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BRESSANE QUE VEJO, DOIS FILMES QUE ME OLHAM: A dissonância no cinema de Julio Bressane. Alexandre Linck Vargas Universidade Federal de Santa Catarina RESUMO: Das muitas rupturas atribuídas ao cinema experimental, e especificamente ao cinema de Julio Bressane, poucas se dedicam a uma problemática da imagem enquanto dissonância entre o que vemos e o que nos olha. Por isso proponho, na análise dos filmes Matou a Família e Foi ao Cinema e Dias de Nietzsche em Turim uma breve arqueologia da imagem. Palavras-chave: Imagem, Cinema, Julio Bressane. E se você olhar longamente para um abismo, o abismo também olha para dentro de você. Friedrich Nietzsche Fui assistido por um filme do Bressane hoje. Dois na verdade. Foi assim que achei melhor começar este escrito. Antes havia outras duas opções: a primeira, mais bem-comportada, e um tanto covarde, que buscava analisar objetivamente o objeto (aqui dois filmes de Julio Bressane, Matou a Família e Foi ao Cinema e Dias de Nietzsche em Turim), objetificando ainda mais o objetificado, e com isso retificando uma crítica cinematográfica do olhar crente, narcisista, onde a verdade do objeto lá escondida deve ser decifrada, onde o meu reflexo deve ser suprimido para que eu veja apenas a falsa imagem nas águas de uma lagoa para que eu veja apenas o que me olha. Num segundo momento, porém, surgiu uma segunda alternativa em conflito, de maneira que este texto enveredasse para um ver do sujeito (aqui o teórico e o crítico) em sujeição à sua subjetividade, na consciência do ver tautológico, narcisista de novo, onde o que interessa é única e somente aquilo que vejo (por excelência o lugar da opinião), se ocupando da representação minha mesmo na lagoa, meu ver sujeito ao sujeito que vejo. Insisto em narcisismo. Pois tanto contemplar o objeto fora de mim quanto me ocupar dele apenas para mim é ainda estabelecer uma relação antitética entre sujeito-objeto, é ainda autocontemplação, pois em ambos os casos, jamais me privo da autonomia, da economia do ser, do impasse gerado pelo conflito de um duplo inconciliável. Ora, poderia advogar uma síntese, porém requerer uma superação ainda assim seria uma

Bressane que vejo, dois filmes que me olham: A dissonância no cinema de Julio Bressane

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BRESSANE QUE VEJO, DOIS FILMES QUE ME OLHAM: A dissonância no cinema de Julio Bressane.

Alexandre Linck Vargas Universidade Federal de Santa Catarina

RESUMO: Das muitas rupturas atribuídas ao cinema experimental, e especificamente

ao cinema de Julio Bressane, poucas se dedicam a uma problemática da imagem

enquanto dissonância entre o que vemos e o que nos olha. Por isso proponho, na análise

dos filmes Matou a Família e Foi ao Cinema e Dias de Nietzsche em Turim uma breve

arqueologia da imagem.

Palavras-chave: Imagem, Cinema, Julio Bressane.

E se você olhar longamente para um abismo, o

abismo também olha para dentro de você.

Friedrich Nietzsche

Fui assistido por um filme do Bressane hoje. Dois na verdade. – Foi assim que

achei melhor começar este escrito. Antes havia outras duas opções: a primeira, mais

bem-comportada, e um tanto covarde, que buscava analisar objetivamente o objeto (aqui

dois filmes de Julio Bressane, Matou a Família e Foi ao Cinema e Dias de Nietzsche em

Turim), objetificando ainda mais o objetificado, e com isso retificando uma crítica

cinematográfica do olhar crente, narcisista, onde a verdade do objeto lá escondida deve

ser decifrada, onde o meu reflexo deve ser suprimido para que eu veja apenas a falsa

imagem nas águas de uma lagoa – para que eu veja apenas o que me olha. Num segundo

momento, porém, surgiu uma segunda alternativa em conflito, de maneira que este texto

enveredasse para um ver do sujeito (aqui o teórico e o crítico) em sujeição à sua

subjetividade, na consciência do ver tautológico, narcisista de novo, onde o que

interessa é única e somente aquilo que vejo (por excelência o lugar da opinião), se

ocupando da representação minha mesmo na lagoa, meu ver sujeito ao sujeito que vejo.

Insisto em narcisismo. Pois tanto contemplar o objeto fora de mim quanto me ocupar

dele apenas para mim é ainda estabelecer uma relação antitética entre sujeito-objeto, é

ainda autocontemplação, pois em ambos os casos, jamais me privo da autonomia, da

economia do ser, do impasse gerado pelo conflito de um duplo inconciliável. Ora,

poderia advogar uma síntese, porém requerer uma superação ainda assim seria uma

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forma de fugir do conflito, da dissonância, por uma solução moral que se afirma de

antemão como superior alternativa consonante. Portanto, o que fazer?

O artista geralmente não vê a diferença entre o que ele diz e o que ele faz.

Mas pouco importa, afinal de contas, se o crítico é capaz de ver o que é feito,

portanto de assinalar a disjunção – sempre interessante e significativa, com

frequência mesmo fecunda – que trabalha nesse intervalo dos discursos e dos

objetos. Assinalar o trabalho das disjunções é com frequência assinalar o

próprio trabalho – e a beleza – das obras. Isto faz parte, em todo caso, das

belezas próprias ao trabalho crítico. Ora, muitas vezes o crítico de arte não

quer ver isto: isto que definiria o lugar de uma abertura, de uma brecha que

se abre em seus passos; isto que o obrigaria a sempre dialetizar – portanto

cindir, portanto inquietar – seu próprio discurso. Ao se dar a obrigação, ou o

turvo prazer, de rapidamente julgar, o crítico de arte prefere assim cortar em

vez de abismar seu olhar na espessura do corte. Prefere então o dilema à

dialética: expõe uma contrariedade de evidências (visíveis ou teóricas), mas

se afasta do jogo contraditório (o fato de jogar com contradições) acionado

por parâmetros mais transversais, mais latentes – menos manifestos – do

trabalho artístico. (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 69-70).

Diante do impassível do dilema, Didi-Huberman em “O que vemos, o que nos

olha” decide pela dialética, pela polifonia, pela dissonância do ver e do olhar. Tal

potencialidade de costurar no vazio, na distância inconsolável que separa o mesmo do

outro (sem com isso fixar quem está destinando à mesmice ou à outridade) é uma

maneira bastante significante de prosseguir o trabalho sem necessariamente ultrapassá-

lo, superá-lo, fechá-lo ou suturá-lo – mantendo o corte aberto entre o que eu vejo e o

que me olha. Com base em tais proposições estabeleço o problema deste escrito:

trabalhar uma crítica da imagem entre o Julio Bressane que vejo em estilhaços

biográficos de alguns escritos e os dois filmes em potência que me olham.

O ato de ver não é o ato de uma máquina de perceber o real enquanto composto

de evidências tautológicas. O ato de dar a ver não é o ato de dar evidências

visíveis a pares de olhos que se apoderam unilateralmente do “dom visual” para

se satisfazer unilateralmente com ele. Dar a ver é sempre inquietar o ver, em seu

ato, em seu sujeito. [...] É o momento em que o que vemos justamente começa a

ser atingido pelo que nos olha – um momento que não impõe nem o excesso de

sentido (que a crença glorifica), nem a ausência cínica de sentido (que a

tautologia glorifica). É o momento em que se abre o antro escavado pelo que nos

olha no que vemos. (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 77).

Apesar de parecer mais que evidente que este que nos olha não se trata do autor

enquanto fonte originária, transcendência da verdade, ainda assim não deixa de

acontecer com esta postura teórico-crítica certo tributo ao próprio Julio Bressane, onde

tanto no seu cinema, como em seus escritos, há constantemente uma obsessiva tentativa

de desautonomizar a arte, compreendê-la em séries dissonantes, porém cambiáveis,

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atravessadas, contaminadas. Em suma, uma ética do impuro, uma práxis circular a um

aberto, um inacabado, uma série irregular.

Chovem os golpes, voam as pedras; uns ferem, outros caem; todos correm e

acodem sem saber a quem, uns incitados de ódio e da ira, outros sem ira nem

ódio. Tudo é grito, tudo desordem, tudo confusão.

– parece 2.001. – Cidadão Kane –

F. Lang/S. Eisenstein, e é Antônio Vieira.

("Sermões" –).

[...]

Fora, a indiferença solar da Riviera. Calipígias de maiôs brevíssimos, turistas.

Shorts, Azul. Carros chispando. O Lido frívolo e internacional.

- parece J. L. Godard, (Le Mèpris e etc...)

e é Haroldo de Campos

Prometia-me mundos e fundos:

pijamas de seda, passeios em Petrópolis,

dinheiro. A gruta de Ali Babá

- parece cinema, e é cinema

(Diários de Hospício de Lima Barreto)

(BRESSANE, 1996, p. 21-23).

Já no seu cinema este mesmo procedimento é explicitado na incursão do áudio

de outros filmes: em Dias de Nietzsche há um diálogo em áudio reproduzido de Édipo

Rei de Pasolini, assim como há em Matou a Família, no filme dentro do filme, quando

logo após assassinar seus pais o matador vai assistir uma sessão de Perdidas de Amor,

onde o filme prossegue como se fosse outro, mas não de maneira ordenada, pois tanto as

protagonistas perdidas de amor falam do título como um filme semelhante a elas (mas

não igual), quanto também figuram outras atuações das mesmas atrizes em personagens

outros em contextos distintos. Todos, porém, unidos na morte absurda, em Buñuel de

Um Cão Andaluz, A Idade de Ouro, Ensaio de um Crime: principalmente no começo

onde diante de uma vida pequeno-burguesa o matador ensaia seus gestos, entre eles,

passando a navalha frente a seu olho.

Há ainda Bergman de Mônica e o Desejo ou Persona no problema que

concerne a este escrito. Márcia e Regina de Matou a Família nos olham no início e no

final do filme, assim como Nietzsche quando começa a sofrer seus surtos. Friso o que

nos olha pra evitar uma saída tautológica do personagem que olha para a câmera.

Mesmo sem qualquer necessidade de obediência às intenções autorais de Bressane ainda

assim me parece um tanto tolo acreditar que estivesse no mote estético dos filmes que

os atores olhassem pra câmera – pois só não há câmera como também não há atores

despidos de seus (múltiplos) personagens nos filmes. Aqui novamente a postura teórico-

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crítica apresentada precisa ser recomposta: não se trata de buscar uma imagem icônica –

do ator ou de como Nietzsche, esse homem, realmente era – e sim algo mais próximo de

um índice, de uma relação por afinidades, sem complementariedades ou estabelecidos

hierárquicos.

Porém retomo ainda de uma esfera biográfica: se vermos as duas obras pelo

seu espaçamento em datas, Matou a Família de 1969, Dias de Nietzsche, de 2001, a

sensação que me passa é de Bressane tentando conduzir suas imagens a um processo

arqueológico, tentando ver o que nos olha por trás do que nos olha. Estaria atrás de

Márcia e Regina, Nietzsche? E quem estaria atrás de Nietzsche? É importante ressaltar

que esta arqueologia ainda assim se dá em jogo, pois poderíamos possivelmente inverter

a ordem dos rostos, ou ainda, fazê-los circular num processo infinito – ou seja, eterno

retorno, estabelecer de um processo de afinidades. O que com isso podemos presumir é

que a compreensão de tais séries (dos rostos, de imagens, de textos) abertas em cisões

almeja não um encontro salvador, mas uma perda do que está aí – uma ausência

enquanto significado alquebrado, outro, e uma presença enquanto imagem material,

mesma, sem recorrer ao bastidor “por trás da câmera” ou a fábula da “vida real”

biográfica.

Esta última consideração merece ser melhor ilustrada: o ser-aí perdido não se

contenta em pensar de forma transcendente. É a alegoria da porta utilizada por Didi-

Huberman, pois somente uma porta enquanto porta, ao contrário de uma parede,

presume um furo, um outro, ainda estando ela aí mesma. É nesse sentindo que me

parece interessante ver Bressane nestes dois filmes, já que ele está aí enquanto imagem-

som material, e não lá escondido como diretor atrás da câmera ou inalcançável homem

da realidade, – e, mesmo assim, sendo todo tempo ausente. Essa dialética da presença e

da ausência parece desenvolver-se com dois trechos em cada filme: em Matou a

Família, na cena onde o disco arranhado de Roberto Carlos se repete sem fim na frase

“em te perder” ao final do filme, quando as duas protagonistas se matam, morrem,

desaparecem inclusive dos enquadramentos, para no final voltarem sorridentes olhando

para a câmera. – assim como em Dias de Nietzsche, quando o filósofo fala sobre a

necessidade de que seu leitor o perca numa carta escrita em Turim a Georg Brandes,

“depois de teres me descoberto não foi difícil me encontrar, a dificuldade agora é me

perder”.

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É próprio de nossa natureza servimo-nos das artes para fazer presente o

ausente, e representar o que não pode ser percebido. Platão problematiza ou

pelo menos dificulta a novidade nas artes apesar dele próprio ser uma

novidade. O sentimento que tem Platão da intensa ação que a arte exerce

sobre o espírito humano explica sua rigorosíssima atitude para com os

artistas. Suas afirmações nos escandalizam e muitas vezes nos revoltam. Mas

o problema que Platão nos coloca continua a soar: como pode a arte

influenciar o homem a restabelecer o equilíbrio indispensável à existência e,

ainda, como formar o gosto público sem escravizá-lo? Perdido na noite dos

tempos aparece um sinal universal que revela a natureza humana: é a prática

da encantação mágica. A encantação é o protótipo da arte musical, do canto,

do ritmo. A encantação mágica é a origem comum da música e da poesia.

Noosmancia são as sugestões e intuições falantes da sabedoria, da

inteligência, do conhecimento, da observação metódica e experimental. A

forma sensível como signo de uma realidade invisível. (BRESSANE, 1996,

p. 81).

A magia para Bressane parece ser por predileção o local desta dialética da

presença e ausência, cisão do visível com o invisível. O equilíbrio que ele aponta quer

me parecer aqui mais orientado a saber lidar com a distância (dialética) do que construir

uma ponte para unir dois lados (síntese), já que conjuga num único signo, na última

frase, “forma sensível” com “realidade invisível”. Magia etimologicamente enquanto

saber, e consequentemente, para pensarmos em atravessamentos com Francis Bacon ou

Foucault, enquanto poder: saber-poder, potencialidade de caminhar pelo faltante, no

vazio, pelo buraco, por aquilo que nos escapa daquilo que aí está. Assim acontece em

Nietzsche em Turim, onde somos conduzidos em gravações ausentes de Nietzsche a

vermos chãos, paredes, tetos, enfim, signos que aí estão que ajudaram, segundo o

filósofo transeunte – “só os pensamentos que temos caminhando valem alguma coisa”

diz –, na formulação de filosofias do amanhã, do depois, do distante, ainda ausente,

desdobrando-se ainda mais quando tais imagens apresentadas enquanto hoje, atualidade,

Turim anos 2000, mostra-se numa esfera videográfica de registro documental, onde os

mesmos chãos, paredes e tetos, os mesmos signos, tornam-se um índice da passagem de

Nietzsche por ali, uma memória de promessa de futuro porvir. Seria então esta

conjunção de passado com futuro, num presente que não é sintético, que não resolve os

problemas, mas os tensiona, os apresenta em crise, em crítica, que a magia de Bressane

pode se definir? Seria a crítica para Didi-Huberman a magia para Bressane? Há outra

cena em Matou a Família, que a exemplo do que analisei agora de Nietzsche em Turim,

reforça se não comprime ainda mais tais problemáticas – mas a veremos mais adiante.

Um aspecto que não pode ser negligenciado nesta especulação significativa da

noção de magia é sua aproximação com o ritmo, a música, sua natureza de encanto,

“em-canto”, natureza mesma do humano, “sinal universal”. Há isso nos Dias de

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Nietzsche em Turim apaixonado pela música enquanto movimento vivo positivo,

postulando que “sem a música a vida seria um erro”, assim como ao vermos no fim da

vida, dedilhando o silêncio vazio ainda à procura do som – interpretação esta sugerida

pelo filme ao mostrar imagens ficcionais de Nietzsche após o surto de 1889, dedilhando

um livro como um piano, e subsequentemente, retomando tal imagem com um plano

detalhe de suas mãos, novamente dedilhando as próprias pernas, em filmagens

documentais de Nietzsche já demente. Tudo isso sem haver um único som no filme que

termina com Nietzsche olhando “para a câmera”, olhando para nós. Igualmente há

também esta imbricação magia, música e “natureza humana” ao som das diversas

canções onde ocorrem danças intermináveis entre Márcia e Regina em Matou a Família,

quando ambas se travestem de crianças lembrando o convento onde estudavam, brincam

de adultas enquanto meninas peraltas que pegam os proibidos objetos dos adultos (a

coleção de armas do marido de Márcia), e por fim conduzem-se num movimento

incessante que só para, ainda que vagarosamente, em meio a grunhidos e gemidos e

arrastos no chão, com a morte das duas numa longa troca de tiros. A pergunta que

coloco é: não estaria nestes dois recortes a alegoria da vida? No primeiro pela

transposição conceitual vida e música, acerto e erro, e no segundo pela passagem do

nascimento enquanto criação, parcial autocriação na escolha das roupas em que se

travestem, para então à infância, à vida adulta de brinquedos perigosos e por fim à

morte: vida enquanto ritmo pulsante, coração musicado, em suma, encanto em canto?

É facilmente constatável em Bressane, seja nos escritos ou nos filmes, sua

filiação a partes do ideário da Nouvelle Vague francesa, mais ainda, por contágio, no

impressionismo francês dos anos 1920. A afirmação de Abel Gance de que “cinema é a

música da luz” exerce notável encantamento em Bressane, sendo retomada em diversas

ocasiões:

Penso que este enunciado de Gance não foi plenamente alcançado nem

realizado. A mim ele me ultrapassa: por que música da luz? A minha

sugestão, que não está em Deleuze, é que a película, o fotograma a que se

reduz o filme é transparente, branco, onde a luz, a sombra, grão a grão,

organiza, configura, transfigura a Imagem. Portanto a luz-sombra é música.

Música da luz. Ainda assim esta simples sugestão não alcança plenamente

toda a extensão ou muito menos esgota esta formulação: cinema é a música

da luz. Que luz? qual música? qual luz? que música? luz? música? música

luz? luz música? música da luz... (BRESSANE, 1996, p. 91).

Em outro momento, num diálogo com Rogério Sganzerla:

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Bressane - O cinema é a música da luz, era isso que ele dizia. Essa

formulação não só é a mais inteira, mas é belíssima. O filme é constituído de

um fotograma transparente, branco. O que escreve a imagem, o que organiza

a imagem é a sombra, que é aquilo o que não é nada. A sombra.

Sganzerla - Você não obtém o branco se não tiver também o preto.

Bressane - Por isso é música. Porque tudo o que se organiza é música. E

música da luz, porque é uma maneira de você recortar a luz, em movimento.

Você pode ter a ideia de um cineasta ideal, mas é uma personalidade que

dificilmente existirá. A exigência do cinema jamais poderá ser preenchida

por uma só pessoa. Um homem de espírito medieval, que pudesse ter um

vasto conhecimento de todas as disciplinas, de todas as ciências e tivesse

também o talento de organizá-las e fazê-las em filme, esse ser ideal, que é o

cineasta, evidentemente são várias coisas, você tem que "montá-lo" a partir

de muitos fragmentos. (SGANZERLA; BRESSANE, 2007, p. 137-138).

Mais uma vez aparece em Bressane a figura da cisão, do espaço vazio, aqui

entre luz e sombra, como uma ausência que ali está enquanto força criadora e

transformadora, pois afirma o movimento nascente deste intervalo, onde não é das

extremidades, nem sequer do equilíbrio, mas do choque que ocorre vida enquanto ritmo,

a música que é “tudo o que organiza”. É coexistência da sombra, do negro, com o

negativo branco sensibilizado que se pode “recortar a luz em movimento”. Com isso,

com o recorte, com aquilo que se parte, do corte em que recorre, se produz uma

montagem de fragmentos, não conciliador, não sintetizador, mas pulsante, rítmico,

alternado, dissonante. Será este, portanto, um significado potente da tão surrada

expressão “magia do cinema”.

Existe um vasto catálogo e uma vasta bibliografia dos inúmeros métodos e

sistemas de reflexão e prática divinatórias. Hoje, a esta extensa listagem

incluiríamos o cinema: a arte (cinematográfica) da compreensão e apreensão

da luz e da ilusão do movimento, imagem imaginante, cinema é eterno

deslimite, a fixação sensível e a revelação química de uma mancha-

pensamento. Signo expressível de certos conteúdos mentais. Cinema música

da luz. CINEMANCIA. (BRESSANE, 1996, p. 84).

É este aberto natural do cinema, como uma dança, espaço entre o pensamento

imaginante que se move sem cessar, interruptivo, com a imagem mancha que para e

fixa, irruptiva, que Bressane dá vida devotando pesquisa e fascinação a outros

personagens, históricos ou não, como Brás Cubas, Padre Antônio Vieira e São Jerônimo

– pra citar alguns. Não irei destrinchar os muitos motivos de tamanha dedicação nem

mesmo considerar os filmes sobre tais caracteres, o que interessa aqui é por onde esta

dedicação emerge. O que acabaremos por ver não é nada novo para o que já viemos

acompanhando até agora, mas ajuda a ilustrar a vontade desautonomizante da imagem,

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da arte e da vida que fulgura na obra de Bressane, trazendo novos complicadores, dos

quais destaco a tradutibilidade. Por ora, vejamos fragmentos alguns:

As inter-relações mantidas pelos conhecimentos, o prazer de derrapar

rompendo a barreira das disciplinas e categorias, a coerência na

complementaridade, paradimensional e pluridimensional, esta a teia dos

Sermões. Circular da poesia à música, da pintura à literatura, do cinema a

tudo, transgredindo os compartimentos convencionais: este é o movimento

das contradições. (BRESSANE, 1996, p. 42-43).

Rompante de limites e movimento das contradições: Magia – de novo como até

agora postulei. Há, portanto, nos Sermões de Antônio Vieira ao mesmo tempo um

rompimento que corta com um movimento que não para. A montagem cinematográfica

se qualifica bem para tais atributos, mas tal proposição vai mais longe. Não há

autonomia epistemológica com o cinema. Trata-se de um amplo projeto estético. “Ainda

Vieira: suponhamos que, diante de uma visão estupenda, saiam os sentidos humanos

fora de sua esfera e inaugurem o ver com os ouvidos e o ouvir com os olhos!”

(BRESSANE, 1996, p. 10). Ainda cinema música da luz, mas não somente. A questão

se forma para além (ou para dentro) do problema autonômico de natureza perceptiva

específica das artes, trazendo para o centro (ou para a margem) a (trans)formação entre

as artes pela tradutibilidade. Nos escritos sobre Brás Cubas isto se mostra mais óbvio,

falando a partir do livro, sem estagnar-se no gênero enquanto forma única de ler, se

segue falando da obra enquanto pintura, dança, “manuescritura” e cinema. A respeito de

Brás Cubas e sua tradutibilidade, escreve Bressane:

Literatura e cinema evocam um tema central: a tradução. [...] Para uma

tradução experimental, uma tradução semiótica, de uma linguagem para outra

linguagem, do texto para o filme, o que se impõe é a necessidade de uma

tradução identificadora, que force os limites do meio traduzido. Tradução em

cinema faz-se com luz-movimento-angulação-montagem. [...] Tradução e

contradição: circular da poesia a música, da pintura a literatura, do cinema a

tudo, derrapando, rompendo barreiras, categorias, misturando as inter-

relações mantidas pelos conhecimentos, coerência na complementaridade:

isto é tudo e todo o movimento das contradições. Em sua vegetação de

significações diversas, este livro, engenhoso e inovador, tem como um de

seus perfumes o caráter interdisciplinar, experimental, pois se situa em uma

fronteira-margem. É livro no limite do livro, da música, da pintura e do...

filme! (BRESSANE, 2000, p. 49-51).

Fronteira-margem é outra das figuras de linguagem que podemos somar nesta

tentativa de nomear àquilo que Didi-Huberman posiciona a crítica predisposta a falar, e

que Bressane faz transparecer nas suas obras. Uma fronteira-margem não deixa de ser

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um limiar, conceito este muito distinto de um limite, pois o primeiro ao contrário do

segundo não encerra nada, apenas demarca uma passagem (abertura) sobre uma fixação

(fechamento). Com isso temos novamente o jogo das contradições, do ausente que está

aí e do vazio em seu entremeio. Porém agora como uma potencial ferramenta de

trabalho para este espaço de choques, a tradutibilidade se mostra como aquilo que fala a

partir do vazio, entre o ser e o não-ser da obra, da coisa, do homem, daquilo que aqui

está e ainda assim sempre há de nos escapar.

Na leitura que Bressane faz de São Jerônimo, este por profissão um tradutor, a

proposta se mostra mais clara, porém não menos audaciosa, obscura:

Jerônimo foi o criador da influente Bíblia latina – Vulgata (livro de invenção

e procedimento experimental pioneiro). [...] Jerônimo comentador e tradutor

da Bíblia, fazendo triunfar a “hebraica veritas”, prestou ao Oriente um

imenso serviço. Foi de certa maneira criador de sua linguagem, de seu

pensamento, de seu imaginário. Este o trabalho gigantesco de Jerônimo. [...]

O drama de Jerônimo em sua gruta no deserto (viveu em Calcis de 372 a 375

e em Belém de 385 a 419) é o drama da luz. Paleodrama da luz. Cotejando

códigos, discernindo recensões, traduzindo sinais, caracteres, letras e línguas:

o logodédalo na cena muda do embate terrível consigo mesmo. A luz

pertence à substância mesma da beleza. A beleza inconcebível sem o

resplendor, sem a luz divina, presente de forma imanente: o deserto é para

Jerônimo a metáfora – oceano luminoso –, a imagem plástica do espaço

iluminado. Pictura quase pictura, areia, brancura, vazio espantoso, temor,

tremor, Jerônimo, estrenoitado, e quase cego, vive (a arte plástica: na luz total

Jerônimo traça seu plano do Paraíso) no deserto. O primeiro esforço humano

foi um esforço pictórico. Imagem riscada, pintada, nas paredes, das rochas e

cavernas. A imagem cria a palavra. A luz cria a imagem. A palavra é luz.

Jerônimo é trabalhado pela luz. (BRESSANE, 2000, p. 8-9, 21).

Pois, ao acentuar o caráter inventivo da imaginação, criador de “linguagem”,

de “pensamento”, de “imaginário”, a tradutibilidade se mostra, não necessariamente na

consumação da tradução, mas na sua potencialidade enquanto invenção de todas as

invenções, ferramenta criativa primeira e última, a que por um longo processo fez da luz

à palavra, da palavra à Jerônimo, de Jerônimo à todos nós. Se esta clarividência nasce

da força de tradutibilidade do encanto da vida, seríamos nós também música da luz?

Ao aproximar tantas contradições, oposições, distinções, sem com isso

suprimir a natureza que ainda as torna diferentes, Bressane leva a cabo com isso seu

megaprojeto estético. Armando-se com figuras como Vieira e seus Sermões, Jerônimo e

sua tradução, Cubas e suas memórias póstumas, aproxima imagem com magia,

cinemancia como quer, apontando respectivamente o poder do discurso transformador,

da metamorfose da tradução, e da montagem da vida, como forças rompantes, ainda que

localizáveis, rompantes de toda autonomia, higienização de acontecimentos, hierarquia

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dos seres, colocando-se entre vida e obra, sujeito e objeto, verdadeiro e falso. Arte,

portanto, como afirmação da vida como quer Nietzsche em Turim, como quer o

assassino que Matou a Família e foi ao cinema, como quer Deleuze (e Nietzsche de

novo) na ultrapassagem da verdade, as potências do falso.

Convido Deleuze para este escrito, pois Bressane é bastante entusiasta da teoria

do cinema deste “filósofo da imanência”.

Através do espelho de sua grande escritura... e através de criadoras

classificações micrológicas Deleuze pregava, interseccionava, os Signos

Cinema e Filosofia. Foi o primeiro. Foi a primeira vez. Ele próprio supõe que

os filósofos não se ocuparam do cinema, mesmo quando frequentavam por

um temor de precedência: a filosofia estava por si só ocupada numa tarefa

análoga a do cinema. Ela queria pôr o movimento no pensamento como o

cinema o põe na imagem. [...] Com ele o Signo cinematográfico deslizou e

contaminou a Filosofia. "Só uma vontade de arte pode nos salvar", escreve

sentencioso o filósofo da Imanência. É um chamado selvagem, duas ou três

coisas de um deserto vermelho... É muitíssimo. (BRESSANE, 1996, p. 94-

95).

Cinema enquanto salvação: de que tipo – e de quê? Ainda recapitularemos isto

mais adiante. Agora igualmente torna-se interessante pensarmos a série em que se insere

uma imagem, no caso a de Bressane, e nela encontramos a evidente e assumida travessia

do cine-escritor em Deleuze – e o cinema, “marginal” à tradição, enquanto potências do

falso. Não irei aqui retomar a extensa e complexa “cinematografia” deleuzeana, porém

uma breve recapitulação se faz necessária: em “Imagem-tempo” Deleuze teoriza

determinado cinema sob o conceito de potências do falso, mais especificamente o

cinema por ele entendido como moderno, aquele surgido com Orson Welles, o neo-

realismo italiano, a nouvelle vague francesa e Yasujiro Ozu. Se antes no cinema

clássico tínhamos imagens-movimento sob um encadeamento sensório-motor, na

imagem-tempo obteríamos os espaços e tempos quaisquer. Nesse panorama, a potência

do falso seria uma crucial força motriz da transformação radical da imagem que

Deleuze propusera. Esta imagem é eticamente a de Henri Bergson, de quem Deleuze

não esconde suas referências, mas também a de Nietzsche. Uma imagem capaz de

mostrar-se como ruptura da realidade, transgressora da verdade, um devir. Assim, o

falso, pela sua própria natureza, e não somente do cinema, traria consigo, em potência,

este porvir de enfretamento diante do verídico, a ponto de substituir e destronar “a

forma do verdadeiro, pois ela (potência do falso) afirma a simultaneidade de presentes

incompossíveis, ou a coexistência de passados não necessariamente verdadeiros”.

(DELEUZE, 1990, p. 161). Seriam estes, o presente e o passado dos personagens de

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Matou a Família, onde o presente se mostra enquanto choque de versões (o assassino

que mata duas famílias, as amigas que vivem duas, três, quatro vidas distintas) e o

passado, como algo inverídico, às vezes também presente, às vezes também futuro?

A potência do falso só existe sob o aspecto de uma série de potências, que

estão sempre se remetendo e penetrando umas às outras. Tanto assim que os

investigadores, as testemunhas, os heróis inocentes ou culpados participarão

da mesma potência do falso, cujos graus eles encarnarão, a cada etapa da

narração. Mesmo “o homem verídico acaba compreendendo que nunca

deixou de mentir”, dizia Nietzsche. O falsário será portanto inseparável de

uma cadeia de falsários nos quais ele se metamorfoseia. (DELEUZE, 1990,

p. 164).

Metamorfose esta a mesma que faz Nietzsche em Turim entoar palavras

secretas e dançar nu, numa mão com um cacho de uvas e na outra a máscara do deus

Dionísio: potencialidades subversivas, outras no buraco para além (ou aquém) da

verdade do real e da aparência do ficcional. “Se o ideal de verdade desmorona, as

relações da aparência não mais bastarão para manter a possibilidade do julgamento.

Conforme a expressão de Nietzsche, “ao mesmo tempo que o mundo verdadeiro,

abolimos também o mundo das aparências”. (DELEUZE, 1990, p. 170).

Agora uma pergunta deixada em suspensão deve ser retomada: de que

salvação está Bressane falando Deleuze falando Nietzsche no filme de Bressane? Em

primeiro lugar se trata de uma salvação sem salvador, sem autor, sem pai: uma salvação

do filho de sua própria cópia, na construção de si enquanto simulacro. Por isso matar a

família? Por isso um pensador silenciar-se, abolir a linguagem? Temos exemplos

extremados, sem dúvida, mas a salvação também urge de ser extrema, de levar a

extremos. Com isso, aqui precisamente aparece a segunda questão do início deste

escrito: salvar-se de quem? Ora, do equilíbrio da ponte sobre os extremos, da

desconsideração dos extremos, da suturação do problema, do fechamento do vazio e do

quebrado com qualquer medida ultraviolenta de negação, de encerramento, de recalcar

o abismo entre os extremos.

Por isso, portanto, as potências do falso se insinuam como uma salvação: não

se trata mais de procurar a verdade teleológica que irá tampar o valo de uma avenida

principal, e sim deixar que o esgoto, a sujeira e a imundície se demonstrem com toda

sua força as águas escuras, densas, impenetráveis, profundas ou não – e por isso mesmo

falsas. Em suma, não se trata de encontrar uma verdade que suspenda os choques e

conflitos, mas de deixar os extremos de mostrarem em toda sua vertiginosa luta – e

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desta encontrar bons guerreiros-argumentos inverdadeiros (no sentido tradicional e,

portanto, falsos), que possam potencialmente afirmar outros caminhos, outros lugares

que não são o que está para além nem aquém, mas sim o que falta do que aí está. “Só

há devir, e o devir é a potência do falso da vida, a vontade de potência”. (DELEUZE,

1990, p. 173). Por tudo aqui expresso, repitamos Bressane, cinema enquanto salvação.

Sente Deleuze que o cinema (ele o chama pesaroso e finamente de

"martirológio") é um organismo intelectual demasiadamente sensível que faz

fronteira com todas as artes, ciências e... a vida. Nômade, transpassa-o tudo.

Corpo-máquina, conecta-se com todo o universo. Cinemancia, expõe-se e

imprime-se antecipadoramente no devir. Cinema eterno deslimite,

desbordado, destino de "des"... (BRESSANE, 1996, p. 89).

Destino de des- (verdadeiro? Autonomia entre vida e arte?), potências do falso,

tradutibilidade enquanto metamorfose, encantação, cisão desestabilizadora entre aquilo

que se diz sujeito e aquilo que se tem por objeto. Como aproximar tudo isto? Talvez

seja preciso, num último esforço deste escrito, atravessar a conflituosa relação entre o

deus Apolo e o deus Dionísio que acomete Nietzsche em Turim para vermos – e sermos

olhados de volta – numa sequência, em dívida anteriormente nesta exposição, de Matou

a família e foi ao cinema.

A sequência em questão se desenrola em duas cenas. Na primeira parte vemos

na cozinha Regina compor Márcia sobre uma mesa, apoiada sobre as pernas

entrecruzadas, de forma obediente, onde recebe metodicamente flores e folhagens sobre

si. Tudo é feito de forma suave, silenciosa, com risos tímidos, beijos e carícias

delicadas, porém Regina se mantém centrada na sua composição, contemplando suas

intervenções. Corte. Na segunda parte, ambas de fronte uma à outra, agora dentro de

uma banheira cheia, rompem a ordem anterior das ações. Márcia vai resgatando aos

poucos seus movimentos, num obsessivo tatear sobre Regina que ri exasperadamente e

tenta impedir as investidas da companheira. Mesmo que em poucos momentos Regina

procure recompor Márcia, ambas não conseguem levar a tarefa adiante, seja pela

inquietação de Márcia, seja pelas folhagens que começam a soltar-se na água,

machucando Regina e a fazendo rir mais ainda. Os movimentos que misturam uma

busca de aproximação e uma tentativa de distanciamento, sempre estancam no meio do

caminho, acabando por fazer as flores e folhagens caírem sobre o colo e braços de

Regina. De repente Regina sai da banheira e a gargalhadas traz uma galinha que joga na

água, fazendo Márcia sair rapidamente dali também. Ambas ficam fora de quadro, rindo

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de forma arrastada, gemida por vezes, enquanto vemos a galinha incomodada sobre a

água.

Isto é o que há para eu ver no filme. O que agora no meu ver me olha de volta?

Nietzsche, o mesmo de Turim, entre Apolo e Dionísio. Na primeira parte observamos

uma vontade apolínea, um princípio de individuação, onde o sujeito e o objeto possuem

lugares fortemente destacados, e só há entre eles a capacidade de se contemplarem de

forma afastada, numa ordenação que visa a perfeição, a beleza, a realização do sonho

romântico. “A bela aparência do mundo do sonho, em cuja produção cada ser humano é

um artista consumado, constitui a condição de toda arte plástica, mas também, como

veremos, de uma importante metade da poesia”. (NIETZSCHE, 2007, p. 25).

Já no segundo momento fulgura a vontade dionisíaca, a completa embriaguez,

onde não mais há espaços que se destaquem e fixam ordens, contemplações. Não há

mais sujeito ou objeto, tudo faz parte do todo primordial, uma unidade sem fronteiras

que se direciona em oposição ao princípio de individuação, afirmando-se numa vontade

coletiva radical para além (ou aquém) das aparências. A vida em movimento, seja na

dor ou no prazer, na alegria ou no sofrimento – tudo em igual potência, cria e descria

sem cessar e necessariamente. “Sob a magia do dionisíaco torna a selar-se não apenas o

laço de pessoa a pessoa, mas também a natureza alheada, inamistosa ou subjugada volta

a celebrar a festa de reconciliação com seu filho perdido, o homem. [...] O carro de

Dionísio está coberto de flores e grinaldas: sob o seu jugo avançam o tigre e a pantera”.

(NIETZSCHE, 2007, p. 28). Seriam o tigre e a pantera, Márcia e Regina? As flores,

folhagens e a galinha uma reconciliação à vida desprovida do homem (ou de homens,

maridos ausentes dos quais se queixam as amigas), princípio individuador que as relega

enquanto objeto? “O homem não é mais artista, tornou-se obra de arte: uma força

artística de toda a natureza, para a deliciosa satisfação do Uno-primordial, revela-se aqui

sob o frêmito da embriaguez”. (NIETZSCHE, 2007, p. 28).

Porém há algo ainda mais significante entre estas duas extremidades, ressalto,

o corte. Será o corte de uma cena à outra, a elipse que nos faz perder parte da progressão

da ação cênica e ao mesmo tempo nos faz ganhar uma nova progressão narrativa que,

assim sendo, irá aparecer o intervalo, a cisão, o fragmentário, aquilo pelo qual Bressane

me parece tanto aludir e que Nietzsche irá tornar possível com a metáfora da

dissonância.

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Música e mito trágico são de igual maneira expressão da aptidão dionisíaca

de um povo e inseparáveis uma do outro. Ambos procedem de um domínio

artístico situado para além do apolíneo; ambos transfiguram uma região em

cujos prazenteiros acordes se perdem encantadoramente tanto a dissonância

como a imagem terrível do mundo; ambos jogam com o espinho do

desprazer, confiando em suas artes mágicas sobremaneira poderosas; ambos

justificam com tal jogo a própria existência do "pior dos mundos". Aqui o

dionisíaco, medido com o apolíneo, se mostra como a potência artística,

eterna e originária: no centro do qual se faz necessária uma nova ilusão

transfiguradora para manter firme em vida o ânimo da individuação. Se

pudéssemos imaginar uma encarnação da dissonância -- e que outra coisa é o

homem? -- tal dissonância precisaria, a fim de poder viver, de uma ilusão

magnífica que cobrisse com um véu de beleza sua própria essência.

(NIETZSCHE, 2007, p. 141).

Dissonância que não sintetiza, mas que reúne na impossibilidade de reunião –

vida e arte?. Seria a música e o mito trágico de Nietzsche tornados compossíveis no

encanto de Bressane, na medida em que reúne magia e música da luz? Seria esta,

portanto, a grande tarefa do futuro da cinemancia – possível de ser apreendida somente

na tradutibilidade que descria e cria, desmonta e monta, num eterno retorno?

O exercício, o aprimoramento... O cinema não foi explorado ainda. Não tem

o seu desenho terminado. Vanguarda ou experimentalismo não são rótulos ou

uma fumaça a esconder o principal: significam justamente esse esforço

imenso, esse sacrifício de extrema intensidade sobre o objeto que se está

fazendo. (SGANZERLA; BRESSANE, 2007, p. 136).

Sacrifício de extrema intensidade sobre o objeto. Sacrifício de quem? Do

sujeito ao legar sua intensidade ao objeto? Ou do objeto sacrificado perante o sujeito?

Em ambos os casos, não se estaria o agora sujeito sacrificado, rastro objetificado,

tornando o objeto cinema possuidor de toda intensidade, reclamando por assim seu

direito de novo sujeito? Tais inquietações não posso eu satisfazer, nem sequer é

necessário, minhas leituras já conduziram o leitor para determinadas suposições. O que

resta agora esperar é se o corte aberto no meu ver ao me olharem os dois filmes de

Bressane, e Nietzsche, e Márcia e Regina, irá se repetir no que agora este escrito se

torna imagem que olha para o leitor que vê.

AGRADECIMENTOS:

Agradeço ao professor Jair Tadeu da Fonseca por ter ministrado a disciplina “A

contracultura na literatura e no cinema brasileiros – anos 1960 e 1970” que teve como

fruto este ensaio – e pela dedicada leitura por ele dispensada.

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REFERÊNCIAS:

BRESSANE, Julio. Alguns. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

______. Cinemancia. Rio de Janeiro: Imago, 2000.

DELEUZE, Gilles. Imagem-tempo: cinema 2. São Paulo: Brasiliense, 1990.

DIAS de Nietzsche em Turim. Direção: Julio Bressane. Intérpretes: Fernando Eiras,

Paulo José, Mariana Ximenes, Leandra Leal, Tina Novelli. Roteiro: Júlio Bressane e

Rosa Dias. [S.I.]: Grupo Novo de Cinema e TV; Europa Filmes. 2001. 1 DVD (85

min), son., color.

DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. 2. ed. São Paulo: 34,

2010.

MATOU a família e foi ao cinema. Direção: Júlio Bressane. Intérpretes: Márcia

Rodrigues, Renata Sorrah, Antero de Oliveira. Roteiro: Júlio Bressane. [S.I.]: Belair

Filmes, Júlio Bressane Produções Cinematográficas. Arquivo digital (78 min.), son.,

preto e branco.

NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. São Paulo: Companhia Das

Letras, 2007.

SGANZERLA, Rogério; BRESSANE, Julio. Cinema com arte. In: CAMUTO, Roberta.

Rogério Sganzerla - Encontros. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2007. p. 132-159.

BRESSANE, WHAT I SEE, TWO MOVIES LOOKING AT ME: The dissonance

in the cinema of Julio Bressane.

Abstract: Of the many disruptions attributed to experimental cinema, and specifically

the cinema of Julio Bressane, few are devoted to a problem of image as a dissonance

between what we see and what look us back. Therefore I propose, in the analysis of the

films Matou a Família e Foi ao Cinema and Dias de Nietzsche em Turim a brief

archeology of the image.

Keywords: Image, Cinema, Julio Bressane