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ANÁLISE CRÍTICA DO CONTEXTO SOCIAL NO FILME “CAPITÃES DA AREIA”1
Resumo
O presente trabalho promove uma
reflexão crítica acerca das questões sociais presentes na
obra cinematográfica Capitães da Areia (2011) da direção de
Cecília Amado, baseado na literatura homônima de Jorge
Amado.
Com efeito, a abordagem recairá
sobre a realidade retratada pela película, em especial no
que toca às dificuldades suportadas pelas crianças do
enredo que, marginalizadas pela sociedade e pelas
instituições públicas, lutavam pela sobrevivência através
da criminalidade.
Sob um prisma mais acurado das
idiossincrasias da realidade da época, primeiras décadas do
século XX, será possível discorrer acerca da perda de
identidade dos infantes, que se divorciavam de qualquer
lembrança do passado, de suas famílias e de si mesmos, vez
que a única importância de suas vidas resumia-se a garantir
a sobrevivência naquele momento.
A despeito do momento histórico já
longínquo, se verá que a temática se apresenta ainda atual,
permanecendo hodiernamente o descompromisso efetivo do
1 Autores: Sérgio Quezado Gurgel e Silva (Brasil) e MárcioRafael Gazzineo (Brasil) para a disciplina de História doDireito, integrante da matriz curricular do Curso deDoutorado em Direito da Universidade de Buenos Aires (UBA).
Poder Público com a preservação da vida e identidade das
crianças abandonadas.
Palavras-chave
Capitães da areia, crianças
abandonadas, marginalização infantil.
Abstract
The current work promotes a
critical analysis of social issues present in the
cinematographic work Captains of the Sand, directed by Cecília
Amado, based on the homonymous literature of Jorge Amado.
The approach will fall on the
reality protrayed by the film, particular as regards the
difficulties suffered by the children of the plot that are
marginalized by society and public institutions, fighting
for survival through crime.
Under a more accurate perspective
of the idiosyncrasies of the reality of the time, early
twentieth century, you can argue about the loss of identidy
of infants, which is divorced from any memory of the past,
their families and themselves, since the only importance of
their lives was summed up to ensure the survival at that
time.
Despite the historical moment now
distant, it will be seen that the subject appears still
current in our times, remaining, nowadays, the effective
disengagement of the government with the preservation on
life and identity of the abandone children.
Palavras-chave
Captains of the Sands, abandoned
children, children’s marginalization.
Corpo do Trabalho
Prefacialmente, cumpre narrar que a
história narrada no filme Capitães da Areia remonta a um
período entre as décadas de 30 e 40 e tem cenário na cidade
de Recife, localizada no sul do Estado da Bahia, num Brasil
que ainda se alicerçava como República após o levante
político-militar ocorrido em 1889 que culminou com o fim da
soberania imperialista de Dom Pedro II.
O enredo retrata as dificuldades
vivenciadas por um grupo de garotos de rua que se
organizaram em uma espécie de colônia onde cada criança
desempenhava um papel diferenciado em benefício daquela
coletividade.
A despeito da curta idade, os
garotos apresentam um comportamento maduro quanto à
assunção de responsabilidades e encaram a desafiadora
realidade com rigidez, na tentativa de ocultar quaisquer
traços da jovialidade da quão ainda são indissociáveis.
O drama das crianças é realçado
pelo desprezo ofertado pela sociedade baiana, que as
considera escória indigna da própria existência e sem
qualquer valor humano.
As dores da marginalização –
literalmente, postos à margem – são minimamente amaciadas
pelo acolhimento das instituições religiosas, que, apesar
da pouca contribuição material para a sobrevivência dos
menores, lhes contempla com o bem de que mais necessitam:
atenção.
Pelo ambiente de abandono em que
estão inseridas, as crianças desenvolveram um
amadurecimento precoce que, aparentemente, lhes tolheu a
capacidade de perquirir por sonhos, notadamente porque
traçaram como o objetivo único de suas vidas a preservação
da própria existência, simplesmente.
Este raciocínio se reflete com
clareza nas situações do filme em que o nominado “Sem Pernas”
insere-se em uma família patrícia como filho adotivo com a
finalidade de facilita o saque que seria empreendido pelos
demais garotos do bando.
Neste momento, “Sem Pernas” acabou
por receber sinceras demonstrações de afeto da sua então
mãe, que não poupava esforços em evidenciar seu interesse
em conceder afeto, carinho e sustento material ao menor,
que seria tratado como verdadeiro filho.
Ainda assim, o garoto optou pelo
bando, permitindo a surdina entrada de todos na residência
do casal com a pilhagem de diversos bens, sacrificando,
assim, a oportunidade de reestruturação de sua vida no seio
de uma entidade familiar manifestamente acolhedora e
comprometida.
Outro evento que demonstra
cabalmente que os garotos abandonaram a vontade de buscar a
realização de seus sonhos por acreditarem-se indignos para
tanto é o momento em que o chamado “Professor”, agraciado com
o dom da pintura, recebeu a proposta de um bem aparentado
andarilho para que fosse à próspera cidade de Rio de
Janeiro explorar com mais profissionalismo seu talento
artístico.
Novamente, a oportunidade concedida
ao “Processor” de autodeterminar-se em sua vida restou
desperdiçada à medida em que o ligeiro furto da carteira do
sujeito se tornou uma opção mais atraente naquele momento.
Apesar de jovens, as crianças se
organizaram de forma disciplinada, havendo a figura de um
líder, “Pedro Bala”, ao qual todos garantiam respeito e o
comprometimento deste com a integralidade dos garotos
abandonados.
As disputas internas eram
resolvidas, no mais das vezes, pelo líder que, quando
necessário, se valia da própria força física (sua, ou de
seu bando principal) para rechaçar qualquer motim ou ato de
rebeldia, chegando, inclusive, a expulsar um grupo de
garotos que promoviam arruaça no meio da coletividade de
crianças.
Ainda assim, com as
responsabilidades que sobre eles recaíam, a parcela
infantil jamais se despregou do bando, que por vezes se
viam divertindo-se em um carrossel ou brincando junto às
ondas do mar nordestino.
Os capitães da areia, forma como eram
conhecidos entre a sociedade baiana, apesar de austeros e
rígidos em seus atos de vilania, não se libertaram dos
desejos infantis de apenas serem felizes e sonharem, mas
tais atributos se quedaram ofuscados pela realidade seca
que lhes impunha uma busca rotineira e sinuosa pela
sobrevivência onde não possuíam qualquer valor aparente.
A vida na criminalidade não foi,
assim como ainda não é, um objetivo de vida para os garotos
abandonados, na verdade, era o meio, aliás, o único meio de
sobrevivência que puderam encontrar.
Embora de pequenas proporções, a
batalha diária dos capitães da areia assemelha-se às lutas de
classe que guiaram o curso da história da humanidade.
Assim como um dia os escravos
buscaram reconhecimento, o fizeram as mulheres, o fizeram
os trabalhadores, e ali, naquela cidade de Salvador/BA o
fizeram as crianças abandonadas.
A revolução do líder “Pedro Bala” na
colônia agrícola após sua internação evidencia o espírito
revolucionário inserido em seus intentos e que lhe impediam
de apenas se conformarem com a vida miserável que tinham.
Por volta daquela época, o
ordenamento jurídico brasileiro não se prestava a
contemplar a segurança e proteção dos jovens em situações
de risco, mormente porque o Código de Menores de 1927 o qual,
in thesis, dispunha sobre “assistência e proteção aos
menores”, inclusive sobre “medidas necessárias à guarda,
tutela, vigilância, educação, preservação e reforma dos
abandonados ou delinquentes”, em verdade, apenas acentuou
ainda mais a segregação destas crianças.
O referido Códex, pouco preocupado
com o melhor interesse da criança abandonada, claramente
emanava o fito de resguardar a sociedade contra elas, e não
o contrário, como se vê da conceituação de criança vadia dada
pelo seu art. 28, in verbis.
“Decreto nº. 17.943-A de 12 de Outubro de 1927.Art. 28. Redija-se assim o § 2º do art. 2ºdo decreto n. 16.272, de 20 de dezembro de1923: São vadios os menores que: a) vivem em casa dos paes ou tutor ouguarda, porém se mostram refractarios areceber instrucção ou entregar-se atrabalho sério e util, vagandohabitualmente pelas ruas e logradourospublicosb) tendo deixado sem causa legitima odomicillo do pae, mãe tutor ou guarda. ouos logares onde se achavam collocados poraquelle a cuja autoridade estavamsubmettidos ou confiados, ou não tendodomicilio nem alguem por si, sãoencontrados habitualmente a vagar pelasruas ou logradouros publicos, sem quetenham meio de vida regular, ou tirando
seus recursos de occupação imoral ouprohibida.”2 (sic)
Vê-se, ainda, no art. 71 do mesmo
provimento legislativo que os menores delinquentes
qualificados como perigosos poderiam até mesmo ser
remetidos para uma prisão comum, onde cumpririam suas penas
até a regeneração.
Tal qual o Código Civil vigente
desde 1916, o Código de Menores de 1926 não teve o condão
de preocupar-se com a salvaguarda de direitos humanos das
crianças, o que concedeu ao direito brasileiro no início
deste século XX um forte quê de patriarcal e
patrimonialista, e não de social.
Apesar de vanguardista na América
do Sul, esta lei de proteção aos menores deu berço a uma
marginalização de toda criança pobre, ainda que pertencente
a uma entidade familiar, notadamente porque tornava
irregular – e passível de correição judicial qualquer
situação em que o menor estivesse dado ou propício à
delinquência.
Em suma, a indigitada lei não se
preocupou em reestruturar o ambiente familiar para que
melhor antedesse aos interesses da criança, mas sim retirá-
la da delinquência de forma forçosa, impingindo-lhe
privações de liberdade e as reinserindo em casas de proteção
onde poderiam ser vigiadas até que se regenerassem.
2 BRASIL. Decreto nº. 17.943-A, de 12 de Outubro de 1927, 1927.
A doutrina de Saraiva3 bem apontou
o seguinte para a legislação da época:“Veio-se construindo a Doutrina do Direitodo Menor, fundada no binômiocarência/delinquência. Se não mais seconfundiam adultos com crianças, destanova concepção resulta um outro mal: aconsequente criminalização da pobreza.”
A ideia marcante da época de que a
família é funesta à infância impunha em um tratamento de
indiferença, senão de reproche, às necessidades mais
básicas dos menores abandonados, em especial no que verte à
saúde, educação, lazer e moradia.
A Constituição Republicana de 1891,
por sua vez, não dispendeu sequer um único dispositivo para
garantir o direito à entidade familiar ou à criança em seu
bojo, restando mais preocupadas em dispor sobre a
organização do Estado e declarar alguns poucos direitos dos
cidadãos brasileiros, havendo um tímido, mas reconhecido,
avanço quando da Carta Magna seguinte, de 1934.
O “problema da criança” foi analisado
pelo Brasil, no período a que se remonta a película ora em
análise, como o problema que estes menores de rua causam à
sociedade, e não como o problema suportado por estes
indivíduos.
A própria Lei brasileira de nº.
6.994 de 19 de junho de 1908 estabelecia a criação de
3 SARAIVA, J. B. C. Adolescente em conflito com a lei: da indiferença àproteção integral: uma abordagem sobre a responsabilidade penal juvenil,Porto Alegre, Ed. Livraria do Advogado, 2005, p. 35.
“colônias correcionais”, locais onde os menores
delinquentes haveriam que ser recolhidos, lá se quedando
junto a criminosos adultos, o que é retratado no filme
quando da retenção de “Pedro Bala” junto a outros detentos
comuns.
Aliás, é de bom alvitre destacar
que no Código Criminal vigente, de 1890, a inimputabilidade
do menor somente ocorreria até os 9 anos, sendo que, entre
os 9 e 14 anos, o magistrado do caso analisaria o nível de
seu discernimento, podendo promover sua condenação.
A delinquência infantil pode ser
explicada pela Teoria da oportunidade diferencial (Strain theory) de
Cloward e Ohlin4, que se aprofundaram nos estudos prévios
de Durkheim, para os quais a criminalidade dos jovens menos
abastados decorria de sua própria condição (subcultura)
social, a qual lhe impunha como único meio de atingir os
fins colimados (sobrevivência) a prática de delitos, e não
um fim em si mesmo.
Para estes autores, uma série de
fatores impõe a busca pela criminalidade como instrumento
para atingir determinados objetivos.“Roles, wheter conforming or deviant incontente, are not necessarily freelyavaliable; acess to them depends upon avariety of factors, such as one’ssocioeconomic position, age, sex, ethnicaffiliation, personality characteristics,and the like. The potential thief, likethe potential physician, finds that access
4 CLOWARD, R.; OHLIN, L. Illegitimate Means, Anomie and Deviant Behavior. American Sociological Review 24, p. 146.
to his goal is governed by many criteriaother than merit and motivation”.
A conclusão a que se chega, segundo
a indigitada teoria, é de que, quanto maiores as
oportunidades de autodeterminação concedidas às famílias –
e jovens – marginalizadas, menor a sua propensão à
criminalidade.
Baratta, estudioso da criminologia
crítica, empresta concordância a esta teoria quando explana
que a subcultura econômica de uma classe corresponde à
“diversidade estrutural das chances de que dispõem os
indivíduos de servir-se de meios para alcançar os fins
culturais”5, o que também é reiterado pela impecável
doutrina de Antônio Garcia-Pablo ao compreender que a
delinquência do infante é um “mecanismo subjetivo da
ausência real de vias legítimas para fazer valer as metas
culturais ideais”6.
A delinquência infantil que,
infelizmente, ainda hoje acomete indistintamente as cidades
brasileiras tem como maior propulsor a inexistência de
políticas públicas que fomentem a educação das famílias de
baixa renda, que insiram os jovens residentes das
periferias em projetos culturais e profissionalizantes,
que, enfim, permitam que qualquer ser humano,
5 BARATTA, A. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1999, p. 70.6 GARCIA-PABLO DE MOLINA, A. Criminologia: Introdução a seus fundamentos teóricos, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1997, p.170
independentemente de sua classe social, seja efetivamente
capaz de buscar e alcançar seus mais inocentes sonhos.
Dentre todas as necessidades
primárias dos jovens marginalizados está a educação, que se
pode enaltecer como a pedra angular do desenvolvimento de
um país a longo prazo, vez que o seu fomento
indubitavelmente afeta positivamente todos os outros
setores (economia, assistência médica, segurança pública,
cultura, et cetera).
O direito à autodeterminação,
nestes causos, justifica a violação racional das vedações
criminais, à medida em que um sujeito somente assim poderá
identificar-se como indivíduo soberano de si mesmo e capaz
de trilhar seu próprio caminho no sonho que perquire.
A imagem de uma criança abandonada
ou de um delinquente juvenil frente à sociedade é
estigmatizada como uma escória da qual as cidades devem se
livrar, entretanto, cada um dos menores possui suas
próprias características, seus próprios dons e anseios, não
sendo possível desprezá-los porque reina em seus interiores
um brilhantismo de personalidade, embora encarcerado pela
pobreza e pelo abandono.
O filme apresentado demonstra uma
realidade em que os crimes (ou atos infracionais)
perpetrados pelos menores resumem-se a furtos e roubos, o
que decorre da necessidade premente de se prover a própria
subsistência com bens materiais mínimos, evidenciando uma
delinquência famélica, e não por luxúria.
Beber da água da literatura
ficcional pode auxiliar a melhor compreender o que
representam os pobres capitães da areia, e aqui é válido
reverberar os imortais ensinamentos de J. R. R. Tolkien7 na
figura de Frodo de que mesmo a menor das pessoas pode
exercer um grande papel na história do mundo.
Afaz-se oportuno arvorar a Teoria
estrutural-funcionalista a fim de se apontar que um determinado
ato jurídico somente pode ser tido por ilícito acaso a
realidade social em que se insere o apresente como
moralmente inidôneo.
Àqueles capitães da areia que se viram
sem qualquer outra opção de sobrevivência, a prática de
pequenos delitos é abarcada pela referida teoria, mormente
porque o ato colimado é compreensível no meio social da
época, em que não lhes era oportunizado, sequer em
condições mínimas, saúde, educação, moradia, trabalho
lícito ou qualquer outra assistência governamental.
E é justamente nesta situação de
dicotomia em que a dúvida sobre a corretude de um ato é
condenada pela lei mas possa ser moralmente aceitável que
se destaca a falibilidade da premissa pela qual todos os atos
proibidos por lei são injustos.
7 Em referência a sua célebre trilogia literária, O SenhorDos Anéis.
A criação de crianças
marginalizadas – notadamente, dos delinquentes juvenis que
daí advêm –, desprovidas de passado e sem qualquer centelha
de expectativa para o futuro consiste em cenário cuja
responsabilidade deve ser imputada ao Estado, falho em sua
missão de prover harmonia e igualdade social.
Desta concepção se extrai uma
particular doutrina, nominada como teoria da co-culpabilidade, que
tradicionalmente se faz invocada nos imbróglios judiciais
envolvendo a prática de atos infracionais por menores.
A referida corrente do estudo
criminológico tem como primordial percussor o jurista
argentino Zaffaroni, que bem a disseca ao compreender que
parte da culpa pela prática de um delito famélico por um
jovem abandonado, v.g., deve recair sobre a máquina estatal,
que se quedou desidiosa em lhe prover uma alternativa
lícita qualquer de sobrevivência.
Poder-se-ia, até mesmo, justificar
a legitimidade do ato na seara criminal ante a escusa da
inexigibilidade de conduta diversa, mormente porque não se poderia
exigir de um sujeito em uma circunstância extrema de
abandono e risco de vida que necessite furtar para se
alimentar apenas aguarde a morte.
Para o renomado jurista argentino,
a legitimidade da resposta criminal do Estado “surge de la
necesidad que la impone el limitado poder de que dispone y, en modo alguno
legitima la pena”8.
Assim, pela corrente teórica
exposta, o notório nível de vulnerabilidade dos capitães da areia
justificaria a aplicação desta excludente de ilicitude,
legitimando seus atos porque escusáveis e condenando o
Estado por sua ausência no trato desta problemática social.
Em obra compartilhada por Zaffaroni
e Pierangeli, se tratou com maestria o ponto nevrálgico da
teoria da co-culpabilidade, com especial correlação à falta
de oportunidade dos infratores e à sua incapacidade de
autodeterminação, senão vejamos.“Todo sujeito age numa circunstânciadeterminada e com um âmbito deautodeterminação também determinado. Emsua própria personalidade há umacontribuição para esse âmbito deautodeterminação, posto que a sociedade– por melhor organizada que seja – nuncatem a possibilidade de brindar a todosos homens com as mesmasoportunidades. Em consequência, hásujeitos que têm um menor âmbito deautodeterminação, condicionado destamaneira por causas sociais. Não serápossível atribuir estas causas sociais aosujeito e sobrecarregá-lo com elas nomomento da reprovação de culpabilidade.Costuma-se dizer há aqui, uma “co-culpabilidade”, com a qual a própriasociedade deve arcar.”9
8 ZAFFARONI, E. R. En busca de las penas perdidas, Buenos Aires, Ediar, 1998, p. 276.9 ZAFFARONI, E. R.; PIRANGELI, J. H. Manual de direito penal brasileiro, 9ª Edição, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2011,p. 84.
O entendimento é reforçado pela
doutrina de Moreira de Moura, para quem a teoria “reconhece a
co-responsabilidade do Estado no cometimento de determinados delitos,
praticados por cidadãos que possuem menor âmbito de autodeterminação”10.
Trata-se de um desdobramento lógico
do princípio máximo da isonomia, pela qual se deve
perquirir as minúcias das circunstâncias da vida do menor
abandonado antes de lhe impor uma condenação ou pena.
Retomando a relevância da educação
como o instrumento-mor de combate à delinquência infantil
retratada na película Capitães de Areia, afaz-se prudente
destacar a premissa de que a construção de mais escolas e a
educação de mais crianças evita a necessidade de se
construir mais presídios ou de se punir mais os adultos no
futuro.
A promoção da educação como um
dever estatal e um direito do povo oportunizaria aos jovens
de classes menos abastadas a chance de autodeterminação,
capacitando-os a adquirirem autonomia através do labor e
engrandecendo-os em intelectualidade que lhes propiciaria
uma análise crítica mais acurada de tudo que os cerca.
Em reconhecimento da
indispensabilidade da educação de todos como forma de se
combater as mazelas sociais que acometem uma comunidade, a
Nobel da Paz, Malala Yousafzaï pregou com fervor que o
ensino deve ser sempre uma prioridade, e bem assinala que10 DE MOURA, G. M. Do princípio da co-culpabilidade no direito penal, Niterói, Impetus, 2006, p. 36.
“a caneta e as palavras podem ser muito mais poderosas do que
metralhadoras, tanques ou helicópteros”11, concluindo impecavelmente
ao conclamar que “deveríamos aprender tudo e então escolher qual
caminho seguir”12.
Contudo, seja por natureza própria,
seja pela sua formação ao longo da vida, o homem tende ao
egocentrismo, e não raramente o legislador – que, antes de
tudo, é homem – olvida em garantir às classes mais humildes
da sociedade um provimento legislativo eficaz e que lhes
garanta mais objetivamente o direito de acesso ao ensino.
A atividade legislativa seria o
primeiro ato positivo a ser empregado pelo Estado e, para
tanto, se torna recomendável a utilização do principado de
John Rawls intitulado véu da ignorância, pelo qual o
parlamentar haveria que se imaginar na situação de cada
indivíduo quando da confecção de uma lei.
Oportuno trazer à baila os
ensinamentos consagrados pelo referido sociólogo, vez que
sua hermenêutica tem, teoricamente, se apresentado bastante
viável a fim de resguardar direitos de minorias.“The aim is to use the notion of purêprocedural justice as a basis of theory.Somehow we must nullify the effects ofspecific contingencies which put men atodds and tempt them to exploit social andnatural circumstances to their ownadvantage. Now in order to do this Iassume that the parties are situatedbegind a veil of ignorance. They do not
11 YOUSAFZAI, M. I am Malala: the girl who stood up for education and was shot by the taliban, London, Weidenfeld & Nicolson, 2013, p. 132.12 Op cit. p. 135.
know how the various alternatives willaffect their own particular case and theyare obliged to evaluate principles solelyon the basis of general considerations”.13
A edição de leis que abracem a
realidade da delinquência juvenil como um problema a ser
respondido de forma acautelada, com educação dos jovens, e
não repressão criminal, é o primeiro passo de um longo
processo de modulação social, cujos maiores obstáculos
serão enfrentados quando do cumprimento das próprias leis.
Ao Poder Executivo recai a
responsabilidade de tornar efetiva a proteção dos menores
abandonados com políticas ostensivas de promoção de eventos
culturais, de oferecimento de cursos profissionalizantes,
com o estabelecimento de novas instituições de ensino
básico e fundamental, assim como a manutenção e melhoria da
infraestrutura das já existentes.
O retorno ao Estado será propiciado
em longo prazo e de diversas formas, vez que a garantia de
ensino básico e fundamental de qualidade propicia o
desenvolvimento de uma sociedade intelectual e crítica,
promovendo, daí, melhoria de mão-de-obra local, impulsão na
economia com instalação de novas empresas (nacionais e
estrangeiras), redução dos índices de criminalidade,
conscientização no que toca a saúde familiar e, por fim, o
resultado de uma imensa melhoria na qualidade de vida não
somente dos menores, que passariam a dispor e maior13 RAWLS, J. A theory of justice, Harvard, Havard University Press,1999, p. 180.
autodeterminação, como da sociedade integralmente
considerada, que se beneficiará dos potenciais préstimos
destes jovens que poderão somar esforços no mercado de
trabalho e no enobrecimento cultural do país.
Importante destacar a reflexão de
Johannes Althusius acerca de importância de cada indivíduo
para a construção de uma sociedade harmônica e proveitosa.“For this reason God willed to train andteach men not by angels, but by men. Forthe same reason God distributed his giftsunevenly among men. He did not give allthings to one person, but some to one andsome to others, so that you have need formy gifts, and I for yours. And so wasborn, as it were, the need forcommunicating necessary and useful things,which communication was not possibleexcept in social and political life. Godtherefore willed that each need theservice and aid of others in order thatfriendship would bind all together, and noone would consider another to bevalueless. [§ 27] For if each did not needthe aid of others, what would society be?What would reverence and order be? Whatwould reason and humanity be? Every onetherefore needs the experience andcontributions of others, and no one livesto himself alone.”14
Os capitães da areia eram especiais e
providos de habilidades natas, cada qual em determinada
área, de sorte que eventualmente seriam de serventia à
coletividade ao compartilhar estes dons com obras
14 ALTHUSIUS, J. Politica, Indianapolis, Liberty Fund, 1995, p. 48.
artísticas (Professor) e em liderança de lutas de classes
(Pedro Bala), por exemplo.
A evidente conclusão a que se chega
empós promovida a análise crítica do contexto social em que
se inserem os personagens da obra cinematográfica Capitães da
Areia é uma só: a ausência de participação ostensiva e
capacitada da sociedade civil e das instituições públicas
permitiram o desenvolvimento de uma subclasse social
marginalizada que, por carecedora de autodeterminação,
encontrou na delinquência a única forma de prover sua
própria subsistência.
Não obstante o potencial oculto em
cada um daqueles jovens cujas identidades paulatinamente
vinham sendo ofuscadas poderia ser resgatado acaso
oportunidades lhe fossem concedidas, oportunidades de
apresentarem seus valores e suas personalidades à
comunidade, o que, ao tempo, era algo impensável.
A legislação que se evolui em
conjunto com as modificações da sociedade deve acompanhar
os anseios das classes menos favorecidas economicamente de
forma a lhes propiciar iguais condições de
autodeterminação, apresentando-lhes opções de sobrevivência
e autoafirmação distintas da criminalidade.
A delinquência infantil, mais do
que um problema de política criminal é uma enfermidade
social que deve ser combatida com a devida atenção às
peculiaridades da situação, tomando os seus agentes como
possíveis vítimas do ambiente em que já nasceram inseridas,
justificando, assim, o empréstimo de um trato diferenciado
a estes jovens, que, mais do que punidos, devem ser
reinseridos na sociedade como verdadeiros cidadãos através
da porta da educação.
Bibliografia
ALTHUSIUS, J. Politica, Indianapolis, Liberty Fund, 1995.
BARATTA, A. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal, Rio de
Janeiro, Freitas Bastos, 1999.BRASIL. Decreto nº. 17.943-A, de 12
de Outubro de 1927.
CLOWARD, R.; OHLIN, L. Illegitimate Means, Anomie and Deviant
Behavior. American Sociological Review 24.
DE MOURA, G. M. Do princípio da co-culpabilidade no direito penal,
Niterói, Impetus, 2006.
GARCIA-PABLO DE MOLINA, A. Criminologia: Introdução a seus
fundamentos teóricos, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1997.
SARAIVA, J. B. C. Adolescente em conflito com a lei: da indiferença à
proteção integral: uma abordagem sobre a responsabilidade penal juvenil,
Porto Alegre, Ed. Livraria do Advogado, 2005.
RAWLS, J. A theory of justice, Harvard, Havard University Press,
1999.
YOUSAFZAI, M. I am Malala: the girl who stood up for education and was
shot by the taliban, London, Weidenfeld & Nicolson, 2013.
ZAFFARONI, E. R. En busca de las penas perdidas, Buenos Aires,
Ediar, 1998.