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ANÁLISE CRÍTICA DO CONTEXTO SOCIAL NO FILME “CAPITÃES DA AREIA1 Resumo O presente trabalho promove uma reflexão crítica acerca das questões sociais presentes na obra cinematográfica Capitães da Areia (2011) da direção de Cecília Amado, baseado na literatura homônima de Jorge Amado. Com efeito, a abordagem recairá sobre a realidade retratada pela película, em especial no que toca às dificuldades suportadas pelas crianças do enredo que, marginalizadas pela sociedade e pelas instituições públicas, lutavam pela sobrevivência através da criminalidade. Sob um prisma mais acurado das idiossincrasias da realidade da época, primeiras décadas do século XX, será possível discorrer acerca da perda de identidade dos infantes, que se divorciavam de qualquer lembrança do passado, de suas famílias e de si mesmos, vez que a única importância de suas vidas resumia-se a garantir a sobrevivência naquele momento. A despeito do momento histórico já longínquo, se verá que a temática se apresenta ainda atual, permanecendo hodiernamente o descompromisso efetivo do 1 Autores: Sérgio Quezado Gurgel e Silva (Brasil) e Márcio Rafael Gazzineo (Brasil) para a disciplina de História do Direito, integrante da matriz curricular do Curso de Doutorado em Direito da Universidade de Buenos Aires (UBA).

ANÁLISE CRÍTICA DO CONTEXTO SOCIAL NO FILME (CAPITÃES DA AREIA)

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ANÁLISE CRÍTICA DO CONTEXTO SOCIAL NO FILME “CAPITÃES DA AREIA”1

Resumo

O presente trabalho promove uma

reflexão crítica acerca das questões sociais presentes na

obra cinematográfica Capitães da Areia (2011) da direção de

Cecília Amado, baseado na literatura homônima de Jorge

Amado.

Com efeito, a abordagem recairá

sobre a realidade retratada pela película, em especial no

que toca às dificuldades suportadas pelas crianças do

enredo que, marginalizadas pela sociedade e pelas

instituições públicas, lutavam pela sobrevivência através

da criminalidade.

Sob um prisma mais acurado das

idiossincrasias da realidade da época, primeiras décadas do

século XX, será possível discorrer acerca da perda de

identidade dos infantes, que se divorciavam de qualquer

lembrança do passado, de suas famílias e de si mesmos, vez

que a única importância de suas vidas resumia-se a garantir

a sobrevivência naquele momento.

A despeito do momento histórico já

longínquo, se verá que a temática se apresenta ainda atual,

permanecendo hodiernamente o descompromisso efetivo do

1 Autores: Sérgio Quezado Gurgel e Silva (Brasil) e MárcioRafael Gazzineo (Brasil) para a disciplina de História doDireito, integrante da matriz curricular do Curso deDoutorado em Direito da Universidade de Buenos Aires (UBA).

Poder Público com a preservação da vida e identidade das

crianças abandonadas.

Palavras-chave

Capitães da areia, crianças

abandonadas, marginalização infantil.

Abstract

The current work promotes a

critical analysis of social issues present in the

cinematographic work Captains of the Sand, directed by Cecília

Amado, based on the homonymous literature of Jorge Amado.

The approach will fall on the

reality protrayed by the film, particular as regards the

difficulties suffered by the children of the plot that are

marginalized by society and public institutions, fighting

for survival through crime.

Under a more accurate perspective

of the idiosyncrasies of the reality of the time, early

twentieth century, you can argue about the loss of identidy

of infants, which is divorced from any memory of the past,

their families and themselves, since the only importance of

their lives was summed up to ensure the survival at that

time.

Despite the historical moment now

distant, it will be seen that the subject appears still

current in our times, remaining, nowadays, the effective

disengagement of the government with the preservation on

life and identity of the abandone children.

Palavras-chave

Captains of the Sands, abandoned

children, children’s marginalization.

Corpo do Trabalho

Prefacialmente, cumpre narrar que a

história narrada no filme Capitães da Areia remonta a um

período entre as décadas de 30 e 40 e tem cenário na cidade

de Recife, localizada no sul do Estado da Bahia, num Brasil

que ainda se alicerçava como República após o levante

político-militar ocorrido em 1889 que culminou com o fim da

soberania imperialista de Dom Pedro II.

O enredo retrata as dificuldades

vivenciadas por um grupo de garotos de rua que se

organizaram em uma espécie de colônia onde cada criança

desempenhava um papel diferenciado em benefício daquela

coletividade.

A despeito da curta idade, os

garotos apresentam um comportamento maduro quanto à

assunção de responsabilidades e encaram a desafiadora

realidade com rigidez, na tentativa de ocultar quaisquer

traços da jovialidade da quão ainda são indissociáveis.

O drama das crianças é realçado

pelo desprezo ofertado pela sociedade baiana, que as

considera escória indigna da própria existência e sem

qualquer valor humano.

As dores da marginalização –

literalmente, postos à margem – são minimamente amaciadas

pelo acolhimento das instituições religiosas, que, apesar

da pouca contribuição material para a sobrevivência dos

menores, lhes contempla com o bem de que mais necessitam:

atenção.

Pelo ambiente de abandono em que

estão inseridas, as crianças desenvolveram um

amadurecimento precoce que, aparentemente, lhes tolheu a

capacidade de perquirir por sonhos, notadamente porque

traçaram como o objetivo único de suas vidas a preservação

da própria existência, simplesmente.

Este raciocínio se reflete com

clareza nas situações do filme em que o nominado “Sem Pernas”

insere-se em uma família patrícia como filho adotivo com a

finalidade de facilita o saque que seria empreendido pelos

demais garotos do bando.

Neste momento, “Sem Pernas” acabou

por receber sinceras demonstrações de afeto da sua então

mãe, que não poupava esforços em evidenciar seu interesse

em conceder afeto, carinho e sustento material ao menor,

que seria tratado como verdadeiro filho.

Ainda assim, o garoto optou pelo

bando, permitindo a surdina entrada de todos na residência

do casal com a pilhagem de diversos bens, sacrificando,

assim, a oportunidade de reestruturação de sua vida no seio

de uma entidade familiar manifestamente acolhedora e

comprometida.

Outro evento que demonstra

cabalmente que os garotos abandonaram a vontade de buscar a

realização de seus sonhos por acreditarem-se indignos para

tanto é o momento em que o chamado “Professor”, agraciado com

o dom da pintura, recebeu a proposta de um bem aparentado

andarilho para que fosse à próspera cidade de Rio de

Janeiro explorar com mais profissionalismo seu talento

artístico.

Novamente, a oportunidade concedida

ao “Processor” de autodeterminar-se em sua vida restou

desperdiçada à medida em que o ligeiro furto da carteira do

sujeito se tornou uma opção mais atraente naquele momento.

Apesar de jovens, as crianças se

organizaram de forma disciplinada, havendo a figura de um

líder, “Pedro Bala”, ao qual todos garantiam respeito e o

comprometimento deste com a integralidade dos garotos

abandonados.

As disputas internas eram

resolvidas, no mais das vezes, pelo líder que, quando

necessário, se valia da própria força física (sua, ou de

seu bando principal) para rechaçar qualquer motim ou ato de

rebeldia, chegando, inclusive, a expulsar um grupo de

garotos que promoviam arruaça no meio da coletividade de

crianças.

Ainda assim, com as

responsabilidades que sobre eles recaíam, a parcela

infantil jamais se despregou do bando, que por vezes se

viam divertindo-se em um carrossel ou brincando junto às

ondas do mar nordestino.

Os capitães da areia, forma como eram

conhecidos entre a sociedade baiana, apesar de austeros e

rígidos em seus atos de vilania, não se libertaram dos

desejos infantis de apenas serem felizes e sonharem, mas

tais atributos se quedaram ofuscados pela realidade seca

que lhes impunha uma busca rotineira e sinuosa pela

sobrevivência onde não possuíam qualquer valor aparente.

A vida na criminalidade não foi,

assim como ainda não é, um objetivo de vida para os garotos

abandonados, na verdade, era o meio, aliás, o único meio de

sobrevivência que puderam encontrar.

Embora de pequenas proporções, a

batalha diária dos capitães da areia assemelha-se às lutas de

classe que guiaram o curso da história da humanidade.

Assim como um dia os escravos

buscaram reconhecimento, o fizeram as mulheres, o fizeram

os trabalhadores, e ali, naquela cidade de Salvador/BA o

fizeram as crianças abandonadas.

A revolução do líder “Pedro Bala” na

colônia agrícola após sua internação evidencia o espírito

revolucionário inserido em seus intentos e que lhe impediam

de apenas se conformarem com a vida miserável que tinham.

Por volta daquela época, o

ordenamento jurídico brasileiro não se prestava a

contemplar a segurança e proteção dos jovens em situações

de risco, mormente porque o Código de Menores de 1927 o qual,

in thesis, dispunha sobre “assistência e proteção aos

menores”, inclusive sobre “medidas necessárias à guarda,

tutela, vigilância, educação, preservação e reforma dos

abandonados ou delinquentes”, em verdade, apenas acentuou

ainda mais a segregação destas crianças.

O referido Códex, pouco preocupado

com o melhor interesse da criança abandonada, claramente

emanava o fito de resguardar a sociedade contra elas, e não

o contrário, como se vê da conceituação de criança vadia dada

pelo seu art. 28, in verbis.

“Decreto nº. 17.943-A de 12 de Outubro de 1927.Art. 28. Redija-se assim o § 2º do art. 2ºdo decreto n. 16.272, de 20 de dezembro de1923: São vadios os menores que: a) vivem em casa dos paes ou tutor ouguarda, porém se mostram refractarios areceber instrucção ou entregar-se atrabalho sério e util, vagandohabitualmente pelas ruas e logradourospublicosb) tendo deixado sem causa legitima odomicillo do pae, mãe tutor ou guarda. ouos logares onde se achavam collocados poraquelle a cuja autoridade estavamsubmettidos ou confiados, ou não tendodomicilio nem alguem por si, sãoencontrados habitualmente a vagar pelasruas ou logradouros publicos, sem quetenham meio de vida regular, ou tirando

seus recursos de occupação imoral ouprohibida.”2 (sic)

Vê-se, ainda, no art. 71 do mesmo

provimento legislativo que os menores delinquentes

qualificados como perigosos poderiam até mesmo ser

remetidos para uma prisão comum, onde cumpririam suas penas

até a regeneração.

Tal qual o Código Civil vigente

desde 1916, o Código de Menores de 1926 não teve o condão

de preocupar-se com a salvaguarda de direitos humanos das

crianças, o que concedeu ao direito brasileiro no início

deste século XX um forte quê de patriarcal e

patrimonialista, e não de social.

Apesar de vanguardista na América

do Sul, esta lei de proteção aos menores deu berço a uma

marginalização de toda criança pobre, ainda que pertencente

a uma entidade familiar, notadamente porque tornava

irregular – e passível de correição judicial qualquer

situação em que o menor estivesse dado ou propício à

delinquência.

Em suma, a indigitada lei não se

preocupou em reestruturar o ambiente familiar para que

melhor antedesse aos interesses da criança, mas sim retirá-

la da delinquência de forma forçosa, impingindo-lhe

privações de liberdade e as reinserindo em casas de proteção

onde poderiam ser vigiadas até que se regenerassem.

2 BRASIL. Decreto nº. 17.943-A, de 12 de Outubro de 1927, 1927.

A doutrina de Saraiva3 bem apontou

o seguinte para a legislação da época:“Veio-se construindo a Doutrina do Direitodo Menor, fundada no binômiocarência/delinquência. Se não mais seconfundiam adultos com crianças, destanova concepção resulta um outro mal: aconsequente criminalização da pobreza.”

A ideia marcante da época de que a

família é funesta à infância impunha em um tratamento de

indiferença, senão de reproche, às necessidades mais

básicas dos menores abandonados, em especial no que verte à

saúde, educação, lazer e moradia.

A Constituição Republicana de 1891,

por sua vez, não dispendeu sequer um único dispositivo para

garantir o direito à entidade familiar ou à criança em seu

bojo, restando mais preocupadas em dispor sobre a

organização do Estado e declarar alguns poucos direitos dos

cidadãos brasileiros, havendo um tímido, mas reconhecido,

avanço quando da Carta Magna seguinte, de 1934.

O “problema da criança” foi analisado

pelo Brasil, no período a que se remonta a película ora em

análise, como o problema que estes menores de rua causam à

sociedade, e não como o problema suportado por estes

indivíduos.

A própria Lei brasileira de nº.

6.994 de 19 de junho de 1908 estabelecia a criação de

3 SARAIVA, J. B. C. Adolescente em conflito com a lei: da indiferença àproteção integral: uma abordagem sobre a responsabilidade penal juvenil,Porto Alegre, Ed. Livraria do Advogado, 2005, p. 35.

“colônias correcionais”, locais onde os menores

delinquentes haveriam que ser recolhidos, lá se quedando

junto a criminosos adultos, o que é retratado no filme

quando da retenção de “Pedro Bala” junto a outros detentos

comuns.

Aliás, é de bom alvitre destacar

que no Código Criminal vigente, de 1890, a inimputabilidade

do menor somente ocorreria até os 9 anos, sendo que, entre

os 9 e 14 anos, o magistrado do caso analisaria o nível de

seu discernimento, podendo promover sua condenação.

A delinquência infantil pode ser

explicada pela Teoria da oportunidade diferencial (Strain theory) de

Cloward e Ohlin4, que se aprofundaram nos estudos prévios

de Durkheim, para os quais a criminalidade dos jovens menos

abastados decorria de sua própria condição (subcultura)

social, a qual lhe impunha como único meio de atingir os

fins colimados (sobrevivência) a prática de delitos, e não

um fim em si mesmo.

Para estes autores, uma série de

fatores impõe a busca pela criminalidade como instrumento

para atingir determinados objetivos.“Roles, wheter conforming or deviant incontente, are not necessarily freelyavaliable; acess to them depends upon avariety of factors, such as one’ssocioeconomic position, age, sex, ethnicaffiliation, personality characteristics,and the like. The potential thief, likethe potential physician, finds that access

4 CLOWARD, R.; OHLIN, L. Illegitimate Means, Anomie and Deviant Behavior. American Sociological Review 24, p. 146.

to his goal is governed by many criteriaother than merit and motivation”.

A conclusão a que se chega, segundo

a indigitada teoria, é de que, quanto maiores as

oportunidades de autodeterminação concedidas às famílias –

e jovens – marginalizadas, menor a sua propensão à

criminalidade.

Baratta, estudioso da criminologia

crítica, empresta concordância a esta teoria quando explana

que a subcultura econômica de uma classe corresponde à

“diversidade estrutural das chances de que dispõem os

indivíduos de servir-se de meios para alcançar os fins

culturais”5, o que também é reiterado pela impecável

doutrina de Antônio Garcia-Pablo ao compreender que a

delinquência do infante é um “mecanismo subjetivo da

ausência real de vias legítimas para fazer valer as metas

culturais ideais”6.

A delinquência infantil que,

infelizmente, ainda hoje acomete indistintamente as cidades

brasileiras tem como maior propulsor a inexistência de

políticas públicas que fomentem a educação das famílias de

baixa renda, que insiram os jovens residentes das

periferias em projetos culturais e profissionalizantes,

que, enfim, permitam que qualquer ser humano,

5 BARATTA, A. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1999, p. 70.6 GARCIA-PABLO DE MOLINA, A. Criminologia: Introdução a seus fundamentos teóricos, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1997, p.170

independentemente de sua classe social, seja efetivamente

capaz de buscar e alcançar seus mais inocentes sonhos.

Dentre todas as necessidades

primárias dos jovens marginalizados está a educação, que se

pode enaltecer como a pedra angular do desenvolvimento de

um país a longo prazo, vez que o seu fomento

indubitavelmente afeta positivamente todos os outros

setores (economia, assistência médica, segurança pública,

cultura, et cetera).

O direito à autodeterminação,

nestes causos, justifica a violação racional das vedações

criminais, à medida em que um sujeito somente assim poderá

identificar-se como indivíduo soberano de si mesmo e capaz

de trilhar seu próprio caminho no sonho que perquire.

A imagem de uma criança abandonada

ou de um delinquente juvenil frente à sociedade é

estigmatizada como uma escória da qual as cidades devem se

livrar, entretanto, cada um dos menores possui suas

próprias características, seus próprios dons e anseios, não

sendo possível desprezá-los porque reina em seus interiores

um brilhantismo de personalidade, embora encarcerado pela

pobreza e pelo abandono.

O filme apresentado demonstra uma

realidade em que os crimes (ou atos infracionais)

perpetrados pelos menores resumem-se a furtos e roubos, o

que decorre da necessidade premente de se prover a própria

subsistência com bens materiais mínimos, evidenciando uma

delinquência famélica, e não por luxúria.

Beber da água da literatura

ficcional pode auxiliar a melhor compreender o que

representam os pobres capitães da areia, e aqui é válido

reverberar os imortais ensinamentos de J. R. R. Tolkien7 na

figura de Frodo de que mesmo a menor das pessoas pode

exercer um grande papel na história do mundo.

Afaz-se oportuno arvorar a Teoria

estrutural-funcionalista a fim de se apontar que um determinado

ato jurídico somente pode ser tido por ilícito acaso a

realidade social em que se insere o apresente como

moralmente inidôneo.

Àqueles capitães da areia que se viram

sem qualquer outra opção de sobrevivência, a prática de

pequenos delitos é abarcada pela referida teoria, mormente

porque o ato colimado é compreensível no meio social da

época, em que não lhes era oportunizado, sequer em

condições mínimas, saúde, educação, moradia, trabalho

lícito ou qualquer outra assistência governamental.

E é justamente nesta situação de

dicotomia em que a dúvida sobre a corretude de um ato é

condenada pela lei mas possa ser moralmente aceitável que

se destaca a falibilidade da premissa pela qual todos os atos

proibidos por lei são injustos.

7 Em referência a sua célebre trilogia literária, O SenhorDos Anéis.

A criação de crianças

marginalizadas – notadamente, dos delinquentes juvenis que

daí advêm –, desprovidas de passado e sem qualquer centelha

de expectativa para o futuro consiste em cenário cuja

responsabilidade deve ser imputada ao Estado, falho em sua

missão de prover harmonia e igualdade social.

Desta concepção se extrai uma

particular doutrina, nominada como teoria da co-culpabilidade, que

tradicionalmente se faz invocada nos imbróglios judiciais

envolvendo a prática de atos infracionais por menores.

A referida corrente do estudo

criminológico tem como primordial percussor o jurista

argentino Zaffaroni, que bem a disseca ao compreender que

parte da culpa pela prática de um delito famélico por um

jovem abandonado, v.g., deve recair sobre a máquina estatal,

que se quedou desidiosa em lhe prover uma alternativa

lícita qualquer de sobrevivência.

Poder-se-ia, até mesmo, justificar

a legitimidade do ato na seara criminal ante a escusa da

inexigibilidade de conduta diversa, mormente porque não se poderia

exigir de um sujeito em uma circunstância extrema de

abandono e risco de vida que necessite furtar para se

alimentar apenas aguarde a morte.

Para o renomado jurista argentino,

a legitimidade da resposta criminal do Estado “surge de la

necesidad que la impone el limitado poder de que dispone y, en modo alguno

legitima la pena”8.

Assim, pela corrente teórica

exposta, o notório nível de vulnerabilidade dos capitães da areia

justificaria a aplicação desta excludente de ilicitude,

legitimando seus atos porque escusáveis e condenando o

Estado por sua ausência no trato desta problemática social.

Em obra compartilhada por Zaffaroni

e Pierangeli, se tratou com maestria o ponto nevrálgico da

teoria da co-culpabilidade, com especial correlação à falta

de oportunidade dos infratores e à sua incapacidade de

autodeterminação, senão vejamos.“Todo sujeito age numa circunstânciadeterminada e com um âmbito deautodeterminação também determinado. Emsua própria personalidade há umacontribuição para esse âmbito deautodeterminação, posto que a sociedade– por melhor organizada que seja – nuncatem a possibilidade de brindar a todosos homens com as mesmasoportunidades. Em consequência, hásujeitos que têm um menor âmbito deautodeterminação, condicionado destamaneira por causas sociais. Não serápossível atribuir estas causas sociais aosujeito e sobrecarregá-lo com elas nomomento da reprovação de culpabilidade.Costuma-se dizer há aqui, uma “co-culpabilidade”, com a qual a própriasociedade deve arcar.”9

8 ZAFFARONI, E. R. En busca de las penas perdidas, Buenos Aires, Ediar, 1998, p. 276.9 ZAFFARONI, E. R.; PIRANGELI, J. H. Manual de direito penal brasileiro, 9ª Edição, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2011,p. 84.

O entendimento é reforçado pela

doutrina de Moreira de Moura, para quem a teoria “reconhece a

co-responsabilidade do Estado no cometimento de determinados delitos,

praticados por cidadãos que possuem menor âmbito de autodeterminação”10.

Trata-se de um desdobramento lógico

do princípio máximo da isonomia, pela qual se deve

perquirir as minúcias das circunstâncias da vida do menor

abandonado antes de lhe impor uma condenação ou pena.

Retomando a relevância da educação

como o instrumento-mor de combate à delinquência infantil

retratada na película Capitães de Areia, afaz-se prudente

destacar a premissa de que a construção de mais escolas e a

educação de mais crianças evita a necessidade de se

construir mais presídios ou de se punir mais os adultos no

futuro.

A promoção da educação como um

dever estatal e um direito do povo oportunizaria aos jovens

de classes menos abastadas a chance de autodeterminação,

capacitando-os a adquirirem autonomia através do labor e

engrandecendo-os em intelectualidade que lhes propiciaria

uma análise crítica mais acurada de tudo que os cerca.

Em reconhecimento da

indispensabilidade da educação de todos como forma de se

combater as mazelas sociais que acometem uma comunidade, a

Nobel da Paz, Malala Yousafzaï pregou com fervor que o

ensino deve ser sempre uma prioridade, e bem assinala que10 DE MOURA, G. M. Do princípio da co-culpabilidade no direito penal, Niterói, Impetus, 2006, p. 36.

“a caneta e as palavras podem ser muito mais poderosas do que

metralhadoras, tanques ou helicópteros”11, concluindo impecavelmente

ao conclamar que “deveríamos aprender tudo e então escolher qual

caminho seguir”12.

Contudo, seja por natureza própria,

seja pela sua formação ao longo da vida, o homem tende ao

egocentrismo, e não raramente o legislador – que, antes de

tudo, é homem – olvida em garantir às classes mais humildes

da sociedade um provimento legislativo eficaz e que lhes

garanta mais objetivamente o direito de acesso ao ensino.

A atividade legislativa seria o

primeiro ato positivo a ser empregado pelo Estado e, para

tanto, se torna recomendável a utilização do principado de

John Rawls intitulado véu da ignorância, pelo qual o

parlamentar haveria que se imaginar na situação de cada

indivíduo quando da confecção de uma lei.

Oportuno trazer à baila os

ensinamentos consagrados pelo referido sociólogo, vez que

sua hermenêutica tem, teoricamente, se apresentado bastante

viável a fim de resguardar direitos de minorias.“The aim is to use the notion of purêprocedural justice as a basis of theory.Somehow we must nullify the effects ofspecific contingencies which put men atodds and tempt them to exploit social andnatural circumstances to their ownadvantage. Now in order to do this Iassume that the parties are situatedbegind a veil of ignorance. They do not

11 YOUSAFZAI, M. I am Malala: the girl who stood up for education and was shot by the taliban, London, Weidenfeld & Nicolson, 2013, p. 132.12 Op cit. p. 135.

know how the various alternatives willaffect their own particular case and theyare obliged to evaluate principles solelyon the basis of general considerations”.13

A edição de leis que abracem a

realidade da delinquência juvenil como um problema a ser

respondido de forma acautelada, com educação dos jovens, e

não repressão criminal, é o primeiro passo de um longo

processo de modulação social, cujos maiores obstáculos

serão enfrentados quando do cumprimento das próprias leis.

Ao Poder Executivo recai a

responsabilidade de tornar efetiva a proteção dos menores

abandonados com políticas ostensivas de promoção de eventos

culturais, de oferecimento de cursos profissionalizantes,

com o estabelecimento de novas instituições de ensino

básico e fundamental, assim como a manutenção e melhoria da

infraestrutura das já existentes.

O retorno ao Estado será propiciado

em longo prazo e de diversas formas, vez que a garantia de

ensino básico e fundamental de qualidade propicia o

desenvolvimento de uma sociedade intelectual e crítica,

promovendo, daí, melhoria de mão-de-obra local, impulsão na

economia com instalação de novas empresas (nacionais e

estrangeiras), redução dos índices de criminalidade,

conscientização no que toca a saúde familiar e, por fim, o

resultado de uma imensa melhoria na qualidade de vida não

somente dos menores, que passariam a dispor e maior13 RAWLS, J. A theory of justice, Harvard, Havard University Press,1999, p. 180.

autodeterminação, como da sociedade integralmente

considerada, que se beneficiará dos potenciais préstimos

destes jovens que poderão somar esforços no mercado de

trabalho e no enobrecimento cultural do país.

Importante destacar a reflexão de

Johannes Althusius acerca de importância de cada indivíduo

para a construção de uma sociedade harmônica e proveitosa.“For this reason God willed to train andteach men not by angels, but by men. Forthe same reason God distributed his giftsunevenly among men. He did not give allthings to one person, but some to one andsome to others, so that you have need formy gifts, and I for yours. And so wasborn, as it were, the need forcommunicating necessary and useful things,which communication was not possibleexcept in social and political life. Godtherefore willed that each need theservice and aid of others in order thatfriendship would bind all together, and noone would consider another to bevalueless. [§ 27] For if each did not needthe aid of others, what would society be?What would reverence and order be? Whatwould reason and humanity be? Every onetherefore needs the experience andcontributions of others, and no one livesto himself alone.”14

Os capitães da areia eram especiais e

providos de habilidades natas, cada qual em determinada

área, de sorte que eventualmente seriam de serventia à

coletividade ao compartilhar estes dons com obras

14 ALTHUSIUS, J. Politica, Indianapolis, Liberty Fund, 1995, p. 48.

artísticas (Professor) e em liderança de lutas de classes

(Pedro Bala), por exemplo.

A evidente conclusão a que se chega

empós promovida a análise crítica do contexto social em que

se inserem os personagens da obra cinematográfica Capitães da

Areia é uma só: a ausência de participação ostensiva e

capacitada da sociedade civil e das instituições públicas

permitiram o desenvolvimento de uma subclasse social

marginalizada que, por carecedora de autodeterminação,

encontrou na delinquência a única forma de prover sua

própria subsistência.

Não obstante o potencial oculto em

cada um daqueles jovens cujas identidades paulatinamente

vinham sendo ofuscadas poderia ser resgatado acaso

oportunidades lhe fossem concedidas, oportunidades de

apresentarem seus valores e suas personalidades à

comunidade, o que, ao tempo, era algo impensável.

A legislação que se evolui em

conjunto com as modificações da sociedade deve acompanhar

os anseios das classes menos favorecidas economicamente de

forma a lhes propiciar iguais condições de

autodeterminação, apresentando-lhes opções de sobrevivência

e autoafirmação distintas da criminalidade.

A delinquência infantil, mais do

que um problema de política criminal é uma enfermidade

social que deve ser combatida com a devida atenção às

peculiaridades da situação, tomando os seus agentes como

possíveis vítimas do ambiente em que já nasceram inseridas,

justificando, assim, o empréstimo de um trato diferenciado

a estes jovens, que, mais do que punidos, devem ser

reinseridos na sociedade como verdadeiros cidadãos através

da porta da educação.

Bibliografia

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