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ESCOLA DE ARQUITETURA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS DEPARTAMENTO DE PROJETOS - PRJ FINEP RELATÓRIO DE PESQUISA “Avaliação Pós-Ocupação, Participação de Usuários e Melhoria da Qualidade dos Projetos Habitacionais: uma abordagem fenomenológica com apoio do Estúdio Virtual de Arquitetura - EVAEDITAL2 / FINEP PROJETO FINANCIADO PELA FINEP EXECUTADO PELA ESCOLA DE ARQUITETURA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS DEPARTAMENTO DE PROJETOS-PRJ Coordenação: Prof. Maria Lúcia Malard Arquiteta urbanista, Professora Ph.D. Titular do Departamento de Projetos da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais Primeira versão - Fevereiro de 2002 HABITARE HABITARE FINEP Financiadora de Estudos e Projetos - MCT Escola de arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais

Avaliação Pós-Ocupação, Participação de Usuários e

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ESCOLA DE ARQUITETURADA UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAISDEPARTAMENTO DE PROJETOS - PRJFINEP

RELATÓRIO DE PESQUISA

“Avaliação Pós-Ocupação, Participação de Usuários e

Melhoria da Qualidade dos Projetos Habitacionais: uma

abordagem fenomenológica com apoio do Estúdio

Virtual de Arquitetura - EVA”

EDITAL2 / FINEP

PROJETO FINANCIADO PELA FINEP

EXECUTADO PELA ESCOLA DE ARQUITETURA DA

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

DEPARTAMENTO DE PROJETOS-PRJ

Coordenação: Prof. Maria Lúcia MalardArquiteta urbanista, Professora Ph.D. Titular do

Departamento de Projetos da

Escola de Arquitetura da

Universidade Federal de Minas Gerais

Primeira versão - Fevereiro de 2002

HABITAREHABITARE FINEP

Financiadora de Estudos e

Projetos - MCT

Escola de arquitetura da

Universidade Federal de Minas

Gerais

Pesquisa “Avaliação Pós-Ocupação, Participação de Usuários e Melhoria da Qualidade dos

Projetos Habitacionais: uma abordagem fenomenológica com apoio do Estúdio Virtual de

Arquitetura- EVA”

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SUMÁRIO

1. Introdução ................................................................................................................... 2

2. Apresentação do Relatório........................................................................................ 3

3. Metodologia de Identificação e Análise dos Conflitos Arquitetônicos.............. 4

3.1. Quadro Conceitual Entendendo o Espaço Arquitetônico............................. 5

3.1.1. Introdução. .................................................................................................... 5

3.1.2. O homem como ser-no-mundo. ................................................................. 6

3.1.3. O corpo como o sujeito do espaço. ............................................................ 7

3.1.4. O espaço vivido. ........................................................................................... 8

3.1.5. Espacializações. .......................................................................................... 13

3.1.6. Espacializações e padrões culturais......................................................... 15

3.1.7. Tempo e espacialização............................................................................. 16

3.1.8. O espaço arquitetônico.............................................................................. 19

3.2. Quadro Conceitual Entendendo o Sentido de Morar .................................. 23

3.2.1. Para o que é uma Casa?............................................................................. 23

3.2.2. Casa e lar...................................................................................................... 23

3.2.3. A casa como pronta-para-o-uso. .............................................................. 26

3.2.3. O ser da casa. .............................................................................................. 28

3.2.4. A casa unready-to-hand: introduzindo a noção de conflito

arquitetônico. ........................................................................................................ 33

3.2.5. A Habitabilidade e as Dimensões Fenomenológicas de morar........... 36

3.2.6. A dimensão fenomenológica do morar................................................... 42

3.2.7. As dimensões fenomenológicas do morar e os fenômenos a elas

associados.............................................................................................................. 42

3.3. Lendo Espaços ................................................................................................... 46

3.3.1. Introduzindo a noção de leituras espaciais............................................ 46

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3.3.2. A metodologia da pesquisa de campo.................................................... 48

3.3.3. Estratégia das Observações: não fazer perguntas. ................................ 50

4. O Trabalho de Campo. ............................................................................................ 54

4.1. Definição da amostra. ....................................................................................... 54

4.2. Seleção e Treinamento dos estagiários para as Leituras Espaciais. ........... 56

4.3. Diretrizes para a realização de Leituras Espaciais. ...................................... 56

5. Caso Número 1: Ipatinga ........................................................................................ 58

5.1. Autoconstrução, mutirão e autogestão. ......................................................... 59

5.2. A experiência dos mutirões autogeridos em Ipatinga................................. 74

5.3. O caso do mutirão Novo Jardim - São Francisco....................................... 104

5.4. O caso do mutirão Primeiro de Maio........................................................... 129

5.5. Análise dos dados de Ipatinga. ..................................................................... 167

5.5.1. O Problema ............................................................................................... 167

5.5.2. Uma breve consideração sobre a abordagem fenomenológica ......... 169

5.5.3. Participação dos usuários através do conhecimento de suas

necessidades........................................................................................................ 171

5.5.4. Os conflitos arquitetônicos ..................................................................... 177

5.5.4.1. A estratégia das observações de campo..................................... 179

5.5.4.2. Identificando Conflitos Arquitetônicos em Ipatinga ............... 180

5.5.4.2.1. A cidade....................................................................................... 181

5.5.4.2.2. O mutirão Primeiro de Maio .................................................... 183

5.5.4.2.3. O mutirão Planalto II ................................................................. 185

5.5.4.2.4. Os conflitos identificados.......................................................... 187

5.5.5. Conclusões. .................................................Erro! Indicador não definido.Erro! Indicador não definido.

6. Relato do estudo de caso número 2 - Salvador....Erro! Indicador não definido.Erro! Indicador não definido.

6.1. Análise comparativa dos dois campos...........Erro! Indicador não definido.Erro! Indicador não definido.

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6.2. A abordagem fenomenológica. .......................Erro! Indicador não definido.Erro! Indicador não definido.

6.3. O conceito de conflito arquitetônico. .............Erro! Indicador não definido.Erro! Indicador não definido.

6.4. As leituras espaciais..........................................Erro! Indicador não definido.Erro! Indicador não definido.

6.5. O caso de Narandiba. .......................................Erro! Indicador não definido.Erro! Indicador não definido.

6.5.1. O empreendimento. ...................................Erro! Indicador não definido.Erro! Indicador não definido.

6.5.2. O projeto urbanístico. ................................Erro! Indicador não definido.Erro! Indicador não definido.

6.5.3.Algumas Hipóteses Fundamentais. .........Erro! Indicador não definido.Erro! Indicador não definido.

6.6. Analisando Narandiba: o assentamento, como ele se mostra.Erro! Indicador não definido.Erro! Indicador não definido.

6.6.1. Exame da hipótese 1: legibilidade do conjunto e identidade.Erro! Indicador não definido.Erro! Indicador não definido.

6.6.2. Exame da hipótese 2: a repetição e a orientação espacial.Erro! Indicador não definido.Erro! Indicador não definido.

6.6.3.Exame da hipótese 3: a falta de delimitação territorial gerando

conflitos arquitetônicos e urbanos......................Erro! Indicador não definido.Erro! Indicador não definido.

6.7. Conclusão. ..........................................................Erro! Indicador não definido.Erro! Indicador não definido.

7. Relato das experiências realizadas com o apoio do EVA.Erro! Indicador não definido.Erro! Indicador não definido.

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1. Introdução

O presente Relatório apresenta os resultados da pesquisa: Avaliação Pós-Ocupação,

Participação de Usuários e Melhoria da Qualidade dos Projetos Habitacionais: uma

abordagem fenomenológica com apoio do Estúdio Virtual de Arquitetura - EVA.

Na proposta contratada com a Finep foram enunciados os seguintes objetivos:

• Desenvolver, através de uma abordagem fenomenológica (Teoria dos Conflitos

Arquitetônicos) uma metodologia de avaliação sistemática de uso de espaço em

unidades e assentamentos habitacionais populares, visando a obtenção de

parâmetros para projetos arquitetônicos e urbanísticos (novos projetos, reformas

e intervenções puntuais).

• Desenvolver, a partir dos parâmetros acima, uma metodologia de Projeto

Participativo de massa, incorporando técnicas avançadas de computação gráfica

e multimídia interativa, no processo de comunicação usuário/arquiteto.

Como ocorre com todo o projeto de pesquisa, as discussões críticas e os achados vão

acertando os rumos anteriormente definidos para poder incorporar novas idéias e

novas formulações metodológicas. No projeto em questão, o próprio processo de

elaboração da metodologia de Projeto Participativo de massa, sugeriu que

aprofundássemos no conhecimento do processo de produção de moradias

populares, notadamente nos mutirões conduzidos por governos municipais

populares (ou que se intitulam populares) como é o caso de Ipatinga, em Minas

Gerais. Ipatinga já havia sido selecionada para ser o campo de um de nosso estudos

de caso, justamente por construir habitações populares com a participação da

comunidade. Entretanto, na medida em que fomos aprofundando nossas discussões

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sobre as estratégias da pesquisa, pudemos observar que seria da maior valia

conhecer a fundo o que ocorrera em Ipatinga, em termos de participação popular,

para que, ao elaborar a metodologia de projeto participativo com o uso do EVA

(estúdio Virtual de Arquitetura), pudéssemos incorporar os elementos revelados

por uma experiência real, porém convencional.

2. Apresentação do Relatório.

Este é o relatório científico do projeto “Avaliação Pós-Ocupação, Participação de

Usuários e Melhoria da Qualidade dos Projetos Habitacionais: uma abordagem

fenomenológica com apoio do Estúdio Virtual de Arquitetura – EVA”. O projeto, já

desenvolvido e concluído, apresenta-se aqui na seguinte forma:

• Metodologia de Identificação e Análise dos Conflitos Arquitetônicos.

• Quadro Conceitual

• Entendendo o Espaço Arquitetônico.

• Entendendo o Sentido de Morar.

• Lendo Espaços

• Relato do estudo de caso número 1 - Ipatinga.

• Relato do estudo de caso número 2 - Salvador.

• Relato da montagem do EVA bem como das primeiras experiências ali

realizadas.

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3. Metodologia de Identificação e Análise dos

Conflitos Arquitetônicos.

A metodologia para a Identificação e Análise dos Conflitos arquitetônicos que

ocorrem nas interações moradores/moradias foi elaborada teoricamente, tendo o

pensamento de Martin Heidegger como a principal referência. A construção

metodológica se fundamenta em Karl Popper, na sua idéia do que seja o método

científico. Misturar Heidegger e Popper pode parecer contraditório, principalmente

porque o último simplesmente rejeitava os problemas de linguagem como sendo

relevantes, enquanto Heidegger busca na linguagem as sua certezas. Em que pesem

as diferenças e divergências entre o pensamento de Heidegger e o de Popper, o fato

é que ambos oferecem as explicações mais lúcidas para o que ocorre com a

arquitetura. Talvez a própria ambigüidade da arquitetura justifique o fato de ela

poder ser abordada por uma mistura de Heidegger e Popper. O fato é que,

enquanto Heidegger oferece uma explicação fundamental para a arquitetura

enquanto objeto utilitário - enquanto objeto que foi feito para servir a algum

propósito - Popper oferece uma explicação para o que ocorre no processo de criação

arquitetônica: é a mesma coisa que ocorre na descoberta científica: partimos de

hipótese, no caso, de hipóteses projetuais, e submetemos essas hipóteses à crítica

radical. Enquanto que em ciência as hipóteses ( ou conjecturas, ou teorias) que mais

resistem ao teste são as mais consistentes (embora não possamos dizer que sejam

verdadeiras), na arquitetura, as hipóteses projetuais (ou conjecturas, ou teorias) que

mais resistem ao teste da crítica radical são as que subsistem e se transformam em

obra construída. Popper nos ensina como é o processo de nossa criação, enquanto

Heidegger nos leva a compreender as características fundamentais do objeto que

criamos. Podemos dizer então, com segurança, que ambos nos podem servir,

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embora se neguem. E isso não é paradoxal. Afinal, o nosso objeto de investigação -

que é a arquitetura - é um objeto de múltiplas facetas, que é fruído na sua dimensão

simbólica, usufruído na sua dimensão funcional e construído na sua dimensão

tecnológica. Um objeto assim, tão complexo, haveria de colocar tanto o pensamento

de Heidegger como o de Popper, a seu serviço. Feitas essas considerações,

passamos ao exame dos fundamentos que deram origem à metodologia.

3.1. Quadro Conceitual

Entendendo o Espaço Arquitetônico.

3.1.1. INTRODUÇÃO.

A existência humana tem uma dimensão espacial que é parte da própria experiência

do homem no mundo: todas as ações humanas ocorrem no espaço. Não

necessariamente no espaço arquitetônico mas, certamente, no espaço físico do

mundo. Entretanto, o espaço não é apenas um conjunto edificado onde os eventos

da vida humana ocorrem. Ele é, antes de mais nada, um componente essencial dos

eventos.

Essa relação entre homem/espaço tem sido largamente discutida em alguns

campos do conhecimento, notadamente em sociologia, antropologia e geografia.

Embora todas essas discussões sejam do interesse da arquitetura e urbanismo, foi

na filosofia, particularmente em Heidegger, no seu livro "O ser e o Tempo", que

encontramos os fundamentos para compreender o ambiente construído - ou espaço

arquitetônico - como sendo a espacialização da existência humana.

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Na tentativa de estabelecer um quadro conceitual para a discussão dessas questões,

este capítulo primeiro examinará, numa abordagem fenomenológica, as interações

entre homem e espaço no sentido de explorar os conceitos básicos subjacentes ao

tema. Posteriormente será visto como os espaços arquitetônicos incorporam tais

conceitos e, finalmente, será estabelecida a interpretação de arquitetura que se

adotará ao longo deste trabalho.

A próxima seção discute a formulação de HEIDEGGER (1962) sobre o Ser (Dasein

em alemão), uma vez que, em nossa abordagem, ela vai levar ao entendimento das

características essenciais do espaço arquitetônico.

3.1.2. O HOMEM COMO SER-NO-MUNDO.

No seu livro Being and Time, HEIDEGGER (1962) discute a essência do ser e o

descreve com ser-no-mundo. De acordo com o seu entendimento, o homem e o

mundo não são duas entidades lado a lado, mas se constituem numa unidade, uma

vez que o homem tem o ser-no-mundo como o seu estado essencial. O vocábulo

"no" sugere uma relação espacial, embora não se possa pensar que o mundo é um

invólucro no qual o homem "é", como também o homem não pode ser no-mundo

como algo apartado dele. Ao contrário, a espacialidade pertence à própria essência

do homem; o espaço é, pois, constitutivo da existência humana. Heidegger diz

"Space is not to be found in the subject, nor does the subject observe the

world `as if' that world were in a space; but the `subject' (Dasein), if well

understood ontologically, is spatial." (Heidegger, 1962, p. 146)

Este parágrafo extraído de "O Ser e o Tempo" mostra claramente a idéia

heideggeriana de que a existência é espacial, o que conduz à conceituação do espaço

como sendo existencial, uma vez que ele pertence à essência do Ser. O espaço

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arquitetônico não é pois funcional, racional, simbólico ou o que quer que seja. Ele é

existencial e, assim sendo, ele simultaneamente é funcional, racional e simbólico

porque ele incorpora todas as necessidades, expectativas e desejos humanos. Esse

conceito está subjacente a todo o raciocínio que será aqui desenvolvido para

analisar e compreender as características essenciais do espaço arquitetônico.

3.1.3. O CORPO COMO O SUJEITO DO ESPAÇO.

A característica existencial do espaço revelada por Heidegger, é também discutida

por Merlaeu-Ponty(1962) no seu livro Phenomenology of Perception. Ele dedica um

capítulo inteiro ao exame da percepção espacial sob o ponto de vista

fenomenológico. Ao caracterizar o espaço ele enfatiza a idéia de que o espaço não é

uma categoria separada das coisas mas, ao contrário, é o mediador de sua

existência. Ele diz:

"O espaço não é o meio, (real ou lógico) onde se dispõem as coisas, mas omeio pelo qual a posição das coisas se torna possível. Significa que aoinvés de imaginá-lo como uma espécie de éter onde se banham todas ascoisas ou de concebê-lo abstratamente como um caráter que lhes sejacomum, devemos pensá-lo como a uma força universal de suasconexões." (Merleau-Ponty, 1971, pag. 249)

É importante observar esse entendimento de Merleau-Ponty: o espaço, em vez de

ser o lugar onde colocamos as coisas - como crê o senso comum - é um pré-requisito

para permitir que as coisas sejam dispostas, isto é, para permitir que, em sendo

arranjadas convenientemente, as coisas façam sentido. Como pode ser observado, a

interpretação da espacialidade da coisas que Merleau-Ponty estabelece é

inteiramente respaldada nas idéias de Heidegger. Merleau-Ponty, entretanto,

desenvolveu tais idéias de um modo que talvez seja mais aplicável à percepção do

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espaço arquitetônico do que a concepção de Heidegger. Isso porque ele toma o

corpo como o ponto de partida para toda e qualquer percepção, para toda ação em

direção às coisas, no espaço. De acordo com sua interpretação, o corpo é o ponto de

ancoragem que permite o estabelecimento do nível espacial e, consequentemente, a

orientação dos eventos. O corpo humano é o que estabelece as conexões entre as

coisas, arranjando-as significativamente para os seus propósitos e com as suas

ações. Merleau-Ponty diz que:

"O que importa para a orientação do espetáculo não é meu corpo tal come é

de fato, como coisa no espaço objetivo, mas meu corpo como sistema deações possíveis, um corpo virtual cujo lugar fenomenal é definido por suatarefa e por sua situação." Meu corpo está onde há algo a ser feito" (Merleau-Ponty, 1971, pag. 256)

A ênfase dada ao corpo é o traço fundamental do pensamento de Merleau-Ponty,

no que diz respeito à percepção espacial. Para ele, a possessão de um corpo implica

na habilidade de entender o espaço porque o corpo é direcionado ao mundo.

Assim, o corpo é o sujeito do espaço. Essa relação orgânica entre sujeito e espaço,

esse direcionamento do sujeito ao mundo é a própria origem do espaço, tal qual o

entendemos em arquitetura. Essa idéia parece ser fundamental para conduzir

qualquer análise do espaço arquitetônico, uma vez que ela introduz a noção de que

ser é estar situado; a tomada do mundo pelo corpo dá origem aos eventos e estes, ao

espaço arquitetônico. O espaço arquitetônico é, pois, o palco do espetáculo do

cotidiano. É o espaço vivido. A próxima seção aborda esse tema.

3.1.4. O ESPAÇO VIVIDO.

Para estabelecer a relação espacial entre os objetos e suas características

geométricas, de forma a perceber o mundo circundante, o sujeito do espaço, que é o

corpo, tem de estar situado (no mundo) e atento à experiência do mundo. Cada

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percepção, além de ser capaz de estabelecer relações espaciais entre formas

pressupõe, para ser significativa, um certo passado, um conhecimento prévio, isto é,

uma consciência do mundo no qual essa percepção se constitui. Por exemplo, o que

ocorre no processo de vivenciar (ou perceber) o espaço arquitetônico é governado

pelas experiências passadas, por toda a bagagem vivencial que o sujeito da

percepção carrega. Em síntese, pela cultura. Cada percepção espacial, embora revele

um aspecto particular de um todo, somente faz sentido se referenciada a esse todo,

se for parte dele. Para ilustrar esse conceito Merleau-Ponbty escreve:

"Paris não é para mim um objeto com mil facetas, uma soma depercepções, nem a lei de todas as percepções. Como um ser manifesta amesma essência afetiva nos gestos da sua mão, no seu andar e no som desua voz, cada percepção expressa na minha viagem a Paris- os cafés, osrostos das pessoas, as árvores do cais, as esquinas do Sena, - é retirada doser total de Paris, forma somente um certo sentido ou um certo estilo deParis. (Merleau-Ponty, 1971, pag. 286)

Esse conceito de espaço vivenciado - ou espaço vivido - constitui-se numa

explicação coerente para o que comumente chamamos de sensações quando

descrevemos nossas experiências nos espaços 1. Para melhor esclarecer essa questão,

vale a pena examinar o ensaio de Otto F. Bollnow intitulado Lived-Space (1967).

Nesse texto Bollnow descreve a constituição espacial da existência humana,

trazendo uma inestimável contribuição à compreensão do que seja a dimensão

vivida do espaço arquitetônico.

1 Heidegger introduz a noção de espaço vivido quando ele discute a espacialidade das coisas em

Being and Time (1962). Ele escreve: "The "above" is what is "on the ceiling"; the "below" is what is "on

the floor"; the "behind" is what is "at the door"; all "wheres" are discovered and circumspectively

interpreted as we go our ways in everyday dealings; they are not ascertained and catalogued by the

observational measurement of space." É importante observar a ênfase de Heidegger em que todos os

ondes são descobertos na nossa lida diária, isto é, eles são experienciados. (Heidegger, 1962, pag.

136-137)

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Bollnow de início esclarece a diferença entre o entre o espaço concreto em que

vivemos e o espaço matemático. Segundo ele, a propriedade marcante do espaço

matemático é a sua heterogeneidade: nenhum ponto e nenhuma direção tem

prevalência sobre os outros. Isso porque nós podemos tomar qualquer ponto como

a coordenada zero e qualquer direção como eixo de coordenadas. O espaço vivido é

o contrário disso: o ponto zero - ou ponto de partida - é sempre tomado com

referência ao lugar onde o meu corpo está. O sistema de eixos também é referente

ao corpo. Acima, abaixo, em frente, atrás, à direita, à esquerda são direções que

consideramos relativamente ao nosso corpo posicionado no espaço. As direções

acima e abaixo são peculiares, pois são definidas pela gravitação e, em

conseqüência, definem o eixo vertical. Essas direções permanecem imutáveis na

nossa percepção, independentemente da posição do corpo e de outros pontos de

referência. Se eu estou em pé, sentado ou deitado, a noção do que está acima ou

abaixo não se altera para mim, a não ser que não haja força de gravidade. A mesma

gravidade me possibilita o equilíbrio e me dá a noção do plano horizontal. Por

outro lado, entre as demais direções (à esquerda, à direita, adiante, atrás) não há

nenhuma peculiar, pois todas elas mudam de acordo com a posição do corpo no

espaço. As duas direções imutáveis (a do plano horizontal e a do eixo vertical)

seriam, pois, o sistema de referência do espaço vivido.

Bollnow explora também o conceito de distância vivida, que está intrinsecamente

ligado ao de espaço vivido. Para ele, a distância vivida não pode ser confundida

com a distância geométrica, medida em metros e centímetros. A distância vivida se

referencia nas circunstâncias - favoráveis ou desfavoráveis - em que é percorrida.

Ele coloca a seguinte questão:

"How great is the concrete living distance between a point on a wall ofmy home, to the point straight through on the other side of the wall inmy neighbour's home?" (Bollnow, 1967, p. 76)

Do ponto de vista matemático, tal distância seria tomada como sendo a medida de

uma linha reta que ligasse o ponto na parede de minha casa ao ponto na parede do

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vizinho. Mas, em realidade, tal distância poderia ser muito maior do que isso.

Bollnow explica:

"For to reach it I have to leave my room, my house, and go out on thestreet to my neighbour's house. Then if I am not acquainted with thisneighbour he may make such a wry face at my question that I may prefernot to ask it at all. In other words, a point which is mathematically nearmay be practically very far away, perhaps inaccessible. More generally,the structure of space I experience and live through follows the `lines offorce' of my concrete life situation." (Bollnow, 1967, pag. 77)

Merleau-Ponty (1971) adota, nesse assunto, o mesmo entendimento de Bollnow. Ele

também entende que há dois tipos de distância:

a) A distância geométrica, que é um construto humano para expressar o intervalo

físico existente entre as coisas e entre o homem e as coisas. Tal distância é objetiva,

uma vez que ela deriva das relações entre os próprios objetos (o homem, nesse caso,

é considerado apenas em sua dimensão objetiva, corpórea).

b) A distância vivida, que se expressa no engajamento entre o homem e as coisas

que tem significado para ele. A distância vivida é subjetiva, pois ela é referenciada

no homem enquanto sujeito da percepção (aquele sujeito que possui numa

consciência de mundo). Merleau-Ponty diz:

"Além da distância física ou geométrica que existe entre mim e todas ascoisas, uma distância vivida me une às coisas que são importantes eexistem para mim e as une entre si, Esta distância mede, a cadamomento, a amplitude de minha vida." (Merleau-Ponty, 1971, pag. 291)

No campo da arquitetura, Norberg-Schulz (1971) provavelmente é quem mais

contribuiu para o estudo das relações entre o homem e o espaço. No seu livro

Existence, Space & Architecture2, ele estabelece as bases de uma teoria do espaço

2 Veja Norberg-Schulz, C. Existence , Space & Architecture (London: Studio Visa, 1971). Embora

Although Norberg-Schulz diga que está adotando a interpretação de Heidegger do homem como

ser-no-mundo, o que remete à própria espacialidade da existência, ele não esclarece completamente

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existencial a partir da interpretação heideggeriana do ser-no-mundo e das

formulações de Bollnow sobre o eixo vertical e o plano horizontal.

Norbergh-Schulz(1971) desenvolve o argumento de que o espaço arquitetônico

pode ser entendido como a concretização de esquematas ou imagens mentais que

formam uma parte essencial do nosso sistema de orientação. Ele discute o conceito

de espaço arquitetônico que tem sido desenvolvido no âmbito da teoria da

arquitetura, criticando a maioria dos autores que se debruçaram sobre esse tema.

Sua crítica se concentra no fato de que esses autores não levam em consideração o

ser humano e focalizam apenas os aspectos de geometria da arquitetura. Quando o

usuário comparece, a sua participação é reduzida a impressões e sensações.

Norberg-Schulz também compartilha a idéia de que o espaço tem raízesexistenciais. Ele diz:

"Most man's actions comprise a spatial aspect, in the sense that objects oforientation are distributed according to such relations as inside andoutside; far away and close by; separate and united; and continuous anddiscontinuous." (Norberg-Schulz, 1971, pag. 9)

Fica evidente nessa citação que Norbergh-Schulz adota o ponto de vista de Bollnow

(1967) de que os conceitos espaciais somente têm significado se tomados em relação

à posição do corpo no espaço. As relações espaciais são, pois, inerentes à própria

existência humana. O homem não poderia agir em direção às coisas se ele não

sua posição com relação à espacialidade do homem , uma vez que ele afirma que "most man's

actions comprise a spatial aspect" (ver Norberg-Schulz op. cit., pag.9) Tal afirmação implica no fato

de que ele acredita que algumas das ações humanas não são espaciais. Essa aparente contradição

entre o seu entendimento e o que Heidegger e Merleau-Ponty realmente disseram sobre a essência

do homem , deixa lugar no trabalho de Norberg-Schulz para uma análise arquitetônica que dispensa

a presença, como se o espaço arquitetônico fosse alguma coisa separada da existência humana.

Apesar desse pensamento contraditório, a tentativa de Norberg-Schulz de estabelecer os

fundamentos de uma fenomenologia da arquitetura é única e se constitui num ponto de partida para

qualquer estudo que se queira fazer nesse âmbito.

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tivesse um inato senso de direção e se ele não estivesse posicionado no mundo.

Norbergh-Schulz resume o seu raciocínio com estas palavras:

"Space, therefore, is not a particular category of orientation but an aspectof total orientation." (Norbergh-Schulz, 1971, pag. 9)

Pode ser dito como complementação que a posição do homem no mundo - a

orientação do homem - é relativa ao seu próprio corpo, o que leva à conclusão de

que a existência humana é espacial, como afirma Merleau-Ponty:

"Dissemos que o espaço é existencial; poderíamos também ter dito que aexistência é espacial." (Merleau-Ponty, 1971, pag. 299)

Do que se discutiu até aqui, o espaço possui características que vão muito além dasrelações geométricas e das propriedades físicas. Essas características não podem serapreendidas pelas ciências explanatórias, uma vez que elas não pertencem ao objetosomente, mas à relação sujeito/objeto. Portanto, para compreender o espaçoarquitetônico em sua totalidade, teremos de analisar as interações sujeito/objetoque nele ocorrem.

3.1.5. ESPACIALIZAÇÕES.

Nas seções precedentes foram desenvolvidos alguns conceitos que consideramosfundamentais para a compreensão das interações homem/espaço. Em síntese, foivisto que:

* O homem é ser-no-mundo, portanto homem e espaço são uma unidade

indivisível;

* todos os eventos humanos ocorrem no espaço: o espaço construído (ou espaço

arquitetônico);

* espaço vivido e espaço geométrico são categorias distintas . O primeiro é

experimentado e, portanto, forjado pelos eventos humanos; o segundo é um

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construto intelectual. A distância vivida e a distância geométrica também são

categorias distintas, pelas mesmas razões.

Dados esses conceitos fundamentais, o próximo passo é tentar compreender o

espaço arquitetônico como o lugar para as interações existenciais entre o homem e o

espaço. Para tanto será necessário explorar um pouco mais a noção de eventos,

espaço arquitetônico e ambiente construído.

Eventos são as atividades humanas que implicam na interação entre pessoas e

objetos. Assim, atividades intelectuais que se resumem no pensar, no refletir, não

serão por nós consideradas

Uma espacialização é a expressão no espaço da interação entre eventos (formas

sociais) e coisas (formas físicas). A espacialização é, pois, a ordenação (ou

organização) de objetos, marcações e sinais elaborados intencionalmente, isto é,

elaborados para permitir que as intenções (desejos) se efetivem. Um determinado

ambiente construído constitui-se no universo das espacializações prescritas pela

cultura da comunidade que o habita. Todos os espaços arquitetônicos que

compõem o ambiente construído inscrevem um certo elenco de espacializações

possíveis, uma vez que eles abrigam um certo elenco de eventos. Por outro lado,

todos os eventos da vida associada estão relacionados com as possíveis

espacializações daquela cultura. Um questão pode ser levantada desse raciocínio:

como um elenco limitado de espaços arquitetônicos poderia acomodar todo o

elenco de espacializações possíveis da vida cotidiana?

Essa questão será examinada na seção que se segue.

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3.1.6. ESPACIALIZAÇÕES E PADRÕES CULTURAIS.

No seio de uma cultura - ou de um estrato social de uma cultura - as atividades da

vida cotidiana são desenvolvidas de modo semelhante, embora o sejam por pessoas

distintas. Tais atividades são quase que ritualísticas e podem ser agrupadas em

padrões ou tipologias (comer, cozinhar, dormir, ver TV, ler, datilografar, costurar,

etc.). Cada padrão possui uma forma arquitetônica que lhe corresponde (sala de

jantar, cozinha, quarto de dormir, sala de TV, espaço de leitura, escritório, quarto de

costura, etc.). Isso que dizer que os ambientes são especificidades culturais e são

coerentes com a organização social da cultura que os edifica. Assim, espacializações

e lugares são fortemente conexos: os eventos que ocorrem num certo lugar são

aqueles para os quais o lugar está pronto para abrigar. Os lugares, por sua vez,

afetam a relação social, na medida em que eles sugerem, facilitam impedem ou

condicionam os eventos. Esse processo tem reciprocidade: o homem cria espaços

para as suas atividades e atribui a eles significados. Os lugares criados pelo homem

para abrigar suas atividades acabam por influenciar a forma social dos eventos.

Essa influência mútua entre homem e espaço é apontada por Csikszentmihaly &

Rochberg-Halton (1981, pag. 107-1042). Eles escrevem:

"Like some strange race of cultural gastropods, people build home out oftheir own essence, shells to shelter their personality. But, then, thesesymbolic projections react on their creators, in turn shaping the selvesthey are." (Csikszentmihaly & Rochberg, 1981, pag. 138)

Embora parece evidente, a influência recíproca entre o comportamento das pessoas

e as condições ambientais ainda é uma questão muito polêmica entre os estudiosos.

Duas grandes correntes de pensamento polarizam a discussão da matéria. São elas

o determinismo e o interacionismo. Os deterministas consideram que o

comportamento humano é moldado pelos condicionantes ambientais. Os

interativistas adotam a posição de que existe uma mútua e dialética influência entre

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comportamento humano e condições ambientais. Não nos preocupamos com essa

controvérsia, uma vez que a interpretação heideggeriana do ser como ser-no-

mundo é o marco teórico deste trabalho. Assim, o entendimento de que há uma

interação existencial entre o homem e o seu meio ambiente parece ser óbvio.

Foi mostrado até aqui como os eventos humanos e os espaços arquitetônicos

caminham juntos: para espacializar suas atividades, o homem cria lugares (lugares

arquitetônicos) ordenando as coisas e moldando formas. A ordenação de objetos

(coisas) é o processo que imprime significado aos espaços, uma vez que ele é

intencional, isto é, ele é orientado por algum propósito3. A próxima seção examina o

papel do tempo nas interações entre os acontecimentos e o espaço arquitetônico.

3.1.7. TEMPO E ESPACIALIZAÇÃO.

Para que um evento ocorra, além de espaço é preciso haver disponibilidade de

tempo: tempo para trabalhar, tempo para almoçar, tempo para o café, tempo para

divertir e assim por diante.

Partindo do pressuposto que o tempo é uma componente dos eventos,

examinaremos, nesta seção, que espécie de componente é essa, se ela é essencial ou

não.

Quando alguém diz que precisa de tempo para ler, tempo para visitar amigos ou

tempo para ver TV está falando do tempo, mas não do tempo linear, quantificável e

dividido em sucessão de dias, horas e minutos. Está falando do tempo vivido no dia

3 Ver Heidegger op. cit. pag. 107-114, Reference and Signs e pag. 114-122, Involvement and

Significance; the Worldhood of the world.

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a dia. Essa noção de tempo vivido é fundamental para que se compreenda o papel

do tempo nas espacializações. Teremos, pois, que examiná-la em primeiro lugar.

Em Sociology of Everyday Life, Weigert (1981) discute a noção de tempo

experienciado (ou tempo vivido) como sendo o tempo da vida cotidiana. Ele

classifica esse tempo em duas categorias: o tempo físico e o tempo social. O tempo

físico refere-se à freqüência e duração dos eventos do mundo natural. Por exemplo,

há naturais seqüências de dias e noites, fases da lua, solstícios, etc. O tempo social

refere-se às seqüências e duração dos eventos que a cultura criou, como as horas do

dia, os dias da semana, os meses do ano, os estágios numa carreira, os anos letivos,

os dias de feriado e assim por diante. As estruturas sociais definem a organização

do tempo social, isto é, elas estabelecem o que e quando deve ser feito; o tempo

físico, ao contrário, já é dado, pois é parte do mundo natural.

Weigert(1981) diz que o tempo do cotidiano é uma fusão do tempo físico com o

tempo social na vida de cada pessoa e de cada grupo social. Essa experiência do

tempo, onde se combinam as seqüências dos eventos naturais com as seqüências

dos eventos culturais é que seria o tempo vivido. E esse tempo vivido é organizado

de acordo com as prioridades de condições que a sociedade estabelece. É, portanto,

dependente do contexto e pode variar entre diferentes ambientes culturais.

Passemos, então, à discussão do papel do tempo nas espacializações

Já foi visto que as espacializações são a expressão espacial (física) dos eventos, ou

seja, são as interações entre as formas sociais e as formas físicas. Vimos também que

o tempo do cotidiano -ou tempo vivido - é determinado pelas formas sociais.

Demonstraremos, a seguir, que o tempo do cotidiano, afeta as relações sociais - os

eventos - que ocorrem no espaço, uma vez que a temporalidade é uma característica

essencial do ser-no-mundo (Heidegger, 1962)4.

4 Ver Heidegger Temporality e Everydayness em Being and Time, pag. 383-449.

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Rapoport (1982), os tempos e os ritmos das atividades humanas descreve como a

organização do tempo pode afetar as relações sociais e vice-versa. Ele escreve:

"Tempos and rhythms distinguish among groups and individuals who may

have different temporal `signatures' and they may also be congruent or

incongruent with each other. Thus, people may be separated in time as well

as, or instead of, space and groups with different rhythms occupying the

same space may never meet, groups in different tempos may never

communicate. Groups with different rhythms may also conflict, as when one

group regards a particular time as quiet and for sleep, another for noise and

boisterous activity. Cultural conflicts are problems that may often be more

severe at the temporal level than at the spatial, although clearly spatial and

temporal aspects interact and influence one another: people live in space-

time." (Rapoport, 1982, pag. 178)

Unindo espaço-tempo por hífen, Rapoport deixa claro que os considera

inseparáveis e que o papel de ambos é igualmente importante nas relações sociais.

Poderíamos acrescentar que o tempo é um componente essencial das

espacializações, uma vez que sem ele os eventos não podem ser concebidos. Para

clarear esse argumento, imaginemos a seguinte situação: o planejamento físico de

uma escola secundária contempla a construção de um campo de futebol. Entretanto,

o currículo escolar não abrange as atividades esportivas e o horário das aulas não

prevê horário de recreio para os estudantes. Nessa situação é fácil imaginar que as

chances de ocorrer um jogo de futebol nessa escola serão nulas, embora os

estudantes gostem de jogar bola e haverá um espaço disponível para o futebol.

Poderíamos enumerar muitas outra situações onde esse mesmo tipo de fenômeno

ocorre: a falta de tempo impedindo a ocorrência de um evento.

A conclusão parece óbvia: a organização do tempo, não apenas afeta, mas

efetivamente controla as espacializações, permitindo ou impedindo que elas

ocorram.

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Já vimos anteriormente que o homem espacializa suas intenções (ou desejos)

desenvolvendo atividades no espaço e que a isso chamamos espacilaizações. Vimos

também que os espaços onde as espacializações ocorrem são espaços vividos, invés

de meras entidades geométricas e que as espacializações só acontecem se houver

tempo disponível. Assim, tempo/espaço/eventos são fortemente conexos e não

podem ser considerados separadamente quando se projeta o ambiente construído,

isto é, quando se faz arquitetura. Sempre que o tempo não for levado em

consideração os espaços não serão adequadamente apropriados.

Rapoport (1982), afirma que, quando se projeta, quatro elementos estão sendo

organizados: espaço, significado, comunicação e tempo. Já demonstramos que,

espacializando suas atividades, o homem atribui significados aos espaços, uma vez

que ele dispões objetos, sinais, áreas físicas, de modo que façam sentido. Assim

compreendido, o espaço arquitetônico é significativo por natureza. Falar em

organizar significado é também falar em organizar a comunicação, pois a

comunicação só é possível num contexto coerente. Isso posto, podemos modificar a

assertiva de Rapoport, dizendo que, quando se projeta, organiza-se o tempo e o

espaço.

3.1.8. O ESPAÇO ARQUITETÔNICO.

Assentados os conceitos básicos deste ensaio (o caráter espacial da existência

humana; das espacializações como a expressão espacial dos eventos humanos) resta

agora definir o espaço arquitetônico face as esses conceitos. O processo de criar e

modificar lugares com propósitos sociais é dinâmico e dialético e as formas

arquitetônicas são modeladas na experiência vivida. O espaço arquitetônico pode

ser, então, considerado em três níveis:

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• O nível simbólico, que é relacionado ao desejo (às imaginações, emoções e

crenças humanas). O desejo impulsiona o homem a agir sobre as coisas

organizando-as significativamente, e criando lugares onde possa espacializar esse

desejo. As questões que são levantadas quando analisamos o nível simbólico podem

ser resumidas em "Para que é?"

• O nível de uso - ou funcional - que diz respeito à maneira mesma como as coisas

são organizadas nas espacializações. As questões que são levantadas quando

examinamos o nível do uso podem se resumir em "Como isto funciona?.

• O nível tecnológico, que consiste nos conhecimentos, habilidades, artifícios e

técnicas das quais o homem se utiliza para organizar as coisas nas espacializações,

criando lugares significativos e funcionais. As questões que dirigimos a esse nível

são resumidas em "Como fazer isto?"

A boa arquitetura seria então aquela que contemple, de modo equilibrados, os três

níveis.

Por vezes um nível é negligenciado ou até ignorado quando se projeta ou se analisa

a arquitetura, enquanto que os outros dois são priorizados. Quando isso ocorre, vai

ocorrer também a simplificação ou a falta de algum elemento que certamente

afetará a experiência espacial (a experiência do habitar, no sentido amplo). Assim,

os elementos simplificados (inadequados) ou faltantes se tornam conspícuos,

conforme nos mostra (Heidegger, 1662, pag. 102-107) e, nesses casos, podem surgir

conflitos entre as pessoas (usuários) e os objetos arquitetônicos simplificados,

estragados ou faltantes.

Pode haver, entretanto, situações arquitetônicas onde um dos níveis seja realmente

preponderante sobre o outro. Nesse caso teríamos três possibilidades, conforme

mostram os diagramas em seguida:

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1) O diagrama "A" mostra a situação de equilíbrio, na qual os três níveis foram

eqüitativamente considerados.

2) O diagrama "B" mostra que um dos níveis (no caso o nível simbólico) estar

enfatizado com relação aos demais. Um bom exemplo para esta situação é o das

catedrais góticas, onde a dimensão simbólica vem em primeiro lugar e os elementos

de tecnologia foram desenvolvidos para que o simbólico se realizasse em sua

plenitude. As considerações de ordem funcional são de monos importância e

praticamente não se fazem presentes nas catedrais.

NÍVEL

SIMBÓLICO

NÍVEL

TECNOLÓGICO

NÍVEL

FUNCIONA

NÍVEL

SIMBÓLICO

NÍVEL

FUNCIONA

NÍVEL

TECNOLÓGIC

NÍVEL

SIMBÓLICONÍVEL

FUNCIONALNÍVEL

TECNOLÓGIC

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3) O diagrama "C" mostra dois níveis igualmente considerados e um terceiro com

um papel menos importante. Algumas propostas modernistas procuraram,

assumidamente, dar menor importância aos aspectos simbólicos do que aos

tecnológicos e funcionais.

A situação de equilíbrio é certamente a mais desejável para a maioria dos projetos

arquitetônicos e urbanísticos, embora existam muitos casos em que algum nível

pode ser priorizado com relação aos demais. Entretanto, no caso dos projetos

habitacionais, não há dúvida de que o equilíbrio deve ser perseguido no seu limite.

As abordagens metodológicas com inspiração nas ciências explanatórias geralmente

partem de questões "Como isto funciona?". e "Como fazer isto?", o que pode levar à

perda da compreensão do todo.

A abordagem fenomenológica parte das questões "Para o que é isto?", que parece

ser mais adequada aos propósitos arquitetônicos, uma vez que, conforme

Heidegger(1962) nos ensina, considerado o propósito de um objeto, todas as ações

desencadeadas para obtê-lo levarão em conta esse propósito. O próximo tópico será

dedicado à demonstração de como se parte da questão "Para o que é isto?" para se

chegar à compreensão das demais dimensões da arquitetura. Partindo da

abordagem fenomenológica da casa, prosseguiremos na elaboração conceitual dos

atributos que as casas têm de possuir para serem um bom lugar de se habitar. Isso

nos dará os fundamentos para estabelecer a noção de conflito arquitetônico que

norteará a elaboração deste trabalho.

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3.2. Quadro Conceitual

Entendendo o Sentido de Morar

3.2.1. PARA O QUE É UMA CASA?

Na primeira parte desta seção trataremos do conceito de morar, numa abordagem

fenomenológica, com o objetivo de esclarecer a diferença - e as aproximações - entre

a experiência de morar e o objeto casa, no qual essa experiência ocorre. Na segunda

parte argumentaremos que o objeto casa pode também ser abordado

fenomenologicamente, uma vez que ele é imbuído dos nossos propósitos,

expectativas, imaginações, desejos e sonhos.

As reflexões de Heidegger(1971) sobre a relação entre morar e construir contidas no

capítulo "Building Dwelling Thinking" do seu livro "Poetry, Language, Thought"

(1971), e o trabalho seminal de Bachelard "The Poetics of Space" (1969) serão

tomados como ponto de partida para se elaborar o conceito de morar. Os

fundamentos para discutir a abordagem metodológica da casa como um objeto que

media o morar serão retirados da análise que Heidegger faz de ferramentas e que

consta de seu "Being and Time" (Heidegger, 1962, pag. 99-114)

3.2.2. CASA E LAR.

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Na língua inglesa as palavras house e home são freqüentemente usadas como

sinônimos sem que as pessoas se dêem conta de que estão falando de entidades

diferentes. Em algumas expressões ambas realmente se referem à mesma categoria,

como é o caso de buy a house e home owners. Nesse caso, as duas palavras são

usadas para designar a casa enquanto um bem imóvel que tem um valor comercial

e uma existência concreta.

House e home poderiam ser traduzidas para o português como casa e lar.

Entretanto, na nossa língua, não faria sentido dizer proprietários de lar para

designar aqueles que possuem casa própria. Os conceitos de casa e lar têm origens

distintas e se referem a diferentes fenômenos. Entretanto nós usamos a palavra casa

indiscriminadamente, tanto para designar o objeto (que compramos) como para

indicar o lar (no qual moramos). Vamos então examinar a palavra casa no seu

conceito abrangente de casa e lar.

Segundo Bachelard (1969, pag. 6), a casa é o feliz espaço onde o homem se defende

das forças adversas; é o espaço que o homem ama. Sua primeira função é abrigar o

sonho, proteger o sonhador e permitir que se sonhe em paz. A nossa casa é o nosso

cantinho no mundo. Ela cria ordem no caos que é o mundo. É um elemento de

estabilidade na nossa vida sem o qual nós nos sentimos dispersos e perdidos. A

casa tem um imenso poder de integração dos pensamentos, memórias e sonhos da

humanidade. Ela é uma fortaleza na qual nos abrigamos das agressões do mundo; é

um ponto de referência de onde sempre partimos e para o qual sempre desejamos

retornar. A casa de nossos pais é sempre mencionada como "lá em casa", mesmo

quando já não moramos nela. Barchelard, falando assim da casa, está nos

descrevendo uma experiência existencial que se dá através do objeto construído

casa. A nossa casa9objeto) incorpora a nossa morada, o nosso lar.

Dovey, no seu artigo "Home and Homelessness" (1985), nos oferece uma maneira

interessante de distinguir entre os dois conceitos de casa e lar. Casa é um objeto e

lar é uma relação emocional e significativa entre as pessoas e as suas casas. A casa é

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onde se dá a experiência do lar. Para que se tenha uma idéia precisa do fenômeno

morar, Dovey propõe que se analise a casa enquanto ordem, identidade e aderência.

A casa enquanto ordem é caracterizada pelo modo de se estar em casa, isto é, pelo

modo com que a pessoa se sente num lugar seguro e orientado no espaço (ordem

espacial), no tempo (ordem temporal) e na sociedade (ordem socio-cultural).

A casa enquanto identidade é fortemente ligada à casa enquanto ordem. Ordem é

referente ao onde uma pessoa se sente em casa; o sentido de identidade

incorporado ao fenômeno morar é relativo a quem se sente em casa.

A casa enquanto aderência expressa as relações que tornam significativa a

experiência de morar; aderência ao passado, aderência ao futuro; aderência ao lugar

e aderência às pessoas do lugar.

Korosec-Serfaty, no artigo "Experience and Use of the Dwelling" (1985) também

adota a abordagem fonomenológica ao examinar o modo como a relação com a casa

é experimentada pelo morador. Ela propõe definir as características fundamentais

do morar nas seguintes relações:

1- Estabelecimento de um interior/exterior..

2- Estabelecimento de visibilidade.

3- Apropriação.

O estabelecimento de uma relação interior/exterior é uma questão de demarcar as

fronteiras que qualificam o espaço. Morar é estar dentro (num lugar) em oposição

ao estar lá fora, no espaço infinito. Dessa oposição do lá dentro/lá fora emerge a

questão da visibilidade. Qualquer moradia pode ser aberta e fechada, visível e

escondida ao mesmo tempo. Portas e janelas propiciam visibilidade, tanto de fora

para dentro como de dentro para fora. As paredes escondem o interior da casa mas

também impedem que dela se veja o mundo lá fora. A apropriação é o processo de

experimentar, na sua totalidade, o fenômeno de morar. Essas três características

propostas por Korosec-Serfaty podem ser inscritas em quatro conceitos:

TERRITORIALIDADE, PRIVACIDADE, IDENTIDADE e AMBIÊNCIA.

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Como pode ser observado, tanto Dovey quanto Korosec-Serfaty baseiam sua

interpretação do conceito de lar (morada) no trabalho de Barchelard "The Poetics of

Space" (1969). Dovey tenta estabelecer O QUE é morar, enquanto que Korosec-

Serfaty focaliza sua atenção em COMO a relação com a casa é experimentada pelo

morador.

E a casa objeto, mencionada por Dovey, que espécie de entidade é essa? Como ela

interfere na experiência de morar? Pode ela - objeto - ser abordada

fenomenologicamente?

O objetivo da próxima seção é discutir como a casa faz a mediação do lar e revela o

morar. è uma tentativa de responder às questões acima, particularmente a última:

como se aplicaria a fenomenologia à elucidação do objeto casa e em que extensão

isso se daria. Examinaremos também se os conhecimentos que a abordagem

fenomenológica nos propicia podem contribuir para a melhoria da qualidade das

casas. Os fundamentos da nossa discussão estarão no entendimento que temos da

mundidade do mundo, "The worldhood of the World", de Heidegger, constante do

livro "Being and Time" (1962, pag. 91-145).

3.2.3. A CASA COMO PRONTA-PARA-O-USO.

Heidegger (1962, pag.91-145) enuncia que há dois sentidos diferentes para as coisa.

O primeiro se aplica às coisas que o senso comum chama de matéria prima, como

uma pedra, por exemplo. Se perguntarmos "Para o que é uma pedra?", a questão

será rejeitada como inaplicável e a resposta será "Não é para nada; é apenas uma

pedra". Essa categoria de objeto, que é o que é, Heidegger chama de present-at-

hand (presentes-ao-alcance).

O segundo sentido das coisas se aplica aos objetos sobre os quais a pergunta "Para o

que é?" não pode ser recusada. Este é o caso do martele. Se alguém pergunta "Para o

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que é um martelo?" a questão não pode ser respondida que ele não é para nada, que

é apenas o que é, porque martelos são para martelar. Martelos são ferramentas

(equipamentos) e todas as ferramentas são exemplos do segundo tipo de coisas que

Heidegger descreve com ready-to-hand (prontas-para-uso).

Assim, a diferença entre uma coisa que é ready-to-hand e outra que é present-at-

hand é que a primeira é para se fazer alguma coisa, enquanto que a segunda é

apenas o que é. O present-at-hand é encontrado no mundo natural como matéria

prima ou substância. São as coisas do mundo, como diz Heidegger(1962). A palavra

para implica numa idéia de envolvimento, de propósito: o martelo é para martelar.

O cabo do martelo é, por sua vez, para que se possa manusear o martelo;. por outro

lado, a madeira da qual o cabo do martelo foi cortado era apenas uma madeira, um

present-at-hand, quando a intenção e a ação do homem a transformaram num cabo

de martelo, num objeto ready-to-hand. Poderia ter sido transformada em escada,

em cadeira, em cama e assim por diante. O fato é que a madeira mudou de ser

madeira para ser cabo de martelo, ser escada, ser cadeira, ser cama. E mudou

porque - e somente porque - um trabalho humano, intencional, foi a ela

incorporado. Portanto, sempre que incorporamos trabalho a uma coisa ready-to-

hand o fazemos com a intenção de transformar o que apenas é o que é, em uma

coisa que é para alguma outra coisa. O trabalho que o marceneiro fez na madeira

trouxe o cabo do martelo ao mundo, deu existência a ele. No que o trouxe ao

mundo, deu-lhe significado: o de ser cabo de martelo. Um significado que,

entretanto, só pode ser capturado no contexto da ferramenta; um cabo de martelo só

possui sentido se acoplado à cabeça do martelo, se no contexto para o qual foi feito.

O martelo, por sua vez, só pode ser totalmente compreendido no martelar. Só faz

sentido assim, no seu propósito. Quem nunca viu um martelo e portanto não sabe

para o que ele serve, não verá sentido nenhum num martelo encontrado ao acaso;

não saberá o propósito daquilo. Podemos dizer, então, que a essência do martelo é

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martelar, é aquilo para o qual ele foi feito; a essência do martelo é a sua

equipamentalidade, como diz Heidegger (1962).

3.2.3. O SER DA CASA.

Heidegger diz que na nossa lida no mundo nós encontramos equipamentos para

escrever, costurar, trabalhar, transportar, medir e assim por diante. Revelar a

natureza do ser que esses equipamentos possuem é um empreendimento

fenomenológico e a chave para fazer isso é desvelar a equipamentalidade (essência)

desses equipamentos (ou ferramentas). Heidegger diz:

"Equipment is essentially something in-order-to. A totality of equipment

is constituted by various ways of the in-order-to, such as serviceability,

conduciveness, usability, manipulability." (Heidegger, 1962, pag. 97)

Aqui Heidegger adiciona um novo conceito àqueles que foram considerados até

agora: o conceito de totalidade de equipamento. O que significa isso?

De acordo com Heidegger, o ready-to-hand (o equipamento) pode ser um item de

equipamento ou uma totalidade de equipamento, dependendo do contexto que está

sendo examinado. No caso do martelo, ele é uma totalidade de equipamento à qual

o cabo e a cabeça pertencem.. Consequentemente, o cabo e a cabeça são itens de

equipamento que pertencem à totalidade de equipamento que é o martelo. O

martelo, por sua vez, pode vir a ser um item de equipamento no contexto de uma

oficina, como também a oficina pode ser um item de equipamento de toda uma

fábrica, e assim por diante. O cabo do martelo mostra-se como algo para manipular

o martelo somente se estiver acoplado à cabeça do martelo, como já dissemos acima.

Isso quer dizer que a equipamentalidade de um equipamento mostra-se apenas na

sua relação com outro equipamento ou com o contexto do equipamento. Por

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exemplo, a caneta, o porta-canetas, a tinta, o papel, a lâmpada de mesa, a

escrivaninha, as janelas, as portas, o cômodo, nunca se mostram (ou nunca se

revelam) por si só. O que nós encontramos é o cômodo "and we encounter it not as

something `between four walls' in a geometrical spatial sense, but as equipment for

residing. Out of this the `arrangement' emerges, and it is in this that any

`individual' item of equipment shows itself." (Heidegger, 1962, pag. 98).

Do arranjo das coisas no cômodo emergem os significados dos diversos itens de

equipamentos ali presentes e somente assim esses itens se revelam em sua

totalidade enquanto peças individuais. Para apreciarmos o propósito (o para) de

cada peça, ela deve ser examinada no contexto para o qual o seu ser está dirigido.

Isso porque é somente no contexto que se revela a relação entre o equipamento e o

seu propósito; é no sentar que a cadeira se revela; é no dormir que apreciamos a

cama em todos os seus aspectos; é nos escrever que conhecemos plenamente a

caneta.

O quarto de dormir, por exemplo, é uma totalidade de equipamento para dormir.

Como o quarto é uma peça da casa, então, para apreciar plenamente o quarto, o

contexto da casa tem que ser considerado. Por sua vez, a casa,

fenomenologicamente compreendida, é também uma totalidade de equipamento

para morar. Levanta-se, então, a seguinte questão: Qual é a essência (a

equipamentalidade) da casa?

Ora, se o martelo é para martelar, podemos dizer que a casa é para morar. A

essência do martelo é sua equipamentalidade, que é definida por sua adequação

para martelar, que, por sua vez pode ser definida por sua maneabilidade,

trabalhabilidade, dureza e resistência para martelar. Fazendo-se uma analogia com

a casa, pode ser dito que a equipamentalidade da casa é definida por sua adequação

ao morar, isto é, por sua habitabilidade.

Teremos então de examinar como essa habitabilidade pode ser desvelada e se a

fenomenologia pode nos ajudar nesse processo.

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30

Para trabalhar essas questões veremos o que Heidegger diz sobre a abordagem

fenomenológica das entidades que encontramos no mundo, que são ready-to-hand

para fazer alguma atividade. (equipamentos).

Heidegger escreve:

"The Being of those entities which we encounter as closest to us can be

exhibited phenomenologically if we take as our clue our everyday being-

in-the-world, which we also call our `dealings' in the world and with

entities within-the world." (Heidegger, 1962, pag. 95)

A idéia chave desse texto de Heidegger parece estar no que ele chama de "our

dealings in and with entities in-the-world." Nossa lida com entidades do e no

mundo é o nosso dia a dia, são as nossas atividades cotidianas. Fazendo suas

atividades cotidianas, o ser humano lida com toda a sorte de ferramentas (ou

equipamentos) que são parte de diversas rotinas que praticamos. Heidegger

entende (e nós já analisamos anteriormente) que somente quando um equipamento

é posto em uso sua equipamentalidade (sua essência) se revela. Ele diz:

"The hammering itself uncovers the specific "manipulability"

(handlichkeit) of the hammer" (Heidegger, 1962, pag.98)

A essência (a equipamentalidade) de qualquer equipamento - que Heidegger chama

de readiness-to-hand - não pode ser capturada teoricamente. Para entender sua

readiness-to-hand, nós temos que lidar com os equipamentos, usando-os e

manipulando-os. Somente quem martela pode capturar a trabalhabilidade do

martelo (sua readiness-to-hand). Seria também verdadeiro se disséssemos que

somente quem mora pode capturar a habitabilidade da casa? Como isso ocorre?

Já foi dito que o ready-to-hand (equipamento) é encontrado no mundo. O estado

que é constitutivo do equipamento é o estado de referência e engajamento:

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trabalhabilidade para, detrimentalidade de, adequacidade a, e assim por diante.

Martelar é o modo no qual a adequacidade do martelo se torna concreta. Mas o

martelar do martelo não é uma propriedade do martelo, ao menos relativamente ao

que as ciências explanatórias chamam de propriedade. E quais seriam então as

propriedades do martelo?

De acordo com Heidegger, o martelo, como ready-to-hand não tem propriedades:

ele tem predicados, atributos. Por outro lado, a pedra, a madeira, a argila têm

apenas propriedades (dureza, resistência, permeabilidade, acidez, etc.). Pode-se

dizer que o martelo é desajeitado, que é muito pesado para o trabalho, mal

balanceado ou que não tem uma boa pega. Matacões não são desajeitados ou

ajeitados, não são bem ou mal balanceados. Alguns adjetivos aplicam-se apenas a

ferramentas, porque eles têm a ver com o uso que fazemos da ferramenta. Da

mesma forma, as ferramentas devem ser adjetivadas como eficientes, jeitosas, etc.

Uma argila, por sua vez, não pode ser dita ajeitada porque ela é (present-at-hand) e

uma coisa ajeitada tem que ser ajeitada para algum propósito. Se a argila enquanto

present-at-hand não tem ainda nenhum propósito, pois dela podem ser feitas várias

coisa ou coisa nenhuma, ela não pode ser adjetivada como se fosse para. Ela,

entretanto, possui propriedades que lhe são inerentes e que podem fazer dela a

escolhida para ser um outro objeto ready-to-hand. O aço e a madeira com os quais

se fazem os martelos também têm propriedades. Assim eles podem ser descritos

física e quimicamente e em termos de cor, textura, cheiro, etc. Entretanto, as

propriedades do aço e da madeira não nos dão nenhuma pista para responder à

pergunta "Para o que é um martelo?" As pistas que precisamos para averiguar essa

questão se encontram no predicados (atributos) do martelo. Na sua adequação para

martelar. Enfim, na sua relação com quem martela.

Continuando a analogia, podemos dizer que a casa tem, nos seus elementos e

componentes, uma dimensão present-at-hand: os materiais empregados podem ser

descritos em termos de suas propriedades físicas e químicas. Mas a casa como

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totalidade de equipamento para morar, somente pode ser compreendida em termos

de sua habitabilidade e somente suas características de habitabilidade - seus

predicados - podem propiciar pistas para a resposta à questão "Para o que é uma

casa?" Uma casa é para morar; é uma totalidade de equipamento para morar.

O para, na verdade, é envolvimento. Martelar é o envolvimento do martelo. o

propósito de sua trabalhabilidade e de sua adequacidade. Morar é o envolvimento

da casa. Mas o que é o envolvimento? Heidegger diz:

"With the `towards-which' of serviceability there can again be an

involvement: with this thing, for instance, which is ready-to-hand, and

which we accordingly call a `hammer' there is an involvement in

hammering; with hammering, there is an involvement in making

something fast; with making something fast, there is an involvement in

protection against bad weather; and this protection `is' for the sake of

providing shelter for Dasein" (Heidegger, 1962, pag. 116)

Então o envolvimento do martelo é martelar para, e da casa é ser habitável para o

ser-no-mundo.

Quando nós estamos desenvolvendo atividades ou, para usar as palavras de

Heidegger "when we concern ourselves with something", nós podemos encontrar

entidades que não estão bem adaptadas para o uso que decidimos fazer delas: a

ferramenta está estragada ou o material é inadequado para a finalidade que

queremos. Nós descobrimos a inutilidade da ferramenta, não por observá-la e

estabelecer suas propriedades "but rather by the circumspection of the dealings in

which we use it. When its unusability is thus discovered, equipment becomes

conspicuous. This conspicuousness presents the ready-to-hand equipment as in a

certain un-readiness-to-hand." (Heidegger, 1962, p. 103)

Aqui Heidegger introduz o conceito de unready-to-hand e frisa uma vez mais que a

essência das entidades somente pode ser capturada pela circunspecção da nossa

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lida no mundo. Somente agindo com as coisas é que conseguimos compreender as

suas características essenciais. Assim, colocando a questão "somente quem mora

pode capturar a habitabilidade da casa?" a resposta é sim. Para a questão "Como?",

a resposta parece ser: "By dealing with the item-equipments that belong to the

totality of equipment called house." (Heidegger, 1962, pag. 104)

Agora, uma outra questão é suscitada: se a habitabilidade da casa só pode ser

capturada por quem mora nela, como poderiam os arquitetos ter acesso à

experiência dessas pessoas, de modo que as casas que eles projetassem fossem

plenamente habitáveis?"

Seguindo o raciocínio de Heidegger poderemos encontrar algumas pistas para uma

resposta apropriada.

3.2.4. A CASA UNREADY-TO-HAND: INTRODUZINDO A NOÇÃO DE CONFLITO

ARQUITETÔNICO.

Quando alguma coisa se torna inútil para o propósito que foi feita, isto é, quando

um equipamento não pode ser usado para, a atividade na qual o equipamento

tomaria parte fica prejudicada. Nesse caso, o propósito, a finalidade dessa coisa se

torna explícita. Em outra palavras, quando um equipamento está quebrado,

inadequado ou ausente, a atividade não pode ser desenvolvida propriamente e esse

fato desvela a essência do equipamento. Para clarear essa questão, podemos usar o

exemplo da casa. Uma casa deve proteger os moradores da chuva mas, em alguns

casos, falha nessa sua missão. Por exemplo, quando tem goteiras no telhado ou

frestas nas esquadrias das janelas a água da chuva entra. Sempre que isso acontece,

a habitabilidade como um todo é afetada: os móveis serão danificados, as cortinas

ficarão manchadas, a pintura será descascada. A cama terá de ser afastada da janela

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de modo que também não fique em baixo da goteira. O sofá da sala também terá

que ser deslocado do seu lugar. Enfim, uma série de desarranjos terão de ser feitos

para contornar o problema até que se faça um repara nas janelas e no telhado. O

fato é que a unreadiness-to-hand das janelas e do telhado afetou o vida de todos os

moradores da casa. Com isso se mostraram evidentes e mostraram também suas

essências, os seus propósitos.

Vejamos o caso das janelas. Já discutimos aqui que a essência de um equipamento é

sua equipamentalidade e que a equipamentalidade é caracterizada pelos predicados

que o equipamento possui para cumprir seus propósitos.

Uma janela tem diversos propósitos:

• permitir um cômodo ser iluminado com luz natural ou ficar escurecido;

• permitir e restringir a entrada direta do sol;

• prevenir a entrada de chuva e de poeira;

• permitir a renovação do ar e, ao mesmo tempo, evitar correntes de ar frio e

ventanias;

• permitir a interação visual do exterior e interior e ao mesmo tempo assegurar

privacidade aos moradores;

• embelezar a fachada;

• evitar a passagem do ruído exterior/interior.

Se a janela atende a todos esses propósitos para os quais ela foi desenhada e

fabricada, ela não irá ser especialmente notada; ela será apenas uma janela

funcionando dentro do que se esperava. Do contrário, se a janela falhar em

qualquer um de seus propósitos, ela se torna conspícua e aquele aspecto que está

falhando irá nos afetar, nos incomodar. Surgirá então um conflito entre o morador

afetado e a janela defeituosa. Essa idéia pode ser generalizada para qualquer

equipamento: nenhum elemento ou componente será notado se funcionar dentro

das expectativas que temos de seu funcionamento. Mas se qualquer coisa andar

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errado, aquele equipamento, como um todo (totalidade de equipamento) será

notado, mesmo que apenas uma de suas partes não esteja funcionando de acordo.

No caso da janela, as frestas da esquadria estão deixando passar água. A janela,

entretanto, está correspondendo a vários outros dos seus propósitos, mas um único

item que está unready-to-hand faz com que percebamos toda a janela como

unready-to-hand.

Várias conclusões podem ser tiradas aqui:

1- Qualquer totalidade de equipamento pode ser decomposta em itens de

equipamento que, por sua vez, podem ser considerados totalidades de

equipamento a serem decompostas até que nenhuma decomposição seja mais

possível, a não ser modificando a natureza do ser de ready-to-hand para present-at-

hand.

2- A readiness-to-hand da totalidade de equipamento é sempre afetada qualquer

item que esteja unready-to-hand.

3- Somente a unreadiness-to-hand é conspícua quando o equipamento faz parte das

nossas atividades do cotidiano: quando tudo funciona dentro das expectativas nada

se nota: uma janela que não tem problemas é, para nós, apenas uma janela. Pode-se

concluir que todas as situações causadas por unready-to-hand são conflitos que

revelam a própria essência do equipamento que falhou, permitindo-nos capturar

essa essência teoricamente, ao observar e analisar o conflito.

Demonstramos até aqui que a casa é uma totalidade de equipamento para morar; a

totalidade casa, agrega itens de equipamentos que revelam a sua

equipamentalidade (sua essência) nas atividades nas quais tomam parte. Os

conflitos que surgem quando alguma atividade não pode ser realizada porque um

equipamento falhou, são reveladores da essência desse equipamento. A

equipamentalidade de um item de equipamento pode prover pistas para que

percebamos a equipamentalidade da totalidade do equipamento. Assim, se um

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telhado não está fazendo o seu serviço direito, toda a habitabilidade da casa estará

comprometida.

Foi também demonstrado que a equipamentalidade da casa é sua habitabilidade e

que essa habitabilidade é revelada pela unreadiness-to-hand (falta, defeito ou

inadequação) de qualquer um dos itens de equipamento que pertençam à totalidade

casa.

Passamos, então, à análise da habitabilidade, para explicar como ela está conexa aos

aspectos vivenciais do sentir-se em casa.

3.2.5. A HABITABILIDADE E AS DIMENSÕES FENOMENOLÓGICAS DE MORAR.

A Habitabilidade.A Habitabilidade.

O conceito que define a relação experiencial entre o homem e sua casa é morar (ou

habitar) Isto, é, o modo no qual se experimenta o sentir-se em casa. Morar, que é

sinônimo de habitar, é a fundamental característica do homem como ser-no-mundo;

é mais do que estar sob um abrigo: é estar enraizado num lugar seguro e pertencer

àquele lugar. Assim, a edificação que o homem habita (seja habitando para

trabalhar, estudar, divertir ou residir) deve possibilitar que a relação com o morar

ocorra e seja plenamente experimentada. Essa condição é a característica essencial

de qualquer edifício e é a essência do construir. A essa essência nós chamamos aqui

de habitabilidade.

Já demonstramos anteriormente porque a habitabilidade é a essência da casa-

equipamento (a edificação); e que a casa-equipamento é o meio pelo qual o morar se

torna possível. Foi também mostrado que, sempre que algum aspecto da

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habitabilidade vai mal - ou está unready-to-hand -, experiência de morar é afetada

no seu todo. Precisamos agora definir o que a habitabilidade compreende.

No seu livro "Poetry, Language, Thought" (1971) Heidegger dedica um capítulo

inteiro à discussão entre construir e morar. O título desse capítulo é "Building

Dwelling Thinking", no qual a ausência de hífen ou de vírgulas tem o propósito de

reforçar a identidade das três categorias. Heidegger inicia sua análise colocando

duas questões:

• O que é morar?

• Como o construir pertence ao morar?

Na sua interpretação, o construir tem como objetivo o morar. Há edificações - como

hangares, pontes, estádios, estações geradoras e semelhantes - que não são lugares

de moradia mas, mesmo assim estão no domínio do nosso morar ("in the domain of

our dwelling"). A fábrica, por exemplo, não é a moradia do operário que trabalha

nela, mas ela abriga os operários (it houses workers, nas palavras de Heidegger)

durante a sua jornada de trabalho; os operários se abrigam na fábrica para o

propósito de trabalhar. A expressão "se abrigam na fábrica" não tem o mesmo

sentido de "moram na fábrica" porque o abrigo não tem a mesma conotação da

moradia. O primeiro se refere a uma situação temporária, enquanto o segundo tem

um caráter definitivo. Entretanto, ambos são habitações, pois que servem como

abrigos do homem na sua lida no mundo. Nesse entendimento, o morar seria, em

qualquer hipótese, a finalidade precípua de todas as construções. Podemos então

concluir que todas as edificações, não importando quais sejam as suas finalidades

funcionais, deveriam ser providas com os predicados que as qualifiquem como

lugares de morar. No sentido mais amplo, todas as edificações deveriam possuir

habitabilidade. Para definir as qualidades que constituem a habitabilidade, algumas

perguntas devem ser respondidas:

Como a habitabilidade media o mora? Como o objeto-casa afeta o fenômeno sentir-

se em casa?.

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Dissemos que para ser habitável, a casa deve oferecer espaço suficiente para o

morador, como também todos os utensílios que são necessários ao desempenho das

atividades cotidianas. . Em outras palavras, a casa tem de funcionar.

Essa idéia não é nova. Desde Vitruvius a dimensão funcional da arquitetura tem

sido reconhecida Ao definir "The Departments of Architecture" Vitruvius (1960.

pag.16-17) diz que todos os tipos de edificações deveriam ser construídas com

referência à durabilidade, conveniência e beleza. Segundo ele, conveniência é

"when the arrangement of the apartment is faultless and presents no hindrance to

use, and when each class of building is assigned to its suitable and appropriate

exposure". (Vitruvius, !960, pag. 17)

Recentemente os arquitetos chamados modernistas praticamente consagraram a

dimensão funcional em termos de racionalidade, e eficiência. A declaração de

Cobusier (1923) "a house is a machine for living" expressa claramente um

entendimento de que a casa tem que possuir todos os requisitos e acessórios

necessários para fazê-la eficiente como um lugar de morar. O problema é que, com

o tempo, a sociedade de consumo dirigido e a especulação imobiliária reduziram os

aspectos funcionais da casa a apenas aqueles que contemplassem as necessidades

das pessoas, descartando os aspectos simbólicos, que pertencem à dimensão do

desejo. è bem verdade que os modernistas também estavam preocupados com o

significado de sua arquitetura. Mas. ao romper completamente com as formas e as

aparências do passado, eles também puseram de lado uma das principais

características do morar: aderência ao passado (Dovey, 1983). Assim, suas

preocupações com o significado foram distorcidas por seu preconceito contra aquilo

que eles costumavam chamar de estilos fora de moda e corruptos (Adolf Loos,

1927). Uma estética nova e objetiva, expurgada dos ornamentos e idiossincrasias,

era, aparentemente, o único objetivo modernista. Dessa maneira eles rejeitaram toda

a história da humanidade, introduzindo uma estética que supostamente era

independente do passado. Esse parece ter sido o equívoco fundamental dos

modernistas: tentar reinventar o ao invés de tentar compreendê-lo como ele próprio

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se apresentava, como culturalmente moldado através de sua história. A máquina de

morar modernista, não tem, portanto, o mesmo sentido e não é a mesma entidade

que a casa-equipamento que estamos conceituando neste trabalho. A casa

modernista - a máquina de morar - foi reduzida a uma máquina para a exclusiva

função de abrigar um ente não contraditório e previsível, impulsionado apenas por

suas necessidades, com se assim fosse o homem moderno. A casa-equipamento tem

como objetivo mediar o morar do ser-no-mundo que o homem é; mediar o morar de

um ser culturalmente enraizado e impulsionado a agir não só pelas suas

necessidades, mas também por seus desejos. Essa é a principal diferença entre os

dois conceitos de casa: a casa-equipamento, conforme definida

fenomenologicamente por Heidegger, além de ser eficiente como uma máquina,

tem que contemplar a dimensão simbólica para permitir a espacialização do desejo.

Heidegger diz:

"Today's houses may even be well planned, easy to keep, attractively

cheap, open to air, light and sun, but do the houses in themselves hold

any guarantee that dwelling occurs in them?" (Heidegger, 1971, pag.57)

Para ser um lugar seguro, a casa tem de ter paredes e teto, de outro modo seria um

lugar inseguro contra as intempéries e os invasores. Os limites do pedaço de terra

onde a casa se assenta também são imprescindíveis porque delimitam o espaço

vivido onde a experiência do morar terá lugar. O homem, que segundo Simmel

(1971, pag.118) poderia ser definido por sua habilidade de edificar e depois

ultrapassar fronteiras, marca o seu território conspicuamente, construindo cercas ou

muros para encerrar a sua moradia. fazendo assim, o homem estabelece a distinção

entre o mundo exterior (o mundo profano) e o seu espaço vivido, o seu lugar

sagrado. Essas duas categorias de espaço possuem diferentes características: o

espaço externo é o reino do desconhecido, onde sempre há obstáculos a transpor e

inimigos contra os quais lutar; é o espaço desprotegido nos quais os perigos e a

adversidade moram (ver Eliade, 1959 e 1983). O espaço interior da moradia- é o

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reino da paz e da calma, no qual o homem pode se sentir relaxado e protegido dos

perigos do mundo.

Para se sentir em casa, o homem precisa se mover ao redor para realizar as suas

atividades cotidianas. Morar demanda, portanto, uma certa quantidade de espaço

como também todos os acessórios que participam dessas atividades cotidianas: a

mobília, os eletrodomésticos, os objetos de decoração. Os diversos espaços da casa

devem pois, conter todos os acessórios (itens de equipamento) que são necessários

estarem ali, para a plena realização do morar. Não só precisam estar ali, como

precisam estar em perfeita ordem e nos lugares adequados. Limpar e arrumar a

casa são atividades essenciais no dia a dia. Elas contribuem para preservar a

identidade do morador, pois o meio cultural demanda que tudo esteja limpo e

organizado. Assim, os acabamentos da casa devem ser adequados à limpeza, para

facilitar os cuidados domésticos. Manter todos os itens de equipamento

funcionando, são também atividades essenciais para o morar, uma vez a rotina de

sentir-se em casa, será negativamente afetada se algum aparelho estiver estragado,

impedindo alguma tarefa doméstica de ser executada. A casa de uma pessoa tem

também de ser reconhecida no assentamento em que se encontra. Isso reforça o

sentimento de identidade do morador, pois ninguém gosta de ser confundido. Por

isso a casa tem de ter uma boa aparência, ou uma aparência peculiar, com sinais

que a identifiquem relativamente às outras casas. São todas essas características da

casa - e do espaço externo do lote onde está edificada - que irão constituir as

qualidades essenciais que chamamos aqui de habitabilidade; as qualidades que

possibilitarão ao morador experimentar plenamente o fenômeno de morar.

Resumindo, podemos dizer que a habitabilidade compreende três grupos de

qualidade:

a) O primeiro grupo é primordialmente relacionado com a dimensão pragmática da

casa, que é proteger o homem dos intemperismos. Assim, pertencem a esse

grupo todos os atributos que qualquer casa tem de ter para assegurar

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estanqueidade à chuva, á umidade, ao vento, ao calor excessivo, ao frio

intenso, ao ruído perturbador e assim por diante.

b) O segundo grupo é primordialmente relacionado com a dimensão cultural e

simbólica da casa, que é ser um lugar agradável, confortável e seguro para

morar. Ele compreende os atributos relativos à forma e ao tamanho dos

espaços, às características estéticas do exterior e do interior, os mecanismos de

separar e diferenciar os lugares, as cercas, os muros, os espaços de transição

entre o lá dentro e o lá fora, os mecanismos de defesa e proteção contra

invasores e olhares intrusos, enfim tudo aquilo que se relaciona com os

costumes culturais.

c) O terceiro grupo é associado com os aspectos funcionais da casa. Ele engloba os

atributos que facilitam o uso dos espaço nas atividades do cotidiano, tais como

circulação, leiaute da mobília e dos equipamentos domiciliares (pias, tanques,

vasos sanitários, aquecedores, etc.), os aspectos de facilidade de limpeza e

manutenção, a disposição relativa dos cômodos de acordo com sua destinação

e outras questões similares.

Essa distribuição de qualidades em grupos, não significa que uma determinada

qualidade não possa pertencer a mais de um grupo. Na verdade, é tão somente um

modo de interpretar a habitabilidade da casa em termos das três maiores dimensões

da habitação que seriam: a pragmática, a simbólica e a funcional. Como essas

dimensões são interrelacionadas, as qualidades que lhes dizem respeito também o

são.

Após definirmos a habitabilidade em termos das qualidades que as edificações

devem ter para mediarem o morar, o nosso próximo passo será o de estabelecer a

relação entre as dimensões fenomenológicas do morar e a habitabilidade das casas.

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3.2.6. A DIMENSÃO FENOMENOLÓGICA DO MORAR.

Como foi mencionado anteriormente, segundo Korosec-Serfaty (1985) as dimensões

fenomenológicas do morar podem ser definidas como:

I) Estabelecer um interior/exterior. Essa dimensão suscita a questão da

interioridade/exterioridade e da visibilidade/invisibilidade.

II) Visibilidade é o olhar ao qual o morador está - ou não - exposto. A pessoa se

permite - ou não - ser vista nas suas práticas domésticas, no seu uso do espaço.

A dimensão da visibilidade se dirige à questão da apropriação.

III) Apropriação é o fenômeno de viver-no-espaço, é a experiência dos lugares.

Essas dimensões básicas são expressas por fenômenos subjetivos que ocorrem no

morar, isto é, por fatores comportamentais como privacidade, territorialidade,

ambiência e outros.

Na próxima seção examinaremos cada uma das dimensões fenomenológicas do

morar, em conexão com os fenômenos aos quais estão relacionadas.

3.2.7. AS DIMENSÕES FENOMENOLÓGICAS DO MORAR E OS FENÔMENOS A ELAS

ASSOCIADOS.

I) estabelecer um interior/exterior.

Estabelecer um interior/exterior é transformar um espaço em lugar, demarcando-o.

Esse é um processo de diferenciação e qualificação dos espaços . Diferenciação é o

processo de escolher, definir marcar e designar os lugares. Isso é conseguido

quando fazemos alguma coisa no território escolhido, como por exemplo quando

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implementamos marcas e sinais denotativos, construímos muros, plantamos

árvores, todo esse tipo de ação designativa e diferenciadora do sítio. Qualificação é

o processo de conferir significados, de fazer um lugar ser para alguma atividade. Já

examinamos anteriormente como o homem cria os lugares arquitetônicos

diferenciando e qualificando os espaços para desenvolver suas atividades. Assim,

todo o ambiente construído são submetidos a esse processo de estabelecer um

interior/exterior, essa demarcação do território que é a maneira de distinguir o que

é meu do que é dos outros (o privado do público). Não no sentido de estabelecer

uma propriedade privada, com um bem imóvel, mas de estabelecer um domínio

privativo, um universo particular. Demarcando e diferenciando lugares, o homem

cria as suas raízes no mundo e estabelece uma conexão existencial com elas.

Podemos concluir, então, que a dimensão fenomenológica do morar que consiste no

estabelecer um interior/exterior compreende os fenômenos de territorialidade,

aderência e privacidade. Sempre que o objeto casa não possuir as qualidades que

podem mediar esse fenômeno - ou sempre que essas qualidades estiverem unready-

to-hand - surgirão conflitos na interação morador/moradia. Por exemplo, se não

houver nenhuma marcação definindo o lote onde fica a minha casa, o meu sentido

de territorialidade será negativamente afetado e isso será um conflito que eu

estabelecerei com minha moradia. Certamente eu me empenharei em superar tal

conflito fazendo qualquer tipo de marcação que me dê a noção de limite entre o que

é o meu mundo, o meu lá dentro e o mundo dos outros, o lá fora. Essa marcação

pode ser uma cerca precária, uma cerca viva, um muro, uma muralha ou o que quer

que denote que aqui é o meu canto no mundo.

II) O escondido e o visível.

O estabelecimento de um interior/exterior remete à questão de esconder ou exibir

minhas práticas no espaço, o meu espaço pessoal. Porque a moradia é aberta para o

exterior e, ao mesmo tempo, encerra o interior, ela revela e esconde, ela é segredo e

exibição. São fenômenos relacionados à essa dimensão a privacidade e a

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preservação da identidade. Privacidade para aquilo que deve ser mantido em

segredo e só para mim e para os meus; e afirmação da minha identidade através

daquilo que eu quero mostrar para os outros. Por exemplo, se uma janela é

posicionada de um modo tal que permite ao transeunte vislumbrar minha

intimidade, essa certamente será uma situação de conflito entre mim e a janela. Para

que eu me sinta em casa, em privacidade, sem ser espiada por quem passa ou pelo

vizinho, eu possivelmente tentarei modificar a situação de conflito, ou mudando a

janela de lugar ou instalando algum dispositivo de proteção que me assegure a

privacidade almejada (e fundamental para que eu me sinta em casa). O desenho da

janela, por sua vez, terá de comunicar os meus valores estéticos, reafirmando minha

identidade.

III). Apropriação.

O meu ser interior cresce e se desenvolve através das ações que eu pratico no

espaço. O impulsão do sujeito em direção ao mundo constitui-se no ordenamento

das coisas, no espaço, para desenvolver suas atividades. Ordenar as coisas no

espaço significa criar e cuidar de lugares que nos são caros. Assim o sentido de

apropriação da moradia é ocupar efetivamente os lugares e deles cuidar com

carinho. A apropriação faz com que eu tenha aderência ao lugar, ao seu passado e

ao seu futuro; é também relacionada ao fenômeno de ambiência, que é a

necessidade de se sentir confortável ao agir e ao cuidar. Quase todas as qualidades

da casa-objeto são, de um certo modo, relativas à ambiência, pois é a ambiência que

resume todas as demais qualidades.

Para ser plenamente apropriada, a casa precisa ser confortável em termos dos

leiautes funcionais, da temperatura ambiente, da ventilação, da iluminação, das

cores, da umidade, do ruído e de outros aspectos que interferem na qualidade

ambiental. Se o telhado não permite um isolamento térmico adequado, o interior

será ou muito quente ou muito frio. Essa se constituirá numa situação de conflito e

o morador agirá no sentido de superá-la, mudando o telhado.

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45

Do que dissemos até agora podemos concluir que:

a) Morar é uma característica fundamental do homem como ser-no-mundo.

b) Os edifícios são lugares de morar.

c) A casa enquanto edifício é o lugar da morada; a moradia.

d) Os fenômenos que são revelados no processo de morar são, basicamente, os

de Territorialidade, Privacidade, Identidade e Ambiência.

e) A casa é o objeto mediador do morar, isto é, o objeto no qual o homem

espacializa o fenômeno constitutivo de sentir-se em casa.

f) Os elementos arquitetônicos que compõem a casa tem de possuir as

qualidades - a readyness-to-hand - que os possibilite cumprir a mediação

do morar; que os permita abrir lugar para as espacializações do fenômeno

morar.

g) Quando qualquer elemento está faltando ou estragado (se ele está unready-

to-hand), ele provoca um conflito que acaba por revelar o fenômeno que

está sendo afetado.

Elaborado o conceito de Conflito Arquitetônico, passaremos a descrever a

metodologia da pesquisa de campo que tem por objetivos identificar os conflitos

presentes nas habitações populares, com o propósito de elaborar um elenco de

qualidades que essas habitações devem possuir.

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46

3.3. Lendo Espaços

3.3.1. INTRODUZINDO A NOÇÃO DE LEITURAS ESPACIAIS.

Os espaços arquitetônicos são sempre lugares significativos, porque são as

espacializações da praxis social e, assim sendo, eles revelam muitas pistas sobre o

comportamento e das relações sociais. Essa questão vêm sendo de há muito

estudada por sociólogos e antropólogos e, mais recentemente, por arquitetos

também. Desde então o foco da polêmica sobre a origem da forma arquitetônica foi

deslocado do conceito modernista de dependência entre causa e efeito (que significa

que a função segue a forma), para o entendimento de que existe um influência

multilateral entre condicionantes físicos, necessidades psicológicas e elementos

simbólicos na geração da arquitetura.

No campo da teoria da arquitetura, Amos Rapoport é um dos pesquisadores que

mais têm contribuído para o desenvolvimento desse tema. O seu livro "House, Form

and Culture" (1969), instituiu uma nova era na discussão das complexas interações

existentes entre os aspectos funcionais das moradias e os fatores culturais - ou

simbólicos - nelas presentes. Rapoport tentou provar que os fatores culturais são

predominantes no desenho das casas vernaculares (casas não projetadas ou

construídas por técnicos). Tal interpretação teve um grande impacto no meio

arquitetônico, uma vez que ela contradizia muitos estudos sobre o modo com que

os materiais e os condicionantes tecnológicos (técnicas disponíveis e questões

climáticas) determinavam o design dos edifícios. Em 1982 Rapoport publico o livro

"The Meaning of the Built Environment", que é inteiramente dedicado à discussão de

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como os edifícios incorporam significados, de onde provêm tais significados e

como eles são exibidos. De acordo com Rapoport (1982), quando o ambiente está

sendo projetado (ou imaginado) quatro elementos estão sendo organizados: espaço,

tempo, comunicação e significado. A palavra comunicação se refere aos processos

não verbais que as pessoas usam para veicular suas mensagens no ambiente

construído. Embora não verbal, essa forma de comunicação pode ser analisada e

interpretada, desde que adequadamente abordada.

James S. Duncan (1985) também tem o mesmo entendimento que Rapoport sobre os

aspectos comunicacionais presentes no ambiente construído.

Discutindo o papel que o ambiente construído exerce no processo de integração

social, ele enfatiza a dimensão comunicacional da arquitetura dos lugares, quando

eles são significativos e expressivos. Ele diz:

"The built environment, in addition to providing shelter, serves as a medium of

commumunication because encoded with it are elements of social structure." (Duncan,

1985, pag. 148)

Weigert, em "Sociology of Everyday Life" (1981), também chama a atenção para o fato

de que as estruturas arquitetônicas possuem significados concretos que expressam

o modo de vida dos usuários. Ele escreve:

"Humans do not live in empty space extending indefinitely in all directions from

the self. Rather, the human capacity for symbolic transformation has made it

possible for space to be captured and shaped into social meanings, which partially

express the rationalities underlying each era and society. The decisive moment at

which some primitive band of humans left the natural shelter of the cave, or began

to fashion a lean-to against the glaring sun or the cold night winds, started the long

and fascinating story of human attempts to transform space into shapes and sizes

which mirror the projects and meanings of each society. The practical discipline of

such systematic transformation is architecture, or the designing of buildings

according to basic principles." ( Weigert, 1981, pag. 259)

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Duncan (1985, pag. 148) diz que o ambiente construído "speaks the language of

objects" e sugere que ele poderia ser abordado como se fosse um texto, isto é, ele

poderia ser lido, para ser compreendido e interpretado. Baseamo-nos nessa linha de

raciocínio - a arquitetura como um sistema de comunicação - para elaborar uma

metodologia que fosse capaz de empreender a investigação das espacializações que

ocorrem nas moradias das populações da baixa renda. A hipótese é de que essa

investigação tornará possível a identificação dos eventuais conflitos arquitetônicos

que possam surgir nas interações entre os moradores e as moradias. A nossa

expectativa é a de que, uma vez identificados, os conflitos podem ser analisados

para que possamos conhecer os fenômenos que estão sendo afetados, o que nos

permitirá interferir para corrigir os problemas nessas e em futuras moradias.

3.3.2. A METODOLOGIA DA PESQUISA DE CAMPO.

Há vários métodos que os arquitetos empregam para averiguar quais são os pré-

requisitos aos quais um determinado projeto deve atender. Esses procedimentos

metodológicos geralmente são tomados emprestado às ciências sociais e adaptados

às peculiaridades da arquitetura e urbanismo. As técnicas de pesquisa das ciências

sociais, em especial, têm servido de base para arquitetos e urbanistas levantarem

dados relativos às necessidades espaciais de seus clientes ou para avaliarem o grau

de satisfação dos usuários com suas moradias ou seus locais de trabalho. A técnica

mais comum tem sido a entrevista por questionários os quais, após devidamente

preenchidos são tabulados e tratados estatisticamente. Entretanto, entrevistar as

pessoas é uma técnica que envolve uma série de procedimentos sobre os quais o

arquiteto não possui uma formação consistente, pois a entrevista implica em

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elaborar um bom questionário, entrevistar as pessoas a partir dele e avaliar as

respostas segundo uma série de critérios e parâmetros preestabelecidos. Só a

construção de um bom questionário já seria uma tarefa árdua para um arquiteto,

uma vez que isso implicaria em amostrar e testar os respondentes, codificar as

respostas, analisar e interpretar estatisticamente os dados. E essas tarefas

decididamente não fazem parte do treinamento que os arquitetos recebem em seus

cursos e na tentativa de empreendê-las, os arquitetos muitas vezes se tornam

dependentes dos sociólogos para ajudá-los. Foi na tentativa de superar essas

dificuldades é que elaboramos uma metodologia de pesquisa de campo adotando

procedimentos que são familiares aos arquitetos e urbanistas. Além do que, são

procedimentos coerentes com o escopo teórico deste trabalho.

Assim, a metodologia da pesquisa de campo consiste da Observação Sistemática

dos casos escolhidos para estudo. Essa observação é feita através do mecanismo o

qual chamamos de Leituras Espaciais.

As Leituras Espaciais incluem diversos procedimentos trivialmente adotados pelos

arquitetos nos seus trabalhos de projeto: elaboração de croquis, registros

fotográficos, entrevistas informais e relatórios de observações circunstanciais. É

uma técnica semelhante à da Observação Participativa, embora o caráter

participativo não esteja presente pois implicaria na mudança do pesquisador para

os assentamentos a serem observados. Isso inviabilizaria o Trabalho. Por outro lado,

como se trata de desenvolver um método seguro para a identificação e análise de

conflitos arquitetônicos, não há necessidade de se fazer uma Observação

Participativa, pois conforme a teoria elaborada indica, os conflitos são evidentes,

uma vez que o unready-to-hand é conspícuo. As Leituras Espaciais são técnicas

bastante ecléticas de registro de informação e se baseiam apenas na convicção

teórica de que um item de equipamento unready-to-hand provoca conflito na sua

relação com o morador. Esse conflito precisa apenas ser detetado, por observações

sistemáticas que cubram todos os recintos, todas as horas do dia e todos os dias da

semana.. Para cada sessão de Leitura Espacial deverão haver croquis dos espaços

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observados, fotografias, leiautes do mobiliário, descrições informais do local, relatos

sobre as atividades que estavam sendo executadas por ocasião da leitura e

anotações sobre os comentários emitidos pelos usuários. Especial atenção deverá ser

dada aos comentários pois espera-se que eles sejam importantes fontes de

informação no sentido de apontar para possíveis conflitos arquitetônicos. Elaborou-

se então uma estratégia para a realização das Leituras Espaciais, que descrevemos

em seguida.

3.3.3. ESTRATÉGIA DAS OBSERVAÇÕES: NÃO FAZER PERGUNTAS.

Existem dois métodos básicos para observar um fenômeno: observar empregando

instrumentos e observar diretamente. A observação por meio de instrumentos é

bastante usual nas ciências naturais. Os instrumentos fazem a mediação entre o

observador e o fenômeno. As ciências Sociais geralmente se utilizam de

questionários como instrumentos de observação, pois fazer perguntas é a melhor

maneira de obter informação sobre algum fato por nós desconhecido. Entretanto, só

perguntamos o que na verdade já sabemos. Toda a pergunta implica numa

expectativa de resposta. Se pergunto “você é casado?” é porque eu conheço que

existe casamento e que há a possibilidade do respondente dizer sim ou não. Se o

fato é totalmente desconhecido para mim. nem sequer vou saber por onde iniciar

minha abordagem e o que perguntar. Essa é a grande deficiência da técnica de

aplicar questionários para investigar um situação da qual queremos ter informações

que nos são realmente desconhecidas. Não há como fazer as perguntas adequadas

para a obtenção de respostas inusitadas.

Essa afirmativa se baseia no fato de que o homem, como ser-no-mundo, interage

com um mundo circunspectivamente. Todos os comportamentos têm a estrutura de

direcionar-se para (directing-oneself-toward. Heidegger, 1962). A fenomenologia

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chama essa estrutura de intencionalidade (Spiegelberg, 1975), que é o caráter

apriorístico de um comportamento. Consequentemente, todas as ações, sejam

concretas ou intelectuais, são intencionais e incorporam as experiências passadas.

Não há o que se chama de atitude neutra. Sempre que perguntamos alguma coisa a

resposta é previsível; quando uma coisa é observada diretamente, o resultado da

observação vem da própria observação e não é intermediado por uma expectativa

anterior (embora seja relacionado com o conhecimento anterior que o observador

possui da situação observada). As observações são, portanto, dependente do

contexto: o modo como um objeto particular se mostra aos nossos olhos, depende

dos instrumentos que escolhemos para observá-lo. O sujeito cognoscente – o

observador – tem primeiramente que escolher os limites de sua incorporação ao

fenômeno, isto é, tem que escolher o tipo de contexto observacional que ele deseja.

Heisenberg (1929) escreveu bastante sobre a questão sujeito-objeto (observador-

fenômeno observado) no campo da mecânica quântica. A expressão mais conhecida

do caráter dependente de uma investigação com relação ao contexto da observação

é o Princípio da Incerteza, que relaciona o erro estatístico da medida de uma

posição ao erro estatístico da medida do momento em que a observação foi feita..

No campo da arquitetura, Geoffrey Broadbent (1973) examinou as implicações que

o Princípio da Incerteza teria no trabalho dos arquitetos. Segundo ele, o princípio da

incerteza se aplica ao trabalho arquitetônico, uma vez que ele oferece evidências de

que o ato de observar afeta o fenômeno observado. Assim, quando os arquitetos

estão entrevistando as pessoas para colher dados a serem usados no projeto, as

perguntas que eles fazem certamente modificarão os requisitos do cliente.

Broadbent escreve:

"Any experiment on human beings inevitably will add to their experience and the

experiment itself will alter their perceptions. That will be true, even, of simply

asking questions; the words which the questioner uses will be perceived by the

subject and this will affect whatever responses he gives." (Broadbent, 1973, pag. 72)

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Nota-se que Broadbent aceita a filosofia subjacente ao Princípio da Incerteza, que as

observações dependem do contexto em que são feitas e que o olho do observador

altera o fenômeno observado. Estendendo essa interpretação às pesquisas de

campo, deve ser assumido que a presença dos pesquisadores irá alterar a cena

observada, quer eles façam ou não, perguntas às pessoas. Prevenir, pois, a pesquisa

de campo de interferências pessoais é impossível. O que deve ser tentado é escolher

instrumentos adequados e que possam minimizar as interferências. Por exemplo, há

uma sutil diferença entre Observação Direta e aplicação de questionários quando se

trata de estudar comportamento espacial (interação pessoa/objeto arquitetônico). Se

o instrumento escolhido for um questionário para ver como as pessoas gostam ou

rejeitam um espaço, a formulação das perguntas fatalmente estará impregnada de

idéias preconcebidas de como as pessoas deveriam reagir diante de determinadas

situações espaciais No caso da Observação Direta, os fenômenos observados podem

revelar facetas que jamais seriam antecipadas na feitura de um questionário. No

caso de fenômenos previsíveis, não há problemas em que sejam usados

questionários, porque todas as possíveis respostas poderão ser antecipadas e o

questionário irá funcionar adequadamente. Se queremos saber sobre quantidades

ou sobre entidades mensuráveis, os questionários nos servem, como por exemplo

para saber quantos ovos uma comunidade consome por semana ou quantas pessoas

preferem viajar de carro invés de avião. Por outro lado, se o fenômeno que se quer

estudar possui algum grau de imprevisibilidade, os questionários já não nos

ajudam muito, pois eles só podem ser elaborados com referência aos fenômenos

previsíveis e não irão capturar o inusitado. Se queremos avaliar aspirações,

felicidade, satisfação e outros fenômenos subjetivos, os questionários não oferecerão

os dados necessário para uma avaliação justa e abrangente, embora possam dar

algumas pistas daquilo que realmente está acontecendo. Nos casos de avaliação de

fenômenos subjetivos, a Observação Direta será mais capaz de capturar as facetas

do fenômeno que jamais seriam reveladas por questionários. Além do mais, no caso

específico da arquitetura, a percepção espacial do observador desempenha um

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importante papel na interpretação do que está sendo observado. Entretanto, é

preciso ter em mente que toda observação, seja direta, seja por instrumentos, altera

o fenômeno observado, porque toda observação depende do contexto em que

ocorre.

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4. O Trabalho de Campo.

O trabalho de campo foi pensado para oferecer dados com os quais pudéssemos

criticar a teoria elaborada, testá-la e corrigí-la, conforme está proposto no escopo do

projeto.

Selecionamos duas cidades nas quais verificaríamos a teoria dos Conflitos: Ipatinga,

em Minas gerais e Salvador, na Bahia. Com isso queríamos averiguar dois casos

notáveis: um, promovido por governantes de esquerda, cujo propósito era, além de

oferecer moradias, promover o desenvolvimento comunitário. O outro, de tradição

autoritária, construído por empresas contratadas pelo extinto BNH e sem a menor

participação dos mutuários no processo, seja no projeto, na gestão ou na construção

(o campus de Narandiba, em Salvador). Esses dois modelos completamente

distintos poderiam ser dois campos insuspeitos para o teste da metodologia, pois se

queremos elaborar uma metodologia de avaliação sistemática de habitações

populares temos que considerar as diferentes situações existentes no país. E

optamos pelas situações limites.

O trabalho em Ipatinga foi feito com a participação de tècnicos que estavam ou já

estiveram a serviço dos mutirões, além de estudantes de arquitetura. Participaram

também, elaborando tarefas específicas, estudantes de pós-graduação orientados

pela coordenadora do trabalho e que estavam desenvolvendo trabalhos de

dissertação em campos conexos ou coincidentes.

4.1. DEFINIÇÃO DA AMOSTRA.

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Devido às peculiaridades da metodologia que estamos desenvolvendo (abordagem

fenomenológica), o que mais interessa para o teste não é a quantidade, pois o

reconhecimento de conflitos não carece ser estatisticamente fundamentado.

Segundo os pressupostos teóricos com os quais estamos lidando, se um conflito

arquitetônico surge numa determinada situação sócio-cultural-espacial, ele

possivelmente reincidirá sempre que o contexto no qual ele foi identificado se

repetir. Portanto, a identificação de um conflito arquitetônico depende mais da

acuidade da Leitura Espacial do que da quantidade de Leituras a serem feitas. Esse

é um aspecto relevante da metodologia e precisa ser frisado.

Como se trata de um teste para se criticar radicalmente a teoria (ver Popper,

Conjecturas e Refutações), era para nós fundamental que o teste fosse confiável.

Assim, o tamanho da amostra foi decidido a partir desse parâmetro. Os critérios

para a definição da mostra foram os seguintes:

• A supervisão do trabalho de campo não deveria passar da relação de 6

estagiários por pesquisador (professor).

• Os estagiários deveriam trabalhar sempre em dupla, pois enquanto um

conversava com o morador, o outro poderia se encarregar dos registros de

comentários, leiautes, etc.

• Cada estagiário deveria empreender, no mínimo, três Leituras: a primeira para

se familiarizar com a técnica de Observação Direta; a segunda para consolidar

sua habilidade de identificar Conflitos Arquitetônicos; a terceira para realmente

proceder à Leitura Espacial.

• Cada tipologia residencial deveria ser submetida a, pelo menos, três leituras.

Como seriam 6 estagiários, decidimos então que faríamos 9 Leituras em cada

conjunto, abordando, no máximo, cinco tipologias. Sabíamos, de antemão, que

em Ipatinga não havia variação de tipologia num mesmo conjunto. Decidimos,

então, empreender as três Leituras em cada conjunto escolhido, criticá-las e

retornar ao campo para empreender as demais Leituras.

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• A definição da amostra em Narandiba, Salvador, seria feita com a assessoria de

um pesquisador que conhecesse bem o assentamento, pois lá existe uma grande

variedade de tipologias. Como não poderíamos cobrir todo o universo, teríamos

que fazer uma amostragem por julgamento de algum especialista que pudesse

nos orientar.

4.2. SELEÇÃO E TREINAMENTO DOS ESTAGIÁRIOS PARA AS LEITURAS ESPACIAIS.

O processo de seleção dos cinco primeiros pesquisadores de campo visou recrutar

aqueles estudantes que já estavam desenvolvendo algum tipo de programa

acadêmico de pesquisa e que se interessassem sobre o tema. Com isso teríamos uma

motivação maior por parte de quem fosse proceder às Leituras Espaciais.

O treinamento se deu da seguinte forma:

• Foram realizadas palestras nas quais se expôs os fundamentos teóricos das

Leituras Espaciais.

• Foi feito um teste preliminar, na área central de Belo Horizonte, com a

supervisão direta de dois pesquisadores. O objetivo desse teste era familiarizar

os estagiários com a teoria do Conflitos Arquitetônicos. Nesse teste os

estagiários tinham de produzir uma caderneta de campo com as anotações

gráficas e fotográficas dos conflitos identificados e depois elaborar um Relatório

da Leitura.

• Esse teste foi criticado e se fizeram os devidos acertos.

4.3. DIRETRIZES PARA A REALIZAÇÃO DE LEITURAS ESPACIAIS.

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Foram estabelecidas as seguintes diretrizes básicas para o procedimento a ser

adotado na Leituras Espaciais:

• Os objetivos da Pesquisa deveriam ser brevemente explicados para os

moradores, logo no início da visita.

• Se o morador não fosse receptivo, aquela unidade deveria ser descartada e

substituída por outra.

• Se o morador estivesse interessado em colaborar com a pesquisa mas estivesse

ocupado naquele momento, então seria marcada uma outra hora para retorno e

realização da Leitura.

• Não poderiam ser feitas perguntas aos moradores. A estratégia era a de "puxar

conversa" para que as pessoas falassem com a maior espontaneidade possível.

Quando o morador fosse de pouca conversa, os estagiários deveriam fazer

comentários sobre aspectos que eles próprios tivessem notado, para provocar

comentários por parte do morador.

• Deveriam ser usadas todas as formas de registro que se mostrassem adequadas,

cuidando sempre para não inibir o morador com gravações ou fotografias.

O Relatório Modelo de Leitura Espacial levado a cabo em Ipatinga está apresentado

mais adiante.

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5. Caso Número 1: Ipatinga

O caso número 1 foi escolhido em virtude de sua especificidade: os mutirões de

Ipatinga, iniciados em 1991, é uma experiência levada a cabo por governos de

caráter popular, que procuraram conduzir os diversos mutirões de uma forma

democrática. Isso nos faz supor que a experiência de Ipatinga terá gerado moradias

que se inscrvem no conceito de morar que se discute neste trabalho.

Uma outra razão para que se escolhesse Ipatinga, era a pré-disposição de técnicos e

mutirantes em avaliar a experiência que ali tivera lugar. Isso facilitaria

sobremaneira o trabalho de campo, notadamente o levantamento dos dados

referenciais sobre as experiências, os projetos e a população.

Como a nossa metodologia também visava ao aperfeiçoamento do processo de

participação dos usuários nos projetos de suas moradias, conhecer a experiência

participativa de Ipatinga seria fundamental para realimentar nossa teoria.

Primeiramente apresentaremos um breve histórico sobre os processos

autogestionários no Brasil e mais, especificamente, o caso de Ipatinga. Em seguida

apresentaremos um breve relato sobre cada mutirão que será objeto de Leituras

Espaciais. Finalmente apresentaremos um modelo de Leitura aplicado em Ipatinga.

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5.1. Autoconstrução, mutirão e autogestão.

a)a) O nascimento da idéia de autogestão na produção de moradias populares noO nascimento da idéia de autogestão na produção de moradias populares no

Brasil.Brasil.

A autogestão como prática para a solução do problema habitacional, surgiu no

Brasil no bojo do movimento dos anos oitenta, de uma forma não consciente e não

previamente definida5.

No surgimento da idéia de autogestão, foi marcante a influência da experiência do

cooperativismo uruguaio, quer pelos excelentes resultados alcançados em termos

de qualidade, quer pela diminuição dos custos e por ter incrementado a

participação.

Esta experiência serviu para abrir as possibilidades na criação de uma nova

alternativa habitacional.

Segundo Bonduki "no Uruguai tinha sido construídas mais de 10.000 unidades

habitacionais através de cooperativas de ajuda mútua"6, um número significativo, se

comparado ao tamanho da população do país, que era de 2 milhões de habitantes.

É através do relato desta experiência7, que toma forma o primeiro conceito de

autogestão no campo habitacional, visto como o trabalho de construção e gestão

administrativas feitos pelos futuros moradores.

5 Bonduki N., 1992, p. 15.6 Bonduki N., 1992 a, p. 35.7 Trazida a São Paulo por parte de um engenheiro Guilherme Coelho que passou alguns tempos em Uruguai.

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A idéia era, de que esta prática, se introduzida no Brasil, pudesse, assim como

aconteceu no Uruguai, num estágio sucessivo, encarar também de forma coletiva

outros problemas sociais comuns, com a criação de postos de saúde, creches,

bibliotecas, cooperativas de consumo, etc..

A re-proposição desta experiência no Brasil, com a constituição de cooperativas

habitacionais, encontrou algumas dificuldades de caráter técnico, onde a principal,

era a impossibilidade de formar juridicamente uma cooperativa autônoma do poder

publico.

Esta dificuldade não abalou o movimento, por duas razões: em primeiro lugar, pelo

clima criado do debate nacional sobre programas políticos entre movimentos,

sociedade civil e partidos, extremamente propício à formulação de alternativas no

âmbito da política pública e que antecipava as primeiras eleições democráticas do

país; e em segundo lugar pelas características do movimento, que revelaram-se

fundamentais para condicionar a evolução das reivindicações, sendo ele:

1. composto na maioria por moradores de aluguel;

2. um movimento que reivindicava não mais só a casa, mas a obtenção de

infra-estruturas e melhorias urbanas;

3. um movimento que reivindicava também, a criação de um programa

habitacional, colocando-se desta forma, no âmbito da formulação das

políticas públicas;

4. um movimento assessorado por parte de um grupo de técnicos

autônomos e permanentes.

Esta última característica, revelou-se estratégica, ajudando líderes e participantes a

se aprimorar sobre as potencialidades de uma fórmula, como a autogestionária que,

não obstante fosse alvo das reivindicações, não era, segundo Bonduki, ainda

entendida completamente.

Sem estes técnicos, seria impossível formular, por parte do movimento, programas

alternativos, estabelecer formas de controle da ação do poder público e assumir

inteiramente a gestão do processo de produção de moradia.

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Nas defesas de que o processo de produção da casa deveria ser controlado pelos

próprios moradores organizados, o movimento apoiava um processo de

autoconstrução e de mutirão, com o governo no papel de garantir recursos e

verbas.

b) Autoconstrução: teorias e críticas.b) Autoconstrução: teorias e críticas.

O mutirão é uma alternativa habitacional baseada no esforço coletivo e organizado

da comunidade, os chamados mutirantes, para a construção da sua própria

moradia. O mutirão caracteriza o processo de autoconstrução.

Como método de operação, o mutirão não é novo, segundo Jacobi, pode ser

encontrado em todo o mundo, em diferentes momentos e com diversas aplicações.

A autoconstrução, sempre segundo Jacobi, "responde basicamente às necessidades

de satisfazer determinadas necessidades sociais que não são supridas a contento"8.

Segundo Abiko, o mutirão habitacional é uma evolução da modalidade da

autoconstrução, justificada pela necessidade de resolver o problema habitacional

nas sociedades capitalistas em crise9.

Esta forma de solucionar o problema habitacional ganhou muita importância com

respeito à construção de casas para a classe trabalhadora, bem como outros aspectos

do crescimento urbano, que tem no assentamento residencial da população que

migra do campo para a cidade, fator de influência significativo.

Como afirma Maricato, o processo de autoconstrução e mutirão é um processo de

trabalho "calcado na cooperação entre as pessoas, na troca de favores, nos

compromissos familiares, diferenciando-se portanto, das relações capitalistas de

compra e venda da força de trabalho"10.

Características como, solidariedade e contato direto com a produção da casa, foram

fatores fundamentais na formação da proposta Turneriana que, elaborada no final

dos anos 60 influenciou grande parte dos programa e das políticas, cujo objeto era a

8 Jacobi P. R., 1981, pag. 29.9 Abiko A., 1992, pag. 8-9.10 Maricato E., 199?, p. 71.

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62

habitação da classe de baixa renda na quase totalidade do terceiro mundo, por

quase duas décadas.

O ponto central do discursos de Turner, era a autonomia e a participação dos

usuários na construção da sua moradia. Turner enfatizava, nos seus diversos

trabalhos, a ineficácia dos programas habitacionais baseados numa organização

centralizada, contrapondo-se às formas desenvolvidas pela população

autoconstrutora, na sua luta para resolver o problema da moradia11.

São focais, segundo Turner, aspectos relacionados com o controle do processo pela

própria população e as vantagens decorrentes da participação do usuário na

solução dos seus problemas de moradia, visando a minimização dos gastos com a

possibilidade da geração de uma poupança.

Turner destaca que o distanciamento das necessidades dos moradores, revelado

pelas realizações oficiais, é, em ultima instância, o resultado da exclusão do usuário

do processo de decisão num sistema centralizado de intervenção. Sua participação,

ao contrário, adquire um significado determinante, na medida em que assegura o

cumprimento das prioridades de cada família12.

Assim para Turner, "a intervenção dos governos e dos organismos internacionais

deve limitar-se apenas a assegurar aos mais capazes de construir, para si mesmo, ou

para seus vizinhos, o acesso ao instrumental, ou aos recursos básicos necessários a

este trabalho"13, isto é, o terreno, a assistência técnica e a infra-estrutura básica.

O que interessa para Turner, é o aspecto de minimização dos gastos e as

possibilidades decorrentes dele, como a formação de uma poupança, recorrendo

desta última, também, a possibilidade de implementar possíveis mudanças nas

unidades familiares.

A visão turneriana, segundo Jacobi e Maricato, apresenta alguns equívocos.

Segundo eles é por causa dela que a autoconstrução foi considerada no Brasil e na

11 Jacobi P. R., 1981, p. 33.12 Turner J.F.C., 1972, p. 51-70.13 Turner J.F.C., 1972, p. 51-70.

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maior parte dos países subdesenvolvidos, como a solução deus ex machina aos

problemas habitacionais.

Com as referências teóricas acima expostas, o Banco Mundial e o Banco

Interamericano de Desenvolvimento passaram a se comprometer com programas

de autoconstrução nas áreas ilegais (settlements upgrading) e em áreas novas, com

a criação de lotes urbanizados (site & services).

No Brasil, os primeiros programas alternativos neste sentido foram o Programa de

financiamento de lotes urbanizados (PROFILURB), em 1975 e o PROMORAR em

1979. A partir de 1982, como afirma Abiko, observa-se o desenvolvimento de várias

experiências de autoconstrução apoiada, ou de mutirão, em várias prefeituras14 ,que

constitui uma valiosa bagagem de experiência baseada em ajustes e acertos usados,

também, na formulação da proposta autogestionária.

É interessante, porém, antes de entrar na análise das características das propostas

autogestionárias, entender os equívocos nos quais caiu a proposta de Turner.

Segundo Jacobi, são duas as críticas principais feita-lhe:

1. a substituição do valor de troca da habitação com o valor de uso, sendo

que esta troca não é uma escolha arbitrária, enquanto o valor de troca é

algo inerente ao modo de produção capitalista; a habitação é uma

mercadoria e não deixará de sê-lo;

2. o uso de procedimentos extremamente voluntaristas, que evidenciam

uma inversão daquela que é a realidade, reduzindo assim os problemas

sociais a problemas pessoais, assim como o "problema habitacional se

coloca sob a responsabilidade individual do morador"15.

Assim como evidencia Jacobi, Turner elimina o conflito enquanto fator explicativo,

"privilegiando as relações entre os homens geralmente a partir de uma perspectiva

harmônica ou, quando muito, disfuncional"16.

14 Abiko A., 1992, p. 9.15 Jacobi P. R., 1981, p. 38.16 Jacobi P. R., 1981, p. 37.

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64

Sempre segundo ele, o equívoco está no

"privilegiar a existência de problemas na ordem social, em lugar de

entender a ordem social enquanto problema, centrando sua análise

nas relações entre oferta e a demanda habitacional, onde as forças

estruturais significativas que as determinam são ignoradas"17

A falácia na abordagem de Turner, é entender que as capacidades individuais como

o esforço próprio e as oportunidades oferecidas pela sociedade, definem a

mobilização social e assim, a localização das pessoas na escala social.

Assim, segundo Jacobi, a análise de Turner "ao ignorar as contradições de classe,

postula o que gostaria de negar: a conciliação de classes" é a manutenção do statu

quo, "a manutenção da atual estrutura de classe e a penúria das moradias"18.

Maricato afirma que os fatores da autoconstrução que mais atraíram Turner, outro

não são que elementos "determinantes para a sobrevivência"19, e que a análise dos

fatores que intervém à produção de casas através da autoconstrução (terreno,

materiais de construção, mão de obra, técnica construtiva e recursos financeiros),

mostra que sua articulação rígida dos esquemas ditados, diretamente ou

indiretamente, pelo mercado formal, não deixa lugar à criatividade em relação à

técnica e às soluções arquitetônicas. Segundo ela, "o produto final é por esta razão

padronizado em todas as regiões metropolitanas com variações insignificantes"20.

As várias experiências, como dizemos antes, trouxeram algumas novidades

interessantes levando à formulação de 3 tipos básicos de construção através de

mutirões, diferenciados pelo tipo de gestão.

Usando a classificação de Abiko, podemos distinguir os mutirões em:

17 Jacobi P. R., 1981, p. 38.18 Jacobi P. R., 1981, p. 39.19 Maricato E., 199?, p. 73.20 Maricato E., 199?, p. 93.

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65

1. gestão institucional ou administração direta, que corresponde ao caso em

que, o poder publico gere o empreendimento, administrando todos os

recursos financeiros e não financeiros aportados;

2. co-gestão, que corresponde aos empreendimentos no qual, o poder

publico repassa os recursos às comunidades representadas e organizadas,

através de associações comunitárias, que por sua vez, contratam

escritórios técnicos autônomos para assessorá-las na administração destes

recursos;

3. autogestão, que corresponde ao empreendimento que é de

responsabilidade da comunidade, através das associações de moradores,

tanto do ponto de vista administrativo, quanto pela gerência de todos os

recursos.

Elementos novos e significativos nos mutirões são:

1. a contratação de escritórios técnicos autônomos conhecidos como

"assessorias técnicas", que elaboram os projetos e exercem a direção

técnica das obras, responsabilizando-se técnicamente pela execução das

mesma; sua contribuição é importante na melhoria dos projetos

habitacionais e na organização do trabalho das comunidades,

gerenciando com uma eficiência adquirida na prática;

2. a utilização de mão de obra contratada, que somando-se á mão de obra

dos mutirantes possibilita aumentar a produtividade nos canteiros,

ocupando-se de serviços especializados ou preparando durante a semana,

o serviço que será executado pelos mutirantes no final de semana, sendo

esta última, normalmente, uma mão de obra com um baixo perfil de

qualificação.

c) A proposta autogestionária na construção de moradias populares, característicasc) A proposta autogestionária na construção de moradias populares, características

e peculiaridades.e peculiaridades.

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66

As propostas lançadas ao final dos anos oitenta, pelo movimento habitacional, eram

as seguintes:

1. a formação de entidades representativas da comunidade organizada,

encarregada de promover e gerir todas as etapas do empreendimento

habitacional;

2. a obtenção de terra com recursos governamentais, a serem repassadas a

custo zero;

3. a obtenção de financiamento compatível com renda em torno de 1 SM

para a compra de material de construção de uma casa com

aproximadamente 40 m2;

4. a construção de casa com a utilização, ao menos em parte, de mão de obra

própria da comunidade organizada em mutirões coletivos;

5. a obtenção de um subsídio para a execução de infra-estruturas;

6. a gestão pela entidade de todo o processo de escolha e compra de

material;

7. a constituição de uma equipe técnica de confiança da comunidade, para

assessorá-la na elaboração do projeto, no controle, na organização da obra

e nos contatos com órgãos públicos.

Estes pontos, que fundamentaram a nova proposta, eram de um lado, o resultado

da crítica à política habitacional do governo

"centralizadora, vertical, de cima para baixo, baseada na promoção e

financiamento estatal e da produção privada (padrão COHAB, em que

o objetivo principal, era garantir recursos para dinamizar a construção

civil); e por outro lado, do reino da individualidade presente na

autoconstrução"21

tradicional e da não participação do usuário final em nenhum dos aspectos

decisório do processo de produção da moradia.

21 Bonduki N., 1992 b, p. 114.

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67

Não queremos nos aprofundar mais, neste trabalho, na análise da experiência da

autogestão conduzida em São Paulo, mesmo reconhecendo sua importância.

É suficiente mostrar, como neste período, de formulação de idéias e propostas,

aconteceram alguns fatos que atrapalharam o processo, tentando confundir a

proposta do mutirão em autogestão, com as iniciativas oficiais de fazer

autoconstrução, as quais colocavam o mutirão, promovido pelo poder publico,

como o eixo da política habitacional.

São exemplos desta estratégia, programas como João de Bairro (1984) desenvolvido

pelo BNH e o Programa Municipal de Habitação promovido pela Companhia de

Desenvolvimento Habitacional (CDH) no interior de São Paulo; e iniciativas como o

happening "1000 casas em dia" de Goiás, que defendiam o mutirão público como

solução para o problema habitacional, parecendo-se, equivocadamente, com o que

propunham os movimentos.

O poder público, segundo afirma Bonduki, fazia de tudo para ignorar as propostas

autogestionária, repropondo uma visão de participação popular, na veste de mera

fornecedora de mão de obra no processo de construção das moradias.

Este, serviu de estímulo ao movimento habitacional, para a realização de alguns

projetos habitacionais piloto, especialmente em São Paulo. Estes empreendimentos

que foram: Vila Nova Cachoerinha, Recanto da Alegria, AMAI, Vila Comunitária,

Conjunto Aventista Fase 1, SAF II e Valo Velho, foram fundamentais para definir e

calibrar a proposta autogestionária, servindo também, como demonstração real de

que, as organizações populares, assessoradas por técnicos autônomos do poder

público, eram capazes de administrar todo o processo produtivo.

A experiência autogestionária possui portanto, no seu início, a característica de ser

uma proposta restrita ao campo do singulo empreendimento habitacional.

Segundo Bonduki, entende-se por autogestão na produção da moradia,

"um processo de gestão do empreendimento habitacional onde os

futuros moradores, organizados em associações ou cooperativas,

administram a construção das unidades habitacionais em todos os

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seus aspectos, a partir de regras e diretrizes estabelecidas pelo poder

público, quando este participa financiando o empreendimento"22

A incorporação da autogestão no mutirão opera, segundo Bonduki uma mudança

das suas próprias características, constituindo um novo objeto que não caracteriza-

se mais como trabalho gratuito promovido pelo Estado na construção de casas; nem

como autoconstrução onde cada morador se vira, individualmente, para levantar

um abrigo, mas

"como uma organização autônoma da sociedade civil que, com o apoio

e o financiamento do poder público, equaciona a produção de

moradias com a participação dos moradores e a introdução de avanços

tecnológicos e sociais que só o trabalho coletivo pode propiciar"23

As críticas feitas ao mutirão como forma de solucionar o problema habitacional por

parte do poder público, são de cunho político-ideológico, que destacam esta prática

como forma de ampliar a exploração da força de trabalho, sendo parte, portanto, da

estratégia do capitalismo para extrair mais-valia dos trabalhadores (Pradilla, 1983);

e como aquelas que vêem no mutirão um processo atrasado de produção

habitacional, além de mistificador (Bolaffi, 1985).

Todas estas críticas, apontam o mutirão como uma solução antieconômica pelo

enorme aparato que necessita para ser implementado, pela utilização de sistemas

construtivos arcaicos, por gerar imensos desperdícios e para alongar

exageradamente o tempo de obra. Desta maneira, os custos indiretos somariam a

um valor tal, que anulariam as vantagens de utilizar mão de obra gratuita (Bonduki,

1992).

Esta avaliação é correta, se aplicada aos mutirões administrados pelo poder público,

nos quais os problemas acarretados ao processo dependem do tipo de gestão

adotada.

22 Bonduki N., 1992, p. 18.23 Bonduki N., 1992, p. 19.

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É a gestão estatal que constitui o entrave que elimina boas partes das vantagens que

seriam obtidas se o mutirão fosse promovido autônomamente pela população.

A não interferência no processo do poder público permite rapidez e agilidade,

facilitando, segundo Bonduki, a busca de "expedientes diversos criados na prática

por estes agentes individuais [...] [viabilizando] economia invisíveis, soluções

inacreditáveis para o Estado"24.

Os mutirões autogeridos possibilitam uma multiplicidade de vantagens,

caracterizando-se assim, mais como auto-empreendimentos que autoconstrução

(Bonduki; 1992).

O erro que o poder público continua fazendo, é pensar o mutirão, adotando uma

visão limitada à associação entre trabalho gratuito e procedimentos estatais

consuetudinários, como por exemplo:

1. procedimentos de licitação convencionais que levam a atrasar a compra

encarecendo o custo;

2. a utilização exclusiva do trabalho gratuito, que alonga o tempo da obra;

3. a utilização de técnicos fornecidos pelo Estado, o que não garante um papel

de controle sobre os funcionários, assim como interesse e envolvimento na

realidade local.

O mutirão autogerido reverte, segundo Bonduki, estes pontos negativos através da

passagem da responsabilidade às entidades públicas não estatais, associações

comunitárias ou cooperativas.

A questão institucional torna-se, portanto, uma questão crucial "pois a resistência

dos órgãos públicos municipais em aceitar a perda do seu papel promotor é

enorme"25.

É neste ponto que a autogestão joga-se todas as próprias chances.

A administração pública, financiando um empreendimento deste tipo, divide

efetivamente, parte do seu poder com a sociedade organizada, deixando de ser

24 Bonduki N., 1992, p. 20.25 Bonduki N., 1992, p. 20.

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promotora, passando a exercer apenas um papel de normatização, fiscalização e

controle (Bonduki; 1992).

Esta possibilidade não é aceita por parte de várias correntes políticas, tanto da

direita, que vê o perigo na criação de estruturas produtivas não estatais, que podem

ocupar o espaço da iniciativa privada capitalista; quanto da esquerda, que vê a

autogestão como uma maneira do Estado de delegar as próprias responsabilidades,

jogando nas costas dos cidadões funções que são estatais, ou enfim, virando

exploração ou supertrabalho quando a autogestão é associada ao mutirão.

No mutirão autogerido, o agente gerenciador é a associação, na qual contrata uma

assessoria técnica como entidade autônoma do poder público, que desenvolve, num

processo de dialogo e discussão com os futuros moradores, o projeto habitacional e

urbanístico, assim como, outras peças técnicas necessárias à aprovação do

financiamento, como memorial descritivo, orçamento detalhado, cronograma físico-

financeiro, regulamento de obra, etc., e que pressupõe ainda, uma comprovação de

que a associação tem capacidade de gerir o empreendimento.

Adotando a análise feita por Bonduki, evidenciamos, quais seriam as vantagens do

mutirão autogerido:

1. a associação receber os recursos, para poder contratar e remunerar a

assessoria técnica, permitindo-lhe monitorar o seu desempenho através de

um contato direto com os técnicos, sem intermediários, e de uma maneira

contínua, a cada final de semana;

2. a presença de uma assessoria técnica autônoma do poder público, capaz de

introduzir significativas melhorias como: aperfeiçoamento do processo

produtivo, reduzindo assim, os desperdícios, racionalização do canteiro,

visando o aumento da produtividade; não é novidade neste sentido, a

criação de usinas de fabricação de componentes utilizados no processo de

construção, o desenvolvimento de novas tipologias arquitetônicas,

quebrando, assim, os estereótipos tipológicos sobre a moradia popular, a

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adaptação de sistemas construtivos para possibilitar sua apropriação nos

mutirões;

3. a utilização de uma percentual dos recursos para pagar mão de obra

especializada, condição fundamental para diminuir o prazo da obra;

4. a destinação de uma parte dos recursos para a montagem do canteiro e a

compra de ferramenta e equipamentos, necessários para aumentar a

produtividade, como betoneira e gruas;

5. a construção de galpões para o canteiro de obra que, muitas vezes, tornam-se

definitivos, passando a serem utilizados como equipamento comunitário,

constituindo uma redução, não tanto no custo indireto, quanto nos gastos

necessários à estruturação do equipamento a nível local;

6. a redução de Benefícios e Despesas Indiretas (BDI), propiciando uma

economia significativa;

7. a compra dos materiais de construção direitamente pela associação, o que

possibilita, embora não garante, qualidade e baixos custos; as economias

geradas podem retornar inteiramente às famílias empregando-as no

melhoramento, quer do conjunto, quer da mesma unidade habitacional; não

previstas no orçamento servem de estímulo para combater desperdícios,

estimular a produtividade, promover o melhor aproveitamento dos recursos

público em benefícios dos cidadãos.

Os mutirões teriam, portanto, a particularidade de serem movidos por

princípios diferentes da empresa privada, beneficiando-se porém, dos mesmos

estímulos, conseguindo um desempenho mais próximo da empresa privada para

concretizar objetivos públicos.

O mutirão autogestionário não é, porém, imune a problemas que podem ser

enquadrados em: autoritarismo das lideranças e alienação dos mutirantes em

relação ao processo de gestão, reproduzindo formas de administração que a

autogestão objetiva superar.

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Segundo Bonduki, a autogestão nos mutirões pode ir além de um simples sistema

de produção de moradias, introduzindo uma nova forma, de gerir as políticas

públicas e sociais, isto é, democratizando a gestão das políticas e dos recursos

sociais, tornando mais ágil e barata a implementação dos programas sociais,

constituindo uma alternativa entre a ineficiente gestão pública e a privatização

proposta pelo modelo antisocial do liberalismo.

Todo este sistema pede um esforço, por parte de quem participa para ultrapassar as

dificuldades e solucionar os problemas que se põem caso a caso.

É interessante neste sentido relatar, o que afirma Pessina, sobre a experiência de São

Paulo:

"o processo de autogestão na produção das unidades habitacionais é

ainda embrionário e tropeça com dificuldades derivadas das

características sociais e políticas do povo brasileiro e das lideranças do

movimento .

A participação é ainda limitada no gerenciamento das obras, na

administração dos recursos, nas atividades mais intelectuais, que são

desenvolvidas na maioria dos casos por um pequeno grupo de

liderança junto às assessorias técnicas. Porém, nas atividades de

execução física das casas, a participação é muito maior e as formas de

organização da produção são ricas e diversificadas"26.

No entanto, a adoção deste sistema em larga escala enfrenta-se com a capacidade de

organização e gerenciamento da população demandatária, sendo necessário, criar

uma estrutura de formação e organização da demanda, o que implica a utilização

de recursos para viabilizar esta estrutura, que a nosso ver, amarraria este processo

ao poder público, de maneira tal, que poderia levar à sua desnaturalização.

Segundo Reis Afonso, existem também outros problemas, mais internos ao processo

que inviabilizaria a proposta de mutirões de autogestão em larga escala como:

26 Pessina L., 1993, p. 13.

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"as dificuldades na implantação dos projetos quer arquitetônico, quer

com relação à infra-estrutura; as dificuldades de repasse em razão da

medição; de centralização do organismo tomador de recursos para o

agente financiador sempre defeituosa"27

27 Reis A. M., 1995.

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5.2. A experiência dos mutirões autogeridos em

Ipatinga.

Metodologia de levantamento de dados para conhecimento do campo para análiseMetodologia de levantamento de dados para conhecimento do campo para análise

de conflitos arquitetônicos e urbanísticos.de conflitos arquitetônicos e urbanísticos.

a) Política Habitacional em Ipatinga - antecedentes.a) Política Habitacional em Ipatinga - antecedentes.

Ipatinga e Usiminas.Ipatinga e Usiminas.

Ipatinga, assim como é conhecida hoje, é uma cidade relativamente jovem.

Localizada no Vale do Rio Piracicaba, se estende por cerca de 250 Km a nordeste do

maciço do Espinhaço, da Serra do Caraça, até as planícies do médio Rio Doce.

Desenvolveu a sua própria forma urbana, a partir de um distrito pertencente à

comarca de Coronel Fabriciano, por volta do início dos anos 60, graças a um projeto

urbanístico que complementou a instalação da industria siderúrgica Usiminas

criada em 1956, mas em operação a partir de 1962.

A concepção do projeto adere, de maneira explícita, aos conceitos do urbanismo

modernista e assim, como relata o seu autor28, a nova cidade, "construída e

planejada quase na mesma época de Brasília, não tem desta a sofisticação de uma

obra monumental com uma arquitetura e uma trama urbana destinada às gerações

do futuro"29

A criação da Usiminas é portanto, o fator que permitiu o desenvolvimento desta

cidade.

28 Hardy Filho, R., 1970, p.31.29 Ibid., p.34.

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75

As razões que motivaram a escolha deste lugar foram várias, fundamentalmente a

presença do minério e da EFVM que "possibilitaria o transporte de carvão em pedra

e do produto acabado"30 e a vizinhança de um aglomerado urbano onde já existia

uma grande indústria siderúrgica: a Acesita.

Assim, como relatam Costa e Monte-Mor, existia "um mercado de trabalho no

mínimo embrionário e condições mínimas de infra-estrutura micro-regional"31, além

da presença de uma outra estatal (como era a Acesita), que permitia um maior

controle sobre a mão de obra,

"na medida em que as siderúrgicas podiam tomar medidas coercitivas

comuns, tais como "listas negras" de empregados indesejáveis,

controle sobre os sindicatos, ameaças e pressões sobre o emprego,

etc."32 A cidade, "condicionada pela localização e o layout da planta da

siderúrgica, pelo rio Piracicaba e pela EFVM, [...] é concebida de forma

linear, na qual os bairros residenciais são ligados por eficientes vias de

circulação que circundam a usina."33

Segundo os preceitos teóricos do urbanismo modernista, cada bairro foi concebido

como uma unidade de vizinhança, acompanhado dos equipamentos de comércio,

serviço ou lazer.

O espaço urbano projetado reproduziu na cidade as relações funcionais e de poder,

existente no âmbito do processo de trabalho. A cidade estratificou-se através dos

bairros, cada um com caráter próprio, quer na homogeneidade física na arquitetura

das edificações, quer no social.

Na cidade existem "bairros para as chefias e quadro superiores, para operadores [e]

para a mão de obra não especializada"34.

30 Costa S. M. H., Monte-Mor M. R. L., 1995, p. 421.31 Costa S. M. H., Monte-Mor M. R. L., 1995, p. 426.32 Costa S. M. H., Monte-Mor M. R. L., 1995, p. 427.33 Costa S. M. H., Monte-Mor M. R. L., 1995, p. 423.34 Costa S. M. H., Monte-Mor M. R. L., 1995, p. 424.

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76

A moradia foi parte das condições de reprodução e controle da força de trabalho,

estudadas e implementadas por parte da usina, assim como a implantação dos

serviços e dos equipamentos sociais e da infra-estrutura.

A cidade de Ipatinga consolida a vocação regional do Vale, iniciada no século

passado. Como relatam Monte-Mor e Costa:

"os grandes investimentos industriais e a construção das respectivas

vilas e cidades requeridas por empreendimentos de tal porte em

região ainda tão isolada, provocaram grande reorganização espacial

da população. De um lado, uma intensa urbanização concentrada nas

cidades mono industriais: Monlevade, Itabira e alguns municípios

vizinhos, onde siderúrgicas menores e minerações se concentravam na

parte alta do vale, enquanto na planície o Aglomerado Urbano da Vale

do Aço [AUVA] crescia a taxas de urbanização dos mais altos do pais.

A criação da CENIBRA - Celulose Nipo Brasileira, na década de 70,

pouco quilômetros abaixo veio aumentar o pode concentrador da

AUVA.

Do outro lado, as demandas por carvão vegetal da CSBM e da Acesita,

e mais recentemente, por madeira para celulose, por parte da

CENIBRA, transformaram radicalmente a propriedade do sol na

região, dando origem a imensas plantações de eucaliptos, resultando

no esvaziamento populacional do campo e em pressões ainda maiores

sobre aquelas poucas cidades mono industriais."

Ipatinga cresceu, desde sua fundação, com taxas de crescimento anuais de 12%, o

que a levou a ter uma população de 150.000 habitantes em 1980 e hoje tem em torno

de 200.000 habitantes.

O resultado foi a criação de uma outra Ipatinga, com caracteres contrapostos à

cidade planejada, tanto no processo de formação quanto de qualidade de vida da

população.

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77

A cidade planejada não se misturou com o restante da cidade; as várias facilidades e

equipamentos de reprodução coletiva criados pela empresa estavam restritos, em

seu uso, aos seus empregados diretos (abastecimento, lazer, habitação subsidiada,

etc.) criando, claramente, uma diferenciação social de privilégios entre a empresa e

o restante da população.

A lógica que estruturou a "outra" cidade foi guiada pelo capital imobiliário

fortemente concentrado em mãos de duas famílias proprietárias da terra e que,

tradicionalmente, se alternavam na administração do município. Um município

cuja característica principal, entre outras, era de ser reconhecido como "rico e com

relativo poder de barganha, junto a fontes de recursos".35

O poder local esteve, portanto, ligado por tradição, aos proprietários fundiários que

em muitos se beneficiaram das generosas obras públicas, principalmente viárias,

que foram construídas com a justificativa de servir de apoio à produção e à

indústria. Este processo contribuiu para estender, a outras partes da cidade, a

aparência de modernidade típica de sua porção planejada.

A atitude da empresa era, através disso, estimular o crescimento autônomo da

cidade e por esta razão Ipatinga beneficiou-se de várias linhas de financiamento,

tanto habitacional para a aquisição de moradia, inicialmente somente por

empregados da usina, quanto de desenvolvimento urbano - principalmente através

do projeto CURA36; quando foram realizadas obras significativas de saneamento

ambiental.

O acesso a terra e a habitação era, portanto, possível através de duas vias: via

mercado imobiliário ou via emprego na usina. É facilmente imaginável como as

faixas sociais com baixo poder aquisitivo e não empregadas na usina ficaram

35 Costa S. M. H., Monte-Mor M. R. L., 1995, p.424.36 O Programa CURA foi criado em 1973, por resolução do Conselho (RC7/73) com a denominação de

Comunidade Urbana de Recuperação Acelerada, era voltado ao desenvolvimento urbano atuando através de

vários elementos como: alocamento de recursos, planejamento da complementarão urbana, intervenções

físicas, intervenções em serviços, intervenções jurídicos normativas, intervenções fiscais e intervenções extra

fiscais, visando assim a execução de obras de complementarão urbana.

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excluídas e tiveram que ocupar encostas e fundos do vale, ou contribuir para o

fenômeno da expansão periférica em outros municípios.

As atuações em matéria de políticas públicas, por parte do poder público

municipal, não foram significativas.

Só no final dos anos oitenta, por causa da recessão e a crise da indústria siderúrgica

nacional, que trouxe um menor empenho e envolvimento da usina nas parcerias

com o poder publico, começaram as primeiras tímidas intervenções. Assim, a partir

da década de oitenta as questões ligadas a cidade foram tratadas de maneira

diferente.

Esta mudança de postura política foi possível, pela emergência de gestões

municipais populares, que começaram a atuar nesta direção, de maneira mais

contundente a partir do 1989, estendendo as próprias atividades ao longo de toda a

década de 90, permanecendo e atuando até hoje.

b) As "administrações populares".b) As "administrações populares".

A situação, no final dos anos oitenta, em Ipatinga não era das melhores, boa parte

da população de baixa renda vivia em áreas de risco de ocupação ilegal.

A maior parte localizavam-se nas íngremes encostas dos morros que circundam a

cidade, com risco contínuo de deslizamento.

Uma parte significativa, cerca de seiscentas famílias, eram abrigadas de baixo das

pontes ou às margens do Ribeirão Ipanema, numa área ao lado do centro, numa

condição de risco iminente, sujeitas a inundações.

A esta situação problemática somava-se a postura passiva da administração.

Esta situação induziu uma parte da população a se organizar formando um

movimento popular apoiado pelo Partido dos Trabalhadores. A reivindicação

principal focalizava-se na questão da moradia para as faixas de baixa renda,

pedindo, por parte do poder público, uma rápida solução.

A mobilização das classes sociais de baixa renda não trouxe o resultado de

amplitude esperada, mas conseguiu quebrar de maneira simbólica a posicão de

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passividade da administracão, que criou um programa de doação de materiais de

construção, às vesperas das eleições administrativas.

Em 1988 houve as eleições municipais. O candidado favorito era o deputado

estadual Francisco Carlos "Chico Ferramenta" Delfino.

Este candidato foi apoiado, também, pelo movimento habitacional que entrou na

disputa eleitoral, conseguindo mobilizar uma parte significativa da população de

baixa renda, garantindo uma quota de votos determinantes para sua eleição. Foi

assim que, pela primeira vez, partidos de esquerda iam governar a cidade.

Com a volta do regime democrático ao Brasil, após o longo processo de abertura

política, iniciado por volta do final dos anos setenta, culminado com a constituição

do 1988 e a eleição de um presidente civil, Ipatinga teve uma das primeiras

administrações do PT em Minas Gerais. Por esta razão, se transformou no banco de

prova, no qual pôs em prática os conceitos que caracterizam uma administração

envolvida com a causa popular.

A posse do novo prefeito coincidiu com a abertura de um debate, interno ao partido

e à equipe de governo, para reformar a estrutura administrativa.

As discussões levaram um ano, até chegar à formulação da nova estrutura, revisada

para implementar objetivos políticos e promessas de campanha eleitoral.

A reforma deu espaço à participação de técnicos, provenientes de outros municípios

ligados ao PT, convidados a ocupar cargos importantes nas várias secretarias:

"planejamento, transporte, saúde, habitação, trabalho e ação social, com a

preocupação de fazer o máximo possível nas diversas áreas, vários técnicos

"estrangeiros" como era chamada a gente lá [...]" (Marques, 1999/1); boa parte

destes técnicos vieram de Belo Horizonte.

No que diz respeito a habitação foi criada, em janeiro de 1990, uma Coordenadoria

de Habitação (CHI), dentro da Secretaria de Trabalho e Ação Social (STAC).

O primeiro técnico responsável na área de habitação foi Maurício Campolina

Libânio, sociólogo de Belo Horizonte, que já tinha trabalhado no Programa de

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Desenvolvimento de Comunidades - PRODECOM e que participou da formulação e

redação da Lei Municipal n. 3532/83 chamada PROFAVELA.

Sua tarefa principal era instituir e dar corpo a um programa de regularização e

reurbanização de favelas, chamado "Programa de Obras Comunitárias", nos moldes

das intervenções do PRODECOM.

Segundo um despacho interno da própria administração, datado em janeiro de

1991, os objetivos básicos deste programa eram três:

1. através da urbanização, se daria "a elevação do nível de qualidade de

vida das populações residentes nos bairros, vilas e favelas de Ipatinga,

onde se registram carências acentuadas em termos de serviços e

equipamentos urbanos básicos";

2. através da implantação dos projetos de urbanização, criar novas

oportunidades de trabalhos para as populações locais, gerando assim

"emprego e renda" para "amenizar os efeitos do desemprego";

3. através da participação comunitária, estimular o envolvimento das

comunidades na solução dos seus problemas com o objetivo de criar

estruturas de gerenciamento e execução dos projetos, concebidos e

incorporados pelas comunidades a que se destinam.

Este último objetivo tinha, também, a finalidade de colmar uma deficiência

estrutural da administração, isto é, a carência de recursos humanos e estruturas

operacionais para este tipo de ação.

Outra tarefa importante foi recrutar outros técnicos que pudessem ocupar os

cargos da nova CHI.

Após vários contatos, feitos principalmente em Belo Horizonte, foram chamados

alguns técnicos que iriam coordenar dos programas criados pela CHI, entre os quais

Celina Marques, que assumiu o cargo de coordenadora.

Do ponto de vista habitacional, o primeiro ano não foi um ano perdido. A prefeitura

deu continuidade ao programa de doação de materiais de construção e permitiu,

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não interferindo, à realização do mutirão que estava sendo implementado na área

invadida no começo de 1989 e que recebeu o nome de Nova Conquista.

A experiência de mutirão não era inédita em Ipatinga, quando a nova

administração tomou posse, dois anos após o governo Sarney, já estavam em

andamento 2 mutirões da Secretaria de Ação Comunitária do Presidente da

República (SEAC), dirigida na época por Aníbal Teixera. Um foi no bairro

Esperança e o outro no morro São Francisco. Este último, no topo de um morro,

numa área remanescente, ao longo de uma rua de cumeeira. A liberação dos

recursos era feita por parte do governo federal e era vinculada à criação de uma

associação habitacional. Em contrapartida, a PMI iria providenciar esta associação

habitacional: "ela [a PMI] bancava a organização, ela instrumentalizava uma

associação qualquer para cumprir a obrigação formal da coisa" (Libânio, 1999/1).

c) c) Início da política habitacional no município - o mutirão Nova Conquista. Início da política habitacional no município - o mutirão Nova Conquista.

A origem deste mutirão deve-se a uma ação de doação de 2500 lotes, feita pelo

então prefeito Jamil Sellim de Salles (1983-1988) às famílias de baixa renda. A

distribuição dos títulos de propriedade foi feita poucos meses antes das eleições

municipais; logo seguiram a ocupação dos lotes que encontravam-se numa área no

bairro Bom Jardim, cuja propriedade era de um fazendeiro local, ligado ao prefeito,

que se dispôs a oferecer esta área às familias.

A tomada de posse das famílias revelou-se temporânea, durando até o resultado

das eleições.

A interrupção da continuidade política da administração, concretizou-se com a

eleição de um prefeito de esquerda, revelando o intento meramente eleitoreiro que

estava por trás da doação dos lotes às familias de sem casa.

O proprietário da área entrou com uma ação na justiça, pedindo a integração de

posse da área ou, em troca, uma indenização.

A nova administração da PMI, não tendo possibilidade de pagar a indenização viu-

se obrigada a retirar, com o uso da força as famílias que ocupavam o terreno.

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Estes acontecimentos exasperaram o movimento e seus participantes, tanto que, um

núcleo de 100 famílias pertencentes ao grupo daquelas que foram retiradas,

voltaram ao local ocupando uma parte dele. Foi esta a primeira e também a última

ação de invasão em Ipatinga que teve o apoio do Partido dos Trabalhadores (PT).

A PMI querendo cumprir as obrigações, tentou tirar novamente os invasores, desta

vez com os próprios técnicos, mas arrendou-se às evidências, expropriando a área e

permitindo às famílias que eram abrigadas debaixo de barracos de lona e papelão

de permanecerem na mesma.

Achamos que a expropriação do terreno, foi facilitada pelas ligações existentes entre

o grupo de familias invasoras e o partido dos trabalhadores. Podemos assim supor,

que as ligações serviram à PMI, garantia para que a ocupação da área não se

transformasse em uma ocupação desordenada e sem controle.

Estas suposições baseiam-se no fato de que existia uma coordenação composta de

líderes dos mutirantes, que era dirigida por uma figura que além de ser

carismática, tinha contatos e ligações com homens políticos do PT municipal37. Foi

deixado, portanto, bem claro, como o grupo de famílias tinha a vontade de conduzir

um processo, com o apoio das forças que estavam na base do movimento,

objetivando a construção de casas em regime de mutirão.

Na coordenação do grupo, que virou coordenação do mutirão, participavam

também, os coordenadores das equipes, grupos de trabalhadores organizados que

dividiam-se nas tarefas do dia a dia.

As decisões mais gerais eram tomadas através de uma assembléia que reúnia todos

os mutirantes.

Esta organização foi criada de maneira empírica e deve-se salientar que as

instâncias que evidenciamos não eram claramente caracterizadas, deixando espaço

às outras práticas ditadas das condições e situações particulares e conjunturais.

37 Trata-se de Saulo Manoel da Silveira, primeiro presidente da Associação Habitacional de Ipatinga eleito

vereador do PT em 1992.

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Infelizmente não existem, ou se existem, não tivemos acessos, documentos e

relatórios deste primeiro mutirão que desde o seu começo ganhou apoio do

movimento da igreja, cuja contribuição não limitou-se a ser material, forneceu uma

parte dos próprios membros que se associaram a esta experiência, cobrindo

encargos de coordenação e organização.

A organização das famílias foi de maneira autônoma entendendo-se que não houve

nenhuma intervenção por parte do poder público. As atividades começaram em

março de 1989, realizando o que foi chamado de "mutirão solidário", isto é, um

empreendimento cujas entradas eram o resultado da mobilização do grupo de

mutirantes, através de atividades como rifas , festas e bicos.

A nova administração, que apoiava informalmente este empreendimento, limitou-

se, inicialmente, a observar os acontecimentos, posteriormente foi assinado um

convênio com a qual a PMI contribuía financiando 50% dos gastos, deixando o

restante por conta dos mutirantes.

A PMI não disponibilizou técnicos para esta obra, por falta de estruturas e recursos

para atender este tipo de exigências.

Achamos também, que a PMI não se envolveu mais por medo de, desta forma,

contribuir, indiretamente, a novas invasões.

O processo de gerenciamento da obra e as atividades de execução foram, decididas

totalmente por parte da coordenação do mutirão. Não existia um cronograma de

obra, os trabalhos funcionavam segundo as disponibilidades, normalmente nos

finais de semana, mas de fato, assim que se tinha tempo e material a disposição.

Todas as atividades baseavam-se no conhecimento empírico e na experiência dos

profissionais, oficiais da construção civil, que encontravam-se entre os mutirantes e

foi este conhecimento que solucionou o projeto das casas e a implantação geral do

conjunto.

A unidade habitacional compunha-se de cozinha, sala e um quarto, com um total de

pouco menos de 30m2 de área construída. As habitações eram com paredes em

alvenaria e com o engradamento, de uma água, feito em madeira com telhas de

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amianto. Não dá para saber quanto foi gasto por cada unidade habitacional, porque

o gerenciamento da parte financeira foi muito artesanal, sem uma fiscalização

normal.

As atividades limitaram-se à construção das habitações, sem se preocupar muito

com a questão das infra-estruturas, resolvidas no que era indispensável e de

maneira sumária, deixando para um momento sucessivo, a cargo da PMI.

A implantação do conjunto foi "facilitada" pelas máquinas, que foram colocadas a

disposição pela PMI e que fizeram a movimentação de terra. Esta questão gera,

ainda hoje, polêmica entre os moradores pois, segundo eles, os funcionários da PMI

operaram de maneira aleatória sem seguir os conselhos e as diretivas dos

mutirantes, não aproveitando o espaço disponível da forma desejada.

A articulação urbanística do conjunto é simples: lotes de forma e tamanho

regulares, na média de 180m2, com as casas ocupando o centro deles e são dispostos

ao longo de duas ruas que foram abertas.

O conjunto localiza-se em parte no final de um fundo vale e também nas encostas

de um morro cuja inclinação dificultou por muito tempo a vida dos moradores

devido, especialmente, ao desnível entre a maioria dos lotes, as vias de acesso e a

decorrente inclinação dos taludes, único acesso as moradias.

Esta situação, já precária em dias normais, tornava-se insustentável em época de

chuva sendo, as únicas escadas existentes realizadas através de um corte no terreno

e que não foi executado as contenções adequadamente.

As casas foram ocupadas assim que terminadas, dando prioridades às famílias

numerosas e de renda mais baixa, em média de 2 SM. O conjunto foi inaugurado

por inteiro e com o nome de Nova Conquista, em 1990.

As condições de precariedade do conjunto, principalmente na infra-estrutura,

vieram à tona, agravando-se de tal forma, que o conjunto começou a ser chamado

pela vizinhança e pelos próprios moradores de "Mutirão Velho".

Em 1994, foi necessário assinar um convênio entre associação e PMI, da ordem de

67.680,00 R$, para sua recuperação. As obras executadas foram emergenciais, como

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escadas de acesso às habitações, canaletas para escoamento das águas pluviais,

gramagem dos taludes e contenção das encostas. Estas últimas atividades

encontraram uma certa resistência por parte dos moradores, insatisfeitos com as

soluções adotadas; as contenções foram tratadas de maneira tal, que não foi

necessária a construção de muros de arrimo.

Com parte deste recurso a associação conseguiu construir, também, uma creche

comunitária que adotou o nome do conjunto e alguns locais adjacentes à creche que

funcionaram como centro comunitario e mercearia.

A experiência deste primeiro mutirão trouxe vários resultados.

A prática da autonomia decisional e operativa, que foi atuada no mutirão,

corroborou a ideia de existir uma forte potencialidade por parte da sociedade frente

ao poder público. O resultado, sem sombra de dúvida, positivo da experiência fez

com que o movimento se convencesse da necessidade e urgência em repetí-la.

É assim que esta prática tornou-se um elemento do qual o poder público, através do

movimento habitacional, não pôde abrir mão na formulação da política habitacional

municipal.

O modo através do qual esta foi exercitada, achamos que serviu para criar, de uma

forma, quase natural, um núcleo de pessoas que interiorizaram:

1. as próprias capacidades e os próprios meios;

2. os meios e as possibilidades dadas pela ação popular autônoma e

portanto, constituindo-se como autogerida;

3. a potencialidade e a amplitude dos resultados possíveis, se os primeiros

dois pontos (1 e 2) conjugam-se com postura de colaboração e parceria

com o poder público, porque temos que considerar também, por uma

questão de objetividade, que este foi possível, também, pela postura

"formalmente" passiva da PMI, que não barrou este processo, assim como

poderia ter feito tratando-se de uma invasão e, portanto, ilegal.

Estes resultados, não palpáveis, ficaram evidentes aos olhos do movimento, no qual

impulsionou a criação de uma associação habitacional que pudesse ser porta-voz da

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demanda habitacional, levando em frente a experiência obtida através de uma ação

que fosse de parceria com o poder público.

d) A Associação Habitacional de Ipatinga (AHI).d) A Associação Habitacional de Ipatinga (AHI).

A Associação Habitacional de Ipatinga foi criada, no dia 21 de outubro, com o

objetivo de levar à frente as reivindicações habitacionais das faixas sociais de baixa

renda, caracterizadas para terem famílias com renda de 0 até 3 SM.

Desde a sua criação, a AHI caracterizou-se por ter fortes contatos com a PMI, quer

com os políticos, quer com os técnicos e para ter a primeira diretoria composta por

uma parte significativa de pessoas que participaram do gerenciamento do primeiro

mutirão .

A associação ligou-se, estavelmente, á estrutura política, por causa das ligações que

a associação tinha, através da figura do presidente, muito próximo aos homens

políticos do PT municipal.

Varias foram as reuniões da AHI, nas quais apareceram o prefeito e o vice prefeito,

assim como os técnicos da PMI e várias foram as ocasiões em que o presidente da

AHI negociou condições e estratégias diretamente com os vértices do poder público

municipal.

Se, no começo, este processo não era tão evidente, com o passar do tempo acirrou-

se, virando uma ligação cujos traços apresentam características de dependência.

Achamos que este foi devido ao envolvimento político por parte do presidente, que

manteve as próprias ligações e a própria presença na associação, mesmo após ser

eleito vereador junto com um outro componente da primeira diretoria, criando um

círculo de relações muito estreitas entre AHI, administração e partido.

A AHI nunca conseguiu ser autônoma do ponto de vista financeiro. Os motivos

desta condição podem ser dois:

1. a alta taxa de inflação, que inviabilizou as variadas tentativas de se fazer

subscrições para obter fundos necessários e pagar o custeio da associação;

2. a vinculação com a administração, o que gerava expectativas com relação

ao movimento de recursos.

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Esta última aumentou a dependência da AHI, cuja sobrevivência manteve-se ligada

à estipula de convênios com a PMI, sendo que uma parte dos recursos do convênio

eram destinados a pagar o seu custeio.

Na época da sua instituição, a estrutura compunha-se de: uma "diretoria", composta

por um coordenador que era, de fato, um presidente, um vice, uma secretária, uma

vice secretária, um tesoureiro, um vice tesoureiro e três diretores: um diretor de

formação social, um de comunicação, um de promoção e eventos; "núcleos de

bairros", isto é, órgãos celulares descentralizados da entidade, com próprios

delegados como representantes, no caso um coordenador, um secretário e dois

suplentes, no começo sem um próprio regimento interno, e com pouca autonomia

de caráter administrativo, vinculados de acordo com o estatuto da associação e às

decisões da diretoria. A autonomia administrativa foi lograda, aos poucos, com o

passar do tempo.

Os mandados da associação são normalmente de dois anos.

Esta estrutura, com o passar do tempo, foi se consolidando e enraizando as próprias

práticas, deixando poucos espaços a outras iniciativas populares que fossem

externas à associação. A única inovação na estrutura foi a criação de um conselho

fiscal, devido aos problemas encontrados em deixar a gestão financeira nas mãos de

uma só pessoa.

Portanto, uma associação cuja estrutura é hierarquicamente bem definida, com um

órgão central (a diretoria) com plenos poderes e órgãos periféricos responsáveis por

fazer o trâmite entre quem de fato decide ( a diretoria) e quem executa (as bases da

associação).

Seu público eram as famílias de baixa renda, de 0 até 3 SM, mas não faltavam, entre

elas, famílias com renda superior, que puderam ser englobados como usuários de

conjuntos construídos da PMI via empreteiras38.

38 É o caso do conjunto Planalto I no qual parte das famílias com renda maior de 5 SM foram beneficiadas com

parte destas casas.

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No curso da própria vida a AHI, "acabou virando uma instância institucional de

captação da demanda habitacional da população de baixa renda" (Libânio,1999/1).

A postura mantida e as ações conduzidas, tiveram por objetivo mais ou menos

explícito, reconduzir a demanda da população de baixa renda dentro de canais

democráticos e legais. Isto é evidente quando se pensa que a AHI aboliu todas as

formas de protesto que não fossem baseadas no diálogo, como é o caso das invasões

de áreas livres.

É interessante evidenciar a postura de denúncia tomada pela AHI, quando ocorreu

uma grande invasão em uma área livre de propriedade pública no bairro

Esperança, apoiada por um vereador da oposição39.

Neste momento, a associação decidiu numa reunião da diretoria, uma dúplice ação

que, de um lado denunciava e expulsava da associação aquelas famílias que

participaram deste evento e do outro cadastrava os invasores para serem afiliados à

associação, como forma de reconduzí-los num terreno de diálogo democrático, ou

talvez, numa forma de controle social.

Foi este um das poucas tentativas de tentar criar um movimento alternativo ao

existente, mas que não teve continuidade.

A postura revela uma certa intimidade ou afinidade entre AHI e PMI, que se

caracteriza desde a formação da associação. O que nos leva a supor que a AHI virou

uma instância "oficial".

Mas, porque foi a única associação habitacional presente em Ipatinga? Não achamos

que o tamanho da cidade seja uma justificativa suficiente em explicar a presença de

uma só associação habitacional, basta pensar que, não é raro achar em uma favela

várias associações de moradores.

Achamos que as razões principais são quatros:

1. a presença, no começo, de um movimento habitacional cujos caracteres eram:

1.1 uma força coesa entre os participantes (no dia da criação da AHI

foram 1000 as famílias filiadas40);

39 O vereador Samuca do PMDB.

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2.1 aproveitar do apoio e da presença de uma célula do movimento da

igreja, instituição que gozava de força política na cidade;

3.1 ter nascido no seio do PT municipal;

2. a estrutura da AHI, que foi criada desde o começo, no sentido de expandir e

catalisar a própria presença na cidade inteira, o que impediu o nascimento

ou o crescimento de grupos alternativos;

3. a forte ligação com o movimento de moradia estadual e nacional, o que deu

respaldo e legitimidade à associação;

4. a forte ligação com o poder público, que exprime-se não somente de contatos,

mas também, pela eleição de dois membros como vereadores do PT; é fácil

pensar, portanto que a eleição é uma condição a mais de exclusividade, pela

presença destes canais políticos e de reflexo "eficaz" aos olhos da população de

baixa renda

e) O nascimento da ídeia de autogestão.e) O nascimento da ídeia de autogestão.

A idéia de introduzir uma forma alternativa de gestão na prática de produção

habitacional, nasceu no decorrer da experiência do mutirão Nova Conquista.

Seu amadurecimento foi possível, graças aos contatos entre Maurício Campolina

Libânio e Saulo Manoel.

O primeiro, que já tinha trabalhado em Belo Horizonte com a elaboração do

PROFAVELA, e com entidades não governamentais como a alemã Geselschaft

Zusammen Arbeit (GTZ) e a italiana Associazione Volontari del Soccorso

Internazionale (AVSI), trazia à Ipatinga uma vasta e prolífera experiência de

participação popular amadurecida, principalmente, com o PRODECOM no

objetivo de implementar um programa de regularização baseado nestes princípios.

Os princípios e as novidades do PRODECOM, criado em 1979, como programa

estadual, sob o governo de Francelino Pereira e de responsabilidade da Secretaria

de Estado de Planejamento e Coordenação Geral (SEPC)41, giravam em torno da

40 Hoje em dia, segundo as informações da AHI, as famílias afiliadas são 2500.41 Naquele ano o secretario era Paulo Roberto Haddad.

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idéia de "Planejamento Participativo" que baseava-se na participação das

comunidades locais.

O poder público não se encarregava do papel de estimular as comunidades em se

organizar, como relata Libânio

"o PRODECOM não mobilizava ninguém, não chamava ninguém para

mobilizar, ele tinha a porta aberta às comunidades, desde que,

estavam mobilizadas, chegavam lá reivindicando alguma coisa, em

suma, não tem disto, do setor publico hoje estimular a formação de

grupos de movimento dos sem casa [...] que são formas de mediação,

onde cada vez, afasta mais a intenção inicial do produto final"

(Libânio,1999/1).

A demanda do PRODECOM já tinha um programa a ser desenvolvido, onde a

tarefa dos técnicos era preparar as comunidades ou as associações, através de

cursos de treinamento orientados para os membros das associações, para que

esclarecessem e selecionassem os candidatos e trabalhassem na elaboração dos

processos, que eram repassados ao orgão financiador para serem conferidos e

liberados.

Uma vez que os recursos eram liberados, a associação ou comunidade gerenciava o

processo, autonomamente utilizando as próprias práticas.

As áreas de atuação do programa eram cinco: habitação popular, legalização de

terra urbana, melhorias urbanas em favelas e bairros da periferia, nutrição e

abastecimento e serviços comunitários.

A área da habitação popular introduziu algumas interessantes novidades, como:

1. a criação de um crédito habitacional, com o apoio de agentes financeiros

como a Minas Caixa e o próprio BNH, ao alcance do segmento populacional

de baixa renda (de 1 até 3 SM);

2. a diminuição de impasses e entraves burocráticos para a liberação dos

financiamentos, permitindo reduzir os gastos relativos ao custeio das

operações;

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3. a transformação dos financiamentos de normas individuais, mas, em vários

casos gerenciados de maneira coletiva, em instrumento de suporte à

mobilização e participação das comunidades;

4. a participação da comunidade como agente interlocutor, promotor, executor

e fiscalizador, num contexto de autonomia e autogestão por parte dos

participantes;

5. a possibilidade de criar um regime de obra caracterizado por administração

própria, em contraposição ao sistema da empreitada, restando a cargo do

morador a avaliação da qualidade do padrão construtivo, reduzindo a

importância dos critérios tradicionais de aferição da qualidade de obra, isto

é, respeitando a cultura dos participantes no que se refere às tecnologia

próprias de construção.

Em três anos o programa desenvolveu 551 projetos, dos quais 123 de

habitação popular, beneficiando 102.948 pessoas42.

A importância do PRODECOM em relação a Ipatinga, foi o repasse desta

experiência principalmente pelo caráter de autogestão presente nas atividades.

Não obstante a área de competência de Maurício Libanio fosse a regularização

fundiária e reurbanização de favelas, sua influência demostrou-se suficiente para

servir de estímulo a Saulo Manoel poder refletir sobre estas questões.

Foi assim que este último visou as potencialidades e as possibilidades de uma

experiência com estas características, ainda mais se conduzida do lado habitacional,

enquanto tinham em Ipatinga todos os pressupostos para ser implementada e poder

dar certo, isto é:

1. uma associação habitacional;

2. uma afinidade política entre associação e PMI, além de verdadeiras ligações;

3. recursos à disposição, por parte da PMI.

42 Por estes projetos forma gastos 8.920.786.276,93 Cr$ (em CR$ de março 1982), fonte PRODECOM/ÁREA

FINANCEIRA/SEPLAN.

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A primeira idéia de autogestão recalcava, portanto, as teorias da participação

comunitária desenvolvidas pelo PRODECOM.

O movimento habitacional de Ipatinga, desde sua formação articulou-se ao

movimento nacional e com a criacao da AHI e a presença de administradores

dispostos a abraçar a causa dos movimentos, formalizaram-se os primeiros

contatos, para aproximar-se e conhecer as experiências de autogestão que vinham

sendo criadas e desenvolvidas em outros contextos do país, principalmente em São

Paulo.

f) A influência de São Paulo.f) A influência de São Paulo.

Além de Ipatinga, o PT ganhou as eleições municipais de 1989 em vários outros

municípios, entre os quais na cidade de São Paulo.

Esta ultima, pela sua reconhecida importância estratégica do ponto de vista

econômico, constituiu-se como referência nacional, quer pela população, pois pela

primeira vez uma administração de esquerda iria governar a cidade, quer como

referência para outras administrações do PT, neo-eleitas, espalhadas por todo o

país.

O partido reconhecendo esta importância, organizou em São Paulo, encontros,

debates e ciclos de fóruns, que tratavam de vários temas da atualidade, tentando

definir um rumo à ação política das administrações que participavam dos eventos.

Neste encontro, havia um fórum nacional dos prefeitos das adminstrações

populares e um fórum especifico sobre a questão habitacional.

A administração de São Paulo, cuja prefeita era Luisa Erundina, tentou priorizar os

setores sociais e inovar em políticas públicas, segundo Bonduki (1992)

"incorporando quase dez anos de experiências concretas no

desenvolvimento de projetos e intervenções, apoiado pela força dos

movimentos de moradias [...] e pelo quadro técnico que passou a

integrar a administração depois de ter, durante anos, assessorado o

movimento",

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foi assim que tomou forma e desenvolveu-se um programa chamado FUNAPS-

Comunitário43, que chamou a atenção da AHI e dos técnicos da PMI.

Este programa não era um programa isolado no panorama das políticas públicas

municipais, mas integrava o Programa Municipal de Habitação de Interesse Social,

que baseava-se numa série de programas habitacionais destinados a abranger toda

a problemática habitacional, como a urbanização de favelas, a intervenção em

cortiços e a construção de conjuntos por empreiteiras e por mutirão.

O programa foi desenvolvido utilizando uma estrutura institucional pré-existente,

apoiando-se do ponto de vista organizacional, na Superintendência de Habitação

Popular - HABI, "um órgão com uma estrutura reduzida, poucos vínculos com

interesses empresariais e um corpo técnico aberto ao diálogo com os movimentos

sociais"44, e financeiramente em um Fundo, o FUNAPS, presente desde 1979, cujo

regulamento permitia sua utilização para a habitação municipal, possibilitando a

formalização de convênios com entidades que tivessem por finalidade melhorar as

condições de habitabilidade das "moradias subnormais".

A construção de conjuntos habitacionais, para faixas sociais de baixa renda, baseada

na prática da autogestão, prevista pelo programa, concretizava várias das idéias que

estavam sendo discutidas em Ipatinga.

Fortalecida pela presença de um movimento organizado, que tinha propostas e

experiências no campo habitacional, um grupo de técnicos que assessoravam este

movimento, além de uma vontade política clara, o FUNAPS- Comunitário deu

início as próprias atividades na administração petista,

"sendo que em dezembro de 1992 [final da administraçao]

desenvolveram-se 85 convênios com associações populares,

construindo 11 mil unidades habitacionais em todas as regiões de São

43 Por FUNAPS intende-se: Fundo de Atendimento a População Moradora em Habitações Subnormais .44 Bonduki N., 1992, "Do Mutirão á autogestão na produção da moradia: qualidade e produtividade a baixo

custo", in Mutirão Habitacional - Curso de Formação em Mutirão, Vol. 1, Escola politécnica da USP,

Politécnico di Torino, União Européia, São Paulo, p. 14.

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Paulo, assessorados por 25 entidades de assessoria técnica e

multidisciplinares"45.

Os contatos entre São Paulo e Ipatinga foram conduzidos, num primeiro momento,

à distância, posteriormente, o movimento habitacional articulou-se e algumas

pessoas políticas foram à Ipatinga, como o vereador Olímpio Pacheco, com o

objetivo de conversar com o secretário da STAC e o prefeito. Esta pressão

desembocou numa visita a São Paulo, feita por uma equipe mista, composta de

técnicos, políticos e representantes da AHI. A esta primeira visita, participou

também, o secretário da STAC, que ficou impressionado com o que viu,

convencendo-se das possibilidades da experiência; foi ele, de fato a peça

fundamental para o convencimento do próprio prefeito (Rosas, 1999/2).

O objetivo principal desta viagem, era conhecer as experiências em seus mínimos

detalhes, mas teve o resultado de consolidar os contatos com os políticos que

apoiavam a causa popular em São Paulo e com as várias entidades envolvidas no

programa, como associações, líderes comunitários e os técnicos, que assessoravam

os empreendimentos através das chamadas assessorias técnicas, contratadas pelas

associações e autônomas ao poder público.

Após esta primeira visita vieram várias outras:

"de vez em quando a gente ia lá para trocar experiências, com gente de

São Paulo, São Bernardo, Santo André, uma vez ao mês a gente dava

uma chegadinha, não era tão freqüente não, mas dava para manter os

contatos, buscar noticias, coisas deles" (Marques,1999/1).

Estas visitam não se limitaram a São Paulo, graças ao convencimento do Secretário

da SEAC. Ele, de fato, acreditava na idéia e o presidente da AHI fortalecido pelo seu

apoio, junto ao qual tinha um cargo de assessoramento, foi, logo após sua eleição,

com um outro membro da AHI conhecer a experiência das cooperativas

habitacionais em Uruguai, visitando os mutirões com todas as despesas pagas pela

PMI.

45 Pessina L., 1993, "A Democracia pelo Mutirão", Revista Mutações Sociais, ano 2, N. 5, out. nov. dez., p. 9.

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g) A criação das condições.g) A criação das condições.

Graças às pressões da AHI e do secretário da SEAC, o prefeito convenceu-se das

potencialidades da proposta. A idéia que se ia formando era a necessidade de se

propor, novamente e integralmente, o modelo de São Paulo, pois era um modelo

que estava dando certo, sem considerar que a experiência de São Paulo não nasceu

por acaso, mas era fruto de um longo processo, quase uma década.

Achamos que a razão da reproposição global do modelo paulista foi devido,

principalmente, à vontade de fazer, o que colocou, em segundo plano, uma postura

mais cautelosa.

Começaram assim, a ser colocadas as bases sobre as quais se estruturou o projeto

autogestionário de Ipatinga.

Para se fazer este projeto, era necessário o apoio da PMI, que foi conseguido,

colocando a disposição uma área na qual se construiu o conjunto e foram fornecidos

os recursos financeiros necessários para construir as unidades habitacionais.

A área, inicialmente, era única e localizada no bairro Bom Jardim, ao lado do

mutirão Nova Conquista. Este terreno, segundo os propósitos da PMI, possibilitava

o assentamento de 150 famílias. Sucessivamente a PMI ofereceu um segundo

terreno, no bairro Bethania, mas se o primeiro era de fácil acesso, o segundo

localizava-se na cresta de um morro, sem linhas de transporte coletivo que

chegassem até lá. Este segundo terreno permitiu ampliar o número das famílias

beneficiadas, que passaram a ser 200.

Os recursos financeiros que a PMI colocou a disposição, eram por volta de 170

milhões de Cr$, por volta de dois milhoes de dolares convertidos, oriundos do

orçamento municipal; até então não existia um fundo municipal destinado a

projetos de moradias públicas. Os recursos, portanto, dependiam das

disponibilidades orçamentárias e da vontade do poder público executivo.

Outro passo era a seleção das 200 famílias que iriam compor o quadro.

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96

A associação pensou em selecionar 5% das famílias de cada um dos 27 núcleos de

bairro46, através de alguns critérios tais como, a participação, o aluguel, a carência, o

tempo de residência em Ipatinga, o tempo de filiação à associação. Sucessivamente,

a PMI comunicou à associação que iria beneficiar um grupo de famílias (85), que

moravam na área de risco do centro da cidade, destinando-lhes uma parte das

habitações previstas.

Desta forma, a PMI tentava realizar uma primeira etapa de reassentamento

descongestionando a área, tendo em vista um projeto de requalificação urbanística

do centro.

Para que o projeto fosse completo, faltava uma assessoria técnica. Não obstante, a

intenção fosse de recriar o modelo de São Paulo, as propostas iniciais iam na

direção de se formar uma assessoria técnica que fosse local, mas este não foi

possível, pelo fato que o movimento local não tinha ligações com técnicos.

Por esta razão, pensou-se em pedir ajuda ao pessoal do movimento de São Paulo e

através dos contatos feitos no decorrer das visitas, buscar uma assessoria técnica

que se disponibilizasse a trabalhar em Ipatinga trazendo a experiência.

Os contatos foram direcionados, por parte da associação e da PMI, na busca de uma

assessoria técnica que tivesse, como relata Marques, "boas referencias de obra, uma

turma que tinha feito (sic), bastante número de unidades em São Paulo [e que

também], se disponibilizasse a trabalhar em Minas" (Marques, 1999/1).

Entre as várias assessorias técnicas que trabalhavam em São Paulo, foram criados os

contatos com uma, denominada, Ação Direta (AD), que naquele período estava

tocando sete obras.

O coordenador da AD e um outro técnico foram, assim, convidados em Ipatinga

para discutirem os termos da cooperação, em uma reunião na qual a AHI tentava

definir, ainda, se a construção das habitações seria ou não através de mutirão.

h) A "Ação Direta".h) A "Ação Direta".

46 Por esta razão podemos supor que cada núcleo de bairro tinha uma media de 100 famílias.

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A assessoria técnica, escolhida por parte da AHI, tinha uma longa história de

assessoramento ao movimento de São Paulo.

Sua origem deve-se a mobilização de um grupo de estudantes de arquitetura da

Universidade Mackenzie, que foram aglutinados através de um laboratório de

habitação popular constituído pela universidade, mas que não deu certo pela

pouca presença de alunos.

Estes poucos alunos, seis, que participaram deste atelier continuaram a se encontrar

sucessivamente.

O assessoramento, que os estudantes propuseram-se, começou de maneira informal

e se fortaleceu a tal ponto, que eles participaram, também, dando apoio técnico a

algumas invasões programadas pelo movimento habitacional. Este grupo era

liderado por duas pessoas, que uma vez formados, foram trabalhar na prefeitura de

Diadema, na área de reurbanização de favelas e mantendo contatos com os

movimentos.

As atividades aumentaram com o governo Erundina de tal forma, que foi necessário

criar uma assessoria cadastrada na prefeitura, foi assim que fundou-se, em 1988, a

Ação Direta, que começou o assessoramento aos mutirões dentro do FUNAPS -

Comunitário.

A AD é uma das primeiras assessoria técnica de São Paulo a operar no FUNAPS, ao

lado de outras assessorias técnicas famosas, como a Usina, a CAAP, e a Oficina.

Destas, as três primeiras faziam parte da zona Leste de São Paulo, evidenciando

que o movimento operante nesta zona fosse de primeira linha, no campo dos

mutirões autogeridos47.

A equipe de técnicos trabalhando na assessoria aumentou, paralelamente, ao

número dos projetos acompanhados, usufruindo também de estagiários que, uma

vez formados, permaneciam na assessoria. Na época que aconteceu o contato entre

AD e AHI, a assessoria técnica era composta por 7 técnicos.

47 A assessoria tecnica "Oficina" fazia parte da zona Oeste.

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O primeiro grande projeto acompanhado foi, em 1989, o conjunto São Francisco,

com mais de 800 unidades habitacionais, reunindo 4 grupos de 200 famílias, era o

maior dos projetos financiados pelo FUNAPS - Comunitário.

Além de fornecer os técnicos, a AD trouxe a própria experiência em termos de

conhecimento técnico (alvenaria estrutural armada) e prático, trazendo os próprios

mestre de obra, juntamente com todo um sistema já testado em São Paulo, que

adaptam o processo construtivo ao mutirão habitacional. Este sistema compunha-se

de modelos de planilhas, memoriais, planos de trabalhos, e também a minuta dos

convênios praticados, que serviu para estipular o convênio em Ipatinga.

Na questão da estípula do convênio, o papel da AD foi fundamental, sobretudo em

relação às divergências jurídicas, ajudando a definir o que pode ou não pode ser

feito, como no caso clássico da necessidade de licitação para a compra de materiais.

A assessoria técnica operou em estrito contato com a CHI:

"nós ficamos muito nisto, no departamento de habitação [CHI] [...],

nós trabalhamos muito junto, muito integrado, porque havia o

objetivo de fazer dar certo, de fazer o projeto piloto, então o pessoal de

Ipatinga realmente queria, conhecia São Paulo mas não sabia como

fazer e nós fomos com esta intenção mesmo de levar o "know-how""

(Rosas, 1999/1).

Não teve, portanto, um trabalho de análise que visasse amenizar o transplante do

modelo, num contexto com próprias características e peculiaridades, enquanto não

se viu a necessidade, confiantes talvez, de que o processo e as práticas resolvessem

qualquer situação. Entende-se por práticas, todas aquelas ações não definíveis

dentro de um esquema de produção, mas visantes a resolver os problemas do dia a

dia.

O objetivo da AD era a criação de um processo de gerenciamento e produção de

moradias populares, na qual os atores empenhados, direta e indiretamente,

objetivassem a própria ação na direção da realização de uma moradia com

características de qualidade;

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"mostra[ndo] como a incorporação da autogestão no mutirão, no

âmbito das políticas pública de habitação, pode garantir a produção

de moradias de excelente qualidade a um custo substancialmente

menor do que auferido em processos convencionais de edificação,

além de possibilitar a participação popular na gestão das política

sociais"48

Para acompanhar o primeiro mutirão a AD ofereceu: um arquiteto como técnico

residente que já havia acompanhado dois mutirões como o São Francisco e o Pires

do Rio, respectivamente de 808 e 32 unidades habitacionais, portanto um técnico

com experiência; dois mestres de obra, também vindos de São Paulo com

experiência de mutirão; e o monitoramento do coordenador da assessoria técnica,

que viria visitar a obra, a priori, uma vez por mês, mas também quando fosse

necessário.

Vale lembrar que quando a AD veio para Ipatinga, em São Paulo tinham por volta

de 90 convênios em andamento, acompanhados por 26 assessorias técnicas.

A metodologia usada nesta pesquisa foi muito influenciada pelas evoluções e

descobertas acontecidas no decorrer do processo de investigação.

Os instrumentos de pesquisa não foram alterados, baseando-se principalmente, em

fontes primárias, como entrevistas e fontes secundárias, como artigos de jornais,

revistas e panfletos. As entrevistas foram gravadas em fita magnética e

sucessivamente transcritas. Na estruturação das entrevistas usou-se o método da

“história oral”.

Alterações houveram no "roteiro metodológico", inicialmente previsto, que previa

três fases.

Fase 1: Constituição de um apanhado de fundo para a contextualização daFase 1: Constituição de um apanhado de fundo para a contextualização da

experiência, com a individualização de modelos de empreendimentos naexperiência, com a individualização de modelos de empreendimentos na

construção de moradia popular.construção de moradia popular.

48 Bonduki N., 1992, p. 16.

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Supunha-se a existência de dois modelos: o modelo da autogestão e o modelo da

gestão pública, isto é, construção de moradias públicas através de empreiteiras, em

processo gerido diretamente pela Prefeitura.

Nesta fase estavam previstas uma série de entrevistas, com técnicos e pessoal que

tinham participado das experiências e a coleta de material em revistas, jornais e

panfletos.

Fase 2: Escolha e análise de dois estudos de caso.Fase 2: Escolha e análise de dois estudos de caso.

Nesta fase era prevista uma avaliação das contribuições da primeira fase, gravadas

e transcritas, que serviriam para escolher os dois estudos de caso. Os critérios

usados seriam de semelhança, isto é, os dois deveriam ser, possivelmente, do

mesmo tamanho, com um resultado globalmente positivo.

Nesta fase eram previstas entrevistas envolvendo os vários agentes que

participaram do processo:

1. poder público: técnicos do departamento de habitação;

2. associação/empreiteira: presidente e/ou diretores envolvidos na obra;

3. assessoria técnica/corpo técnico: técnicos da área física e social;

4. mutirantes/trabalhadores: coordenadores, mutirantes e trabalhadores.

Era prevista, também, a coletânea de documentos como relatórios, atas de

reuniões, estudos de avaliação, mapas e projetos.

Fase 3: Comparação, análise e avaliações finais.Fase 3: Comparação, análise e avaliações finais.

Nesta fase, seriam transcritas as entrevistas e feita uma reconstrução dos dois casos

utilizando uma malha de avaliação comum, através da qual analisaria os estudos de

caso podendo, assim, surgir elementos de discussão.

O objetivo final era entender os dois processos, resgatando as características do

processo autogestionário e discutindo as suas possibilidades no quadro de uma

política habitacional.

i) A evolução da pesquisa e a adequação metodologica.i) A evolução da pesquisa e a adequação metodologica.

As primeiras investigações levaram a descoberta de um processo de produção de

moradias em autogestão, o qual não se caracterizava para ter, como supunham-se,

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uma série de empreendimentos com características similares e repetidas tais como

constituem um modelo. O processo caracterizava-se por ser uma evolução contínua

a partir de uma primeira experiência, que capitalizava de alguma forma as

experiência passadas.

Na tentativa de entender um pouco mais este processo, descobrimos como cada

uma das experiências teve um significado especifico para o desenvolvimento da

política habitacional em Ipatinga.

Decidimos, portanto, que era necessário resgatar o processo como um todo,

sabendo-se como o processo se tornava peculiar, introduzindo elementos de

novidade às outras experiências de produção habitacional por autogestão, neste

caso São Paulo.

Foi, por todas estas razões que avaliou-se como desnecessária, a hipótese inicial de

se fazer uma comparação com a "gestão pública".

Apresentamos em seguida, um quadro que resume as entrevistas produzidas na

primeira fase desta pesquisa:

- Margarete de Araújo Silva (tecnico)

- Maurício Campolina Libânio (tecnico)

- Jaqueline Silva Rosas (tecnico)

- Celina Marques (tecnico)

A segunda fase da pesquisa mudou, segundo o novo objetivo.

j) Estudos dos mutirões da Associação Habitacional de Ipatinga.j) Estudos dos mutirões da Associação Habitacional de Ipatinga.

Nesta fase, faria-se uma indagação especificamente objetivada à reconstrução fatual.

Os instrumentos de pesquisa foram fontes primárias como: atas das reuniões,

documentos e entrevistas e secundárias como artigos de jornais, panfletos, etc.

As fontes foram usadas de maneira transversal.

Como primeira etapa foi conduzida uma entrevista com um participante direto da

experiência, neste caso, privilegiou-se manter a visão global da obra entrevistando

um representante por cada agente ou entidade envolvida.

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Foi elaborado um roteiro adequado, que permitisse ao entrevistado reconstruir os

acontecimentos. O entrevistador tinha somente vagas noções da experiência, isto foi

decidido para possibilitar maior liberdade ao entrevistado, limitando o máximo

possível perguntas que, de alguma forma, tirassem o entrevistado do próprio

percurso mental de reconstrução histórica, deixando as questões mais pontuais para

um momento sucessivo.

O roteiro era, portanto, algo muito simples e finalizado a fornecer o suporte para

contextualizar a experiência.

Os entrevistados, por cada mutirão, foram no mínimo 3, deixando espaço a outras

entrevistas, caso fosse necessário. Foi decidido entrevistar um representante da PMI

que tivesse atuando na área da habitação e também contato com a experiência; um

representante da associação, no caso um diretor ou mesmo o presidente da época,

do conjunto sob exame; o técnico que acompanhou diretamente a obra e um

mutirante que tivesse participado das atividades.

Os entrevistados não foram escolhidos aleatoriamente, mas sim indicados,

principalmente no caso dos mutirantes, pelo técnico residente, baseando-se a

escolha na participação e no grau de entendimento da experiência. Os relatos foram

gravados em fita magnética e sucessivamente transcritos.

Como segunda etapa foi reconstruída a história fatual do mutirão, operando um

cruzamento de dados e informações, entre o relato do entrevistado e o relato do

livro de ata da associação e sucessivamente, com os documentos a nossa disposição,

os artigos de revistas e jornais e as informações contidas no material produzido pela

PMI.

O resultado do cruzamento das informações coletadas, era a formação de um

quadro da experiência mais articulado, mas ainda não totalmente fechado, existindo

lacunas, contraposições e dúvidas que seriam esclarecidas.

Por esta razão, foi desenvolvida uma terceira fase na qual o entrevistador, graças a

disponibilidade oferecida pelos entrevistados, voltava a discutir o mutirão, desta

vez propondo perguntas pontuais.

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Através destas três fases, foi possível ter uma significativa reconstrução histórico

fatual.

Apresentamos em seguida, um quadro que ordena os entrevistados em relação ao

mutirão.

MutirãoMutirão PMIPMI AHIAHI Assess. TécnicaAssess. Técnica MutirantesMutirantes

Nova Conquista Maurício C.

Libânio

Dora Maria da

Silveira

-- Dona Dalva

Novo Jardim - São

Francisco

Celina Marques Ûsania Aparecida

Gomes

Jaqueline Rosas Dona Maria

Primeiro de Maio Jaqueline Silva

Rosas

Ûsania Aparecida

Gomes

Margarete de

Araujo Silva

Dona Edir

Planalto II Jaqueline /

Adriana*

Dora Maria da

Silveira

Maisa* /

Margarete

--

(*) = Maisa Bragança Alves Fernandes, Adriana .

Fase 3: Análise e avaliações finais.Fase 3: Análise e avaliações finais.

Nesta fase, foi feita uma leitura dos estudos de casos utilizando uma visão global do

processo em sua evolução histórica, isto é, considerando os empreendimentos

interligados numa sucessão contínua de eventos.

Esta postura nos permitiu evidenciar as mudanças ocorridas, entendendo também,

o porque delas e seus efeitos no processo e nos atores ao longo do tempo.

Do outro lado, foi possível resgatar o papel dos atores, suas interações, suas

peculiaridades e seu papel na experiência.

Afinal, foi feita uma avaliação do processo dentro da prática das experiências de

autogestão destacando também as inovações introduzidas.

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5.3. O caso do mutirão Novo Jardim - São

Francisco.

a)a) A fase preparatória.A fase preparatória.

No primeiro encontro entre AHI, PMI e AD, que serviu para apresentar a assessoria

técnica, foram avaliados os recursos destinado às habitações. O coordenador da

assessoria técnica achou que os 170 milhões de CR$, colocados a disposição pela

PMI, era uma quantia satisfatória e razoável. Baseando-se nessas considerações, a

associação definiu, portanto, uma série de atividades, cujo objetivo era preparar as

famílias beneficiadas e as atividades que seriam desenvolvidas no mutirão.

Nesta mesma reunião discutiu-se também, a proposta de criar uma micro empresa,

que não foi concretizada, mas esta proposta parece sintomática na apropriação do

conceito de autogestão. A idéia era criar uma micro empresa que gerenciasse todas

as "linhas do movimento", todas as atividades da associação. Sua participação no

mutirão seria vinculada ao fornecimento da mão de obra especializada, dos

equipamentos e regularia, de alguma forma, a contratação dos técnicos, neste caso

da própria assessoria técnica.

Paralelamente às primeiras atividades da associação, a AD analisou o projeto de

implantação do conjunto, já existente e colocado a disposição pela prefeitura. O

projeto de implantação era fruto do trabalho dos técnicos da PMI. As observações

que foram feitas pela AD iam na direção de diminuir o tamanho dos lotes e das

moradias, com o objetivo de adensar o conjunto, permitindo assim, produzir mais

moradias e aumentar o número das famílias beneficiadas.

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O breve tempo a disposição limitou a possibilidade de discussão com os

beneficiários, impedindo as modificações desejadas. Se houveram, de fato, algumas

modificações foram decididas em uma instância restrita à diretoria da associação.

Assim como já aconteceu em São Paulo, nos mutirões que acompanhou, a AD

herdou um projeto pronto, ou quase, para ser realizado, não conseguindo discuti-lo

com os beneficiários. Como afirmou um dos técnicos da AD, "não teve aquela coisa

de discutir com a comunidade o que eles achavam do projeto, isto infelizmente nós

tivemos pouco na AD" (Adriana,1999/1).

A assessoria técnica elaborou e apresentou uma proposta que incluía projeto

arquitetônico e executivo das unidades habitacionais, planejamento da obra e o

levantamento dos custos.

A unidade habitacional, em alvenaria estrutural armada com blocos de concreto,

cobertura de telha cerâmica e engradamento em madeira, tinha uma área total de 38

m2, distribuídos em um só andar, com quarto, cozinha, banheiro e área de serviço.

O projeto foi elaborado para permitir uma futura ampliação, com a construção de

um segundo andar. A ampliação era possibilitada ao deixar um espaço por dentro

da sala a ser ocupado pela escada. Este espaço era localizado na parte final da sala,

confinando com a área de serviço. Esta localização era ditada, segundo o projetista,

principalmente, porque as casas eram geminadas, restringindo em muito o campo

das soluções alternativas.

A ampliação prevista constituía o objeto principal, no qual se investia as possíveis

economias, através de um gerenciamento cuidadoso dos recursos disponíveis.

As 204 unidades habitacionais previstas totalizavam uma área construída de 7.752

m2.

Se a tipologia habitacional era única, os dois conjuntos diferenciavam-se na

implantação urbanística.

No terreno do São Francisco, com uma área de 550.000 m2, as 117 casas previstas

eram geminadas em grupo de sete e dispostas ao longo de uma única via, em lotes

de tamanho variável, entre 90 e 140 m2. As características morfológicas limitaram

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muito a forma de ocupação desta área. As palavras do técnico residente exprimem

muito bem a situação: "a nossa primeira avaliação foi: não tem outro terreno?"

(Rosas,1999/2).

Outra situação delicada era a questão do abastecimento de água, pois a obra

encontrava-se em uma área onde o abastecimento era feito através de caminhões

pipa. A solução deste problema foi deixada nas mãos da PMI.

A rua que marca o conjunto, longitudinalmente, é um divisor de água, onde a única

forma de ocupação era, portanto, a criação de lotes laterais, assim como foi feito.

Único elemento que rompia a monotonia do conjunto, era a presença de um

pequeno campo de futebol e do centro comunitário.

Na área do Bom jardim, chamada pelos mutirantes de "Novo Jardim", de 400.000

m2, as 87 casas previstas eram, na maioria, geminadas e o conjunto era um pouco

mais articulado do ponto de vista urbanístico. Embora a maioria das casas fossem

dispostas ao longo da via principal, em lotes de tamanho variável entre 100 e 150

m2, o conjunto na sua parte inicial, articulava-se com a malha urbana pela presença

de algumas vielas perpendiculares, nas quais eram dispostos, paralelamente,

pequenos grupos de 5 a 7 casas.

Um elemento que aparece significativo para quem visita esta área pela primeira vez

é o campo de futebol, cuja criação é posterior ao conjunto. Esta área, que parece ser

parte integrante do conjunto foi, ao longo da obra, uma área residual, que não foi

englobada no projeto de implantação, pelo fato de seu custo extrapolar os recursos

que a PMI dispunha para a compra do terreno do conjunto.

A compra ficou portanto em função dos custos.

Nesta área que sobrou, o proprietário permitiu que o material retirado para fazer o

aterro do conjunto, fosse ali estocado durante o decorrer da obra. Uma vez

concluído o conjunto, o proprietário pediu à PMI que colocasse a disposição

algumas máquinas, para que o terreno fosse nivelado. A PMI cedeu as máquinas e o

proprietário, logo depois, começou a lotear e vender, de maneira ilegal, os lotes

desta área. Quando a PMI soube do ocorrido e para impedir que esta parte do

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bairro pudesse se degradar, desapropriou a área. O decreto de desapropriação tem

data pouco posterior à inauguração do conjunto.

Esta área permanece hoje, como potencialidade latente do ponto de vista

urbanístico e como espaço de uso coletivo, sendo que, ao seu lado, encontra-se

algumas estruturas comunitárias, como o canteiro de obra que virou centro

comunitário e igreja.

Após a compra do terreno do bairro Bom Jardim, foi assinado o convênio para

construção do conjunto, por parte do prefeito. A assinatura, na assembléia geral da

associação, participaram além de vários representantes políticos, uma delegação de

líderes do movimento de São Paulo, vinda especialmente para essa ocasião, no dia

27 de julho de 1991.

b)b) As primeiras atividades e a organização do mutirão.As primeiras atividades e a organização do mutirão.

Antes de começar as atividades do mutirão, foram definidas as pessoas (15),

que seriam contratadas para participarem da equipe administrativa. As famílias

conheceram o local através de uma visita, organizada pela associação.

O começo das atividades se deram no terreno do São Francisco, onde as

famílias trabalhariam nos finais de semana. A divisão em grupos foi adiada por um

tempo, até o término das atividades de terraplanagem do terreno do Novo Jardim.

Uma vez concluídas estas atividades, as famílias foram divididas em dois grupos.

As famílias que foram trabalhar no Novo Jardim eram aquelas que moravam perto

desta área. O grupo de famílias que moravam na área de risco, por vontade da PMI,

foram destinadas ao terreno do SF.

As atividades de terraplanagem do terreno do Novo Jardim precisaram de

uma execução cuidadosa. O terreno era um fundo de vale, com fortes

condicionantes físicas e morfológicas que limitavam a inclinação do aterro. Uma

parte dele, a montante, era já ocupada por um grupo de casas, por volta de 40, do

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primeiro mutirão. A execução de um aterro feito corretamente, era dessa forma,

muito difícil, "a cabeceira da rua Bom Jardim era baixa, já existiam casas nesse

mutirão Nova Conquista que eram recém construídas e limitavam o nosso ponto

alto da rua" (Marques,1999/1).

Esta situação gerou várias discussões e atritos entre assessoria técnica, AHI e

PMI. Cada agente tinha seu ponto de vista. A assessoria técnica era a única, entre os

três, que não queria o conjunto construído num terreno com condições tão

desfavoráveis; os outros dois tinham posições mais conciliadoras, sendo que a

associação não queria perder a ocasião de construir 80 casas e a PMI argumentou

que não tinham outras áreas para constuir o conjunto.

Assim como relata o técnico que acompanhou estas questões, "houveram forças

maiores por isso teve que fazer ali, [...] [e] acabou-se fazendo [mas] eu não faria de

novo, porque não dá para confiar" (Rosas,1999/1).

A secretaria de obras da PMI se responsabilizou pelo aterro, assegurando que seria

feito dentro das normas, mas não foi bem assim. Para executar a terraplanagem foi

feito um compromisso técnico, mantendo a declividade um pouco aquém do

necessário, aceitando a presença do lençol freático muito próximo da superfície.

Este compromisso, resultado das decisões do departamento de obra da prefeitura,

revelou-se, ao longo do tempo, prejudicial, como relata Araújo "para resolver teria

que tirar tudo, fazer o aterro corretamente, o escoamento da água, a declividade é

insuficiente pela extensão da rua" (Araujo,1999/1); mas para isso ser feito, teriam

que ser retiradas 40 famílias do Nova Conquista, algo impensável naquela época.

Hoje em dia, a área é sujeita a alagamentos especialmente em períodos de chuvas. A

situação é complicada ainda mais pelas contribuições de afluentes, que vieram por

parte das moradias do mutirão que foi construído sucessivamente acima.

Outra herança das atividades de terraplanagem e aterro foi a perda de lotes na hora

da implantação, "na hora que foi implantar, mudou tudo, perdeu um montes de

lotes, lugar aonde era praça virou lote" (Rosas,1999/1).

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Para dar continuidade a obra, no decorrer da semana, foram contratadas 36 pessoas

com carteira de trabalho. Esta equipe foi dividida nos dois terrenos. Foram

contratados também alguns mutirantes. A contratação, feita por parte da diretoria

da associação, privilegiou aquelas famílias que encontravam-se em situação de

necessidade, mas isto gerou várias críticas. De fato significou contratar uma parte

de trabalhadores cujo perfil profissional não encaixava-se com as exigências da

obra. Os mutirantes, através da crítica recebida, denunciaram a centralização das

decisões nas mãos de poucas pessoas pertencentes a diretoria. Esta crítica aparece

com freqüência, sobretudo, nas relações entre diretoria e as bases da associação, isto

é, os núcleos de bairro.

Se, no caso das últimas críticas precisariam de mais elementos para serem

comprovadas, as primeiras baseiam-se na idéia, correta, de que a frente de trabalho

contratada era chamada para desenvolver a tarefa de deslanchar as atividades no

decorrer da semana, especialmente nas tarefas onde os mutirantes, pelo seu baixo

perfil de profissionalização não estava em grau de desenvolver.

Nos casos dos mutirões é esta a característica comum, porque a frente de trabalho

do mutirão do final de semana é composta, normalmente, pela maioria de

mulheres. Em alguns casos o percentual chega a 80%. Os poucos homens que

participam não tem, geralmente, a capacitação para executar tarefas especializadas.

Sua formação, é o resultado de um conhecimento que, somente em raros casos, vai

além do empirismo.

Para confirmar esta afirmação, vale relatar o resultado de uma recente pesquisa

feita em Ipatinga nas áreas ilegais, traçando o perfil profissional dos moradores:

"montamos um banco de dados mostrando todas as favelas de

Ipatinga, que são 23, o perfil da mão de obra dá vontade de chorar,

não se acha um pedreiro, o que tem lá são serventes, domésticas,

motoristas, pessoas que fazem "bico". Quem se fala que é pedreiro não

é pedreiro, é "meia colher", como falamos, é aquele pedreiro mal

qualificado que esta lá na favela porque não conseguiu. Realmente o

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pedreiro ganha bem e ele consegue sair da favela morando em um

bairro popular e fazer uma casa decente e bonita. Na favela não, na

favela [...] a qualificação da mão de obra é zero"`(Rosas,1999/1).

É necessário evidenciar como, neste primeiro mutirão, não eram previstos

cursos de formação e treinamento de mão de obra. Foi dado continuidade, portanto,

ao aprendizado baseado na prática. Mesmo assim, mostrando como o mutirão seria

um lugar propício para o aprendizado profissional, várias pessoas que,

inicialmente, trabalharam como servente conseguiram se formar pedreiros.

Os trabalhos eram regulados através de um "regulamento de obra", composto por

uma série de normas, cujo objetivo era disciplinar e favorecer o desenvolvimento da

obra, quer nos dias de mutirão quer no decorrer da semana.

O "regulamento de obra" não era um instrumento imposto pela associação, mas

decidido por parte das famílias que participavam do mutirão. Fruto de discussões,

era votado pelas famílias em assembléia geral. Com o regulamento de obra, foi

decidido que o trabalho seria dividido segundo tarefas e que estas últimas seriam

executadas por parte de grupos de mutirantes, liderados por coordenadores.

A célula base do mutirão é este grupo que chama-se equipe. Composta em média

por 15 a 20 pessoas, era obrigada a executar 16 horas de trabalho nos finais de

semanas. Trabalho extra era previsto, também, nos feriados com exclusão da Sexta-

feira Santa, Natal e primeiro de janeiro. As equipes, no começo da obra, eram

formadas pela associação em colaboração com a assessoria técnica, mas não eram

necessariamente fixas. Segundo as necessidades e contingências da obra, poderia

ocorrer troca de pessoal, entre as quais, o próprio coordenador ou até mesmo a

equipe inteira, quer por questões de trabalho quer por questões disciplinares. As

pessoas que compunham a equipe, tinham a possibilidade de descansar do

trabalho, sendo substituídas por parentes ou amigos que se dispusessem a doar um

dia de trabalho, sem ser remunerado.

As tarefas das equipes eram reguladas por um cronograma físico e repassadas por

parte da assessoria técnica.

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O papel do coordenador era importante e estratégico, dependendo dele muito das

performances da equipe. Geralmente ele é um líder carismático, escolhido e eleito

pelos próprios componentes da equipe, embora não são raros os casos, onde os

coordenadores são escolhidos pela associação e assessoria técnica. Seu cargo não é

definitivo, podendo ser substituído em qualquer momento, tanto por parte da

própria equipe quanto por parte da coordenação de obra. Sua função era

administrar a equipe através de uma atividade de controle e apontadoria e

responsabilizar-se por ela, principalmente frente à coordenação de obra, sendo, esta

última, a instância coletiva de governo do mutirão.

A coordenação reunia coordenadores, assessoria técnica, parte da equipe

administrativa (mestre de obra, almoxarife, comprador, apontador) e diretores da

associação. Uma vez por semana, normalmente domingo a tarde, após o mutirão, a

coordenação reunia-se para fazer uma avaliação sobre o andamento da obra. Era o

momento oportuno para tomar decisões e discutir questões sobre o mutirão e as

tarefas, como também colocar dúvidas e esclarecê-las.

No mutirão existiam duas instâncias comunitárias: as equipes e a coordenação de

obra. Outra instância, a assembléia geral, era mais abrangente, na qual se discutia

assuntos relacionados ao mutirão.

A assembléia dos diretores chamada "executiva", era uma instância restrita aos

diretores, onde raramente a assessoria técnica participava. É nesta última que são

tomadas, normalmente, as decisões mais delicadas e estratégicas. Decisões que

precisam de uma posição compacta e firme dos vértices da associação.

Ao longo da obra foram criadas 19 equipes49 e em alguns casos, ocorreram

substituições de alguns coordenadores.

Nos dias de mutirão as famílias, em sua maior parte chefiadas por mulheres,

recebiam o apoio de uma creche criada no canteiro de obra. As mulheres podiam,

49 As tarefas divididas entre as equipes foram: nivelamento, locação, marcação, transporte, ferragem, concreto,

hidráulica, primeira fiada (marcação da alvenaria), alvenaria, muros de arrimo, limpeza, valas, creche, elétrica,

cozinha, caixa de inspeção, usina, acabamento, cobertura.

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assim, trazer os próprios filhos sem precisar deixá-los em casa de outras pessoas.

Além da creche, tinha uma cozinha que servia o almoço, um refeitório e banheiros

masculinos e femininos.

As famílias beneficiadas não eram envolvidas somente nas atividades do mutirão,

mas participavam também, de atividades que a associação organizava junto com os

outros associados; "iam para Brasília buscar recursos, criar linhas específicas de

trabalho de habitação que atendesse, de fato, a melhor qualidade da moradia para a

população de baixa renda, levavam assinaturas como projeto de fundo nacional de

moradia popular, estes eram os associados" (Marques,1999/1).

Todas estas atividades eram reguladas pela associação. Achamos que foi pela

capacidade de mobilizar as pessoas, que a associação não se preocupou muito em

contratar técnicos sociais (assistentes sociais, psicólogos, sociólogos) para trabalhar

no mutirão, por questões mais de caráter social. Esta presunção revelou-se

prejudicial, porque de fato, no meio dos vários acontecimentos, a associação deixou

de lado esta questão "a associação tocava basicamente seus trabalhos [...], o seu dia a

dia, com aquela turma ai, sem técnicos específicos da área social" (Marques,1999/1).

Segundo Rosas, esta postura é devido, também, ao olhar particular que a associação

tinha com os próprios filiados, vistos mais como uma demanda qualificada e

preparada para este tipo de evento que a associação propunha. Esta idéia levou a

associação considerar como secundário um trabalho voltado ao aspecto social e à

convivência entre os mutirantes.

O papel do técnico social, que não foi contratado pela associação, foi suprido em

parte pela postura dos técnicos da assessoria técnica que,

"tinham uma vontade de fazer crescer a consciência, o conhecimento

das pessoas, expor projetos, expor planilhas, por dificuldades, por

conquistas, discutir a forma de trabalho, definir junto regulamento de

mutirão, assembléias, rotinas, discutir a obra, toda a organização da

obra, as etapas, os arquitetos tinham esta vontade, eram pessoas que

vibravam muito com isto, mas ainda não haviam como há hoje nos

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mutirões de Ipatinga, técnicos sociais especialmente voltados para

aquele trabalho" (Marques,1999/1).

Este trabalho não foi suficiente para evitar vários problemas de convivência que

aconteceram. Segundo o técnico, que acompanhou a obra, a associação não achava

este trabalho importante, "achava importante a casa, a economia, o valor de m2,

achava importante os resultados visíveis" (Rosas,1999/1); na obra tinham 3 pessoas

que constituíram uma equipe e desenvolveram várias atividades, mas não

receberam apoio significativo por parte da AHI, "eles pegavam os meninos e

começavam a fazer uma série de atividades: coral, levavam os meninos para ver um

filme e depois faziam um debate sobre o filme, várias coisas" (Rosas,1999/1); a

associação contribuía com um salário mínimo, "a falta de incentivo foi total"

(Rosas,1999/1).

Nem a presença de um técnico social da PMI, que acompanhou o mutirão, com o

objetivo de cuidar da integração entre mutirantes da associação e o pessoal que

provia da área de risco do centro, foi significativo, demonstrando uma postura da

PMI muito parecida com aquela da associação. A assistente social trabalhou sem

que a PMI colocasse uma estrutura a sua disposição, como se sua presença fosse a

solução. De fato, foi uma ação pontual de um profissional que trabalhava

precariamente, sem seguir um programa especifico para esta demanda.

Uma demanda muito particular que deu muitos problemas,

"eram pessoas bem pobres, bem excluídos mesmo. Então nossas

assistentes sociais acompanhavam de perto, porque não é nem uma

experiência mais simples possível. É mais fácil uma associação

habitacional administrar um mutirão com seus associados que já

sabem o que querem, do que absorver um grupo do qual a única

alternativa para deixar de morar debaixo da ponte e ter uma moradia

digna, era participar do mutirão,até que funcionou bem"

(Marques,1999/1).

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As dificuldades maiores foram no terreno do São Francisco, onde estas pessoas iam

ao mutirão só para tomar cafezinho e depois iam embora. Por causa desta postura e

das faltas houveram várias expulsões.

c)c) A implementação das atividades.A implementação das atividades.

No começo da obra dois fatos contribuíram para dar um impulso à proposta da

autogestão em Ipatinga.

O primeiro foi a invasão do morro da Esperança, operada por um grupo de

famílias sem casa e apoiadas por um vereador da oposição.

Frente a este acontecimento a AHI manteve uma postura dúplice: de um lado

tentou não se comprometer, criticando e censurando este ato, com a ameaça de

expulsar as famílias filiadas à associação que participaram do evento; do outro

adoperou-se para cadastrar as famílias invasoras, filiando-as á AHI.

O segundo foi a notícia de que a PMI estava disposta a viabilizar um segundo

projeto de mutirão habitacional em autogestão, financiando a construção de 380

unidades habitacionais, no qual já existia um terreno a disposição, no bairro Bom

Jardim, perto da área onde estava em andamento o mutirão Novo Jardim - São

Francisco. Como única garantia, a AHI tinha uma conversa e uma promessa do

prefeito, mas esta foi suficiente para que a associação começasse a selecionar as

famílias, através de uma mobilização geral das suas bases, responsabilizando os

núcleos de bairro. Para chegar às 380 famílias foi selecionada uma quota de 18% dos

afiliados de cada núcleo.

Não sabemos o efetivo grau de casualidade deste segundo acontecimento. Sua

simultaneidade não aparece desvinculada do primeiro. De fato, pode ser

interpretado com o objetivo de tirar a atenção do primeiro, devido ao seu potencial

de periculosidade, introduzindo uma prática que se rendaria instável um contexto

até então bem controlado, por parte do movimento e da PMI.

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O que aconteceu foi que o anúncio do novo empreendimento conseguiu coagular

toda a atenção dos associados, passando a invasão para um plano secundário.

Entre as primeiras atividades, foi decidido construir também uma casa modelo. Esta

era uma prática comum nos mutirões autogeridos de São Paulo, adotada como

praxe, porque constitui um momento importante por duas razões:

1. propiciando a solução, através da prática construtiva, de eventuais

problemas oriundos dos projetos;

2. permitindo, aos futuros moradores, ver, experimentar e entender a casa

num modelo em escala natural;

como relata o técnico que acompanhou o mutirão: "não adianta fazer

maquetes [...] porque eles [os mutirantes] tem que sentir tudo: sentir a temperatura,

sentir o material, a porosidade do material, umidade, não tem jeito, tem que ser a

casa mesmo" (Rosas,1999/1).

A escala natural do modelo cumpre um papel importante, pois permite evidenciar

os mínimos detalhes. São poucas as pessoas, entre os beneficiários que sabem ler

um projeto arquitetônico. Resulta em tarefa muito difícil, por parte da assessoria

técnica, resolver esta questão, com a probabilidade, quase certa, de não evidenciar

todos os detalhes. É claro, também, que cada pessoa tem uma percepção diferente

do espaço e a casa modelo é, até hoje, pelos mutirões, a única possibilidade para

testar o projetos pelos mutirantes, todos os outros meios são parciais.

A construção da casa modelo revelou-se uma prática importante, na qual os

moradores podem dar as próprias opiniões ou sugerir modificações, "e daí as

pessoas fazem as suas críticas, vamos para a assembléia discutir o projeto"

(Rosas,1999/1). Não são raras as vezes que os técnicos adotam as soluções

propostas pelos mutirantes.

No caso do Novo Jardim - São Francisco a casa modelo foi construída com a

ampliação prevista pelo projeto. O elemento que chamou mais atenção foi a

localização da escada. As críticas que surgiram eram baseadas na perda do espaço,

quase 4m2, da sala. A sugestão dos mutirantes era de colocar a escada no lado

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externo da casa, mas a sugestão não foi porém acatada, nem por parte da assessoria

técnica nem por parte da associação, sendo de fato ignorada e não mencionada, em

instante algum, nas atas das reuniões da associação.

Mas assim como acontece nestas ocasiões, as escadas externas foram executadas

pelas famílias, de maneira autônoma, logo que foram morar nas casas. Aconteceu,

portanto, algo que poderia ter sido assessorado, diligentemente, tanto do ponto de

vista tecnológico quanto arquitetônico, mas, pela falta de preparo da associação na

questão do que significava o pós-morar, foi deixado à mercê da improvisação dos

moradores.

Nos primeiros meses de atividade, alguns problemas de disciplina dentro das

equipes foram resolvidos por parte da coordenação de obra, trocando os

responsáveis e alguns dos coordenadores. Outros problemas, mais sérios, como

roubos no canteiro de obra, foram solucionados através da contratação de alguns

vigias, mas mesmo assim, como no caso do São Francisco, a associação não

conseguiu resolvê-los, devido a própria morfologia da área, assim "houveram

muitos roubos em casas nas quais foram feitas as instalações elétricas, toda a fiação

arrancada. Peças de louças de banheiro, janelas, muitas coisas foram roubadas no

morro São Francisco, porque a obra era toda na rua, aberta" (Rosas,1999), entre os

vários episódios teve o caso de um vizinho que pintou a própria casa com a tinta

roubada do conjunto.

A associação tinha por obrigação entregar, mensalmente, uma prestação de contas

na CHI, um relatório com os gastos mensais. Por esta razão foi contratado um

contador. A obrigação da CHI era a análise das prestações de contas e foi na análise

das primeiras que viu-se obrigada a convocar, com urgência, uma reunião com a

diretoria da associação. Nesta reunião, na qual participou a coordenadora da CHI,

foram denunciados os altos gastos, e como eles estavam extrapolando as previsões

orçamentárias. Vários itens estavam já perto dos seus limites orçamentários, como:

canteiro de obra, custos fixos (telefone, aluguel) e materiais.

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Não obstante, a certeza de que o agravamento desta situação teria colocado a

associação em sérias dificuldades, a própria associação demorou para tomar uma

decisão. Os gastos continuaram de tal forma que a coordenação da obra, em comum

acordo com a assessoria técnica, numa atitude até então inédita, decidiu demitir,

sem consultar previamente a diretoria, uma parte do pessoal administrativo. A

direitoria, uma vez informada, teve que acatar a decisão, apoiando-a.

Esta foi uma tentativa extrema de interromper uma má gestão que via sendo

implementada desde o começo da obra. Um mês após o acontecimento, a associação

decidiu criar uma equipe financeira.

Estas questões absorveram a atenção da diretoria da associação principalmente no

mutirão, deixando de lado outras atividades programadas, como por exemplo,

aquelas com as famílias que foram selecionadas para o segundo projeto. Veio à

tona, uma certa insatisfação entre os associados não mutirantes e a associação, que

recomeçou os encontros com as famílias. A volta aos encontros não foi, porém,

automática. A associação teve várias dificuldades em convocar as famílias, de tal

forma, que viu-se obrigada a excluir as famílias que não compareciam aos encontros

sem motivo.

A estas dificuldades somava-se, também, uma conjuntura econômica nacional de

crise, com elevadas taxas de inflação. Para resguardar-se desta situação todo o

dinheiro estava no banco, corrigido automaticamente. No final de janeiro, as casas

estavam com a obra avançada, a alvenaria quase toda pronta.

Entretanto, duas questões importantes apareciam ao horizonte:

1. o que fazer com a ampliação da casa que, embora de maneira informal, a

associação havia prometido aos mutirantes, pela importância dada às

possíveis economias que este tipo de gestão poderia gerar?;

2. o que fazer com as esquadrias? Era este o último item do cronograma, na

qual poderiam se operar algumas economias, tentando objetivar a

ampliação das casas.

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As respostas eram fundamentais, sendo que em jogo estava boa parte da

credibilidade da associação e da experiência autogestionária em Ipatinga, na sua

totalidade. As discussões, por seu aspecto delicado, foram tratadas externamente ao

mutirão, entre diretoria e assessoria técnica, achando-se que o lugar mais

apropriado era a reunião da executiva. Nesta ocasião, a assessoria técnica propôs

comprar um tipo de esquadria metálica presente no mercado (Sasazaki), e já usada

em São Paulo. Esta proposta baseava-se em questões qualitativas, econômicas e

práticas. Com a intenção de deixar de lado a ampliação, a assessoria técnica visava

antecipar o final da obra e entrega das casas.

A idéia de abandonar a ampliação não foi aceita por parte da diretoria, que barrou a

proposta de comprar este tipo de esquadria. A justificativa baseou-se no fato de que

seria necessário, para comprar este tipo de esquadrias, apoiar-se em um

representante de Belo Horizonte, não tendo Ipatinga representantes por este tipo de

janelas. Concluindo, textualmente, que "seria melhor comprar aqui [em Ipatinga] e

não fora"50; foi abraçada a idéia de encomendar a fabricação das esquadrias em uma

serralheria local.

Decisões deste tipo, nas quais prevalece o perecer da associação sobre o parecer

técnico, não são raros, demonstrando que a AHI, no decorrer da sua história, pouco

incline a aceitar os pareceres técnicos, em especial, quando eram sobre questões

estratégicas.

Achamos, esta postura, fruto da incompatibilidade entre o perfil da associação em

particular, caracterizado para uma centralização das decisões, não obstante, a

existência e o exercício de algumas práticas democráticas, e o perfil do técnico da

assessoria técnica que, embora participe e se envolva na causa da associação, foge

ao controle do que ela opera, normalmente, sobre os seus filiados. Este perfil

garante ao técnico uma certa autonomia, que origina-se do próprio conhecimento,

sendo ele o único a possuí-lo e dominá-lo. Pela razão de ser um recurso raro e não

compartilhável, senão em raras e determinadas ocasiões, como palestras ou cursos,

50 Faz-se referencia ao livro de ata da associação.

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possibilitava ao técnico uma autonomia de ação, decisão e pensamento que não tem

igual na associação, a não ser no âmbito da liderança, sendo este um outro elemento

implicante.

No caso do Novo Jardim - São Francisco, a AHI conseguiu limitar a

autonomia de ação e decisão, amarrando-as às decisões e instâncias que tinham

caracteres democráticos, mas que eram dominadas ,de uma forma mais ou menos

explícita, pelos líderes (diretores).

Tem que se acrescentar, também, que o técnico que acompanhou o mutirão recebeu

um apoio cada vez menor, por parte da AD. O coordenador da AD, cujo

compromisso era participar das atividades, no mínimo uma vez por mês, após

algumas visitas, não apareceu mais na obra, deixando assim, seu técnico sem

nenhum apoio, nas mãos da AHI.

O constrangimento, quer de um lado quer do outro, sempre latente e velado, vinha

a tona nestas poucas mas, cruciais, ocasiões.

Por estas razões, achamos que a associação trabalhou no sentido de limitar as

influências da AD, o que não descartaria a possibilidade de falsar o objetivo, que

era o de introduzir a prática da autogestão. O que de fato a associação permitiu á

AD, neste primeiro mutirão, foi a introdução de algumas práticas de administração

e gerenciamento do processo, mas, nada que de fato estimulasse e favorecesse a

apropriação da autogestão como prática e conceito, sendo-lhe este quase que

sistematicamente impedido.

Esta postura evoluiu de tal forma, que a diretoria decidia autonomamente o uso dos

recursos cada dia mais escassos, o dinheiro do convênio para a construção das casas

vinha sendo usado na compra de padrões de luz para o mutirão Nova Conquista.

Esta prática, senão caracteriza-se como totalmente alheia a este processo, pois em

várias ocasiões, os técnicos envolvidos neste processo admitiram como a associação

operava, no sentido de limitar a autonomia da assessoria técnica, certamente

caracteriza-se como perigosa partindo-se do princípio que as associação não tem,

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normalmente, experiência de gerenciamento de obras deste porte, levando a uma

possível falência do empreendimento.

Parte das compras, também, vinham sendo decididas pelo presidente, sem

consultar a diretoria, consciente de que cada decisão estaria legitimada pelo apoio

garantido da diretoria, como de fato sempre aconteceu.

Achamos que, parte desta postura, possa ser o resultado de duas situações:

1. a conivência entre PMI e AHI, confirmada pelo técnico que acompanhou a

obra; às vezes era a mesma CHI nas vestes da diretora, sugerindo o uso dos

recursos para questões que não tinham nada a ver com o convênio. Esta

prática, é um elemento a mais, que serve para esclarecer porque foi

necessário pedir um aditamento para esta obra.

2. a falta de técnicos da PMI para fiscalizar a obra; a CHI principalmente pela

escassez de técnicos a disposição, acompanhou de longe as atividades, só

com visitas que não eram rotineiras e que, portanto, não possibilitavam uma

visão que não fosse um mero levantamento do que era executado. Por esta

razão, a liberação dos recursos não era vinculada a um cronograma, mas às

prestações de conta que eram os relatórios de despesas entregues

mensalmente.

As relações entre AHI e CHI eram baseadas, principalmente, na confiança que os

agentes tinham mutuamente,

"[...] e como não tinha nenhuma experiência anterior, não tinha

também preconceitos, regras de fiscalização, então só os primeiros

mutirões aconteceram em perfeita harmonia com a prefeitura; a

prefeitura tinha dinheiro, não tinha, era tudo negociado, era realmente

uma parceria em cima de uma ausência de burocracia [...] a liberação

de dinheiro era feita sempre que possível [...] era um ambiente..

também uma cidade menor aonde as pessoas se conhecem mais, as

relações de confiança eram mais objetivas" (Araujo,1999/1).

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Tratando-se de uma experiência piloto, segundo Araújo, foi importante a

responsabilidade, a participação, o envolvimento e a militância, por parte de todos.

Embora as questões cruciais estivessem restritas ao âmbito da diretoria e da

assessoria, os seus efeitos apareceram nos níveis mais periféricos da associação,

entre os próprios filiados e nos conselhos dos núcleos. As críticas denunciavam um

distanciamento, cada vez maior, entre diretoria (momento decisório) e as bases da

associação (momento executivo).

A questão das esquadrias foi resolvida, não comprando-as em Belo Horizonte, mas

produzindo-as em uma serralheira de propriedade de um dos diretores que

garantiu um menor preço. Todo o processo de produção, a partir da compra do

material, seria sob a responsabilidade do diretor, que alegava ter experiência.

Para conseguir recursos, a associação tentou convencer a coordenadora da CHI

informando que a CHI não tinha recursos para dispor, sendo que os já existentes,

estavam comprometidos em outros programas.

Não querendo se conformar com os acontecimentos que apontavam em direção da

impossibilidade de realizar a ampliação, a associação decidiu colocar uma laje de

piso no primeiro andar, para facilitar a ampliação. A proposta inicial visava a

fabricação da laje, mas os altos custos dos equipamentos necessários à sua

fabricação levaram a descartar esta hipótese, mas por fim, a laje foi totalmente

comprada.

Com a aproximação das eleições municipais, uma parte dos diretores, entre os quais

o presidente da associação, apoiados pelo núcleo do PT, decidiram participar da

competição eleitoral como candidatos a vereador. As candidaturas foram aceitas,

com algumas críticas, mas sempre com caráter minoritário. Foi decidido que os

diretores e o presidente iriam entregar os próprios cargos, assim que desse início a

campanha eleitoral.

As candidaturas tiveram o efeito de reforçar as ligações já existentes com a

administração, especialmente com o prefeito, que começou a reaparecer em

algumas reuniões da associação, após um longo período de ausência, mostrando-se

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disponível em impulsionar as práticas do segundo projeto, chegando ao ponto de

oferecer o terreno para a associação sem passar por aprovação na câmara

municipal.

Não obstante este clima favorável, o aditamento ao convênio não foi liberado. Sua

liberação era fundamental para que o conjunto fosse acabado com todos os itens

previstos pelo convênio. Prospetava-se assim, a possibilidade que o conjunto fosse

entregue sem a execução de alguns itens previstos no convênio, como o piso das

casas e a pintura interna.

A defasagem entre a obra e o cronograma era grande. As previsões eram que o

dinheiro iria acabar final de agosto, 6 meses antes do previsto pelo convênio. Por

estas razões a associação tentou fazer ajustes, com algumas medidas

extraordinárias:

1. congelando o salário da equipe administrativa da obra, se

comprometendo a continuar a pagar, até o término, o salário da mão de

obra contratada;

2. reformulando algumas práticas, como o controle do recebimento dos

materiais e apontadoria, cuja folha vinha sendo pontualmente

questionada, visando melhorar a troca de informações entre os

funcionários como: almoxarife comprador e técnico residente;

3. restringindo a saída das informações quer para os mutirantes quer para

outros afiliados, a fim de evitar fofocas que acabariam sendo prejudiciais

à obra.

Se as medidas de caráter administrativo pretendem ser o ponto final de uma série

de erros perpetrados sistematicamente na obra; se as medidas políticas demonstra

como a diretoria tentou, de maneira corporativa, se proteger e também proteger a

obra de possíveis ataques externos; as medidas organizacionais revelam como as

práticas implementadas, não foram estruturadas adequadamente, assim como uma

obra geralmente pressupõe, mostrando como o comprador gozava de uma

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autonomia além do permitido e que, de fato, tornou-se prejudicial ao bom

funcionamento da obra.

Achamos esta uma falha mais grave ainda em uma conjuntura sócio - econômica,

como aquela da época que obrigava ter, para um empreendimento como este, uma

forte ligação entre técnico e comprador, indispensável para adequar a obra às

repentinas mudanças econômicas.

Achamos porém, que esta situação pode ser também o resultado da postura

refratária da associação em relação ao técnico residente, que tinha experiência

suficiente para determinar o bom funcionamento da obra, fortalecida pela

experiência da AD, criada em vários anos de acompanhamento de mutirões.

Afinal após muitas pressões, o prefeito assinou o aditivo do qual tanto precisava a

obra. Este serviu para criar um clima mais tranqüilo, de tal forma, que a diretoria

contratou, usando parte destes recursos, um topógrafo para fazer o levantamento

planialtimétrico do terreno destinado ao segundo mutirão.

No começo de junho, os diretores51 que candidataram-se, saíram formalmente dos

cargos, continuando porém a participar da vida associativa.

O presidente saiu no dia 2 de junho, passando o cargo para o seu vice, com o qual

tinha estreitas relações. Este permitiu-lhe manter, de fato, o controle da associação.

No período seguinte à liberação do aditamento, a associação concentrou a atenção

sobre a programação de algumas atividades sociais para o mutirão. A proposta

principal, levada por dois diretores, era a criação de uma rádio pirata. Para

elaborar e orçar o projeto, foram convidadas à Ipatinga algumas das pessoas que

tinham criado uma rádio pirata, em um mutirão em São Paulo. Por causa dos altos

custos o projeto foi descartado, provocando a demissão dos diretores.

A associação, acolhendo as demissões, voltou a atenção para um projeto de

dimensões menores, mais adequado às disponibilidades financeiras e direcionado

mais diretamente ao mutirão, envolvendo as crianças.

51 Os diretores que participaram da campanha eleitoral foram: José Geraldo, Nilo Martins, Saulo Manoel.

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O projeto foi financiado com parte dos recursos destinados a pagar o salário dos

estagiários, presentes na obra.

Logo a obra voltou a chamar atenção, principalmente pelas dificuldades que a

serralheira estava encontrando. As esquadrias estavam sendo confeccionadas muito

lentamente e concretizando a possibilidade de um atraso no cumprimento da tarefa.

Por causa destas preocupações, a associação convocou o responsável para que

fornecesse alguns esclarecimentos. As justificativas fornecidas não satisfizeram os

diretores, sendo mais críticas direcionadas ás açôes da associação, fortalecido pelo

fato de ser o marido de uma dos diretores.

Segundo ele, a responsabilidade era da associação que não tinha avaliado, a fundo,

a questão na hora de encomendar este trabalho, para ter apresentando um

orçamento irreal, abaixo dos custos de mercado, o qual não considerava os reajustes

econômicos que vinham sendo feitos e que foi aceito como companheirismo e pelas

ligações que ele tinha com o movimento.

A associação, não obstante, fosse alarmada demorou para tomar as providências

necessárias. Os gastos aumentaram espantosamente e a situação foi se agravando

de tal forma, que o técnico residente propôs à diretoria repassar a questão para

análise e decisão da assembléia. Esta proposta, que a primeira vista parece sensata,

encontrou a diretoria compacta e contrária, decidindo manter as informações

reservadas, tentando, mais uma vez proteger-se, assumindo, unida, as

responsabilidades do que iria acontecer, decidindo por esta razão, adiar a eleição

da nova diretoria por três meses. Não demorou muito, porém, para que outras más

notícias chegassem ao ouvido da diretoria, desta vez por parte dos mutirantes, que

lamentavam a baixa qualidade do material e do produto final, segundo eles as

janelas fabricadas eram empenadas e enferrujadas.

Para que a situação não saísse do controle, pois estas notícias eram de domínio

público, a associação tentou pressionar o serralheiro ameaçando não cumprir as

metas do contrato, isto é, não pagar.

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125

Mas a questão não era resolvível tão simplesmente, porque a diretoria sabia que as

críticas feitas pelo serralheiro tinham um fundo de verdade. A associação era,

portanto, consciente por ter uma parte de responsabilidade nestes acontecimentos,

não tendo acompanhado o processo, que foi deixado nas mãos de uma só pessoa.

Para sair do impasse, a associação dividiu, de fato, as responsabilidades, assumindo

parte das despesas e amortizando o prejuízo do serralheiro aceitando, em

contrapartida, uma betoneira de sua propriedade.

As atividades da serralheira, começadas em janeiro de 1992, acabaram só nove

meses depois com a última entrega feita no final de setembro. O dinheiro do

convênio acabou oficialmente, como previsto, no final de agosto, com o conjunto

ainda por terminar.

Por causa destes problema a PMI, antes das eleições, teve para uma posição mais

cautelosa, quase de hostilidade, chegando ao ponto de pedir cópias das atas de

reuniões dos núcleos e da coordenação de obra, para analisá-las. Esta mudança de

postura pareceu evidente para associação, quando chegou a notícia, trazida pela

coordenadora da CHI, de que o prefeito queria destinar 60 das 202 vagas do

segundo projeto para funcionários da PMI. Este fato é também revelador de como a

AHI não teve relações políticas significativas com o prefeito desta época e que, por

sua vez, ficou, além de breves períodos, sempre entre um apoio morno e uma fria

hostilidade.

As relações da associação eram mais com o vice prefeito, que participou de várias

reuniões com a AHI, mais do que o seu superior. Neste período, à véspera das

eleições e com as "ameaças" de destinar parte das moradias do segundo projeto para

funcionários da PMI, o vice prefeito, em uma reunião com a AHI, sugeriu duas

estratégias para tentar pressionar o prefeito a mudar de idéia. A primeira, a nosso

ver legítima, consistia em uma pressão exercitada através das lideranças nacionais

do movimento. A segunda, menos legítima, mas talvez mais eficaz, consistia em

assumir o comando das famílias que invadiram a área no bairro Esperança

ameaçando, assim, novas invasões, até o prefeito recuar em sua decisão. Esta ultima

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estratégia teria significado uma utilização instrumental na invasão do Esperança,

que sabemos, não foi feita.

As ameaças do prefeito, porém, não chegaram a se concretizar.

O ganho das eleições municipais por parte do vice prefeito permitiu criar as bases

para dar continuidade à autogestão a mais uma administração. Nas eleições, a

associação conseguiu eleger, com uma média de 650 votos cada um, dois dos seus

três candidatos a vereadores pelo PT, entre eles o próprio ex-presidente. Logo que

assumiram o cargo, eles tiveram que se adoperar, por dentro da administração, para

limitar os efeitos produzidos pelas notícias e problemas pelos quais a associação

tinha passado, que não eram de domínio público, mas que chegaram a sê-lo,

produzindo ferozes críticas dentro da câmara municipal, por alguns vereadores da

oposição.

d )d ) A conclusão do mutirão, dificuldades e avaliações.A conclusão do mutirão, dificuldades e avaliações.

A inauguração do conjunto, inicialmente fixada para o final de setembro, foi adiada

por alguns meses. As atividades continuaram até o final do ano. Neste período, 5

das 200 famílias, foram morar nas casas já prontas, para desestimular possíveis

invasões.

O conjunto foi inaugurado no dia 19 de dezembro de 1992, véspera da saída do

prefeito. Nesta ocasião o prefeito assinou o convênio do novo projeto. A

inauguração foi portanto, mais uma questão política, pois o conjunto não estava

totalmente concluído, faltavam as infra-estruturas como água e luz ,além de algum

acabamento interno, como pintura das paredes e dos pisos.

As famílias entraram nas próprias casas, somente após a apresentação da certidão

negativa de posse de bens imóveis. Esta condição não é uma pratica comum nos

mutirões, porque supõe-se que as famílias cadastradas que participam, não

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possuam casas. Mas, desta vez foi necessário, porque a associação através de algum

informante, descobriu que alguns dos mutirantes já possuía algum tipo de imóvel.

Após uma atenta análise, as famílias proprietárias foram excluídas, entre elas tinha,

também, a família do coordenador de um núcleo de bairro.

Para fazer uma avaliação sobre as atividades do ano e do mutirão, a diretoria, junto

com a coordenação de obra e a assessoria técnica, reuniram-se no começo de

dezembro.

O caderno de ata da associação revela como as primeiras considerações foram

feitas pela coordenação de obra, que avaliou as atividades como positivas, no geral,

evidenciando porém, algumas falhas como a questão da descoberta das famílias que

já possuíam um imóvel, solicitando assim um maior controle na época do

cadastramento. Mais interessantes são as considerações feitas pela assessoria

técnica, que evidenciou como não foi feito nenhum avanço substancial na

apropriação do conceito de autogestão, confirmando assim as nossas suposições de

refratariedade da associação às novidades externas. As considerações da assessoria

técnica não tocaram a diretoria, que fez uma avaliação genérica, evidenciando que

não houve união e que não foi respeitado o regulamento de obra.

Estas avaliações, evidenciam as posições mantidas no decorrer de toda a obra e que

caracterizam esta experiência: de um lado uma assessoria técnica que, ficando

sempre entre a cruz e a espada, fornece uma avaliação objetiva de uma situação na

qual não conseguiu-se apropriar da autogestão como processo, mas só como

prática, para sobrepor a um sistema, cujas características aproximam-se do sistema

tradicional de mutirão; do outro lado uma diretoria que faz uma avaliação com

apelo a questões ideológicas de luta política, incapaz pela própria postura de fazer

uma avaliação mais objetiva, que levaria a reconhecer os próprios erros e as

próprias responsabilidades, e no meio uma coordenação que, sendo formada em

maior parte por mutirantes, beneficiários diretos do empreendimento, cuja vivência

cotidiana é uma vivência crítica e de carência, não chega a ter uma postura crítica

significativa.

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Se o prazo do convênio ficou formalmente respeitado, as atividades continuaram

por alguns meses, gerando uma sobreposição com as atividades de preparação do

segundo projeto e de execução do convênio de reforma do Nova Conquista.

As casas construídas não tiveram as sonhadas melhorias, que foram prometidas

como possíveis e fáceis de se obter para um tipo de gestão como esta.

Única melhoria, se podemos chamá-la assim, foi a laje colocada no primeiro andar,

que facilitou para as famílias que tinham os recursos necessários para a construção

do segundo andar. Se esta melhoria ajudou até hoje poucas famílias, foi descontada

por parte de todos na execução de alguns itens que não foram realizados pelo

mutirão, mas independentemente pelas famílias.

As instalações elétricas e hidráulicas foram concluídas, por falta de dinheiro, só no

final de maio e graças a um empréstimo que a associação fez e que a PMI se dispôs

a cobrir.

As dificuldades para as famílias continuaram com a ligação de água e luz.

No São Francisco, como se previa, as famílias ficaram vários meses sendo

abastecidas por um caminhão pipa, até que a COPASA construísse, ali perto, um

reservatório. Esta situação gerou descontentamento e protesto das famílias contra a

associação e quando foi completada a ligação da luz, ninguém convidou a diretoria

para a festa de inauguração.

A situação no Novo Jardim ficou um pouco melhor, mas somente no começo. As

famílias usaram, por algum tempo, a água do canteiro até que a COPASA efetuou o

corte. Foram, então, abastecidas por um caminhão pipa, até regularizarem a

situação.

Nas duas áreas permaneceram, como dotação do bairro, algumas infra-estruturas

usadas pelo mutirão. No São Francisco permaneceu o centro comunitário e no Novo

Jardim um galpão usado no canteiro de obra como refeitório. Hoje, o primeiro está

quase abandonado e degradado e o segundo continua a ser usado como centro

comunitário e Igreja.

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5.4. O caso do mutirão Primeiro de Maio.

a)a) As atividades iniciais.As atividades iniciais.

O segundo mutirão começou a ser discutido já com as primeiras atividades do

Novo Jardim - São Francisco.

A primeira proposta feita pela PMI era a construção de 380 unidades habitacionais

em uma área localizada perto do mutirão em curso, no bairro Bom Jardim.

A proposta foi repassada à associação através de seu ex-presidente. As famílias

foram selecionadas rapidamente e começaram, também, uma série de seminários,

com freqüência quinzenal, visando a preparação das famílias nas atividades do

mutirão.

A PMI não demorou muito, porém, para reparar que o tamanho da área colocada a

disposição, em relação ao número das famílias beneficiadas, criaria uma densidade

habitacional muito alta. O número das famílias, portanto, abaixou de 380 para 200.

Com esta decisão foi necessário revisar o projeto globalmente e esta tarefa foi

repassada à assessoria técnica contratada.

Com este acontecimento as dificuldades da associação, que já estava passando por

sérios problemas no mutirão Novo Jardim - São Francisco, aumentaram.

Dando prioridade à solução destes problemas, as famílias selecionadas foram

abandonadas por um período de 4-5 meses. A volta às atividades, foi estimulada

pela liberação do tão agoniado aditamento do convênio do Novo Jardim - São

Francisco; mas 50 famílias não se apresentaram de novo. A associação se aproveitou

das faltas injustificadas para redimensionar o número de famílias. A redefinição não

foi suficiente para que o número de famílias beneficiadas caísse para 200 e para

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adaptar o número de famílias ao de vagas disponíveis, foi criado um processo de

seleção. A AHI repassou esta responsabilidade nas mãos dos núcleos de bairro,

determinando um percentual de famílias que deveriam ser excluídas por cada

núcleo.

As famílias que ficaram excluídas foram convencidas de que a exclusão seria

temporária, recebendo a promessa, por parte da associação, de que seria feito o

possível para obter, na PMI, a liberação de um número de lotes urbanizados

equivalente ao número de famílias; por esta razão foi criada uma lista de espera.

A associação comunicou também que ,se tivesse a exclusão de alguma família do

mutirão, ela seria substituída por famílias da lista de espera.

Na definição do projeto, do ponto de vista organizacional, ficou claro que a AD não

iria mais participar da assessoria técnica.

Duas eram as razões:

1. a vontade da associação, evidente também no começo do primeiro

mutirão, em criar uma assessoria técnica composta por técnicos locais;

2. porque vários técnicos da AD buscaram outros caminhos profissionais,

sendo que, a experiência de São Paulo tinha sofrido uma interrupção com

a eleição de Maluf.

O técnico que havia acompanhado o Novo Jardim - São Francisco não foi incluído

nessa possibilidade, porque na hora destas decisões o mutirão ainda estava em

andamento, com dificultadas tais, que era impossível o seu afastamento no outro

mutirão.

A tarefa e o cargo de coordenar e elaborar um projeto, quer para a unidade

habitacional, quer para a implantação urbanística do conjunto, ficou com um

arquiteto de Belo Horizonte, Cássio Veloso.

Como técnico para acompanhar a obra em seu cotidiano, a associação contratou um

engenheiro, Carlos Medeiros, também de Belo Horizonte, que tinha fortes vínculos

com o movimento. Os dois técnicos trabalharam juntos durante toda a fase

preparatória.

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A busca de técnicos "locais", feita pela associação, deve ser, portanto, entendida

como buscar técnicos ligados ao movimento estadual, mais do que técnicos da

cidade de Ipatinga.

É interessante salientar esta postura da associação, que se adopera para formar a

assessoria técnica segundo as próprias exigências e, talvez, segundo as próprias

vontades. É uma prática peculiar desta experiência, que resulta em ser anômala, se

comparada com o modelo de São Paulo, onde as assessorias técnicas, não obstante

fossem ligadas aos movimentos, compartilhando os mesmos objetivos e a mesma

ideologia, era, de fato, algo autônomo desde sua constituição até sua atuação. A

história do movimento habitacional de São Paulo evidencia que, paralelamente à

formação do movimento habitacional, formou-se também um movimento de

técnicos que deu origem às assessorias onde se ofereciam como grupos de

características e peculiaridades próprias, o que permitia-lhes também, mesmo

dentro de um marco de relacionamento, baseado em vínculos contratuais de

subordinação formal à associação habitacional, enquanto contratante, manter uma

margem significativa de autonomia, baseando o relacionamento mais como de

parceria que de subordinação.

No caso de São Paulo, esta autonomia constitui quase um pressuposto no processo

de construção autogestionária.

No caso de Ipatinga, onde falta ao processo este pesado retrospecto histórico e a

luta é levada a frente somente pelo agente comunitário, a autonomia dos técnicos é

colocada em dúvida, redimensionada e questionada, embora não de maneira

evidente.

O que acontece, como pode-se bem pensar é um empobrecimento, cortando

contribuições que, normalmente, uma assessoria técnica aporta, quer ao processo

quer á associação e como conseqüência aos mutirantes. Um empobrecimento do

termo autonomia, condição esta apropriada somente e teoricamente por parte da

associação num nível mais amplo e por parte de alguns órgãos internos a associação

e ao mutirão. Constitui-se, portanto, como uma perda de autonomia dentro da

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autonomia. Se não é perda total é, certamente, significativa em termos conceituais

(no que diz respeito ao sentido do termo autogestão), redimensionamento.

A autonomia dos técnicos, no caso de Ipatinga, faz apelo mais a uma questão de

ética profissional do técnico e dimensiona-se em relação às peculiaridades

caracteriais e comportamentais do técnico.

Além disso, o que vai acontecendo é um enfraquecimento da estrutura da assessoria

técnica, expondo os técnicos aos riscos derivantes de trabalhar dentro de uma

estrutura, que cada vez se renova, sujeitos aos mesmos erros, criando uma estrutura

de trabalho que forma-se e desenvolve-se num contexto limitado, quer

temporalmente quer especialmente, não usufruindo de tradição e nem de práticas e

hábitos de trabalhos que uma assessoria técnica normalmente possui. É este, talvez,

o modo usado pela associação para ser o ator principal e único deste processo.

O projeto do novo conjunto.O projeto do novo conjunto.

Como critério na elaboração do projeto da unidade habitacional a associação,

sugeriu ao arquiteto pensar uma casa que pudesse ser ampliada para se ter, ao

término, três cômodos, respondendo assim, às necessidades das famílias

numerosas, que eram a maioria. O arquiteto elaborou uma série de propostas, que

foram apresentadas a diretoria. Após a análise dos projetos, a diretoria escolheu

uma proposta para encaminhar às famílias.

Achamos que teria sido mais interessante e talvez útil, mesmo pela própria

diretoria, possibilitar a criação de um clima mais democrático, apresentando às

famílias as várias propostas, ao invés de continuar com uma postura centralizadora,

reservando-se no direito de fazer uma primeira seleção. Verdade, é que um

processo deste tipo, de escolha de protótipos precisaria de uma gestão cuidadosa,

necessitando estruturar práticas de análise e avaliação das propostas, que

significariam um gasto de tempo e recursos técnicos e financeiros que a associação

não tinha, naquela época, à disposição e que normalmente não são computados

dentro dos orçamentos de obra.

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A proposta apresentada, discutida e aceita pela assembléia, previa a construção de

uma unidade habitacional de um andar com uma área de 39 m2.

O projeto complementar elaborado pelo arquiteto não foi tão propagador. O

objetivo da associação era realizar esta ampliação, somente se fossem conseguidas

reais e significativas economias da obra, o que significava direcionar a obra,

inteiramente, neste objetivo.

A unidade habitacional compunha-se inicialmente de uma quarto, uma sala, uma

cozinha e um banheiro; a ampliação previa a construção de mais um andar, com um

salão que cobria, quase inteiramente, o espaço do segundo andar; nele seriam

deixadas as amarrações nas paredes para facilitar sua divisão em três quartos, que

além do salão tinha um banheiro. A área total da casa era de 78 m2.

O projeto de implantação urbanística do conjunto conjugava, a racionalização do

espaço disponível com as particulares e difíceis condicionantes morfológicas da

área como: declives íngremes, pequenas partes planejantes com a presença de um

lençol freático muito superficial, uma nascente, um brejo e um morro com fortes

processos de erosão.

Na implantação podem-se individualizar três partes.

A primeira, mais periférica, com o número maior de unidades habitacionais (90),

localizava-se ao lado da parte inicial da estrada das Lavadeiras, uma estrada de

terra pouco freqüentada, que liga a parte final do bairro Bom Jardim com a BR 381,

na direção Coronel Fabriciano - Timóteo. Nesta parte podem ser divididas outras

três sub-partes. A primeira, por volta de 40 casas, constitui o elemento de conjunção

da forma urbana do conjunto com a pré existente no bairro. Esta junção é mediada

pelo edifício da creche, construída com as atividades de recuperação do Nova

Conquista, que associa à sua forma particular, o mesmo sistema construtivo que foi

usado no mutirão.

A segunda sub-parte apresenta uma fileira de casas, ao longo da rua, que pelo

pouco espaço existente resulta, do ponto de vista urbanístico, pouco articulada.

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Na terceira sub-parte, na franja extrema do conjunto, o projetista trabalhou estes

aspectos da marginalidade espacial, criando um pequeno conjunto de 29 unidades

habitacionais, articulando um espaço que favoreça e possibilite o convívio entre os

moradores. Não obstante, este esforço projetual não deu os resultados esperados.

Também a colocação de um ponto final de ônibus, não impediu a rápida

degradação e o abandono das casas pelos moradores. Esta parte, hoje, é aquela que

apresenta maior degrado físico.

A segunda parte do conjunto encontrava-se acima da nascente, incluía num total de

58 casas. A maior parte, 55 deles, são localizadas numa área plana.

Esta parte do conjunto tem uma característica interessante, que condicionou de

alguma forma, o seu estado atual. Trata-se, de fato, do mesmo experimento

realizado com as casas mais periféricas na estrada das Lavadeiras, mas desta vez,

com um outro êxito.

As casas, são articuladas, especialmente, de forma a apresentar as características

peculiares de um pequeno núcleo urbano, quase um burgo. É esta a sensação que o

visitante tem, uma vez que entra nesta parte do conjunto, percebendo como ela é,

também, uma das partes mais cuidadosamente tratada, por parte dos seus

moradores, é pois, a menos degradada do conjunto.

As três casas que não são incluídas neste núcleo, localizam-se numa área

remanescente na conjunção de três ruas, duas do Nova Conquista e Uma do Novo

Jardim - São Francisco.

A terceira e última parte é composta por 52 casas dispostas ao redor do morro, ao

longo de uma rua que liga o Novo Jardim - São Francisco com a segunda parte do

conjunto.

Do ponto de vista espacial, esta parte aparece como continuação do Novo Jardim -

São Francisco; somente sua parte central é mais articulada com vielas

perpendiculares à rua e casas geminadas em pequenos grupos.

Os lotes do conjunto são de tamanho variável, entre 140 e 180 m2.

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b)b) As primeiras atividades, a pressão da AHI sobre a PMI.As primeiras atividades, a pressão da AHI sobre a PMI.

A área destinada ao novo conjunto, foi vigiada por um tempo pela PMI para evitar

possíveis invasões, mas logo, a associação apropriou-se dela e no decorrer da obra

ficou por um bom tempo, sem cerca.

Os contatos feitos pela PMI, para financiar este projeto foram com a Caixa

Econômica Federal (CEF). Esta através da Companhia Habitacional (COHAB),

poderia liberar o dinheiro para a realização do conjunto. Esta possibilidade inicial

não durou muito e as premissas favoráveis revelaram-se em nada de concreto.

Por causa da desistência da CEF e pelos perigos de que a PMI anulasse este projeto,

a associação criou uma equipe de diretores para seguir, mais de perto, as evoluções

deste processo, com uma presença muito marcante na prefeitura e com apoio dos

próprios vereadores. Esta solução deu logo resultados. No meio das dificuldades, a

associação conseguiu a assinatura de um termo de compromisso por parte do

prefeito e afinal a PMI conscientizou-se de como era impossível voltar atrás, tendo

que assumir por inteiro os custos do projeto.

O trabalho que a associação fez foi, uma pressão de dois lados: politicamente, por

dentro dos bastidores da administração, forte nos apoios dos próprios vereadores e

de uma parte considerável do PT e oficialmente, articulando as primeiras atividades

para o novo mutirão.

Foram constituídas, mesmo sem o apoio de uma assessoria técnica, não sendo ela

ainda definida e operante, as várias equipes de trabalho. Com as equipes prontas,

foi fácil organizar as atividades iniciais, como a marcação das casas e algumas

primeiras atividades de terraplanagem.

Foi possível executar os trabalhos pela disponibilidade de ferramentas e

equipamentos emprestados, por parte do canteiro de obra do vizinho Novo Jardim -

São Francisco.

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A cerimônia de inauguração do mutirão vizinho, foi o palco para a assinatura do

novo convênio. Com uma inteligente jogada política, às vésperas do final do seu

mandado, o prefeito concluía, oficialmente, o primeiro mutirão e jogava as bases

para o segundo.

c)c) As mudanças na AHI e na PMI.As mudanças na AHI e na PMI.

Poucos meses antes desta inauguração houve as eleições municipais. A continuação

de uma gestão de esquerda era dada, por muitos, como certa e de fato aconteceu.

O que não estava tão certo, era qual dos quatros candidatos do PT iria ganhar a

vaga de prefeito. As candidaturas eram a expressão das correntes políticas, que

animavam o partido na época. Se enfrentavam, assim, na campanha eleitoral: Ivo

José, candidato apoiado pelo prefeito que aderia a vertente socialista do PT; o vice

prefeito João Magno da vertente denominada Articulação; o terceiro candidato era o

Robinson Ayres que, embora ligado à esquerda do partido, postulava, de forma

independente, a sua candidatura à Prefeitura.

Os resultado das prévias eleitorais do Partido, premiou o segundo candidato, que

tinha o apoio do movimento habitacional e da AHI e que, uma vez eleito, prometeu

continuar as atividades iniciadas pelo seu predecessor.

Assim que, uma vez eleito prefeito, João Magno trouxe algumas novidades no

campo habitacional, a maior delas foi uma reforma estrutural da CHI, ampliando e

especializando a intervenção do poder público no campo habitacional. No lugar da

CHI foi criada uma secretaria de habitação, composta por dois departamentos, cada

um com sua própria competência. O departamento de habitação foi criado para

coordenar, garantindo maior eficácia, os programas de construção de habitações

populares. O departamento de regularização fundiária, foi criado para estruturar e

afunilar sua atividade de regularização e reurbanização das áreas ilegais. O ponto

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de contato dos dois departamento, era no momento da titulação dos lotes dos novos

conjuntos habitacionais. Esta reforma, se de um lado re-estruturava órgãos e

competências, do outro não trazia mudanças substanciais, em termos de recursos

técnicos e humanos.

Aproveitando esta situação de mudança, a associação realiza a eleição da própria

diretoria que havia adiado por três meses, por causa das complicações do Novo

Jardim - São Francisco.

A eleição dos novos diretores foi feita numa assembléia geral, onde participaram

750 filiados e na qual a chapa composta pelos velhos diretores não encontrou

nenhuma chapa concorrente. A votação e eleição da chapa única acaba em uma

redistribuirão dos encargos, entre as mesmas pessoas da primeira diretoria. O

presidente eleito foi Nilo Martins e a vice presidente foi Ûsania Aparecida Gomes,

que foi vice na primeira diretoria mas substituiu, durante um tempo, o primeiro

presidente. A novidade interessante desta assembléia, é a criação de um conselho

fiscal da entidade, com um objetivo de maior controle e rigor sobre o uso dos

recursos financeiros.

O começo do novo ano caracteriza-se, portanto, como um período de transição e

reformulação de relações entre PMI e AHI. A reformulação baseia-se numa

interação contínua, com o objetivo de fortalecer mais ainda as ligações de

dependência da AHI com a PMI.

Nesta direção é feita a leitura da oferta do cargo de secretário da nova Secretaria de

Habitação (SEHAB), ao recém eleito presidente da AHI.

O que acontece é, portanto, um processo peculiar com contornos que roçam o

paradoxo, principalmente, se pensar no papel formal da associação. A aceitação

deste cargo sela a filiação da associação ao poder público. Dois diretores tornaram-

se vereadores, entre eles o primeiro presidente, que continuava a participar das

reuniões e a opinar, sabendo do respeito que os diretores tinham à sua opinião.

Logo que o prefeito tomou posse, o recém eleito presidente é chamado a cobrir um

cargo na PMI, deixando a presidência ele passa a não ter mais o mesmo poder que

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teria se permanecesse no cargo, embora ele continue a participar das reuniões. A

presidência passa para o mesmo vice presidente que, por coincidência, tinha

substituído o primeiro presidente nos últimos meses antes da campanha eleitoral e

com o qual tinha ainda estreitos contatos. Entende-se assim como, habilmente, a

parte decisional da associação foi integrada no poder público. A novidade

substancial deste processo foi, portanto, o deslocamento do centro decisional fora

da diretoria.

Os efeitos que este processo trouxe, ao longo do tempo, foi uma fossilização da

associação, amarrada ao poder público com limitada capacidade de renovação da

própria liderança.

Esta apropriação do poder público não poupou nem o técnico que tinha

acompanhado o mutirão Novo Jardim - São Francisco, que foi chamado pelo

prefeito para cobrir um cargo de diretor na prefeitura, dentro do departamento de

planejamento urbano.

De agora em diante, a associação representa mais a extensão do poder público que

um organismo dotado de autonomia própria e de capacidade de barganha, através

de lutas e ações conduzidas junto aos próprios afiliados.

No meio a todos estes acontecimentos a associação não cessou as próprias

atividades.

d )d ) A preparação da equipe técnica e a elaboração do novo sistema construtivo.A preparação da equipe técnica e a elaboração do novo sistema construtivo.

Do lado da obra, terminaram com dificuldades o mutirão Novo Jardim - São

Francisco. Nesta experiência, a associação produziu algumas avaliações e reflexões

que tiveram aplicações práticas na preparação do novo mutirão.

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A primeira aplicação foi a coleta dos certidões negativos de posse de bens imóveis

entre as famílias beneficiadas, sucessivamente foram definidos, por parte da

associação, os técnicos que iriam acompanhar esta nova experiência.

A associação avaliou como importante, a participação de um técnico social que

pudesse fazer parte da assessoria técnica. A experiência do Novo Jardim - São

Francisco demonstrou que a associação não conseguiria dar conta desta parte, pois

estava envolvida, totalmente, na questão da obra; avaliando como era difícil

entender as repercussões que a obra produzia nos mutirantes e como seria

necessário o uso de um instrumental pedagógico, que a associação não possuía e

nem sabia dominar. Foi então contratado, para completar a assessoria técnica, um

sociólogo, Herminio, irmão do prefeito, que trabalhou somente por dois meses na

obra, passando o restante do tempo assessorando a associação. Seu contrato foi

renovado várias vezes pela PMI.

No lugar do engenheiro, que desistiu de acompanhar a obra porque foi chamado

para assumir um cargo de confiança na Companhia Urbanizadora de Belo

Horizonte (URBEL), dentro da nova administração do PT; foi contratada uma

arquiteta, Margarete de Araújo Silva, de Belo Horizonte que já tinha trabalhado em

Ipatinga na CHI, no programa de regularização fundiária, no início da primeira

administração do PT. Saída da PMI por um tempo, para trabalhar na prefeitura de

São Bernardo do Campo (SP), voltou a Ipatinga para acompanhar a organização de

uma fábrica de blocos.

Sucessivamente foi contratada, pela mesma associação, para acompanhar as obras

de recuperação do mutirão Nova Conquista, uma das poucas obras realizada nestes

primeiros meses da nova administração. Por não ser uma profissional desconhecida

e pela vizinhança do Nova Conquista, foi novamente contratada pela associação

para acompanhar o novo empreendimento.

Embora fosse um convênio de recuperação urbanística do conjunto, que

encontrava-se em condições de degrado, uma parte da verba foi destinada à

construção de uma creche. Com a construção deste edifício testou-se e definiram-se,

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numa parceria entre capital privado e associação, as características de um novo

sistema construtivo, que foi sendo adotado no mutirão que estava por começar e em

vários outros mutirões e obras, públicas e privadas, ao longo dos anos.

Este sistema construtivo pertence às soluções tecnológicas para a construção de

alvenaria estrutural não armada.

Entre os sistemas construtivos de alvenaria estrutural existem duas classes, as

alvenarias estruturais não armadas e as alvenarias estruturais armadas. No mutirão

do Novo Jardim - São Francisco, a AD trouxe de São Paulo uma solução tecnológica

de blocos de concreto para a execução de alvenaria armada estrutural. Esta solução

foi usada, amplamente, nos mutirões de São Paulo, propiciado pela diminuição de

alguns itens pesados em termos de custos de obra, como é o caso da estrutura de

concreto armado, usadas nas obras convencionais, em significativas economias de

escala. Os mutirões de São Paulo foram excelentes ocasiões nas quais

experimentaram novas soluções tecnológicas, "em São Paulo existem 1001 exemplos

de mutirões, todos os tipos possíveis [...] mutirões com materiais alternativos, casas

de placas, pré moldados, todos os tipos possíveis " (Rosas,1999/1).

Na alvenaria estrutural armada, a solução trazida pela AD, caracterizava-se pelo

uso de dois componentes de concreto: a canaleta e o bloco52, usando armaduras e

juntas a prumo nas regiões sujeitas a esforços de tração e cisalhamento. A crítica

feita a esta solução tecnológica, pelo técnico contratado pela associação baseava-se,

principalmente, no fato que este tipo de sistema construtivo, era adotado em

contextos nos quais existe a necessidade de proteger as construções dos abalos

sísmicos. No entanto, o uso desta solução tecnológica no Brasil, não sujeito a este

tipo de fenômenos naturais, caracterizar-se-ia como impróprio. Além disso, esta

solução foi usada em São Paulo sem tentar uma adequação. Por esta razão,

52 A utilização de duas medidas de bloco, inteiro e meio, é um índice de como este sistema tinha um baixo grau

de racionalização, sendo que para resolver a amarração dos blocos nos cantos das paredes era necessários

quebra-los, produzindo uma perda evitável existindo a possibilidade de criar um bloco com uma medida

intermédia.

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segundo o técnico a solução da alvenaria estrutural armada "comporta maior gasto

de material, de fato, não justificando-se um uso tão elevado de concreto armado"

(Araújo 1999/1).

Com conhecimentos derivados de uma pesquisa de mestrado sobre os sistemas de

alvenaria, o técnico viu a possibilidade de introduzir um novo tipo de sistema,

ainda não usado nos mutirões em Ipatinga: a alvenaria estrutural não armada.

Na época que foi decidido, graças, também, às pressões do técnico, em construir a

creche em alvenaria estrutural, existia no mercado local só um fornecedor de blocos,

o mesmo que forneceu blocos para o Novo Jardim - São Francisco. Os componentes

a disposição constituíam um sistema construtivo, com um baixo grau de

racionalidade, existindo somente dois componentes: a canaleta e o bloco, este

último em duas medidas, o que não impedia de realizar cortes nos blocos para fazer

as amarrações nos cantos das paredes. Quando o técnico propôs um trabalho de

parceria, visando a racionalização do sistema, que foi usado no mutirão precedente,

encontrou a refutação do fornecedor, que se dizia não interessado na proposta.

Foi por um caso quase fortuito, que o técnico conheceu uma empresa, que até então,

produzia concreto, a Valemix. A mesma empresa tinha conseguido, pela Usiminas,

o direto de exploração do material solo-cimento com adição de escórias. A nova

fábrica chamada Usimix, que produzia os blocos com este material, foi construída a

pouco tempo e o lançamento do seu produto no mercado era algo de novo. Seus

produtos eram tijolinhos furados e laminados e o objetivo era entrar no mercado

convencional.

O lançamento dos produtos não foi, porém, sem problemas, as recomandações e

especificações de uso não eram corretas. Os problemas encontrados que colocavam,

seriamente, em perigo o futuro da nova fabrica, fez com que a empresa buscasse a

colaboração de um professor da Universidade Federal de Viçosa (UFV), Lauro

Gontijo, que estudou o produto e resolveu os problemas.

No mesmo período em que os estudos estavam sendo realizados, o técnico do

mutirão participou de uma palestra, na qual era apresentado o produto por um

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engenheiro químico. Foi nesta ocasião que o técnico percebeu como as

características do produto se adaptavam bem às características exigidas pelos

componentes de alvenaria estrutural. Foi assim que iniciaram alguns contatos, que

acabaram convencendo o pesquisador e os próprios donos da empresa, das

possibilidades do produto.

Este foi o começo da parceria entre a AHI e a Usimix, através da qual

desenvolveram-se os componentes que compuseram o sistema construtivo. A

construção da creche do Nova Conquista foi o laboratório em que experimentaram

várias soluções. O resultado deste trabalho foram componentes novos que

racionalizavam o sistema, como o bloco de três quartos que permitiu eliminar os

cortes nas alvenarias, diminuindo desperdícios de material e os blocos especiais,

como o bloco compensador e o bloco jota, este último, particularmente importante,

pois permite eliminar a necessidade de fôrma, na hora da concretagem da laje.

Paralelamente à experimentação do produto, houve também, o treinamento da mão

de obra para se acostumar ao uso do novo material. Uma experiência que se revelou

feliz para os poucos pedreiros que formaram este grupo e que aprenderam a

trabalhar com este tipo de bloco. A maioria deles foi incorporada ao mutirão como

empreiteiros, sendo os únicos, até então, a dominar este tipo de tecnologia. Para eles

foi mais fácil, junto ao sucesso deste bloco, achar trabalho mais facilmente,

"ninguém construía casas em Ipatinga com esta tecnologia antes dela chegar

[através do conjuntos autogeridos], não tinha mão de obra para este. Você sabe que

para a alvenaria estrutural o pedreiro tem que ser bom, senão compromete a

estrutura" (Rosas,1999/1).

Na confecção de qualquer tipo de alvenaria estrutural, o treinamento da mão de

obra se reveste em um papel muito importante. Boa parte dos pedreiros que

trabalham no setor da construção civil, por causa dos mais variados fatores, não

conseguem dominar este tipo de sistema construtivo. Este não se deve à dificuldade

do sistema, mas sim na perda da utilização de práticas construtivas tradicionais,

induzida pelo uso dos sistemas convencionais com estruturas de concreto e.

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principalmente, pelo seu uso impróprio. Conceitos básicos do ofício de pedreiro,

como prumo, nível, esquadro e alinhamento, são quase esquecidos

"a mão de obra é muito pouco qualificada, eles fazem a parede toda

torta e como a parede não é estrutural [nas construções com estrutura

de concreto armado, que são a maioria] colocam depois, quilos de

massa e resolvem para lá e a parede esta reta e assim vai

desperdiçando em tudo" (Rosas,1999/1);

com a alvenaria estrutural, correções como estas não são possíveis.

As atividades de pesquisa e capacitação não foram bem vistas por uma parte da

associação que não queria ser, como eles afirmavam, cobaia.

A escolha do sistema construtivo para o novo mutirão, foi entre Usimix e o sistema

usado no mutirão Novo Jardim - São Francisco fornecido por uma empresa de

nome Copermita, fornecedor do Novo Jardim - São Francisco, a questão dos custos

foi determinante mais que os pereceres técnicos que eram claramente a favor do

sistema da Usimix, que revelou-se 36% mais barato que o outro.

O sistema construtivo da Usimix constituiu um item importante para o

barateamento dos custos deste mutirão. Através da racionalização do uso dos

materiais, que trouxe uma economia em termos de produto e de outros insumos,

como por exemplo do uso de concreto armado, mantendo um padrão qualitativo e

de segurança mais que satisfatório, permitiu a realização do segundo andar.

A questão da segurança estrutural das moradias foi motivo de vários debates, na

associação e dentro do mutirão. Não foi fácil, para grande parte da associação,

entender que podia-se construir uma casa fazendo, a menos, uma parte

considerável de concreto armado sem com isso prejudicar a estabilidade da

construção. A comparação, com o mutirão vizinho se manteve no decorrer de todo

o empreendimento, além da presença de um mestre de obra que, até então, tinha

trabalhado somente com estruturas de concreto e alvenaria estrutural armada,

contribuiu para complicar o trabalho da assessoria técnica.

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144

Esta situação de críticas, mais ou menos, veladas que permaneceu no decorrer da

obra, criou condições difíceis de trabalho, particularmente, em uma obra como o

mutirão, onde todos, a princípio, são donos das próprias casas, desde sua

construção, tendo o direito à crítica. Esta postura determina, de fato, uma constante

avaliação do produto que está sendo construído, avaliação que, na maior parte das

vezes, baseia-se em princípios e considerações, frutos do conhecimento empírico e,

portanto, a maior parte das vezes, sem fundamentos. Estas críticas em alguns casos,

como em alguns dos mutirões de Belo Horizonte, realizados com este sistema,

levaram a troca do sistema construtivo pelo sistema construtivo tradicional, numa

regressão, em detrimento do produto final e da sua qualidade.

Para as críticas não tomarem este rumo, muito depende de uma ação pedagógica

entre associação e assessoria técnica, na qual o conhecimento do técnico da área

física (arquiteto e/ou engenheiro) e do técnico da área social (assistente social e/ou

sociólogo) se integram, objetivando um fim comum. Eis um ponto no qual o papel

do técnico social é determinante para direcionar esta ação no justo sentido. Desta

forma não se descarta, também, a hipótese de que a integração do conhecimento

possa levar a uma integração dos papéis, definindo, assim, o técnico do mutirão

como um técnico que lidará com questões que vão além da sua especialização,

afinal, criando um técnico cujo conhecimento é multidisciplinar, entre o técnico da

área física e o técnico da área social e vice-versa.

Este trabalho pedagógico é árduo quando considera-se que o objetivo é mudar uma

opinião, resultado de anos e anos de trabalho, como é o caso de pedreiros que

sempre trabalharam com sistemas convencionais. É assim, possível, entender como

não é fácil reciclar estes profissionais. A solução seria, destinar um tempo do

empreendimento para um curso de treinamento, significando um gasto de tempo e

recursos, que embora serão incorporados a um produto final de melhor qualidade,

não são sempre percebidos pelos beneficiários cujo objetivo final, entra em choque

com estas boas intenções, sendo ele nada mais e nada menos que a casa, no tempo

mais rápido possível. Somente em casos particulares, como foi neste mutirão este

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trabalho foi possível, acontecendo quase por acaso, fruto das conjunturas, que se de

um lado atrasaram a obra, do outro permitiram o treinamento de pessoal. Dando

frutos que são visíveis, ainda hoje.

e )e ) A construção da casa modelo e o começo do mutirão.A construção da casa modelo e o começo do mutirão.

A construção da casa modelo dentro de um processo de mutirão normal, é a

tentativa, também, de suprir esta deficiência de cronogramas físicos e financeiros

elaborados pelos técnicos, mas seu tamanho limitado impede-lhe de caracterizar-se

como uma ação significativa.

O instrumento do cronograma físico e financeiro, assim como o plano de trabalho

social, elaborado para os técnicos da assessoria técnica, nunca conseguem satisfazer

esta exigência por uma seéie de pressões que a assessoria técnica, pontualmente,

sofre. As pressões provêm de vários lados, tanto do poder público, como da

associação; pressões que influenciam fortemente na elaboração de um plano de

trabalho, na direção de privilegiar a construção das unidades habitacionais, no mais

curto prazo possível. Outros aspectos que normalmente são discutidos através de

várias reuniões, acabam em segundo plano; é o caso do treinamento de mão de obra

e de outras atividades, como cursos de profissionalização que, em função do

objetivo principal, devem ser redimensionados e remanejados.

O canteiro de obra foi montado na parte central do conjunto, acima da nascente,

com as seguintes dotações:

1. almoxarifado, no qual trabalhavam duas pessoas sem muita experiência,

com a colaboração temporária do almoxarife do primeiro mutirão, cujo

objetivo era formar estas pessoas; os materiais e as ferramentas vieram

dos dois canteiros de obra do Novo Jardim - São Francisco;

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2. escritório, com uma secretaria e um comprador, era neste lugar, também,

o ponto de encontro da assessoria técnica;

3. cozinha comunitária, que servia o almoço e o cafezinho no decorrer da

semana e no mutirão, nesta ocasião era gerenciado por uma equipe de

mulheres idosas;

4. refeitório, no qual as famílias almoçavam; era usado, também, para as

reuniões da coordenação e as assembléias;

5. creche, no começo foi posicionada em uma construção provisória e,

sucessivamente, foi transferida para dentro da casa modelo;

6. serviços com banheiros e duchas separados para homens e mulheres.

Juntamente ao canteiro de obra, perto da nascente, foi criada uma horta e um pomar

para fornecer uma parte dos alimentos utilizados na cozinha comunitária. Seu

sucesso foi significativo em termos de barateamento dos custos de alimentos e em

termos de emprego de pessoas que não podiam ser englobadas nas atividades de

construção, por questão de idade ou por problemas de deficiência física. Os

documentos fotográficos da época anexados a este trabalho, rendem justiça,

demonstrando a seriedade deste tipo de serviço. Este sucesso foi possível graças à

contratação de um técnico da prefeitura que já tinha experiência em cultivo. Na

prefeitura, ele tinha a responsabilidade de utilizar as áreas públicas que não eram

utilizadas com este escopo. Os produtos agrícolas produzidos nestas áreas eram

destinados às creches e às instituições públicas.

Um passo importante na direção do barateamento dos custos, foi a criação de uma

pequena fábrica de pré-moldados no terreno ao lado do canteiro. Esta decisão

responsabilizava a associação a ter um controle completo sobre a produção e seus

funcionários.

Neste caso foi capitalizada a experiência da confecção das janelas, feita no primeiro

mutirão. É por esta razão que a associação assumiu a gestão da fábrica de pré-

moldado de maneira conjunta, compartilhando a responsabilidade.

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Na fábrica foram produzidas as lajes de piso, que serviram para o segundo andar,

as placas pré-moldadas para a construção das escadas e posteriormente, uma vez

concluído o convênio de construção das unidades habitacionais para produzir

bloquetes para a pavimentação de uma parte das ruas do conjunto.

A animação da associação foi freada, por volta de abril, pela inesperada notícia de

que os caixas da prefeitura estavam vazios, por causa das dívidas contraídas pela

precedente administração. Como medida para sanar esse problema, o prefeito

decidiu parar qualquer tipo de empreendimento, até que os caixas voltassem a ter

recursos e isto significou, praticamente, parar as obras por um ano.

Estas notícias fizeram com que a associação se mobilizasse e se organizasse, para

que o mutirão não ficasse parado. A salvar o mutirão foram as idéias que o prefeito

havia formulado sobre o empreendimento autogestionário e as suas ligações

pessoais com a associação. Segundo o técnico que acompanhou o Novo Jardim - São

Francisco, foi este prefeito, uma das últimas pessoas a acreditar nas possibilidades

da autogestão.

Para permitir a continuidade do mutirão decidiu liberar, como medida provisória,

uma quota de 40% do que era previsto, por cada parcela. Esta resolução tornou-se

definitiva.

O convênio de construção das 202 unidades habitacionais, previsto, inicialmente,

para 18 meses passou para 24 meses. Já intuindo a evolução dos acontecimentos, a

associação encomendou à assessoria técnica adequar a obra a este novo prazo. O

alongamento do período de obra não criou grandes problemas, pelo contrário,

favoreceu algumas atividades, entre todas a preparação da mão de obra, tendo

assim todo o tempo necessário, e o funcionamento, a pleno regime, da horta, além

de permitir a solução cuidadosa de vários problemas que apareceram no momento

de executar as atividades de terraplanagem e de marcação e no momento de avaliar

e decidir sobre a ampliação do segundo andar.

A primeira parcela foi liberada no começo do mês de maio, por esta razão e para

homenagear o dia dos trabalhadores o mutirão foi chamado de Primeiro de Maio.

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A liberação estimulou um debate sobre o plano de financiamento para as famílias

resgatarem as casas uma vez prontas e quando começassem a morar.

É interessante levantar esta questão porque, assim como no mutirão precedente,

ficou um ponto de discussão solucionado só do ponto de vista formal. Segundo o

estatuto da associação

"percentual do valor do imóvel a ser pago pelo mutirante, será

estipulado pelo órgão responsável pelo sistema de habitação popular

do município de Ipatinga, a ser regulamentado em Lei Municipal,

sendo que o valor da prestação mensal será de no máximo 10 (dez) por

cento da renda familiar"53.

Com esta resolução, a associação delegava ao órgão público esta questão, o qual,

por sua vez não elaborou a auspiciada lei até hoje. As moradias do Novo Jardim -

São Francisco e do Primeiro de Maio foram entregue aos mutirantes, com contrato

de permissão de uso para dez anos, sem a implementação de um plano de

financiamento, para os dois conjuntos, até hoje não foi paga, sequer, uma prestação.

A estrutura organizacional criada pelo regulamento de obra e aprovado pelos

mutirantes, compunha-se da mesma maneira do mutirão precedente com:

1. equipes lideradas por um coordenador;

2. coordenação de obra, composta por técnicos, diretores e coordenadores.

Só depois, na hora de ter concretizar a ampliação das casas, com a construção

do segundo andar, foi criada uma equipe de planejamento destinada ao controle do

uso dos recursos.

Além das várias discussões, a liberação dos recursos permitiu começar as primeiras

atividades, finalmente, dentro do cronograma.

A marcação e locação dos lotes e dos cortes foi coordenada pelo projetista. A

presença do projetista se deve pela presença de dois problemas consequenciais que

arriscavam o comprometimento do projeto em sua totalidade:

53 Referente ao Estatuto da AHI, Art. VI.

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1. a presença, muito superficial do lençol, descoberta na parte que

pretendia-se começar as atividades de fundação. A presença de água

impossibilitou qualquer tipo de atividade, que foi postergada após a

realização de drenos. O cronograma físico foi revisado, priorizando as

casas mais periféricas, localizadas na estrada das Lavadeiras.

2. o trabalho, pouco cauteloso, do topógrafo encarregado da marcação dos

cortes do projeto de terraplanagem; cortes errados implicaram uma

revisão da implantação do conjunto.

O coordenador da assessoria técnica gastou uma parte significativa do seu tempo

nesta questão. A assessoria técnica dividiu-se, portanto, segundo estas duas tarefas:

Cassio ficaria acompanhando as questões projetuais, Leta ficaria acompanhando as

questões executivas. Esta solução comprometeu a possibilidade do coordenador em

participar, mais de perto, das atividades da obra e por conseqüência ao processo de

autogestão.

Na parte que foi priorizada, por causa das suas características morfológicas, que

impediam de se usar máquinas, uma parte da terraplanagem foi realizada à mão.

A casa modelo que foi realizada serviu como oficina de treinamento. Assim, foi

escolhida uma casa para esta função, que uma vez acabada, foi decidido pintar suas

paredes para cobrir os defeitos estéticos derivantes desta utilização.

f )f ) A organização do trabalho: a estrutura do trabalho.A organização do trabalho: a estrutura do trabalho.

Para aumentar a eficiência deste processo de aprendizagem e treinamento, os

técnicos da assessoria técnica, com a ajuda dos técnicos da PMI, estudaram a

possibilidade de criar formas de relação de trabalho, que foram divididas em 4

categorias. Este trabalho foi feito para tentar adequar as relações de trabalho às

características do processo de mutirão, que não tendo fins lucrativos, isto é, o único

objetivo é a construção das casas por parte dos futuros moradores, precisa de

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relações flexíveis, para que o processo de construção possa se tornar mais

econômico.

Através das 4 categorias de trabalho foram introduzidas algumas novidades

significativas.

Para descrever cada uma destas categorias usaremos a classificação proposta por

Libânio, que foi um dos artífices, nos ajudando, assim, a evidenciar além dos

caracteres do trabalho, as relações de trabalho entre trabalhadores e mutirão.

O primeiro tipo de trabalho era o trabalho dos mutirantes. Realizado nos finais de

semana e na maior parte dos feriados, representa a condição de habilitação dos

mutirantes à casa própria. Por estas características estruturais, envolve a apuração

da freqüência e o uso de penalidades aos faltosos. Cumprido por parte de um

membro qualquer da família, previamente cadastrado, exige um uso intensivo da

mão de obra com baixa qualificação. As tarefas desenvolvidas são, geralmente,

tratamento do terreno, fundação, laje, etc., prestando-se à organização dos

trabalhadores em equipes e a execução de tarefas. Este tipo de trabalho é a condição

básica do mutirão, não envolvendo qualquer tipo de remuneração e possuindo

amparo legal na previdência pública.

O segundo tipo de trabalho é a frente de trabalho mutirante. Constitui, até hoje,

uma das maiores inovações introduzidas nestes mutirões. Realizado fora do

período de trabalho dos mutirantes, tem por objetivo primário dinamizar e

aumentar a produtividade da obra, permitindo a realização de tarefas por

empreitada ou períodos. Este tipo de trabalho é direcionado à mão de obra mais

qualificada entre os mutirantes e possibilita a criação de empregos e renda,

juntamente a um barateamento dos custos, criando uma relação de trabalho

remunerado sem vínculo empregatício. Esta ultima condição levou algum tempo

para ser aceita e experimentada, exigindo um atento e cauteloso trabalho na hora da

escolha dos trabalhadores, nunca afastando, totalmente, a possibilidade destes

últimos entrar, posteriormente, na justiça. Esta tipologia de trabalho baseava-se,

também, na condição de que, se um mutirante entrasse com um processo judiciário

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151

contra a associação, iria perdê-lo pelo fato de ser o beneficiário final. O que

acontecia, de fato, era que esta forma de trabalho não era exclusividade de

mutirantes. Abriu-se mão da possibilidade de incluir outros trabalhadores na base

de relações de confiança e de amizade. Pode-se entender como estas não são

suficientes para eliminar totalmente possíveis problemas.

No curso da historia da associação, aconteceram alguns casos de trabalhadores que

entraram na justiça do trabalho e que, por não ser beneficiários finais, ganharam a

ação. É interessante, porém, evidenciar que embora existissem todos estes riscos,

esta pratica foi apoiada pela PMI, que decidiu assumir os ônus das eventuais ações

judiciárias, em pacto de que a associação zelasse na contratação deste pessoal. O

escopo da contratação sem carteira de trabalho, não era explorar o trabalhador, pelo

contrario, esta tipologia caracterizava-se, expressamente, como um emprego

temporário. Por estas razoes a associação, descontando os encargos sociais da

contratação com carteira de trabalho, aumentava o valor pago pelo trabalho, além

dos preços de mercado. O que de fato acontecia era uma valorização do profissional

e do trabalho, abatendo os pesados encargos sociais que não faziam senão aumentar

o preço global da obra.

Foi a primeira vez que, nos mutirões autogeridos tentou-se uma fórmula deste tipo,

que ainda hoje, encontra opiniões contrárias mesmo entre os técnicos que

participam desta experiência.

O que nos leva a pensar o quanto é difícil colocar estas práticas em dia, continuando

a se reproduzir uma postura meio populista de proteção ao trabalhador, que se

revela, na época atual, anacronística. O que, de fato, estimula e propicia este tipo de

contratação, é a responsabilidade e consciência do trabalhador e contrariamente

existe uma condição mais geral; do mercado que impede que este tipo de

contratação possa ser regulada.

Achamos que o sucesso que houve em Ipatinga foi devido, primariamente, ao apoio

dado pela PMI que entendeu o espírito e a lógica que animava este tipo de trabalho;

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basicamente criar uma série de empregos temporários, mais qualificados, mais bem

pagos, com o incremento da produção e do ritmo da obra.

Esta tipologia diminuía, também, os ônus da equipe fixa do mutirão, pois não tinha

que se ocupar com questões relativas a contratação, mas somente, do controle, da

execução e do pagamento do serviço.

O terceiro tipo de trabalho era o trabalho das empreiteiras, destinados a tarefas de

objeto definido, como por exemplo alvenaria, coberturas, serviços de acabamento,

etc.. O pagamento era feito contra-medição, com fiscalização e avaliação da

qualidade. Os encargos sociais eram a cargo do empreiteiro, assim como os

instrumentos de trabalho, o contratante fornecia o material. No Primeiro de Maio

este tipo de trabalho permitiu a vários trabalhadores que já foram mutirantes nos

outros empreendimentos da associação, montar algumas microempresas e trabalhar

assim como empreiteiras. O objetivo da contratação de microempresas foi, neste

caso também, para baratear os custos da obra. Neste mutirão as empreiteiras se

formaram com o pessoal que tinha trabalhado na creche do Nova Conquista e na

casa modelo e aprimoraram-se de tal forma, que criou-se um vínculo de

dependência entre elas e a Usimix, produtora dos componentes que continuou após

o mutirão. Do mutirão nasceram 5 microempresas, uma das quais era a Construtora

Novo Mundo, cujo "dono", Paulo Nicomedes da Silva, era um dos pedreiros que

participou da construção do conjunto Nova Conquista, segundo Rosas, "as

empreiteiras de Ipatinga, que surgiram dos mutirões, eram empreiteiras de mão de

obra apenas, o máximo que eles tinham eram as ferramentas para que eles

pudessem trabalhar" (Rosas,1999/2); as microempresas eram, portanto, prestadoras

de serviço. Para o mutirão a existência destas empreiteiras, significou um modo de

desvincular-se dos ônus derivantes da contratação de mão de obra; para os

empreiteiros significou um avanço, do ponto de vista profissional, significativo

abrindo-lhes novas e mais amplas perspectivas de trabalho,

"significou que uma mão de obra que era pouco qualificada, virou

qualificando-se e teve a ousadia de ir trabalhar por própria conta,

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ganhando mais, quer dizer, melhorou sua renda, houve uma

qualificação real desta mão de obra [...] havia gente que não tinha

muita segurança como pedreiro que hoje é microempresário; ele não

tem a consciência que é microempresário mas ele é" (Rosas,1999/1).

A criação das empreiteiras que, de fato veio, graças ao mutirão, foi um

exemplo do que é possível, quando estimula-se um processo como este, que nos

mutirões acontece de maneira quase natural,

"eu acho que este é um avanço da própria melhoria da mão de obra

que aconteceu até naturalmente no processo; porque no começo era

uma coisa espontânea que acontecia. Quando o mutirão acabava, qual

era o saldo? Se tinha lideranças novas, que antes não haviam e hoje há,

e se tem mão de obra qualificada que hoje há e antes não havia, então

este é o saldo, o resultado do processo" (Rosas,1999/1).

Esta relação de trabalho foi experimentada, pela primeira vez, neste mutirão e não

foi sem problemas, pelo contrário, houveram varias reclamações de ambas as

partes: os mutirantes da associação reclamavam do desperdício de material de

construção que estava acontecendo na obra, segundo eles, por causa das

empreiteiras que eram constituídas por pessoas que vinham "de fora", de fato, a

maioria vinha de outros mutirões como Nova Conquista e Novo Jardim - São

Francisco; as empreiteiras, em defesa, respondiam criticando a desorganização

presente no mutirão que, segundo eles, acarretava prejuízo ao próprio trabalho

porque em variadas ocasiões, ficaram horas parados, à espera de chegar material na

obra para continuar as atividades.

A falta de material era originada por duas questões:

1. dificuldades organizacionais, devido ao começo da obra, oriundas,

principalmente, do almoxarifado;

2. atrasos na entrega por parte da Usimix, que estava tentando adequar-se

às necessidades ditadas no rítmo da obra.

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Várias foram, também, as reclamações sobre a qualidade do produto entregue e

principalmente, sobre duas questões cruciais, como a argamassa, que, feita na obra,

demorou um tempo para que fosse definido o traço certo, e a perda (quebra) de um

componente entre todos, a canaleta, que ficava mais fraca pelo tipo de seção a "U"

com a presença de um diafragma que, com o desgaste da boquilha, através da qual

a peça era estruturada, aumentava de dimensão; o pedreiro pondo força na hora da

quebra, irremediavelmente, provocava a perda em um bom número deste

componente.

Associação e empreiteiras arranjaram uma solução para evitar que, uma parte só,

arcasse com os prejuízos derivante da falta de material na obra. Para esta razão, foi

instituída a prática do controle de estoque mínimo, o que permitiria ter um

abastecimento regular de material de construção. Assim, no caso de falta de

material, a associação iria pagar às empreiteiras as horas não trabalhadas.

Uma outra questão que ficou muito discutida foi a necessidade em determinar, de

uma vez por todas, as relações entre associação e empreiteira onde o contrato de

trabalho demorou seis meses para ser definido, preparado e assinado. Este tempo

foi gasto, para que se evidenciassem e fossem assim estudados e solucionados todos

os possíveis problemas, para poder se ter um contrato, que fosse completo. Por esta

razão no contrato, alem de definir o objeto do trabalho, o valor e a pratica das

medições, discriminava-se, também, que as empreiteiras não podiam pegar em

empréstimo as ferramentas do canteiro de obra, não podiam trabalhar nos finais de

semana e que seriam descontadas da folha de pagamento, eventuais desperdícios

de materiais, provocados por eles.

Todo o pessoal da obra recebia o pagamento na sede da associação, no centro da

cidade, não obstante existiam as contínuas reclamações por parte dos contratados,

querendo ser pagos na obra. Esta reivindicação foi sempre negada, por causa dos

riscos que esta prática acarretaria.

O quarto tipo de trabalho, era a contratação de serviços de natureza diversa,

realizados por profissionais autônomos ou pequenas empresas, sem vínculo

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empregatício. Serviços como, assessoria técnica, projetos complementares,

consultoria, detalhamentos construtivos, preparação dos mutirões e das frentes de

trabalho, descarga de materiais, vigilância, almoxarife, serviços administrativos

como comprador, contador, apontador, etc., era todos serviços destinados a este

tipo de trabalho.

Neste caso a associação, continuando uma tradição típica dos mutirões, contratou

pessoas afiliadas, que não tinham o perfil para executar estas tarefas. Foi assim

decidido, com o acordo da assessoria técnica, que estas pessoas seriam treinadas,

mas esta operação não demonstrou-se tão simples. Foram necessários alguns meses

e a troca de uma parte do pessoal, para que se chegasse a resolver simples

problemas organizacionais, como o recebimento e o controle dos materiais.

g)g) A implementação das atividades e a crise da associação.A implementação das atividades e a crise da associação.

A realização das drenagem pediu um projeto que foi executado, mas que não fazia

parte das obras previstas pelo convênio. A execução de obras extra convênio, não

limitou-se, somente, à drenagem incluindo, também, a questão das redes de esgoto

que, assim como todas as questões infra-estruturais eram previstas a cargo da PMI.

A associação resolveu, portanto, bancar estes custos com a esperança que a PMI,

repassasse os gastos.

Para limitar as surpresas que podiam vir de repentinas mudanças do mercado e

para baratear os custos dos produtos, possível somente através da compra de

grandes quantidades e direto do produtor, a assessoria técnica conseguiu convencer

a associação, da necessidade de comprar grandes quantidades de materiais, que

seria armazenado no canteiro ou dentro das casas.

A responsabilidade pelas compras e pela definição das características técnicas do

produtos foi deixada, desta vez, nas mãos da assessoria técnica. Graças a esta

decisão, foi comprado todo o material hidráulico - sanitário e elétrico e todas as

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esquadrias necessárias para acabar as unidades habitacionais até o primeiro andar,

assim como estava previsto no convênio. As esquadrias compradas foram do tipo

que foi proposto e não aceito no precedente mutirão.

O material comprado foi armazenado em 3 das primeiras casas prontas e por causa

de possíveis roubos, foi incrementado, também, o número de vigias. Para que a

vigilância fosse mais severa ainda, quatro famílias, escolhidas através de vários

critérios, foram morar no mutirão.

Assessoria técnica e associação decidiram terminar todas as casas do primeiro

andar, com laje batida, para poder avaliar, com uma certa tranqüilidade, a

viabilidade do segundo andar. Somente os materiais necessários ao

confecionamento da cobertura, como por exemplo as telhas e a madeira, foram

comprados sucessivamente.

A avaliação final foi feita pela assessoria técnica. Os estudos elaborados foram

repassados aos mutirantes e à PMI que foi pouco presente no decorrer de toda a

obra. Os resultados dos estudos evidenciavam, como era possível executar a

ampliação do segundo andar. Os mutirantes decidiram fazer a ampliação possível

se, alguns itens do segundo andar fossem deixados, para completar sucessivamente,

por parte dos mutirantes. Estes itens eram as esquadrias, as paredes divisórias, e o

revestimento externo, que poderia ser, tanto uma pintura hidrófugante ou acrílica

quanto um reboco. É este último um dos pontos da obra passíveis de crítica, pelo

fato que o tijolo sofre a presença da água devendo, necessariamente, ser protegido,

tanto nas fundações, como foi feito, quanto nas paredes sujeitas a ação da água. A

responsabilidade de deixar a impermeabilização das paredes nas mãos dos futuros

moradores foi grande e revelou-se, uma faca de dois gumes, criando algumas falsas

idéias sobre o tijolo da Usimix. Muitas destas casas não foram impermeabilizadas

por fora e com os anos começam a ser sujeita a fenômenos de uma certa seriedade,

como a lisciviação que, com o passar dos anos, pode abalar seriamente a estrutura.

Com a decisão de se fazer o segundo andar, a fábrica de pré-moldados, que já tinha

produzido toda a laje usada no primeiro andar, foi ampliada, com a construção de

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um galpão no qual seriam colocados, para curar, as peças pré-moldadas que iriam

compor a escada.

No final desta construção, que podemos definir como primeira etapa, e enquanto

estava sendo elaborada a análise financeira, a associação sofreu uma séria crise, que

colocou práticas e cargos em discussão, afetando por conseqüência, também, o

mutirão.

No mutirão, a gravidade dos problemas sugeriu uma recomposição geral das

equipes. As equipes não estavam mais executando as ordens de serviço, repassados

pela coordenação. Vários coordenadores foram, também, tirados do próprio cargo.

Foi este um momento muito crítico, que necessitou uma ação drástica, que foi

executada com sucesso pela assessoria técnica da diretoria.

Achamos que as razões desta crise foram quatro:

1. as equipes foram criadas vários meses antes do mutirão começar e por

esta razão podem ter sofrido um desgaste por causa da demora em

começar a obra;

2. sua composição foi decidida pela associação, o que nos leva a pensar na

possibilidade de falta de critérios na hora da composição;

3. sendo o mutirão a alma da vida associativa, funcionando de amplificador,

as equipes talvez ressentiram os problemas que estavam tendo no

âmbito da diretoria;

4. sendo introduzido um sistema construtivo novo, com um grau maior de

especialização, talvez ressentiram, em um grau até então inédito, desta

fase em particular, a qual participaram de maneira periférica.

A última consideração merece ser destacada, porque nos ajuda a entender como o

processo de construção do mutirão não é um processo linear, tendo, assim,

repercussões que tem que ser avaliadas e levadas em consideração na hora de

decidir questões estratégicas, como é o caso de decidir qual sistema construtivo

adotar.

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Esta questão envolve as quatros tipologias de trabalho que foram apresentadas,

afetando mais o trabalho mutirante. Assim, se em outros trabalhos como o trabalho

das empreiteiras e da frente de trabalho, a relação tarefa/mão sendo mais

especializada e limitada no tempo de obra, chegando como no caso de algumas

contratações a ser pontual e linear, o trabalho mutirante, ao contrário, varia muito

em relação ao tipo de trabalho previsto, pelo fato de ser um trabalho contínuo, com

um baixo grau de profissionalização, presente no decorrer de todo o

empreendimento.

Ter um baixo perfil profissional é um agravante. Além do mais, este perfil não

muda substancialmente, ao longo do período de trabalho que é, por definição, no

arco da obra inteira. É fácil entender como este trabalho concentrara-se em alguns

momentos e menos em outros. São os momentos de menor concentração os mais

críticos, permitindo relaxamentos que devem ser evitados, mais uma vez, através de

uma ação conjunta da assessoria técnica.

Um destes momentos de menor concentração de trabalho, no mutirão Primeiro de

Maio foi na hora da confecção da alvenaria. Nesta hora é fundamental a parceria

com o trabalho social, que pode aproveitar estes momentos para programar as

atividades que. em outros momentos, dificilmente, terão a possibilidade de serem

desenvolvidas, sem atrapalhar o rítmo da obra.

É necessário observar com atenção que este não significa subordinar o trabalho

social ao trabalho físico, pelo contrário, é a tentativa de sugerir uma

complementaridade de um com o outro, necessária para que o processo seja um e

contínuo.

No Primeiro de Maio esta questão apareceu ainda mais evidente, porque na hora da

confecção da alvenaria, o sistema construtivo escolhido previa o trabalho de

profissionais especializados e treinados.

Nesta situação especifica, outras atividades contemporâneas como a concretagem

de laje, não conseguiram absorver toda a mão de obra que é, não obstante as faltas

que normalmente ocorrem, sempre maior que o necessário.

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No mutirão sobraram, assim, pessoas para trabalhos que, aos olhos dos mutirantes

aparecem como poucos nobres, como limpeza, manutenção de ferramentas etc.;

poucos nobres porque não acrescentam nada à habitação como produto, e são

também trabalhos cujos resultados não são visíveis e menos ainda definitivos. Este

constitui, na visão dos mutirantes, algo similar a uma perda de tempo.

O quanto relatado serve para explicar as dificuldades que o trabalho social,

normalmente, encontra entre os mutirões e entre os mesmos lideres das associações,

muitos dos quais acham possível fazer a menos deste tipo de trabalho ou acham

que seja para usar somente para apagar incêndios. Achamos, pelo contrário, que é

um trabalho fundamental, que encontra numa ação pedagógica e educativa dos

mutirantes, o seu maior sentido e que, possivelmente, teria que começar antes das

obras físicas.

Juntamente com a recomposição das equipes, com exclusão da equipe da cozinha,

da creche, do banheiro e da horta, foi feita uma avaliação entre mutirantes e

coordenação sobre o regulamento de obra. Divididos por grupos de trabalho, os

mutirantes debateram sobre as falhas que ocorreram na obra. Duas questões eram,

segundo eles, determinantes:

1. a não aplicação do regulamento de obra para questões disciplinares e de

controle;

2. o uso correto dos equipamentos e das ferramentas e as relativas

responsabilidades.

Decidindo uma aplicação mais zelante do regulamento de obra, a assembléia criou,

nesta ocasião, algumas comissões. A comissões criadas foram:

1. a comissão da apontadoria, encarregada de dar suporte ao apontador

para regular questões como: medições das empreiteiras e pagamento dos

contratados e da frente de trabalho;

2. a comissão financeira cujas competências abrangiam a gestão financeira

da associação, mas tinha, também, a obrigação de repassar aos mutirantes

a prestação de contas;

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3. a comissão de ética, proposta pela diretoria e composta por 6 pessoas,

entre os quais 2 diretores, com a competência de investigar eventuais

denúncias e de aplicar sanções disciplinares.

A comissão de ética nasceu da exigência de investigar, esclarecer e resolver

denúncias que vinham sendo feitas dentro e fora da associação, tanto que,

denúncias chegaram até a câmara municipal onde, alguns vereadores da oposição

aproveitaram para criticar através das críticas à associação, a própria administração.

As críticas foram feitas de tal forma, que a AHI decidiu denunciar por calúnia um

destes vereadores.

Mas as críticas da oposição baseavam-se em fatos que tinham acontecidos nos

mutirões e na diretoria. As atenções maiores foram por causa de um fato

acontecido no Primeiro de Maio, onde um diretor da associação, que morava perto

do mutirão, utilizou parte do material e da mão de obra do mutirão para fazer

algum trabalho na própria casa.

Este acontecimento, quando foi de domínio publico foi usado pela oposição, que

ameaçou a criação de uma comissão de inquérito na Câmara de Vereadores para

buscar clareza sobre o caso, incluindo assim, também, a ação da associação em

geral.

Usando todos os meios políticos disponíveis e ao seu alcance, a associação

mobilizou-se para que a situação não degenerasse, conseguindo, assim, conter o

tumulto gerado sem que fosse aberta a CP.

Mas as críticas internas, que apareceram em forma de abaixo assinado entregue a

diretoria, com em anexo. as renúncias de vários diretores, colocaram a associação

no caos. Os pontos principais do abaixo assinado, denunciavam o uso

indiscriminado e indevido de alguns bens de propriedade da associação, por parte

de seu presidente e das poucas pessoas a ele vizinhas, além de denunciar a postura

autoritária do presidente, dentro e fora da diretoria.

Estas críticas juntamente com os acontecimentos externos, começaram a ameaçar a

credibilidade da associação, em especial modo a diretoria, que começou a ser

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criticada, também, por parte dos próprios filiados. A diretoria decidiu, portanto,

resolver os problemas definitivamente, fazendo participes a associação no seu geral,

através da convocação de uma assembléia.

É interessante analisar, para entender um pouco mais o porque destes

acontecimentos, um texto de poucas páginas produzido, na mesma época, pelo

primeiro presidente. Ele faz uma análise suscinta sobre a associação, seus

problemas e suas origens, além de fazer uma interessante avaliação sobre conceito

de autogestão por parte da associação.

Segundo ele, os problemas da associação são originados por duas questões:

1. falta de um fórum de debate das questões relacionadas com a moradia;

2. um sentimento de ciúme entre alguns setores da associação.

Sempre, segundo ele, a segunda questão é conseqüência direta da novidade

do processo que a associação tenta aplicar, isto é, a autogestão no qual exige uma

capacidade de liderança muito forte, "uma liderança desprendida de vícios e com

visão ampla, que perceba a importância de se compartilhar a autoridade"

(Saulo,1995/1). Por esta razão, ele faz críticas a quem, sem nomeá-los, abusam da

autoridade dada pela associação, explicando que o verdadeiro sentido da

autogestão é o compartilhamento desta autoridade,

"muitas vezes nós que somos coordenadores de núcleo, mutirão e da

entidade, temos o vício de achar que podemos ser a autoridade e o

direto de comandar, eu diria cercear uma pessoa de acordo com aquilo

que se pensa. A autogestão não comporta este tipo de pensamento,

por isso ela é revolucionária." (Saulo,1995/1)

Sua avaliação abrange também a experiência da autogestão em Ipatinga até então:

"auto-gerir define que todos participem nos mínimos detalhes da

gestão dos recursos publico, na compra, na construção, na proposta

dos projetos. Os Sem Casas de Ipatinga ainda não exercem a

autogestão, no entanto estamos em via de atingir, pois a experiência

de 5 anos contribuiu para saltarmos mais degrau em sua direção.

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Mesmo com essa experiência, há ainda muitos coordenadores de

núcleo e sem casas que desconhecem esse processo, para eles a

autogestão é apenas uma palavra morta. Ela nós parece uma idéia

filosófica, ainda não alcançou um patamar de praticidade. Para a

maioria dos sem casas tanto faz se a prefeitura paga a empreiteira ou

fazer o repasse para os Sem Casas construírem, neste sentido é que se

inicia a árdua tarefa de consolidação e enraizamento na base do

movimento e da proposta da autogestão" (Saulo,1995/1).

Uma avaliação muito crítica sobre os acontecimentos. Neste documento, ele

organiza uma proposta para a diretoria, que é objeto das denúncias e das críticas,

proposta que baseia-se na democratização das práticas da diretoria. Sugere assim,

alguns critérios necessários para a candidatura dos diretores e os pontos mais

importantes nos quais a associação terá que afunilar as próprias lutas, como:

1. a organização dos mutirões que já estão habitados, demonstrando um

aumento da sensibilidade da associação sobre a delicada questão do pós

morar;

2. a ampliação do número dos mutirões construídos por autogestão,

conscientizando a associação das próprias limitações e fortalecendo as

coordenações de núcleo;

3. a consolidação dos conselhos de núcleo.

Estas propostas, todas sensatas, iam na direção de uma maior descentralização da

associação que não obstante auspiciosa, não foi realizada.

h)h) A solução da crise e as reivindicações da associação.A solução da crise e as reivindicações da associação.

Na assembléia que foi convocada para discutir e clarear os problemas, não

participaram os diretores que tinham enviado o abaixo assinado com as próprias

renúncias. Nesta ocasião, o primeiro presidente da associação introduziu as

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atividades da assembléia de uma forma incomum, isto é, enumerando os princípios

norteadores da ação da associação, que segundo ele eram: honestidade, sinceridade

e união.

A discussão, sobre o que vinha acontecendo, foi conduta somente por uma das

partes, sem que acontecesse um debate entre as duas que era auspicavel e que teria

dado à associação a possibilidade de crescer, através de um confronto democrático

sobre posições divergentes que poderiam buscar, através do diálogo, pontos

comuns. O presidente se reservou a tarefa de entrar em contato, pessoalmente, com

os diretores, mas não conseguiu. A diretoria após algumas discussões, se reuniu

juntamente com um advogado, para avaliar os próximos passos a serem dados. O

Saulo Manoel, já primeiro presidente da associação, não concordava com a idéia da

renúncia, assim como o mesmo presidente em cargo, o que teria levado, em breve, a

uma nova eleição. Ambos sugeriram que as próximas ações fossem bem pensadas

por parte de todos, a fim de evitar ações precipitadas, que poderiam prejudicar o

movimento. O prefeito, não concordou, quando tomou conhecimento dos fatos,

ameaçou cortar as verbas da associação se não fosse solucionado o problema, no

mais breve tempo possível. Por esta razão, ele presenciou à assembléia, cujo

objetivo era resolver os problemas internos da associação.

A solução achada pela diretoria foi a mais simples e a mais fácil e de fato a mais

indolor, na qual pesa muito a intromissão do prefeito. Assim, os diretores que

renunciaram foram substituídos por outras pessoas e os questionamentos

levantados pelo abaixo assinado permaneceram sem resposta.

Achamos que esta foi uma ocasião perdida, por ambas as partes, especialmente por

parte dos diretores demissionários que haviam levantado as questões. Uma ocasião

perdida através da qual poderia ter mudado o rumo da associação. A falta da

presença dos diretores que renunciaram na assembléia, serviu para que a linha

política da associação caminhasse, de maneira mais marcada, dentro das trilhas que

já estavam traçadas.

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Na assembléia, para animar talvez os filiados, foram encaminhadas algumas

reivindicações ao prefeito e aos demais administradores. As reivindicações eram

sete. Vale a pena listá-las, porque permitem definir, brevemente, o que foi feito

delas, por parte da PMI; elas eram:

1. a construção de 500 unidades habitacionais para o ano de 1994,

reivindicação que não se realizou da forma que a associação esperava; as

moradias construídas para a população de baixa renda beneficiaram as

famílias que moravam na área de risco do centro da cidade; a partir desta

assembléia a AHI não conseguiu, nunca mais, a construção de uma única

moradia pelos próprios filiados;

2. a criação de um programa de lotes urbanizados, prometidos às 120

famílias que ficaram na lista de espera, nunca foi feito; as 120 famílias

ficaram ,de fato, prejudicadas permanecendo como demanda não

solucionada;

3. a regularização fundiária dos mutirões, que foi realizada pelo poder

público, embora pelo primeiro mutirão com um certo atraso;

4. a criação de um conselho municipal de habitação, reivindicação que

permaneceu no papel, embora muitas foram as discussões feitas e o

tempo gasto nesta questão;

5. a reposição do empréstimo feito pela associação para a complementação

das obras do primeiro mutirão, que foi em parte acolhida, mais por uma

questão de bom senso, se responsabilizando junto com a AHI o uso dos

recursos públicos;

6. a retomada das obras do Nova Conquista em caráter de emergência, que

foi acolhida pela PMI, tratando-se de uma ação pontual e de pequeno

porte em termos financeiros;

7. a realização das infra-estruturas, água, luz e pavimentação no conjunto

Novo Jardim - São Francisco, que foi aceita e executada, algum tempo

depois, tratando-se, esta também, de uma ação pontual embora o porte,

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em termos financeiros, não seja tão pequeno; esta reivindicação nasce do

fato de que os convênios estipulados entre AHI e PMI são, convênios de

construção, com a infra-estrutura, teoricamente a cargo da PMI, a qual

demora um bom tempo para executá-la, acarretando neste período vários

tipos de dificuldade às famílias moradoras.

É evidente que as mais importantes, como a constituição de um programa de lotes

urbanizados e de um fundo municipal de habitação popular, não tornaram-se

realidade. A falta deste último colocava em risco todos os esforços realizados,

fazendo com que os financiamentos dependessem de disponibilidades

orçamentárias e, o mais grave, da boa vontade da administração.

As várias reivindicações realizadas foram, principalmente, pelo seu caráter limitado

e pontual não constituindo um impacto significativo nem politicamente, pela

dimensão dos recursos empregados, nem no aspecto urbano, e menos ainda pelos

associados sendo que eles, na época, somavam mais de 2000 famílias.

Nos perguntamos se havia consciência da heterogeneidade dos pedidos por parte

dos diretores e se esta heterogeneidade foi repassada, também, aos próprios

filiados.

Achamos que isto não aconteceu. Sempre nesta assembléia foi votado o novo

estatuto, no qual são introduzidas algumas modificações, discutidas entre núcleos e

diretoria.

i )i ) A conclusão do mutirão.A conclusão do mutirão.

As atividades no mutirão, no entanto, recomeçaram com as novas equipes, no total

19, os coordenadores que não deram problemas nas velhas equipes, foram

empregados como monitores para ajudar a coordenação da obra.

O resultado positivo do estudo econômico, para o segundo andar, fez com que a

associação pedisse formalmente à PMI autorização para iniciar o segundo andar. A

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autorização não demorou a chegar e logo foram iniciadas as atividades de

construção do segundo andar. A gestão dos últimos recursos foi muito cautelosa,

importante foi a ajuda fornecida por parte de um engenheiro florestal que,

convidado por parte da associação, através do técnico que acompanhava a obra,

elaborara e executara com os mutirantes um projeto de reflorestamento das

encostas do conjunto.

Neste período de acabamento das construções, o engenheiro florestal prestou um

precioso serviço de ajuda no controle dos recursos, controle no qual participavam

todos os coordenadores, que analisavam, semana por semana, a situação financeira,

através das planilhas preparadas pelo engenheiro que, como afirma o técnico

residente, foi uma ajuda fundamental neste sentido.

Com a obra encaminhando-se para o final, uma parte da associação não tinha-se

convencido da segurança das unidades habitacionais que estavam sendo

construídas. O técnico que acompanhava a obra deu as explicações necessárias,

pedindo também, a execução de alguns testes de resistência das paredes para que

fosse, definitivamente, eliminadas as dúvidas e as incredulidades que envolviam

este sistema construtivo.

Com a construção do segundo andar, foi necessário avaliar a solução da cobertura.

As soluções possíveis eram duas: a estrutura de madeira e a estrutura metálica. A

associação decidiu fazer uma avaliação conjunta para saber qual era a mais

econômica e qual se encaixava dentro das possibilidades econômicas. Paralelamente

a este estudo, vinham sendo compradas as telhas cerâmicas, que eram estocadas

dentro de algumas casas. O corpo técnico era claramente favorável à execução de

uma cobertura metálica pela sua agilidade e facilidade de montagem. Os contatos

que a associação possuía para realizar a estrutura do telhado de metal era com a

Usimec. Os estudos comparativos demonstraram a solução de estrutura metálica

inviável, do ponto de vista financeiro. Os técnicos tentaram uma última chance,

sugerindo à associação de tentar, de alguma forma, obter os recursos necessários na

PMI e para estimulá-la, organizaram uma visita a Timóteo, onde haviam

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167

construções que usavam este tipo de estrutura. Estes esforços não foram, porém

suficientes, e afinal adotou-se a estrutura de madeira, na qual dava uma certa

garantia de ficar dentro do orçamento inicial.

Para a execução do segundo andar foram contratados mais profissionais, e como é

praxe nestes empreendimentos, todos de famílias ligadas à associação.

As casas ficaram prontas em novembro de 1995. O custo de cada casa foi de 5.725,17

R$, com um valor de 80,00 R$ por metro quadrado, o que constituiu um sucesso até

hoje não igualado em outros conjuntos.

5.5. Análise dos Dados de Ipatinga.

5.5.1. O Problema

Produzir unidades e assentamentos habitacionais populares de baixo custo e de boa

qualidade é um problema sobre o qual muitos pesquisadores brasileiros se têm

debruçado, desde os anos 60. O projeto desenvolvido pela Escola de Arquitetura da

UFMG, através de seu Núcleo de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, e

com o apoio da Finep, insere-se nesse esforço.

Procuramos desenvolver uma abordagem fenomenológica para avaliação do uso do

espaço em unidades e assentamentos residenciais populares, visando à obtenção de

parâmetros para futuros projetos arquitetônicos e urbanísticos (novos projetos,

reformas ou intervenções pontuais). Esses parâmetros, associados a técnicas de

computação gráfica e multimídia interativa, ajudam a superar algumas dificuldades

técnicas e operacionais com que os arquitetos se defrontam quando se propõem a

viabilizar a participação dos usuários na fase de concepção de projetos.

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168

As questões de pesquisa com as quais trabalhamos foram as seguintes:

• Como conhecer as necessidades dos usuários?

• Como viabilizar a participação dos usuários nos projetos para o coletivo?

A partir dessas questões levantamos as seguintes hipóteses:

1.1. O conhecimento das espacializações habitacionais pode ser obtido através de

Leituras EspaciaisLeituras Espaciais, visando à identificação dos Conflitos Arquitetônicos Conflitos Arquitetônicos que

ocorrem nas interações dos moradores com as suas moradias e assentamentos.

1.2. Os projetos baseados nesse conhecimento podem gerar lugares mais receptivos,

com os quais os usuários se identifiquem, sentindo-se participantes de sua

formulação.

1.3. As técnicas avançadas de computação gráfica, notadamente as simulações

realísticas animadas do espaço arquitetônico - arquitetura virtual - podem

contribuir enormemente com o processo de comunicação usuários/arquitetos, para

aferir, previamente, o grau de satisfação dos moradores com suas moradias e

assentamentos.

O trabalho iniciou-se pela construção da abordagem fenomenológica, que resultou

na formulação do conceito de "Conflito Arquitetônico" e na elaboração do método

das "Leituras Espaciais" que identificam esses conflitos. Depois disso, passou-se ao

trabalho de campo, que foi desenvolvido numa perspectiva multicultural,

abrangendo três experiências significativas:

I - Dois conjuntos habitacionais construídos em mutirões autogeridos, em Ipatinga,

Minas Gerais.

A experiência é significativa porque foi pioneira, no Estado, no que concerne à

participação dos mutirantes no processo de gestão administrativa e financeira do

empreendimento. Nosso trabalho revelou que, além de ser significativa no contexto

de Minas Gerais, a experiência de Ipatinga apresentou algumas peculiaridades que

trazem lições para o restante do País, conforme demonstrou CONTI 54. Ao escolher

54 CONTI, A . A experiência da autogestão em Ipatinga: uma busca pelo conceito. Dissertação de Mestrado.

Escola de Arquitetura - Universidade Federal de Minas Gerais, 1999.

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esses conjuntos, também levamos em conta que, sendo construídos num esforço

comunitário e com um certo nível de participação dos usuários, apresentariam

menos conflitos que outros construídos por empreiteiras, no sistema tradicional.

II - O campus experimental de Narandiba, em Salvador, Bahia, construído pelo

Banco Nacional da Habitação - BNH, em 1978, com a parceria de empresas de

construção.

Esse empreendimento foi considerado significativo porque foi o grande evento

técnico- construtivo promovido pelo extinto BNH, na tentativa de demonstrar os

esforços desenvolvidos, até então, para o barateamento das habitações populares.

Além disso, em Narandiba se empregaram novas tipologias habitacionais,

tecnologias de construção industrializadas e tecnologias alternativas ou

apropriadas, como eram denominadas na época.

Este ensaio versa sobre a investigação da questão "Como conhecer as necessidades

dos usuários?", considerada chave para a elaboração de projetos que conduzam ao

aumento do grau de satisfação dos moradores com as suas moradias. Para

responder a essa questão empregamos a abordagem fenomenológica desenvolvida

por MALARD.55

5.5.2. Uma breve consideração sobre a abordagem

fenomenológica

Tentaremos fazer uma síntese do que entendemos por abordagem fenomenológica,

uma vez que a construção do nosso método de avaliação do ambiente construído

foi apoiada nela. Nossa referência é Herbert Spiegelberg, um dos mais

proeminentes estudiosos de fenomenologia na contemporaneidade.

Quando se fala em abordagem fenomenológica, o leitor com pouco trânsito na área

de filosofia há de perguntar: o que é fenomenologia?

55 MALARD, M.L. Brazilian low-cost housing: interactions and conflicts between residents and dwellings.

Tese de Doutorado. School of Architectural Studies, Universidade de Sheffield, Inglaterra, 1992.

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Herbert Spiegelberg, no prefácio da primeira edição de seu livro "The

Phenomenological Movement" 56 reconhece que, embora essa questão seja legítima,

ela não pode ser respondida. Ele sugere que não há um sistema filosófico, com um

sólido corpo teórico, chamado "fenomenologia", mas há um método

fenomenológico, e tenta determinar quais são as características essenciais desse

método. Ao fazê-lo, ele primeiro discute as diversas fases do movimento

fenomenológico, classificando-as em fase preparatória, fase germânica e fase

francesa. Spiegelberg, entretanto, só considera, no seu estudo, aqueles filósofos que

se reconheceram como fenomenologistas ou que assumiram adotar pontos de vista

fenomenológicos. Ele enfatiza que seria impossível arrolar os aspectos essenciais da

fenomenologia pelos resultados das abordagens fenomenológicas, pois muito

freqüentemente os fenomenologistas interpretam diferentemente um mesmo

fenômeno. O que os conecta, segundo ele, é o fato de adotarem o método

fenomenológico. Na elucidação do que seja esse método, Spiegelberg primeiro o

situa como sendo, antes de tudo, um protesto contra o reducionismo. É por isso que

uma abordagem fenomenológica evita os recortes epistemológicos e procura

analisar o fenômeno holisticamente, emancipando-o de crenças cristalizadas ou

teorias que perpetuam os preconceitos e os prejulgamentos. Esclarecido esse

aspecto, ele passa à listagem dos passos de uma abordagem fenomenológica. Esses

passos, pinçados das metodologias usadas por todos aqueles que se admitem

fenomenologistas, são os seguintes:

a - investigar um fenômeno específico;

b - investigar as essências gerais;

c - compreender as relações entre as essências;

d - observar a constituição do fenômeno na consciência;

e - duvidar da existência do fenômeno;

f - interpretar o significado do fenômeno.

56 SPIEGELBERG, H. The Phenomenological Movement. The Hague: Martinus Hijhoff Publishers, 1984. p.

XXVII.

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171

Os três primeiros passos, segundo Spiegelberg, foram aceitos e praticados por todos

aqueles que se alinharam ao movimento fenomenológico, enquanto que os demais

passos foram praticados apenas por um pequeno grupo de fenomenologistas.

Na abordagem fenomenológica que desenvolvemos, adotamos o passo aa e o passo

número ff . O passo aa é investigar um fenômeno específico; a apreensão intuitiva do

fenômeno; seu exame analítico e sua descrição. Essas três operações geralmente

recebem a denominação geral de "descrição fenomenológica".

O passo ff, interpretar o significado do fenômeno, é uma operação que consiste na

descoberta dos significados que não se manifestam imediatamente à nossa intuição,

análise e descrição. Assim, o intérprete tem de ir além do que lhe é diretamente

dado. Essa é uma das faces mais controvertidas da abordagem fenomenológica,

uma vez que implica em considerar instâncias do fenômeno que não estão à mostra:

os significados escondidos. A hermenêutica fenomenológica de HEIDEGGER, 57

expressa em Being and Time, dá muitos exemplos de como essa empreitada pode

ser conduzida. E foi nela que nos apoiamos neste trabalho.

Feitas essas breves considerações sobre a abordagem fenomenológica aqui adotada,

passamos à discussão do conceito de participação que elaboramos no caminho de

busca da resposta à pergunta "como conhecer as necessidades dos usuários?"

5.5.3. Participação dos usuários através do

conhecimento de suas necessidades

A grande questão metodológica que se coloca à participação dos usuários no

processo de planejamento e projeto do ambiente construído é de ordem puramente

operacional: quando se trata de um objeto a ser apropriado por milhares de pessoas,

como viabilizar a participação desse coletivo na formulação do projeto desse objeto?

Essa não é uma questão trivial, pois não pode ser resolvida pelos instrumentos

metodológicos usualmente presentes nas ações de projeto de arquitetura e

57 HEIDEGGER, M. Being and Time . Trad. John Macquirre & Edward Robinson. London: SCM Press, 1962.

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urbanismo. A primeira dificuldade que a participação coletiva apresenta é

relacionada à compreensão, por parte de leigos, dos códigos de representação do

objeto arquitetônico. As visualizações projetivas − através de plantas, cortes e

fachadas − se constituem num código para o qual poucos possuem a chave. As

visualizações em perspectiva e os modelos reduzidos, embora sejam mais acessíveis

ao entendimento dos leigos, apresentam também muitas dificuldades para a sua

compreensão. Discutindo a psicologia da representação pictórica, GOMBRICH 58

demonstra que representamos através do conhecimento que temos da natureza e,

na medida em que aprendemos a ver, aprendemos também a representar; vemos,

portanto, apenas aquilo que conhecemos. Quem não conhece os códigos da

representação em perspectiva ou dos modelos reduzidos (as maquetes) terá,

certamente, dificuldades de assimilar e compreender plenamente o objeto que está

sendo representado, pois terá dificuldade de vê-lo na sua inteireza. A perspectiva

necessariamente reduzirá as possibilidades de visualização e entendimento de

determinados ângulos ou situações espaciais. A maquete, embora veicule mais

efetivamente a idéia do objeto, traz o problema da escala, gerando ilusões de toda a

ordem. Fica, então, a pergunta: se o leigo não consegue compreender a inteireza do

objeto imaginado, como então conseguiria participar de sua imaginação?

Tendo em vista todas essas dificuldades de comunicação entre o objeto imaginado e

o mundo real, obter a participação de um leigo num projeto significa, também, dar-

lhe os meios de acessar esses códigos de representação, para que possa entender o

que está sendo proposto e contribuir com a proposição. Ninguém participa sem

decidir nem decide sem conhecer. Se assim não for, o projeto participativo será

apenas uma manipulação para legitimar as decisões do arquiteto e de outros

técnicos envolvidos no processo.

58 GOMBRICH, E.H Arte e Ilusão: um estudo da psicologia da representação pictórica. Trad. Raul de Sá

Barbosa. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

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173

Por outro lado, como propiciar ao leigo os meios de acessar o código arquitetônico?

E mais: uma vez acessado o código, como processar as diversas intervenções? Como

selecioná-las, compatibilizá-las e priorizá-las?

Essas questões são pouco tratadas na literatura disponível sobre planejamento

arquitetônico participativo. A literatura que trata do assunto geralmente se

restringe a discutir a participação dos usuários nos processos decisórios, no âmbito

do planejamento e gestão urbanos. Trata-se, portanto, de uma participação nas

decisões sobre políticas a serem adotadas. O caso do projeto arquitetônico

participativo demanda a participação dos usuários nas decisões sobre as soluções

técnicas e projetuais. São, portanto, níveis diferentes de participação, os quais

implicam em inserções diferenciadas dos atores. Excluídos os casos de projetos de

residências unifamiliares, para clientes individuais, as poucas experiências de

projeto arquitetônico realmente participativo que a literatura registra são os

trabalhos de ALEXANDER 59 para a Universidade de Oregon, nos Estados Unidos,

e de KROLL 60 para a Universidade de Louvain, na Bélgica. Em ambos os casos as

experiências se limitaram a trabalhos com grupos pequenos, de mesmo nível

intelectual, que tinham uma noção precisa de seus desejos e aspirações. Não

encontramos registros de experiências participativas com comunidades

diferenciadas intelectualmente, de diversas faixas etárias e com variadas

expectativas em relação ao uso de seu tempo e do seu espaço.

A participação do usuário no processo de projeto é, na verdade, mais que um

desafio metodológico: é uma questão teórica a ser enfrentada.

No bojo dessas reflexões surgiu a idéia de se fazer primeiro uma "leitura" dos

objetos existentes, através de observações sistemáticas, para conhecer as interações

usuário/espaço que ocorriam nos assentamentos habitacionais, investigar suas

motivações e analisar suas conseqüências. As informações provenientes dessas

59 ALEXANDER, C., SILVERSTEIN, M. ANGEL, S., ISHIKAWA, S., ABRAMS, D., The Oregon

Experiment. New York: Oxford University Press, 1975.60 KROLL, L. Architecture of Complexity. London: Batsford Ltd., 1986.

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leituras haveriam de nos servir para pavimentar um caminho seguro, em busca de

configurações espaciais e de soluções arquitetônicas que melhor respondessem às

demandas daquele extrato populacional investigado.

A hipótese levantada é de que, conhecendo a forma de uma comunidade no espaço,

poderíamos projetar, para ela, espaços com os quais ela se identificasse. Na base

desse raciocínio estava o entendimento de que o espaço é o mediador das relações

sociais e atua sobre elas, na medida em que sugere, facilita, dificulta e até

condiciona os acontecimentos. Assim, o espaço arquitetônico não é neutro perante o

fato social. Ao contrário, é intencional. Oferece possibilidades de apropriações ou,

melhor dizendo, de espacializações.

O conceito de "apropriação" é corriqueiro no vocabulário dos arquitetos. Diz-se que

um determinado espaço foi apropriado quando ele é largamente utilizado pelos

usuários, para uma ou mais atividades, independentemente de sua destinação

originária de projeto. Quando o uso é aquele que o arquiteto previu, diz-se que o

espaço foi apropriado corretamente. Em caso contrário, o usuário é

responsabilizado pelo "uso inadequado" do espaço. Podemos concluir que, de

acordo com o senso comum (dos arquitetos), apropriação é sinônimo do uso −

devido ou indevido − de um espaço.

A espacialização refere-se, portanto, ao modo de ser, no espaço, de um fato social. É

a forma físico-espacial de um acontecimento. Por isso ela "significa" esse

acontecimento. Por exemplo, a aula expositiva, ou de preleção, é a forma social, o

modo com que aquele grupo transmite conhecimentos institucionalmente; a sala

com carteiras voltadas para quem vai expor é a forma física que significa “sala de

aula expositiva” para os elementos que pertencem àquela cultura. A espacialização

"aula expositiva" não é apenas um leiaute. Nela estão impressos alguns significados:

todas as carteiras estão voltadas para um mesmo lado, o que sugere que a atenção

daquelas pessoas estará para ali dirigida; na parede desse lado tem um quadro-

negro, mostrando que escritos e gráficos fazem parte da atividade; em frente às

carteiras e ao lado do quadro-negro fica uma escrivaninha onde se sentará a pessoa

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para a qual estarão todos atentos; essa escrivaninha é maior do que as carteiras e

ocupa uma área relativa também maior, o que significa que a pessoa a ocupá-la

estará em destaque naquele contexto; se há alguém em quem todos os outros

prestam atenção, essa pessoa é decididamente mais importante do que as outras,

nesse grupo. Enfim, uma espacialização revela não somente a estrutura

organizacional da atividade como a estrutura de poder da comunidade. Como

vimos, na disposição espacial do mobiliário e dos equipamentos pode-se "ler" a

atividade aula expositiva, com todas as suas implicações da pedagogia do que sabe

e do que aprende.

Num mesmo grupo social é possível que determinadas atividades se espacializem

sempre da mesma maneira, embora desenvolvidas por indivíduos diferentes. Nesse

caso pode-se dizer que há um "padrão" para essas atividades, como no caso da sala

de aula expositiva. Conseqüentemente, há uma forma específica para esse padrão.

Nessa forma os elementos estão ordenados e os lugares estão diferenciados para

atender ao modo de ser, no espaço, daquela atividade. O espaço, então, deixa-se

conformar pelos acontecimentos, ao mesmo tempo em que os acolhe e os afeta. Os

eventos que ocorrem numa determinada forma arquitetônica são aqueles possíveis

nessa forma e nela se contêm, mesmo que acabem por recodificá-la ou reformá-la.

Um outro fator que interfere na espacialização de um evento é o tempo. Não o

tempo cronológico, mas o tempo vivido, no conceito de BOLLNOW 61. Para que um

evento ocorra, além da disponibilidade de espaço deverá haver disponibilidade de

tempo. As espacializações de lazer, por exemplo, jamais ocorrerão se não houver o

tempo para o lazer no quotidiano das pessoas. Portanto, os acontecimentos se

espacializam num espaço/tempo cuja investigação pertence ao território da

arquitetura. Conhecer essas espacializações, verificar suas formas e seus

significados para então formular novos conceitos e parâmetros aos quais os futuros

projetos devessem obedecer, isso nos pareceu ser o caminho para o projeto

61 BOLLNOW, O. F. Lived Space. In: Nathaniel Lawrence & Daniel O'Connor (Eds.), Readings in Existential

Phenomenology. Englewood Cliffs: Prentice-Hall, 1967, p. 178-186.

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participativo, ou seja, projetos com os quais as pessoas se identificassem. Essa

estratégia viabilizaria a participação massiva, sem colocar o arquiteto a reboque de

uma "vontade imperiosa" de supostos representantes dos usuários. Além disso,

teria a vantagem de permitir a inovação de soluções, pois o usuário, numa

participação direta, tenderia a requisitar arranjos espaciais dos quais ele já tivesse

alguma vivência, conduzindo o arquiteto a repetir formas já conhecidas para as

diversas espacializações. Já o arquiteto, com sua habilidade de gerar formas

tridimensionais que, segundo BROADBENT 62, é a única que lhe é peculiar,

certamente criaria novas formas para as espacializações, assegurando a evolução da

arquitetura, desde que tivesse liberdade para tal.

A descoberta de que seria possível fazer uma participação indireta resolveu, na

verdade, dois problemas. O primeiro, de caráter objetivo, era o problema

apresentado pela dificuldade de interação direta com um número muito grande de

usuários, dificuldade essa já explicada anteriormente. O segundo, de caráter

subjetivo, era a questão ética com a qual o arquiteto se defronta ao persuadir o

usuário de que sua solução para o projeto é boa e lhe é adequada. Conhecendo as

interações usuário/espaço − as espacializações − o arquiteto poderá formular

soluções nas quais os usuários se reconheçam. Assim não precisarão ser

persuadidos e poderão exercer sua escolha desde que compreendam o que está

sendo explicado, isto é, compreendam a linguagem.63

Para conhecer as espacializações deveríamos então proceder à sua “leitura”.

Entretanto, o quê deveria ser lido e identificado, para que as informações advindas

de um determinado contexto pudessem ser aplicadas a contextos semelhantes?

62 Cf. BROADBENT, G. Design in Architecture. Architecture and the Human Sciences. Londres: John Wiley

& Sons 1974.63 A questão da compreensão da linguagem arquitetural foi elaborada com o auxílio da computação gráfica.

Um projeto participativo, aplicando os parâmetros gerados pelas análises dos conflitos arquitetônicos e

utilizando o Estúdio Virtual de Arquitetura - EVA - está sendo elaborado e será publicado brevemente.

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No prosseguimento da reflexão sobre a interação usuário/espaço, colocou-se uma

outra questão teórica: o que é visível (para o arquiteto) e o que importa para a

arquitetura nessa interação?

Buscamos na fenomenologia de HEIDEGGER 64 as raízes existenciais da interação

homem/espaço, sujeito/objeto. Essa fundamentação está detalhada por

MALARD65, assim como o desenvolvimento da noção de "conflito arquitetônico",

que resumimos em seguida.

5.5.4. Os conflitos arquitetônicos

Quando uma espacialização se dá sem problemas, os atributos do espaço físico que

a abrigam não ficam tão visíveis para o observador, no caso o arquiteto. Ao

contrário, quando há alguma dificuldade para a espacialização de uma atividade, e

essa dificuldade é inerente à arquitetura do lugar, sua identificação é fácil, pois se

estabelece um conflito entre o usuário e o objeto arquitetônico − defeituoso ou

ausente − que se constitui no obstáculo ao pleno desenvolvimento da atividade. Por

exemplo, se passamos inúmeras vezes por uma porta, abrindo-a e fechando-a sem

transtornos, essa porta será para nós, usuários, apenas uma porta que funciona

64 HEIDEGGER, M. Being and Time . Op. cit. Os estudiosos de Heidegger − ver SPIEGELBERG, H. (1975)

Doing Phenomenology. The Hague: Martinus Nijhoff Publishers, 1975; SPIEGELBERG, H. The

Phenomenological Movement. The Hague: Martinus Hijhoff Publishers, 1984 e THEVENAZ, P. What is

Phenomenology? Chicago: Quadrangle Books, Inc- , 1962 − apontam essa obra como sendo a única do filósofo

em que ele desenvolve uma fenomenologia. Na introdução do livro ele explica que irá usar o método

fenomenológico e o seu entendimento dele. Mais tarde Heidegger abandona, e até renega, a fenomenologia.

Essa observação é no sentido de esclarecer nossa posição frente à fenomenologia de Heidegger, uma vez que

há um equívoco sistemático dos arquitetos − e da teoria da arquitetura − relativamente a esse aspecto. Esse

equívoco é o de tomar emprestado as magníficas reflexões de Heidegger em Poetry, Language, Thought .

Trans. Albert Hofstadter. New York: Harper & Row, 1971, que se aplicam à arquitetura, como sendo de

caráter fenomenológico. Quando escreveu esse livro, Heidegger já havia renegado a fenomenologia enquanto

método, e se voltado à poesia como forma de expressão.65 MALARD, M. L. O método em arquitetura: conciliando Heidegger e Popper. Cadernos de Arquitetura e

Urbanismo. Belo Horizonte, v.8, n.8, p.128-154, 2000.

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como deveria funcionar. Ela não se torna conspícua à nossa percepção. Por outro

lado, se a porta não se fecha propriamente, devassando nossa privacidade ou

tornando o espaço vulnerável ao ruído externo e à invasão de intrusos, logo se

estabelecerá um conflito entre nós e a porta, uma vez que ela estará prejudicando as

nossas espacializações naquele recinto.

Se, de um lado, a observação e o mapeamento das espacializações em nada seria

diferente de um levantamento de dados tradicional, a identificação dos conflitos

arquitetônicos existentes nessas espacializações é, por outro lado, um avanço

metodológico e nos trará novas informações úteis para futuros projetos.

Ler os espaços através de observações sistemáticas, identificar os conflitos ali

presentes, analisá-los e então propor novas formas para as espacializações, isso nos

pareceu ser um caminho promissor para uma avaliação qualitativa do ambiente

construído.

Como o trabalho precisava colher resultados que pudessem ser aplicados a

contextos sócio-econômicos semelhantes, mas em ambientes culturais diferenciados,

os campos de aplicação escolhidos foram, com já se disse, Ipatinga, em Minas

Gerais, e o Campus Experimental de Narandiba, em Salvador, Bahia. Esses casos,

no nosso entendimento, pertencem a cenários culturais peculiares, embora sejam

extratos sócio-econômicos semelhantes: uma comunidade majoritariamente

constituída de trabalhadores do setor informal, de uma cidade do interior mineiro, e

uma comunidade majoritariamente constituída de servidores públicos (da ativa e

aposentados), de uma metrópole do Nordeste do País.

Neste ensaio trataremos apenas o caso de Ipatinga. Narandiba já foi tratado em

outro local 66. As análises comparativas entre Narandiba e Ipatinga também serão

objeto de outra publicação, em futuro próximo.

66 MALARD, M. L., SOUZA, R. C., CONTI, A., RAMOS, F. M.G., CAMPOMORI, M. PALHARES, S.

Narandiba, a morada do sonho. Número especial da Revista da ANTAC, no prelo.

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5.5.4.1. A estratégia das observações de campo

As Leituras Espaciais são técnicas bastante ecléticas de registro de informação,

todas elas de fácil assimilação por parte dos arquitetos, uma vez que já pertencem à

nossa tradição profissional. Baseiam-se, fundamentalmente, na convicção teórica de

que um item de equipamento unready-to-hand provoca conflito na sua relação com

o morador, como caracteriza MALARD 67. Para cada sessão de Leitura Espacial

podem ser feitos "croquis" dos espaços observados, fotografias dos lugares, leiautes

do mobiliário, descrições livres do local, relatos sobre as atividades que estavam

sendo executadas e anotações ou gravações sobre os comentários emitidos pelos

usuários. Especial atenção deve ser dada aos comentários, pois eles são importantes

fontes de informação no sentido de apontar para possíveis conflitos arquitetônicos.

As Leituras Espaciais por meio de observações diretas visando à identificação de

Conflitos Arquitetônicos são procedimentos que se desenvolvem por tentativa e

eliminação do erro através da crítica 68. Assim sendo, elaborou-se uma estratégia

geral para a realização das Leituras Espaciais, constando de alguns procedimentos

operacionais que, na medida em que se desenvolviam, eram criticados e corrigidos,

gerando novos procedimentos. Descrevem-se, em seguida, os principais

procedimentos adotados: 69.

a) Pelo menos 10% dos domicílios de cada conjunto deveriam ser submetidos a

Leituras Espaciais. Isso daria uma amostra de, aproximadamente, 50 domicílios nos

dois conjuntos.

b) Os conjuntos a serem investigados foram divididos em cinco partes

proporcionais e cada parte entregue ao exame de uma dupla de pesquisadores de

67 MALARD, M. L Brazilian low-cost housing: interactions and conflicts between residents and dwellings, op.

cit.68 Para um melhor entendimento desse processo, ver MALARD, M. L MALARD, M. L. Cadernos de

Arquitetura e Urbanismo, op. cit., e POPPER, K. All life is problem solving. London: Routledge, 1999.69 O Relatório Final do projeto contempla uma descrição detalhada dos procedimentos, bem como a síntese das

discussões e avaliações críticas que se travaram no processo das Leituras. Aqui, por uma questão de limitação

de espaço, não foi possível incluir essa parte.

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campo. Cada dupla deveria escolher, para submeter à Leitura, casas que

apresentassem sinais de reformas e modificações. As Leituras não deveriam

concentrar-se numa determinada seqüência de domicílios, mas contemplar

exemplos de toda a área coberta pela dupla.

c) Os pesquisadores de campo receberam orientações gerais sobre o Método de

Leituras, dentre as quais destacam-se:

Procurar não fazer perguntas diretas aos moradores para não induzir a

manifestações. Entabular conversações banais e anotá-las para, posteriormente,

analisá-las, procurando indícios de conflitos e explicações para intervenções. Não

forçar conversações com os moradores pouco receptivos. Não transformar as

conversações em entrevistas.

Fazer registros gráficos e fotográficos de todos os eventos e situações espaciais que

lhes parecessem indicar conflitos arquitetônicos, ou tentativas de resolver conflitos.

e) Após uma primeira rodada de Leituras, as equipes deveriam reunir-se para

avaliar, criticamente, o andamento dos trabalhos e introduzir as correções de

rumo que se fizessem necessárias. Assim, os procedimentos seriam equalizados,

para maior confiabilidade dos resultados.

5.5.4.2. Identificando Conflitos Arquitetônicos em Ipatinga

Nesta seção faremos uma síntese dos resultados obtidos com a abordagem

fenomenológica na avaliação pós-ocupação dos conjuntos Primeiro de Maio e

Planalto II, em Ipatinga, Minas Gerais, ambos construídos pelo processo de mutirão

autogerido. Primeiramente daremos um panorama da cidade e dos dois conjuntos e

em seguida discorreremos sobre os Conflitos Arquitetônicos identificados nos dois

mutirões.

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181

5.5.4.2.1. A cidade

Ipatinga é uma cidade relativamente jovem, localizada no Vale do Rio Piracicaba,

estendendo-se por cerca de 250 km. a nordeste do maciço do Espinhaço, da Serra do

Caraça até as planícies do médio Rio Doce. Desenvolveu a sua forma urbana a

partir do início dos anos 60, graças a um projeto urbanístico que complementou a

instalação da indústria siderúrgica Usiminas, criada em 1956, mas em operação a

partir de 1962. A concepção do projeto urbanístico − de autoria de Rafael Hardy

Filho − adere de maneira explícita aos conceitos do urbanismo modernista: cada

bairro foi concebido como uma unidade de vizinhança, acompanhado dos

equipamentos de comércio, serviço e lazer.

O espaço urbano projetado reproduziu na cidade as relações funcionais e de poder

existentes no processo de trabalho. A cidade estratificou-se através dos bairros, cada

qual com seu caráter próprio, quer na arquitetura das edificações, quer nos aspectos

sociais. As moradias, assim como os equipamentos sociais e a infra-estrutura, foram

parte das condições de reprodução e controle da força de trabalho, estudadas e

implementadas pela usina.

Ipatinga apresentou, desde sua fundação, taxas de crescimento anuais de 12%,

chegando a uma população de 200.000 habitantes hoje. O resultado disso foi o

desenvolvimento de uma outra Ipatinga, com caracteres opostos à cidade planejada,

tanto no que diz respeito ao processo de formação, quanto aos aspectos relativos à

qualidade de vida da população. A parte planejada não se misturou com o restante

da cidade, criando uma diferenciação social entre os funcionários da empresa e os

demais segmentos da população. O acesso à habitação se deu via mercado

imobiliário ou via emprego na usina. As camadas sociais com baixo poder

aquisitivo e não empregadas na usina ficaram excluídas e tiveram que ocupar

encostas e fundos do vale. O poder público municipal, até emergirem as gestões

municipais populares, atuava muito timidamente na implantação de políticas

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182

públicas. Só no final dos anos 80 houve uma mudança nessa postura, com o

governo do Partido dos Trabalhadores − PT.

Na época imediatamente anterior à ascensão do PT ao governo municipal, boa parte

da população de baixa renda de Ipatinga vivia em áreas de risco, em ocupação

ilegal. Cerca de seiscentas famílias se abrigavam debaixo das pontes ou às margens

do Ribeirão Ipanema, próximo ao centro. Essa situação motivou a população a se

organizar, formando um movimento popular cuja reivindicação principal era a de

moradia adequada. Tal mobilização quebrou a posição de passividade da

administração municipal, forçando a criação de um programa de doação de

material de construção, às vésperas das eleições municipais de 1988. Nessas eleições

o deputado estadual Francisco Carlos Delfino − o Chico Ferramenta − do PT, foi

eleito prefeito de Ipatinga, inaugurando os governos de esquerda na cidade e uma

das primeiras administrações do PT em Minas Gerais. No seu primeiro ano de

gestão, a prefeitura deu continuidade ao programa de doação de material de

construção e permitiu a realização do mutirão que estava sendo implementado na

área invadida no começo de 1989. Esse mutirão recebeu o sugestivo nome de Nova

Conquista. Em janeiro de 1990 foi criada uma Coordenadoria de Habitação − CHI,

dentro da Secretaria de Trabalho e Ação Social − STAC. Daí em diante a questão

habitacional adquiriu mais realce, resultando nos assentamentos que são objeto

deste trabalho.

A idéia de introduzir uma forma alternativa de gestão na prática de produção

habitacional nasceu no decorrer da experiência do mutirão Nova Conquista e, no

seu início, foi fortemente influenciada pela experiência no município de São Paulo,

durante o governo de Luiza Erundina. O processo evoluiu numa série de

empreendimentos que, de alguma forma, tiveram um significado específico para o

desenvolvimento da política habitacional em Ipatinga. A escolha dos mutirões

Primeiro de Maio e Planalto II para o nosso estudo de caso se deve a fatores de

ordem operacional, tais como acessibilidade, contatos prévios com os moradores e

potencial de oferecimento de uma amostra consistente.

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183

5.5.4.2.2. O mutirão Primeiro de Maio

O projeto para a implantação urbanística do conjunto foi feito pelo arquiteto Cássio

Veloso, de Belo Horizonte. Para acompanhar a construção, a associação contratou

um engenheiro, Carlos Medeiros, também de Belo Horizonte, que tinha fortes

vínculos com o movimento popular. Os dois técnicos trabalharam juntos durante

toda a fase preparatória.

A Associação Habitacional de Ipatinga, criada no bojo do movimento popular,

sugeriu ao arquiteto que projetasse uma casa para ser ampliada, de modo a atingir

até três cômodos, respondendo assim às necessidades das famílias numerosas, que

eram a maioria. O arquiteto elaborou uma série de propostas, que foram

apresentadas à diretoria da Associação. Após analisar os projetos, a diretoria

escolheu uma proposta para encaminhar à aprovação das famílias. Observa-se que,

nesse processo, não houve participação dos usuários nas tomadas de decisão sobre

os projetos. Nem teria como haver, pois, como mencionamos anteriormente, os

códigos dos desenhos projetivos não são compreendidos pela maioria das pessoas.

A proposta apresentada, discutida e aceita pela assembléia da Associação previa a

construção de unidades habitacionais de um andar, com uma área de 39 m2 cada,

em lotes variando de 140 a 180 m2.

A unidade habitacional compunha-se, inicialmente, de um quarto, uma sala, uma

cozinha e um banheiro; a ampliação previa a construção de mais um andar, com um

salão que cobria quase inteiramente o espaço do primeiro andar; nele seriam

deixadas as amarrações e esperas para facilitar sua divisão em três quartos e um

banheiro. A área total da casa seria de 78 m2.

O projeto de implantação urbanística do conjunto conjuga a racionalização do

espaço disponível com as características morfológicas da área, como: declives

íngremes, lençol freático muito superficial, uma nascente, um brejo e um morro com

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184

fortes processos de erosão. Na sua implantação, ilustrada na fig. 1, individualizam-

se três partes.

A primeira − a mais periférica − possui 90 unidades habitacionais; localiza-se ao

lado da parte inicial da estrada das Lavadeiras, uma estrada de terra que liga o

bairro Bom Jardim com a rodovia BR 381, na direção Coronel Fabriciano − Timóteo.

Nessa parte podem ser identificados três setores: um com 40 casas, que é o elemento

de junção do conjunto com o bairro pré-existente; outro, pouco articulado

urbanisticamente, com uma fileira de casas ao longo da rua; um terceiro, na franja

extrema do conjunto, no qual o projetista criou um pequeno agrupamento de 29

unidades habitacionais, articulando um espaço que favorecesse o convívio entre os

moradores.

A segunda parte do conjunto situa-se acima da nascente e inclui 58 casas, a maioria

localizada numa área plana. As casas são articuladas como um pequeno núcleo

urbano. É uma das partes mais bem cuidadas pelos moradores e, por isso, é a

menos degradada de todo o conjunto.

A terceira parte é composta por 52 casas dispostas ao redor do morro, ao longo de

uma rua que liga o Novo Jardim São Francisco com a segunda parte do conjunto.

Do ponto de vista espacial, essa terceira parte parece uma continuação do Novo

Jardim São Francisco; somente o seu setor central é mais coeso, com vielas

perpendiculares à rua, e casas geminadas formando pequenos agrupamentos.

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185

Fig. 1 - Mapa do Conjunto Primeiro de Maio

Uma avaliação detalhada do processo de implantação do Primeiro de Maio pode

ser vista em CONTI (1999) 70.

5.5.4.2.3. O mutirão Planalto II

Após a enchente de 1993, que deixou centenas de desabrigados, a prefeitura de

Ipatinga começou a elaborar um projeto integrado de requalificação e

reurbanização da área de risco, e a construir novas moradias. A área destinada à

implantação do novo conjunto, que devia acolher por volta de 600 famílias, ficava

perto do local onde moravam as famílias, no Bairro Planalto. A prefeitura buscou

parcerias com o governo estadual e com o Banco Mundial − BIRD.

O projeto previa duas etapas:

§ A construção das moradias, a cargo e sob a responsabilidade da prefeitura, com

recursos municipais e estaduais;

70 CONTI, A. A experiência da autogestão em Ipatinga: uma busca pelo conceito. Op. cit.

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186

• reassentamento das famílias e demolição das casas da área de risco, com

posterior requalificação urbanística do local, também a cargo da prefeitura, mas

com capital do Banco Mundial.

A requalifição da área previa a recomposição da margem do Ribeirão Ipanema e a

criação de uma área livre, um estacionamento e várias quadras de esporte.

A parceria formada por vários agentes dividia as contribuições: o BIRD entraria

com 50% dos recursos, a maior parte dos quais destinados a intervenções de

recuperação da área do centro; o Estado com 25% e a Prefeitura com os restantes

25%, destinando essas quotas à construção de moradias.

Para atender de maneira diferente a população-alvo, que se dividia entre

proprietários e inquilinos, a primeira etapa foi dividida em dois empreendimentos,

cujas características eram bem diferentes: um, conduzido por empreiteira; e o outro,

pelo sistema de mutirão autogerido. No primeiro, as moradias se destinavam às

famílias que já eram proprietárias; no segundo, as moradias foram construídas

pelas famílias que pagavam aluguel e que se tornariam proprietárias.

No mutirão, a associação desenvolveu um papel até então inédito, criando uma

situação especial para satisfazer a demanda de famílias não filiadas: atuou como

uma espécie de empreiteira para fazer as casas dessas famílias.

O projeto do conjunto foi elaborado pela empresa AD, de São Paulo, que criou 3

tipologias que se diferenciavam pelo número de quartos: a tipologia "A", com um

quarto e 30 m2; "B", com dois quartos e 60 m2; "C", com três quartos e 70 m2. As casas

eram todas de um andar, com as paredes em alvenaria estrutural não armada, do

sistema construtivo da Usimix71. A cobertura de telha-cerâmica tinha engradamento

em madeira.

O conjunto, em sua totalidade, era bem articulado. A parte da empreiteira,

abrangendo um total de 23 quadras, era, do ponto de vista da implantação

71 Esse sistema construtivo foi criado por uma empresa mineira, a partir de um repertório de tijolos, os quais,

combinados, possibilitavam a feitura das alvenarias e de todos os detalhes construtivos necessários à edificação

das tipologias.

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187

urbanística, melhor resolvida do que a parte reservada à AHI, onde o terreno era

plano, dividido em uma malha de oito quadras retangulares, mostrado na fig. 2.

O terreno destinado à construção das casas via empreiteira era de 50.000 m2, e os

lotes variavam entre 150 e 225 m2 de área. O terreno do mutirão era do mesmo

tamanho, com lotes um pouco menores, variando entre 110 e 150 m2. O processo de

implantação do Planalto II foi avaliado detalhadamente por CONTI (1999)72.

RUA 1

RUA 2

RUA 3

RUA 4

RUA 7RUA 6

RU

A 5

RU

A 8

RU

A 9

RU

A 1

0

RU

A 1

1

PA

SS

AG

EM

PA

SS

AG

EM

PA

SS

AG

EM

CRECHE

ÁREA DE LAZER

PRESERVAÇÃO

PRAÇA

PRAÇA

PRAÇA

11

23

4

5

7A 7

8910

11 12 13

ÁREA INSTITUCIONAL

CONJUNTO PLANALTO II

6

Domicílios visitados

Fig. 2 − Mapa do Conjunto Planalto II

5.5.4.2.4. Os conflitos identificados.

Após a realização de todas as leituras, os conflitos foram identificados e descritos

um a um, conforme prescreve a abordagem fenomenológica. Em seguida foram

agrupados de acordo com a natureza do elemento em disfunção ou ausente. Cada

72 CONTI, A. op. cit.

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188

agrupamento foi, então, exaustivamente analisado e discutido pelos pesquisadores,

com o objetivo de desvelar os fenômenos existenciais que estavam na origem

daqueles conflitos. Apresentam-se, em seguida, esses agrupamentos já

consolidados, analisados e discutidos.

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189

Conjunto habitacional Planalto II - Ipatinga MGElemento espacial ausente ou emdisfunção

Necessidade CH AC PA EG FG Total

1 Ausência de um sistema demicrodrenagem para escoamentode água de quintal

Manter o quintal do lotelimpo garantindo asalubridade do lugar

1 0 0 0 0 1

2 Ausência de piso pavimentado naárea do quintal

Necessidade de manter oquintal do lote limpogarantindo a salubridade dolugar

5 3 0 2 0 10

3 Ausência de um lugar paraarmazenamento do lixo (lixeira)

Necessidade de aguardar olixo para garantir asalubridade do lugar

5 0 2 0 3 10

4 Ausência de varanda Necessidade de possuirlugar coberto-aberto quepropicie um confortotérmico

2 0 0 0 0 2

5 Corte perpendicular do terreno naparte traseira da edificação(barranco), ou ausência decontenções

Necessidade de garantir asegurança estrutural daedificação protegendo-a depossíveis deslizamento deterra

1 0 0 0 1 2

6 Ausência de fechamento perimetraldo lote através de cerca

Necessidade de segurança ede demarcação territorial

3 5 4 2 6 20

* 7 Muros que foram edificados paracerca a edificação

Necessidade de possibilitaro escoamento da águapluvial

2 0 0 0 0 2

8 Sala pequena Necessidade de ter uma salamaior a fim de desempenhartodas as atividadesdesejadas

1 1 0 0 0 2

9 Área de serviço pequena Necessidade de ter uma áreade serviço maior a fim dedesempenhar todas asatividades desejadas

1 2 0 0 0 3

10 Escada de acesso à casa Necessidade de segurançafrente à insegurança no usoda escada dada pela suaaparente fragilidade

1 0 0 0 0 1

11 Ausência de um centro comercial Necessidade de fazercompras sem se desgastardemais no deslocamento

1 1 0 0 0 2

12 Casa pintada de verde Necessidade deidentificação da própriacasa frente à uniformidadedo conjunto

1 0 0 0 0 1

13 Ausência de um espaço naedificação para desempenharatividades de trabalho

Necessidade de trabalharusando como lugar detrabalho a própria casa

1 0 0 0 0 1

14 Ausência de uma cobertura externaà casa

Necessidade de ter um lugarapropriado para aguardarum veiculo

0 2 0 0 3 5

15 Ausência de pavimentação nocalçamento frente a casa

Necessidade de poderutilizar o calçamento como

0 1 0 1 0 2

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190

espaço de extensão daprópria casa

16 Piso dos cômodos da edificaçãoem concreto grosso sem algum tipode acabamento

Necessidade de manter aedificação limpa e sempoeira

0 3 1 0 9 13

17 Tanque cujas dimensões nãosatisfazem os moradores

Necessidade de lavarquantias de roupas que nãocabem no tanque previstoaumentando o tempoempregado pordesempenhar essa tarefa

0 2 1 0 1 4

18 Terraço americano (terraço nosegundo andar coberto por umaestrutura metálica)

Necessidade de encontrar afamília toda reunida em umúnico espaço

0 1 0 0 1 2

19 Tijolos em processo de lisciviaçãocom soltura de poeiras

Necessidade de ter um lugarsaudável e limpo

0 2 0 0 0 2

20 Cozinha pequena Necessidade de ter umacozinha maior a fim dedesempenhar todas asatividades desejadas

0 3 1 1 2 7

21 Ausência de elementos que levemá criação de lugares comidentidade evitando a uniformidadedo conjunto

Necessidade de sediferenciar quebrandouniformidade e anonimato

0 2 0 0 0 2

21 Ausência de forro Necessidade de mudar algode desagradável do ponto devista estético, associando anecessidade de se protegerde vento, poeira e sujeira

0 2 1 0 2 5

22 Ausência de guardacorpo navaranda

Necessidade de demarcaçãode um espaço de transiçãoentre exterior e interno dacasa

0 1 1 0 2 4

* 23 Fechamento na área do quintal emlinha com a fachada da edificação(na frente da casa a privacidade éresolvida através de um paisagismopermeável visualmente).

Necessidade de maiorprivacidade

0 0 1 0 0 1

24 Ausência de um lugar apropriadopara secar roupa

Necessidade de secar roupa 0 0 1 0 0 1

25 Parede divisória criando umcorredor entre quartos/banheiro ecozinha reduzida em termos dealtura

Necessidade deprovidenciar umailuminação adequada paraeste local

0 0 1 0 2 3

26 Edificações geminadas com umaparede única em comum

Necessidade de diminuiçãoda escuta do barulho de umaedificação para outra

0 0 1 0 0 1

27 Parede que gemina as edificações Necessidade de expansão daedificação, a única paredeem comum torna difícil esteacontecer

0 0 1 0 0 1

28 Nicho de proteção dos padrões deágua e luz

Necessidade de protegerelementos essenciais para obom funcionamento dasinstalações domesticas

0 0 1 0 0 1

29 Ausência de reboco nas paredes Necessidade de mudar a 0 0 1 0 6 7

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191

externas da edificação imagem da edificação, vistacomo inacabada, o que geradesconforto nos própriosmoradores

30 Fechamento da varanda cominclusão do espaço da varanda nasala

Necessidade de um espaçomaior na sala paradesempenhar outras funções(ateliê)

0 0 1 0 0 1

31 Confecção de parede divisória nacozinha

Necessidade de dividirfunções

0 0 0 1 0 1

32 Portas internas com vergasubstituída para arcos

Necessidade de identidade 0 0 0 1 0 1

33 Fechamento da porta da sala ecriação de abertura em lugarpróximo

Necessidade de evitar quepossa ser notado por quemlocaliza-se na sala quem useo banheiro

0 0 0 0 1 1

* 34 Criação de uma clarabóia notelhado da cozinha (deve-se àampliação do telhado da área deserviço)

Necessidade de garantiruma iluminação suficiente

0 0 0 0 4 4

35 Ausência de cobertura para caixad´água

Necessidade de se protegerda umidade e infiltração deágua na época de chuva

0 0 0 0 1 1

36 Troca das esquadrias originais Necessidade de personalizara edificação

0 0 0 0 2 2

37 Abertura de nova janela na cozinha Necessidade de garantiruma iluminação suficiente

0 0 0 0 1 1

38 Confecção de bancos nocalçamento frente à casa

Necessidade de caracterizaro espaço frente a edificaçãocomo espaço confortável eextensão da própria moradia

0 0 0 0 1 1

39 Retirada de parede interna Necessidade de ampliaçãodo cômodo

0 0 0 0 2 2

40 Expansão da casa com criação demais quartos

Necessidade de hospedarparente

0 0 0 0 2 2

41 Criação de acesso à casa através derampa após retirada de escada

Necessidade de acessar acasa com veiculo

0 0 0 0 1 1

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Conjunto habitacional Primeiro de Maio - Ipatinga MGElemento espacial ausente ou emdisfunção

Necessidade CH AC PA EG FG Total

+ 1 Ausência de fechamento perimetraldo lote através de cerca

Necessidade de segurança ede demarcação territorial

5 4 2 2 6 19

2 Toldo da entrada à casa Necessidade de proteçãocontra os agentesatmosféricos

5 0 0 1 1 7

+ 3 Corredor na sala Necessidade de resguardarquem usa banheiro

5 0 0 1 1 7

4 Rejuntes da alvenaria se soltando Necessidade de manutenção 1 0 0 0 0 1+ 5 Cozinha pequena Necessidade de ter uma

cozinha maior a fim dedesempenhar todas asatividades desejadas

4 2 1 2 2 11

+ 6 Corte perpendicular do terreno naparte traseira da edificação(barranco), ou ausência decontenções

Necessidade de garantir asegurança estrutural daedificação protegendo-a depossíveis deslizamento deterra

5 0 2 0 0 7

~ 7 Janelas em arcos Necessidade de personalizara edificação

3 0 1 1 0 5

8 Guardacorpo de vidro Necessidade de personalizara edificação

1 0 0 0 0 1

+ 9 Edificações geminadas com umaparede única em comum

Necessidade de diminuiçãoda escuta do barulho de umaedificação para outra

1 0 2 0 0 3

+ 10 Ausência de elementos que levemá criação de lugares comidentidade evitando a uniformidadedo conjunto

Necessidade de sediferenciar quebrandouniformidade e anonimato

4 1 0 0 0 5

+ 11 Ausência de uma cobertura externaà casa

Necessidade de ter um lugarapropriado para aguardarum veiculo

2 1 2 3 4 12

12 Caixa de passagem Necessidade de um lugarsalubre

1 0 0 0 0 1

+ 13 Ausência de reboco nas paredesexternas da edificação

Necessidade de mudar aimagem da edificação, vistacomo inacabada, o que geradesconforto nos própriosmoradores

0 1 0 0 0 1

+ 14 Piso dos cômodos da edificaçãoem concreto grosso sem algum tipode acabamento

Necessidade de manter aedificação limpa e sempoeira

0 3 4 1 4 12

15 Banheiro pequeno Necessidade de ter umbanheiro maior a fim dedesempenhar todas asatividades desejadastambém pelos idosos

0 1 1 0 0 2

+ 16 Sala pequena Necessidade de ter uma salamaior a fim de desempenhartodas as atividadesdesejadas

0 1 0 1 0 2

+ 17 Ausência de piso pavimentado naarea do quintal

Necessidade de manter oquintal do lote limpo

0 2 0 1 0 3

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garantindo a salubridade dolugar

18 Localização da porta da cozinha Necessidade de privacidade 0 3 0 0 0 3+ 19 Tijolos em processo de lisciviação

com soltura de poeirasNecessidade de ter um lugarsaudável e limpo

0 3 0 1 0 4

+ 20 Ausência de forro Necessidade de mudar algode desagradável do ponto devista estético, associando anecessidade de se protegerde vento, poeira e sujeira

0 1 0 0 0 1

+ 21 Ausência de um lugar paraarmazenamento do lixo (lixeira)

Necessidade de aguardar olixo para garantir asalubridade do lugar

0 1 0 0 1 2

+ 22 Tanque cujas dimensões nãosatisfazem os moradores

Necessidade de lavarquantias de roupas que nãocabem no tanque previstoaumentando o tempoempregado pordesempenhar essa tarefa

0 4 0 0 1 5

+ 23 Área de serviço pequena Necessidade de ter uma áreade serviço maior a fim dedesempenhar todas asatividades desejadas

0 2 1 1 1 5

24 Ausência de guardacorpo naescada interna

Necessidade de segurança 0 4 0 0 1 5

+ 25 Ausência de reboco nas paredesexternas da edificação

Necessidade de mudar aimagem da edificação, vistacomo inacabada, o que geradesconforto nos própriosmoradores

0 2 0 3 4 9

+ 26 Ausência de varanda Necessidade de possuirlugar coberto-aberto quepropicie um confortotérmico

0 1 0 1 1 3

+ 27 Ausência de forro Necessidade de mudar algode desagradável do ponto devista estético, associando anecessidade de se protegerde vento, poeira e sujeira

0 1 2 2 0 5

28 Ausência de escada de acesso Necessidade de melhorar oacesso frente as dificuldadesencontradas pelosmoradores

0 0 2 1 0 3

+ 29 Ausência de um sistema demicrodrenagem para escoamentode água de quintal

Manter o quintal do lotelimpo garantindo asalubridade do lugar

0 0 1 0 0 1

30 Confecção de varanda no segundopavimento

Necessidade de.................................

0 0 1 0 2 3

+ 31 Fechamento na área do quintal emlinha com a fachada da edificação(na frente da casa a privacidade éresolvida através de um paisagismopermeável visualmente).

Necessidade de maiorprivacidade

0 0 1 0 0 1

32 Deposito em baixo das escadas Necessidade dearmazenamento demercadoria e/ou objetos

0 0 1 0 0 1

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194

33 Ausência de aberturas Necessidade de iluminaçãonatural

0 0 1 0 0 1

34 Barracos no fundo do lote Necessidade de armazenarobjetos e/ou ferramentas

0 0 2 0 0 2

35 Revestimento dos cômodos Necessidade dedistinguir/personalizar cadacômodo e melhorar aaparência

0 0 2 0 0 2

36 Revestimento no banheiro Necessidade de criar umambiente salubre

0 0 1 0 0 1

+ 37 Portas internas com vergasubstituída para arcos

Necessidade de identidade 0 0 2 0 0 2

38 Altura do peitoril da janela Necessidade de privacidade 0 0 0 0 1 139 Canil na frente da casa Necessidade de segurança 0 0 0 0 1 1

+ 40 Ausência de guardacorpo navaranda

Necessidade de demarcaçãode um espaço de transiçãoentre exterior e interno dacasa

0 0 0 0 1 1

Agrupamento número 1: conflitos com a falta ou a precariedade da

urbanização adjacente à habitação.

A expressão "urbanização adjacente à habitação" designa o conjunto de elementos

arquitetônicos, de infra-estrutura ou de paisagismo que são implantados visando a

garantir o perfeito funcionamento e ambientação das áreas externas à edificação

habitacional, dentro dos limites do lote. Esses elementos geralmente são:

pavimentação externa de proteção às alvenarias, pavimentação dos caminhos de

circulação de pedestres e veículos, demarcação de canteiros e áreas verdes,

drenagem superficial de águas pluviais, proteção de taludes, muros das divisas

laterais do terreno, gradil ou muro da divisa frontal, gradil ou muro nas divisas

entre quintal e jardim, local para bujão de gás de cozinha, torneiras de irrigação e

caixa de correio. Quando qualquer desses elementos está faltando, ou apresenta-se

em estado precário, ocorrem conflitos entre os moradores e suas moradias, em

virtude dessas disfunções. Esses conflitos estão ligados aos fenômenos de

territorialidade e ambiência, conforme descreve MALARD (1992). Tanto no

Primeiro de Maio como no Planalto II, não houve a implantação de nenhum

elemento de urbanização adjacente. Os serviços de urbanização restringiram-se às

ruas e calçadas. Com isso, vários transtornos são causados.

No agrupamento de conflitos com a urbanização adjacente foram enquadrados

todos os conflitos identificados em virtude da disfunção ou ausência de um desses

elementos, quais sejam:

1. Necessidade de diferenciação entre a área íntima e a área social versus falta de

delimitação do quintal.

As pessoas demonstraram insatisfação com o fato de que o quintal, onde elas

gostam de ficar à vontade em suas atividades domésticas, não é adequadamente

separado e resguardado do jardim. Isso afeta a privacidade dos moradores e abala a

sua identidade como membros de uma cultura em que o quintal − a parte dos

fundos da casa − é um lugar de serviços domésticos e que tais serviços devem ser

feitos longe dos olhares dos passantes. O jardim, por sua vez, é um lugar de

representação social, devendo fazer a transição entre o espaço público, da rua, e o

espaço privado, da moradia.

2. Necessidade de fácil acesso entre a rua e a moradia versus ausência de escada.

Na verdade as casas foram feitas sem a escada de acesso, ficando cada mutirante

encarregado de resolver o problema do acesso à sua moradia. Isso, obviamente,

gerou soluções boas e ruins, dependendo das condições técnicas e financeiras de

cada morador. Quando a escada não foi feita adequadamente, tornou-se uma fonte

de conflitos, afetando a ambiência da entrada e a identidade cultural do morador,

pois, como mencionado anteriormente, o espaço fronteiriço é de representação

social. Deve ser limpo e arrumado.

3. Necessidade de segurança versus falta de contenção dos taludes.

Os taludes foram deixados in natura, o que se constitui em uma fonte de grande

ameaça aos moradores, na época de chuva. Convém observar que vários desses

moradores foram trazidos de áreas de risco, quando ficaram desabrigados por

enchentes e deslizamentos de terra. A continuidade do risco certamente afeta seu

sentimento de cidadania e, conseqüentemente, sua identidade social.

4. Necessidade de manter a limpeza (higiene) da moradia versus ausência de

revestimento de piso nos acessos.

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2

Na época de chuva, os acessos externos ficam enlameados, o que impede a

manutenção da limpeza da sala. A poeira levada pelos pés, na seca, também

provoca sujeira no interior da casa. Ficam assim afetadas a boa ambiência e a

identidade social, pois uma casa suja é sinônimo de desmazelo.

5. Hábito cultural de demarcar a propriedade/necessidade de segurança versus

falta de fechamento frontal e lateral do terreno.

A redução de custos ao limite do tolerável não permite a edificação de muros e

gradis nas divisas dos fundos, laterais e frontais. Com isso o território fica

devassado aos estranhos, a propriedade não conhece nem faz conhecer os seus

limites. Estão, portanto, afetados os fenômenos da territorialidade e da privacidade.

A identidade social também é abalada com esse devassamento.

6. Necessidade de caracterizar a interioridade da moradia versus falta de espaço

de transição entre a rua (o espaço público) e a casa (o espaço privado).

O comentário feito no conflito, item 2., também se aplica a esse caso.

7. Necessidade de segurança ao transitar em escadas versus fragilidade da escada

de acesso à casa.

Novamente é uma questão de segurança em decorrência do corte de custos durante

a construção. Algumas escadas de acesso à casa não têm guarda-corpo, o que deixa

os usuários inseguros ao transitar por elas. A ambiência e a identidade social ficam,

assim, afetadas.

8. Necessidade de higienização da casa versus falta de drenagem de águas

pluviais.

O comentário feito no conflito (item 4.) também se aplica a esse caso.

9. Necessidade de manutenção da higiene versus caixa de recolhimento de esgoto

desprotegida.

A tampa que recobre a caixa de passagem do esgoto doméstico é, em alguns casos,

precária, gerando uma ambiência ruim e afetando esse fenômeno.

Agrupamento número 2: conflitos decorrentes de expansão não programada

em projeto.

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3

A expressão "expansão não programada" designa todo tipo de ampliação ou

acréscimo à edificação, que não tenha sido previsto no projeto original. Quando os

espaços disponíveis são inadequados ao bom desempenho das atividades do

cotidiano, ou quando inexistem espaços necessários a essas atividades, a

habitabilidade é afetada, surgindo conflitos entre os usuários e os espaços que são

exíguos ou inexistentes. Tais conflitos motivam as intervenções para ampliação ou

acréscimo de cômodos. Algumas dessas intervenções, por sua vez, causam novas

disfunções, que acabam por ser fontes de outros conflitos. A expansão pode-se dar

internamente ao perímetro da moradia, isto é, através da fusão de dois cômodos já

existentes, ou pode-se dar por acréscimo de mais cômodos à moradia. Os motivos

pelos quais ocorrem as intervenções são variados: criação de um cômodo de

trabalho profissional; instalação de um pequeno comércio na frente da casa;

ampliação ou construção de uma nova cozinha; construção de uma cobertura para

veículos; construção ou ampliação de área de serviço, e outros mais. Os conflitos

que se enquadram nesse agrupamento estão abaixo relacionados:

1. Cômodos pequenos versus necessidade de trabalhar com maior conforto/abrir

um comércio/abrigar veículos.

Muitos moradores dos dois assentamentos analisados não possuem emprego

formal e precisam ganhar a vida com alguma atividade que possa ser desenvolvida

em casa. Isso fez com que diversas pessoas ampliassem suas casas para obter um

cômodo mais espaçoso para o trabalho ou para obter um novo cômodo onde

pudesse acontecer um pequeno comércio. No início ficamos em dúvida se essas

intervenções tinham origem num conflito usuário/espaço, pois o projeto de uma

casa não necessariamente precisa prever ampliações para espaços de trabalho.

Entretanto, como foram projetos habitacionais para populações que, em sua

maioria, eram constituídas de desempregados ou subempregados, a não previsão

dessa possibilidade terá sido errônea, causando conflitos. No caso dos "puxados"

para fazer uma garagem, também houve dúvidas. Após as discussões, chegamos ao

entendimento de que, se o morador melhora de vida em sua nova moradia, ele terá

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alcançado um dos objetivos dos programas de moradia para a população de baixa

renda, que é o de possibilitar essa melhoria. Nesse caso, a não previsão da

possibilidade de garagem também terá sido errônea, causando conflitos. Não

conseguimos, entretanto, caracterizar os fenômenos afetados por essas imprevisões.

2. Hábito cultural de fazer refeições na cozinha versus insuficiência de espaço para

acomodar os equipamentos da cozinha e a mesa de refeições.

É um hábito brasileiro, particularmente mineiro, fazer refeições na cozinha. Nos

mutirões analisados, as cozinhas são dimensionadas para atender aos requisitos

básicos de preparação dos alimentos. Não contemplam uma área para refeições. A

cultura, então, fala mais alto e um conflito de identidade se estabelece, compelindo

os moradores a resolvê-lo através do aumento da cozinha, seja anexando-lhe o

espaço destinado à área de serviço, seja aumentando a casa.

3. Necessidade de ter lavadora elétrica versus insuficiência de tamanho da área de

serviço ou inexistência da área em decorrência de sua anexação à cozinha.

As áreas de serviço dos dois conjuntos contemplam apenas o tanque de um só bojo

e o alçamento de pequeno varal para secagem de roupa. Hoje em dia os

"tanquinhos" elétricos são bastante populares e acessíveis até às populações de

baixa renda. Não poder colocá-los gera conflitos com o sentimento de identidade

social do morador.

4. Necessidade de mobiliar adequadamente a sala versus sala de estar muito

pequena.

Algumas famílias mais numerosas não conseguem acomodar-se na sala de estar

para ver televisão, pois o mobiliário que ali cabe não provê lugares para todos. Esse

é um conflito que afeta a identidade social da família, e esta última se mobiliza para

ampliar a sala. Esse, entretanto, não é um conflito muito recorrente.

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5. Dificuldade de locomoção versus insuficiência de espaço no banheiro para o uso

de portadores de deficiência.

Esse problema ocorre em raros domicílios. Um caso de pessoa com problemas de

locomoção, doente ou em idade avançada entra em conflito com a falta de

acessibilidade ambiental do banheiro. As exíguas dimensões não permitem que ele

seja adaptado para essas emergências. Afeta, assim, a identidade social da família,

além devassar a privacidade do portador de deficiência, que tem de se fazer

acompanhar para usar o banheiro.

Agrupamento número 3: conflitos decorrentes da insuficiência ou falta de

equipamentos e instalações domiciliares.

A expressão "equipamentos e instalações domiciliares" designa todo tipo de

equipamento ou aparelho que tenha sido acrescentado à edificação para

complementar as instalações domiciliares elétricas, hidráulico-sanitárias, de

telecomunicações, de proteção de descargas elétricas e outras similares. A

inexistência, insuficiência ou precariedade de equipamentos e instalações podem

causar conflitos entre os moradores e suas moradias, motivando intervenções de

complementação ou substituição de equipamentos e instalações domiciliares.

Listam-se abaixo os conflitos identificados nesse agrupamento.

1. Necessidade de boa iluminação natural nos cômodos versus aberturas

insuficientes ou materiais inadequados.

A crise de energia trouxe à tona o problema da pouca iluminação natural

propiciada pelas janelas originais. Além de pequenas, elas possuem venezianas, o

que agrava a situação. Os moradores que trocaram as janelas não se importaram se

os novos modelos colocados não propiciam escurecimento. Os pesquisadores

concluíram que, para quem acorda com o nascer do sol, o escurecimento do quarto

não é fundamental. Por outro lado, ter um ambiente onde é preciso acender a luz

durante o dia, é inaceitável: o aumento da conta de luz traz conflito entre o morador

e as janelas. A boa ambiência fica caro.

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2. Necessidade de descartar o lixo doméstico versus falta de um local apropriado

para depositar o lixo.

A falta de um acessório para depositar o lixo faz com que os sacos fiquem jogados

na calçada, à mercê de gatos e vira-latas, causando sujeira e falta de higiene. Isso

afeta a ambiência e a identidade social.

4. Necessidade de secar roupas versus local apropriado.

A área de serviço é pequena demais para pendurar a roupa lavada, pois não

comporta um varal adequado. O comentário do conflito (item 3.) do agrupamento

número dois contempla essa questão.

5. Adoção de procedimentos facilitadores da lavagem de roupa versus tanque com

apenas um bojo.

A boa técnica de lavagem manual de roupa é a de usar um recipiente para a roupa

que é esfregada no molho de sabão e outro recipiente para enxaguá-la e trocê-la. O

tanque de um só bojo não possibilita isso. Não sendo de bancada, o tanque não

possibilita que se coloque, ao lado, um balde auxiliar. A pessoa tem que depositar o

balde no chão e curvar-se, para acessá-lo. Lavar a roupa torna-se, assim, um

trabalho mais cansativo, afetando a identidade das mulheres, principalmente. É um

conflito recorrente.

Agrupamento número 4: conflitos decorrentes da inadequação dos

acabamentos internos.

A expressão "acabamentos internos" designa os revestimentos dos tetos, das

alvenarias e dos pisos (forro, reboco e pavimentação), bem como os acabamentos

superficiais destes (materiais de revestimento). A inadequação (ou ausência) dos

acabamentos internos, em geral decorrente da necessidade de redução de custos, é

fonte de conflitos entre os moradores e suas moradias. Isso leva à substituição de

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acabamentos ou à colocação de revestimentos em locais deixados in natura. Listam-

se, abaixo, os conflitos identificados nesse âmbito:

1. Necessidade de limpeza, conforto e salubridade versus falta de reboco ou

revestimento impermeável.

As paredes em tijolos aparentes e os pisos em cimento áspero são totalmente

rejeitados pelos moradores e constituem-se numa das maiores fontes de conflito. A

aparência de sujeira, a sujeira real por causa da dificuldade de limpeza, o esforço

extra para manter a casa asseada, tudo isso afeta profundamente a ambiência e a

identidade social dos moradores. É um estigma de pobreza.

2. Necessidade de proteção contra sujeira versus falta de forro sob o telhado.

Os telhados não são forrados, por necessidade de redução de custos. Entre as frestas

das telhas entram variados insetos e muita poeira, na seca. Durante as chuvas, a

umidade é acentuada, por causa da absorção de água pelas telhas. A ambiência é

comprometida e a identidade afetada.

3. Necessidade de isolamento acústico em casas geminadas versus revestimento

inadequado para tal fim.

Nas casas geminadas, um dos maiores problemas é a falta de isolamento acústico

entre as moradias contíguas. A ausência do forro contribui para essa situação. A

privacidade de ambos os moradores fica totalmente devassada. A ambiência

também fica comprometida pela intrusão do barulho da casa do lado.

Agrupamento número 5: conflitos decorrentes da inadequação dos elementos

determinantes da aparência externa da edificação.

A expressão "elementos determinantes da aparência externa da edificação" designa

todos os materiais, elementos e componentes que se integram às fachadas, tais como

esquadrias, gradis, balaustradas, beirais, platibandas, frontões, avarandados,

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marquises e outros. Quando esses elementos são ausentes ou estão em desacordo

com as preferências estéticas, os moradores entram em conflito com os aspectos

externos de suas moradias, fazendo intervenções nos mesmos. Essas intervenções

são, muitas vezes, motivadas por reformas que, por sua vez, visavam a resolver

outros conflitos. Nesses casos, os moradores se valem da oportunidade e corrigem,

esteticamente, alguns aspectos externos. Listam-se, abaixo, os conflitos identificados

nesse agrupamento:

1. Necessidade de se identificar no conjunto versus padronização das esquadrias.

2. Necessidade de se identificar no conjunto versus padronização da volumetria.

3. Necessidade de se identificar no conjunto versus uniformidade de cores.

4. Necessidade de se identificar no conjunto versus falta de elementos decorativos

nas fachadas.

Não temos ainda uma hipótese consistente para explicar porque os moradores do

Primeiro de Maio e do Planalto II modificam a aparência de suas moradias. Parece

pouco provável que as modificações se dirijam diretamente às aparências. Num

ambiente social onde as carências são muitas, não parece lógico que um morador

descarte uma esquadria que esteja funcionando perfeitamente bem e coloque em

seu lugar uma outra, somente porque o seu desenho lhe agrada mais. É fato,

entretanto, que as opções estéticas dos moradores nem sempre coincidem com as

especificações dos arquitetos. Isso aponta para a necessidade do incremento da

participação dos usuários nos processo de decisão sobre as aparências de suas

moradias. O projeto participativo com o apoio do Estúdio Virtual de Arquitetura −

EVA, certamente continuará trazendo mais luz a essa questão.

5.5.5. Conclusões.

A abordagem fenomenológica para o conhecimento e análise das interações entre os

moradores e suas moradias tem-se mostrado bastante profícua, principalmente no

que diz respeito à determinação das condições de habitabilidade, vis-à-vis às

restrições econômico-financeiras dos empreendimentos habitacionais populares.

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A grande vantagem da abordagem fenomenológica é procurar ver e compreender o

objeto tal qual ele se apresenta à nossa percepção. Com isso conseguimos enxergar

novos ângulos e perceber situações nunca imaginadas. Nesse aspecto, a abordagem

fenomenológica é complementar aos procedimentos consagrados nas metodologias

de Avaliação Pós-Ocupação -APO, pois, sendo exclusivamente interpretativa,

oferece perspectivas avaliativas que as demais metodologias não abarcam.

Tanto isso é verdade que, embora não tenha levantado dados quantitativos, o nosso

estudo demonstra, por exemplo, que as famílias dos conjuntos Primeiro de Maio e

Planalto II, em Ipatinga, investiram uma considerável soma de recursos financeiros

na melhoria de suas moradias. Isso pode ser facilmente inferido das Leituras

Espaciais. Quantificar exatamente o total parece irrelevante para uma avaliação pós-

ocupação, no caso de mutirões que não envolvem créditos imobiliários. Entretanto,

é relevante saber que os moradores aplicaram esses recursos sem nenhuma

orientação técnica, às vezes piorando as condições iniciais de habitabilidade da

moradia, ao invés de melhorá-las. Isso aponta para a necessidade urgente de se

implantar um sistema de assistência técnica permanente aos assentamentos

habitacionais populares, para ajudar os moradores a fazer melhorias ou dar

manutenção em suas moradias. A assistência técnica poderia organizar mutirões ou

compras coletivas de materiais para ampliações, adaptações e reformas,

propiciando redução de custos para todos e assegurando um mínimo de qualidade

para essas ações.

Um outro aspecto curioso, que a abordagem fenomenológica nos revelou, foi a

similaridade e recorrência de certos conflitos em conjuntos habitacionais populares,

independentemente de o empreendimento ter sido construído pela indústria da

construção civil ou por mutirão autogerido. Quando a territorialidade, a

privacidade, a identidade e a ambiência são afetadas, o morador rejeita as soluções

dadas, por mais que os projetistas se tenham empenhado para o sucesso de seus

projetos. Isso aponta para a necessidade de aumentar a participação dos usuários no

processo de decisão de projeto, a partir da perfeita compreensão do que está sendo

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Habitacionais: uma abordagem fenomenológica com apoio do Estúdio Virtual de Arquitetura- EVA”

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proposto. Aponta, também, para a necessidade de se fazerem avaliações

sistemáticas nos assentamentos habitacionais populares, com o objetivo de

colecionar os conflitos recorrentes e fechar cada vez mais o foco, no rumo da

habitabilidade.

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6. Relato do estudo de caso número 2 - Salvador.

O relato apresentado é substrato da avaliação pós-ocupação do Campus

Experimental de Narandiba, em Salvador, Bahia, feita a partir de uma abordagem

fenomenológica, onde se procura perceber as qualidades essenciais do espaço

através da identificação dos conflitos arquitetônicos. A parte aqui apresentada diz

respeito apenas ao espaço exterior (ambiente urbano) do conjunto. Primeiramente é

apresentado um resumo da metodologia de abordagem fenomenológica para

avaliação do ambiente construído. Em seguida descreve-se, sucintamente, o objeto

de investigação. Passa-se, então, à formulação de algumas hipóteses sobre o sitio

urbano, levantadas a partir das análises dos elementos de desenho urbano

disponíveis. Em seguida as hipóteses são discutidas e analisadas. Finalmente

conclui-se que, aparentemente, não existem conflitos no espaço urbano de

Narandiba, pois, os 23 anos de convivência solidária daquela comunidade

regularam o uso coletivo do território e neutralizaram as fontes de conflito.

6.1. Análise comparativa dos dois campos.6.1. Análise comparativa dos dois campos.

Na primeira parte do projeto foi adaptada e detalhada a metodologia de abordagem

fenomenológica para avaliação do ambiente construído, desenvolvida por

MALARD1. Na segunda parte, foram efetuadas duas aplicações: uma no Campus

Experimental de Narandiba e outra em conjuntos habitacionais populares de

1 MALARD, M.L. Brazilian low cost housing: interactions and conflicts between residents and dwellings.

Tese de PhD. Universidade de Sheffield, Inglaterra, 1992.

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Ipatinga, Minas Gerais, que foram construídos pelo sistema de mutirão auto gerido.

A análise comparativa dos dois casos permitirá avaliar a eficácia da abordagem

fenomenológica como instrumento para o conhecimento dos fatores espaciais –

arquitetônicos, urbanos, e paisagísticos - intervenientes na qualidade do ambiente

construído.

O presente artigo se debruça apenas sobre a avaliação do espaço de uso coletivo (ou

espaço urbano) de Narandiba. A avaliação das unidades habitacionais será

focalizada em outra publicação.

6.2. A abordagem fenomenológica.6.2. A abordagem fenomenológica.

Os fundamentos da abordagem fenomenológica são descritos por MALARD2.

Apresenta-se, aqui, apenas um breve resumo dos principais conceitos subjacentes

aos procedimentos metodológicos adotados.

Os conceitos de casa e lar têm origens distintas e se referem a diferentes fenômenos.

Entretanto nós usamos a palavra casa indiscriminadamente, tanto para designar o

objeto (que compramos) como para indicar o lar (no qual moramos). Morar é uma

experiência existencial que se dá através do objeto casa. A nossa casa (o objeto)

incorpora a nossa morada, o nosso lar (o fenômeno). É na casa que se dá a

experiência do lar.

KOROSEC-SERFATY3 propõe definir as características fundamentais do morar nas

seguintes relações:

1- Estabelecimento de um interior/exterior.

2- Estabelecimento de visibilidade.

3- Apropriação.

2 MALARD, M. L. O método em arquitetura: conciliando Heidegger e Popper. Cadernos de Arquitetura e

Urbanismo. Belo Horizonte: v.8, n.8, p.128 - 154, 20013 KOROSEC-SERFATY, P. Experience and Use of The Dwelling. In I. Altman and C. M. Werner (Eds.),

Home Environments. New York: Plenum Press, p.65-83, 1985

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O estabelecimento de uma relação interior/exterior é a demarcação das fronteiras

que qualificam o espaço. Morar é estar dentro (num lugar) em oposição ao estar lá

fora. Dessa oposição emerge a questão da visibilidade. Qualquer moradia pode ser

aberta e fechada, visível e escondida ao mesmo tempo. Portas e janelas propiciam

visibilidade, tanto de fora para dentro como de dentro para fora. A apropriação é o

processo de experimentar, na sua totalidade, o fenômeno de morar. Essas três

características propostas por KOROSEC-SERFATY podem ser inscritas em quatro

conceitos: territorialidade, privacidade, identidade e ambiência. Esses conceitos se

constituem nas dimensões fenomenológicas do habitar. A experiência de morar é,

pois, a de usufruir a privacidade de um território delimitado fisicamente,

caracterizado socialmente e qualificado ambientalmente.

E a casa objeto, que espécie de entidade é essa? Como ela interfere na experiência de

morar? Pode ela - objeto - ser abordada fenomenologicamente?

HEIDEGGER4 enuncia que há dois sentidos diferentes para as coisas. O primeiro se

aplica, por exemplo, a uma pedra. Se perguntarmos "para o que é uma pedra?", a

resposta será "não é para nada; é apenas uma pedra". A essa categoria de objeto

HEIDEGGER chama “present-at-hand” (presente-ao-alcance).

O segundo sentido das coisas se aplica aos objetos sobre os quais a pergunta "para o

que é?" não pode ser recusada. Este é o caso do martelo. Se alguém pergunta "para o

que é um martelo?" a questão não pode ser respondida que ele não é para nada, que

é apenas o que é, porque martelos são para martelar. Essas coisas HEIDEGGER

descreve como “ready-to-hand” (prontas-para-uso).

A palavra “para” implica numa idéia de envolvimento, de propósito: o martelo é

para martelar. Martelar é, então, a sua essência.

Se o martelo é para martelar, podemos dizer que a casa é para morar. A essência do

martelo é definida por sua adequação para martelar que, por sua vez, pode ser

definida por sua manuseabilidade, trabalhabilidade, dureza e resistência para

4 HEIDEGGER, M. Being and Time. Trad. by John Macquirre & Edward Robinson. London: SCM Press, 1962, pag. 91-145)

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martelar. Fazendo-se uma analogia com a casa, pode ser dito que a casa é definida

por sua adequação ao morar, isto é, por sua “habitabilidade”.

A casa somente pode ser compreendida em termos de sua habitabilidade e somente

suas características de habitabilidade - seus predicados - podem propiciar pistas

para a resposta à questão "para o que é uma casa?"

6.3. O conceito de conflito arquitetônico.6.3. O conceito de conflito arquitetônico.

Quando estamos desenvolvendo atividades, podemos encontrar entidades que não

estão bem adaptadas para o uso que decidimos fazer delas: a ferramenta está

estragada ou o material é inadequado para a finalidade que queremos. Nós

descobrimos a inutilidade da ferramenta, não por observá-la e estabelecer suas

propriedades, mas por usá-la.

O objeto que não serve bem ao seu propósito é, no dizer de HEIDEGGER,

“unready-to-hand” (não pronto para ser usado) e a atividade não pode ser

desenvolvida propriamente. Esse fato desvela a essência do equipamento.

Se uma janela, por exemplo, atende a todos os propósitos para os quais foi

desenhada e fabricada, ela não irá ser especialmente notada; ela será apenas uma

janela funcionando dentro do que se esperava. Do contrário, se a janela falhar em

qualquer um de seus propósitos, ela se torna conspícua e aquele aspecto que está

falhando irá nos afetar, nos incomodar. Surgirá então um conflito entre o morador

afetado e a janela defeituosa. Essa idéia pode ser generalizada: nenhum elemento

ou componente será notado se funcionar dentro das expectativas que temos de seu

funcionamento. Mas se qualquer coisa andar errado, aquele elemento ou

componente será notado, mesmo que apenas uma de suas partes não esteja

funcionando de acordo. No caso da janela, se há frestas na esquadria que deixam

passar água perceberemos toda a janela como “unready-to-hand”.

Todas as situações causadas por “unreadness-to-hand” são conflitos que revelam a

própria essência do elemento que falhou, permitindo-nos capturar essa essência

teoricamente, ao observar e analisar o conflito.

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6.4. As leituras espaciais.6.4. As leituras espaciais.

Os espaços arquitetônicos são sempre lugares significativos, porque são as

espacializações da práxis social e, assim sendo, eles revelam muitas pistas sobre

comportamentos e sobre relações sociais. Essas pistas são reveladas através dos

conflitos que surgem nas interações entre moradores e moradias. Para identificar

esses conflitos podem ser feitas observações diretas ou Leituras Espaciais. Uma vez

identificados, os conflitos podem ser analisados para que possamos conhecer os

fenômenos que estão sendo afetados, o que nos permitirá interferir para corrigir os

problemas nessas e em futuras moradias.

As Leituras Espaciais são técnicas bastante ecléticas de registro de informação e se

baseiam apenas na convicção teórica de que um elemento “unready-to-hand

provoca” conflito na sua relação com o morador. As leituras incluem diversos

procedimentos triviais adotados: elaboração de croquis, registros fotográficos,

entrevistas informais e relatórios de observações circunstanciais.

6.5. O caso de Narandiba.6.5. O caso de Narandiba.

Para a realização das Leituras Espaciais em Narandiba a equipe traçou, ainda em

Belo Horizonte, as principais estratégias gerais que seriam usadas no trabalho.

Outras reuniões se seguiram na cidade de Salvador, com o objetivo de elucidar

dúvidas surgidas em campo e adaptar os procedimentos investigativos às

peculiaridades do universo investigado. Em síntese, o processo de conhecimento do

objeto se deu por tentativa e erro, com eliminação do erro através da avaliação

crítica dos procedimentos adotados. A equipe de 6 pesquisadores permaneceu em

Salvador de 13 e 19 de maio de 2001, período em que procedeu às Leituras Espaciais

do conjunto e das moradias. Além das Leituras, colheram-se outras informações

documentais in loco como mapas, plantas e o Catálogo da época da construção do

Campus Experimental.

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6.5.1. O empreendimento.6.5.1. O empreendimento.

O Campus Experimental de Narandiba foi construído em Salvador, Bahia, no ano

de 1978. Situa-se no centro da ferradura formada pela conexão dos dois principais

eixos viários da cidade de Salvador, a BR 324 e a avenida Paralela (av. Luiz Vianna

Filho). O conjunto fica próximo à região conhecida como Iguatemi, de topografia

suave, inserindo-se numa área também conhecida como Vale da Saboeira. O mapa

da Figura 1 mostra a situação do Campus Experimental de Narandiba dentro da

malha urbana de Salvador.

Figura 1: Situação do Campus Experimental de Narandiba em Salvador

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O Campus situava-se, em 1978, mais ou menos centralizado ao plano urbanístico

que compreendia uma área de 513 hectares, com mais de 58 hectares de áreas não

edificantes. Narandiba seria, assim, o nome da região que integraria um plano

urbanístico e social, juntamente com um programa de implementação e

investimentos promovidos através da Companhia de Desenvolvimento da Região

Metropolitana de Salvador – CONDER5. Cerca de 20 mil casas para a população de

baixa renda (zero a 2,5 salários mínimos) deveriam ser implantadas pelo plano e o

Campus Experimental de Narandiba seria uma espécie de vitrine onde os

construtores escolheriam os tipos de casas para cada loteamento a ser implantado.

O plano fracassou nos seus objetivos gerais, pois não foi implementado. A área

acabou sofrendo uma ocupação desordenada, tendo sido, ao longo do tempo,

criados centros comunitários e outros edifícios de importância social não previstos

no plano de ações urbanas e sociais original. Decorre daí que a região em torno do

Campus Experimental de Narandiba foi ocupada por

outras tipologias construtivas estranhas ao plano de 1978, algumas das quais são

“invasões”, ou seja, propriedades sem legalização de posse. A Figura 2 ilustra as

ocupações atuais.

A implantação do Campus Experimental de Narandiba se deu a partir de um

contrato celebrado entre o extinto Banco Nacional da Habitação – BNH - o Banco do

Estado da Bahia - BANEB - a Companhia Estadual de Desenvolvimento Urbano da

Bahia - CEDURB e a Câmara Brasileira da Indústria da Construção - CBIC. Foi,

portanto, um empreendimento feito numa ampla parceria entre bancos estatais,

empresas estatais e a CBIC.

5 À CONDER cabia, como órgão técnico, executar o planejamento integrado de desenvolvimento econômico e

social, do uso do solo metropolitano, do transporte e sistema viário, do saneamento básico (notadamente o

abastecimento de água, a rede de esgotos e a limpeza pública), assim como planejar a produção e distribuição

de gás combustível canalizado, o aproveitamento dos recursos hídricos em geral, o controle da poluição, entre

outros serviços.

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Habitacionais: uma abordagem fenomenológica com apoio do Estúdio Virtual de Arquitetura- EVA”

18

O Campus foi construído por ocasião do "Simpósio sobre o barateamento da

Construção Habitacional", evento de caráter nacional, promovido pelo BNH em

Salvador, em março de 1978. Seu objetivo primordial, como se mencionou acima,

era o de fazer uma exposição de protótipos de edificações habitacionais concebidas

pelas empresas que, de alguma forma, haviam se engajado no esforço do BNH para

baratear a construção habitacional popular. Entretanto, na primeira avaliação do

empreendimento pelo BNH, que ocorreu 17 meses após a implantação do Campus,

o Banco se contrapõe a esse entendimento:

“Admitir que o Campus seja apenas uma exposição de modelos prontos para

o consumo seria ignorar os desafios que levaram a buscar esses mesmos

modelos e que persistem ainda por trás de muitos resultados".6

6 CF.: Campus experimental de Narandiba, BA .: Revista Projeto número 19, páginas 32-33, mar. -abr. 1980.

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19

No catálogo de apresentação do Campus, preparado pela equipe do projeto

THABA, do Centro de Pesquisas e Desenvolvimento - CEPED/Bahia - o

empreendimento é assim descrito:

Figura 2: Vista geral da ocupação atual.

"O Campus Experimental representa uma oportunidade oferecida pelo

BNH para que o setor industrial demonstre sua capacidade de produção ao

setor imobiliário. Não foram impostas quaisquer exigências acadêmicas,

científicas ou restrições de caráter normativo aos protótipos. Valeu tudo, até

o sonho. Agora se abre passagem aos críticos, aos pesquisadores e aos

usuários, com o mesmo espírito e a mesma intenção".7

7 Narandiba – Campus Experimental de Habitação. Equipe do projeto THABA, do Centro de Pesquisas e

Desenvolvimento - CEPED/Bahia, 1978.

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20

Essa afirmativa é um forte indício de que a finalidade do Campus era, de fato, a de

demonstrar aos empreendedores imobiliários, inclusive as Companhias

Habitacionais - COHABs - que a habitação popular poderia ser industrializada (ou

racionalizada) e que o parque industrial brasileiro estava pronto para receber as

encomendas. As propostas construtivas vieram de 34 empresas, as quais

apresentaram 50 protótipos unifamiliares e 2 plurifamiliares, num total de 62

unidades habitacionais.

Há de se ressaltar que, até então, as construções financiadas pelo BNH eram

edificadas com processos predominantemente convencionais, apresentando uma ou

outra tentativa de racionalização e raríssimos eventos de construção

industrializada. As casas construídas em Narandiba utilizavam diversos materiais e

tecnologias construtivas tais como: cerâmica, madeira compensada, madeira

mineralizada, aparas de madeira aglomeradas com cola, concreto tradicional em

placas e caixões pré-fabricados, concreto celular, solo cimento, vermiculita,

poliuretano expandido, aglomerado fenólico e outros tantos.

Um fato que chama atenção no texto anteriormente citado é a menção à falta de

exigências "acadêmicas, científicas ou restrições de caráter normativo aos

protótipos". Considerando que isso foi escrito por pesquisadores na área de

tecnologia das construções, a única interpretação que se pode dar a esse parágrafo é

que as empresas tiveram total liberdade para executarem suas propostas, não lhes

sendo impostos programas de necessidades, regulamentações urbanísticas ou

arquitetônicas, parâmetros de desempenho técnico ou ambiental, pré-requisitos

tecnológicos, limites de preços unitários e tantos outros critérios comumente

adotados pelo BNH, naquela ocasião. O Campus deveria ser, pois, a expressão da

liberdade de criação empresarial no atendimento à demanda social por habitações

populares.

Decorridos 17 meses de implantação, um criterioso estudo realizado pela CEDURB

comenta que as condições de habitabilidade se mostravam satisfatórias, quer em

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relação à estrutura comunitária que passou a habitar o local, quer em relação às

unidades habitacionais em si.

6.5.2. O projeto urbanístico.6.5.2. O projeto urbanístico.

O relatório de avaliação8 menciona que houve um conceito básico de integração

comunitária na concepção do projeto. Desse conceito teriam derivado várias

pracinhas de convivência entre os vizinhos, sem outro limite territorial que não

fosse a área coberta privativa de cada família. Entretanto, fazendo-se uma análise

do desenho urbano de Narandiba a luz dos preceitos urbanísticos tradicionais, as

seguintes considerações certamente terão lugar:

A proposta de arranjo das unidades habitacionais não obedeceu à tradicional

divisão da gleba em lotes e arruamentos. Diante disso, não se pode dizer que houve

um projeto urbanístico para Campus Experimental de Narandiba. O que se fez, na

verdade, foi um leiaute de distribuição das construções nos moldes de um parque

de exposições: Foram criados lotes poligonais, na maioria hexagonais, articulados

por uma espécie de praça de forma quadrada ou retangular, que se configurava na

articulação de quatro hexágonos.

Criaram-se circulações de pedestres nos caminhos que se formaram entre os lotes e

ao redor das pequenas praças. As diversas edificações foram dispostas no interior

de cada lote.

Esse tipo de composição espacial expressa a lógica de uma boa exposição: os stands,

que são os lotes, podem ser facilmente acessados e observados de todos os lados. As

casas, que são os objetos de exibição, são dispostas de modo tal que suas frentes

sempre se voltem para as pequenas praças. Como se trata de uma exposição, não há

preocupação com a tradicional setorização residencial, ditada pela nossa cultura,

onde os domínios públicos e privados são territorialmente separados, definindo os

conceitos socio-espaciais de frente e fundo. O traçado geométrico de Narandiba é

totalmente alheio a qualquer prescrição urbanística que se conheça. Ao contrário

8 Opus cit.

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22

disso, parece mesmo seguir tão somente a lógica da disposição de “stands” numa

espécie de feira de moradias.

Como o desenho é meramente formal, isto é, apenas define uma configuração

geométrica para as áreas onde se assentam as moradias, não se percebe nele

nenhuma intenção de organizar a distribuição de infraestrutura de circulação,

suprimento (de água, energia e comunicações) e esgotamento (de efluentes líquidos

e sólidos).

Parece que não houve, também, nenhuma preocupação com a paisagem

circundante (o que de lá seria visto) ou com a paisagem por ele configurada (como o

conjunto se mostraria à paisagem urbana). Nota-se claramente que, no interior de

uma vasta terraplanagem desenhou-se uma malha tendendo a hexagonal, sem

rigidez geométrica, totalmente aleatória, sem a menor intenção de definir percursos

e sem nenhuma conexão com os assentamentos adjacentes. Apresenta-se, em

seguida, o mapa do Campus.

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Habitacionais: uma abordagem fenomenológica com apoio do Estúdio Virtual de Arquitetura- EVA”

23

Figura 3 – Mapa do Campus Experimental de Narandiba.

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24

É curioso notar como o Campus Experimental de Narandiba, no que diz respeito ao

desenho urbano segue exatamente os mesmo princípios formalistas do Campus da

Universidade Federal de Minas Gerais- UFMG- em Belo Horizonte, e de outros

desenhos pós Carta de Atenas: um urbanismo supostamente racionalista, onde a

trama viária visa a estabelecer apenas uma rede de relações e conexões físico-

espaciais, sem se preocupar com a definição de percursos ou lugares e, sobretudo,

sem se preocupar com as funções que se assentarão no território.

6.5.3.Algumas Hipóteses Fundamentais.6.5.3.Algumas Hipóteses Fundamentais.

Observada à luz dos pressupostos que regem uma boa articulação espacial, a

configuração física do conjunto, que se apresenta na Figura 3, suscitaria, dentre

outras, as seguintes hipóteses:

Hipótese 1: O traçado geométrico formalista gera espaços indiferenciados,

dificultando a legibilidade do conjunto e, conseqüentemente, a identidade

dos lugares.

Hipótese 2: A repetição do padrão hexagonal, aliada à aleatoriedade de sua

escolha, gera perspectivas também repetitivas, a exemplo do que ocorre com

os traçados reticulados de algumas cidades modernas. Perde-se, assim, o

sentido de orientação espacial.

Hipótese 3: A falta de delimitação dos territórios privados, semi-privados e

públicos resulta num espaço promíscuo, no qual os fenômenos da

territorialidade, privacidade e ambiência não se espacializam

adequadamente, gerando conflitos arquitetônicos e urbanos.

Essas hipóteses, entretanto, não resistiram sequer a uma observação superficial do

conjunto. Desmoronaram-se, uma após a outra, logo na primeira visita, deixando

intrigados os arquitetos e urbanistas que participaram das observações de campo,

como se demonstrará em seguida.

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Habitacionais: uma abordagem fenomenológica com apoio do Estúdio Virtual de Arquitetura- EVA”

25

6.6. Analisando Narandiba: o assentamento, como ele se mostra.6.6. Analisando Narandiba: o assentamento, como ele se mostra.

6.6.1. Exame da hipótese 1: legibilidade do conjunto e identidade.6.6.1. Exame da hipótese 1: legibilidade do conjunto e identidade.

A chegada da equipe de pesquisadores no conjunto se deu pelo acesso principal,

onde tem uma guarita, como se vê na Figura 3 mostrada anteriormente. Há um

muro com um grande portão gradeado. No muro se vê a inscrição identificadora do

território: Campus Experimental de Narandiba. Em seguida ao portão há um

estacionamento. O fato de o portão ficar aberto dá a impressão de que se trata da

entrada de um prédio público, de um equipamento comunitário. Um porteiro zela

pela entrada. Identificamo-nos e pedimos permissão para entrar. Ele nos solicitou

que consultássemos a Jane, pois o síndico não estava. Essa foi a nossa primeira

surpresa: tratava-se de um condomínio fechado, com síndico, porteiro e tudo o

mais, nos moldes dos condomínios elegantes que conhecíamos.

Por um momento pensamos que o nosso trabalho se frustraria, pois queríamos

avaliar um conjunto popular antigo e não um assentamento de classe média alta. O

caminho mais curto da portaria até à casa da Jane era pela borda do conjunto. Foi

por isso que a nossa primeira aproximação se deu pela parte lateral. Não tivemos

nenhuma dificuldade em encontrar a casa, a partir das referências dadas pelo

porteiro. E as referências eram todas arquiteturais: “passem a quadra de esportes e

sigam em frente; a casa dela é amarela, de dois andares, lá adiante".

Fomos observando que havia muitas alterações feitas nas casas pelos moradores, ao

longo dos 22 anos e, portanto, muito teríamos a investigar.

A leitura do espaço externo oferece uma continuidade e seqüência que é dada pelos

objetos arquitetônicos e paisagísticos que foram articulados aos projetos originais,

inclusive os de caráter meramente decorativo. Quando uma ou outra intervenção se

fez mais radicalmente como, por exemplo, a demolição e reconstrução de um novo

andar, parece ter havido sensibilidade para que as relações de proporcionalidades

fossem mantidas entre alturas, vãos, janelas e entradas.

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26

A primeira hipótese está, portanto, refutada: a diferenciação espacial não é função

da geometria da planta. A repetição bi-dimensional da planta não se rebate

necessariamente no espaço vivido tridimensional. A peculiaridade de evento

arquitetônico se define por suas características tridimensionais, por suas cores e por

sua inserção no conjunto dos demais elementos espaciais perceptíveis. O desenho

do território, constituído pela forma da rede de vias e pelas formas dos lotes, não é

relevante para a percepção espacial de um assentamento. Narandiba mostra que a

legibilidade dos lugares não está necessariamente conectada a uma diferenciação,

em planta, do traçado de lotes e circulações.

Esse argumento já havia sido tangenciado por BENEVOLO9, ao comentar o sistema

de urbanização setecentista, em grelha, de algumas cidades americanas. Ele

menciona que, nesses casos, o desenho urbano regular dá sustentação à legibilidade

do conjunto tumultuado por edificações de diversos tipos e alturas. Entretanto,

conforme observa em Nova York e em Chicago, quando a densidade diminui, o

efeito orientador da grelha planimétrica desaparece, restando apenas a desordem

formal dos artefatos arquitetônicos. Em Narandiba, ao contrário, mesmo a

densidade sendo baixa, a grelha ainda assim sustenta o conjunto e a diversidade

que, com o tempo, certamente aumentou, em razão das sucessivas modificações

introduzidas pelos usuários nas suas moradias.

As fotos da Figura 4, em seguida, ilustram essa idéia.

6.6.2. Exame da hipótese 2: a repetição e a orientação espacial.6.6.2. Exame da hipótese 2: a repetição e a orientação espacial.

Diversos autores, dentre os quais se destacam LYNCH10 e NORBERG-SCHULZ11

consagraram o entendimento de que a orientação espacial ocorre a partir de

referenciais físicos, articulados por caminhos e direções. Tais referências (ou

marcos) assim se constituem pela sua singularidade face aos demais elementos da

9 Cf., BENEVOLO, L. A cidade e o arquiteto, São Paulo: Martins Fontes, 1984, p. 65.10 LYNCH, K. The image of the city, Cambridge, Mass.: M.I.T. Press, 1960.11 NORBERG-SCHULZ, C. Existence, Space and Architecture. Londres: Studio Vista, 1975.

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paisagem, isto é, pelo seu potencial de diferenciação espacial. Se isso é verdade,

quanto maior for a quantidade de visualizações singulares que oferece, maior será o

potencial da paisagem de fixar imagens na nossa mente. Maior será seu potencial de

comunicação.

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Figura 4

As referências paisagísticas

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Uma malha geométrica regular tem um baixo potencial de oferecer ângulos

variados de perspectiva, pois sua regularidade trabalha exatamente no sentido

oposto, isto é, oferece sempre as mesmas possibilidades de visualizações. Assim

sendo, a malha geométrica do desenho urbano de Narandiba sugere a formulação

de um espaço indiferenciado, com perspectivas repetidas e onde a orientação torna-

se difícil. Se analisarmos, ainda em planta, o potencial de comunicação do desenho

urbano do Campus Experimental, seremos levados a crer que a monotonia da

paisagem é ali inevitável pois, além da regularidade das perspectivas, há também a

regularidade na implantação dos objetos arquitetônicos.

Essa hipótese, entretanto, se apresenta como falsa desde a primeira visita ao

conjunto. As praças que se formam nas articulações dos hexágonos são tão

diferenciadas paisagisticamente que chegamos até a duvidar se realmente possuíam

formas e dimensões similares. O mais interessante é que o paisagismo dos

pequenos jardins a frente das casas (os territórios privados) emolduram tão

adequadamente os espaços coletivos (as praças) que deixam a impressão de que

foram cuidadosamente desenhados com esse propósito. Como esses pequenos

jardins são sempre singulares, cada praça adquire a singularidade que lhe confere o

entorno e todas as praças tornam-se, assim, singulares, verdadeiros marcos de

orientação espacial.

O que contrapõe a repetição do desenho urbano é, sem dúvida, a exuberância da

vegetação, seja no seu colorido, seja nas suas formas e variedades. A beleza dos

jardins floridos, das trepadeiras, das árvores e arbustos conferem a Narandiba a

imagem de uma espécie de paraíso tropical. Lá se tem a exata noção do potencial do

paisagismo como elemento de comunicação. A arquitetura dos lugares perde a

importância na presença da magnífica paisagem que os moradores construíram,

tirando da natureza o que ela podia lhes dar de melhor, como se vê nas ilustrações

da Figura 5. Esse jogo entre o rigidez geométrica dos espaços, a transgressão formal

dos arranjos paisagístico marca indelevelmente os diversos espaço exteriores,

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situando o transeunte o orientando-o: depois daquela mussaendra florida; a

esquerda da casa que tem uma parreira; na praça da carroça decorativa, perto das

mangueiras, essas eram as marcações que nós, pesquisadores fazíamos, sem nos dar

conta de que o nosso sentido de orientação vinha do paisagismo, refutando

inteiramente a hipótese de que a repetição do padrão hexagonal gerando praças

retangulares comprometia a orientação espacial. Concluímos que, entre edificações

baixas, onde há uma vegetação exuberante, ela se sobrepõe à ordem do plano como

elemento de orientação espacial.

6.6.3.Exame da hipótese 3: a falta de delimitação territorial gerando6.6.3.Exame da hipótese 3: a falta de delimitação territorial gerando

conflitos arquitetônicos e urbanos.conflitos arquitetônicos e urbanos.

No plano geral de Narandiba, a lógica de “stands” de exibição das casas parecia não

caracterizar espaços e transições entre os domínios públicos e privados. As praças

retangulares possibilitavam um distanciamento do observador para que este tivesse

uma melhor visão do protótipo da casa. Muito embora o relato da primeira

avaliação do BNH tenha indicado que a intenção fosse de conformar praças de

sociabilidade, esse argumento parece falho, considerando que as casas são

implantadas em esquinas. Em nossa cultura, as esquinas são mais usadas para

tipologias comerciais ou de serviços, diante da necessidade de maior exposição do

edifício no recinto da rua12. Era esperado que em Narandiba uma série de conflitos

gerados por essa super exposição e pela falta de delimitação dos territórios fossem

encontrados.

Entretanto, isso não ocorreu. Através de pequenas alterações, os moradores

diferenciaram o interior das casas do exterior, com o tratamento paisagístico, e

criaram um código de comportamento territorial para atenuar a falta de

privacidade.

12 Cf.: BOLTSHAUSER, João; “Noções da evolução urbana nas Américas”: ed. EAUFMG, B.H., sd e

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O espaço deixado entre as casas e as praças foi modificado, com varandas ou

pequenos jardins. No interior, as áreas de serviço foram adaptadas com a expansão

do edifício até as divisas. Essas soluções não comprometeram a integridade dos

projetos originais, mas qualificaram o espaço indiferenciado ao redor das

construções, de modo simples e econômico.

As praças foram tratadas na forma de jardins, sem focalizar qualquer centralidade.

Ao longo do tempo, os moradores cultivaram arbustos e árvores de modo que esses

não rompessem as tubulações de água e esgoto, nem comprometessem as

fundações das casas. Conseguiram, com esses cuidados, um paisagismo exuberante.

Controlaram a exposição das fachadas das casas através dessas cortinas vegetais.

Criaram trechos sombreados e refrescantes ao mesmo tempo em que conformaram

territórios mais privativos no espaço exterior.

O estilo de vida dos moradores parece ter se adaptado a esse conjunto de situações.

Os espaços coletivos recreacionais em Narandiba são poucos. Uma pequena quadra

de esportes foi acrescida ao projeto original, mas seu aspecto é de desuso.

Narandiba passou a ser considerada um lugar para “gente mais velha, avós, e gente

calma”, comentou um dos moradores. Os mais jovens elegem outros lugares mais

apropriados para o lazer ativo, externamente ao conjunto. Isso provocou uma

aparência contemplativa das praças, onde a serenidade só é quebrada quando se

realizam pequenas festas, bingos e congraçamentos. Nem mesmo o carnaval baiano

parece interferir nessa quietude. “Eu nem vejo carnaval por aqui, nem ligo o rádio

nem a tv”, comentou outro morador. A imagem de Narandiba é a de um “oásis”

calmo e tranqüilo. As crianças brincam nas bordas das praças e “os mais velhos

buscam viver em paz”, no dizer de Jane, moradora e sub-síndica do conjunto.

Inexistem complicadas transições entre o espaço coletivo, interior ao conjunto, e o

espaço público da rua, que lhe dá acesso. O estacionamento, ficando afastado das

casas, não permite que os carros invadam o interior, criando uma área onde o

movimento é filtrado. “Usamos carrinhos para trazer as compras ou fazer

VASCONCELLOS, Sylvio; “Vila Rica”: ed. Perspectiva, S.P., 1979.

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mudanças”, respondeu um dos moradores quando indagado se a ausência de uma

garagem privativa era problemática ou não.

Mais uma vez, portanto, a caracterização das casas e dos espaços exteriores,

segundo o que se viu, não sustenta a hipótese de que seus territórios sejam

indiferenciados, ocasionando conflitos de privacidade. Ao contrário, as adaptações

do espaço introduziram códigos de uso e conduta tacitamente assumidos pelos seus

moradores. A Figura 5 mostra fotos onde se vê uma acentuada diferenciação

espacial, sem algumas das usuais barreiras territoriais.

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A Figura 5

O paisagismo e a diferenciação espacial.

6.7. Conclusão.6.7. Conclusão.

As Leituras Espaciais em Narandiba revelaram, desde as primeiras visitas, que não

havia nenhum tipo de conflito entre os moradores e o espaço urbano. Os 23 anos do

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assentamento haviam consagrado normas de convivência e regras de uso dos

espaços públicos, regulamentando, enfim, a sociabilidade. Essa regulamentação

incorporou as transgressões que não afetavam grandemente os fenômenos de

privacidade, territorialidade, identidade e ambiência. Por outro lado, o cuidado de

todos com o espaço coletivo fez com que o tratamento paisagístico dos lugares

despontasse como a grande solução para que fossem evitadas transgressões que

deteriorariam a qualidade de vida do ambiente:

a) O carro ficou definitivamente banido do interior do Campus, pois sua passagem

certamente reduziria as praças; sua presença junto às casas eliminaria os pequenos

jardins. O ruído de sua passagem haveria de perturbar o sossego dos mais velhos e

a segurança das crianças. O estacionamento contíguo à entrada do conjunto foi a

solução encontrada pelos moradores para conciliar a necessidade de ter carro e o

desejo de morar bem. Uma solução que usualmente não se vê nos projetos que nós,

os arquitetos, fazemos.

b) Não havendo trânsito de carros, os caminhos podem ser estreitos e os jardins

maiores. As praças não se transformam em estacionamentos e o verde prevalece. As

praças podem ser ocupadas por crianças, com seus brinquedos e jogos. Mas isso

também foi regulado pelo paisagismo: as praças não são para se estar; são para se

contemplar. Com isso ninguém fica por ali jogando bola ou fazendo algazarra.

Preserva-se a privacidade.

c) Havendo praças bem cuidadas e canteiros floridos, tem-se uma paisagem urbana

privilegiada, semelhante à dos elegantes condomínios fechados. A identidade assim

se recompõe: não se trata de um “conjunto do BNH”, mas do Campus

Experimental.

d) A ausência do carro, as praças embelezando o lugar, as casas bem cuidadas, as

varandas cobertas de trepadeiras floridas, as mangas, goiabas e uvas: a ambiência

da morada do sonho.

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35

7. Relato das experiências realizadas com o apoio

do EVA.

O Estúdio Virtual de Arquitetura - EVA foi montado pelo Departamento de

Projetos da Escola de Arquitetura da UFMG com o objetivo de desenvolver

pesquisas que façam avançar o processo de criação com o apoio de computador e

participação dos usuários no processo de projeto de arquitetura e urbanismo,.

principalmente os usuários das camadas sociais populares, isto é, o operariado e a

classe média baixa.

O EVA foi montado com recursos dos seguintes projetos de pesquisa e

desenvolvimento:

• Arquivo Computadorizado de Materiais, Técnicas e Sistemas Construtivos

Aplicáveis em Habitação Popular. (FAPEMIG). Plataforma Macintosh,

U$36.000,00

• LAMOE - Arquitetura. Integração Obra/Escola (UFMG) Plataforma IBM/PC,

U$12.000,00

• Avaliação Pós-Ocupação, Participação de Usuários e Melhoria da Qualidade dos

Projetos Habitacionais: uma abordagem fenomenológica com apoio do Estúdio

Virtual de Arquitetura - EVA (FINEP) Plataforma IBM/PC U$32.000,00

No âmbito do projeto FINEP, estamos desenvolvendo formas de participação dos

usuários nos projetos, através da utilização de sistemas gráficos avançados.

As primeiras experiências estão sendo feitas com os computadores ITAUTEC

adquiridos pelo projeto. São modelamentos animados das tipologias habitacionais

implementadas em Ipatinga. Quando esses modelamentos e animações estiverem

concluídos, serão testados com os usuários que habitam as tipologias modeladas, na

tentativa de fazê-los participar das propostas de modificações para resolver os

conflitos identificados.

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Habitacionais: uma abordagem fenomenológica com apoio do Estúdio Virtual de Arquitetura- EVA”

36

Faremos um breve relato dessas experiências, para que a FINEP tenha condições de

aquilatar o fator multiplicador que representou o projeto por ela apoiado.

O Projeto Ambiente Informatizado de Ensino - AIE, que contou com os

investimentos Prograd 1999, visava potencializar o uso dos recursos

computacionais no ensino de graduação visando a integração e flexibilização das

atividades curriculares, ensaiando algumas proposições do presente projeto. Foram

adquiridos um servidor e duas estações de trabalho, além de softwares para criação

de material didático informatizado e para apoio de ensino à distância, incluindo-se

o suporte de atividades colaborativas a distância. O Projeto contou também com a

participação de 3 bolsistas de graduação e com a colaboração e parceria da equipe

do Projeto Produção de Material Didático Via Web - PMDVW, do departamento

PRJ. Esses projetos tratavam do ensino apoiado pelo computador, desdobrando no

ensino da EAUFMG as principais preocupações dessa pesquisa.

Ao longo do ano de 2000 foram estudados e experimentados vários softwares e

práticas de ensino à distância e trabalho colaborativo mediado por computador,

havendo o suporte à rede da escola e aos departamentos e professores interessados

na publicação de material na internet. Desta investigação resultou a seleção do

programa Lotus QuickPlace como a ferramenta mais adequada para as atividades

desejadas. O programa, foi instalado no computador servidor adquirido, através do

projeto e disponibilizado para toda comunidade acadêmica da escola, o que tem

permitido a criação de grupos de trabalho via rede junto a algumas disciplinas e

atividades acadêmicas, didáticas e paradidáticas dentre elas os experimentos do

PMDVW, a disciplina de Informática Aplicada, apoio ao Grupo de monitores do

Lagear, ao Grupo de Monitores do Ciau e ao Grupo de trabalho da revista de

hermenêutica.

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Habitacionais: uma abordagem fenomenológica com apoio do Estúdio Virtual de Arquitetura- EVA”

37

Também como atividade do EVA, podemos citar a melhoria do site da EAUFMG e

a criação de fóruns virtuais para apoio ao ensino. O objetivo de tais fóruns é a

ampliação das informações a respeito do curso, dos seus conteúdos, e,

principalmente, a consolidação de um espaço de trocas de idéias e informações

entre a comunidade acadêmica, favorecendo a integração informal das atividades

curriculares.

Juntamente com o projeto PMDVW, foi desenvolvida a página da biblioteca da

escola, possibilitando implantar mecanismo de auxílio ao usuário, atualizador de

notícias e conteúdos.

Visando maior difusão do projeto, foi realizado um seminário em Outubro de 2000,

com a participação de professores de outras unidades e, embora a participação da

escola não tenha sido expressiva, o seminário serviu para despertar interesse e

indicar novos caminhos para os professores pesquisadores que já trabalham com o

assunto da EAD. De fato, após quase 18 meses do início do projeto, não podemos

dizer que a EA tenha finalizado o processo de consolidar seu ambiente

informatizado, mas sem dúvida, iniciou-o de modo a alentar a possibilidade de,

diante de novos implementos, colocar a escola numa posição de vanguarda na

utilização de práticas de ensino próximas às diretrizes do CEPE 2001. Muito

trabalho ainda deve ser feito, com incentivo e treinamento para incentivar e treinar

os professores da escola, ampliando-se os debates, provendo-se constante suporte

técnico, e, principalmente, adequando-se o espaço físico das salas de aula com

infraestrutura adequada.

A presente pesquisa iniciou, como foi dito anteriormente, um fórum de discussão

sobre o uso dos computadores em rede e o ensino e aprendizagem de arquitetura.

Isso representou uma repercussão em outras ações imediatamente relacionadas à

vida acadêmica da EAUFMG, mas que estabeleceram um retorno capaz de

alimentar os dados e alimentar as hipóteses da pesquisa. Esses fóruns constituiram-

Pesquisa “Avaliação Pós-Ocupação, Participação de Usuários e Melhoria da Qualidade dos Projetos

Habitacionais: uma abordagem fenomenológica com apoio do Estúdio Virtual de Arquitetura- EVA”

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se de discussões sistemáticas entre os professores pesquisadores que colaboraram

na produção de material didático sobre arquitetura através da Internet, bem como

sua utilização em sala de aula e nos laboratórios de ensino e pesquisa da EAUFMG.

Problematizando as especificidades do assunto para a aprendizagem de técnicas

construtivas aplicadas à arquitetura, o grupo de pesquisa compareceu ao encontro

da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), no ano de 2000, em

Brasília, apresentando as conclusões sobre o ensino à distância no fórum da

Unirede. Foram enfatizados os objetivos educacionais relativos a

psicomotricidade13, que dizem respeito ao desenvolvimento de habilidades motoras

pelo indivíduo, a operação com instrumentos e o adestramento. O que foi mostrado

na SBPC foi um site no qual se ensinava a construir um fogão à lenha14. Esse fato

repercurtiu nas discussões do grupo de pesquisa “Habitar”, especificamente sobre a

possibilidade de ensinar técnicas construtivas via Internet. De toda a América

13 O ponto de partida do grupo foi a consideração do Ensino Tecnicista na história do país. Assim, o conceito

de “ objetivo educacional da área de psicomotricidade” foi considerado segundo BLOOM, Benjamin S. et Alii;

TAXONOMIA DE OBJETIVOS EDUCACIONAIS, DOMÍNIO AFETIVO, Globo, Porto Alegre, 1974.14 Em 1998 Minas Gerais possuia 98% das residências rurais utilizando fogões à lenha, segundo a EMATER.

Esse primeiro experimento foi realizado levando-se em conta a possibilidade de ser útil a nesse contexto.

Pesquisa “Avaliação Pós-Ocupação, Participação de Usuários e Melhoria da Qualidade dos Projetos

Habitacionais: uma abordagem fenomenológica com apoio do Estúdio Virtual de Arquitetura- EVA”

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Figura do Estudo dirigido sobre como construir um fogão a lenha, no endereço internethttp://www.arq.ufmg.br/rcesar/pmdvw/Movie_base.html.

do Sul, é o Brasil o país que destina o maior PIB ( 4%) à educação pública, tendo no

entanto, o maior índice de analfabetismo (16,7% da população) de toda a América.

Assim mesmo, segundo pesquisa do IBOPE/1999, cerca de 3,3 milhões de

brasileiros têm acesso à Internet (usam a Internet ao menos uma vez por semana).

Este número, que corresponde a 9% da população, coloca o Brasil entre as 10 nações

que mais utilizam a Internet. Desse número, entretanto, as estatísticas mostram que

mais de 84% dos usuários são das classes sociais A e B. Esses dados desenham um

quadro estarrecedor, onde o uso da Internet tem acentuado as diferenças sociais,

sobretudo nos países em desenvolvimento. O desafio, colocado em termos de uma

ampliação do atendimento pedagógico, encontra-se nesse fato: a urgência em

atender o déficit de unidades habitacionais do país e a exclusão de classes sociais

que não podem pagar por sua moradia. Contribuir para reverter o quadro da

exclusão digital do país significaria, no mínimo, proporcionar uma qualificação ao

público e usuário, habilitando-o ao uso dos computadores ligados em rede. Nesse

Pesquisa “Avaliação Pós-Ocupação, Participação de Usuários e Melhoria da Qualidade dos Projetos

Habitacionais: uma abordagem fenomenológica com apoio do Estúdio Virtual de Arquitetura- EVA”

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sentido, as discussões do grupo de pesquisa encaminharam outras investigações

que estão em curso na linha de pesquisa da EAUFMG e que iniciaram outro

produto: o apoio ao Mutirão São Gabriel, em Belo Horizonte.

A Rede Brasileira de Mutirões: continuidade do apoio FINEP a pesquisa naA Rede Brasileira de Mutirões: continuidade do apoio FINEP a pesquisa na

EAUFMGEAUFMG

KIRKPATRICK e CUBAN15 indicam que há diferentes modos de aproximação da

aprendizagem com o computador:

- CAI ou Computer Assisted Instruction, método no qual o computador domina,

ficando o estudante sozinho durante todo o processo de aprendizagem;

- CMI ou Computer Mediated Instruction, no qual o computador tem desempenho

importante, mas é sempre mediado pelo instrutor/professor;

- CEI ou Computer Enhanced Instruction, no qual o instrutor/professor

desempenha papel principal do processo educativo, sendo o computador apenas

uma estratégia de ensino.

Cada um destes métodos interativos são bem diferentes entre si, proporcionando

distintos modelos pedagógicos e relacionamentos entre professores e estudantes. O

que há de comum entre eles, entretanto, é a natureza dialógica da aprendizagem.

Esses pensamentos estruturam o trabalho que está em curso, sob a coordenação da

prof. Maria Lúcia Malard, e também financiado pela FINEP, denominado “Mutirão

São Gabriel: tecnologias avançadas de informática para novas formas de autogestão

– MSG”,

Utilizando como campo de aplicação o Mutirão a ser construído no bairro São

Gabriel, na cidade de Belo Horizonte, esse trabalho pretende desenvolver

procedimentos metodológicos informatizados e disponibilizáveis via internet,

criando a Rede Brasileira de Mutirões-RBM, para o aperfeiçoamento do processo de

15 KIRKPATRICK and CUBAN, “Computer’s Make kids Smarter – Right?” in Technos Quarterly, vol. 7 no.

Pesquisa “Avaliação Pós-Ocupação, Participação de Usuários e Melhoria da Qualidade dos Projetos

Habitacionais: uma abordagem fenomenológica com apoio do Estúdio Virtual de Arquitetura- EVA”

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concepção, execução, gestão, registro e disseminação da produção de moradias em

sistema de mutirão. Serão desenvolvidos os seguintes conhecimentos: (a)elaboração

de projeto executivo de moradias com a participação efetiva dos

usuários/mutirantes, utilizando o manejo de modelos virtuais interativos;(b)

eliminação de conflitos arquitetônicos e problemas recorrentes nos projetos e nos

processos de gestão dos mutirões já avaliados pela equipe. (c) metodologia para a

interação, em tempo real, de projetistas/técnicos/mutirantes, através de um

ambiente gráfico interativo e operável via internet;(d) treinamento da mão-de-obra

mutirante com apoio desse ambiente.

As metas desse trabalho são bem aproximadas da definição de CMI (Computer

Mediated Instruction) ou seja:

1. Desenvolver processos participativos do projeto executivo das moradias do

Mutirão São Gabriel, com recursos avançados de informática, para facilitar a

compreensão e assimilação da linguagem técnica e assim assegurar o efetivo poder

de decisão dos mutirantes sobre as soluções arquitetônicas e construtivas propostas

pelos técnicos;

2. Desenvolver, usando simulação tridimensional com animação, metodologias de

treinamento de mão-de-obra não qualificada de construção civil (mutirantes);

produzir tutoriais com esse material e disponibilizá-los, via internet, para aplicação

no Mutirão São Gabriel (MSG) e em qualquer parte do Brasil que tenha acesso a

essa mídia;

3. Desenvolver metodologias para, durante as atividades do mutirão, qualificar os

mutirantes na interpretação de desenhos técnicos, elaboração de planilhas

eletrônicas, uso de processadores de texto e dos recursos de internet, aumentando

2, UK, 1998.

Pesquisa “Avaliação Pós-Ocupação, Participação de Usuários e Melhoria da Qualidade dos Projetos

Habitacionais: uma abordagem fenomenológica com apoio do Estúdio Virtual de Arquitetura- EVA”

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suas possibilidades de integração no mercado de trabalho ou no exercício

profissional autônomo.

4. Construir um ambiente virtual interativo de comunicação via internet entre

produção de projetos no EVA e canteiro de obra (quiosque no MSG) para

gerenciamento, em tempo real, articulando os projetos (de arquitetura e

complementares), especificações, orçamento, planejamento e controle de obra e

processos decisórios.

5. Fazer a vídeo-documentação de todas as fases do processo do MSG, desde o

planejamento à entrega do mutirão, para permitir sua avaliação crítica posterior e

propor acertos de rumos para futuras aplicações.

6. Após as avaliações e utilizando o MSG como referência, produzir manuais

eletrônicos e interativos sobre todas as fases do processo de construção em mutirão

para sua disseminação.

7. Construir um ambiente virtual interativo – a Rede Brasileira de Mutirões - para

troca de experiências e informações entre as comunidades - e também os governos

municipais - que adotarem essa forma de encaminhamento do problema

habitacional para as populações de baixa renda.

Esse trabalho encontra-se em desenvolvimento pela equipe de pesquisa ensejando a

complementaridade com a experiência adquirida até aqui.

Publicações e dissertações geradas pelo desenvolvimento do projeto.

Estas publicações e disertações se beneficiaram do desenvolvimento do projeto, pois

foram elaboradas a partir da temática nele abordada, utilizando-se dos

equipamentos e materiais de consumo dele provenientes. Listam-se abaixo as

seguintes produções:

Pesquisa “Avaliação Pós-Ocupação, Participação de Usuários e Melhoria da Qualidade dos Projetos

Habitacionais: uma abordagem fenomenológica com apoio do Estúdio Virtual de Arquitetura- EVA”

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Tipo: Produção bibliográfica.

Subtipo: Artigos em Revistas Especializadas de Circulação

Nacional.

Referência Bibliográfica: MALARD, M.L. CONTI, A.,FERREIRA DE SOUZA, RC. CAMPOMORI, M. Avaliação

Pós-Ocupação, Participação de Usuários e Melhoria de

Qualidade de Projetos Habitacionais: uma Abordagem

Fenomenológica. Revista da ANTAC, Número especial

HABITAR, 2001.

Tipo: Produção bibliográfica.

Subtipo: Trabalhos completos publicados em anais de eventos

científicos, tecnológicos e artísticos

Referência Bibliográfica: MALARD, M. L.; PINTO, J. A.

Arquivo computadorizado de materiais, técnicas e sistemas

construtivos aplicáveis em moradias de baixo custo. In: Coinfa

98, 1997, Florianópolis: UFSC, v. 01, 1998. p. 01-01

Tipo: Dissertação de Mestrado.

Programa: NPGAU – EAUFMF

Orientadora: Maria Lucia Malard

Mestrando: Sérgio Ricardo Palhares.

Título: Conjunto Habitacional Esperança: do espaço planejado

ao espaço vivido.

Tipo: Dissertação de Mestrado.

Programa: NPGAU – EAUFMF

Orientadora: Jupira Gomes de Mendonça/ Maria Lucia Malard /

Pesquisa “Avaliação Pós-Ocupação, Participação de Usuários e Melhoria da Qualidade dos Projetos

Habitacionais: uma abordagem fenomenológica com apoio do Estúdio Virtual de Arquitetura- EVA”

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Mestrando: Alfio Conti.

Título: Mutirões de Ipatinga: uma busca do conceito.