Upload
pucsp
View
2
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
SILAS GUERRIERO
CONSTRUINDO O PASSADO E REVISITANDO O FUTURO UM ESTUDO SOBRE OS JOGOS DIVINATÓRIOS
DA FEIRA MÍSTICA DE SÃO PAULO
DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
PUC-SP 2000
SILAS GUERRIERO
CONSTRUINDO O PASSADO E REVISITANDO O FUTURO UM ESTUDO SOBRE OS JOGOS DIVINATÓRIOS
DA FEIRA MÍSTICA DE SÃO PAULO
Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontif íc ia Universidade Catól ica de São Paulo, como ex igência parcial para a obtenção do tí tulo de Doutor em Ciências Sociais, sob or ientação da Profª. Drª. Josi ldeth Gomes Consorte.
PUC-SP 2000
Banca Examinadora ____________________________
____________________________
____________________________
____________________________
____________________________
AGRADECIMENTOS
À Profª. Drª. Josi ldeth Gomes Consorte, que me fez
antropólogo com gosto pelas coisas do sagrado, pela r ica
or ientação e por ter apoiado este projeto desde o iníc io.
Ao colega e amigo Edin Abumanssur, pelas r icas
conversas sobre o nada e sobre o tudo, cúmplice de
caminhada.
A João Décio Passos, companheiro de projetos, que por
seu dinamismo nunca os deixa morrer. Leitor cr í t ico da fase
inic ial , apoiou nos momentos em que tudo parecia desandar.
A Branca Jurema Ponce, que leu os or ig inais por gosto,
pelas sugestões sempre generosas.
A todos os colegas do Departamento de Teologia e
Ciências da Rel ig ião da PUC-SP, por comparti lharem trabalho,
amizade e teor ias.
Aos professores Ênio Br ito, Eduardo Cruz, Edênio Val le,
José J. Queiroz e Frank Usarski, do Programa de Estudos Pós -
Graduados em Ciências da Rel ig ião, que de maneira direta ou
não, contr ibuí ram nessa trajetór ia.
A José Far ias dos Santos, amigo de torcida, que
acompanhou os passos dessa emprei tada.
Ao Prof. Dr. Edgard de Assis Carvalho, pelas sugestões
posit ivas durante os Seminár ios de Pesquisa e no exame de
qual i f icação.
À Profª. Drª. Carmen Junqueira, pela r iqueza das aulas
sobre mitos.
Ao Prof. Dr. José Gui lherme Magnani, pelo apoio no
estudo deste tema.
A Fabiola Freire S. Melo e Simone T. de Sousa, por
dividirem alguns momentos árduos e outros agradáveis do
trabalho de campo.
A Iara, que misturou sua vida com a minha, pelas dicas
sempre pertinentes .
A Ian, Pablo e Ar thur, por entenderem que o
distanciamento do pai não era sinal de falta de amor.
A Cíntia Stammers, minha irmã do pr imeiro mundo, por
estar sempre disposta a ajudar.
Ao Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão da PUC-SP,
que através do aux í l io do FAP possibi l i tou o afastamento
parcial de minhas ativ idades docentes.
E, f inalmente, desejo expressar os mais sinceros
agradecimentos a todos os partic ipantes da Fei ra Mística,
adivinhos e consulentes, que ajudaram nessa pesquisa,
pr incipalmente seus coordenadores, Thelma Valentino e
Matheus Diego.
RESUMO
O presente trabalho pretende anal isar o universo das práticas divinatór ias da Feira Mística de São Paulo. Esta é um empreendimento específ ico da capi tal paul is tana que oferece somente consul tas d ivinatór ias.
Os jogos divinatór ios permitem a l igação cósmica com o divino, a percepção e consciência do destino e a or ientação para comportamentos do dia a dia. A cada momento essas artes divinatór ias guardam relações estrei tas com as formas de conhecimento existentes, com as rel ig iões e outros si s temas de crenças e com a sociedade mais ampla. A pesquisa anal isou as caracter ís ticas sociais que permitem a exis tência da Feira Mística, atr ibuindo-lhe um signif icado específ ico . Também procurou examinar como os indiv íduos que fazem uso dos oráculos da Feira incorporam as falas dos adivinhos em seus cotid ianos, inf luenciando o presente e o futuro .
Uti l izo para a anál ise os concei tos de construção social da real idade desenvolvido por Berger e Luckmann, de real idade inventada e profecias que se autocumprem, de Watzlawick, e as noções de mente, natureza e percepção da real idade propostas por Bateson. Os conceitos de ordem, desordem e ordenação são uti l izados sob a ótica de Pr igogine e Balandier.
Os consulentes, a partir da fala do adivinho, inventam uma real idade. Aqui lo que mui tas vezes se encontra oculto, mas existente enquanto possibi l idade, passa a ser visto como uma certeza concreta e palpável. O passado do indivíduo é construído , na medida em que é dotado de novas signif icações. Ao mesmo tempo o futuro é rev isitado , pois imaginado e elaborado repetidamente pelas leituras oraculares, acaba inf luindo no própr io presente.
ABSTRACT
The thesis that fol lows aims at analysing the var iety of divinatory practices as seen at the Mystic Fair in São Paulo, Brazi l . The fair i s a specif ic service in the city of São Paulo, offer ing only divinatory consultations.
These divinatory games al low cl ients a cosmic l ink with the divine, as wel l as the perception and consciousness of fate and guidance on day to day l i fe. At al l t imes, th ese divinatory arts maintain a close association with existing forms and knowledge, with dif ferent systems of faith and rel ig ion, and with society as a whole. This research examines the social character is tics which al low for the existence of the Mystic Fai r and which give i t a specif ic meaning. It also analyses how cl ients who make use the fair ’s oracles incorporate what is said to them by diviners in their dai ly l i fe, which in turn inf luences their present and future.
In the analysis I use the concepts of social construction of real i ty developed by Berger and Luckmann, the ideas of invented real i ty and self -accomplishing prophecies of Watzlawick’s, and notions of mind, nature and perception of real i ty proposed by Bateson. The concepts of order, disorder and ordination are seen here through Pr igogine’s and Balandier ’s view.
Cl ients invent a real i ty from what the diviner has said to them. What is often hidden, although existing as a possibi l i ty, becomes a concrete and palpable certainty. The person’s past is thus bui l t , as i t is given new meanings. At the same time, the future is revisited because, as i t is repeatedly imagined and elaborated on by oracular read ings, i t starts to inf luence the present.
SUMÁRIO INTRODUÇÃO .. . . . .. . . .. . . .. . . .. . . . .. . . .. . . .. .. . . . . .. . . .. . . .. . . . .. . . .. . . .. 1
CAPÍTULO I - UM RETRATO DA FEIRA M ÍSTICA . .. . . .. . . .. . . . .. . . .. . 13
1. ORIGENS . . . . .. . . .. . . .. . . .. . . .. . . . .. . . .. .. . . . . .. . . .. . . .. . . . .. . . . 14 2. ESTRUTURA . . . .. . . . .. . . .. . . .. . . .. . . . .. . . .. . . . . .. . . .. . . .. . . . .. . . . 21 3. PERSONAGENS .. . . .. . . .. . . . .. . . .. . . .. . . ... . . . . .. . . .. . . .. . . . .. . . . 30 4. ORÁCULOS NA MODERNIDADE .. . . .. . . ... . . . . .. . . .. . . .. . . . .. . . . 54
CAPÍTULO II - A CRENÇA NOS JOGOS D IVINATÓRIOS . . . . .. . . .. . . .. 64
1. O S ISTEMA DE CRENÇAS DA FEIRA M ÍSTICA .. . . .. . . . .. . . . . . 69 2. A CRENÇA NA DESCRENÇA: UM JEITO DE VER O MUNDO .. . . 89 3. O PAPEL ORDENADOR DOS M ITOS . . .. .. . . . . .. . . .. . . .. . . . .. . . 102
CAPÍTULO III - TERRITÓRIO DE ORÁCULOS . . . . . . .. . . .. . . .. . . . .. . . .. . 108
1. A M ÍSTICA DO ORÁCULO . .. . . . .. . . .. . . .. . . . . .. . . .. . . .. . . . .. . . . 109 2. DESTINO E AUTONOMIA: UM JOGO DO ACASO . . . . .. . . .. . . .. . 120 3. DO CAOS À ORGANIZAÇÃO . . .. . . .. . . .. . .. . . . . .. . . .. . . .. . . . .. . . . 143
CAPÍTULO IV - A CONSULTA ORACULAR: UM SISTEMA ABERTO A ( IN/E)STABILIDADES . . . .. . . .. . . .. . . .. . . . .. .. . . . . .. . . .. . 168
1. PRIMEIRO CASO : O TARÔ E A RECONSTRUÇÃO DE UMA VIDA FAMILIAR . .. . . .. . . . .. . . .. . . .. . . .. . . . .. .. . . . . .. . . .. . 171
2. SEGUNDO CASO : A BUSCA RACIONAL DA ENERGIA ÚNICA . . . . 183
CONCLUSÃO - . . .. . . .. . . .. . . .. . . . .. . . .. . . .. . . .. . . . . .. . . .. . . .. . . . .. . . .. . . .. . 197
B IBLIOGRAFIA - . . .. . . .. . . . .. . . .. . . .. . . .. . . . ... . . . . .. . . .. . . .. . . . .. . . .. . . .. . 204
1
INTRODUÇÃO
Os deuses possuem a certeza; a nós, contudo, só nos cabe a conjetura.
Alcmeão
O presente trabalho pretende compreender e anal isar a
importância das práticas divinatór ias uti l izadas na Feira Mística
de São Paulo. A Feira Mística aqui identi f icada não se confunde
com a imensa var iedade de feiras de produtos místicos e es o-
tér icos que vendem desde cr is tais a roupas indianas e se pr o-
pagaram nos centros urbanos a partir dos anos 80, mas tão
somente um empreendimento específ ico da capital paul i stana
que oferece exclusivamente consultas divinatór ias.
Como forma de dar conta do aleatór io, dar sentido ao f l u-
xo dos acontecimentos e buscar or ientação para as ações, a
humanidade cr ia estratégias de div inação e oráculos. A cada
época esses jogos divinatór ios guardam profundas relações
com o sis tema de crenças mais amplo 1. A sociedade atual per-
mite, sem a necessidade de camuf lagens, a vivência da magia,
da ciência e da espir i tual idade num amálgama pecul iar. Se por
um lado, como indicou Morin, até há poucos anos atrás parecia
1 Utilizo o termo Sistema de Crenças no sentido amplo de um conjunto de crenças que permeia a sociedade atuando sobre parcelas significativas de seus membros e incenti-vando-os a agir e pensar de maneira coerente com os valores mais amplos. Cada gru-po social, e indivíduo em particular, articula elementos desse sistema numa construção específica.
2
que a magia não era mais que um resíduo, um “del ír io inofe n-
sivo de seitas ocult istas” 2, recalcada sucessivamente pela teo-
logia catól ica, pelo racional ismo e empir ismo cientí f ico, por o u-
tro, o uso cada vez mais freqüente por parte do s enso comum
de categor ias cognitivas do campo da magia e espir i tual idade
formando expl icações di tas cientí f icas e o própr io esforço de
alguns cientis tas para estabelecer uma nova al iança e ree ncan-
tamento do mundo 3 indicam uma profunda mudança em curso
na sociedade. É nesse contexto de transformações que a co n-
sulta oracular sai dos ambientes dissimulados e ganha a visib i-
l idade das praças públ icas.
Quais são, portanto, as caracter ísti cas sociais dessa ép o-
ca que permitem a existência da Feira Mística e lhe atr i buem
um signif icado específ ico? Como os indivíduos que fazem uso
dos oráculos da Feira incorporam as falas dos adivinhos em
seus cotid ianos? Essas foram algumas das perguntas prel im ina-
res que or ientaram a pesquisa.
Longe de pretender fazer uma general izaç ão acerca das
práticas divinatór ias, há questões mais amplas de fundo exi s-
tencial que não deixam de fazer parte do universo específ ico
dos consulentes da Feira Mística. O mundo apresenta -se ao ser
humano sempre como caótico e sem sentido. Desprovida das
signif icações e construções simból i cas atr ibuídas his tór ica e
socialmente, a vida é impraticável. Cada grupo social , a cada
época e lugar, procura construir sistemas de crenças or ient a-
dores das vic issitudes cotid ianas, estabelecendo e formulando
2 Edgar MORIN et a l . , O retorno dos astró logos , p. 13. 3 Ilya PRIGOGINE e Isabel le STANGERS , A nova al iança .
3
cosmos. Nisto se insere o papel fundamental do mito e das r e-
l ig iões daí advindas.
Como forma de vivência no inter ior dessas contingências,
a humanidade sempre formulou jogos divinatór ios. Estes pe r-
mitem a l igação cósmica com o divino, a percepção e consciê n-
cia do destino e a or ientação para comportamentos do dia a
dia. A cada momento essas artes divinatór ias guardam relações
estrei tas com as formas de conhec imento existentes, com as
rel ig iões e outros sis temas de crenças e com a sociedade mais
ampla.
A sociedade ocidental contemporânea, complexa, também
possui suas artes divinatór ias. Há uma plêiade de ofertas, visto
ser grande a diversidade sócio -cultural. As antigas cartomantes
permanecem e continuam oferecendo seus serviços a vár ios
segmentos sociais. Outras formas de divinação desapareceram
e novas surgiram. Estão ao alcance de todos, fazendo enorme
sucesso, as previsões astrológicas e outras do gênero, as co n-
sultas por telefone, por rádio e até por telev isão.
A Feira Mística é um desses novos componentes. Podemo s
perceber, através deste particular específ ico aquele universal
mais amplo e sempre recorrente do ser humano.
As artes divinatór ias contemporâneas, apesar de busc a-
rem l igações míticas antigas, inventam uma tradição. Querem
se fazer profundas. Mas são, sem dúvida, vivências atuais e
contemporâneas de uma mesma necess idade.
Hoje, novas visões de mundo e novas teologias permitem
a síntese entre o drama – noção cr is tã de uma histór ia possível
4
de ser alterada pela mão humana – e a tragédia grega – onde
o destino é dado a partir de forças externas. O destino trágico,
mister ioso a pr incípio, articula -se com o l ivre arbítr io e com a
possibi l idade de autonomia do indivíduo. A consulta oracular
não se faz apenas em busca de divinação de um futuro já tr a-
çado, mas pr incipalmente como or ientação das ações presen-
tes.
Vive-se hoje diferentes modos de pensamento, ou dif e-
rentes sistemas de crenças. Após séculos de dominação de
uma visão cientí f ica mecanicis ta e determinista que, embora
não tenha el iminado outras visões, prega a possibi l idade de
descoberta das leis imutáveis da natureza e, portanto, a total
previsib i l idade dos acontecimentos, procurando desmerecer as
crenças tradicionais em coisas não visíveis, alguns setores s o-
ciais, tradicionalmente com ela comprometidos, pr ocuram o
resgate de uma visão mística e trad icional. Mas a síntese é de
um novo conhecimento apoiado ainda na visão cientí f ica, gra n-
de legit imadora. É um tipo novo de crença que não se rec o-
nhece como uma crença. Uma “crença na descrença”. Essa n o-
va mística não é uma crença pela fé, gratuita, mas advém de
uma descrença: não é permitido crer, é preciso desconf iar,
“descrer”. A partir desse pr incípio (em que se crê ou necessita crer), o indivíduo percebe-se em um mundo novo, mágico e
místico, mas que pode ser comprovado pela ciência. Aceita -se
o mágico e o místico dos oráculos na medida em que esse un i-
verso reveste-se de caracter ísticas cientí f icas. Esse conjunto
de categor ias cognitivas e maneiras de percepção da real idade
acaba formando o substrato das crenças e representações
construídas e vivenciadas pelos adiv inhos e consulentes da Fei-
5
ra Mística. Os oráculos são vistos por seus praticantes, porta n-
to, como cientí f icos ao mesmo tempo que l idam com fo rças
ocultas e sobrenaturais.
A consul ta oracular da Feir a Mística permite ao indivíduo
uma reorganização de sua vida através da emergência da su b-
jetiv idade e do imaginár io. Como um espaço onde é possível
uma vivência mágica e mística nos dias atuais, o sujeito est a-
belece combinações até então impensáveis no cotid iano. Ao
provocar um rompimento na visão l inear do tempo, os mitos
r i tual izados no momento da consul ta permitem a congruência
do destino já traçado e da possibi l idade de escolha l ivre frente
as opções colocadas pelo adivinho. Este encontro adivinho -
consulente é um momento de troca que remete o sujei to a um
novo espaço reorganizado. O passado é construído a partir de
elementos retirados da memória e re -signif icados através da
leitura oracular. Outros são simplesmente cr iados no calor da
conversa, compondo o mosaico das lembranças que ganha, na-
quele instante, cor e vida. Lembra-se o que quer e para o que
quer; adiciona-se novos ingredientes para juntos tornar a fala
do adivinho algo plausível e real. O futuro, na medida em que
é trazido à luz do presente diver sas vezes, em tantas consul tas
sucessivas, é revisitado. A cada um desses momentos, pode -se
redirecionar as posturas frente às d if iculdades cotid ianas e r e-
pensar aqui lo que, embora não tenha acontecido, existe e n-
quanto potencial idade e possibi l idade. O fut uro inf lui , assim,
no tempo presente.
A pesquisa de campo foi real izada ao longo de dois anos,
entre 1997 e 1999, compreendendo inic ialmente a apl icação de
6
questionár ios para levantamento do perf i l dos usuár ios da Fe i-
ra e, nas fases seguintes, entr evis tas em profundidade com os
prof issionais adivinhos e com os cl ientes. 4 No decorrer do tra-
balho de campo minhas hipóteses inic iais sofreram alter ações.
O número de consulentes que fazem uso constante das consu l-
tas oraculares mostrou-se bastante sign if icativo, apontando
para a necessidade de buscar as interpr etações de tais ati tu-
des. As consultas às mancias são ef icazes naqui lo em que bu s-
cam seus cl ientes, caso contrár io não ir iam além da satisf ação
de cur iosidades momentâneas.
Em que medida, e de que maneira, os adivinhos acertam?
Como os cl ientes assíduos da Feira Mística interpretam aqui lo
que lhes é dito e como isso inf luenc ia suas vidas futuras? Para
responder a tais perguntas a hipótese central foi redirecion a-
da. Os consulentes, a partir da fala do adivinho, desconstróem
uma real idade previamente inventada 5, reconstruindo-a sob
novas bases. Aqui lo que muitas vezes se encontra oculto, mas
existente enquanto possibi l idade, passa a ser visto como uma
certeza concreta e palpável. Esse discurso é ef icaz e vis to co-
mo real idade porque as mancias são legit imadas e os adiv inhos
tidos como seus f iéis intermediár ios e representantes. A força
mítica que está por trás dos jogos d ivinatór ios dá sol idez a e s-
sa construção.
4 Durante esses dois anos tive a oportunidade de compartilhar algumas visitas com minhas orientandas de iniciação científica, no que sou imensamente grato. Em 1998 Fabíola Freire Saraiva Melo, aluna do curso de Psicologia da PUC-SP, desenvolveu seu trabalho enfocando as preferências dos usuários pelas consultas oraculares em detri-mento das psicológicas. A aluna de Economia, Simone Tatesuzi de Sousa, pesquisou durante o ano de 1999 a dimensão da Feira Mística enquanto um empreendimento econômico. 5 É inventada na medida em que é uma construção dos agentes sociais, embora não tenham consciência desse fato.
7
Uti l izo para a anál ise os concei tos de con strução social da
real idade desenvolvido por Berger e Luckman 6, de real idade
inventada e profecias que se autocumprem, de Watzlawick 7, e
as noções de mente, natureza e percepção da real idade pr o-
postas por Bateson 8. O pensamento determinista procura o es-
tabelecimento de uma lógica causal como sustentáculo de sua
veracidade. Porém o que vemos na Feira Mística nem sempre
segue essa lógica. Os jogos divinatór ios quebram a l inear idade
do tempo, colocando o passado e o futuro juntos no m omento
presente. Se nas formas tradicionais de pensamento e spera-se
que o efeito suceda sua causa, nas consultas oracul ares acon-
tece mui tas vezes da causa suceder o efeito. Mais uma vez é
Bateson quem auxi l ia com o conceito de circular idade causa e
efeito.
Apesar da tradição antiga e universal dos jogos divinató-
r ios, é quase inexistente a produção das ciências sociais sobre
o tema. Praticamente sol i tár ia no panteão clássico está a obra
de Evans-Pr itchard 9 sobre os oráculos entre os Azande. Mais
recentemente, encontra-se a pesquisa sobre astrologia na
França do f inal dos anos 70 real izada por Morin e equipe 10. En-
tre nós, destacam-se as obras de Braga 11, específ ica sobre o
jogo de búzios no candomblé, e o estudo antropológico da a s-
trologia empreendido por Vi lhena 12. Mais numerosa é a con tr i-
buição que vem da f i losof ia, ou ainda da vertente da psicologia
6 Peter BERGER e Thomas LUCKMANN , A construção social da real idade . 7 Paul WATZLAWICK , A real idade inventada . 8 Gregory BATESON , Mente e natureza . 9 E. E. EVANS-PRITCHARD , Bruxar ia, orácu los e magia entre os Azande . 10 Edgar MORIN et a l . , O retorno dos astró logos . 11 Júlio BRAGA , O jogo de búzios. 12 Luis R. V ILHENA , O mundo da astrologia.
8
anal í t ica. Em termos de artigos publ icados em revistas espec ia-
l izadas, as anál ises das ciências soc iais fazem -se mais presen-
tes sem, no entanto, consti tuírem um conjunto seqüencial con-
sistente. A pesquisa baseou-se não apenas nessas poucas
obras, mas, sobretudo, naquelas que tratam do universo do
conhecimento, das ciências e das crenças mágicas, míticas e
rel ig iosas, uma vez que a compreensão do universo dos jogos
divinatór ios só se faz poss ível através da interpretação das ca-
tegor ias de pensamento uti l izadas pelos indivíduos que os pr a-
t icam.
0 universo das artes divinatór ias possui uma vasta l i t era-
tura produzida por seus própr ios integrantes, pr incipalmente
relacionada à astrologia e ao tarô , duas das mancias conside-
radas pelos própr ios como das mais eruditas. A grande maior ia
dessas obras foge das interpretações mais profundas e, salvo
poucas exceções, repetem velhos chavões do senso comum.
Não esteve dentro de minha perspectiva anal isar tai s contr i-
buições, procurando del imitar as informações dadas pelos
agentes apenas pelos discursos re latados nas entrevistas e
aqueles presenciados nos própr ios espaços das práticas div ina-
tór ias. Não tenho dúvida de que uma anál ise sobre tais publ i-
cações trar ia grandes contr ibuições ao estudo compreensivo do
fenômeno, mas fugir ia do âmbito desta pesquisa.
A perspectiva deste trabalho foi sempre a de perceber as
práticas divinatór ias da Feira Místi ca inser idas num contexto
mais amplo que vai muito além das consultas oraculares. Po-
rém, esse universo amplo, muitas vezes denominado pelos
própr ios integrantes e também estudiosos como uma Nova Era,
9
Nova Gnose, complexo alternativo ou simplesmente esoter ismo
e mistic ismo, é por demais heterogêneo, não podendo ser r e-
duzido a um movimento único, sob pena de perda de sentido e
capacidade de anál ise. É preciso um esforço empír ico e anal í t i -
co para perceber as diferentes ordens e regular idades que ele
comporta. As consultas oraculares compõem uma das facetas
mais visíveis deste universo, sendo sempre lembradas, tanto
pela mídia como pelos própr ios estudiosos do fenômeno, como
marca distintiva. Não há ar tigo de revista de grande circul a-
ção, jornal ou mesmo trabalho acadêmico que ao procurar
descrever o fenômeno deixe de ci tar as práticas divinatór ias e
especif icamente entre elas o caso da Feira Mística.
Se para muitos, leigos ou cr ít icos de tais ativ idades, essa
prol i feração dos oráculos em praças públ icas signif ica um mero
modismo al iado a um consumismo e oportunismo mercanti l ista,
redundando em perda dos valores tradicionais e do mistér io
or ig inal, para a pesquisa tratava -se de procurar compreender
os padrões de comportamento de pessoas que fazem uso de s-
sas mancias não como cur iosidade passageira ou lazer sem
compromisso, mas enquanto instrumentos importantes na
construção dos valores e sentidos de suas vidas.
Mesmo se tivesse optado pelas artes divinatór ias em g e-
ral, oferecidas nas grandes cidades neste f inal de século, co r-
rer ia o r isco da dispersão e impossibi l idade de uma anál ise em
profundidade. Abr indo a seção de classif icados de qualquer
jornal da Grande São Paulo, encontramos dezenas de ofertas
de cartomantes, videntes, astrólogos, adivinhos e taról ogos,
atendendo em espaços tão diferenciados como em suas pr ó-
10
pr ias residências, em ambientes rese rvados, em consultór ios
equipados e especialmente montados para tais f ins, nas ruas,
em viadutos, em centros comerciais ou clubes, através de con-
sultas por vezes extremamente rápidas e por outras em est u-
dos demorados com repetidos encontros entre o adivinho e seu
cl iente. Além disso, durante o per íodo de real ização dessa
pesquisa, funcionava o serviço 0900 de consul tas oraculares
por telefone com milhares de l igações todos os dias. Como
perceber nesse meio também heterogêneo alguma regular idade
que pudesse ser estudada e interpretada sem cair nos discu r-
sos jornal ís t icos?
A opção pela Feira Mística, uma pequena gota no oceano
das artes divinatór ias da sociedade paul istana, permitiu o co n-
tato próximo e constante com um grupo de pessoas, adiv inhos
e consulentes, durante aproximadamente os dois anos da pe s-
quisa. Os reencontros, as entrevis tas e conversas repetidas
permitiram um acompanhamento da trajetór ia dos agentes.
Somente esse tipo de recorte trouxe à luz elementos signif ic a-
tivos das consultas oraculares que poderiam f icar obscuros se
tivesse optado pelo universo mais amplo.
Tenho claro os l imites de minha anál ise e a impossibi l id a-
de de compreensão das artes divinatór ias em geral a partir
apenas do caso específ ico da Feira Mística. Porém, compreendo
que tal anál ise contr ibui, em parte, para a compreensão deste
ser humano cosmopol i ta da sociedade contemporânea que não
vive recluso apenas no ambiente da Feira Mística, mas transita
por vár ios outros espaços da cidade, inclusive uti l izando outros
serviços oraculares, constituindo um amplo tecido de compl e-
11
xidades. Entender o jogo de relações que se desenvolve atr a-
vés dos oráculos da Feira Mística é uma parte importante na
tarefa de compreensão do todo da v ida desses suje i tos.
Para dar conta do jogo de representaçõe s que envolve a
construção do futuro através das artes divinatór ios da Feira
Mística optei por inic iar o trabalho através de uma descr ição e
anál ise do cenár io onde os jogos acontecem. Assim, o pr imeiro
capítulo trata da formação, composição e histór ia da Feira, da
sua estrutura de funcionamento, das mancias oferecidas, do
perf i l dos usuár ios e dos prof issionais que al i atuam. Afastando
um pouco o olhar, procura traçar o pano de fundo em que a
Feira acontece, através das caracter ísticas da sociedade mais
ampla que tornam possível a existência de tal ativ idade.
O sistema de crenças que permeia as representações dos
sujeitos da Feira são anal isados no segundo capítulo. Trata -se
daqui lo que chamo de “crença na descrença”. É esse conjunto de crenças que garante a ef icácia dos jogos divinatór ios da
Feira Mística. Estabelecendo estreitas relações com os valores
sociais mais amplos, al imenta -se da cultura circundante e aca-
ba contr ibuindo com sua par te, pequena que seja, para a co m-
posição de novas visões no âmbito social mais extenso. Ainda
neste capítulo, del ineio as matr izes teór icas básicas que pe rmi-
tem perceber os oráculos como veículos de vivências míticas
pessoais. Ao possibi l i tar a saída do tempo histór ico l inear, a
divinação leva o sujeito à revisi tação do tem po mítico. Assim,
os acontecimentos passados, presentes e os futuros ganham
sentido no eixo ordenador dos mitos. Entra em cena, aqui, a
questão da invenção de tradições, pois um oráculo se faz mais
12
ef icaz na medida em que é visto como exótico, místico e guar-
dião de sabedor ias or ig inais.
O capítulo 3 aborda o universo dos oráculos, desde seu
signif icado etimológico até sua l igação com a mística. Em s e-
guida, procuro traçar o lugar do jogo divinatór io como instr u-
mento de previsão através da fuga do aleatór io em busca das
determinações. Para tanto, serão necessár ias anál ises sobre as
noções de acaso e determinismo, bem como o papel do jogo
divinatór io na construção do passado e revisi tação do futuro.
Nesse sentido, fez-se de extrema importância a anál ise sob re
causal idades l inear e circular. Um destaque especial de sse ca-
pítulo versa sobre a dicotomia entre destino e l ivre -arbítr io.
Como podemos conci l iar a inexorab i l idade de um de stino pré-
estabelecido numa sociedade que valor iza tanto a a utonomia
dos indivíduos? Por f im, o capítulo trata ainda da construção
da real idade através da ordenação do caos e est abelecimento
de ordens e regular idades.
E, f inalmente, o capítulo 4 procura interpretar, através
das anál ises do estudo de dois casos de consulentes, como se
dá a ef icácia dos oráculos da Feira Mística. O contato interpe s-
soal adivinho-consulente provoca instabi l idades que permitem
a reordenação do caos e busca de novas estabi l idades. A co n-
sulta é vista como um r itual que, tendo por base o papel atr a-
tor dos mitos, permite a construção da real idade passada e fu-
tura.
13
CAPÍTULO I - UM RETRATO DA FEIRA MÍSTICA
Eu leio tarô na praça, aqui, na igreja, no boteco, onde for preciso... É como eu me sinto.
Matheus Diego Uma feira tem de ter de tudo, senão não é feira.
Thelma Valentino
A oferta de práticas divinatór ias em praças públ icas não
causa estranheza na paisagem das grandes cidades. Longe de
provocarem espanto pela forma como os serviços tidos até e n-
tão como ocul tos ganham visib i l idade, essas práticas fazem
parte do cotid iano de um amplo contingente de pessoas. A Fei-
ra Mística de São Paulo existe há treze anos, funcionando
sempre aos f inais de semana e fer iados em locais nobres da
cidade. Pioneira no esti lo, foi sendo copiada por muitos, part i-
c ipando de um verdadeiro modismo que espalhou os oráculos
por diversos locais, como shopping centers , bares, c inemas
etc. Passado esse momento de grande af luência , conta, até o
momento da pesquisa, com um públ ico f iel que tem nas re s-
postas dos adivinhos um instrumento de or ientação frente as
incertezas da vida. Essas pessoas constróem um universo d ife-
renciado de representações e signif icações, formando um co n-
junto de saberes e práticas que faz sentido.
Num pr imeiro momento, a preocupação e foco da pesqu i-
sa volta-se para a fotograf ia desta feira, procurando compr e-
ender a gênese e estrutura mesma do objeto da pesquisa. Em
14
seguida, retrata seus praticantes, adivinhos e cl ientes. Por f im,
procura tecer o pano de fundo e o ambiente mais amplo em
que estão inser idos.
Começo por uma descr ição do objeto, pr imeiro passo para
uma poster ior anál ise. De acordo com Geertz 1, o objetivo da
antropologia é alargar o universo do discurso humano. A cu ltu-
ra é um contexto, dentro do qual os símbolos podem ser de s-
cr itos de forma intel ig ível, ou seja, com densidade 2. É preciso
partir da descr ição daqui l o que é visível para chegar ao texto
mesmo da cultura, aqui lo que o grupo está dizendo a si e para
os outros de si mesmo.
1. Origens
Serviços de divinação não são novidade nos centros urb a-
nos. No Brasi l , as práticas divinatór ias desde cedo dissemin a-
ram-se pelas cidades emergentes, sendo portanto muito antiga
a uti l ização dos oráculos pela população. Deixando de lado os
oráculos introduzidos a partir do século XIX através dos est u-
diosos de ocult ismos, como a radiestesia, ou aqueles importa-
dos pelos praticantes dos mistic ismos da Nova Era, como é o
caso das Runas e do I Ching, são as cartomancias, provave l-
1 Clifford GEERTZ, A interpretação das culturas. 2 Ibid. , pp. 13-41.
15
mente, as práticas divinatór ias que pr imeiro se difundiram en-
tre nós. Pouco se sabe da or igem dessas. Costuma -se af i rmar
que foi através dos ciganos, or iundos da China antiga, que a
leitura de cartas chegou até os europeus. Há, ainda, uma outra
versão que aponta os árabes, quando dominavam a p enínsula
ibér ica, os responsáveis por tal façanha. De uma forma ou de
outra, a cartomancia já era bastante popular na Europa do sé-
culo XVI. Dessa maneira, é provável que os po rtugueses já t i-
vessem praticado a cartomancia desde os pr imeiros povoamen-
tos nas costas brasi leiras. Sônia Cavalcanti aponta, j á no sécu-
lo XVI, ind íc ios da chegada de ciganos ao Brasi l . De maneira
mais consis tente, porém, af irma ser das úl t imas décadas do
século XVII e do in íc io do século XVIII os pr imeiros regi stros
of ic iais que dão conta da prática de divinação por parte de
grupos ciganos em nosso terr i tór io.3
Associando-se a um catol ic ismo prat icado pela população,
as rel ig iões afro logo se espalharam misturando -se com as
mancias populares então uti l izadas. A consulta oracular aos
búzios passou a ser aberta não exclusivamente aos f iéis do
candomblé. Nina Rodrigues retrata Salvador do f inal do século
XIX com a dupla inf luência do catol ic ismo por sobre a rel ig ião
afro bem como desta por sobre as práticas catól icas populares
e a cartomancia 4. João do Rio fala de um Rio de Janeiro do
começo do século XX repleto de sacerdotisas do futuro que
“tomam conta de todos os bairros, predizem a sorte dos r icos, compõem um mundo exótico e complexo de cartomantes, n i-
gromantes, sonâmbulas videntes, quiromantes, grafólogas, fe i-
3 Sônia M. R. SD. CAVALCANTI, Caminheiros do destino, pp. 43-44. 4 Nina RODRIGUES, O an imismo fet i chis ta dos negros baianos .
16
t iceiras e bruxas” 5. Pelo lado do ocult i smo, Liana Tr indade
lembrou muito bem do amplo acolhimento do pensamento es o-
tér ico nas camadas médias urbanas desde o f inal do século
XIX 6. O conhecimento esotér ico de então incluía entre outros
estudos, a astrologia e o tarô.
A oferta de jogos divinatór i os foi se consti tuindo nas
franjas de visib i l idade das cidades. Apesar desta oferta estar
nas ruas, ao alcance de qualquer c idadão, as consul tas eram
praticadas em ambientes reservados, fosse nos espaços sagr a-
dos (no caso do candomblé), fosse nas casas das cartomantes
e videntes. Até hoje são retratadas pela mídia de maneira e s-
tereotipada, envol tas em atmosfera mister iosa, indicando aqu i-
lo que o imaginár io popular formula desse tipo de prática. Se
por um lado isso permanece na visão que as pessoas têm das
artes divinatór ias, por outro mudanças efetivas ocorreram a
partir dos anos oitenta, demonstrando que essas práticas não
são mais vivenciadas como até então, exigindo um novo esfo r-
ço anal í t ico para sua compreensão. Magnani sintetiza essa d i-
cotomia entre o imaginár io e as prát icas:
A tradicional imagem da car tomante com seu bar a-lho, ou a do adivinho diante da bola de cr istal , perscr u-tando os destinos de um expectante e quase clandestino consulente, em algum sótão escondido, já não corre s-pondem à forma que essas e outras práticas, gener ica-mente denominadas esotér icas, vêm assumindo nos gra n-des centros urbanos. 7
É preciso perceber de que maneira os jogos divinatór ios
mantém a aura mister iosa e ocul ta ao mesmo tempo que se
5 JOÃO DO RIO, As re l ig iões no R io , p. 134. 6 Liana TRINDADE, “Pensamento esotér i co e modernidade”.
17
abrem a uma exposição públ ica e ofer ta de seus produtos co-
mo numa feira comercial . A Feira Mística foi precu rsora desse
modelo de prestação de serviços div inatór ios.
Nasceu do faro comercial de Mathias Diego 8, espanhol de
nascimento e há mais de quarenta anos atuando como tarólogo
prof issional, que percebeu o momento propício para tornar v i-
sível e de amplo acesso, num mesmo espaço públ ico, as co n-
sultas aos oráculos. Na década de oitenta, divulgava seus c o-
nhecimentos esotér icos ministrando cursos de tarô para a co-
munidade paul istana. Naquela época, crescia o interesse de
uma determinada camada da população por práticas e sabed o-
r ias alternativas 9. Num desses cursos, conheceu uma jovem es-
tudante de ciências sociais que acabou por se tornar sua com-
panheira. É ela quem conta os momentos inic iais:
Ele (Mathias Diego) tinha vontade de juntar num espaço públ ico vár ias mancias. A gente l ia tarô, mão, mas não era da nossa alçada a questão da cartomancia, búzios, que é todo l igado ao candomblé, e também a a s-trologia, que estava mui to em voga na época, mas era para gente que se especial izava, atendendo em cl ínicas para pessoas bem diferenciadas. Daí ele falou: “eu já vi
7 José Guilherme MAGNANI, “Esotér i cos na c idade”, p. 66. 8 Mantive os nomes originais dos criadores e coordenadores da Feira Mística, visto tra-tar-se de pessoas bastante conhecidas no meio. Mas alterei os nomes dos místicos, garantindo o anonimato dos depoimentos. 9 O termo “alternativo” foi utilizado pelos próprios agentes, que procuravam saídas ditas alternativas para um modo de vida percebido como sem sentido. Compreendiam desde novos hábitos alimentares até relacionamentos com a natureza, passando pelo campo da busca de sentido espiritual e significando, para eles, uma verdadeira revolu-ção interna que transformaria a sociedade de consumo. As primeiras interpretações realizadas acabaram utilizando o termo nativo. A esse respeito verificar Huber (Joseph HUBER, Quem deve mudar todas as coisas: as alternativas do movimento alternativo), Soares (Luiz Eduardo SOARES, “Religioso por natureza: cultura alternativa e misticismo ecológico”) e Guerriero (Silas GUERRIERO, O Movimento Hare Krishna no Brasil: a co-munidade religiosa de Nova Gokula). O capítulo 2 trata do aspecto das visões de mun-do desse período.
18
isso na Europa, vamos fazer aqui também”. Mas na Euro-pa, eu conheci a de Madrid, no Ret iro, é feita sem uma coordenação única, sem coordenadores. Os místicos vão e montam suas tendas. Aqui nós f izemos diferente, mas a idéia era a mesma: juntar vár ios t ipos de leitura num mesmo espaço, em praça públ ica. (Thelma , coordenado-ra)
Essa cópia de modelos é uma caracter ística desse meio,
indicando que há uma lógica por trás das inic iativas aparente-
mente isoladas. Magnani 10 procura traçar os aspectos centrais
do circuito esotér ico na cidade de São Paulo, demonstrando
que no mar de diversidades exis tem certos norteadores, e T a-
vares 11 retrata especif icamente as fe iras esotér icas de Par is e
Rio de Janeiro. Apesar da imensa diversidade encontrada, é
possível perceber elementos comuns a ambos os circuitos, sem
os quais tal comparação ser ia inócua. Inser ida, portanto, de n-
tro deste universo mais amplo, a Feira Mística foi pioneira em
termos de modelo organizacional.
Por meio de l igações com pol í t icos da época 12, Diego con-
seguiu autor ização para a montagem da feira em 1986. Tal f a-
to se deu através da Secretar ia de Abastecimento, nos me smos
moldes que regem o funcionamento das feiras de produtos al i -
mentíc ios em logradouros públ icos. Havia uma preocupação de
padronização, com as tendas sendo confeccionadas a partir de
um modelo cr iado pelos arquitetos da Semab 13. No iníc io, o ca-
sal empreendedor não era propr ietár io das barracas. Esper ava
10 José G. MAGNANI, Mystica Urbe. 11 Fátima TAVARES, “Feiras esotéricas e redes alternativas”. 12 Quem estava à frente da Prefeitura Municipal de São Paulo era Jânio Quadros. Diego possuía em sua carteira de clientes de leitura de tarô, vários nomes ligados à adminis-tração local. (informação dada pelo próprio Diego em depoimento) 13 Secretaria Municipal de Abastecimento.
19
contar com a partic ipação cooperativa de outros místicos 14,
convidando aproximadamente dez pessoas do meio para tr aba-
lharem conjuntamente. De acordo com o depoimento da c oor-
denadora, Thelma, tal fato trouxe muitos problemas pois, ap e-
sar de um públ ico af luente, era comum a não assiduidade de
alguns adivinhos, o que quebrava a perspectiva de cont inuida-
de do trabalho, ou a lacuna de alguma mancia, compr ometendo
a proposta de oferta var iada. A part ir de uma visão empresar i-
al (“Marx já falou que tem de ganhar em c ima do trabalho
alheio, se não tiver mais -val ia esse negócio não vai funcionar”, disse Thelma) começaram a adquir ir as barracas dos místicos
faltosos e contrataram outros para seus lugares. Em pouco
tempo todas as barracas estavam em suas mãos. A coorden a-
ção única estabeleceu um padrão de funcionamento, como pr e-
ocupação com horár ios, montagem e manutenção das barracas,
oferecimento de uma var iedade mínima de mancias, controle
dos discursos dos místicos e satisfação da cl ientela.
A partir desse momento, com uma l inha de atuação nit i -
damente empresar ial (mesmo que em nível de micro empresa)
e nada alternativa, a Feira Mística conheceu um sucesso cre s-
cente. A pr imeira versão da Feira ocorreu na Praça Mal. Co r-
deiro de Far ias no f inal da Av. Paul ista, conhecida como praça
dos arcos, onde está até os dias atuais, atendendo em todos
os f inais de semana e fer iados. Em seguida conseguiram aut o-
r ização para a montagem das barracas no parque do Ibirapue-
ra15. Em seus tempos áureos , a Feira chegou a atender até 600
14 Utilizo a partir daqui o termo “místico” para designar os profissionais adivinhos da Feira Mística. Trata-se de uma autodenominação, mas que oferece uma operacionali-dade para a análise. 15 Desta vez já na administração da prefeita Luiza Erundina.
20
pessoas num único dia, com mais de 25 barracas de diversos
oráculos.
O sucesso fez com que o modelo se espalhasse rapid a-
mente. O própr io casal chegou a montar barracas em shopping
centers e outras praças. Até recentemente, funcionava uma
feira na praça Oswaldo Cruz, iníc io da Av. Paul ista, que aten-
dia durante os dias de semana. Muitos copiaram a estrutura da
Feira Mística. Alunos dos cursos de Diego ou místicos que tr a-
balharam na Feira foram montando seus própr ios negócios a m-
pl iando a concorrência. Hoje são poucos os que permanecem.
Não há mais novidade nesse tipo de oferecimento de serviços
divinatór ios. A ampla investida, através de um marketing
agressivo, real izada pelos serviços telefônicos 0900, contr ibuiu
para uma banal ização do mercado. Desta forma a cl ientel a dei-
xou de ser composta por cur iosos, constituindo -se basicamente
por cl ientes f ixos.
Desde o começo da pesquisa de campo, percebeu -se essa
tendência de diminuição dos serviços oraculares em praças p ú-
bl icas. Porém, o que é importante perceber para a anál ise des-
te trabalho é que, mesmo diminuta, a Feira Mística persis te
com uma cl ientela cativa. Nisso reside a importância da Feira.
Fosse apenas um modismo já ter ia sucumbido. Mas não. Há
uma lógica funcional para um número signif icativo de pessoas,
objeto central desta anál ise.
Após o término do trabalho de campo, pude constatar que
as feiras da Av. Paul ista e do parque do Ibirapuera não estão
mais sob uma mesma coordenação. O casal separou -se em
21
1999, sendo que a parti lha determinou que Diego permanece s-
se com a feira da Paul ista e Thelma com a do Ibirapuera.
2. Estrutura
Na Feira Mística encontra-se uma comercial ização rápida
e de grande rotativ idade dos produtos de vár ias agências div i-
natór ias. Bem caracter ística da modernidade, é de fáci l cons u-
mo, fragmentada e ajustada às demais dimensões da vida das
grandes cidades. Longe da aparência de lugares exóticos e s e-
mi escuros, perfumados por incenso, a Feira Mística, com suas
barracas esti l izadas, mistura o aspecto visual de tendas ár a-
bes, à modernidade e pratic idade das estruturas metál icas e à
disposição de uma feira l ivre de frutas e verd uras.
Oferece consultas a vár ios t ipos de oráculos como tarô,
cartomancia, jogo de búzios, numerologia, quiromancia, lei tura
de chá, vidência, I Ching e astrolog ia, entre outros. As barra-
cas dos místicos são dispostas lado a lado, indistintamente. O
cl iente, ao chegar, compra a f icha do coordenador (R$ 25,00)
e quando não é cl iente habitual ou não sabe ao certo que tipo
de mancia deseja, é or ientado para um dos místicos. As f ichas
são entregues ao adivinho no momento da consul ta. Este, por
sua vez, troca as f ichas ao f inal do dia com a coordenação, r e-
cebendo 50% do valor.
22
A or ientação dada pelo coordenador segue duas lógicas
distintas, mas muitas vezes conci l iáveis entre si: perf i l do cl i -
ente e dis tr ibuição eqüitativa entre os vár ios místicos. Há um
discurso af irmando que o cl iente é or ientado para uma mancia
que seja adequada à sua demanda específ ica e ao seu universo
cultural. Nessa conversa inic ial o coordenador procura est abe-
lecer um vínculo com esse cl iente em potencial . Faz parte de
uma estratégia de marketing que visa não apenas vender uma
imagem da Feira, como também ouvir aqui lo que é a demanda
do mercado. Ao f inal da consulta há sempre a segunda etapa
dessa abordagem, quando a coordenação procura saber o grau
de satisfação alcançado. Mui tas vezes esse cl iente é or ientado
a fazer uma outra consul ta com outro místico ou voltar na s e-
mana seguinte. Outra função dessa or ientação é atr ibuir c l ien-
tes aos místicos que estão oc iosos, fazendo com que todos
eles tenham um mínimo de ganho ao f inal do dia. Isso garante
que o místico não abandone a Feira, o que cr iar ia uma lacuna
na oferta de alguma mancia específ ica.
Cabe aos coordenadores, também, f iscal izar não apenas a
qual idade da consulta como a duração da mesma. Se não há
f i la de espera, a consul ta pode demorar até mais de tr inta m i-
nutos, chegando até uma hora, como tive opor tunidade de pr e-
senciar em vár ios momentos. Porém, se há uma espera para
um determinado místico, quando o consulente não acei ta con-
sultar com outro ou é seu cl iente há tempos, os coordenadores
buscam uma forma de agi l izar a consulta para que esta acabe
rapidamente.
23
Para Thelma, as diferentes mancias servem a f inal idades
específ icas. A partir desse discurso, seguid o tanto pelos míst i-
cos como reproduzido pelos cl ientes mais f iéis, podemos traçar
uma tipologia dos oráculos da Feira, mostrando que apesar da
reunião num mesmo espaço e da oferta indis tinta, existe uma
lógica própr ia de diferenciação interna construída e praticada
pelos sujei tos da pesquisa.
De acordo com os informantes, a astrologia trata de c a-
racter ísticas mais profundas da vida do indivíduo e requer um
estudo bastante demorado da sua carta natal, servindo tanto
para perceber aspectos da personal idade como para prever
acontecimentos futuros. Por esse motivo, segundo a coorden a-
dora, não é comum a oferta de leitura dos astros na Feira Mí s-
tica. Não concordando com as leituras rápidas a partir de h o-
róscopos genér icos, prefere recomendar que o cl iente faça uma
anál ise astrológica fora do ambiente da Feira. Durante a época
da pesquisa somente a feira do parque Ibirapuera possuía o
serviço de astrologia. No lado oposto ao da astrologia , no to-
cante à duração da lei tura, f icam a quiromancia ( leitura de
mãos) e a leitura de chá. Ambas são oferecidas por preços
promocionais (R$ 10,00) , não devendo a consulta demorar
mais de quinze minutos. O argumento uti l izado é que servem
apenas para v isual izar aspectos gerais da person al idade do cl i -
ente, sem contudo fazer prognósticos de acontec imentos futu-
ros. Alegam ser mais barata pois não requer inte rpretação do
míst ico e não permite responder a perguntas específ icas. Ape-
sar do apelo mercadológ ico, são poucas as consultas dessas
mancias.
24
O tarô é tido como carro chefe da Feira. É o que atrai
maior número de cl ientes, mas é também a especial idade dos
dois coordenadores. Nem sempre essa opinião é comparti lhada
pelos demais místicos. Cada qual procura, evidentemente, re s-
saltar a sua mancia. Porém, de uma maneira geral podemos
classif icar o tarô como or ientador, auxi l iando as tomadas de
decisão que os indivíduos precisam empreender. Nesse aspecto
diferencia-se das demais cartomancias como o baralho comum,
o cigano ou outros.
(. . .) porque as minhas cartas (ciganas) dão prev i-são. Não é igual ao tarô, por exemplo, que or ienta . Eu não or iento nada. Eu falo o que a minha carta manda f a-lar. (Teresa, cartomante)
O tarô mostra as possibi l idades. Depois depende da escolha l ivre do cl iente, se isso se real iza ou não. (S o-lange, taróloga)
Eu acho que o tarô é um método de circunstância que vai servir para ajudar a interpretar coisas dentro de um momento determinado, dúvidas do indivíduo. (Diego , tarólogo)
A vidência é vista, pelos místicos, d iferentemente das o u-
tras mancias, como um grande dom que não se aprende. Como
uma capacidade nata não requer técnica específ ica. A única
vidente da Feira, no momento da pesquisa, trabalha apenas
com o nome completo e data de nascimento do cl iente. Diz ela:
Eu vou vendo as coisas aparecendo na minha fren-te. Consigo ver as coisas que estão ocultas na pessoa. É a pessoa quem mostra, mas ela não sabe disso. Sei lá, eu nasci com essa coisa, eu consigo enxergar. Às vezes me dá arrepios. Tem coisas que eu não gostar ia de estar vendo. (Regina, v idente)
25
Há, ainda, um místico que reúne quiromancia e vidência.
Seus serviços não estão incluídos na promoção de menor preço
pois os coordenadores af irmam que seu trabalho é diferenciado
dos demais. Trata-se de um def ic iente visual que justamente
por essa razão é tido como um dos mais mister iosos da Feira.
É o único místico que permanece na Feira, além dos dois coo r-
denadores, desde o seu iníc io. Assim def ine o seu tr abalho:
As pessoas f icam assustadas por verem um cego lendo mãos. Mas isso (a def ic iência visual) me traz co n-dições de ver coisas que os outros não conseguem ver. Depois que os cl ientes vêm pela pr imeira vez acabam vo l-tando, pois gostam muito. Eu pego nas mãos das pe ssoas e vou falando. (Reinaldo, quiromanc ista)
Para a responsável pela distr ibuição dos cl ientes, existem
mancias específ icas para cada tipo de demanda.
Dependendo da pessoa eu já indico um ou outro t i-po de oráculo. O jogo de búzios, por exemplo, ainda está muito vinculado à rel ig ião (candomblé). Os cl ientes g e-ralmente são f ixos, vêm aqui especif icamente para o b ú-zios. Dif ic i lmente a gente encaminha alguém. Quando chega algum jovem querendo saber apenas questões r e-lacionadas ao amor já mando para uma cartomante, que eu sei que vai falar o que ele quer ouvir . Quando uma pessoa vai a um cartomante , qual é a expectativa? Ela está com um pensamento para saber se vai arrumar um namorado, mas ela não diz para a cartomante. Ela vai querer saber se a cartomante olha para a vida dela e ver o que rola, se surge aí um namorado. (Thelma, coord e-nadora)
Outras mancias recebem diferentes tipos de tratamento e
o tarô acaba sendo reservado para aqueles que, na opinião da
coordenadora, dispõem de maior nível de conhecimento.
26
Quando a pessoa demonstra interesse ou cur iosid a-de, mando para a vidente. E assim vai. Mas tem muita gente que chega aqui com questões específ icas, de tra-balho, prof issão, pessoas mais estudadas, com maior n í-vel. Daí não tenho dúvida: é o tarô. Quem procura o t a-rô, geralmente, em algum momento teve um conhec imen-to mais intelectual izado, já leu algum l ivro sobre o tarô, ou aposti la, fez cursos. As car tas não. São aquelas coisas de momento, mais intui t ivas, de olhar para a carta e f a-lar: “o homem loiro da minha vida ” . Aquela coisa que não exige nenhum grau de escolar idade. Quando eu falo que o tarô é mais profundo, trabalha com fatos mais e specíf i -cos, é verdade. Porque uma pessoa mais intelectual izada vem com mais expectativa. (Thelma, coordenadora)
A numerologia é também bastante uti l izada para respo n-
der a dúvidas específ icas, tanto em questões amorosas como
questões de dinheiro e negócios. É comum pessoas procura-
rem-na para decidir que nome dar ao f i lho, ou qual a melhor
data para fechar um determ inado negócio.
A Feira Mística conta atualmente, ou contava no passado,
com vár ios outros oráculos que não têm tanta af luência. G e-
ralmente são real izados pelos mesmos místicos que lêem car-
tas, tarô ou mãos. São eles: astrologia, I Ching, runas, bola de
cr istal , borra de café, chá árabe, moedas egípcias, jogo de p e-
dras, fei jão maravi lha e graf ologia.
A partir desse levantamento descr it ivo, os oráculos ofer e-
cidos na Feira Mística puderam ser classif icados segundo um
pr incípio de ordem, que nos permite perceber que não se trata
de um mero aglomerado indistinto de mancias diversas, mas
constituem uma estrutura simból ica que local iza os sujeitos,
místicos e consulentes , dando sol idez ao que aparentemente é
caótico e aleatór io.
27
Conforme o esboçado anter iormente, a classif icação pr o-
posta compõe-se basicamente de quatro pólos que se interr e-
lacionam, formando dois eixos: um horizontal e outro vertical ,
conforme a f igura aba ixo.
Pólo Mediato
Pólo Erudito Pólo Popular
Pólo Imediato
No pólo erudito encontram-se a astrologia e o tarô, tanto
o egípcio como o espanhol. São mancias que requerem estudo
aprofundado e contínuo por parte do prof issional. Isso não
quer dizer que outros oráculos não possam ser estudados ou
que não sejam levados a sér io. O esoter ismo tem longa trad i-
ção de estudos inic iáticos em diversas artes mânticas, mas o
que acontece na Feira Mística é diferente. Al i se dá uma con s-
trução simból ica interna que coloca as mancias em diferentes
posições quanto a erudição, exigindo mais ou menos conhec i-
mento dos prof issionais que nela tr abalham.
As duas mancias aqui local izadas guardam diferenças e n-
tre si . O tarô é o que tem maior oferta e demanda. Já a astr o-
28
logia, como foi apontado anter iormente, é muito pouco uti l iz a-
da. Em comum guardam a caracter ís tica de buscar as potenc ia-
l idades e marcas da personal idade dos consulentes. Não há
preocupação em divinação do futuro, mas sim o desvelamento
das possibi l idades ocultas.
No eixo hor izontal e do lado oposto ao erudito encontra -
se o pólo popular, com as cartomancias e baralhos em geral.
Os mais famosos e uti l izados são o baralho comum e o cigano.
O termo popular advém da caracter í stica apontada pelos adiv i-
nhos de que essas mancias se aprendem através da sabedoria
popular, “em casa com a avó, com a tia, com a vizinha.. .” Não
requerem estudos sis temáticos, nem há preocupação de pr ocu-
rar em l ivros expl icações para as técnicas desses oráculos.
Apoiam-se basicamente na intuição dos místicos. Dizem que
servem apenas para adivinhar, fazer predições e responder a
questões específ icas.
O eixo vertical procura dar conta da mediação do adiv i-
nho. O pólo mediato guarda as mancias que independem de
técnicas e que se apoiam totalmente na intuição e percepção
do místico. Respondem a qualquer pergunta trazida pelos co n-
sulentes. Nesse pólo estão contidas as vidências em g eral.
No lado oposto, pólo imediato, a regra é a da não inte r-
mediação do místico. Tudo se baseia na leitura técnica dos i ns-
trumentos que, dizem, independe da posição do prof issi onal.
As l inhas da mão estão à disposição de qualquer um que c o-
nheça as técnicas da quiromancia. O mesmo se apl ica às lei t u-
ras de chá árabe ou borras de café.
29
Uma mancia bastante famosa e requisitada na Feira Míst i-
ca, o jogo de búzios, acabou f icando à margem mesma dessa
classif icação. Tal não poderia deixar de ocorrer, pois é a única
mancia que mantém l igações com uma rel ig ião específ ica. Fo r-
ma um caso à parte. No iníc io foi v isto com um certo desdém ,
pois a comunidade afro não aceitava a leitura fora do ambiente
sagrado do terreiro. Aos poucos foi conquistando cl ientela pr ó-
pr ia e se f irmando no espaço da Fei ra. Para o pai -de-santo que
al i trabalha,
isso aqui é uma forma de aumentar meus rendimentos. Ampl ia o mercado de trabalho do povo dos terreiros. Mas aqui eu não jogo com os búzios da minha casa. São ou-tros. Mas no fundo dá cer to. (. . .) Dessas outras adiv i-nhações aí eu não conheço nem quero conhecer. (Nestor, pai-de-santo)
É interessante notar que, por esses mesmos motivos, os
místicos que jogam búzios são praticamente os únicos que at u-
am exclusivamente com uma única mancia. Os demais, apesar
de se def inirem como leitores de um determinado oráculo,
sempre oferecem algum outro tipo de leitura oracular .
As mancias classif i cadas são aquelas mais uti l izadas na
Feira Mística. Todas as demais poder iam ser pensadas também
em termos dos dois eixos estruturantes, pendendo cada qual
para um determinado pólo.
Cabe ressal tar que essa classif icação não é r íg ida. Os
própr ios místicos acabam misturando oráculos durante uma
consulta, numa postura pol ivalente. A norma é para que não
façam isso. Se um cl iente deseja consultar o tarô e I Ching,
por exemplo, é preciso que pague pela segunda consulta. C o-
30
mo nem sempre a norma é seguida, acabamos tendo uma pos-
sib i l idade de hibr id ismo entre os pólos.
A classif icação permite não apenas a ordenação dos or á-
culos, mas também a possibi l idade de pensar a dinâmica inte r-
na da Feira Mística com seus personagens: os místicos e os
consulentes.
3. Personagens
Dando continuidade à tarefa de retratar a Feira Mística é
preciso, agora, olhar para seus personagens. Quem são, af inal,
os sujeitos desta pesquisa?
A grande imprensa e o senso comum costumam def inir os
prof issionais dos oráculos em praças públ icas como um conjun-
to de aproveitadores da crendice alheia e os cl ientes como
pessoas sem formação em busca de respostas superf ic iais para
dúvidas imediatas. Ser iam esses meros transeuntes que, entre
outras ativ idades de lazer, acabam consultando os oráculos e s-
poradicamente.
Tal visão está muito longe do que se passa na Feira Mí s-
tica. Isso não quer dizer que a cl ientela seja formada somente
por pessoas que mantém vínculos mais duradouros com os or á-
culos. Também aparecem os cur iosos, mas estes não consti t u-
31
em o bloco pr incipal de consumidores. Por outro lado, dizer
que os místicos são sujei tos esper tos que poderiam vender o u-
tro tipo de produto numa feira qualquer, é reduzir absurd a-
mente o fenômeno signif icando no mínimo um olhar preconcei-
tuoso que não deseja compreender o que acontece.
Começo pelos místicos, os prof issionais da Feira. O fato
de se tratar de um empreendimento micro -empresar ial sob a
coordenação dos sócios impl ica na tentativa de manutenção de
um determinado padrão. Os místicos são selecionados e esc o-
lhidos por esses coordenadores, muitas vezes vindos diret a-
mente dos cursos profer idos por Mathias Diego. Essa caract e-
r íst ica já aponta para um padrão interno. Convém olhar po r-
tanto, mesmo que brevemente, para as trajetór ias desses pe r-
sonagens.
Diego é aquele que traz a maior bagagem e exper iência
no campo das práticas denominadas esotér icas em geral e nas
leituras oraculares em específ ico. Nasceu na Espanha em 1934,
no inter ior de uma famíl ia judaica. Seu pai acabou sendo preso
devido a guerra civ i l e o menino passou anos internado num
colégio catól ico no norte da Áfr ica.
Isso me ajudou muito. Fui conhecer Tomás de Aqu i-no, Teresa d’Avi la, esses místicos todos. Comecei a sentir e ouvir vozes, mas não podia falar para os super iores. Isso foi gerando um conf l i to. Depois, com meus famil i a-res, comecei a conhecer a cabala e todo universo místico, não só do judaísmo, mas também das cartas, do tarô. Meu avô praticava curanderismo de animais, tratava de animais doentes. (Diego)
Considera que todo o seu conhecimento tem um fundo c i-
entí f ico e desenvolveu, ao longo desses anos todos, uma teor ia
32
própr ia que procura conci l iar a f ís ica moderna e a sabedoria
popular.
Existe um trabalho que eu venho desenvolvendo há 25 anos chamado “energia única”, ou seja, o máximo e o mínimo são a mesma coisa. Se chegamos ao átomo va-mos também chegar ao máximo. Para fazer magia é n e-cessár io saber f ís ica. Quando você pega uma determina-da matér ia, uma planta por exemplo, e começa a perc e-ber e entrar nela, no tempo de exis tência dela, você c o-meça a perceber que nós, como qualquer outro animal também, podemos absorver os fatores da planta. Tiramos da planta os seus fatores mágicos, a sua energia, que é única e serve para a gente também. (Diego)
Diego cr it ica muitas pessoas envolvidas nesse universo
místico e esotér ico contemporâneo, que, segundo ele, estar iam
de olhos vendados acei tando qualquer coisa que lhes d igam.
Esses caras que dizem que vêem gnomos estão p i-rados, malucos. Não se pode ver gnomos, salamandras, os elementais. . . Isso existe, mas não se pode ver. É pre-ciso a pesquisa cientí f ica. Mas o místico não se interessa pela pesquisa cientí f ica. É mais fáci l acei tar as coisas sem pesquisa cientí f ica. (Diego)
Essa maneira de encarar magia e ciência não é exclusiv i-
dade sua, mas demonstra que os su jeitos envolvidos neste un i-
verso compõem redes de signif icados diferentes entre os vár ios
elementos disponíveis no momento e aqueles or iundos de sua
exper iência e bagagem cul tural.
A partir desse universo mais amplo é que vão constituir a
sua visão sobre os oráculos. É importante perceber que Diego,
pela sua posição de coordenador da Feira, reconhecimento de
suas qual idades no meio místico e mentor intelectual daqueles
33
que formou, acaba influenciando a visão que todos os demais
têm sobre as artes divinatór ias.
O oráculo não é outra coisa senão uma forma de você despertar a premonição, a intuição, os fatores e s-condidos. Se eu pegar a mão de alguém, ou tirar as ca r-tas de tarô para essa pessoa, eu estarei usando as forças do oráculo para saber o que está acontecendo ou pode acontecer. Mas as forças dos orácu los, qualquer um d e-les, são as mesmas forças de todo o resto, são as forças da natureza, a energia única. (Diego)
Há anos que Diego não dá mais consulta no espaço da
Feira. Sua presença, no entanto, é bastan te comum. Em geral
os místicos o respei tam e costumam consultá - lo, através do
tarô, quando têm algum problema maior. Tal fato já não aco n-
tece com a outra coordenadora. Se Diego imprime à Feira o
tom do conhecimento esotér ico, Thelma se responsabi l iza pelo
lado comercial .
Durante a época da pesquisa, Diego e Thelma cr iaram o
“Espaço Esotér ico Bruxas e Fadas”, um sobrado no bairro de
Vi la Madalena onde faziam suas consultas nos dias de semana
e real izavam os cursos de tarô e “energia única”, além de ve n-
der alguns produtos l igados ao mist ic ismo e às artes mânticas
(velas, incensos, baralhos e outros do gênero). Trata -se de
uma modal idade usual no circuito esotér ico da cidade. Magnani
classif icou esses espaços como Centros Integrados, “aqueles que reúnem e organizam, num mesmo espaço, vár ios serviços
e ativ idades, como consul tas a algum dos sistemas oraculares,
34
terapias e técnicas corporais alternativas, palestras e cursos
de formação, venda de produtos, vivências coletivas” 16.
Diego possuía, antes mesmo da ex istência da Feira, um
consultór io particular para as consul tas de tarô. De acordo com
o seu depoimento, tem uma extensa carteira de cl ientes, c o-
brando até quatro vezes mais por uma consul ta. Thelma, ao
contrár io, apesar de também consultar individualmente, fe z
sua carreira de mística a par tir da Feira.
Demorei dez anos para abr ir um espaço para me e s-tabelecer como taróloga. Só há dois anos é que monta-mos esse “Espaço Esotér ico” (em 1996). Consultava na Feira, mas esse tempo todo me sentia insegura. Eu não sabia coordenar aqui lo que conhecia com aqui lo que sen-tia nas car tas. Aos poucos fui dando ouvidos àqui lo que as pessoas diziam: “Thelma, você acertou tudo, você f a-lou assim assim e foi o que aconteceu”. (Thelma, coord e-nadora)
Thelma é a grande responsável pe la organização da Feira
e também pela contratação de novos místicos. O pr imeiro cr i-
tér io uti l izado é o da diversidade de oferta dos oráculos. “Uma feira tem de ter de tudo. Senão não é feira, não é?” Quando
estão com alguma lacuna, os própr ios místicos in dicam conhe-
cidos. De acordo com a informante, não é dif íc i l arrumar pr o-
f issionais dispostos para o trabalho. Os que lêem tarô vieram,
praticamente todos, dos cursos do Diego. Não é raro, também,
acontecer de alguém passar pela Feira e oferecer seus serv i-
ços.
A partir de um pr imeiro contato, Thelma faz um teste com
o pretendente. Pede que ele leia o oráculo para ela.
16 José G. MAGNANI, Mystica Urbe, p.27.
35
Aqueles que têm ego muito exacerbado já não se r-vem. Não se submetem à estrutura da Feira. Se tem mu i-to ego não funciona. Em seguida , eles abrem o jogo para mim. O Diego não faz isso porque ele acha que é hum i-lhante, mas eu faço. Daí eu vejo se ele consegue ler n u-ma situação de estresse. Eu sinto: este serve, esse não serve. Daí eu ponho em prática” . (Thelma, coordenadora)
As or igens dos místicos que trabalham na Feira são dive r-
sas. Num pr imeiro momento pode-se deixar enganar e ver ape-
nas um amontoado de his tór ias difusas e desconectadas. Tem
pessoas de idade avançada, já aposentadas, que como meio de
preencher o tempo ocioso começaram a dar consult as. Tem jo-
vens, estudantes ou recém-formados, que fazem do trabalho
aos f inais de semana não apenas uma maneira de receber um
dinheiro extra, mas uma forma de manter contato com os or á-
culos, se aprofundar em algo que lhes dá prazer. Em termos de
uma formação rel ig iosa também não surge nenhum padrão ún i-
co. Há os que tiveram formação ma is r íg ida (catól icos, protes-
tantes e outros) e há os que nunca praticaram rel ig ião. Há os
mais l igados a estudos esotér icos (rosa -cruz por exemplo) ou
ainda outros que freqüentam centros espír i tas.
Eu comecei a trabalhar com vidência depois que m i-nha famíl ia insistiu. Eu costumava br incar com essas co i-sas, mas depois foram acontecendo algumas coisas muito sér ias e eu fui vendo que precisava direcionar isso. Aqui na Feira, pelo menos, eu canal izo minha energia para a leitura de algo posit ivo para as outras pessoas. (Regina, vidente)
Eu tinha uma vida muito certinha, emprego f ixo, marido, dinheiro, tudo. Um belo dia cansei de tudo, la r-guei tudo e estou aqui. (Teresa, cartomante)
Eu faço carta astral e estudo astrologia. Estar aqui na Feira é uma maneira de aprofundar meus conhec imen-
36
tos, colocar em prática aqui lo que vou aprendendo. Se bem que aqui eu quase não faço astrologia, é mais leit u-ra de chá árabe.. . (Dél io, astrólogo e chá árabe)
Até pouco tempo trabalhava em mul tinacional, junto com um monte de empresár ios. Hoje estou aqui no pa r-que do Ibirapuera, todo f im de semana, faça chuva ou sol. (Noel i , cartomante)
A maior ia deles atua como adivinho em tempo integral,
seja em casa, no “espaço esotér ico”, nos serviços de 0900 ou outros. Os coordenadores da Feira preferem que assim o seja,
mas temem que esses místicos acabem levando seus cl ientes
para consultór ios particulares.
Eles fazem mui to isso. Só que a gente não l igava quando tinha muito cl iente. De uns tempos para cá nós começamos a f icar em cima. Eu já cheguei a t irar cartão da mão das pessoas. Falo que na casa do místico ele não vai ter alguém olhando pelo trabalho, como um controle de qual idade para ele não ser lesado. (Thelma , coorde-nadora)
Quanto à formação e conhecimento místico e dos orác u-
los, pode-se aglutinar os prof issionais da Feira através da
mesma classif icação proposta anter iormente. No pólo erudito
encontram-se aqueles que se dedicaram, ou continuam se d e-
dicando, aos estudos.
A gente nunca pára de estudar. Tem sempre algo a mais para saber, um l ivro novo. (So lange, taróloga)
A denominação “erudito” uti l izada aqui não guarda nece s-
sar iamente uma correspondência às categor ias uti l izadas por
Magnani 17, “t ipo erudito”, nem à de Phi l ippe Defrance, “astro-
17 Ibid.
37
logia erudita” 18. Se Defrance separa a astrologia em duas, uma
vulgar ( l igada aos horóscopos) e uma erudita ( l igada às ciê n-
cias, ocultas ou não) e Magnani fala em domínio de um código
coerente, uti l izo o termo aqui como manei ra de diferenciação
interna. Todas as mancias da Feira requerem domínio de cód i-
gos específ icos por par te dos místicos e, por outro lado, ta m-
bém se poderia pensar em dividir os vár ios oráculos (notad a-
mente o tarô) em vulgar e erudito segundo a classif icação de
Defrance.
A questão ver i f icada na pesquisa diz respeito à formação
dos adivinhos. Se no pólo erudito ou no imediato se exige a
leitura e o domínio de técnicas específ icas, nos pólos opostos,
popular e mediato, a ênfase está na intuição, vista como um
dom que pode ser apenas canal izado para bom proveito de seu
portador e das pessoas a seu redor. Mas não há uma depreci a-
ção de um em favor do outro. Ambos são valor izados.
Se a pessoa fala que lê tarô, mas nunca estudou, eu já descarto logo de cara. (Thelma, coordenadora)
Eu sempre tirei as cartas. Nunca tive que aprender. Sei lá, parece que já nasci com isso. (Teresa, cartoman-te)
Eu gostar ia de ter o dom de ler as cartas. Mas que eu posso fazer? Não tenho, né? Então tenho que estudar. (Solange, taróloga)
Os místicos têm histór ias de vida, faixas etár ias, crenças
rel ig iosas, posições pol í t icas diversas e, pr incipalmente, atuam
com mancias diferentes no inter ior de uma feira que, como o
18 Philippe DEFRANCE, “A astrologia erudita”, In: Edgar MORIN et al., O retorno dos as-trólogos.
38
própr io nome já indica, é uma exposição, para venda, de me r-
cadorias diversas. A própr ia visão que têm do signif icado de
mistic ismo 19 já indica uma dispar idade. Mas há algo, além da
simples questão prof issional, que indica a lógica que está por
trás dessa duradoura união de pessoas em torno das ar tes
mânticas.
Ao falarem de suas vivências, os místicos entrevis tados
destacam o quanto a Feira está presente na vida de cada um.
Pude perceber que cuidam do ambiente da feira como uma f a-
míl ia ampla. É um espaço de sociabi l idade.
Eu não consigo mais sair daqui. É impressionante, sei lá. Eu gosto, me acostumei. (Teresa, ca r tomante)
Quando eu não venho à Feira, por a lgum motivo, eu me sinto estranha. Falta alguma coisa. (Vi lma, taróloga)
Quando não estão consultando, os místicos reúnem -se em
torno de uma pequena mesa (a coordenação da Feira sempre
traz mesa e cadeiras para a permanência daquele que vende as
f ichas de consulta) e conversam sobre var iados assuntos. É
comum a presença neste círculo de cl ientes habituais que, pela
constante presença e pelo envolvimento sentimental dado p e-
las consul tas, permanece integrado à roda.
Não tive f i lhos por opção, talvez eu já previsse que eu ir ia ter muitos f i lhos postiços, entre aspas. Vamos chamar assim. Porque eu considero assim também. Os cl ientes me chamam muito de “mãezona”. Eu sou muito de dar colo. Eu me sinto totalmente preenchida nesse sentido. (Teresa, cartomante)
19 Ver mais adiante.
39
Aqui todo mundo se dá bem. É comum a gente fazer piquenique, tem sempre alguém que traz um bolo, tem uns chás maravi lhosos que o Dél io usa para suas leituras. E a gente f ica aí , todo f im de semana. (Diná, cartomante e chá árabe)
A gente é muito unido. Um conta para o outro os seus problemas. Sempre que eu não consigo entender a l-guma coisa que está acontecendo eu peço para a Solange tirar as cartas para mim. (Vi lma, taróloga)
Para Simmel a grande metrópole ocasiona a individual iz a-
ção e a pessoa precisa enfrentar a dif iculdade de afirmar sua
própr ia personal idade. Vai se conf igurando, assim, a brevidade
e escassez dos contatos inter -humanos. Em situações extre-
mas, para alguns tipos de ind ivíduos, o único meio de salva-
guardar a si própr io um pouco de auto -estima é através do co-
nhecimento de outros 20. Os personagens da Feira constróem
laços de sol idar iedade que permitem o sentimento de per te n-
cimento a um grupo. Formam uma famíl ia no sentido i dentitá-
r io, e não consangüíneo, que permite enfrentar o sentimento
de isolamento. Constituem um grupo, ao menos durante o cu r-
to per íodo dos f inais de semana, que se distingue dos in úme-
ros grupos exis tentes na grande cidade. Isso se deve àqui lo
que Giddens 21 chamou de desencaixe dos sistemas sociais na
modernidade. Quanto mais complexidade a vida apresenta,
mais referenciais estão disponíveis para a af irmação da pers o-
nal idade. Uma vez que os símbolos estão retirados de seus
contextos (o desencaixe de Giddens) , há uma plêiade de poss i-
bi l idades diversas de conf iguração dos grupos s ociais.
20 Georg SIMMEL, “A metrópole e a v ida mental ”, In: Otáv io VELHO, O fe-nômeno urbano , p. 25. 21 Anthony GIDDENS, As consequências da modernidade.
40
Os místicos da Feira, junto aos cl ientes assíduos que de
certa maneira se encontram inser idos na “famíl ia”, formam uma pequena tr ibo urbana. Unidos, sentem-se mais fortes para
enfrentar as vic issitudes do resto da semana. Construíram seus
laços de união em torno de uma ativ idade que vai muito além
do simples aspecto econômico. O conceito de neotr ibal ismo
uti l izado por Maffesol i 22, que procura dar conta desses agru-
pamentos urbanos constituídos em torno de algum sentimento
ou terr i tór io, se enquadra satisfator iamente no universo da
Feira Mística. São agregações de contornos indef inidos, form a-
dos por indivíduos de diferentes or igens, mas marcados por
uma ética de simpatia, partic ipação e parti lha de um sent imen-
to comum.
Os cl ientes mais habituais também fazem parte dessa
“famíl ia extensa”. No per íodo da pesquisa de campo, o número de cl ientes atendidos durante um f inal de semana nas duas l o-
cal idades da Feira dif ic i lmente chegava a 100. Bem infer ior,
portanto, aos tempos de grande sucesso. Porém, o mais i mpor-
tante para a anál ise é que esse contingente de pessoas é qu a-
l i tativamente signif icat ivo.
É certo que também há aqueles que consul tam os orácu-
los por cur iosidade e que aproveitam o momento de lazer no
parque para se distraírem com o que chamam de uma “br i nca-
deira” inofensiva. São vár ias as poss ibi l idades de uti l ização dos
jogos divinatór ios.
Com a f inal idade de ordenar esse contingente, para poder
perceber os diferentes usos desse ser viço, procuro estabelecer
22 Michel MAFFESOLI, O tempo das tribos.
41
uma classif icação. Os dados foram colhidos através de uma
amostragem representativa, uti l izando questionár ios apl icados
entre os meses de junho e agosto de 1998. A partir desse pr i-
meiro levantamento do perf i l dos usuár ios, foi pos sível apro-
fundar o olhar entrevistando os cl ientes mais fr eqüentes.
De todos os usuár ios da Feira, o contigente de cur iosos,
ou daqueles que vêm pela pr imeira vez é pequeno, menor do
que um terço do total de consultas real izadas. No entanto, não
deixa de ser signif icativo do ponto de vis ta empresar ial e f i -
nanceiro, uma vez que a micro -empresa Feira Mística não po-
der ia abr ir mão desses cl ientes. Pr incipalmente, porque alguns
desses cur iosos poder iam retornar e estabelecer laços mais s ó-
l idos. Desses “neóf itos” vale ressaltar que metade já foi algu-
ma vez na vida consultar uma cartomante, vidente ou outra
mancia em outro lugar da c idade.
Praticamente 60% dos cl ientes fazem uso constante, sen-
do que a maior ia deles consulta os oráculos da Feira mais de
uma vez por mês, não sendo nada desprezível o número d a-
queles que vão regularmente todas as semanas. É comum, i n-
clusive, alguns desses consul tarem mais de uma vez no mesmo
dia. Fecham o quadro, ainda, um pequeno grupo de usuár ios
eventuais, que já uti l izaram da Fei r a, assim como de outros
serviços de divinação na cidade, mas não têm por hábito fazer
repetidas consultas aos oráculos.
Para sintetizar o quadro classif icatór io de usuár ios em
termos de sua adesão aos oráculos, temos então: os cur iosos,
os eventuais, os habituais menos freqüentes e os habituais
mais freqüentes. O cr itér io de dis tinção entre esses dois últ i -
42
mos grupos foi apenas a freqüência de uso da feira. Os menos
freqüentes fazem uso até uma vez por mês, enquanto que os
demais uti l izam mais de duas vezes a cada mês. Se a assidu i-
dade é diferente o mesmo não podemos dizer a respeito do
grau de adesão. Entende-se por adesão o comportamento dos
indivíduos que se consideram conhecedores dos tipos e fu n-
ções dos oráculos, demonstrando habi l idade para compreender
o sentido oculto dos mesmos. Há uma semelhança muito gra n-
de entre eles a esse respei to, tornando possível uma anál ise
conjunta dos dois grupos. A questão da freqüência pode ser
inf luenciada, entre outros fatores, pela disponibi l idade f ina n-
ceira ou ainda pelos momentos de cr ise mais ou menos inten-
sos que o indivíduo enfrenta. É sobre esses dois grupos de
usuár ios, habituais mais freqüentes e habituais menos fr eqüen-
tes, que a anál ise se deterá nos cap ítulos poster iores.
A Feira Mística é um empreendimento bastante conhecido
no meio místico contemporâneo. A maior ia dos cl ientes (68%)
uti l iza de seus serviços oraculares há mais de um ano, sendo
que muitos disseram conhecê-la desde o seu iníc io. Um dado
signif icativo que marca a Feira como um espaço diferenciado é
de que os cl ientes habituais, tanto os de maior como o s de
menor freqüência, acabam tendo um místico prefer ido que se
torna seu conf idente. Muitas dessas pessoas já uti l izaram dos
serviços de outros adivinhos em outros ambientes da cidade,
mas na Feira acabaram estabelecendo laços de f idel idade. Esse
aspecto do universo da pesquisa permitiu que se f izesse um
acompanhamento dos i t inerár ios e trajetór ias desses sujeitos e
que se percebesse a construção de sentido que esses oráculos
têm nas suas histór ias de vida.
43
Tais dados demonstram que a Fei ra Mística não ser ve
apenas a práticas de lazer sem comprometimentos , nem é me-
ro arranjo empresar ial , como geralmente é tratada num olhar
superf ic ial , mas uma ativ idade perfeitamente integrada ao m o-
do de vida cotid iano de uma parcela da população. Enquanto
tal produz signif icações.
O contingente de usuár ios é basicamente feminino (73%).
Essa tendência ao universo feminino é uma constante no un i-
verso oracular ou ainda no meio esotér ico em geral. Fischler 23
registra praticamente a mesma proporção entre os adeptos da
astrologia na França. O mesmo foi apontado por Vi lhena 24 nos
grupos astrológicos da sociedade car ioca. Magnani ressalta que
“a presença da mulher no meio neo -esotér ico, al iás, é de tal
forma marcante – não apenas pela proporção de sua partic ip a-
ção, mas como formadora da sensibi l idade dominante no ethos
neo-esô – que merece destaque” 25. Fundamentados em dados
empír icos quantitativos, Bandeira et al . 26 constatam a mesma
desigualdade entre os praticantes de mistic ismo e esoter ismo
na cidade de Brasí l ia.
Magnani 27 sugere algumas pistas para a interpretação de
tais dados. Pr imeiramente ressalta que os quadros de referê n-
cia possuem uma fundamentação mitológica no mundo femin i-
no (“mãe terra”, “grande deusa”, “mãe natureza” etc.). Em s e-
guida, lembra o resgate da f igura da bruxa, um poder t ip ic a-
23 Claude FISCHLER, “Astrologia de elite”, In: Edgar MORIN et al., O retorno dos astrólo-gos. 24 Luis R. VILHENA, O mundo da astrologia. 25 José G. MAGNANI, Mystica Urbe, p. 110. 26 Lourdes BANDEIRA et al., “Perfil dos adeptos e caracterização dos grupos místicos e esotéricos no Distrito Federal”. 27 José G. MAGNANI, op. cit.
44
mente feminino. Sem querer se aprofundar nas causas dessa
predominância, Magnani não deixa de apontar que
no universo de crenças e práticas designado de neo -esotér ico o papel da mulher difere radicalmente do que ocupa em sistemas rel ig iosos da tradição juda i-co/cr istã/ islâmica. Enquanto nestes últ imos sua posição foi sempre subordinada, em termos insti tucionais e r i t u-ais, naquele, ao contrár io, a mulher não é apenas cl ie n-te, mas agente – propr ietár ia, organizadora, diretora, prof issional. 28
No caso específ ico dos oráculos é p reciso lembrar que ou-
tros fatores constitutivos podem ter inf luenciado nessa pr edo-
minância feminina. Diferentemente das práticas rel ig iosas of i-
c iais, de grande visib i l idade e poder expl íc i to, as mancias f o-
ram sendo praticadas nos espaços de menor visib i l id ade e onde
o poder se exerce de maneira subl iminar e indireta. Guardando
sempre uma aura de mistér io e uso de forças mág icas, de dons
e de conhecimentos esotér icos, essas práticas, pr incipalmente
as car tomancias e vidências em geral, encontraram no âmbito
recluso do lar o seu espaço maior de divu lgação. Não deixa de
haver um paralelo com as práticas de benzeção no Brasi l , na s-
cidas à margem de um catol ic ismo, procurando dar conta d a-
qui lo que a rel ig ião e o conhecimento cientí f ico of ic iais não
conseguiam. No inter ior do Brasi l , inclusive, uma das práticas
das benzedeiras é a denominada “responsar”, um dom de res-
ponder sobre aqui lo que está ocul to.
Um tipo de divinação. Essas práticas sempre foram predomi-
nantemente femin inas, correndo às margens do poder mascu l i-
no dominante na sociedade. Isso pode expl icar o maior conti n-
28 José G. MAGNANI, Mystica urbe, p. 115.
45
gente feminino entre os agentes, sejam as benzedeiras ou as
cartomantes, mas entre o universo de cl ientes e na r eprodução
dessas prát icas a predominância também foi feminina pelas
mesmas razões, ou seja, uma maneira de prática de poder à
margem da of ic ial .
Essas são algumas possibi l idades de anál ise que sugerem
a composição do substrato or ig inal onde as práticas divinat ó-
r ias se constituíram entre nós. É preciso, agora, voltar o olhar
para outras dimensões e ver por quê até hoje há essa predo-
minância. No universo das representações simból icas dos pr o-
f issionais e cl ientes da Feira é constante o vínculo do dom de
adivinhar com a sens ibi l idade feminina.
Eu acho que as mulheres têm esse dom, por natur e-za. (Solange, taróloga)
As mulheres gostam mais de saber sobre essas co i-sas de futuro, do que vai acontecer. (cl iente mais fr e-qüente, sexo feminino, 26 a 35 anos, advogada)
Elas têm mais sensibi l idade, entendem o que se passa com as pessoas. (cl iente menos freqüente., fem., 19 a 25 anos, técnica em tur ismo)
Parece que as mulheres gostam mais de conversar sobre isso, são cur iosas, sensíveis. O homem vem para saber de negócios e depois de amor. A mulher vem para saber dela, do amor. Depois fala do trabalho. (Thelm a, coordenadora)
Essa visão está presente no imaginár io das pessoas da
Feira, porém é preciso percebê-la não como uma condição na-
tural , mas uma construção social . É no âmbito da cu ltura que
se estabelecem os valores do que signif ica ser m ulher, ou o
seu contraponto, o que é ser homem. Existem d iferentes con-
46
cepções de como deve ser o comportamento de cada um dos
sexos, mesmo no inter ior de uma mesma socied ade. O conceito
de gênero, que procura l idar com as dimensões cu l turais dos
sexos, é relacional, ou seja, as concepções do que é ser mu-
lher são sempre parti lhadas com os homens e compl ementares
ao signif icado de mascul inidade. Assim, a pr edominância da
presença feminina em consul tas oraculares na Feira Mística d e-
ve ser expl icada pelas construções de signif icados que a socie-
dade ocidental em geral e a paul istana em partic ular empreen-
deram.
Os comportamentos dos homens ou das mulheres frente
aos oráculos sofrem diferentes interpretações conforme a pos i-
ção destes no âmbito social . Espera -se do homem que seja for-
te, f ís ica e emocionalmente, que seja racional, objetivo e que
não chore nem se perca nos meandros da emotividade. O h o-
mem não tem por hábito, na nossa sociedade, de conversar
seus problemas pessoais abertamente e em públ ico. Ser sens í-
vel, para um homem, é muitas vezes tido como sinal de fr a-
queza ou femini l idade. Da mulher, ao contrár io, acei ta -se que
chore, que converse horas a f io sobre problemas de sua subj e-
tiv idade e que se abra freqüentemente para suas conf identes.
Apesar dos quadros de referência do uni verso neo-
esotér ico valor izarem os aspectos femininos, conforme indic a-
do por Magnani 29, e de haver um discurso neste meio af irman-
do que o homem deve-se abr ir também ao seu lado feminino,
as matr izes culturais são ainda muito sól idas. As mulheres co n-
tinuam cumprindo o papel que a sociedade espera delas e, por
29 José G. MAGNANI, Mystica urbe.
47
sua vez, os homens continuam mais preocupados com as que s-
tões práticas e racionais dando pouca brecha para lei turas do
tipo oraculares.
Outros dados do perf i l dos usuár ios são importantes para
que se possa fazer um retrato mais nít ido do objeto da pesqu i-
sa. São apresentados aqui sem uma preocupação maior de
anal isar cada um em separado, mas para fundamentar as an á-
l ises qual i tativas que a pesquisa se propõe a fazer.
Longe de ser uma ativ idade de jovens em busca de novas
exper iências, minha amostragem mostrou que mais de 70% dos
cl ientes são adultos (32% na faixa de 26 a 35 anos, 31% de 36
a 50 anos e 8% com mais de 50 anos). Aparece uma predom i-
nância à maior idade entre os homens que entre as mulheres
(20% dos homens estão abaixo dos 25 anos contra 33% do
universo feminino; 56% dos homens têm mais de 36 anos con-
tra apenas 33% das mulheres). Os jovens e adolescentes, d ife-
rentemente do que poderia suger ir uma abordagem imediata,
são minor ia. 3% para os menores de 18 anos e 26% na faixa
de 18 a 25 anos. Um dado importante a esse respeito é que
nessa faixa se concentra um maior percentual de cur iosos.
Mais um dado que conf irma a importância da Feira como esp a-
ço de vivências profundas e não como forma de lazer eventual
de um grupo de jovens.
Apesar de estar em um parque ou em praça públ ica, a
maior ia dos freqüentadores deslocou -se especif icamente para
lá com o intuito de consultar o oráculo. Mais uma vez não se
trata de compor o dia de lazer no parque com uma consu lta
48
sem compromisso. Indica uma f inal idade específ ica e uma i m-
portância da Feira na vida das pessoas.
Da mesma maneira que em outros ambientes vol tados aos
oráculos na sociedade moderna e ao chamado universo místico
e esotér ico 30, a população de cl ientes da Feira é composta por
pessoas das classes médias e com alto grau de escolar idade.
Apenas 2% não têm o pr imeiro grau completo e 9% não com-
pletaram o segundo grau. Porém, 34% possuem segundo grau
ou estão cursando uma faculdade e nada menos que 55% con-
cluíram o nível super ior, sendo vár ios desses pós -graduados e
até doutores. Coerentemente, o nível de renda acompanha a
escolar idade. Mais de 60% dos cl ientes da Feira Mística poss u-
em renda famil iar super ior a vinte salár ios mínimos (aproxim a-
damente R$ 2.600,00) , 23% de dez a vinte salár ios mínimos e
12% de cinco a dez. Somente 4% recebem até cinco salár ios
mínimos por mês.
Em relação à rel ig ião professada, a maior ia se disse cat ó-
l ica (40%), bem abaixo, porém, da média nacional. Somente
2% de evangél icos ou protestantes histór icos, coerente com a
doutr ina evangél ica de não procurar saber sobre sor te, destino
ou futuro. É pequeno o número de umbandistas ou adeptos do
candomblé (3%), mas temos aqui o problema da autodenom i-
nação e também o fato do rel ig ioso afro consultar o oráculo
30 Cf. os autores já citados anteriormente e que trabalharam com esse universo como: Morin et al. (Edgar MORIN et al., O retorno dos astrólogos), Vilhena (Luiz R. VILHENA, O mundo da astrologia), Bandeira et al. (Lourdes BANDEIRA et al., “Perfil dos adeptos e caracterização dos grupos místicos e esotéricos no Distrito Federal”).
49
dos búzios diretamente nos terreiros, sem ter necessid ade de
uti l izar a Feira Mística. Por outro lado é grande o n úmero de
espír i tas kardecis tas (10%) frente ao conjunto da s ociedade
brasi leira. A crença na idéia de karma abre as portas p ara uma
consulta t ida como mais natural dos oráculos. Apar ecem ainda
demais rel ig iões (4%) como budistas, judeus e outras, ou ain-
da aqueles que declararam praticar mais de uma rel ig ião ao
mesmo tempo (3%). Porém o dado mais intere ssante foi o nú-
mero daqueles que se auto professaram prat icantes de uma
rel ig ião mística e/ou espir i tual is ta (25%). Re stam ainda 13%
dos cl ientes que dizem não ter nenhuma rel ig ião. Aqui os ar-
ranjos são múltip los. Não há um vínculo específ ico dos orácu-
los da feira com a rel ig ião (salvo o já apontado no caso do jo-
go de búzios).
Com exceção daqueles que se dizem místicos e/ou esp ir i-
tual istas, as demais denominações rel ig iosas guardam uma di s-
tr ibuição praticamente eqüitativa dentre as categor ias de usu á-
r ios. Ou seja, o grau de adesão não é inf luenciado pela rel ig ião
professada. Encontram-se também assim distr ibuídos aqueles
que freqüentam igrejas ou não. Há, ainda, os que encaram a
vida de maneira bastante mater ial i sta, negando qua lquer t ipo
de rel ig iosidade. Para esses o espaço para o oráculo se justi f i -
ca pelas forças f ís icas e nada espir i tuais.
Entre os místicos e/ou espir i tual is tas , é maior o costume
de consultar os oráculos (78% deles são cl ientes habi tuais),
sendo muito baixo entre esses o índice dos que vão pela pr i-
meira vez, os cur iosos (9% contra 26% do total). Não aparece
entre esses espir i tual istas ninguém com baixa escolar idade e
50
renda. Estes estão engajados na visão que Magnani 31 chamou
de ethos neo-esô, ou seja, que têm a espir i tual idade como
elemento fundamental. Isso demons tra apenas uma tendência
da Feira Mística se enquadrar nesse universo das novas esp ir i-
tual idades, mas os demais freqüentadores, a maior ia porta nto,
não pode ser simplesmente enquadrada na denominação gen é-
r ica de nova er is tas 32. Se a Feira Mística tem seu lugar de or i-
gem no inter ior da chamada Nova Era, a esta não se re str inge.
Essa aparente si tuação de caos e contradição se desfaz
quando se olha para as construções simból icas das crenças e
das funções que os oráculos trazem, questão esta que será
aprofundada nos capí tulos seguintes.
O trânsito rel ig ioso é outro dado marcante. 54% dos en-
trevistados já mudaram de rel ig ião, sendo que 12% do total e
36% dos autodenominados místicos e/ou espir i tual is tas já o
f izeram por mais de duas vezes. Pensando na caracter ísti ca er-
rante 33 ou no intenso trânsito 34 dos adeptos da chamada Nova
Era, temos uma expl icação para essa diferença apontada.
O número daqueles que se consideram pouco ou nada s u-
perstic iosos (51%) ultrapassa por pouco o dos que acreditam
31 José G. MAGNANI, Mystica urbe. 32 Nova Erista, ou ainda New Ager, foi um termo utilizado por alguns estudiosos da chamada espiritualidade da Nova Era. Cf. Carozzi (Maria J. CAROZZI, “Nueva Era: la autonomía como religión”) e Pereira (Magda V. PEREIRA, “O universo místico-religioso da obra de Paulo Coelho na ótica de seu leitor”). 33 Leila AMARAL , “Sincret ismo em movimento: o es t i lo Nova Era de l idar com o sagrado”. 34 José Jorge CARVALHO, “O encontro de velhas e novas religiões: esboço de uma teoria dos estilos de espiritualidade” e Luiz E. SOARES, “Religioso por natureza: cultura alter-nativa e misticismo ecológico no Brasil”.
51
em superstições (49%). Mais uma vez aqui aparece uma dif e-
rença entre os cur iosos e os habituais. Os cur iosos são mais
superstic iosos que esses últ imos. Quanto maior o grau de ad e-
são aos oráculos, menor é a aceitação da superstição. C omeça
a f icar c lara uma tendência a um discurso racional que supere
as crendices populares. Houve mesmo quem af irmasse estar
consultando o numerologista para saber qual nome dar ao seu
barco de passeio, não porque determinados nomes p odem tra-
zer maus agouros, mas porque “há uma vibração energética
que pode ser canal izada através dos números e nomes” .
A crença num destino é grande (88%), mas não se trata
de um destino inexorável, nem tampouco vai -se à Feira para
sabê-lo passivamente. A grande maior ia acredita poder inte rfe-
r ir em seu destino através do l i v re arbítr io. Consul ta-se os
oráculos não por questão de saber sua sorte ou futuro, mas
para poder or ientar sua vida. Tal postura é clara entre os h abi-
tuais. Já entre os cur iosos e os eventuais há divergências. A l-
guns poucos que estão na Feira por diversão responderam que
não acreditam num destino. Dos cur iosos e eventuais que re s-
ponderam af irmativamente, poucos falaram na possibi l idade de
intervenção. Como podemos ver, há diferentes maneiras de l i -
dar com os elementos simból icos que envolvem o jogo div ina-
tór io. Porém, ao classif icar os freqüentadores por grau de ad e-
são percebemos ní t idas tendências que permitem uma co mpre-
ensão do universo pesquisado.
No f inal desse levantamento de perf i l dos usuár ios, a
preocupação foi conhecer o motivo da consulta oracular. Sobre
este quesito, a pesquisa contava com uma questão aberta qu a-
l i tativa. Longe de querer esgotar a r iqueza das múl tip las mot i-
52
vações alegadas pelos informantes, a intenção aqui foi apenas
estabelecer alguns possíveis cruzamentos com os dados qua nti-
tativos, procurando perceber algumas tendências nas re spos-
tas. Os discursos dos motivos alegados serão anal isados mais à
frente.
Acho bárbaro o que as cartas dizem. Quando as ca r-tas têm que trazer uma mensagem, elas dizem. (. . .) Go s-to da Feira Mística porque é um espaço que dá o contex-to místico. É muito diferente, e melhor, do que ir à casa de uma cartomante. (. . .) A energia bate. Quando ela (a mística) abre as car tas para você, você acata ou não. Ajuda a ter melhor percepção das coisas. Não é para ad i-vinhar as coisas. No começo eu vinha para isso, será que eu vou f icar com meu namorado, será que.. .? Não, o tarô não é para isso, é outra coisa. Hoje eu percebo isso. O tarô faz você pensar . (cl iente mais freqüente, sexo fem i-nino, 26 a 35 anos, advogada)
Encontramos uma forte predominância de uma motivação
para a consulta dos oráculos na busca de uma or ientação para
a vida cotid iana e tomada de decisões. 52% dos entrevistados
apontavam como sendo essa a causa pr incipal ou única de sua
visi ta à Feira. 38% alegaram cu r iosidade com o que vai lhes
acontecer no futuro. 4% relacionaram a consul ta a algum al ív io
de males da saúde, como tensão, ansiedade, dores etc. Outras
causas foram atr ibuídas, ainda, por 6% da cl ientela.
A tendência a consultar os oráculos como fonte de or ien-
tação da vida cotid iana é maior entre os homens (64%) que
entre as mulheres (47%). Por outro lado, a preocupação com o
futuro é maior entre as mulheres (44% contra apenas 24% dos
homens). A consul ta à Feira como busca de or ientação tam-
bém cresce, em ambos os sexos, quanto maior é a renda e a
escolar idade. Junto cresce, também, uma tendência de el im i-
53
nação dos elementos místicos e mágicos como extraordinár ios
e sobrenaturais, passando a considerá - los como partes de uma
real idade cósmica mais ampla.
Entre aqueles que se autodenominam praticantes de uma
rel ig ião mística e/ou espir i tual ista, a predominância das mot i-
vações por or ientação (66%) e não por preocupação com o f u-
turo (30%) é a maior entre todas as rel ig iões. Os catól icos,
por outro lado, são os que apresentam maior percentual de
motivação por conhecimento do porvir (47%) em relação a or i-
entação (44%). Entre os habituais , a motivação por or ientação
bate o desejo de saber o futuro por 61% a 30%. Já entre os
cur iosos e os eventuais o inverso acontece: a busca de saber o
futuro motiva 51% enquanto que a or ientação para a vida c o-
tid iana apenas 38%.
Ficam claras as tendências que indicam uma lógica de
atr ibuição de signif icados e de representações no universo da
Feira Mística. Pode-se perceber um contexto simból ico no qual
os indivíduos lançam mão da magia e das mancias com muita
desenvoltura. Quanto mais envolvidos com esse sis tema de
crenças que leva à adesão aos oráculos, mais os indivíduos v ê-
em a consulta como elemento integrante do cotid iano, não
percebendo rupturas com o conhecimento cientí f ico racional.
Consti tuem, assim, novas teias simból icas que tecem difere n-
tes conjuntos de crenças numa harmonia signif icativa.
A consulta aos oráculos permite a vivência sem escam o-
teações de uma racional idade míti ca. E um espaço permitido
em que a subjetiv idade, tanto do consulente como do adivinho,
pode af lorar.
54
4. Oráculos na Modernidade
Uma vez ajustado o foco sobre o objeto da pesquisa, pon-
to central da anál ise a ser feita, deve -se partir para um afas-
tamento gradual da câmara procurando passear o olhar pelo
seu entorno. A Feira Mística não é um acontecimento ún ico,
nem seus protagonistas formam uma tr ibo isolada. É prec iso
compreender a Feira e seus oráculos inser idos no contexto s o-
cial mais amplo.
Mancias oferecidas nas ruas, ou em anúncios, não são
novidades. Então, quais foram os condicionantes que tornaram
possível a ofer ta de vár ios oráculos reunidos num mesmo l u-
gar, num dado momento? Poderia ter surgido dez, vinte anos
antes?
Comecemos pelo nome: Feira Mística. Vinte anos antes da
sua cr iação ser ia um nome impensável porque restar ia sem
sentido. Em termos gerais a palavra mística indicar ia apenas
uma vida contemplativa voltada aos mistér ios divinos, à esp ir i-
tual idade e ao contato individual com o transcendente. Como
tais elementos, ou ainda, comportamentos, poder iam ser di s-
postos, e expostos, numa fe ira?
Por outro lado, nas décadas de oi tenta e noventa prol i fe-
raram feiras místicas pelas grandes cidades não só do Brasi l ,
mas do mundo inteiro. Não possuíam, ou possuem, já que vá-
r ias permanecem até hoje, necessar iamente, a mesma destin a-
55
ção de oferta exclusiva de oráculos. Mas o termo genérico -
feira mística - veio para f icar. Anál ises recentes nas áreas das
ciências sociais começaram a inclu ir em suas preocupações,
d ireta ou indiretamente, esse novo fenômeno. Constataram d i-
versas modal idades de feiras místi cas em vár ias local idades:
Par is e Rio de Janeiro 35, Brasí l ia36 , Recife37 e Belo Horizonte 38.
Todas elas incluíam mancias como um dos pr incipais serviços
oferecidos, ao lado de terapias al ternativas, métodos e instr u-
mentos de energização, produtos para uma vida saud ável e ou-
tros.
Essas feiras começaram a surgir como uma das ativ idades
comerciais l igadas a um nascente modo de vivenciar as espir i-
tual idades. Remanescente da contracultura dos anos sessenta,
esse novo “ethos” ganhou logo o nome de Era de Aquário dev i -
do a uma interpretação astrológica que previa mudanças rad i-
cais na humanidade a partir da entrada da projeção do eixo
terrestre naquele signo. Essas mudanças começaram , rapida-
mente, a serem vistas e sentidas em diferentes dimensões da
vida das pessoas envolvidas. Comportamento, sociabi l idade,
vida comunitár ia, espir i tual idade, adesão a rel ig iões or ientais,
não aceitação das autor idades rel ig iosas ou pol í t icas, terapias
alternativas, terapias e tratamentos alternativos, busca de n o-
vos s ignif icados para a vida, esses eram alguns de seus pontos
mais visíveis. A partir dos anos oi tenta, houve uma verdadeira
explosão midiática desses novos valores, tornando -os bons
35 Cf. Fátima R. TAVARES, “Feiras esotéricas e redes alternativas: algumas notas compa-rativas sobre os circuitos carioca e parisiense”. 36 Cf. Deis SIQUEIRA, “Psicologização das religiões: religiosidade e estilo de vida”. 37 Paulo H. MARTINS, “As terapias alternativas e libertação dos corpos”. 38 Alexandre A. CARDOSO, “Pés na terra e cabeça nas nuvens; contornos do misticismo contemporâneo”.
56
atrativos comerc iais. Os própr ios partic ipantes deixaram de l a-
do a designação da era de aquário para enfatizar uma m udança
para uma nova era. E como tal f icou conhecida.
Foi, portanto, no inter ior dessas v ivências denominadas
de Nova Era que o surgimento de feiras reunind o oráculos d i-
versif icados, oferecidos a um preço padronizado e de al ta r ota-
tiv idade, se tornou possível.
Um grande número de estudiosos do fenômeno manteve a
denominação dada pelos praticantes 39. Outros o chamaram de
nova gnose 40, nebulosa mística esotér ica 41, nova consciência
rel ig iosa 42, cultura esotér ica 43 ou ainda ethos neo-esotér ico 44.
As divergências não estão apenas na denominação do ob-
jeto, mas na própr ia maneira de abordá -lo. Todos parecem
concordar que esse novo ethos guarda relação com as mudan-
ças sofr idas pela sociedade ocidental nas últ imas décadas. De
certa maneira, também, todos ressal tam a espir i tual idade como
um de seus elementos dis tintivos. Uns reconhecem -no como
um dos Novos Movimentos Rel ig iosos 45, outros af irmam não se
tratar de um movimento. Uns falam ser a Nova Era um sintoma
39 Cf. Juan Carlos GIL e José Angel NISTAL, New age. Una religiosidad desconcertante; Paul HEELAS, The new age movement; Leila AMARAL “Nova Era: um movimento de ca-minhos cruzados”; Maria J. CAROZZI, “Nueva era: la autonomía como religión”. 40 Edgar MORIN et al., O retorno dos astrólogos. 41 Françoise CHAMPION, “Les sociologues de la post-modernité religieuse et la nébuleuse mystique-ésotérique”. 42 Luiz E. SOARES, “Religioso por natureza: cultura alternativa e misticismo ecológico no Brasil”. 43 Edward A. TIRYAKIAN, “Toward the sociology of esoteric culture”. 44 José G. MAGNANI, Mystica urbe. 45
Cf. Maria J. CAROZZI, “Nueva era: la autonomía como religión”.
57
clássico do revival rel ig ioso46. Outros, no entanto, não aceitam
a idéia de ressurgimento da rel ig ião ou reencantamento da s o-
ciedade, e tratam o fenômeno como expressão do aprofund a-
mento do processo de secular ização 47. Secular ização ou ecl ipse
da secular ização, como af irmou Martel l i 48? Sinais de uma mo-
dernidade tardia ou a mais pura expressão da pós-
modernidade?
Foi como que a ampla heterogeneidade do fenômeno se
ref letisse nas anál ises acadêmicas, adensando a névoa que pa-
rece envolvê- lo em vez de dissipá- la . De certa maneira, isso se
expl ica pela nov idade e efervescência das manifestações e as
tentat ivas ainda isoladas de tratamento anal í t ico. Não há co n-
senso, mas isso é até pos it ivo. Possibi l i ta que se veja f acetas
muitas vezes obscurecidas quando se olha apenas por uma
perspect iva.
Em suma, a Feira Mística de São Paulo é fruto das man i-
festações denominadas de Nova Era mas a elas não se restr i n-
ge. É sintoma de um momento do desenvolvimento da socied a-
de moderna, mas ao mesmo tempo, as consul tas ora culares lhe
são muito anter iores. É sempre lembrada como exemplo da N o-
va Era, mas seus própr ios protagonistas estão, na maior ia dos
casos, longe das def inições dadas aos chamados nova er istas.
Para escapar de um possível atoleiro é preciso elucidar os
parâmetros teór icos de anál ise da sociedade abrangente nos
46 Cf., entre outros, Luis A. G. de SOUZA, “Secularização em declínio e potencialidade transformadora do sagrado”. 47
Cf. Antônio Flávio PIERUCCI, “Reencantamento e dessecularização. A propósito do auto-engano em sociologia da religião”. 48 Stefano MARTELLI, A religião na sociedade pós-moderna.
58
quais essa pesquisa se baseia. Parto do pressuposto de que a
Feira Mística é fruto do processo de secular ização da sociedade
moderna. Mas que processo é esse que permite manifestações
de magias e espir i tual idades?
Nos f inais dos anos sessenta, Berger constatava a ausên-
cia do sobrenatural nos hor izontes de vida da maior ia das pes-
soas. Logo na introdução de seu l ivro Um rumo de anjos af i r-
mava:
Isto signif ica que aqueles, para quem o sobrenat u-ral é ainda, ou de novo, uma real idade cheia de sentido, encontram-se numa situação de minor ia, mais precis a-mente numa situação de minor ia cognotiva. 49
Acreditava, pois, que as coisas do sobrenatural sobrev ive-
r iam apenas em bolsões dentro da grande sociedade 50. Por f im
questionava se a redescoberta do sobrenatural real izada por
essas minor ias cognitivas, o que chamou de neo -mistic ismo,
permanecer ia isolada e restr i ta a poucos ou se ter ia um impac-
to de dimensões histór icas mais vastas. 51
Poucos anos foram suf ic ientes para desmentir o prognós-
tico berger iano.
Muitas foram as anál ises de cientis tas sociais e teólogos
que procuraram dar conta do chamado processo de secular iza-
49 Peter BERGER, Um rumor dos anjos: a sociedade moderna e a redescoberta do so-brenatural, p. 19. 50 Ibid., p. 44. 51 Ibid., p. 127.
59
ção. O própr io Berger apontava a necessidade de def inição cl a-
ra de seu signif icado 52.
A secular ização é uma questão complexa e não parece r e-
sultar no desaparecimento completo da ativ idade e do pens a-
mento rel ig iosos 53. A secular ização não desencantou o mundo.
O signif icado profundo de secular ização é o do decl ínio geral
do compromisso rel ig ioso na sociedade. A rel ig ião deixa de ser
o conhecimento fundante da visão de mundo, dos comport a-
mentos e da ética. A sociedade moderna conta com outros
elementos de controle que independem da rel ig ião.
Muitos estudiosos viam na secular ização uma antí tese da
rel ig ião e de todas as formas de esp ir i tual idade. Dessa maneira
não ser ia possível expl icar os novos movimentos rel ig iosos, o
ressurgimento da magia e o reencantamento do mundo a não
ser negando a secular ização.
Mas a secular ização não signif icou um aumento l inear da
não-crença. A sociedade não se encontra mais descrente ou
cética. Pelo contrár io. Como apontou Martel l i 54, a modernidade
elabora um signif icado ambivalente da secular ização. Apr esen-
ta uma dessacral ização e ao mesmo tempo uma miti f icação do
profano, ou aqui lo que El iade chamou de camuf lagem do sa-
grado55. Essa dupla postura é causadora das confusões.
A secular ização possibi l i tou o avanço do plural ismo e do
trânsito rel ig ioso, uma vez que não havendo as amarras das
52 Peter BERGER, O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião, p. 119. 53 Anthony GIDDENS, As consequências da modernidade, p. 111. 54 Stefano MARTELLI, A religião na sociedade pós-moderna. 55 Mircea ELIADE, O sagrado e o profano. A essência das religiões.
60
insti tuições rel ig iosas, o indivíduo pode mani pular os bens
simból icos construindo seus arranjos rel ig iosos sem medo de
quebrar o eixo central onde está apoiado.
Dizer da autonomia do sujei to não signif ica af irmar,
apressadamente, a f luidez das esco lhas aleatór ias, com inf in i-
tas possibi l idades de comb inação, própr ia da pós-
modernidade56. Outro equívoco é af irmar que essa sociedade
abre mão da racional idade, valor izando a emergência das em o-
ções e da subjetiv idade. O que temos são novas possibi l idades
de arranjos das racional idades. A racional idade mítica e mágica
rearranja-se com a cientí f ica. Françoise Champion af irmava se r
a “nebulosa mística esotér ica” a caracter ís tica rel ig iosa da pós-
modernidade57. Enfatizava ser um produto or iginal, novo, que
reorganiza elementos das tradições rel ig iosas clássicas em fun-
ção de uma lógica profana. 58
Para Harvey 59, na sociedade pós-moderna ocorre a total
aceitação do efêmero, do fragmentár io, do descontínuo e do
caótico. Inser ido nessa turbulência, o própr io sujeito se disso l-
ve.
As anál ises da chamada espir i tual idade Nova Era que par-
tiram dessa visão de pós-modernidade desembocaram na visão
de um super-mercado da fé, onde o sujeito dissolvido de qua l-
quer vínculo simból ico, de doutr inas, de práticas e de r i t uais
56 Aldo Natale TERRIN, Nova Era: a religiosidade do pós-moderno. 57 Françoise CHAMPION, “Les sociologues de la post-modernité religieuse et la nébuleuse mystique-ésotérique”. 58 Ibid., p. 167. 59 David HARVEY, Condição pós-moderna.
61
monta sua própr ia rel ig ião 60. São as chamadas rel ig iões self -
service .
Esse não é o caso da Feira Mística. Pode -se até argumen-
tar que se trata de um mercado de oráculos onde o sujei to e s-
colhe seu esquema de partic ipação. Em certa medida isso é
verdadeiro, mas o problema é não cair num visão extremada
que impossibi l i tar ia enxergar as lóg icas constitutivas da Feira
Mística. Como vimos, elas existem. Sejam mercadológicas ou
simból icas, acabam colocando padrões de vivências. Há, então,
uma composição entre a escolha do indivíduo e o padrão of e-
recido.
Um dos aspectos não vis íveis da Feira, mas nem por i sso
inexistente, é o desencaixe, já apontado anter iormente, e sua
complementar idade. Giddens af irma que em condições de m o-
dernidade, uma quantidade cada vez maior de pessoas vive em
circunstâncias nas quais insti tuições desencaixadas “organizam os aspectos pr incipais da vida cotid iana”. 61 Mas a essas situa-
ções pode haver uma resposta de reencaixe, ou seja, a “re a-
propr iação ou remodelação de relações sociais desencaixadas
de forma a comprometê- las a condições de tempo e espaço” 62.
Com o reencaixe o sujeito que freqüenta a Feira volta a olhar o
rosto do outro, seu conf idente adivinho, restabelecendo a co n-
f iança necessár ia para uma vida em segurança.
A modernidade, ou supermodernidade como chamou
Augé, trouxe uma novidade em termos dos espaços das vivên-
60 Cf. Deis SIQUEIRA, “Psicologização das religiões: religiosidade e estilo de vida” e Leila AMARAL, “Sincretismo em movimento: o estilo nova era de lidar com o sagrado”. 61 Anthony GIDDENS, As consequências da modernidade, p. 83. 62 Ibid.
62
cias sociais. Os oráculos da Feira podem ser l idos em qualquer
lugar, em praças, shoppings e estac ionamentos. Trata -se, num
pr imeiro momento, de um espaço que não se def ine nem como
identitár io, nem como relacional, nem como histór ico. É um
não-lugar 63. Sendo a modernidade uma grande produtora de
não-lugares, podemos entender como os oráculos saem de
seus ambientes tradicionais e ganham a visib i l idade da rua e
da praça. Eles podem estar em qualquer lugar, até por meio de
telefones ou internet. Mas, como o própr io Augé comenta, não
existe o não- lugar na forma pura. “Lugares se recompõem ne-
le; relações se reconstituem nele” 64. O jogo de relações entre
os indivíduos da Feira Mística refaz o lugar. Ganha uma identi-
dade e reconhecimento, passando a fazer parte da vida de
pessoas.
Magnani identi f ica os espaços do neo -esoter ismo como
lugares na medida em que par tic ipam de circuitos , categor ia
uti l izada para designar o uso do espaço e equipamentos do
meio, demonstrando as regular idades existen tes 65. Complemen-
ta com a categor ia trajeto , ou seja, o resultado das esc olhas
dos usuár ios, “um ‘sintagma’ particular construído a partir das possibi l idades abertas pela total idade” 66. Percebe, assim, a l-
gumas matr izes discursivas fazendo com que a aparente e sco-
lha individual, sem compromissos mais profundos, não ocorr a.
“Cada arranjo particular (se) real iza a partir de uma estrutura
63 Marc AUGÉ, Não lugares. Introdução a uma antropologia da supermodernidade, p. 73. 64 Ibid., p. 74. 65 José G. MAGNANI, Mystica urbe, p. 68-69. 66 Ibid.
63
gerativa e dentro de uma combinatór ia ditada por regras de
compatibi l idade própr ias” 67.
Em anál ises que pr iv i legiam apenas as car acter ís ticas de-
f inidas como de pós-modernidade 68, enfatiza-se a descanoniza-
ção da relação lugar e essência. Amaral ressalta a idéia de
dispersão do sagrado através da errância, f luxo de circulação e
encontros que guarda as marcas da “des -canonização da rela-
ção entre lugar e essência” 69. Essas práticas desembocam em
necessidades de consumo de mercadorias, no sentido de pr iv i-
légio da forma em detr imento do conteúdo. Ora, a Feira Míst i-
ca pode ser isso para uma parcela de seus usuár ios, mas para
aqueles habituai s, usuár ios que constróem vínculos e signif ic a-
dos mais duradouros com os oráculos, isso não é verd adeiro.
Assim, pode-se perceber que olhar para a Feira Mística
como expressão de vivências de oráculos na chamada Nova Era
é reduzir seu verdadeiro signif icado. Nasce e se al imenta dela,
mas a ultrapassa. A maior ia de seus usuár ios partic ipa de o u-
tras dimensões da vida públ ica que não se restr ingem a esse
novo ethos. Outro equívoco é restr ingi - la a aspectos de uma
possível pós-modernidade. A modernidade não esg otou ainda
suas potencial idades. A Feira é fruto de mudanças neste mo-
mento avançado de modernidade que a sociedade se encontra.
Só assim podemos compreender o papel que esses oráculos
têm nesta mesma modernidade.
67 Ibid, p. 81. 68 Cf. Aldo N. TERRIN, Nova Era: a religiosidade do pós-moderno; e Leila AMARAL, “Sin-cretismo em movimento: o estilo nova era de lidar com o sagrado”. 69 Leila AMARAL, op. cit., p. 48.
64
CAPÍTULO II – A CRENÇA NOS JOGOS DIVINA-
TÓRIOS
Acreditamos em tudo que podemos e acreditar íamos em tudo, se pudéssemos.
W. James
Para quem tem fé, basta a crença. Para quem não tem, f ica a busca da expl ic a-ção que desmisti f ique a crença.
Josi ldeth G. Consorte
As mancias da Feira Mística fazem sentido para as pess o-
as que as uti l izam. Porém, seguindo a descoberta feita pela
pesquisa, de que a maior ia dos consulentes é formada por cl i -
entes habituais, é preciso compreender como essas predições
se articulam no conjunto mais amplo de conhecimento e de
crenças desse conjunto da população.
A idéia é de que esses indivíduos constróem, a partir dos
elementos exis tentes na cul tura circundante, uma cosmovisão
que responde pelo sentido de vida mais amplo e disposições e
motivações específ icas a determinados momentos de suas v i-
das. Longe de tais elementos constituírem um amontoado de
idéias valor izadas relativamente, onde cada um pode pens ar à
sua maneira, os adivinhos prof issionais e os cl ientes habituais
65
acabam por engendrar um sistema de crenças comum em seus
elementos essenciais e var iado em seus aspectos mais ap aren-
tes. Pode-se af irmar, de acordo com Geertz 1, que os símbolos
comparti lhados nas leituras oraculares e nas rodas de conve r-
sas circundantes constituem um sis tema no qual o ethos de s-
sas pessoas, seus esti los e disposições morais, tornam -se ra-
zoavelmente apreensíveis porque representam um tipo de vida
idealmente adaptado ao modo de vida real que a visão de
mundo descreve, enquanto “essa visão de mundo torna -se
emocionalmente convincente por ser apresentada como uma
imagem de um modo de vida verdadeiro, especialmente bem -
arrumado para acomodar tal t ipo de vida” 2. É comum ouvir dos
cl ientes falas que indicam essa congruência.
Aqui eu me sinto bem. Não sei expl icar direito o que é, o que eu sinto. Mas tem uma força interna que o mí s-tico consegue captar e mexer. Eu sozinha não consigo perceber isso. Às vezes eu tento (procuro tirar as car-tas), mas não dá certo. Acho que aqui tem uma coisa e s-pecial , uma coisa meio mágica. (. . .) Isso tudo o que eles (os místicos) falam faz sentido. Nem tudo, quer dizer. Às vezes não faz sentido naquela hora, mas depois você f ica pensando e vê que é realmente como ele disse. Conforme eles vão falando eu vou sentindo aqui lo por dentro de mim. Vai tudo se encaixando. (cl iente mais freqüente, fem., mais de 50 anos, comerciante)
Eu venho aqui na feira porque o que eles (os míst i-cos) falam aqui tem um porquê, tem uma razão. (. . .) Em outros lugares (outras ofertas de jogos divinatór ios na cidade) não me sinto tão bem. Isso aqui combina comigo. (cl iente mais freqüente, masc., 36 a 50 anos, assistente de marketing)
1 Clifford GEERTZ , A interpretação das cu l turas . 2 Idem, p. 104.
66
Seguindo a visão de Geer tz, pode-se dizer que o conjunto
de mancias e leituras oraculares da Feira Mística constitui um
sistema cul tural dotado de um padrão. Porém, é importante
ressaltar que a Feira não está isolada do restante da socied a-
de. Há um pano de fundo cultural que al imenta esse ethos e
essa visão de mundo. Como visto no capítulo anter ior, a Feira
Mística não se resume à chamada Nova Era, nem seus fr eqüen-
tadores podem ser chamados de típ icos representantes nova
er istas. Mas se a Feira não se reduz à Nova Era é porque, e n-
tre outras coisas, essa últ ima compõe-se de um conjunto am-
plo de elementos intercambiáveis com a sociedade mais a mpla,
além do que os jogos divinatór ios são muito anter iores a essa
nova forma de rel ig iosidade e misti c ismo. Aqui lo de que fala a
Feira Mística não soa como algo absurdo e inusitado às pesso-
as da sociedade moderna de f inal de século. Está nos meios de
comunicação e nas conversas informais, nem que seja tratado
em tom jocoso ou como br incadeira puer i l . O que vale a pena
ressaltar é que faz parte de nosso senso comum. Tais símbolos
e idéias permeiam a sociedade. Porém, há dif erentes graus de
inserção nesse universo. As pessoas articulam esses símbolos
de maneiras diversas, construindo diferentes sínteses. É poss í-
vel perceber, portanto, que o sis tema de crenças comparti lha-
do pelos agentes da Feira Mística, sejam cl ientes ou prof issio-
nais, não se distingue na total idade do conjunto de crenças da
sociedade abrangente, mas retira deste aqui lo que interessa
colocando numa ordem intel ig ível e compreensível. Forma um
todo como se fosse um sub-sistema particular que precisa ser
visto com muita acuidade.
67
Col in Campbel l 3 percebe uma mudança ampla na cosmov i-
são ocidental. Sua tese af irma que a visão de mundo ocidental
sofre um processo de or iental ização. Ressal ta, porém, que não
se trata da expansão de rel ig iões or ientais, como o Movimento
Hare Kr ishna por exemplo, visto que este impacto é bastante
reduzido e restr i to a minor ias 4. Mas, é no campo dos valores
que essa teodicéia or iental se faz percebida. Crenças e idéias
mais amplas como monismo, unidade corpo e espír i to, i lumina-
ção, intuição, êxtase, rel ig iosidade espir i tual e mística co m-
põem, agora, o universo mais amplo dos sistemas de crenças
no Ocidente. Ou seja, sem f icar restr i ta aos grupos isolados, a
cosmovisão or iental pode ser perceb ida em vár ias instâncias da
sociedade ocidental. Da mesma forma, pode -se dizer que os
valores das novas rel ig iosidades, vindos ou não do Oriente, e s-
tão presentes na sociedade mais ampla. Aparecem em di scur-
sos de personal idades nos grandes meios de com unicação, fa-
zem parte de campanhas publ ic i tár ias e são incorporados até
em programas educacionais ou novos paradigmas cientí f icos.
Vistos dessa maneira, pode-se af irmar que fazem parte do sen-
so comum.
Geertz 5 af irma ser o senso comum o pano de fundo no
qual o conhecimento se torna possível. Tendo como autor idade
legit imadora a própr ia vida, o senso comum é a base da noção
do que é tido por verdadeiro ou falso. Citando os Azande est u-
dados por Evans-Pr itchard, Geertz d iz que por trás de todas as
ref lexões sob re acontecimentos fortuitos, “se estende a teia de
3 Colin CAMPBELL , “A oriental i zação do Oc idente: ref lexões sobre uma nova teodicéia para um novo milên io”. 4 Ibid., p. 9. 5 Clifford GEERTZ , O saber local.
68
conceitos do senso comum que os azandianos aparentemente
consideram realmente verdadeiros. (. . .) É como parte desta
teia de premissas do bom senso, e não graças a alguma forma
de metaf ísica pr imitiva, que o conceito de feit içar ia ganha sen-
tido e adquire sua força. 6
Em resumo, o que garante a ef icácia dos oráculos da Fe i-
ra Mística é o si stema de crenças comparti lhado por seus age n-
tes. Esse sistema guarda estreitas relações com o conjunto de
valores existentes na cultura. Da mesma forma que se al imenta
desta úl t ima acaba contr ibuindo com sua parcela, p equena que
seja, na composição de novas visões no âmbito mais amplo da
sociedade. Os personagens da Feira Mística não se restr ingem
ao universo de crenças denominado de Nova Era, mas cons-
tróem sistemas própr ios que se interrelacionam quer com a s o-
ciedade mais ampla, quer com o universo das novas espir i tu a-
l idades, até mesmo porque esses dois últ imos também mantém
entre si um intenso jogo de relaci onamentos.
Seguindo o que Geertz af irmou, para compreender a rea-
l idade cultural de um grupo, mesmo que seja uma interpret a-
ção dentro de inúmeras possíveis, é preciso saber relacionar os
objetos mais simples da vida cotid iana com uma visão do si s-
tema simból ico mais amplo, dependendo de “uma habi l idade para anal isar seus modos de expressão”. 7
6 Clifford GEERTZ , O saber local , p. 119. 7 Ibid., p. 107.
69
1. O Sistema de Crenças da Feira Mística
O objetivo aqui não é local izar o s istema de crenças da
Feira Mística como uma entidade iso lada, mas procurar colocar
uma ordem no inter ior dos discursos aparentemente descone-
xos de seus integrantes. Não se trata, também, de reduzir todo
o universo das novas espir i tual idades e rel ig iosidades a um
mínimo comum, mas tão somente perceber a articulação real i-
zada por esses indivíduos, que torna a lei t ura dos oráculos não
somente possível como ef icaz.
Logo de saída percebe-se que se trata de uma compos i-
ção, ao menos no nível do discurso, de elementos mágicos, m í-
ticos, c ientí f icos e rel ig iosos.
O tarô funciona através de uma combinação das cartas. Existe uma expl icação cientí f ica para isso, pois “nada sai do nada”. Mas é uma co isa mística. (c l iente mais freqüente, fem., 19 a 25 anos, nutr ic i onista)
Existe uma l igação cósmica em todo universo. O místico tem o poder de captar essa força e perceber o passado e o futuro. (cl iente mais freqüente, masc., mais de 50 anos, anal is ta de sis temas)
Deve ter alguma energia que passa pelas cartas e se você está sensível aparece no que o místico vê. (Thelma, coordenadora)
Esses elementos sempre foram estudados pela antr opolo-
gia. Os evolucionis tas falavam na permanência dos r i tuais m á-
gicos como um anacronismo que, na sociedade atual, ser ia r e-
sultado de um erro de lógica e confusão entre causal idades.
70
Frazer 8 buscava anal isar a magia e a simpatia. Segundo ele, a
magia ser ia um erro de interpretação de lei s fundamentais do
pensamento, as associações de idéias por simi lar idade e por
contiguidade. A magia não ser ia outra coisa senão a prática
equivocada de associativ ismos que, se bem uti l izados, levam à
prática, t ida por verdadeira, da ciência. Frazer dizia ser a ma-
gia irmã bastarda da ciência, uma vez que ambas percebem a
sucessão lógica dos acontecimentos. A magia não possuir ia,
portanto, nenhum aspecto místico, mas ser ia uma “falsa ciê n-
cia” na medida em que faz uma apl icação equivocada do pr in-
cípio de assoc iações de idéias.
Um grande avanço no pensamento antropológico foi feito
pelos franceses Durkheim e Mauss. A magia passa a ser vista
não como uma prática pr imitiva, mas como sis tema de conh e-
cimento. Enquanto crenças, a mag ia e também a rel ig ião en-
volvem pensamento, símbolos e formas de comportamento.
Traduzem maneiras únicas de vida de um grupo humano na i n-
f inita possibi l idade de ser. 9
O elemento comum entre magia e rel ig ião foi denominado
por Marcel Mauss como mana, palav ra melanésia que designa a
ação de manipulação de forças sobrenaturais, bem como a
qual idade mágica de certos objetos ou seres. O mana, distinto
de qualquer força mater ial , é uma substância que pode ser
transmitida e manipulada. Pode l igar -se a coisas mater iais ou
ser uma força espir i tual que produz efeitos à dis tância. Em
8 George J. FRAZER , The golden bough : a s tudy in magic and rel ig ion. 9 Marcel MAUSS , “Esboço de uma teoria geral da magia”.
71
contato com algum objeto poderoso, o indivíduo pode r eceber
seu mana, como quando usa algo que “traz sorte”.
A r iqueza do pensamento de Mauss não está em pensar o
mana como algo em si mas como uma categor ia de pensamento
coletiva que organiza e classif ica objetos e pessoas.
Ainda no começo do século, Lévy -Bruhl10 procurou apro-
fundar os questionamentos de Frazer elaborando uma def inição
mais detalhada do chamado pensamento pr imitivo. Propô s duas
caracter ís ticas básicas desse tipo de pensamento: a lei da pa r-
tic ipação mística e a da não-contradição. Por partic ipação en-
tende a capacidade de perceber relações onde o pensamento
ocidental vê apenas elementos i solados. Aqui lo que afeta uma
coisa afeta todas as outras, pois tudo se l iga a uma rede de
partic ipações. O indivíduo se vê l igado a outros seres e objetos
que, ao mesmo tempo, são idênticos e diferentes dele. As duas
possibi l idades são vistas como congruentes e não -
contraditór ias. O chamado pensamento pr imitivo estar ia forte-
mente dominado pelas emoções e afetiv id ade.
Diferentemente de Frazer, Lévy -Bruhl não vê esse pensa-
mento pr imitivo como equivocado. Def inir o pensamento pr im i-
tivo através da lógica da partic ipação não signif ica, para ele,
atr ibuir uma inabi l idade de raciocínio ao seu portador. Trata -se
apenas de uma maneira diferente de pensamento que subsiste
até hoje.
O pensamento pr imitivo elabora representações coletivas
em que os objetos são percebidos misticamente. Embora o
10 Lucien LÉVY -BRUHL , La mentalité primitive.
72
mundo natural pareça distinto do sobrenatural, o pensamento
místico não os distingue em suas representações. O sobren atu-
ral está inser ido na natureza. O encadeamento causa -efei to é
pensado incorporando-se elementos sobrenaturais. Lévy -Bruhl
expl ica as diferenças en tre os dois t ipos de raciocínio. O pen-
samento lógico busca as causas dentre os fatos observáveis
empir icamente. Uma vez esclarecida a causa pode -se prever
futuros acontecimentos desde que as condições inic iais, que
causaram o pr imeiro, voltem a se repetir . Mas não há uma l i -
gação, uma tendência oculta, que l igue um acontecimento fo r-
tuito a um outro. Para o pensamento pré - lógico (expressão ut i-
l izada por Lévy-Bruhl) as desgraças serão sucedidas por outras
enquanto as forças nefastas (as causas sobrenaturais) q ue
agem sobre elas não forem neutral i zadas por algum ato mág i-
co.
O conceito de par tic ipação de Lévy -Bruhl permite com-
preender como o pensamento pr imitivo dá importância às p o-
tências invisíveis, uma vez que tudo está permanentemente l i -
gado. Um acontecimento nunca é devido a um acaso ou a uma
coincidência. Há sempre uma causa oculta, invisível e sobr ena-
tural. Apesar de chamado de pré - lógico, percebe-se que esse
tipo de pensamento tem uma lógica, mas essa é distante da
lógica formal da ciência moderna. De acor do com Gardner 11,
em suas últ imas ref lexões, Lévy -Bruhl, acuado pelas cr í t icas
que sofreu, adotou uma postura oposta, concordando com seus
opositores. Reconheceu que as diferenças entre os civ i l izados
e os pr imitivos ser iam apenas diferenças de grau e não r epre-
sentar iam diferenças fundamentais de pensamento lóg ico.
11 Martin GARDNER , A nova ciência da mente. Uma história da revolução cognitiva.
73
Outro antropólogo que trouxe inúmeras contr ibuições p a-
ra o entendimento da relação entre magia, c iência e rel ig ião
foi Mal inowski. Recusando a expl icação evolucionista, viu na
magia um mecanismo compensatór io de que o ser humano lan-
ça mão sempre que o seus conhecimentos e técnicas se mo s-
tram incapazes de solucionar os problemas exis tentes 12. Para
esse autor, todo fato cul tural é uma resposta a uma necess i-
dade. A magia tem, portanto, uma função. Ent re as pr incipais
funções da magia, estão as de responder às necessidades de
previsib i l idade e cer teza. Assim, o pr imitivo recorre à magia
sempre que há um certo grau de imprevisib i l idade ou incert e-
za. Quando os conhecimentos são suf ic ientes para gerar conf i-
ança nos membros do grupo, a magia é descartada. Caso co n-
trár io, r i tuais são real izados para garantir um sentimento de
segurança e o bom êxito da ação. A magia tem por função,
também, reduzir a angústia, tensão e medo provocados pela
falta de domínio e controle sobre os acontec imentos.
Evans-Pr itchard deu seqüência à tradição antropológica
de estudos sobre o pensamento mágico pesquisando povos
afr icanos13. Af irma que os Azande pensam de forma tão lógica
quanto os ocidentais. O que diferencia é o sistema no qual se
apoiam essas crenças. A mente desse povo trabalha com os
mesmos modelos lógicos que a nossa, apenas uti l izam mater i-
ais culturais diferentes. Segundo Eva Gi l l ies 14, esse autor ques-
tionava o postulado de Lévy -Bruhl no tocante à existência de
uma mente pr imitiva, mas admirava-o quanto à natureza das
12 Bronislaw MALINOWSKI , Magia, c iencia y rel ig ion. 13 E. E. EVANS-PRITCHARD , Bruxar ia, orácu los e magia entre os Azande . 14 Eva G ILLES, “Introdução”, In: E. E. EVANS -PRITCHARD , Bruxar ia, orácu-los e magia entre os Azande .
74
representações coletivas, ou seja, aquelas crenças comparti-
lhadas por toda a sociedade, inquestionáveis e sobre as quais
se apoiam todos os demais raciocínios. Esses postulados são
aceitos de maneira inconsciente por todos os indivíduos, dev i-
do à inf luência marcante da sociedade. No entender de Evans -
Pr itchard, foi Lévy-Bruhl quem melhor explorou essa questão.
A obra de Evans-Pr itchard é admirável quanto à contr i-
buição que trouxe para a compreensão do pensam ento mágico
em geral e do encadeamento lógico entre causas e efeitos. P a-
ra esse autor, os Azande não pretendem expl icar toda exi s tên-
cia dos fenômenos apenas através de causas místicas. Atr avés
de bruxar ia expl icavam as condições particulares, em uma c a-
deia causal, que l igavam um indivíduo a acontecimentos n atu-
rais danosos. A bruxar ia não é vista como a única causa de f e-
nômenos, mas é aquela que põe um homem em relação aos
eventos que o prejudicam 15. A crença zande não contradiz o
conhecimento empír ico de causa e efeito. Eles sabem que as
térmitas comem a madeira de seus celeiros, mas isso é tido
como causa secundária. Numa determinada cadeia de eventos,
numa situação social particular, selecionam a causa que é s o-
cialmente relevante, deixando todo o resto de l ado. De acordo
com Evans-Pr itchard, a bruxar ia é a causa socialmente rel evan-
te, pois é a única que permite uma intervenção, uma ação do
grupo. Esse modo de ver a situação determina um compo rta-
mento social específ ico. Assim, as expl icações causais por fo r-
15 E . E . EVANS-PRITCHARD , Bruxar ia, orácu los e magia entre os Azande , pp. 59-60.
75
ças da natureza ou sobrenaturais não são excludentes, mas se
complementam. 16
Todos esses autores estavam al inhados a determinadas
visões que muito contr ibuíram para a formação do senso c o-
mum de certos grupos e épocas de nossa sociedade. De m anei-
ra geral, ainda permanecem em sól idos redutos, fazendo crer
que o pensamento mágico e superstic ioso é resquício de um
passado a ser apagado e esquecido, ou é uma maneira equiv o-
cada de pensar a real idade. Quando as crenças mágicas, e
mesmo as rel ig iosas, insis tem em se fazer presentes, costuma-
se dizer que exis tem enquanto a ciência não conseguir re spon-
der a todas as dúvidas. Ora, o universo de crenças da Feira
Mística está aí justamente negando essas pressupos ições.
Um aspecto pecul iar que ele nos mostra é a possibi l id ade
de convivência simultânea de formas diferenciadas de pensar.
Podemos entender este conjunto de crenças, que está por d e-
trás dos oráculos da Feira Mística, como expressão da tese
apresentada por Lévy-Bruhl acerca da mental idade pr imitiva 17.
Evidentemente não se trata aqui de nenhum pensamento pr imi-
tivo, ou pré- lógico, mas apenas de uma evidência do fato de
que essas pessoas percebem o mundo magicamente. Quando
Lévy-Bruhl fala que a mente pr imitiva é pré - lógica, não está se
refer indo à inabi l idades para o raciocínio, mas sim às categor i-
as em que o raciocínio se processa. O ser humano da socied a-
de atual, consulente da Feira Místi ca, não é o pr imitivo, mas
possui valores, axiomas e sentimentos diferentes daqueles de-
16 Ibid., p. 64. 17 Lucien LÉVI-BRUHL , La mentalité primitive.
76
sejados pelo cienti f ic ismo posit iv is ta. Tende a ser místico no
sentido de situar -se para além da ver i f icação possível pela ex-
per iência empír ica e ser indiferente às contradições. A r epre-
sentação coletiva do consulente é também mística e ele, em
conseqüência, percebe a real idade numa congruência entr e a
mística e a ciência. O mundo sobrenatural, percebido pela via
da afetiv idade, não é incompatível com uma exper iência emp í-
r ica do mundo. As coisas objetivas do dia a dia podem depe n-
der de potências invisíveis. A menta l idade mística faz parte de
um mundo onde tudo pode acontecer a partir de forças invis í-
veis. As l igações de causa e efeito são até percebidas mas, c o-
erente com o pensamento de Evans -Pr itchard, atr ibuem espe-
cial signif icado às causas que naquele determinado momento
são socialmente relevantes. Uma causa passa a ser a pr incipal
quando é a única que permite intervenção, permite um contro-
le por parte do grupo, do adivinho ou do consulente. Uma e x-
pl icação causal percebida através das mancias torna -se intelec-
tualmente apreensível. Um acontecimento qualquer, fortuito e
ao acaso, faz sentido pois se insere dentro de uma o rdem de
fatos inter l igados dentro dos quais o indivíduo se vê ins er ido.
As coisas nunca acontecem por acaso. Olhe, eu e s-tava há três meses sem emprego. Procurando, todo dia, todo dia. Na semana passada, não sei porque, eu voltei no meu velho emprego. Para rever os amigos. Pelo m e-nos eu pensava assim. Mas na hora que estava lá, o meu antigo patrão me viu e me chamou para trabalhar de vo l-ta. Ele não ia me chamar. Mas eu estava lá e ele me chamou. Então, por que eu fui lá? Para ver os amigos? Não. Eu não sei expl icar como isso acontece, mas aco n-tece direto. Eu fui porque tinha de i r , era para ir . (c l ien-te eventual, fem., 26 a 35 anos, aux i l iar)
77
Outro dia a Diná (taróloga) t irou as cartas e falou para mim: “ele (o antigo namorado) te largou mas não é para f icar assim, tr iste. Ele é uma pessoa com muitos problemas. Mas isso vai ser bom para você. Você vai m u-dar, estou vendo aqui. Tem um rapaz que você vai c o-nhecer em breve”. Eu f iquei pensando: não pode ser, ele era tudo para mim, era o homem da minha vida, não p o-de ter outro. Eu f iquei bronqueada com ela, não quer ia mais vir aqui. Mas não é que eu saí com umas amigas que nunca mais eu via, nunca mais saia com elas porque eu ‘tava sempre com o P., mas foi aí que eu conheci o C. e foi maravi lhoso. Se o P. não tivesse me largado eu nunca ter ia feito isso. Tinha que ser assim. Já ‘ tava ma r-cado para acontecer isso. (cl iente menos freqüente, fem., 19 a 25 anos, bancár ia)
Tem coisas que acontecem que só tem uma expl ica-ção: é uma força cósmica que exis te. É como acontece quando tem muito acidente, um atrás do outro. Os jo r-nais falam: “a bruxa está sol ta”. Se é bruxa ou não eu não sei, mas tem alguma coisa por trás. Não é só coinc i-dência. Acho que nem exis te coincidência. (cl iente mais freqüente, masc., 36 a 50 anos, engenheiro)
Porém, diferentemente do pr imitivo anal isado por L évy-
Bruhl, como aquele que não tinha a exper iência social nece ssá-
r ia para perceber a lógica da ciência, os consulentes e os ad i-
vinhos da Feira Mística vivem em harmonia entre um pe nsa-
mento mágico e mitológico de um lado e um pensamento emp í-
r ico racional de outro. Em seu cotid iano coabitam crenças, r a-
cional idades, técnicas e magias. Para Edgar Morin 18 isso é ape-
nas um retrato dos pr incípios fundamentais que governam as
operações do espír i to-cérebro humano. As duas formas de pen-
samento coexistem, ora uma predominando, ora outra. O co n-
sulente dos oráculos da Feira Mística vive, assim, a exper iência
de conci l iação dos dois pensamentos.
18 Edgar MORIN , Introdução ao pensamento complexo.
78
Existe uma energia que move o mundo. Isso é cien-tí f ico. Às vezes acontecem algumas coisas que a gente não sabe expl icar bem porquê. Mas isso tudo faz sentido quando a gente pensa nesse todo que está por trás. (cl i -ente mais freqüente, masc., mais de 50 anos , anal ista de sistemas)
Mas veja: se a própr ia f ís ica está descobrindo a ação à distância, entre as partículas, um dia vão dizer bem alto para todos: a magia funciona. (Diego, coord e-nador)
Eu faço magia. Quando precisa, faço. Se uma plan-ta, uma samambaia está nesse planeta há muito mais tempo que o homem, então ela já absorveu, já viveu, tem muito mais energia que a gente. Em certas ocasiões, com algum jeito certo, você consegue tirar essa energia das plantas e usar em seu benef íc io. ( idem)
A ciência está a tingindo o fato (e não a crença) da subjetiv idade humana. Que além da consciência humana há uma outra vida que também é real. (. . .) Para o esot é-r ico, os sonhos são pistas que servem para conhecer os fatos. A alma é um fato, não é um objeto de crença. (. . .) O reconhecimento desses fatos leva a que no futuro não separemos mais rel ig ião de ciência. (Dél io, astrólogo)
A partir desses depoimentos, pode-se perceber que existe
um espaço de trocas simból icas onde há uma permeabi l idade
de vár ios ingredientes: c iênci a, força, energia, destino, magia
entre outros. O signif icado desses elementos pode não estar
muito claro, aparecendo contradições muitas vezes numa me s-
ma fala. Porém, esses ingredientes aparecem entrelaçados e n-
tre si , formando um conjunto coerente. O que realmente im-
porta não é a fala em si. Não é provar a veracidade daqui lo
que se acredita ser cientí f ico ou a existência das forças mág i-
cas, mas o conjunto que se forma. A maneira e o contexto em
que são ditos é que ganham legit imidade e ef icácia.
79
Em O pensamento selvagem , Lévi-Strauss 19 mostra como
se dá o conhecimento entre os chamados povos pr imitivos. P a-
ra ele, tanto o pensamento cientí f ico moderno quanto o pen-
samento mágico, mítico e rel ig ioso usam procedimentos sem e-
lhantes: observação, sistematização e c lassif icação. O pensa-
mento pr imitivo é uma forma de conhecimento que produz o r-
denações verdadeiras. Lévi -Strauss diz que o pensamento má-
gico é distinto e autônomo frente ao cientí f ico. A magia não é
uma mera etapa da evolução cientí f ica mas é bem articulad a e
independente. Na base de qualquer pensamento está a ordem
que se dá a partir de uma intuição sensível e se apoia na pe r-
cepção de que os seres e coisas do mundo não são elementos
isolados mas estão envolvidos em re lações de sign if icado. Lévi -
Strauss chama essas formas de conhecimento de “ciência do
concreto”, cujos resul tados não são menos verdadeiros do que os das ciências exatas.
O pensamento mágico e o pensamento cientí f ico são, po r-
tanto, duas formas de conhecimento desiguais mas que p odem
produzir ordenações verdadeiras. Assim, o que importa é pe r-
ceber que o discurso dos freqüentadores da Feira forma um
todo ordenado, fazendo sentido. Como uma br icolagem, esse
sistema de crenças opera com mater iais fragmentados, resid u-
ais, t i rados do contexto mais am plo da cultura, como por
exemplo, elementos do mundo das ciências, das artes e dos
esoter ismos. 20
19 Claude LÉVI-STRAUSS , O pensamento selvagem. 20 Ibid., pp. 39-43.
80
Para Jahoda 21, o chamado pensamento pr imitivo está pr e-
sente em todos nós. Ao estudar a superstição e sua presença
na sociedade moderna, o autor af irma que o no sso modo de
pensar age de maneira semelhante, pr incipalmente no campo
das artes, da poesia e da rel ig ião. Além disso não fal tam
exemplos no cotid iano de ações animistas. Uma coincidência
pode causar um grande transtorno, levando à necessidade de
atr ibuição de uma causa def inida. A idéia de que tudo poderia
ter acontecido pela convergência ac idental de duas cadeias i n-
dependentes de acontecimentos é inconcebível, porque psic o-
logicamente intolerável. 22
O pensamento da ciência moderna, objetiva e determ inis-
ta, não admite outras expl icações que aquelas empir ic amente
comprováveis. Fatos coincidentes são expl icados pelo acaso e
podem ser prevenidos a partir de expl icações probab i l ís t icas.
Nada, a pr ior i justi f ica o estabelecimento de conexões causais,
até que alguma prova pese na balança. No pensamento de sen-
so comum, é corr iqueiro o estabelecimento de causas entre
elementos descontínuos. Salta -se a lacuna de dados com muita
faci l idade e completa-se o esquema. O fenômeno passa a ter
lugar num todo s ignif icativo.
Citando Spinoza, Jahoda af irma que se houvesse ordem e
controle sobre as coisas da vida, não ser íamos superstic iosos 23.
Mas se há incertezas somos propensos à credul id ade.
A aposta da ciência moderna estava em acabar com as in-
21 Gustav JAHODA , A ps icologia da supers ti ção. 22 Ibid., p. 141. 23 Ibid., p. 145.
81
certezas, não havendo lugar para o s vár ios t ipos de crendices.
Mas, a incerteza está sempre à espreita. É fundamental que,
de alguma forma, busquemos controlá - la. Para Morin, a vida
compreende também as incertezas, as indeterminações e os
fenômenos aleatór ios 24. Em outro l iv ro, o mesmo autor af irma
que nada é prometido antecipadamente ou garantido nem por
Deus nem pela Histór ia. “Contudo, no oceano de i ncertezas
podemos adquir ir certezas” 25. Pensando nas aberturas do ima-
ginár io, no campo das artes, dos sonhos e nas subjetiv idades,
a incerteza fará parte indef inidamente da vida humana, não
havendo ciência ou tecnologia suf ic iente que lhe dê um f im.
Nesse sentido, o senso comum continuará buscando ce r-
tezas onde forem possíveis de serem encontradas.
Venho sempre consultar a Teresa (cartomante) quando tenho dúvidas sobre coisas que estão me acont e-cendo. (cl iente mais freqüente, 26 a 35 anos, psic óloga)
Eu me sinto muito melhor depois que a Taís (taról o-ga) abre as cartas para mim e vê o que está acontecen-do. Eu sou muito insegura e isso me dá uma segurança de saber onde eu estou pisando. (cl iente mais freqüente, fem., 26 a 35 anos, publ ic i tár ia)
Thomas 26 procurou expl icar o decl ínio da magia na soci e-
dade ocidental. Para ele, as leis naturais descobertas pela c i-
ência foram el iminando as concepções animistas do universo 27.
Considerando a tese de Mal inowski, Thomas mostra que o d e-
cl ínio da magia coincidiu com o aumento do controle cientí f ico
24 Edgar MORIN , Introdução ao pensamento complexo, p. 52. 25 Edgar MORIN , Para sai r do século XX, p. 277. 26 Keith THOMAS , O decl ínio da re l ig ião e da magia. 27 Ibid., p. 524.
82
sobre a natureza. Porém, ao contrár io do antropólogo polonês,
diz não ser somente a falta de expl icação que leva ao uso da
magia. Esta decl inou até mesmo antes que a ciência e as sol u-
ções técnicas viessem ocupar as lacunas então deix adas. A te-
se de Thomas aponta para o fato de que os homens foram se
emancipando das crenças mágicas sem terem cr iado qualquer
tecnologia ef icaz para ocupar seus lugares. Isso aconteceu a
partir do século XVII pois a magia estava deixando de ser inte-
lectualmente acei tável e também porque a rel ig ião passou a
valor izar mais a ajuda do indivíduo a si mesmo que a espera e
evocação de uma ajuda sobrenatural 28. As grandes cidades
passaram a impedir as práticas agrár ias do passado. Thomas
fala de um crescente processo de autonomia do indivíduo e
uma racional ização da rel ig ião combinando com o decl ínio da
magia.
Não há como negar que na sociedade moderna o indiv í-
duo se fez mais autônomo e que a magia não ocupa mais um
lugar central e de tamanha visib i l idade que possuía anter io r-
mente. Thomas f inal iza mostrando dados da sociedade eur o-
péia. A ci f ra de pessoas que têm uma visão mágica do universo
pode ul trapassar 25%, não sendo, portanto, nada desprezível.
É preciso subl inhar o caráter simból ico e expressivo da magia
atual. Se houve um decl ínio da magia, houve também uma m u-
dança de sua inserção na sociedade. É uma magia que se art i-
cula com a ciência, ou melhor, com aqui lo que o senso comum
denomina de cientí f ico. 29
28 Ibid., p. 540. 29 Ibid., pp. 540-544.
83
Essa ar ticulação entre mistic ismos, magia e ciência tem
sido denominada por muitos como crença nas pára -ciências.
Para Cheval ier 30, as pára-ciências são semelhantes ao ocult i s-
mo pelo seu funcionamento lógico e por sua visão de mundo.
Distinguem-se deste pela reivindicação de um status de ciência
e pela busca de legit imação. Caracter izam -se pela ambigüida-
de, procurando ultrapassar os l imites insti tucionais das prát i-
cas cientí f icas, evocando uma zona imprecisa entre saber e
crença 31. Para o autor, os métodos de divinação comparti lham
com o ocult i smo a mesma visão de mundo unif icada pela teor ia
da correspondência, ou seja, todo objeto que se assemelha a
outro possui as caracter ísticas deste outro, mesmo não estan-
do diretamente l igados.
Birmann32 d iz que a dignidade e o status alcançado pelo
pensamento mágico nos dias atuais não é um retorno aos m o-
dos tradicionais de pensar. Indica justamente o oposto, ou s e-
ja, uma representação da vida social c laramente moderna e
desencantada, com o indivíduo assumindo maior autonomia. O
que hoje é visto como nova espir i tual idade já foi chamado no
passado de superstição e animismo. Nas diferentes manifest a-
ções dos movimentos espir i tual is tas contemporâneos, percebe-
se um ecletismo, ou mesmo um sincretismo, que “conduz os indivíduos a incluírem, numa só e única ordem, os aspectos
múltip los e contraditór ios da segmentada e diversif icada real i-
dade do campo rel ig ioso” 33. A autora chama a atenção para o
fato de como os grupos que se denominam espir i tual istas i n-
30 Gérard CHEVALIER , “Parasciences et procédés de legi t imat ion”. 31 Ibid., p. 205. 32 Patrícia B IRMANN, “Relat ivi smo mágico e novos est i los de v ida”. 33 Ibid. , p.51
84
corporam discursos do própr io meio acadêmico, como relat i-
v ismo das crenças e ef icácia dos símbolos, para justi f icarem
suas ações.
Tiryakian 34 fala da necessidade de reexaminar como o
ocult ismo se relaciona com a modernidade em seus aspectos
culturais. O autor defende a idéia de que muito daqui lo que
denominamos moderno hoje, foi or ig inado na cultura esotér ica,
pr incipalmente nas correntes ocult i stas do século XIX. Af irma
que a cultura esotér ica é uma grande fonte inspiradora de ino-
vações sócio-culturais. De acordo com Tiryakian, o pensamento
esotér ico inf luenciou mudanças na cultura erudita, notad amen-
te no campo das artes, da pol í t ica, da cultura e, também, no
pensamento cientí f ico. Trata as novas espir i tual idades e aqui lo
que ele mesmo denomina de revival ocult is ta atualmente em
curso, não como moda passageira da sociedade de massa, mas
como um componente integral na formação de uma nova matr iz
cultural. Apesar da inf luência do esoter ismo naqui lo que é tido
por moderno, a or ientação de valores da sociedade oc idental,
como por exemplo o ethos cientí f ico, forçou a cultura esotér ica
a um papel marginal e alternativo. Para compreender sua i m-
portância sociológica, ressalta a necessidade de rec onhecer as
novas espir i tual idades como importante veículo na restrutura-
ção das representações coletivas da real idade soc ial . 35 Aqui
reside o mérito de seu trabalho, ou seja, fazer pe rceber que
aqui lo que denominamos esoter ismo ou ocult ismo está mais
presente na vida cotid iana do que a ortodoxia posit iv ista gos-
tar ia que est ivesse.
34 Edward A. T IRYAKIAN , “Toward the socio logy of esoter i c cu l ture ”. 35 Ibid., p. 510.
85
Boy e Michelat 36, a par tir de uma pesquisa quanti tativa na
sociedade francesa, apontam para o fato das crenças nas pára -
ciências formarem sis temas de representação do mundo. Em
situações de incertezas ou frustações, essas alternativas for-
necem outras maneiras de imaginar o mundo. Dizem que a
crença nas pára-ciências, apesar de se fazerem acompanhadas
das crenças rel ig iosas, estão desvinculadas destas ú lt imas.
Os autores af irmam ser falsa a idéia de que o racional i s-
mo, que está na base da ati tude cientí f ica, domina as mental i-
dades. O sistema de crenças das novas espir i tual idades b aseia-
se, segundo eles, num projeto de reconci l iação do espir i tual i s-
mo e do racional ismo e numa tentativa de abertura da consc i-
ência cientí f ica a outros modos de ref lexão mais globais, mais
intuit ivos, mais próximos de uma revelação. 37
B lumberg38 pesquisou a magia no mundo moderno antes
mesmo do crescimento das novas espir i tual idades. Contrar ia n-
do a visão de Mal inowski, apontava o fato da magia ser e ncon-
trada em situações que não demonstravam per igo ou ins egu-
rança. Ou seja, apesar de ser comum a presença da magia nas
horas incertas, é verdade também que incerteza e magia não
estão sempre juntas. A ciência não conseguiu el iminar a m a-
gia, tendo apenas provocado sobre as práticas mágicas a i n-
corporação de determinadas terminologias cientí f icas. Ci ta o
exemplo dos adivinhos que com uma vara mágica procuram
água em terrenos inóspitos refer indo -se a termos tais como
36 Daniel BOY e Guy M ICHELET , “Croyance aux parasciences: dimens ions social les et cu l turel les”. 37 Ibid., p. 201. 38 Paul BLUMBERG, “Magic in the modern wor ld”.
86
eletr ic idade, magnetismo e forças químicas 39. Até um pouco v i-
sionár io, Blumberg termina seu artigo dizendo do fracasso da
ciência posit iv ista, que previa um avanço da racional idade s o-
bre todas as insti tuições da sociedade moderna, e da tendência
cada vez maior do uso da magia em vár ios setores da soc ieda-
de.
Tambiah 40 enfatiza o uso simi lar de analogias tanto no
pensamento mágico como no cientí f ico. Porém, estabelece di s-
tinções radicais entre os diferentes meios de uso dessa anal o-
gia. O uso cientí f ico é dependente da relação causal entre o b-
jetos e suas qual idades. Se existe o conhecimento das premi s-
sas de algum relacionamento causal , pode -se estender a outro
relacionamento simi lar, sem a necessidade de conhecimento de
suas premissas. A analogia na magia, ao contrár io, depende de
uma transferência de valo res ou s ignif icados impl íc i tos num
determinado relacionamento para uma segunda relação embora
não haja necessar iamente uma relação de simi lar idade ou ca u-
sal idade entre ambos. O autor é enfático ao af irmar que a m a-
gia não é simplesmente uma ciência falha (c omo dizia Frazer),
nem uma ciência racional pr imitiva (nos sentidos dados por
Mal inowski ou Evans-Pr itchard). A ciência e a magia represen-
tam dois t ipos de pensamento: os cr i tér ios de um não podem
ser apl icados diretamente ao outro. Nenhum dos modos de
pensamento é, ao seu entender, necessar iamente super ior ao
outro. 41
39 Ibid., p. 158. 40 Stanley J. TAMBIAH , “The form and meaning of magical acts : a point of wiew”. 41 Ibid., p. 355.
87
Soares 42 chama a atenção para o fato da nova consciência
rel ig iosa (como ele mesmo denomina) estabelecer uma relação
muito particular com as rel ig iões. Como caracter ística ma rcan-
te, aponta o plural ismo e o trânsi to entre as denominações r e-
l ig iosas. Se antes a passagem para uma outra rel ig ião era vista
pelo f iel como um momento de cr ise, hoje é um estado não só
comum como esperado. Conclui que o novo é just amente o
contexto cultural mais abrangen te e não uma nova exper iência
rel ig iosa dentro das mesmas velhas molduras. A nova consc i-
ência rel ig iosa “representa a real ização, talvez mais r igorosa e radical, da exper iência rel ig iosa moderna” 43. Trata-se do deslo-
camento da rel ig ião, afastada do centro da vida social e subs-
ti tuída por pr incípios laicos de legit imação pol í t ica. Isso aca r-
retou uma maior autonomia do indivíduo frente ao unive rso
mágico-rel ig ioso.
Sem aceitar a postura pós-moderna que aponta para a
subjetiv idade como lugar de referência das r epresentações
mágicas, e também rel ig iosas, é preciso perceber que há p a-
drões na cultura abrangente, e que o indivíduo tem apenas a
possibi l idade de escolha mais var iada dentro do quadro de r e-
presentações mais amplo. Rol im 44 af irma a necessidade de
compreender o fenômeno do trânsi to rel ig ioso num tr ip lo a s-
pecto: a esfera subjetiva, a esfera objetiva e a esfera social . A
42 Luiz E. SOARES , “Rel igioso por natureza: cu l tura a l ternat iva e mis t i -cismo ecológico no Bras i l ” . 43 Ibid., p. 211. 44 Francisco C. ROLIM , “Introdução”, In: CNBB, A Igreja Catól i ca diante do Plural i smo Rel igioso III .
88
visão parcial que enfoca apenas o aspecto subjetivo, esquece
que as outras duas esferas não se anulam 45.
É no inter ior desse aspecto que devemos olhar para o si s-
tema de crenças atuante na Feira Mística. Faz parte da cu ltura
mais ampla, do senso comum, e a cada momento as art icula-
ções real izadas podem pr iv i legiar, de maneira mais ou m enos
evidente, cada uma das três esf eras.
De acordo com Negrão 46, existe um “mínimo denominador
comum” rel ig ioso na sociedade brasi leira. Nesse quadro mais amplo os indivíduos vão fazer suas escolhas, podendo optar
por múltip las vivências ou um intenso trânsito entre as dive r-
sas rel ig iões exis tentes.
A sociedade urbana moderna traz, portanto, uma inf in i-
dade de possibi l idades de vivência múltip las. Os sujeitos at u-
antes na Feira Mística par tic ipam de vár ias redes de signif ic a-
dos diversas, não podendo ser caracter izados por rótulos f e-
chados e r íg idos.
Vimos, no capítulo anter ior, que se pode visual izar no m í-
nimo três grandes tipos de freqüentadores: os habituais (su b-
divididos entre os com maior ou menor freqüência de uso dos
oráculos), os eventuais e os cur iosos. Todos eles constróem
seus sistemas de crenças a partir do pano de fundo mais amplo
da sociedade. Dessa tipologia pode-se tirar três tendências de
construção de sis temas de crenças. Ou seja, não há um amo n-
toado de possibi l idades individuais, subjetivas, de vivê ncias
45 Ibid., p. 16. 46 Lísias N. NEGRÃO , “Refazendo ant igas e urdindo novas tramas: traj etó-r ias do sagrado”.
89
dos oráculos da feira, mas modelos de articulação dessas cren-
ças. Modelos retirados “da” sociedade que funcionam no sent i -
do de “modelos para” a constituição de uma noção de r eal ida-
de47.
Os elementos e os valores cul turais mais amplos estão aí
para todos, em constante mudança de acordo com o r i tmo da
sociedade moderna. Formam um senso comum dentro do qual
cada grupo de indivíduos elege os componentes mais signif ic a-
tivos, tornado possível, assim, a construção de sentido através
das divinações. Trata-se agora de procurar compreender, entre
aqueles consulentes habituais, quais são os elementos signif i -
cativos que constituem seu sistema de crenças, pr incipalmente
no tocante à dicotomia entre crença e descrença.
2. A Crença na Descrença: um jeito de ver o mundo
Seguindo a proposição de Lévi -Strauss 48, compreende-se
que os oráculos da Feira Mística são ef icazes porque as pess o-
as envolvidas, os prof issionais, os cl ientes e também a soci e-
dade mais ampla, ou senso comum, acreditam neles. Para Lévi -
Strauss,
47 Clifford GEERTZ , A interpretação das culturas. 48 Claude LÉVI-STRAUSS , “O feiticeiro e sua magia”, In: Claude LÉVI-STRAUSS , An-tropologia estrutural.
90
não há, pois, razão de duvidar da ef icácia de certas pr á-ticas mágicas. Mas, vê-se, ao mesmo tempo, que a ef icá-cia da magia implica na crença da magia, e que esta se apresenta sob três aspectos complementares: existe, in i-c ialmente, a crença do fei t iceiro na ef icácia de suas té c-nicas; em seguida, a crença do doente que ele cura, ou da vít ima que ele persegue, no poder do própr io feit icei-ro; f inalmente, a conf iança e as exigências da opinião c o-letiva, que formam a cada instante uma espécie de cam-po de gravitação no seio do qual se def inem e se s ituam as relações entre o feit iceiro e aqueles que ele enfei t i -ça.49
A ação desse campo de gravitação foi denominada pelo
autor de consensus coletivo. Fazendo um paralelo com a nossa
sociedade, pode-se dizer que o senso comum desempenha esse
papel gravitacional. Como visto no i tem anter ior, a crença nas
forças mágicas em geral e nas divinações em particular se f a-
zem presentes no senso comum da sociedade moderna. Essa
crença nunca é total e nem sempre consciente. As pessoas pa r-
tic ipam em graus var iáveis. É o que se pode ver i f icar a p artir
de alguns depoimentos:
Eu interpreto a capacidade do místi co em adivinhar da seguinte maneira: existem coisas que não são meras coincidências. Existe uma força maior que está presente. Os místicos conseguem captar essa força. (. . .) Eu gosto de ver no tarô, mas se o místico for bom, tiver sensibi l i -dade, ele vai conseguir ler em qualquer coisa. (cl iente mais freqüente, fem., 36 a 50 anos, pedagoga)
Eu gosto de vir à Feira Mística porque aqui os míst i-cos são muito bons. Eles estão aqui para isso, né. Ele s conseguem adivinhar. (cl iente mais freqüente, masc., 26 a 35 anos, 2º grau completo, desempregado)
Olha, eu venho por cur iosidade. Às vezes o que ela (a mística) me diz tem tudo a ver. Às vezes não. É puro
49 Ibid., p. 194.
91
“chute”. Eu não costumo acredi tar nessas coisas. Quando eu penso ser iamente acho que tudo isso não existe, não é possível. Mas tem coisas que a gente vê acontecer que só tem uma expl icação: existe algo maior, uma força, um destino, chame do que você quiser , que não dá para a gente ver. Acho que às vezes eles (os místicos) conse-guem ver isso. (cl iente mais freqüente, fem., 19 a 25 anos, estudante de administração)
Carl Sagan, em seu l ivro O mundo assombrado pelos de-
mônios , procurou esclarecer as confusões que as pessoas f a-
zem entre ciência e as chamadas f orças sobrenaturais. Pr imei-
ramente faz uma constatação:
Em alguns países, quase todo mundo acredita em astrologia e precognição, inclusive l íderes do governo. Mas isso não lhes é simplesmente incutido pela rel ig ião: é t irado da cul tura circundante em que t odos se sentem à vontade com essas práticas, e encontram-se provas disso por toda parte. 50
Em defesa do cetic i smo e da ciência em geral, Sagan ad-
mite que não se pode f icar intransigente, assumindo um ar d i-
tator ial de dono da verdade se contrapondo aos crédu los.
Mesmo porque reconhece que
muitos sistemas de crença pseudocientí f ica e da Nova Era nascem da insatisfação com os valores e perspectivas convencionais – sendo, portanto, em si mesmos, um tipo de cet ic ismo. 51
Petrossian 52 procurou compreender o sistema de crenças
que envolve o uso da astrologia na França. Para ela, exis te
uma diversidade de crenças possíve l de ser colocada numa e s-
50 Carl SAGAN , O mundo assombrado pelos demônios, p. 30. 51 Ibid., p. 293. 52 Lena PETROSSIAN , “A crença astrológica moderna”, In: Edgard MORIN et a l . , O retorno dos astró logos .
92
cala. Pr imeiramente, procura entender as razões da acei tação
da astrologia. “O indivíduo moderno aspira pois a conhecer -se
na integral idade, na sua autentic idade e unicidade”. 53 Para tan-
to, procura compreender a si e aos outros classif icando -as nu-
ma ordem coerente de categor ias famil iares. Os signos zod ia-
cais e suas relações com os planetas e casas respondem pron-
tamente a essa necessidade. Formam um espelho onde é pos-
sível se reconhecer e se perceber, a si e aos outros, num todo
cósmico ordenado. A partir daí, os indivíduos vão se pos ic ionar
no inter ior de uma escala de crenças. Há uma conjunção entre
a necessidade de conhecimento da pessoa, que ela chama de
psico-astrologia, com a crença no destino, na sorte, que esc a-
pa dessa mesma pessoa.
A escala de crenças vai da fé astrológica até o anti -
astrologismo, passando pelo cetic ismo e pela indiferença fre n-
te à astrologia. As pessoas podem partic ipar dessa escala de
maneira intermitente, ou seja, possuir uma crença que só ap a-
rece ocasionalmente, ou ainda, aparece de maneiras dif erentes
a cada momento. É uma crença ambivalente. Junta -se uma
consciência racional is ta e cética, que dissolve os fundamentos
da astrologia, duvidando da sua verdade com uma consciência
mágica, que adere a qualquer mensagem astrológ ica que a
considera evidente. 54
Nessa zona nebulosa confundem-se cur iosidade, desconf i-
ança e ambigüidade. Para Simmel55, o t íp ico habitante das
53 Ibid., p. 142. 54 Ibid., p. 157. 55 Georg S IMMEL , “A metrópole e a v ida mental ”, In: Otáv io G. VELHO , O fenômeno urbano .
93
grandes cidades evita um envolvimento total com os f enôme-
nos que o cercam. Assim, ninguém é totalmente crente ou de s-
crente, uma vez que nenhuma exper iência específ ica abso rve o
indivíduo por inteiro.
Nesse sentido temos um tipo específ ico de crença , mas
que nem por isso inval ida os pressupostos da ef icácia simból i-
ca apontados por Lévi -Strauss. A crença e o consenso exis tem.
Apenas não de uma forma absoluta.
É importante fr isar aqui lo que Lévi -Strauss chamou da
importância de ver i f icação do sis tema de crenças. “A escolha não é entre este sistema e um outro, mas entre o sis tema m á-
gico e nenhum sistema, ou seja, a desordem”. 56 Ou seja, qual-
quer sistema, desde que coerente, é melhor que a ausência de
quadros expl icativos. O fato de haver uma crença inter mitente
não signif ica momentos de total ausência de sentido. Pelo co n-
trár io, os per íodo de cetic ismo e descrença são compl ementa-
res aos de credul idade, servindo justamente como contraponto
signif icativo de af irmação um do outro.
Evidentemente que não deixa de haver lugar para uma
crença. Neste sentido estou de acordo com Edgar Morin de que
existe uma fé na razão moderna. 57 Toda verdade carrega uma
fé na verdade, há sempre espaço para a dúvida.
Evans-Pr itchard 58 af irma haver cetic ismo entre os Azande.
Esse cet ic ismo está incluído no sis tema de crenças, fazendo
56 Claude LÉVI-STRAUSS, “O feiticeiro e sua magia”, In: C. LÉVI-STRAUSS , Antropo-logia estrutural. 57 Edgar MORIN , Introdução ao pensamento complexo. 58 E . E. EVANS-PRITCHARD , Bruxar ia, orácu los e magia entre os Azande .
94
com que um zande sempre desconf ie de um adivinho. 59 Af i r-
mando haver os bons adivinhos e os trapaceiros, essa descre n-
ça permite expl icar possíveis fracassos e reforça a crença nos
outros.
Para Evans-Pr itchard, não há motivos para um zande tr a-
pacear na leitura dos oráculos. Aos olhos de um europeu, pode
parecer que o operador trapaceie. “É verdade que o número e o tamanho das doses (de veneno) ministradas às aves var iam e
que mesmo aves de igual tamanho nem sempre recebem o
mesmo número de doses; mas supor que os Azande trapaceiem
é nada entender da sua mental idade. (. . .) Trapacear, longe de
ajudá-lo, o destruir ia, (. . .) resultar ia provavelmente na sua
morte”. 60 Dentro da lógica do adivinho, trapacear signif ica r ia
se afastar do veredito e do verdadeiro responsável que proc u-
ra. Assim, no futuro haver ia de pagar pelo erro.
O mesmo se dá com os feit iceiros anal isados por Lévi -
Strauss. 61 Mesmo uti l izando truques e arti f íc ios da prestid igit a-
ção, há uma crença na missão especial que desempenham. Es-
se papel do xamã, al iado à crença do doente que precisa da
intervenção do feit iceiro para curar um determinado mal, co m-
binado com o consensus coletivo, ou seja, a conf iança de toda
comunidade nos poderes mágicos, tornam sua a ção ef icaz.
Na Feira Mística, alguns adivinhos contam com maior
prestíg io que outros. Quando ocorre de algum presságio estar
errado, o máximo que pode acontecer é o místico perder a
59 Ibid., p. 151. 60 Ibid., pp. 200-201. 61 Claude LÉVI-STRAUSS , “O feiticeiro e sua magia”, In: C. LÉVI-STRAUSS , Antropo-logia estrutural.
95
conf iança daquele consulente. Este voltará a se consultar,
mantendo sua crença nas mancias como um todo. Procurará
escolher, da próxima vez, um outro místico ou outro tipo de
oráculo.
Apesar de serem práticas proibidas pela coordenação da
Feira, há um místico que cobra por serviços de magia que s u-
postamente far ia em sua residênc ia. O tal adivinho se vanglo-
r ia de trapacear, não real izando nenhum trabalho e embolsa n-
do o dinheiro do cl iente. De acordo com a coordenadora, que
sabe das suas ati tudes, “o mais enganado é ele mesmo. Mal ele sabe que o que faz dá certo”. É comum o cliente voltar um
tempo depois para agradecer. Ou seja, o consensus coletivo é
mais poderoso que a trapaça do místico. Fora esse caso, que
me parece extremo, no geral não há motivos para haver trap a-
ças nas leituras oraculares. O míst ico acredita no oráculo. O
consulente também. Havendo essa crença comparti lhada, não
há porquê pensar que alguém esteja querendo eng anar.
Uti l izo o termo “crença na descrença” para enfatizar o f a-
to de que as pessoas hoje admitem crer somente naqui lo que
julgam não ser uma crença, ou ai nda admitem apenas pensar
ceticamente. A vulgar ização da ciência e a inf luência do posi t i -
v ismo no senso comum trouxeram uma relutância na aceitação
aberta e consciente das crenças em forças invisíveis. Há uma
extrema valor ização da ciência empír ica e compr obatór ia. A
verdade é determinada pela “comprovação cientí f ica”. Assim, descrê-se em tudo que não seja visível, palpável e provado. Ao
mesmo tempo, a ressurgência do mistic ismo trouxe de volta a
crença, ou melhor, a possibi l idade de crer. Mas era preciso
96
conci l iar essa nova crença com os valores impregnados do co n-
ceito de val idade. Agora acredita -se, mas acredita-se desacre-
ditando, ceticamente, ou crendo que um dia tudo poderá ser
expl icado à luz da ciência. Admite -se a crença porque ela é
uma antecipação de um conhecimento maior e mais profundo.
Há um mito de um conhecimento hol íst ico que abrange todas
as expl icações, que envolve a ciência (uma ciência agora h u-
manizada) e a mística (agora “comprovada”). A crença neste
mito é o que eu chamo de “crença na de scrença”.
É semelhante ao que Atlan fala a respeito da acei tação da
f icção cientí f ica como uma não-crença ef icaz; uma revelação
parcial do oculto, promessa de revelação acei ta e legit imada. 62
Aceita-se as novas descober tas desconf iando sempre de seus
postulados. O homem da ciência rac ional crê na ética enquanto
a vê baseada em fundamentos racionais, mas não percebe que
seu fundamento está “do outro lado”, em pr incípios irracionais. É uma crença que não é vista como tal. 63
A ciência é imposta socialmente. Seu posic ionamento im-
pede que seja vista como portadora de crenças. Ela engana ao
fazer acreditar que para aceitar suas verdades não é preciso
crer.
O mesmo ocorre com o que Col in Campbel l tratou de
meia-crença, como uma relutância em falar que se acredita em
superstições. 64 É um imenso consenso e val idação de um sis t e-
62 Henry ATLAN , Com razão ou sem ela. Intercr í ti ca da c iência e do mi to, p. 292. 63 Ibid. pp. 291-293. 64 Colin CAMPBELL , “Hal f -bel ief and the paradox of r i tual ins trumental act iv ism: a theory of modern supers t i t ion”, p.158.
97
ma de crenças tido por verdade comprovada. Assim, pode -se
aceitar no que está ocul to pois é visto não como uma crença,
mas uma descoberta de um conhec imento mais amplo, legit i -
mado pela c iência.
Para Campbel l , as pessoas que na nossa sociedade ad e-
rem conscientemente à magia são exceções. Formam os p e-
quenos grupos ocult is tas de inic iados, defensores conscientes
de suas práticas e crenças. Tal não se apl ica aos que estão
engajados nas práticas superst ic iosas. Estes não aceitam aqu i-
lo que fazem como formas diferenciadas de magia. Pe rgunta-
das diretamente, essas pessoas relutam em admitir que acred i-
tam nas ações que praticam e não conseguem formular qua l-
quer razão do porquê agem assim.
A teor ia defendida pelo autor se apl ica à maior ia das pes-
soas, que não são nem os crentes convictos na superstição,
nem os céticos convictos na ciência. Embora absorvam os v alo-
res centrais da modernidade sobre o controle instrumental,
quando encontram incer tezas ou estresse em suas vidas pesso-
ais, buscam tranqüi l izar -se em exercíc ios de controle pessoal
de seus destinos através de pequenos e aparentemente inco n-
seqüentes r i tuais. Agindo através de r i tuais superstic iosos bu s-
cam, inconscientemente, reaf irmar a fé na operacional i dade
instrumental da ciência. 65
A “crença na descrença” expr ime um conf l i tuoso jogo de
racional idades distintas. Crenças em forças ocultas ou poderes
divinatór ios foram, e mui tas vezes a inda o são, def inidas como
irracional idades. Nessa perspectiva, o fato de uma pessoa que
65 Ibid., p. 164.
98
se diz racional ista e mater ial ista consultar as mancias da Feira,
pode ser entendido como uma manifestação contraditór ia. Em
geral, as pessoas olham para as racional idades, c ientí f ica e
mágica, como excludentes.
Morin66 adverte que a depreciação deste últ imo tipo de
racional idade se deu através das idé ias i luministas, que acr edi-
tavam que os deuses, o sobrenatural e os mitos foram i nven-
tados para enganar as pessoas. “Não se davam conta da pr o-
fundidade e da real idade do poder rel ig ioso e mit ológico no ser
humano”. 67
Para Atlan 68, existem vár ias racional idades, ainda que di s-
tintas, que procuram dar conta dos dados apresentados p elos
sentidos. Cada tipo possui uma lógica própr ia. Dessa m aneira,
rejeita as tentativas de unif icação da ciência mode rna com as
tradições or ientais e rel ig iosas. Esses diálogos são t idos pelo
autor como fecundos, somente se respeitarem as r egras do jo-
go de cada uma das partes. Ressal ta que as diferenças entre
as racional idades das tradições místicas e da cientí f ica não se
resumem a uma questão de razão versus i rracional idade. Pelo
contrár io, traduz uma relação com o real. 69
Os pr incípios da não-contradição e da causal idade consti-
tuem o fundamento da nossa lógica e os preceitos de toda
ação e racional idade. Fora disso só pode-se imaginar uma rea-
l idade del irante. É a ef icácia destes pr incípios que servem de
66 Edgar MORIN , Introdução ao pensamento complexo. 67 Ibid., p. 103. 68 Henry ATLAN , Com razão ou sem ela. Intercr í ti ca da c iência e do mi to. 69 Ibid., p. 88.
99
fundamento à crença numa intel ig ibi l idade, numa racional idade
do real. 70
Para exempli f icar essa idéia, Atlan uti l iza o exemplo do
uso de cogumelos alucinógenos em r ituais xamânicos de div i-
nação e apl icações terapêuticas que buscam revelação e par t i-
c ipação mística. Pode-se atr ibuir sua ef icácia aos deuses que
falam através desse instrumento ou às alterações provocadas
nos neurotransmissores. As duas formas de expl icação, no en-
tender do autor, estão corretas. A real idade empír ica é a me s-
ma mas são duas classes de fenômenos bastante distintas.
Acontece que é impossível perceber essa real idade fora de qualquer quadro conceitual , e que a l inguagem que a descreve, sempre interpre tat iva, contr ibui para a construir e cr iar, assim, classes de fenômeno diferentes, conforme se trate de espír i tos e de pequenos deuses, ou de receptores membranários, de neurotransmissores e de f luxos iônicos através das membranas dos neurônios. S e-r ia um erro, evidentemente, acredi tar que apenas essa últ ima classe de fenômenos é real, enquanto que a pr i-meira é i lusór ia. 71
O mesmo indivíduo que apregoa os avanços da ciência e
se diz plenamente de acordo com a racional idade cientí f ica,
pode consultar as car tas do tarô para saber se seu empreen-
dimento vai dar resultados posit ivos. São lógicas distintas, mas
cada qual, a seu momento, faz sent ido. Dif ic i lmente essa pe s-
soa vai c lamar por forças ocultas para consertar um carro qu e-
brado. Sabe muito bem que é ao mecân ico que deve levar. Po-
rém, é possível compreender esse infortúnio como obra do
70 Ibid., pp. 124-129. 71 Ibid., p. 123.
100
destino. Sendo assim, pode fazer uma consulta na Feira Mística
antes de entrar numa estrada novamente com o mesmo carro.
Esse sistema de crenças, que permeia o universo das
consultas oraculares da Feira Mística, é marcado por uma e spi-
r i tual idade difusa. Esta maneira de vivenciar a espir i tual id ade,
longe de estar vinculada às insti tu ições detentoras do p oder
simból ico sagrado, ou seja, as rel ig iões socialmente inst i tuí-
das, valor iza as escolhas individuais em busca de uma e ssência
e de uma verdade capazes de resolver os males que af l igem o
indivíduo.
Dentro desse quadro de referências, a magia passa a ser
aceita sem grandes questionamentos. Não há uma preocupação
em provar sua ef icácia por meio das ciências exper imentais,
nem de dizer que ela é falsa. Há um reconhecimento do poder
simból ico que está por detrás da magia. A ef icácia simból ica,
retratada por Lévi -Strauss 72, é reconhecida e valor izada entre
nós. A partir dessa epistemologia de fundo, o indivíduo vai
cr iando e impondo suas própr ias crenças. Ao menos aquelas
que mais lhe convém no momento.
O sistema de crenças construído e v ivenciado pelos s ujei-
tos da Feira Mística articula diferentes racional idades . Ciê ncia
e espir i tual idade combinam-se constituindo um quadro concei-
tual no qual as lógicas distintas são uti l izadas na medida do
necessár io. É importante sal ientar que por ciência compree n-
dem não exatamente sua metodolog ia ou instrumental específ i -
co, mas uma “terminologia cientí f ica”, um cienti f ic ismo divu l -
72 Claude LÉVI-STRAUSS , “A eficácia simbólica”, In: C. LÉVI -STRAUSS , Antropologia estrutural.
101
gado pelos meios de comunicação de massa. Em nossa soci e-
dade predominam jargões retirados do discurso cientí f ico e ut i-
l izados, muitas vezes, de maneira descontextual izada. 73 A visão
que têm de ciência é de um cienti f ic ismo midiático do qual r e-
tiram o que interessa.
Crença e descrença compõem os pólos externos de um
sistema no inter ior do qual os indivíduos vão constatando a
possível veracidade, ou não, das falas dos ad ivinhos.
É no inter ior do sistema cultural mais amplo que podemos
compreender tanto a exis tência como a lógica interna dos or á-
culos modernos. O sistema de crenças então vigente, no sent i-
do em que Car l Sagan aponta, permite “acreditar num mundo assombrado pelos demônios”. 74 Há diversas possibi l idades de
leitura das novas descobertas cientí f icas, formando, então, n o-
vas visões de mundo. Há espaço para cienti f ic ismos ingênuos e
para místicas que se pretendem comprovadas pelas ciências
(como aquelas defendidas por uma inf inidade de publ ic ações
de grande sucesso como: A Profecia Celestina , Operação Cava-
lo de Tróia ou O Despertar dos Mágicos ). Diferentes visões
sobre o que é divino, sobre Deus e outras divindades e sua
analogia às energias permitem perceber de maneira nova as
forças naturai s e a vivência social e coletiva.
73 Programas de televisão, como o “Fantástico” da TV Globo, alimentam-se do discurso científico para ganhar credibilidade, contribuindo para consolidar a utilização dos ter-mos cientificistas. 74 Carl SAGAN , O mundo assombrado pelos demônios.
102
3. O Papel Ordenador dos Mitos
Uma vez visual izados os contornos gerais do senso c o-
mum que se organizam como um sistema de crenças e a co m-
posição e articulação dessas últ imas, faz -se necessár ia agora
uma incursão por aquela caracter í stica metaf ísica da cultura
que dá sustentáculo a todo o sistema, a consciência mí tica.
As mancias l idam com a estruturação do tempo e do im a-
ginár io. São estes também os elementos básicos da consti tu i-
ção mít ica 75.
Uti l izo aqui o conceito de imaginação mítica desenvolvido
por Kolakowski. 76 Para esse f i lósofo, o mito vai além das cons-
truções rel ig iosos e abarca “uma parte das construções pr esen-
tes em nossa vida intelectual ou afetiva, em particular as que
permitem harmonizar em um todo – teleolog icamente – os
componentes condicionados e mutáveis da exper iência para r e-
fer i - los a real idades incondicionadas”. 77
Os mitos integram aquela parte da cultura que se refere à
real idade incondicionada não-empír ica. É fundamentalmente o
sustentáculo das crenças e valores. Para Kolakowski, o ser
humano tem necessidade de buscar respostas às suas questões
últ imas e o faz de pelo menos três maneiras distintas. Pr ime i-
ro, como necessidade de compreender as real idades empír icas,
75 Este tema será aprofundado no próximo capítulo. 76 Leszek KOLAKOWSKI , A presença do mito. 77 Ibid., p. 5.
103
ou seja, de viver o mundo da exper iência como “dotado de
sentido por sua relação com uma real idade incondicionada que
l iga os fenômenos segundo os f ins”. 78 Assim, a organização m í-
tica do mundo, ou seja, as regras que asseguram a compree n-
são da vida dotada de um sentido, está sempre presente na
cultura. A segunda maneira diz respeito à necessidade de crer
na perduração dos valores humanos. É preciso sentir os val o-
res de maneira perene. A terceira versão dessa necessidade de
respostas é o desejo de ver o mundo como cont ínuo.
Em todas elas existe um desejo comum: a suspensão do
tempo f ís ico, cobr indo-o com a forma mítica do tempo. Tal su-
peração da temporal idade permite não só a transformação e a
acumulação dos acontecimentos, como também o elo encadea-
dor entre eles. O passado se vê l igado ao presente e ao futuro
num f luxo contínuo e signif icativo de tempo. 79
Vista como fatos isolados, a vida parece caótica. Esses
fatos adquirem uma ordem e signif icado quando os relacion a-
mos a uma verdade tida como atemporal e incondicionada, ou
seja, quando ganham uma referência mítica.
Para Berger e Luckmann, o mundo da vida cotid iana é e s-
truturado temporalmente. Só no inter ior de uma estrutura
temporal é que a vida ganha um sinal de real idade. 80 Uma pes-
soa se reor ienta na vida a partir de uma reorganização tempo-
ral.
78 Ibid., p. 10. 79 Ibid., p. 11. 80 Peter BERGER e Thomas LUCKMANN , A construção social da real idade.
104
Mas esse tempo a que se referem os autores é o tempo
socialmente insti tuído. Castor iadis 81 div ide esse tempo em duas
dimensões: o tempo identitár io, que é aquele da demarcação
do calendár io; e o tempo imaginár io, ou tempo das signif ic a-
ções. As duas dimensões estabelecem relações de inerência r e-
cíproca. 82 Ficar apenas no tempo identitár io é f icar preso na
sua irreversibi l idade. Olhar para o tempo imaginár io permite
saltos signif icativos entre per íodos. As dis tâncias temporais
podem aumentar ou diminuir . Temos, então, a presença do
tempo mítico, externa ao tempo l inear. Esse espaço fora do
tempo é um espaço imaginár io, l ibertár io, onde outras con e-
xões são possíveis e um outro sentido é possível de ser real i-
zado. O passado e o futuro passam a f icar disponíveis e i ntel i -
g íveis.
A leitura dos oráculos da Feira Míst ica permite, ao suje i-
to, sair da temporal idade identitár ia e visual izar outras exper i-
ências que se tornam possíveis a partir do devaneio imaginár io
do místico. Frente a situações tidas por fechadas e bloqueado-
ras, o consulente mergulha num mar de outras possibi l id ades.
O passado é trazido à luz do presente, bem como o futuro é
antecipado. Os acontecimentos e as emoções passam a fazer
sentido num eixo lógico de tempo. A partir da fala do adivinho,
o consulente constrói real idades que já estão, enquanto poten-
cial idades, presentes em imagens.
O imaginár io al imenta a composição do própr io universo
de crenças. Se a todo momento, as ditas verdades da ciência
81 Cornelius CASTORIADIS , A ins t i tuição imaginár ia da sociedade. 82 Ibid., p. 247.
105
são vistas como palavra f inal, nada mais natural de que esses
mesmos elementos sejam uti l izados para a composição de n o-
vas crenças. Assim, o panorama rel ig ioso da modernidade será
montado com resíduos retirados da sociedade mais ampla. Fo r-
ça, energia cósmica, ação entre par tículas, f ractais, ma gnetis-
mo, entre outros, compõem sistemas de crenças que f alam de
anjos, duendes, bruxas, cr is tais etc.
Como processo cr iador, o imaginár io míti co reconstrói o
real. L ibertando-se das amarras da real idade, o imaginár io p o-
de inventar, improvisar e estabelecer relações impensáveis
numa situação corr iqueira. Provido de uma capacidade antec i-
patór ia, pode visual izar situações ainda não ocorr idas, mas
existentes em estado de latência.
Giddens83 ressalta que nas sociedades pré -modernas um
dos pr incipais contextos de relações de conf iança é a tradição.
Esta se baseia na maneira pela qual as crenças e as práticas
estão organizadas, especialmente em relação ao tempo. “A tradição ref lete um modo distinto de estruturação da tempor a-
l idade”. 84 Giddens chama a atenção para o fato de como a rel i -
gião e a tradição perderam inf luênc ia no mundo moderno. P o-
rém, a sociedade tradicional era dotada do tempo reversível,
ou seja, a lógica da repetição, onde o passado é um meio de
organizar o futuro. “O tempo passado é incorporado às prát i -
cas presentes, de forma que o hor izonte do futuro se curva p a-
ra trás para cruzar com o que se passou antes”. 85
83 Anthony G IDDENS , As conseqüências da modernidade. 84 Ibid., p. 106. 85 Ibid., p. 107.
106
Como visto no capítulo anter ior, a vivência oracular da
Feira Mística é um espaço possível daqui lo que Giddens ch a-
mou de reencaixe. Temos a tentativa de vivência de uma te m-
poral idade reversível, em que o indivíduo se vê inser ido no f l u-
xo dos acontecimentos. Percebe-se, assim, uma tendênc ia à
recr iação, ou invenção, de trad ições.
É comum nos discursos dos místicos, e também dos co n-
sulentes, referências ao passado imemorial de certos oráculos.
Quanto mais antigo, e tradicional, mais verdadeiro parecerá
aos olhos de seus consumidores. Magnani apontou a tradição
como um dos elementos mais recor rentes que entram no di s-
curso do meio neo-esotér ico e “que funciona também como a instância legit imadora de todos esses discursos”. 86 Tradição se
articula com o outro pólo, o da ciência. De um lado a rec orrên-
cia a grandes civ i l izações antigas e esoter ismos dos mais var i-
ados. De outro, os avanços da tecnologia cientí f ica. Em ambos
os casos é preciso saber do que se está tratando.
No campo da tradição encontramos o que Hobsbawm
chamou de “ invenção das tradições”. 87 Muitas vezes, tradições
que parecem ou são consideradas antigas são bastante rece n-
tes, quando não, são inventadas. O autor ressalta tratar -se de
uma tentat iva de estruturar de maneira imutável e invar iável
alguns aspectos da vida social f rente às constantes mudanças
e inovações do mundo moderno. 88
86 José G. MAGNANI , Mystica urbe, p. 82. 87 Eric HOBSBAWM , “Introdução”, In: E. HOBSBAWM e T. RANGER (orgs .) , A invenção das trad ições . 88 Ibid., p. 10.
107
Para Balandier, a tradição é uma herança “que def ine e
mantém uma ordem ao apagar a ação transformadora do te m-
po, só retendo os momentos fundadores dos quais t ira sua l e-
gitimidade e sua força”. 89 Através da cr iação de tradições ime-
moriais simula-se uma ordem imutável e fundamental. Porém,
a tradição só age enquanto portadora de um dinamismo que
lhe permite a adaptação . “A tradição não é nem o que parece ser, nem o que diz ser”. 90 A tradição pode ser vista como um
texto constitutivo de uma sociedade. Neste, a sociedade e o
presente social encontram-se constantemente interpretados.
No conjunto das mancias que se oferece n a Feira, é im-
portante que se reconheça um passado no mínimo glor ioso. É
preciso insti tuir uma autentic idade. Isso será melhor sucedido
quando vier acompanhado de uma signif icação de antigüidade
do oráculo. Quanto mais exótico e mister ioso for sua suposta
or igem, melhor será o resul tado. Ressal ta -se que esse “miste-
r ioso” está muito mais no imaginár io dos personagens que na verdadeira histór ia. Ao inventar e construir seguidamente suas
tradições, os oráculos possibi l i tam releituras dos acontec imen-
tos passados, presentes e potencial idades futuras sob a ótica
das crenças existentes naquele momento específ ico.
Inventando novas e antigas práticas, a arte divinatór ia
permanecerá como uma das maneiras do ser humano l idar com
o mundo do imaginár io e as incertezas do dia a dia.
89 George BALANDIER , A desordem. Elogio do movimento. 90 Ibid. p. 38.
108
CAPÍTULO III - TERRITÓRIO DE ORÁCULOS
Um jogo de dados não el im i-na o acaso.
Mal larmé
Para compreender a Feira Mística enquanto um espaço
que oferece serviços oraculares, é preciso olhar mais atent a-
mente ao sentido que os oráculos têm para os grup os sociais
formados pelos indivíduos que os consultam.
Pr imeiramente farei uma breve exposição a respeito do
signif icado etimológico das palavras oráculo e divinação e a
l igação dos jogos divinatór ios com a mística. Em seguida, vou
me ater à questão do oráculo como instrumento de previsão e
fuga do aleatór io em busca de determinações. A dicotomia e n-
tre destino e l ivre-arbítr io, tão cara nos dias atuais, merecerá
um olhar mais cuidadoso. Por f im, procurarei anal isar o papel
do oráculo nas decisões tomadas pelos cl ientes, a importância
da ordenação, o rompimento da l inear idade causal e constr u-
ção da real idade.
109
1. A Mística do Oráculo
A palavra oráculo guarda vár ios signif icados. Pode -se en-
contrá- la como sinônimo de templo ou santuár io consagrado à
adoração de uma divindade profética e visionár ia. Ou ainda,
como na tradição clássica, identi f icar o oráculo com a própr ia
divindade que respondia a consultas e or ientava o crente, c o-
mo por exemplo, o oráculo de Apolo, em Delfos. Não é raro
identi f icar a pessoa que transmite os vatic ínios, ou ainda, a
própr ia frase revelada, sempre em sentido f igurado ou de i n-
terpretação dúbia, com o oráculo em si. 1 Der iva do latin oracu-
lum , do verbo orare , falar ou perguntar, e se refere ao pr o-
nunciamento divino frente ao desconhecido.
No senso comum não é raro haver certa confusão entre
oráculo e profecia. O termo profecia refere -se a um amplo
campo de fenômenos desde a antiguidade até dias atuais. 2 Vem
do grego prophétes , que signif ica funcionár io de culto que fala
no lugar de um deus. Na antiguidade era comum acreditar que
os deuses controlavam eventos do mundo e faziam suas inte n-
ções serem conhecidas dos mortais através de duas maneiras
básicas. Em pr imeiro lugar, havia adivinhos que praticavam
técnicas var iadas para interpre tar mensagens simból icas do
mundo natural. Algumas dessas técnicas eram puramente o b-
servacionais (vôos de pássaros, por exemplo), enquanto outras
1 Hugo SCHLESINGER e Humberto PORTO , Dic ionário Encic lopédio das R e-l ig iões . 2 W. HERBRECHTSMEIER e G. SHEPPARD , “Prophecy”, In: Mircea EL IADE (ed.) , The encyclopedia of Rel igion .
110
dependiam de manipulação (como a exanimação das entranhas
de animais). Em segundo lugar, os deuses comunicavam suas
vontades através dos oráculos, pela boca de uma pessoa in spi-
rada. Esses portadores começaram a ser chamados de pr ofe-
tas. Na tradição bíbl ica os oráculos dos mais var iados tipos f o-
ram desmerecidos em favor das profecias, que no caso eram
tidas como manifestação da vontade de um deus único,
Yahveh, por meio de seus profetas.
Embora distintos pela tradição teológica, os termos “or á-
culo” e “profecia” são uti l izados igualmente pela antropologia. 3
Dizem respeito a todo o tipo de meio ou instrumentação uti l i -
zado para desvendar as supostas verdades ocultas. Caracter i-
zam-se como uma maneira de adquir ir informações sobre o f u-
turo e o desconhecido não acessíve is através dos canais mais
convencionais de comunicação, como a fala e o discurso raci o-
nal. Pressupõem uma interpretação de símbolos retirados do
contexto cultural através de uma inf inidade de procedimentos
distintos. Qualquer coisa pode ser uti l izada como forma de d i-
vinação, mas os métodos e sinais não são aleatór ios. Cada
qual expressa uma lógica específ ica.
No caso da Feira Mística, o oráculo é tido simplesmente
como jogo divinatór io ou mancia. Em nossa sociedade o termo
profecia f icou restr i to às predições l igadas diretamente a m o-
vimentos rel ig iosos ou às grandes antecipações futur ísticas
que dizem respeito a uma grande parcela da humanidade,
3 David AUNE , “Oracles”, In: Mi rcea EL IADE (ed.) , The encyclopedia of Re-l ig ion .
111
como é o caso das conhecidas, e amplamente divulgadas pela
mídia, profecias de Nostradamus.
Os termos arte e jogo divinatór ios, uti l izados indistint a-
mente neste trabalho, vêm de divinação. Esta, assim como d i-
v ino e divindade, der iva do latin dius, divi ou divus , ou deus.
Divinação está l igada particularmente ao verbo divinar, ou s e-
ja, tornar algo divino, não sendo, porém, esse o sentido de uso
corrente. Segundo Karcher 4, d iv inação revela aqui lo que está
oculto através de meios nem sempre racionais. Faz isso atr a-
vés de algo considerado pelos praticantes como de inspir ação
divina, por deuses, espír i tos, anjos, demônios ou através dos
arquétipos. 5 O adivinho, ou homo divinu , é por essa concepção
aquele a quem os deuses concederam o dom de adiv inhar.
Mancia, outra das maneiras mais corr iqueiras de design a-
ção dos oráculos na Feira Mística, vem do termo grego man-
teia , que assim como mania, tem relação direta com Mantiké ,
ou furor, del ír io e frenesi. Em geral, o del ír io considerado sa-
grado pelos gregos ser ia conseqüência da possessão do adiv i-
nho por uma divindade. Há a idéia de um êxtase, uma loucura
sagrada, que permitir ia a transmissão de mensagens das divi n-
dades para o mundo dos homens.
Vatic ínio, ou prognóstico da d ivinação, vem do verbo lat i-
no vatic inium , adivinhar. Mas vatic inium vem de vates que
também or iginou a palavra poeta. Ou seja, assim como aos p o-
etas, aos adivinhos é permitido o ato de sonhar e del irar s obre
a real idade. De acordo com Zuesse a divinação requer a sub-
4 Stephen KARCHER , “Divinat ion, synchronic i ty and fate”. 5 Ibid., p. 215.
112
missão do adivinho para as chamadas forças transcende ntais. 6
Evans-Pr itchard apontava a bruxar ia e adivinhação entre os
azande como uma transcendência da exper iência sensor ial . 7
Em muitos dos depoimentos dos místicos da Feira, perc e-
be-se uma descr ição de exper iência semelhante. Vár ios foram
aqueles que uti l izaram o termo intuição para designar o pr o-
cesso de tomada de consciência das ditas verdades ocul tas.
Além disso, identi f icam essa intuição com uma possível l igação
com as forças, ou o termo que é mais freqüentemente uti l izado
- energias, super iores. Esse arrebatamento produz nos místicos
um êxtase que faz com que muitos saiam das consultas abs olu-
tamente esgotados. De certa maneira isso não ocorre em t odas
as consultas do dia. Mesmo porque levar i a o místico a um grau
de desgaste que tornar ia as últ ima consultas pratic amente in-
viáveis. Pude ver i f icar que ao menos ao f inal das consultas
com os cl ientes habituais que se tornaram conf identes, e em
consultas que demoram no mínimo tr inta minutos, o estado de
desgaste do místico é bastante evidente. Mui tos pr ocuram pa-
rar para descansar antes de atender um novo consulente.
Quando eu abro as cartas eu falo as coisas por pura intuição. Eu não consigo parar para pensar o que eu vou falar. Eu vejo a carta e já vou falando. Parece que tem uma voz atrás me dizendo as coisas. (. . .) Quando eu en-tro muito no jogo das cartas eu vou sentindo o corpo tremendo, suando. Eu f ico tensa e no f inal saio super cansada. É como se eu tivesse dado tudo de mim. (Tere-sa, cartomante)
6 Evan M. ZUESSE , “Divination”, In: Mi rcea EL IADE (ed.) , The encyclope-dia of Rel igion . 7 E. E. EVANS-PRITCHARD , Bruxar ia, orácu los e magia entre os Azande .
113
A intuição é uma coisa meio danada de expl icar. Porque é uma coisa que vem, como se fosse uma energia que você capta de algum lugar que você não sabe de o n-de é e como é que vem. Se fosse um espír i to, eu dir ia que é um espír i to evoluído que vem e traz uma coisa. Se for um catól ico diz que é um anjo, se for um cienti sta vai dizer que é uma energia, porque não consegue expl icar, né. Mas eu dir ia de uma maneira muito simples: é como a mãe da gente, que tem a intuição com a gente. Quando ela diz um negócio, dá na certa. Acho que é um pouco por esse lado aí. Vem a intuição. Quando ela surge e chama, você segue e naturalmente dá certo. É claro que nas l inhas da mão têm umas técnicas, mas eu sigo mui to mais a minha intuição. (Reinaldo, quiromancista)
Evans-Pr itchard fala que apesar dos adivinhos se basea-
rem em escândalos locais e que em boa medida ele pensa s o-
bre as respostas que dará, é “da opinião que se deve atr ibuir ao adivinho Zande uma boa dose de intuição, sem reduzir seus
pronunciamentos apenas à razão. ( . . .) É realmente quase i m-
possível ser mais expl íc i to, mas estou (o autor) convencido que
a seleção dos nomes se faz através de uma ativ idade menta l
basicamente inconsciente”. 8
O adivinho é um sujeito dotado de uma sagacidade para
perceber nas entrel inhas das falas e expressões dos consule n-
tes pistas em novas direções, possib i l i tando uma abertura onde
antes só existiam caminhos truncados. O místico tem a capac i-
dade de dar um sal to qual i tativo na narrativa da vida do s ujei-
to. Um bom adivinho é considerado, na Feira Mística, aquele
que consegue ser bastante sensível para encontrar os signif i -
cados necessár ios a cada situação dada.
8 Ibid., p. 129.
114
Segundo Pessoa, o adivinho deve estar aberto à múltip las
percepções da real idade. Simi lar aos arti stas, exc êntr icos e
doentes mentais, aproxima-se da f igura do xamã. 9 Tendo feito
um estudo sobre o recor te semiótico dos jogos divinatór ios,
Pessoa anal isa o domínio textual do adivinho. Diz ser o adiv i-
nho o responsável pelo contato entre o acervo de signos de
seu sis tema de adivinhação e o mundo exter ior. Além das co r-
respondências, o discurso e o acer to do adivinho devem se b a-
sear nos indícios do contexto que lhe dêem evidências dos c a-
minhos sobre os quais correrá seu texto divinatór io. De acordo
com o sis tema de c renças discutido no capítulo anter ior, os d i-
agnósticos e prognósticos do adivinho devem repercutir co e-
rentemente, estabelecendo identidades entre esferas dis tantes.
Como os mi tos, sua fala reduz a diversidade do mundo em to r-
no de algumas imagens invar iante s. Dentro de cer ta gama de
possibi l idades razoáveis, sendo coerente, qualquer discurso do
adivinho pode ser correto.10
Como vimos, essa percepção da rea l idade executada pelo
adivinho ocorre essencialmente numa situação não totalmente
consciente, mas nem por isso fora de controle.
Para as mancias dos pólos popular (cartas e baralhos em
geral) e mediato (vidência), com maior ênfase na intuição, e s-
se êxtase místico é mais faci lmente perceptível. Já para as
mancias dos pólos erudito (basicamente tarô e astrologi a) e
imediato (quirologia e café árabe entre outras), a fala do ad i-
vinho deve seguir alguns parâmetros objetivos: determinados
9 Jason B. PESSOA , Os deuses do acaso. O jogo div inatório como expres-são e conf luência de textos da cu l tura. 10 Ibid., p. 137.
115
símbolos e arquétipos do tarô; signos, casas e conjunções da
astrologia; traços e desenhos das l inhas da mão ou chá. P o-
rém, até mesmo esses sinais não compõem uma combinação
matemática. A divinação é aberta e pol issêmica. Sempre pe rmi-
tirá múltip las interpretações por parte dos adivinhos. Uma
mesma carta natal, uti l izada para as consultas astrológicas,
permite diferentes lei turas se real i zadas por diferentes astró-
logos. Com uma seqüência de cartas de tarô acontece a mesma
coisa. O momento, a lei tura subjetiva do adivinho e aqui lo por
eles denominado de intuição, entra em jogo e fala mais alto.
Mas sua fala não é totalmente aleatór ia. Existe uma es-
trutura da consulta que, no mínimo, funciona como um eixo
organizador. A adivinhação opera basicamente no sentido de
oferecer diagnósticos de si tuações passadas e presentes, ou
ainda no de indicar prognósticos para o futuro. Para uma
grande parte dos cl ientes cur iosos, eventuais e mesmo alguns
habituais, a consulta segue a tr i logia amor -saúde-dinheiro.
Quando não há perguntas específ icas por parte do consulente,
o adivinho acaba falando, e através de perguntas que faz, f a-
zendo o cl iente falar, sobre esses três assuntos. A par tir das
respostas dos consulentes, ou de pequenas manifestações de
concordância, espanto ou interesse, o adivinho aprofunda um
ou outro determinado ponto de sua fala.
Quando o cl iente é habitual e consulta sempre o mesmo
adivinho com freqüência semanal ou quinzenal, a estrutura é
outra. O adivinho sabe mais da vida daquele indivíduo que,
muitas vezes, seu amigo, parente ou companheiro mais próx i-
mo. A consulta acontece nos moldes de uma terapia onde não
116
é raro ambos, c l iente e adivinho, saírem com lágr imas nos
olhos.
O caráter vago e muitas vezes ambíguo das respostas das
vár ias mancias, inclusive as do tipo erudito, permite a apropr i-
ação pessoal por parte do consulente. Este partic ipa na fo rmu-
lação de signif icados das falas do adivinho. Juntos formam
uma dupla que só vai produzir adivinhações coerentes na m e-
dida em que houver uma l igação próxima entre seus membros.
Vár ios são os cl ientes que relatam f idel idade a um ou outro
adivinho pela simpatia estabelecida entre ambos.
Para Victor Turner, o adivinho precisa levar em conta a
estrutura específ ica da sociedade e o quadro de valores morais
mais amplo. Os símbolos são propositadamente vagos e f lex í-
veis para deixar o adivinho l ivre para fazer uma interpretação
detalhada da combinação dos símbolos. Esta combinação deve
corresponder ao diagnóstico que ele está fazendo e induzir o
cl iente a enxergar as situações de maneira diferenciada. 11 Em
outras palavras, o adivinho, para fazer um diagnóstico bem s u-
cedido, deve estabelecer uma corr espondência entre a vida do
cl iente, seus problemas e como este enxerga sua situação, com
os aspectos sociais mais amplos.
As falas dos adivinhos não são vistas como falas de pe s-
soas comuns. Fosse assim, não haver ia diferenças entre a co n-
sulta oracular, a consul ta terapêutica ou um desabafo com um
amigo conf idente. A aura mística que encobre as consultas, e
11 Victor TURNER , “Div ination as a phase in a socia l process”, In: W. LESSA and E. VOGT (ed.) , Readers in comparat ive re l igion: an anthr o-pological approach, p. 374.
117
que dá nome à própr ia Feira, tem uma importância fundame n-
tal.
Balandier lembra que toda cul tura de componente esot é-
r ico manifesta a função do segredo, a força do oculto. 12 O
oculto é fonte do inesperado, do imprevisível, “do acontec i -
mento que atenta contra os seres vivos e contra o curso nat u-
ral das coisas”. 13 O desconhecido é também aqui lo que está por
vir , o que pode surgir do futuro imediato. Para Baland ier, a in-
segurança frente à ignorância do que pode acontecer leva o
ser humano à busca de procedimentos que possibi l i tem operar
escolhas mais esclarecidas no presente e construir obstáculos
contra a irrupção de infortúnios no futuro. “Que acontecimento pode vir do futuro e alterar o curso regular das coisas? Para
identi f icar, é preciso interrogar, consultar, questionar: os p o-
deres do sagrado, pelo procedimento oracular ou a interpel a-
ção mística; (. . .) e as conjunturas nefastas ou cr ít icas, pelas
técnicas div inatór ias”. 14
Oráculos não são rel ig ião, mas são vistos como sagrados,
místicos e, na l inguagem usual da Feira, partic ipantes de uma
“esfera cósmica”.
Há um aspecto dos oráculos que ev idencia sua dimensão
mística. Sendo supostamente um instrumento de cont ato com o
divino e com tudo aqui lo que está oculto, a divinação respo n-
de, em parte, pela sede de transcendência do sujei tos que a
uti l izam. O êxtase exper imentado pelo adivinho e, de certa
maneira, pelo consulente, consol idam a sensação de distanc i-
12 George BALANDIER , A desordem. Elogio do movimento, p. 96. 13 Ibid., p. 97.
118
amento da real idade objetiva, visível, e o acesso a uma outra
real idade, desta vez ocul ta e mister iosa.
Eu gosto daqui da Feira, porque é um espaço que dá um contexto místico. Aqui as coisas não osci lam entre um interesse particular do místico e o lado sobrenatura l. Tem gente que mistura muito as coisas. Aqui é bem mí s-tica. A energia bate. O fato de ser místico não interfere na sua rel ig ião. Faz você crescer. É uma busca de você mesmo. (cl iente mais freqüente, fem., 26 a 35 anos, p u-bl ic i tár ia)
Existe uma verdade por trás de tudo o que a gente faz. Às vezes eu me vejo fazendo coisas que não têm e x-pl icações. Mas eu sei que tem que ter um porquê. O ad i-vinho consegue descobrir isso. Ele tem esse poder. Atr a-vés das car tas, digo. Essa é a místi ca que tem aqui. (c l i -ente mais freqüente, fem., 26 a 35 anos, psicól oga)
Campbel l 15 fala de um incremento da visão monista na s o-
ciedade ocidental. Essa crença sustenta a visão de que o adiv i-
nho da Feira Mística tem o poder de desvendar o ocul to, pois
tudo está inter l igado. Essa místi ca então vivenciada não está
em concordância com o signif icado tradicional de mistic ismo.
Segundo o dic ionár io de f ilosof ia de Abbagnano, a palavra mí s-
tica começou a ser uti l izada como comunicação direta entre o
homem e o divino a partir dos escr itos de Di onísio, no século
V. A relação direta do ser humano com o divino é impossível
de ser real izada através dos meios ordinár ios do saber hum a-
no. Assim, busca-se a única via possível, aquela que foi deno-
minada por Dionísio de êxtase da deif icação , ou união do ho-
mem com Deus. Porém, o monismo então em curso na nossa
14 Ibid., p. 98. 15 Colin CAMPBELL , “A oriental i zação do Ocidente: ref lexões sobre uma nova teodicéia para um novo milên io”.
119
sociedade fala de um holos in tegrador entre o micro (o ser
humano) e o todo (compreendido como toda a natureza, mat e-
r ial e espir i tual). A divindade é vis ta hoje como uma propr i e-
dade do própr io ser. A divinação passa a ser encarada, com
muita natural idade, como uma via capaz de estabelecer uma
conexão entre o indivíduo e o seu própr io deus inter ior. Essa
nova mística não é a da entrega e a da contemplação si lenci o-
sa, mas a porta de entrada à sua ve rdade inter ior.
Eu venho sempre à Feira me consultar para me c o-nhecer melhor. Acho que é para isso que servem os or á-culos. Têm um poder incr ível de desvendar nossas coisas inter iores. (cl iente mais freqüente, fem., 19 a 25 anos, escr iturár ia)
Há uma conf iança no poder das mancias e dos própr ios
adivinhos, não no sentido de estabelecimento de uma comun i-
cação com o sobrenatural, mas com aqui lo que é tido com a
mais profunda real idade natural : a divindade existente dentro
de cada um.
Numa vida resignada, o indivíduo pode local izar as causas
de um possível sofr imento na vontade de um deus externo. Na
nova espir i tual idade e no sistema de crenças que rege a Feira
Mística, deus está dentro de cada um. Não se deve esperar
uma ajuda externa, ou que o adivinho descubra o devir já tra-
çado para o consulente, mas abr ir os canais e a percepção de
como o indivíduo pode ajudar a si mesmo.
A relação, muitas vezes contraditór ia, entre uma histór ia
predestinada e a possibi l idade de autonomia do indivíduo com
seu l ivre arbítr io, constitui uma das caracter ísticas fundamen-
120
tais da vivência oracular nos dias atuais e, em especial , na Fe i-
ra Mística. Esse é um ponto que requer um apr ofundamento.
2. Destino e Autonomia: um jogo do acaso
A presença de jogos divinatór ios parte do pr incípio da
crença na exis tência de um destino traçado por forças super io-
res que se faz conhecido através do adivinho. Numa socied ade
secular izada em que a autonomia do sujeito se faz cada vez
maior e o poder de escolha passa a ser um dos direitos do c i-
dadão, é preciso pensar em como a articulação entre destino e
l ivre-arbítr io se estabelece.
Loewe e Blacker em um trabalho sobre a presença dos
oráculos e divinação na vida dos povos, def ine divinação como
a tentativa de elucidação através de algum poder supe r ior ou
sobrenatural de questionamentos sobre tudo aqui lo que o ser
humano não consegue expl icar por meios racionais. Questões
sobre eventos futuros, sobre acontecimentos passados que f i-
caram sem compreensão e sobre qual a conduta certa a ser
tomada frente a situações cr í t icas, são feitas desde os tempos
mais antigos. 16
16 Michel LOEWE e Carmen BLACKER , Divinat ion and oracles , p. 1 .
121
Em razão da universal idade dos oráculos, uma extensa
var iedade de métodos são encontrados a cada contexto part i-
cular. Um aspecto comum é a presença de pessoas dotadas de
um poder de adivinhação, reconhecidas como os intermediár ios
entre o mundo dos humanos e aquele sobrenatural ou que
permanece oculto. Alguns podem transmitir a fala do oráculo,
como as píf ias gregas ou os mikos do Japão. Outros podem en-
xergar as respostas através de transes ou possessões como a l-
guns monges tibetanos, ou ainda através de sonhos. Em vár ias
culturas, os sonhos oraculares eram sol ic i tados através de ê x-
tases alcançados em lugares sagrados. Outros métodos div ina-
tór ios comuns envolvem a leitura de sinais, tais como ca scos
de tartaruga na China, entranhas de animais na antiga Babi l ô-
nia, ou ainda o vôo de pássaros na Grécia. Ainda freqüentes
são os métodos em que as possibi l idades de var iações ao ac a-
so são grandes, tais como jogos de dados, pedras, conchas ou
varetas, ou ainda o comportamento sempre imprevisível de
animais. 17
Vernant af irma não haver sociedade, ao longo de toda
histór ia humana, que não tenha praticado a divinação. 18 O inte-
resse do ser humano em conhecer o futuro remonta ao c omeço
da histór ia. A motivação básica da prática divinatór ia é a ans i-
edade de poder controlar o desenlace de ativ idades e acont e-
cimentos que são importantes em nossas vidas.
Lyons relaciona a ocorrência constante dos oráculos pela
capacidade de ref lexão humana e a atração que o conhec imen-
17 Ibid., p. 2. 18 Jean Pierre VERNANT , “Paro le et s ignes muets”, In: J .P. VERNANT (ed.) , Div inat ion et rat ional i té, p. 9.
122
to sobre o futuro exerce sobre todos nós. Cur iosos por natur e-
za, os humanos construíram através da his tór ia maneiras dif e-
renciadas de predição do futuro, dependendo do estado de c o-
nhecimento da época, bem como da concepção prevalecente de
tempo. 19
As divinações operam com simbologias var iadas que r e-
metem o sujeito a uma zona não objetiva, mas que se acredita
portadora de verdades ocultas. A via de acesso pode ser por
objetos, invocações e r i tuais de todos os tipos. A l ista de v ar i-
edades encontradas é extraordinár ia e praticamente inf indável.
Givry cita apenas algumas das formas além daquelas mais c o-
nhecidas, tais como: aleuromancia ( leitura através da far inha
na superf íc ie da água); aeromancia (observação do ar); alect o-
romancia (adivinhação por gal ináceos); dendomancia (através
de árvores derrubadas); catoptromancia (usando e spelhos);
dacti lomancia (por meio de anéis); l i tomancia (através de p e-
dras); necromancia (através de comunicação com espír i tos dos
mortos); e enomancia (adivinhação pelo vinho). 20 Também no
sentido de exempli f icar a var iedade de oráculos, pode -se
acrescentar aqueles estudados por Evans -Pr itchard entre os
Azande: oráculo do veneno; das térmitas; dos três gravetos; e
o oráculo dos sonhos.21
Prandi af irma ser a necessidade universal da predição um
demonstrativo da condição humana, sempre em busca de dar
conta daqui lo que não está previsto, do acaso. Comparativ a-
mente, coloca a ciência como uma outra possibi l idade de re s-
19 Albert S. LYONS , Predict ing the future. 20 Grillot G IVRY , Witchcraf t, magic & alchemy . 21 E. E. EVANS-PRITCHARD , Bruxar ia, orácu los e magia entre os Aza nde .
123
ponder ao aleatór io, reduzindo o número de eventos casuais,
substituindo-os por predições conf iáveis. 22 O Oráculo diz o que
não sabemos, aqui lo que “a ciência desvenda pela descoberta das leis c ientí f icas e que a rel ig ião atr ibui à vontade dos de u-
ses”. 23 Deixando de lado a diferença entre os saberes, que i m-
pl ica em alcances diferenciados entre a ciência e os oráculos,
o autor procura enfatizar a necessidade da predição e da pr e-
visib i l idade nas tomadas de decisão que o ser humano se vê
sempre obr igado a fazer. Para ele, o vatic ínio mostra caminhos
possíveis, mas também conforta quando f ala da razão da exi s-
tência de um ou outro malef íc io.
Thomas ressaltava a importância da divinação na Idade
Média como um método de tomada de decisões indispensável
para muitas pessoas. O oráculo “ legit imava a conduta aleatór ia
ao permitir que as pessoas op tassem entre diferentes cursos
de ação, quando não havia nada que ajudasse, em bases rac i-
onais, a decidir entre eles”. 24 Anal isando o avanço da ciência, o
autor af irma que a magia não desapareceu, mas compôs com a
pr imeira um conjunto de expl icações sobre o s eventos.
John Cohen anal isa as caracter ísticas das divinações em
diferentes culturas. Para ele, as incertezas da vida não dim i-
nuem à medida em que a sociedade avança em termos cientí f i -
cos e tecnológicos. Procurando compreender a presença dos
22 Reginaldo PRANDI, “As Ar tes da Adiv inhação. Candomblé tecendo tr a-dições no jogo de búzios”, In: Car los E. MOURA (org.) , As senhoras do passado da noi te: escr i tos sobre a re l igião dos Or ixás , pp.123-125. 23 Ibid., p. 123. 24 Keith THOMAS , O decl ínio da re l ig ião e da magia, p. 206 .
124
oráculos, diz que a razão básica se deve ao esforço necessár io
para assegurar controle sobre as incertezas da vida. 25
A ciência moderna está longe de ser o arauto da exatidão
e previsib i l idade. Porém, em seu inter ior também surgem aqu e-
les visionár ios, verdadeiros profe tas da atual idade. O gênero
da f icção cientí f ica não deixa de ser uma modal idade a ntecipa-
tór ia, constituída por imagens, da ânsia humana pela previsão.
No entender de Alvin Toff ler, um dos maiores prof etas atuais é
Arthur Clarke, “aquele que viu os padrões que outros não v i-
ram”.
Como exemplo desse paralel ismo entre a divinação e a c i-
ência, e de como esta também busca decifrar a real idade, está
o CERN 26, na Suíça. Cientis tas de 17 países estão construindo o
maior acelerador de partículas do mundo. Acredita -se que com
ele será possível decifrar, através da col isão de partículas, a
cr iação da matér ia. Def inida como uma enorme máquina de i n-
vestigação e adivinhação, recebeu o nome de Delphos.
Ambas, magia e ciência, atuam no sentido de construção
de um conhecimento que responda pela nosso desejo de co-
nhecer aqui lo que está oculto, possibi l i tando l idar com o im-
previsível.
No campo específ ico dessa pesquisa, interessa saber a
constituição própr ia do saber oracular. Para Vernant, dois pr o-
blemas fundamentais aparecem em todas as manifestações
oraculares.
25 John COHEN , Hasard, adresse et chance. 26 Centro Europeu de Pesquisas Nucleares.
125
Primeiramente, aponta a natureza das operações intele c-
tuais impl icadas nas consultas oraculares que sustentam a l ó-
gica do sistema e o trabalho do adivinho para decifrar o invis í-
vel e responder às demandas dos consulente s. Em seguida,
chama a atenção para o tipo de racional idade que se expr ime
no jogo dos processos divinatór ios. A cada modo e local idade
de exper iência oracular, deve-se procurar perceber os símbolos
oraculares e os quadros classif icatór ios uti l izados pelo adivinho
para fazer a tr iagem, ordenar, manipular e interpretar as i n-
formações. Ou seja, apesar de universais e encontrados em t o-
das as sociedades de que se tem conhecimento, apresentam
especif ic idades no tocante à articulação dos saberes. Vernant
preocupa-se em responder sobre o lugar e a função desse s a-
ber oracular em uma dada sociedade. Reconhece a importância
que as profecias exercem ao determinarem escolhas e dec i-
sões, tanto públ icas como pr ivadas, contr ibuindo para os r u-
mos que a sociedade em geral, ou os indivíduos em particular,
empreenderão. 27
Vernant aponta um caráter contraditór io nos saberes e
práticas oraculares. De um lado o adivinho aspira um conhec i-
mento total, uma onisciência. De outro, procura conhecer os
acontecimentos particulares da vida de indivíduos. A divinação
tem por objeto as seqüências de fatos par ticulares sobre os
quais se consulta justamente por serem de ordem aleatór ia, e
através dos procedimentos do adivinho esses fatos são ord e-
nados dentro de uma lógica geral que conduz à el im inação do
azar e a supressão do acaso. Para decifrar essas conf igur a-
27 Jean Pierre VERNANT , “Parole et s ignes muets”, In: J .P. VERNANT (ed.) , Div inat ion et rat ional i té, p.10.
126
ções, a divinação retém e isola cer tos dados específ icos e de
local ização imediata, como combinação de car tas, pedras ou
posic ionamento de astros no momento do nascimento do ind i-
víduo. A partir do agenciamento interno desses elementos, o
adivinho vai procurar a ordem cósmica total. A onisciência pr e-
tendida pelo adivinho, se fosse plenamente real izada, far ia d e-
saparecer a função propr iamente di ta da divinação, sua f inal i-
dade prática, uma vez que não haver ia mais nada a dec ifrar.
Os consulentes não esperam que o oráculo lhes digam s obre
um futuro inexoravelmente f ixado, mas que ele indique, com
uma certa precisão, o que é preciso fazer ou deixar de f azer
para que as coisas se real izem da manei ra mais favorável pos-
sível. 28
Os sistemas divinatór ios articulam-se e equi l ibram-se, de
maneira mais ou menos estável, entre esses dois pólos opo s-
tos. De um lado o quadro formal, as estruturas lógicas da cu l-
tura mais ampla sobre as quais se fundamenta a ord em geral
dos acontecimentos, e de outro, a multip l ic idade de situações
concretas, diversas e mutáveis, sobre as quais os consulentes
vêm interrogar o oráculo. 29
Em outras palavras, cabe ao adivinho a tarefa de articular
a ordem geral de um destino coerente com o sistema de cren-
ças mais amplo da sociedade, com o fato aparentemente isol a-
do que o consulente lhe traz e que precisa ser resolvido e e n-
caminhado imediatamente.
28 Ibid., pp. 17-18. 29 Ibid., p. 18.
127
Se o adivinho desvendasse um poss ível destino f inal para
o consulente, a este só restar ia a resignação da espera dos
acontecimentos já traçados e não precisar ia retornar ao or ácu-
lo. Se, por outro lado, as respostas oraculares f icassem re str i-
tas ao imediatismo dos eventos, não surtir iam o menor efeito.
É preciso ver esses fatos inser idos numa or dem super ior, num
sentido últ imo que rege a l inha dos acontecimentos cotid ianos.
Mesmo que um pessoa procure decidir um posic i onamento a
partir de uma aleator iedade qualquer, por exemplo numa jog a-
da de dados, uti l iza muitas vezes a expressão “tirar a sor te ”, evidenciando inconscientemente que esse acaso não é assim
tão aleatór io. Em úl t ima instância ar remata com a fala “. . . seja o que Deus quiser”, ou ainda “eu não tenho sorte, mesmo”. I s-
so demonstra que no fundo essa pessoa joga o dado, “a sorte”,
aleator iamente, mas espera que este se enquadre na ordem
superior que rege sua vida. Ou seja, há sempre uma busca
desse equi l íbr io entre o fato isolado e a ordem mais ampla.
De acordo com Cal ier, na divinação articulam -se o devir e
o ser. De uma lado haver ia a ciência divina a descobrir o devir
que está oculto, mas traçado pelas divindades. De outro est a-
r ia a razão humana, ontologicamente pertencente ao ser, que
dependeria das inic iativas humanas. 30
Neste inter ior encontra-se o jogo entre o destino e a au-
tonomia do indivíduo. Pr igogine lembrou o que Wil l iam James
chamou de “di lema do determinismo”. No seu entender, as
30 Jeannie CALIER , “Science divine et r a ison humaine”, In: J .P. VERNANT (ed.) , Divinat ion et rat ional i té, pp. 249-251.
128
pessoas vivem como se fossem espectadores de um f i lme que
foi real izado de uma vez por todas. Podemos não saber quem
será o assassino, mas o produtor sabe. Ou seja, temos a con-
vicção de que há um destino e se não o conhecemos é por fa l-
ta de instrumentos apropr iados. O senso comum tende a af i r-
mar que todo evento é causado por um evento que o pr ecede.
Desta forma poder -se- ia predizer ou expl icar qua lquer evento.
Ao mesmo tempo, atr ibui -se às pessoas a capacidade de esco-
lha l ivre e consciente de suas própr ias ações. Pr igogine pe r-
gunta a si própr io: “o futuro é dado, ou está em perpétua construção? É uma i lusão a crença em nossa l iberdade?”. 31 Es-
tamos em um mundo em que o futuro já está determinado, ou
será que este é uma construção que está sempre em cu rso?
Nos discursos dos consulentes da Feira Mística esse di l e-
ma do determinismo está presente. A crença num destino nem
sempre é consciente, mas f ica evi dente a projeção dos fatos
cotid ianos a um desígnio super ior. Coerente com as crenças
vigentes, esse desígnio não é visto como sobrenatural ou atr i-
buto de uma providência divina. Faz parte da natureza, uma
vez que esta é tida como única, integrada, e englobando o in-
divíduo e a “força últ ima do cosmos”. Ao mesmo tempo af irma -
se a possibi l idade do l ivre-arbítr io, fazendo com que consc ien-
temente admitam que o futuro “é você mesmo quem faz”. Há uma aparente harmonia entre os dois pólos do ser e do d evir .
Eu acredito em destino, sim. Acho que tem a hora certa para tudo. (. . .) Eu venho aqui para saber um pouco de como devo agir , como vão acontecer as coisas. O que eu penso é que a gente mesmo faz o nosso destino. O que eu plantei antes estou colhendo agora. O prob lema é
31 Ilya PRIGOGINE , O fim das cer tezas , p. 9.
129
saber o que eu devo plantar agora, para poder dar certo no futuro (cl iente menos freqüente, masc., 36 a 50 anos, contador)
Acredito em destino, mas também não acredito. Acho que os místicos falam aqui lo que está escr ito para acontecer, mas quando você sabe, você pode mudar. (cl iente mais freqüente, masc., mais de 50 anos, anal ista de sistemas)
Tem muita coisa que acontece com a gente que só pode ser coisa do destino. É karma, mesmo. É bom vir aqui na Feira porque a gente consegue entender esse nosso destino. Acho que o futuro está dentro de cada um. O tarô serve para poder conf irmar isso. Muitas vezes eu f ico em dúvida, não sei o que devo fazer. Daí eu v e-nho ler as cartas e isso ajuda a encontrar o meu destino, a ver o que eu tenho que fazer. A gente dá muita cabe-çada, faz muita burrada. Com o que o místico fala – não é só o que ele fala, tem muita coisa que eu mesma vejo nas cartas, ele fala mas eu já sabia – mas, então, com o que vai aparecendo nas car tas, vai conf irmando as co i-sas. É como se o destino fosse f icando visível. Acho que é isso mesmo: uma maneira de fazer o destino aparecer. (cl iente mais freqüente, fem., 26 a 35 anos, advogada)
O destino não é acei to conscientemente, uma vez que e s-
sas pessoas valor izam as expl icações racionais t idas por cientí-
f icas. Nem todos admitem que o devir determine os passos de
suas vidas. Expl ic i tam a necessidade de exercíc io de uma a u-
tonomia, consciente e racional, porém conjugada com a crença
em sorte ou destino.
Petrossian percebeu algo semelhante na pesquisa entre
os praticantes de astrologia na França. Anal isa o que chamou
de psico-astrologia, a busca do conhecimento da natureza
oculta do ser, relacionada a uma praxo -astrologia, ou seja, a
ação presente do indivíduo inspirada no conhecimento do f utu-
130
ro. “De fato, a idéia de que o futuro já está escr ito é esc amo-
teada, virada do avesso. (. . .) A previsão serve -se do determi-
nismo, não para pregar a resignação passiva, mas para apoiar
uma ação corretora ou opor tunista. O conhecimento do futuro
inspira a ação no presente”. 32 Porém, a crença na psico-
astrologia não signif ica aceitação cega e absoluta do devir . Há
uma conjunção entre as duas crenças.
Na maior ia das expressões a respei to de Sorte, do Destino, da For tuna, as palavras ‘ sorte’ , ‘pouca sorte’ , ‘destino’, ‘ for tuna’, laic izaram -se e amputou-se- lhes a maiúscula. Mas, se bem que tornadas prosaicas, revelam uma crença espontânea na exis tência de uma força ext e-r ior objetiva que or ienta os acontecimentos: esta crença mágica desperta de vez em quando; então sorte e pouca sorte surgem, não como a conseqüência, mas como a causa de êxitos e catástrofes. 33
Essa combinação entre o determinismo e a possibi l idade
de ação do indivíduo permite, de um lado, a expl icação de
acontecimentos e coincidências por uma lógica, em certo s en-
tido mítica, mais ampla e, de outro, o poder de escapar do
inexorável através da autonomia desse sujeito. Este se vê l ig a-
do a pr incípios mais amplos e, portanto, fazendo parte de um
holos sagrado, mas também com o poder de inf luir na sua pr ó-
pr ia biograf ia.
As incertezas frente ao futuro e as inseguranças diante
das escolhas presentes podem levar esse indivíduo a buscar
expl icações mágicas que os oráculos podem ofer ecer.
32 Lena PETROSSIAN , “A crença astro lógica moderna”, In: Edgar MORIN et a l . , O retorno dos astrólogos , p. 144. 33 Ibid., p. 148-149.
131
A segurança da ação do sujeito, o l ivre -arbítr io do ser,
apoia-se numa crença inconsciente na sor te, ou no destino,
al imentada cotid ianamente através do sentimento de impotê n-
cia e angústia, mas ancorada na crença e na certeza da ef ic á-
cia do oráculo.
Evans-Pr itchard observou que também entre os Azande os
acontecimentos não dependem apenas do destino ou de uma
força super ior, no caso específ ico a crença na bruxar ia, mas
também da ação dos indivíduos. 34 Mudam-se os elementos da
crença, mas se encontra a mesma necessidade de articulação
entre o determinismo e a possibi l idade de l ivre esc olha.
Se olharmos para a his tór ia da humanidade vemos tr atar-
se as ar tes divinatór ias de um dos universais culturais. Na
busca constante de atr ibuir sentido e sol idez à provisor iedade
da vida, os povos cr iam e sempre cr iaram inúmeras fórmulas
de previsão de futuro, de l idar com o destino e de or ientação
às incertezas do presente. Das trevas e do universo gelado do
acaso, os seres humanos estabelecem a constante construção
mítica de um porvir . Nas palavras de Monod: “queremo -nos ne-
cessár ios, inevitáveis, ordenados para sempre. Todas as rel ig i-
ões, quase todas as f i losof ias, inclusive uma parte da ciência,
testemunham o incansável e heróico esforço da humanidade
em negar desesperadamente sua própr ia contingência”. 35
Na vida humana não há lugar para o acaso. Os acontec i-
mentos fortuitos, a contingência, é algo que nos incom oda
34 E. E. EVANS -PRITCHARD , Bruxar ias , oráculos e magia entre os Azande . pp.64-65. 35 Jacques MONOD , O acaso e a necessidade, p. 54.
132
terr ivelmente. A coincidência de acontecimentos ocorr idos si n-
cronicamente nunca é aceita pois é psicologicamente intoler á-
vel. As diferentes formas de conhecimento buscam sempre uma
maneira de dar sentido aos dados que, em pr imeira instância,
aparecem isolados. O mito revela como um fato veio à existê n-
cia, remetendo-o à ativ idade cr iadora dos deuses e do cosmos.
Nada f ica sem expl icação. 36 A rel ig ião fala na sacral idade do
mundo e na providência divina. A ciência moderna procurou,
objetivamente, dar conta do acaso através das leis determ inis-
tas. Por outro lado, a ciência contemporânea das indeterm ina-
cões lança mão das leis probabi l íst icas. Cada qual procura, a
seu modo, dar conta das contingênci as e do aleatór io.
Mas a coincidência não impl ica necessar iamente uma l ig a-
ção causal entre dois acontecimentos distintos. Numa visão o b-
jetiva, os fatos aconteceram simultaneamente por mero ac aso.
Até que se prove o contrár io, um nada tem a ver com o outro
e, sendo assim, nenhuma l igação entre eles pode ser estabel e-
cida. Porém, o pensamento mágico salta o obstáculo da lacuna
de dados que possa l igar os dois acontecimentos e completa o
esquema.
Assim, não permitimos que haja descontinuidades e os
fenômenos encontram lugar num todo signif icativo. Isso tudo
acaba servindo para diminuir as incertezas, as dúvidas e a n-
gústias que nos acompanham. Num mundo totalmente determ i-
nado, com plena ordem e controle, não haver ia lugar para
crenças nem superstições. Porém, se há incertezas, somos
36 Mircea EL IADE , O sagrado e o profano. A essência das re l ig iões , p. 109.
133
sempre propensos a procurar sistemas expl icativos, crenças,
que dêem conta do acontecido e do que está por acontecer.
Ora, a ciência moderna dever ia acabar com as incertezas,
não dando lugar às crendices de qualquer espécie. Tal foi o
projeto da ciência que previa a expulsão e a erradicação da
rel ig ião e suas congêneres. Mas, com as descobertas desse
começo de século, pr incipalmente através da f ís ica quântica e
o pr incípio da incerteza, abr iu -se novo espaço para a expl ica-
ção da perenidade da credul idade. Um espaço nunca desocu-
pado pelo homem comum, mas que hoje passa a ser aceito e
reconhecido sem recr iminações.
É desse mundo do acaso e das incer tezas que surge o e s-
paço do imaginár io, dos mitos, dos sonhos e das utopias. Fre n-
te à novidade, ao inesperado, fazer alguma coisa é melhor que
sentir -se vít ima desamparada dos acontecimentos. Os or áculos
servem para isso. Al iás, sempre serviram, pois sempre houve
incertezas, necessidades de expl icações e aber turas para o
imaginár io. A cada época his tór ica os oráculos respondem a
ansiedades específ icas.
Eu venho me consultar sempre que me sinto ansi o-so. O místico acaba falando coisas que servem para a gente pensar. A gente acaba f icando mais animado. (. . .) O místico tem de ter muita sensibi l idade para ver o futu-ro e aqui lo que está oculto. É uma forma de conhecer v o-cê mesmo e aprender a l idar com as coisas. (cl iente mais freqüente, masc., mais de 50 anos, anal ista de si stemas)
Eu estou com um problema lá em casa, com minha mãe. Ela ‘ tá passando por problemas del icados e isso acaba gerando um cl ima muito ruim para todos. Às vezes minha vontade é explodir com tudo. Daí eu venho falar com a Norma (cartomante) e me acalmo. (. . .) Um dia
134
ainda consigo trazer minha mãe, mas ela não quer. Acho que ser ia mui to bom. Far ia ela ver o mundo de jeito d ife-rente. (cl iente mais freqüente, fem. , 19 a 25 anos, ba n-cár ia)
Em muitos depoimentos pode-se perceber a necessidade
de vincular as escolhas imediatas a um destino. Os acontec i-
mentos cotid ianos ganham sentido pois v ão ser encarados co-
mo partes integrantes daquela prov idência mais ampla. O s u-
jeito sai da consulta com a sensação de ter encontrado a m e-
lhor opção dentre vár ias possíveis.
Meus pais são psicanal istas. Eles nunca aceitaram essa minha incl inação pelas coisa místicas. Mas para mim não tem dúvida. Existe uma coisa maior, uma força inte r-na muito grande. É como que se essa força te levasse a ser de um jeito ou outro. Mas eu posso controlar essa força. O problema é descobrir para onde ela vai, ou está indo. É prec iso entender qual é a tendência. Isso vale para qualquer pessoa e var ia de tempos em tempos. Eu sei que se eu souber para onde está apontando, eu posso tirar proveito dela. Hoje, por exemplo, em vim para saber o que pode acontecer com o meu futuro prof issi onal. Eu recebi uma oferta para trabalhar noutro lugar. Estou na maior dúvida se aceito ou não. Agora, o tarô vai me dizer para onde está indo essa força. Daí eu vou poder esc o-lher melhor. (cl iente menos freqüente, fem., 26 a 35 anos, autônoma)
Cair numa v isão determinista é algo que, de certa manei-
ra, agrada ao ser humano. Amparado por uma determinação
causal sente-se seguro. Pr igogine af irma que a própr ia ciência
moderna, mesmo preocupada em se ver l ivre das crenças e
apegada aos fatos, também se deixou seduzir por idéias de-
135
terministas, ou o que chamou de “desejo de alcançar um ponto
de vista quase divino sobre a natureza”. 37
O auge dessa concepção foi atingido por Laplace, que
acreditava ser possível deduzir a evolução universal e todos os
acontecimentos, tanto na direção do passado como na do f utu-
ro, a partir da posição e velocidade, num dado momento, de
toda massa const i tutiva do Universo.
A busca cientí f ica das lei s e regular idades conjuga -se com
a busca últ ima das f inal idades, pois permite a inferência de
que existe um curso na natureza e que o passado pode ser a
norma para o futuro. O conceito de f inal idade pressupõe que
seja possível estabelecer regular idades no mundo da exper iê n-
cia. Esse caráter teleonômico 38 da ciência nada tem a ver com
a crença numa real idade exter ior, mas como af irma Gl asers-
feld, a “crença na regular idade, e portanto na possibi l id ade de
indução, é inerente a todo ser vivo”. 39
Trata-se da constante busca de certezas, que tanto sed u-
ziu, e continua seduzindo, cientis tas ou não. Porém, c omo
alertou Pr igogine, estas certezas chegaram a um f im. A própr ia
37 Ilya PRIGOGINE , O fim das cer tezas , p. 39. 38
O termo teleonomia começou a ser empregado na década de 50 para substituir tele-ologia, mesmo sabendo não haver diferença no significado literal das palavras. Justifi-cava-se o uso de um novo termo pela necessidade de diferenciação entre um “proces-so dirigido para uma finalidade”, um princípio não consciente e proposto como um conceito científico, de um “processo dotado de propósitos”, ou seja, um princípio pro-vocado por uma vontade consciente. A esse respeito conferir H. Atlan, “As finalidades inconscientes”, In: W. Thompson, Gaia. Uma teoria do conhecimento, pp.103-119. 39 Ernst V. GLASERSFELD , “Introdução ao construt ivi smo”, In: Pau l WATZLAWICK (org.), A real idade inventada .
136
ciência não pode mais falar em situações em que, uma vez c o-
nhecidas as condições inic iais, tudo é determinado. 40
Monod foi o autor que levantou a hipótese de que a ant i-
ga al iança entre o ser humano e uma visão teleonômica estava
rompida. A teleonomia fala de um projeto responsável por toda
a evolução cósmica. Pressupõe a idéia de uma ativ idade or ien-
tada, coerente e construtiva. Porém, como af irma o autor, a
única lei geral que pode-se deduzir é a lei do acaso. “Essa no-
ção é a mais destrutiva de todo antropocentr ismo, a mais i n-
tuit ivamente inacei tável para os seres intensamente teleonôm i-
cos que somos”. 41
A palavra acaso é uti l izada, por exemplo, em situações
como jogos de azar. Sua or igem é árabe e vem da palavra az-
zahr , que signif ica “jogo de dados” . Em outras l ínguas, como
no francês hasard , pode signif icar tanto acaso como azar. Na
l íngua portuguesa, acaso está mais voltado para situações em
que há uma impossibi l idade de precisão e determinaç ão, e azar
para a falta de sorte e mau agouro. Mas o sentido negativo de
acaso, como algo indeterminado e fora de controle, perman e-
ce.
Monod fala de um acaso, ou incerteza, operacional,
quando não possuímos os mecanismos necessár ios para total
controle da ação. Em outra situações, a noção de acaso assu-
me uma signif icação essencial e não simplesmente operacional .
São as coincidências, isto é, aqueles acontecimentos que r esul-
tam da interseção de duas cadeias causais totalmente ind e-
40 Ilya PRIGOGINE , O fim das cer tezas , p. 19. 41 Jacques MONOD , O acaso e a necessidade , p. 130.
137
pendentes uma da outra. O famoso exemplo do celeiro zande
cabe bem aqui. Não há nada objetiva e diretamente l igando a
madeira podre, que cede corroída pelas térmitas, e o fato de
um grupo de pessoas estar sentado sob ela. Para Evans -
Pritchard, “a única relação entre esses dois fatos independen-
temente causados é a sua coincidência espaço - temporal. Não
somos capazes de expl icar por que duas cadeias causais inte r-
ceptaram-se em um determinado ponto do espaço, pois elas
não são interdependentes. 42
O antropólogo inglês procurou distanciar -se do pensa-
mento dos chamados pr imitivos, dizendo ser a percepção mág i-
ca, que une os dois eventos, uma exclusividade desses povos.
Porém, não percebeu que o estabelecimento de uma relação
entre os fatos i solados é muito mais freqüente do que poderia
supor. É isso que se nota a par tir de expl icações dadas pelos
consulentes da Feira.
Tem dias que acontecem umas coisas que eu f ico me perguntando: por quê? Por que comigo? Outro dia aconteceu tudo de ruim ao mesmo tempo, tudo o que p o-dia acontecer, aconteceu de er rado. (. . .) A pr incípio se eu olhasse assim, de fora, não ia perceber nada, não ia entender porque tinha acontecido. Mas eu vim consultar a Vi lma (taróloga), (. . .) daí tudo se encaixou. Ficou claro que tinha que ter passado por aqui lo (os dissabores r ela-tados antes). (c l iente mais freqüente, fem., 19 a 25 anos, nutr ic ionis ta)
Riedl sintetizou muito bem esse apego pelo estabelec i-
mento de l igações causais: “a suposição de que as coincidê n-
cias talvez não sejam de índole fortuita está arraigada em nós
42 E. E. EVANS-PRITCHARD , Bruxar ia, orácu los e magia entre os Azande , p. 61.
138
de maneira tão general izada que conjeturamos uma relação d i-
reta em cada coincidência”. 43
Buscando compreender a his tór ia do pensamento causal,
esse autor, biólogo e antropólogo vienense, af irma que tanto o
pensamento dito selvagem quanto o nosso operam por analog i-
as buscando expl icações, causas, para efei tos distantes, func i-
onando muitas vezes como verdadeiros programas automatiz a-
dos. As l igações superstic iosas ou mágicas não são, portanto,
exclusividade dos povos antepassados ou pr imitivos atuais ,
mas comum a toda espécie. 44
A negação da aceitação das coincidências como fortuitas
ganhou adeptos mesmo dentre os estudiosos. Mui to ci tado p e-
los crentes das novas espir i tual idades, Jung contrapõe a c a-
sua l idade à sincronicidade. Para esta últ ima, “a coincidência
dos acontecimentos, no espaço e no tempo, signif ica algo mais
que mero acaso, precisamente uma pecul iar interdependência
de eventos objetivos entre si”. 45
Esse autor tem sido uti l izado como forma de atr ibuição de
legit imidade acadêmica ao meio. O conceito de sincronic idade
é citado sem muito r igor pelos místicos da Feira para justi f icar
toda analogia fei ta, dizem eles, com cienti f ic idade.
Não faz parte dos objetivos deste trabalho anal isar o tr a-
balho de Jung. Porém convém ressaltar que, como toda grande
obra, atrai cr í t icas e elogios. Atlan vê o pensamento de Jung
43 Rupert R IEDL , “As conseqüências do pensamento radical ”, In: Paul WATZLAWICK (org.), A real idade inventada, p. 79. 44 Ibid., pp. 82-83. 45 Carl Gustav JUNG , “Prefácio”, In: Richard W ILHELM , I ch ing . O l i vro das mutações , p. 17.
139
como uma tentativa unif icadora da mística e da ciência, mas o
faz com ressalvas vis to tratar -se, no entender de Atlan, de
uma armadi lha.46 Para esse autor, Jung falava de uma real id a-
de arquetípica inconsciente como prova de real idade objetiva,
o que lhe parecia uma af irmação apressada. Já para Ribeiro, a
obra de Jung trouxe um rejuvenescimento às artes divinat ó-
r ias. “O psicanal ista suíço, com efeito, atr ibuiu aos métodos divinatór ios o papel de mapearem o inconsciente. Por alguma
razão desconhecida, mas que ele considerava conf irmada na
prática, haver ia uma analogia entre o inconsciente e sua f ig u-
ração no mapa astral , nas 64 f iguras do I Ching ou nas 78 ca r-
tas do tarô”. 47 Tal fato provocou, no entender de Ribeiro , um
desinteresse pelo velho objetivo prático da divinação, a prev i-
são do futuro. Deixa de haver um futuro já determinado, pa s-
sando a vigorar a idéia de responsabi l idade do sujeito.
Atr ibuindo uma lógica cientí f ica às coincidências, o tr aba-
lho de Jung repercute com muito sucesso no meio dos prat i-
cantes dos oráculos atuais. Dá voz à necessidade de conci l i a-
ção entre ciência e magia, ao mesmo tempo que atr ibui i mpor-
tância à ação do sujeito moderno. Este não f ica mais à mercê
de um destino externo e inexorável, mas como senhor de suas
ações atinge o tão caro e desejado estatuto moderno da l ibe r-
dade e autonomia.
Desde suas incursões pelos lados do mistic ismo, uma po r-
ta de intercomunicação entre o mundo cientí f ico da Psicol ogia
e a magia mística foi aberta. São vá r ios os místicos da Feira
46 Henry ATLAN , Com razão ou sem ela. Intercr í ti ca da c iência e do mi to, p. 283. 47 Renato Janine R IBEIRO , “Razão e mis t i ci smo têm laços ignorados”, p. 6.
140
que valor izam o trabalho deles através de uma compar ação
com o do psicólogo. Há até uma psicóloga formada, que já cl i -
nicou com consultór io própr io e hoje é mística em tempo int e-
gral. Encontrei também psicólogos entre os consulente s que
levavam, inclusive, problemas de seus pacientes para s erem
desvendados através dos oráculos. Mas creio não ser este ex a-
tamente o ponto fulcral . O espaço da Feira Mística é um esp a-
ço de troca de subjetiv idades, de possíveis transferências, o n-
de o consulente se entrega ao místico, mas onde também o
místico se abre numa grande conversa ínt ima.
Lévi-Strauss já apontava para essa possível relação entre
a magia e a psicanál ise moderna. 48 Af irmou ser o espaço da
magia um espaço em que, ao contrár io da ciênci a, não trata de
l igar estados confusos e inorganizados, emoções e represent a-
ções a uma causa objetiva, mas de articulá - los sob a forma de
uma total idade ou sis tema. É o mito que articula e que funda o
sentimento de segurança aí resti tuído. O mito, al i inst igado pe-
lo místico através da consul ta oracular e vivenciado mutu a-
mente com o paciente, reorganiza seu universo de sent idos.
Um ponto de incomparável diferença entre os oráculos da
Feira Mística e a consulta terapêutica da Psicologia é a atração
exercida pela rel ig iosidade e pela vivência mística. As pessoas
buscam, na consulta aos oráculos, uma espécie de transce n-
dência, um contato com aqui lo que se entende por divino, com
a total idade, questões que a Psicologia não permite alcançar.
Além do mais, a consulta oracular não requer o compromi sso
48 Claude LÉVI-STRAUSS , “O feiticeiro e sua magia”, In: C. LÉVI-STRAUSS , Antropo-logia estrutural.
141
de um tratamento terapêutico; o indivíduo vai quando sente
necessidade. Muitas vezes, também, as respostas dadas pelos
oráculos são imediatas, enquanto que numa terapia o trat a-
mento pode levar anos.
(Porque procurei a Feira Mística ?) Para terapia. (cl iente eventual, fem., de 19 a 25 anos, estudante de comunicação)
A feira serve também como uma terapia . . . (c l iente menos freqüente, masc., de 19 a 25 anos, estudante)
(. . .)É uma terapia (cl iente mais freqüente, fem., 36 a 50 anos, pedagoga)
(. . .a carta cigana) dá al ív io. É mais barato que uma terapia. (cl iente menos freqüente, masc., 36 a 50 anos, contador)
A minha car ta é de futuro, previsão, e aí ele pe rgun-ta para mim: “Teresa, o que eu devo fazer?” E aí eu dou a minha opinião. Daí as vezes eu penso que eu dever ia ter estudado Psicologia e não Direito, porque sou ps icó-loga nata, modéstia à par te. Eu sinto isso e escuto isso dos cl ientes. e eu não sei como é que eu vou falando, e eu consigo ajudar as pessoas. E tem essa histór ia de eu escutar muitas pessoas diferentes quase todos os dias, eu acabo tendo a exper iência deles. (Teresa, cartomante)
Os exemplos poder iam se estender , mas o importante é
perceber a articulação dessas práticas com a vida cotid iana. A
comparação da consul ta oracular com uma terapia não é me-
ramente fortuita. A opção pelos oráculos em detr imento da e s-
colha de um profissional como um psicólogo, longe de ser uma
escolha apenas pelo imediatismo ou pela economia monetár ia,
142
deve ser entendida mui to mais pelo substrato mítico que sus-
tenta os oráculos 49.
Nas entrevis tas aber tas aparece mais claramente a co n-
vicção da existência de uma unidade cosmológica, na qual não
se pode separar céu e Terra, mundo super ior e mundo infer ior,
o indivíduo e o todo. Os acontecimentos não são vistos como
casuais e cada qual se encontra estr i tamente l igado à estr utu-
ra do universo. Conhecendo esse universo, através de uma
mancia, por exemplo, é possível o indivíduo inf luir sobre o d e-
senvolvimento do futuro, dando conta do aleatór io e dos acon-
tecimentos incertos. É uma racional idade, não objetivada agora
nas determinações causais, mas profundamente enraiz ada na
espir i tual idade e subjetiv idade.
O místico consegue perceber, através da intuição, coisas que estão em você e que sozinho não vai conseguir ver. (. . .) Alguma coisa existe, o que é eu não sei. Quando você tira a carta (do tarô) é o seu subconsciente que está mandando naquela hora. (. . .) A consulta às cartas me faz decidir melhor as coisas, me faz viver muito melhor. (cl i -ente mais freqüente, masc., de 26 a 35 anos, técnico de laboratór io)
Serve como terapia. (. . .) No pr incípio vinha por c u-r iosidade, agora venho sempre que me sinto só. Aqui t e-nho atenção. (cl iente mais freqüente, fem., 19 a 25 anos, estudante de administração)
49 A respeito das preferências dos clientes sobre as consultas oraculares em detrimento de tratamento terapêutico psicológico, conferir o relatório de pesquisa de iniciação científica de Melo (Fabíola F. MELO, Feira Mística de São Paulo: construção, vivência e permanência de mitos na modernidade).
143
Apesar do que insistem os defensores da visão junguiana,
não se trata de abandono do destino para a simples apl icação
do l ivre-arbítr io. Os dois pólos relacionam-se seguidamente,
compondo um interessante jogo de construção de sentido e
possibi l idade de l ivre escolha. O acaso deixa de ser imponde-
rável e passa a fazer parte desse jogo. Destituídos de aleator i-
edade, os fatos e sentimentos dos cl ientes dos oráculos da Fe i-
ra Mística ganham sentido pois arti culam-se a uma total idade
mais ampla. Satisfaz -se, assim, a sede de certezas e necessi-
dade de segurança. Por outro lado, o sujeito sai fortalecido,
pois se vê dono de suas própr ias ações. Af inal, ele não foi
consutlar os oráculos para saber o que a sorte, ou os deuses,
lhe reserva, mas compreender como uti l izar suas potencial ida-
des internas que “vibram na mesma intensidade da força có s-
mica mais ampla” nas inúmeras decisões que têm de ser tom a-
das todos os dias.
3. Do Caos à Organização
O acaso, instaurado de maneira essencial na natureza e
na vida dos seres vivos, é contornado pela cr iação de ordens.
Para Atlan, o caos, ou desordem, guarda dentro de si uma o r-
144
dem de outro nível. “Tudo se passa como se o fortui to, o a b-
surdo, o acaso, fossem excluídos da real idade”. 50
Cabe, agora, procurar saber de que maneira os o ráculos
se constituem como instrumentos instauradores de ordem. R e-
tornarei à questão (ainda não esgotada) da causal idade, pois
creio que permite perceber a ef icácia dos vatic ínios e como os
própr ios indivíduos constróem um futuro.
Moore procurou anal isar os jogos divinatór ios dentro de
uma perspectiva objetiva e funcional. 51 Fala de uma função po-
sit iva latente que faz com que as práticas classif icadas como
mágicas sejam vistas como verdadei ras e ef icazes porque ati n-
gem os resul tados esperados.
Cita exemplos do povo Naskapi que uti l iza oráculos para
descobrir a local ização das manadas a serem abatidas. Sua t e-
se aponta para o fato do oráculo escapar da aleator iedade das
buscas, cr iando uma determinada estratégia que torna a caç a-
da mais ef icaz. Torna-se uma grande vantagem, pois um mode-
lo de ação, qualquer que seja ele, foi f ixado. 52 O oráculo uti l i -
zado pelos Naskapi permite o estabelecimento de uma ação
com determinado r igor metodológico, o mesmo que ter ia uma
complicada técnica estatíst ica da ciê ncia.
Apesar de ter deixado de lado a dimensão da subjetiv id a-
de e do imaginár io presentes nas leituras oraculares, o trab a-
lho de Moore indica a existência de uma or ientação ef icaz,
50 Henry ATLAN , Com razão ou sem ela. Intercr í ti ca da c iência e do mi to, p. 99. 51 Omar K. MOORE , “Divinat ion - A new perspect ive”. 52 Ibid., p. 71.
145
portanto não caótica, a partir da div inação.
Tal visão é inspiradora para pensar a função dos orácu-
los. Mas, de onde estes extraem os dados que lançam para o
futuro? A sugestão que vem de vár ios autores é de que o pr e-
sente possui os elementos do futuro, ao menos de forma l aten-
te.
Para Pr igogine a visão da ciência clássica fala em equ iva-
lência entre passado e futuro. Negando o tempo, relegou -o à
esfera da fenomenologia de um tempo i lusór io. Descobertas
recentes, no entanto, colocaram em xeque tal perspect iva.
O desenvolvimento espetacular da f ís ica de não -equi l íbr io e da dinâmica dos sis temas dinâmicos instáveis associados à idéia de caos força -nos a revisar a noção de tempo tal como é formulada desde Gal i leu. (. . .) Essa c i-ência levou a conceitos novos, como a auto -organização e as estruturas dissipativas, que são hoje amplamente uti l izados em áreas que vão da cosmologia até a ecologia e as ciências sociais, passando pela química e pela biol o-gia.53
A ciência clássica pr iv i legiava a idéia de ordem e estabi l i -
dade, “ao passo que em todos os níveis de observação rec o-
nhecemos agora o papel pr imordial das f lutuações e da instabi-
l idade. 54
A partir dessas noções surgem a possibi l idade de esc o-
lhas múltip las, indeterminadas e a idéia de caos, tornando l i -
mitadas as possibi l idades de previsib i l idade. A fís ica tradicional
unia conhecimento completo e certeza: “desde que fossem da-
das condições inic iai s apropr iadas, elas garantiam a previsib i l i -
53 Ilya PRIGOGINE , O f im das cer tezas , p. 11 54 Ibid., p. 12.
146
dade do futuro e a possibi l idade de retrodizer o passado”. 55
Uma vez que a instabi l idade é admitida, só é possível fazer
previsões em termos probabi l í st icos.
De acordo com Pr igogine, a irreversibi l idade do tempo e s-
tá vinculada a essa nova formulação, probabi l íst ica, das leis da
natureza. “Esta formulação fornece -nos os pr incípios que per-
mitem decifrar a construção do universo de amanhã, mas é de
um universo em construção que se trata. O futuro não é da-
do”. 56
Porém, desse caos de indeterminações surgem possibi l i -
dades de ordenações. Uma das maiores contr ibuições desse
autor foi o conceito de estruturas d issipativas. Expl ica os pr o-
cessos irreversíveis da natureza f ís ica, biol ógica ou social ,
desvendando a transformação para sistemas de níveis difere n-
tes e mais elevados.
Prigogine vê os grupos e as insti tuições sociais como “si s-
temas abertos”, onde há uma constante troca de energias e informações com o ambiente mais amplo. Esses sis temas man-
têm-se através de uma constante dissipação de energia. Qua n-
to mais complexa a si tuação de um indivíduo e a leitura orac u-
lar real izada sobre ela, mais instável estará esse sistema. Essa
instabi l idade é que permitirá uma transformação a outros ní-
veis, pois cr ia o potencial de uma reorganização.
As partes do sistema e, no caso das leituras mânticas, os
elementos da vida do consulente visual izados pelo adivinho são
55 Ibid., p. 12. 56 Ibid., p. 193.
147
reorganizados numa nova total idade, numa revisão, ou r econs-
trução, do sentido exper imentado pelo sujeito. O passado é
desconstruído e seus elementos são re -arranjados numa nova
ordenação, numa nova construção. O futuro é revisitado na
medida em que são os mesmos elementos do passado e do
presente que são projetados para a frente. Uma v ez trazidos à
consciência, esses elementos passam por uma revisitação.
Quanto mais intensa for a consulta, mais elementos estarão em
jogo e maior será a instabi l idade. Isso signif ica maior potencial
para novas conexões, novas visões do consulente sobre si
mesmo, gerando diversif icações e possibi l idades de reorgan i-
zação.
O tempo irreversível, no sentido de uma f lecha que não
retorna, é de importância capital . O caos, através de ínf imas
f lutuações e bifurcações, é fonte de evolução, de surgimento
de organizações mais complexas. Não há como retornar ao e s-
tágio anter ior.
Os caminhos da natureza não podem ser previstos com segurança; a parte de acidente é neles irredutível e bem mais decisiva do que o própr io Ar istóteles julgava: a natureza bifurcante é aquela em que pequenas diferen-ças, f lutuações insignif icantes, podem, se se produzirem em circunstâncias opor tunas, invadi r todo o sistema, e n-gendrar um regime de funcionamento novo. 57
Em tese, essa visão anula a possibi l idade de adivinhação.
Pr igogine af irma que longe do equi l íbr io não exis tem leis ge-
rais. As instabi l idades, geradoras de novas ordens, impossib i l i -
tam a decifração de fenômenos através de leis previsíveis e
deterministas. Havendo inúmeras bifurcações possíveis a cada
57 Ilya PRIGOGINE e Isabel le STENGERS , A nova al iança, p. 207.
148
instante, só nos restar iam as indeterminações. Se não há uma
f lecha do tempo, não podemos revis itar o passado ou antecipar
o futuro.
Porém, o intuito deste trabalho não é comprovar a divin a-
ção, mas compreender como e de que maneiras ela pode ser
ef icaz. Nesse sentido, sua ef icácia pode se r compreendida,
também, através das estruturas dissipativas. A consul ta é um
provocador de instabi l idades, catal i sando conexões até então
despercebidas e provocando reorganizações na vida do indiv í-
duo. Este passa a olhar de maneira diferenciada aos acontec i-
mentos passados e encarar seletivamente as possibi l idades
vindouras.
Igual ao que acontece aos mitos, é preciso que o consu-
lente não enxergue o tempo de forma irreversível. O mito só é
ef icaz na medida em que as pessoas o vêem como uma verd a-
de e não como uma construção míti ca. Para os sujei tos da Fe i-
ra Mística, místicos e consulentes, o tempo é reversível. Há
uma direção temporal na mesma medida em que se crê que há
um encadeamento l inear de causas e efeitos. Uma vez perceb i-
da a causa pode-se prever a conseqüência. Interfer indo-se
numa causa, modif icar -se-á todo efeito. Diferentemente à f l e-
cha do tempo, essa direção pode ser revista, modif icada e a n-
tecipada. É a crença nessa concepção de tempo que permite
aceitar a fala diagnóstica ou prognóst ica.
Ver o tempo dessa maneira permite estabelecer uma o r-
denação no sentido em que Atlan def iniu sua importância. As
expl icações, ou sis temas de crenças, funcionam como formas
de organização através de diversos meios de inte rpretação.
149
Estes têm em comum o fato de fazerem surgir rela-ções (causais ou outras) entre os dados dos sentidos, de outras formas disjuntos e desordenados, graças a e s-quemas interpretativos diversos. (. . .) Mas, qualquer que seja o tipo de expl icação, parece existir sempre uma n e-cessidade de expl icação como mot ivação inic ial ou de-terminação das nossas ativ idades de conhecimento. Isso permite compreender que qualquer expl icação, mesmo imperfeita, seja freqüentemente prefer ida à ausência t o-tal de expl icação e à acei tação da desordem. 58
As expl icações dos adivinhos consti tuem, também, orde-
nações do mesmo tipo. Colocam os fatos isolados dentro de um
encadeamento de causas e efeitos, constituindo um sentido.
Não se trata de formação de ordens r íg idas ou def init ivas. Se
assim o fosse, estar íamos diante de um sistema sem vida, sem
dissipação. São ordenações que cr iam novos patamares de o r-
ganização, mas estas mesmas constituem-se novas estruturas
dissipativas. Passa-se muito distante de um mítico destino in e-
xorável e def init ivo. Ao contrár io de el iminação das i ncertezas
e do acaso, incorporam-se esses numa grande rede de comple-
xidades. Para Morin, a “complexidade coincide com uma parte de incerteza, quer mantendo-se nos l imites do nosso entend i-
mento quer inscr ita nos fenômenos. Mas a complexidade não
se reduz à incerteza, é a incerteza no seio de sistemas r ic a-
mente organizados. A complexidade está l igada a uma certa
mistura de ordem e de desordem”. 59
Os trabalhos de Pr igogine sobre estruturas dissipativas
conduziram a empregos do modelo fora de seu própr io campo.
Da matér ia inerte à matér ia viva, depois ao social , efetua -se
58 Henry ATLAN , Com razão ou sem ela. Intercr í ti ca da c iência e do mi to, p. 264 . 59 Edgar MORIN , Introdução ao pensamento complexo , p. 52.
150
uma transferência, que visa encarar a conversão da desordem
em ordem e o aumento da complexidade). 60 O ser vivo e o ser
social possuem em comum o fato de serem sistemas abertos
em constante troca com o exter ior . Metafor icamente, um ser
vivo pode ser percebido como uma espécie de estrutura diss i-
pativa, um processo auto-referente onde a f lutuação se torna
f inalmente fonte de ordem. O aumento aparente da desordem
oculta uma mudança para uma nova ordem, dessa vez com
complexidade diferenciada.
Quando o adivinho remete um acontecimento passado,
não importa se traumático ou fel iz, a um conjunto expl icativo
que faz sentido ao sujeito, provoca um processo de reformul a-
ção da visão que esse consulente possu ía de sua trajetór ia.
Funcionando como estruturas diss ipativas, essas interações
constróem uma nova ordem, pois provocam perturbações ma io-
res que a capacidade de abafá - las. Mas essa ordem não está
l ivre de acasos, contradições e aleator iedades. Não se atin ge
um patamar últ imo e def init ivo, mas apenas um novo degrau a
partir do qual a vida passa a ser vis ta sob uma nova perspect i-
va.
David Bohm foi um pensador que procurou fugir das e x-
pl icações simpl istas da f ís ica clássica. A partir da década de 60
voltou suas atenções para questões relacionadas com a idéia
de ordem. Divergiu da visão que separava os fenômenos em
duas categor ias: os que seguiam os padrões r ig idamente ord e-
nados e os que não seguiam padrão algum, o acaso em últ ima
instância. Para esse autor, há diferentes graus de ordem no
60 George BALANDIER , A desordem. Elogio do movimento, p. 57.
151
universo. Os eventos aparentemente aleatór ios, caóticos, p o-
dem obedecer a padrões de ordem ocultos, num nível mais
profundo da real idade. Em seu l ivro, A total idade e a ordem
impl icada , defende a idéia de que a real idade viven ciada no
cotid iano é uma espécie de i lusão. Aqui lo que vemos é a ordem
expl íc i ta, desdobrada. Subjacente a ela, haver ia um outro nível
de existência, a ordem impl icada, que dá a or igem às dime n-
sões aparentes do mundo f ís ico. É essa ordem impl íc i ta que
abr iga a vida em si e direciona o f luxo dos acontecimentos. 61
Pode-se pensar as lei turas oraculares como expressão de
uma ordem impl icada. O que o fulano vê em seu dia a dia é
apenas uma par te, a dimensão desdobrada da real idade. A fala
do adivinho permite que aspectos impl íc i tos em sua personal i-
dade e de seus relacionamentos venham à tona, fazendo -o
perceber aqui lo que até então estava ocu lto.
Bohm auxi l ia a compreensão da relevância das mancias
na vida dos indivíduos. Para ele, o ser humano sempre busca a
total idade, mesmo que considere o fragmento da ordem expl í-
cita como uma total idade. “Tudo indica que o homem sempre sentiu que a integr idade ou total idade é absolutamente nece s-
sár ia para que a vida valha a pena ser viv ida”. 62 Apesar dessa
pulsão pela total idade, ocorre que continuamente temos o há-
bito de tomar o conteúdo do pensamento por “uma descr ição do mundo como ele é”. 63 Tal fato produz a fragmentação pr e-
sente em vár ias áreas de conhecimento e no contexto mais g e-
ral, uma vez que tudo parece corresponder ao seu modo de
61 David BOHM , A tota l idade e a ordem impl icada. 62 Ibid., p. 21. 63 Ibid., p. 22.
152
pensar, como uma prova de que sua visão é correta. Como te n-
tativa de escapar da sensação de fragmentação, “projetam m i -
tos de uma ‘ idade de ouro’”. 64
O discurso oracular real izado nas consultas da Feira Mí s-
tica acaba auxi l iando essa busca mí tica, pois insere o fato iso-
lado, acontecido num dado momento, no conjunto de um tem-
po mítico individual, onde o passado e o futuro são justapostos
ao presente. Mais uma vez, a fala do adivinho e a interpret a-
ção dada pelo consulente provocam a construção de uma outra
real idade, uma reorganização de ordem superior. O indivíduo
sai com a sensação de que tocou, ou percebeu, uma total idade
até então ignorada.
Francisco Varela procurou compreender os sis temas e
seus fenômenos cognoscit ivos através do conceito de círc ulo
cr iativo. A idéia gira em torno da formação de círculos inf initos
onde a coerência está na repetição ininterrupta, mas cada cí r-
culo é f inito enquanto um circuito que pode ser isolado como
uma unidade e observado em seus efeitos e resultados). 65 Uti l i -
za como exemplo de comportamento coerente de um círculo
cr iativo a f igura de um fractal. A cada processo de aproxim a-
ção percebe-se a repetição ad inf initum de um mesmo padrão.
“Mas o que percebemos é como um antepassado mí tico que nunca foi totalmente desenhado e que só pode ser intuído co-
mo tendência de uma repetição ininterrupta”. 66
64 Ibid., p. 21. 65 Francisco VARELA , “O c írcu lo cr iat ivo. Esboço h is tór i co -natural da re-f lexiv idade”, In: Pau l WATZLAWICK (org.) , A real idade inventada . 66 Ibid., p. 310.
153
Como o atrator de um fractal, o mito age como ponto f i-
nal do sistema. É o padrão que o sistema produz. “Toda vez que tentamos rastrear as or igens de uma percepção ou de uma
idéia chocamo-nos contra um fractal que permanentemente r e-
trocede diante de nós”. 67 O único ponto possível de se lançar
âncoras e dizer que tudo partiu dal i refere -se ao tempo e es-
paço míticos.
Aqui lo que os cl ientes percebem como uma sina, a parte
do destino que não se pode al terar , é sem dúvida construída
de maneira não consciente pela própr ia pessoa, muitas vezes
inf luenciada pelas circunstâncias, inclusive pelas lei turas or a-
culares. Uma vez supostamente trazida à tona pelo adivinho,
torna-se um ponto de referência, um mito individual. Acaba
funcionando como uma espécie de atrator da his tór ia desse s u-
jeito. Assim, como exemplo, alguém que se vê como um i nfor-
tunado, que não se dar ia bem com possíveis parceiros amor o-
sos e, uma vez tendo conf irmada essa visão atra vés da divina-
ção, tenderá numa próxima oportun idade a inviabi l izar um n o-
vo romance. Num processo auto-sugestivo, antecipou-se um
efeito, tornando-o causa duradoura e def init iva. Da mesma
maneira que um fractal, o padrão se reproduz de acordo com
aquele atrator suspeitado pelo consulente e conf irmado pelo
adivinho.
Como num circuito circular, causa e efeito retroagem, não
sendo possível determinar o iníc io do processo. Este está la n-
çado ao mito, fora do tempo irreversível. Qualquer causa ou
efeito supostamente revelado pelo adivinho no momento da
67 Ibid., p. 313.
154
consulta estará relacionado a um todo maior. Assim, através
da força persuasiva do místico, os acontecimentos por mais
isolados que sejam começam a fazer parte de uma histór ia c o-
erente. Ganham sentido.
Os conceitos uti l izados aqui, de estruturas dissipativas,
ordem impl icada, circuito cr iativo, tempo irreversível, atrator e
fractal, apesar de or iginár ios de referenciais teór icos das ciê n-
cias da natureza, são não apenas possíveis como cada vez mais
uti l izados pelas ciências sociais. De acordo com Navarro 68, as
ciências sociais uti l izam-se de metáforas retiradas dos para-
digmas das ciências naturais não apenas como i lustração, mas
no sentido mesmo de permitir uma compreensão dos fenôm e-
nos sociais que são tão ou mais compl exos que as interações
no campo da natureza. Longe de serem adequações forçadas,
permitem compreender que a real idade social não se distingue
em gênero das demais, apesar de possuir caracter ísticas pr ó-
pr ias bastante exclusivas.
Assim, ao uti l izar esses conceitos quis sair do esquema
r íg ido causal muitas vezes recorrente nas ciências humanas,
procurando perceber que, assim como muitos outros fenôm e-
nos, os oráculos da Feira Mística também l idam com deso r-
dens, reorganizações, quebra da l inear idade causa -efei to etc .
Tratando-se de tentativas de previsib i l idade de acontecimen-
tos, para compreender a ef icácia dos oráculos é necessár io d e-
ter-se mais atentamente à questão da causal idade.
68 Pablo NAVARRO , “A metáfora do ‘holograma socia l ’ ” , In: Gustavo de CASTRO et a l . (org.) , Ensaios de complexidade .
155
Nicolescu 69 fala do fascínio que a visão l inear de continu i-
dade exerceu, e continua exercendo, entre nós. Porém ressalva
que isso impl icou na aceitação incontestável do determinismo e
do encadeamento contínuo de causa e efeito. Confunde -se a
causal idade local com toda a causal idade, ou seja, a “cada causa em um ponto dado corresponde um efeito em um ponto
inf initamente próximo e a cada efei to em um ponto dado co r-
responde uma causa em um ponto inf initamente próximo”. 70
Dois pontos separados por uma distância no tempo ou espaço,
mesmo que inf inita, estar iam l igados por esse encadeamento
contínuo de causas e efei tos. A causal idade formal ar istotél ica
se reduzir ia a esses aspectos locais . Apl icada a vár ias dime n-
sões da vida social , essa visão desembocou no determinismo.
Nesse sentido, “a Histór ia submete -se, como a natureza, a leis
objetivas e deterministas. (. . .) Impondo certas condições inic i-
ais sociais bem determinadas, podemos prever de maneira i n-
fa l ível o futuro da humanidade”. 71 Nicolescu af irma que o que o
cienti f ic ismo nos legou foi a idéia persistente da exis tência de
um único nível de real idade.
Mas a real idade não se resume a um nível exclusivo, mu i-
to menos o macro e o micro nivelam-se numa homogeneidade
na qual não se percebem diferenças. As descobertas da f ís ica
das partículas sub-atômicas obr igaram os cienti stas a pensar
em não-separabi l idade, colocando em dúvida a noção de cau-
sal idade local como sinônima de toda causal idade. Para Nic o-
lescu, esse conceito não é surpreendente na vida diár ia, uma
vez que “uma coletiv idade – famíl ia, empresa, nação – é sem-
69 Basarad N ICOLESCU , O manifes to da transdisc ipl inar idade. 70 Ibid., p. 15.
156
pre mais que a simples soma das partes”. 72 Um fator de intera-
ção que não se reduz às propr iedades individuais está sempre
presente nas coletiv idades humanas. Há sempre outras dime n-
sões da mesma real idade.
Não há uma negação simpl ista da causal idade, mas ap e-
nas uma af irmação de que es ta não pode ser confundida com a
causal idade local de um lado, e a continuidade l inear de outro.
A questão da causal idade não deve ser deixada de lado,
mas para sair da visão determinista é preciso levar em conta,
entre outras coisas, as diferentes analogi as uti l izadas nos en-
cadeamentos causais. Atlan lembra que a cr í t ica à astrologia,
dizendo que não há uma relação entre os astros e a vida das
pessoas, não convence os adeptos e crentes desse tipo de d i-
vinação. Para ele, a cr í t ica e refutação desse e outros oráculos
só pode se efetuar no plano da causal idade sincrônica. A cr í t i -
ca que alega a falta de conexão local entre a causa (astro) e o
efeito ( indivíduo) deixa intacta a crença nos pr incípios da a s-
trologia, que são interpretações não causal is tas de contin uida-
de, mas de sincronicidade). 73 Para compreender os oráculos,
portanto, é preciso reconhecer que há outros tipos de causal i-
dade em jogo.
O pensamento l inear gera sempre a idéia de um f im últ i-
mo que determina todo o processo. Bateson fala que essa ca u-
sal idade gerada por esse pensamento não permite que um efe i-
71 Ibid., p. 17. 72 Ibid., p. 21. 73 Henry ATLAN , Com razão ou sem ela. Intercr í ti ca da c iência e do mi to, p. 230.
157
to preceda uma causa). 74 A idéia de um mito de um órgão con-
trolador sobrenatural se faz sedutora e é a responsável pelo
efeito atrator que o oráculo possu i. Porém, Bateson af i rmou
que sistemas causais se tornam ci rculares, fazendo com que
uma alteração em qualquer parte do circuito pode ser e ncarada
como uma causa para mudança em qualquer var iável em qua l-
quer lugar do circuito. Um efeito pode vir a se tornar sua pr ó-
pr ia causa. No caso das consultas oracu lares, uma profecia po-
de vir a ser a causa dela mesma, fazendo com que essa mesma
profecia seja efetivamente cumprida. Estabelece-se, assim, a
ef icácia da divinação. Para compreender melhor esse processo,
e para que possa ser apl icado no caso concreto anal i sado no
próximo capítulo, é necessár io olhar a real idade como uma
construção dos sujeitos.
Watzlawick reuniu numa mesma obra pensadores, entre
eles antropólogos, biólogos, psicólogos e f i lósofos, para disc u-
tir como são inventadas (ou construídas) as real i dades sociais
e individuais. “A suposta real idade exter ior, objetiva e estab e-
lecida, é sempre abordada com base em certas premissas fu n-
damentais que tomamos por aspectos ‘objetivos’ da real idade, quando de fato são tão-somente conseqüências do modo como
buscamos a real idade”. 75 O autor prefere uti l izar a expressão
indagação da real idade à construt iv ismo , denominação pela
qual essa corrente de pensamento f icou mais conhecida. Ide n-
ti f ica como contr ibuições val iosas a essas idéias, desde a obras
de Vico e Kant, passando por Di l they, Husser l e Wittgen stein,
74 Gregory BATESON , Mente e natureza. A unidade necessária, p. 68. 75 Paul WATZLAWICK , “Prefácio”, In: Pau l WATZLAWICK (org.), A real idade inventada, p.18.
158
até chegar a Berger e Luckmann. Parte do pr incípio de que t o-
da real idade é construída por quem crê que a descobre e a i n-
vestiga. “Em outros termos, a real idade supostamente e ncon-
trada é uma real idade inventada, e seu inventor não tem con s-
ciência de sua invenção, mas crê que tal real idade é algo ind e-
pendente dele e que pode ser descoberta: portanto, a partir
dessa invenção, percebe o mundo e nele atua”. 76
Rupert Riedl, já citado anter iormente, foi um dos col abo-
radores nessa empreitada proposta por Watzlawick. Preoc upa-
do com as fundamentações do pensamento sobre as causas e
f inal idades, indaga “como podemos fundamentar a ati tude (s o-
bre a qual nada podemos saber) que nos faz crer que p odemos
estabelecer nexos causais e f inais, causas e efeitos, ou seja,
prognosticar?”. 77 Apesar disso, diz que muitas vezes nos equ i-
vocamos, invertendo a cadeia causal .
A separação entre uma visão f inal is ta, faci lmente percep-
tível na hermenêutica, com os f ins expl icando os acontec imen-
tos, e uma visão causal is ta, identi f icada com o cienti f ic i smo,
que expl ica o mundo apenas pelas forças naturais, levou, no
entender do autor, à ci são entre matér ia e espír i to, corpo e
alma, ou seja, à esquizofrenia de uma imagem do homem fr a-
cionado. 78 A grande questão apontada pelo autor é que tanto
as causas passadas, como os f ins futuros inf luenciam o pr esen-
te. Não é possível deixar nenhum das duas visões de lado.
“Com efeito, a casa cuja pedra angular penso colocar daqui a
76 Ibid., p. 17. 77 Rupert R IEDL , “As consequencias do pensamento radical ”, In: Paul WATZLAWICK (org.), A real idade inventada, , p. 75. 78 Ibid., p. 93.
159
dez anos já está efetivamente agora na minha cabeça. E se,
por causa dela, abro amanhã uma caderneta de poupança, meu
ato de amanhã será um efeito de uma decisão tomada no dia
anter ior”. 79
Como lembra Watzlawick, o f luxo dos acontecimentos é
visto como um nexo causal.
Continuamos vivendo como se o efei to decorresse da causa, e no dia-a-dia deparamos a todo momento com ‘provas’ de que o evento A, ao manifestar -se, é causa do evento B, de que B é portanto o efeito de A, de que sem A não se produzir ia B, de que B, ao manifestar -se, con-verte-se, por sua vez, em causa de C, e assim sucessiv a-mente. 80
No pensamento corr iqueiro, o efeito de uma causa deve
se seguir à causa, jamais pode ser de todo simultâneo ou pr e-
ceder no tempo a causa. Nesse sent ido, parece impossível que
um efeito possa tornar-se sua própr ia causa. “Não obstante, a mais comezinha exper iência cotid iana conhece o fenômeno do
circulus vit iosus , o círculo diaból ico, no qual o curso dos aco n-
tecimentos não se desenvolve em l inha reta, já que o efei to
pode, por seu turno, converter -se retroativamente em causa”. 81
O autor cita como exemplo, as desavenças conjugais, que g i-
ram em círculos sem saídas e das quais ninguém se le mbra em
que ponto do círculo começou a discórdia. Uti l izando um
exemplo mais prático, lembra do pr incípio da retroa ção da má-
79 Ibid., p. 89. 80 Paul WATZLAWICK , “Efei to ou causa”, In: P. WATZLAWICK (org.), A rea-l idade inventada , p. 68. 81 Ibid., p. 69.
160
quina a vapor 82. Este adquire profundidade e complexidade
quando apl icado à esfera humana, pois fatores psicológicos,
como convicções, esperanças, preocupações, preconceitos e
pressuposições fortemente arraigadas, funcionam com verd a-
deiros pr incípios de retroação.
Os sistemas retroativos podem ser uti l izados para a co m-
preensão da ef icácia dos oráculos através da noção de profecia
que se auto-real iza. Através de um circuito fechado de causa e
efeito, um efeito pode inf luir no direcionamento de uma c ausa.
Bateson foi um dos pioneiros a perceber exemplos de causal i-
dade circular impl íc i tos em fenômenos sociais. A caracter ização
de todos os sis temas vivos, uma célula ou um grupo social , em
termos de padrões não-l ineares de causal idade é uma das cha-
ves de compreensão da teor ia de Bateson. É também uma das
chaves para o entendimento das estruturas dissipativas de Pr i-
gogine, pois devido aos laços de real imentação repetidos, um
ínf imo desvio, ou a não consideração de um pequeno detalhe,
irá se somando até que chegue a uma incerteza suf ic iente para
tornar impossíveis as previsões. Em outras palavras, não há
l inear idade possível entre causas e efeitos.
Em sistemas circulares, os efeitos dos eventos em qua l-
quer ponto do circuito “poderão ser levados em toda volt a para
produzir mudanças no ponto de or igem“. 83 Bateson anal isa no
iníc io de seu l ivro, Mente e natureza , os paradoxos e confu-
sões que acompanham erros e dis torções na representação ló -
82 Desacreditado pelos críticos da época, Watt provou que o movimento do êmbolo pode ser a causa da abertura e fechamento das válvulas de vapor que, por sua vez, é causa do próprio movimento do êmbolo. 83 Gregory BATESON , Mente e Natureza. A unidade necessária, p. 113.
161
gica que tomamos por real idade. Para ele, a lógica é um m ode-
lo pobre de causa e efeito. O cic lo de relações se . . . então
(uma causa leva a um efei to) é destruidor do ponto de vista da
lógica. “Nós humanos, parecemos desejar que nossa lógica s e-
ja absoluta. Parecemos agir baseados na suposição de que a s-
sim é e entramos em pân ico quando é apresentada a menor
insinuação de que não é assim ou de que poderá não ser a s-
sim”. 84 Somos muitas vezes levados a pensar a par tir de um
contexto. É o contexto que empresta signif icado. Quando nos
deparamos com uma dada situação, já antecipamos seus resul-
tados (seus efeitos) a par tir daqui lo que já está em nossas
mentes. Os efeitos já estão dados antes mesmos das causas
surgirem. Pela nossa pulsão atrás de uma lógica l inear, pod e-
mos estabelecer relações diretas, quando na verdade são ci r-
culares. Acreditamos em certas causal idades pelo simples fato
de que desejamos acreditar que ass im o sejam. Um prognóst i-
co dado pelo místico apenas comprova aqui lo que já é dado
pelo contexto, aqui lo que estamos desejosos de ver conf irm a-
do. Sendo um sistema circula r, a fala do adivinho sobre um
acontecimento futuro conf irma as suspeitas existentes hoje,
al imentadas que são pelas constantes incert ezas.
Para Watzlawick, a circular idade causal expl ica “o fen ô-
meno das chamadas predições ou profecias que se autocu m-
prem, pois representam uma inversão da ordem de causa e
efeito”. 85
84 Ibid., p. 135. 85 Paul WATZLAWICK , “Efei to ou causa”, In: P. WATZLAWICK (org.), A rea-l idade inventada , p. 70.
162
Watzlawick def ine a profecia que se autocumpre como
“uma suposição ou vatic ínio que tão -só por ter sido feito con-
verte em real idade o evento suposto, esperado ou profetizado,
e dessa forma conf irma sua própr ia ‘exatidão’”. 86 Uma pessoa
que crê ser desprezada, comportar -se-á de maneira arredia e
até insuportável, suscitando nos outros o própr io desdém, f i-
cando assim “provado” o vatic ínio.
Apesar de corr iqueiro esse tipo de mecanismo, o autor
ressalta que em sua base se encontram circunstâncias que têm
profunda signif icação na imagem da real idade que nos forj a-
mos.
Um ato decorrente de uma profec ia que se aut o-cumpre cr ia pr imeiro as condições para que ocorra o evento esperado, e nesse sentido forja ex atamente uma real idade que não se produzir ia sem aquele. Tal ato, po r-tanto, nem é verdadeiro nem falso; simplesmente cr ia uma situação e, com ela, sua própr ia verdade. 87
Para que se real ize, uma profecia que se autocumpre n e-
cessita que haja uma crença, que seja vista como um fato que
já penetrou o futuro. A crença no oráculo e na sua capacidade
de predição é fundamental para que as profecias tenham efe i-
to. Evidente que nem todas as profecias se real izam. Mecani s-
mos internos de identi f icação entre o vatic ínio e a imagem que
o consulente faz de si , que fogem dos propósitos de anál ise
deste trabalho, fazem com que apenas algumas cheguem a
contento.
86 Paul WATZLAWICK , “Profecias que se autocumprem”, In: P. WATZLAWICK (org.), A real idade inventada, p. 97. 87 Ibid., p. 98.
163
Citado por Watzlawick, Kar l Popper refer iu -se às profecias
que se cumprem, denominando-as de “efeito Édipo”, porque “a predição do oráculo desempenhou um papel extremamente i m-
portante na sér ie de eventos que conduziu ao cumprimento da
profecia. (. . .) Freqüentemente as expectativas desempenham
seu papel : ajudam a produzir o que se espera”. 88
É importante lembrar aqui o papel de intermediação que
o adivinho representa. Aos olhos do consulente, o adivinho tem
um poder especial para desvendar aspectos da sua vida, f a-
zendo com que suas declarações se transformem muito faci l -
mente em profecias que se autocumprem.
Em resumo, as profecias que se autocumprem são fenô-
menos que não apenas interferem nos al icerces de nossa co n-
cepção subjetiva da real idade, como têm a capacidade de
construir uma real idade, seja ela uma superstição ou uma dita
verdade cientí f ica, der ivada da observação objetiva. 89 Se po-
dem construir real idades, é verdade, também, que podem de s-
construí- las. Exercendo inf luente papel na vida dos cl ientes f i-
éis da Feira Mística, os vatic ínios acabam muitas vezes con s-
truindo uma imagem de si mesmos, como também inf luindo em
comportamentos que nortearão acontecimentos futuros. No
próximo capítulo trabalharei espec if icamente como essa i n-
f luência pode se dar.
A visão construtiv ista parte do pr incípio de que o mundo
que exper imentamos é automaticamente construído por nós
88 C. POPPER , apud Paul WAZLAWICK , “Profecias que se autocumprem”, In: P. WATZLAWICK (org.) , A real idade inventada . , p. 102-103. 89 Paul WATZLAWICK , “Profecias que se autocumprem”, In: P. WATZLAWICK (org.), A real idade inventada, p. 112.
164
mesmos porque não percebemos como real izamos essa con s-
trução. O construtiv ismo, para Glasersfeld, parte da premissa
de que a ativ idade cognitiva ocorre no mundo constituído pelas
exper iências de uma consciência que tende a um f im. 90 Como
visto anter iormente, esse caráter te leonômico não está neces-
sar iamente vinculado a uma real idade exter ior a nós mesmos.
O conceito de f inal idade, uti l izado por Glasersfeld, pressupõe
que seja possível estabelecer regular idades no mundo da e xpe-
r iência. Para chegar a essas regular idades, o sujeito compara,
estabelecendo equivalências e ident idades entre os fatos e o b-
jetos comparados com as exper iências anter iores. Tal fato
permite a construção de juízos de semelhança ou diferença.
Ocorrem contextos que apontam em uma ou outra direção. Es-
sa operação é sempre real izada pelo sujeito cognoscente, e
nunca pode ser expl icada como uma condição dada da real id a-
de objetiva. 91 A cr iação dessas representações estabelece a n o-
ção de verdade entre os f ins, dados pela percepção de regul a-
r idades, e o fato atual a ser expl icado.
Isso é particularmente importante no contexto das con-
sultas oraculares. Como fazer com que o consulente perceba
como uma verdade a l igação entre aqui lo que o adivinho de s-
venda e a sua vida como um todo? Da mesma forma, um pre s-
tid igitador leva a platéia a identi f icar uma continuidade entre
um desaparecimento de um objeto qualquer e sua apar ição
num local inesperado. Cr iou -se uma verdade entre os dois f a-
tos que só se expl icar ia de acordo com a capacidade de mág i-
90 Ernst V. GLASERSFELD , “Introdução ao construt ivi smo”, In: P. WATZLAWICK (org.), A real idade inventada , p. 38. 91 Ibid., p. 40.
165
ca. Mas sabemos que há, objetivamente, um truque. Porém, a
nossa percepção da real idade, a cr iação das representações,
fez-nos pensar numa outra real idade. Evidente que é por essa
razão que a “mágica” da prestid igi tação continua fascinando
platéias. Se percebêssemos com faci l idade o truque, por exem-
plo uma troca de objetos, o espetáculo perder ia o interesse. As
l igações estabelecidas pelo adivinho são de mesma ordem. Não
se trata de l igações objetivas entre fatos, mas sim de cr iação
de real idades através da percepção e cons trução de juízos de
semelhança e diferença. É evidente que os cr i tér ios com que
se determina uma semelhança ou di ferença são cr iados e sel e-
cionados pelo sujei to que julga e jamais podem ser atr ibuídos
a um mundo independente do exper imentador. 92
A identi f icação de regular idades através de juízos de s e-
melhanças ou diferenças será sempre relativa, uma vez que
“objetos e fatos são ‘semelhantes’ precisamente em relação com as propr iedades ou partes cons ideradas na comparação”. 93
Quando um consulente da Feira Míst ica sai da consul ta falando
que o místico “acertou tudo”, pode ter ocorr ido algo muito s e-
melhante. O cl iente seleciona da fala do adivinho, sem ter pl e-
na consciência disso, aqui lo que quer ouvir e estabelece as r e-
lações com a sua vida, com o momento que es tá passando, as
dif iculdades que está enfrentando. Um discurso genér ico acaba
ganhando uma roupagem específ ica. Trata -se de perceber que
há uma relação entre o que se cons idera e o que se busca e n-
contrar. Dentre uma plêiade de exper iências, o consulente a
partir daqui lo que diz o adivinho pode construir r egular idades
92 Ibid., p. 41. 93 Ibid., p. 41.
166
e ordem num mundo completamente caótico e d esordenado.
“Até que ponto é isso possível, depende mais dos f ins e do ponto de partida já construído do que das condições dadas do
mundo ‘verdadeiro’ ”.94
Na pesquisa entre os sujeitos da Feira Mística pude pe r-
ceber que as pessoas envolvidas reconhecem as repetições e
regular idades com base em comparações. Estas são possíveis
na medida em que, no diálogo da consulta, adivinho e cons u-
lente vão estabelecendo quais fatos são possíveis de serem
comparados. Tais decisões determinam aqui lo que será cons i-
derado como elemento exis tente ou como relação entre el e-
mentos, cr iando, dessa maneira, estruturas no f luxo da exper i-
ência. É essa estrutura que o indivíduo exper imenta como rea-
l idade. Uma vez que essa estrutura foi construída sem que os
indivíduos tivessem consciência de se tratar de uma constr u-
ção, ela apresenta-se como uma condição dada de um mundo
independente que existe por si mesmo. Trata -se, portanto, de
uma real idade que foi supostamente descoberta pelo adivinho,
no sentido pleno de tirar a coberta que encobre o f luxo dos
acontecimentos, deixando à mostra as “forças energéticas” e o “destino” que expl icar iam as razões daqui lo tudo que passou
ou está passando o consulente, apontando para o que virá
acontecer no futuro. Aquelas comparações real izadas que f ize-
ram eco na percepção do consulente serão vistas como ev idên-
cias plenas da capacidade de acer to do oráculo e de seu adiv i-
nho.
94 Ibid., p. 42.
167
A consulta oracular ganha importância na medida em que
possibi l i ta a construção de uma real idade para o consulente.
Esse passa a ver a sua vida pregressa com outros olhos, co m-
preende o presente e vislumbra possibi l idades futuras até e n-
tão encobertas. Como um verdadeiro processo de d esconstru-
ção, revisará suas ati tudes e pensamentos anter iores, ree stru-
turando-se numa nova ordenação. Agirá, muitas vezes, gu iado
por aqui lo que foi profetizado, fazendo com que a profecia r e-
almente se cumpra. Isso servirá de al imentador no círculo de
legit imação da crença na força e capacidade dos oráculos. Tr a-
ta-se, agora, de procurar em casos concretos como tais f atos
acontecem. É o tema do próximo capítulo.
168
CAPÍTULO IV – A CONSULTA ORACULAR: UM
SISTEMA ABERTO A (IN/E)STABILIDADES
O Deus, cujo oráculo está em De l-fos, não fala nem dissimula: indica.
Herácl i to
O foco do trabalho volta-se, agora, para a consulta ora-
cular. Uma vez observado e anal isado o universo dos jogos d i-
vinatór ios, seja através das crenças a eles relacionadas e d as
suas caracter ísticas internas, faz -se necessár ia uma incursão
por aqui lo que acontece no âmbito do contato interpessoal e n-
tre adivinho e consulente. É p reciso ver i f icar como agem os
oráculos na prática cotid iana das consultas da Feira Mística. A
pesquisa de campo, real izada ao longo de dois anos, permitiu
um acompanhamento da trajetór ia de alguns cl ientes habituais.
Selecionei dois casos que se apresentam paradigmáticos dentro
do conjunto desses cl ientes. O objet ivo foi poder traçar as m o-
dif icações ocorr idas nas vidas dos sujeitos a partir das ind ica-
ções dadas pelos oráculos e, sobretudo, como se dá a ef ic ácia
div inatór ia.
Não há duvida de que vár ios fatores compõem o conjunto
de inf luências que agem sobre os indivíduos em suas e scolhas
pessoais. A questão aqui foi procurar perceber a consul ta ora-
169
cular como um desses fatores, agudizado pelo fato de se tr ata-
rem de cl ientes habituais mais freqüentes, ou seja , aqueles
que se uti l izam dos oráculos da Fei ra Mística no mínimo duas
vezes a cada mês. A leitura oracular ocupa lugar destac ado pa-
ra esses cl ientes, servindo pr incipalmente como forma de or i-
entação e auto conhecimento, sem estarem necessar iamente
preocupados com a simples adivinhação do que o futuro lhes
espera.
Minha preocupação foi dar voz às teor ias levantadas nos
capítulos anter iores através dos depoimentos colhidos nos d i-
versos momentos da pesquisa.
Parto do pressuposto de anál ise de Bateson 1, v isual izando
a Feira Mística como um sis tema mental, um sistema aberto
que permite dissipação de energias, como dir ia Pr igogine 2.
Dessa maneira, provoca constantemente instabi l idades, abr indo
novas possibi l idades a cada bifurcação, ou escolhas frente as
alternativas apresentadas pelo adivinho. O aspecto místico dos
jogos divinatór ios e seu poder de ruptura do tempo l inear em
direção a um tempo mítico (mesmo que do própr io indivíduo)
fazem da consul ta oracular uma espécie de atrator a uma o r-
dem superior. Do caos e da instabi l idade provocada, a vivência
mítica exper imentada na consulta traduz em ordem (estabi l id a-
de) a desordem (instabi l idade) por meio do imaginár io, do
simból ico e das práticas r i tual izadas. A consulta passa a ser
um r itual onde aspectos do imaginár io, do meta-padrão (na
l inguagem de Bateson), entram em cena af irmando uma verda-
1 Gregory BATESON , Mente e Natureza. A unidade necessária . 2 Ilya PRIGOGINE , O fim das cer tezas .
170
de já suspeitada ou apontando para uma novidade. A consulta
age como um momento de desordem provocada. S eguindo a
af irmação de Balandier 3, a ordem se esconde na desordem.
Não há estabi l idade def init iva, mas uma constante busca de
maneiras de l idar com as instabi l idades através de momentos
temporár ios de equi l íbr io.
Através desses depoimentos pode-se perceber em que
medida, e de que maneira, os adivinhos acertam seus vatic í-
nios. Retomando aqui lo que já foi d iscutido no capítulo anter i-
or, a ef icácia dos oráculos pode ser compreendida quando se
percebe que a real idade é inventada. Aqui lo que supostamente
o místico adivinhou já faz parte, ou está se constituindo, na
mente do consulente. Um futuro é construído com os elemen-
tos retirados do atual contexto. Esse futuro, revisi tado, e o
passado, que foi desconstruído e reconstru ído, passam a inf luir
no presente. Nem todas as profecias se cumprem, mas a co n-
f i rmação de apenas uma faz esquecer inúmeras outra s possib i-
l idades levantadas durante a consul ta, e não real izadas, cre s-
cendo assim a legi t imidade do adiv inho.
Passo agora a relatar os casos escolhidos e que serão
anal isados. Os dados aqui levantados foram colhidos em entr e-
vistas descontinuadas, não obedecendo, necessar iamente, a
ordem cronológica em que foram relatados. Procurei, na mai o-
r ia das vezes, entrevis tar os consulentes antes e depois de c a-
da consulta. Nem sempre tal procedimento foi possível de ser
real izado. Mui tas vezes o cl iente saia da consul ta transtornado,
não sendo possível entrevis tá - lo. Outras vezes, chegava à Fe i-
3 George BALANDIER , A desordem . Elogio do movimento .
171
ra chorando, não querendo falar com ninguém a não ser o ad i-
vinho. Após a consulta, mais calmo e tranqüi lo, a conversa p o-
dia ser concretizada. Nos dois casos levantados tive oport uni-
dade de também entrevis tar os consulentes fora do ambiente
da Feira Mística, possibi l i tando uma ref lexão dos mesmos sobre
os própr ios temas surgidos nas consu ltas oraculares. 4
1. Primeiro caso: o tarô e a reconstrução de uma
vida familiar
Clenir , 26 anos, freqüenta a Feira Mística há mais de 5
anos. Solteira, mora com os pais e trabalha numa agência de
publ ic idade. Sua formação se deu na área de jornal ismo, mas
como ela mesma af irma, “nunca gostou de ser foca”. Fez vár ios
estágios em edi toração e há dois anos encontrou emprego f ixo
nessa agência, onde “faz um pouco de tudo”.
Fi lha mais velha de uma famíl ia de classe média com mais
dois irmãos, pai funcionár io públ ico de carreira e mãe dona de
casa, nunca passou grandes pr ivações f inanceiras, mas ta m-
bém nunca pode se dar ao luxo de grandes gastos. Considera -
se hoje uma pessoa razoavelmente sadia e fel iz. Namora um
4 Os nomes dos entrevistados foram alterados a título de preservação de suas ima-gens. As informações a respeito de datas, idades e outras relativas a épocas e perío-dos, referem-se aos momentos específicos das entrevistas.
172
rapaz uns anos mais velho que lhe traz, como veremos a s e-
guir , fel ic idade e dissabores.
Conheceu a Feira por acaso, quando passeava pelo pa r-
que do Ibirapuera com uma amiga que a convenceu a “tirar a
sorte” nas cartas. De acordo com sua interpretação, veio no momento cer to, nem antes nem depois, “porque tinha de ser assim”. Não consegue imaginar sua vida sem as consultas de tarô que real iza com uma constânc ia impressionante. Quando
está com algum problema específ ico chega a se consul tar mais
de uma vez por f im de semana, quando não procura a taráloga
durante a semana no consultór io do “Espaço Esotér ico Bruxas
e Fadas”. Em momentos de maior seren idade pode f icar duas
ou até três semanas sem se consul tar. De acordo com seu d e-
poimento, nunca passam de três semanas os per íodos sem
consulta. No pr incípio procurou var iar entre as diversas ofertas
da Feira, consultando mancias diversif icadas. Porém, após uma
exper iência marcante, relatada a seguir, acabou se f ixando
com uma mesma mística e apenas com a leitura de tarô. Pa s-
sou a cr iar laços de amizade com a taróloga a ponto desta ter
ido algumas vezes à sua casa e saído juntas. Em vár ias si tu a-
ções em que a encontrei na Feira, af irmou que al i estava para
apenas conversar com a Taís ( taróloga), para “bater um papo”. Na maior ia das vezes pude perceber que acabava se consu l-
tando.
Praticou a rel ig ião catól ica durante muito tempo e, s e-
gundo ela, ainda freqüenta a igreja esporadicamente. Hoje
procura fazer uma junção com o que considera “de melhor em cada rel ig ião”. Já passou pelo candomblé que, segundo ela,
173
“tem coisas horr íveis, mas também outras maravi lhosas”. Fr e-
qüentou centros espír i tas de vár ias matizes e ho je admira tam-
bém o mistic ismo (que considera como uma forma de rel ig ião),
pois “fazem orações, acendem velas, falam de futuro e buscam
um desenvolvimento inter ior, além de falarem de vár ias rel ig i-
ões sem cr it icar nenhuma”.
Clenir diz que nunca fez terapia com psicólogos por falta
de condições f inanceiras, pois, do contrár io, gostar ia muito de
poder fazer. Def ine a conversa com o místico como uma e spé-
cie de terapia, através da qual pode se conhecer melhor e aj u-
dar a enfrentar as agruras do dia a dia.
Quando conheceu a Feira Mística, Clenir não acreditava
em jogos divinatór ios. Já havia consultado uma cartomante por
cur iosidade e diversão. Mas diz que sentiu algo “especial” de s-
de a pr imeira vez que foi à Feira Mística:
Eu estava passeando com uma amiga quando vimos as tendas da Feira. Ela já conhecia e insistiu para que eu fosse junto com ela na consulta. Eu fui meio por br inc a-deira, mas eu f iquei muito impressionada com o que ela (a vidente) falou para minha amiga. Eu sabia das coisas que ela estava passando, mas não era possível que aque-la mulher que nem a conhecia pudesse saber tantas co i-sas dela. Sabia até mais que eu. Depois foi a minha vez. Eu f iquei até com um certo medo do que ela pudesse f a-lar. Sei lá, podia ser que ela percebesse algum desa stre, essas coisas. Mas ela não disse nada assim de muito fo r-te. Falou até coisas boas. Eu também nem sabia d ireito o que perguntar.
A imagem da consulta da amiga, porém, não lhe saia da
cabeça. Comentou poster iormente com a amiga e ambas f ic a-
ram com uma forte impressão do que se passou. Não tardou e
174
Clenir estava novamente frente a um místico da Feira. Dessa
vez um pai de santo.
Eu gostava muito das coisas do candomblé, eu achava que tinha uma l igação muito forte com Iansã. Confesso que f iquei um pouco decepcionada com o que aquele pai de santo falou. Eu senti que ele quer ia se l i -vrar logo de mim, terminar a consu lta. Vol tei outras v e-zes e, por cur iosidade, consultava cada vez um tipo de jogo. Depois, acabei f icando uns meses sem aparecer na Feira.
Clenir relata um segundo momento de seu contato com a
Feira Mística. Não mais por cur iosidade, mas buscando auxí l io,
percebe como um fato marcante a partir do qual sua vida t o-
mou novos rumos. Costuma identi f i car sua vida entre antes e
depois da Feira.
Mas depois eu passei por uns momentos muito dif í -ceis. Meus pais haviam br igado feio. Meu pai saiu de casa e minha mãe não parava de chorar e br igava com todos nós (os f i lhos). Nessa época meu irmão estava com uns problemas muito sér ios também. Parecia que o mundo i n-teiro ia desabar. Eu me sentia com vontade de terminar tudo, dar um f im em tudo. Nessa época eu ia num centro espír i ta mas não via muito resultado. Estava muito d e-pr imida.
Continua relatando esse momento como uma busca d e-
sesperada para encontrar alguma sa ída.
Teve um dia que eu estava realmente mui to mal. Saí de casa porque não agüentava ver minha mãe n aque-le estado. Nem sabia direito onde ir . De repente me vi defronte a Feira Mística. Acho que foi obra do destino. Fui procurar aquela vidente que eu tinha ido ante s com minha amiga. Mas ela não estava. Eu estava muito mal e daí a Taís conversou um pouco comigo e eu acabei me consultando com ela, com tarô. Foi incr ível. Ela de cara falou de um homem marcante na minha vida. No ato pen-
175
sei no meu pai. Ela foi abr indo as cartas e eu fui f icando boquiaberta.
A partir do que Clenir foi relatando à mística, a consulta
foi se desenrolando. O tal “homem marcante” poder ia ter rec e-
bido diferentes interpretações dependendo da reação da co n-
sulente. De acordo com o relato da depoen te, a partir desse
momento a consul ta girou em torno de aspectos da vida famil i -
ar tendo foco em seu pai. Perguntado sobre as razões que f ize-
ram seu pai sair de casa, o oráculo traçou um amplo espe ctro
das relações afetivas do lar da famíl ia de Clenir que f izeram
muito sentido naquele instante. Começou a perceber razões
até então desconhecidas que ter iam or iginado a saída do pai e
o desespero da mãe. Mais que isso, a vidente af irmou que o
pai a quer ia muito bem e gostar ia de retornar à casa.
Eu via meu pai como um crápula. Não quer ia con-versa com ele. Mas o tarô mostrou que eu estava errada. Me fez ver que era para eu procurar meu pai, que ele também estava sofrendo. Foi incr íve l. Conforme a Taís foi falando, foi t i rando as cartas, foi aparecendo coisas da minha infância que eu nem lembrava direito. Chorei mu i-to, mas o tarô mostrava que a nossa famíl ia ia voltar ainda a ser como era antes.
A partir dessa consul ta oracular Clenir ganhou ânimo para
fazer uma coisa que, se no seu íntimo desejava, não tinha c o-
ragem de fazê- lo. Conta emocionada que o pai a recebeu muito
bem e ela conseguiu abraça-lo como há muito tempo não fazia.
Eu já t inha conversado com minha mãe e falado d a-quela consulta do tarô. Minha mãe era muito catól ica e não quer ia saber muito dessas coisas. Mas f icou cur iosa e perguntou tudo o que a Taís t inha falado. Quando eu fui falar com meu pai, ela f icou na maior expectativa. Depois de um tempo meu pai procurou minha mãe e voltou para
176
casa. Desde esse tempo eu venho sempre conversar com a Taís Conto tudo o que acontece comigo. Nós f icamos amigas. Ela sabe tudo da minha v ida. Hoje eu não sei tomar uma decisão sem antes consultá - la. É como uma espécie de terapia. Eu nunca f iz, mas amigas minhas que fazem e me contam como é, acaba no fundo dando no mesmo.
Não tive oportunidade de entrevistar seus pais ou irmãos.
Nem era esse o objetivo da pesquisa. Portanto, pouco se pode
af irmar se os fatos relatados são f iéis ao que realmente oco r-
reu. Mas coerente à perspectiva teór ica adotada, a real idade
que interessa aqui é aquela que foi efetivamente construída
pela Clenir , seus famil iares, amigos e a taróloga Taís.
Para Bateson, cada grupo pode ser visto como uma men-
te. O importante é perceber como se forma o grupo e qual a
organização que se estabelece. Isso def ine o padrão que l iga
as partes, constituindo um todo, maior que a simples soma das
partes, que empresta signif icado a cada situação. 5 O sistema
mental organizado def ine o que e como percebemos o mundo
ao redor. Através de pressuposições, construídas a partir do
contexto, as informações vão passando entre as par tes do si s-
tema estabelecendo sól idos sentimentos de verdade. Assim,
quando o grupo famil iar (um sistema mental) fala repetid amen-
te “tal fulano é assim...” ou “o pai saiu de casa porque ele não
presta”, fecha-se uma real idade, deixando uma inf inidade de
outras possibi l idades de interpretação (e de construções de r e-
al idade) de lado. Para Bateson, dentro do estocástico ou seja,
o arsenal disponível de possibi l idades, aleator iamente enfatiza -
se um ou outro elemento. Essa passa a ser a verdade. Um si s-
5 Gregory BATESON , Mente e natureza. A unidade necessária , pp. 139-152.
177
tema repete cer tas temáticas formando um conjunto c oerente,
um sistema de valor.
Um sistema cr ia, como estratégia de sobrevivência, uma
sér ie de padrões repetit ivos, estáveis. Pode -se entender, por-
tanto, que a fam í l ia de Clenir cr iou “expl icações” que procura-
vam dar conta da situação de ruptura famil iar. De uma maneira
depreciativa via-se como uma cidadela que se desmantelava e
tudo o que seus integrantes procuravam fazer levava à af irm a-
ção daquela real idade então cr iada. O padrão se repetia e cada
vez mais o pai se afastava e a famíl ia caminhava para um
abismo.
Porém, como o própr io Bateson af irma, podem surgir s i-
tuações em que o padrão é colocado em xeque. Frente a algo
novo surgem possibi l idades outras de solução. Firmam-se no-
vos padrões, novas regular idades. Se f izerem sentido, poderão
vir a se tornar novas verdades. Pensando nas estruturas diss i-
pativas de Pr igogine, a consulta oracular, ao l idar com a d e-
sordem, possibi l i ta novas bifurcações. A desordem já pré e xis-
tente, mas colocada à prova e exacerbada, pode fazer f luir a
uma nova ordem num patamar super ior.
Cabe pensar aqui o que af irmou Watzlawick acerca das
profecias que se autocumprem. O autor lembra da responsab i-
l idade de um médico ao dizer o seu prognóst ico de uma doença
grave ao paciente. Pode-se estar provocando uma profecia que
se autocumpre, na medida em que o paciente pode se sentir
resignado ao prognóstico levantado pelo médico e a par tir daí
se preparar, e assim antecipar, para sua morte. Ou ainda, ao
contrár io, pode se apegar à vida dizendo não poder morrer n a-
178
quele momento e, assim, viver por mais um bom tempo.
Watzlawick lembra que aos olhos do paciente o médico é um
intermediár io entre a vida e a morte. Desta maneira, as d ecla-
rações do médico podem se transformar muito faci lmente em
profecias que se autocumprem. 6 O que acontece na consul ta
oracular é algo semelhante, lembrando que o místico -adivinho
é visto aos olhos do consulente como um intermedi ár io entre
este e o mistér io, entre este e uma ver dade super ior e oculta.
Muito do que ele fala tem o tom de um vered ito.
Assim, a visão anter ior de uma famíl ia quebrada cam i-
nhando em direção a um desfecho negativo constituía uma fo r-
te verdade. Uma histór ia of ic ial hav ia sido construída e todo o
resto era interpretado a partir disso. O oráculo mostrou outra
versão possível, resgatando um mito or ig inal de uma fam íl ia
então unida. Isto pode ou não ter sido verdade um dia. O que
importa é que para Clenir esse mito existia dessa maneira. A
fala do adivinho a remeteu não apenas ao mito famil iar, mas a
toda uma imagem mítica social de uma famíl ia unida e fel iz.
Desconstruindo aquela imagem anter ior de desgraças, recon s-
truiu uma nova. Af irmando uma nova situação futura, abr iu
possibi l idades para que Clenir fosse atrás da construção desse
porvir . A certeza de um sucesso, po is assim havia prenunciado
o tarô, animou-a a buscar o pai. O oráculo havia dito das dif i -
culdades que o pai enfrentava e do sofr imento que passava e s-
tando longe dos f i lhos. Isso mostrou à Clenir um outro lado da
f igura paterna que até aquele momento se fazia apagado. Cl e-
nir af irma ter chorado junto ao pai como há muitos anos não
conseguia.
6 Paul WATZLAWICK , A real idade inventada , p. 110.
179
A ef icácia oracular nesse episódio específ ico fez Clenir
conf iar cada vez mais na fala da taróloga. Em vár io s outros
momentos de sua vida, a consulta aos oráculos propiciou uma
reorganização do mundo ao seu redor, provocando tanto inst a-
bi l idades como ordenações. Tive oportunidade de acompanhar
alguns desses momentos.
Um caso exemplar pode ser presenc iado numa da s visi tas
da pesquisa à Feira Mística. Enquanto observava o movimento
de cl ientes, entrevistando alguns e conversando com os míst i-
cos que al i se encontravam, Clenir apareceu. Como de hábito
foi cumprimentando e conversando com todos. Perguntei - lhe o
que a trazia novamente à Feira. “Coisas do amor”, respondeu ela. Demonstrando bem estar, disse que quer ia t irar apenas
pequenas dúvidas sobre o namorado.
Quando saiu da consul ta, Clenir estava visivelmente ab a-
lada com jeito de quem tinha chorado. Ao contrár io do s outros
dias, não sentou para tomar café com os conhecidos da Feira,
mas se evadiu rapidamente. Taís, a mística que a atendeu,
perguntada sobre o ocorr ido l imitou -se a responder: “é, eu t i -nha que falar a verdade”.
Dias depois, t ive oportunidade de conversar com Clenir ,
que me contou o ocorr ido.
Eu já t inha conversado muito com a Taís sobre ele (o namorado). Ela já t inha falado muita coisa sobre nós. Inclusive quando nós nos conhecemos foi numa época que eu estava numa fossa danada e o tarô já t inha mo s-trado caminhos que eu dever ia seguir. Foi por aí que nós nos conhecemos. Se a Taís não tivesse me alertado sobre coisas que estavam se passando comigo, acho que nunca poderia tê- lo encontrado. Mas a Taís sempre me alertava
180
para as dif iculdades de nosso relacionamento. Mas, sei lá, parece que a gente só ouve o que quer ouvir . A Taís sempre me falava de um lado dele que eu não conseguia perceber. Tinha coisas boas também. Mas outro dia (o dia relatado acima) apareceram coisas que eu nem im a-ginava. Mas “bateu” direto. Tudo faz muito sentido ago-ra. Eu saí arrasada da consulta. Naquele dia chorei dir e-to. E nos seguintes também. Minha mãe nem entendia o que estava acontecendo.
O que fez com que uma pessoa já habituada às consultas
oraculares e conhecida de longa data da adivinha entrasse em
tal estado? Passado algum tempo do ocorr ido, Clenir procurou
reconstituir as falas da consulta.
Eu fui procurar a Taís aquele dia porque estava preocupada com o que estava acontecendo. Eu ‘tava meio desconf iada de alguma coisa. Ele andava meio distante e eu quer ia saber porquê disso tudo. Mas conforme fomos abr indo o tarô, coisas novas foram surgindo. A Taís viu caracter ís ticas dele que eu nunca t inha percebido. Ela fa-lou: “ele está te enchendo o saco! Está indeciso, é um bom rapaz, mas não sabe o que quer. Você está pe rden-do o tempo com ele.”
De acordo com Clenir , a taróloga continuou falando co i-
sas bastante fortes da personal idade do rapaz. Disse que ele
estava enganando a si própr io e se deixava levar em vár ias s i-
tuações de sua vida. Assumia um ar de desprotegido para ser
cuidado por Clenir , mas a adver tiu de que se essa não tomasse
cuidado passar ia a vida inteira cuidando dele sem rec eber nada
em troca.
Taís disse que ele não era um verdadeiro homem, era muito fraco e que eu não precisava dele. Disse que eu também estava insegura e foi falando coisa s que me f izeram f icar como um capacho. Eu f iquei arrasada. Disse que eu devia cuidar mais de mim, me arrumar melhor,
181
sa i r com outras pessoas. Disse até que via um novo “g a-to” na minha vida, um rapaz moreno.
Eu perguntei a ela o que ela pensava sobre tudo i sso que
tinha acontecido. Clenir acreditava que se nunca tinha surgido
algo assim nas leituras anter iores de tarô é porque “o tarô é bastante versáti l e percebe bem as mudanças que vão aconte-
cendo”. Essa expl icação encaixa -se dentro do sistema de cren-
ças pré-estabelecido sendo, portanto, bastante coerente. Dizia-
se ainda mui to abalada com tudo o que tinha acontecido e que
seu própr io namorado andava diferente. Não sabia, naquele
momento, o que poderia acontecer. Sobre o outro rapaz em
sua vida, disse que pensou nisso, mas não conseguiu perceber
quem era. “Talvez ainda apareça”, disse ela.
Passados uns meses, t ive oportunidade de entrevista - la
novamente. Disse que ainda continuava com o mesmo namora-
do, mas que o relacionamento havia mudado “cento e oitenta graus”.
Eu comecei a vê- lo de maneira diferente. Conver-samos muito sobre isso. Ele deixou de ser aquela pessoa única na minha vida. Comecei questionar um monte de coisas que antes eu nem l igava. Passamos momentos muito dif íceis. Chegamos a nos separar por um tempo. Mas acho que agora estamos bem melhor.
Dessa sér ie de depoimentos de uma cl iente habitual, p o-
de-se observar algumas caracter íst icas das consultas. Mui tas
vezes o adivinho fala aqui lo que o consulente quer ouvir . Mes-
mo que conscientemente diga que nunca havia pensado sobre
tal assunto, ou sobre determinado ponto de vis ta sobre um
mesmo tema, a questão é que a consulta e a conversa com o
místico tem o poder de evidenciar a lguns fa tores muitas vezes
182
encobertos que passam despercebidos. A própr ia estrutura da
consulta, com o adivinho perguntando pr imeiramente o que o
consulente deseja ouvir e, em seguida, continuamente falando
a partir da reação e perguntando sobre detalhes da vida d o
cl iente, leva a um reconhecimento, por parte deste últ imo da
veracidade das af irmações. O consulente acaba não percebe n-
do que é ele mesmo quem mapeia a conversa com marcos s ig-
nif icativos de sua vida. Quanto mais essa identi f icação é e sta-
belecida, mais a “fala” do oráculo se enquadra no contexto, no meta-padrão de Bateson, e mais o oráculo ganha veracid ade e
legit imidade.
Percebe-se que muitos dos elementos levantados pela Ta-
ís na consul ta já estavam presentes enquanto suspeita em Cl e-
nir . Naquele momento específ ico, devido a alguma sensibi l ida-
de momentânea, f izeram sentido e aplacaram suas dúvidas i n-
ter iores. O quinto cr i tér io de Bateson, dentre os que def inem
se estamos diante de um sistema mental ou não, af irma que
percebemos sempre parte das mensagens, m as deduzimos o
todo. Ou seja, as mensagens são sempre codif icadas; se e scu-
tamos um iníc io de uma frase, sabemos pelo contexto como
termina. 7 Assim, determinadas af irmações do místico são com-
preendidas dentro de um contexto que está na cabeça do co n-
sulente. O místico pode não ter dito “tudo”, mas o consulente ouviu “mais” do que isso.
Até mesmo o “rapaz moreno” que surgir ia na vida de Cl e-
nir ganhou signif icado. Para ela, “foi a mudança que ocorreu
7 Gregory BATESON , Mente e natureza. A unidade necessária , pp. 118-123.
183
nas nossas vidas. Ele é um outro homem agora. Acho que o t a-
rô quer ia dizer exatamente isso. Não se pode levar tudo ao ‘pé da letra’ . Quando falou num outro era dele mesmo que quer ia dizer, só que de um outro jeito”.
2. Segundo caso: a busca racional da energia única
Odair tem 52 anos e conheceu a Feira Mística at ravés de
um curso de tarô ministrado pelo seu organizador e cr iador,
em 1994. Ficou fascinado com as teor ias de “energia única” 8
trabalhadas durante o curso e começou a sistematizar as idéias
que formulava individualmente há vár ios anos. A partir daí c o-
meçou a apl icar suas teor ias, pr incipalmente através de rad ies-
tesia 9, para obter informações sobre sua vida e ajudar as pe s-
soas.
Costuma freqüentar a Feira praticamente a cada quinze
dias, quando não semanalmente. Gosta muito do chá árabe,
pr incipalmente pelo que a mística fala, mas uti l iza na maior ia
das vezes de cartomancia e numerologia. Já procurou também
o tarô e a astrologia. Diz prefer ir a Feira Mística porque “f ica mais à vontade e conhece as pessoas”. Ressalta, também, que
8 Ver capítulo 1. 9 Estudo das variações de radiação aplicado à supostas forças telúricas com auxílio de pêndulos ou varas. São utilizadas, inclusive, como instrumento de adivinhação.
184
o fato de haver vár ias manc ias juntas é muito interessante e
importante, pois “pode -se escolher aquele oráculo mais ad e-
quado ao seu estado de espír i to do momento”.
Casado há 16 anos, tem dois f i lhos. É formado em adm i-
nistração de empresas e trabalha como anal ista de sis temas
em uma grande insti tuição f inancei ra. Faz pós -graduação em
anál ise de sis temas e projetos vol tados ao mercado f inanceiro.
Considera-se uma pessoa rel ig iosa. De formação catól ica, diz
que “passou” por vár ias rel ig iões e hoje se reconhece como um “esotér ico”. Gosta do esoter ismo pois, como diz, “não quer t i -
rar dinheiro de ninguém, mas apenas ajudar os outros”. Sua
esposa é evangél ica e não vê com bons olhos os pensamentos
do marido. Isso tem lhe trazido algumas complicações em â m-
bito famil iar. Como concorda com os pr incípios cr istãos, não se
opõe a que a mãe eduque os f i lhos dentro de uma perspectiva
rel ig iosa, “desde que eu possa ensinar também as coisas sobre as energias do universo”.
Não se considera superstic ioso, mas acredita que existem
forças posit ivas e negativas que podem ser uti l izadas em pr o-
veito dos seres humanos. Uti l iza pêndulos para encontrar re s-
postas a dúvidas do dia a dia, admitindo, porém, que ele me s-
mo possa inf luenciar as respostas dadas. Assim, busca o tarô e
outras mancias da Feira como um ins trumento neutro em que,
acredita, seus sentimentos não poderão interfer ir nas respo s-
tas. Diz gostar do tarô por ter a capacidade de mostrar os c a-
minhos através de uma lógica coerente. Apesar disso, pude
perceber que consulta muito mais a cartomancia entre todos os
jogos oferecidos na Feira. Perguntado a esse respeito, atr ibuiu
185
às cartas um poder de adivinhar acontecimentos futuros que
“já existem enquanto potencial idade energética presente”. Po s-
ter iormente, me relatou que durante toda a infância sua avó
“ l ia” as car tas de baralho para ele. Desde pequeno proc urou
formular em sua mente uma expl icação razoável para o funci o-
namento da divinação pelas cartas, pois como af irma, “ela (a avó) adivinhava muitas coisas e eu quer ia saber como aqui lo
era possível”.
Odair diz acreditar muito em forças da mente, em hipn o-
se, magia e energia. Considera que essas coisas p odem auxi l iá-
lo em seu trabalho. Uti l iza a radiestesia com os computadores
e diz obter bons resultados. Para ele, é muito forte a questão
da energia, atr ibu indo, como diz, “uma lógica muito forte a tu-
do o que existe”. Como foi possível desenvolver no capítulo
anter ior, o concei to de energia é não apenas muito uti l izado no
meio como também de signif icação muito vaga e difusa. Nele
cabe tudo. Odair demonstra ut i l izar tal conceito para tudo que
não tenha uma demonstração ou expl icação racional. Ele se
considera uma pessoa muito prática e mater ial ista.
Acredita numa força interna muito poderosa. Desde p e-
queno acha que consegue ter premonições, mas nunca teve c o-
ragem de desenvolver essa aptidão. Admira os místicos da Fe i-
ra, pois diz que eles sabem l idar com tal força. Ci ta vár ios c a-
sos em que teve a nít ida sensação de que previa o futuro.
O oráculo me permite visual izar melhor o que vem daqui para a frente. Também ajuda a saber se o que você está fazendo está certo ou errado. Eu costumo sentir e s-sas coisas, outras eu sei pelos pêndulos que uti l izo, mas tenho muito receio de que não esteja vendo as coisas certas.
186
Quando conheceu aquela que vir ia a ser sua esposa,
“sent iu” na hora que havia algo de especial entre os dois. Cr e-
dita tudo i sso ao mesmo pr incípio da r adiestesia.
Sua esposa costuma cr it icá- lo dizendo que só se interessa
por coisas objetivas e mater iais, mas Odair não concorda.
Af irma que os relacionamentos humanos são regidos por essa
energia maior. Assim, pode l idar com as questões sentimentais
a partir da visão pessoal que tem de energia. Pelo que pude
perceber através das entrevis tas, Odair estabeleceu para si
uma vida muito r íg ida e regrada, mas isso tudo lhe traz muita
insegurança. A consulta oracular permite não apenas o teste
de suas teor ias como é, fundamentalmente, um lugar de d e-
sordem simból ica para Odair. Através dela pode deixar af lorar,
e l idar com suas inseguranças e medos.
Numa determinada ocasião que tive oportunidade de pre-
senciar, Odair estava visivelmente incomodado com alguma
coisa. Como de costume cumprimentou, mas logo foi para sua
consulta. Pude entrevista - lo logo após. Odair começou a falar
sobre seu casamento e sobre o retorno de uma pessoa antig a
que de cer ta maneira fez parte de sua histór ia amorosa. Isso
tudo o deixou muito abalado. Não sabia se devia largar esposa
e f i lhos, se poder ia assumir um caso escondido etc. Diz ele que
as cartas haviam previsto o que ser ia de seu futuro e isso lhe
auxi l iar ia na tomada de decisão que dever ia real izar. Por mais
que Odair acredite ser a vida pura expressão matemática da
“energia única”, desarranjos emocionais costumam perturba - lo
constantemente. Diz que é uma pessoa que não tem muitos
“víc ios” e não gosta de sair com amigos para conversar. É no
187
ambiente da consulta oracular que ele se permite entrar em
contato com suas emoções.
Encontrei Odair uma vez mais depois disso, mas ele não
quis revelar se as car tas haviam acertado ou não. Ele contin u-
ava com a esposa.
Eu procuro vir à Feira Mística sempre que me sinto ansioso pelo que tenho que fazer ou resolver durante a semana. Eu sei que tem coisas que não adianta eu tentar sozinho, não consigo resolver. É por isso que venho sem-pre aqui. As vezes eu tenho que faze r um monte de co i-sas e não sei por onde começar. Conversando com o mí s-tico consigo perceber aqui lo que é mais urgente, mais importante. Ouvir o místico acalma a gente.
Por vezes Odair demonstrou um cer to temor de que aqu i-
lo que esperava acontecer fosse revelado pela mística como
uma coisa falsa.
Eu tenho receio de ouvir aqui lo que não quero, que a vidente (cartomante no caso) fale que uma coisa que eu esteja esperando muito não vai acontecer. Às vezes ela fala coisas que eu já sabia. Mas isso é bom, pois a l-guém de fora falando acaba sendo melhor do que você mesmo. Faz mais efei to.
Odair exempli f ica as possíveis adivinhações que o místico
consegue real izar:
O místico percebe coisas que já estão no seu i n-consciente. No fundo a energia já está em você. Você já sabe, mas não tem consciência disso. Uma vez a cart o-mante viu uma doença na minha mulher. Eu insisti muito para que ela fosse ao médico. Ainda bem, porque ela t i-nha um pequeno tumor e pode tratar logo.
188
Em outras ocasiões admite que pode modif icar o futuro,
pois pode visual izar a melhor opção e escolher dentre vár ias
possíveis.
Eu gosto muito de saber o que vai acontecer no meu trabalho. Tenho um cargo de gerência e l ido com muitas coisas complicadas, pessoas enciumadas, essas coisas. Preciso sempre estar atento ao que vai acontecer para não ser pego de surpresa e poder agir da melhor forma possível. São questões muito intr incadas. Depen-dendo do que eu decidir o futuro será de um jeito ou de outro. Assim, os oráculos me ajudam a l idar da melhor maneira possível com a energia.
Apesar de toda essa crença articulada sobre a divinação,
Odair estabelece l imites. Diz que os oráculos permitem a pe r-
cepção da energia única, mas não servem para questões po n-
tuais, pois não admitem uma precisão.
Eu não posso uti l izar o pêndulo, ou as cartas, em coisas que requerem muita exatidão. Se eu soubesse ex a-tamente qual ação (da bolsa de valores) ir ia subir , ou qual i r ia cair , estava mil ionár io. Nem serve para saber qual t ime (de futebol) vai ganhar. Mas é possível saber as tendências, pr incipalmente das pessoas. Eu às vezes procuro uti l izar em questões de negócios, mas tenho m e-do de l idar com dinheiro, pr incipalmente de outras pe s-soas, em cima das previsões das cartas.
Atr ibui suas visi tas à Feira a questões e dúvidas específ i -
cas que necessitam de or ientação, tais como, dúvidas com o
trabalho, com a esposa, com os f i lhos etc. Um caso citado n u-
ma das entrevistas exempli f ica muito bem como os oráculos
podem servir como or ientadores, e interventores, da vida cot i-
diana:
meu f i lho caçula estava passando por problemas na e sco-la. A professora reclamava muito dele e nós (ele e a e s-
189
posa) fomos chamados vár ias vezes para conversar com a or ientadora. Ele nunca foi muito de estudar, não. É bem diferente do mais velho, que é muito intel igente. O n egó-cio dele é br incar, fazer esporte, essas coisas. Ele ia r e-petir a terceira sér ie pela segunda vez seguida. Eu já e s-tava desi ludido com o garoto. Depois disso, procurei s a-ber pelas cartas, pr imeiro pelo tarô e depois pelas ca r-tas, o que estava acontecendo. Isso salvou o ano do meu f i lho. A Noel i (cartomante) disse que a professora é que estava causando mal a ele, que ele t inha muito p otencial e era muito intel igente e ir ia passar de ano. Depois disso fomos conversar com a or ientadora e com a professora. Meu f i lho se recuperou e não perdeu o ano.
Pode-se perceber na fala de Odai r aqui lo que Bateson
chamou de determinação circular como um dos cr i tér ios (o
quarto) de existência de um sis tema mental. 10 Sempre conside-
rando um grupo como uma mente, Bateson os vê como agrega-
dos de partes que se relacionam. As informações que ma ntém
o sis tema vêm das interações entre as partes. Essas inte rações
formam enormes conjuntos organizados e obedecem a padrões
não-l ineares de causal idade. Como visto no capítulo anter ior, a
tendência das pessoas é pensar numa causal idade l inear. Bat e-
son af irma que quando os eventos são atr ibuídos a alguma e n-
tidade oculta, como por exemplo o destino ou a i ncapacidade
intelectual do menino, impede-se de perceber os verdadeiros
condicionantes e as interações entre as partes. A expl icação
aparente é tomada como a expl icação verdadeira, l inear. Co n-
f irma-se, assim, a insuf ic iência para os estudos e expl ica -se o
porquê do fracasso escolar.
A acei tação por parte dos pais e, inconscientemente, a
af irmação de que o f i lho é “burro”, permite passar a idéia de
10 Gregory BATESON , Mente e natureza . A unidade necessária , pp. 111-118.
190
que por mais que esse se esforce não conseguirá o sucesso
esperado. Em conseqüência, o f i lho se vê incapaz e deixa de
estudar, procurando apenas br incar . Os pais vêem isso como
uma conf irmação da pr imeira proposição e deixam de ter ou-
tras expectativas referentes à cr iança. Novamente o círculo se
fecha com o menino inter ior izando, no sentido atr ibuído por
Berger e Luckmann11, a imagem de “burro”, reconhecendo-se
como tal e indo mal na escola.
Uma predição futura de um destino pleno de insucessos
levar ia a uma determinação presente de fracasso. Por outro
lado, a consulta oracular , com outro prognóstico, provocou o
que Bateson chama de “alteração de representação lógica”. 12
Um elemento, o vatic ínio, entrou no circuito, alterando a inte-
ração entre as partes. Os pais começaram a questionar aquela
expl icação causal anter ior. “Quem sabe não é verdade que o menino tem potencial e pode passar de ano?” Quebra -se o cír-
culo e há uma inversão de ordem. Os pais começam a esti mu-
lar o f i lho, buscam reforço, investem em alternativas, conve r-
sam com a professora. No fundo, dão valor a uma capacidade
do f i lho que não reconheciam antes. Como resultado o menino
melhorou na escola e passou de ano.
Esse caso é paradigmático de mui tos ou tros que se vêem
repetidamente nas consultas da Feira Mística. É o caso hipot é-
tico, mas nem um pouco incomum, da mocinha que não cons e-
gue casar e seu “grande amor” não lhe dá muitas atenções. Passam anos num jogo de união-separação e nada de casa-
11 Peter BERGER e Thomas LUCKMANN , A construção social da real idade . 12 Gregory BATESON , op. cit., p. 117.
191
mento. Ela continua pensando nele, mas, quanto mais i nsis te,
mais ele se afasta e não l iga para e la. O círculo está constitu í-
do. Uma possível consulta aos oráculos pode provocar uma a l-
teração no sis tema. A predição de aparecimento de um novo
rapaz, que desta vez será um caso sér io e promissor de um f u-
turo enlace matr imonial, vai fazer a moça abandonar s uas in-
sistentes e fracassadas tentativas e voltar suas atenções a o u-
tros possíveis parceiros. Quando surge um identif icado com as
caracter ís ticas que as cartas haviam previsto, ela investe no
sujeito com a certeza de sucesso, e não mais hesitante como
antes, o que será fundamental para o resultado f inal. A prob a-
bi l idade de dar certo é muito maior. Anter iormente, a insistê n-
cia no pr imeiro parceiro impediam-na de olhar para novos pos-
síveis pretendentes. A consulta oracular estabeleceu uma nova
real idade, um novo sistema em que caber ia um outro eleme n-
to. Essa profecia, uma conseqüência, virou causa da transfo r-
mação. Houve uma inversão da ordem da cadeia causal.
Odair , assim como vár ios outros cl ientes da Feira, costu-
ma af irmar que é impressionante a capacidade de certos míst i-
cos em adivinharem as coisas de sua vida e falar as coisas
“cer tas”. Numa dessas ocasiões, suger i ao entrevistado que
procurasse resgatar as falas do adivinho para que o Odair pu-
desse identi f icar o que a cartomante havia “acertado”. 13
Eu estou sentindo um certo problema com um col e-ga de trabalho e resolvi que ter ia de perguntar sobre i s-so. Eu percebo que ele não está numa fase muito boa e o diretor não olha para isso e é possível haver cortes na empresa. É provável que mandem ele embora. Queria s a-
13 Como se tratou de uma consulta não gravada, as falas atribuídas ao místico e ao consulente foram resgatadas a partir da memória do depoente.
192
ber o que vai acontecer e pergunte i isso à Noel i (cart o-mante). Ela disse que ele provavelmente será mandado embora, ou ainda que pode mudar de posto, ir para uma f i l ial , coisas desse gênero. Disse ainda que o Rober to (o colega de trabalho) está enfrentando dif iculdades em c a-sa. Falou que a mulher provavelmente está tendo um c a-so com outro, ou vai ter ainda. Eu bem que desconf i ava dela. Ela não me parece muito cer t inha e o Roberto não tem dado muita atenção para ela. A Noel i previu ai nda que ele poderá ter problemas de saúde. Mas, pelo que ele bebe é até normal f icar doente. Eu já falei para ele moderar na bebida, mas agora eu entendo: com a mulher que ele tem... Ela falou ainda que se ele for embora eu tenho chances de subir de posto. Eu concordo com isso, o pior é que o Roberto deve estar pensando que eu estou querendo tomar o lugar dele. Longe de mim isso. Vou amanhã mesmo falar disso tudo com ele. Quem sabe ele toma jei to e faz alguma coisa. (. . .) Ela falou muito mais coisas, mas isso tudo foi bastante certeiro.
Desse pequeno relato de um trecho da consulta podemos
tirar algumas conclusões. Antes de mais nada é preciso le m-
brar que Odair pode ter, inconscientemente ou nã o, omitido ou
aumentado alguns detalhes. Ao que interessa aos l imites desta
pesquisa é importante observar que as respostas da car t oman-
te foram sempre abertas e evasivas, abr indo possibi l idades
múltip las de interpretações. Outra caracter ís tica é que, em g e-
ral, os adivinhos falam em vár ias direções. O consulente acaba
f icando com aquela fala que lhe parece mais adequada 14.
14 Tive oportunidade de eu mesmo realizar algumas consultas com diferentes místicos da Feira. Pelas distorções devidas ao fato de não ser um cliente de oráculos, não ser um “crente” desse sistema de crenças e estar ali como pesquisador, as conversas obti-das não puderam ser utilizadas como fonte de informações para as análises da pesqui-sa. Porém, pude perceber o “roteiro” básico utilizado nas consultas, bem como as es-tratégias de respostas dadas pela maioria dos adivinhos. Convém lembrar o que foi trabalhado no capítulo 2 sobre as crenças compartilhadas. Dizer que há roteiros e es-tratégias não significa dizer que há uma falácia planejada para enganar as pessoas. Do mesmo modo que o feiticeiro analisado por Lévi-Strauss (Claude LÉVI-STRAUSS, “O feiti-ceiro e sua magia”, In: C. LÉVI-STRAUSS, Antropologia estrutural) passou a acreditar em
193
Ao anal isar a construção de real idade, Foerster fala da
importância da interpretação. Em muitas situações “vemos e ouvimos o que não está” e em outras “não vemos nem ouvimos o que está”.15 É o contexto que marca as chamadas evidências,
os “sinais” concretos da fala correta do adivinho. Glasersfeld lembra que do aleatór io e do caótico retiramos aquelas info r-
mações que reconhecemos como semelhantes. Essa constata-
ção de semelhança comporá a percepção de regular idades. 16
Uti l iza o conceito de “encaixar com” para demonstrar que um objeto ou coisa pode ser entendido como real na medida em
que “satisfaz ou se comporta de acordo com as expectativas e,
portanto, se ‘encaixa’ ou não com a situação”. 17
Assim, supondo uma consul ta plena de mater iais expo s-
tos, falas, símbolos, imagens etc., o consulente pode construir
regular idades num mundo completamente caótico e desorden a-
do, dependendo mais dos f ins (onde quer chegar com aqui lo)
do que com as condições concretas expostas pelo adivinho.
Muitas das respostas dadas pela cartomante foram interpret a-
das por Odair a partir de um repertór io, de um contexto, já
pré-estabelecido, e de suas próprias suposições. As “meias-
falas” de Noel i “conf irmaram” as suspeitas de Odair de que a
esposa do amigo não é f iel , que este bebe além da conta, que
seus poderes, o consensus do grupo faz com que os místicos realmente se vejam adi-vinhando. Geralmente partem das perguntas trazidas pelos consulentes e procuram falar uma série de coisas que possam fazer sentido aos mesmos. A partir da reação do cliente, seja uma expressão ou uma fala, tomam diferentes rumos. Se falam de uma “determinada” pessoa em sua vida arrematam com a pergunta: “sabe quem é?”. De-pendendo da resposta do consulente vai, ou não, aprofundar essa informação. 15 Heinz V. FOERSTER , “Construindo uma real idade”, In: P. WATZLAWICK (org.) , A real idade inventada, p. 50. 16 Ernst V. GLASERSFELD , “Introdução ao construt iv ismo” , In: P. WATZLAWICK (org.), A real idade inventada , p. 41. 17 Ibid., p. 42.
194
o amigo tem inveja dele etc. Nesse sentido compreende -se co-
mo que as falas dos místicos é reconhecida como verd adeira e
f idedigna por parte dos consulentes.
Retorno aqui às idéias de Pr igogine acerca das dinâmicas
dos sistemas aber tos. Parti da hipótese de que as consultas
oraculares formam sistemas mentais abertos às trocas de
energia com o meio circundante. Dessa maneira, podemos r e-
tomar o que foi tratado no capítulo 3 sobre os círculos cr iat i-
vos de Varela. Esses sis temas podem ser entendidos como cí r-
culos cr iativos, onde a coerência está distr ibuída num círculo
que se repete constantemente, mas que pode ser observado
em sua unidade. Os jogos divinatór ios têm de ser entendidos
como chaves de compreensão de grandes cadeias expl icativas
mais amplas. Fazem sentido na medida em que remetem o co n-
sulente aos grandes pr incípios da sua vida, colocando os fatos
desordenados num conjunto lógico e coerente de signif icações.
Se para Varela, nesses círculos p odemos perceber o padrão
(atrator) que se repete indicando um antepassado mítico, da
mesma forma pode-se entender que as instabi l idades provoca-
das nas consultas oraculares vão ao encontro dos mitos de ca-
da um.
A consulta oracular é um espaço possível de manifestação
de desordem numa sociedade que se requer ordeira em suas
estruturas básicas. É um momento de r i tual em que se pode
l idar com o imaginár io, com os mitos, com os sonhos e dev a-
neios. Sejam eles grandes construções coletivas, seja a indiv i-
dual necess idade de dar sentido à própr ia vida.
195
Balandier af irma que “nenhuma soc iedade pode ser pu r-
gada de toda desordem; é preciso saber l idar com ela em vez
de tentar el iminá-la. Este é o papel do mito e do r i to: tratam a
desordem no sentido de lhe dar uma forma dominável, de co n-
vertê- la em fator de ordem, ou de deportá - la para os espaços
do imaginár io”. 18
Apesar da impressão de que as sociedades atuais aban-
donaram o hábito das grandes narrativas míticas, Balandier
af irma que há um espaço específ ico para o mito hoje.
O mito ainda fala. Designa os poderes em expansão (. . .). Joga luz sobre um mundo onde a desordem parece dissolver a ordem, onde a complexidade crescente dese n-coraja qualquer emprego de uma lógica coerente, onde os sinais estão confusos e onde o homem busca os signos que possam demarcar seu trajeto. 19
O mito atual é o do indivíduo, o de sua busca por êxito
pessoal. Sob impulso das necessidades imediatas, o indivíduo
vai produzindo seus s ignif icados. Assim, o imaginár io mantém
sua busca, mas se torna confuso e contraditór io. 20 Os novos
mitos são difusos e ambivalentes. Porém, para Balandier, o m i-
to fala hoje com uma força tão grande quanto a do tempo de
sua cr iação.
Como um atrator, os mitos expr imem uma ordem pr imor-
dial extraída do caos. Se não compõem grandes narrativas, as
falas dos adivinhos nas consultas oraculares comportam -se
como verdadeiros atratores que provocam no consulente a
sensação de ordem pr imordial onde os fatos ganham sen tido,
18 George BALANDIER , A desordem. Elogio do movimento , p. 36. 19 George BALANDIER , O dédalo. Para f inal i zar o sécu lo XX , p. 10 . 20 Ibid., p. 27.
196
onde suspeitas isoladas ganham contornos, onde esperanças se
refazem e onde a real idade é desconstruída e reconstruída i n-
cansavelmente.
197
CONCLUSÃO
No in íc io deste trabalho, procurei enfatizar os l imites da
pesquisa. Bem sei que o universo dos jogos divinatór ios, mes-
mo que apenas falando de suas exper iências práticas contem-
porâneas, vai muito além de um pequeno empreendimento de
comercial ização de oráculos como é a Feira Mística de São Pau-
lo. Porém, acredito ter alcançado os objetivos propostos inic i-
almente no sentido de perceber as s ignif icações mais profun-
das da divinação para a vida dos usuár ios da Feira e as regula-
r idades inerentes aos jogos divinatór ios no inter ior do conjunto
de crenças que compõe a soc iedade contemporânea.
Ao contrár io do que uma pr imeira e r ápida observação
poderia supor, o campo das chamadas novas “espir i tual idades”
ou Nova Era não é um simples amontoado amorfo de práticas
oportunistas, mas comporta uma s ér ie de estruturas lógicas
que lhe dão signif icado. Além do mais, como procurei f r isar, a
Feira Mística e a profusão das leituras oraculares em ambien-
tes públ icos nascem no inter ior daqui lo que se denomina Nova
Era, mas a ultrapassam. Retiram da sociedade mais ampla,
como também lhe fornecem, elementos simból icos e práticas
culturais, contr ibuindo para compor um amplo leque de crenças
que caracter iza a sociedade dos grandes centros urbanos atu-
ais.
198
O trabalho de campo, l imitado ao pequeno amb iente da
Feira, trouxe a possibi l idade de perceber no particular aqui lo
que é universal. Permitiu o acompanhamento de a lguns casos
específ icos que de outra maneira, por exemplo se tivesse op-
tado por estudar os jogos d iv inatór ios em geral , não ter ia sido
possível.
A pesquisa procurou traçar as caracter ís ticas da época
atual que possibi l i tam a exis tência de uma fe ira com a oferta e
comercial ização de diferentes jogos divinatór ios. No retrato da
Feira, relatado no cap ítulo 1, procurei mostrar quem são os
personagens, adiv inhos e cl ientes, e como se articulam os d ife-
rentes oráculos oferecidos. Em seguida tratei do si stema de
crenças que permeia as práticas divinatór ias da Feira Mística,
mostrando suas articulações com o senso comum e como este
se apropr ia de elementos da c iênc ia para justi f icar um novo
tipo de crença, aquela que “acredi ta desacreditando” . Coube
ainda uma breve anál ise da presença do pensamento mítico
como um ordenador de vivências aparentemente caóticas. No
capítulo 3 mostrei , recorrendo à l i teratura disponível não ape-
nas na antropologia mas na ciência como um todo, de que ma-
neira os oráculos, em específ ico os da Feira Mística, agem co-
mo ordenadores da desordem, auxi l iando o encontro de “de-
terminismos dentro do acaso” . Por f im, anal isando dois casos
específ icos, acredito ter conseguido mostrar como as leituras
oraculares têm um forte papel na construção de real idades da
vida dos sujeitos envolvidos. Nesse sentido, podemos perceber
como se dá a ef icácia da div inação.
199
Assim, pelo que me foi poss ível perceber na investigação
real izada, os jogos divinatór ios vão muito além de simplesmen-
te conhecer o futuro ou compreender o que aconteceu no pas-
sado, mas consti tuem, ao entrar em contato com aqui lo que
supostamente está ocul to, uma estratégia de navegação por
meio a incertezas e inseguranças, procurando dar forma àqui lo
que escapa à compreensão e l idar com os “demônios” do ima-
ginár io.
O espaço da Feira Mística apresenta–se como um espaço
onde é possível o sujeito vivenciar seus sonhos, desi lusões,
anseios e devaneios. Enf im, dar corda ao imag inár io. As ima-
gens e idéias ganham legit imidade e poder. Longe da correr ia
das grandes c idades e da fr ig idez pragmática da vida moderna
aqui ele pode sonhar. Pode imag inar um futuro sem tanta con-
turbação e pode expl icar aqui lo que já aconteceu, ou cont inua
acontecendo, atormentando-o, aqui lo que a pr incípio não fazia
o menor sentido.
Inser idos neste contexto simból ico, os indivíduos ut i l izam
as mancias com muita natural idade. Quanto mais e nvolvidos
estão com este sis tema de crenças, mais consideram a consul-
ta aos oráculos como elemento i ntegrante do cotid iano, não
percebendo ruptura com um conhec imento cient í f ico. É impor-
tante notar que seus consulentes não a uti l izam como um ins-
trumento de sati sfação de cur iosidades superf ic iais ou manu-
tenção de crendices superst ic iosas. Muito longe disto, a grande
tendência que aparece é a de estabelecer a Feira Mística como
uma prática terapêutica.
200
Gilbert Durand, contrar iando a doutr ina clássica que di s-
tingue a razão dos outros fenômenos psíqu icos, defendeu a
idéia de que não há um corte evidenciado entre o racional e o
imaginár io.1 Ora, o que encontramos no espaço da Feira Míst i-
ca é justamente o fato da imaginação, al imentada pelos or ácu-
los mít icos, revelar -se como fator geral de equ i l íbr io psicosso-
cial . Pode-se ser racional ao extremo na vida cotid iana e ser
cl iente dos serv iços da Feira Mística. Naquele momento o que
conta é a magia do encontro entre o adivinho e o consulente.
Há um espaço de consenso social que legit ima essa prát i-
ca. O atual contexto social permite a vivência do lado encanta-
do do ser humano. Não há barre iras aparentes que impeçam o
trânsito entre o lado racional e o mágico sens i t ivo. Sendo esse
lado míst ico algo constitutivo do própr io ser humano e haven-
do aberturas na sociedade que possib i l i tam oferecer uma pleni-
tude de bens simból icos mís ticos, não é de estranhar o sucesso
do ocult ismo. Assim, longe de imaginar apenas a cr ise da soc i-
edade contemporânea, e espec if icamente a cr ise da razão ob-
jetiva, como mola propulsora da busca do mistic ismo, é preciso
reconhecer que outros fatores também compõem a complexi-
dade desse universo.
Longe de ser o resultado simpl ista e consumista de men-
tes desamparadas pelas rel ig iões of ic iais e desi ludidas com os
rumos da atual c iv i l ização, é pr eciso ver a Feira Mística como
um espaço de sol idar iedade e de troca. É um novo espaço d ia-
lógico, como dir ia Morin, em que ordem e desordem se art icu-
lam numa auto-organização. Não há um caminho l inear, ún ico,
1 Gilbert DURAND, A imaginação simbólica.
201
a ser traçado, mas uma plêiade de novas po ssibi l idades, erros,
acasos e acertos que organ izam novamente a vida desses su-
jeitos. Essas consultas aos oráculos constituem redes informais
de resistência e autonomia do indivíduo frente às d if iculdades
da vida diár ia. Consultar pode não fazer muito sentido lógico,
mas é um momento de erupção e contato com a de desordem,
fato importante no fortalecimento do indivíduo. A fala do ad i-
vinho, muito além de expr imir certezas da vida do cl iente,
marca a possibi l idade da extrapol ação dos desejos subjetivos,
das incertezas. Estabel ece-se, naquele momento, uma intim i-
dade cúmplice entre aquelas pessoas, que tem como s ubstrato
simból ico os mitos que os oráculos trazem à tona.
Atuando em nível do inconsciente, o mito desa rruma a
ordem e instaura a desordem, fazendo comb inações impensá-
veis no cot id iano. O sujeito que sai da Feira Mística é um s u-
jeito reorganizado. Os mitos evocados provocam a ruptura com
a visão l inear de tempo. No momento da consulta, o que vale é
a intuição. É o pensamento da desordem. Pouco importa al i se
o vidente está sendo absolutamente f idedigno ao tarô egípcio
ou às runas vickings. Importa aqui lo que o consulente quer
ouvir . Importa a intu ição que o remete a um novo espaço re-
organizado.
Para Balandier, ordem e desordem não se sep aram. Se a
desordem é inerente a todo indivíduo e sociedade, trata-se de
saber l idar com ela em vez de tentar el iminá -la. Este é o pa-
pel, atr ibuído pelo autor, para o mito e o r i to: “tratam a d e-
sordem no sentido de lhe dar uma forma dominável, de conver-
202
tê- la em fator de ordem, ou de despontá- la para espaços ima-
ginár ios” .2
Através do r i tual de consulta oracular vislumbra -se uma
certeza: a continuidade em vez do caos. Os mitos v ivenciados
naquele momento r i tual íst ico acenam para o desejo de ordem.
Se a modernidade rompeu com, e afastou, a tradição e
desacreditou as vivências das grandes rel ig iões insti tuci onais
portadoras de uma permanência, fez o real f icar cada vez mais
incerto. O cl iente dos oráculos da Feira Mística vive cheio de
indecisões. Sua f igura torna-se cada vez mais confusa. Aumen-
ta-se assim o interesse em retornar a valores perenes. Se para
alguns a vivência em modismos passageiros e a transitor iedade
efêmera é uma saída, para outros faz-se necessár ia a ancora-
gem em algo sól ido que o mito pode trazer.
A Feira Mística permite, através de rupturas da tempora-
l idade e l igações com a suposta força cósm ica, uma vivência
mítica sem a necessidade de estabelecimento de vínculos insti-
tucionais com as rel ig iões atuais. É uma saída por eles mes-
mos, uma busca de ordem individual ista que permite sonhar
com um tempo de permanências.
Há uma magia do encontro, momento em que o indi víduo,
através do contraponto com o vidente, e stabelece uma plenitu-
de epifânica. Vivencia-se com intensidade a dimensão afetiva
do conhecimento mágico. A sedução do mito oracular não atua
num sentido único, ou seja, como mot ivação acima das indiv i-
dual idades impondo suas caracter í sticas em comum a todos
2 George BALANDIER, A desordem. Elogio do movimento, p. 36.
203
que o consultarem. No fundo, o que estabelece a magia e po s-
sibi l i ta a epifania é a relação entre adiv inho e consulente, in-
termediados pelo fascínio das f iguras simból icas oraculares. O
tempo mítico permite, assim, a construção de um passado ain-
da por fazer e a rev isi tação de um futuro, que se está ainda
por vir , pode alterar profundamente a vida presente.
204
BIBLIOGRAFIA
ABBAGNANO, Nicola. Dicionár io de f i losof ia . São Paulo: Mestre Jou, 1982.
AMARAL, Lei la et al . Nova era. Um desaf io para os cr istãos. São Paulo: Paul inas, 1994.
AMARAL, Lei la . Nova Era: Um Movimento de Caminhos Cruz a-dos. Estudos da CNBB , nº 71, 1994.
. Sincretismo em movimento: o esti lo Nova Era de l idar com o sagrado. In: CAROZZI, M. J. A Nova Era no mercosul. Petrópol is : Vozes, 1999.
ASKEVIS-LEHERPEUX, Françoise. A superstição. São Paulo: Át i-ca, 1990.
ATLAN, Henry. Com razão ou sem ela. Intercr ít ica da ciência e do mito. Lisboa: Inst i tuto Piaget, 1994.
. As f inal idades inconscientes. In: THOMPSON, Wil l iam I. (org.). Gaia . Uma teor ia do conhecimento. São Paulo: Gaia, 2000.
AUGÉ, Marc. Não lugares. Introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas/SP: Pap irus, 1994.
. Por uma antropologia do mundo contemporâ-neo. Rio de Janeiro: Bertrant Brasi l , 1997.
AUNE, David. Oracles. In: ELIADE, M.(ed.). The Encyclopedia of Rel ig ion. New York and London:Macmil lan Pub, 1987.
BALANDIER, George. A desordem. Elogio do movimento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasi l , 1997.
. O dédalo . Para f inal izar o século XX. Rio de Janeiro: Bertrand Brasi l , 1999.
205
BANDEIRA, Lourdes et al . . Perf i l dos adeptos e caracter ização dos grupos místicos e esotér icos no Distr i to Federal. In: VIII JORNADAS SOBRE ALTERNATIVAS RELIGIOSAS NA AMÉRICA LATINA, São Paulo, 1998.
BARKER, Ei leen. Plus ça change . . . Social Compass, 42(2), 1995.
BATESON, Gregory. Mente e natureza. A unidade necessár ia. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1986.
. Os homens são como a planta. A metáfora e o universo do processo mental. In: THOMPSON, Wil l iam I. (org.). Gaia . Uma teor ia do conhecimento. São Paulo: Gaia, 2000.
BELLAH, Robert N. A nova consciência rel ig iosa e a cr ise na modernidade. Rel ig ião e sociedade , nº 13/2, julho 1986.
BERGER, Peter. Um rumor dos anjos : a sociedade moderna e a redescoberta do sobrenatural. Petrópol is: Vozes, 1973.
BERGER, Peter E LUCKMANN, Thomas. A construção social da real idade. Petrópol is : Vozes, 1973.
BERGER, Peter. O dossel sagrado: elementos para uma teor ia sociológica da rel ig ião. São Paulo: Paul inas, 1985.
BINGEMER, Maria Clara (org.). O impacto da modernidade so-bre a rel ig ião. São Paulo: Loyola, 1992.
BIRMANN, Patr íc ia. Relativ ismo mágico e novos esti los de vida. Revista do Rio de Janeiro/UERJ , ano 1, nº 2, 1993.
BLOOM, Harold. Presságios do milên io . Anjos, sonhos e imor ta-l idade. Rio de Janeiro: Objetiva, 1996.
BLUMBERG, Paul. Magic in the modern world. Sociology and social research , 47, 1963.
BOCCHINI, Sérgio. Entre horóscopos e magia. Petrópol is: Vo-zes, 1997.
BOHM, David. A total idade e a ordem impl icada. São Paulo: Cultr ix, 1992.
206
BOY, Daniel e MICHELAT, Guy. Croyance aux parasciences: d i-mensions social les et cul turel les . Revue française de Soc i-ologie , avr i l - juin, XXVII-2, pp 175-204, 1986.
BRAGA, Júl io. O jogo de búzios. Um estudo da adivinhação no candomblé. São Paulo: Brasi l iense, 1988.
BRANDÃO, Car los R. A cr is e das inst i tuições tradicionais produ-toras de sentido. In: MOREIRA, A. e ZICMAN, R. (orgs.). Mistic ismos e Novas Rel ig iões . Petrópol is: Vozes/UFS, 1994
CALIER, Jeannie. Science divine et raison humaine. In: VE R-NANT, J.P. (org.). Divination et rat ional i té. Par is: Ed. Du seui l , 1974. P. 249-263.
. Adivinhação. In: Enciclopédia Einaudi , Vol. 12. Lisboa: Imprensa Nacional, Casa da Moeda, s.d.
CAMPBELL, Col in. Half -bel ief and the paradox of r i tual instr u-mental activ ism: a theory of modern supersti t ion. The Br i-t ish Journal os Sociology , 47,1, 1996.
. A or iental ização do Ocidente: ref lexões sobre uma nova teodicéia para um novo milênio. Rel ig ião e Soc i-edade , 18/1, agosto 1997.
CAPRA, Fr itjof . O ponto de mutação. São Paulo: Cul tr ix, 1995.
. A teia da vida . Uma nova compreensão cientí f i -ca dos si stemas vivos. São Paulo: Cultr ix, 1997.
CARACUSHANSKY, Sophia R. Magias e profecias para todos. Vi-ver Psicologia , ano 6, nº 63, s.d.
CARDOSO, Alexandre A. Pés na ter ra e cabeça nas nuvens: contornos do mistic ismo contemporâneo . In: VIII JORNA-DAS SOBRE ALTERNATIVAS RELIGIOSAS NA AMÉRICA LA-TINA, São Paulo, 1998.
CAROZZI, Maria J . . Nueva Era: la autonomía como rel ig ión . In: VIII JORNADAS SOBRE ALTERNATIVAS RELIGIOSAS NA AMÉRICA LATINA, São Paulo, 1998.
. (org.). A Nova Era no mercosul. Petrópol is: Vozes, 1999.
207
CARVALHO, José Jorge. Tendências Rel ig iosas no Brasi l Co n-temporâneo. Estudos da CNBB, nº 71, São Paulo, Paulus, 1994.
. O encontro de velhas e novas rel ig iões: esboço de uma teor ia dos esti los de espir i tual idade. In: MOREIRA, A. e ZICMAN, R. (orgs.). Mistic ismos e Novas Rel ig iões . Petrópol is: Vozes/UFS, 1994.
. Antropologia e Esoter ismo: Dois Contradiscu r-sos da Modernidade. Horizontes Antropológicos , Ano 4, nº 8, junho de 1998.
. Uma querela de espí r i tos: para uma cr í t ica br a-si leira do suposto desencantamento do mundo moderno. Cadernos do Ifan , nº 23, Bragança Paul ista/SP: Edusf, 2000.
CASCUDO, Câmara. Adivinhação. In: Dicionár io de Folclore .
CASTORIADIS, Cornel ius. A insti tuição imaginár ia da socieda-de. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
CAVALCANTI, Sônia M. R. S. Caminheiros do destino . São Pau-lo: PUC-SP, 1994. (dissertação de mestrado).
CHAMPION, Françoise. Les sociologues de la post -modernité rel ig ieuse et la nébuleuse mystique -ésotér ique. Archives de sciences sociales de rel ig ions , nº 67/1, 1989.
CHEVALIER, Gérard. Parasciences et procédés de legit imation. Revue Française de Sociologie, avr i l - juin, 1986, XXVII-2, pp.205-219.
COHEN, John. Hasard, adresse et chance. Par is: P.U.F., 1963.
CSORDAS, Thomas J. Prophecy and the performance of met a-phor. American Anthropologist , Vol 99, n. 2, june 1997.
DAL PRA, Mario. Astrologia. In: Enciclopedia Einaudi , L isboa: Imprensa Nacional, Casa da Moeda, s.d.
DEFRANCE, Phi l ippe. A astrologia erudita. In: MORIN, E. O re-torno dos astrólogos. L isboa: Moraes ed.,1972.
DIAZ-SALAZAR,R., GINER, S. e VELASCO,F. (eds). Formas mo-dernas de rel ig ión. Madrid: Al ianza ed., 1994.
208
DURAND, Gi lbert. A imaginação simból ica. L isboa: Ed. 70, s.d.
DURKHEIM, Emile e MAUSS, Marcel. Algumas formas pr imitivas de classif icação. In: MAUSS, M. Ensaios de sociologia. São Paulo: Perspectiva, 1981.
DYSON, Freeman. The importance of being unpredictable. In: . From eros to Gaia . London: Penguin books, 1992.
ELIADE, Mircea. Mito e real idade. São Paulo: Perspectiva, 1972
. Ocultismo, bruxar ia e correntes cul turais. Belo Hor izonte: Inter l ivros, 1979.
. O sagrado e o profano. A essência das rel ig i-ões. Lisboa: Edição Livros do Brasi l , s.d.
EVANS-PRITCHARD, E.E . Bruxar ia, oráculos e magia entre os Azande . Rio de Janeiro: Zahar ed., 1978.
FAIVRE, Antoine. O esoter ismo. Campinas: Papirus, 1994.
FISCHLER, Claude. Astrologia de el i te, astrologia burguesa. In: MORIN, E. et. al . O retorno dos astrólogos. L isboa: Mora-es ed.,1972.
FOERSTER, H.V. Construindo uma real idade. In: WATZLAWICK, P. (org.) A real idade inventada. Campinas/SP: Editor ial Psy II, 1994.
FRAZER, George James. The golden bough : a study in magic and rel ig ion. London: The MacMil lan Press, 1980.
FRY, Peter e HOWE, Gary N. Duas respostas à af l ição: umba n-da e pentecostal ismo. Debate e cr í t i ca , nº 6, julho 1975.
GARDNER, Mar tin. A nova ciência da mente. Uma histór ia da revolução cognitiva. São Paulo: Edusp, 1985.
GEERTZ, Cl i f ford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar ed., 1978.
. O saber local. Petrópol is: Vozes, 1997.
GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Unesp, 1991
209
GIL, Juan Car los y NISTAL, José Angel. New Age. Una rel ig ios i-dad desconcer tante. Barcelona: Ed. He rder, 1994.
GILLES, Eva. Introdução. In: EVANS-PRITCHARD, E.E . Bruxar ia, oráculos e magia entre os Azande . Rio de Janeiro: Zahar ed., 1978.
GIVRY, Gr i l lot. Witchcraft, magic & alchemy . New York: Dover Books,1971.
GLASERSFELD, Ernst von. Introdução ao construtiv ismo. In: WATZLAWICK, P. A real idade inventada. Campinas/SP: Psy, 1994.
GUERRIERO, Si las. O Movimento Hare Kr ishna no Brasi l : a co-munidade rel ig iosa de Nova Gokula. São Paulo: PUC -SP, 1989. (dissertação de mestrado)
HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1993.
HEELAS, Paul. A nova era no contexto cul l tural : pré -moderno, moderno e pós-moderno. In: Rel ig ião e sociedade , v. 17, nº 1-2, ago 1996.
. The New Age Movement. Oxford: Basi l B lackwel l , 1996.
HERBRECHTSMEIER, W. E SHEPPARD, G. Prophecy . In: ELI-ADE, M.(ed.). The Encyclopedia of Rel ig ion. New York and London:Macmil lan Pub, Hobsbawn (1984).
HOBSBAWM, Er ic e RANGER, T. (orgs.). A invenção das trad i-ções. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.
HUBER, Joseph. Quem deve mudar todas as coisas: as alterna-tivas do movimento alternativo. Rio de Janeiro: Paz e Ter-ra, 1985.
JAHODA, Gustav. A psicologia da superst ição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
JOÃO do RIO (Paulo Barreto). As rel ig iões no Rio. Rio de Janei-ro: Ed. Nova Agui lar, 1976.
JUNG, C. G.. Prefácio. In: WILHELM, Richard. I ching . O l ivro das mutações. São Paulo, Ed. Pensamento, 1987.
210
KARCHER, Stephen. Divination, synchronicity and fate. Journal of Rel ig ion and Heal th , vol. 37, no. 3, 1998.
KAYSER, Win. Maravi lhosa obra do acaso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
KELLY, I. W Astrology and science: a cr i t ical examination. In: Psychological reports , 1979, 44, 1231-1240.
KOLAKOWSKI, Leszek. A revanche do sagrado na cultura prof a-na. In: Rel ig ião e sociedade , nº 1, maio 1977.
. A presença do mito. Brasí l ia: Ed. UnB, 1981.
LESSA, Wil l ian. Somatomancy: precursor of the science of h u-man constitution. in: LESSA, W. and VOGT, E. (ed.). Rea-ders in comparative rel ig ion: an anthropological approach. New York: Row, Peterson and Cia, 1958.
LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. São Paulo: Cia Ed. Nacional, 1970.
. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tem-po Brasi leiro, 1975.
LÉVY-BRUHL, Lucien. La mental i té pr imitive. Par is: PUF, 1960.
LEWIS, Michael. Alterando o destino . Por que o passado não prediz o futuro. Campinas/SP: Ed. moderna e Ed. Da Un i-camp, 1999.
LIBÂNIO, João. B. O Sagrado na Pós-Modernidade. In: CALI-MAN, Cleto. A sedução do Sagrado. O fenômeno rel ig ioso na virada do milênio. Petrópol is : Vozes, 1998.
LIMA VAZ, Henrique C. Rel ig ião e sociedade nos úl t imos vinte anos (1965-1985). Síntese nº 42,1988.
LOEWE, Michael and BLACKER, Carmen (ed.). Divination and oracles. Boulder,CO: Shambala, 1981.
LYONS, Albert S. Predicting the future. New York: Harry Abrams inc., 1990.
MAFFESOLI, Michel. O tempo das tr ibos . O decl ínio do indiv i-dual ismo nas sociedades de massa. R io de Janeiro: Foren-se-Universitár ia, 1987.
211
MAGNANI, José G. Esotér icos na Cidade: os novos espaços de encontro, vivência e culto. São Paulo em Perspectiva , 9(2), 1995.
. O Neo-Esoter ismo na Cidade. Revista USP, nº 31, São Paulo, 1996.
. Mystica urbe. Um estudo antropológico sobre o circuito neo-esotér ico na metrópole. São Paulo: Studio Nobel, 1999.
MALINOWSKI, Bronislaw. Magia, c iencia y rel ig ion. Barcelona, Ar iel , 1974.
MARTELLI, Stefano. A rel ig ião na sociedade pós-moderna. São Paulo: Paul inas, 1995.
MARTINS, Paulo H . As terapias alternativas e l iber tação dos corpos . In: VIII JORNADAS SOBRE ALTERNATIVAS RELIGI-OSAS NA AMÉRICA LATINA, São Paulo, 1998.
MAUSS, Marcel. Esboço de uma teor ia geral da magia. In: ______ .Sociologia e sociedade - vol. I. São Paulo: E.P.U., 1974.
MAYER, Jean-Fronçois. L 'évolution des nouveaux mouvements rel ig ieux: quelques observations sur le cas de la suisse . Social Compass 42(2), 1995.
MELO, Fabíola F. S. de. Feira Mística de São Paulo : construção, vivência e permanência de mitos na modernidade. São Paulo: PUC-SP, 1999. (relatór io f inal de pesquisa de inic i a-ção cient í f ica).
MENEZES, Eduardo Diatahy B. de. Novas formas de rel ig iosid a-de: a crença nas paraciências. Rel ig ião e Sociedade , 15/2-3, 1990.
MIRANDA, Mário de França. A volta do Sagrado. Uma aval iação teológica. Perspectiva teológica, 21, 1989.
MONOD, Jacques. O acaso e a necessidade. Petrópol is: Vozes, 1989.
MOORE, Omar K. Divination - A new perspective. American An-thropologist , 59, 1957, pp 69-74.
212
MORIN, Edgar et. al . O retorno dos astrólogos. L isboa: Moraes ed.,1972.
MORIN, Edgar. Para sair do século XX. Rio de Janeiro: Ed. No-va Fronteira, 1986.
. Introdução ao pensamento complexo. L isboa: Insti tuto Piaget, 1995.
NAVARRO, Pablo. A metáfora do “holograma social”. In: CAS-TRO, G. et al . Ensaios de complexidade. Porto Alegre: Ed. Sul ina, 1997, p. 261-271.
NEGRÃO, Lísias N. Refazendo antigas e urdindo novas tramas: trajetór ias do sagrado. Rel ig ião e Sociedade , v. 18, nº 2, dezembro de 1997.
NICOLESCU, Basarab. O manifesto da transdiscipl inar idade . São Paulo: Tr iom, 1999.
PEREIRA, Magda Viviane dos Santos. O universo místico -rel ig ioso da obra de Paulo Coelho na ótica de seu leitor. In: VIII JORNADAS SOBRE ALTERNATIVAS RELIGIOSAS NA AMÉRICA LATINA, São Paulo, 1998.
PESSIS-PASTERNAK, Guitta. Do caos à intel igência arti f ic ial : quando os cientistas se interrogam. São Paulo: Edunesp, 1993.
PESSOA, Jason B. Os deuses do acaso. O jogo divinatór io como expressão e conf luência de textos da cultura. São Paulo: PUC-SP, 1998. (dissertação de mestrado).
PETROSSIAN, Lena. A crença astrológica moderna. In: MORIN, E. et. al . O retorno dos astrólogos. L isboa: Moraes ed., 1972.
PIERUCCI, Antônio Flávio. Reencantamento e dessacral ização. A propósito do auto-engano em sociologia da rel ig ião. No-vos Estudos Cebrap , v. 49, pp. 99-117, 1997.
PRANDI, Reginaldo. As Artes da Adivinhação. Candomblé t e-cendo tradições no jogo de búzios. In: MOURA, Car los E.M. (org.) As senhoras do pássaro da noite: escr it os sobre a rel ig ião dos Orixás. São Paulo: Edusp, 1994.
213
PRIGOGINE, Ilya. O f im das certezas. São Paulo: Edunesp, 1996.
PRIGOGINE, Ilya e STENGERS, Isabel le. A nova al iança. Brasí-l ia: UnB, 1997.
RIBEIRO, Renato Janine. Razão e mistic ismo têm laços ignor a-dos. Folha de São Paulo , São Paulo, 2 ago. 1992. Caderno Mais, p. 6.
RIEDL, Ruper t. As conseqüências do pensamento radical. In: WATZLAWICK, P. (org.) A real idade inventada. Campi-nas/SP: Editor ial Psy II, 1994.
RODRIGUES, Nina. O animismo fetichista dos negros bahianos . Rio de Janeiro: Civi l ização Brasi leira, 1935.
RODRIGUES, Paulo Rober to G. Astrologia, meio ambiente e personal idade: um estudo empír ico. São Paulo: Insti tuto de Psicologia/USP, 1997. (dissertação de mestrado)
ROLIM, Francisco Cartaxo. Introdução . In: CNBB. A Igreja Ca-tól ica diante do Plural ismo Rel ig ioso III. Estudos CNBB nº 71. São Paulo: Paulus, 1994.
RUELLE, David. Acaso e caos. São Paulo: Editora da Unesp, 1993.
SAGAN, Car l . O mundo assombrado pelos demônios. São Paulo: Cia das Letras, 1996.
SCHLESINGER, Hugo e PORTO, Humberto. Dicionár io Encic lo-pédio das Rel ig iões . Petrópol is, R io de Janeiro: Vozes, 1995.
SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental. In: VELHO, O. (org.) O fenômeno urbano . Rio de Janeiro: Jahar ed., 1976.
SIQUEIRA, Deis. Psicologização das rel ig iões: rel ig iosidade e esti lo de vida . In: IX JORNADAS SOBRE ALTERNATIVAS RELIGIOSAS NA AMÉRICA LATINA, Rio de Janeiro, 1999.
SOARES, Luiz E.. Rel ig ioso por natureza: cultura alternativa e mistic ismo ecológico no Brasi l . In: . O rigor da discipl ina. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
214
SOUSA, Simone T. de. Feira Mística de São Paulo : anál ise de uma empresa do mistic ismo. São Paulo: PUC -SP, 2000. (re-latór io f inal de pesquisa de inic iação cientí f ica).
SOUZA, Luiz A. G. Secular ização em decl ínio e potencial idade transformadora do sagrado. Rel ig ião e Sociedade, 13/2, 1986.
STEWART, Ian. Será que deus joga dados? A nova matemática do caos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed, 1991.
TAMBIAH, Stanley J. The form and meaning of magical acts: a point of wiew. In: LESSA, W. and VOGT, E. (ed.). Readers in comparative rel ig ion: na anthropological approach. New York: Harper and Row Publ ic. , 1979.
TAVARES, Fátima R. G. Feiras Esotér icas e Redes Alternativas: algumas notas comparativas sobre os circ uitos car ioca e par isiense. In: IX JORNADAS SOBRE ALTERNATIVAS RELI-GIOSAS NA AMÉRICA LATINA, Rio de Janeiro, 1999.
TERRIN, Aldo Natale. Nova Era: a rel ig iosidade do Pós -moderno. São Paulo: Loyola, 1996.
. O sagrado off l imits. A exper iência rel ig iosa e su-as expressões. São Paulo: Loyola, 1998
THOMAS, Keith. O decl ínio da rel ig ião e da magia. São Paulo: Cia das Letras, 1991.
THOMPSON, Wil l iam Irwin. As impl icações culturais da nova biologia. In: THOMPSON, W. I. (org.). Gaia . Uma teor ia do conhecimento. São Paulo: Gaia, 2000.
TIRYAKIAN, Edward A. Toward the sociology of esoter ic cult u-re. In: American Journal of Sociology , 78: 498 s., nov 1972.
TRINDADE, Liana Salvia. Pensamento Esotér ico e Modernidade. In: XIX ENCONTRO ANUAL ANPOCS, Caxambú/MG, outubro 1995.
TURNER, Vic tor W. Divination as a phase in a social process. In: LESSA, W. and VOGT, E. (ed.). Readers in comparative rel ig ion: an anthropological approach. New York: Harper and Row Publ ic. , 1979.
215
VALLE, João Edênio R. Psicologia e exper iênc ia rel ig iosa. São Paulo: Loyola, 1998
VARELA, Francisco. O círculo cr iativo. Esboço histór ico -natural da ref lexividade. In: WATZLAWICK, P. (org.) A real idade inventada . Campinas/SP: Editor ial Psy II, 1994.
VERNANT, Jean-Pierre et al . Divination et rational i té. Par is: Seui l , 1974.
VILHENA, Luis Rodolfo. O mundo da Astrologia . Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 1990.
WATZLAWICK, Paul (org.) A real idade inventada . Campinas/SP: Editor ial Psy II, 1994.
ZUESSE, Evan M. Divination. In: ELIADE, M.(ed.). The Encyclo-pedia of Rel ig ion. New York and London:Macmil lan Pub, 1987.