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1 Universidade Federal de Minas Gerais Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas CASA DE FAMÍLIA – PROFISSÃO E IDENTIDADE: Um estudo da relação entre trabalho e identidade no caso do empregado doméstico Liliane da Conceição Rosa da Silva Belo Horizonte Julho de 2010

CASA DE FAMÍLIA – PROFISSÃO E IDENTIDADE: Um estudo da relação entre trabalho e identidade no caso do empregado doméstico

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Universidade Federal de Minas Gerais Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas

CASA DE FAMÍLIA – PROFISSÃO E IDENTIDADE: Um estudo da relação entre trabalho e identidade no caso do empregado doméstico

Liliane da Conceição Rosa da Silva

Belo Horizonte Julho de 2010

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Liliane da Conceição Rosa da Silva

CASA DE FAMÍLIA – PROFISSÃO E IDENTIDADE:

Um estudo da relação entre trabalho e identidade no caso do empregado doméstico

Monografia apresentada ao Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito para obtenção título de Bacharel em Ciências Sociais.

Orientadora: Marlise Matos

Universidade Federal de Minas Gerais Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas

Belo Horizonte Julho de 2010

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À mamãe

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AGRADECIMENTOS:

Primeiramente a Deus, pela oportunidade vital de, com esperança, iniciar e concluir caminhos. A meus pais, Geralda e Oscar, por todo esforço e esperança empenhados na minha criação. À minha irmã, Cristiane, pela presença compartilhada há 23 anos. Ao Pedro, pela dedicação e paciência. Aos colegas e amigos, Evandro Lemos, Paula Reis, Denísia Martins, David Francisco, Claudinéia Coura, Bruno Cabral, Wallison Antunes, sujeitos que com atos ou palavras contribuíram para elaboração deste trabalho. Aos amigos Aline Braga e Tiago Carneiro, com quem dividi difíceis, mas, principalmente, bons momentos nos estágios realizados respectivamente no Observatório da Juventude da UFMG e no Programa Conexões de Saberes da UFMG. À Raquel, pela colaboração nos caminhos psíquicos. Aos professores Cláudio Emanuel dos Santos e Luiz Arnault, pelas belíssimas e significativas possibilidades de aprendizagem que me possibilitaram. A todas as mulheres que, nas entrevistas realizadas, dividiram comigo parte de suas memórias, anseios e esperanças. À professora Marlise Matos, fundamental no processo de construção desta monografia.

Meus sinceros agradecimentos: Liliane Rosa.

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SUMÁRIO:

INTRODUÇÃO ____________________________________________________________ 6

CAPÍTULO 1 - O EMPREGO DOMÉSTICO NA ESFERA DO TRABALHO FEMININO ______________________________________________________________ 10

1.1 MULHER E TRABALHO: BREVES CONSIDERAÇÕES: ___________________________________________ 10 1.2 DADOS SOBRE O EMPREGO DOMÉSTICO NO CENÁRIO SOCIAL BRASILEIRO: _________________________ 18 1.3 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS A CERCA DO EMPREGO DOMÉSTICO: _________________________________ 23

CAPÍTULO 2 - IDENTIDADE E SUAS INTERSEÇÕES _______________________ 29 2.1 CONCEITUAÇÕES A CERCA DA IDENTIDADE: ________________________________________________ 29 2.2 IDENTIDADE E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS: ________________________________________________ 35 2.3 IDENTIDADE E GÊNERO: _______________________________________________________________ 37 2.4 IDENTIDADE E RAÇA: _________________________________________________________________ 41 2.6 INTERSEÇÕES TEMÁTICAS: _____________________________________________________________ 49

CAPÍTULO 3 – PERCEPÇÕES SOBRE O EMPREGO DOMÉSTICO: A FALA DE CINCO MULHERES ______________________________________________________ 52

3.1 DESCRIÇÕES RELATIVAS AO CAMPO DE PESQUISA: ___________________________________________ 52 3.2. O PERFIL DAS ENTREVISTADAS: ________________________________________________________ 53 3.3. CONCEPÇÕES DECLARADAS: ___________________________________________________________ 60

3.3.1 Satisfação com o próprio trabalho: _________________________________________________ 60 3.3.2 A questão do salário e do consumo: _________________________________________________ 63 3.3.3. O campo dos direitos: ___________________________________________________________ 66 3.3.4 Cenas de discriminação e desrespeito: _______________________________________________ 67 3.3.5. Positividades: __________________________________________________________________ 72

3.4. BREVE CONSIDERAÇÃO: ______________________________________________________________ 73

CONSIDERAÇÕES FINAIS: _______________________________________________ 74

BIBLIOGRAFIA: _________________________________________________________ 77

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INTRODUÇÃO

Ambiente socialmente construído como espaço privado, a “casa de família” representa

para muitas mulheres o lócus de realização de um trabalho remunerado revestido de diversas

significações simbólicas, no que tange a estrutura social brasileira.

Como afirma Jacques (s/d), em virtude da importância moral conferida pela sociedade

ocidental ao universo do trabalho, os modos de pertença a este representam instancias

privilegiadas para construção de aspectos identitários. Neste sentido, como pensar a

influencia que um exercício laboral marcado por fortes estigmas sociais pode exercer sobre

quem o realiza?

De acordo com Nobre (2004), o emprego doméstico constitui uma das categorias

profissionais mais freqüentes em meio às trabalhadoras brasileiras e, envolto em um

emaranhado de relações socio-históricas, encontra-se assinalado por representações sociais

que o caracterizam como isento de qualificação. Marcado simbolicamente por uma herança

escravista, orientado por uma legislação trabalhista específica que não confere, a quem o

realiza, todos os direitos aplicados aos trabalhadores de outras ocupações e, finalmente,

realizado por mulheres pobres, o emprego doméstico reveste-se de uma gama de estigmas

sociais de classe e raça que potencialmente se estende às mulheres que se dedicam a esta

função.

Justifica o interesse por essa temática o fato de inúmeros estudos apontarem que as

estruturas e relações sociais que permeiam o trabalho doméstico e o localizam enquanto

atividade socialmente desvalorizada constituírem fatores importantes no que tange

organização vital de empregadas domésticas. Nesse sentido, podem ser encontrados trabalhos

como de Santos-Stubbe (1995) que relaciona a desvalorização social do serviço doméstico

com os altos índices de suicídio e pensamentos suicidas observados entre empregadas

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domésticas.

A partir do exposto acima, duas intenções norteiam a construção desta monografia:

compreender, primeiro, como o emprego doméstico é significado socialmente por pessoas a

ele vinculadas e, segundo, quais os contornos que esta vinculação indica em termos

identitários, no que tange a relação dinâmica entre identidade e relações de trabalho.

A ida para o campo de pesquisa se baseou em duas hipóteses, sendo elas: a) o universo

das relações de trabalho constitui uma matriz de sentidos para a construção de aspectos

identitários e b) os aspectos identitários apontados por empregadas domésticas enfatizam,

principalmente, representações negativas desta profissão.

A fim de realizar a discussão proposta, este trabalho foi dividido em três capítulos. Os

dois primeiros versam, respectivamente, sobre as temáticas: emprego doméstico e identidade.

Já o terceiro capítulo constitui um exercício empírico que visa compreender como as duas

temáticas estudadas teoricamente se apresentariam a partir do contexto das falas de cinco

empregadas domésticas entrevistadas, levando-se em consideração as conexões entre

identidade e relações de trabalho.

O primeiro capítulo, intitulado “O Emprego Doméstico na Esfera do Trabalho

Feminino”, discorre sobre as características da inserção das mulheres no mercado de trabalho.

Neste sentido, faz-se uma discussão inicial sobre as categorias “trabalho produtivo” e

“reprodutivo”, tendo em vista os modos como estas se encontram envoltas nas marcações de

gênero que, por sua vez, envolvem a localização social das mulheres na moderna sociedade

ocidental. Um segundo ponto abordado neste capítulo diz respeito à descrição dos

condicionadores que colaboraram para uma entrada maciça de mulheres no mercado de

trabalho, a partir da segunda metade do século XX, tais como: a expansão da economia

brasileira, o aumento significativo do nível de escolaridade das mulheres e o advento dos

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mecanismos contraceptivos que influenciaram decisivamente para quedas na taxa de

fecundidade. Feita esta apresentação geral sobre a entrada das mulheres mercado de trabalho,

parte-se para uma terceira discussão focada principalmente na bipolarização das mulheres

neste espaço, ou seja, nas divisões e marcações político-sociais de classe e raça que dão

suporte ao ingresso de algumas mulheres em empregos socialmente valorizados e outras

tantas em empregos pouco valorizados, como o serviço doméstico remunerado. Por fim, tem-

se a apresentação de uma discussão sobre os dados sociodemográficos e também sobre as

representações sociais que tradicionalmente circundam o emprego doméstico no Brasil.

Constituíram referencias principais para a elaboração deste capitulo as autoras: Helena Hirata

(2003), Danielle Kergoat (2003), Mirian Nobre (2004), Hildete Pereira de Melo (2005),

Cristina Bruschini (2000) e (2007), Maria Betânia Ávila (2007) e (2009), Simone Wajnman

(1998) e Suely Koffes (2001).

Sob o título de “Identidade e Suas Interseções”, o segundo capítulo da monografia,

aborda algumas interconexões relativas ao conceito de identidade. A princípio, a partir de

autores como Stuart Hall (2000) e (2007), Kathryn Woodward (2000), Ivo Follmann (2001) e

Antonio Ciampa (1993), discute-se sobre os diversos processos envoltos nos processos, nem

sempre lineares, de construção social da identidade. Em seguida, referenciando-se no trabalho

de Roseane Xavier (2002), buscam-se as pontes possíveis entre os conceitos de identidade e

de representações sociais. A terceira discussão proposta tem como mote as relações entre

processos identitários e gênero e, neste caso, utilizou-se como parâmetro as autoras Joan Scott

(1990), Guacira Lopes Louro (2003) e Marlise Matos (2000). Findada a discussão relativa às

relações de gênero e a partir de autores como Clovis Moura (1988), Gevanilda Santos (2009)

e Franklin Ferreira (2004), iniciamos uma apresentação dedicada às relações entre identidade

e raça no contexto brasileiro. Por fim, discorremos sobre como a perspectiva de interconexões

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vinculadas ao conceito de identidade podem colaborar, efetivamente, para a compreensão de

como as empregadas domésticas entrevistadas nesta monografia elaboram, constroem,

performam seus aspectos identitários especialmente no que tange às dinâmicas do universo

das relações de trabalho. Tem-se ai uma ultima discussão a respeito das potencialidades do

conceito de interseccionalidade conforme este é apresentado por Kimberlé Crenshaw (2002) e

Marlise Matos (2010).

O terceiro e último capítulo desta monografia versa sobre os aspectos empíricos

encontrados a partir das entrevistas realizadas com cinco empregadas domésticas da região

metropolitana de Belo Horizonte. A partir de um roteiro de entrevista semi-estruturada,

buscou-se coletar informações e percepções das entrevistadas, de modo a compreender como

as mesmas elaboram, constroem e performam seus aspectos identitários envoltos pela

participação no mundo do trabalho. Após a apresentação de um perfil no qual são

identificados aqueles elementos demográficos mais centrais tais como: idade, naturalidade,

profissão dos pais e anos de escolarização das entrevistadas, parte-se para a analise de pontos

recorrentes em suas falas, que terminaram por nos indicar como as mesmas se percebem no

que tange aos diversos marcadores sociais aqui delineados. Neste sentido, fazemos inferências

a respeito de suas interpretações sobre o destino do salário que recebem como empregadas

domésticas e, também, sobre como compreendem as distinções que existem no campo dos

direitos especialmente aqueles vinculados ao serviço doméstico remunerado. Também é

enunciada uma serie de discriminações que foram experimentadas por estas mulheres e que,

conforme poderá ser observado, vêem corroborar para a reatualização daquelas imagens

socialmente cristalizadas e estigmatizadas sobre o emprego doméstico. Por fim, são

evidenciadas algumas conquistas que as mulheres entrevistadas atribuem à sua respectiva

inserção no serviço doméstico remunerado.

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CAPÍTULO 1

O Emprego Doméstico na Esfera do Trabalho feminino

1.1 Mulher e Trabalho: breves considerações:

Nos estudos de gênero, muita importância é dada ao campo do trabalho, pois nele

tornam-se explicitadas algumas das principais desigualdades que emergem da relação entre

homens e mulheres. A partir dos estudos sobre a chamada “divisão sexual do trabalho”

(HIRATA & KERGOAT, 2003) pode-se refletir sobre como a sociedade organiza uma

distribuição do que seria o domínio masculino e do que seria o domínio feminino. No

paradigma capitalista de produção de riqueza e lucro, historicamente coube aos homens o

dever de prover o sustento da família e às mulheres a incumbência de cuidar da manutenção

das condições de reprodução social, a partir do zelo com a casa, esposo, filhos etc. Contudo,

se os homens recebiam por sua força de trabalho dispensada, condição com a qual

conseguiam manter-se e àqueles que dele eram dependentes economicamente, ao esforço

investido pelas mulheres nas atividades da reprodução social não havia consideração

econômica, já que tal esforço era compreendido como uma condição própria da existência

feminina. Dois princípios são perceptíveis nesta forma de divisão do trabalho: (a) um

separador, que indica a existência de trabalhos masculinos e trabalhos femininos; (b) outro

hierarquizante, segundo o qual o trabalho masculino tem maior valia do que o trabalho

feminino. Segundo Friedrich Engles, em clássico estudo sobre a origem da família, da

propriedade privado e do Estado:

A primeira divisão do trabalho é a que se fez entre o homem e a mulher para a procriação dos filhos [...] O primeiro antagonismo de classes que apareceu na história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre homem e mulher na monogamia; e a primeira opressão de classes, com a opressão do sexo feminino pelo masculino.

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Kergoat (2003), ao relacionar a divisão sexual do trabalho com o início do movimento

feminista, afirma:

não foi tratando a questão do aborto, como usualmente se diz, que o movimento feminista começou. Foi a partir da tomada de consciência de uma opressão específica: tornou-se coletivamente “evidente” que uma enorme massa de trabalho era realizada gratuitamente pelas mulheres; que esse trabalho era invisível; que era feito não para si, mas para os outros e sempre em nome da natureza, do amor e do dever maternal. (KERGOAT, 2003, p.52).

Ainda hoje, primeira década do século XXI, as mulheres são as principais

responsáveis pelos cuidados da reprodução, entretanto, atualmente, dividem esta

responsabilidade com a entrada, cada vez em maior contingente, no mercado de trabalho, no

caso aqui analisado, o brasileiro.

Ao procurar o mercado, as mulheres enfrentam inúmeros mecanismos discriminadores. [...] Contudo, apesar das dificuldades encontradas, elas ingressam na atividade produtiva e nela permanecem cada vez mais. (BRUSCHINI & LOMBARDI, s/d, p. 485).

Como aponta Bruschini (2007) transformações em curso no decorrer da segunda

metade do século XX, tais como: a expansão da economia, queda na taxa de fecundidade,

redução no tamanho das famílias, o crescimento dos arranjos de família chefiados por

mulheres, são algumas das explicações para esse fenômeno. Wajnman (1998) indica, ainda,

outros fatores vigentes no mesmo período, bem como: o ritmo acelerado da industrialização, a

crescente industrialização de bens e serviços do lar, a procura da mulher em complementar a

renda da família e as transformações no padrão de comportamento e na atribuição de valores

sociais das mulheres1. Neste sentido, as trabalhadoras, que até o final dos anos 1970 eram, em

sua maioria, jovens solteiras e sem filhos passaram a ser, também, mulheres mais velhas,

casadas e mães. 1 WAJNMAN; Simone; QUEIROZ, Bernardo Lanza; LIBERATO, Vânia Cristina. O crescimento da atividade

feminina no Brasil. XI Encontro Nacional de Estudos Populacionais da ABEP, 1998, p. 2430.

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Com bases em analises da PNAD de 1993 a 2005, Bruschini (2007) revela que, no

período, a População Economicamente Ativa feminina (PEA feminina) passou de 28 milhões

para 41,7 milhões e que, no conjunto dos trabalhadores, as mulheres passaram de 39,6% para

43,5% do total. Segundo a autora, tendo em vista a década de 1990 e os primeiros anos da

década de 2000, permaneceram em vigor os tradicionais padrões de inserção feminina

segundo setores ou grupos de atividade econômica. Assim, como apontado na tabela abaixo,

em 2005 o setor de serviços ocupava cerca de 40% das mulheres participantes do mercado de

trabalho, estando essas alocadas em três subáreas: (a) educação, saúde e serviços sociais; (b)

serviços domésticos e (c) outros serviços coletivos, pessoais e sociais. Em ordem de

importância, em termos quantitativos, os demais setores aos quais as mulheres estariam

vinculadas no mercado de trabalho seriam: a agropecuária, o setor social, o comércio de

mercadorias e a indústria. Outro fator apontado Bruschini (2007) é a convivência, nas décadas

de 1990 e 2000, entre um constante aumento da participação feminina no mercado de trabalho

e uma elevada taxa de desemprego das mulheres.

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Por um lado, tendo em vista o acesso feminino à educação, cada vez mais mulheres

adentram em postos de trabalhos pelas portas do ensino superior. Aqui temos um crescimento

na proporção de advogadas, médicas, engenheiras, arquitetas e a continuidade de uma grande

participação feminina em carreiras como enfermagem, psicologia e licenciaturas,

principalmente de ensinos básicos, fundamentais e médios. Por outro lado, tendo em vista os

movimentos de reestruturação produtiva marcantes em tempos de globalização, grande parte

das mulheres tem tido acesso a um mercado de trabalho marcado pela informalidade e pela

precariedade. Como afirma Hirata (2003) tem-se ai um quadro configurado pela existência de

uma grande parcela de trabalhadoras denominadas “não qualificadas”, em que pese uma

minoria crescente de mulheres pertencentes às categorias de intelectuais superiores.

Bruschini e Lombardi (2000), ao falarem sobre a bipolarização do trabalho feminino,

apontam o crescimento da participação das mulheres em carreiras de maior prestígio, como

parte da herança cultural resultante dos movimentos sociais e políticos desencadeados a partir

das décadas de 1960 e 1970, entre eles o feminismo. Estes convergiram para uma mudança de

valores culturais e para a entrada, cada vez maior, de mulheres no ensino superior, entrada

esta auxiliada pela concomitante expansão das universidades publicas e privadas. Sobre esse

aspecto, Bruschini (2007) indica que em 2005, 62% dos formandos do ensino superior eram

mulheres e, ainda, que a taxa de atividade de mulheres instruídas era maior do que a de

mulheres com pouca ou sem escolaridade, pois, se nesse ano 53% das mulheres eram ativas,

entre as que possuíam 15 anos ou mais de escolaridade, a taxa de atividade atingia 83%. A

titulo de ilustração, Bruschini e Lombardi (2000), levando em consideração o período entre

1993 e 2004, indicam que a participação feminina no universo de profissionais da arquitetura

variou de 52% para 54%, por exemplo; assim como a participação de feminina em meio aos

médicos pulou de 36% para 41,3% e a participação de mulheres no que tange às engenharias,

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tradicional reduto masculino, variou de 12,00% para 14,00%.

Contudo, a despeito da maior escolaridade, relações discriminatórias com base no

gênero continuam a perdurar no campo do trabalho e revelam-se, principalmente, pelos

menores salários que as mulheres continuam a receber frente aos homens que possuem a

mesma escolaridade e ocupam cargos semelhantes aos seus. Sobre isso Nobre (2004) afirma

que o valor do trabalho não é intrínseco a ele, mas relacionado ao valor, ao reconhecimento

social de quem o faz.2 Os processos discriminatórios revelam-se, também, no dia a dia de

exercício do trabalho, como aponta Helena Hirata ao falar sobre o emprego de jovens

engenheiras, em um ramo da engenharia química da filial brasileira de uma empresa francesa:

essa nova realidade é contraditória. A negação da identidade sexual é continuamente exigida pelo trabalho: “é preciso ter uma aparência bem profissional, como se fosse um homem no trabalho” (idem). Elas são vítimas de ridicularizações, devem usar roupas que não marquem as linhas do corpo e, em um texto redigido para um encontro do grupo industrial, queixam-se de não haver um banheiro exclusivo para as mulheres no local de trabalho, onde são minoritárias. (HIRATA, 2003, p. 22).

Ao passo que mais mulheres têm conseguido entrar no mercado de trabalho em

profissões que necessitam do ensino superior ou técnico e, como afirma Bruschini e Lombardi

(2000) apresentam maior nível de formalidade, pois são regidas principalmente pelas normas

da CLT ou pelos estatutos do emprego publico; outras tantas, a maioria, adentram o mercado

de trabalho pela via da informalidade, marca principal do processo de reestruturação

produtiva que tem afetado as economias globalizadas dos países do Sul3, que buscam cada

vez mais a diminuição dos custos de produção.

2 NOBRE, Mirian. Trabalho Doméstico e Emprego Doméstico. In: COSTA, Ana Alice; OLIVEIRA, Eleonora Menicucci, BEZERRA, Maria Ednalva (orgs). Reconfiguração das relações de gênero no trabalho. São Paulo: CUT Brasil, 2004, p. 63. 3 Nos países do Norte a principal marca do processo de reestruturação produtiva é o trabalho em tempo parcial e

não a informalidade.

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A informalidade e a falta de proteção social que dela advém, a falta de segurança e

estabilidade quanto à manutenção no emprego são marcas das ocupações que mais tem

admitido mulheres. Segundo Wajnman (1998), a partir dos anos 90, com as transformações

econômicas que redundaram em taxas elevadas de desemprego e a deteriorização dos postos

de trabalho, o sexo feminino encontra-se sobre-representado no trabalho precário, nas

ocupações quase ou não regulamentadas e altamente flexíveis e também consideradas não

qualificadas. Outra autora a ressaltar o quadro de precarização pelo qual passa parcela do

trabalho feminino, tendo em vista os movimentos de reestruturação do trabalho, Hirata (2004)

aponta que inovações tecnológicas e novas formas de gerenciamento da mão de obra e do

processo produtivo conduziram a flexibilizações no campo do trabalho. Estas, por sua vez,

foram marcadas no Brasil pelo aumento das sub-contratações, que indicam trabalhos: mal

remunerados, não valorizados socialmente e com possibilidades quase nulas de promoção e

de existirem bons planos de carreira. Segundo a autora, no que tange à relação com os

homens, houve um crescimento maior do numero de postos de trabalho ocupados por

mulheres, contudo, ainda que mulheres e homens sejam afetados pelo aumento da

informalidade dos postos oferecidos, essa tendência tende a afetar significativamente mais às

mulheres do que aos homens.

O que liga mulheres que ocupam lados opostos nesse processo de polarização das

ocupações femininas? O serviço doméstico em sua vertente remunerada é uma das respostas.

Visto que a responsabilidade do cuidado reprodutivo ainda é considerada majoritariamente

feminina pela nossa sociedade, quanto mais as mulheres ascendem em suas carreiras, maior a

tendência delas e de seus companheiros a contratarem alguém, uma empregada doméstica,

que realize as atividades de cuidar de suas casas, seus filhos e ou dos idosos que deles

dependam. Economicamente, pode-se afirmar que esta é, para tais mulheres, uma das formas

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de se controlar o dispêndio de energia que seria necessário para a manutenção de uma dupla

jornada completa, ou seja, se responsabilizar completamente por todos os aspectos que

envolvem a realização de seu trabalho produtivo e reprodutivo. A partir de dados da PNAD

2001, Dedecca (2004) indica que as mulheres inseridas no mercado de trabalho e que

realizam afazeres domésticos tendem a auferir uma remuneração menor que aquelas que não

realizam afazeres domésticos4. Nobre (2004) aponta que as mulheres não constituem uma

força de trabalho livre, pois continuam tendo sua trajetória no mercado limitada pelas

responsabilidades que lhe são atribuídas pela reprodução. Nesse sentido, como afirma Helena

Hirata:

“As desigualdades [...] não foram significativamente reduzidas com o crescimento do emprego assalariado das mulheres e a divisão do trabalho doméstico não mudou de fato, apesar das responsabilidades crescentes assumidas, pelos menos por algumas dessas mulheres, no campo do trabalho profissional […] a atribuição do mesmo às mulheres continuou inata.” (HIRATA, 2003, p. 13)

Em um contexto de bipolarização feminina no mercado de trabalho, o aumento do

numero de empregadas domésticas, como aponta Nobre (2004):

[...] acomoda a realidade de um numero crescente de mulheres profissionais com carreira sem o correspondente crescimento dos serviços públicos ou a redução da jornada de trabalho para que todas e todos considerem o tempo do cuidado de si próprios e das/dos dependentes. (NOBRE, 2004, p.66)

Neste sentido, pode-se perceber a estruturação de uma relação em que marcadores de

gênero se encontram atrelados a marcadores do mercado de trabalho, de modo a sustentar

relações sociais desiguais com base na estratificação social.

4 DEDECCA, Cláudio Salvadori. Tempo, trabalho e gênero. In: COSTA, Ana Alice; OLIVEIRA, Eleonora Menicucci, BEZERRA, Maria Ednalva (orgs). Reconfiguração das relações de gênero no trabalho. São Paulo: CUT Brasil, 2004, p. 47.

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1.2 Dados sobre o emprego doméstico no cenário social brasileiro:

Como aponta Melo (1998) as atividades que compreendem o emprego doméstico não

são organizadas de forma capitalista porque se dão no interior de residências particulares e as

patroas e patrões não se constituem em empresários. Verbal ou escrito, o contrato de trabalho

firmado entre as partes informa que os empregados domésticos realizem tarefas cujo produto

será consumido diretamente pela família, não havendo mobilização de capital e sim de rendas

pessoais.

Serviço remunerado de natureza não lucrativa realizado na casa de outrem, o emprego

doméstico constituí-se em um gueto de atividade tipicamente feminino, visto que

historicamente, como apontam os estudos de Melo (1998), Bruschini e Lombardi (2000) e

Nobre (2004), mais de 90% dos trabalhadores neste setor sempre foram mulheres.

De acordo com Melo (2005) as empregadas domésticas são, em sua maioria, mulheres

das camadas mais empobrecidas da população, com pouca escolaridade e/ou qualificação

profissional – destas que se obtém em processos formais de educação – e que, na comparação

com as demais mulheres inseridas no mercado de trabalho, recebem os menores salários.

Importa dizer, também, do caráter racial que permeia o emprego doméstico no Brasil.

Nesse sentido, com base na PNAD, o Relatório Anual das Desigualdades Raciais aponta que,

em 2006, 21,8% das pretas & pardas (negras) brasileiras trabalhavam como empregadas

domésticas. Este relatório aponta, ainda, que a possibilidade de se encontrar uma mulher

branca no emprego doméstico era 8,9 pontos percentuais inferior a possibilidade de se

encontrar uma negra.

No plano jurídico, excluído das diretrizes da Consolidação das Leis do Trabalho

(CLT), promulgada em maio de 1943, o primeiro conjunto de leis a regular o emprego

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doméstico data de 1972, tendo sido aprovadas outras leis extensivas a essa categoria

profissional nos anos 1988, 2001, 2005 e 2006. O estudo “Direito das Trabalhadoras

Domésticas”, publicado pela CFMEA, em 2007, indica os direitos trabalhistas extensivos e os

não extensivos ao emprego doméstico. No conjunto dos direitos garantidos a essa categoria

profissional, encontram-se os seguintes itens:

a) Registro na Carteira de Trabalho;

b) Salário Mínimo;

c) Irredutibilidade do Salário;

d) 13% Salário profissional

e) Repouso semanal remunerado;

f) Férias de 30 dias, com pelo menos 1/3 a mais do que o salário normal;

g) Licença maternidade/paternidade

h) Aviso prévio;

i) Vale transporte, que pode ser deduzido em até 6% no salário da trabalhadora

doméstica.

j) Seguro desemprego, por um período máximo de seis meses. Vale ressaltar que

para a efetivação desse direito o empregador deve contribuir para o FGTS.

k) FGTS, cuja contribuição por parte do empregador é opcional na atual legislação;

l) Aposentadoria e outros benefícios previdenciários,

m) Estabilidade da gestante desde a confirmação da gravidez até 5 meses após o parto;

n) Proibição de descontar do salário o fornecimento de alimentação, vestuário,

higiene ou moradia.

o) Repouso semanal remunerado e o pagamento de salário nos dias de feriados civis e

religiosos.

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Por sua vez, na gama de direitos trabalhistas que continuam não extensivos aos

empregados domésticos, englobam-se:

a) O recebimento de horas extras;

b) Adicional por trabalho noturno;

c) Salário-Família;

d) Salário-Educação;

e) Auxílio-Creche

f) Acordos e Convenções coletivas

g) Seguro contra acidente de trabalho;

h) Piso salarial profissional

i) Adicional de periculosidade ou insalubridade

j) Jornada de trabalho limitada em 44 horas.

k) Multa por atraso no pagamento de verbas rescisórias;

l) Indenização de 40% sobre os depósitos do FGTS, acrescidos de juros e correção

monetária.

Entretanto, a despeito das regulamentações jurídicas, grande parte das empregadas

domésticas exerce suas atividades sem a existência de vínculos formais de contratação.

Como indica Bruschini (2007), em 2005, o emprego doméstico constituía a ocupação de mais

de 17% das mulheres ativas no Brasil e, deste contingente de trabalhadoras, apenas 25%

possuíam carteira assinada.

Dados recentes da Pesquisa Emprego Desemprego5 (PED) para as Regiões

Metropolitanas de Belo Horizonte, Distrito Federal, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Salvador

e São Paulo, apontam que, em 2009, tendo em vista o conjunto das regiões, a maioria das

5 PED: A mulher nos mercados de trabalho metropolitanos: março 2010.

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trabalhadoras domésticas eram mulheres negras, adultas, entre 25 e 59 anos, e com baixo

nível de escolaridade. No que tange a divisão entre empregadas mensalistas residentes,

mensalistas não residentes e diaristas, a pesquisa apontou que a maioria das trabalhadoras

domésticas encontra-se sobre a forma de mensalistas, residentes e não residentes. Quanto à

construção de vínculos formais de trabalho, os dados indicam que as mensalistas com carteira

assinada estão em maiores proporções nas regiões de Belo Horizonte, Distrito Federal, Porto

Alegre e São Paulo, ao passo em que, nas regiões metropolitanas do nordeste é superior o

percentual de mensalistas sem carteira assinada. Importa ressaltar que, em todas as regiões,

quando se leva em consideração a totalidade de mulheres envolvidas no emprego doméstico,

mensalistas e diaristas, ainda encontra-se em maior quantidade o vinculo empregatício sem

carteira assinada. Tendo em vista a jornada de trabalho, a pesquisa aponta a freqüência de

longas jornadas, com variações entre 54 horas em Recife e 41 horas em Porto Alegre e São

Paulo. Estes números diferem quando analisados em referência a posição na ocupação, assim,

as empregadas diaristas possuem jornadas semanais menos longas, entre 20 horas em

Salvador e 24 horas em Belo Horizonte, ainda que suas jornadas diárias sejam maiores, o que

reflete uma menor quantidade de dias trabalhados durante a semana. Quanto aos rendimentos

das empregadas domésticas, verificou-se tratar do menor entre todos os setores de atividade

econômica, com valores que correspondem à metade do que, em média, é pago no setor de

serviços.

22

Gráficos Relativos à PED 2009

De acordo com os gráficos e no que tange a comparação entre mulheres negras e

brancas, a exceção de Salvador, que não possui elementos para comparação, em todas as

regiões metropolitanas pesquisadas e no DF o emprego doméstico ocupa parcelas maiores do

total de mão de obra das mulheres negras.

23

Ainda na perspectiva de comparação entre brancas e negras, a exceção de Salvador,

que não possui elementos para comparação, e do DF, no qual que as porcentagens são

significativamente similares, quando se analisa o percentual de empregadas que não

concluíram o ensino fundamental, as negras se encontram em maior proporção.

1.3 Representações sociais a cerca do emprego doméstico:

Não podemos pensar o emprego doméstico como algo particular, mas devemos no quadro das relações sociais e da formação sócio-histórica do Brasil, a partir da divisão sexual do trabalho e a articulação entre as estruturas de classe, raça e gênero6.

As peculiaridades do trabalho doméstico remunerado envolvem um complexo de

6 AVILA, Maria Betânia. Algumas questões teóricas e políticas sobre o emprego doméstico. In: ÁVILA,

Maria Betânia de Melo et al (orgs). Reflexões feministas sobre informalidade e trabalho doméstico. Recife: Núcleo de Reflexão Feminista sobre o Mundo do Trabalho Produtivo e Reprodutivo, 2008, p.66.

24

relações sociais e históricas; trata-se de uma atividade: realizada majoritariamente por

mulheres das classes economicamente menos favorecidas; considerada isenta de qualificação;

herdeira de uma tradição escravista e, por fim, regida por uma legislação trabalhista especifica

que não garante, a quem a realiza, todos os direitos conferidos aos trabalhadores de outras

ocupações. Como visto, são muitos os fatores que contribuem para localização social desta

profissão, que é, geralmente, estigmatizada.

Segundo Nobre (2004) em contraposição ao trabalho produtivo, realizado com fins de

geração de riqueza e historicamente desempenhado por homens, nos espaços públicos; o

trabalho reprodutivo – interno ao lar e compreendido por atividades como: limpar a casa,

lavar e passar as roupas, cozinhar, cuidar das crianças e dos idosos – é marcado por se

constituir uma atribuição das mulheres. A autora afirma que em decorrência do processo de

retificação dessa divisão, o trabalho doméstico passou a ser interpretado como uma

responsabilidade natural das mulheres, o que explica o fato de sua realização, enquanto

profissão, ser caracterizada como uma atividade desprovida de qualificação. De acordo com

Soratto (2006) essa naturalização da qualificação para o desempenho dos serviços

domésticos permite que se ignore o esforço de aprendizagem e adaptação que é necessário

para o exercício dos serviços domésticos remunerados7.

Contudo, ainda que herdeiro de uma relação histórica entre homens e mulheres,

importa ressaltar a vigência, no âmbito do emprego doméstico, de uma explicita relação de

classe entre mulheres, na qual as empregadas domésticas representam mulheres em posições

hierarquicamente menos favorecidas, no que tange ao poderio econômico e valoração

simbólica, frente a mulheres de estratos superiores. Segundo Koffes (2001), na estruturação

7 SORATTO, Lúcia Helena. Quando o Trabalho é na Casa do Outro: um estudo sobre empregadas domésticas. Tese de Doutorado. Universidade de Brasília: 2006, p. 52.

25

do emprego doméstico, a casa representa um ponto de encontro de sujeitos que representam

classes sociais diferentes. Nesse sentido, Soratto (2006) afirma que:

Dada a desvalorização dos serviços domésticos, ter empregada doméstica significa [...] livrar-se de tarefas consideradas extenuantes e monótonas, que impedem outras realizações. Desse modo, quando as condições financeiras permitem, os serviços domésticos são transferidos, na maior parte das vezes, para mulheres de estratos sociais inferiores, para quem as oportunidades de trabalho são mais restritas. (SORATTO, 2006, p. 46)

Ainda sobre a relação entre mulheres no âmbito do desenvolvimento do emprego

doméstico, Ávila (2007), a partir de uma analise marxista, informa que:

As mulheres de classe burguesa, além de constituírem como esposas dos homens de negócios, os donos dos meios de produção, sempre contaram com serviços de outras mulheres para o cuidado da casa e dos filhos. Sua responsabilidade sempre foi de ordem moral, cerimonial e administrativa. Coube sempre as mulheres burguesas apresentar o luxo e os rituais do espaço privado da família, para mostrar o requinte e a tradição de classe que legitimam o poder no próprio campo das relações entre burgueses. (ÁVILA, 2007, p. 02).

Melo (1998) também aponta algumas considerações sobre a hierarquização entre

mulheres, no que tange o conjunto de significantes simbólicos envoltos nas representações

sociais a cerca do emprego doméstico. Segundo a autora, a utilização de empregadas

domésticas confere uma certa posição à mulher dona de casa, independente da renda

familiar8.

Outra perspectiva de compreensão das peculiaridades que envolvem o trabalho

doméstico remunerado diz respeito à relação entre as características próprias desta profissão e

as marcas da herança escravista no Brasil. Segundo Koffes (2001), assim como outras

atividades que, no passado, constituíam atribuição dos escravos e hoje se configuram como

8 MELO, Maria Hildete Pereira. O serviço doméstico remunerado no Brasil: de criadas a trabalhadoras. Rio de

Janeiro: IPEA, 1998. p. 02.

26

atividades passíveis de remuneração, o trabalho doméstico remunerado é marcado

socialmente por estigmas relacionados a uma herança escravista, manifesta na desvalorização

conferida aos trabalhos manuais, considerados aviltantes, e na imagem de servidão que

acompanha as empregadas no realizar de suas tarefas.

[...] a presença da escravidão, de uma maneira geral, conotou o trabalho manual com um significado aviltante [...] No Brasil de hoje é ainda usual expressões que indicam esta representação, por exemplo, “serviço de negro”, tem dupla conotação, de serviço mal-feito e de serviço desqualificado. Outras associações também são freqüentes entre cozinheira e negra, empregada doméstica e negra; e “ser da cozinha” com negritude e escravidão. No que concerne ao trabalho em geral, se as atividades manuais são sobrecarregadas de um significado aviltante, o próprio fazer doméstico receberá um significado homologo. A escravidão doméstica não impõe sua marca apenas no fazer, mas também nas atitudes e no comportamento daqueles que, na família, se socializaram para o mando e para a disponibilidade de alguém que lhes atenda a vontade. (KOFFES, 2001, P.136)

Uma segunda característica da associação entre emprego doméstico e herança

escravista pode ser verificada no histórico de expressiva participação de mulheres negras, que,

como apontado anteriormente, constituem a maioria desta categoria profissional. Segundo

Ávila (2009), a relação entre trabalho doméstico remunerado e raça concretiza-se na

conotação de preconceito e discriminação racial que impregna ideologicamente a

representação do emprego doméstico no Brasil, visto que essa é uma relação de trabalho

fortemente marcada pela história das mulheres negras no país.

[Se] no período escravocrata não cabia o termo emprego doméstico no caso das mulheres negras, pois era na condição de escrava que elas faziam os trabalhos domésticos na casa das famílias dos senhores. Com o fim da escravidão as mulheres negras passam a trabalhar como empregadas domésticas [e] até hoje […] constituem a maioria dessa categoria. (ÁVILA, 2009, p. 111).

Ao discorrer sobre a construção da imagem social do trabalho doméstico remunerado,

Soratto (2006), a partir da leitura de Prost e Hobsbawn, situa a divisão entre trabalho

27

produtivo e reprodutivo nas transformações que o mundo do trabalho vivenciou na passagem

do século XVIII para o século XIX. Segundo a autora, as fabricas introduziram uma

separação entre casa e trabalho ao absorveram parte da produção que se realizava no espaço

doméstico, no qual homens e mulheres trabalhavam, tanto para manutenção das condições de

reprodução da vida, quanto para produção de bens mercantilizáveis, Desse contexto, emergem

duas importantes marcações sociais e simbólicas; a primeira refere-se a uma mudança no

próprio estatuto do trabalho, em que este último passa a identificar prioritariamente as

atividades que se processam em espaços públicos, contratualmente gestadas, realizadas em

troca de um salário específico e em jornadas diárias determinadas. A segunda marcação que se

opera é a identificação do homem como sujeito responsável por ganhar dinheiro e sustentar

monetariamente o espaço doméstico. Por não ser integrado às mudanças processadas no

tocante ao assalariamento e gestão contratual do trabalho, o serviço doméstico e as mulheres

que a ele se dedicam passam a ser excluídas da economia, cujo centro é representado pelo

trabalho assalariado. Tendo em vista o exposto acima, Soratto (2006) afirma que a realização

do trabalho doméstico enquanto atividade remunerada constitui uma situação demasiado

complexa no mundo do trabalho, pois, situada entre o publico e o privado os serviços

domésticos, enquanto ocupação profissional, nem estão completamente restritos ao espaço do

privado e totalmente sujeitos as normas da casa, nem são equivalentes aos demais trabalhos

assalariados que são regidos por normas publicas9.

No Brasil, contribui como causa e opera como conseqüência do estigma social que

pesa sobre o emprego doméstico o fato deste não ser regulado pelas CLT, a exemplo de

diversas outras profissões, tendo de operar segundo um conjunto de leis próprias, segundo o

9 SORATTO, Lúcia Helena. Quando o Trabalho é na Casa do Outro: um estudo sobre empregadas domésticas. Tese de Doutorado. Universidade de Brasília: 2006, p. 50.

28

qual aos empregados domésticos não são concedidos todos os direitos trabalhistas. Soratto

(2006) e Braga (2004) indicam que, de fato, alguns dos direitos previstos para o trabalhador

em geral não são aplicáveis ao empregado doméstico, pela própria natureza desta ocupação,

cujo contratante não é uma empresa, mas sim uma família. Contudo, como apontam as

autoras, há determinadas negações de direitos os trabalhadores domésticos cujas razões não

são imediatamente compreensíveis, exemplo disso é a não limitação da jornada semanal de

trabalho. Assim, Braga (2004) argumenta que:

[...] em se tratando de trabalho doméstico a visão da sociedade é elitista, egoísta e autoritária [e] como será diretamente atingida pelas mudanças que poderão vir a acontecer, em relação a este trabalho, resiste-lhes, atravancando o avanço das legislações destinadas ao doméstico. (BRAGA, 2004, p. 18)

Como visto, no plano simbólico e legal, o emprego doméstico reveste-se de

características que o incluem no rol de profissões as quais a hierarquia social atribui pouca

valoração. Nesse sentido, e, entendendo o trabalho como uma dimensão importante no que

tange a localização dos sujeitos sociais, esta monografia se dedica ao estudo da relação entre

emprego doméstico e construção de identidades. Para tanto, dedicaremos o próximo capitulo

ao estudo de algumas conceituações do termo identidade e suas implicações sociais.

29

CAPÍTULO 2

Identidade e suas interseções:

Com o presente capítulo não se pretende traçar um histórico sobre a discussão de

identidade nas ciências humanas, ou mesmo apresentar todas as formas contemporâneas de

compreensão do conceito. Busca-se, sim, um diálogo entre diferentes contribuições a fim de

se encontrar um ponto de intercessão a partir do qual seja factível discorrer sobre trabalho

doméstico e identidade. Para tanto, abordaremos a problemática da identidade e suas relações

com as representações sociais e os universos do gênero, raça e trabalho.

2.1 Conceituações a cerca da Identidade:

O termo identidade diz de um conceito polissêmico tão rico em sentidos quanto em

transversalidade no seio das ciências humanas, exemplo disso está na pluralidade de áreas,

tais como antropologia, psicologia, sociologia, ciência política e história, que sobre ele se

debruçam a fim de compreender seus possíveis significados e usos. Nesse sentido, Follmann

(2001) afirma que a noção de identidade retorna na nossa época em diferentes áreas do

pensamento, na discussão de questões fundamentais da sociedade10.

Em um contexto cientifico orientado pelo pressuposto da emergência de um modo de

vida e organização social pós-modernos, tornou-se difundida e aceita uma idéia de identidade

– tal como expressa nas obras de Stuart Hall e Kathrin Woodard – cujos fundamentos apontam

para uma impossibilidade de compreensão unitária e essencialista do ser individual, que é,

também, social. 10 FOLLMANN, J. Ivo. Identidade como conceito sociológico. Ciências Sociais Unisinos, v.37, n.158: 46-66, 2001, p.45.

30

Hall (2006) aponta para a existência de um processo global, engendrado a partir de

meados do século XX, no qual se verifica a fragmentação, deslocamento e descentralização

do individuo moderno a partir do declínio das velhas identidades que alicerçaram o mundo

social.

Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas no final do século XX. Isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. Estas transformações estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a idéia que temos de nós próprios como sujeitos integrados. Esta perda de um “sentido de si” estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento ou descentralização do sujeito. (HALL, 2006, p. 09)

Segundo Woodard (2000), compreender a identidade a partir de uma ótica essencialista

significa atribuir a este fenômeno social causas originárias de caráter biológico ou histórico-

social, ambas centradas em perspectivas de verdades já consolidadas. Assim sendo, a

identidade passa a representar um dado fixo e imutável, que significa os sujeitos a partir de

seu nascimento ou inserção grupal, e cuja elaboração não considera as constantes negociações

e produções de sentidos envoltas, tanto nas relações do sujeito com um “Outro”, quanto nas

relações do sujeito consigo, na organização de suas diversas pertenças. A autora, ao escrever

sobre os processos operacionais do conceito, descreve a identidade enquanto uma produção

relacional, em que as diferenças estabelecidas, no que tange às outras identidades socialmente

perceptíveis, operam como uma marcação simbólica. Woodard (2000) afirma que tal

marcação orienta a vida social ao possibilitar a classificação das diferenças que são

vivenciadas no âmbito das relações sociais.

A marcação simbólica é o meio pelo qual damos sentido a praticas e relações sociais, definindo, por exemplo, quem é excluído e quem é incluído. É por meio da diferenciação social que essas classificações da diferença são vividas nas relações sociais. (WOODARD, 2000, 15)

31

Em Hall (2000), a operacionalização da identidade ancora-se em duas concepções

básicas: a) trata-se de um construto social, ou seja, não inata aos sujeitos; b) não pode ser lida

em termos totalizadores e unitários no que se refere identificação dos sujeitos sociais.

Expoente teórico da idéia de identidade enquanto processo relacional, Stuart Hall, a partir do

questionamento sobre quem precisa de identidade, aponta que a centralidade da discussão

sobre esse conceito firma-se nos movimentos de rearticulação entre sujeitos e práticas

discursivas. Evidenciando se conceito de identificação, com base em abordagens discursivas e

psicanalíticas, Hall (2000) diz de uma construção contingencial, nunca completa ou

determinada por inteiro, no qual ao Outro, entendido enquanto parâmetro, é assegurado um

papel preponderante na elaboração das fronteiras identitárias. Ou seja, mais do que as relações

internas a determinados grupos, importa, para a configuração de identidades, as relações

destes grupos com os demais, neste sentido, o diferencial de um sujeito em relação a outro é,

também, sua localização no mundo social. Importa ressaltar que a complexidade dos

processos de identificação individual relaciona-se, ainda, com a diversidade de pertença que

um indivíduo experimenta ao longo de sua existência social.

Utilizo o termo identidade para significar o ponto de encontro, o ponto de satura, entre, por um lado, os discursos e as práticas que tentam nos interpelar, nos falar ou nos convocar para que assumamos nossos lugares como os sujeitos sociais de discursos particulares e, por outro lado, os processos que produzem subjetividades, que nos constroem como sujeitos aos quais se pode “falar”. As identidades são, pois, pontos de apego temporário às posições-de-sujeito que as práticas discursivas constroem para nós. […] Isto é, as identidades são posições que o sujeito é obrigado a assumir. (HALL, 2000, p.112)

Segundo Hall (2006), os sujeitos sociais assumem identidades apropriadas aos

diversos momentos que experenciam, sem que haja uma unificação destas diferentes

identidades assumidas em torno de um “eu coerente”. Para o autor, a idéia de uma identidade

unificada nada mais é do que o reflexo de uma fantasia cômoda e confortadora ancorada em

32

uma “narrativa do eu” que os sujeitos elaboram sobre si.

Sobre essa ótica que postula uma impossibilidade de percepção da identidade

enquanto algo que se reveste de caráter unitário e total na compreensão que os sujeitos

realizam sobre si próprios, Lago (1999), por sua vez, afirma se tratar de uma visão sustentada

na idéia de fragmentação e exacerbação de identidades, ancorada em uma perspectiva simples

de substituição do antigo conceito de papeis sociais pelo conceito de identidade como

equivalente11. Nesse sentido, a autora argumenta que, se na condição pós-moderna assiste-se à

quebra de projetos unitários de sociedade, da qual decorre uma exacerbação das identidades

de grupos sociais e lutas reivindicatórias, constitui-se em simplificação homogeneizante falar

na fragmentação do sujeito particular em múltiplas identidades12.

Contudo, se há entendimentos discrepantes de Hall (1996) e (2000), no sentido de se

afirmar que a identidade dos indivíduos conforma uma figura de contornos unitários e

aparentemente coesos, há consensos em torno desse autor e, também, de Woodward (2000)

quando estes afirmam a não essencialidade e a necessidade constante de negociação interna

que os processos de construção identitária encerram.

Follmann (2001), ao tratar das contribuições do conceito de identidade no âmbito da

sociologia, parte do pressuposto de que o ser humano se constitui como um ser de projeto, ou

seja, sempre em busca da realização de um ou vários objetivos. Segundo o autor, para a

sociologia o conceito de identidade adquire importância a partir do momento em que

possibilita a compreensão da relação que se estabelece entre o individual e o coletivo, relação

esta que culmina na estruturação das dimensões biográficas e relacionais do sujeito e dos

11 LAGO, Mara Coelho de Souza. Identidade: a fragmentação do conceito. In: SILVA, Alcione Leite da; LAGO, Mara Coelho de Souza; RAMOS, Tânia Regina Oliveira. Falas de gênero: teorias, análises, leituras. Florianópolis: Mulheres, 1999, p. 120. 12 IDEM, p. 123.

33

grupos sociais. Nesse sentido, diz-se de um conceito de identidade que não seja redutível ao

individual ou ao coletivo e, tampouco, a simples harmonia entre essas duas dimensões.

Em seu conceito de identidade, Follmann (2001) aponta para a importância da busca

por uma coerência relativa ao tempo – passado, presente e futuro – na construção de

processos identitários. Segundo este autor:

Com a idéia de identidade supera-se a simples oposição entre passado e futuro, entre as trajetórias e os projetos [...] É na maneira como um individuo ou grupo estabelece a relação entre seu futuro e seu passado, ou ainda, entre seus projetos e sua trajetória, que temos de, forma particular, as indicações principais para desvendar qual é a sua identidade. Pode-se definir identidade como resultante, em grande parte, da tentativa constante de buscar a coerência lógica entre as experiências vividas e aquilo que se tem como objetivo. (FOLLMAN, 2001, p. 51)

Follmann (2001) aponta, também, para a relação entre singularidade e pluralidade ao

levar em consideração o fato de os sujeitos sociais possuírem, concomitantemente, uma

diversidade de engajamentos localizadores. O autor diz, então, de um núcleo de indenidade

entorno do qual se processa uma síntese integradora das diferentes referências que cercam um

individuo, síntese essa caracterizada pela tentativa, constante, de se costurar e dar sentido as

múltiplas interações e marcadores em meios dos quais se desenvolve a existência do ser

social.

No âmbito da Psicologia Social e inserido em um paradigma construcionista, Ciampa

(1993) também aponta para a dimensão totalizadora da identidade, ainda que esta possa ser

heterogênea, mutável e contraditória. A fim de exemplificar este pressuposto de totalidade, o

autor alude ao pressentimento da loucura quando um indivíduo se vem ameaçado em sua

unidade, ou seja, em sua percepção sobre si próprio. Em consonância com Woodard (2000) e

Hall (2000), Ciampa (1993) também nos diz da relação entre igualdade e diferença no

processo de construção identitária dos indivíduos. Segundo o autor, os sujeitos,

34

sucessivamente, se diferem e igualam conforme os grupos dos quais faz parte. Nesse sentido:

O reconhecimento de si é dado pelo reconhecimento recíproco dos indivíduos identificados através de um determinado grupo social que existe objetivamente, com sua história, suas tradições, suas normas, seus interesses. (CIAMPA, 1993, p.64).

Assim como Follmann (2001), Ciampa (1993) aponta, ainda, para a multiplicidade de

interações e papeis que circundam os sujeitos sociais e, também, para a conseqüente

necessidade de produção sintética advinda dessa realidade. Sendo assim, o autor afirma que

ao se posicionar nos diversos contextos e situações em que se encontra imerso, um sujeito não

comparece frente aos outros como portador de um único e determinado papel, mas como um

representante de si mesmo.

Como parte do movimento de construção desse representante de si, Dubar (2005)

afirma que a construção de identidades obedeceria a dois processos distintos. O primeiro

refere-se às atribuições com as quais o sujeito é rotulado pelo meio externo – identidade

virtual. Já o segundo refere-se aos processos de internalização dos sujeitos em relação a suas

trajetórias sociais – identidade real. Havendo divergência entre os produtos desses dois

processos, o autor aponta para a necessidade da estruturação de estratégias identitárias com as

quais os sujeitos elaboram coerências entre as identidades que lhes são atribuídas pelo meio e

as identidades por si incorporadas.

Ferreira (2004), em seu estudo sobre afrodescendencia, apresenta uma conceituação de

identidade primorosa para o entendimento que, nesta monografia, se tem sobre esse conceito.

Segundo o autor, identidade mantém relação com: a) individualidade: pois diz de uma

referência entorno da qual o individuo se constrói; b) concretude: ao ser elaborada no âmbito

das experiências concretamente vivenciadas pelos indivíduos; c) temporalidade: visto que se

35

constitui dinamicamente e ao longo do tempo; d) socialidade: já que só pode ser produzida em

meio aos condicionantes do contexto social e, por fim, e) historicidade: por se tratar de uma

configuração localizada historicamente e que permite ao indivíduo elaborar , na relação com o

tempo, um sentido de autoria para sua existência. Ferreira afirma, ainda, que a construção da

identidade deve ser vista como um processo íntegro, cuja configuração totalizadora precisa ser

levada em consideração, a fim de que não se tenha uma visão compartimentalizada dos

indivíduos.

Tendo em vista as contribuições trazidas por Lago (1999), Follmann (2001), Ciampa

(ano) e Ferreira (2004), quando nesta monografia, for dito sobre as relações entre identidade e

gênero, identidade e raça e identidade e trabalho, dir-se-á, na realidade, dos aspectos “raciais”,

“generificados” e “marcados pelo trabalho” em que se ancoram a identidade, ou mesmo, os

processos de identificação de um sujeito. Levando-se em consideração Hall (2000) e Woodard

(2000), entende-se que estes aspectos significam uma perspectiva construcionista e não

essencialista, ou seja, adquirem sentido à medida que os sujeitos os experimentam no curso de

suas vivencias.

2.2 Identidade e Representações Sociais:

A fim de estudar a relação entre identidade e trabalho doméstico faz-se necessário,

também, uma exposição sobre possíveis relações entre identidade e representações sociais,

visto que, como apontado no capitulo anterior dessa monografia, o emprego doméstico

reveste-se de uma gama de significados construídos socialmente que o localiza enquanto

profissão estigmatizada. Nesse sentido, para a compreensão de determinados processos

36

identitários ensejados pelo desempenho do serviço doméstico remunerado, torna-se prudente

estabelecer as intercessões entre identidade e representações sociais, entendendo que as

representações carregam sempre um caráter simbólico significante13 para os processos

construtores e constituintes das identidades, mediadas pelas identificações.

Conceitualmente significado por Serge Moscovici, o termo Representações Sociais

indica, segundo Alexandre (2004), um conjunto de conhecimentos elaborados no seio da vida

cotidiana a partir dos quais se estruturariam processos intersubjetivos de significação da

realidade, ou seja, um universo consensual considerado como parâmetro para as

interpretações e ações que os indivíduos desenvolvem a cerca do mundo em que, num

movimento ambivalente, se formam e para o qual contribuem para a construção.

Como aponta Xavier (2002) o conceito de Representação Social formulado por

Moscovici refere-se a:

uma forma de conhecimento particular relacionada com o senso comum, com a interação social e com a socialização [...] Por um lado a representação como forma de conhecimento socialmente elaborado e partilhado e por outro sua realidade psicológica, afetiva e analógica inserida no comportamento dos indivíduos. (XAVIER, 2002, p.22)

Segundo a autora e obra em questão, enquanto elaboração teórica, as representações

sociais caracterizam-se por dois elementos: a funcionalidade e o caráter performativo. O

caráter funcional aponta para possibilidade de, a partir das mesmas, se entender as formas de

raciocínio e as teorias vigentes no universo da vida cotidiana. Já o caráter performativo

baseia-se no pressuposto de que as representações sociais fundamentam as ações dos

indivíduos, enquanto atores sociais, na relação que estes estabelecem com os outros e com o

contexto social. Utilizado nos termos de Moscovici, o contexto social constitui-se pelos

13 OLIVEIRA, Fátima; WERBA, Graziela. Representações Sociais. In: JACQUES, Maria das Graças Corrêa

(org). Psicologia Social Contemporânea. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 106

37

momentos de interação ordinários a vida cotidiana, contudo, segundo Xavier (2002) o

contexto nos quais as representações sociais se efetivam no pensamento e ação dos indivíduos

remonta a toda uma construção histórico-social. Cabe ressaltar que a idéia de representação

social elaborada por Moscovici encontra-se sustentada por Xavier na medida em que, para

ambos os autores, há a vigência de uma constante relação entre conceitos já consagrados e o

surgimento de novos elementos de compreensão de determinada realidade.

O conceito de representação social que Xavier (2002) apresenta contribui para esta

monografia dado a relação que a autora estabelece entre a concepção elaborada por Moscovici

e o conceito de Ideologia, compreendido, em um dos sentidos propostos por Althusser14,

como sendo idéias e visões de mundo que possibilitam a coesão social, fundamentam práticas

e determinam quais são os papeis legítimos e os estigmatizados. Nesse sentido, processos

identitários se ensejam no âmbito das Representações Sociais na medida em que estas

contribuem para a localização do posicionamento e reconhecimento dos indivíduos e grupos

entre si.

2.3 Identidade e Gênero:

Antes de falar propriamente sobre a formação dos aspectos generificados da

identidade, faz-se necessária uma apresentação sobre o conceito de gênero e seu significado

no âmbito das ciências sociais.

Ao discorrer sobre a história do conceito de gênero, Scott (1990) aponta que as

primeiras referências ao mesmo remetem ao movimento feminista americano consolidado no

final dos anos 1960. Tinha-se como objetivo rejeitar os determinismos biológicos acoplados

14 (apud Xavier, 2002.)

38

na utilização de termos como “sexo” e “diferenciação sexual” e, também, introduzir uma

perspectiva relacional no que tange a analise e compreensão dos lugares sociais ocupados

pelos homens e daquele ocupado pelas mulheres. Neste sentido, o termo gênero faz parte de

uma tentativa [de] reivindicar um certo terreno de definição [e de] insistir sobre a

inadequação das teorias existentes em explicar as desigualdades persistentes entre as

mulheres e os homens15.

Segundo Louro (2003), neste primeiro momento, o conceito esteve intrinsecamente

ligado aos chamados estudos da mulher, cuja intenção era problematizar a segregação social e

política a que as mulheres foram historicamente conduzidas16. No contexto apresentado, as

principais explicações sobre a subalternização da mulher se reportam às relações de hierarquia

estabelecidas a partir das significações sociais dos marcadores naturais do corpo feminino e

masculino. Como aponta a autora:

O argumento de que homens e mulheres são biologicamente distintos e que a relação entre ambos decorre dessa distinção, que é complementar e na qual cada um deve desempenhar um papel determinado secularmente, acaba por ter o caráter de argumento final, irrecorrível. Seja no âmbito do senso comum, seja revestido por uma linguagem “cientifica”, a distinção biológica, ou melhor, a distinção sexual serve para compreender – e justificar – a desigualdade social. (LOURO, 2003, p.20)

Como instrumento de oposição à biologização e sua decorrente naturalização das

desigualdades entre homens e mulheres, consolida-se o uso do conceito de gênero enquanto

indicativo da dimensão relacional e simbólica estabelecida entre as categorias de “feminino” e

“masculino” no âmbito da cultura.

15 SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria analítica útil de análise histórica, 1990, p. 13. 16 LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista, 2003 p. 17.

39

É necessário demonstrar que não são propriamente as características sexuais, mas é a forma como essas características são representadas ou valorizadas [...]que vai construir, efetivamente o que é feminino ou masculino em uma dada sociedade e em um dado momento histórico. Para que se compreenda o lugar e as relações de homens e mulheres numa sociedade importa observar não exatamente seus sexos, mas sim tudo que é socialmente construído sobre os sexos. O debate vai se constituir, então, através de uma nova linguagem, na qual gênero será um conceito fundamental. (LOURO, 1999, p.20)

Neste sentido, Scott (1990) aponta para um conceito de gênero que leva em

consideração as dimensões fundamentalmente sociais das relações operadas a partir das

diferenças entre os sexos. Segundo a autora, o gênero seria um primeiro modo de significar as

relações de poder. Abre-se, assim, o caminho para buscar na linguagem, nos símbolos

culturalmente disponíveis, nos arranjos sociais e na história as explicações para as

desigualdades, diferenças e disposições de poder relacionadas à distinção sexual.

Importa ressaltar, segundo Louro (2003), que a consolidação do conceito de gênero,

dado as possibilidades analíticas encerradas pelo mesmo, aliada a tensões no interior do

movimento feminista fizeram emergir novas agendas de estudos que, para alem relação entre

masculino e feminino, se debruçaram sobre as diferenciações internas ao feminino e ao

masculino e à construção do ser mulher e do ser homem.

O conceito passa a exigir que se pense de modo plural, acentuando que os projetos e as representações sobre mulheres e homens são diversos. Observa-se que as concepções de gênero diferem não apenas entre as sociedades ou os momentos históricos, mas no interior de uma dada sociedade, ao se considerar os diversos grupos (étnicos, religiosos, raciais, de classe) que as constituem. (LOURO, 2003, p.23)

Matos (2000) afirma que a formação dos aspectos generificados da identidade é um

processo permeado por múltiplas dinâmicas culturais de gênero. Segundo a autora, os

significados do sexo biológico constroem-se socialmente e, em um processo dinâmico de

retroalimentação, servem de base para a elaboração de culturas e identidades de gênero

40

especificas. Culturas estas, vetorializadas pelos pais a partir dos primeiros contatos que estes

estabelecem com seus filhos.

A estrita relação entre corpo e psiquismo, para todos os gêneros, é construída no plano sócio-cultural, podendo ser confirmada e/ou ressegurada, distorcida, subvertida e transformada dependendo do conteúdo ideológico e moral do gênero na cultura. A influência das posições parentais, culturalmente condicionadas, sobre o “feminino” e o “masculino” operam efeitos na constituição identificatória de gênero. (MATOS, 2000, p.237)

Considerar que um outro externo (figura que materna e paterna) exerce impactos

decisivos sobre a subjetividade dos indivíduos, implica em desconstruir a idéia de que a

construção identitária do sujeito consiste em um processo autodeterminado ou determinado

apenas pelo psiquismo, ou seja, individual e não histórico. Neste sentido, Matos (2000)

aponta que a cultura intervém desde sempre, regula com seus dispositivos desde sempre17.

Segundo a autora, o desenvolver social da identidade de gênero configura-se em uma

construção performática que, ao interpretar a relação entre energias/pulsões e o corpo, afirma

ou desafia certos estereótipos socialmente definidos para a representação do feminino e do

masculino e para a constituição de homens e mulheres. Matos (2000) também indica que, a

despeito das pressões e tendências padronizantes da cultura e da moral sexual vigente, a

conformação generificada da identidade constitui um processo de resultados plurais quando

analisado o todo social, visto que nenhum homem ou mulher é completamente similar a outro.

Interessa para essa monografia o entendimento de que os aspectos generificados da

identidade, construídos no caldo cultural de gênero da sociedade brasileira, não se

referenciam somente nas hierarquizações entre as categorias “feminino” e “masculino”,

homens e mulheres, mas também se ancoram nas diferenciações e desigualdades presentes no

17 MATOS, Marlise. Reinvenções dos Vínculos Amorosos: cultura e identidade de gênero na modernidade tardia. 1. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000, p. 242.

41

interior do masculino e do feminino, dos homens e das mulheres levando-se em consideração

os modos como estas categorias são entrecortadas por outras, como classe e raça.

2.4 Identidade e Raça:

Discutir as relações entre identidade e raça no cenário brasileiro não é uma tarefa

simples, que se possa fazer sem trazer à tona a complexidade da questão racial no Brasil.

Nesta monografia, a problemática em questão se coloca pelo fato, estatisticamente já

demonstrado, de que as mulheres negras são a maioria das profissionais envolvidas com o

emprego doméstico e, para alem disso, de pesar sobre o serviço doméstico remunerado

diversos estigmas decorrentes da associação entre esta profissão e as heranças simbólicas do

período escravocrata brasileiro.

Neste trabalho, escolheu-se como caminho para tratar a relação entre raça e identidade

um percurso seccionado em discussões distintas, porem, contextualmente imbricadas e

complementares. A princípio introduzir-se-á um esboço das raízes da discriminação do negro

na sociedade brasileira. Em seguida tratar-se-á da relação entre o ideal de branquitude e a

ideologia da mestiçagem. Por fim, dir-se-á propriamente da construção dos aspectos raciais

da identidade18.

Antes de iniciar o aprofundamento das questões apontadas, importa ressaltar que os

conceitos raça e negro não são usados de forma inocente. Pelo contrário, sabe-se da

historicidade dos termos e dos significados políticos que os mesmos encerram. Nesse sentido,

quando se fala de raça, parte-se do pressuposto biologicamente comprovado da não existência

18 Expressão utilizada por FERREIRA, Ricardo Franklin. Afro-descendente: identidade em construção. São Paulo: Educ; Rio de Janeiro: Pallas, 2004.

42

de raças distintas no seio da espécie humana, ou seja, utiliza-se o conceito de raça para se

afirmar a vigência de construções sociais ancoradas historicamente em diferenças étnicas e

fenotípicas que em períodos determinados da história legitimaram, e ainda o fazem, políticas

de diferenciação. Ainda neste movimento de justificar o uso de determinados conceitos,

quando for dito sobre os negros, abordar-se-á questões relativas a sujeitos pretos e pardos,

expressões fenotípicas simbolicamente envoltas no universo das associações construídas a

cerca dos lugares sociais, políticos, culturais dos afro-descendentes no Brasil19. Sabe-se que

historicamente pretos e pardos experimentaram posições distintas no âmbito da organização

social, contudo, conforme o argumento de Munanga (2004), entende-se que no Brasil

contemporâneo estes vivenciam contextos similares de existência.

Embora considerado como ponte étnica entre o [preto] e o branco [...] o mulato [mestiço] não goza de um status social diferente do [preto]. Se durante a escravidão os mulatos puderam receber alguns tratamentos privilegiados em relação aos [pretos], por terem sido filhos dos senhores de engenho, hoje eles são na sua maioria, filhos e filhas de pais e mães de classe pobre. (MUNANGA, 2004, P.101)

Sobre as raízes da discriminação do negro na sociedade brasileira, serão abordados

dois fatores básicos: a escravatura e o contexto pós-abolição. No que tange a escravatura,

alude-se a incorporação do negro ao Brasil na situação de escravo. Nesse sentido, importa

ressaltar a condição de “coisa”, cuja “humanidade” fora colocada em duvida, a qual, segundo

Santos (2009), cerca de seis a dez milhões de sujeitos, entre homens e mulheres trazidos do

continente africano, foram expostos.

Sabe-se que o contexto escravocrata foi dinâmico e que no seio deste os negros e

negras ocuparam outras posições para alem de escravos e escravas, sendo, em alguns

19 Hering (2002) aponta que: para propósitos estatísticos, ao se considerar a flexibilidade da classificação de cor no Brasil e, também, a proximidade em termos de indicadores sócio-econômicos entre pardos e pretos, considera-se os dois grupos como uma única categoria, os negros. Assume-se, assim, que a maioria dos pardos possui ascendência africana.

43

momentos, os próprios donos e donas de escravos e escravas. Contudo, como afirma Moura

(1988), sabe-se também que a escravatura brasileira verificada entre os séculos XVI e XIX –

ainda que, em determinados períodos e situações, estendida aos grupos indígenas – significa-

se principalmente pela relação de poder estabelecida entre um grupo hegemônico, branco, de

origem européia e um grupo subalternizado e escravizado, negro, de origem africana. Como

afirma Souza (2003): no contexto estamental e adscritivo da sociedade escravocrata, a cor

funciona como índice tendencialmente absoluto da situação servil20.

Segundo Moura (1988), o pós 1988, ano da abolição da escravatura, não representou

para grande maioria de pretos e pardos – negros – libertos uma inserção positiva na nascente

economia de mercado capitalista que emergia em solo brasileiro. O autor aponta que os

negros escravizados – que no período escravista não eram apenas trabalhadores do eito, mas

exímios artesãos, ferreiros, carpinteiros, marceneiros e metalúrgicos – na passagem da

escravidão para o trabalho livre foram considerados, em um processo estrategicamente

manipulado, como sujeitos incapazes para o trabalho assalariado, tornando-se mão de obra

marginalizada. Neste contexto, elege-se o branco imigrante como trabalhador ideal para o

desenvolvimento do capitalismo brasileiro, o que se comprova historicamente pela política de

imigração subsidiada pelo Estado, responsável pela entrada de mais de dois milhões de

imigrantes europeus no país entre os anos 1890 e 1930. Como aponta Santos (2009), aos

olhos da elite nacional a busca por estes imigrantes orientava-se por dois aspectos

considerados estratégicos à pulsão modernizadora: eram os europeus considerados mais aptos

ao trabalho livre e estariam mais habituados a agricultura de pequena propriedade para

produção de alimentos. Segundo a autora:

Na formação do estado brasileiro moderno, a exclusão social [dos negros] se deu desde o momento em que as elites

20 SOUZA, Jessé. (Não) Reconhecimento e Cidadania: ou o que é ser gente?. Lua Nova, nº 59, 2003, p. 57.

44

privilegiaram a mão de obra imigrante em detrimento da mão de obra nacional. Assim, o desenvolvimento das relações capitalistas de produção, longe de eliminar as desigualdades sócio-raciais, a recompôs na ótica da racionalidade da acumulação do capital. (SANTOS, 2009, p. 30)

Em uma relação de causa e conseqüência, devido à valoração negativa das condições

sociais e atribuições culturais dos negros, emerge no período pós-abolição uma ideologia de

branqueamento do brasileiro, sustentada no plano político pela entrada maciça e subsidiada de

imigrantes europeus e no plano cultural pelo mito da democracia racial. Como apontam os

autores Dávila (2006), Moura (1988) e Bento (2007), grande era a ânsia, nos primeiros anos

da Republica, em descrever as condições e características do brasileiro ideal, aquele que seria

o típico representante da nação. Não havia duvidas por parte da elite sócio-racial de que este

deveria ser branco, neste sentido, encontram-se esforços no campo da ciência e da política de

modo a afirmar a supremacia biológica e cultural dos brancos, em detrimento dos negros,

considerados explicitamente, em diversos estudos, como seres inferiores. Nas palavras de

muitos autores encontra-se uma perspectiva e expectativa de branqueamento do país, no prazo

de dois ou três séculos, a partir do cruzamento biológico/sexual entre negros e brancos.

O auge da campanha pelo branqueamento do Brasil surge exatamente no momento em que o trabalho escravo (negro) é descartado e substituído pelo assalariado. Ai coloca-se o dilema do passado com o futuro, do atraso com o progresso e do negro com o branco como trabalhadores. O primeiro representaria a animalidade, o atraso, o passado, enquanto o branco (europeu) era o símbolo do trabalho ordenado, pacifico e progressista. Desta forma, para se modernizar e desenvolver o Brasil só havia um caminho: colocar no lugar do negro o trabalhador imigrante, descartar o país dessa carga passiva, exótica, fetichista e perigosa. (MOURA, 1988, p.79)

No esteio da ideologia da branquitude surgia também o mito da democracia racial.

Este apregoava a inexistência de conflitos raciais em solo brasileiro, dada a explicita

miscigenação biológica aqui processada. Neste sentido, encontra-se a figura do mestiço como

símbolo desta democracia, mas, mais do que isso, segundo Bento (1997), como uma forma

45

explícita e ao mesmo tempo velada de expressão da transição do padrão racial negro para o

branco, assim a autora afirma: havia uma expectativa de o Brasil torna-se um país branco,

como conseqüência do cruzamento de raças21. De acordo com Moura (1988), a democracia

racial brasileira encontra-se vinculada a uma escala de valores baseada na dicotomia entre

negros e brancos, a partir da qual tanto mais valorizados seriam os indivíduos e grupos quanto

mais estes se distanciassem de uma expressão fenotípica e cultural negra e se aproximassem

de uma expressão fenotípica e cultural branca. Nas palavras do autor:

Criou-se, assim, através de mecanismos sociais e simbólicos de dominação, uma tendência a fuga da realidade e a consciência étnica de grandes segmentos populacionais não-brancos. Eles fogem simbolicamente dessa realidade que os discrimina e criam mitos capazes de fazer com que se sintam resguardados [...] a identidade e a consciência étnica são, assim, penosamente escamoteadas pela grande maioria dos brasileiros ao se analisarem procurando sempre elementos de identificação com os símbolos étnicos da camada dominante branca. (MOURA, 1988, p. 62)

Como exemplo do argumento exposto acima, Moura aponta um conjunto de 136 cores

utilizadas pelos brasileiros não brancos no quesito auto-declaração racial do recenseamento de

1980. Apenas para citar: acastanhada, agalegada, cor de café, cor de canela, esbranquicento,

quase negra, puxa pra branca, morena prata22, entre outras.

Sobre a construção dos aspectos raciais da identidade, no esteio das considerações

apontadas até o momento, Santos (2009), baseada no historiador Joel Rufino Santos afirma

que, ainda que não haja raças biologicamente distintas, existem relações raciais que alocam o

negro nos seguintes lugares: o fenótipo (crioulo), a condição social (pobre), o patrimônio

cultural (popular), a origem histórica (ascendência africana) e a identidade (auto definida e

definida pelo outro)23.

21 BENTO, Maria Aparecida Silva. Branqueamento e Branquitude no Brasil. In: CARONE, Iray; BENTO, Maria Aparecida

Silva (organizadoras). Psicologia Social do Racismo. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 47. 22 MOURA, Clóvis. Sociologia do Negro Brasileiro. São Paulo: Ática, 1988, p. 63. 23 SANTOS, Gevanilda Gomes dos. Relações Raciais e Desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2009, p. 46.

46

Tendo em vista a perpetuação, no plano das representações sociais que ancoram a vida

cotidiana, de idéias como branqueamento e mestiçagem, Ferreira (2004) afirma que o

processo de identificação racial brasileiro é demasiado complexo e que para ele contribuem,

dentro da polarização entre brancos e negros, não só a cor, mas o fenótipo, modo de vida e o

status social dos indivíduos. Nesse sentido, o autor aponta que mestiços com leves

características negroides e em elevada posição social podem se considerar e serem

considerados brancos, o que, em função de adversidades socioeconômicas não ocorreria com

pessoas com as mesmas características, porém pobres. Com base neste contexto, Ferreira

indica que o contexto histórico de opressão, as múltiplas possibilidades de definições de cor e

a valorização da branquitude revelam-se em dificuldades adicionais para a construção dos

aspectos raciais da identidade do afro-descendente.

2.5 Identidade e Trabalho:

Maciel (2006), a partir do estudo de teóricos como Max Weber, Axel Honneth e

Charles Taylor, afirma que na modernidade ter uma profissão é a forma institucionalizada e

socialmente reconhecida de se construir a identidade24, visto que, no conjunto dos valores

sustentados na sociedade moderna, o reconhecimento pessoal, dignidade e auto-estima

processam-se, em grande medida, a partir de uma utilidade pratica dos sujeitos na sociedade

de mercado. Sustenta tal afirmação o pressuposto de que, no mundo moderno, uma moral

única e valida para todos compreende o trabalho enquanto gerador de dignidade e

reconhecimento social. Nesse sentido, em decorrência da centralidade do trabalho na

organização da vida social, o autor afirma que aquele que não se satisfaz profissionalmente

24 MACIEL, Fabrício. Todo trabalho é digno? In: SOUZA, Jessé (org). A invisibilidade da desigualdade brasileira. Belo Horizonte: Ed UFMG, 2006, p.300.

47

não logra valor nem para si e nem para os outros.

Segundo Jacques (s/d), a articulação entre identidade e trabalho origina-se de uma

tradição teórica que atribui aos papeis sociais um lugar de relevo na constituição da identidade

dos sujeitos, com destaques ao papel de trabalhador, em decorrência da importância e

exaltação simbólicas conferidas ao trabalho na sociedade ocidental. Segundo a autora o

ingresso no mundo concreto do trabalho confere valor social, reproduzindo o imaginário

coletivo de valorização moral ao ser trabalhador25.

Contudo, assim como o conceito de identidade teve de ser submetido à analises que o

situaram em meio às condições contemporâneas, que muitos denominam como pós moderna,

também os postulados sobre a centralidade social do trabalho tiveram de ser revistos. Como

afirmam Coutinho et al (2007), a contemporaneidade trouxe em seu bojo transformações

sociais […] em escala mundial26, que podem ser observadas na heterogeinização,

fragmentação e complexificação da classe que vive do trabalho. Antunes (ano) afirma que o

capitalismo contemporâneo encontra-se marcado por processos múltiplos e contraditórios, que

envolvem: o aumento do desemprego estrutural, a expansão do trabalho assalariado no setor

de serviços, a incorporação do contingente feminino no mundo do trabalho e, por fim, uma a

expressiva subproletarização caracterizada pela constante oferta de empregos parciais,

temporários e regido por normas contratuais mais flexíveis.

Coutinho et al (2007) afirmam que a densidade das transformações observadas no

mundo do trabalho deve ser respeitada em qualquer exercício que se proponha a pensar a

relação entre identidade e trabalho, entretanto, segundo os autores, as mesmas não subtraíram

da dimensão simbólica do trabalho o seu caráter privilegiado no que tange a construção 25 JACQUES, Maria das Graças Correia. Identidade e trabalho: uma articulação indispensável. Retirado em: http://www.infocien.org/Interface/Colets/v01n11a03.pdf, s/d, p.24. 26 COUTINHO, Maria Chalfin, et al. Identidade e Trabalho na Contemporaneidade: repensando articulações

possíveis. Psicologia & Sociedade; 19, Edição Especial1, 2007, p. 29.

48

identitária dos sujeitos sociais, visto que a dimensão ocupacional ainda encontra-se

diretamente associada às dimensões do valor e da dignidade humana. Nessa linha de

pensamento, Lima (2007) aponta que o exercício laboral continua a ser visto, por muitos,

como lócus especial para construção de identidades e que, mesmo subempregados, o

consideram, para além de fonte de subsistência, como modelo de reconhecimento social.

Há de se levar em consideração, porem, que apesar de a dimensão do trabalho

constiuir-se em um instrumento de valorização social das identidades individuais, existem

estratificações no que tange a hierarquização das categorias profissionais, de acordo com o

prestigio social associado a de cada uma delas. Nesse sentido, como aponta Jacques (s/d),

alguns espaços de trabalho e/ou categorias profissionais, pelas suas especificidades próprias,

em geral, associadas a prestigio ou desprestigio social proporcionam atributos de

qualificação e/ou desqualificação do eu27. Sobre esse aspecto, Maciel (2006) afirma que para

alem de uma dimensão funcional, existe, na divisão do trabalho, uma dimensão moral a qual

se atrelam relações de desigualdade entre trabalhadores e, de uma maneira geral, entre

indivíduos.

Dubar (2005) afirma que a interface entre identidade e trabalho se estabelece em um

processo ancorado nas relações sociais de poder, que perpassam o reconhecimento das

identidades associadas aos saberes, competências e imagens de si manifestos pelos indivíduos

nos sistemas de ação.

a entrada em uma especialidade disciplinar ou técnica constitui um ato significativo de identidade virtual […] e do seu resultado dependem tanto a identificação por outrem de suas competências, de seu status e de sua carreira possível, quanto a construção por si de seu projeto, de suas aspirações e de sua identidade possível. (DUBAR, 2005, p. 148-149)

27 JACQUES, Maria das Graças Correia. Identidade e trabalho: uma articulação indispensável. Retirado em: http://www.infocien.org/Interface/Colets/v01n11a03.pdf, s/d, p.25.

49

Os argumentos expostos reforçam a perspectiva de que o trabalho configura uma

matriz importante no que tange a construção de aspectos identitários, constituindo-se em

lócus de identificação dos sujeitos por si próprios e pelos que o cercam.

2.6 Interseções Temáticas:

No intuito de colher representações manifestas sobre o serviço doméstico remunerado,

a partir das falas de mulheres negras que, enquanto profissionais, desempenham a função de

empregadas domésticas, e compreender como o desenvolvimento dessa profissão localiza tais

mulheres socialmente, segundo a ótica que as mesmas manifestam sobre si, a perspectiva de

construção de identidade apresentada por Ciampa (1993), Follmann (2001) e Lago (1999)

parece adequada, pois permite afirmar a existência de mecanismos que sustentam a

possibilidade de conexão entre os processos identitários construídos no âmbito das relações de

trabalho, gênero e raça e as outras esferas das vidas. À luz da teoria da interseccionalidade,

tais conexões são necessárias para um efetivo conhecimento dos contextos que cercam a

realidade das empregadas domésticas entrevistadas. Nesse sentido, Crenshaw (2002) afirma:

Assim como é verdadeiro o fato de que todas as mulheres estão, de algum modo, sujeitas ao peso da discriminação de gênero, também é verdade que outros fatores relacionados a suas identidades sociais, tais como classe [e] raça são diferenças que fazem diferença na forma como vários grupos de mulheres vivenciam a discriminação. Tais elementos diferenciais podem criar problemas e vulnerabilidades exclusivos de subgrupos específicos de mulheres, ou que afetem desproporcionalmente apenas algumas mulheres. (CRENSHAW, 2002, p.173)

Segundo Matos (2010), o que se encontra em jogo, nesse sentido, são vivências

permeadas por marcadores múltiplos de opressão (gênero, raça, classe): historicamente

elaborados, institucionalmente justificados e educacionalmente perpetuados no âmbito da

cultura e da estruturação social. Partilhados por homens e por mulheres, estes marcadores

50

contribuem para a manutenção destas ultimas como grupo subalternizado, ainda que possa

haver diferentes graus de subalternização, a depender das posições ocupadas nos diferentes

grupos de valoração simbólica aos quais as mulheres encontram-se, diversificadamente,

inseridas.

Conforme Crenshaw (2002) e Matos (2010), compreender a realidade social das

mulheres pela ótica da interseccionalidade significa mensurar em quais medidas a categoria

gênero se encontra atrelada a outros condicionadores sociais como raça e classe e, neste

sentido, verificar como essas interconexões contribuem para formação de contextos duplos ou

mesmo triplos de opressão, a depender da localização social em que determinado grupo de

mulheres se encontra. Estudos que primam pela interseccionalidade colaboram para a uma

compreensão efetiva da realidade que deve ser transformada para que todas as mulheres –

quaisquer que sejam as matrizes de pertencimento das mesmas em termos étnicos, classistas,

raciais ou mesmo nacionais – possam ter acesso efetivo aos direitos humanos.

Tendo em vistas as considerações pontuadas, tomar como ponto de partida a noção de

que os sujeitos se percebem como unos, ainda que heterogêneos e múltiplos nessa unidade,

nos permite indagações a cerca dos processos transversais que cooperam para a elaboração da

imagem que estabelecem sobre si. Ao defender essa perspectiva totalizadora não se descarta

os argumentos de Hall, segundo o qual os sujeitos são diferentemente posicionados a partir da

experimentação de diferentes contextos sociais, cada qual com suas exigências especificas;

considera-se, apenas, que existem possibilidades de intercomunicação entre os diferentes

posicionamentos que os sujeitos sustentam, tendo em vista suas diversas pertenças sociais, e

que tal processo comunicativo, fundamental na orientação que os sujeitos tem de si enquanto

pessoas, conformam uma idéia de unidade. Nas palavras de Ciampa (1993):

Cada posição minha me determina, fazendo com que minha existência concreta seja a unidade da multiplicidade, que se realiza pelo

51

desenvolvimento dessas determinações. Em cada momento de minha existência, embora eu seja uma totalidade, manifesta-se uma parte de mim como desdobramento das múltiplas determinações a que estou sujeito. […] Dessa forma, estabelece-se uma intrincada rede de representações que permeia todas as relações onde cada identidade reflete outra identidade. (CIAMPA, 1993,67)

O apoio em Ciampa (1993) e Follmann (2001) para afirmação da identidade enquanto

processo resultante em uma idéia de totalidade por parte do indivíduo, e em Hall (2000) para

sustentação da identidade enquanto construção contínua em meio as interações entre Eu e o

Outro, alia-se, também, a um retorno a Woodard (1996) e Xavier (2002) para o embasamento

da a idéia de identidade enquanto fruto de representações. Ao afirmar que os discursos e os

sistemas de representação constroem os lugares a partir dos quais os indivíduos podem

posicionar-se e a partir dos quais podem falar, Woodard (2000) destaca a importância das

representações sociais sobre a imagem que os sujeitos constroem sobre seu lugar no mundo.

Assim compreendido, enquanto totalidade-heterogênea e processo moldado, entre

outros fatores, pelas representações sociais e a sua performance, o conceito de identidade

permite acessar a relação entre certos fazeres específicos e a compreensão que, em

determinado momento da história e dos contextos sociais, os sujeitos elaboram sobre si

mesmos. Nesse sentido, como as empregadas domésticas entrevistadas nesta monografia

elaboram discursivamente seus aspectos identitários relacionados ao mundo do trabalho?

Como tais mulheres significam socialmente este trabalho que desempenham? Estas são

discussões para o próximo capítulo.

52

CAPÍTULO 3

Percepções sobre o emprego doméstico e sobre si: a fala de cinco mulheres:

3.1 Descrições relativas ao campo de pesquisa:

Este terceiro capítulo constitui o esforço empírico desta monografia e, para sua

realização, optou-se pela elaboração a aplicação de um roteiro de entrevista semi-estruturada

direcionado a empregadas domésticas. Neste roteiro constavam diversas questões, tais como:

local de nascimento, profissão dos pais, autodeclaração racial, atividades desenvolvidas no

ambiente de trabalho, satisfação em relação ao salário recebido, opinião em torno do emprego

doméstico e, por fim, sensação de ser uma empregada. A construção deste instrumento de

pesquisa guiou-se pelo apreendido sobre o emprego doméstico e a identidade, tendo em vista

as literaturas que embasaram o primeiro e o segundo capitulo da monografia.

A princípio buscou-se realizar dez entrevistas, quantia não efetivada em sua totalidade

devido às constantes desistências por parte das mulheres contatadas, o que constituiu uma das

principais dificuldades para realização deste estudo empírico. Algumas mulheres foram

enfáticas em negar a disposição para participar da pesquisa, outras chegaram a agendar

diversas entrevistas, mas sempre desmarcaram as mesmas na véspera de sua realização. Os

contatos de todas as mulheres, tanto as que realizaram quanto as que não realizaram as

entrevistas, foram conseguidos a partir de conversas informais e pedidos de indicação.

Ao todo cinco entrevistas foram realizadas, entre os meses de abril e maio de 2010.

Importa ressaltar que uma das mulheres, Patrícia, foi entrevistada duas vezes, sendo que a

primeira conversa se deu em outubro de 2009 e, por seu conteúdo, também constituiu umas

das fontes de informação deste trabalho monográfico. Todas as mulheres foram entrevistadas

em suas casas, locais demasiados simples no que tange a estrutura, mobiliário e presença de

53

eletrodomésticos. Em relação ao horário, as conversas se deram principalmente no período da

tarde e noite, após a jornada de trabalho. Quanto à relação com a entrevistadora, importa dizer

que em todos os casos o dialogo se deu de maneira fluida e amistosa.

A fim de pensar as influências do emprego doméstico sobre a construção de aspectos

identitários das trabalhadoras a ele relacionadas, buscou-se compreender suas dimensões de

interferência, tanto no plano positivo, quanto no plano negativo. E, de maneira a confirmar o

que já vem sido dito sobre as representações acerca do serviço doméstico remunerado, grande

parte das respostas e percepções coletadas durante as entrevistas apontam para o fato de que

as domésticas ouvidas não nutrem admiração ou gosto pelo trabalho que desenvolvem e se

encontram frustradas ou resignadas por estarem nessa profissão.

3.2. O Perfil das entrevistadas:

A idade das mulheres entrevistadas nesta monografia variou entre os 29 aos 59 anos;

todas são moradoras da Região Metropolitana de Belo Horizonte, sendo três migrantes e duas

naturais desta cidade. Quanto à escolaridade, os graus de instrução variam do ensino básico

incompleto ao ensino médio completo. Levando-se em consideração a classificação do IBGE,

as entrevistadas são negras, ainda que não haja unanimidade na forma como se auto definem.

Casadas, amasiadas, divorciadas e solteiras, todas são mães e arcam, em maior ou menor

grau, com a manutenção educacional, financeira de seus filhos.

Proceder-se-á agora a uma breve apresentação de cada uma das mulheres

entrevistadas, visto que as mesmas constituem as unidades a partir das quais serão lidas de

forma coletiva as realidades identitárias informadas pela relação com trabalho doméstico

54

remunerado. Serão utilizados nomes fictícios a fim de se preservar as entrevistadas quanto ao

teor de suas declarações.

Luzia, 59 anos, nasceu na cidade de Ipoema em Minas Gerais, tendo morado também

na cidade de Rio Casca, de onde se mudou, há 35 anos, para a cidade de Belo Horizonte, a

fim de largar a roça. Filha de pai carvoeiro e de mãe dona-de-casa e trabalhadora de roça,

esta senhora, que se diz “morena”, afirma ter estudado até a segunda série do ensino básico e

apresenta a falta de recursos educacionais do local onde morava como justificativa para seu

baixo grau de instrução formal. Começou a trabalhar aos 12 anos, na lavoura de terceiros, em

suas palavras: na roça agente começa a trabalhar cedo para ajudar os pais... não tinha vida

boa não... começa cedo no serviço. Casada com um homem que, enquanto profissional,

desenvolveu o oficio de pedreiro, Luzia teve oito filhos, dos quais apenas cinco estão vivos, e

cujas idades variam dos 40 aos 33 anos. Possui residência própria e divide o espaço de seu

lote com a casa de seus filhos, com os quais raciona despesas como água, luz e telefone. Para

alem da participação nestas despesas, Luzia utiliza sua renda familiar de 910 reais por mês,

tendo em vista agregação de seu salário de 400 reais e a aposentadoria de seu marido de 510

reais, para a manutenção de itens básicos, como alimentação. Única responsável pela

organização de sua residência, esta senhora afirma gastar 28 horas por semana com atividades

como arrumar a casa, lavar e passar roupas e cozinhar. Atividades estas que repete na casa que

trabalha como empregada doméstica há 26 anos.

Aparecida, 44 anos, nasceu na cidade de Coração de Jesus, Minas Gerais, filha de pai

lavrador e de mãe dona-de-casa. Após a morte da mãe foi morar com uma madrinha e, tendo

em vista a desarmonia nesta relação, aceitou o convite da irmã e se mudou para Belo

Horizonte em 1984. Seu primeiro emprego se deu aos 12 anos, como empregada doméstica,

visto que sua madrinha não podia arcar com todas as suas necessidades, a entrevistada se viu

55

na precisão de trabalhar para manter seu próprio luxo. Sua escolaridade formal se estende até

a terceira série do ensino básico, o que é justificado pela impossibilidade de conciliar os

estudos com a necessidade de trabalhar. Aparecida declara-se racialmente como “negra clara

e não negra carvão” é solteira e possui uma filha, da qual é responsável por toda a

manutenção afetiva e financeira. Com esta filha de 12 anos divide algumas atividades

referentes à organização de sua própria residência, mas disse realizar sozinha a maioria das

tarefas, como cozinhar, lavar e passar roupa, com as quais gasta em média 22 horas por

semana. Sua residência é própria, mas vale ressaltar que se encontra em condições insalubres

devido, principalmente, a falta de ventilação. Em termos profissionais, Aparecida não

desenvolveu outra ocupação para alem do emprego doméstico, atualmente trabalha como

mensalista não residente e faz “bicos” como faxineira a fim de complementar sua renda

mensal, que gira em torno dos 680 reais, com os quais supri necessidades básicas como

alimentação e vestuário.

Patrícia, 41 anos, nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais, filha de pai motorista de

ônibus e mãe dona de casa. Em termos raciais se declara como negra, no que tange aos

processos educativos formais, concluiu o ensino médio. Começou a trabalhar aos 17 anos,

como empacotadora em uma loja de roupas, a fim de suprir necessidades de consumo

condicionadas pela juventude e, também, realizar o enxoval do seu casamento. Atualmente,

Patrícia na mora em uma casa construída no lote de seus pais e junto a ela residem seus dois

filhos, um jovem de 16 e uma adolescente de 10 anos. Responsabiliza-se sozinha pela

organização de sua casa, na realização de tarefas como cozinha, lavação de roupa e

arrumação, o que lhe demanda cerca de 20 horas semanais. Divorciada, Patrícia tem na

pensão alimentícia destinada a seus filhos um suporte para a manutenção financeira de sua

casa, contudo, a maior parte dos gastos e despesas relativos ao sustento de sua família é

56

efetuada a partir do salário mínimo de 510 reais que recebe enquanto empregada doméstica,

profissão a que se dedica há doze anos.

Bárbara, 37 anos, nasceu na cidade de Linhares, Espírito Santo e antes de se mudar

para a Região Metropolitana de Belo Horizonte a procura de melhores condições de trabalho,

morou, também, nas cidades de Eunápolis e Itabela, na Bahia. Em termos raciais, declara-se

como uma “parda que acha que é preta” e, no que tange ao grau de escolaridade, devido as

constantes migrações a que esteve submetida durante a infância e adolescência, cursou até a 5ª

serie do ensino fundamental. Começou trabalhar aos 14 anos, como empregada doméstica, no

intuito de suprir determinadas necessidades pessoais, principalmente àquelas ligadas a

estética, e com as quais seus pais não conseguiam arcar; para além do emprego doméstico,

nos tempos de adolescente também trabalhou na roça, o que denomina como: “trabalho muito

pesado”. De seu casamento, agora desfeito, nasceram cinco filhos, dos quais quatro ainda

residem com ela, soma-se aos mesmos um filho de criação pelo qual ela também se

responsabiliza. No que tange à organização do espaço em que reside, uma casa própria,

situada na cidade de Ibirité, Bárbara divide com as filhas as atividades de arrumar, lavar roupa

e cozinhar, sendo esta ultima sua prerrogativa, com estes afazeres gasta cerca de 20 horas

semanais. Atualmente, Bárbara se encontra amasiada com um homem que trabalha como

atendente de lanchonete, contudo, não recebe do mesmo e nem do ex-marido, pai de seus

filhos, ajuda financeira substantiva para sustento da casa e da família, fim principal do salário

de 850 reais que recebe como empregada doméstica.

Carla, 29 anos, nasceu e sempre morou em Belo Horizonte, Minas Gerais. Filha de

uma empregada doméstica, não lembra a profissão de seu pai. Afirma-se como negra e,

quanto à escolaridade formal, concluiu o ensino médio. Começou a trabalhar aos 17 anos,

como empregada doméstica, não porque passasse necessidade, mas a fim de conquistar algum

57

grau de independência financeira e ter seu próprio dinheiro. Atualmente, mora em uma casa

cedida por parentes e se encontra amasiada com um homem que trabalha como carregador de

supermercado, o casal possui uma filha de 05 anos. No que tange a organização de seu

espaço residencial, Carla se responsabiliza sozinha por todas as atividades como lavação de

roupa, cozinha e arrumação, destinando a isso cerca de 30 horas semanais. Somando-se o

salário de 510 reais de Carla e a renda de seu companheiro, a família vive com um total de

700 reais por mês, dinheiro esse totalmente voltado para a manutenção das despesas da casa.

Uma breve análise dos perfis apresentados permite a problematização de alguns

elementos básicos relacionados à: profissão dos pais das entrevistadas, nível educacional das

mesmas, formas encontradas por elas para se declararem racialmente, grau de

responsabilidade financeira no sustento de suas famílias e, por fim, envolvimento nos afazeres

domésticos de suas próprias casas. Em todos os casos, os pais das empregadas domésticas

entrevistadas não estão vinculados a profissões ou ocupações consideradas prestigiosas, dado

o retorno financeiro e simbólico das mesmas, o que possibilita afirmar a vigência de uma

reprodução familiar de desprestigio profissional visto que, como apontado nos capítulos

anteriores, o emprego doméstico também se reveste de pouca valoração e estigma social. Em

termos educacionais, os melhores desempenhos, no que tange ao numero de anos estudados,

se encontram entre aquelas que nasceram em Belo horizonte, quanto às oriundas do interior, o

grau máximo de escolarização não passa do ensino fundamental incompleto, paralisado nas

primeiras séries. Quanto à declaração racial, apenas duas, precisamente as belo-horizontinas,

se afirmaram como negras de forma direta e sem o recurso de eufemismos como: “morena”,

“parda que se acha preta” ou “negra, mas não negra carvão”, o que diz das dificuldades, já

mencionadas neste trabalho, de se auto declarar racialmente negra, quando o que se esconde

sobre essa disposição são históricas relações de subalternização. Em consonância com os

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dados demográficos que apontam para o crescente aumento dos lares chefiados por mulheres,

quatro das cinco mulheres entrevistadas são as principais responsáveis pela manutenção

financeira de suas casas e famílias, ou porque arcam sozinha com os gastos, ou porque

investem mais do que seus parceiros ou ex-parceiros. Por fim, importa ressaltar que todas as

mulheres ouvidas para essa monografia se ocupam com afazeres domésticos em suas próprias

residências, algumas dividem tais atividades com suas filhas, mas a maioria arca com as

mesmas sozinhas. Isso diz da vigência de uma dupla jornada de trabalho, na qual se verifica

uma similaridade e, nesse sentido, a repetição, entre as tarefas desempenhadas no espaço de

trabalho remunerado e as realizadas em suas próprias residências.

Percebe-se nesse sentido, que muitas das questões teorizadas nos dois primeiros

capítulos se mostram inteiramente consoantes com a realidade encontrada a partir da

realização das entrevistas, algumas destas questões são: as marcações da divisão sexual do

trabalho no âmbito de uma dupla jornada, a ocupação doméstica direcionada à mulheres com

pouco grau de instrução formal e, por fim, a dificuldade que cerca a auto declaração racial,

quando o que esta em jogo são os sujeitos negros.

A exceção de Aparecida, que também é diarista, todas as entrevistadas para essa

monografia atuam apenas como mensalistas não residentes e, à exceção de Luzia, todas

possuem carteira assinada. No que tange as atividades as quais estão atreladas em seus locais

de trabalho, encontra-se configurado o seguinte quadro: Patrícia cozinha, limpa a casa e as

vidraças e, por fim, lava e passa roupa; Carla, cozinha, limpa a casa e as vidraças, lava e passa

roupa, cuida da alimentação de algumas galinhas e da manutenção de uma horta; Bárbara

cozinha, limpa a casa e as vidraças, lava e passa roupa, regra horta e jardim e por fim, limpa

uma caixa de gordura; Aparecida, somando as atividades que desenvolve em seu emprego

principal e nas diárias que realiza, limpa a casa e as vidraças, lava e passa roupas e, por fim,

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lava um quintal; finalmente, Luzia cozinha, limpa a casa e, também, lava e passa roupas.

Uma consideração importante de ser feita e que diz respeito ao entendimento nebuloso

do espaço em que o emprego doméstico se desenvolve como sendo um “espaço formal de

trabalho” é o fato de todas as mulheres entrevistadas não considerarem os acidentes que

sofrem no espaço em que trabalham como “acidentes de trabalho”, naturalizando-os como

inerentes ao tipo de atividade que desenvolvem. Perguntadas se já haviam sido vitimas de

algum acidente de trabalho todas enfatizaram que não, porém, quando questionadas se já

haviam sofrido alguma queda, queimadura, corte ou mesmo, algum processo alérgico nas

casas em que trabalham, três das cinco entrevistadas disseram que sim. Interessa apontar que

as mesmas mulheres que reconheceram terem sofrido acidentes, os minimizaram,

argumentando se tratar de incidentes corriqueiros, bobos, normais e sem importância.

Entrevistadora: Você já sofreu algum acidente em seu local de trabalho? Bárbara: Não... que eu lembre não. Entrevistadora: Queimadura? Bárbara: Ah... isso ai é normal. Cortar o dedo cortando folha... isso ai é normal. Entrevistadora: Queimadura? Já sofreu alguma? Bárbara: Ah... eu já queimei no ferro. Entrevistadora: Queda... você já sofreu? Bárbara: Eu cai da escada um dia... nó fiquei com a bunda toda azul... cai escorregando uns quatro degraus. Entrevistadora: Você disse que sofreu corte né? Bárbara: Nó... cortar a mão eu corto direito... é só cortar couve. Teve um dia que eu cortei o dedo lá...que minha mão não queria parar de sair sangue mais não. Entrevistadora: Alguma outra? Bárbara: Queimadura em panela e forno. Isso é normal. Entrevistadora: E você recebeu algum tipo de auxilio? Bárbara: Não... não foram acidentes grandes... A queda foi uma queda normal... só desci arrastando a bunda no negócio... fui mancando trabalhar... mas consegui trabalhar normal. (Entrevista realizada em 12 de abril de 2010)

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Entrevistadora: Você já sofreu alguma queimadura no seu local de trabalho? Carla: Pequenas... mas já. Entrevistadora: Queda? Carla: Já Entrevistadora: Alergia a algum problema químico? Carla: Não Entrevistadora: Algum outro? Carla: Um cortezinho com faca... assim. (Entrevista realizada em 25 de maio de 2010) Entrevistadora: Você já sofreu algum acidente de trabalho, enquanto empregada doméstica? Patrícia: Não. Entrevistadora: Queimadura, você já sofreu? Patrícia: Foi queimadura boba... eu coloquei a tampa da panela.. depois eu fui e encostei a barriga... tenho até a marca. Coisa boba. Entrevistadora: Queda? Patrícia: No serviço? Entrevistadora: Sim. Patrícia: Ah já... dentro do banheiro Entrevistadora: E você se machucou? Patrícia: Machuquei... assim... doeu né... porque eu cai de bunda. Doeu... mas não é coisa grave assim... . Entrevistadora: Corte? Patrícia: Cortei picando o dedo, mas coisa boba. (Entrevista realizada em 17 de maio de 2010)

Como aponta Iriart et al (2008), os relatos acima citados dão conta de uma visão

fatalista, na qual as trabalhadoras se colocam como as principais responsáveis pelos acidentes

que ocorrem. Não há qualquer movimento que indique a possibilidade de se evitar alguns

acidentes a partir do uso de equipamentos adequados.

3.3. Concepções declaradas:

3.3.1 Satisfação com o próprio trabalho:

Quanto ao grau de satisfação em relação ao emprego doméstico, todas as entrevistadas

se encontram insatisfeitas ou resignadas com o trabalho que profissionalmente desenvolvem.

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Tal situação deriva, principalmente, do pouco reconhecimento e sub-valor social desse campo

profissional. Algumas são enfáticas em dizer que não se sentem realizadas no emprego

doméstico, outras dizem da obrigação de ter de gostar do mesmo, já que esta é a profissão à

qual se dedicou por toda uma vida. A partir de suas falas, pode-se dizer que a insatisfação ou

resignação constituem condições a serem obrigatoriamente experimentadas por alguém que se

vincule ao serviço doméstico remunerado. Em decorrência do complexo de significações

sociais que encobre esta profissão, ser empregada doméstica – ainda que essa seja uma das

mais previsíveis opções de emprego para mulheres com as condições das entrevistadas – não

é a condição profissional “dos sonhos” e representa posicionar-se em um lugar que já se sabe

depreciado.

Entrevistadora: Como você se sente sendo empregada doméstica? Bárbara: É um serviço muito chato que você não se sente bem. Você trabalha porque precisa, mas não é um serviço bom. Entrevistadora: Porque precisa? Bárbara: Porque precisa... empregada doméstica não ta com nada não. (Entrevista realizada em 12 de abril de 2010) Entrevistadora: Como você se sente sendo empregada doméstica. Patrícia: Ultimamente eu tenho sentido que tenho perdido meu tempo. To me sentindo muito mal. Acho que eu devia ter corrido atrás de outras coisas... mas fiquei paralisada... e o tempo ta passando e eu to ficando mais velha... ai vou ficando com menos oportunidade ainda de arrumar coisa melhor. Então... tem hora que eu fico me sentindo até frustrada. (Entrevista realizada em 17 de maio de 2010) Entrevistadora: Como é que a senhora se sente sendo empregada doméstica Luzia: Sinto bem. A gente tem que gostar do que faz né?!

Entrevistadora: Como assim gostar do que faz? Luizia: Porque o meu trabalho é esse... . O trabalho que a gente tem é esse... pra quem não tem ensino... como se diz... pra quem não tem leitura boa pra arrumar serviço bom... tem gostar do que faz... de ser doméstica. (Entrevista realizada em 13 de abril de 2010)

A fim de justificarem o descontentamento com o serviço doméstico remunerado, as

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entrevistadas apresentaram uma gama de argumentos, tais como: a incompatibilidade do

salário que recebem em relação à quantidade e exaustividade de atividades que desenvolvem;

a incapacidade de satisfazer minimamente algumas necessidades de consumo, tendo em vista

o salário recebido; a negação de direitos no plano jurídico e a discriminação pura e simples de

suas pessoas, pelo fato de serem empregadas domésticas.

Neste processo de explicitar os aspectos depreciativos que supõem inerentes ao

emprego doméstico, e em alguma medida, a si mesmas enquanto empregadas domésticas, as

entrevistadas apontaram, também, a baixa escolaridade ou a falta de interesse pelos estudos

como o principal motivo para o fato de desempenharem essa função especifica.

Entrevistadora: Porque que a senhora permaneceu no ramo do emprego doméstico? Esse foi o seu primeiro emprego e a senhora permaneceu nele até hoje. Por que? Aparecida: Porque eu tenho pouco estudo. Meu estudo é muito pouco pra mim ter um serviço melhor. Então por enquanto eu tenho que ficar nele mesmo. (Entrevista realizada em 16 de abril de 2010) Entrevistadora: quais os motivos de permanecer no emprego doméstico no atual momento da sua vida? Bárbara: Ah... isso não é escolha não.... é praticamente obrigado. Se eu pudesse não seria doméstica jamais... é falta mesmos de... não ter estudado... pra ter um emprego digno... porque pra mim doméstica não é digno. (Entrevista realizada em 12 de abril de 2010)

Se para algumas das entrevistadas, à época em que começaram a trabalhar, o emprego

doméstico representava a possibilidade de conquistar uma primeira independência financeira,

com o passar dos anos esse trabalho passa a ser o que se tem para fazer quando outras opções

são tentadas e negadas.

Entrevistadora: com quantos anos você começou a trabalhar? Carla: 17. Entrevistadora: Quais motivos te levaram a este primeiro trabalho? Carla: Eu queria ter meu dinheirinho né... .

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Entrevistadora: Mais algum motivo? Carla: Não... necessidade até que eu não tinha não, na época eu morava com a minha mãe... é porque eu queria meu dinheirinho mesmo. Entrevistadora: quais os motivos de permanecer neste trabalho no momento atual da sua vida? Carla: Nesse momento? Entrevistadora: Sim. Carla: Agora é necessidade... é porque eu preciso mesmo de trabalhar. Entrevistadora: E porque o emprego doméstico? Carla? Porque eu não consigo outra coisa. Entrevistadora: E você já tentou fazer outras coisas? Carla: Já. (Entrevista realizada em 25 de maio de 2010)

Não apenas no caso de Carla, mas também no de Patrícia e Aparecida percebe-se que

diversas tentativas de se firmar no mercado de trabalho em outra profissão não lograram

êxito, o que, diante das responsabilidades financeiras, termina por informar uma permanência

destas mulheres no emprego doméstico.

3.3.2 A questão do salário e do consumo:

Perguntadas sobre o retorno salarial que obtém ao final de um mês de trabalho, todas

as mulheres ouvidas foram enfáticas em dizer que se trata de uma relação desproporcional, na

qual muito esforço, principalmente físico, se transforma em pouco retorno financeiro. Nesse

sentido, as falas deixam transparecer, muitas vezes, a indignação com o fato de ser tão mal

remunerado um trabalho que exige a realização de atividades diversas, movimentação

constante, agilidade e, principalmente, responsabilidade, por se tratar de uma lida direta com

bens de ordem pessoal.

Entrevistadora: Quanto ao salário que a senhora recebe, a senhora acha que é um valor justo em relação a quantidade que a senhora trabalha Aparecida: As vezes é pouco... a gente trabalha muito. (Entrevista realizada em 16 de abril de 2010)

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Entrevistadora: Em relação ao salário que você recebe, você acha que é um salário justo, em relação ao trabalho que você desempenha? Bárbara: Eu acho... na minha concepção... que eu deveria ganhar mais porque eu trabalho demais [...] a casa onde eu trabalho é muito grande. Eu trabalho muito. (Entrevista realizada em 12 de abril de 2010) Entrevistadora: Em relação ao salário que você recebe, você acha que é um valor justo em relação a quantidade de serviço que você desempenha? Carla: Ah não é não. É muito trabalho e pouco dinheiro. É um trabalho que eu acho pesado né... muito cansativo. (Entrevista realizada em 25 de maio de 2010)

Contudo, a partir das entrevistas, pode-se perceber que a insatisfação em relação ao

salário recebido não se manifesta apenas em decorrência do descompasso entre o valor deste e

a quantidade e o peso das tarefas realizadas, mas encontra ecos, também, na impossibilidade

de manutenção de um padrão de consumo que denote uma condição mediana de conforto para

si e para os seus entes. Questionadas sobre o alcance de sua remuneração nenhuma das

empregadas domésticas ouvidas se disse satisfeita com o salário que recebe, e um dos motivos

para isso é o fato de não poderem adquirir tudo aquilo que gostariam ou mesmo

necessitariam.

Entrevistadora: Em relação ao salário que você recebe, ao final do me você se encontra satisfeita? Bárbara: ah... mais ou menos satisfeita. Porque a gente luta, trabalha o mês inteiro e no final do mês você paga uma conta, paga outra e não sobra praticamente nada pra você. Entrevistadora: Você consegue comprar o que quer ou o que precisa com o salário que recebe? Bárbara: Ah não consigo não... não consigo, sempre falta alguma coisa, ainda mais depois que eu fiquei sozinha, praticamente sozinha, ta mais difícil ainda. Minhas filhas pedem um tênis e eu não posso dar... pedem outra coisa e eu não posso dar. (Entrevista realizada em 12 de abril de 2010)

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Entrevistadora: Você consegue comprar o que quer ou precisa com o salário que você recebe? Patrícia: Não. Entrevistadora: Por quê? Patrícia: É muito pouco. Por exemplo, igual a despesa aqui em casa é grande... então assim... ai não sobra quase nada pra lazer, por exemplo. Não sobra nada pra lazer. Arrumar a casa... no caso d a construção aqui. Lazer nem é tão importante, mas faz parte. (Entrevista realizada em 17 de maio de 2010) Entrevista: A senhora consegue comprar tudo que a senhora quer ou que a senhora precisa com o salário que a senhora recebe? Luzia: Assim... de pronto não. Se a gente quiser comprar tem que comprar à prestação né?! Porque mesmo se a gente interessar em comprar alguma coisa... com o que tem não dá. (Entrevista realizada em 13 de abril de 2010)

Importa ressaltar que mesmo descontentes com seus salários, duas entrevistadas

utilizam a perspectiva da comparação para responderem sobre suas perspectivas de satisfação

em relação a seus honorários. Nesse sentido, vigora a concepção de que mesmo o pouco é

bom, quando se tem em perspectiva a possibilidade do nada.

Entrevistadora: Em relação ao que a senhora recebe, quando chega ao final do mês a senhora está satisfeita com o que recebeu? Luzia: Ah... mais ou menos né?! Entrevistadora: Por que? Luzia: Porque 400 reais pra ser salário até que é pouco né?! Mas a gente fica satisfeita assim mesmo, mesmo que ganha pouco já ta tenho aquele todo mês. (Entrevista realizada em 13 de abril de 2010)

Entrevistadora: Em relação ao salário que recebe ao final do mês, a senhora está satisfeita? Aparecida: Eu sou aquela pessoa assim... que concorda... concorda com o pouquinho de tudo e agradeço a Deus por eu ter serviço para manter os estudos da minha filha e comer, arrumar minha casa, pagar uma conta de telefone... então... a gente fica assim... ta bom... até ter uma coisa melhor. (Entrevista realizada em 16 de abril de 2010)

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Ao dizerem da possibilidade real de, na ausência do emprego doméstico, se

experimentar um contexto de extremas privações, as colocações de Luzia e Aparecida se

mostram substanciais e colaboram para situar o lugar das empregadas domésticas

entrevistadas na relação entre trabalho e consumo.

3.3.3. O campo dos direitos:

Para além das questões relativas ao universo da compensação financeira, o campo dos

direitos constitui outro ponto importante para a compreensão de algumas das percepções que

as empregadas domésticas entrevistadas constroem em relação à profissão que desempenham

e, em um movimento extensivo, percepções que elaboram em torno de si mesmas. Neste

sentido, durante as entrevistas emergiram falas angustiadas com o fato de o emprego

doméstico não possuir todos os direitos que os demais campos formais de ocupação possuem.

De fato, essa foi uma das principais questões problematizadas e muitos discursos explicitaram

uma espécie de dor, ou mesmo, não conformação quando tocaram na mesma.

Entrevistadora: Qual é a sua opinião sobre o emprego doméstico. Patrícia: Ah... assim... não tem valor nenhum, sabe assim?! É muito desvalorizado sabe?! Igual... no caso da empregada... no meu caso... ela [a patroa] tem uma loja... ai quando vai sair meu pagamento, todo mês eu tenho que pedir meu salário... ai ela “ai Patrícia, eu tenho que pagar as meninas aqui [ vendedoras da loja] e ai eu vou tirar seu dinheiro”. Poxa, eu não tenho nada com isso, entendeu?! Então assim... igual... eu conversei com ela... é... falei com ela: “to ganhando pouco, eu não quero que você aumente o meu salário, quero que você pague o meu fundo de garantia... são o que?.. 40 reais por mês” e ela não pagou. (Entrevista realizada em 17 de maio de 2010)

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Entrevistadora: Qual é a sua opinião sobre o emprego doméstico? Carla: No que eu to eu gosto muito, mas seu eu pudesse eu não trabalharia mais não... faria uma outra coisa. Entrevistadora: Por que? Carla: Ah... eu acho que é cansativo e pouco valorizado... não tem direitos... mais deveres do que direitos. (Entrevista realizada em 25 de maio de 2010)

Bárbara: Tem muita amiga minha saindo fora do emprego doméstico por causa dos direitos [...]. Empregada doméstica... se você sai do serviço hoje... você tem que ta com outro emprego na mão, porque senão você passa necessidade. Você não tem um seguro desemprego pra poder se apoiar durante uns três, quatro meses. É difícil você vê uma empregada doméstica satisfeita com o emprego doméstico... a maioria trabalha porque precisa. É um trabalho muito explorador. Só de você estar trabalhando e saber que você não tem todos os direitos que todo mundo tem... você se sente um pouco é... como é que se fala... rejeitada. Se for pra não ter todos os direitos, prefiro que a profissão de empregada doméstica acabasse. Parece que nós fomos esquecidas. (Entrevista realizada em 12 de abril de 2010)

Como visto, repercute em extrema indignação por parte de algumas entrevistadas o

fato de a profissão em que estão inseridas – uma das poucas opções que lhes restaram, um

trabalho que representa possibilidades, ainda que mínimas, de manutenção financeira e

desenvolvido a partir de muito esforço – ser formalmente declarado como algo “diferente dos

outros tipos de trabalho”. A não paridade no plano jurídico significa, em suas compreensões,

a expressão formal de que o emprego doméstico se trata de uma “coisa menor”, e que

“menor”, também, são aquelas que a ele estão atreladas.

3.3.4 Cenas de discriminação e desrespeito:

Neste movimento de caracterizar dimensões do emprego doméstico importantes para a

construção da identidade de empregadas domésticas, resta pontuar, ainda, alguns cenários de

desrespeito, discriminação e agressão direta sofrida pelas entrevistadas pelo simples fato de

serem trabalhadoras do serviço doméstico remunerado. Assim sendo, apresentar-se-á a

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vivencia de cinco situações discriminatórias, no campo dos direitos, das representações

raciais, das relações de tratamento e, por fim, no campo da representação do “ser gente”.

Importa ressaltar que mesmo tendo sido vivenciadas de forma particular, as situações que

envolveram cada uma das entrevistadas referenciam-se em manifestações do imaginário

popular sobre o emprego doméstico e sobre as pessoas que a ele se dedicam. Vale frisar que a

pertença social dos agentes discriminadores indica a vigência do preconceito na mente de

“ricos” e “pobres”.

A primeira estória narrada diz respeito a uma experiência presenciada por Carla, em

que esta diz que uma “conhecida”, após ser demitida e reclamar os direitos devidos, recebeu

como resposta de seus patrões a afirmativa de que não tinha direito a nada. Suspeita-se que

essa conhecida seja a própria Carla, porque quando esta foi questionada se conhecia os

direitos trabalhistas das empregadas domésticas, respondeu que havia procurado o Ministério

do Trabalho para se inteirar dos mesmos, após algumas querelas com antigos patrões que a

demitiram sem arcar com os devidos deveres da demissão.

Entrevistadora: Você já sofreu ou presenciou alguém sofrer algum tipo de discriminação devido à profissão de empregada doméstica? Carla: Já. Ah... mandaram embora e não pagaram. Entrevistadora: Por quê? Carla: Porque como diziam, não tinha direito a receber nada. Entrevistadora: Você conhece os direitos das trabalhadoras domésticas? Carla: Não. Entrevistadora: Já procurou conhecer? Carla: Já. Entrevistadora: Quando você procurou conhecê-los? Carla: Quando me dispensaram da última casa e eu fui no Ministério do Trabalho. (Entrevista realizada em 25 de maio de 2010)

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O segundo caso a ser descrito foi vivenciado por Bárbara, quando esta respondeu de

forma negativa ao pedido de um homem que mendigava a porta da casa onde ela trabalha.

Diante do não da empregada, este senhor se voltou para ela e, num movimento de

discriminação profissional e racial, disse que a mesma iria morrer empregada simplesmente

por que era preta.

Entrevistadora: Você já sofreu ou presenciou alguém sofrer algum tipo de discriminação devido a profissão de empregada doméstica? Bárbara: Eu acho assim... tem muita gente que não deixa o outro trabalhar por causa da cor... ah... sei lá. Eu mesmo... um homem chegou lá pedindo um negocio lá... ai eu falei assim: “não posso dar não”, ele falou assim...”só podia ser preta, mesmo... tem que morrer empregada mesmo... preta”. Ohh!!! Eu fiquei chateada demais com aquilo... é tanta coisa que agente houve em casa de família. Isso pra mim é uma discriminação com as empregadas... agente não pode ficar dando as coisa no trabalho da gente. (Entrevista realizada em 12 de abril de 2010)

O terceiro episódio a ser apresentado diz de uma experiência vivenciada por

Aparecida, que foi repreendida de forma áspera e em alto tom de voz por um patrão. O

paradoxo dessa situação é o fato de Aparecida dizer que aprendeu a gostar de si depois desse

incidente em que afirma ter sido humilhada. Importa ressaltar que a filha deste mesmo patrão

também se relacionava com Aparecida de modo discriminatório, deixando transparecer que a

empregada era uma pessoa que simplesmente não existia ou com que não se deveria manter

contato.

Entrevistadora: A senhora gostaria de dizer algo mais sobre o emprego doméstico. Aparecida: A minha profissão até hoje... eu não senti mal com ela não... senti mal uma vez que uma pessoa me tirou no meio da rua... ai eu senti chateada. Na época eu tava cuidando da minha saúde, fazendo uns exames, ai um dia ele falou: “ assim não dá”, e gritou no meio da rua: “vou te dar férias prolongadas pra você cuidar da sua saúde”, eu falei “ tudo bem, se você não está satisfeito, tudo bem”, ai ele pegou e me mandou embora. Depois desse dia eu aprendi assim... a me defender... eu aprendi a gostar de mim... esse momento eu aprendi com ele... ele me tirou no meio da rua, achando que eu era assim... uma qualquer. Ele queria o meu serviço e a saúde era zero né?! Depois que eu sai de lá eu aprendi a gostar mais de mim do que

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eu imaginava. Ai um dia ele falou comigo:“agora você pode voltar” ai eu falei “ta”. Não maltratei ele não, tratei ele como gente, com respeito, falei assim “ Deus, se for da sua vontade eu volto pra lá, mas se não for... eu não quero não”. (Entrevista realizada em 16 de abril de 2010) Aparecida: Tem rico que te trata olhando assim... não pode chegar perto de você... eu já reparei... já senti isso. As vezes eu tava próxima a pessoa e quando eu virava as costas ela deixava um bilhete... como se eu não existisse... mesmo me vendo o tempo todo, como você [ a entrevistadora] está me vendo aqui. (Entrevista realizada em 16 de abril de 2010)

Ainda na esfera das relações de tratamento, será relatado um caso vivenciado por

Patrícia, quando a mesma teve sua verdadeira profissão negada por uma conhecida, diante de

uma roda de bar em que os presentes diziam de suas inserções no mercado de trabalho.

Patrícia: Tem muita gente que tem preconceito com esse negocio de empregada doméstica... da profissão. Ai teve um dia que a amiga da minha irmã... nós saímos e ela disse “ não fala que você é empregada doméstica não”. Ai eu não gostei. Ai eu falei “poxa vida... eu devia ta fazendo outra coisa”. Mas só que eu pensei também: “ se existe a empregada doméstica... é porque tem que ter a empregada doméstica... e essa empregada sou eu.

Entrevistadora: Como é que foi essa situação? Patrícia: Nós estávamos num barzinho... eu, ela e mais duas amigas minhas... e nós conhecemos uns rapazes. E eu sou muito falante né... e ai os caras conversando e falando “nó, você é uma simpatia”, mas não interessou pra ficar. Mas ela interessou... e ela falou que ela era... que ela tava encostada... mas que trabalha no tribunal... e mentiu... depois nós descobrimos que tudo era mentira. Ai ela falou “ Patrícia, não fala que você é empregada não... fala que você trabalha como costureira lá na loja [ a loja pertence a patroa de Patrícia]. Na hora que o cara perguntou ela virou e falou “ela trabalha em uma loja”. Ai eu falei: “é”... mas eu não gostei dessa situação. Eu senti mal... senti péssima... que eu não podia falar que eu era empregada... por que é uma profissão muito inferior né... então não vale a pena falar... então eu senti péssima. (Entrevista realizada em 09 outubro de 2009)

A última situação discriminatória a ser descrita também se refere a uma vivencia de

Patrícia que, ao ajudar uma moradora de sua rua que passava por extremas necessidades

financeiras, sentiu-se indignada quando esta mesma senhora afirmou que, mesmo

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necessitando, jamais trabalharia como empregada doméstica, por que esta não seria uma

“profissão de gente”. Implicitamente, a mulher necessitada pontuou ser indigna a origem ou

mecanismo de ganho do dinheiro que a ajudara.

Entrevistadora: Pra você o que o trabalho doméstico significou ou significa? Patrícia: Olha, eu aprendi a dar valor aquilo ta me beneficiando... pra muita gente é um serviço assim... assim... assado. Igual, teve certas pessoas aqui na rua que eu já cheguei a ajudar, que tava passando necessidade... passou um tempo ela falou que empregada doméstica e pedreiro... que isso não era serviço de gente. Oh, mas eu fiquei com tanta raiva... falei “nunca mais eu ajudo essa pessoa” Sabe... eu acho que não é por ai... igual eu to te falando... eu não reclamo... eu aceito... se eu to lá até hoje porque tinha que ser... eu já tentei concurso... tentei UFMG... também querendo demais. (Entrevista realizada em 09 outubro de 2009)

As cenas de discriminação acima relatadas dizem de uma realidade concreta já anunciada por

diversos estudiosos do emprego doméstico. Como aponta Brittes (2007) a vigência do

emprego doméstico remunerado torna nítida a perpetuação de um sistema estratificado de

gênero, classe e cor que se manifesta na baixa remuneração do emprego doméstico, na

estrutura das relações hierarquizadas que se desenvolve entre patrões/patroas e empregadas e,

por fim, no imaginário social que atrela o emprego doméstico a um lugar de pouca valoração.

Como já apontado nesta monografia, o emprego doméstico se reveste de uma gama de

estigmas que se explicitam não só no ambiente de trabalho, mas no âmbito das relações

sociais cotidianas. Percebe-se que por mecanismos diversos – o grito, a indiferença e a

negação de direitos legítimos por parte dos patrões, ou mesmo, o pedido de uma amiga para

que se minta sobre a própria profissão – são afirmadas as relações de subalternização,

implícitas e explicitas, nas quais muitas mulheres se encontram potencialmente imersas,

apenas por serem empregadas domésticas.

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3.3.5. Positividades:

Apesar do descrito acima, não é apenas de dor que a vivencia no trabalho doméstico se

faz. Para três das entrevistadas, essa profissão, ainda que extremamente estigmatizada,

representou a conquistas de bens diversos, na ordem do material e do simbólico. Para Luzia a

possibilidade de se inserir em outros espaços, para além de seu âmbito privado; para Patrícia,

um esforço efetivo para se libertar de uma relação de gênero marcada pelas restrições

impostas pelo marido; e, para Bárbara, a comprar de uma casa, mesmo que com muito

sacrifício.

Entrevistadora: Quais foram os motivos que levaram a senhora a trabalhar como empregada doméstica? Luzia: Eu não agüento ficar assim... parada em casa. Eu peguei... e quis trabalhar. Como a leitura não dava pra arrumar emprego bom... tem que ser de doméstica mesmo. (Entrevista realizada em 13 de abril de 2010) Entrevistadora: Como era sua relação com seu ex-marido, no que diz respeito a sua independência? Patrícia: Ah... ele mandava um pouco em mim... a única coisa que eu não respeitei ele foi ir trabalhar nessa casa [ atual local de trabalho]. Uma vez eu fui mexer com marmitex aqui... ele detestou... falou que não queria de jeito nenhum... ele fez tudo, tudo, tudo pra eu não ir pra frente... eu podia ta bem hoje em dia. Ele tinha moto... ai ele vendeu a moto e comprou um carro... entregar marmitex de carro?! Não tem jeito... fica caro demais. Ele não queria me ver crescer... desde quando agente casou. Ele arrumou emprego pra irmã dele na empresa de ônibus [onde seu ex-marido trabalha]... a irmã dele não tinha experiência nem nada de escritório e essas coisas... ele arrumou pra ela... ele podia ter arrumado pra mim. Eu não podia opinar... tinha que ser do jeito dele. Entrevistadora: Qual foi a reação dele quando você falou que ia começar a trabalhar como empregada doméstica? Patrícia: Não queria... mas eu fui! Ele falou: “ah você não vai trabalhar”. Falei “vou... porque uma vez... você me travou e você não vai me travar mais”. Teve uma vez...nisso também ele me frustrou muito... eu consegui um serviço no Madre Tereza [hospital]... cheguei no Madre Tereza cinco e meia da manhã... Entrevistadora: Serviço de que? Patrícia: De copeira. Se eu tivesse lá eu tenho certeza que eu teria estudado... feito um curso... talvez eu poderia ser uma recepcionista... melhorar... ou talvez até fazer um curso de enfermagem... sei lá... de alguma coisa. Aquele hospital é muito difícil de entrar. Eu lembro que eu sai de casa cinco horas da manhã... cheguei lá... eu e uma amiga... fizemos a ficha.. sem dinheiro... numa fome... duas horas da tarde...

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fizemos uma entrevista. Ai recebi um telefonema do hospital... fui lá... conversei com a madre e ela falou... você vai começar a trabalhar aqui como copeira. Menina eu fiquei tão feliz... e o salário era bom.... UNIMED. Você acha que ele deixou?Nessa época agente tava separado... uma separação boba... ele falou... se você for... agente não volta. E eu querendo voltar o casamento né... ai eu não fui. (Entrevista realizada em 09 outubro de 2009) Entrevistadora: Há alguma outra questão ou aspecto sobre o emprego doméstico que eu não tenha perguntado e sobre o qual você gostaria de falar: Bárbara: Trabalhar me ajudou muito sabe?! Esse emprego que eu to me ajudou demais... se não fosse esse emprego que eu to hoje eu não teria minha casa. Me orgulho disso ai... foi com muito esforço e trabalho que eu consegui comprar a minha casa com esse emprego que eu to hoje. (Entrevista realizada em 12 de abril de 2010)

Os estratos acima apresentados dizem situações concretas nas quais o emprego

doméstico significou mais do que uma posição no mercado de trabalho, mas a possibilidade

palpável de se viabilizar uma gama de demandas, cuja satisfação representa melhorias

materiais, como a compra de uma casa, e, sobretudo, simbólicas, no que se refere ao

estabelecimento de laços de responsabilidade e autonomia externos ao próprio espaço

doméstico. Analisar tais significações positivas nos conduz ao seguinte questionamento: quão

nefasta deve ser a experiência de sentir discriminado ou visto como desvalorizado o motivo

ou motor para outras conquistas importantes?

3.4. Breve Consideração:

Pelo que pode ser percebido, o pertencimento profissional é influenciado por várias

outras instâncias de localização social e reverbera significativamente nas mesmas. Para além

disso, diz de respostas sociais, satisfatórias ou não, que são sentidas pelos indivíduos no que

tange às diversas expectativas por eles/elas construídas.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS:

Para estudar os contornos configurados pelas possíveis relações estabelecidas entre

aspectos identitários e emprego doméstico, percorreu-se nesta monografia um caminho

pautado, a principio, na apresentação de indicadores e representações sociais referentes ao

serviço doméstico remunerado no cenário brasileiro, o que apontou para a importância das

dimensões de gênero, raça e classe. A fim de se criar uma linha de argumentos, os

marcadores de gênero e raça foram novamente discutidos, agora em suas conexões com o

conceito de identidade. Por fim, buscou-se analisar as formas e conteúdos com os quais os

contextos socio-históricos delineados em torno do gênero, da raça e da classe se explicitaram

nas manifestações discursivas de mulheres negras, pobres e empregadas domésticas, no que

tange a realidade experimentada pelas mesmas em decorrência do trabalho que desenvolvem.

Tendo em vista o processo de construção heterogêneo e de múltiplos referenciais em

que a constituição da identidade dos sujeitos encontra-se imersa, afirma-se, neste trabalho,

que o emprego doméstico representa uma instância significativa a partir da qual as

entrevistadas analisam reflexivamente a si mesmas. Ao dizer positividades e, principalmente,

das negatividades do serviço que desempenham, estas mulheres disseram, também, dos

lugares em que se encontram no mundo das relações de trabalho e de consumo, de como se

localizam frente a marcadores sociais importantes, tais como o universo da educação formal e,

também, da relação entre suas pertenças raciais e a ocupação a que estão atreladas.

Determinadas características – o pouco retorno financeiro, o reduzido poder de consumo a

partir desse retorno insatisfatório, a ausência de paridade no plano jurídico, no que tange às

outras categorias profissionais e a sub-valoração simbólica implícita nos discursos

discriminatórios cotidianos a cerca do serviço doméstico remunerado – estiveram marcadas

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nas falas das entrevistadas e, se como a teoria nos apresenta, o mundo do trabalho é de

extrema importância para a constituição de aspectos identitários, o que pode ser vislumbrado

nesta monografia é a imagem de mulheres que estão conscientes da desproporcionalidade

entre o muito que trabalham e o pouco que são valorizadas, algumas vezes como

trabalhadoras, e em outras vezes até como “gente”.

As falas das entrevistadas confirmaram a expectativa com a qual se foi para o campo

de pesquisa, ou seja, em sua maioria, as declarações apontaram principalmente para os

elementos negativos de se estar inserida no emprego doméstico. E, ainda que isso fosse

esperado, considera-se importante a possibilidade de registrar percepções e sentimentos

relativos ao desempenho de um exercício laboral socialmente estigmatizado, tendo em vista a

construção de conhecimentos sobre a densidade com a qual esta ocupação profissional

interfere na vida de quem a ela se dedica. Neste sentido, pode-se compreender como, no

universo de cinco mulheres, indicadores e representações sociais ganham sentidos

performáticos.

Contudo, tal reflexão não constitui o único objetivo deste trabalho monográfico.

Outrora, Pierre Bourdieu afirmou que a sociologia talvez não merecesse uma hora de esforço

se tivesse por finalidade apenas descobrir os cordões que movem os indivíduos que ela

observa. Aqui se partilha desta perspectiva, pouco adiantaria este trabalho se ele não

compreendesse um esforço para o reconhecimento de fatores que, devidamente discutidos e

elaborados no plano político, possam contribuir para melhorias sociais na vida das mulheres

que hoje se dedicam e daquelas que no futuro se dedicarão ao serviço doméstico remunerado.

Neste sentido, aponta-se para a dimensão dos direitos, para necessidade de se compreender as

reais explicações do porque, por exemplo, de as empregadas não possuírem seguridade no que

tange a limitação de sua jornada de trabalho ou contra acidentes que por ventura possam

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ocorrer no espaço aonde laboram. Como, em defesa de uma sociedade efetivamente

democrática, transformar esse cenário? Quais as influências que mudanças políticas podem

exercer no plano das representações sociais? A via dos direitos referentes ao emprego

doméstico corresponde a um dos caminhos a serem percorridos, entretanto há outros, mais

profundos, que dizem respeito a transformações efetivas nas relações de gênero, classe e raça,

atualmente vigentes na sociedade brasileira.

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