquemas conceptuais.
Assim, toda leitura é interpretação, e aquilo que o leitor é capaz de compreender e de
aprender através da leitura depende fortemente daquilo que o leitor conhece e acredita antes
de ler. Portanto, diferentes pessoas lendo o mesmo texto apresentarão variações no que se
refere à compreensão, segundo a natureza de suas contribuições pessoais ao significado. Mas
também afirma que o modo como a sensibilidade do escritor em relação ao seu público e a
maneira pela qual consegue representar significado para esse público influencia fortemente na
compreensão.
Poersch (2002, p. 85) enfatiza que a leitura tem como objetivo “a compreensão do
texto, sendo esse um mediador entre o escritor e o leitor”. Ele considera que a leitura é um ato
de comunicação que leva o leitor a construir intencionalmente na sua mente, através da
percepção de sinais impressos e da ajuda de elementos não verbais, uma substância de
conteúdo similar ao que o escritor queria expressar através de uma mensagem verbal. Assim,
o significado é, segundo esse autor, construído através dos dados do texto percebidos pelos
olhos, que são transmitidos pelo nervo óptico até o cérebro. No cérebro, esses dados,
juntamente com informações previamente armazenadas, começam a serem processados. Caso
não haja informações no cérebro do leitor que possam ser ativadas enquanto lê, então ele fará
novas conexões na tentativa de depreender o significado que o escritor quis passar com o
texto. Contudo, para que isso ocorra, o leitor precisa ter um conhecimento prévio que
permita fazer essas novas conexões.
Sobre isso, Kleiman afirma que o processo de compreensão de um texto é
caracterizado pelo conhecimento prévio:
o leitor utiliza na leitura o que ele já sabe, o conhecimento adquirido ao longo de sua vida. É mediante a interação de diversos níveis de conhecimento, como o conhecimento linguístico, o textual e o conhecimento de mundo, que o leitor consegue construir o sentido do texto. E porque o leitor utiliza justamente diversos níveis de conhecimento que interagem entre si, a leitura é considerada um processo interativo. Pode-se dizer com segurança que sem o engajamento do conhecimento prévio do leitor não haverá compreensão. (KLEIMAN, 2000, p.13)
Em vez de fazer da leitura uma atividade passiva, o aluno poderá tornar-se ciente da
necessidade de fazer da leitura um exercício ativo, caracterizado pelo uso e engajamento do
conhecimento, já que “recipientes não compreendem”. (KLEIMAN, 2000, p. 27)
20
Solé (1998) afirma que o leitor precisa ser ativo, processar e examinar o texto
buscando o objetivo daquela leitura, o que interferiria na interpretação e extração de
informações por aquele leitor.
Para Neves (2004) a leitura é considerada, na perspectiva do senso comum, como
mera junção das letras do alfabeto para formação de palavras, um ato automático, mecânico.
Talvez, essa perspectiva ainda permaneça, involuntariamente, em comentários feitos pelos
próprios profissionais sobre leitura e compreensão de textos.
A leitura não pode mais ser vista como simples meio de decodificação de mensagem,
pois é elemento essencial no avanço de uma sociedade atual e globalizada, em pleno
desenvolvimento. A compreensão de textos faz com que as pessoas tenham acesso a novas
experiências e novas informações, além de ajudarem a ampliar seus conhecimentos
intelectuais e sociais.
Para Scott (1983) a leitura não é simplesmente a habilidade de decodificar palavras,
mas de extrair o significado, através do implícito e do explícito do texto escrito. É um
processo seletivo e, concomitante a isso, um jogo de adivinhação psicolinguístico. A leitura
passa a ser vista como um processo cognitivo que depende da participação do leitor, que entra
em cena com seu conhecimento prévio e participa da construção de significados - processo
em que o texto passa a ser o mediador de comunicação entre o autor e leitor.
Assim, “o leitor é um operador do texto, aquele que, com seu esforço pessoal, realiza a
leitura, torna o texto real dá-lhe vida, pois o autor, por mais que planeje seu texto, jamais
poderá prever o impacto real que terá sobre o leitor.” (NEVES, 2004, p.43).
Para Cordeiro (2005), o processo de leitura é, em sua essência, considerado ativo
porque inclui predição, elaboração de hipóteses e previsões a respeito do texto; o leitor
observa os recursos visuais, gráficos e sonoros e levanta uma série de hipóteses.
A respeito do tema, Neves (2004) descreve que ao ler um texto, o leitor traz consigo
uma concepção de mundo muito pessoal, característica dele mesmo. Assim, essa visão de
mundo do leitor permitirá confronto ou conjunção de ideias diante daquela explicitada pelo
autor, pois ambos estão inseridos nos possíveis universos do sentido que lhes são próprios.
Na visão de Kleiman (2000), a leitura leva o leitor a buscar no seu passado de
lembranças conhecimentos relevantes à compreensão do texto, atividade que fornece pistas e
sugere caminhos, mas embora seja um processo interativo que engloba diversos níveis do
conhecimento (linguístico, textual e entendimento do mundo), não deixa claro tudo o que
seria possível explicitar.
21
No processo de ler e compreender um texto o leitor deve utilizar todo o seu
conhecimento prévio, adquirido das experiências ao longo da sua vida.
A autora ainda destaca a importância, na leitura, das experiências, dos conhecimentos
prévios do leitor, que lhe permitem fazer previsões e inferências sobre o texto. Considera que
o leitor constrói, e não apenas recebe um significado global para o texto: ele procura pistas
formais, formula e reformula hipóteses, aceita ou rejeita conclusões, utilizando estratégias
baseadas no seu conhecimento linguístico e na sua vivência sociocultural (conhecimento de
mundo).
Na atribuição de sentido ao texto, por vezes tem que se levar em conta o diálogo, as
relações estabelecidas entre os textos, ou seja, a intertextualidade. Como afirmam Kleiman
(2000) e Moraes (1999), os textos incorporam modelos, vestígios, até estilos de outros textos
produzidos no passado e apontam para outros a serem produzidos no futuro. Afirmam
também que é nessa dimensão dialógica, discursiva, intertextual, que a leitura deve ser
experienciada, desde a alfabetização, como um ato social em que autor e leitor participem de
um processo interativo no qual o primeiro escreve para ser entendido pelo segundo. Tal
processo vai depender tanto da habilidade do autor no registro de suas ideias, quanto da
habilidade do leitor na captação de tudo aquilo que o autor colocou e insinuou no texto.
Portanto a produção de significados – que implica uma relação dinâmica entre
aluno/professor – ocorre de forma compartilhada, configurando uma prática ativa, crítica e
transformadora, que deve alcançar diferentes tipos de textos e gêneros textuais.
De acordo com Kleiman (2000, p. 13) “A compreensão de um texto é um processo
que se caracteriza pela utilização de conhecimento prévio: o leitor utiliza na leitura o que ele
já sabe, o conhecimento adquirido ao longo de sua vida”. Esse conhecimento prévio
compreende: 1 – o conhecimento linguístico; 2 – o conhecimento textual; 3 – o
conhecimento de mundo.
Mediante a interação desses três conhecimentos que se unem, não por hierarquia
como o termo “níveis” poderia supor, mas sim por se tratarem de conhecimentos
simetricamente importantes e indispensáveis. A partir da interação desses
conhecimentos, o leitor consegue construir o sentido do texto. Assim, quando um desses
conhecimentos não estiver presente durante a leitura, a compreensão ficará comprometida.
Em relação ao conhecimento linguístico limitado, cabe a intervenção do professor que
orientará no sentido de esclarecer e ampliar os conhecimentos do aluno, evitando a falta de
compreensão.
22
Por outro lado, torna-se difícil para o leitor construir o significado do texto quando
seu conhecimento de mundo não favorece isso.
No tocante ao conhecimento textual, por fim, é importante salientar que o leitor não
vai “desarmado” para a leitura. De conformidade com o tipo de texto que vai ler, ele busca a
ativação de seu conhecimento de tipologia textual. Por isso, é importante conhecer, de fato,
quais os critérios que levam o leitor à compreensão do texto.
Nessa perspectiva, Koch (2002) acredita que o conhecimento não consiste apenas em
uma coleção estática de conhecimentos, de experiências, mas também em habilidades para
operar sobre tais conteúdos e utilizá-los na interação social. Dessa forma, para a autora, a
memória opera em três momentos ou fases:
1. estocagem – em que as informações perceptivas são transformadas em
representações mentais, associadas a outras;
2. retenção – em que se dá o armazenamento das representações;
3. reativação – em que se opera, entre outras coisas, o reconhecimento, a reprodução, o
processamento textual.
Também Scott (1983) chama a atenção para a necessidade da leitura das entrelinhas e
enumera algumas habilidades necessárias a essa leitura:
1 – fornecimento de informações não dadas;
2 – percepção de semelhanças e diferenças;
3 – percepção de relações de causa-efeito;
4 – flexibilidade de arranjo mental;
5 – percepção de funções não explícitas;
6 – percepção de comentários de ironia, de “diálogo autor/texto” e ideologia;
7 – habilidade de distanciamento do texto.
Sobre isso, Kleiman acrescenta que
há outros conhecimentos relativos ao texto que são também parte desse conjunto que chamamos de conhecimento prévio, sendo, portanto, importantes para a compreensão. [...] Quanto mais conhecimento textual o leitor tiver, quanto maior a sua exposição a todo tipo de texto, mais fácil será sua compreensão, pois o conhecimento das estruturas textuais e de tipos de discurso determinará, em grande medida, suas expectativas em relação aos textos, expectativas estas que exercem papel considerável na compreensão.” (KLEIMAN, 2000, p.23)
Também sobre leitura, Mary Kato (1999, p.65), ao descrever as várias hipóteses sobre
os processos mentais subjacentes à leitura, apresenta “a leitura como um processo de
reconstrução do planejamento do discurso por parte do escritor”. A autora também se refere
23
às duas concepções opostas sobre o processamento da leitura: a hipótese ascendente (bottom-
up), na qual o leitor analisa o texto de forma linear, cuidadoso, partindo das partes para o
todo, e a hipótese descendente (top-down), na qual o leitor utiliza seu conhecimento prévio e
sua capacidade inferencial para fazer predições sobre o que o texto dirá, utilizando os dados
visuais apenas para reduzir incertezas, como possibilidades complementares. A leitura é vista
como uma interação entre leitor e texto, e um leitor maduro é aquele que tem um controle
consciente, autônomo e ativo de ambos os processos, escolhendo qual utilizar conforme a
necessidade.
Segundo Brandão e Spinillo (1998), a compreensão em leitura está relacionada à
capacidade do leitor de apreender o significado do texto. Alguns fatores estariam envolvidos
nesse processo, como, por exemplo, as habilidades linguísticas e cognitivas do leitor, o tipo de
texto a ser compreendido e as condições em que a tarefa é apresentada. Ou seja, a
compreensão de textos é influenciada tanto pelo tipo de texto quanto pela forma e conteúdo,
assim como também o leitor com suas expectativas, objetivos e conhecimentos prévios.
Portanto, leitura é uma atividade que requer fundamentalmente compreensão.
Compreender um texto é construir sentidos, habilidade que pressupõe a ativação de diversos
processos mentais. Como afirma Smith (1999), a maioria dos estudos sobre leitura prioriza
o que deve ser feito para melhorar o ensino e estabelecer metodologias em detrimento da
compreensão do processo de aquisição da leitura. O autor refuta inclusive a ideia
largamente difundida de que os leitores precisam reconhecer primeiramente as letras para
identificar palavras, e depois as palavras para compreender o significado. Segundo o autor, é
preciso primeiro compreender significados para, assim, identificar palavras. Assim, o
reconhecimento de palavras individuais não é necessariamente direcionado para a
compreensão, pois palavras individuais, tomadas isoladamente, são essencialmente sem
sentido. Relacionar leitura à decodificação de palavras escritas em som é, pois, uma
concepção equivocada.
Goodman (1976, p.3) também alerta quanto à aplicação de conceitos equivocados
sobre a leitura e refuta a concepção de que "a leitura é um processo preciso que envolve
percepção e identificação sequenciais exatas e detalhadas de letras, palavras, padrões de
ortografia e unidades linguísticas maiores", que ainda exerce grande influência em métodos
de ensino no país. Para o teórico, a leitura é um jogo psicolinguístico de adivinhação que
envolve interação entre pensamento e linguagem. A leitura eficiente não resulta da
percepção precisa e da identificação exata de todos os elementos, mas da habilidade em
selecionar o menor número de pistas produtivas necessárias à elaboração de adivinhações
24
que estarão certas desde o início. Assim, as pistas fornecidas pelo escritor são
imprescindíveis para que o leitor construa o sentido do texto e, dessa forma, o princípio
cooperativo entre leitor e escritor se estabelece.
Por fim, retomando os modelos teóricos relativos aos processos de leitura, o ensino
baseado em apenas um dos elementos concretamente envolvidos neste processo pode ser
uma das razões da inabilidade leitora e dos baixos índices de letramento observados em
nosso país. Por exemplo, quando a ênfase das atividades de ensino de leitura recai sobre o
leitor, corre-se o risco de a leitura conduzir aleatoriamente a quaisquer sentidos possíveis,
admitindo que cada leitor ou cada leitura possam ter sentidos completamente distintos, o que
viola as leis essenciais da comunicação.
Kato (2007), ainda destaca que os processos envolvidos na leitura de palavras e de
blocos. Para melhor compreendê-los, deve-se considerar um princípio básico de que
quanto mais eficiente um leitor, maior seu vocabulário visual.
Sob essa ótica, para um leitor iniciante, cujo vocabulário inicial é ainda muito
limitado, a leitura baseia-se predominantemente em operações de análise e de síntese. Já na
leitura de palavras contextualizadas, atuam regras sintáticas, pressuposições semânticas,
restrições colocacionais e estilísticas, imposições pragmáticas e inferências. Tanto em
referência à palavra isolada quanto à contextualizada, a leitura ocorre muitas vezes por meio
de uma antecipação seguida de uma confirmação.
Sendo assim, o uso do conhecimento prévio nas restrições mencionadas leva a
reduzir o conjunto de itens possíveis de ocorrer em determinado contexto. No que tange à
leitura de blocos, experimentos mostram que a leitura proficiente não se processa palavra
por palavra, mas por blocos que constituem unidades de informação.
Para Goodman e Smith, leitura de segmentos maiores que a palavra envolve um
processamento na base de análise e de síntese com um bom componente de predição e
inferência.
Além disso, Colomer e Camps (2002), ao tratarem da descrição atual da leitura,
situam-na numa diretriz teórica que objetiva explicar como os seres humanos interpretam a
realidade ou processam a informação recebida. Distinguem então o processamento
ascendente, modelo vinculado a uma concepção mais tradicional de leitura, entendida como
uma recepção passiva, do descendente. O primeiro é um mecanismo que parte da análise do
texto à compreensão do leitor; o segundo atua em sentido contrário, ou seja, da mente do
leitor ao texto.
25
Conforme as autoras, o que o leitor vê no texto e o que ele mesmo traz são dois
subprocessos simultâneos e em estreita interdependência, visão que constitui os modelos
interativos de leitura. Sob essa nova ótica, o leitor é visto como um sujeito ativo, o que
pressupõe uma visão dialética entre texto e leitor: de um lado, o leitor baseia-se em seus
conhecimentos para interpretar um texto; por outro, esse novo significado permite-lhe criar,
modificar ou incorporar novos conhecimentos em seus esquemas mentais.
Nesse sentido, o leitor que privilegia a forma descendente tende a apreender
facilmente as ideias gerais e principais do texto, é fluente é veloz, porém faz uso excessivo
de adivinhações, sem procurar confirmá-las com os dados do texto. Utiliza, sobretudo, seu
conhecimento prévio em detrimento da informação efetivamente dada pelo texto. O leitor
que se utiliza especialmente do processo ascendente, por sua vez, constrói o significado com
base nos dados do texto, detém-se em detalhes como ortografia e faz pouca leitura nas
entrelinhas. Tende a ser vagaroso e pouco fluente, apresentando dificuldade para sintetizar
as ideias do texto; em contrapartida, não tira conclusões apressadas. Há ainda um terceiro
tipo de leitor, considerado um leitor maduro, que usa, adequadamente, os dois processos de
forma complementar. Para ele, a escolha desses processos é uma estratégia metacognitiva
visto que exerce um controle consciente e ativo sobre seu comportamento.
Assim, numa abordagem cognitiva, a leitura envolve uma série de processos cerebrais
que possibilitam a compreensão da informação transmitida por um texto. O modo como esses
processos se desenvolvem para relacionar os elementos linguísticos em busca da construção
do sentido sofre influência de diversos fatores como objetivo da leitura, conhecimento prévio
do conteúdo e das condições de produção do texto, tipo de texto e estilo cognitivo do leitor.
O entendimento de que esses dois tipos de processamento não são mutuamente
excludentes, ao contrário, participam conjuntamente da construção do sentido textual, conduz
os pesquisadores a estabelecer um terceiro tipo de processamento para explicar a leitura: o
modelo interativo.
No modelo de processamento interativo, o leitor não se centra exclusivamente nem no
texto nem no leitor, e a compreensão decorre da interação entre os conhecimentos do leitor e
os dados fornecidos pelo texto. Segundo Leffa (1996), depende do leitor a adequada inter-
relação entre o conhecimento prévio do leitor e as informações textuais, necessária para a
compreensão leitora.
Do ponto de vista do ensino, Solé (1998) afirma que as propostas baseadas no modelo
interativo ressaltam a necessidade de os alunos aprenderem a processar o texto e seus
elementos constitutivos, assim como as diferentes estratégias que possibilitam a compreensão
26
textual. E essa aprendizagem é necessária porque o leitor utiliza simultaneamente seu
conhecimento prévio e seu conhecimento dos elementos textuais para construir o sentido da
leitura.
1.2 Metacognição e leitura
A metacognição, surgida na literatura durante a década de 1970, pode ser definida
tanto como um discurso de segundo nível sobre a cognição – uma vez que “se caracteriza
como um sistema de pensamento centrado na atividade cognitiva humana – quanto uma
tecnologia educacional simbólica” (Peixoto, Brandão e Santos, 2007).
De acordo com Jou e Sperb (2006), metacognição consiste no enfoque da psicologia
cognitiva ao processamento da informação, que postula que a mente é um sistema cognitivo
pelo qual se interage com o meio, nesse processo ocorre monitoração, autorregulação e
potencialização do próprio sistema.
A metacognição não é apenas um conhecimento sobre a cognição, mas uma etapa do
processamento de nível elevado, que é adquirida e desenvolvida pela experiência e pelo
conhecimento específico que é armazenado. Estes autores afirmam também que a
metacognição é uma conquista evolutiva do ser humano, devido à necessidade de adaptação
ao ambiente.
Assim, “esse gerenciamento de metas, na perspectiva cognitiva do processamento da
informação, coordena e monitora as atividades mentais” (Joly, 2006, p. 45). Uma questão
relevante para a compreensão da metacognição é que tanto o controle quanto o
monitoramento de um sistema metacognitivo se direcionam a um nível cognitivo.
Partindo do pressuposto de que raciocínios metacognitivos tendem a potencializar a
leitura, tendo em vista que subjazem a esses conceitos a ideia de um monitoramento
consciente e autônomo dos sujeitos sobre suas ações, procura-se agora fornecer reflexões
sobre a natureza desses processos.
Primeiramente, é necessário distinguir o processo cognitivo e o metacognitivo: como
destaca Poersch (1998, p.4), “a cognição é um processo mental que permite a apreensão, o
processamento e a recuperação de conhecimento, de informação”. Dessa forma, os
processos cognitivos dizem respeito aos aspectos automáticos e inconscientes ou aos
aspectos pré-conscientes utilizados pelos indivíduos quando desempenham alguma tarefa.
27
Como não são conscientes, não podem ser controlados ou monitorados. Os processos
metacognitivos, ao contrário, são aspectos conscientes.
O indivíduo, ao mesmo tempo em que desempenha uma atividade cognitiva,
utiliza estratégias de ação e de reflexão para atingir o propósito.
Ele estaria monitorando seu comportamento, utilizando, assim, estratégias
metacognitivas. Ou ainda, como esclarece Kato (2007), se estratégias cognitivas em
leitura designam os princípios que regem o comportamento automático e inconsciente do
leitor; as metacognitivas remetem aos princípios que regulam a desautomatização consciente
das estratégias cognitivas.
Leffa (1996) diferencia a atividade cognitiva da metacognitiva pelo tipo de
conhecimento utilizado para executar a atividade: declarativo ou processual. Para o autor, as
atividades cognitivas envolvem o conhecimento declarativo, ou seja, envolvem apenas a
consciência da tarefa a ser feita, como, por exemplo, resumir um texto. Já o conhecimento
processual envolve não somente a consciência da tarefa a ser feita, mas também a
consciência da própria consciência, uma avaliação e controle do próprio conhecimento,
envolvendo não só o produto do conhecimento, mas também o controle do próprio processo
necessário para se chegar ao produto, ou seja, o sujeito tem consciência do resultado da tarefa
e do caminho percorrido até chegar a ele.
Kleiman (1993), afirma que leitor lê porque tem um objetivo em mente e compreende
ou não o que lê. Esses dois procedimentos tornam a leitura uma atividade consciente. No
segundo, se o leitor não compreende o que lê, ele recorre a vários procedimentos que o
auxiliem na compreensão. Estudar as estratégias que o leitor utiliza nesse caso proporciona
ferramentas para o ensino da leitura como uma atividade que envolve operações regulares
para abordar o texto.
A metacognição, de acordo com Leffa (1996), aborda o problema da monitoração
consciente da compreensão pelo próprio leitor durante o momento da leitura. Essa estratégia
envolve:
a) a habilidade de monitorar a própria compreensão, por exemplo, quando o leitor
diz “estou entendendo este parágrafo”, ou “preciso parar aqui e voltar um pouco, não estou
entendendo tão bem” e;
b) a habilidade de tomar decisões e atitudes adequadas quando julgar necessário,
quando lhe falta compreensão.
28
Para Brown (1980, p.456), “metacognição é um conjunto de estratégias de leituras
que se caracteriza pelo controle planejado e deliberado das atividades que levam à
compreensão”. Entre essas atividades, destacam-se:
•definir o objetivo de uma determinada leitura;
•identificar os segmentos mais e menos importantes de um texto;
•distribuir atenção de modo a se concentrar mais nos segmentos mais importantes;
•avaliar a qualidade da compreensão que está sendo obtida da leitura;
•determinar quais os objetivos de uma leitura estão sendo alcançados;
•tomar medidas corretivas quando falhas na compreensão são detectadas e
•corrigir o rumo da leitura no momento de distração.
Além disso, o uso de estratégias metacognitivas depende de variáveis como: a
idade, a experiência de leitura do leitor, o gênero textual, a consciência da natureza do
material envolvido na situação da leitura, organização e conteúdo do texto, a dificuldade
das tarefas e a meta, o objetivo da atividade.
Em relação à idade existe o problema dos elementos que limitam a aquisição e o
desenvolvimento do processo de leitura. A criança tem fases de amadurecimento biológico e
intelectual para o desenvolvimento de suas habilidades cognitivas, mas por outro lado, tem a
facilidade de aprender de forma mais rápida e natural comparando-as com os adultos.
Para Brown (1980), o desempenho da criança na escola com respeito ao uso das
estratégias metacognitivas tem por base a tese do déficit, isto é, a de encarar o aprendiz como
deficiente em relação a um saber e comportamentos ideais, sendo mais responsável pelo não
uso, ou não habilidade, preconceito criado na escola, pois de acordo com Pedrosa, citada por
Kato (1990), mostra em seus estudos que a criança, desde muito cedo, começa a monitorar
seu comportamento como leitor. E que a diferença entre crianças menos e mais experientes
reside no nível linguístico em que tal monitoração se dá e mostra que as crianças menos
experientes começam monitorando o nível da palavra, para progressivamente passarem a
monitorar ao nível de sintagmas, orações e unidades maiores que o período. No mesmo estudo
de Pedrosa mostrou-se que muitas crianças deixam de preencher lacunas do texto, indicando
que têm consciência de uma falha em sua compreensão.
Sobre isto, o autor ainda afirma que o estudante proficiente pode ser somente aquele
que com frequência diz que não entendeu, simplesmente porque ele está constantemente
monitorando a sua compreensão.
29
Porém, o fato de a maioria das crianças não apresentarem a monitoração em nível
textual não significa que elas não tenham estratégias cognitivas de natureza textual, elas
apenas não conseguem ainda desempenhar atividades que exijam capacidade metacognitiva
no nível textual. E como as estratégias cognitivas são por defendidas por desenvolverem-se
naturalmente em função do input e da motivação, há que se pensar e atentar para o ensino das
estratégias metacognitivas na escola, esta deve propiciar situações problemas para acionar
estratégias conscientes por parte dos alunos comandadas inicialmente pelo professor e
gradativamente incorporadas no comportamento leitor.
Se as estratégias cognitivas munem o leitor de procedimentos altamente eficazes e
econômicos, responsáveis pelo processamento automático e inconsciente e se desenvolvem
naturalmente há que se apostar em aulas de leituras que estimulem Inputs para então
promover as estratégias metacognitivas que orientam o uso e a desautomatização dessas
estratégias quando encontrarem situações problemas.
É preciso entender os conceitos e conhecer as teorias sobre o ensino de estratégias,
porém há a necessidade de vivenciá-las em sala de aula, pois, como afirma Menegassi (1990,
p.139), “a fundamentação a nível teórico e metodológico é imprescindível ao professor, mas
sem a vivência e aplicação desses conhecimentos em sala de aula, torna-se difícil solidificar
tais aquisições”. Assim há que se prever na formação dos professores do Ensino Fundamental
conteúdos que contemplem o uso e o ensino de estratégias metacognitivas, que seja
vivenciada com estes futuros professores a leitura como construção de sentidos, para que este
possa no dia a dia da sua profissão adequar e planejar a melhor maneira de ensinar esta
construção. Somente o professor poderá aplicar um método de ensino de leitura, sem esquecer
que isto só é possível lendo com seus alunos.
Na perspectiva interativa, Solé (1998) afirma que a leitura é o processo mediante o
qual se compreende a linguagem escrita. Nesta compreensão intervém tanto o texto, sua
forma e conteúdo, como o leitor, suas expectativas e conhecimentos prévios. Para ler é
necessário simultaneamente manejar com destreza as habilidades de decodificação e aportar
ao texto os objetivos, ideias e experiências prévias, envolver-se em um processo de previsão e
inferência contínua, que se apoia na informação proporcionada pelo texto na nossa própria
bagagem, e em um processo que permita encontrar evidência ou rejeitar as previsões e
inferências antes mencionadas.
Há processos de leituras como as previsões – a verificação dessas estratégias e as
interpretações feitas a partir dessas atitudes, uma dedução do fundamental do texto com
30
relação aos objetivos que nos levaram a lê-lo e nos permitem orientar nossa leitura de uma
maneira cada vez mais precisa e crítica, tornando-a mais eficaz.
É bastante frequente pensar que o estabelecimento da ideia principal ou a elaboração
de um resumo são atividades posteriores à leitura.
1.3 Metacognição no contexto de aprendizagem
Um estudo, realizado por Boruchovitch (2000), visando conhecer as estratégias de
aprendizagens utilizadas por alunos do ensino fundamental de uma escola de Campinas,
totalizando uma amostra de 110 sujeitos, entrevistados individualmente pela autora, revelou
que 80% não compreendem o conteúdo que estão lendo, sendo que 92% afirmam perceber
momentos em que a compreensão do conteúdo lido não era alcançada, o que revela a
capacidade das crianças de monitorar suas ações e o papel da escola que envolve fomentar no
aluno desde cedo à capacidade de planejamento, monitoramento e regulação do próprio
comportamento. Identificou-se a necessidade de professores e educadores atentarem para a
importância de se desenvolver um trabalho preventivo no sentido da formação de leitores
independentes, críticos e reflexivos. Este estudo revela o quanto o ensino escolar ainda
trabalha apenas com a transmissão da informação. As estratégias de aprendizagem são
importantes para a aquisição, retenção e reprodução da informação e os processos executivos
de controle controlam os processos cognitivos que também auxiliam no processo de
aprendizagem.
De uma forma geral, a aprendizagem envolve processos metacognitivos, já que
transforma em conhecimento as informações adquiridas. Assim, a metacognição também
utiliza estratégias de aprendizagem, bem como a “monitoração ou autorregulação que, por sua
vez, é o seguimento e a avaliação de um determinado processo, não necessariamente linear,
que objetiva a resolução de um problema.” (NEVES, 2007, p.45).
Ambiente de aprendizagem, segundo Stedile (2003), se refere ao lugar ou espaço onde
ocorre a aprendizagem, onde é possível encontrar atividades e recursos para o aluno utilizar
como ferramentas, para interpretar as informações que resultam da interação com o meio e
com outras pessoas. Dessa forma, os alunos podem explorar suas próprias estratégias e metas
de aprendizagem, com autonomia e responsabilidade sobre a construção de seu próprio
31
conhecimento; os alunos podem realizar atividades juntos, trocando aprendizagem entre si e
com o ambiente.
Neves (2007) postula que o uso da cognição e da metacognição possibilita o
armazenamento de elementos da informação ou representação de determinado fato, ou seja, a
informação nova é incorporada às informações que já estão armazenadas. Já que a
metacognição é a consciência do modo pelo qual o conhecimento é adquirido, torna-se assim
possível que os próprios indivíduos gerenciem este processo, utilizando estratégias
metacognitivas para a aprendizagem e resolução de problemas em situações cotidianas. Uma
forma de facilitar o aprendizado é o uso de mapas cognitivos que permitem a representação
do meio-ambiente no cérebro a partir da interação do individuo com o meio.
Tornam-se importantes maiores investigações que evidenciem a combinação de
inúmeras variáveis na situação de aprendizagem, as quais possibilitem a criação de sistemas
excelentes de estratégias e que os treinos não visem somente o ensino das mesmas. A eficácia
dos treinos parece depender da utilização conjunta de estratégias cognitivas e afetivo-
motivacionais, sendo assim as estratégias metacognitivas parecem desempenhar um papel
crucial. Boruchovitch (2000) relaciona a eficiência das estratégias de aprendizagem com as
condições internas do aprendiz, nesse caso as estratégias afetivas estariam voltadas a
eliminação de sentimentos desagradáveis, que não condizem com a aprendizagem, como por
exemplo, o estabelecimento e manutenção da motivação, da atenção e da concentração, bem
como o controle da ansiedade.
Stedile (2003) aponta que a metacognição é uma estratégia possível para que se
transforme o conhecimento em conduta profissional, já que pensar sobre o processo de
aprendizagem e estabelecer estratégias para auxiliar este processo maximizam as
potencialidades individuais para a resolução de problemas. O autor explica a interação entre
metacognição e aprendizagem a partir de conceitos como processo de aprendizagem e
metacognição.
Assim sendo, os treinos devem procurar melhorar a compreensão dos alunos,
qualificando-os a pensar sobre o texto antes da leitura, a autoavaliarem a sua compreensão,
bem como, a organizarem a informação adquirida. Assim, o simples conhecimento de
estratégias parece ser ineficaz, sendo necessário encorajar os alunos a ter responsabilidade
pela sua própria aprendizagem, desenvolvendo o que tem sido denominado de consciência
metacognitiva ou meta aprendizagem, apresentando melhores resultados.
Na resolução de problemas, monitorar a compreensão também auxilia no processo,
portanto, solicitar ao estudante que descreva e explique suas ações durante a execução (pensar
32
alto) pode auxiliá-lo a achar uma solução. Principalmente quando o aprendiz já possui o
conhecimento necessário para resolver o problema, mas não consegue por dificuldade em
relacionar o que já conhece com a tarefa atual. Nestes casos, “pensar alto” pode, pelo menos
de início, ajudá-lo a clarificar sua compreensão do problema.
Existem também outros benefícios do pensar alto, tais como: o aumento da capacidade
de compreender e discriminar conteúdos de conceito semelhante, melhora no desempenho de
tarefas concretas, principalmente após uma explicação da tarefa seguinte. De forma geral,
pode-se dizer que o aumento do conhecimento metacognitivo explicitado pelo pensar alto
favoreceu o uso de estratégias mais complexas e mais efetivas.
A rapidez na leitura, a planificação do tempo e a adoção de estratégias mnemônicas
são fundamentais para que os estudantes tenham resultados positivos em sua aprendizagem,
mas isso só ocorrerá mediante o total controle do aprendiz, algo que raramente acontece. Por
outro lado, quando os alunos tornam-se incapazes de refletir sobre os processos que usam
para aprender, provavelmente têm dificuldades em selecionar os mais apropriados para a
aprendizagem. Além disso, a metacognição também está relacionada ao sucesso desses
processos e a modificação dos mesmos.
Assim sendo, desenvolver habilidades através do conhecimento e de informações
pressupõe um aumento da utilização de habilidades cognitivas, para que estas auxiliem na
reflexão sobre diferentes situações, para que se torne possível analisar, examinar, criticar e
sistematizar informações. Nesse sentido, o aluno toma consciência de seus próprios processos
mentais, e tem a possibilidade de controlá-los gradativamente.
Compreender ou produzir um texto é uma tarefa complexa, produto de um processo de
pensamento que, segundo Peixoto (2007), é produzido momento a momento, por interação
entre processo e produto, ocorrendo modificações em ambos. Quanto mais se sabe sobre o
processo e o produto, maior é a eficiência das modulações recíprocas e nesse sentido quanto
maior o conhecimento metacognitivo, maior o desempenho nestas tarefas. Já que a
metacognição pode determinar o modo pelo qual o sujeito organiza seu pensamento ou o texto
produzido.
Chahon (2006) explica a metacognição a partir do ponto de vista de uma habilidade
utilizada para a resolução de problemas, especialmente problemas aritméticos, o autor
também entende metacognição como uma técnica pedagógica inovadora. Uma questão
relevante na compreensão da metacognição é que tanto o controle quanto o monitoramento de
um sistema metacognitivo se dirigem a um nível cognitivo. Portanto, a metacognição toma
como seu objeto o conhecimento em si e seus diferentes elementos. Ou seja, as finalidades
33
metacognitivas são diferentes das finalidades cognitivas, já que estas estão dirigidas para os
conteúdos do conhecimento. O conhecimento metacognitivo é abordado por estes autores
como um conjunto de crenças pessoais sobre todos os possíveis aspectos da atividade
cognitiva. Trata-se de um tipo de conhecimento que se ocupa do conhecimento (no nível
cognitivo). Assim, é possível controlar apenas aquilo que se conhece e, no caso particular do
conhecimento metacognitivo, se pode controlar o conhecimento e indiretamente as ações
concretas que ele vai determinar no ambiente.
Os componentes metacognitivos podem ser desenvolvidos ou reconfigurados em sala
de aula, construindo um ambiente favorável para que o aluno reconheça e utilize
características cognitivas motivacionais, pessoais e situacionais. Bem como, “avaliar e
administrar suas próprias aprendizagens, pensando sobre processos e estratégias cognitivas
utilizadas na construção de significados e na resolução de problema e não apenas sobre
conteúdos.” (STEDILE, 2003, p. 59).
A cognição sobre a cognição e o controle executivo proporcionam um comportamento
mais reflexivo, que facilita a aquisição e utilização de estratégias mais adequadas para a
aprendizagem. As estratégias de aprendizagem são potencialmente conscientes e controláveis
e tem como função auxiliar o aprendiz a executar operações essencialmente cognitivas, que
produzem insights eficientes no processo de aprendizagem. Também se pode avaliar o
processo para detectar erros e modificar a estratégia utilizada para que se obtenha um novo
resultado.
Neves (2006) postula que a abordagem do processamento da informação pesquisa a
compreensão textual, já que esta atividade cognitiva envolve percepção, memória, inferência
e dedução. Estudantes podem melhorar suas leituras à medida que se tornam conscientes de
seus próprios pensamentos enquanto leem, escrevem e solucionam problemas. Neste sentido,
a metacognição deve ser razoavelmente precisa e sensível à maioria dos fatores que afetam a
compreensão.
Davis, Nunes e Nunes (2005) citam duas formas diferentes de raciocinar, a primeira é o
raciocínio dedutivo e a posterior, raciocínio indutivo. O raciocínio dedutivo significa partir do
geral para o mais específico, utilizando proposições amplas para entender, explicar, avaliar e
monitorar determinados eventos. Aprender a pensar de forma dedutiva permite maior controle
de eventos e de experiências próprias. O raciocínio indutivo, por sua vez, permeia conexões
entre os fatos para que ocorram generalizações a partir destes. Ao articular os fatos, surge a
possibilidade de criar novas ideias, outras hipóteses, bem como, novas teorias.
34
Por outro lado, durante uma tarefa, as mudanças no nível-objeto, cognitivo, afetivo ou
motor, monitoradas e enviadas são nível-meta, e podem determinar um novo retorno na forma
de controle. Considerando este modelo de sistema metacognitivo, no qual o fluxo de
informações entre o nível-objeto e o nível meta é operacionalizado por meio do pensamento
verbal lógico, é fácil perceber como a sua condição de existência se define pelo sistema de
símbolos que o suporta. Dessa forma, “a metacognição pode ser vista como uma tecnologia
educacional a ser estimulada e desenvolvida nos aprendizes por meio do uso de símbolos.”
(PEIXOTO, 2007, p.78).
1.4 A preditibilidade como estratégia metacognitiva
O núcleo da leitura é a previsão, segundo Smith (1989). Para o autor, scripts e cenários
que temos em nossas cabeças – conhecimento prévio – possibilitam a previsão durante a
leitura e, dessa forma, compreender, experimentar e desfrutá-la. Assim, a previsão é o que
traz um significado potencial para os textos, reduzindo a ambiguidade e eliminando
antecipadamente alternativas irrelevantes.
O autor ainda defende que previsão não é adivinhação (também denominada
antecipação, previsão, predição) inconsequente com apostas ao acaso de forma aleatória, mas
considera o provável e desconsidera o improvável.
Associar leitura à adivinhação pode causar estranheza, devido ao fato de que o senso
comum atribui à adivinhação sentidos pouco positivos. Um deles é a de que fazer
adivinhações sobre o texto é indicativo de uma leitura apressada, geradora de compreensão
inadequada. Outro é o de que ler adivinhando (fazendo hipóteses sobre a continuidade da
narrativa) é leitura superficial ou ainda de que adivinhar significa imaginar sem apoio no
texto. Este trabalho é construído com vistas a não dissociar a adivinhação da textualidade. A
adivinhação, então, é termo sinônimo de preditibilidade e também é usado aqui para combater
a noção comum e provocar uma “ressignificação” do termo adivinhar (na leitura).
Previsão é a eliminação anterior de alternativas improváveis. É a projeção de possibilidades. Realizamos previsões para reduzir incerteza e, portanto, para reduzir a quantidade de informação externa de que necessitamos. Nossa teoria sobre o mundo fala-nos sobre as ocorrências mais prováveis, deixando que o cérebro decida entre aquelas alternativas restantes, até que a incerteza seja reduzida a zero. E somos
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tão bons para prever somente as alternativas mais prováveis que raramente somos surpreendidos. (SMITH, 1989, p.35)
A previsão (ou preditibilidade) é classificada como uma estratégia metacognitiva,
pois, ao encontrar alguma dificuldade num texto, o leitor vai acessar seu conhecimento
prévio e fazer uma aposta a respeito do que está no texto, de forma a decifrar a mensagem ali
contida.
Preditibilidade é um conceito estudado pela Psicolinguística no que se refere à leitura.
Nessa perspectiva, ler não é visto como um processo linear, mas como um processamento em
paralelo, ou seja, envolvendo vários processos concomitantemente que apresentam alteração
conforme o objetivo da leitura, o conhecimento prévio do leitor, o tipo de texto, etc.
Segundo Pereira (2002, p. 51), a preditibilidade “estimula a associação da leitura a
um jogo de risco automonitorado em que o leitor faz as suas apostas, controla-as e, assim,
chega ao êxito”. Para fazer suas apostas acerca do conteúdo do texto, o leitor utiliza seu
conhecimento prévio a respeito do assunto tratado e também as pistas que o escritor deixou
no texto. Por isso que ler é visto como um processo cognitivo, que se altera de acordo com o
objetivo da leitura, o conhecimento prévio do conteúdo, as condições de produção do texto, o
tipo de texto e o estilo cognitivo do leitor.
Segundo Pereira (2002), a preditibilidade pode ser caracterizada como um jogo
linguístico que ocorre durante o processo de leitura. Esse jogo situa-se no âmbito da
interação do leitor com o texto, realizando-se através de jogadas que implicam apostas com
diferentes graus de risco. O jogo assim estabelecido é um instrumento que o leitor utiliza
para antecipação do conteúdo do texto. Faz o seu lance, isto é, prediz o que seus olhos ainda
não leram, tentando adivinhar o jogo do próprio texto.
Nesse momento, corre riscos cuja intensidade está associada à possibilidade de
confirmação da predição realizada. Por sua vez, a dimensão da possibilidade de êxito
depende de uma correlação entre as condições do leitor (universo de conhecimentos e
crenças) e as pistas oferecidas pelo texto. Nesse processo de leitura, escritor e leitor
cooperam mutuamente a partir do momento em que o escritor leva em consideração o
conhecimento prévio do leitor, colocando as pistas necessárias para que o leitor reconstrua o
caminho para chegar o mais próximo possível do texto original, e o leitor, por sua vez,
observa essas pistas e relaciona-as de modo a decifrar a mensagem.
É nesse momento que a preditibilidade surge como uma estratégia de leitura, quando
o leitor, a partir das pistas encontradas, elabora suas hipóteses, que são confirmadas ou não.
Caso suas hipóteses se confirmem, ele segue seu caminho, se não, ele volta e refaz o percurso
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na busca do sentido perdido. A predição pode realizar-se em todos os níveis de constituição
da língua: fonológico, morfológico, sintático, semântico e pragmático.
Conforme Pereira (2002), o leitor faz antecipações no plano fonológico baseado nas
expectativas fônicas (rima, ritmo, manejo de letras e sílabas, etc.). Já no plano morfológico, o
leitor baseia-se nos aspectos lexicais e gramaticais da língua para fazer suas antecipações
(radicais, sufixos, prefixos). Quanto ao plano sintático, o leitor faz predições a partir das
relações entre as palavras, entre as frases, entre os parágrafos. No plano semântico, o leitor
levanta suas hipóteses a partir de expectativas de sentido. E no plano pragmático, o leitor
utiliza as conexões entre o texto e a situação de uso (quem enuncia, para quem enuncia, com
que objetivo, em que momento e local) para elaborar hipóteses. Essa autora propõe
atividades pedagógicas que exijam do leitor a realização de predições em todos os níveis de
constituintes da linguagem, sendo que, muitas vezes, o leitor faz suas predições com base em
mais de um desses níveis.
Segundo a autora, atividades que priorizam a predição como estratégia de leitura
fazem com que o leitor pare, conforme a dificuldade encontrada, e recorra ao que antecede e
ao que segue, ativando seu conhecimento prévio, de forma que possa, com base nele, fazer
suas predições, suas apostas. Esse tipo de atividade consiste na proposta desta pesquisa e são
exemplos de uma proposta pedagógica que entende que o processamento da leitura acontece
em paralelo através do manejo dos vários níveis de constituintes da língua e que o
desenvolvimento de estratégias de leitura metacognitivas como a preditibilidade tem muito a
contribuir no desenvolvimento cognitivo do leitor.
As Orientações Curriculares do Estado do Rio de Janeiro, bem como o PCN
(Parâmetro Curricular Nacional) de Língua Portuguesa não apontam estratégias leitura,
tampouco estratégias metacognitivas. Na verdade, isso se deve não só ao fato de serem frutos
de estudos recentes, mas também à superficialidade com que o tema “leitura” é tratado.
Como atividades envolvendo a preditibilidade enquanto estratégia de leitura leva o
leitor a ativar sua consciência metalinguística e seu conhecimento prévio de mundo na busca
por respostas para as perguntas que surgem durante a leitura, que o levarão à compreensão do
texto, o trabalho pedagógico de ensino da leitura que propicie ao aluno tais atividades estará
auxiliando o seu desenvolvimento em leitura.
De forma a compreender melhor como atividades que se utilizam da preditibilidade
auxiliam nas propostas pedagógicas de ensino da leitura a preditibilidade é uma estratégia de
leitura importante que auxilia na compreensão e que pode oferecer ao professor pistas das
dificuldades enfrentadas por seus alunos. A pausa, ao resolver os exercícios, força o sujeito a
37
refletir sobre o que está lendo e, ao escolher uma opção para completar o texto, ele faz uma
aposta baseada no seu conhecimento prévio, ativando um ou vários níveis de constituição da
língua que o auxiliarão nessa tarefa.
Se for verificado que sua escolha foi equivocada, o professor poderá verificar, na
dinâmica processual do aprendizado, em que ponto o aluno não compreendeu e qual a
dificuldade que ele apresenta, podendo, então auxiliá-lo. No caso de contos do gênero
fantástico não se pretende dimensionar equívocos na opção escolhida pelo aluno leitor, mas
sim explorar as possibilidades de se projetarem outros sentidos para as sequências de ação e
narração no texto.
Trabalhar essa estratégia em todos os níveis de constituintes da língua trará benefícios
para o leitor/aluno, pois ele, provavelmente, passará a ativar cada vez mais o seu
conhecimento prévio de forma a compreender os textos que lê. Acredito que um trabalho
pedagógico a partir da preditibilidade propiciará o desenvolvimento cognitivo dos alunos,
auxiliando-os a atingir o objetivo da leitura: a compreensão do texto.
Assim, a pesquisa situa-se na área da Piscolinguística com Interface em Literatura.
Isto é dizer que, entre os diversos conceitos de leitura, o assumido aqui é o de leitura como
processo cognitivo, uma acepção em que o texto não é visto como autônomo, em que o leitor
é participativo, ou seja, lança hipóteses sobre o conteúdo. Essa acepção de leitura está
vinculada a uma estratégia de leitura em que o leitor, com base nos conhecimentos prévios
que possui sobre o assunto e sobre a língua e com apoio nas pistas linguísticas (vocábulos,
traços fônicos, estruturas morfossintáticas, sinalizações gráficas, distribuições espaciais,
moldura textual, fatores semântico-pragmáticos) deixadas pelo autor no texto, faz
adivinhações sobre conteúdos do texto ainda não lidos.
Portanto, a preditibilidade caracteriza-se pela antecipação do conteúdo do texto, por
meio da associação dos conhecimentos prévios do leitor e das pistas deixadas pelo autor.
Desse modo, a interação entre leitor e texto pode ser vista como um jogo cujas apostas
(hipóteses sobre o que ainda não viu) envolvem diferentes graus de risco (maior ou menor
possibilidade confirmação das hipóteses). “A possibilidade de êxito do leitor dependerá,
portanto, da correlação entre o conjunto de conhecimentos possuídos pelo leitor as
características textuais.” (Goodman, 1970, p. 98).
A estratégia da predição revela sua importância ao possibilitar ao leitor antecipar
significado e avaliar suas previsões, ou seja, é um jogo de risco automonitorado em que o
leitor faz suas apostas e controlá-as a fim de atingir a compreensão.
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Verifica-se a existência da predição nas situações de leitura em que nossa expectativa
falha: quando, ao final da página, se pensa que o texto continuará na página seguinte e isso
não acontece, quando se lê incorretamente uma palavra que prejudica o sentido do trecho em
que está inserida. Do mesmo modo, o fato de que surpreenderia se, na seção de moda de um
jornal, encontrasse reportagens policiais, revela a existência de uma ideia prévia sobre o
material linguístico em questão.
Relacionando o uso da estratégia de predição (a habilidade de predizer o conteúdo
textual) com a capacidade de compreender um texto, pode-se dizer que um bom leitor
consegue servir-se dessa estratégia durante a leitura, ou seja, à medida que lê vai fazendo
hipóteses possíveis sobre o conteúdo que virá a seguir. A possibilidade de essas previsões
ocorrerem se deve ao fato de o texto não ser processado em um bloco único como uma
palavra. Seu processamento ocorre em trechos de extensão variável dependendo das
características do leitor e do próprio texto. A importância do uso da estratégia de predição está
em preparar cognitivamente o leitor para a recepção do próximo trecho e, assim, estabelecer
possíveis elos entre o sentido construído até o momento e o subsequente. Sem essa
preparação, o texto se configura para o leitor como uma caixa de surpresa, tornando mais
trabalhoso seu processamento, que provavelmente demandará mais retomadas para que as
relações entre as sequências de informação sejam estabelecidas.
Pensamos que o leitor possa vir a aprender a fazer predições. Isso requer, contudo, um
ensino de leitura em que se criem situações propícias para o uso dessa estratégia e que tenham
as mesmas uma certa regularidade.
1.5 A leitura de contos do gênero fantástico para exercício da preditibilidade
Para trabalhar essa estratégia, selecionei contos do gênero fantástico. Em termos
históricos e conceituais, os contos fantásticos representam um gênero da literatura
fantástica (realismo mágico ou maravilhoso) com origens no século XVII, contudo, vigorou
nos países latino-americanos a partir do século XX, como forma de redimensionar na criação
artística e literária a realidade opressiva vivido pelos anos de ditadura.
No gênero fantástico, os textos são pautados numa realidade não lógica, ou seja, a
narrativa se desenrola num mundo irreal ou onírico, apesar de se manterem semelhanças com
39
a realidade conhecida, que pode tender para o absurdo, a inverossimilhança, situações e ações
extraordinárias.
Em meio a acontecimentos inesperados, o leitor questiona-se, entre num clima de
suspense e dúvida, desafiado a encontrar a sua própria explicação para o que está observando.
Esse desafio ao leitor é comum no conto fantástico que consiste num gênero literário,
textual e narrativo que alia o fantástico e o real; liga-se à ficção e à realidade. Nesse gênero,
os eventos inusitados, estranhos, incomuns ou aparentemente sobrenaturais surpreendem o
leitor, pois o texto faz com que o indivíduo mantenha a noção da realidade presente em todos
os momentos.
Perante os fatos narrados e o mundo das personagens, o interlocutor oscila entre a
explicação natural e a sobrenatural dos acontecimentos. Conforme a afirmação de Todorov,
“o fantástico dura apenas o tempo de uma hesitação: hesitação comum ao leitor e à
personagem, que devem decidir se o que percebem depende ou não da 'realidade', tal qual
existe na opinião comum” (TODOROV, 1975, p. 47). Apesar de, atualmente, os estudos de
Todorov terem sido relativizados, é importante a observação feita pelo autor, mesmo que a
hesitação não seja exatamente o que caracteriza o conto fantástico. Tal percepção já consiste
no exercício da preditibilidade e, por esse motivo, foi selecionado para ser objeto de leitura e
desenvolvimento desta pesquisa.
É possível afirmar que, nesse gênero, o real e o fantástico são indissociáveis; ligam-se
de tal modo que é impossível separá-los. O texto alude à existência concreta ao apresentar
fatos cotidianos, da vida comum, mantendo a noção da realidade. Porém, constrói também um
ambiente de irrealidade, marcado pelo inverossímil e pelo absurdo, ao narrar acontecimentos
incompreensíveis, inacreditáveis, surreais e que causam um amplo efeito de estranhamento
nos indivíduos.
O conto fantástico revela uma realidade não lógica, apresentada dentro de uma lógica.
O narrador expõe um acontecimento fantástico de tal maneira que o leitor imerge no mundo
das personagens e tem uma percepção ambígua dos fatos. Para Todorov, o fantástico consiste
na hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, em face de um
acontecimento aparentemente sobrenatural; a fé absoluta, assim como a incredulidade total,
levam para fora do fantástico; é a hesitação que dá vida ao conto.
Segundo o autor, no mundo que conhecemos, sem diabos, fantasmas, nem vampiros,
produz-se um acontecimento no texto que não pode ser explicado pelas leis deste mesmo
mundo familiar. O sujeito que o percebe deve optar por uma das duas soluções possíveis: ou
se trata de uma ilusão dos sentidos, fruto da imaginação, ou então o acontecimento de fato
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ocorreu, é parte integrante da realidade, mas, neste caso, esta realidade é regida por leis
desconhecidas. Assim, os contos fantásticos apresentam uma perspectiva que anula ou abala a
racionalidade e a lógica.
Felipe Furtado (2012), assim como Todorov, entende que o fantástico se configura
na manutenção da ambiguidade: enquanto o personagem hesitar entre as possibilidades
natural e sobrenatural há fantástico. A delimitação teórica feita tanto pelo português quanto
como pelo franco-búlgaro pode ser considerada estreita, não dando conta, portanto, da
vastidão de textos tidos como fantásticos.
Entretanto, Furtado também trabalha com outra noção de fantástico: o modo
fantástico – um macrogênero ou arquigênero que abarcaria todos aqueles que
esteticamente se ocupam da fantasia em sentido lato, ou seja, as narrativas maravilhosas,
gótica, fantástica, estranha, sobrenatural, absurda, real, mágica, real maravilhosa, real
animista, ficção científica, além dos romances policiais e de mistério.
Para Irene Bessière (2009), por outro lado, o fantástico seria um modo discursivo
que privilegia o trabalho com a incerteza. Não constituiria, portanto, uma categoria ou um
gênero literário, mas sim uma lógica narrativa que é tanto formal quanto temática e que,
surpreendente ou arbitrária para o leitor, reflete, sob o jogo aparente da invenção pura, as
metamorfoses culturais da razão e do imaginário.
No que tange à incerteza a autora se aproxima de Todorov, só que para ela a
incerteza pode ou não se extinguir, pois o relato fantástico permite uma multiplicidade
infinita de respostas. Mas afasta-se de Furtado no que diz respeito à consideração de um
arquigênero. Para o português, mais do que a possibilidade de hesitar entre uma
explicação natural ou sobrenatural para dado acontecimento, o modo fantástico requer a
manifestação do acontecimento metaempírico – a simples ocorrência de um fenômeno de
tal natureza que tenha relevância para o enredo já posicionaria o texto no modo fantástico.
E, para além de ambos, a autora prevê a participação do leitor e que os fatores histórico
culturais interfiram na interpretação do que é ou não fantástico – como que o leitor é
atingido por aquele texto e como o interpreta segundo o seu repertório literário.
O conceito expresso pelo termo metaempírico, aqui proposto, é o mesmo utilizado
pelo teórico português Filipe Furtado (2012), que abarca não só as manifestações
sobrenaturais, mas, ainda, outras que, não o sendo, também podem ser vistas tanto pelo
personagem como pelo leitor como improváveis ou inexplicáveis por romperem com a
41
representação da realidade, ou seja, com o senso de real conhecido pelo homem
contemporâneo.
Para a organizadora de O fantástico brasileiro, Maria Cristina Batalha (2011), o
fantástico deve ser entendido como um gênero em que o real e o irreal se combinam e
assim provocam incertezas acerca das leis de casualidades do mundo empírico do leitor.
Para ela a principal diferença de um texto fantástico para o de outros gêneros seria o
pacto de leitura estabelecido com o leitor. Por exemplo, o estranho está presente, no
romance policial e de mistério, na ficção científica, no conto de fadas como também no
fantástico. As anormalidades dos eventos nesses gêneros, com exceção ao fantástico,
ocorrem sem que haja alteração da noção de casualidade apresentada como natural. No
fantástico, por outro lado, há um rompimento com o real que o torna quase insuportável ou
extrapola os limites do possível. A dúvida acerca da veracidade dos fatos é tão forte que é
como ocorresse, nas palavras da organizadora, um “curto circuito” nas relações de causa
e efeito estabelecidas pela narrativa que mantém com a realidade extra-literária
semelhanças que sustentem os contrastes que derivam das relações de causa e efeito que
são abolidas, questionadas ou ultrapassadas no fantástico.
Nessa concepção de incerteza é que reside a escolha do gênero para se
desenvolver a pesquisa com base na estratégia metacognitiva da preditibilidade, pois ela
consiste em uma estratégia de leitura uma vez que o leitor, a partir das pistas encontradas,
elabora suas hipóteses, que são confirmadas ou não. Caso suas hipóteses se confirmem, ele
segue seu caminho, se não, ele volta e refaz o percurso na busca do sentido perdido. Assim, a
incerteza nos contos fantásticos viabiliza, com maior quantidade, a reconstrução desse
caminho.
Paes (1958) apresenta uma concepção do gênero muito próxima a de Batalha.
Retomando Ray Bradbury, explicita que numa narrativa fantástica o irreal e o real surgem
de tal maneira entretecidos que é praticamente impossível para o leitor isolar um do outro.
No entanto, no nosso entendimento, bem como no de David Roas (2012), se personagem
e leitor não percebem a presença do impossível, do fenômeno inexplicável na narrativa,
não há como inquietar-se e, portanto, hesitar entre real e irreal, não havendo, desse, modo
fantástico.
Assim, a escolha do gênero fantástico se deu pela possibilidade de propiciar aos
leitores o exercício de lidar com o imprevisível, de fazer perguntas, de maior possibilidade de
previsão a partir do sentido construído até o momento subsequente, de criar hipóteses de
leitura que podem ser tantas possíveis, pois por ser o gênero ficcional por excelência não
42
restringe os sentidos ou as expectativas do texto aos critérios de verdadeiro e falso que
norteiam nossas escolhas no mundo real, no qual respiramos como sujeitos históricos e
também sensíveis, tocados, portanto, pela força do imponderável, do estranho, do não
familiar, do desconhecido. E, como o objetivo do trabalho está centrado no exercício da
preditibilidade e não consiste em quantificar acertos das previsões, essa vastidão de
alternativas característica dos contos fantásticos não só permite maior quantidade de
previsões como também a fartura de possibilidades provoca maior esforço nesse exercício.
O autor ainda defende que toda narrativa fantástica tem sempre um mesmo
objetivo: abolir a concepção que o leitor tem acerca do real com a finalidade de inquietá-
lo com a possibilidade do impossível. Nesse caso, a hesitação de que fala Todorov (2007)
funcionaria como um mecanismo de mobilização do leitor. Esse quando diante de um
fenômeno que excede a compreensão, compartilha da hesitação e do medo do personagem
e, quando não explicitado na narrativa, é ele quem decide que solução dar ao
acontecimento inexplicável preenchendo, ou deixando em aberto, o vazio da dúvida. O
motivo de ser do fantástico, segundo o teórico, seria então a revelação de algo “que vai
transtornar a nossa concepção de realidade” (ROAS, 2014, p.114) através da provocação
de uma inquietante incerteza acerca da realidade que nos cerca; incerteza que não se
soluciona.
Nesse sentido, o conto fantástico, ao permitir o leitor dar solução ao
acontecimento inexplicável, se torna terreno fértil de previsões e expectativas visto que as
possibilidades são inúmeras, mas não infinitas, já que o fantástico, ainda que transforme a
concepção de realidade, se inspira nos acontecimentos do mundo real, da forma como se
nos apresenta e como o entendemos. Assim, a escolha de uma possibilidade entre muitas
não pode ser aleatória, mas precisa fazer um elo coerente entre as sequências de
informações e a realidade do próprio texto.
Tal inquietude se torna elemento atrativo de leitura e é alvo de especial interesse
do público jovem – o que o contribuiu para a escolha do gênero a ser trabalhado nessa
pesquisa, bem como a presença da incerteza que favorece maior esforço no exercício da
preditibilidade, já que as hipóteses criadas durante a leitura terão que ser refeitas em
maior número de vezes, pois a narrativa fantástica distancia o leitor de uma leitura óbvia
uma vez que é carregada do improvável ou impossível.
Dessa forma, Tavares apresenta uma interessante definição do gênero. Segundo ele
o fantástico surge durante momentos de estresse e tensão. Nesses momentos, teríamos a
sensação de ver o improvável, o impossível. Assim, o fantástico emerge do rompimento da
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realidade estável, quando “começam a acontecer coisas que não podiam ter acontecido”
(TAVARES, 2013, p. 13) ou que são impossíveis de acontecer. O racional e o irracional se
confundem como que amalgamados em um elemento único. Nesse sentido estaria para
além do onírico, da imaginação e da alucinação.
É importante ressaltar que o termo fantástico no século XIX e início do século
XX, na maioria das vezes, foi aplicado a qualquer narrativa que não fosse realista, outras
vezes foi usado como sinônimo de excêntrico, mirabolante e exagerado por isso, ter sido
o termo em alguns autores, tomado como equivalente a fantasia e vice e versa. Isso
porque antes dos estudos de Todorov, na década de 70, “a crítica designava como
fantástica toda narrativa de fatos que não pertenciam ao mundo real, contrariando a
realidade que nos cerca” (BATALHA, 2011, p.13), caracterização bastante abrangente,
que englobava desde o onírico ao sobrenatural, e assim o que não fosse realista era
enquadrado na condição de fantástico.
O termo foi usado, e ainda é, para designar as mais diferentes manifestações
literárias, às vezes de gêneros não afiliados entre si, como apontado na introdução deste
projeto, dificuldade que remonta às diferentes concepções filosóficas do final do século
XVIII que atribuíram ao termo diversos sentidos. Sem contar os problemas relacionados
à tradução do termo de uma para outra língua europeia. Nesse sentido, Cristina Batalha
(2012) argumenta que os românticos franceses, ao se apropriarem do termo, tentaram
desvinculá-lo do gótico. O termo “fantástico”, para os franceses, portanto, estaria
associado à E.T.A. Hoffmann, embora não tenha sido ele o criador do gênero. Cabe
lembrar que os franceses foram bastante influenciados por Hoffmann em sua produção
fantástica atrelada ao romantismo. Posteriormente a grande influência entre os franceses
teria sido Edgar Allan Poe. Ora, autores que também exerceram influência entre nós! É
perceptível, por exemplo, traços de E.T.A. Hoffmann em contos de Fagundes Varela,
Machado de Assis e Lygia Fagundes Telles, assim como se encontra traços de Edgar Allan
Poe em Álvares de Azevedo e Franklin Távora.
Fortemente influenciados por Edgar Allan Poe, os escritores franceses do gênero do
último quarto do século XIX produziram narrativas cuja necessidade de resolver o
fantástico e a evocação psicológica do elemento fantástico por meio da sugestão são
bastante evidentes – características que os distanciam do fantástico clássico como
considera Todorov. O que também parece ocorrer em grande parte dos contos nacionais
considerados como de cunho fantástico, principalmente aqueles do mesmo período.
44
2 METODOLOGIA
2.1 O contexto de aplicação da pesquisa
Estando o texto em permanente elaboração em virtude das múltiplas recepções e dos
mais variados leitores, ler não seria uma prática social? Há característica mais determinante
para isso que a interação entre as pessoas? Um ser humano quando lê um texto, mesmo que
faça sozinho, não está interagindo com sua própria história e com a história do texto que é,
por sua vez, composta por tantas outras pessoas? Ao ler, homens e mulheres não interagem
entre si, com a história, com o mundo dos seres e das coisas?
Acertadamente pode-se responder sim a essas indagações. A leitura fora da escola
também consiste em uma prática social, ela supre necessidades, provoca mudanças de
comportamento, possibilita o pensar e agir, assegura direitos sociais. E não preciso nos
limitarmos, como professores de língua portuguesa, a textos acadêmicos, nos reportamos a
receitas de bolo, às mensagens do whatsapp, à bula de um remédio, à charge de um jornal, à
placa de sinalização, enfim, a tudo que faz parte do cotidiano desses alunos. Lê-se
naturalmente, sem nenhuma imposição; lê-se para entender ou resolver os desafios da vida.
Uma vez que em todos esses espaços de leitura há prática social, o que falta à escola
para conceber e realizar isso?
Para que a instituição escolar cumpra com sua missão de comunicar a leitura como prática social, parece imprescindível uma vez mais atenuar a linha divisória que separa as funções dos participantes na situação didática. Realmente para comunicar às crianças os comportamentos que são típicos do leitor, é necessário que o professor os encarne na sala de aula, que proporcione a oportunidade a seus alunos de participar em atos de leitura que ele mesmo está realizando, que trave com eles uma relação ‘de leitor para leitor‘. (LERNER, 2002, p. 95)
É necessário, para a escola, que seus alunos se tornem sujeitos que atribuam sentido ao
que está escrito, que levantem hipóteses, que relacionem o lido ao vivenciado, que
estabeleçam significados aos conhecimentos, que intervenham em seus espaços e que se
tornem sujeitos críticos e autônomos.
Para o enfrentamento a essa necessidade escolar, nesta dissertação, aposta-se que
novas ações didáticas deverão ser implantadas. Penso que, inicialmente, deva-se dialogar
45
sobre a condição da leitura na escola, analisar dados e construir sentido para cada informação
e empreender esforços cognitivos para intervir onde e como for preciso.
Cabe destacar que não será a edificação de concreto que fará a mudança. Mas,
partindo da leitura crítica de minha sala de aula, irei planejar atividades que possam propiciar
condições para que os alunos possam construir sentidos através da interlocução entre o leitor e
o autor nas mais variadas formas de materialização do texto, como fazem os leitores
competentes cotidianamente.
2.2 O contexto escolar
A pesquisa ocorrerá da minha própria realidade, o chão de minha sala de aula onde
atuo, uma instituição estadual de ensino localizada no município de Bom Jardim, no interior
do estado do Rio de Janeiro. Esse colégio atende adolescentes, jovens e adultos e apresenta
duas modalidades de educação (Educação Básica e Educação de Jovens e Adultos) e dois
níveis de ensino (Ensino Fundamental e o Ensino Médio).
No ano da realização desse estudo (2016), o colégio apresenta 1.325 alunos
matriculados, distribuídos em três turnos, sendo 20 turmas do Ensino Fundamental, 3 turmas
da Educação de Jovens e Adultos e 8 turmas do Ensino Médio Regular.
A estrutura física da instituição é bem satisfatória e adequada, com salas de aula
amplas, sanitários, biblioteca bem estruturada, laboratório de informática com conexão banda
larga, sala multifuncional, auditório/teatro, quadra esportiva, área verde e laboratório de
ciências, refeitório, ampla estrutura administrativa e pedagógica. Com relação aos recursos
humanos, o colégio apresenta dois gestores, duas coordenadoras pedagógicas, três
articuladores de área e sessenta professores, do total doze são licenciados em Língua
Portuguesa, sendo todos pós-graduados com especialização.
Apesar da estrutura adequada, ainda não possuímos resultados satisfatórios. O índice
de reprovação e abandono é alto, o desempenho do alunado em avaliações internas e externas
não corresponde ao previsto para a série. Com relação ao desempenho na Prova Brasil em
2013, por exemplo, no que se refere a proficiência em Língua Portuguesa, 10% dos alunos do
9º ano (da escola em estudo) apresentaram resultado insatisfatório no desempenho em leitura,
enquanto outros 46% apresentaram nível básico de leitura, abaixo dos níveis proficiente e
avançado.
46
Como ilustra a tabela a seguir, apesar dos alunos terem alcançado a meta escolar,
ainda estão muito abaixo do esperado como meta nacional.
Gráfico 1 - Índice de Desenvolvimento da Educação Básica
Fonte: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – INEP,
2016.
Além disso, nos anos de 2014 e 2015, o resultado das avaliações internas dos alunos
do 9° ano, da referida instituição, em Língua Portuguesa, demonstrou um baixo desempenho.
O ano de 2014 registrou o maior índice em reprovação, ou seja, 30% não atingiu a média final
de 5 (cinco) pontos.
Na outra extremidade do processo há outro dado que contribui para o baixo
rendimento – o planejamento. Os planos de curso da disciplina de Língua Portuguesa do
Ensino Fundamental demonstram que há uma preocupação intensa em desenvolver conteúdos
voltados para a reprodução de conceitos gramaticais presos à concepção de língua como um
estático conjunto de regras a ser assimilado - primeiro componente que pode contribuir para o
baixo desempenho: a incompatibilidade entre as concepções teóricas das avaliações externas e
a da escola. Para a formação do leitor autônomo e consequentemente alcançar um melhor
desempenho nas avaliações, acredito, como afirma Antunes, que os programas de língua
deveriam ser:
Inspirados pela procura do que uma pessoa precisa saber para atuar socialmente com eficácia. Os pontos da gramática ou do léxico não viriam à sala de aula simplesmente porque estão no programa nem viriam na ordem em que lá estão. Viriam por exigência do que os alunos precisam ir aprendendo, para serem
47
comunicativamente competentes e, assim, construírem e interpretarem os diferentes gêneros, adequada e relevantemente (ANTUNES, 2009, p. 39).
As dificuldades apresentadas pelos alunos demonstram que a leitura está sendo
abordada, por parte de muitos professores de língua portuguesa, como recurso para atividades
de interpretação, não existindo o menor esboço da realização de atividades para o
desenvolvimento de habilidades leitoras.
É importante situar o ambiente de aprendizagem, mas ao se tratar de leitura como
prática social é muito relevante que o sujeito/aluno seja conhecido em seus aspectos sociais.
2.3 Os sujeitos da pesquisa
Atuo na turma do 9° ano do turno matutino e tenho ao todo 23 alunos.
Para traçar o perfil dos sujeitos envolvidos, fiz uso da observação in loco e realizei a
coleta de informação secretaria da escola. Para a descrição dos sujeitos no que tange à faixa
etária e o gênero os resultados obtidos foram: 60% são do gênero feminino e 40%, masculino.
Com relação à idade dos sujeitos envolvidos, obtive os seguintes dados:
Gráfico 2 – Faixa etária dos alunos do colégio em estudo
Fonte: Secretaria do colégio.
Os registros acima demonstram que há um alto índice para a distorção idade/série.
Essa condição pode ser proveniente de episódios de interrupção ou fracasso no fluxo escolar,
ou seja, a repetência, a entrada tardia na escola, abandono e ou retorno do aluno evadido.
Com relação ao percurso escolar, constatei através de informações colhidas na
secretaria da escola e questionando os próprios alunos, que maioria dos nossos alunos (90%)
sempre estudou em escola pública. Alguns alunos informaram que estudaram em instituições
48
de educação infantil antes do ingresso no Ensino Fundamental, configurando um índice de
40%. Para as informações sobre quantas vezes o aluno vivenciou a reprovação escolar, ainda
não obtive os dados. Para alcançar esses dados, a direção da escola me disponibilizou o
acesso aos históricos escolares dos alunos e, com auxílio da secretária escolar, usei o tempo
do contraturno, durante uma hora, na coleta dos dados e, posteriormente, transformei na
estatística.
No que diz respeito ao comportamento na escola, observo que os alunos são
interativos, gostam de conversar durante as aulas, passeiam pelos corredores em busca de
colegas para resenhar (falar excessivamente de algum deslize cometido por alguém) – termo
usado pelos alunos para classificarem grandes textos orais, por considerarem a resenha um
grande texto escrito, ou seja, naturalmente os alunos fazem analogia entre as duas
modalidades usando uma característica de um gênero textual para classificarem uma atitude.
Com isso, falam sobre futebol, namoro, as festas de final de semana, além disso, se
comunicam por meio de redes sociais (Whats App e Facebook).
Para eles as atividades escolares não configuram uma prioridade. Não possuem planos
profissionais nem almejam cursar o Ensino Superior. A minoria realiza a tarefa de casa, em
classe, participam ativamente de atividades orais, mas apresentam resistência para realizarem
registros escritos. Outro fator interessante de destaque é que, em conversa informal, eles
declararam que não gostam de ler.
Confirmaram ainda que não apresentam apreço por nenhum livro didático, eles
afirmam que são pesados e cansativos. Acrescentaram que não gostam de ler poesia.
Ao serem questionados sobre o suporte mais utilizado para realizar leitura o resultado
foi: celular, seguido de computador; a minoria recorre a livros e revistas, ou seja, dos 23
alunos, apenas 4 recorrem ao material impresso.
Notei, assim, que os resultados das avaliações e os dados da Prova Brasil adicionados
a nossa percepção cotidiana refletiam um baixo desempenho desses alunos no que diz respeito
à competência leitora. Optei por desenvolver uma proposta de intervenção com abordagem
cognitiva para reverter a situação desses alunos.
Para o desenvolvimento dessa pesquisa, a opção é de uma abordagem qualitativa, uma
vez que não se busca enumerar e ou mesmo medir fenômenos, mas almejo compreender os
fenômenos sob a ótica dos sujeitos envolvidos e propor soluções viáveis para um problema.
Além disso, a pesquisa em educação apoia-se na historicidade, em crenças e valores dos
sujeitos envolvidos, o que requer uma abordagem qualitativa.
49
Nessa perspectiva, o estudo de um fenômeno considera a relação existente entre o
universo real e o sujeito, sendo assim não há métodos exclusivos. O que ocorre é a
interpretação e atribuição de significados a este fenômeno. Neste trabalho, realizarei a
observação participativa, ou seja, na condição de pesquisadora que observa e interage com o
objeto de estudo, através do diálogo, seja por meio de entrevistas ou mesmo conversa, entre
outras intervenções, uma vez que se trata de uma investigação descritiva.
Há um planejamento do processo de pesquisa e também procedimentos. Ocorre um
rompimento com o modelo positivista de estudo.
Neste trabalho, priorizarei as atitudes de observar, conhecer, compreender e explicar o
processo em um processo dialógico. A coleta de dados acontecerá em espaço real e estes
oriundos do próprio ambiente natural. Serão dados suscitados e resultantes da interação, não
mensuráveis, terei também que realizar a quantificação de alguns elementos.
Tendo como principal intuito neste trabalho o desejo de colaborar no processo de
formação do leitor crítico e autonomia dos alunos do ensino fundamental da escola e que atuo,
farei uso da metodologia da pesquisa-ação participativa para construir e investigar a eficiência
de uma intervenção pedagógica. Escolho a pesquisa-ação, pois como declara Bagno (2007,
p.18) ela é uma ―investigação feita com o objetivo expresso de obter conhecimento
específico e estruturado sobre um assunto preciso.
Apresentar uma definição única e completa para a pesquisa-ação não é algo fácil. A
princípio pela própria natureza, ela é simples, cotidiana, mas ao mesmo tempo é complexa,
pois é tão diferenciada em sua aplicação. De modo geral, afirmo que a pesquisa-ação
apresenta uma metodologia comum às demais pesquisas, pois envolve os processos de
diagnóstico, de participação, produção e experimentação.
Para este trabalho acredito que a definição mais apropriada é a apresentada por
Thiollent:
A pesquisa-ação é um tipo de pesquisa social com base empírica que é concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo e no qual os pesquisadores e os participantes representativos da situação ou do problema estão envolvidos de modo cooperativo ou participativo (THIOLLENT, 2000, p.14).
Na pesquisa-ação, o delineamento do problema estabelece-se pela necessidade de
mudar um aspecto do ambiente, algo que incomoda. Para o presente estudo, considero o
desempenho dos alunos em leitura, nas séries finais do ensino fundamental, como um
50
problema, uma vez que tal desempenho impacta na autonomia e criticidade dos alunos
enquanto sujeitos sociais.
A pesquisa-ação consegue atrelar a teoria à prática, como também consegue criticar o
já estabelecido e simultaneamente favorece a construção de novos conhecimentos. Para a
realização da pesquisa, estabeleço o objetivo geral - investigar a eficiência da intervenção
pedagógica através da estratégia metacognitiva da preditibilidade na formação do leitor crítico
e autônomo.
Na busca da compreensão, serão realizados estudos e leituras que se configuraram
como a pesquisa preliminar. Diante das informações preliminares, estabeleço uma hipótese: a
aplicação de estratégias metacognitivas de leitura em textos argumentativos do gênero conto
fantástico poderia contribuir para a formação do leitor.
Como explica Creswell (2010), fazendo uso de método qualitativo, o pesquisador pode
utilizar múltiplas formas de coletas de dados. Para compreender melhor a situação dos alunos,
no que tange à leitura, escolho fazer uso de memorial de leitura, atividades de leitura
compartilhada com intervenções através de perguntas que ativam a preditibilidade, entrevista
e exercícios de compreensão leitora de textos do gênero selecionado.
2.4 Instrumentos da pesquisa
Memorial
No âmbito educacional contemporâneo, é necessário que práticas escolares sejam
alicerçadas em pesquisas que venham ao encontro das demandas sociais, mas que também
reconheçam a importância de conhecer os alunos enquanto sujeitos, com suas subjetividades,
sua historicidade, anseios, fragilidades e sua leitura.
Compreender sujeitos é conhecer também as relações sociais existentes e estabelecidas
em sua trajetória, os outros sujeitos, as interações e o conjunto de conceitos e crenças que os
compuseram. Não se pode esquecer que o leitor é um ser histórico. Com essas preocupações,
entendo que para a produção desta pesquisa é necessário inicialmente fazer uso do memorial.
51
O memorial de leitura é compreendido, nesta pesquisa, como um gênero discursivo
que corresponde à escrita das recordações do processo de aquisição da leitura no ambiente
escolar e os fatos inolvidáveis relacionados ao tema.
O gênero memorial neste trabalho não se configura como um mero recontar, é um
instrumento investigativo que propicia o desvelar de uma construção social que vai além do
âmbito individual, nasce do resgate das vivências pessoais, mas por seu caráter dialógico,
possibilita perceber as nuances das relações sociais dos contextos históricos, culturais,
ideológicos e emocionais dos sujeitos da pesquisa.
Para a escrita deste memorial, apresentarei meu próprio memorial de leitura pra que os
alunos se sintam motivados a fazerem sua exposição do primeiro contato com os livros, do
processo de aprendizagem da leitura de textos escritos, situações e recordações de prática de
leitura em sua casa, das formas de ler e os suportes preferidos, sua autoavaliação sobre a
própria leitura, as dificuldades, as sensações e sentimentos vivenciados durante a leitura.
Contudo, não há como definir quais práticas pedagógicas atendem adequadamente à
diversidade de objetivos e situações de leituras. Considero que o ponto de partida é a escuta, o
olhar atento, o conhecer a história dos alunos enquanto leitores e observar desempenho deles
em contextos de interpretação textual.
A partir desses dados buscarei delimitar uma proposta de intervenção pedagógica com
o objetivo de contribuir na formação do leitor crítico e autônomo.
2.5 Construção da proposta
De forma a compreender melhor como atividades que se utilizam da preditibilidade
auxiliam nas propostas pedagógicas de ensino da leitura a preditibilidade é uma estratégia de
leitura importante que auxilia na compreensão e que pode oferecer ao professor pistas das
dificuldades enfrentadas por seus alunos. A parada, ao resolver os exercícios, força o sujeito a
refletir sobre o que está lendo e, ao escolher uma opção para completar o texto, ele faz uma
aposta baseada no seu conhecimento prévio, ativando um ou vários níveis de constituição da
língua que o auxiliarão nessa tarefa.
A proposta de intervenção consiste no ensino explícito e no exercício da
preditibilidade ao fazer perguntas sobre o texto durante a leitura dos contos fantásticos
trabalhados e incentivar o aluno a fazer o mesmo, respondendo a essas perguntas para
52
verificar se sua escolha foi equivocada. Assim, tanto o aluno quanto eu poderemos observar
em que ponto não houve compreensão e qual a dificuldade que o aluno apresentou, podendo,
então auxiliá-lo.
Esse exercício será realizado em diferentes textos com o objetivo de trazer benefícios
para o leitor/aluno, pois ele, provavelmente, passará a ativar cada vez mais o seu
conhecimento prévio de forma a compreender os textos que lê.
Esse exercício testará a crença de que um trabalho pedagógico a partir da
preditibilidade propiciará o desenvolvimento cognitivo dos alunos, auxiliando-os a atingir a
leitura proficiente.
A programação de conteúdos por bimestre para o nono ano seguirá o Currículo
Mínimo do Estado do Rio de Janeiro e, no segundo bimestre, contemplará o gênero
selecionado para a pesquisa, viabilizando assim, estudo, questões sobre Contos e aplicação da
proposta de intervenção desta pesquisa, conforme mostram as tabelas de divisão de gêneros e
conteúdos por bimestre:
Figura 1 - Currículo Mínimo de Língua Portuguesa da Secretaria Estadual de
Educação
54
Fonte: Secretaria de Estado de Educação, 2012.
Considerando as reflexões de Freire (1996) de que mais do que constatar é preciso
intervir, esta pesquisa partiu dos dados anteriores para pensar a leitura, entendê-la em sua
amplitude, pensando os processos mentais nela envolvidos, para, a partir daí, propor o que é
considerado de fundamental importância para promover uma leitura compreensiva por meio
do ensino de estratégias metacognitivas.
A hipótese lançada, nesta pesquisa que compõe o objetivo principal da dissertação de
mestrado, foi a de que é possível, através do ensino dessas estratégias, que o aprendiz consiga
não só ler e compreender melhor o que lê, mas também utilizar tais estratégias como
ferramentas de aprendizagem, estendendo o seu uso para outras áreas de estudo.
Partiu-se, desse modo, por pensar em todas as variáveis envolvidas na abordagem
metacognitiva de ensino de leitura. Nesse sentido, algumas perguntas se tornaram
direcionadoras para se pensar a intervenção: como os alunos costumam realizar a leitura? Eles
têm conhecimento e costumam utilizar caminhos favorecedores para compreender o texto?
Como trazer essa abordagem de ensino para a prática cotidiana?
Assim, a partir dessas reflexões, foram construídas as etapas da proposta de
intervenção, amparadas nos constructos conceituais e teóricos apresentados, que serviram de
direcionadores do planejamento e das ações.
Como dito, foi tomada, como público da intervenção, uma turma de 9º ano do Ensino
Fundamental, composta de 23 alunos, que representam o total de alunos desse período de
formação matriculados na referida escola. Optou-se por essa turma porque, além de ser a
55
turma para a qual leciono, acredito que é coerente e que é preciso mobilizar energia e
trabalho para quem de fato precisa. São eles que, de certo modo, acabam sendo preteridos,
não recebendo atenção e cuidado, em função de apresentarem maiores deficiências e
dificuldades do que os outros, já que estão no último ano do Ensino Fundamental e
condensaram até esse momento suas dúvidas e necessidades. Em detrimento disso, se
intimidam, não participam em sala de aula, sentem-se inseguros para falar, existindo a
possibilidade de se tornarem desinteressados, com baixa autoestima, além de indisciplinados.
São aqueles, portanto, deixados de lado em função das dificuldades que apresentam, e
que representam aqueles que compõem os níveis menores da escala de proficiência, abaixo do
desejado, nos resultados das avaliações externas.
Esses jovens, meninos e meninas adolescentes, de famílias de classe média baixa,
cujos pais possuem baixo nível de escolaridade, conforme observação na própria comunidade
a qual atende, apresentam perfis comuns aos jovens dessa idade e dos contextos atuais
escolares. Na maioria das vezes se mostram desinteressados e sem vontade de assumirem
muito compromisso. Características, portanto, que representam um problema a mais a ser
contornado, de modo que pensar com rigor nas etapas e atividade de trabalho se tornou
fundamental para que se conseguisse engajar os alunos nas atividades e assim alcançar o
intento da proposta.
Ponderando sobre essas observações, o trabalho interventivo foi planejado para ser
desenvolvido de forma a atender a objetivos específicos, conforme as etapas e atividades
definidas.
Desse modo, a presente pesquisa foi dividida em três grandes etapas: I) delimitação do
tema e pesquisa bibliográfica para definir o aparato teórico que direcionaria a intervenção; II)
elaboração e execução do projeto de intervenção educacional; III) análise e interpretação dos
dados.
A etapa I consistiu na seleção dos textos a serem trabalhados com os alunos, de acordo
com a escolha já justificada de trabalho com o gênero Contos Fantásticos. Com isso, optei por
textos com temas que exploram áreas especificas do gênero – o mítico, a fantasmagoria, o
eixo do mal, o inconsciente, a existência de uma ordem oculta, a ciência gótica, o obscuro,
pois são temas que os alunos demonstram interesse e apreço e, assim, busquei motivá-los
através de leitura e atividades com textos de seus interesses.
A etapa II correspondeu à parte prática da intervenção. Nesse sentido, avaliando que o
sucesso do ensino de estratégias envolve muito mais do que as estratégias em si, é preciso que
se cuide de aspectos que se mostram determinantes. Assim, neste trabalho, foram
56
consideradas sete orientações propostas por Gromley (2005) para o ensino das estratégias
metacognitivas. São elas:
1. Esclarecer aos alunos sobre a importância do uso das estratégias para melhorar a
aprendizagem;
2. Modelar essas estratégias informando como e quando elas podem e devem ser
usadas;
3. Praticar o uso das estratégias;
4. Favorecer os alunos, enquanto aprendem a usar as estratégias, através do suporte
(sccafolding)2 do professor;
5. Permitir aos alunos falarem sobre o que estão entendendo de sua leitura;
6. Dar feedback aos alunos quanto às suas considerações;
7. Refletir, após o término da atividade, sobre a utilidade do uso das estratégias
utilizadas por eles, reforçando sobre a importância em utilizá-las.
Para a organização e progressão do nível de dificuldade das atividades, os trabalhos
foram divididos em três momentos, de acordo com os objetivos de cada grupo de atividades.
Essas divisão foi inspirada na proposta de Stemberg (2000) que ressalta a respeito da
metacognição sobre o fato de raciocínio envolver diferentes etapas. Contudo, as
nomenclaturas foram inspiradas em Bruner (2001) ao mencionar objetivos das etapas como
pensar sobre estar pensando. Segue a definição desses momentos.
1. Motivar
Este momento teve como intento a motivação dos alunos e o envolvimento na
proposta de intervenção a partir do diagnóstico elaborado anteriormente. Para esse fim, foram
definidos três trabalhos que permitiram aos alunos reflexões importantes. O primeiro foi
pensado de modo a favorecer aos alunos, através da proposta de conversa informal, reflexões
sobre o sentido de leitura, sobre as lembranças e a construção de memorial, de suas
experiências de leitura e a importância de ler de forma compreensiva. O segundo permitiu aos
alunos pensar sobre a maneira adequada de estudar, evitando comportamentos que não
favorecem a aprendizagem com entendimento. No último momento houve a preocupação de
habituar os alunos com o gênero. Para isso, foi trazido o conto fantástico Solfieri, de Álvares
2 Sccafolding: ajuda, suporte que ancora o desenvolvimento do sujeito em suas atividades cognitivas.
57
de Azevedo para leitura deleite e o mesmo foi também assistido na versão de cinema para
apreciação do gênero.
2. Pensar sobre o pensar
Este momento foi reservado à reflexão sobre comportamentos exigidos para a
compreensão e aprendizagem, dando ênfase a importância da atenção e dos comportamentos
que definem o modo automático e o modo mais consciente de agir. Tais reflexões partiram de
ações comuns cotidianas para alcançar a leitura, avaliando os modos automáticos e
conscientes de abordá-la. Em seguida, foi possível aos alunos refletirem sobre o sentido de
estratégia e pensarem as estratégias que costumam usar nas leituras que realizam. Por fim, foi
apresentada a estratégia metacognitiva que seria ensinada: a preditibilidade. Este módulo teve
como objetivo, inicialmente, permitir aos alunos o exercício do uso das estratégias em uma
atividade colaborativa, em que pude, ao mesmo tempo, orientar o uso da preditibilidade,
assim como ter uma prévia das dificuldades que os alunos encontrariam. Na sequência,
modelei o uso dessa estratégia, tendo a contribuição dos alunos nesta ação e, ao final das
atividades, os alunos puderam desenvolver a preditibilidade de forma autônoma.
3.Produzir e consolidar
Este módulo foi destinado a uma nova modelagem das estratégias metacognitivas,
com enfoque na produção da preditibilidade, considerando o uso dos conhecimentos
repassados aos alunos para orientar esse trabalho e, a partir dessa representação, a produção
autônoma de preditibilidade durante a leitura . O propósito desse momento foi o de permitir
aos alunos reavaliarem o uso das estratégias na tentativa de consolidar os direcionamentos
necessários para que elas pudessem ser usadas com eficiência e independência, através da
leitura e do exercício da preditibilidade do conto As formigas, de Lygia Fagundes Telles e,
assim, os alunos puderam exercitar o que se aprendeu, para trabalharem de forma mais
autônoma no uso dessa estratégia.
58
3 PERCURSO DA PESQUISA E RESULTADOS
3.1 O diagnóstico
Através da leitura dos memoriais, pude perceber de que maneira ocorreu a
aprendizagem da leitura dos sujeitos da pesquisa, quais foram as facilidades, as dificuldades e
sentimentos que vivenciaram no processo de aprendizagem da leitura e qual (is) relação (ões)
estes sujeitos estabeleceram entre a leitura e a vida cotidiana (dentro e fora da escola).
Para conhecer os sujeitos da pesquisa em seu percurso de leitura, analisei o memorial
de cada aluno (sujeito) das duas turmas de 9° ano. Realizei uma reflexão sobre a forma que
ocorreu a aprendizagem da leitura: quais as facilidades, as dificuldades e sentimentos que os
alunos encontravam no processo e as relação (ões) que eles estabelecem entre a aprendizagem
da leitura e a vida cotidiana (dentro e fora da escola).
Consciente de que os alunos apresentavam dificuldade em escrever, pensava, a
princípio, que a produção do memorial poderia inibir a naturalidade, a expressão espontânea
dos relatos. Para estimular e exemplificar essa produção trouxe a leitura do meu próprio
memorial e depois sugeri que os alunos produzissem os seus. Para isso, informei aos alunos
que não se tratava de um texto para nota, mas de uma narrativa da própria relação com a
leitura e pedi escrevessem livremente e com sinceridade.
A finalidade da produção de memórias do percurso leitor não foi, naquele momento,
analisar os aspectos da escrita, mas o de conhecer episódios que marcaram a trajetória de
leitura de aluno. Buscava conhecer a forma de aprendizagem da leitura, saber como foram os
primeiros contatos e os sentimentos vivenciados com a leitura são elementos essenciais para
conhecer o sujeito leitor.
Partindo da forma de aprendizagem, foi possível notar que todos os alunos relataram
aprender a ler por meio da soletração. Eles falaram que esse processo da leitura ocorreu
através do ensino das letras, depois juntavam letras e aprenderam as sílabas, conhecendo as
sílabas, aprenderam ler as palavras.
Para resguardar a imagem dos sujeitos da pesquisa e garantir sigilo absoluto das
informações por eles cedidas, comunicamos que cada aluno participante do estudo será
representado por uma sigla, composta pela vogal A (pertinente a aluno ou aluna), seguido de
um numeral de distinção.
59
Assim, percebi que, nos memoriais, é muito presente a descrição do ato de soletrar no
ensino da leitura e na aprendizagem da leitura. A1 afirma que:
Para os alunos, a leitura é vista como um processo mágico de descobrir, de decifrar as
palavras. O relato de A2 deixou explícito o seu exercício de soletrar, e serviu para
exemplificar o que estava presente nos demais textos.
Todavia, cabe destacar que mesmo sendo compreendido como mágico, para muitos, o
processo de aprendizagem de leitura foi marcado por dificuldades, aulas de reforço. Dentre os
sujeitos que relataram dificuldades, podemos apontar exemplo retirado do corpus deste
estudo. Notei que o sentimento de algo instantâneo, imediato não fica evidenciado. Ler requer
esforço, prática.
60
O que mais me chamou a atenção foi o relato de violência. A leitura foi ensinada não
apenas como uma decodificação, mas como uma obrigação. Em casa se estudava a leitura,
pois a professora no dia seguinte iria tomar a leitura, caso alguém não soubesse, seria
rigorosamente punido. Tem-se isso muito bem exemplificado no relato de A3 e no de A4:
61
Em relação às facilidades, às dificuldades e sentimentos vivenciados no processo de
aprendizagem da leitura, os exemplos evidenciam que a falta de amorosidade com o aluno, a
imposição da leitura como processo mecânico e um ensino de leitura baseado na mera
decodificação podem trazer como resultado a rejeição pela leitura ou mesmo de sentimento de
não ser capaz de ler bem.
Notei, ainda, que para os professores destes alunos, a boa leitura consistia em ler com
a entonação adequada à pontuação e em voz alta, ou seja, o aluno seria considerado bom leitor
se desenvolvesse tais comportamentos. Desta forma, muitos alunos, em seus relatos,
expressam que ser bom leitor é ler em voz alta, sem gaguejar e ―com pontuação. O não
conseguir ler corretamente em voz alta é sinalizado como algo ruim para muitos, como é bem
exemplificado no registro de A5:
Os relatos mostram que os alunos apresentam uma valorização da leitura, mesmo ao
fazerem referência a aspectos negativos de sua aprendizagem (constrangimento, agressão
física), expressam entusiasmo ao afirmarem que conseguiram ler em voz alta. A leitura em
dias atuais, ainda representa, para muitos, um poder especial que dá ao indivíduo status
privilegiado.
Cabe salientar que ensinar o mecanismo da escrita alfabética é importante, é
necessário conhecer as relações entre sons da fala (fonemas) e as letras da escrita (grafemas).
Todavia, deter o aluno na decodificação não é o suficiente. Como afirma Rojo (2009), ocorre
que essas relações não são tão simples quanto as cartilhas fazem parecer e professores
perpetuam. Se a leitura não envolvesse a construção de sentido, mesmo assim, faltaria aos
alunos a consciência fonológica.
Nos textos, notei registros de grande ansiedade e medo no momento da leitura. Ler
em público, até mesmo para um leitor maduro, causa certo incômodo,
Percebi a insegurança vivenciada por um leitor em formação. Como o estresse
vivenciado nos registro A6:
62
Além do estresse causado por ler diante de um público, alguns alunos descrevem que
às vezes o momento da leitura era de avaliação, os alunos recebiam nota ou pontos.
Lembramos que, nos PCNs, a orientação dada para o ensino de leitura nas séries iniciais do
Ensino Fundamental é para o desenvolver o gosto pela leitura, ler na perspectiva de fruição.
No trecho do memorial de A7, tem-se o exemplo do sentimento de muitos alunos com relação
ao ensino de leitura:
Diante dos registros presentes nos memoriais, constatei que os alunos afirmam gostar
de ler, mas apresentam dificuldades e que as atividades de leitura realizadas na escola, ao
longo dos anos do percurso educativo, eram apenas ler em voz alta para a turma. Observei
que, entre sujeitos da pesquisa, existem muitos decodificadores e assim são porque assim
foram ensinados.
63
A concepção de leitura como decodificação é predominante, isso não só com os
sujeitos da pesquisa, Rojo, em seus estudos sobre letramentos, aponta a dimensão e
perpetuação disso no ambiente escolar brasileiro. Ela acrescenta que:
Se perguntarmos a nossos alunos o que é ler na escola, eles possivelmente responderão que é ler em voz alta, sozinho ou em jogral (para avaliação da fluência entendida como compreensão) e, em seguida, responder um questionário onde deve localizar e copiar informações do texto (para avaliação de compreensão). Ou seja, somente poucas e as mais básicas das capacidades leitoras têm sido ensinadas, avaliadas e cobradas pela escola. Todas as outras são quase ignoradas (ROJO, 2009, p 79)
A autonomia de escolher leituras e formas de ler não foi vista em nenhum momento.
A dependência é presente até mesmo na adjetivação de si mesmo como leitor. Em todos os
registros, os alunos só se afirmam bons leitores por meio da fala de outros sujeitos. Isso
reforça que a leitura foi ensina e aprendida como ato mecânico.
Nos relatos, vi a hierarquização imposta pela aquisição de leitura: Somente o professor
é o ser capaz de classificar o nível de leitura, uma vez que ele é o leitor proficiente. Para todos
os sujeitos é o professor quem define o bom leitor e na maioria das vezes, por meio da
premiação. Como é evidenciado no memorial de A8:
64
Foi possível entender, por meio da análise dos memoriais, que as dificuldades e ou
facilidades, que as boas ou más recordações, aspectos positivos ou negativos acerca da leitura
dos sujeitos em estudo, estão diretamente relacionadas à metodologia de ensino de leitura
empregada pelas professoras ao longo do percurso escolar.
Mesmo sendo a escola a instituição legitimada para o ensino da leitura, nota-se que,
em alguns casos, ocorreu a participação da família no percurso de sua aprendizagem. Muitos
relataram que quando pequenos viam, em sua casa, adultos lendo. A maioria dos sujeitos
declarou ter visto a figura feminina lendo receitas de bolos (sendo a mãe ou avó), outro
declarou ter visto o pai lendo jornal e muitos disseram ver os irmãos lendo a atividade escolar.
Cabe destacar que a grande maioria cita a Bíblia como um livro presente no processo
de aprendizagem da leitura ou mesmo como livro preferido. O que atesta que a leitura é uma
prática social, o ensino é que a escolarizou. Entendeu-se que outra instituição social, a igreja,
tem influenciado no comportamento dos indivíduos enquanto leitores, como exemplificado no
registro de A9:
Ainda sobre os registros acima, nota-se que mesmo a escola perpetuando uma leitura
centrada na decodificação, seres humanos buscam a interação. A9 descreve uma situação de
leitura como prática social, ao descrever que queria ler tudo que via, as placas, destinos dos
ônibus, letreiros. Isso corrobora com a concepção de leitura apresentada nessa pesquisa –
leitura como prática social.
No que se refere à relação que os sujeitos (alunos) estabelecem entre a aprendizagem
da leitura e a vida cotidiana há, para a grande maioria, a noção de que a leitura tem papel
65
imprescindível para obter sucesso na escola. Um relato interessante foi de A10, ao escrever
que está ensinando a avó a ler. Há a evidência, em seu texto, da valorização dada à leitura:
A aluna se sentia feliz por ter ensinado sua avó a assinar o nome, o alfabeto. Nota-se,
mais uma vez, o quanto o código é priorizado, colocando-se em detrimento o sentido. Em
contrapartida, também se percebe, no relato, o reconhecimento que a leitura é uma prática
social. Todavia, muitos dos indivíduos da pesquisa apontaram a leitura como uma prática
escolar.
Em seus relatos, pude ver a compreensão de leitura como uma ação necessária para
obter boas notas. Os alunos não conseguiam estabelecer uma relação entre o que liam na
escola e os desafios da vida além do muro da escola. Seguem os relatos de A11 e de A12:
66
Dos textos analisados, vários alunos declararem sentir um desconforto ao ler,
principalmente dor nos olhos e na cabeça. Sabe-se que pode existir uma causa física, porém
saliento a possibilidade de ser uma resposta à tensão ao ler, uma vez que, questionados textos
postados em redes sociais, informaram não apresentar o mesmo sintoma ao ler.
Isso pode ser fruto de uma aprendizagem da leitura limitada à decifração de códigos.
Com os relatos, entende-se que os alunos aprenderam que ler é apenas decodificar, a maioria
dos sujeitos da pesquisa não estabelece objetivos, exceto o de obter boas notas. Com um
trecho de narrativa de A13, pode-se verificar o desconforto ao ler:
67
Destaco que esses alunos apresentam poucas habilidades para produzirem texto. Pode-
se notar que, considerando que estão no 9° ano, há uma escassez vocabular, há enorme
presença da marca de oralidade na escrita, problemas na articulação textual, desvios
ortográficos, equívocos de regência nominal e verbal.
É possível notar, nos registros de memória dos alunos, o resultado de um ensino de
leitura centrado na decodificação, distanciado da leitura como prática social. Contudo,
diretrizes da educação brasileira orientam para essa perspectiva, conforme preconizam as
orientações do PCN (Parâmetro Curricular Nacional) de Língua Portuguesa do Ensino
Fundamental:
Ler é resposta a um objetivo, a uma necessidade pessoal. Fora da escola, não se lê só para aprender a ler, não se lê de uma única forma, não se decodifica palavra por palavra, não se responde a perguntas de verificação do entendimento preenchendo fichas exaustivas, não se faz desenho sobre o que mais gostou e raramente se lê em voz alta. Isso não significa que na escola não se possa eventualmente responder a perguntas sobre a leitura, de vez em quando desenhar o que o texto lido sugere, ou ler em voz alta quando necessário (BRASIL, 1997, p. 57).
Cabe salientar que todo ser humano é um ser histórico e, ao me debruçar sobre os
memoriais, não estava buscando mensurar o que é certo ou errado, o que buscava saber era
qual concepção de leitura que norteou o processo de aprendizagem deles, isso me parece ser
essencial traçar outras rotas, ensinar estratégias de leitura desconhecidas.
Acrescento, ainda, que a história de leitura é entrelaça com a história do sujeito leitor,
como bem nos explica Nunes:
Todo leitor tem a sua história de leitura e, portanto, apresenta uma relação específica com os textos, com a sedimentação dos sentidos, de acordo com as condições de produção de leitura. Ele já esteve na Idade Média dominantemente localizado no espaço religioso. Na época moderna, ele pode ser localizado entre o espaço do literário e do científico. Além disso, conforme a conjuntura mundial, nacional, regional, mudam as determinações históricas que condicionam a leitura (NUNES, 2003, p.25).
Assim, a construção da proposta de trabalho com a leitura nessa turma foi realizada
com base no perfil diagnosticado pelo memorial, considerando suas dificuldades, anseios,
gostos, na tentativa de contribuir para melhoria da compreensão leitora desses alunos.
68
3.2 Trajetória
Tendo em vista a trajetória de conhecimentos que contribui para a relação cognição e
leitura, assim como um diagnóstico claro das limitações em leitura do país, estado,
município, escola e turma, partiu-se então para a elaboração e execução de um Projeto de
Intervenção Educacional.
Principiou-se por conceber, sob a tutela dos estudos teóricos que foram feitos, a
expressão de etapas de trabalho em um contínuo favorável à possibilidade de êxito no
empreendimento. Foi firmada, ainda, a convicção da importância de considerar não só o
papel significativo do professor, oferecendo a modelagem necessária à aquisição dos
conhecimentos, mas também, das variáveis que exercem influência direta na predisposição
ao envolvimento ou não do aprendiz. Cuidou-se, desse modo, das escolhas do material a
serem trabalhado e dos instrumentos de suporte que garantiriam um contexto de adesão à
proposta, considerando o que foi discutido nos referenciais teóricos deste trabalho.
Pensou-se, nesse sentido, a divisão do trabalho em etapas de ensino, cujos momentos
serão apresentados a seguir, assim como as discussões relativas às respostas a essas ações.
Embora as atividades propostas para as etapas tenham permitido momentos importantes de
análise e reflexão, não é possível apresentá-las em sua totalidade, embora elas possam ser
dimensionadas a partir dos quadros de cada módulo ou no detalhamento das atividades nos
apêndices deste trabalho. As discussões, portanto, se restringirão a momentos e aspectos
relevantes para a proposta, acreditando, desse modo, que o relato possa contribuir para ações
futuras daqueles que buscam auxílio para melhorar a prática educativa, sobretudo no que
tange ao desenvolvimento de habilidades requeridas à leitura compreensiva e a contribuição
das estratégias metacognitivas para alcançar esse objetivo.
Definiu-se por desenvolver a proposta interventiva em 3 etapas, como dito,
perfazendo o total de 22 horas/aula, sendo cada módulo estruturado a partir dos seguintes
tópicos: objetivos, ações, metodologia, acompanhamento da aprendizagem, recursos e carga
horária.
Por questões didáticas, o relato e análise de cada módulo será apresentado por meio
das subdivisões: síntese do módulo, percurso do trabalho e impressões sobre as aulas.
69
Etapa I
Quadro 1 - Etapa I: Motivar
MOTIVAR
Objetivos:
• Conduzir os alunos a uma reflexão sobre o que é leitura e qual é a sua
importância;
• Motivar os alunos a se envolverem no projeto de intervenção, a partir de
reflexões oportunizadas pela canção: Estudo Errado, de Gabriel O Pensador;
• Conduzir os alunos a uma reflexão sobre a forma adequada de estudar e
aprender, avaliando comportamentos que não favorecem a aprendizagem, a partir de
debate sobre as memórias produzidas para o diagnóstico;
• Desenvolver o gosto pela leitura de contos fantásticos através da leitura-deleite do conto e da apresentação da versão do cinema de Solfieri, de Álvares de Azevedo3;
• Apresentar a proposta de intervenção de maneira a motivar os aprendizes,
mobilizando-os a se engajarem na realização do trabalho.
Ações:
• Momento 1.1: Reflexão sobre a importância de se saber ler, a partir dos
vídeos: Ler, de Fernando Veríssimo e Ler devia ser proibido, de Guiommar de
Grammont.
• Momento 1.2: Apreciação da canção: Estudo Errado, de Gabriel O Pensador
e exibição do vídeo da respectiva canção.
• Diálogo com os alunos sobre o conteúdo temático da canção.
• Momento 1.3: Leitura deleite e apresentação de contos fantásticos.
• Momento 1.4: Apresentação da proposta de intervenção. Metodologia:
• Debates, análise de textos e de vídeo para favorecer reflexão.
3 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=rokapLpVqsA . Acessado em (03/04/2016)
70
Acompanhamento da aprendizagem:
• Participação nas discussões durante as aulas.
Recursos:
• Data show
• Notebook
Carga horária:
• 8 h/a
Descrição da etapa
A primeira etapa foi revestida do cuidado necessário para que os alunos pudessem se
sensibilizar com a proposta e desenvolver predisposição para colaborar com seu
desenvolvimento, envolvendo-se na medida necessária. Julgou-se importante, para isso,
produzir ações conjugadas. Desse modo, primeiro foram criadas condições de reflexão sobre
o sentido de leitura e de texto, em suas mais variadas formas, assim como reflexões sobre o
que seria considerado um bom leitor, permitindo aos aprendizes se auto avaliarem (discussão
possibilitada por meio da leitura dos textos referidos no Momento 1.1 e 1.2).
Em seguida, puderam ouvir a canção Estudo errado, de Gabriel O Pensador, cujo
tema, propício à pauta de discussão, favoreceu discussões sobre comportamentos adequados à
aprendizagem.
Nesse primeiro momento, os alunos participaram de forma produtiva, respondendo às
questões propostas e contribuindo com as reflexões que foram sendo favorecidas a partir dos
textos.
Também a participação na discussão sobre as memórias de leitura e de seu
aprendizado propiciou maior envolvimento com o trabalho.
A atividade de leitura-deleite, bem como a atividade de apresentação em vídeo de
Contos Fantásticos motivou os alunos de forma prazerosa, conquistando-lhes com atenção
para o estudo do gênero.
Ao final dessa etapa, coube a apresentação da proposta de intervenção educacional,
justificando as discussões conduzidas até aquele momento. Foram abordagens que deram
71
significação e importância à proposta, servindo de mote para que os alunos pudessem se
motivar à participação.
O percurso do trabalho
O primeiro momento (Momento 1.1) foi definido para promover reflexões sobre a
importância da leitura e do significado de leitura, antes e após a análise dos textos Ler, de
Luís Fernando Veríssimo e, Ler devia ser proibido, de Guiommar de Grammont. Foi possível
pensar também, ao longo das reflexões, sobre os objetivos que revestem a leitura dos mais
diversos gêneros textuais, assim como os objetivos de leitura definidos pelo próprio leitor.
Assim, antes da análise dos textos, foram propostas algumas perguntas aos alunos,
como as que seguem:
Algumas respostas foram dadas à primeira pergunta:
Quanto à pergunta referente ao gosto e hábito de leitura, as respostas foram as
previstas: a falta de hábito ou gosto pela leitura. A referência feita pelos alunos às leituras que
costumam fazer se restringiram àquelas que são favorecidas na escola.
Concernente à resposta sobre a pergunta O que é leitura? foi a mesma dada para a
pergunta O que seria um bom leitor?
Tais repostas, de certa forma, causaram surpresa, pois os alunos foram praticamente
unânimes em associarem a leitura à compreensão.
A1: É importante ler para aprender. A2: Para se informar!
A3: Para gente se divertir!
A4: Ler é muito chato.
A5: Para conseguir pegar ônibus, entender uma bula, fazer coisas do dia a dia.
A6: Para ser alguém na vida.
A1: Lê é compreender o que se lê.
A2: Um bom leitor é aquele que consegue compreender o que lê, né professora?
72
Quanto a se seriam bons leitores, se costumam compreender o que leem, concordaram
que não, ou que dependeria do texto ter uma linguagem mais fácil ou ser mais curto, mas que
isso fica facilitado quando há o auxílio do professor.
As respostas dos alunos trouxeram pontos importantes que merecem destaques. O
primeiro é o de que há uma consciência por parte desses jovens de que a leitura está
diretamente ligada à compreensão, por um lado, e de que reconhecerem as dificuldades que
possuem em realizar uma leitura compreensiva, por outro.
O segundo ponto é o que remete ao papel do professor como facilitador, evidenciando
sobre a necessidade do suporte e da modelagem do professor, aspectos que favorecem o
raciocínio e, por conseguinte, a compreensão. O professor assume, portanto, um papel
primordial na orientação de ensino de leitura compreensiva, no sentido de favorecer ao aluno
os raciocínios que são necessários e ajudá-lo a avançar cognitivamente.
Mas fala-se aqui de um suporte considerado temporário. À medida que o aluno se
mostre capaz do domínio das habilidades requeridas à leitura compreensiva, o apoio pode ir
sendo retirado. Desse modo, após os alunos terem sido favorecidos pelo apoio do professor,
acredita- se que a autonomia da monitoraria e da avaliação da leitura sejam possíveis.
O momento seguinte foi destinado à análise dos textos e permitiram que algumas
considerações fossem feitas.
Um apontamento pertinente a esse momento diz respeito à imaturidade desses jovens
quanto ao sentido de texto e de leitura, da forma que foi apresentada pelos textos de Luís
Fernando Veríssimo e de Guiommar de Grammont.
Por exemplo, percebe-se que a definição de texto para os alunos se limita, quase que
exclusivamente, ao código verbal. Supõe-se, nesse sentido, que textos compostos por
linguagem verbal e não verbal (multimodal) se resumem, ao máximo, aos trabalhados na
escola, como as tirinhas e as charges. Ainda possuem dificuldades para acatar, a princípio, as
várias possibilidades de leitura e de textos que foram apresentados no texto Ler, de Luís
Fernando Veríssimo, ocasião em que se mostraram, de certa forma, surpresos com a
abrangência do verbo ler. O fragmento a seguir ilustra o desentendimento inicial: “ Leia os
olhos, leia as mãos. Os lábios e os desejos das pessoas... / Leia a interação que ocorre ou não
entre física, geografia, informática, trabalho, miséria e chateação.../ Leia as
impossibilidades.../ Leia ainda mais as esperanças.../” (VERÍSSIMO).
Esta surpresa, no entanto, foi dissipada à medida que os alunos puderam considerar
alguns exemplos comuns a eles, assim como avaliarem as imagens que foram sendo exibidas,
o que sugere que a imaturidade, quanto a esse fato, se deve a falta de consciência sobre as
73
leituras que o tempo todo são feitas, de modo natural, no dia a dia, e que não são inicialmente
entendidas como tal.
Assim, apesar de haver certa dificuldade inicial na compreensão dos fragmentos do
texto que foram exibidos, julgou-se a escolha do texto acertada, pela riqueza das reflexões que
foram favorecidas por ele. Desse modo, buscou-se conjugar imagens e texto para ajudar os
alunos a irem construindo uma ideia do instrumento de poder que é a leitura e da importância
de se ler compreensivamente.
Um ponto positivo, quanto a esse momento, diz respeito à atenção dispensada aos
comentários que fiz. Houve participação importante propiciada por perguntas dirigidas aos
alunos. A pesquisadora (P), após apresentar o texto, estabeleceu com os alunos (A) o seguinte
diálogo:
Percebeu-se o entendimento inicial dos alunos quanto à afirmativa primeira de que ler
devia ser proibido. No entanto, quanto às justificativas que foram apresentadas para essa
afirmativa, por não virem de forma explícita, trouxeram dificuldades aos alunos para
significá-las, o que evidencia a dificuldade dos alunos em mobilizar ferramentas intelectuais e
estratégicas que favoreçam a prática compreensiva, fato confirmado nos resultados da
atividade diagnóstica e evidenciadas ao longo das discussões dos textos apresentados.
As informações que estavam implícitas nos textos só conseguiram ser significadas
com minha ajuda. Isso sugere que parece não existir sistematização do ensino de leitura na
perspectiva cognitivo-reflexiva, abordagem capaz de apresentar comportamentos e
habilidades requeridas para ler e compreender o que se propõe a ler. Ou sugere, pelo menos
que as práticas de leitura do cotidiano escolar não têm se revelado como eficazes, pois têm
habituado os alunos à não compreensão.
Também merece destaque, nessa etapa, o terceiro texto, relativo ao segundo momento
(Momento 1.2). A canção Estudo errado, de Gabriel O Pensador, auxiliou os alunos a
pensarem nos comportamentos que são solicitados quando o propósito é aprender e que
P: Ler devia ser proibido? Será que é isso mesmo?
A1: Não professora, isso é uma ironia?
P: E o que é ironia?
A1: É dizer uma coisa, querendo dizer outra.
A2: Quer dizer o contrário.
74
envolve competências requeridas à compreensão. O trecho abaixo resume o que foi de
interesse discutir.
“Quase tudo que aprendi, amanhã eu já esqueci Decorei, copiei, memorizei, mas não
entendi Decoreba: esse é o método de ensino
Eles me tratam como ameba e assim eu não raciocino Não aprendo as causas só decoro
os fatos
Desse jeito até história fica chato
Mas os velhos me disseram que o ― porquê é o segredo Então quando eu num
entendo nada, eu levanto o dedo Porque eu quero usar a mente pra ficar inteligente.”
A partir de questionamentos apresentados, os alunos consideraram formas adequadas e
inadequadas de estudar, favorecendo a uma autoavaliação quanto a essa questão. Admitiram a
necessidade de envolvimento e atenção, embora julguem que dificilmente assumam esse
comportamento, uma vez que alegam não possuírem o hábito de uma leitura mais cuidada
para que consigam efetivamente aprender por meio dela. Outros afirmaram que quando
realizam leituras com propósito de aprendizagem, o fazem tentando decorar o que leem, fato
expresso na fala de um aluno: tento guardar tudo na cabeça! E quando leem, na tentativa
de estudar, o fazem, boa parte das vezes, em cima da hora, prestes a realizarem uma prova,
em sala de aula mesmo, em meio às disciplinas que estão sendo ministradas.
Assim, práticas de leitura consideradas negativas, já conhecidas por mim, foram
confirmadas por alguns alunos durante a reflexão sobre o memorial de leitura, que
apresentaram concepções equivocadas e contraditórias à concepção inicial de leitura
apresentada pela turma, de forma geral. Por outro lado, foi possível considerar que tal
comportamento está associado ainda à existência de um ensino centrado em transmissão de
conteúdo, não se promovendo maiores condições de reflexão sobre o que se aprende.
A leitura deleite do Conto Fantástico e a apresentação da versão do cinema para o
conto Solfieri, de Álvares de Azevedo consistiram nas atividades de contato e ambientação
com o gênero e atingiram o objetivo de suscitar nos alunos o gosto, a atenção e a curiosidade
pela leitura de textos desse gênero. Como o objetivo inicial era o da motivação, não foram
cobradas tarefas didáticas com esse material, mesmo assim gerou comentários dos alunos, que
me permitiram avaliar a eficácia desse momento, como Muito top! Tem mais? Lê mais,
professora! Quando vamos ouvir outra história dessa? Onde a gente pode encontrar mais
história assim?
75
Análise da Etapa I
Nesse primeiro momento foi possível mobilizar a atenção da maior parte da turma,
ficando, alguns alunos, ainda distantes da participação efetiva, apesar de se mostrarem atentos
à discussão.
Uma observação relevante desse módulo diz respeito aos instrumentos de
aprendizagem utilizados, como vídeos, músicas e imagens, que se mostraram como artefatos
cognitivos importantes, servindo de catalizadores a propiciar que as significações fossem
feitas, além de terem se tornado elementos favorecedores da atenção e da motivação daquele
momento da intervenção.
Cabem também observações quanto à percepção dos alunos concernente à leitura e à
sua compreensão. Embora possuam certa imaturidade quanto a essa percepção, esses alunos
possuem clareza de que o sentido de leitura se associa ao da compreensão. Por outro lado,
tornou-se evidente a dificuldade dos alunos em mobilizarem estratégias que pudessem
favorecê-los à compreensão, visto algumas informações dos textos não terem sido
apresentadas de forma explícita.
Quanto ao papel do professor, na visão dos alunos, destaca-se a sua importância
(evidenciada através da fala de um aluno) como incentivador e suporte do aprendiz,
reforçando o sentido de mediação discutido por Vieira (2004) neste trabalho. Tal conduta,
vista pelos alunos de forma positiva, sinaliza para que os suportes oferecidos pelos
professores mereçam relevância, pois assumem uma orientação para operações mentais que,
sozinhos, muitos ainda têm dificuldades em realizar. Essa ajuda assume um valor que pode
ser medido pela satisfação do aluno quando consegue alguma conquista no empreendimento
que está realizando.
76
Etapa II
Quadro 2 - Etapa II: Pensar sobre o pensar
ETAPA II: PENSAR SOBRE O PENSAR
Objetivos: • Refletir sobre os comportamentos necessários à aprendizagem e sobre as
potencialidades do pensamento; • Refletir sobre o sentido de estratégia, avaliando as estratégias de leitura utilizadas
pelos alunos; • Apresentar e exercitar a estratégia metacognitivas a ser trabalhada: a
preditibilidade.
Ações: • Momento 2.1: Assistir aos vídeos e debater o assunto:
Neurociência do aprendizado4 Cérebro, o guia do proprietário5 (uma pequena parte) Realizar uma
discussão sobre o assunto apresentado, conduzindo a uma reflexão sobre ele.
• Momento 2.2: Refletir em grupo sobre o sentido de estratégias. Realizar a leitura coletiva do texto A FICHA Nº 20.003, de Viriato Correa e fazer
perguntas durante a leitura. • Momento 2.3: Discutir sobre o assunto abordado no texto e sobre a estratégia
utilizada para abordá-lo. • Momento 2.4: Dar um trecho do conto O espelho, de Gastão Cruls para os
alunos darem continuidade, conforme suas previsões e, após, comparar com o texto original para destacar a imprevisibilidade, a perturbação aos esquemas, que os contos fantásticos podem apresentar.
Metodologia:
• Leitura e discussão em grupo • Aula expositive
4 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=M0do_ye-R00 Acesso: 18/06/2016. 5 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Zs5v7QSreFA Acesso: 18/06/2016.
77
Acompanhamento da aprendizagem:
• Participação nas discussões durante as aulas.
Recursos: • Data show • Notebook • Folha xerografada
Carga horária: 10 h/a Síntese da etapa
O propósito desse momento foi o de levar os alunos a refletirem sobre a possibilidade
de uso de uma estratégia metacognitiva – a preditibilidade - para verificar se seu uso
facilitaria a compreensão, incluindo atenção e análise aos processos mentais envolvidos em
ações realizadas de modo automático, assim como naquelas em que se exige do sujeito uma
maior consciência e controle do que se faz. Tais processos, identificados através de
comportamentos em atividades comuns, nesse trabalho, foram trazidos para o contexto da
compreensão leitora e da aprendizagem, caracterizando-se como estratégia cognitiva ou
metacogitiva.
O sentido de estratégia também foi trabalhado conduzindo os alunos a uma reflexão
sobre o que eles entendiam por esse termo, para que pudessem pensar sobre as estratégias que
costumam usar quando realizam uma leitura. O passo seguinte se resumiu em apresentar a
estratégia metacognitiva a ser ensinada.
O percurso do trabalho
No primeiro momento do segundo etapa, as discussões que foram propostas na etapa
anterior, sobre a importância da leitura, assim como a necessidade de esforço para aprender,
foram retomadas, a fim de significar as reflexões que seriam feitas. O momento era o de
conduzir os alunos a pensarem sobre a necessidade de esforço e atenção para se aprender, o
que foi feito ressignificando esse comportamento por meio da observação de como se
processa a aprendizagem e de quais seriam os comportamentos que poderiam favorecê-la –
comportamentos associados às estratégias metacognitivas.
78
Para isso, os alunos foram instigados a assistirem atentamente uma parte do vídeo
Neurociência do aprendizado6. Trata-se de um trecho que apresenta, a partir da abordagem
neurocientífica, informações que dizem respeito aos comportamentos exigidos para aprender,
principalmente no que diz respeito à atenção. Puderam pensar também sobre os neurônios e
seu funcionamento, a partir de um trecho do vídeo Cérebro, o guia do proprietário7. O
objetivo foi o de trazer informações que favorecessem uma reflexão sobre a necessidade de
esforço e atenção para aprender.
Esse momento foi marcado por grande interesse por parte dos alunos, uma vez que o
funcionamento do cérebro humano é assunto que desperta grande curiosidade e que, por isso,
costuma captar a atenção. Então, aproveitei o interesse e a curiosidade dos alunos para
conduzir algumas reflexões direcionadas aos processos que envolvem a aprendizagem. Assim,
após a exibição do vídeo Neurociência do aprendizado, parafraseei algumas falas da
neurocientista Profa. Dra. Suzana Herculano (locutora do vídeo) para promover uma
discussão sobre o que foi assistido:
Destacou-se, nesse momento, a importância da atenção, fenômeno discutido por
Cozenza e Guerra (2011, p.34), referindo-se a ele como ― a lanterna na janela, metáfora
usada para se referir à limitação biológica do cérebro para direcionar a atenção a duas coisas
ao mesmo tempo. Informação relevante para o propósito do trabalho que seria conduzido e
que foi informado aos alunos, para que significassem os pedidos de atenção frequentemente
feitos pelos professores.
Os alunos ficaram curiosos quanto a esse fato e um deles comentou: Não, professora eu
presto atenção em mais de uma coisa ao mesmo tempo. Expliquei essa impossibilidade,
segundo a teoria defendida por Guerra, e os prejuízos da dispersão da atenção.
Caberia dar destaque, nesse módulo, além do fenômeno da atenção, ao sentido de
metacognição, palavra que gerou curiosidade desde o início, quando foi apresentada a
proposta. Destaco ainda que a intenção de envolvimento dos alunos na pesquisa só seria 6 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=M0do_ye-R00 Acesso: 18/06/2016. 7 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Zs5v7QSreFA Acesso: 18/06/2016.
[...] usar o cérebro muda o cérebro, a mudança com a experiência é a base do aprendizado.
[...] a motivação e atenção são fatores que influenciam o aprendizado.
[...] só conseguimos prestar atenção em uma coisa de cada vez.
79
alcançada se eles tivessem consciência do que estava sendo pesquisado. Daí a preocupação
em trazer esses conhecimentos adaptados à maturidade e à linguagem desses estudantes. Além
disso, essa consciência facilitaria o objetivo de monitoramento da aprendizagem, uma vez que
eles não eram simples cobaias de uma pesquisa que desconheciam.
Assim, ao referir à metacognição, a intenção não foi a de se ater ao termo, mas sim de
conduzí- los a pensar em comportamentos que podem ser mais automatizados, por um lado,
ou mais monitorados, por outro. Diante disso, após assistirem aos slides que favoreceram a
reflexão, puderam, a partir de minha condução, exemplificar sobre ações cotidianas que
permitem comportamentos automáticos, como por exemplo, andar de bicicleta (exemplo dado
por eles), e ações que exigem maior atenção, monitoria, avaliação e controle, como, por
exemplo, quando ainda estão aprendendo a andar de bicicleta (extensão ao exemplo dado por
eles). Os alunos contribuíram com vários exemplos, sugerindo que estavam compreendendo o
que estava sendo discutido.
Trazendo para o contexto escolar, tomei a leitura como exemplo, considerando os
momentos de automaticidade naturalmente impostas ao leitor ao realizá-la e os momentos em
que essa automaticidade é prejudicada de algum modo, por alguma dificuldade na leitura.
Quando perguntados sobre esses momentos de dificuldades, quando não compreendem o que
leem, sobre quais são as ações que costumam tomar, um dos alunos respondeu: leio de novo.
Esclareci que a consciência da não compreensão e a ação de retornar ao texto, lendo-o
novamente, caracterizam comportamentos conscientes diante do texto e realmente necessários
para compreendê-lo.
Até então, a reação dos alunos era ainda a de curiosidade sobre as informações.
Teoricamente, estavam tendo uma noção da importância dos comportamentos envolvidos na
aprendizagem – consciente ou inconsciente - e a noção do que envolveria o sentido da
metacognição. Era chegada, portanto, a hora de entender o sentido do termo estratégia e
como ela se aplicaria ao processo de leitura, reservado ao segundo momento (Momento 2.2).
O importante era que os alunos pudessem pensar que o objetivo de quem utiliza uma estratégia
é sempre o de realizar um propósito além da simples execução de uma estratégia.
Para isso, foram tomados alguns exemplos de situações cotidianas dos alunos em que
se faz necessário pensar mais cuidadosamente um determinado comportamento para
conseguir algum propósito. Assim, exemplos como o jogo de uma partida de futebol, uma
tentativa de convencimento da mãe para sair com os amigos e uma tentativa de se aproximar
de alguém em que se está interessado foram usados para ilustrar situações em que se exigem
80
comportamentos estratégicos. Foi um momento de participação importante e a observação foi
a de que os alunos tiveram clareza sobre o sentido do termo.
A prática recorrente de buscar exemplos na vida dos próprios alunos, ao longo da
intervenção, justifica-se pela possibilidade de contextualização que favorece ao acesso dos
esquemas mentais, mencionados por Leffa (1996), que guardam informações cujo alcance é
facilitado e que são responsáveis por favorecer as inferências que auxiliam na compreensão.
O terceiro momento (Momento 2.3) foi reservado para a realização de um debate sobre
as estratégias que os alunos costumam usar para compreender um texto.
A proposta do trabalho em grupo foi a de que os alunos discutissem sobre as
estratégias que costumam acionar nas leituras que realizam. Tal momento de prática me
trouxe surpresa, pelos alunos não conseguirem, a princípio, verbalizar as estratégias que eles
costumam usar nas leituras que realizam.
Como a atividade solicitava que os alunos pensassem nas estratégias que utilizam
antes, durante ou após a leitura, supôs-se que seria possível começar citando as estratégias
mobilizadas antes de lerem o texto. Foi uma atividade necessitei intervir, fazendo vários
questionamentos, a fim de que pudessem pensar nas estratégias que costumam usar. No
entanto, ficaram, a princípio, como que perdidos, sem saberem o que dizer.
Embora se possa supor que tenham entendido o sentido de estratégia nas reflexões
propostas, esse sentido, na sistematização, parece ter se diluído. Tentei favorecer as reflexões
orientando os alunos a pensarem em quais seriam os caminhos, os meios que pudessem
facilitar a leitura.
Uma possibilidade para o relativo insucesso da atividade diz respeito à falta de
consciência dos comportamentos estratégicos que estão presentes nas ações cotidianas.
Naturalmente, quando alguém se propõe a realizar uma leitura, não se pensa nas estratégias
que serão usadas para esse fim, lê-se apenas. O comportamento de pensar as estratégias de
forma consciente só seria verbalizado se já houvesse uma instrução nesse sentido. É natural,
portanto, que, a princípio, esse comportamento prevalecesse, afinal, não se está habituado a
pensar sobre isso, mesmo sabendo que existem caminhos que podem favorecer a leitura.
Trata-se de uma atitude que não se tem consciência sobre ela, a não ser que seja realçada para
o propósito de ensino e aprendizagem, como é o caso desta pesquisa.
Portanto, embora a dificuldade para verbalizar estratégias seja fruto de um
comportamento comum aos leitores (que normalmente não pensam nos procedimentos que
adotam quando leem), isso também indica falta de conhecimento sobre as estratégias que
poderiam favorecer a leitura, o que reforça a importância do processo de ensino.
81
Mesmo que muitos professores, intuitivamente, direcionem o ensino de leitura para a
perspectiva que se defende nessa pesquisa, o que se observa é que, da forma como ela ocorre,
ainda não tem sido suficiente, pois os resultados ainda são abaixo do esperado. Nesse aspecto,
cabe considerar que, “embora se avalie que as estratégias metacognitivas tenham ganhado
espaço na literatura, é possível perceber, com clareza, que os avanços de pesquisa nessa área
ainda não chegaram às salas de aula” (BACKER; BEALL, 2008, p. 803).
Dando sequência às atividades, busquei conduzir as reflexões indagando os alunos
sobre os caminhos utilizados para auxílio em atividade de leitura. Foram conduzidos a pensar
o que fazem antes de ler o texto, assim que o recebem. Pensam nos objetivos daquela leitura,
considerando o gênero ou alguma informação mais especifica que gostariam de saber?
Observaram títulos, subtítulos, imagens para auxiliá-los? Pensam no que sabem sobre o
assunto proposto? E ao longo do texto, param para pensar sobre o que estão lendo? Tentam
pressupor o que irá acontecer na sequência do texto, com base no que foi lido? Por meio de
perguntas como essas, os alunos foram direcionados a pensar se utilizam caminhos
facilitadores à leitura compreensiva.
Apesar de algumas dificuldades, os alunos conseguiram citar o que consideram
estratégias:
Ler o título Observar as imagens
Prestar atenção no texto Data de publicação
Reler trechos do texto ou todo ele Tentar descobrir o que vai acontecer
Grifar palavras desconhecidas Lembrar do que se sabe sobre o assunto
Prestar atenção na pontuação Refletir sobre o assunto
Resumir mentalmente
Embora eu tenha favorecido determinadas reflexões, os alunos demonstraram lembrar
de atitudes que recorriam para compreender determinada leitura, mas não as identificava
como estratégia. Somente após minha mediação através das perguntas motivadoras dessa
reflexão é que perceberam o uso de estratégias em suas práticas leitoras. Outra observação em
relação à condução da leitura que aparentemente costuma ser dada pelos professores, além dos
aspectos já comentados, diz respeito a prestar atenção (entendida pelos alunos como
estratégia), apontada por cinco alunos da turma. Logo, prestar atenção, ao que parece,
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costuma ser a orientação dada pelos professores a partir dos elementos que eles costumam dar
destaque no texto e que, possivelmente, foi o que sempre ouviram e que ainda costumam
ouvir quando lhes são propostas as leituras. Destaquei a importância de prestar atenção em
todos os momentos da leitura, do início ao fim. Porém, esclareci que a atenção não é uma
estratégia, mas um comportamento necessário para que se possa monitorar a leitura, avaliar se
está entendo ou não e buscar caminhos que favoreçam esse entendimento, sendo um fator
essencial para a autorregulação e aprendizagem consciente.
Dando prosseguimento às atividades (Momento 2.2), distribuí cópias do texto A
FICHA Nº 20.003, de Viriato Correa dividido em partes e propus que os alunos lessem
coletivamente – cada voluntário lia uma parte – enquanto eu fazia perguntas que pudessem
indicar a previsão do conteúdo seguinte. É importante salientar que essa divisão não foi
aleatória, mas considerou tanto a semântica, quanto elementos textuais quando apresentavam
suspense quanto à próxima cena no conto. Uma aluna foi a responsável por redigir os
comentários para que pudessem ser analisados posteriormente.
Sobre a primeira parte que consistia no título: FICHA Nº 20.003, perguntei qual
assunto ou enredo eles imaginavam que o texto iria tratar. As respostas seguem com suas
justificativas.
A1: Imagino que seja sobre fila de hospital ou posto de saúde porque é um número
bem grande pra uma fila bem grande.
A2: Acho que o cara era bandido, a polícia pegou e ele foi fichado com esse número.
A3: Traficante fichado na polícia
A4: Deve ser sobre a investigação de um caso
Entre as respostas dos alunos, destaca-se a natural analogia com a realidade vivenciada
por eles como grande espera de atendimento público de saúde ou proximidade com violência
e criminalidade. Ainda assim, todos associaram coerentemente com o numeral, o termo
“ficha” e suas possibilidades. Contudo, destaca-se a resposta de A4 que lembrou considerou a
proposta de trabalho com Contos Fantásticos que trouxessem elementos de suspense ou terror,
como já tiveram contato nas atividades anteriores e, assim, pôde prever que esse texto
também poderia pertencer a esse gênero.
Após, seguiu-se a leitura da segunda parte. Assim, houve a constatação de que A4 era
o que tinha a previsão mais próxima do conteúdo do texto. O que se percebeu com a
afirmação de A4: Cheguei perto.
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NUNCA levei a sério as bruxas e as cartomantes. De forma que, em Paris, quando Campos Fragoso me convidou para irmos à casa de Madame de Thèbes, não só me recusei como trocei da lembrança. Ele insistiu sensatamente: – Que diabo! Ao menos pela curiosidade de conhecer uma mulher de fama universal! Deve ela ter qualquer cousa de interessante. Fui. Campos Fragoso consentiu que, na minha presença, a pitonisa lhe desvendasse os segredos da vida. Pus-me a ouvi-la despreocupadamente e displicentemente. Mas dois ou três minutos depois, confesso que estava todo preso às palavras da adivinha. Eram revelações exatas, muitas delas minudentes e que só eu e ele sabíamos. Ao terminar a consulta não me contive – quis consultar também. Madame de Thèbes começou por examinar as linhas das minhas mãos. Examinou-me depois a letra. Uma análise atenta, muda, minuciosa.
Sobre esse trecho, perguntei o que eles pensavam que a Cartomante estaria vendo na
mão daquele homem e as respostas consistiram nas seguintes previsões:
A1: Ela viu que ele vai achar um tesouro e vai ficar rico.
A2: Ela disse que ele vai morrer e virar fantasma.
A3: Ela falou que ele vai virar lobisomem.
Assim, todos demonstraram estar considerando o gênero Fantástico como havia feito
A4 na atividade anterior, indicando as visões da cartomante como possibilidades e incluindo
elementos do imaginário.
Então, prosseguiu-se com a leitura do próximo trecho:
– O senhor é um homem bom, boníssimo – principiou. – Incapaz de uma perversidade. Leal com os amigos, sincero, dedicado. Até aí, nada de novo. É o que as ciganas, mais ou menos, dizem a todos que lhes entregam as mãos para ler. – Mas,
Prevendo, com base nas perguntas anteriores a própria pergunta que eu faria, os alunos
demonstraram grande envolvimento com a proposta e adiantaram as respostas:
A1: Mas vai morrer mesmo assim.
A2: Continuo achando que ele vai virar lobisomem.
A3: Mas indica contrário. Se ela ta dizendo que ele é bom, então ele vai ficar mau.
Com isso, percebeu-se que as previsões passaram a considerar as referências do gênero
estudado, os elementos textuais e a coerência entre as partes e deixaram de ser somente
analogia com a realidade vivida.
E, assim, seguiu-se a leitura:
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a par disso tudo, tem um gênio violentíssimo. Os pontos de honra desencadeiam-lhe tempestades súbitas. E, depois de uma pausa, com segurança: – Faça um esforço de memória. Recorde-se. Fiz o esforço, recordei-me. Quando rapazinho, no curso de preparatórios, um examinador acusou-me de estar "colando" a prova escrita. Não era verdade. Dei a minha palavra que havia engano. Ele insistiu, berrou. Atirei-lhe com o tinteiro à cara e rebentei-lhe o nariz. – O senhor até agora não encontrou a sua verdadeira vocação. Já tentou a medicina, já tentou a carreira das armas. De ambas saiu desiludido. Pura verdade. Havia menos de três meses que eu me desligara da Escola Militar do Rio e cerca de dois anos que abandonara o curso médico. – Agora quer tentar o comércio. Faz bem. Era também verdade. Estava em Paris obtendo representações de fábricas e casas comerciais que tivessem ou quisessem ter relações com o Brasil. A cartomante ficou silenciosa por longo tempo. Ora olhava a minha mão esquerda, ora olhava a minha letra, num confronto profundo. Ela própria parecia estar encontrando surpresas. – É singular! – disse. – O senhor é bom. Pode-se mesmo dizer um coração de ouro. No entanto... – No entanto... – Diga-me. Tem inimigos? – Não. – Lembre-se. Pensei demoradamente. – Não me acode nenhum à lembrança. O examinador, o do tinteiro no nariz, já morreu. Nunca briguei, nunca prejudiquei ninguém, nunca ofendi ninguém. – Singular! Vejo aqui um crime, uma morte. – No futuro? – No futuro. Fiquei tolhido na cadeira. – Vão me matar?
Os comentários seguiram automaticamente, sem necessidade da interferência da
pergunta:
A1: Não é que ele ia ficar mau, parte dele já era mau.
A2: Eu falei que ele ia morrer. Ele vai morrer.
A3: Ou ele vai matar.
As sentenças sobre morte e violência acentuaram-se. Assim, demonstraram, mais uma
vez, influência do meio, mas também coerência com os elementos presentes no texto.
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– Não. O senhor é que vai matar alguém. Gelaram-se-me os ossos. – Mas vamos ver melhor, disse ela, apanhando o grande baralho. Parta com a mão esquerda. Parti. Lentamente espalhou as cartas em fileira sobre o pano negro da mesa. A fileira de cima passou depois para o meio, a do meio passou para baixo. Houve outras trocas, muitas outras. Tudo isso em silêncio de confranger. Afinal falou: – As cartas confirmam. O senhor não tem inimigos, tão tem um só, mas vai matar um homem. Matará por alguém que não vale um tiro. Mexi-me nervosamente na cadeira: – Não é possível. Não tenho ódio a ninguém. – As cartas dizem. Morte violenta. Um tiro no coração! E o senhor atira bem! concluiu com firmeza. Era fato. Na Escola Militar eu tivera o primeiro prêmio de tiro ao alvo de minha turma. – Mas vou matar a quem? a quem? – As cartas não dizem. Nem podem dizer. – Quando? Como? – Elas estão silenciosas. Ergui-me agitado. – É impossível! É pilhéria! Madame de Thèbes tomou um ar de gravidade misteriosa. – As minhas cartas não pilheriam. E em seguida, com leve sorriso, para me ser agradável: – Não sou eu quem diz, são elas. Talvez não aconteça. Deus queira que não. As cartas às vezes erram... E depois de guardar o baralho: – Quer fazer-me um favor? – Às suas ordens. – Se acontecer, avise-me. Esteja o senhor onde estiver, escreva-me ou telegrafe-me. A sua ficha nº 20.003. Poucas palavras. Basta isto: 20.003 matou. Foi uma noite horrível, aquela, para mim. Dias tremendos os da primeira semana que se seguiu. Mas eu era moço e Paris fascinador. Um mês depois já me não lembrava de Madame de Thèbes nem das suas predições sinistras.
II Voltei ao Brasil com um número razoável de representações de produtos franceses e belgas. Toquei-me para Belém do Pará. As cidades do norte têm uma singularidade que se não encontra nas cidades do sul – o excesso, ou melhor, a volúpia da hospitalidade. A muitas delas chega a gente inteiramente desconhecido à tarde. E, à noite, está convidado para dançar na casa de uma família que nunca viu, no meio de uma sociedade que vê pela primeira vez. O nortista como que tem o prazer de carregar o estranho para a sua intimidade. Conhece-se hoje um indivíduo e, amanhã, ele nos leva a jantar em sua casa. Não se compreende a amizade ou o simples conhecimento que se não estenda até o lar. Poucos dias depois da minha chegada a Belém, era eu íntimo de toda a gente. Quem se tornou meu maior amigo foi Dom Pablo de Maria. Apresentaram-mo a bordo, e quando descemos à terra éramos como antigos companheiros de escola. Dom Pablo (todo o mundo lhe dava o "dom" no Pará) era um venezuelano relativamente moço, forte, alegre, exuberante, gastador, com o trust do comércio e da exportação de castanhas. Em menos de seis meses a nossa amizade se estreitou profundamente.
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Dom Pablo tinha duas casas – a da esposa. dona Corina, uma sulista de olhos claros, e a da amante, a Jupira, um lindo modelo de morena, daquelas retumbantes morenas que os sóis equatoriais do norte produzem para a alucinação dos gozos pecadores. Eu era íntimo numa como noutra casa. Ao almoço havia para mim um lugar à mesa da amante, ao jantar à mesa da esposa. Ambas as mulheres entretinham comigo uma camaradagem de irmãs, quando as irmãs são nossas camaradas. Se eu chegava (e o fazia sempre em companhia de Dom Pablo) era uma festa, como se eu fosse um parente querido que voltava de uma longa viagem. Ora, acontecia que dona Corina não sabia das ligações do marido com a Jupira. Foi dessa ignorância que partiu toda a teia do drama inesperado que convulsionou a minha mocidade. Um dia, enquanto almoçávamos, bateram à porta. Era um portador que trazia os retratos que Jupira tirara num fotógrafo qualquer. Abriu-se o embrulho ali mesmo à mesa. Estavam excelentes as fotografias e levamos o resto do almoço a comentá-las e elogiar-lhes as virtudes. Jupira ofereceu-me uma com uma dedicatória carinhosa e, por pilhéria ou qualquer outro motivo feminil que nós homens, nunca apreendemos, insistiu com Dom Pablo que aceitasse uma outra. – Estás louca! disse ele. Se eu aparecer em casa com isso a mulher esgana-me. Os entes femininos têm, às vezes, caprichos inexplicáveis. Jupira, sem que eu e ele víssemos, meteu a fotografia no bolso do amante.
Nesse momento, percebi total atenção dos alunos que se sentiam envolvidos com a
proposta e demonstraram maior interesse pelo texto ao perceberem-se leitores ativos e
responsáveis, capazes de exercerem sua própria previsibilidade. Demonstraram isso, entre
outros indicadores, com a forma com que se referiam aos personagens. Assim, passavam a
prever os próximos trechos, sem necessidade de comando ou pergunta para isso:
A1: Esse Pablo aí ta ferrado. A mulher dele vai descobrir essa foto e vai dar uma coça
nele. Safado.
A2: Jupira periguete é malandra e quer o Dom só pra ela porque ele é rico.
Assim, além da previsão da descoberta da traição, os alunos também puderam prever a
consequência do fato. Seria a previsão da previsão. Além disso, demonstraram realização de
inferência ao qualificarem o personagem como rico.
Seguiu-se, então, o texto:
Nessa tarde, não sei por que não fui jantar em casa de Dom Pablo. O que se passou ele me contou depois, Dona Corina, que não tinha o hábito de revistar-lhe os papéis e a roupa, nesse dia, ou por desconfiança ou por uma dessas coincidências que o demônio arma para a desgraça dos lares felizes, meteu-lhe a mão nos bolsos do casaco! Não há necessidade de pintar a surpresa, o choque de palavras, o barulho. Mas Dom Pablo, além de ser um homem calmo, era também uma criatura de inteligência pronta. – Para que esse estardalhaço? – disse. – Essa fotografia não me pertence. Pertence a
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Fulano (e disse o meu nome). Ele esteve a mostrar-ma hoje no escritório e esqueceu-a sobre a mesa. Meti-a no bolso para lha restituir. Ela duvidou. Ele insistiu com firmeza. – É verdade! É uma pequena que ele arranjou há poucos dias. Mas é segredo. Não quer que ninguém saiba, pois a coisa é complicada. E como dona Corina ainda se mostrasse insatisfeita, teve um gesto decisivo: – Se isto me pertencesse, se fosse de uma mulher que eu prezasse, eu faria tudo por conservá-la, não é verdade? Vou provar-te que não é assim. E zás! rasgou a fotografia, atirando-a no tapete. À noite apareceu-me afoitamente, contando-me a cena entre risadas. – Caramba! que se não me lembrasse do teu nome, a esta hora a mulher já me tinha comido o fígado! Mas, olha, não sei se ela acreditou inteiramente na farsa. O melhor é apareceres lá em casa, amanhã. Eu aludo vagamente ao caso, tu simulas perturbações comprometedoras, mostras grande interesse pela fotografia, dás um tom misterioso às palavras, fingindo que te estarás traindo, etc., e vamos ver se assim serenamos o temporal. E assim foi. Para servir a amigos nunca procurei medir o tamanho dos sacrifícios. E, principalmente, num caso daqueles, em que a paz de um lar dependia de um nada, de uma mentira sem importância. Quando, no dia seguinte, entrei em casa de Dom Pablo, já ele estava à mesa com a família. A combinação era essa. Ao ver-me, mostrou-se surpreendido, enciumado com a minha ausência. – Onde andas metido?! Não apareceste ontem à tarde, não apareceste hoje pela manhã! E depois que me sentei, mostrando um grande interesse por mim, falou da minha distração. Que eu cuidasse de ser menos distraído! De uma falta de cautela podiam resultar complicações horríveis. E como eu, muito de indústria, revelasse não estar compreendendo o alcance de suas palavras, ele perguntou-me com a habilidade de um comediante: – Não perdeste nada? – Não me recordo. – Ontem, no meu escritório, não te esqueceste de coisa nenhuma? Fiz a cena magistralmente. Ergui-me, com um choque, da cadeira: – Ah! o retrato! Tudo mais correu bem. Mostrei-me confuso, dei feição de reserva às palavras, corei, gaguejei, fiz o diabo. Dona Corina, inteiramente convencida, troçou, pilheriou, deu-me parabéns pelo meu bom gosto, afirmou que a "pequena" era um mimo e quis finalmente saber quem era. Aí então é que me tornei exímio. Não o podia dizer: não, nunca! Era um amor que nunca devia vir à luz. Nem por sonhos eu queria que alguém de leve o percebesse. Seria a minha desgraça, se ele fosse conhecido. Voltou a paz no lar de Dom Pablo. Nunca mais me lembrei daquilo.
III Uma noite, em pleno Largo da Pólvora, a praça mais febril da cidade, ia saindo do barbeiro quando me senti agarrado por dois negros. E enquanto eu procurava inutilmente defender-me dos assaltantes, alguém me vergastava brutalmente o rosto.
Ao serem questionados sobre quem achavam que estava agredindo o personagem, a
resposta foi unânime: os bandidos da cidade. Naturalmente associaram a cena do texto às
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cenas comuns aos meios em que vivem. Entretanto, cabe ressaltar que o objetivo das
atividades propostas consiste no exercício da previsão, e não no acerto dessa. Assim, ao
perceberem maior suspense quanto ao que foi relatado, tornou-se natural a associação à
realidade, já que as pistas textuais não eram suficientes para concluírem os fatos que seguem:
Só na quarta ou quinta chicotada pude reconhecer o agressor. Era o dr. Belmiro Madeira, senador estadual, presidente de várias companhias e diretor do Banco do Comércio. Aquilo era o que podia haver de mais estúpido. Ao senador Madeira eu conhecia apenas de chapéu. Pude gritar-lhe o nome, interpelá-lo no momento próprio do assalto, naqueles minutos rápidos e dramáticos do ataque. E ele, vergastando-me retalhando-me o rosto cruelmente, respondia-me apenas com estas palavras, incompreensíveis: – Não se gabe nunca de filha alheia, seu patife!
Após a leitura desse trecho, perguntei se os alunos compreenderam o que havia
acontecido, se entenderam porque Dr. Belmiro era o mandante da agressão. Contudo, apesar
do destaque na fala do personagem “Não se gabe nunca de filha alheia, seu patife!”, eles não
demonstraram compreensão, possivelmente pela ausência do conhecimento prévio da cultura
de uma época a respeito da honra das moças e seus relacionamentos. Após explicação, seguiu-
se a leitura.
Tolhido pelos negros, não pude fazer um movimento de defesa. A agressão só terminou alguns minutos depois, quando o clamor da multidão cresceu. Amigos levaram-me nos braços para casa. Ia eu com três dores naquele momento: a dor do rosto vergastado, a dor da vergonha, e a dor da estupefação. Por que, por que motivo aquele homem, que eu mal conhecia, me agredira assim em plena rua, a chicote, pungentemente, diante de todo o mundo?! A consciência não me acusava de coisa alguma. A minha vida em Belém, como vida de rapaz solteiro, era irrepreensível. Até aquele dia não tinha tido com quem quer que fosse uma disputa, uma desavença, a menor discórdia. Nunca, nunca, nem mesmo namoro eu tinha tido com filha de quem quer que fosse. Por toda a parte eu via amigos, por toda a parte. Por que aquilo? Por quê? E, durante vinte dias que estive em casa a curar-me, traguei o mais amargo fel de minha vida. Aquilo não podia parar ali. Um homem não é para ser chicoteado covardemente, miseravelmente, sem um revide, sem um gesto qualquer de vingança! E, antes que os médicos me dessem alta, a resolução se me havia firmado tranquilamente no espírito. Eu iria matar o senador Madeira. Foi numa terça-feira que pisei de novo na rua. Nem armas tinha – comprei um revólver. Ao meio-dia, à hora de saída para o almoço, fui postar-me nas vizinhanças do Banco do Comércio. O senador saiu em companhia de amigos. Eu não queria ferir senão ele, não me convinha o encontro com muita gente. Mais adiante, despediu-se dos companheiros e tomou o bonde. Acompanhei-o. O sangue fervia-me tanto que estive para desfechar os tiros ali mesmo, no bonde. Mas, nos
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bancos da frente iam crianças que voltavam da escola. Pude, felizmente, refletir na possibilidade de uma pontaria desastrada e na triste sorte daquelas crianças incautas. Contive-me. A esquina do seu palacete, o senador Madeira saltou. Saltei também. E vinte passos adiante gritei-lhe, já de revólver em punho: – Pare! Parou. – O senador agrediu-me estupidamente, covardemente, sem que eu soubesse por que; chegou a minha vez. Ele ainda meteu a mão no bolso para tirar a pistola, mas eu já estava de pontaria feita. Não fosse eu o campeão de tiro ao alvo da minha turma! Um tiro só, certeiro, no coração. Tombou, ao que parece, sem um gemido, sem um estertor. Senti como que uma onda de fogo a queimar-me a cabeça. E corri. Saí como um louco pelas ruas, num tropel de amaldiçoado. Quando dei por mim, entrava doidamente na delegacia. E narrei tudo, tudo, sem esconder uma minúcia. A notícia espalhou-se pela cidade, num segundo. A delegacia, em pouco tempo, foi invadida pelos meus amigos. Atirado para um sofá, o que eu pedia era que me deixassem em paz. Uma sonolência. Como nunca tive, aniquilou-me os nervos, a vontade, tudo. Dom Pablo entrou aterrado, numa consternação comovedora. Ao vê-lo entrar, justamente no momento em que ele transpunha a porta, lembrei-me da predição sinistra da cartomante de Paris. E, de olhos quase fechados, já dormindo, pude-lhe ainda dizer: – Telegrafe a Madame de Thèbes. Diga-lhe apenas que a ficha 20.003 matou.
IV Foi no desarrolar do inquérito que o mistério se desvendou. A leviandade inconsciente de duas mulheres tinha tecido toda aquela incompreensível trama dramática. A primeira malha nasceu no dia em que dona Corina encontrou o retrato de Jupira no bolso do marido. Dom Pablo, depois de rasgar a tal fotografia. saiu para a rua. Dona Corina apanhou pedacinho a pedacinho do retrato e reconstituiu-o. É um trabalho tipicamente feminino, esse de reconstituir fotografias duvidosas que têm tom de mistério. Não havia na mulher do venezuelano nenhuma intenção perversa; apenas um gesto natural do sexo. Mas, durante a reconstituição, uma circunstância inesperada veio-lhe assaltar a curiosidade – conhecia um rosto parecido com aquele retrato.
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Nessas ocasiões as mulheres ficam tocadas de uma ansiedade incontida e não descansam enquanto a dúvida não se esclarece. Dona Corina tinha uma amiga, dona Ritoca que, volta e meia, lhe entrava em casa. Quando dona Ritoca lhe apareceu, o que ela primeiro lhe mostrou foi a fotografia. – Vê se conhece esta cara! A outra deteve-se alguns segundos. Parece a Belinha, filha do senador Madeira. – Foi o que eu disse. – Os olhos são os mesmos. O talhe do rosto, o nariz... – E esse sinalzinho no queixo! – E esta testa! E esta boca! E prolongaram o exame. E mais se convenceram de que era a filha do senador. Dona Ritoca tinha a veia do mexerico. Embora excelente criatura, serviçal, caridosa, pelava-se por uma novidade e vivia como que no faro de escândalos. – Como esse retrato veio parar nas tuas mãos, assim rasgado? perguntou. A mulher do meu amigo não primava pela discrição. Contou tudo. – Mas vê lá, fica entre nós. Pablo disse-me que eu não contasse a ninguém. O rapaz confiou-me o segredo e não fica bem o segredo sair daqui de casa. – Casamento para breve, não? Dona Corina esguichou o rosto. Hum! Podia ser que estivesse enganada, mas não lhe parecia que aquilo fosse para casar. Pelo jeito, pelas reservas que ele (ele aqui sou eu) havia demonstrado, a coisa era outra e já muito adiantada. – São amantes! exclamou dona Ritoca com ar surpreendido. – Não sei, não sei. – Quem é que duvida! Fala-se tanto da Belinha! – Mas vê lá. Eu não sei de nada. É o que parece. Ele esconde tanto, vive tão receoso. Para dona Ritoca aquilo era o bastante. As mulheres que se pelam por novidades não refletem, um nada lhes basta para erguerem na imaginação toda uma trama novelesca. À primeira amiga que encontrou deixou escapar a notícia. E a mais outra, e a mais outra... A fábula foi tomando vulto, estendendo-se, espalhando-se. Já não era mais a simples história passada em casa de Dom Pablo. Era uma outra, complicada, complicadíssima, cheia de minúcias as mais extravagantes. Um mês depois, toda a cidade, toda, jurava a pés juntos que eu era amante de Belinha Madeira, uma criatura que eu nem ao menos conhecia de vista. Havia quem garantisse tê-la visto entrar em minha casa; havia quem me tivesse encontrado pulando o muro do seu palacete. E eu sem saber de nada, sem ter a mais vaga desconfiança do que de mim se propalava! A notícia ressoou tanto que chegou aos ouvidos do pai. Houve conselho de família. Para lavar a honra da filha. o senador mandou agarrar-me por dois negros e vergastou-me em plena rua. Quando, dias após ao meu desforço, tudo isso se desvendou através do inquérito, houve, na cidade, um movimento de simpatia e de piedade por mim. A minha inocência, o papel que eu havia incauta e inocentemente representado nisso tudo, levantaram a alma de todo o mundo. Dona Corina, a Jupira, a própria dona Ritoca, foram as minhas maiores defensoras, contando nua e crua a verdade impressionante. Houve, então, a grita a meu favor. Imprensa, advogados, juízes, só tiveram um interesse: o de pôr-me em liberdade o mais urgentemente possível.
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A minha absolvição foi estrondosa e unânime. Parecia que a cidade lavava, em mim, o erro de uma injustiça que lhe pesava incomodamente na consciência. Quando aquilo tudo acabou, eu sentia no coração uma fadiga enorme. Era como que uma inapetência indefinida flutuando-me no espírito. Precisava arejar, respirar outros ares, agitar-me noutro meio. E embarquei para a Europa. Corri a Espanha, a Itália, a Suíça. Por lá estive dois anos, retemperando a alma. De volta ao Rio, o meu vapor demorou-se vinte e quatro horas no Recife. Saltei para dormir em terra. No hotel em que me hospedei, defronte da mesa em que eu jantava, sentou-se uma mulher de belo rosto moreno e ar desenvolto de mundana. Meus olhos sentiram uma atração estranha por ela. Não era bem o desejo, era mais a curiosidade; parecia-me que eu já tinha visto aquele rosto e não me lembrava onde.
Após a leitura desse trecho, perguntei aos alunos se eles conseguiam prever quem era a
moça. Hesitaram em responder por um momento não por ausência de previsibilidade, mas
demonstraram entender que se tratando do gênero fantástico, todas as possibilidades são
viáveis. Assim afirmaram:
A1: Pode ser qualquer moça da história ou parente de algum deles.
A2: Mas também pode ser alguém que ele não conhece e parece com alguém.
A3: Pode ser uma pessoa mandada pela cartomante.
Assim, foi entregue o restante do texto para compararem com suas previsões.
A insistência dos meus olhares fez com que a mulher me sorrisse. Indaguei do garção. Era aquela a cocote de maior sensação na cidade. Para encurtar detalhes – à meia-noite ela me recebia em seu quarto. Mas havia em mim, naquela noite, qualquer coisa de anormal. Eu não sentia atração nenhuma pela tal mulher. Ao contrário. Parecia que forças estranhas me faziam repugná-la, mas uma curiosidade insopitável me aproximava dela. Quem era? Eu já tinha visto aquele rosto! Foi de mãos trémulas, quase geladas, que eu lhe apertei as mãos. – Dize: nós nunca nos vimos? Perguntei-lhe. Ela soltou uma risadinha. – Só se foi outra, alguma parecida comigo. Em minha terra havia uma mulher que era o meu retrato. – De onde és? – Do Pará. Estremeci. – E a mulher, como se chamava? – Jupira. Ergui-me tremulamente da otomana. – E tu, como te chamas? – Belinha Madeira. Fugi. Parecia que diante de mim se tinha erguido o cadáver do senador. Zuniam-me os ouvidos como se todas as vozes sinistras da terra me estivessem perseguindo. Andei aos cambaleias pelas ruas, sonso, sem destino, até o amanhecer. E hoje, depois de tantos anos, não me sai da cabeça aquela pequenina minúcia das
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predições de Madame de Thèbes – matará, matará por alguém que não vale um tiro.
O término da leitura deixou a impressão de deleite com relação à atividade. Os alunos
demonstraram compreensão e aceitação quanto ao desfecho, considerando-o como uma das
possibilidades para o término do conto.
Para verificar esse nível de compreensão e envolvimento com a leitura e sua relação
com a preditibilidade, solicitei que comentassem sobre a atividade:
A1: Ficou melhor de ler assim porque a gente não se perde na leitura e entende tudo
que está lendo.
A2: E tentar descobrir o que vem depois faz ter mais atenção.
Análise da Etapa II (atividades 2.2 e 2.3): A atividade possibilitou a constatação de que ler, nessa perspectiva da predição como
estratégia de leitura, consistiu na antecipação do conteúdo do texto pelo leitor, que para isso
utilizou seus conhecimentos prévios e as pistas linguísticas (grafo- fônicas, morfossintáticas,
semântico-pragmáticas) deixadas pelo escritor. Esses procedimentos, no entanto, não
caracterizaram, como alguém poderia pensar, uma leitura demasiadamente subjetiva ou uma
fuga do texto, mas suscitaram uma leitura mais significativa, com maior participação do leitor
mediante formulação e testagem de hipóteses.
A divisão do texto em partes selecionadas de acordo com a informação que traziam,
bem como a dependência da sequência textual, priorizou as partes de suspense no texto, o que
suscitou maior curiosidade por parte dos alunos em descobrir os acontecimentos que seguiam.
Assim, a atenção aumenta na medida em que se faz maior esforço ao tentar prever
conscientemente a sequência de acontecimentos e ao comparar a previsão feita com o
conteúdo do texto. Isso comprovou que o procedimento preditivo é um procedimento
interpretativo. Para Goodman leitura é um jogo psicolinguístico constituído de processos de
antecipação, testagem e confirmação (o que pressupõe automonitoramento). O procedimento
preditivo é uma proposta de leitura como processo de interação leitor-texto, no qual a
adivinhação desempenha o papel de provocar participação e racionalizações metalinguísticas
e os conhecimentos sobre sequências textuais ajudam o leitor a prever narrativas literárias e a
compreendê-las melhor, com mais satisfação.
Ademais, “sem o leitor, as palavras são signos mortos”, frisa Alberto Manguel, em
“Uma História da Leitura”. Considerando que o gênero textual constitui-se em importante
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variável definidora dos modos de leitura. Essa influência marcou fortemente o processo de
adivinhação. Desse modo, diante do texto literário, os leitores, na busca de compreensão, de
fruição imaginativa, da vivência do estético, desenvolveram procedimentos antecipatórios
pertinentes a essa busca.
Nessa etapa da intervenção, foi possível constatar a importância de um trabalho em
que há a colaboração de todos auxiliando nos raciocínios, com objetivos cognitivos comuns,
reforçando o sentido de cognição distribuída, dicutido por Hutchins (2001), que sustenta que
os processos cognitivos se distribuem entre os membros sociais. Pôde-se observar, nesse
sentido, “um comportamento que denota maior disponibilidade e envolvimento, fatos
considerados elementos favorecedores da monitoria do processo de compreensão.”
(BECKER; BEALL, 2008, p. 793). Assim, acredita-se que o trabalho com os textos propostos
para esse módulo foi favorecido por esse aspecto de condução do trabalho.
No que diz respeito ao ensino das estratégias, algumas considerações podem ser feitas. A
estratégia metacognitiva de preditibilidade pôde ser pensada, tanto em função do texto
proposto, quanto e em função da identificação do tema e da ideia principal, vistos também
como objetivos específicos do trabalho de leitura. Desse modo, os alunos conduziram a leitura
com o objetivo de se informarem sobre os assuntos tratados e atentos às informações que
definiriam tema, ideia principal e a sequência de ações. Assim, as perguntas propostas se
mostraram eficientes auxiliares para estabelecerem as relações entre os conhecimentos
prévios que os alunos dispunham, auxiliando-os na identificação das informações relativas ao
texto e as possibilidades preditivas. No entanto, por ser uma fase de ensino e aprendizagem,
foi ainda uma tarefa dependente do meu apoio.
Avalia-se como positivo esse primeiro momento de ensino da estratégia e pôde-se
observar o comportamento metacognitivo dos alunos em curso de aprendizagem. Ficou
evidenciada a atenção e a tentativa de controle do trabalho que estavam realizando.
Seguindo as orientações propostas por Cromley (2005) este trabalho, inicialmente
reforça a importância das estratégias. Os alunos foram conduzidos, desse modo, a pensarem
sobre os propósitos de leitura e as características previsíveis do texto e sobre o que sabiam do
assunto e, após, foram orientados a ler o texto observando os objetivos propostos. A atividade
seguinte (momento 2.4) consistiu em apresentar um trecho do conto O espelho, de
Gastão Cruls para que os alunos, após a leitura, dessem continuidade ao texto, de acordo com
a previsão que fizessem de uma possibilidade para o desfecho do conto:
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Após a leitura, os alunos produziram o desfecho demonstrando individualmente suas
próprias previsões sobre a leitura realizada.
A1
Embora os conhecimentos sobre o uso de estratégias metacognitivas sejam
prematuros, a produção do aluno apresentou-se de forma satisfatória, num esforço de
apreensão do essencial e de estabelecer as relações adequadas entre o conteúdo da leitura e o
da produção que, nesse caso, apresenta continuidade coerente do trecho do conto, visto que o
mesmo relata que houve transformações na personagem Isa. O aluno A1 também considerou
o tipo de narrador do conto, em primeira pessoa, e permaneceu com essa narrativa. Já o
desfecho apresentado foi uma possibilidade dentre tantas outras, mas manteve-se também
coerente com o trecho lido.
A2
95
Apesar desse trabalho ter sido reduzido, observa-se que o aluno conseguiu realizar a
leitura de maneira eficiente, identificando as ideias principais e desenvolveu-as.Semelhante à
produção anterior, A2 também manteve o tipo de narração do trecho dado, relatando as
possíveis mudanças que ocorreram com a personagem Isa, através do olhar do marido. Tais
mudanças referiram-se ao comportamento de Isa, uma vez que ela é retratada no texto como
uma mulher de temperamento calmo e isso é visto pelo marido como a única falha na esposa.
Assim, tanto A1, quanto A2 demonstraram atenção detalhada na leitura que fizeram do trecho
do conto, sabendo da proposta de prever a continuidade do trecho e foram coerentes com os
elementos da narrativa lida.
A3
Embora apresentar um desfecho diferente e menor, não houve comprometimento da
compreensão. A3 conseguiu hierarquizar o que seria a idéia principal e as secundárias, e a
elas associou sua narrativa, também demonstrando coerência entre leitura e produção,
relatando as mudanças da personagem em primeira pessoa.
A4
96
O aluno apresentou uma versão diferente para o conto e destacou não só maior ligação
com o início da narrativa que relatava a origem do espelho, como também a justificativa para
a transformação da personagem e, assim, demonstrou grande compreensão da leitura
realizada. Além disso, escreveu o desfecho mantendo-se no gênero conto fantástico.
A5
Mesmo com desfecho diferente e com maior quantidade de elementos presentes na
vida real, o aluno também apresentou a sequência do conto coerente com a leitura e
demonstrou entendimento do texto. Contudo, apresentou poucos elementos que remetessem
ao gênero literário ao qual o trecho dado representava.
97
A6
Entre os aspectos dessa produção, destaca-se a compreensão exercida durante a leitura
evidenciada pela relação entre a personagem e o espelho que aparece como mote para o
desfecho e mostra o cuidado do leitor em associar a importância do espelho com a finalização
da narrativa.
De modo geral, a seleção de informações foi feita de acordo com o interesse da
construção, mas consideraram a relevância cotextual, Solé (1998), uma vez que as marcas
deixadas pelo autor podem sinalizar para as informações que devem ser definidas como ideias
principais (relevância cotextual).
98
A7
Destaca-se nessa produção que, além de toda conexão com o conteúdo do trecho lido,
o aluno apresentou um desfecho coerente com o gênero trabalhado.
Naturalmente, nessa atividade, também se percebeu que há aqueles que conseguiram
produzir um desfecho de melhor qualidade, assim como aqueles que foram diferentes desse
nível. Nesse aspecto, considerando essas variações, se retoma as palavras de Solé (1998), que
diz respeito ao desenvolvimento não padronizado dos alunos, pois uns avançarão mais,
enquanto outros precisarão de mais tempo para isso. Nesse sentido, é fato que alguns
necessitarão de um suporte maior do professor a fim de vencerem as suas limitações.
Portanto, mesmo considerando certas dificuldades, o resultado da atividade foi satisfatório.
Análise da Etapa II (atividade 2.4):
Nessa atividade observou-se que favorecimento para que o aluno assumisse uma maior
monitoria e autorregulação da leitura, fato atestado pela afirmativa de que o sucesso de uma
99
atitude autorregulatória está condicionado a variáveis pessoais e contextuais. Isso indica que
as chances de envolvimento efetivo do aluno aumentam à medida em que as condições que
influenciam diretamente no seu comportamento diante do texto são devidamente observadas.
Assim, pôde se observar também, ratificando as observações feitas na atividade anterior, que
há um distanciamento entre como se tem trabalhado o texto em sala de aula e como seria uma
abordagem de leitura mais produtiva, de forma a buscar a compreensão, ficou evidente
também, o esforço, a tentativa de monitoria e avaliação das informações pela maioria.
Portanto, acredita-se que favorecidas as condições, que podem ser traduzidas em
modelagem, suporte, motivação, dentre outras, a chance de envolvimento no trabalho será
muito maior e, por conseguinte, beneficiará a monitoria do trabalho, reforçando o constatado
em pesquisa comentada por Beker e Beall (2008, p. 793), que a monitoria é dependente não só
de habilidades, mas também da motivação e da vontade.
Observou-se ainda o quanto é necessário se ater aos conhecimentos prévios do
aprendiz, criando condições para que esses conhecimentos não se tornem impedimento da
atitude metacognitiva necessária à compreensão, como informa Cromley (2005, p. 208).
Por fim, a produção mostrou-se eficiente, no sentido de propiciar uma maior
orientação das relações entre as informações, evidenciando-se como uma possibilidade de
favorecer o exercício mental de estabelecer a coerência e a hierarquia informacional entre o
que foi lido e o que foi produzido após a atividade de previsão.
Mesmo considerando certas dificuldades encontradas pelos alunos, avalia-se como
positivos os resultados relativos à orientação do ensino das estratégias, considerando que os
alunos se mobilizaram em um esforço mental na tentativa de compreender o texto,
evidenciando um direcionamento de monitoria necessária à atividade metacognitiva.
3. Etapa III
Quadro 3 - Etapa III: Produzir e consolidar
Produzir e consolidar
Objetivos: • Refletir sobre a importância da produção de preditibilidade como estratégia
favorecedora para compreender e aprender. • Revisar as estratégias e as regras que guiam a produção de uma previsão. • Exercitar o uso de estratégia metacognitiva de leitura.
Ações:
100
• Momento 3.1: Leitura do conto fantástico As formigas, de Lygia Fagundes Telles.
• Momento 3.2: Marcação dos momentos de previsão na leitua. • Momento 3.3: Descrição da previsão realizada. • Momento 4.4: Justificativa para a previsão.
Metodologia:
• Aula dialogada. • Aula expositiva.
Acompanhamento da aprendizagem:
• Participação nas discussões durante as aulas e envolvimento na realização das
atividades propostas.
Recursos: • Data show
• Notebook
• Folha xerografada
Carga horária: 6 h/a
Síntese da Etapa
A atividade consistiu na leitura individual do conto As formigas, de Lygia Fagundes
Telles e seguiu com a proposta dos alunos sinalizarem no texto os momentos em que fizeram
alguma previsão, a partir do sentido construído até o sobre momento subsequente e que
justificassem a previsão feita. Assim, as respostas foram recolhidas oralmente e anotadas por
mim, de forma que pudesse condensar as repetições.
As formigas
Quando minha prima e eu descemos do táxi, já era quase noite. Ficamos imóveis
diante do velho sobrado de janelas ovaladas, iguais a dois olhos tristes, um deles vazado por
uma pedrada. Descansei a mala no chão e apertei o braço da prima.
101
– É sinistro.
PREVISÃO 1 Pensei que pode ser uma casa mal assombrada.
JUSTIFICATIVA Por causa dela ser velha e sinistra.
Ela me impeliu na direção da porta. Tínhamos outra escolha? Nenhuma pensão nas
redondezas oferecia um preço melhor a duas pobres estudantes com liberdade de usar o
fogareiro no quarto, a dona nos avisara por telefone que podíamos fazer refeições ligeiras com
a condição de não provocar incêndio. Subimos a escada velhíssima, cheirando a creolina.
– Pelo menos não vi sinal de barata – disse minha prima.
A dona era uma velha balofa, de peruca mais negra do que a asa da graúna. Vestia um
desbotado pijama de seda japonesa e tinha as unhas aduncas recobertas por uma crosta de
esmalte vermelho-escuro, descascado nas pontas encardidas. Acendeu um charutinho.
PREVISÃO 2 Achei que a dona da casa podia ser uma bruxa.
JUSTIFICATIVA Porque era esquisita... velha, balofa, mal arrumada e fumava charuto.
– É você que estuda medicina? – perguntou soprando a fumaça na minha direção.
– Estudo direito. Medicina é ela.
A mulher nos examinou com indiferença. Devia estar pensando em outra coisa quando
soltou uma baforada tão densa que precisei desviar a cara. A saleta era escura, atulhada de
móveis velhos, desparelhados. No sofá de palhinha furada no assento, duas almofadas que
pareciam ter sido feitas com os restos de um antigo vestido, os bordados salpicados de
vidrilho.
Vou mostrar o quarto, fica no sótão – disse ela em meio a um acesso de tosse. Fez um
sinal para que a seguíssemos. – O inquilino antes de vocês também estudava medicina, tinha
um caixotinho de ossos que esqueceu aqui, estava sempre mexendo neles.
Minha prima voltou-se:
– Um caixote de ossos?
A mulher não respondeu, concentrada no esforço de subir a estreita escada de caracol
que ia dar no quarto. Acendeu a luz. O quarto não podia ser menor, com o teto em declive tão
acentuado que nesse trecho teríamos que entrar de gatinhas. Duas camas, dois armários e uma
cadeira de palhinha pintada de dourado. No ângulo onde o teto quase se encontrava com o
102
assoalho, estava um caixotinho coberto com um pedaço de plástico. Minha prima largou a
mala e, pondo-se de joelhos, puxou o caixotinho pela alça de corda. Levantou o plástico.
Parecia fascinada.
– Mas que ossos tão miudinhos! São de criança?
– Ele disse que eram de adulto. De um anão.
– De um anão? É mesmo, a gente vê que já estão formados… Mas que maravilha, é
raro a beça esqueleto de anão. E tão limpo, olha aí – admirou-se ela. Trouxe na ponta dos
dedos um pequeno crânio de uma brancura de cal. – Tão perfeito, todos os dentinhos!
PREVISÃO 3 O anão poderia ter sido marido da dona da casa que ela matou,
mas a história do estudante de medicina tinha que ser mentira dela.
JUSTIFICATIVA Porque a dona da casa era esquisita e não tinha jogado fora os ossos antes das meninas chegarem.
– Eu ia jogar tudo no lixo, mas se você se interessa pode ficar com ele. O banheiro é
aqui ao lado, só vocês é que vão usar, tenho o meu lá embaixo. Banho quente extra. Telefone
também. Café das sete às nove, deixo a mesa posta na cozinha com a garrafa térmica, fechem
bem a garrafa recomendou coçando a cabeça. A peruca se deslocou ligeiramente. Soltou uma
baforada final: – Não deixem a porta aberta senão meu gato foge.
Ficamos nos olhando e rindo enquanto ouvíamos o barulho dos seus chinelos de salto
na escada. E a tosse encatarrada.
Esvaziei a mala, dependurei a blusa amarrotada num cabide que enfiei num vão da
veneziana, prendi na parede, com durex, uma gravura de Grassman e sentei meu urso de
pelúcia em cima do travesseiro. Fiquei vendo minha prima subir na cadeira, desatarraxar a
lâmpada fraquíssima que pendia de um fio solitário no meio do teto e no lugar atarraxar uma
lâmpada de duzentas velas que tirou da sacola. O quarto ficou mais alegre. Em compensação,
agora a gente podia ver que a roupa de cama não era tão alva assim, alva era a pequena tíbia
que ela tirou de dentro do caixotinho. Examinou- a. Tirou uma vértebra e olhou pelo buraco
tão reduzido como o aro de um anel. Guardou-as com a delicadeza com que se amontoam
ovos numa caixa.
– Um anão. Raríssimo, entende? E acho que não falta nenhum ossinho, vou trazer as
ligaduras, quero ver se no fim da semana começo a montar ele.
103
PREVISÃO 4 Achei que o anão ia assombrar as meninas.
JUSTIFICATIVA Por causa da história ser de terror e ter os ossos do anão no quarto.
Abrimos uma lata de sardinha que comemos com pão, minha prima tinha sempre
alguma lata escondida, costumava estudar até de madrugada e depois fazia sua ceia. Quando
acabou o pão, abriu um pacote de bolacha Maria.
– De onde vem esse cheiro? – perguntei farejando. Fui até o caixotinho, voltei, cheirei
o assoalho. – Você não está sentindo um cheiro meio ardido?
– É de bolor. A casa inteira cheira assim – ela disse. E puxou o caixotinho para
debaixo da cama.
PREVISÃO 5 Imaginei que teria cadáver na casa.
JUSTIFICATIVA Por causa do cheiro horrível, tipo de gente morta.
No sonho, um anão louro de colete xadrez e cabelo repartido no meio entrou no quarto
fumando charuto. Sentou-se na cama da minha prima, cruzou as perninhas e ali ficou muito
sério, vendo-a dormir. Eu quis gritar, tem um anão no quarto! mas acordei antes. A luz estava
acesa. Ajoelhada no chão, ainda vestida, minha prima olhava fixamente algum ponto do
assoalho.
PREVISÃO 6 O anão devia estar assombrando a menina.
JUSTIFICATIVA Porque ele aparecia para ela nos sonhos.
– Que é que você está fazendo aí? – perguntei.
– Essas formigas. Apareceram de repente, já enturmadas. Tão decididas, está vendo?
Levantei e dei com as formigas pequenas e ruivas que entravam em trilha espessa pela
fresta debaixo da porta, atravessavam o quarto, subiam pela parede do caixotinho de ossos e
desembocavam lá dentro, disciplinadas como um exército em marcha exemplar.
– São milhares, nunca vi tanta formiga assim. E não tem trilha de volta, só de ida –
estranhei.
– Só de ida.
Contei-lhe meu pesadelo com o anão sentado em sua cama.
– Está debaixo dela – disse minha prima e puxou para fora o caixotinho. Levantou o
plástico. – Preto de formiga. Me dá o vidro de álcool.
104
– Deve ter sobrado alguma coisa aí nesses ossos e elas descobriram, formiga descobre
tudo. Se eu fosse você, levava isso lá pra fora.
– Mas os ossos estão completamente limpos, eu já disse. Não ficou nem um fiapo de
cartilagem, limpíssimos. Queria saber o que essas bandidas vem fuçar aqui.
Respingou fartamente o álcool em todo o caixote. Em seguida, calçou os sapatos e
como uma equilibrista andando no fio de arame, foi pisando firme, um pé diante do outro na
trilha de formigas. Foi e voltou duas vezes. Apagou o cigarro. Puxou a cadeira. E ficou
olhando dentro do caixotinho.
– Esquisito. Muito esquisito.
– O quê?
– Me lembro que botei o crânio em cima da pilha, me lembro que até calcei ele com as
omoplatas para não rolar. E agora ele está aí no chão do caixote, com uma omoplata de cada
lado. Por acaso você mexeu aqui?
– Deus me livre, tenho nojo de osso. Ainda mais de anão.
PREVISÃO 7 Achei que os ossos do anão tinham tomado vida.
JUSTIFICATIVA Porque estavam se mexendo.
Ela cobriu o caixotinho com o plástico, empurrou-o com o pé e levou o fogareiro para
a mesa, era a hora do seu chá. No chão, a trilha de formigas mortas era agora uma fita escura
que encolheu. Uma formiguinha que escapou da matança passou perto do meu pé, já ia
esmagá-la quando vi que levava as mãos a cabeça, como uma pessoa desesperada. Deixei-a
sumir numa fresta do assoalho.
Voltei a sonhar aflitivamente mas dessa vez foi o antigo pesadelo em torno dos
exames, o professor fazendo uma pergunta atrás da outra e eu muda diante do único ponto que
não tinha estudado. Às seis horas o despertador disparou veementemente. Travei a campainha.
Minha prima dormia com a cabeça coberta. No banheiro, olhei com atenção para as paredes,
para o chão de cimento, a procura delas. Não vi nenhuma. Voltei pisando na ponta dos pés e
então entreabri as folhas da veneziana. O cheiro suspeito da noite tinha desaparecido. Olhei
para o chão: desaparecera também a trilha do exército massacrado. Espiei debaixo da cama e
não vi o menor movimento de formigas no caixotinho coberto.
Quando cheguei por volta das sete da noite, minha prima já estava no quarto. Achei-a
tão abatida que carreguei no sal da omelete, tinha a pressão baixa. Comemos num silêncio
voraz. Então me lembrei:
105
– E as formigas?
– Até agora, nenhuma.
– Você varreu as mortas?
Ela ficou me olhando.
– Não varri nada, estava exausta. Não foi você que varreu?
– Eu?! Quando acordei, não tinha nem sinal de formiga nesse chão, estava certa que
antes de deitar você juntou tudo… Mas então quem?!
Ela apertou os olhos estrábicos, ficava estrábica quando se preocupava.
– Muito esquisito mesmo. Esquisitíssimo.
PREVISÃO 8 Achei que as duas estavam tendo delírios de assombração.
JUSTIFICATIVA Por causa das formigas sumirem.
Fui buscar o tablete de chocolate e perto da porta senti de novo o cheiro, mas seria
bolor? Não me parecia um cheiro assim inocente, quis chamar a atenção da minha prima para
esse aspecto mas estava tão deprimida que achei melhor ficar quieta. Espargi água-de-colônia
flor de maçã por todo o quarto (e se ele cheirasse como um pomar?) e fui deitar cedo. Tive o
segundo tipo de sonho que competia nas repetições com o sonho da prova oral: nele, eu
marcava encontro com dois namorados ao mesmo tempo. E no mesmo lugar. Chegava o
primeiro e minha aflição era levá-lo embora dali antes que chegasse o segundo. O segundo,
desta vez, era o anão. Quando só restou o oco de silêncio e sombra, a voz da minha prima me
fisgou e me trouxe para a superfície. Abri os olhos com esforço. Ela estava sentada na beira
da minha cama, de pijama e completamente estrábica.
– Elas voltaram.
– Quem?
– As formigas. Só atacam de noite, antes da madrugada. Estão todas aí de novo.
A trilha da véspera, intensa, fechada, seguia o antigo percurso da porta até o
caixotinho de ossos por onde subia na mesma formação até desformigar lá dentro. Sem
caminho de volta.
– E os ossos?
Ela se enrolou no cobertor, estava tremendo.
PREVISÃO 9 Pensei que as formigas iam atacá-las nessa hora.
JUSTIFICATIVA Porque a menina estava com muito medo.
106
Aí é que está o mistério. Aconteceu uma coisa, não entendo mais nada! Acordei pra
fazer pipi, devia ser umas três horas. Na volta senti que no quarto tinha algo mais, está me
entendendo? Olhei pro chão e vi a fila dura de formiga, você lembra? não tinha nenhuma
quando chegamos. Fui ver o caixotinho, todas trançando lá dentro, lógico, mas não foi isso o
que quase me fez cair pra trás, tem uma coisa mais grave: é que os ossos estão mesmo
mudando de posição, eu já desconfiava mas agora estou certa, pouco a pouco eles estão…
estão se organizando.
– Como, organizando?
Ela ficou pensativa. Comecei a tremer de frio, peguei uma ponta do seu cobertor.
Cobri meu urso com o lençol.
– Você lembra, o crânio entre as omoplatas, não deixei ele assim. Agora é a coluna
vertebral que já está quase formada, uma vértebra atrás da outra, cada ossinho tomando seu
lugar, alguém do ramo está montando o esqueleto, mais um pouco e… Venha ver!
PREVISÃO 10 A alma anão devia estar brincando com elas.
JUSTIFICATIVA Porque o anão só ficava se mexendo, botando medo e não tinha feito mal nenhum.
PREVISÃO 11 Ou a dona da casa.
JUSTIFICATIVA Porque a dona da casa era estranha e tinha cheiro ruim na casa e podia ser que ela era psicopata.
– Credo, não quero ver nada. Estão colando o anão, é isso?
Ficamos olhando a trilha rapidíssima, tão apertada que nela não caberia sequer um
grão de poeira. Pulei-a com o maior cuidado quando fui esquentar o chá. Uma formiguinha
desgarrada (a mesma daquela noite?) sacudia a cabeça entre as mãos. Comecei a rir e tanto
que se o chão não estivesse ocupado, rolaria por ali de tanto rir. Dormimos juntas na minha
cama. Ela dormia ainda quando saí para a primeira aula. No chão, nem sombra de formiga,
mortas e vivas, desapareciam com a luz do dia.
Voltei tarde essa noite, um colega tinha se casado e teve festa. Vim animada, com
vontade de cantar, passei da conta. Só na escada é que me lembrei: o anão. Minha prima
arrastara a mesa para a porta e estudava com o bule fumegando no fogareiro.
– Hoje não vou dormir, quero ficar de vigia – ela avisou.
O assoalho ainda estava limpo. Me abracei ao urso.
– Estou com medo.
107
PREVISÃO 12 Achei que o anão ia matar as duas.
JUSTIFICATIVA Porque parecia assombração.
Ela foi buscar uma pílula para atenuar minha ressaca, me fez engolir a pílula com um
gole de chá e ajudou a me despir.
– Fico vigiando, pode dormir sossegada. Por enquanto não apareceu nenhuma, não
está na hora delas, é daqui a pouco que começa. Examinei com a lupa debaixo da porta, sabe
que não consigo descobrir de onde brotam?
Tombei na cama, acho que nem respondi. No topo da escada o anão me agarrou pelos
pulsos e rodopiou comigo até o quarto, acorda, acorda! Demorei para reconhecer minha prima
que me segurava pelos cotovelos. Estava lívida. E vesga.
– Voltaram – ela disse.
Apertei entre as mãos a cabeça dolorida.
– Estão aí?
Ela falava num tom miúdo como se uma formiguinha falasse com sua voz.
– Acabei dormindo em cima da mesa, estava exausta. Quando acordei, a trilha já
estava em plena. Então fui ver o caixotinho, aconteceu o que eu esperava…
– Que foi? Fala depressa, o que foi?
Ela firmou o olhar oblíquo no caixotinho debaixo da cama.
– Estão mesmo montando ele. E rapidamente, entende? O esqueleto está inteiro, só
falta o fêmur. E os ossinhos da mão esquerda, fazem isso num instante. Vamos embora daqui.
– Você está falando sério?
– Vamos embora, já arrumei as malas.
PREVISÃO 13 A velha ia aparecer e prender as duas na casa.
JUSTIFICATIVA Porque ela parecia uma maluca assassina.
A mesa estava limpa e vazios os armários escancarados.
– Mas sair assim, de madrugada? Podemos sair assim?
– Imediatamente, melhor não esperar que a bruxa acorde. Vamos, levanta.
– E para onde a gente vai?
– Não interessa, depois a gente vê. Vamos, vista isto, temos que sair antes que o anão
fique pronto.
Olhei de longe a trilha: nunca elas me pareceram tão rápidas. Calcei os sapatos,
descolei a gravura da parede, enfiei o urso no bolso da japona e fomos arrastando as malas
108
pelas escadas, mais intenso o cheiro que vinha do quarto, deixamos a porta aberta. Foi o gato
que miou comprido ou foi um grito?
PREVISÃO 14 O anão voltou à vida e matou a velha.
JUSTIFICATIVA Por causa do grito e só tinha a velha na casa. No céu, as últimas estrelas já empalideciam. Quando encarei a casa, só a janela vazada
nos via, o outro olho era penumbra.
Análise da Etapa III
Ao analisar as previsões e suas justificativas, percebo que já na primeira previsão do
texto nota-se que a descrição da casa, bem como o fato do conto se tratar de um conto
fantástico de assombração – gênero em estudo – contribuíram com a previsão de que era “mal
assombrada”. Percebo aqui, como nas demais previsões que os alunos fizeram sobre esse
conto, um possível elo entre o sentido já construído pela leitura dos trechos com os momentos
que seguiram no texto. Assim, fica clara a construção de predição que poderá acompanhar a
leitura. Apesar da primeira previsão, assim como outras, não ser evidenciada no texto, ela foi
confirmada, na opinião do aluno, no final da narrativa.
Contudo, cabe lembrar que o objetivo deste trabalho não consiste em quantificar
acertos das previsões, mas em preparar cognitivamente o leitor para a recepção do trecho
subsequente para que o texto não se configure numa caixa de surpresa, de forma que torne o
seu processamento mais trabalhoso, com mais retomadas para que o aluno estabeleça as
relações entre as sequências de informações.
Também ressalta-se a autonomia com que passaram a estabelecer as previsões com
total coerência, comprovadas pela justificativa, como exemplo, a segunda previsão da
atividade que, como as demais, teve a pausa marcada pelo próprio aluno, de forma totalmente
autônoma, ao perceber que se tratava de mais um momento em que conseguiu predizer o
conteúdo subsequente do texto. Nessa previsão, o aluno também recorreu ao seu
conhecimento prévio sobre bruxas, além de considerar a descrição da personagem – a dona da
casa. E, assim, mais uma vez, ficou evidente que não só a atividade alcançou o objetivo, mas
também houve a compreensão leitora.
A previsão seguinte, sobre a possibilidade do anão ser marido da mulher descrita, foi
acompanhada da justificativa que apresentou a habilidade de inferência do aluno ao dizer que
a caixa de ossos já deveria ter sido jogada fora, ao menos que houvesse relação afetiva entre a
109
dona da casa e a pessoa que morreu. O mesmo observou-se na quinta previsão e justificativa
sobre a possível causa do odor desagradável na casa.
A quarta justificativa da previsão sobre o anão assombrar a casa considerou o gênero
textual em estudo, sendo variável definidora dos modos de leitura que, segundo Adams
(2008), apesar da flexibilidade da abordagem por protótipos, ou seja, por sequências
dominantes, os textos são estruturas de tal forma diversas e intrincadas que é impossível uma
tipologia – “sauf par commodités pédagogiques illusoires”, pondera Adam, na introdução ao
“Les Textes types et prototypes”. Em contrapartida, propõe Adam, o possível é identificar os
segmentos menores que o texto, geralmente compostos de diversas frases: as sequências
dominantes. Aparecendo com regularidade nos textos, as sequências, esses esquemas de
agrupamento enunciativo-semântico, induzem a um reconhecimento imediato do protótipo a
que o texto pertence.
Já a última previsão dos alunos sobre o conto, apesar de não ser confirmada, nem
refutada pelo texto, consistiu em uma possibilidade para o desfecho que encerrou o texto em
suspense.
Assim, foi possível encontrar uma correlação positiva do exercício da predição com a
compreensão e a satisfação leitora ao investigar a relação entre preditibilidade e fruição
literária; investigar como a adivinhação pôde ser um exercício da consciência metalinguística
e como planejamento deliberado de atividades mentais levam à compreensão.
110
4 ANÁLISE DOS RESULTADOS
O educador, em seu fazer diário, reconhece muito bem os problemas que o aflige, que
atingem os seus alunos e que trazem tanto desconforto. Sabe que precisa tentar fazer algo para
solucioná-los e caminha nessa tentativa. Esmorece, às vezes, e, de cabeça baixa, pode seguir
por algum tempo, contudo, é difícil permanecer indiferente e insensível aos problemas e, por
isso, sempre que é possível acreditar em mudanças, reúne novos ânimos para agir.
Foi, portanto, acreditando na possibilidade de promover mudanças que se pensou na
apropriação de conhecimentos cognitivos que favorecessem o ensino de estratégias de leitura,
com foco na metacognição. Tal proposta foi ao encontro dos objetivos do Programa de
Mestrado Profissional em Letras (Profletras), que, entre outras coisas, pretende munir
professores de conhecimentos necessários para intervir no processo de ensino/aprendizagem
das escolas públicas brasileiras, a fim de promover melhorias na qualidade da aprendizagem,
incluindo-se a competência leitora.
Ensinar o aluno a ler, na medida da compreensão e da aprendizagem, foi uma proposta
desafiadora que trouxe a tona evidências, não só da falta de habilidades do aluno diante do
texto, mas também, da falta de orientações por parte da escola para o uso de estratégias
metacognitivas de leitura.
Viu-se que os jovens aprendizes brasileiros, incluindo os desta pesquisa, possuem
dificuldades de compreensão leitora, o que sugere que não abordam o texto da forma
satisfatória. Faltam-lhes, desse modo, desenvolver as ferramentas intelectuais e as estratégias
de aprendizagem necessárias para a aquisição de conhecimento. Tais ferramentas e estratégias
estão diretamente ligadas aos processos mentais cognitivos e metacognitivos possivelmente
desconhecidos por muitos professores.
Para vencer essa limitação de ler e não compreender, ponderou-se sobre a necessidade
de conduzir os alunos a uma atitude mais consciente diante do texto, monitorando, avaliando
e autorregulando a atividade de leitura, comportamento a ser favorecido pelo o uso da
estratégia metacognitiva de leitura: a preditibilidade.
Para tal empreendimento, foram feitos aprofundamentos dos estudos que direcionaram
esta proposta, tendo como pressupostos teóricos e conceituais as ciências cognitivas, que
revelam, entre outras coisas, que o processo de aprender a ler, compreensivamente, demanda
processos mentais múltiplos, conhecidos como cognitivos e metacognitivos, além de
aprofundamento de conhecimentos que estão diretamente ligados aos processos mentais da
111
aprendizagem, que se apresentam como variáveis que podem interferir nesse processo.
Considerou-se também, nesse estudo, a relevância do suporte do professor a ancorar o
crescimento cognitivo dos alunos, modelando inicialmente a estratégia, guiando-os e
provendo o suporte necessário para que, posteriormente, possam praticar com autonomia e
segurança.
Primou-se, assim, por desenvolver a proposta através de três etapas de trabalho que
favoreceram um contínuo do processo interventivo. Desse modo, refletir sobre o sentido de
leitura e a sua importância foi elementar para pensar o propósito de ensiná-la e aprendê-la.
Pensar o que está envolvido na aprendizagem, refletindo sobre os comportamentos
realizados de modo automático ou consciente, assim como no papel da atenção para
compreender e aprender, foi uma preocupação que ocupou esta intervenção. Além de dar
sentido às cobranças da escola/professores, tais informações contribuíram para a elucidação
dos comportamentos necessários às atividades realizadas.
As duas últimas etapas foram reservadas ao ensino e a prática das estratégias
metacognitiva de leitura - preditibilidade, sendo conduzidos a partir de atividades
colaborativas: da modelagem da estratégia pela pesquisadora, do trabalho dos alunos guiados
pela pesquisadora e do trabalho individual, ocasiões em que foi possível avaliar uma maior ou
menor autonomia do aluno no uso das estratégias ensinadas.
Todo o trabalho, portanto, primou por dar condições aos alunos, não só de
compreenderem o sentido de leitura e a sua importância, como também de desenvolverem
consciência da necessidade do esforço do próprio aprendiz.
Se, por um lado, ao longo do trabalho, foi possível avaliar algumas limitações
impostas aos alunos, por não serem dadas a eles condições de abordarem o texto a partir de
estratégias metacognitivas, por outro, pôde-se também observar um retorno do trabalho que
foi desenvolvido, constatando-se uma atitude mais reflexiva desses jovens diante do texto.
É possível dizer que algumas imprevisibilidades (ou dificuldades) foram vivenciadas
durante a realização desta pesquisa. Destaco aqui três delas: a primeira diz respeito à
quantidade de atividades planejadas e a necessidade de readequação de alguns momentos. A
segunda, pode ser resumida pela constatação de que a condução ou apoio do professor
precisou ser estendido por um tempo superior ao previsto. A terceira, se relaciona ao fato de
que a consolidação de estratégias metacognitivas de leitura mostrou-se um processo que
precisa ser distendido no tempo, para que resultados efetivos possam ser vislumbrados.
Contudo, embora se avalie que a assimilação dessas práticas e a adoção desse hábito
de abordagem de leitura demande tempo, observou-se que a estratégia metacognitiva ensinada
112
pôde ser usada, com eficiência, o que foi demonstrado em cada resposta de cada atividade
realizada, evidenciando a compreensão dos textos trabalhados.
Houve indicativos, portanto, de que um trabalho sistemático com o direcionamento
estratégico metacognitivo pode promover, de fato, mudanças no modo como o aluno aborda o
texto, favorecendo a consciência e monitoria do processo de compreensão, a partir das
habilidades que se tornam essenciais para isso.
Reforça-se, desse modo, o valor dos conhecimentos a direcionar o fazer educativo para
que se promovam condições de práticas mais eficientes de ensino. A falta de solidez de
informações conduz ao erro, à incerteza, ao engano. Prejuízos que são jogados nas mãos de
quem não se poderia jogar, os alunos. Embora não se descarte os saberes intuitivos guiando as
ações de muitos profissionais, o melhor é ter o norte para não se perder por tantas vezes,
buscando responsáveis por não se encontrar o caminho certo.
Espera-se, portanto, que esse trabalho sirva para reflexões mais profundas sobre o
ensino de leitura e sobre os processos metacognitivos nela envolvidos, vislumbrando uma
abordagem de ensino em que se promova, de forma sistemática, a aprendizagem com
entendimento. Deixa-se, assim, a contribuição favorecida por esta intervenção e, em aberto,
possibilidades de se continuar testando caminhos para ensinar e aprender nessa perspectiva.
113
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A leitura, enquanto processo interativo, está vinculada a diversas estruturas: sociais,
afetivas, cognitivas. Para chegar a um nível de leitura desejado, quando o leitor é capaz de
atribuir sentido ao texto, vários processos devem ser considerados: decodificação,
compreensão, inferenciação, conhecimentos prévios do leitor, intencionalidade do autor e do
leitor, situação de comunicação, etc.
Sendo a leitura cada vez mais valorizada pela sociedade, torna-se fundamental que a
escola prepare os sujeitos visando à formação de leitores proficientes. Entretanto, o que fica
evidenciado nos resultados de testes e avaliações realizados para “medir” o nível de
proficiência dos estudantes brasileiros não é nada animador.
Diante desta situação, a saída é ensinar o aluno a ler, mas não do jeito que vem sendo
feito, pois já temos provas de que não é o mais eficaz. É preciso que o aluno aprenda a utilizar
estratégias de leitura.
Apesar de todos os avanços já conquistados, a escola e consequentemente professores
e alunos, muitas vezes, continuam concebendo leitura como mera decodificação. Leitura
ainda é tratada por alguns como se fosse um processo separado da atribuição de sentido.
Trabalha-se a leitura e depois a compreensão do texto como se fossem processos estanques.
Outro aspecto que também dificulta a compreensão do aluno é o fato de não se
considerar as especificidades de cada gênero. Quando o aluno vai ao texto já conhecendo suas
características tem mais facilidade em fazer as devidas associações e chegar à atribuição de
sentido.
Chegou-se a essa conclusão durante o processo de intervenção pedagógica.
Gradativamente ia notando o avanço dos sujeitos participantes. As dificuldades
diagnosticadas na fase inicial foram, uma a uma, sendo trabalhadas durante a intervenção e
minimizadas.
Através da aplicação de atividades voltadas o exercício da preditibilidade como
estratégia, provocando a antecipação e incentivando a associação das informações trazidas
pelo texto com as previsões, os alunos iam desvendando os segredos do texto, os ocultos iam
se manifestando e o que era escuro se clarificava; a leitura acontecia no seu sentido mais
amplo.
114
Comparando o resultado a compreensão leitora antes e pós intervenção, pode-se
concluir que os alunos avançaram muito.
Diante disto, a preditibilidade aparece como uma importante estratégia para a
compreensão do texto e, naturalmente, é de certa forma, utilizada pelos sujeitos. Entretanto,
muitas vezes, elas são fundamentadas em informações puramente extratextuais, ou, até
mesmo em adivinhações a partir do conhecimento prévio que o sujeito tem, ou seja, o aluno
se apega a um dado elemento ou informação do texto e, com base nisto, busca um sentido.
Assim, cabe ao professor mediar essa relação entre leitor e texto, dando o suporte necessário
para que o aluno faça previsões direcionadas pelo texto, que sejam produtivas.
Ler é atualmente condição fundamental para a inserção na sociedade e a escola não
pode se isentar desta função. Os resultados obtidos com a nossa proposta de intervenção
pedagógica permite concluir que projetos e atividades bem direcionados, elaborados
criteriosamente, com objetivos bem definidos, colaboram em muito para o alcance deste
propósito. Espero que esta proposta aqui apresentada possa contribuir de alguma maneira, seja
proporcionando uma reflexão ou até como parâmetro para elaboração de outras atividades,
para a prática de professores de Língua Portuguesa e, consequentemente, para o aprendizado
de leitura.
115
REFERÊNCIAS
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TELLES, Lygia Fagundes. As formigas, In: O conto da mulher brasileira - Vertente 1978. TODOROV, T. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1975.
118
APÊNDICE A - Memorial da Pesquisadora apresentado aos alunos
MEMORIAL DA PESQUISADORA APRESENTADO AOS ALUNOS
A curiosidade sobre os livros e o encanto com as histórias me levaram a aprender a ler
antes do tempo comum às outras crianças. Privilégio meu era ter uma irmã mais velha que me
deixava assistir às suas tarefas e que brincando de professora, enquanto eu era aluna,
aproveitada cada instante da brincadeira como se fosse real. Mexia nos livros dela, nos jornais
comprados diariamente pelo meu avô, nos anúncios de iogurte da Xuxa... Tudo que era escrito
era mágico. Assim, depois de ser alfabetizada na escola, antes dos demais colegas, passava os
dias lendo os gibis, brincando na lousa, folheando os livros.
Contudo, a grande descoberta veio anos mais tarde: a biblioteca! Como não queria
correr no chão de barro durante todo o recreio, uma amiga solitária apresentou-me o espaço
mágico e silencioso onde se refugiava todos os dias. Ali, aprendi que no silêncio da biblioteca
eu poderia ser qualquer pessoa, fazer qualquer coisa e em qualquer lugar. Desde então, passei
a chegar atrasada nas aulas depois do recreio e a ter sempre um livro me fazendo companhia
no caminho de volta para casa.
Dessa forma comecei a me apaixonar pelo mundo das letras e dos livros.
119
APÊNDICE B – Autorização para Desenvolvimento de Projeto de Pesquisa À Escola Estadual Ciep 322 Mozart Cunha Guimarães Assunto: Desenvolvimento de Projeto de Pesquisa – Dissertação de Mestrado
Prezada Direção
Venho, por meio desta, solicitar a sua autorização para que eu, Amanda dos Santos
Angra Ouverney, regularmente matriculada no PROFLETRAS – Mestrado Profissional em
Letras da Universidade Estadual do Rio de Janeiro / Faculdade de Formação de Professores,
possa, ao longo deste ano letivo, desenvolver uma pesquisa com estudantes dos 9º ano do
Ensino Fundamental.
Para melhores esclarecimentos de como se dará o trabalho nesta Unidade Escolar,
informo-lhe o seguinte:
Resumo do Projeto:
A pesquisa consiste na observação das dificuldades enfrentadas pelos estudantes no que diz
respeito à leitura, mais especificamente em relação ao uso e eficácia das estratégias
metacognitivas utilizadas durante essa atividade.
Informo-lhe, também, que o material coletado será usado exclusivamente para uso
neste projeto e que os estudantes terão as suas identidades preservadas e sua participação
dependerá da autorização de seus responsáveis. Logo, o material coletado será considerado
confidencial e os nomes dos informantes não serão divulgados.
Acrescento, ainda, que os informantes selecionados terão total liberdade de expressão
e que estarão igualmente livres para decidirem continuar ou não a colaborar com a
pesquisa.
Certa de contar com a prestimosa colaboração desta Direção, aproveito a
oportunidade para expressar-lhe minha estima e consideração, agradecer-lhe
antecipadamente e colocar-me à sua disposição para melhores esclarecimentos (Tel.:
(22)988511413 ou (22)25223612
Atenciosamente, Amanda dos Santos Angra Ouverney
Prof. I Língua Portuguesa (Mat. 09613324) Aluna do Profletras (Mat. MP 1421384)
Autorizada por:
120
APÊNDICE C – Formulário de autorização para os alunos participarem da pesquisa
Prezado responsável,
Meu nome é Amanda dos Santos Angra Ouverney. Faço mestrado na FFP-UERJ e
pretendo aplicar uma parte da pesquisa que tenho desenvolvido no curso ao trabalho que
venho realizando como professora de Língua Portuguesa.
Seu / sua filho (a) foi escolhido (a) para participar dessa pesquisa que tem por
objetivo analisar a leitura dele (a) e testar atividades que possam melhorar essa habilidade.
Isso significa que ele (a) fará algumas atividades de leitura e compreensão durante as aulas,
sem prejuízo do conteúdo regular.
Não haverá nenhum custo pela participação e o estudante não precisará estar na
escola em horários adicionais. As atividades são consideradas material sigiloso, ou seja, os
nomes dos alunos participantes não serão divulgados.
Caso permita a participação dele (a) no projeto, solicito preencher e devolver a
autorização que segue:
AUTORIZAÇÃO
Eu, _______________________________________________________________________,
CPF ___________________________________, na qualidade de responsável pelo (a) aluno
(a) _______________________________________________________________________ ,
autorizo sua participação na pesquisa que está sendo desenvolvida pela professora Amanda
dos Santos Angra Ouverney, de Língua Portuguesa, na Escola Municipal Ciep 322 Mozart
Cunha Guimarães, ao longo do ano letivo de 2016.
Assinado, ___________________________________
121
ANEXO A - Ler devia ser proibido
LER DEVIA SER PROIBIDO (Guiomar de Grammont)
Não me deixam mentir os exemplos de Don Quixote e Madamme Bovary. O primeiro,
coitado, de tanto ler aventuras de cavalheiros que jamais existiram, meteu-se pelo mundo
afora, a crer-se capaz de reformar o mundo, quilha de ossos que mal sustinha a si e ao pobre
Rocinante. Quanto à pobre Emma Bovary, tomou-se esposa inútil para fofocas e bordados,
perdendo-se em delírios sobre bailes e amores cortesãos.
Ler realmente não faz bem. A criança que lê pode se tornar um adulto perigoso,
inconformado com os problemas do mundo, induzido a crer que tudo pode ser de outra forma.
Afinal de contas, a leitura desenvolve um poder incontrolável. Liberta o homem
excessivamente. Sem a leitura, ele morreria feliz, ignorante dos grilhões que o encerram. Sem
a leitura, ainda, estaria mais afeito à realidade quotidiana, se dedicaria ao trabalho com afinco,
sem procurar enriquecê-la com cabriolas da imaginação.
Sem ler, o homem jamais saberia a extensão do prazer. Não experimentaria nunca o
sumo Bem de Aristóteles: o conhecer. Mas para que conhecer se, na maior parte dos casos, o
que necessita é apenas executar ordens? Se o que deve, enfim, é fazer o que dele esperam e
nada mais?
Ler pode provocar o inesperado. Pode fazer com que o homem crie atalhos para
caminhos que devem necessariamente ser longos. Ler pode gerar a invenção. Pode estimular a
imaginação de forma a levar o ser humano além do que lhe é devido.
Além disso, os livros estimulam o sonho, a imaginação, a fantasia. Nos transportam a
paraísos misteriosos, nos fazem enxergar unicórnios azuis e palácios de cristal. Nos fazem
acreditar que a vida é mais do que um punhado de pó em movimento. Que há algo a
descobrir. Há horizontes para além das montanhas, há estrelas por trás das nuvens. Estrelas
jamais percebidas.
É preciso desconfiar desse pendor para o absurdo que nos impede de aceitar nossas
realidades cruas.
Não, não dêem mais livros às escolas. Pais, não leiam para os seus filhos, podem levá-
los a desenvolver esse gosto pela aventura e pela descoberta que fez do homem um animal
diferente. Antes estivesse ainda a passear de quatro patas, sem noção de progresso e
122
civilização, mas tampouco sem conhecer guerras, destruição, violência. Professores, não
contem histórias, podem estimular um curiosidade indesejável em seres que a vida destinou
para a repetição e para o trabalho duro.
Ler pode ser um problema, pode gerar seres humanos conscientes demais dos seus
direitos políticos, em um mundo administrado, onde ser livre não passa de uma ficção sem
nenhuma verossimilhança. Seria impossível controlar e organizar a sociedade se todos os
seres humanos soubessem o que desejam. Se todos se pusessem a articular bem suas
demandas, a fincar sua posição no mundo, a fazer dos discursos os instrumentos de conquista
de sua liberdade.
O mundo já vai por um bom caminho. Cada vez mais as pessoas lêem por razões
utilitárias: para compreender formulários, contratos, bulas de remédio, projetos, manuais, etc.
Observem as filas, um dos pequenos cancros da civilização contemporânea. Bastaria um livro
para que todos se vissem magicamente transportados para outras dimensões, menos
incômodas. E esse o tapete mágico, o pó de pirlimpimpim, a máquina do tempo. Para o
homem que lê, não há fronteiras, não há cortes, prisões tampouco. O que é mais subversivo do
que a leitura?
É preciso compreender que ler para se enriquecer culturalmente ou para se divertir
deve ser um privilégio concedido apenas a alguns, jamais àqueles que desenvolvem trabalhos
práticos ou manuais. Seja em filas, em metrôs, ou no silêncio da alcova… Ler deve ser coisa
rara, não para qualquer um. Afinal de contas, a leitura é um poder, e o poder é para poucos.
Para obedecer, não é preciso enxergar, o silêncio é a linguagem da submisso. Para executar
ordens, a palavra é inútil.
Além disso, a leitura promove a comunicação de dores, alegrias, tantos outros
sentimentos. A leitura é obscena. Expõe o íntimo, torna coletivo o individual e público, o
secreto, o próprio. A leitura ameaça os indivíduos, porque os faz identificar sua história a
outras histórias. Torna-os capazes de compreender e aceitar o mundo do Outro. Sim, a leitura
devia ser proibida.
Ler pode tornar o homem perigosamente humano.
123
ANEXO B - Solfieri
SOLFIERI
(Álvares de Azevedo)
Sabei-lo. Roma é a cidade do fanatismo e da perdição: na alcova do sacerdote dorme a
gosto a amásia, no leito da vendida se pendura o Crucifixo lívido. É um requintar de gozo blasfemo que mescla o sacrilégio à convulsão do amor, o beijo lascivo à embriaguez da crença!
Era em Roma. Uma noite a lua ia bela como vai ela no verão pôr aquele céu morno, o fresco das águas se exalava como um suspiro do leito do Tibre. A noite ia bela. Eu passeava a sós pela ponte de... As luzes se apagaram uma por uma nos palácios, as ruas se fazias ermas, e a lua de sonolenta se escondia no leito de nuvens. Uma sombra de mulher apareceu numa janela solitária e escura. Era uma forma branca.
A face daquela mulher era como a de uma estátua pálida à lua. Pelas faces dela, como gotas de uma taça caída, rolavam fios de lágrimas.
Eu me encostei a aresta de um palácio. A visão desapareceu no escuro da janela... e daí um canto se derramava. Não era só uma voz melodiosa: havia naquele cantar um como choro de frenesi, um como gemer de insânia: aquela voz era sombria como a do vento a noite nos cemitérios cantando anênia das flores murchas da morte.
Depois o canto calou-se. A mulher apareceu na porta. Parecia espreitar se havia alguém nas ruas.
Não viu a ninguém: saiu. Eu segui-a. A noite ia cada vez mais alta: a lua sumira-se no céu, e a chuva caía as gotas pesadas:
apenas eu sentia nas faces caírem-me grossas lágrimas de água, como sobre um túmulo prantos de órfão.
Andamos longo tempo pelo labirinto das ruas: enfim ela parou: estávamos num campo.
Aqui, ali, além eram cruzes que se erguiam de entre o ervaçal. Ela ajoelhou-se. Parecia soluçar: em torno dela passavam as aves da noite. Não sei se adormeci: sei apenas que quando amanheceu achei-me a sós no cemitério.
Contudo a criatura pálida não fora uma ilusão: as urzes, as cicutas do campo-santo estavam quebradas junto a uma cruz.
O frio da noite, aquele sono dormido à chuva, causaram-me uma febre. No meu delírio passava e repassava aquela brancura de mulher, gemiam aqueles soluços e todo aquele devaneio se perdia num canto suavíssimo...
Um ano depois voltei a Roma. Nos beijos das mulheres nada me saciava: no sono da saciedade me vinha aquela visão...
Uma noite, e após uma orgia, eu deixara dormida no leito dela a condessa Bárbara. Dei um último olhar àquela forma nua e adormecida com a febre nas faces e a lascívia nos lábios úmidos, gemendo ainda nos sonhos como na agonia voluptuosa do amor. Saí. Não sei se a noite era límpida ou negra; sei apenas que a cabeça me escaldava de embriaguez. As taças tinham ficado vazias na mesa: nos lábios daquela criatura eu bebera até a última gota o vinho do deleite...
Quando dei acordo de mim estava num lugar escuro: as estrelas passavam seus raios brancos entre as vidraças de um templo. As luzes de quatro círios batiam num caixão entreaberto. Abri-o: era o de uma moça. Aquele branco da mortalha, as grinaldas da morte na
124
fronte dela, naquela tez lívida e embaçada, o vidrento dos olhos mal apertados... Era uma defunta! ... e aqueles traços todos me lembraram uma idéia perdida. .
— Era o anjo do cemitério? Cerrei as portas da igreja, que, ignoro por que, eu achara abertas. Tomei o cadáver nos meus braços para fora do caixão. Pesava como chumbo...
Sabeis a historia de Maria Stuart degolada e o algoz, “do cadáver sem cabeça e o homem sem coração” como a conta Brantôme? — Foi uma idéia singular a que eu tive.
Tomei-a no colo. Preguei-lhe mil beijos nos lábios. Ela era bela assim: rasguei-lhe o sudário, despi-lhe o véu e a capela como o noivo as despe a noiva. Era mesmo uma estátua: tão branca era ela.
A luz dos tocheiros dava-lhe aquela palidez de âmbar que lustra os mármores antigos. O gozo foi fervoroso — cevei em perdição aquela vigília. A madrugada passava já frouxa nas janelas. Àquele calor de meu peito, à febre de meus lábios, à convulsão de meu amor, a donzela pálida parecia reanimar-se. Súbito abriu os olhos empanados. Luz sombria alumiou-os como a de uma estrela entre névoa, apertou-me em seus braços, um suspiro ondeou-lhe nos beiços azulados... Não era já a morte: era um desmaio. No aperto daquele abraço havia contudo alguma coisa de horrível. O leito de lájea onde eu passara uma hora de embriaguez me resfriava. Pude a custo soltar-me daquele aperto do peito dela... Nesse instante ela acordou...
Nunca ouvistes falar da catalepsia? É um pesadelo horrível aquele que gira ao acordado que emparedam num sepulcro; sonho gelado em que sentem-se os membros tolhidos, e as faces banhadas de lágrimas alheias sem poder revelar a vida!
A moça revivia a pouco e pouco. Ao acordar desmaiara. Embucei-me na capa e
125
tomei-a nos braços coberta com seu sudário como uma criança. Ao aproximar-me da porta topei num corpo; abaixei-me, olhei: era algum coveiro do cemitério da igreja que aí dormira de ébrio, esquecido de fechar a porta .
Saí. Ao passar a praça encontrei uma patrulha. — Que levas aí? A noite era muito alta: talvez me cressem um ladrão. — É minha mulher que vai desmaiada... — Uma mulher!... Mas essa roupa branca e longa? Serás acaso roubador de
cadáveres? Um guarda aproximou-se. Tocou-lhe a fronte: era fria. — É uma defunta... Cheguei meus lábios aos dela. Senti um bafejo morno. — Era a vida ainda. — Vede, disse eu. O guarda chegou-lhe os lábios: os beiços ásperos roçaram pelos da moça. Se eu
sentisse o estalar de um beijo... o punhal já estava nu em minhas mãos frias... — Boa noite, moço: podes seguir, disse ele. Caminhei. — Estava cansado. Custava a carregar o meu fardo; e eu sentia que a
moça ia despertar. Temeroso de que ouvissem-na gritar e acudissem, corri com mais esforço. Quando eu passei a porta ela acordou. O primeiro som que lhe saiu da boca foi um
grito de medo... Mal eu fechara a porta, bateram nela. Era um bando de libertinos meus companheiros
que voltavam da orgia. Reclamaram que abrisse. Fechei a moça no meu quarto, e abri. Meia hora depois eu os deixava na sala bebendo ainda. A turvação da embriaguez fez
que não notassem minha ausência. Quando entrei no quarto da moça vi-a erguida. Ria de um rir convulso como a
insânia, e frio como a folha de uma espada. Trespassava de dor o ouvi-la. Dois dias e duas noites levou ela de febre assim... Não houve como sanar-lhe aquele
delírio, nem o rir do frenesi. Morreu depois de duas noites e dois dias de delírio. A noite saí; fui ter com um estatuário que trabalhava perfeitamente em cera, e
paguei-lhe uma estátua dessa virgem. Quando o escultor saiu, levantei os tijolos de mármore do meu quarto, e com as mãos
cavei aí um túmulo. Tomei-a então pela última vez nos braços, apertei-a a meu peito muda e fria, beijei-a e cobri-a adormecida do sono eterno com o lençol de seu leito. Fechei-a no seu túmulo e estendi meu leito sobre ele.
Um ano — noite a noite — dormi sobre as lajes que a cobriam. Um dia o estatuário me trouxe a sua obra. Paguei-lha e paguei o segredo...
— Não te lembras, Bertram, de uma forma branca de mulher que entreviste pelo véu do meu cortinado? Não te lembras que eu te respondi que era uma virgem que dormia?
— E quem era essa mulher, Solfieri? — Quem era? seu nome? — Quem se importa com uma palavra quando sente que o vinho lhe queima assaz os
lábios? Quem pergunta o nome da prostituta com quem dormia e que sentiu morrer a seus beijos, quando nem há dele mister por escrever-lho na lousa?
Solfieri encheu uma taça e bebeu-a. Ia erguer-se da mesa quando um dos convivas tomou-o pelo braço.
— Solfieri, não é um conto isso tudo? — Pelo inferno que não! Por meu pai que era conde e bandido, por minha mãe que
era a bela Messalina das ruas, pela perdição que não! Desde que eu próprio calquei aquela
126
mulher com meus pés na sua cova de terra, eu vô-lo juro — guardei-lhe como amuleto a capela de defunta. Hei-la!
Abriu a camisa, e viram-lhe ao pescoço uma grinalda de flores mirradas. —Vede-la murcha e seca como o crânio dela!
127
ANEXO C - A Ficha Nº 20.003
A FICHA Nº 20.003
(Viriato Correa) Nunca levei a sério as bruxas e as cartomantes. De forma que, em Paris, quando Campos Fragoso me convidou para irmos à casa de
Madame de Thèbes, não só me recusei como trocei da lembrança. Ele insistiu sensatamente: – Que diabo! Ao menos pela curiosidade de conhecer uma mulher de fama universal!
Deve ela ter qualquer cousa de interessante. Fui. Campos Fragoso consentiu que, na minha presença, a pitonisa lhe desvendasse os
segredos da vida. Pus-me a ouvi-la despreocupadamente e displicentemente. Mas dois ou três minutos depois, confesso que estava todo preso às palavras da adivinha.
Eram revelações exatas, muitas delas minudentes e que só eu e ele sabíamos. Ao terminar a consulta não me contive – quis consultar também. Madame de Thèbes começou por examinar as linhas das minhas mãos. Examinou-me depois a letra. Uma análise atenta, muda, minuciosa. – O senhor é um homem bom, boníssimo – principiou. – Incapaz de uma
perversidade. Leal com os amigos, sincero, dedicado. Até aí, nada de novo. É o que as ciganas, mais ou menos, dizem a todos que lhes
entregam as mãos para ler. – Mas, a par disso tudo, tem um gênio violentíssimo. Os pontos de honra
desencadeiam-lhe tempestades súbitas. E, depois de uma pausa, com segurança: – Faça um esforço de memória. Recorde-se. Fiz o esforço, recordei-me. Quando rapazinho, no curso de preparatórios, um
examinador acusou-me de estar "colando" a prova escrita. Não era verdade. Dei a minha palavra que havia engano. Ele insistiu, berrou. Atirei-lhe com o tinteiro à cara e rebentei-lhe o nariz.
– O senhor até agora não encontrou a sua verdadeira vocação. Já tentou a medicina, já tentou a carreira das armas. De ambas saiu desiludido.
Pura verdade. Havia menos de três meses que eu me desligara da Escola Militar do Rio e cerca de dois anos que abandonara o curso médico.
– Agora quer tentar o comércio. Faz bem. Era também verdade. Estava em Paris obtendo representações de fábricas e casas
comerciais que tivessem ou quisessem ter relações com o Brasil. A cartomante ficou silenciosa por longo tempo. Ora olhava a minha mão
esquerda, ora olhava a minha letra, num confronto profundo. Ela própria parecia estar encontrando surpresas.
– É singular! – disse. – O senhor é bom. Pode-se mesmo dizer um coração de ouro. No entanto...
– No entanto ... – Diga-me. Tem inimigos? – Não. – Lembre-se.
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Pensei demoradamente. – Não me acode nenhum à lembrança. O examinador, o do tinteiro no nariz, já
morreu. Nunca briguei, nunca prejudiquei ninguém, nunca ofendi ninguém. – Singular! Vejo aqui um crime, uma morte. – No futuro? – No futuro. Fiquei tolhido na cadeira. – Vão me matar? – Não. O senhor é que vai matar alguém. Gelaram-se-me os ossos. – Mas vamos ver melhor, disse ela, apanhando o grande baralho. Parta com a
mão esquerda. Parti. Lentamente espalhou as cartas em fileira sobre o pano negro da mesa. A fileira
de cima passou depois para o meio, a do meio passou para baixo. Houve outras trocas, muitas outras.
Tudo isso em silêncio de confranger. Afinal falou: – As cartas confirmam. O senhor não tem inimigos, tão tem um só, mas vai
matar um homem. Matará por alguém que não vale um tiro. Mexi-me nervosamente na cadeira: – Não é possível. Não tenho ódio a ninguém. – As cartas dizem. Morte violenta. Um tiro no coração! E o senhor atira bem!
concluiu com firmeza. Era fato. Na Escola Militar eu tivera o primeiro prêmio de tiro ao alvo de minha
turma. – Mas vou matar a quem? A quem? – As cartas não dizem. Nem podem dizer. – Quando? Como? – Elas estão silenciosas. Ergui-me agitado. – É impossível! É pilhéria! Madame de Thèbes tomou um ar de gravidade misteriosa. – As minhas cartas não pilheriam. E em seguida, com leve sorriso, para me ser agradável: – Não sou eu quem diz, são elas. Talvez não aconteça. Deus queira que não. As
cartas às vezes erram... E depois de guardar o baralho: – Quer fazer-me um favor? – Às suas ordens. – Se acontecer, avise-me. Esteja o senhor onde estiver, escreva-me ou telegrafe-
me. A sua ficha é nº 20.003. Poucas palavras. Basta isto: 20.003 matou. Foi uma noite horrível, aquela, para mim. Dias tremendos os da primeira semana
que se seguiu. Mas eu era moço e Paris fascinador. Um mês depois já me não lembrava de Madame de Thèbes nem das suas
predições sinistras. II
129
Voltei ao Brasil com um número razoável de representações de produtos franceses e belgas.
O Pará estava num daqueles seus períodos fugazes, em que nada, de quando em quando. Em dinheiro.
Toquei-me para Belém do Pará. As cidades do norte têm uma singularidade que se não encontra nas cidades do
sul – o excesso, ou melhor, a volúpia da hospitalidade. A muitas delas chega a gente inteiramente desconhecido à tarde. E, à noite, está convidado para dançar na casa de uma família que nunca viu, no meio de uma sociedade que vê pela primeira vez.
O nortista como que tem o prazer de carregar o estranho para a sua intimidade. Conhece-se hoje um indivíduo e, amanhã, ele nos leva a jantar em sua casa. Não
se compreende a amizade ou o simples conhecimento que se não estenda até olar.
Poucos dias depois da minha chegada a Belém, era eu íntimo de toda a gente. Quem se tornou meu maior amigo foi Dom Pablo de Maria. Apresentaram-mo a
bordo, e quando descemos à terra éramos como antigos companheiros de escola. Dom Pablo (todo o mundo lhe dava o "dom" no Pará) era um venezuelano relativamente moço, forte, alegre, exuberante, gastador, com o trust do comércio e da exportação de castanhas.
Em menos de seis meses a nossa amizade se estreitou profundamente. Dom Pablo tinha duas casas – a da esposa, dona Corina, uma sulista de olhos
claros, e a da amante, a Jupira, um lindo modelo de morena, daquelas retumbantes morenas que os sóis equatoriais do norte produzem para a alucinação dos gozos pecadores.
Eu era íntimo numa como noutra casa. Ao almoço havia para mim um lugar à mesa da amante, ao jantar à mesa da esposa.
Ambas as mulheres entretinham comigo uma camaradagem de irmãs, quando as irmãs são nossas camaradas. Se eu chegava (e o fazia sempre em companhia de Dom Pablo) era uma festa, como se eu fosse um parente querido que voltava de uma longa viagem.
Ora, acontecia que dona Corina não sabia das ligações do marido com a Jupira. Foi dessa ignorância que partiu toda a teia do drama inesperado que
convulsionou a minha mocidade. Um dia, enquanto almoçávamos, bateram à porta. Era um portador que trazia os retratos que Jupira tirara num fotógrafo qualquer. Abriu-se o embrulho ali mesmo à mesa. Estavam excelentes as fotografias e
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levamos o resto do almoço a comentá-las e elogiar-lhes as virtudes. Jupira ofereceu-me uma com uma dedicatória carinhosa e, por pilhéria ou qualquer
outro motivo feminil que nós homens, nunca apreendemos, insistiu com Dom Pablo que aceitasse uma outra.
– Estás louca! Disse ele. Se eu aparecer em casa com isso a mulher esgana-me. Os entes femininos têm, às vezes, caprichos inexplicáveis. Jupira, sem que eu e ele
víssemos, meteu a fotografia no bolso do amante. Nessa tarde, não sei por que não fui jantar em casa de Dom Pablo. O que se passou ele me contou depois, Dona Corina, que não tinha o hábito de
revistar-lhe os papéis e a roupa, nesse dia, ou por desconfiança ou por uma dessas coincidências que o demônio arma para a desgraça dos lares felizes, meteu-lhe a mão nos bolsos do casaco!
Não há necessidade de pintar a surpresa, o choque de palavras, o barulho. Mas Dom Pablo, além de ser um homem calmo, era também uma criatura de
inteligência pronta. – Para que esse estardalhaço? – disse. – Essa fotografia não me pertence. Pertence a
Fulano (e disse o meu nome). Ele esteve a mostrar-me hoje no escritório e esqueceu-a sobre a mesa. Meti-a no bolso para lhe restituir.
Ela duvidou. Ele insistiu com firmeza. – É verdade! É uma pequena que ele arranjou há poucos dias. Mas é segredo. Não quer
que ninguém saiba, pois a coisa é complicada. E como dona Corina ainda se mostrasse insatisfeita, teve um gesto decisivo: – Se isto me pertencesse, se fosse de uma mulher que eu prezasse, eu faria tudo por
conservá-la, não é verdade? Vou provar-te que não é assim. E zás! rasgou a fotografia, atirando-a no tapete. À noite apareceu-me afoitamente, contando-me a cena entre risadas. – Caramba! Que se não me lembrasse do teu nome, a esta hora a mulher já me tinha
comido o fígado! Mas, olha, não sei se ela acreditou inteiramente na farsa. O melhor é apareceres lá em casa, amanhã. Eu aludo vagamente ao caso, tu simulas perturbações comprometedoras, mostras grande interesse pela fotografia, dás um tom misterioso às palavras, fingindo que te estarás traindo, etc., e vamos ver se assim serenamos o temporal.
E assim foi. Para servir a amigos nunca procurei medir o tamanho dos sacrifícios. E,
principalmente, num caso daqueles, em que a paz de um lar dependia de um nada, de uma mentira sem importância.
Quando, no dia seguinte, entrei em casa de Dom Pablo, já ele estava à mesa com a família. A combinação era essa. Ao ver-me, mostrou-se surpreendido, enciumado com a minha ausência.
– Onde andas metido?! Não apareceste ontem à tarde, não apareceste hoje pela manhã! E depois que me sentei, mostrando um grande interesse por mim, falou da minha
distração. Que eu cuidasse de ser menos distraído! De uma falta de cautela podiam resultar complicações horríveis.
E como eu, muito de indústria, revelasse não estar compreendendo o alcance de suas palavras, ele perguntou-me com a habilidade de um comediante:
– Não perdeste nada? – Não me recordo. – Ontem, no meu escritório, não te esqueceste de coisa nenhuma? Fiz a cena magistralmente. Ergui-me, com um choque, da cadeira: – Ah! o retrato!
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Tudo mais correu bem. Mostrei-me confuso, dei feição de reserva às palavras, corei, gaguejei, fiz o diabo.
Dona Corina, inteiramente convencida, troçou, pilheriou, deu-me parabéns pelo meu bom gosto, afirmou que a "pequena" era um mimo e quis finalmente saber quem era.
Aí então é que me tornei exímio. Não o podia dizer: não, nunca! Era um amor que nunca devia vir à luz. Nem por sonhos eu queria que alguém de leve o percebesse. Seria a minha desgraça, se ele fosse conhecido.
Voltou a paz no lar de Dom Pablo. Nunca mais me lembrei daquilo. III Uma noite, em pleno Largo da Pólvora, a praça mais febril da cidade, ia saindo do
barbeiro quando me senti agarrado por dois negros. E enquanto eu procurava inutilmente defender-me dos assaltantes, alguém me
vergastava brutalmente o rosto. Só na quarta ou quinta chicotada pude reconhecer o agressor. Era o Dr. Belmiro
Madeira, senador estadual, presidente de várias companhias e diretor do Banco do Comércio. Aquilo era o que podia haver de mais estúpido. Ao senador Madeira eu conhecia
apenas de chapéu. Pude gritar-lhe o nome, interpelá-lo no momento próprio do assalto, naqueles minutos rápidos e dramáticos do ataque. E ele, vergastando-me retalhando-me o rosto cruelmente, respondia-me apenas com estas palavras, incompreensíveis:
– Não se gabe nunca de filha alheia, seu patife! Tolhido pelos negros, não pude fazer um movimento de defesa. A agressão só
terminou alguns minutos depois, quando o clamor da multidão cresceu. Amigos levaram-me nos braços para casa. Ia eu com três dores naquele momento: a
dor do rosto vergastado, a dor da vergonha, e a dor da estupefação. Por que, por que motivo aquele homem, que eu mal conhecia, me agredira assim em
plena rua, a chicote, pungentemente, diante de todo o mundo?! A consciência não me acusava de coisa alguma. A minha vida em Belém, como vida
de rapaz solteiro, era irrepreensível. Até aquele dia não tinha tido com quem quer que fosse uma disputa, uma desavença, a menor discórdia. Nunca, nunca, nem mesmo namoro eu tinha tido com filha de quem quer que fosse.
Por toda a parte eu via amigos, por toda a parte. Por que aquilo? Por quê? E, durante vinte dias que estive em casa a curar-me, traguei o mais amargo fel de
minha vida. Aquilo não podia parar ali. Um homem não é para ser chicoteado covardemente,
miseravelmente, sem um revide, sem um gesto qualquer de vingança! E, antes que os médicos me dessem alta, a resolução se me havia firmado
tranquilamente no espírito. Eu iria matar o senador Madeira. Foi numa terça-feira que pisei de novo na rua. Nem armas tinha – comprei um
revólver. Ao meio-dia, à hora de saída para o almoço, fui postar-me nas vizinhanças do Banco do Comércio.
O senador saiu em companhia de amigos. Eu não queria ferir senão ele, não me convinha o encontro com muita gente.
Mais adiante, despediu-se dos companheiros e tomou o bonde. Acompanhei-o. O sangue fervia-me tanto que estive para desfechar os tiros ali mesmo, no bonde. Mas, nos bancos da frente iam crianças que voltavam da escola. Pude, felizmente, refletir na
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possibilidade de uma pontaria desastrada e na triste sorte daquelas crianças incautas. Contive-me.
A esquina do seu palacete, o senador Madeira saltou. Saltei também. E vinte passos adiante gritei-lhe, já de revólver em punho: – Pare! Parou. – O senador agrediu-me estupidamente, covardemente, sem que eu soubesse por que;
chegou a minha vez. Ele ainda meteu a mão no bolso para tirar a pistola, mas eu já estava de pontaria feita.
Não fosse eu o campeão de tiro ao alvo da minha turma! Um tiro só, certeiro, no coração. Tombou, ao que parece, sem um gemido, sem um
estertor. Senti como que uma onda de fogo a queimar-me a cabeça. E corri. Saí como um louco
pelas ruas, num tropel de amaldiçoado. Quando dei por mim, entrava doidamente na delegacia. E narrei tudo, tudo, sem
esconder uma minúcia. A notícia espalhou-se pela cidade, num segundo. A delegacia, em pouco tempo, foi
invadida pelos meus amigos. Atirado para um sofá, o que eu pedia era que me deixassem em paz. Uma sonolência como nunca tive, aniquilou-me os nervos, a vontade, tudo.
Dom Pablo entrou aterrado, numa consternação comovedora. Ao vê-lo entrar, justamente no momento em que ele transpunha a porta, lembrei-me da
predição sinistra da cartomante de Paris. E, de olhos quase fechados, já dormindo, pude-lhe ainda dizer: – Telegrafe a Madame de Thèbes. Diga-lhe apenas que a ficha 20.003 matou. IV Foi no desarrolar do inquérito que o mistério se desvendou. A leviandade inconsciente de duas mulheres tinha tecido toda aquela incompreensível
trama dramática. A primeira malha nasceu no dia em que dona Corina encontrou o retrato de Jupira no
bolso do marido. Dom Pablo, depois de rasgar a tal fotografia, saiu para a rua. Dona Corina apanhou
pedacinho a pedacinho do retrato e reconstituiu-o. É um trabalho tipicamente feminino, esse de reconstituir fotografias duvidosas que
têm tom de mistério. Não havia na mulher do venezuelano nenhuma intenção perversa; apenas um gesto natural do sexo.
Mas, durante a reconstituição, uma circunstância inesperada veio-lhe assaltar a curiosidade – conhecia um rosto parecido com aquele retrato.
Nessas ocasiões as mulheres ficam tocadas de uma ansiedade incontida e não descansam enquanto a dúvida não se esclarece.
Dona Corina tinha uma amiga, dona Ritoca que, volta e meia, lhe entrava em casa. Quando dona Ritoca lhe apareceu, o que ela primeiro lhe mostrou foi a fotografia.
– Vê se conhece esta cara! A outra deteve-se alguns segundos. Parece a Belinha, filha do senador Madeira. – Foi o que eu disse. – Os olhos são os mesmos. O talhe do rosto, o nariz...
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– E esse sinalzinho no queixo! – E esta testa! E esta boca! E prolongaram o exame. E mais se convenceram de que era a filha do senador. Dona Ritoca tinha a veia do mexerico. Embora excelente criatura, serviçal, caridosa,
pelava-se por uma novidade e vivia como que no faro de escândalos. – Como esse retrato veio parar nas tuas mãos, assim rasgado? perguntou. A mulher do meu amigo não primava pela discrição. Contou tudo. – Mas vê lá, fica entre nós. Pablo disse-me que eu não contasse a ninguém. O rapaz
confiou-me o segredo e não fica bem o segredo sair daqui de casa. – Casamento para breve, não? Dona Corina esguichou o rosto. Hum! Podia ser que estivesse enganada, mas não lhe
parecia que aquilo fosse para casar. Pelo jeito, pelas reservas que ele (ele aqui sou eu) havia demonstrado, a coisa era outra e já muito adiantada.
– São amantes! exclamou dona Ritoca com ar surpreendido. – Não sei, não sei. – Quem é que duvida! Fala-se tanto da Belinha! – Mas vê lá. Eu não sei de nada. É o que parece. Ele esconde tanto, vive tão receoso. Para dona Ritoca aquilo era o bastante. As mulheres que se pelam por novidades não
refletem, um nada lhes basta para erguerem na imaginação toda uma trama novelesca. À primeira amiga que encontrou deixou escapar a notícia. E a mais outra, e a mais
outra... A fábula foi tomando vulto, estendendo-se, espalhando-se. Já não era mais a simples história passada em casa de Dom Pablo. Era uma outra, complicada, complicadíssima, cheia de minúcias as mais extravagantes. Um mês depois, toda a cidade, toda, jurava a pés juntos que eu era amante de Belinha Madeira, uma criatura que eu nem ao menos conhecia de vista.
Havia quem garantisse tê-la visto entrar em minha casa; havia quem me tivesse encontrado pulando o muro do seu palacete.
E eu sem saber de nada, sem ter a mais vaga desconfiança do que de mim se propalava!
A notícia ressoou tanto que chegou aos ouvidos do pai. Houve conselho de família. Para lavar a honra da filha, o senador mandou agarrar-me
por dois negros e vergastou-me em plena rua. Quando, dias após ao meu desforço, tudo isso se desvendou através do inquérito,
houve, na cidade, um movimento de simpatia e de piedade por mim. A minha inocência, o papel que eu havia incauta e inocentemente representado nisso tudo, levantaram a alma de todo o mundo. Dona Corina, a Jupira, a própria dona Ritoca, foram as minhas maiores defensoras, contando nua e crua a verdade impressionante.
Houve, então, a grita a meu favor. Imprensa, advogados, juízes, só tiveram um interesse: o de pôr-me em liberdade o mais urgentemente possível.
Os meses de prisão passei-os num ambiente consolador de simpatia. Jupira e dona Corina, agora unidas (o drama fez o milagre de aproximá-las em derredor de mim) cercaram-me de uma solicitude fraterna que até hoje me enternece.
A minha absolvição foi estrondosa e unânime. Parecia que a cidade lavava, em mim, o erro de uma injustiça que lhe pesava incomodamente na consciência.
Quando aquilo tudo acabou, eu sentia no coração uma fadiga enorme. Era como que uma inapetência indefinida flutuando-me no espírito.
Precisava arejar, respirar outros ares, agitar-me noutro meio. E embarquei para a Europa. Corri a Espanha, a Itália, a Suíça. Por lá estive dois anos,
retemperando a alma. De volta ao Rio, o meu vapor demorou-se vinte e quatro horas no Recife.
Saltei para dormir em terra.
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No hotel em que me hospedei, defronte da mesa em que eu jantava, sentou-se uma mulher de belo rosto moreno e ar desenvolto de mundana. Meus olhos sentiram uma atração estranha por ela.
Não era bem o desejo, era mais a curiosidade; parecia-me que eu já tinha visto aquele rosto e não me lembrava onde.
A insistência dos meus olhares fez com que a mulher me sorrisse. Indaguei do garção. Era aquela a cocote de maior sensação na cidade.
Para encurtar detalhes – à meia-noite ela me recebia em seu quarto. Mas havia em mim, naquela noite, qualquer coisa de anormal. Eu não sentia atração
nenhuma pela tal mulher. Ao contrário. Parecia que forças estranhas me faziam repugná-la, mas uma curiosidade insopitável me aproximava dela.
Quem era? Eu já tinha visto aquele rosto! Foi de mãos tremulas, quase geladas, que eu lhe apertei as mãos. – Dize: nós nunca nos vimos? Perguntei-lhe. Ela soltou uma risadinha. – Só se foi outra, alguma parecida comigo. Em minha terra havia uma mulher que era
o meu retrato. – De onde és? – Do Pará. Estremeci. – E a mulher, como se chamava? – Jupira. Ergui-me tremulamente da otomana. – E tu, como te chamas? – Belinha Madeira. Fugi. Parecia que diante de mim se tinha erguido o cadáver do senador. Zuniam-me os
ouvidos como se todas as vozes sinistras da terra me estivessem perseguindo. Andei aos cambaleias pelas ruas, sonso, sem destino, até o amanhecer. E hoje, depois de tantos anos, não me sai da cabeça aquela pequenina minúcia das
predições de Madame de Thèbes – matará, matará por alguém que não vale um tiro.
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ANEXO D – As formigas
AS FORMIGAS (Lygia Fagundes Telles)
Quando minha prima e eu descemos do táxi, já era quase noite. Ficamos imóveis
diante do velho sobrado de janelas ovaladas, iguais a dois olhos tristes, um deles vazado por uma pedrada. Descansei a mala no chão e apertei o braço da prima.
– É sinistro. Ela me impeliu na direção da porta. Tínhamos outra escolha? Nenhuma pensão nas
redondezas oferecia um preço melhor a duas pobres estudantes com liberdade de usar o fogareiro no quarto, a dona nos avisara por telefone que podíamos fazer refeições ligeiras com a condição de não provocar incêndio. Subimos a escada velhíssima, cheirando a creolina.
– Pelo menos não vi sinal de barata – disse minha prima. A dona era uma velha balofa, de peruca mais negra do que a asa da graúna. Vestia um
desbotado pijama de seda japonesa e tinha as unhas aduncas recobertas por uma crosta de esmalte vermelho-escuro, descascado nas pontas encardidas. Acendeu um charutinho.
– É você que estuda medicina? – perguntou soprando a fumaça na minha direção. – Estudo direito. Medicina é ela. A mulher nos examinou com indiferença. Devia estar pensando em outra coisa quando
soltou uma baforada tão densa que precisei desviar a cara. A saleta era escura, atulhada de móveis velhos, desparelhados. No sofá de palhinha furada no assento, duas almofadas que pareciam ter sido feitas com os restos de um antigo vestido, os bordados salpicados de vidrilho.
Vou mostrar o quarto, fica no sótão – disse ela em meio a um acesso de tosse. Fez um sinal para que a seguíssemos. – O inquilino antes de vocês também estudava medicina, tinha um caixotinho de ossos que esqueceu aqui, estava sempre mexendo neles.
Minha prima voltou-se: – Um caixote de ossos? A mulher não respondeu, concentrada no esforço de subir a estreita escada de caracol
que ia dar no quarto. Acendeu a luz. O quarto não podia ser menor, com o teto em declive tão acentuado que nesse trecho teríamos que entrar de gatinhas. Duas camas, dois armários e uma cadeira de palhinha pintada de dourado. No ângulo onde o teto quase se encontrava com o assoalho, estava um caixotinho coberto com um pedaço de plástico. Minha prima largou a mala e, pondo-se de joelhos, puxou o caixotinho pela alça de corda. Levantou o plástico. Parecia fascinada.
– Mas que ossos tão miudinhos! São de criança? – Ele disse que eram de adulto. De um anão. – De um anão? É mesmo, a gente vê que já estão formados… Mas que maravilha, é
raro a beça esqueleto de anão. E tão limpo, olha aí – admirou-se ela. Trouxe na ponta dos dedos um pequeno crânio de uma brancura de cal. – Tão perfeito, todos os dentinhos!
– Eu ia jogar tudo no lixo, mas se você se interessa pode ficar com ele. O banheiro é aqui ao lado, só vocês é que vão usar, tenho o meu lá embaixo. Banho quente extra. Telefone também. Café das sete às nove, deixo a mesa posta na cozinha com a garrafa térmica, fechem bem a garrafa recomendou coçando a cabeça. A peruca se deslocou ligeiramente. Soltou uma baforada final: – Não deixem a porta aberta senão meu gato foge.
Ficamos nos olhando e rindo enquanto ouvíamos o barulho dos seus chinelos de salto na escada. E a tosse encatarrada.
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Esvaziei a mala, dependurei a blusa amarrotada num cabide que enfiei num vão da veneziana, prendi na parede, com durex, uma gravura de Grassman e sentei meu urso de pelúcia em cima do travesseiro. Fiquei vendo minha prima subir na cadeira, desatarraxar a lâmpada fraquíssima que pendia de um fio solitário no meio do teto e no lugar atarraxar uma lâmpada de duzentas velas que tirou da sacola. O quarto ficou mais alegre. Em compensação, agora a gente podia ver que a roupa de cama não era tão alva assim, alva era a pequena tíbia que ela tirou de dentro do caixotinho. Examinou- a. Tirou uma vértebra e olhou pelo buraco tão reduzido como o aro de um anel. Guardou-as com a delicadeza com que se amontoam ovos numa caixa.
– Um anão. Raríssimo, entende? E acho que não falta nenhum ossinho, vou trazer as ligaduras, quero ver se no fim da semana começo a montar ele.
Abrimos uma lata de sardinha que comemos com pão, minha prima tinha sempre alguma lata escondida, costumava estudar até de madrugada e depois fazia sua ceia. Quando acabou o pão, abriu um pacote de bolacha Maria.
– De onde vem esse cheiro? – perguntei farejando. Fui até o caixotinho, voltei, cheirei o assoalho. – Você não está sentindo um cheiro meio ardido?
– É de bolor. A casa inteira cheira assim – ela disse. E puxou o caixotinho para debaixo da cama.
No sonho, um anão louro de colete xadrez e cabelo repartido no meio entrou no quarto fumando charuto. Sentou-se na cama da minha prima, cruzou as perninhas e ali ficou muito sério, vendo-a dormir. Eu quis gritar, tem um anão no quarto! mas acordei antes. A luz estava acesa. Ajoelhada no chão, ainda vestida, minha prima olhava fixamente algum ponto do assoalho.
– Que é que você está fazendo aí? – perguntei. – Essas formigas. Apareceram de repente, já enturmadas. Tão decididas, está vendo? Levantei e dei com as formigas pequenas e ruivas que entravam em trilha espessa pela
fresta debaixo da porta, atravessavam o quarto, subiam pela parede do caixotinho de ossos e desembocavam lá dentro, disciplinadas como um exército em marcha exemplar.
– São milhares, nunca vi tanta formiga assim. E não tem trilha de volta, só de ida – estranhei.
– Só de ida. Contei-lhe meu pesadelo com o anão sentado em sua cama. – Está debaixo dela – disse minha prima e puxou para fora o caixotinho. Levantou o
plástico. – Preto de formiga. Me dá o vidro de álcool. – Deve ter sobrado alguma coisa aí nesses ossos e elas descobriram, formiga descobre
tudo. Se eu fosse você, levava isso lá pra fora. – Mas os ossos estão completamente limpos, eu já disse. Não ficou nem um fiapo de
cartilagem, limpíssimos. Queria saber o que essas bandidas vem fuçar aqui. Respingou fartamente o álcool em todo o caixote. Em seguida, calçou os sapatos e
como uma equilibrista andando no fio de arame, foi pisando firme, um pé diante do outro na trilha de formigas. Foi e voltou duas vezes. Apagou o cigarro. Puxou a cadeira. E ficou olhando dentro do caixotinho.
– Esquisito. Muito esquisito. – O quê? – Me lembro que botei o crânio em cima da pilha, me lembro que até calcei ele com as
omoplatas para não rolar. E agora ele está aí no chão do caixote, com uma omoplata de cada lado. Por acaso você mexeu aqui?
– Deus me livre, tenho nojo de osso. Ainda mais de anão. Ela cobriu o caixotinho com o plástico, empurrou-o com o pé e levou o fogareiro para
a mesa, era a hora do seu chá. No chão, a trilha de formigas mortas era agora uma fita escura
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que encolheu. Uma formiguinha que escapou da matança passou perto do meu pé, já ia esmagá-la quando vi que levava as mãos a cabeça, como uma pessoa desesperada. Deixei-a sumir numa fresta do assoalho.
Voltei a sonhar aflitivamente mas dessa vez foi o antigo pesadelo em torno dos exames, o professor fazendo uma pergunta atrás da outra e eu muda diante do único ponto que não tinha estudado. Às seis horas o despertador disparou veementemente. Travei a campainha. Minha prima dormia com a cabeça coberta. No banheiro, olhei com atenção para as paredes, para o chão de cimento, a procura delas. Não vi nenhuma. Voltei pisando na ponta dos pés e então entreabri as folhas da veneziana. O cheiro suspeito da noite tinha desaparecido. Olhei para o chão: desaparecera também a trilha do exército massacrado. Espiei debaixo da cama e não vi o menor movimento de formigas no caixotinho coberto.
Quando cheguei por volta das sete da noite, minha prima já estava no quarto. Achei-a tão abatida que carreguei no sal da omelete, tinha a pressão baixa. Comemos num silêncio voraz. Então me lembrei:
– E as formigas? – Até agora, nenhuma. – Você varreu as mortas? Ela ficou me olhando. – Não varri nada, estava exausta. Não foi você que varreu? – Eu?! Quando acordei, não tinha nem sinal de formiga nesse chão, estava certa que
antes de deitar você juntou tudo… Mas então quem?! Ela apertou os olhos estrábicos, ficava estrábica quando se preocupava. – Muito esquisito mesmo. Esquisitíssimo. Fui buscar o tablete de chocolate e perto da porta senti de novo o cheiro, mas seria
bolor? Não me parecia um cheiro assim inocente, quis chamar a atenção da minha prima para esse aspecto mas estava tão deprimida que achei melhor ficar quieta. Espargi água-de-colônia flor de maçã por todo o quarto (e se ele cheirasse como um pomar?) e fui deitar cedo. Tive o segundo tipo de sonho que competia nas repetições com o sonho da prova oral: nele, eu marcava encontro com dois namorados ao mesmo tempo. E no mesmo lugar. Chegava o primeiro e minha aflição era levá-lo embora dali antes que chegasse o segundo. O segundo, desta vez, era o anão. Quando só restou o oco de silêncio e sombra, a voz da minha prima me fisgou e me trouxe para a superfície. Abri os olhos com esforço. Ela estava sentada na beira da minha cama, de pijama e completamente estrábica.
– Elas voltaram. – Quem? – As formigas. Só atacam de noite, antes da madrugada. Estão todas aí de novo. A trilha da véspera, intensa, fechada, seguia o antigo percurso da porta até o
caixotinho de ossos por onde subia na mesma formação até desformigar lá dentro. Sem caminho de volta.
– E os ossos? Ela se enrolou no cobertor, estava tremendo. Aí é que está o mistério. Aconteceu uma coisa, não entendo mais nada! Acordei pra
fazer pipi, devia ser umas três horas. Na volta senti que no quarto tinha algo mais, está me entendendo? Olhei pro chão e vi a fila dura de formiga, você lembra? não tinha nenhuma quando chegamos. Fui ver o caixotinho, todas trançando lá dentro, lógico, mas não foi isso o que quase me fez cair pra trás, tem uma coisa mais grave: é que os ossos estão mesmo mudando de posição, eu já desconfiava mas agora estou certa, pouco a pouco eles estão… estão se organizando.
– Como, organizando?
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Ela ficou pensativa. Comecei a tremer de frio, peguei uma ponta do seu cobertor. Cobri meu urso com o lençol.
– Você lembra, o crânio entre as omoplatas, não deixei ele assim. Agora é a coluna vertebral que já está quase formada, uma vértebra atrás da outra, cada ossinho tomando seu lugar, alguém do ramo está montando o esqueleto, mais um pouco e… Venha ver!
– Credo, não quero ver nada. Estão colando o anão, é isso? Ficamos olhando a trilha rapidíssima, tão apertada que nela não caberia sequer um
grão de poeira. Pulei-a com o maior cuidado quando fui esquentar o chá. Uma formiguinha desgarrada (a mesma daquela noite?) sacudia a cabeça entre as mãos. Comecei a rir e tanto que se o chão não estivesse ocupado, rolaria por ali de tanto rir. Dormimos juntas na minha cama. Ela dormia ainda quando saí para a primeira aula. No chão, nem sombra de formiga, mortas e vivas, desapareciam com a luz do dia.
Voltei tarde essa noite, um colega tinha se casado e teve festa. Vim animada, com vontade de cantar, passei da conta. Só na escada é que me lembrei: o anão. Minha prima arrastara a mesa para a porta e estudava com o bule fumegando no fogareiro.
– Hoje não vou dormir, quero ficar de vigia – ela avisou. O assoalho ainda estava limpo. Me abracei ao urso. – Estou com medo. Ela foi buscar uma pílula para atenuar minha ressaca, me fez engolir a pílula com um
gole de chá e ajudou a me despir. – Fico vigiando, pode dormir sossegada. Por enquanto não apareceu nenhuma, não
está na hora delas, é daqui a pouco que começa. Examinei com a lupa debaixo da porta, sabe que não consigo descobrir de onde brotam?
Tombei na cama, acho que nem respondi. No topo da escada o anão me agarrou pelos pulsos e rodopiou comigo até o quarto, acorda, acorda! Demorei para reconhecer minha prima que me segurava pelos cotovelos. Estava lívida. E vesga.
– Voltaram – ela disse. Apertei entre as mãos a cabeça dolorida. – Estão aí? Ela falava num tom miúdo como se uma formiguinha falasse com sua voz. – Acabei dormindo em cima da mesa, estava exausta. Quando acordei, a trilha já
estava em plena. Então fui ver o caixotinho, aconteceu o que eu esperava… – Que foi? Fala depressa, o que foi? Ela firmou o olhar oblíquo no caixotinho debaixo da cama. – Estão mesmo montando ele. E rapidamente, entende? O esqueleto está inteiro, só
falta o fêmur. E os ossinhos da mão esquerda, fazem isso num instante. Vamos embora daqui. – Você está falando sério? – Vamos embora, já arrumei as malas. A mesa estava limpa e vazios os armários escancarados. – Mas sair assim, de madrugada? Podemos sair assim? – Imediatamente, melhor não esperar que a bruxa acorde. Vamos, levanta. – E para onde a gente vai? – Não interessa, depois a gente vê. Vamos, vista isto, temos que sair antes que o anão
fique pronto. Olhei de longe a trilha: nunca elas me pareceram tão rápidas. Calcei os sapatos,
descolei a gravura da parede, enfiei o urso no bolso da japona e fomos arrastando as malas pelas escadas, mais intenso o cheiro que vinha do quarto, deixamos a porta aberta. Foi o gato que miou comprido ou foi um grito?
No céu, as últimas estrelas já empalideciam. Quando encarei a casa, só a janela vazada nos via, o outro olho era penumbra.