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CAROLINA PERPÉTUO CORRÊA
“POR QUE SOU UM CHEFE DE FAMÍLIAS E O SENHOR DA MINHA CASA”: proprietários de escravos e famílias
cativas em Santa Luzia, Minas Gerais, século XIX.
Belo Horizonte
2005
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do titulo de Mestre em História.
Orientador: Prof. Dr. Douglas Cole Libby
2
Dissertação defendida e aprovada em banca examinadora pelos seguintes
professores:
:
_________________________________
Prof. Dr. Douglas Cole Libby
_________________________________ Profa. Dra. Hebe Maria Mattos
_________________________________ Prof. Dr. Tarcísio Rodrigues Botelho
Belo Horizonte 2005
4
Agradecimentos
O emprego da primeira pessoal do plural nesta Dissertação não é uma mera escolha
formal, ou a simples adesão a uma tradição acadêmica. Este Trabalho foi feito a partir da
dedicação de várias pessoas – sem as quais sua realização simplesmente não seria possível
– no entanto, quero chamar, inteiramente para mim mesma, toda a responsabilidade sobre
o seu conteúdo.
Tive o privilégio de ter como orientador, agora e desde a Monografia de
Bacharelado, o Prof. Douglas Cole Libby, a quem quero expressar os meus mais profundos
agradecimentos. Os rumos que tomou a Pesquisa estão intrinsecamente ligados às
inúmeras conversas que tivemos, após sua sempre criteriosa leitura das várias versões da
Dissertação. Sua confiança, sua total solidariedade, disponibilidade e interesse foram
fundamentais para o desenvolvimento do Trabalho.
Ao Prof. Tarcísio Rodrigues Botelho, que acompanhou a pesquisa desde a
graduação, gostaria de agradecer pela atenção e disponibilidade. Ao longo dos últimos
cinco anos, foi um conselheiro importante, indicando fontes e métodos de análise. Honrou-
me com a sua presença nas bancas de defesa da Monografia, ponto de partida desta
Dissertação, e do exame de qualificação.
Ao Prof. Eduardo França Paiva, pela leitura cuidadosa de uma primeira versão, e
pelas suas críticas quanto ao estilo, que me mostraram a importância de reescrevê-lo,
tornando-o mais agradável ao leitor.
A Bruno Lagoa Estanislau Pugschitz, bolsista de iniciação científica, que se tornou
também amigo e interlocutor. Compartilhou comigo as exaustivas viagens a Santa Luzia e
Sabará e efetuou grande parte do levantamento documental.
A Raphael Freitas Santos, colega de mestrado e de profissão, cuja ajuda me foi
preciosa em vários momentos. Estudioso de história de Minas, contribuiu com seu
conhecimento sobre documentação cartorial, auxiliou na elaboração de uma base de dados
em Microsoft Access para processamento dos inventários post-mortem (que acabou não
sendo utilizada para a dissertação, mas espero dê frutos em breve) e trabalhou no
levantamento dos inventários da Casa Borba Gato, em Sabará.
Aos professores João Antônio de Paula, Alexandre Mendes Cunha e,
especialmente, Marcelo Magalhães Godoy, que, através do Núcleo de Pesquisa em
História Econômica e Demográfica do CEDEPLAR, cederam-me, pelo período de um
ano, uma câmera digital para fotografia de documentos manuscritos e, mais importante,
colocaram-me em contato com o banco de dados da Lista Nominativa de 1831.
5
À minha mãe, minha professora de tantas maneiras. Além de muito me ensinar na
escola da vida, foi e continua sendo minha grande mentora em estudos de população. Com
ela aprendi quase tudo o que sei sobre métodos e técnicas demográficas, elaboração e
processamento de bancos de dados.
Ao meu tio Fernando Antonio Oliva Perpétuo, que fez com tanto carinho a revisão
do texto final.
Ao pessoal:
do Centro de Documentação e Informação da Cúria Metropolitana de Belo
Horizonte – CEDIC BH – especialmente à Bibliotecária responsável Maria Elizabeth
Miranda do Nascimento, por seu incrível interesse e boa vontade;
do Arquivo Casa Borba Gato/Museu do Ouro/IPHAN, Sabará – especialmente a
Carla Starling, pelo auxílio na leitura de documentos manuscritos inicialmente
indecifráveis;
do Arquivo Público Mineiro;
do Fórum e do Anexo do Fórum de Santa Luzia – com destaque para o Juiz Jair
Eduardo Santana.
À secretária do Centro de Estudos Mineiros, Maria do Carmo Verza Sartori.
À CAPES, que me concedeu uma bolsa de mestrado, no período março de 2004 a
fevereiro de 2005.
Ao CNPq, que financiou a pesquisa, através do projeto “O impacto do fechamento
do tráfico internacional de escravos sobre a família escrava na Paróquia de Santa Luzia,
Minas Gerais, 1818-1888”, coordenado pelo Professor Douglas Cole Libby.
À minha família, pelo apoio incondicional, paciência e respeito... Fico muito grata
a todos. Apesar de nem sempre compreenderem o que eu estava fazendo, ou a fase pela
qual estava passando, souberam perdoar as minhas ausências e torceram tanto para que
tudo desse certo. Muito obrigada por estarem ao meu lado e por todo amor que nos une.
Aos amigos Victor de Oliveira Pinto Coelho, Lucas Jório Vasconcelos, Mannuella
Luz Valinhas, Ana Luiza de Castro Pereira, Michelle Martins Freesz e Francisco Carlos
Cosentino.
6
“White folks do as they please, and the darkies do as they can”. De um velho ex-escravo que viveu no Sul dos Estados Unidos.
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .........................................................................................................................13
CAPÍTULO 1 - O ARRAIAL E SEUS HABITANTES .........................................................24
1.1 - Breve história de Santa Luzia..............................................................................................24
1.2 - Santa Luzia em 1831: o que nos ensinam as Listas Nominativas de Habitantes ................26
1.3 - Santa Luzia em 1872, segundo o Recenseamento Geral do Império: permanência e ruptura......................................................................................................................................................49
Tabelas: Capítulo 1......................................................................................................................58
CAPÍTULO 2 – SANTA LUZIA E O COMÉRCIO DE ESCRAVOS .................................66
2.1 – O debate historiográfico em torno da origem dos escravos de Minas Gerais.....................66
2.2 – O caso de Santa Luzia: os Registros Paroquiais de Batismo de Escravos Adultos como indicadores do volume do tráfico de escravos. ............................................................................78
Tabelas e gráfico: Capítulo 2.......................................................................................................93
CAPÍTULO 3 – FAMÍLIA ESCRAVA E POSTURA SENHORIAL: UM PASSEIO PELA
HISTORIOGRAFIA .................................................................................................................96
3.1 – Breve história da história da família escrava......................................................................96
3.2 – Família escrava e postura senhorial: dois pontos de vista ................................................101
CAPÍTULO 4 – FAMÍLIA ESCRAVA E POSTURA SENHORIAL: OS DADOS..........111
4.1 – Dois pesos e duas medidas: as vontades dos senhores e os matrimônios dos escravos....111
4.2 – Os padrões matrimoniais dos escravos de Santa Luzia ....................................................126
4.3 – Sedentarização e matrimônio............................................................................................139
4.4 – Nas teias de uma comunidade escrava..............................................................................144
Tabelas e gráficos: Capítulo 4 ...................................................................................................151
CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................................158
FONTES PRIMÁRIAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................161
ANEXO 1..................................................................................................................................168
ANEXO 2..................................................................................................................................171
8
Lista de tabelas
Tabela 1.1 - População, segundo condição social e cor/qualidade - Paróquia de Santa Luzia, 1831........................................................................................................................58
Tabela 1. 2 - População, segundo condição social , por sexo e área onde se localizam os fogos - Paróquia de Santa Luzia, 1831...............................................................................58
Tabela 1. 3 - Ocupação, por sexo e condição social - Paróquia de Santa Luzia, 1831................59
Tabela 1. 4 - População, por idade, segundo sexo e condição social - Paróquia de Santa Luzia, 1831........................................................................................................................60
Tabela 1. 5 - Chefes de fogo, segundo sexo e estado matrimonial - Paróquia de Santa Luzia, 1831........................................................................................................................61
Tabela 1. 6 - Ocupação de mulheres chefes de fogo, segundo cor/qualidade - Paróquia de Santa Luzia, 1831 ............................................................................................................61
Tabela 1. 7 - População escrava, por idade, segundo sexo e origem - Paróquia de Santa Luzia, 1831........................................................................................................................62
Tabela 1. 8 - População, segundo condição social, por sexo - Paróquia de Santa Luzia, 1872...63
Tabela 1. 9 - Crescimento da população - Paróquia de Santa Luzia, 1831-1872 ........................63
Tabela 1. 10 - Ocupação, por sexo e condição social - Paróquia de Santa Luzia, 1872..............64
Tabela 1. 11 - População, por idade, segundo sexo e condição social - Paróquia de Santa Luzia, 1872........................................................................................................................65
Tabela 1. 12 - Origem do escravos, por sexo - Paróquia de Santa Luzia, 1872 ..........................65
Tabela 2. 1 - Batismos de escravos adultos, por ano - Paróquia de Santa Luzia, século XIX.....93
Tabela 2. 2 - Cor/nação dos adultos batizados - Paróquia de Santa Luzia, século XIX..............94
Tabela 2. 3 - Comparação da Sazonalidade de Desembarque de Navios Negreiros no Porto do Rio de Janeiro e de Batismos de Escravos Adultos nas Paróquias de N. S. do Pilar do Ouro Preto e de Santa Luzia. ............................................................................94
Tabela 4. 1 - Origem da pai x origem da mãe de inocentes filhos de pai e mãe escravos(*) - Paróquia de Santa Luzia, 1817-1872 ...................................................................151
Tabela 4. 2 - Tipo de união dos pais de inocentes batizados, quanto à endogamia por naturalidade(*) - Paróquia de Santa Luzia, 1817-1872........................................151
Tabela 4. 3 - Estado matrimonial da população maior de 15 anos, por condição social - Paróquia de Santa Luzia, 1831............................................................................................152
9
Tabela 4. 4 - Estado matrimonial dos escravos maiores de 15 anos, por sexo e origem(*) - Paróquia de Santa Luzia, 1831.............................................................................152
Tabela 4. 5 - Cor/etnia das mães escravas de inocentes batizados (*) - Paróquia de Santa Luzia, 1817-1872 ............................................................................................................153
Tabela 4. 6 - Legitimidade de inocentes filhos de mães escravas, segundo origem da mãe(*) - Paróquia de Santa Luzia, 1817-1872 ...................................................................153
Tabela 4. 7 - Condição de inocentes filhos de mãe escrava - Paróquia de Santa Luzia, 1817-1872......................................................................................................................154
Tabela 4. 8 - Sexo dos inocentes alforriados na pia batismal - Paróquia de Santa Luzia, 1817-1872......................................................................................................................154
Tabela 4. 9 - Cor/etnia dos inocentes alforriados na pia batismal - Paróquia de Santa Luiza, 1817-1872 ............................................................................................................155
Tabela 4. 10 - Legitimidade dos inocentes alforriados na pia batismal - Paróquia de Santa Luzia, 1817-1872 ............................................................................................................155
10
Lista de Gráficos
Gráfico 2.1 – Batismos de escravos adultos, por ano, Paróquia de Santa Luzia, século XIX 95 Gráfico 4.1 – Percentual de assentos de batismo de inocentes filhos de mães escravas, em relação ao total do assentos, Paróquia de Santa Luzia, 1917-1872 156 Gráfico 4.2 – Origem das mães de inocentes batizados, Paróquia de Santa Luzia, 1917-1872 156 Gráfico 4.3 – Qualidade da informação quanto à legitimidade de inocentes batizados, Paróquia de Santa Luzia, 1917-1872 157 Gráfico 4.4 – Percentual de inocentes legítimos, segundo a condição da mãe, Paróquia de Santa Luzia, 1917-1872 157
11
RESUMO
Este trabalho busca investigar o impacto do fim do tráfico negreiro internacional sobre as posses escravistas de uma localidade mineira voltada para o mercado interno. Esta foi a razão da escolha, como palco da pesquisa, da Paróquia de Santa Luzia, Minas Gerais, que, embora tenha gozado de certa prosperidade, jamais esteve diretamente ligado à economia de exportação. Percebendo que a localidade ainda contava com numerosa população mancípia na década de 70 do século XIX, passamos a buscar compreender as estratégias dos senhores locais para manter ou ampliar seus plantéis, em um contexto de crescente pressão sobre o mercado de cativos. Perguntamo-nos principalmente acerca do papel do tráfico interno e da reprodução natural nestas estratégias senhoriais. Finalmente, investigamos as influências de tal processo sobre a vida familiar dos cativos, com ênfase na ocorrência do matrimônio formal. Trabalhamos com documentação variada, incluindo Registros Paroquiais de Batismo, duas contagens populacionais, documentação administrativa e cartorial. Não temos a intenção de ter encontrado respostas definitivas, mas acreditamos ter tocado problemas interessantes, questionando pontos de vista estabelecidos pela historiografia. Em primeiro lugar, acreditamos que a grande demanda de escravos das décadas de 30 e 40 do século XIX não ocorreu de modo uniforme em toda a Província. Regiões economicamente menos aquecidas, como Santa Luzia, teriam praticamente deixado de comprar escravos novos a partir dos anos 30, tendo a elite local se tornado progressivamente mais dependente da reprodução natural de seus escravos. Em segundo lugar, percebemos que os senhores locais não utilizaram o casamento formal de seus escravos como um incentivo à procriação. À medida que o século avança, cai gradualmente o índice de nupcialidade da população mancípia. O entendimento de que a relação senhor/escravo não estava pautada somente na racionalidade econômica, mas também em fatores políticos e morais, permitiu-nos compreender como a classe proprietária recorreu a tradições conjugais portuguesas, que já estavam em desuso entre os seus pares, para justificar ideologicamente sua postura frente aos casamentos de seus escravos. Finalmente, refletimos sobre várias transformações importantes que marcaram a sociedade mineira oitocentista. Tratamos de mudanças de atitude em relação à cor, ao significado da liberdade e do lento processo de sedentarização da população, relacionado, por sua vez, à adoção de novos padrões de moralidade.
12
ABSTRACT
The aim of this work is to investigate the impact of the supression of the transatlantic slave trade on slave holdings in the Parish of Santa Luzia, Province of Minas Gerais. The Parish was chosen due to its economic insertion: even though it was relatively prosperous, it had never been directly involved in the export market. We are especially concerned with the strategies adopted by local slave owners for maintaining or expanding their holdings in the context of rising slave prices and the role played in such strategies by both the internal slave trade and natural increase. We also examine the influences of this process on slave marriages. Parish baptism records, population counts and official correspondence are the most important sources used in the research. Although no definitive conclusions are reached, we believe we have succeeded in tackling some issues that, until now, have not been examined by scholars. Firstly, we have good reason to argue that the intense demand for newly imported slaves, purported by some to have taken place in the 1830s and 1840s, simply never took place in many parts of the Province. Regions (like Santa Luzia) where the economy wasn’t especially dynamic apparently had withdrawn from the international slave market as early as 1832 or 1833. From then on, slave owners probably grew increasingly dependent upon natural increase to maintain their work force. Secondly, we investigated whether slaveholders had stimulated the formalization of slave marriages as part of a strategy to achieve greater population growth. The answer is negative. Actually, the opposite seems to have taken place: as the nineteenth century progressed, the rates of formal slave marriage tended to decrease. Understanding that the attitudes of masters towards their slaves were not solely based on economic rationality, but also on moral and political factors, helps in comprehending the elite’s beliefs about slave marriages. As a way of ideologically justifying their acts, the owning class resorted to ancient Portuguese marriage traditions which, by the nineteenth century, were not considered suitable for the elite, but seemed good enough for their slaves. Finally, we address various transformations which society went through during the eighteen-hundreds, dealing with changes in attitudes about skin color, the meaning of freedom and the slow process of fixation of the population in the territory, which is also linked to the adoption of new moral standards.
13
Introdução
O século XIX foi marcado por um lento, mas contínuo, processo de
desmantelamento do escravismo brasileiro, o qual teve início com as discussões em
torno do fechamento do tráfico negreiro internacional, nas primeiras décadas do século,
e culminou com a abolição, em 1888. O nosso objetivo, no presente trabalho, é
investigar o impacto deste processo nas posses escravistas de uma localidade cuja
dinâmica econômica volta-se para o mercado interno.
De modo geral, acredita-se que a legislação que busca por fim à importação de
cativos africanos, em 1831, teria permanecido letra morta e que a compra de escravos
novos teria continuado até 1850, quando finalmente encerra-se de vez o contrabando. 1
A partir deste momento, teria se estabelecido um tráfico interno de escravos, sendo as
regiões menos aquecidas economicamente responsáveis por suprir a demanda por mão-
de-obra dos setores mais dinâmicos do Império.
Estudos recentes fizeram conhecer que os fazendeiros de áreas como Campinas,
com suas lavouras de café2, Campos dos Goitacazes, com seus engenhos de açúcar3, ou
as opulentas propriedades da região de São João del Rei4, efetivamente se abasteceram
de cativos novos enquanto foi possível. Sabe-se também que, durante a segunda metade
do século, senhores destas localidades tinham meios para arcar com os cada vez mais
altos preços de cativos e continuaram a adquiri-los no mercado interno.
São raros, todavia, os estudos sobre regiões de inserção econômica mais
modesta. Uma melhor compreensão dos rumos do escravismo no Brasil do Oitocentos
só será possível, portanto, com a ampliação das investigações, apoiadas em evidências
empíricas substanciais, sobre estas regiões economicamente “periféricas” – aquelas que,
com o fechamento definitivo do tráfico internacional, teriam se tornado fornecedoras de
1 FLORENTINO, 1997. RODRIGUES, 2000. 2 SLENES, 1999. 3 FLORENTINO; GÓES, 1997. 4 GRAÇA FILHO, 2002.
14
mão-de-obra escrava para as regiões mais dinâmicas. É esta a razão da escolha, para
palco da pesquisa, da Paróquia de Santa Luzia, localizada na região central de Minas
Gerais. Como veremos adiante, Santa Luzia experimentou alguma prosperidade ao
longo do período em tela, mas jamais integrou o grupo das áreas mais dinâmicas ou
ricas da Província, como também nunca teve vínculos imediatos com as atividades
exportadoras. Gostaríamos, principalmente, de saber em que medida conservou-se ali a
importância do escravismo, face às crescentes pressões a que é submetido o mercado de
cativos no desenrolar do século XIX. Teria a elite local logrado conservar um grande
contingente de escravos? Como e até quando teriam sido capazes de fazê-lo?
Nosso objetivo, enfim, é estudar as estratégias de manutenção das posses
escravistas dos senhores de Santa Luzia, no contexto do fechamento do tráfico negreiro
internacional, se é que elas foram de fato mantidas. Esta discussão, por sua vez, traz em
seu bojo a imposição da análise de dois aspectos inextrincáveis do escravismo
brasileiro: a questão da reprodução natural de populações mancípias no Brasil,
juntamente com a questão da família escrava.
Alguns estudos apontaram que, em certos mementos e regiões das Minas, em um
contexto de arrefecimento do tráfico, era possível que populações mancípias crescessem
via reprodução natural5. Teria este processo ocorrido em Santa Luzia? E em qual
período? Teriam os senhores locais, nas últimas décadas do XIX, procurado incentivar a
procriação de seus escravos, criando melhores condições para que os mesmos
formassem famílias? Faria tal postura parte de uma estratégia de manutenção das posses
de escravos em áreas pouco dinâmicas economicamente e que recorriam apenas
esporadicamente ao mercado de cativos? Acreditamos ter logrado responder, pelo
menos parcialmente, muitas destas perguntas no contexto do estudo que terão a
oportunidade de acompanhar a seguir.
O caráter local do estudo empreendido, é necessário advertir, não deve, ou pelo
menos não deveria, cegar quanto à sua abrangência. De fato, o recente aflorar, na
historiografia sobre o escravismo brasileiro, de uma série de questões novas e
15
instigantes, deveu-se, em maior parte, à proliferação de pesquisas feitas a nível local,
mas com vistas largas e indagações abrangentes. Mattos enfatiza “o papel estratégico da
diferenciação do espaço social no mundo escravista” e lembra que
“... as migrações e o tráfico interno são elementos essenciais a uma
compreensão histórica do período que recortes regionais excessivamente
rígidos impedem de considerar. Por outro lado, a diversidade regional da
sociedade escravista, durante o século XIX, se guarda elementos comuns,
traz também especificidades fundamentais, passíveis de serem abordadas
em conjunto apenas sobre o riso da superficialidade”6.
O movimento revisionista que se delineou a partir de década de 80 do século
XX, transformando profundamente os debates sobre o escravismo brasileiro, está
profundamente relacionado ao esforço de historiadores que reviraram arquivos e
exploraram fontes inéditas, empreendendo quase sempre estudos de caráter local. O
recorte geográfico restrito era ditado, muitas vezes, pela natureza mesma da
documentação, cuja manipulação enseja um trabalho lento e cansativo, tornando
inviável a adoção de marcos espaciais demasiadamente amplos. Em outras palavras,
pelo menos parte substancial da mudança historiográfica ainda em curso se deve a um
conjunto de pesquisas isoladas, mas que buscam inserir-se em um debate mais amplo.
Enfim, esperamos que este trabalho consista em mais uma contribuição capaz de
acrescentar mais uma peça ao quebra-cabeça do escravismo brasileiro.
Da base documental da pesquisa
Este trabalho foi realizado a partir de uma ampla base documental, que inclui
Registros Paroquiais de Batismo e duas contagens populacionais (as Listas Nominativas
de Habitantes de 1831-1832 e o Recenseamento Geral do Império de 1872), além de
outros tipos de documentação.
5 Ver Capítulo 2. 6 MATTOS, 1998, p. 18
16
Segundo Botelho, até a proclamação da República no Brasil, o clero foi
responsável “pela constituição e controle de registro de eventos demográficos”, atuando
como “simples funcionários civis”. Assim, sob a forma de registros paroquiais, ficou a
encargo da igreja a coleta de informação sobre nascimentos (batizados), casamentos e
óbitos. Ainda de acordo com este autor, tal documentação apresenta muitas lacunas no
período colonial, mas sua qualidade tende a melhorar no século XIX, devido ao
processo de organização do Estado nacional brasileiro, após a Independência. Minas
Gerais foi uma das províncias onde a melhora foi mais significativa, tendo o governo
mineiro primado pela ênfase na definição político-administrativa, organização do
aparelho burocrático e constituição de um sistema de fluxo de informações estatísticas.
A boa qualidade dos registros parece estender-se também à população cativa.
Estaremos trabalhando com os três livros paroquiais de registros de batismo
encontrados para Santa Luzia no século XIX7. A partir de 10.185 registros de batismo
de pessoas de todas as condições sociais, criamos uma base de dados em Microsoft
Excel; tendo sido anotadas, para cada caso, as seguintes informações: i) número do livro
de registros paroquiais; ii) número da ficha; iii) local de batismo8; iv) data do batismo
(dia, mês e ano); v) idade do batizando9; v) sexo do batizado10; vi) legitimidade do
batizando11; vii) cor/etnia do batizando, do pai, da mãe, do padrinho e da madrinha; viii)
7 Livros de Registro de Batismos, Paróquia de Santa Luzia, 1818-1833, 1833-1868, 1865-1888, pertencentes ao CEDIC (Centro de Documentação e Informação da Cúria Metropolitana de Belo Horizonte). 8 Encontramos mais de 100 locais de batismo diferentes, dentre igrejas, capelas, oratórios, casas e fazendas de particulares, localidades, freguesias. A imensa maioria dos batismos aconteceu na Igreja Matriz de Santa Luzia. Trataremos deste assunto com mais vagar adiante. 9 Os batizandos eram descritos pelos párocos como “inocentes” ou “adultos”. O primeiro termo se refere a crianças pequenas, que ainda não haviam atingido a idade de receber primeira eucaristia (em torno dos sete anos). Como pudemos observar a partir de alguns assentos de batismo nos quais consta também a data de nascimento, a maioria das crianças era batizada com menos de um mês de vida. Adultos eram todos aqueles maiores de sete anos de idade, mas na prática podemos afirmar com bastante segurança que a quase totalidade dos “adultos” consistia de cativos africanos recém-adquiridos. Algumas poucas vezes, escravos novos foram descritos como “de pouca idade”. 10 Masculino ou feminino, inferido a partir do prenome e, portanto, em alguns poucos casos nos quais o pre-nome era ilegível, desconhecido. 11 Se este era filho “legítimo”, ou seja, fruto de uma união sancionada pela Igreja Católica, ou “natural”. A questão da legitimidade é discutida de forma mais detalhada no Capítulo 4.
17
condição social do batizando, do pai, da mãe, do padrinho e da madrinha12; ix)
“informação sobre os pais consta no registro?”13; e, x) “pais do batizado pertencem ao
mesmo senhor?”, nos casos em que ambos os pais eram escravos. Além disto,
levantamos, na íntegra, os nomes dos batizados, pais, mães, padrinhos, madrinhas e do
senhor (quando o batizando era escravo).
Embora oficialmente o primeiro livro de batismos se inicie em 1818, existem
alguns assentos de períodos anteriores, sendo que o mais antigo deles data de 1777.
Estes, contudo, são muito esporádicos, e só passam a aparecer em maior número a partir
de 1817. Até o presente momento, levantamos os dados até 1886 (o último livro,
teoricamente, contém registros até 1888). Todavia, com a proclamação da Lei do Ventre
Livre, os batismos de ingênuos – quer dizer: filhos de mães escravas, nascidos a partir
do momento em que a lei entrou em vigor – passaram a ser anotados separadamente.
Este livro, infelizmente, se perdeu e, nos livros de que dispomos, só constam batismos
de crianças filhas de mães cativas até 1872. Assim sendo, para a análise estatística,
trabalhamos com os registros de batismo que foram feitos no período1817-1872.
Para o período 1817-1872, encontramos um total de 87 diferentes locais de
batismo. Mais da metade das cerimônias foi conduzida na Igreja Matriz de Santa Luzia
e o restante em várias outras igrejas e capelas (ver Anexo 1). Para a análise qualitativa,
excluímos os registros de batismo realizados em locais que, mais cedo ou mais tarde,
foram incorporados ou desmembrados da Paróquia de Santa Luzia e que, podemos
afirmar com bastante certeza, não tiveram o total dos batismos neles realizados
registrados na circunscrição administrativa que nos interessa. Foi o caso, por exemplo,
da Matriz de Nossa Senhora da Saúde da Alagoa Santa, da Capela de Matozinhos e da
Capela de Santo Antonio da Venda Nova. As igrejas, capelas, oratórios e pias batismais
12 A condição do batizando foi inferida a partir da condição da mãe, já que o cativeiro seguia o ventre. Pais, mães, padrinhos e madrinhas foram classificados como escravos, coartados ou forros, conforme indicado no registro. A não-informação foi considerada sinônimo de liberdade, embora o reduzido número de pessoas descritas explicitamente como libertas tenha despertado a suspeita de que devia haver ex-escravos dentre as pessoas para as quais não foi indicada a condição. Como os registros de batismo podiam ser utilizados em processos criminais como prova de propriedade, temos bastante certeza que a condição cativa era explicitada na imensa maioria dos casos.
18
erigidas em fazendas, sítios ou casas de particulares, mesmo quando não apresentavam
quantidade uniforme de batismos ao longo do período estudado, foram mantidas. Uma
exceção é a Capela de Jagoara, na qual eram realizados os batismos de escravos
pertencentes ao Vínculo de Jagoara, que foi excluída devido à quantidade
extraordinariamente alta de crianças escravas legítimas que ali receberam o sacramento.
Julgamos que, se incluídos na análise, os assentos de Jagoara elevariam artificialmente a
taxa de legitimidade geral, enviesando a análise14.
Filtrados os dados, primeiro por ano do batismo e depois por local de batismo,
restaram-nos 7.138 assentos, que foram aqueles utilizados para a análise quantitativa.
Devido à riqueza de informações que podem fornecer e à sua relativa
abundância, as Listas Nominativas de Habitantes constituem uma das principais fontes
para estudos demográficos sobre o Brasil, durante o período pré-censitário. Existem
dois conjuntos mais abrangentes de Listas Nominativas para a Província de Minas
Gerais: um para 1831/32 e outro para 1838/40. Organizados sob a responsabilidade dos
juízes de paz, em atendimento a solicitação do Governo Provincial, estes arrolamentos
objetivavam facilitar as deliberações da administração política para fins tributários,
político-administrativos, de recrutamento militar, etc.
Cada Lista é elaborada segundo os fogos e traz a relação nominal de todos os
membros de cada fogo. O termo fogo significa, na terminologia da época, uma unidade
doméstica, que abrigava todos os indivíduos subordinados a um chefe de família,
morassem eles ou não sob o mesmo teto. Um fogo podia, portanto, ser composto por
mais de uma casa. Isto acontecia principalmente nos casos em que um fogo
correspondia a um sitio, ou fazenda, e compreendia os moradores da casa principal, das
senzalas e das outras habitações existentes na propriedade. Assim, um fogo podia ser
composto por membros de ligados por relações de parentesco, mas também por
13 Esta variável foi criada como uma maneira de verificar com que freqüência o pároco anotava o nome do pai de filhos naturais. 14 Infelizmente, não dispomos de tempo ou condições para efetuar pesquisas sobre o Vínculo de Jagoara e o Recolhimento de Macaúbas. Esperamos poder investigar mais a fundo esses dois peculiares proprietários de escravos no futuro. Para algumas informações sobre o Vínculo, ver: Barboza, 1995.
19
escravos, agregados ou pessoas vinculadas por solidariedades e alianças variadas.
Estaremos utilizando aqui “domicílio” como sinônimo de fogo. Tal palavra significa,
segundo o Dicionário Aurélio, “casa de alguém; habitação física; lugar onde alguém
reside com ânimo de permanecer”. Para cada indivíduo, há informação quanto à cor,
condição (livre, escravo, liberto), idade, estado matrimonial, nacionalidade (para os não
brasileiros) e ocupações.
Estaremos trabalhando aqui com uma base de dados elaborada a partir de
informações coletadas das Listas Nominativas dos Habitantes da Província de Minas
Gerais de 1831/32, disponível no CEDEPLAR/UFMG15. A cobertura das mesmas é de
59% do total de distritos de paz da província de Minas Gerais, abarcando 242
localidades (entre as quais o Distrito de Paz de Santa Luzia).
O Recenseamento Geral do Império de 187216, por sua vez, é o primeiro
realizado em âmbito nacional e o único do período imperial e escravista, como salienta
Botelho17. Foram levantadas informações quanto à cor, a condição social, o estado
matrimonial, o sexo, a idade e a ocupação das pessoas em todo o território nacional.
Esta iniciativa do governo imperial, bem de acordo com o esforço da época em
conhecer e mapear o país, foi precedida de vários arrolamentos regionais de população,
mas é a primeira deste vulto a ser levada a cabo. Como iniciativa pioneira que foi, o
Recenseamento traz vários problemas18.
Um primeiro problema se refere à própria data de realização. Oficialmente todo
o levantamento censitário foi realizado na data prevista pela lei que o regulamentava (1o
de agosto de 1872), porém, na realidade, várias províncias enfrentaram dificuldades e
acabaram por realizá-lo em momento posterior. É o caso de Minas Gerais, onde o
recenseamento aconteceu somente em 1º de agosto de 1873, mas também de São Paulo,
15 Roberto Borges Martins, Marcelo Magalhães Godoy, Clotilde Andrade Paiva e Maria do Carmo Salazar Martins. Lista Nominativas de Minas Gerais, 1831-1832. Brasília, Instituto de Pesquisa Aplicada, 2001. Os originais manuscritos pertencem ao Arquivo Público Mineiro. 16 Diretório Geral de Estatística. Recenseamento da população do Império do Brazil a que se procedeu no dia 1º de agosto de 1872. Rio de Janeiro, Leuzinger & Filhos, 1873-1876. 17 BOTELHO, 1994. p. 27.
20
Mato Grosso e Goiás. Embora a maioria das províncias tenha entregado os dados
censitários na data estipulada, as poucas que atrasaram correspondiam a 38,42% das
paróquias existentes à época e abrigavam nada menos que 35,59% da população escrava
e quase 30% população livre do país. O fato do censo não ter sido realizado
simultaneamente em todo território aumenta em muito a insegurança dos dados, gerando
a possibilidade de erros, como, por exemplo, a dupla contagem. Quanto maior o tempo
de atraso de uma província, menos confiáveis, por conseguinte, os dados censitários
para o seu território.
No caso de Minas Gerais, o adiamento na realização do censo é tributário
principalmente da mudança da administração provincial, que impediu que as
providências fossem tomadas dentro do prazo oficial. Comissões censitárias só foram
nomeadas em setembro de 1872 e o material (boletins censitários ou listas de famílias)
só começou a ser distribuído em fevereiro do ano seguinte. Além do problema do atraso,
Minas Gerais, que em 1872 contava com 370 paróquias e 72 municípios, foi a província
com o maior número de paróquias omitidas. Não há dados para 14 paróquias (4% do
total), espalhadas por toda a Província.
Outra complicação é que, aparentemente, há subenumeração do grupo etário de
zero a um
ano, enquanto o grupo com mais de 100 anos parece extraordinariamente
numeroso. Os pesquisadores de hoje também encontram dificuldade em interpretar os
dados sobre as profissões, que à época foram agregadas em 35 modalidades, segundo
critérios obscuros.
Mais graves, todavia, são os erros de soma, ocorridos no momento de agregação
dos quadros paroquiais, para obtenção dos totais provinciais – a informação paroquial
era obtida a partir da compilação dos vários boletins ou listas de famílias. As listas
originais, contudo, desapareceram e os dados com o menor nível de agregação de que
dispomos são os mapas de população publicados para as paróquias, cujas informações
18 PAIVA; MARTINS, 1983.
21
não podem ser conferidas. Paiva e Martins, através dos quadros paroquiais,
recalcularam o total provincial, encontrando números substancialmente diferentes dos
publicados na época. A inexistência de uma base de dados, elaborada a partir de
arrolamentos detalhados de população, coloca várias limitações ao trabalho de
comparação dos dados de 1872 e com os da década de 1830. Outra dificuldade é a
ausência, nos dados tabulados na época, das categorias “sem informação” ou
“ignorado”, que sempre deixa no ar a dúvida quanto ao universo populacional abordado.
Vale a pena notar que, ao tratar da condição, os recenseadores de 1872 não
incluíram a categoria “libertos”, que constava em arrolamentos de população anteriores.
Como parece pouco provável que a Paróquia não abrigasse nenhum ex-escravo, parece
plausível inferir que a distinção social, entre pessoas que haviam nascido livres e
aquelas que apenas posteriormente haviam se tornado livres, tinha perdido muito de sua
importância naquele momento. Esta questão será discutida com mais vagar no corpo
deste trabalho.
Em segundo lugar, é relevante notar que, na análise da população estrangeira, a
comissão que elaborou o censo tenha prescindido das categorias raciais. Enquanto as
pessoas de origem européia eram descritas segundo o seu país de origem, aquelas
advindas da África não tinham sua região natal discriminada e vinham todas agregadas
sob o rótulo de “africanos”.
Além das fontes acima descritas, trabalhamos também com vários tipos de
documentos enviados pelas Câmaras Municipais e Juizes de Paz - de Santa Luzia e
localidades vizinhas - à Presidência da Província, dentre os quais se encontram ofícios,
róis de receita e despesa, relações de fábricas, estabelecimentos comerciais e engenhos,
além de cartas de denúncia.
Procuramos inventários post-mortem de senhores de escravos de Santa Luzia,
através de uma lista confeccionada a partir dos registros paroquiais de batismo.
Encontramos 31 processos no Anexo do Fórum de Santa Luzia e 53 na Casa Borba
Gato, em Sabará. Informações destes inventários consideradas relevantes foram
22
copiladas para fichas apropriadas, que se encontram prontas para análise19.
Infelizmente, constrangimentos quanto ao prazo para a defesa desta dissertação, e outros
relativos à sua extensão, não permitiram que esta documentação fosse explorada da
forma como havíamos aspirado fazê-lo. De qualquer maneira, o leitor observará que
alguns comentários puderam ser tecidos a partir do manuseio destes processos,
experiência esta que, sem dúvida, contribuiu para a confecção do presente trabalho.
Além disto, trabalhamos com o inventário post-mortem do Tenente Coronel Francisco
Lopes de Abreu, e com a Escritura Pública a ele anexada, documentos que permitiram o
estudo de caso das relações de parentesco entre os escravos em um grande plantel.
A dissertação foi dividida em quatro capítulos. No Capítulo 1, procuramos traçar
um breve panorama da história econômica e demográfica de Santa Luzia no século XIX.
Munidos principalmente das Listas Nominativas de 1831 e do Recenseamento Geral do
Império de 1872, buscamos perceber as rupturas e permanências na dinâmica
econômica da Localidade. Analisando a estrutura da população escrava local, e as
transformações sofridas ao longo do tempo, ensaiamos nossas primeiras especulações
sobre a inserção da Paróquia no comércio de escravos.
O Capítulo 2 lida com a questão do grau de dependência do tráfico negreiro
internacional por parte dos senhores de Santa Luzia. Fazemos, antes de tudo, uma
incursão no debate historiográfico em torno do papel do tráfico e da reprodução natural
em Minas Gerais – que tenta identificar os fatores que teriam levado a Província a
conservar, durante grande parte do século XIX, a maior população escrava do Brasil.
Procuramos, em seguida, tomar posição neste debate, analisando as evidências
empíricas para Santa Luzia. Trabalhos principalmente com registros paroquiais de
19 Foram também tiradas fotografias digitais de todos os inventários post-mortem do Cartório do Segundo Ofício disponíveis no Anexo do Fórum de Santa Luzia, que tenham sido produzidos dentro do período em tela e tenham escravos entre os bens descritos. Elaboramos, além disto, uma relação dos inventários do Cartório do Primeiro Ofício, que infelizmente só foram disponibilizados para consulta quanto já havia esgotado o prazo por nós estabelecido para fotografia de documentos em Santa Luzia. No Cartório do Primeiro Ofício de Notas de Santa Luzia encontramos cinco Livros de Notas (para os anos de 1852, 1857, 1860, 1867 e 1881), contento vários documentos relevantes para o estudo da escravidão, como, por exemplo, Cartas de Alforria e Escrituras de Hipoteca de Escravos. Não tivemos o tempo necessário para trabalhar esta documentação, mas tiramos fotografias digitais, que permitirão a sua futura utilização na ampliação desta pesquisa.
23
batismo de escravos adultos, tratados aqui como indicadores indiretos da aquisição de
escravos novos pela elite local.
No terceiro capítulo, introduzimos a discussão historiográfica em torno da
família escrava. Procuramos sintetizar o estado atual da pesquisa sobre o tema, traçando
os principais pontos discutidos pela historiografia recente, detendo-nos, com mais
vagar, nas abordagens empreendidas por Robert Slenes, Manolo Florentino e José
Roberto Góes, acerca das relações entre estratégias senhoriais e famílias cativas.
No quarto e último capítulo, buscamos pensar como as estratégias senhoriais de
manutenção de seus plantéis influíram na vida familiar dos seus escravos. Na verdade,
lidamos apenas com os dois aspectos da vida familiar dos cativos que nos pareceram
mais imediatamente sujeitos ao controle senhorial e que, além disto, podem ser
detectados na documentação: o matrimônio formal e concessão de alforrias a crianças
escravas de na pia batismal. As transformações nos padrões de nupcialidade de livres e
escravos, por sua vez, enseja uma discussão sobre a difusão e os significados atribuídos
pela elite ao matrimônio formal (tanto de seus pares livres quanto o de escravos). É
importante ter em mente que as escolhas senhoriais quanto à vida familiar de seus
cativos não eram ditadas somente por critérios de racionalidade econômica, e que a elite
se via forçada a buscar saídas morais para justificar o seu proceder. Esta consideração
levou-nos, então, a também fazer uma breve discussão sobre as mudanças sofridas nos
padrões morais da elite brasileira no decorrer do período em tela.
24
Capítulo 1 - O arraial e seus habitantes
1.1 - Breve história de Santa Luzia
Ninguém sabe ao certo, mas é possível que Santa Luzia já existisse nos
derradeiros anos do século XVII. Mais segura é a informação de que a Capela de Santa
Luzia fazia parte, até meados do século XVIII, da Freguesia de Roça Grande. Durante
boa parte do Setecentos, os moradores dos arraiais de Santa Luzia e Roça Grande
disputaram a prerrogativa de sediar a freguesia, com o primeiro ganhando o pleito, em
1744, ano em que uma provisão do Bispo Frei Dom João da Cruz para lá transferiu a
sede paroquial. Inconformados, os habitantes de Roça Grande decidiram recorrer da
decisão, escrevendo ao Desembargador do Paço da Bahia. A disputa se arrastou ao
longo de anos e somente em fins da década de 70 do século XVIII ficou confirmada a
transferência da sede paroquial para Santa Luzia.20
A obtenção desta regalia parece indicar que a povoação vinha prosperando,
tornando-se progressivamente mais importante, econômica e demograficamente.
Interessante é que Santa Luzia jamais fora um núcleo minerador, como haviam sido
vários dos povoados e arraiais mineiros surgidos e crescidos ao longo do Setecentos. O
lugarejo parece ter sido voltado para o abastecimento interno mesmo durante os anos
áureos da mineração, já que, numa relação elaborada em 1746 por Domingos Pinheiro,
Provedor da Fazenda Real, listando os mais ricos homens da capitania, constam 17
negociantes residentes em Santa Luzia, contra apenas seis moradores ligados à
mineração. O lugarejo teria representado o papel de entreposto comercial para a zona do
Serro e de Paracatu. Já em 1761, os moradores do Arraial dirigiam à corte uma petição
para sua elevação à categoria de vila, alegando que:
“... se acham já trezentos vizinhos e se continuam no aumento que estes,
juntos aos imediatos nos seus subúrbios, com famílias e fábricas, é
numerosos [sic] o povo, de sorte que, tendo o dito arraial, como na verdade
20 BARBOSA, 1995, p. 295-296.
25
tem, duas grandes igrejas, havendo nelas quatro, cinco ou mais missas, que
se dizem e que se enchem estas... que fora destas igrejas há mais cinco,
muito vizinhas e chegadas[ ..]. que tão bem como fica dito, passa por este
arraial a estrada tão famigerada como geral, de todos os sertões do grande
Rio São Francisco, Bahia, Pernambuco, e Maranhão, com infinito e
numeroso comércio para todas as Minas Gerais. Como também para as
minas de Paracatu e capitania de Goiás...”21
A situação de relativa prosperidade parece não ter mudado muito com a virada
do século, a se julgar pelo depoimento de José Vieira Couto, em suas “Memórias sobre
as minas da Capitania de Minas Gerais”, de 1801:
“... lugar populoso e brilhante, e que deve seu melhoramento atual (coisa
rara!), aos arraiais de minas, às suas lavras e a ser, além disto, por causa
da sua situação natural, um pequeno empório, onde vem surtir-se de alguns
gêneros pertencentes ao comércio, muitos negociantes de Paracatu e
Serro”22.
Dezesseis anos depois, Saint-Hilaire batia na mesma tecla, indicando que Santa
Luzia tinha população e atividade comercial significativas:
“Existe em Sabará um grande número de tabernas, algumas lojas de
comestíveis e fazendas; e, na rua chamada do Fogo há várias casas onde se
vende exclusivamente o toucinho. Como já disse, a Comarca de Sabará se
limita ao seu consumo interno e esta Vila não exporta produtos da lavoura,
nem da indústria. As relações mercantis dos arredores fazem-se na aldeia,
muito florescente de Santa Luzia, que, situada a 3 léguas de Sabará,
próxima ao Rio das Velhas e à entrada do Sertão, é o verdadeiro entreposto
desta última região.” 23.
21 BARBOSA, 1995. p. 295, 296. 22 BARBOSA, 1995. p. 295. 23 SILVA. In: PAIVA; LIBBY (Org,), 2002. v 2, p. 161.
26
Em 1818, ano inicial do livro de registros paroquiais de batismo que dá origem a
esta pesquisa, os habitantes escreveram um segundo requerimento solicitando elevação
do arraial à categoria de vila, novamente negada. Apenas em 1847 foi criado o
município e vila de Santa Luzia, desmembrado de Sabará, compreendendo as paróquias
da Sede, de Lagoa Santa, Matozinhos e Santa Quitéria (hoje, Esmeraldas) 24. Todavia,
reformas administrativas - a que já nos referimos ao tratarmos das fontes - haviam
começado na década de 20 daquele mesmo século e os distritos que integraram a
Paróquia variaram bastante, em um autêntico “jogo de caxangá”, parodiando a
espirituosa colocação de Afonso de Alencastro Graça Filho, ao se referir às confusões
que também cercaram a composição administrativa da Vila de São João del Rei ao
longo do Oitocentos25.
1.2 - Santa Luzia em 1831: o que nos ensinam as Listas Nominativas de Habitantes
No ano de 1831, foi elaborada a mais rica fonte para o estudo da população de
Santa Luzia de que dispomos - a Lista Nominativa de Habitantes do distrito - e é dela
que nos servimos para tentar esboçar um retrato da localidade naquele ano.
Sabemos que o distrito era composto por 662 fogos, que abrigavam 4230
pessoas (ver ANEXO 1). Destas, apenas oito pessoas aparecem classificadas como
forras, enquanto não há informação sobre a condição de quase 58% da população.
Apesar de, em um primeiro momento, termos pensado em atribuir a condição livre à
totalidade destes indivíduos (o que comumente é feito em estudos sobre os períodos
colonial e imperial), após um exame mais detido da documentação achamos mais
adequado considerar que, entre aqueles para os quais não havia informação, havia
certamente um número razoável de forros.
Mesmo no século XVIII era freqüente que escrivãos e capelães, apesar da
importância que a condição social das pessoas tinha na ordenação da sociedade,
deixassem de explicitar a condição de alforriado, embora o mesmo não ocorresse com
24 COSTA, 1997. p. 378. 25 GRAÇA FILHO, 2002.
27
relação aos cativos26. Todavia, o início do século XIX parece ter assistido a uma
atenuação das fronteiras que de forma bastante clara, no Setecentos, separavam livres e
libertos 27. Parecia importar mais a distinção entre pessoas escravas e não-escravas do
que se aquelas pertencentes à última categoria tinham nascido livres ou não. Tratando
da população liberta da Paróquia de São José del Rei, de 1750 a 1850, Libby e Graça
Filho afirmam:
“No Brasil, as mais de três décadas e meia separando nossos dois censos
[1795 e 1831] foram marcadas por profundas transformações políticas
cujas conseqüências sociais e culturais ainda não foram plenamente
exploradas pela historiografia. As atitudes com relação à condição legal e
à raça dos indivíduos estavam passando por mudanças consideráveis,
embora os estudos encontrem-se ainda em um estágio incipiente. Em
consonância ou não com a premente necessidade de consolidar o Estado
brasileiro junto aos seus cidadãos, o fato é que, na São José de 1831, a
distinção entre o nascido livre e forro havia perdido boa medida de sua
importância. Por mais limitado em termos de sufrágio que possa ter sido,
para o sistema eleitoral emergente a única distinção válida parece ter sido
entre livre e escravo – ainda que nem todos tenham nascido sem a mancha
da escravidão.”28
Julgamos pertinente, portanto, daqui em diante, classificar a população de Santa
Luzia em apenas duas categorias: livres (livres, libertos e sem informação) e escravos.
26 LIBBY; BOTELHO, Tarcísio R. “Filhos de Deus, p. 73. Segundo estes autores, “... é importante lembrar aqui que na transcrição dos registros [de batismo da Paróquia de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto] considerou-se a ausência de uma qualificação como indicação de que o indivíduo em questão era livre. Não obstante, ao examinar cada registro, os autores verificaram que nem sempre a condição de forra foi devidamente anotada pelos clérigos. Desta forma, uma mesma mãe (ou pai, ou até mesmo proprietário) aparecia como livre em um batismo, mas como forra em outro. [...] É sintomática da mobilidade social que tanto marcou o Setecentos mineiro que nem sempre os párocos e capelães se importavam em registrar a condição de alforriado de seus paroquianos. Por outro lado, é também característica da sociedade colonial que a condição de cativeiro nunca deixou de ser anotada nos registros envolvendo mães, pais e batizados escravos”. 27 LIBBY; GRAÇA FILHO, 2003. p. 112-151, p. 119. 28 LIBBY; GRAÇA FILHO, 2003., p. 119.
28
Dentre a categoria dos escravos a Lista aponta encontrarem-se dois coartados29,
um homem e uma mulher. Embora a coartação tenha sido bastante difundida durante o
período colonial, especialmente nos espaços urbanos mineiros, aonde forros e escravos
transitavam e as informações sobre “alforrias conquistadas e acordos efetivados”
circulavam30, é provável que, no início da década de 30 do século XIX, esta forma de
obtenção da manumissão fosse pouco comum. É bom lembrar que as listas datam de
novembro de 1831, mesmo mês em que era editada a lei que oficialmente encerrava o
comércio de escravos africanos para o Brasil31, e que a crença de que a letra legal viesse
a valer criou o temor de uma grave falta de braços no futuro próximo. Esta insegurança
teria certamente desestimulado em grande medida as alforrias nos últimos anos da
década de 20 e início da década de 30, explicando assim o reduzido número de
indivíduos designados na Lista como coartados. Vale ressaltar que embora a lei tenha
ficado no papel, e que em algumas partes do Brasil o contrabando de escravos tenha
continuado de forma intensa até 1850, em Santa Luzia, como em outras localidades
mineiras, aparentemente o mesmo não ocorreu, como veremos no capítulo seguinte.
Praticamente toda a população de Santa Luzia (em torno de 90%) tinha sangue
negro em suas veias (ver Tabela 1.1). Apenas uma pequena minoria foi descrita como
branca, sendo metade da população descrita como parda ou cabra. O segundo grupo
mais numeroso era o de crioulos, que representavam quase um terço dos moradores do
arraial, seguidos dos africanos, quase todos escravos. Apenas brancos foram
explicitamente descritos como livres, embora, obviamente, muitas pessoas de cor, para
as quais não há informação sobre a condição, também o fossem. Os descritos como
brancos são minoria entre aqueles para os quais falta informação sobre a condição
social, enquanto os pardos são a imensa maioria. Do reduzido número de pessoas
29 Coartação era o pagamento parcelado pela alforria, por parte do escravo ou de terceiros. PAIVA, 2001. p. 25. 30 PAIVA, 2001. p. 36. 31 Quando o Brasil foi declarado independente de Portugal, a Inglaterra condicionou o reconhecimento do novo País à extinção do tráfico negreiro internacional. Em novembro de 1826, foi firmado um tratado anti-tráfico, no qual se determinava que o tráfico de escravos se tornaria ilegal no Brasil três anos após a ratificação do documento pela Inglaterra. A ratificação ocorreu em maio de 1827, e, em 07 de novembro de 1831, entrou em vigor a lei que proibia a importação de escravos. Ver FLORENTINO, 1997. p.41-43, e NEVES, 1996.
29
descritas como forras, cinco eram crioulas e três africanas. O grupo mais numeroso
entre os escravos eram os crioulos, seguidos pelos africanos. Depois vinham os cabras,
mas em número proporcionalmente muito inferior ao de crioulos e africanos e, por
último, os pardos.
É bastante significativo que os pardos, entre a população que aqui tratamos por
livres (livres, libertos e sem informação), e os crioulos, entre os cativos, fossem maioria.
Lembramos que “a noção de ‘cor’, herdada do período colonial, não designava,
preferencialmente, matizes de pigmentação ou níveis diferentes de mestiçagem, mas
buscava definir lugares sociais, nos quais etnia e condição estavam indissociavelmente
ligadas.”32. Assim, “preto” e “negro” faziam sempre referência à condição cativa,
presente ou passada, das pessoas que designavam. Da mesma forma, “pardo”, ao
descrever pessoas livres, significava antes “não branco” que mulato ou mestiço.
“Branco” era qualificativo apenas para indivíduos nascidos livres e cujos ascendentes
não traziam a mancha da escravidão33. Desta forma, duas pessoas com o mesmo tom de
pele e características físicas semelhantes, teriam sua “cor” descrita de maneira diversa
de acordo com a sua condição. Vale lembrar que este padrão cultural sofreria, ao longo
do Oitocentos, mudanças significativas, em um movimento análogo ao que ocorria com
a atitude frente aos alforriados. Esta transformação culminaria com o desaparecimento
da indicação da cor das pessoas na documentação, o que “antes de significar apenas
branqueamento, era um signo de cidadania na sociedade imperial, para a qual apenas a
liberdade era precondição”34.
Esta mudança de perspectiva em relação à cor das pessoas fica ainda mais
evidente nos registros paroquiais de batismo, aonde, algumas vezes, foi atribuída uma
cor ao batizando na margem externa da folha, logo abaixo de seu nome, e outra,
diferente, no corpo do texto do assento. Igual coisa ocorre com alguma freqüência nos
inventários, sendo um mesmo cativo, ou cativa, descrito de uma forma no momento da
avaliação e de outra em diferentes partes do processo, como petições, requerimentos,
32 MATTOS, 1998. p. 98, 99. 33 MATTOS, 1998 p. 98, 99.
30
certidões, etc. Vale notar que, em ambos os tipos de documentação, apenas os
designativos “crioulo”, “pardo” e “cabra” eram intercambiáveis. Em outras palavras,
não encontramos casos em que indivíduos descritos por “cores” que assinalavam seu
nascimento no Brasil fossem, em outro momento, classificados como africanos (ou de
alguma nação africana). Aparentemente, as expressões “preto” e “negro” que, no século
XVIII, remetiam à origem africana, no século XIX, parecem simplesmente aludir à
condição de escravo.
Esta preponderância de pessoas de cor no arraial, que tinham uma ligação mais
próxima ou mais distante com ascendentes oriundos da África, vem reforçar a nossa
convicção da importância do estudo da escravidão, e mais especificamente da família
escrava, na região. Afinal, a cultura e a sociabilidade da imensa maioria dos habitantes
sofreram a influência, em um momento mais longínquo ou mais próximo no tempo, de
crenças, costumes, hábitos, tradições e maneiras de encarar o mundo, ligados ao
Continente Africano e passados adiante no seio da família cativa. Ascendentes vindos
da África como escravos, há pouco ou desde os primórdios do tráfico negreiro, tinham
sido agentes importantes no intenso trânsito cultural que, misturando heranças
européias, americanas e africanas, tornava aquela população o que ela era no momento
em que a estudamos.
O peso dos escravos na população de Santa Luzia era bastante significativo, em
1831 (ver Tabela 1.1), quando cerca de um terço de todas as pessoas ali residentes eram
cativas. E esta importância fica mais evidente se contextualizada. Para se ter uma idéia,
em 1835, apenas quatro dos 36 municípios mineiros logravam conservar uma população
cativa maior que 40% de seu total populacional. É uma proporção também muito
próxima dos 38,5% encontrados para a próspera Vila de São José, no ano de 1831, por
Libby e Graça Filho35. Uma participação relativamente alta de escravos em uma dada
população pode ser um indicador importante de dinamismo econômico, pois somente
localidades nas quais haja um grau razoável de mercantilização são capazes de angariar
34 MATTOS, 1998 p. 98, 99. Para um maior detalhamento desta discussão ver o Capítulo V desta obra. 35 LIBBY; GRAÇA FILHO, 2003. p.117.
31
recursos suficientes para adquirir e conservar mão-de-obra cativa. Assim sendo, parece
que Santa Luzia experimentava uma relativa prosperidade na década de 1830. Tais
evidências vão ao encontro das afirmações de Barbosa36, de que o arraial de Santa Luzia
teria se constituído, desde seus primórdios, em um núcleo voltado para mercados locais
e sem ligação direta com a economia exportadora, mesmo durante o auge da mineração,
tendo se formado enquanto um entreposto comercial para o norte da província.
Vale lembrar, todavia, que no século XIX, mesmo as cidades mais urbanizadas e
voltadas para o comércio, como a promissora São Paulo da década de 40, ainda
guardavam certas características de comunidade rural37. Mais que isto, é provável que as
vilas e arraiais mineiros do Oitocentos fossem compostas de uma área central, mais
urbanizada, aonde se concentrariam as lojas e casas comerciais e de arredores mais
ruralizados, compostos por chácaras e fazendas. Contudo, poucos são os estudos sobre
este assunto e distinguir entre o que era urbano e o que era rural permanece uma tarefa
ingrata para o estudioso do século XIX.
Temos, é preciso dizer, sorte neste sentido. Um cruzamento da Lista Nominativa
de Habitantes com a “Rellação dos fogos que contêm o município da Fidelíssima Villa
de Sabará”, a qual indica se os fogos listados situavam-se “na povoação” ou fora dela,
permitiu a elaboração de um estudo38 que divide o distrito de Santa Luzia em três zonas:
urbana, suburbana e rural. Embora esta divisão não existisse formalmente na época, ela
pode ser bastante útil ao historiador, auxiliando na compreensão da dinâmica econômica
local. Os fogos urbanos, que são os 392 primeiros fogos arrolados na lista,
correspondem a 60% do total. Dos fogos restantes, três quartos se encontravam em uma
faixa de transição entre o universo urbano e o rural, aqui tratada como zona suburbana,
compondo os demais a zona propriamente rural. A existência de perfis claramente
distintos entre os fogos situados em cada uma destas três zonas confirma a
plausibilidade de tal divisão.
36 BARBOSA, 1995. p. 295. 37 SAMARA, 1989. p. 33. 38 SILVA, 2002. v 2, p. 161.
32
Retomando o assunto da participação dos escravos na população, notamos que
ela aumenta progressivamente da zona urbana em direção à rural; com o campo, onde os
escravos eram maioria, empregando proporcionalmente quase duas vezes mais cativos
que a cidade (ver Tabela 1.2). Esta maior concentração de mão-de-obra escrava no
campo é ainda mais acentuada no caso dos homens cativos, que, na zona rural
constituem o estrato populacional mais numeroso, e, em contrapartida, têm na área
urbana a menor participação na população total. Ou seja, a zona rural demandava mais
mão-de-obra cativa que a urbana, e mais especificamente, mão-de-obra cativa
masculina.
A posse de escravos, proporcionalmente ao total de domicílios, era mais
freqüente nas zonas urbana e rural, nas quais cerca de 30% das unidades abrigavam
cativos, contra apenas 20% na área suburbana39. De modo geral, cativos estavam
presentes em quase 30% de todos os fogos. Esta porcentagem é muito próxima da
participação dos escravos no total populacional, o que parece corroborar a hipótese,
levantada anteriormente, de que, entre a parcela da população para a qual não havia
informação quanto à condição social, não se encontrava um número significativo de
cativos.
Embora não disponhamos de dados relativos ao tamanho das posses, podemos
ter uma idéia da estrutura da posse de escravos no Distrito, analisando a distribuição da
população escrava, segundo os fogos40. Notamos que um grande número de fogos tinha
população escrava residente, ou seja, que a propriedade de escravos era acessível a uma
quantidade razoável de pessoas. Entretanto, a maioria dos cativos do distrito – 950
pessoas ou 67% - viviam em fogos médios e grandes, que representavam pouco mais de
17% de todos os fogos que abrigavam população cativa no distrito. Os fogos
classificados como menores, que correspondiam a 82% de todos os fogos com escravos,
39 SILVA, 2002. v 2, p. 166, 167.
40 Os fogos que contavam com de um a nove cativos representavam a grande maioria (82% de todos os fogos onde residiam escravos) e eles concentravam um terço da população cativa do distrito. 14% de todos os fogos onde havia escravos continham de 10 a 50 cativos, sendo responsáveis por 30% de todos os escravos. Apenas seis fogos (em torno de 3% daqueles com presença de cativos) abrigavam mais de 51 escravos, sendo que o
33
abrigavam aproximadamente 33% dos mesmos. A propriedade de escravos era mais
concentrada na área rural que na urbana, sendo que na primeira a maioria dos escravos
vivia em unidades com mais de dez cativos, enquanto na segunda predominavam as
pequenas posses.
A análise das ocupações dos habitantes do Distrito (Tabela 1.3) parece
corroborar a hipótese de uma economia dinâmica, voltado para o artesanato e o
abastecimento interno. Encontramos uma grande variedade de ocupações41, dentre as
quais vários ofícios ligados ao artesanato (alfaiate, sapateiro, carapina, seleiro, valeiro,
santeiro, para citar apenas alguns) e uma relativa diversificação profissional, com
presença de eclesiásticos, vários músicos, quatro boticários, dois cirurgiões, dois juizes
de vintena, e até floristas.
Havia também dois professores e 97 estudantes de idade entre seis e 21 anos,
sendo que destes apenas uma era do sexo feminino. Estudante era, de fato, a ocupação
mais comum entre os indivíduos livres do sexo masculino. Em um ofício de 18 de
fevereiro de 1826 e em outro de 15 de março de 1828, a Câmara de Sabará escrevia ao
Conselho de Governo da Província a respeito do estado da educação pública no Termo.
Em ambos os documentos, afirma-se existirem ali apenas quatro mestres. Dois deles
atuavam na Vila de Sabará, um ensinando primeiras letras e, o outro, gramática latina.
Santa Luzia era a única outra povoação aonde havia um mestre de primeiras letras ativo,
ensinando ‘a mocidade’. O quarto mestre vivia no Curral del Rei, mas nos dois
documentos diz-se que era já muito idoso, enfermo e sem instrução suficiente para “dar
magistério”, razão pela qual não tinha quase nenhum aluno.42
fogo com maior número de escravos contava com 164 almas desta condição. Estes grandes fogos, todavia, concentravam 37% da população escrava. Ver CORRÊA, 2002. p. 24, 25. 41 Não há informação sobre a ocupação de em torno de 30% dos habitantes. Isto não parece comprometer, todavia, a qualidade da informação para esta variável, já que exatamente a mesma proporção das pessoas ali residentes tinha 15 anos ou menos (como será mostrado mais adiante), ou seja, ainda não estava em idade de trabalhar. De fato, 82% das pessoas para as quais não há informação sobre a ocupação tinham menos de 19 anos. Havia, além disto, a população idosa ou inválida. 42 Arquivo Público Mineiro, Fundo Presidência da Província, PP1/33, caixa 227, documentos 40 e 60.
34
Dentre as ocupações diversas, a mais importante era “fiadeira”, que era abraçada
por um quarto de todos os moradores de Santa Luzia. Tratava-se de uma ocupação
essencialmente feminina, e a ela se dedicavam metade das mulheres livres e
praticamente um terço das escravas. Alguns homens também foram classificados como
fiadeiros, mas seu número era bastante reduzido se comparado ao de mulheres: apenas
30 indivíduos, de todas as faixas etárias. Várias outras pessoas se dedicavam, todavia, a
ofícios relacionados a fiar, tecer e coser e as profissões de fiadeira, tecelão, alfaiate,
costureira e rendeira somadas eram abraçadas por nada menos que um terço dos
habitantes. Alfaiate era uma das ocupações mais freqüentes entre homens livres e,
costureira, depois de fiadeira, era a mais importante entre mulheres desta mesma
condição.
Na verdade, a importância das atividades ligadas à indústria têxtil doméstica em
Santa Luzia se coaduna perfeitamente com a realidade provincial.43 A tradição mineira
na produção de fio e pano nascera no período colonial, estimulada pelo isolamento
geográfico e facilidade de cultivo do algodoeiro. Nas primeiras décadas do século XIX,
a indústria têxtil doméstica havia se tornado a “atividade de transformação mais
importante da Província”44.
Na maioria dos povoados e fazendas mineiros, quase todas as mulheres, tanto
livres quanto escravas, fiavam algodão e muitas delas faziam tecidos e roupas. É
possível que houvesse centros especializados na produção de fio, outros na confecção
de artigos acabados, como roupas e chapéus, enquanto alguns exportavam algodão em
rama. Assim sendo, a produção doméstica de tecidos de algodão não dependia do
43 LIBBY, 1988. É possível que em meados do Setecentos parte da produção já fosse comercializada e no ano de 1775 a produção têxtil doméstica já adquirira vulto o suficiente para inquietar o Governador Antonio de Noronha, que alertava as autoridades metropolitanas sobre o perigo da independência mineira na manufatura de fios e tecidos, que faziam séria concorrência às fazendas européias. Dez anos depois entrou em vigor um alvará que tornava ilegal a manufatura de qualquer tipo de tecido na colônia, com a exceção do tecido de algodão grosseiro. De qualquer forma, embora tecidos mais finos também fossem manufaturados, o pano grosseiro, muito utilizado para vestimentas de escravos e empacotamento de produtos diversos, parece ter sido o carro chefe da produção mineira oitocentista, que pouco deve ter sofrido com a promulgação do alvará. Além disto, o fato de que nenhum empecilho tenha sido colocado à comercialização deste tipo de tecido parece indicar a compreensão por parte da Coroa da inviabilidade de suprir a demanda mineira com panos semelhantes importados da Europa. 44 LIBBY, 1988. p. 186.
35
cultivo da planta nas proximidades. Provavelmente foi este o caso de Santa Luzia, para
o qual, embora tenhamos encontrado um grande contingente populacional trabalhando
na produção têxtil, jamais nos deparamos, durante a leitura dos inventários post-
mortem, com a menção de plantio do algodoeiro. Sant-Hilaire observava, em 1819, que
o cultivo de algodão era comum nas fazendas da região do Alto-Paranaíba, nas
redondezas de Paracatu45. Como sabemos que Santa Luzia mantinha relações
comerciais, desde o século XVIII, com aquela região, podemos especular que dali
viesse boa parte do algodão beneficiado em nosso Arraial.
Outras características da produção têxtil doméstica em Santa Luzia guardam
grandes similaridades com o que se conhece sobre esta atividade em termos regionais,
na mesma época. Assim como em Santa Luzia, em vários distritos da Provìncia, as
fiadeiras eram a categoria profissional mais numerosa, nas décadas de 1830 e 40. A
imensa maioria das pessoas ocupadas em fiar e tecer eram mulheres, livres ou escravas,
com os homens tendo uma participação pouco expressiva. As fiadeiras eram muito mais
numerosas que as tecedeiras, devido à própria natureza manual do empreendimento. A
produção têxtil envolvia mulheres de várias condições, extratos sociais e idades, tendo-
se constituído no “grande nivelador da sociedade mineira”46. Eram freqüentes fogos em
que todas as mulheres adultas ocupavam-se de tecer ou fiar, mesmo entre as camadas
mais abastadas. Todavia, como em Santa Luzia, o trabalho livre parece ter sido
majoritário e, em todas as Minas Gerais, pouco menos de um quarto das trabalhadoras
em tecidos eram escravas47. Por outro lado, uma parcela substancial das cativas
dedicava-se ao serviço doméstico, dando às mulheres livres mais tempo para as
atividades têxteis.
Se a maior parte das mulheres estava engajada na produção têxtil, a maioria dos
homens livres, se excluirmos os estudantes, eram negociantes, jornaleiros ou lavradores.
A grande quantidade de jornaleiros indica que estava ocorrendo um processo de
proletarização da população livre, não obstante o papel fundamental do escravismo
45 LIBBY, 1988. p. 195. 46 LIBBY, 1988. p. 198.
36
naquela sociedade. O comércio era uma ocupação praticamente exclusiva dos homens
livres: apenas uma mulher foi descrita como negociante e nenhum escravo mantinha tal
condição. O mesmo se dá com a profissão de caixeiro: dos 14 existentes, 13 eram
homens livres. Havia ainda 16 tropeiros livres e três cativos. Embora não existam
indícios de que a mineração fosse uma atividade de vulto, parece que ela era praticada
em pequena escala e principalmente por indivíduos livres do sexo masculino. Assim,
três livres e um escravo trabalhavam como mineiros, enquanto 13 livres e 10 escravos
foram descritos como faiscadores.
Além disto, várias outras profissões eram exercidas prioritariamente por homens
livres. Era o caso de vários ofícios mecânicos, como latoeiro, ferrador, pintor, santeiro,
peneireiro, telheiro, chapeleiro, fogueteiro e imaginário, assim bem como de profissões
que demandavam alguma instrução nas letras, como cobrador, professor, escrivão, juiz
de vintena e procurador. Também apenas livres foram encontrados nas ocupações de
carniceiro e toucinheiro, músicos, boticários e cirurgiões. Todavia, pode-se especular
que escravos desempenhassem algumas das ocupações que foram atribuídas somente a
livres, mas que elas fossem apenas uma dentre as suas várias funções. Assim, é possível
que um escravo classificado como “empregado de fazenda” ou “jornaleiro”48, por
exemplo, tivesse, entre suas incumbências as ocupações de ferrar cavalos, fazer
peneiras, telhas ou preparar toucinho.
A imensa maioria dos escravos do sexo masculino trabalhava na lavoura. Uma
outra quantidade significativa dedicava-se ao serviço doméstico. Os escravos
desempenhavam também uma série de ofícios mais especializados, como alfaiate,
sapateiro, carapina, ferreiro, pedreiro ou barbeiro. A julgar pela classificação de
ocupações da Lista Nominativa de Habitantes, não era mais tão freqüente que os
próprios escravos trabalhassem como feitores : dos 10 indivíduos classificados como tal,
apenas um era cativo.
47 LIBBY, 1988. p.202. 48 Tratava-se, provavelmente, de escravos de ganho.
37
A gama de ocupações disponíveis para as mulheres era muito mais reduzida.
Como já foi colocado, a grande maioria, tanto das livres quanto das escravas, estava
envolvida na “indústria têxtil doméstica”. Um pequeno número das mulheres livres
dedicava-se ao serviço doméstico e à agricultura. Havia ainda umas poucas que “viviam
de sua agência”, seis floristas, além de uma estudante, uma mineira, uma oleira, uma
telheira e uma paneleira. As escravas que não eram incumbidas de fiar, tecer e costurar
dedicavam-se majoritariamente ao serviço doméstico, como serventes, cozinheiras,
lavadeiras e engomadeiras, ou à lavoura. No Recolhimento de Macaúbas serviam 43
mulheres livres e igual número de cativas.
Vários estudos49 mostraram a importância das mulheres para o abastecimento de
vilas e arraiais das Minas Gerais no século XVIII, onde proliferavam vendeiras livres,
forras e cativas, quitandeiras e negras de tabuleiro. Em São Paulo, no século XIX, elas
ainda eram personagens importantes da paisagem urbana e, em 1804, foram listadas
numerosas vendeiras trabalhando na cidade50. Em 1836 “... quitutes de toda espécie
eram vendidos, em pequenos tabuleiros forrados com toalhas brancas e iluminados à
noite por velas de sebo, pelas escravas que ficavam nas escadas da Igreja da
Misericórdia”51. Em Santa Luzia, todavia, as mulheres, naquela altura do século XIX,
parecem ter perdido o papel privilegiado que haviam tido no pequeno comércio nas
vilas e arraiais, durante o Setecentos, e suas famosas vendas e quitandas aparentemente
não mais eram comuns. Havia então, segundo a Lista, apenas uma negociante e uma
quitandeira, além de uma caixeira, esta uma escrava.
49 CHAVES, 1999. FIGUEIREDO, 1993. PANTOJA, In: FURTADO (Org.), 2001. p. 45-67. e PAIVA, 2001. Este último autor salienta (p. 37) a importância do ambiente das vendas. Segundo ele, “muitos coartados entravam em contato com esta possibilidade de manumissão através de contatos realizados no interior ou nas proximidades das incontáveis vendas de secos e molhados existentes e que, em muitos casos, pertenciam a negras libertas e, às vezes, a escravas. As informações eram passadas de boca a boca, e as negras vendeiras ou negras de tabuleiro foram personagens centrais deste movimento. Vem daí, evidentemente, um enorme corpus legislativo sobre estas atividades e sobre práticas e condutas associadas a elas. A legislação pretendeu coibir estas mulheres, seus negócios e códigos culturais e colocá-los sob o controle das autoridades coloniais, mas, no cômputo geral, sem obter grande êxito.” 50 SAMARA, 1990. p. 176. 51 SAMARA, 1990). p. 180.
38
O estudo das ocupações dos habitantes de Santa Luzia nos permitiu compreender
melhor a localidade. Uma maneira de conhecê-la mais a fundo é estudar como a sua
população, livre e escrava, se distribuía segundo faixas etárias e sexo.
De modo geral, uma população do século XIX, com altas taxas de fecundidade e
mortalidade, deveria ter um alto percentual de crianças e jovens, porém poucos idosos,
e, a menos que estivesse sofrendo processos migratórios, um relativo equilíbrio entre os
sexos. Uma concentração excessiva de mulheres adultas livres, por exemplo, poderia
indicar que uma determinada povoação estaria perdendo população, pois em situação de
estagnação e pobreza os homens adultos livres geralmente são os primeiros a partir em
busca de oportunidades, deixando para trás as mulheres e as crianças. Inversamente,
uma localidade onde havia um excesso de homens adultos provavelmente estaria
recebendo migrantes relativamente recentes.
No caso de população mancípia, a distribuição por idade e sexo pode ser um
valioso indicador da inserção de uma certa localidade no comércio de escravos e das
possibilidades da reprodução natural ali. O tráfico negreiro africano trazia para o Novo
Mundo muito mais homens que mulheres, e muito poucas criancinhas pequenas – não
importando se esta situação era desencadeada pela natureza da oferta africana ou pela
demanda americana, como. A constante chegada de levas de escravos africanos com tais
características resultava, portanto, em aumento da distribuição desigual entre os sexos e,
consequentemente, vinha a dificultar ou mesmo inviabilizar o crescimento vegetativo da
população escrava. Este problema era ainda agravado: pela alta mortalidade infantil;
pelo fato de que, ao chegar à América, a maioria dos africanos já havia atingido a idade
adulta, tendo assim transcorrida parte considerável de sua vida reprodutiva; pelas mais
duras condições de vida dos escravos, se comparados aos livres; dentre outros fatores. A
impossibilidade de reprodução natural de populações escravas a curto prazo, em uma
economia extensiva em expansão, criava um círculo vicioso, dando continuidade à
dependência do tráfico para aumento do contingente cativo.
A incapacidade reprodutiva, todavia, poderia não vigorar em todas as situações
no tempo e nos espaço. Um arrefecimento do tráfico negreiro durante um período
razoável de tempo, permitindo um maior equilíbrio entre os sexos, podia criar condições
propícias à reprodução natural, como ocorreu no Sul dos Estados Unidos, no início do
39
século XIX. Em algumas situações, um núcleo crioulo, formado durante um período de
relativa estabilidade entre os sexos, pode continuar se reproduzindo mesmo após a
retomada do comércio de africanos. Uma das principais maneiras de intuir a ocorrência
de processos de reprodução natural entre escravos é observar se a distribuição sexual é
equilibrada e qual é o peso das crianças no total populacional.
No caso de Santa Luzia, o peso relativo dos adultos52 era muito mais
significativo entre os escravos que entre os livres (ver Tabela 1.4). Vale lembrar, que
nossos dados se referem ao início da década de 30, momento imediatamente posterior à
compra acentuada de escravos que, ao que tudo indica, teria se dado na segunda metade
da década de 20, motivada expectativa de um iminente fechamento do tráfico
internacional em 1830.
Mais da metade da população escrava do Distrito tinha, então, entre 16 e 40 anos
e havia proporcionalmente menos crianças e idosos entre os escravos que entre os livres.
Ainda assim, o peso das crianças (até 15 anos) era significativo entre os escravos,
perfazendo estas mais de um quarto da população mancípia, enquanto entre os livres, os
menores de 16 anos perfaziam pouco mais de um terço do total. Considerando a
distribuição por idade e sexo entre os escravos, também o grupo de 16 a 40 anos
agregava o maior número de pessoas, tanto entre os homens como entre as mulheres,
embora esta concentração fosse ainda mais acentuada entre aqueles. Já os menores de
16 anos perfaziam uma proporção maior da população cativa feminina que da masculina
e a proporção de maiores de 40 anos era semelhante para ambos os sexos.
Mais interessante é que entre os cativos havia uma distribuição mais equilibrada
entre os sexos que entre os livres. Entre os cativos como um todo, havia mais ou menos
a mesma quantidade de homens e mulheres, enquanto entre os livres havia muito mais
mulheres que homens (cerca de sete homens para cada 10 mulheres). Entre os escravos
52 Embora a idade mínima legal para o matrimônio fosse de 12 anos para as meninas, é comum que se considerassem como adultos, naquela época, as pessoas maiores de 14 anos. É com esta idade que os rapazes podiam “sentar praça” ou se casar. (Ver SILVA, 1984. p. 114). Aqui, no entanto, estamos tratando por adultas as pessoas com 16 anos ou mais, para que possamos comparar as informações oriundas das listas de 1831 com as do recenseamento de 1872, no qual os grupos de idade já vêm agregados.
40
este equilíbrio se mantinha para quase todas as faixas etárias, havendo um pequeno
excesso de mulheres entre os mais jovens (nove homens para cada 10 mulheres) e uma
leve diferença a favor dos homens entre os adultos de 16 a 40 anos (11,6 homens para
cada 10 mulheres).
Não custa repetir que um excesso de homens nesta faixa etária não é fato
extraordinário, já que o tráfico negreiro africano, ainda em vigor naquele momento,
trazia sempre uma maior proporção de homens em idade adulta; chegando mesmo a
ocorrer casos em que populações que sofrem um tráfico muito intenso de africanos
chegam a apresentar uma relação de dois ou três homens para cada mulher. Porém, o
fato de que, no caso de Santa Luzia, o excesso de homens entre os adultos mais jovens
não fosse muito acentuado, assim como o equilíbrio encontrado nas demais faixas
etárias, pode constituir indício de que o Distrito não recorria intensamente ao mercado
de escravos e de que sua população mancípia podia ser capaz de reproduzir-se
naturalmente.
O quadro para os livres, por outro lado, é um pouco mais curioso. Havia
equilíbrio entre os sexos apenas entre os menores de 16 anos. Nas demais faixas etárias
sempre havia um farto excesso de mulheres, que era ainda mais acentuado para os
grupos de 16 a 40 anos e de 41 a 60 anos: respectivamente, quase cinco homens para
cada 10 mulheres e 6,7 homens para cada 10 mulheres.
Este excesso de mulheres aparece também quando examinamos o sexo das
pessoas descritas na Lista Nominativa como chefes de seus fogos. As mulheres foram
apontadas como chefes de nada menos que 41% dos domicílios de Santa Luzia, em
1831.
O perfil de homens e mulheres que chefiavam domicílios era muito diferente
(Tabela 1.5). Dos homens, a maior parte era casada (73%). Em seguida, vinham os
solteiros (19%), havendo apenas uma reduzida quantidade de viúvos (8%). Por outro
lado, a grande maioria das mulheres que foram consideradas cabeças de fogos eram
solteiras (68%) ou viúvas (27%). Era pouco freqüente que fogos fossem chefiados por
mulheres casadas, havendo apenas 15 casos deste tipo entre os 662 domicílios de Santa
Luzia. Estas mulheres viviam sem os maridos, quase todas eram pardas, apenas uma
41
era branca, e não tiveram sua condição explicitada (o que quer dizer que podiam muito
bem ser forras); a grande maioria delas era fiadeira, umas poucas moravam sós, outras
viviam com filhos e outros agregados, geralmente mais jovens que elas, e algumas
tinham escravos.
Mais da metade (53%) de todas as mulheres que chefiavam domicílios era parda,
as crioulas perfaziam 28%, enquanto as brancas e cabras eram minoria,
respectivamente, oito e 9%, e apenas quatro africanas encontravam-se nesta situação
(Tabela 1.6). Fiar era a ocupação de três quartos das mulheres cabeças de fogos. Eram
chefes de domicílio ainda seis costureiras, um igual número de lavradoras, quatro
mulheres que viviam “de sua agência”, três tecedeiras, além da Madre Regente do
Recolhimento de Macaúbas, uma florista e uma negociante (Tabela 1.6).
Mais uma, vez Santa Luzia não era exceção, constituindo-se antes em um
exemplo bastante típico dos arraiais mineiros da primeira metade do Oitocentos.
Estima-se que, nas regiões auríferas de Minas, em 1804, 45% dos domicílios fossem
chefiados por mulheres, que, como na Santa Luzia de 1831, se dedicavam à fiação,
tecelagem e à agricultura. Utilizando as próprias Listas Nominativas de 1831/32,
descobrimos que, em toda a Província de Minas Gerais, pouco mais de um quarto dos
domicílios era chefiado por mulheres. Destas, a maioria era parda (49%), branca (28%)
ou crioula (17%). Havia somente 17 africanas chefiando fogos em todo o território
mineiro, em um total de 17.263 mulheres chefes. Vale notar que quatro destas 17
africanas residiam em Santa Luzia, dado realmente surpreendente. Mais de 90% das
mulheres declaradas como chefes de seus fogos eram solteiras ou viúvas e apenas uma
minoria era casada. É muito significativo que o percentual de fogos chefiados por
mulheres fosse mais elevado nas regiões mineiras de maior nível de desenvolvimento
econômico53, aonde praticamente um terço dos domicílios tinha uma mulher à testa,
53 Sobre a subdivisão da Província em regiões segundo o nível de desenvolvimento ver: PAIVA, 1996. Através da análise de relatos de viagem e da “Relação de Engenhos e Casas Comerciais de 1836”, a autora considerou de elevado nível de desenvolvimento as regiões Sudeste, Mineradora Central Oeste, Diamantina e Intermediária de Pitangui-Tamanduá; de médio nível de desenvolvimento, Araxá, Sul Central, Vale do Alto Médio São Francisco, Médio Baixo Rio das Velhas, Mineradora Central Leste, Mata e Sudoeste; finalmente, de baixo nível de desenvolvimento, Minas, Novas, Paracatu, Sertão, Sertão do Alto São Francisco, Triângulo, Extremo Noroeste e Sertão do Rio Doce.
42
enquanto nas regiões de médio e baixo nível de desenvolvimento eles representavam
apenas um quinto do total de fogos. Esta evidência aponta para o perigo em se associar
de forma mecânica, sem uma análise conjuntural mais apurada, um alto percentual de
chefia feminina e um excesso de mulheres na população com uma situação de penúria e
pobreza.
Um excesso de mulheres em áreas urbanas e um percentual significativo, quando
não bastante elevado, de fogos chefiados por mulheres foi um fenômeno comum em
várias regiões do Brasil e não somente em Minas Gerais. Nos deparamos com
percentual elevado de mulheres que chefiavam domicílios e estavam envolvidas em
atividades econômicas importantes, como comércio, agricultura e indústria têxtil
doméstica em Goiás, em 1818, em São Paulo, em 1804, 1822 e 1836, em Santiago do
Iguape, Bahia, em 1835 e em Fortaleza, em finais da década de 80. O mesmo parece ter
ocorrido em outras partes da América Latina, no período que vai das duas últimas
décadas do Setecentos até o alvorecer do século XX, como ilustram os casos da Cidade
do México, em 1811, onde um terço dos domicílios era chefiado por mulheres, e de
Purral, também no México, onde havia também um percentual elevado de mulheres
chefiando domicílio.54
Alguns estudiosos, como Donald Ramos, salientaram a dimensão de pobreza e
exploração da vida das mulheres que administravam sozinhas seus lares. De acordo com
este autor, que estuda a sociedade vilarriquenha nas últimas décadas do Setecentos e
início do Oitocentos, “no século XIX, a maioria das mães que chefiavam seus próprios
fogos eram pobres. Isto é também verdadeiro para o século XVIII”.55 Ramos também
enfatiza que muitas mulheres pobres, especialmente aquelas que tinham filhos no estado
de solteiras, eram obrigadas a trabalhar por seu sustento, tendo suas ocupações descritas
mais comumente como “de sua agencia” e “de seu trabalho” que ocorria com as
casadas. Estas mulheres freqüentemente trabalhavam fora de casa, geralmente em uma
venda, sua ou de outrem. Seu cotidiano seria muito distinto daquele das mulheres da
54 NADER, 1997. p. 2-5. 55 RAMOS, 1990. p. 161.
43
elite, descritas por vários viajantes como vivendo em reclusão e isolamento. Ramos
interpreta esta inserção das mulheres no mundo da rua como um sinal da precariedade
das opções abertas a esta camada social (“elas não tinham nenhuma escolha”) e da
freqüente exploração a que estavam sujeitas56.
Embora seja inegável que, de modo geral, os domicílios chefiados por mulheres
tendiam a ser mais pobres e que a maioria delas provavelmente teve uma vida dura e
não desfrutou de grande prestígio social, acreditamos que a análise desta questão sob
um outro ângulo pode ser enriquecedora. Eduardo França Paiva explicita muito bem
este ponto de vista, ao escrever sobre a expressão “por meu trabalho serviço e
indústria”, utilizada por uma das testadoras por ele estudadas e adotada como título de
sua Tese de Doutorado. O autor lê nesta expressão muito mais que a exploração e
pobreza que Ramos vislumbrou nas análogas “vive de sua agência” ou “vive de seu
trabalho”. A testadora em questão se chamava Quitéria Alves da Fonceca.
“Africana da Costa da Mina, solteira e sem herdeiros, esta mulher morava no
arraial de Santa Bárbara, Comarca do Rio das Velhas quando, em 1774 escreveu seu
testamento. Ela comprara sua Carta de Alforria e gerenciara sua vida, assim como tantas
outras forras e outros forros que viveram em Minas. A frase usada por ela e apropriada
por mim sintetiza perfeitamente os esforços despendidos também por outros libertos
para integrarem-se o mais plenamente possível ao mundo dos livres. Para tanto, não se
opuseram a adaptações, a apropriações de valores dominantes, ao cultivo de relações
afetivas, reais ou teatralizadas, com gente mais poderosa. Não temeram, também,
inventar códigos de comportamento e de comunicação e não recearam exercitar práticas
de sociabilidade e de solidariedade, que envolveram outros forros, assim como escravos
e gente livre.”57
Assim, é provável que estas muitas mulheres sozinhas tenham desfrutado de
uma autonomia e de uma liberdade de movimentos sem par entre as senhoras de elite,
mesmo as viúvas. E se formalmente a maioria delas nunca se casara, uma parcela
56 RAMOS, 1990. p. 161-163. 57 PAIVA, 2001. p. 28,29.
44
mantinha relacionamentos duradouros e socialmente aceitos com homens, que, embora
freqüentemente não partilhassem de seu lar, muitas vezes as ajudavam no sustento da
casa e de eventuais filhos naturais (que, não raro, eram reconhecidos pelo pai em
testamento), além de dar apoio afetivo e psicológico.
Também é bom lembrar que, como Quitéria Alves da Fonceca, uma parcela
considerável destas mulheres havia conhecido a escravidão, senão a sua própria, pelo
menos a de seus ascendentes. E ali estavam, donas de seus próprios corpos, muitas delas
com familiares que elas próprias tinham ajudado a tirar da servidão, e muitas delas
mesmas senhoras de escravos! De fato, vários estudos58 vêm demonstrando que as
forras e as mulheres pardas tiveram uma situação privilegiada de mobilidade social nas
Minas, durante o Setecentos e inícios do Oitocentos.
Como a outra faceta da situação, há a se considerar as razões para a relativa
escassez de homens no Distrito. Talvez a predominância de mulheres (e o alto
percentual destas chefiando domicílios) esteja sugerindo que os homens estariam
migrando para outros lugares, sinal de que a situação econômica local não ia tão bem
assim. Isto constituiria, evidentemente, um paradoxo em relação a conjecturas feitas
anteriormente quanto à possível prosperidade do Distrito, com seu percentual elevado
de população escrava e uma relativa diversificação nas ocupações dos habitantes.
Porém, como já foi indicado acima, é preciso tomar cuidado com este tipo de inferência,
somente podendo-se esboçar um quadro da situação econômica local a partir da
consideração de todas as informações existentes.
Uma opção, que não podemos deixar de levar em conta, refere-se à qualidade da
documentação. É provável que haja uma sub-declaração de homens adultos, já que o
levantamento censitário podia ser destinado, entre outros fins, ao recrutamento militar e
à cobrança de impostos. Analisando a correspondência dos Juizes de Paz dos arraiais
pertencentes ao Termo de Sabará com a Presidência da Província, na primeira metade
do século, deparamo-nos com várias menções à evasão de homens em épocas do
recrutamento. Não era incomum que, respondendo a ofício do Presidente da Província
45
sobre a quantidade de homens que guardavam as características necessárias para serem
recrutados, replicassem as autoridades locais que não havia ali nenhum, já que todos
tinham fugido e buscado esconderijo tão logo correra a notícia do recrutamento. Alguns
autores, como Maria Beatriz Nader, já salientaram que o medo do recrutamento
provocava uma “ausência” temporária ou fictícia de homens, em várias regiões do
Brasil, desde o século XVIII59.
Além disto, o nomadismo do tempo da colônia fazia ainda parte do cotidiano da
sociedade mineira, enquanto o processo de sedentarização se arrastaria ao longo de todo
o Oitocentos, não se concretizando de pronto60. Na década de 30, o trânsito constante de
homens, característica das mais notórias da sociedade colonial, ainda vigorava
fortemente em um arraial como Santa Luzia, que tinha no comércio e na agricultura as
suas principais atividades. Muitos comerciantes muito provavelmente passavam a vida
na estrada, fazendo negócios e contatos. E, sendo Santa Luzia uma área de fronteira,
sem dúvida dali partiram levas de povoadores dirigidas ao norte e ao oeste da
Província.61 Por outro lado, como demonstrou Silva (ver Tabela 1.2), a zona rural
aglutinava proporcionalmente mais homens que a zona urbana62 e não é improvável que
alguns fazendeiros tivessem terras fora da área do distrito, ali vivendo a maior parte do
tempo, enquanto suas mulheres e filhos mantinham residência permanente no Arraial.
De volta ao caso da mão-de-obra cativa, havia realmente mais homens que
mulheres na zona rural, em torno de 126 homens para cada 100 mulheres, o que não se
verificava nas áreas urbana e suburbana, onde havia, respectivamente, 98 homens e 89,5
homens para cada 100 mulheres.
58 LIBBY; GRAÇA FILHO, 2003. PAIVA, 2001. FURTADO, 2003. para citar apenas alguns. 59 NADER, 1997. p.3. 60 Sobre a questão da sedentarização da população mineira ver DUARTE, 1995. 61 SILVA, 2002. p. 165. 62 Segundo os dados do nosso censo, havia cerca de 80 homens para cada 100 mulheres na zona rural, contra 72 na urbana e 71 na suburbana . Devemos, todavia, desconfiar destes dados, já que, como já foi discutido, havia boas razões para crer que haja uma subdeclararação de homens livres. SILVA, 2002. p. 165.
46
A “Relação das Fábricas estabelecidas no Distrito de Santa Anna das Traíras”63,
Termo de Sabará, de março de 1832 – que consiste na verdade em uma lista de
propriedades rurais, com detalhamento da função dos cativos em “idade própria de
trabalho” – vem dar respaldo a esta hipótese. Dentre as 15 fazendas arroladas, cinco
pertenciam a proprietários que tiveram escravos batizados na Paróquia de Santa Luzia
ao longo do Oitocentos. Em todas elas predominavam escravos do sexo masculino. Na
Fazenda das Laranjeiras, pertencente ao Padre João Marques, que residia no Arraial e
empregava um administrador para manejo de sua propriedade rural, havia: 17 escravos
“empregados em roça e cana”, um cativo vaqueiro, outro hortaleiro e apenas cinco
cativas, sendo três fiadeiras, uma tecedeira e uma cozinheira. A situação era semelhante
na Fazenda do Jardim, propriedade do também padre Francisco Gomes de Carvalho, na
qual trabalhavam vários escravos: 14 empregados de roça, um ferreiro, um hortaleiro,
quatro fiadeiras e uma cozinheira. Ali viviam ainda dois feitores livres e um vigário.
Estes dados sugerem que as atividades próprias do campo ocupavam
proporcionalmente mais homens escravos que mulheres, que eram em maior número
nas vilas e arraiais. Situação semelhante à que ocorrera no Sul dos Estados Unidos.
Na Virgínia, de 1760 a 1860, onde as duas culturas mais importantes, o tabaco e
os cereais, não demandavam um grande contingente de mão-de-obra, os grandes
proprietários tendiam a dividir os seus escravos entre as várias fazendas que possuíam,
de acordo com as necessidades sazonais da produção64. Não importando que isto
significasse que a maior parte das famílias escravas não viveria sob o mesmo teto, já
que a distribuição da propriedade cativa seguia prioritariamente os ditames dos
interesses econômicos dos senhores. Assim, membros de uma família, pertencentes a
um só proprietário, podiam viver separadamente em diferentes fazendas, no mesmo
condado, em regiões mais distantes do próprio Sul dos Estados Unidos, ou mesmo em
paragens tão longínquas quanto o Caribe. Como conseqüência, mesmo nas grandes
posses, a maioria dos escravos tinha dificuldades em viver em famílias nucleares co-
63 Arquivo Público Mineiro, Fundo Presidência da Província, PP1/18, documento 173. 64 STEVENSON, 1996. p. 208, 209.
47
residentes, originando-se assim arranjos familiares alternativos, com maridos e esposas
vivendo em fazendas diferentes, matrifocalidade e domicílios formados por pessoas sem
parentesco. Situações deste tipo experimentavam, por exemplo, os escravos de George
Washington, que residiam, nas últimas décadas do Setecentos, nas cinco fazendas que
ele possuía.
Na maior parte do território mineiro, na década de 30 do século XIX, o tipo de
propriedade rural, com as atividades ali desenvolvidas, não demandava o trabalho
permanente de numerosos escravos. Assim sendo, é provável que também ali, como na
Virgínia, a elite, aquela que lograra acumular uma maior quantidade de terras e cativos,
repartisse a mão-de-obra entre as suas várias propriedades rurais e urbanas, de acordo
com seus interesses econômicos mais imediatos65. E, no caso da região que estamos
estudando, estes interesses levavam a uma maior concentração de mulheres nas áreas
mais urbanizadas e de homens no meio rural. Sabemos, por exemplo, que o Coronel
Francisco de Paula Barboza66, morador da Vila de Sabará, possuía, no começo do século
XIX, uma fazenda em Matozinhos e outra em Rapozos e que intercambiava,
temporariamente, escravos entre estas duas propriedades para atender a necessidades
específicas de produção. É claro que isto é apenas uma conjectura, mas uma conjectura
que parece fazer sentido e que ajuda a entender a distribuição sexual da população
escrava de Santa Luzia67.
Esta distribuição sexual do trabalho poderia explicar o fato de que as mulheres
eram maioria também entre os escravos crioulos68 (Tabela 1.7). Podemos pensar que os
65 Não dispomos de dados para saber se membros de uma mesma família encontravam-se espalhados pelas várias fazendas de um mesmo proprietário, como acontecia na Virgínia, nem é este o nosso objetivo no presente capítulo. A questão da estabilidade familiar dos cativos será discutida mais adiante, de forma que voltaremos a analisar este assunto no futuro. 66 Arquivo Público Mineiro, PP1/18, caixa 173, documento 12. A transcrição do documento na íntegra encontra-se em anexo. 67 Uma outra possibilidade é que homens crioulos estivessem sendo vendidos para outras regiões. 68 Estaremos empregando aqui o termo “crioulo” como sinônimo de “pessoa de descendência africana nascida no Brasil”. Este emprego nos parece correto, uma vez que, como já foi longamente discutido, no século XIX, os termos usados para descrever a cor das pessoas eram utilizados de forma bastante “frouxa” e uma mesma pessoa era ora descrita como “crioula”, ora como “cabra” ou “parda”. Em outras palavras, o uso contemporâneo do termo “crioulo” parece fazer muito mais referência ao local de nascimento que à cor mais escura da pele.
48
homens crioulos, pertencentes a famílias com uma história que se mistura à da família
senhorial, teriam sido considerados mais confiáveis e daí mandados para propriedades
mais distantes, sobre as quais ao proprietário tinha menos controle. Suas mulheres e
filhos ficariam, então, na fazenda “principal”. A documentação estudada69 indica que
era freqüente que proprietários residissem fora de suas fazendas e empregassem
administradores. De fato, na população mancípia nascida no Brasil, havia
aproximadamente oito homens para cada 10 mulheres. A quantidade de pessoas do sexo
feminino superava a do sexo masculino em todas as faixas etárias, com exceção do
grupo mais jovem, no qual havia uma situação de equilíbrio. O excesso de mulheres era,
todavia, muito mais acentuado no grupo de 41 a 60 anos, no qual havia quase duas
mulheres para cada homem. Uma outra explicação para o excesso de mulheres entre os
crioulos seria que os homens nascidos no Brasil estariam sendo vendidos para fora do
distrito.
Entre os africanos, todavia, o numero de homens superava o de mulheres, sendo,
no total, o número de homens quase duas vezes o de mulheres. Só entre os menores de
16 anos as mulheres eram maioria, havendo em torno de sete homens para cada 10
mulheres. Entretanto, a pequena quantidade de pessoas nesta faixa etária, apenas 38
indivíduos, torna este dado de menor relevância. Para o grupo etário de 16 a 40 anos,
havia praticamente 22 homens para cada 10 mulheres e para o grupo de 41 a 60 anos,
pouco mais de 2 homens para cada mulher.
O que encontramos é uma espécie de complementaridade entre as populações
escravas de origem africana e nacional, no que tange à distribuição sexual e etária. Entre
os crioulos, havia precisamente um excesso de mulheres nas faixas etárias em que
“sobravam” homens africanos. Da mesma forma, embora tanto cativos africanos quanto
crioulos tivessem uma maior concentração de pessoas na faixa etária entre 16 e 40 anos
(48,3 e 60,9%, respectivamente), entre os aqui nascidos havia proporcionalmente mais
jovens e crianças e menos indivíduos entre 41 e 60 anos que entre os africanos. Isto é
válido tanto para os totais populacionais quanto para as populações masculina e
69 Principalmente a Correspondência Recebida pela Presidência da Província, mas também os inventários.
49
feminina. Ou seja, a população crioula era proporcionalmente bem mais jovem que a
africana. O resultado é que, quando a população mancípia é examinada como um todo,
as especificidades das populações nativa e africana se anulam mutuamente, e o
resultado é uma população que tinha uma distribuição etária e por sexo na qual os
efeitos do tráfico internacional de escravos não se faziam sentir com muita intensidade.
Dos escravos do Distrito, a grande maioria, 69,2%, era crioula e 30,2% eram
oriundos da África. Ou seja, há indícios de que o tráfico de escravos africanos para a
região, embora importante, não era muito intenso. A análise dos batismos de escravos
adultos pode ajudar a compreender melhor a inserção de Santa Luzia no mercado
internacional de escravos, como veremos no próximo capítulo. Por ora, trabalharemos
com outra importante fonte censitária, que permitirá acompanhar a evolução do Arraial
e de sua população ao longo de século XIX.
1.3 - Santa Luzia em 1872, segundo o Recenseamento Geral do Império:
permanência e ruptura.
Da Lista Nominativa dos Habitantes de Santa Luzia, confeccionada em 1838,
resta apenas o ofício, datado de 11 de dezembro daquele ano, no qual o Juiz de Paz
anunciava seu envio ao Presidente da Província70. Assim sendo, lamentavelmente, o
único outro documento censitário com que contamos está separado por mais de quatro
décadas da Lista com que trabalhamos na seção anterior. Trata-se do Recenseamento
Geral do Império, que, como já foi sublinhado na seção que trata das fontes
documentais, traz informações referentes ao ano de 1872, muito embora tenha sido
elaborado no ano posterior.
Entre os nossos dois recenseamentos, Santa Luzia havia sofrido várias
transformações. O arraial tinha sido promovido a vila, emancipada de Sabará, passando
a ter governo e administração próprias. A população também crescera bastante. Em
1872, a Paróquia abrigava 6.128 moradores (Tabela 1.8), 1.900 a mais que em 1831, ou
um crescimento anual de 0,89% (Tabela 1.9).
50
No Recenseamento Geral do Império, os habitantes estavam classificados quanto
à condição social apenas como “livres” ou ”escravos”, tendo sido suprimidas as
categorias “libertos” e “coartados”, vigentes nas listas da década de 30. Mencionamos,
ao analisar a população de Santa Luzia em 1831, que acreditávamos que a classificação
das pessoas segundo a condição social estava aos poucos perdendo seu sentido e que,
com freqüência, não se julgava necessário explicitar a situação dos forros. Os critérios
utilizados na elaboração do Recenseamento Geral do Império parecem indicar a
consolidação desta atitude, segundo a qual a sociedade dava mais importância à situação
presente de liberdade ou cativeiro dos indivíduos que se eles haviam sido gerados por
mães livres ou escravas. Além disto, em 1872 a condição – livre ou escrava – foi listada
para todos os indivíduos, numa diferença marcante ao que ocorrera em 1831, quando
não havia informação para uma parcela significativa da população (ver Tabela 1.8).
Embora o peso dos escravos na população tenha diminuído nos 41 anos que
separam os dois censos, Santa Luzia ainda contava com um grande contingente de mão-
de-obra cativa no início da década de 70 (ver Tabela 1.8). Os escravos perfaziam 27,7%
da população total, contra 33,4% em 1831. A título de comparação, 18,2% da população
da Província de Minas Gerais era escrava, em 1872, contra 33,4%, em 183171. Ou seja,
Santa Luzia havia perdido, proporcionalmente, muito menos população cativa que a
província como um todo. Na paróquia de Montes Claros, estudada por Tarcísio Botelho,
a participação dos escravos no total populacional era 14,9% em 1831 e 11,4% em
187272. Vale notar, ainda, que, no momento de realização do Recenseamento Geral do
Império, apenas nas províncias do Espírito Santo e do Rio de Janeiro, os mancípios
perfaziam mais de 20% da população total, representando, respectivamente, 27,5% e
37,3%. A Corte contava com 17,7% de escravos em sua população e a província de São
Paulo, com 18,7%73.
70 Arquivo Público Mineiro, Fundo Presidência da Província, PP1/18, caixa 181, documento 19. 71 BOTELHO, 1994. p.74. 72 BOTELHO, 1994. 73 PAIVA; MARTINS, 1983. p.159.
51
Esta capacidade de Santa Luzia em reter população cativa, em um período já tão
avançado no século XIX e mais de duas décadas após o fechamento definitivo do
comércio internacional de escravos, consiste em um indicador seguro de que a Vila
continuava próspera. A capacidade da localidade de conservar, desde sua fundação até o
último quartel do Oitocentos, uma economia dinâmica pode ser comprovada pelo
aumento muito significativo da população masculina livre, que cresceu muito mais
acentuadamente entre os dois censos que a população livre do sexo feminino ou que os
mancípios em geral (Tabela 1.9).
Procurando compreender as bases em que se sustentava a prosperidade
econômica de Santa Luzia, voltemos nosso olhar para as ocupações de seus habitantes
(Tabela 1.10). É bom ressaltar, no entanto, que, para 1872, não contamos com a mesma
riqueza de informações sobre a vida profissional dos moradores que existe para 1831. A
tabela de que dispomos para este segundo momento traz uma série de limitações, que
vão desde a dificuldade de compreensão dos critérios utilizados para composição das
categorias profissionais até a impossibilidade de desagregar a tabela por idade, o que faz
com que crianças e idosos sejam incluídos na análise. A principal delas, entretanto, é a
agregação das profissões em categorias, nas quais cada indivíduo tinha de ser
enquadrado, enquanto que em 1831 foram reproduzidas literalmente as informações
fornecidas. Segundo Libby, “O sistema [de classificação das profissões no
Recenseamento Geral do Império], exigia do preenchedor do formulário domiciliar que
classificasse todas as pessoas residentes segundo critérios pouco flexíveis. Como
classificar, por exemplo, um indivíduo que realizasse várias tarefas simultaneamente,
sem ser especializado em nenhuma delas? É muito provável que a resposta,
freqüentemente, tenha sido registrar tais indivíduos, livres ou escravos, como ‘sem
ocupação’. [...] Não deixa de ser significativo que os poucos mapas de 1831-1840 que
contêm as ocupações de todos os indivíduos arrolados constituam uma documentação
muito mais rica, completa e fiel à realidade”74.
74 LIBBY, 1988. p. 42, 43.
52
De fato, a segunda categoria profissional mais importante do recenseamento é
“sem profissão”. É preciso, no entanto, lidar com este dado com bastante cautela. Como
não é possível desagregar os números para ocupação por idade, acreditamos que uma
parcela muito grande das pessoas que não tiveram profissões declaradas fossem na
realidade crianças e idosos. Isto fica bem claro quando observamos que 22% da
população de Santa Luzia tinha menos de 16 anos ou mais de 60 e que os indivíduos
que foram declarados “sem profissão” representavam 21,3% do total de casos da Tabela
10, que traz as profissões. Este paralelismo se mantém, embora com menos
proximidade, quando desagregamos os dados para sexo e condição. Todavia, como
afirma Libby, “é difícil imaginar que escravos adolescentes de 11 a 15 anos fossem
mantidos inativos numa sociedade na qual a escola era um privilégio de pouquíssimos
livres”75. Ou seja, estamos cientes da má qualidade dos dados para ocupação e os
utilizaremos com ressalvas, já que o Recenseamento é o único documento de vulto
sobre a localidade no período enfocado.
A diversidade ocupacional encontrada para 1831 parece não ter esmaecido com
o passar dos anos e a variedade de ocupações ainda impressiona. Havia nove
professores, sendo seis homens e três mulheres, mostrando que aquelas provavelmente
tinham melhor acesso à educação que em 1831, quando, dos quase 100 estudantes
arrolados, havia apenas uma menina. Contudo, os amarrados critérios de classificação
das profissões de 1872 fizeram desaparecer os estudantes, tão numerosos no primeiro
recenseamento. É quase certo que estes se encontrem entre os indivíduos listados como
“sem profissão” e a presença de tantos professores parece suficiente para indicar que
Santa Luzia continuava sendo uma vila privilegiada para a instrução dos jovens, a nível
local. Uma variedade de pessoas exercia ofícios mecânicos ou manuais diversos,
trabalhando com calçados, metais, madeira e vestuário. Encontramos ainda seis artistas,
quatro notários e escrivãos, três farmacêuticos, três pescadores, três pessoas descritas
como “capitalistas e proprietários”, dois advogados, dois oficiais de justiça e dois
médicos, entre outros.
75 LIBBY, 1988. p. 42.
53
Embora a indústria têxtil doméstica ainda existisse, ela já não ocupava a vasta
maioria da população urbana local, como no início da década de 30. Fiar, tecer e coser
ainda eram atividades eminentemente femininas. No Recenseamento, elas aparecem
como “operário em tecidos” e “costureira”, profissões às quais se dedicavam 34,3% e
15,7% das mulheres livres e 2,7% e 2,2% das escravas, respectivamente. É importante
notar que o caráter “democrático” destas profissões, tão marcante no passado, se
desvanecera. Naquele momento, fiadeiras, tecedeiras e costureiras haviam se tornado
ocupações sobretudo de mulheres livres. E mesmo a proporção de livres ocupadas na
indústria têxtil doméstica sofrera redução significativa. Apesar de nenhum homem, livre
ou cativo, dedicar-se a estas atividades, elas ocupam 11,2% da população total.
Em 1872, como em 1831, a profissão de lavrador continua ocupando lugar
importante no quadro ocupacional da Paróquia. Quase 40% dos habitantes foram
descritos como lavradores, atividade que congregava 36,7% de todas as pessoas livres e
46,7% de todos os escravos. De fato, lavrador era a profissão mais freqüente, tendo
desbancado os trabalhadores em tecidos. Era, contudo, atividade prioritariamente
masculina e a ela se dedicavam a maioria dos homens livres (59%) e escravos (69,8%).
Das mulheres, 14,4%, das livres, e 23,6% ,das escravas, também lidavam com a terra.
A terceira categoria mais freqüente era a de “serviços domésticos”, que
empregava 19,7% das pessoas da localidade, mas que, diferentemente dos “lavradores”,
revela-se atividade prioritariamente feminina. A ela se dedicavam 34,3% das mulheres
livres e 45,3% das escravas, constituindo-se assim na principal utilização de mão-de-
obra cativa feminina, como já acontecia, de resto, na década de 30.
Os comerciantes, guarda-livros e caixeiros, em sua grande maioria homens livres
(apenas uma mulher livre se dedicava a esta atividade), totalizavam 48 pessoas, cifra
que, embora responsável por um pequeno percentual da população total, não deixa de
ser significativa. Sabemos que os negócios prosperavam em Santa Luzia, no ano de
1850, dando continuidade a uma tendência que vinha do século XVIII e que permanecia
ainda em 1872. No período de janeiro a março de 1850, nada menos que 61 homens e
54
nove mulheres tiraram licença para negócios, vendas, lojas ou tabernas, na Vila,
pagando à Câmara a importância devida.76
Muitas ocupações que, no século XVIII e mesmo em 1831, eram dominadas
comumente por escravos, eram agora predominantemente exercidas de homens livres. É
o caso dos artífices, artesãos e oficiais mecânicos. Excluindo-se aqueles ligados à
produção têxtil, 177 homens livres aparecem nesta categoria, contra apenas uma mulher
livre e 10 escravos homens. O mesmo ocorre com a categoria de “jornaleiros”, que antes
era usada majoritariamente para escravos alugados, mas que, em 1872, se refere a 178
homens e 65 mulheres livres, e a apenas 24 homens e 18 mulheres escravos, indicando
um crescente processo de proletarização da população livre. O outro lado desta moeda
parece ser a utilização maciça dos escravos na agricultura, que, ao que tudo indica, era o
carro-chefe da economia de Santa Luzia naquele momento.
Nossos dados não nos permitem estudar a concentração da população escrava
em 1872, ou o tamanho das posses escravistas. Voltemos nosso olhar, portanto, para a
estrutura populacional de Santa Luzia, segundo idade, sexo e condição social (Tabela
1.11), em busca de, através dela, conhecer um pouco melhor a situação econômica e
social do Distrito.
As grandes diferenças entre os perfis populacionais de livres e escravos,
encontradas para 1831, parecem ter se atenuando com o passar dos anos. A distribuição
etária dos dois grupos passou a ser bastante semelhante, em 1872, com uma maior
concentração da população na faixa de 16 a 40 anos, e que era um pouco mais
acentuada para os cativos que para os livres. Vale ainda notar, que os jovens (com
menos de 16 anos) tinham um peso maior entre os não escravos, correspondendo ali a
20,3% do total populacional, e abrangendo apenas 13% no caso dos mancípios. No
entanto, temos que levar em consideração que os filhos de mães escravas nascidos após
a Lei do Ventre Livre, de 28 de setembro de 1871, ou seja, em torno de 10 meses antes
da data de referência do Recenseamento, não mais seguiam o ventre, sendo, portanto,
76 Arquivo Público Mineiro, Fundo Presidência da Província, 1/33 caixa 259, documento 17, “Diário da Receita e Despeza da Camara Municipal da Villa de Santa Luzia, de 1º de Janeiro a fim de Março de 1850”.
55
livres. Os ingênuos foram, portanto, contados entre os livres, gerando uma pequena
“distorção” nos dados, já que os filhos de mães cativas, daquela data em diante, haviam
“migrado” de uma condição a outra. Já o peso dos grupos etários “45 a 60 anos” e “61 e
mais” era bastante semelhante para livres e cativos.
As diferenças entre as populações livre e cativa, existentes em 1831, no que
tange à distribuição etária, haviam se aplacado de forma notável. O mesmo ocorreu no
que diz respeito ao equilíbrio entre os sexos. Tanto no caso dos livres quanto dos
cativos, havia mais ou menos a mesma quantidade de homens e mulheres. No caso dos
livres, o excesso de mulheres verificado na década de 30 só se mantinha entre os mais
jovens, mas mesmo assim era pequeno o desequilíbrio: havia cerca de nove homens
para cada 10 mulheres. De modo geral a distribuição por sexo era bastante equilibrada e
os homens chegavam a ser ligeiramente majoritários no grupo mais idoso, no qual havia
em torno de 11 homens para cada 10 mulheres. Entre os mancípios, o equilíbrio sexual
era ainda mais notável, com um reduzidíssimo excesso de homens entre os mais jovens
e uma muito modesta prevalência das mulheres no grupo de 41 a 60 anos.
Estes dados parecem confirmar a tendência, já vislumbrada para 1831, de uma
estabilização da população cativa de Santa Luzia, que em 1872 apresentava
características que indicam pouca atividade migratória. Procuraremos mais pistas neste
sentido examinando a origem dos cativos de Santa Luzia, ainda baseando-nos em dados
do Recenseamento Geral do Império.
Impossibilitados de examinar, para 1872, a distribuição etária da população
escrava, segundo região de origem, como havíamos feito para 1831, devemos nos
contentar com a análise de sua distribuição por sexo. A imensa maioria dos escravos
que habitavam Santa Luzia naquele ano haviam nascido em Minas Gerais. A única outra
província de onde provinham escravos ali residentes era a Bahia, mas a sua participação
era bem modesta e eles correspondiam a menos de 1% dos cativos. Oriundos da África
eram também em reduzido número, um total de 62 pessoas, numa população cativa de
1.698. Isto não deve causar espanto, uma vez que já haviam transcorrido 22 anos da lei
que reprimia de forma eficaz o comércio de africanos para Brasil. Como era de se
esperar, a situação de equilíbrio entre os sexos observada para o total dos escravos de
Santa Luzia não se aplicava a estes poucos africanos, entre os quais haviam quase dois
56
homens para cada mulher. Entre os escravos baianos havia um leve excesso de
mulheres, enquanto entre os nativos a distribuição sexual era marcada pelo equilíbrio.
Infelizmente, não nos é dado conhecer a origem dos escravos naturais da própria
província. Fica a curiosidade se eles seriam naturais de Santa Luzia, de lugarejos
vizinhos ou viriam de regiões distantes (Tabela 1.12).
Neste Capítulo nos foi dado conhecer um pouco sobre a Santa Luzia, palco de
nossas pesquisas. Procuramos compreender que tipo de economia havia encetado a
existência de uma numerosa mão-de-obra cativa e a quais atividades tanto livres quanto
escravos se dedicavam. Buscamos também descobrir em que medida os escravos, que
ali viviam, tinham nascido e crescido no Brasil ou tinham vindo de muito longe, do
continente africano.
Santa Luzia havia logrado manter um elevado percentual de escravos em sua
população quando da realização do Recenseamento Geral do Império. Quase 28% dos
moradores deste lugarejo voltado para a agricultura e o comércio eram cativos, em um
momento histórico em que o escravismo já tinha começado a ser desmantelado, com o
governo imperial imiscuindo-se cada vez com mais nas relações entre senhores e
cativos. A propriedade escrava tendia a se tornar cada vez mais concentrada, tanto
regionalmente quanto em termos do tamanho das posses, e ia perdendo lentamente a sua
legitimidade com o passar dos anos.
Gostaríamos de saber como puderam os senhores locais manter tamanho
contingente escravo. Tratar-se-ia se uma estratégia consciente para assegurar mão-de-
obra? Teriam recorrido eles vorazmente ao mercado de escravos, enquanto o tráfico
internacional ainda vigorava? Como teriam se comportado durante o período de
vigência do tráfico interno? Haveria tendências de crescimento vegetativo entre os seus
escravos?
Os dados analisados neste Capítulo já podem oferecer algumas pistas sobre as
respostas a tais indagações. Vimos que, em 1831, a despeito de um significativo
percentual de escravos africanos, a grande maioria dos cativos havia nascido no Brasil.
Além disto, dentre os escravos em geral, e de forma mais acentuada entre os crioulos, as
crianças e jovens representavam parte considerável da população. A desproporção entre
57
os sexos não era elevada para os mancípios em geral e era bastante reduzida para os
nativos, havendo inclusive um excesso de mulheres escravas em alguns grupos etários.
Em outras palavras, algumas das características da população mancípia de Santa Luzia,
em 1831, permitem especular quanto à possibilidade de que, senão toda ela, pelo menos
o seu núcleo crioulo caminhasse em direção a uma tendência de reprodução natural. Em
1872, esta tendência parece ter se realizado plenamente e encontramos um equilíbrio
entre os sexos para os escravos, uma distribuição etária extremamente semelhante a da
população livre e a confirmação de que a imensa maioria dos escravos de Santa Luzia
havia nascido na província de Minas Gerais.
Julgamos precipitado, todavia, tomar conclusões definitivas a este respeito, sem
uma exploração mais cuidadosa da inserção de Santa Luzia no comércio de escravos. E
é esta análise que faremos no capítulo que se segue e que sem dúvida tornará mais
profícua a discussão a respeito dos rumos da empresa escravista local ao longo do
Oitocentos.
58
Tabelas: Capítulo 1
Tabela 1.1 - População, segundo condição social e cor/qualidade - Paróquia de Santa Luzia, 1831
Condição Total
Cor/Qualidade Sem informação
Livre Escravo Liberto Coartado N %
Sem informação 9 1 1 11 0,26
Branco 4 361 365 8,63
Crioulo 485 767 5 1 1258 29,74
Pardo 1773 94 1867 44,14
Cabra 139 118 257 6,08
Africanos 25 427 3 455 10,76
Outros 9 8 17 0,4
Total N 2444 361 1415 8 2 4230
% 57,78 8,53 33,45 0,19 0,05 100,00
Fonte: Listas Nominativas de Habitantes de 1831 (microdados).
Tabela 1. 2 - População, segundo condição social , por sexo e área onde se localizam os fogos - Paróquia de Santa Luzia, 1831 Área
Urbana Suburbana Rural
Sexo e condição N % N % N %
Homem Livre 693 30,7 299 29,2 199 21,1
Mulher Livre 951 42,1 421 41,1 250 26,5
Homem escravo 306 13,5 144 14,0 275 29,2
Mulher escrava 311 13,8 161 15,7 218 23,1
Total 2261 100,0 1025 100,0 942 100,0
Razão de sexo (livres) 72,9 71,0 79,6
Razão de sexo (escravos) 98,4 89,5 126,2
Fonte: Silva, Leonardo Viana da. “Redescobrindo as cidades mineiras oitocentistas”. In: Paiva, Clotilde Andrade e Libby, Douglas Cole. 20 anos do Seminário sobre a Economia Mineira – 1982-2002: coletânea de trabalhos, 1982-2000. Belo Horizonte: UFMG/FACE/Cedeplar, 2002. V2, p. 163.
59
Tabela 1. 3 - Ocupação, por sexo e condição social - Paróquia de Santa Luzia, 1831
Homens Mulheres Homens Mulheres
Ocupação Livre Escravo Livre Escravo Total Ocupação Livre Escravo Livre Escravo Total
Sem informação
418 174 520 155 1267 Costureira e Florista
5 5
Fiadeira 17 13 845 212 1087 Criado / pagem 1 4 5
Lavrador 66 277 13 28 384 De todo servico 5 5
Serviço Doméstico
1 42 22 64 129 Vaqueiro 3 2 5
Costureira 2 89 34 125 Boticário 4 4
Cozinheiro 18 6 90 114 Camarada 4 4
Jornaleiro 88 19 1 0 108 Cobrador 4 4
Serve no Recolhimento
1 12 43 43 99 Mineiro 3 1 4
Estudante 96 1 97 Oleiro 3 1 4
Negociante 90 0 1 0 91 Torneiro 4 4
Alfaiate 61 15 1 77 Barbeiro 2 1 3
Sapateiro 51 19 70 Farinheiro 3 3
Fia e tece 12 34 46 Ferrador 3 3
Agência 32 1 4 37 Hortelão 3 3
Carapina 28 9 37 Indigente 1 2 3
Empregado de Fazenda
33 1 34 Pescador 3 3
Faiscador 15 10 25 Pintor 3 3
Ferreiro 21 4 25 Santeiro 2 1 3
Enfermo/deficiente/ idoso
8 14 2 24 Telheiro 2 1 3
Tecelão/ Tecedeira
0 2 7 10 19 Chapeleiro 2 2
Tropeiro 16 3 19 Cirurgião 2 2
Carpinteiro 15 3 18 Engomadeira 2 2
Lenheiro 1 17 18 Fogueteiro 2 2
Ourives 16 1 17 Imaginário 2 2
Rendeira 9 6 15 Juiz de vintena 2 2
Caixeiro 13 1 14 Professor 2 2
Carreiro 7 6 13 Aprendiz Sapateiro
1 1
Seleiro 12 1 13 Bolieiro 1 1
Valeiro 1 12 13 Carpina 1 1
60
Homens Mulheres Homens Mulheres
Ocupação Livre Escravo Livre Escravo Total Ocupação Livre Escravo Livre Escravo Total
Feitor 9 1 0 0 10 Escrivão 1 1
Musico 10 10 Forneiro 1 1
Servente 9 1 10 Ilegível 1 1
Capineiro 1 7 8 Paneleiro 1 1
Latoreiro 8 8 Peneireiro 1 1
Caldeireiro 4 3 7 Picador 1 1
Eclesiastico 6 0 1 0 7 Procurador 1 1
Artifice 4 2 0 0 6 Quitandeira 1 1
Carniceiro 6 6 Sacristão 1 1
Costureira e rendeira
6 6 Toucinheiro
1 1
Florista 6 6 Violeiro 1 1
Lavadeira 6 6 Total 1191 726 1622 691 4230
Pedreiro 2 4 6
Fonte: Listas Nominativas de Habitantes de 1831 (microdados).
Tabela 1. 4 - População, por idade, segundo sexo e condição social - Paróquia de Santa Luzia, 1831
Homem Mulher Total Grupo
De Idade N % N % N %
Razão de Sexo
Livre
0-15 500 42,0 475 29,3 975 34,7 105,3
16-40 383 32,2 700 43,2 1083 38,5 54,7
41-60 201 16,9 299 18,4 500 17,8 67,2
61+ 107 9,0 148 9,1 255 9,1 72,3
Total 1191 100,0 1622 100,0 2813 100,0 73,4
Escravo
0-15 182 25,1 200 28,9 382 27,0 91,0
16-40 397 54,8 341 49,3 738 52,1 116,4
41-60 111 15,3 118 17,1 229 16,2 94,1
61+ 35 4,8 32 4,6 67 4,7 109,4
Total 725 100,0 691 100,0 1416 100,0 104,9
Fonte: Listas Nominativas de Habitantes de 1831(microdados)
Nota: existe um caso não computado por falta de informação de idade de um indivíduo.
61
Tabela 1. 5 - Chefes de fogo, segundo sexo e estado matrimonial - Paróquia de Santa Luzia, 1831
Homem Mulher Total
N % N % N %
Solteiro 74 19,0 184 67,6 258 39,0
Casado 286 73,3 15 5,5 301 45,5
Viúvo 30 7,7 73 26,8 103 15,6
Total 390 100,0 272 100,0 662 100,0
Fonte: Listas Nominativas de Habitantes de 1831(microdados)
Tabela 1. 6 - Ocupação de mulheres chefes de fogo, segundo cor/qualidade - Paróquia de Santa Luzia, 1831
Total Ocupação S/ infor mação
Branco Crioulo Pardo Cabra Africano Outro N %
Fiadeira 1 9 61 116 17 2 2 208 76,47
Sem informação
- 2 15 13 3 1 34 12,50
Costureira - 3 - 3 - - - 6 2,21
Lavrador - 4 1 1 0 0 0 6 2,21
Agência - 2 - 1 - 1 - 4 1,47
Serviço Doméstico
- 3 - 1 - - - 4 1,47
Tecedeira - - - 2 1 - - 3 1,10
Indigente - - - 2 - - - 2 0,74
Artífice - - - 1 - - - 1 0,37
Enfermo, deficiente ou idoso
- - - 1 - - - 1 0,37
Florista - - - 1 - - - 1 0,37
Madre Regente
- 1 - - - - - 1 0,37
Negociante - - - 1 - - - 1 0,37
Total N 1 24 77 143 21 4 2 272 100,00
% 0,37 8,82 28,31 52,57 7,72 1,47 0,74 100,00
Fonte: Listas Nominativas de Habitantes de 1831(microdados)
62
Tabela 1. 7 - População escrava, por idade, segundo sexo e origem - Paróquia de Santa Luzia, 1831
Homem Mulher Total Grupo
De Idade N % N % N %
Razão de Sexo
Crioulos
0-15 163 37,0 176 32,7 339 34,6 92,6
16-40 216 49,1 257 47,7 473 48,3 84,0 41-60 44 10,0 85 15,8 129 13,2 51,8 61+ 17 3,9 21 3,9 38 3,9 81,0 Total 440 100,0 539 100,0 979 100,0 81,6
Africanos
0-15 16 5,7 22 14,9 38 8,9 72,7 16-40 178 63,8 82 55,4 260 60,9 217,1 41-60 67 24,0 33 22,3 100 23,4 203,0
61+ 18 6,5 11 7,4 29 6,8 163,6 Total 279 100,0 148 100,0 427 100,0 188,5
Fonte: Listas Nominativas de Habitantes de 1831 (microdados)
Nota: 10 casos não foram computados por falta de informação sobre cor/etnia e um por falta de informação de idade.
63
Tabela 1. 8 - População, segundo condição social, por sexo - Paróquia de Santa Luzia, 1872
Homem Mulher Total
N % N % N %
Razão de sexo
Livre 2212 72,2 2221 72,4 4433 72,3 99,6
Escravo 850 27,8 845 27,6 1695 27,7 100,6
Total 3062 100,0 3066 100,0 6128 100,0 99,9
Fonte: Recenseamento Geral do Império de 1872
Tabela 1. 9 - Crescimento da população - Paróquia de Santa Luzia, 1831-1872 Variação absoluta Variação relativa
(absoluta/1831) Taxa de crescimento
geométrico anual médio (%)
Homem Mulher Total Homem Mulher Total Homem Mulher Total
Livre 1021 599 1620 85,7 36,9 57,6 1,48 0,75 1,09
Escravo 125 155 280 17,2 22,5 19,8 0,38 0,48 0,43
Total 1146 754 1900 59,8 32,6 44,9 1,12 0,67 0,89
Fontes: Listas Nominativas de Habitantes de 1831 e Recenseamento Geral do Império de 1872
64
Tabela 1. 10 - Ocupação, por sexo e condição social - Paróquia de Santa Luzia, 1872
Livre Escravo Total Ocupação Homem Mulher Total Homem Mulher Total N %
Lavradores 1309 321 1630 595 200 795 2425 39,46
Sem Profissão 501 423 924 183 204 387 1311 21,33
Serviço Doméstico 25 762 787 42 385 427 1214 19,75
Operários em Tecidos - 349 349 - 23 23 372 6,05
Costureiras - 296 296 - 19 19 315 5,13
Criados e Jornaleiros 178 65 243 24 18 42 285 4,64
Comerciantes, Guarda-Livros e Caixeiros
48 1 49 - - - 49 0,80
Operários em Calçados 43 - 43 4 - 4 47 0,76
Operários em Madeira 43 - 43 2 - 2 45 0,73
Operários em Vestuário 20 - 20 2 - 2 22 0,36
Operários em Metais 14 - 14 0 - 0 14 0,23
Operários em Edificações 8 - 8 2 - 2 10 0,16
Professores e homens de letras
3 - 9 - - - 9 0,15
Artistas 6 - 6 - - - 6 0,10
Notários e Escrivãos 4 - 4 - - - 4 0,07
Farmacêuticos 3 - 3 - - - 3 0,05
Pescadores 3 - 3 - - - 3 0,05
Capitalistas e Proprietários 2 1 3 - - - 3 0,05
Advogados 2 - 2 - - - 2 0,03
Oficiais de Justiça 2 - 2 - - - 2 0,03
Médicos 2 - 2 - - - 2 0,03
Religiosos Seculares 1 - 1 - - - 1 0,02
Empregados públicos 1 - 1 - - - 1 0,02
Operários em Chapéus 1 - 1 - - - 1 0,02
Total 2219 2224 4443 854 849 1703 6146 100,00
Fonte: Recenseamento Geral do Império de 1872
Nota: Não foi encontrado nenhum caso para religiosos seculares, juiz, procurador, cirurgião, parteiro, militar, marítimo, manufatureiros e fabricantes, canteiro, calcoteiro, mineiro, cavouqueiro, operário em couros e peles, operários de tinturaria e criadores.
65
Tabela 1. 11 - População, por idade, segundo sexo e condição social - Paróquia de Santa Luzia, 1872
Homem Mulher Total Grupo
De Idade N % N % N %
Razão de Sexo
Livre
0-15 424 19,2 474 21,3 898 20,3 89,5
16-40 1294 58,5 1263 56,9 2557 57,7 102,5
41-60 386 17,5 389 17,5 775 17,5 99,2
61+ 108 4,9 95 4,3 203 4,6 113,7
Total 2212 100,0 2221 100,0 4433 100,0 99,6
Escravo
0-15 115 13,5 106 12,5 221 5,0 108,5
16-40 552 64,9 551 65,2 1103 24,9 100,2
41-60 156 18,4 162 19,2 318 7,2 96,3
61+ 27 3,2 26 3,1 53 1,2 103,8
Total 850 100,0 845 100,0 1695 38,2 100,6
Fonte: Recenseamento Geral do Império de 1872
Tabela 1. 12 - Origem do escravos, por sexo - Paróquia de Santa Luzia, 1872
Total Origem Homens Mulheres
N % Razão de Sexo
Bahia 5 6 11 0,7 83,3
Minas Gerais 804 821 1625 95,7 97,9
África 41 21 62 3,6 195,2
Total 850 848 1698 100 100,2
Fonte: Recenseamento Geral do Império de 1872
66
Capítulo 2 – Santa Luzia e o Comércio de Escravos
2.1 – O debate historiográfico em torno da origem dos escravos de Minas Gerais
Quatro milhões: este é o número estimado de escravos africanos recebidos pelo
Brasil enquanto durou o tráfico internacional de escravos para as Américas. Teríamos
recebido cerca de 40% dos quase 10 milhões de cativos que desembarcaram no novo
mundo77, chegando estes a constituir o principal item de importação colonial. A
importância do comercio de escravos na história brasileira, seja do ponto de vista
econômico, político ou cultural, aponta para “uma organicidade ímpar entre o Brasil e a
África”78.
Minas Gerais, embora situada no interior do continente, também se tornara uma
das “margens do Oceano Atlântico” a partir do século XVIII, quando a exploração de
riquezas minerais, poderosa importadora de escravos, ligou a região, indissoluvelmente,
ao continente africano. Na verdade, ainda se conhece pouco sobre o tráfico de escravos
para Minas Gerais. Certo é que, ao longo de todo o século XIX, a Capitania, depois
Província, logrou concentrar o maior contingente mancípio do Brasil – 168.543 almas
em 1819, ou 15% da população escrava brasileira e 381.893, em 1872, quase um quarto
do total nacional.79
O debate sobre a base de uma tão numerosa população escrava – importação ou
crescimento vegetativo – nasce no bojo da historiografia revisionista que vem
questionar, no final da década de 1970, a tese de que Minas Gerais teria entrado em
crise a partir da segunda metade do século XVIII, com o esgotamento da reservas
auríferas de aluvião. De fato, parecia estranho que uma região que abrigava tão
numeroso contingente de mão-de-obra cativa pudeste estar completamente estagnada,
77 CURTIN, 1969. p. 268. 78 FLORENTINO, 1997. p. 23. 79 MARTINS, 1982. p. 12.
67
tendo revertido para a agricultura doméstica de subsistência, com quase total ausência
de penetração na economia de mercado.80
Foi precisamente este questionamento que motivou as pesquisas de Roberto
Martins, autor pioneiro nos estudos sobre o tema. Como veremos adiante, Martins foi e
continua sendo uma figura chave na polêmica em torno do volume das importações
mineiras de escravos, devido tanto ao caráter ousado e inovador de suas afirmações de
1980, que inauguraram o debate, quanto à maneira enfática e inflexível com que ele tem
defendido as mesmas posições até os dias de hoje.
Em sua Tese de Doutoramento, de 198081, Martins argumenta que a Minas
Gerais oitocentista teria sido o único sistema escravista de peso, no Novo Mundo, a não
depender da produção para o mercado externo. Com o declínio da produção aurífera,
Minas teria prosperado com base na agricultura e pecuária para consumo interno, sendo
a economia mineira marcada por uma diversidade de atividades produtivas, tanto a nível
das unidades de produção, quanto a nível regional. Mais importante para o nosso
enfoque é que o autor conclui, com base em estimativas elaboradas com dados extraídos
de Mapas de População de 1819 e 1822, que Minas Gerais fora um maciço importador
de escravos, o maior dentre todas as províncias brasileiras, até o fim do tráfico atlântico
em 1850. Além disto, Martins combate a noção, antes largamente aceita pela
historiografia, de que a mão-de-obra cativa mineira, subaproveitada desde a crise da
mineração no século XVIII, teria suprido de braços, na centúria seguinte, as zonas
cafeeiras das províncias do Rio de Janeiro e de São Paulo e busca coligir evidências de
que o contrário teria ocorrido. Em suma, durante grande parte do século XIX, “os
escravos estavam sendo importados do Rio de Janeiro (ou melhor, da África via Rio de
Janeiro) para Minas Gerais e não no sentido inverso”82.
80 A discussão historiográfica feita nesta seção baseia-se, em grande parte, em LIBBY, Douglas Cole. Notes on the slave trade and natural increase in Minas Gerais in the eighteenth and nineteenth centuries. November, 2004. DRAFT (Citado com a permissão do autor).
81 MARTINS, 1980. 82 MARTINS, 1982. p. 24.
68
Minas teria continuado a importar escravos, embora em menor escala, após o
fechamento do tráfico internacional. Todavia, ao contrário do que normalmente se
supunha, as zonas produtoras de café da província não seriam as maiores responsáveis
pela demanda por braços escravos, uma vez que esta cultura só alcançaria grande
importância na Província de Minas nas últimas décadas do século XIX. Ou seja, mesmo
durante a segunda metade do Oitocentos, a grande consumidora de mão-de-obra escrava
continuaria sendo a agricultura não exportadora.
O debate ganha força nas páginas da Revista “Hispanic American Historical
Review”. Ali, Martins publica, três anos mais tarde, um artigo, escrito em parceria com
seu irmão, Amílcar Martins, no qual reitera os argumentos acima expostos83. Vários
estudiosos esboçam críticas às posições dos Martins, em um suplemento do mesmo
periódico, sublinhando principalmente a necessidade de se pensar o papel da reprodução
natural no crescimento da população mancípia84. A resposta de Roberto e Amílcar
Martins vem no ano seguinte, na mesma publicação e surpreende pela inflexibilidade:
os irmãos não cedem em absoluto às críticas, mantendo sua posição original85.
Anos mais tarde, em 1996, em um momento em que, como veremos adiante, já
haviam surgido uma série de estudos motivantes sobre o assunto, Roberto Martins
continuava a sustentar os mesmos argumentos, e de maneira ainda mais incisiva. Em
suma, Minas, segundo o mesmo, tinha sido o segundo maior importador de escravos no
século XIX, perdendo somente para Cuba, e o crescimento da população mancípia da
província devia-se inteiramente à importação, inexistindo quaisquer indícios de
crescimento vegetativo. De fato, as médias anuais do influxo de escravos para a
província teriam correspondido às elevadíssimas cifras de 4.025 cativos, durante o
período 1808-1819, e 7.716, de 1819 a 1855. A economia cafeeira, que só se
83 MARTINS FILHO; MARTINS, 1983. p. 537-568. 84 HISPANIC AMERICAM HISTORICAL REVIEW, 1983. p. 569-581, . 582-584), p. 585-590. 85 MARTINS FILHO; MARTINS, 1984. p. 135-146.
69
desenvolveria em um período mais tardio, não teria concentrado as importações de
escravos africanos86.
Trabalhando com despachos e passaportes de escravos da Intendência de Polícia
da Corte, algumas das raras fontes diretas sobre o tráfico de escravos a partir do porto
do Rio de Janeiro, João Fragoso empreende vários estudos que, pelo menos em parte, se
coadunam com as estimativas de Martins. No mais antigo deles, “Homens de Grossa
Aventura”, publicado em 1992, e que compreende o período 1822-1833, o autor calcula
que Minas Gerais teria absorvido 48,4% dos escravos despachados da Corte, enquanto
às áreas cafeeiras do Vale do Paraíba e Norte Fluminense juntas se destinariam 36,5%
do total de escravos.
Em um segundo artigo, datado de 2001, que pretende compreender a estrutura e
a dinâmica da Praça Mercantil de Rio de Janeiro, escrito em co-autoria com Manolo
Florentino87, Fragoso estima que, no período 1825-1830, quatro em cada 10 escravos
aportados no Rio de Janeiro eram posteriormente vendidos nas Minas Gerais. No
mesmo ano, Fragoso e Ferreira publicam os resultados da ampliação da pesquisa
documental feita para “Homens de Grossa Aventura”, cobrindo o espaço de tempo
decorrido entre 1819 e 1833.88 Os autores procuram compreender qual fora o volume do
tráfico negreiro para o porto do Rio de Janeiro, nas décadas de 20 e 30 do Oitocentos e
em que proporção estes cativos eram conduzidos para as Minas Gerais.
Fragoso e Ferreira sugerem que, entre 1825 e 1830, os escravos novos
corresponderiam sempre a mais de 90% dos escravos levados da Corte para serem
vendidos em outras regiões. Esta situação aparentemente se inverteria entre 1830 e
1833, com a percentagem de escravos novos caindo abruptamente e finalmente
desaparecendo. Os autores levantam a hipótese, todavia, de que o desaparecimento dos
escravos novos em 1833 seria conseqüência de uma “artimanha” da documentação. Na
86 MARTINS, 1996. p. 99-130. 87 FRAGOSO; FLORENTINO, 2001, p. 162. 88 FRAGOSO; FERREIRA, 2001. p. 239-278.
70
verdade, os cativos recém chegados da África estariam sendo descritos nos códices
como ladinos, em uma estratégia para burlar a lei que punha fim ao tráfico em 1831.
Fragoso e Ferreira observam que Minas Gerais absorvera, entre 1824 e 1830,
53,5% de todos os escravos novos (contemplados na documentação) saídos do Rio de
Janeiro com destino a outras regiões. A participação mineira no mercado de escravos
novos era particularmente elevada, de 1826 até 1830, quanto dados sobre os mesmos
desaparecem da documentação, como mencionado anteriormente. Entre este ano e 1833,
todavia, Minas Gerais teria continuado a absorver quantidade significativa dos cativos
ladinos remetidos da Corte, sendo apontada como “a província que dominava na época
os despachos gerais de escravos da Corte, quer de novos ou ladinos”89. Lembrando que
estes escravos ladinos provavelmente eram cativos novos “disfarçados”, seria de se
esperar que Minas Gerais tivesse continuado a importar escravos fortemente no início
da década de 1830.
Em outras palavras, Fragoso e Ferreira põem em dúvida a cronologia
correntemente aceita para os desembarques de cativos africanos no Brasil, proposta, por
exemplo, por David Eltis90. Em um trabalho sobre o fechamento do tráfico atlântico de
escravos, Eltis afirma que, após um período de compra intensa de escravos no decorrer
da década de 20 do século XIX, o trato negreiro para o Brasil sofrera, na primeira
metade dos anos 30, uma drástica queda. Após 1834, todavia, este ramo do comércio
teria voltado à vida, com intensidade, e a década de 1840 teria conhecido um fluxo
bastante intenso de cativos africanos para o Brasil, até o cessamento definitivo do
tráfico em 185091. Entretanto, de acordo com a hipótese de Fragoso e Ferreira, a queda
na importação de escravos entre 1830 e 1834 não teria ocorrido. O porto do Rio de
Janeiro e a Província de Minas Gerais teriam continuado a experimentar a entrada
maciça de africanos ao longo das décadas de 30 e 40, como ocorrera no decênio
anterior.
89 FRAGOSO; FERREIRA, 2001. p. 247. 90 ELTIS, 1987. 91 ELTIS, 1987. p. 211.
71
Embora ainda apontem Minas como o maior importador entre as províncias do
Sul e Sudeste no século XIX, inclusive após a lei que encerrava o tráfico atlântico em
novembro de 1831, os dados de Fragoso e Ferreira divergem um pouco das estimativas
de Martins. São menores tanto o volume de escravos destinados à capitania/província
em 1819-1824, quanto a média anual de escravos absorvidos por Minas, a partir de
1819, a qual estes autores calculam em 5.133 – número que, apesar de muito
significativo, é bastante inferior aos 7.716 cativos por ano apontados por Martins.
A se aceitar os resultados apontados pelos vários estudos anteriormente
analisados, tem-se que, como província que comportava “a mais importante demanda
por cativos do país”92, Minas Gerais absorveu, até o fim real do tráfico internacional de
escravos, uma quantidade assombrosa de cativos, arrebanhando sempre em torno de
40% do total de escravos aportados na Corte. Esta espantosa absorção de escravos pela
província teria se mantido, segundo apontam, mesmo após 1831.
Nem todos os estudiosos da escravidão em Minas Gerais tiveram, todavia, tanta
segurança quanto ao papel preponderante do tráfico no crescimento da população
mancípia provincial. São vários os estudos que aventam a possibilidade de que, em
algumas situações no tempo e no espaço, a reprodução natural tenha contribuído para o
elevada população escrava mineira.
A partir dos últimos anos da década de 1980, começam a surgir estudos que
lidaram, a partir de diferentes perspectivas, com a questão da intensidade do tráfico
negreiro e da ocorrência de reprodução natural entre os escravos mineiros. Tratando de
locais e momentos no tempo diferenciados, estas várias pesquisas guardam em comum a
análise do problema através de evidências indiretas, em particular da composição das
populações cativas (distribuição por grupos etários, razão de sexo, proporção de
crioulos/africanos, taxa de dependência, taxa mulher/criança, etc.). Esta linha de análise
sendo uma imposição das fontes disponíveis, que não permitem determinar com rigor o
influxo de cativos. Além disto, via de regra as informações disponíveis têm um caráter
93 FRAGOSO; FERREIRA, 2001. p. 247.
72
fragmentário, com recortes temporais e espaciais pequenos, outra conseqüência da
escolha documental.
Em 1987, Libby já aponta em sua Tese de Doutoramento – posteriormente
editada como livro – para a necessidade um aprofundamento das pesquisas sobre o
influxo de escravos para Minas. Dados das Listas Nominativas de Habitantes, de
1831/2, explorados pelo autor, revelaram um núcleo de escravos nascidos no Brasil e
um relativo equilíbrio sexual entre os cativos, indícios de que as pressões oriundas do
tráfico poderiam ter diminuído com o tempo. O autor argumenta que seria mais
proveitoso procurar determinar qual a contribuição, tanto da importação quanto da
reprodução natural, para a composição da população mancípia mineira, que se prender
à disputa sobre qual das duas tendências seria mais importante.
Libby leva adiante as explorações sobre o tema do crescimento vegetativo da
população mancípia mineira e os resultados de suas pesquisas, realizadas em parceria
com vários estudiosos, vêm à tona ao longo das duas últimas décadas93. Baseadas
predominantemente em contagens populacionais, lidando com períodos e localidades
diferentes, estas pesquisas sugerem que, pelo menos em alguns distritos mineiros: (i) a
intensidade do tráfico de escravos havia diminuído consideravelmente na última década
do Setecentos e primeira do Oitocentos; (ii) era preciso levar em conta a possibilidade
de que, já na década de 1820, tanto importação quanto crescimento vegetativo
contribuíssem para o aumento do contingente escravo mineiro; (iii) no ano em que
entrou em vigor a lei que tornava ilegal o trafico, os africanos eram maioria em algumas
populações escravas de Minas Gerais. No entanto, já se havia formado um núcleo de
nativos que era capaz de contribuir para o crescimento da população mancípia como um
todo e que isto já acontecia provavelmente nas duas primeiras décadas do século XIX;
(iv) Finalmente, que, uma vez definitivamente findo o comércio de africanos para o
Brasil, em 1850, a população escrava tornara-se progressivamente capaz de reproduzir-
se naturalmente.
93 LIBBY; GRIMALDI, 1988. p. 26-43. PAIVA; LIBBY; GRIMALDI, 1988, p. 11-32. PAIVA; LIBBY, 1993. p. 2-15.
73
Uma análise da historiografia sobre tráfico negreiro e reprodução natural de
escravos em Minas Gerais não pode deixar de fora também as pesquisas de Tarcísio
Botelho, em especial sua Dissertação de Mestrado, defendida em 1994. O autor estuda o
distrito da Vila de Montes Claros, no século XIX, utilizando-se de listas nominativas de
habitantes, registros paroquiais e inventários, para entender os rumos do escravismo
local em face das transformações ocorridas na economia ao longo do século XIX. E
nota que o distrito, de pouca importância econômica em termos provinciais, mas um
centro a nível local, havia logrado preservar seus escravos, mesmo estando inserido no
tráfico interno como exportador. Assim, entre 1832 e 1872, o decréscimo do percentual
de escravos no total da população tinha sido, em Montes Claros, bem inferior que para a
Província como um todo. Além disto, a participação da população escrava local na
população escrava provincial tinha se mantido estável ao longo destas quatro décadas.
Analisando mais detidamente a população cativa local, Botelho nota um
decréscimo da idade mediana, um aumento da população de origem nacional face à de
origem africana e, dentro desta população de origem nacional, um equilíbrio entre os
sexos e uma distribuição etária bem próximos dos de uma população que não tenha
sofrido influxo migratório. Ë com base nestes indícios que o autor propõe a hipótese de
que a população escrava de Montes Claros era capaz de se reproduzir naturalmente.
Mais ainda, os senhores de escravos do norte mineiro teriam conseguido, através da
reprodução natural, manter os seus plantéis – quiçá como fruto de uma estratégia
consciente – em conjunturas econômicas desfavoráveis e em “regiões subordinadas e
pouco dinâmicas”94. Além disto, a vida em família parece ter sido a norma entre a
população escrava estudada, mesmo em face às pressões do mercado interno de cativos.
Evidências foram encontradas pelo mesmo Tarcísio Botelho, em trabalho
conjunto com Clotilde Paiva, sugerindo que a reprodução natural da população escrava
provavelmente ocorrera, com variações no tempo e no espaço, em todas as regiões da
província, sendo praticamente universal por volta de 187095. Neste artigo, que analisa a
94 BOTELHO, 1994. p. 76. 95 PAIVA; BOTELHO, 1995.
74
história demográfica de Minas Gerais de 1830 a 1870, os autores sugerem que, findo o
tráfico internacional, em 1850, a distribuição da população escrava provincial teria
sofrido um “rearranjo”. A região Mineradora Central, por exemplo, teria perdido
população mancípia ao longo do período 1855-1872, com os cativos sendo vendidos
para regiões economicamente mais dinâmicas, tanto dentro quanto fora da província.
Muito embora a possibilidade de ocorrência de reprodução natural entre os
escravos mineiros, em alguns lugares e períodos específicos, seja apontada pelos
estudiosos anteriormente mencionados, nenhum deles assumiu uma posição tão radical
e enfática sobre o assunto quanto Laird Bergad.
O primeiro trabalho deste autor – que já escrevera sobre o escravismo em Cuba e
Porto Rico – tomando como palco o território mineiro, lida com o processo demográfico
da população escrava no Termo de Mariana, durante o período que se estende de 1750
ao ano da chegada da Corte portuguesa ao Brasil, 180896. Tendo como principais fontes
as avaliações de escravos em inventários post-mortem, Bergad conclui que o
desaquecimento econômico da região mineradora central, a partir de 1760, levara a uma
quase cessação da importação de escravos, o que resultou em uma série de tendências
positivas em termos de reprodução natural. Tais conclusões derivam da análise de certas
características demográficas dos cativos, das quais as mais significativas são: a
preponderância, desde a segunda metade da década de 1780, dos escravos nascidos no
Brasil; uma situação de equilíbrio entre os sexos durante todo o período; e, por fim, um
progressivo aumento da participação de cativos nativos jovens (de 1 a 14 anos) no total
da população mancípia, grupo que, segundo os dados do autor, representava quase 1/3
da população escrava entre 1805-1808.
Da ampliação desta pesquisa, nasce, cinco anos mais tarde, em 1999, o livro
”Slavery and the Demographic and Economic History of Minas Gerais, Brazil, 1720-
1888”. Este ambicioso trabalho, que, como já informa o título, pretende dar conta da
história demográfica de Minas durante todo o seu período escravista, se apoia em um
monumental banco de dados elaborado a partir de avaliações de escravos em inventários
75
post-morten, e em contagens e estimativas populacionais, e cobre as localidades de Vila
Rica, Mariana, São João e São José del Rei e Diamantina.
Bergad enfatiza o caráter sui generis do escravismo mineiro, que residiria em
duas características básicas. Em primeiro lugar, Minas seria a única economia
largamente dependente do trabalho escravo a se basear na agropecuária para consumo
interno, realidade alcançada após “uma bem sucedida transição das estruturas
moldadas” pela mineração97. Em segundo lugar – e mais importante, já que é aqui que
reside a novidade da análise – ao longo do todo o Oitocentos, Minas, como o Sul dos
Estados Unidos, teria testemunhado o aumento de seu contingente mancípio quase que
exclusivamente via reprodução natural.
Em suma, a análise consiste em uma extensão para toda a província das
conclusões a que o autor chegara para o Termo de Mariana, sendo, inclusive, os
argumentos e pistas, nos quais o autor se apóia, os mesmos de seu primeiro trabalho.
Trata-se, como na quase totalidade dos estudos existentes sobre este assunto, de
evidências indiretas, como as variações na razão de sexo e nos “índices de
africanidade”. Segundo Bergad, o crescimento da população escrava de Minas Gerais
fora acompanhado de um processo contínuo e estável de “crioulização/nacionalização”.
Em 1795, os crioulos já eram a maioria em sua amostra de inventários e sua
participação só faz crescer ao longo do XIX, tanto antes quanto depois do fim do
tráfico. Além disto, o desequilíbrio sexual da população escrava tende a uma contínua e
progressiva diminuição. A combinação destas tendências leva o autor a concluir que a
importação de escravos para Minas Gerais tinha sido reduzida a números muito
pequenos já na segunda metade do XVIII e continuara pouco expressiva nas primeiras
décadas do XIX, com exceção de alguns períodos esporádicos de reaquecimento (1790-
1795; 1805-1815; 1820-1830), e que, portanto, a reprodução natural era responsável por
96 BERGAD, 1996. p. 67-97. 97 LIBBY, 2001. p. 279-304, p.287.
76
grande parte do crescimento estável da população escrava, que se tornava mais
marcadamente “nativa/crioula” ao longo do tempo98.
Uma fundamentada análise do conjunto das pesquisas de Bergad pode ser
encontrada em um artigo de Douglas Libby, escrito a pedido dos organizadores do I
Seminário de História Quantitativa e Serial, que ocorreu em fins do ano 2000. Libby,
que, em linhas gerais, defende a existência de processos de reprodução natural entre os
escravos mineiros (como de resto já deve ter ficado claro nas alusões feitas
anteriormente a suas várias pesquisas sobre o tema), acredita que Bergad cometeu
simplificações e generalizações extremas. Assim, Libby questiona a noção de que o
crescimento vegetativo de populações cativas tenha sido, desde fins do Setecentos, uma
realidade provincial e defende que, pelo menos até 1850, certas regiões, como a Zona da
Mata e Diamantina, de relativamente alto desenvolvimento econômico, foram
dependentes do tráfico de escravos.
Além disto, são tecidas sérias críticas à base empírica da pesquisa.99. Libby
adverte que vários dos “censos” utilizados não passam de estimativas, e que, à exceção
do Recenseamento Geral do Império de 1872, não informam a origem dos escravos (se
africanos ou nativos). Mas as principais críticas se referem à qualidade dos dados
colhidos dos inventários, os quais não seriam adequados para este tipo de análise.
Vários problemas ligados a este tipo de documentação foram apontados por
Libby.
Por um lado, as questões que dizem respeito à representatividade da amostra, em
termos geográficos, devido aos desmembramentos administrativos que se sucederam a
partir da última década do Oitocentos, e que tiveram como conseqüência a não
contemplação, por Bergad, de regiões dinâmicas da economia mineira, como o Sul e a
Zona da Mata, as quais eram, muito provavelmente, importadores de cativos em pelo
menos boa parte do período em tela.
98 BERGAD, 1996. p. 130. 99 LIBBY, 2001.
77
Por outro lado, Libby aponta os problemas inerentes aos inventários, como, por
exemplo, a temporalidade do “retrato” dos bens ali arrolados; devendo-se ter em mente
que o documento é produzido no momento da morte do senhor de escravos, fase muito
específica do “ciclo” da própria posse escravista. Como nos lembra Gutman100, as
diferentes fases da vida dos senhores se refletiriam na composição de sua escravaria.
Assim, parece plausível pensar, por exemplo, que um senhor moço, no começo da vida,
recorreria com muito mais freqüência ao mercado de escravos, já que vivia um
momento de investimento e montagem de sua unidade produtiva. Em oposição, um
velho fazendeiro, proprietário de longa data, talvez tivesse dentre os seus bens um
plantel escravo já transformado em uma comunidade, que contava com várias famílias e
quiçá cresceste por si mesmo. Em outras palavras, os inventários não refletiriam
necessariamente o caráter das posses de escravos como um todo, em um dado momento.
E um terceiro problema visto por Libby, no tipo de documentação a que Bergad
recorreu, está relacionado à sobrevivência dos inventários. Em que medida os que
restaram são uma amostra fidedigna do universo original? Libby, que já efetuara
cruzamentos de inventários com um censo eclesiástico para São José del Rei, suspeita
que, com freqüência, os inventários de grandes proprietários tenham desaparecido. Em
suas palavras, “é bastante plausível sugerir que, de uma forma ou de outra, as famílias
da elite mineira e seus advogados conseguiam ficar de posse de inventários que
deveriam ter permanecido nos cartórios”101. Acreditamos que esta afirmativa seja
também válida para os arquivos cartoriais de Santa Luzia, com os quais tivemos
bastante contato. Ou seja, “por uma razão ou outra, os inventários não dão conta de
certas nuanças regionais e nem do verdadeiro peso da presença africana na população
escrava”102.
100 GUTMAN, 1976. 101 LIBBY, 2001. p. 295. 102 LIBBY, 2001. p. 295.
78
2.2 – O caso de Santa Luzia: os Registros Paroquiais de Batismo de Escravos
Adultos como indicadores do volume do tráfico de escravos.
Recentemente, os registros de batismo de escravos adultos emergiram como uma
alternativa para o estudo do tráfico de escravos a nível local. Provavelmente mais
confiáveis que os inventários utilizados por Bergad, tais fontes já foram utilizadas por
alguns estudiosos nos últimos anos103. A maioria das pessoas levadas à pia batismal
para receber o primeiro sacramento de suas vidas era formada por crianças pequenas,
designadas na documentação como “inocentes”, ou seja, tinham menos de 7 anos de
idade e ainda não haviam feito a primeira comunhão. Ainda assim, algumas pessoas
eram batizadas em idade maior, sendo que, nos registros paroquiais, aqueles que tinham
mais de 7 anos eram descritos como “adultos”. Na prática, tratava-se, quase sempre, de
cativos recém chegados da África, que no ato do batismo recebiam um nome e
padrinhos. Os registros de batismo de adultos também serviam para confirmar a posse,
já que no assento constava o nome do senhor, sendo tais documentos aceitos como
prova em processos judiciais. É bom lembrar que alguns escravos recebiam o
sacramento ainda no continente africano e que regiões como Luanda e o Congo sentiam,
havia já muito tempo, a presença da Igreja Católica e influências poderosas da cultura
portuguesa. Principalmente no caso dos angolanos, é possível que alguns deles tivessem
sido incorporados ao rebanho da Igreja desde o seu nascimento, caso os seus pais
tivessem abraçado a fé católica, ou que fossem já cativos em solo africano, tendo sido
ali batizados pouco depois de sua captura. Além disto, o porto de chegada em terras
brasileiras também era palco do batismo de negros novos. Todavia, a freqüência com
que, em Santa Luzia, um grupo de escravos adquirido em uma mesma transação pelo
proprietário, era batizado em uma cerimônia conjunta, registrada no livro em um só
assento, atesta que os batismos de escravos adultos podem servir como indicadores
indiretos do tráfico de escravos para a região.
A nossa intenção é, portanto, através dos assentos de batismo de cativos adultos,
nos posicionarmos no debate historiográfico acima delineado, principalmente no sentido
103 Ver, por exemplo, OLIVEIRA, 2004.
79
de averiguar em que medida as análises de Bergad e Martins – os dois extremos –
seriam aplicáveis a Santa Luzia. Pode-se argumentar que, com a vigência da lei que
proibia o tráfico em 1831, os senhores teriam deixado de batizar os escravos africanos
adquiridos no mercado, tornando os registros paroquiais inúteis para o estudo do tráfico
negreiro internacional desta data em diante. Gostaríamos de lembrar, contudo, que, em
primeiro lugar, as atitudes senhoriais não eram apenas ditadas por interesses
econômicos, mas também por estratégias políticas e valores morais, dentre os quais
estavam incluídas uma série de práticas religiosas. Em segundo lugar, devemos ter em
mente que as autoridades brasileiras fecharam os olhos ao contrabando de escravos nas
décadas de 30 e 40. Parece-nos, portanto, pouco provável que senhores deixassem de
levar seus cativos à pia batismal por temor a uma lei que permanecia como letra morta.
Há 202 assentos de batismo de escravos adultos para todo o período estudado,
dos quais apenas 8 ocorreram após o fechamento do tráfico atlântico (Tabela 2.1).
Como seria de se esperar, os homens constituem vasta maioria entre os escravos
adultos batizados (Tabela 2.2). Havia 21,5 homens para cada 10 mulheres, proporção
bastante elevada, muito mais alta que aquela encontrada para o total da população
escrava de Santa Luzia, em 1831.
Analisando a “cor” ou a “nação” dos adultos batizados (Tabela 2.2),
percebemos, não sem um certo desapontamento, que esta informação não consta em
quase 40% dos assentos. Dentre os adultos que tiveram sua origem explicitada no
assento, apenas dois podem ser claramente percebidos como brasileiros, sendo um
crioulo e um mulato. Três escravos foram descritos como “pretos”, categoria que, a
princípio, parece designar indivíduos oriundos do continente africano. Todavia, o
emprego de categorias atinentes à cor parece ter sofrido mudanças de significado ao
longo do século XIX, o que torna mais complicada a inclusão destes cativos entre o
grupos dos aqui nascidos ou entre os estrangeiros. A analise da classificação dos
escravos de acordo com a “nação” africana também é problemática. Sabemos que
termos como “cabinda”, “angola”, “mina”, etc., são construções dos colonizadores, e
não são, necessariamente, tradução de identidades africanas. Não designavam,
tampouco, locais de nascimento na África, mas os portos a partir dos quais os cativos
tinham sido embarcados. É claro que estas designações podiam ser posteriormente
80
incorporadas pelos africanos e se tornar parte da nova identidade que construíam para si
no novo mundo. Bastante ilustrativo desta situação é o caso de um forro africano que,
vivendo já havia muitos anos em Minas, escolhera “Costa da Mina” para nome de seu
sítio104. Todavia, no tipo de análise aqui desenvolvida, a cor/nação dos escravos adultos
que recebiam o sacramento do batismo serve apenas como indicativo dos portos
africanos de onde partiam os escravos que foram absorvidos pelos senhores de Santa
Luzia. A maioria dos cativos adultos batizados na Paróquia de Santa Luzia, para os
quais temos informação sobre cor/nação, eram africanos, sendo a maior parte
proveniente do litoral oeste da África, principalmente de regiões do Congo e de Angola.
A distribuição temporal dos batizados de africanos pode ser examinada mais
convenientemente no Gráfico 2.1. Notamos que há uma tendência ascendente do
número de batizados até meados da década de 20, quando o ano de 1825 marca um
momento de baixa no volume de batismos. Logo em seguida há uma recuperação e o
volume de batismos de adultos encontra seu ponto mais elevado em 1832. A partir daí, a
quantidade de assentos decai drasticamente e jamais volta a recuperar-se.. Quanto aos
escravos batizados após o fim real do tráfico (ver Tabela 2.1), sete o foram entre 1852 e
1854, e estes com quase certeza haviam entrado no país antes de 1850, sendo batizados
um pouco tardiamente. Um adulto foi batizado em 1862 e é possível que estivesse à
beira da morte; sem que se soubesse ao certo se havia sido batizado, teriam ,então,
providenciado o seu batismo, procurando salvar sua alma. Estes dados permitem
caracterizar a localidade enquanto importadora e não exportadora de mão-de-obra cativa
na primeira metade do XIX.
Ainda assim, percebemos que o recurso dos proprietários ao mercado de
escravos africanos não era muito intenso, sendo seis a média anual de escravos adultos
batizados na localidade, para o período anterior a 1850. Em apenas 10, dos 32 anos
decorridos entre 1818 e 1850, foram batizados seis ou mais escravos, enquanto em 21
destes 32 anos foram batizados quatro escravos ou menos (ver Tabela 2.1). O ano com
maior incidência de batizados de escravos adultos é 1832, com 40 assentos, seguido por
104 PAIVA, 2004.
81
1822, com 16. Até 1835, já haviam sido batizados 77% de todos os escravos adultos que
o seriam no século XIX. Isto significa que, mesmo antes do fechamento efetivo do
tráfico externo, Santa Luzia já havia reduzido em muito a sua demanda por escravos
africanos importados (ver Gráfico 2.1).
É muito significativo que o ano de “pico” de batismos de adultos seja 1832. Ao
que parece, os cativos que receberam o sacramento neste ano são aqueles que chegaram
ao Brasil imediatamente antes que a ilegalidade do tráfico entrasse em vigor, em
novembro de 1831. Acreditamos que uma análise mais apurada desta leva de batismos
possa nos auxiliar na compreensão da dinâmica da importação de escravos para o
interior de Minas Gerais.
Quem estaria comprando escravos naquele momento, visto pelos
contemporâneos como a última chance de se adquirir “peças novas”? Apenas sete
senhores tiveram seus escravos batizados em 1832. Entretanto, o mais impressionante é
que 29 dos 40 cativos batizados naquele ano pertenciam ao Comendador Manoel
Ribeiro Vianna, rico fazendeiro que, mais tarde, se tornaria Barão de Santa Luzia.
Ribeiro Vianna tivera ao todo 117 escravos (entre adultos e inocentes) batizados no
período em tela. Apenas dois ou três senhores de escravos locais podiam rivalizar com o
tamanho de sua posse escravista, dentre eles a família Fonceca Ferreira105 e Quintialiano
Rodrigues da Rocha Franco, o primeiro Barão de Santa Luzia. O Comendador
promovera, na maior parte das vezes durante aquele ano, cerimônias de batismo
conjuntas: teve um escravo batizado em 19 de fevereiro, nove, em 22 de junho, cinco,
em 19 de agosto, e quatro, em 28 de outubro. Além disto, no assento de batismo de
outros 10 cativos pertencentes a este senhor, não consta o mês, mas, a se julgar pela data
dos assentos anteriores ou posteriores, tal evento ocorreu de junho a setembro daquele
mesmo ano. Em outras palavras, a concentração dos batismos de adultos em 1832 deve-
105 O domicílio chefiado por D. Joaquina Claudina de Santa Rita era maior fogo escravista, segundo dados da Lista Nominativa de 1831. Juntos, os irmãos D. Joaquina Claudina, Capitão Antônio da Fonceca Ferreira, Tenente Coronel Joaquim da Fonceca Ferreira e o Sargento Mor Manoel da Fonceca Ferreira tiveram 216 escravos batizados na Paróquia de Santa Luzia, grande parte dos quais eram propriedade de uma sociedade firmada entre eles.
82
se, em grande parte, ao recurso de um dos mais abastados senhores de escravos de Santa
Luzia ao mercado de cativos.106
Embora o nome do Comendador Manoel Ribeiro Vianna apareça pela primeira
vez na documentação paroquial por nós utilizada em 1819, quando recebe o sacramento
do batismo o inocente Bernardino, filho natural de sua escrava Roza Benguela, somente
na década de 30 começaram a abundar os registros de batismo de “crias” a ele
pertencentes. Ou seja, Ribeiro Vianna aproveitara o que acreditava ser a última
oportunidade de comprar cativos africanos para ampliar consideravelmente o seu
plantel. Ao todo, tivera 48 escravos adultos batizados no período coberto pela nossa
documentação, 3/5 dos quais o foram em 32.
Além do Comendador Manoel Ribeiro Vianna, o único senhor de uma posse de
escravos de maior vulto a ter cativos batizados, em 1832, foi o Capitão Antonio da
Fonceca Ferreira, cujo poderio econômico já foi anteriormente sublinhado. Ainda assim,
o Capitão e seus irmãos tiveram apenas 3 cativos adultos batizados naquele ano e, 14,
em todo o período enfocado. Todos os outros senhores de cativos adultos batizados em
1832 possuíam aparentemente empreendimentos menores, como indica o reduzido
número de escravos inocentes de sua propriedade constante nos registros paroquiais. O
Alferes Manoel de Amaral Homem tivera cinco cativos inocentes batizados, ao longo de
todo o período em tela, e três adultos, em 1832; O também Alferes Serafim Thimotheo
de Lima, que aparece como proprietário de dois escravos adultos que receberam o
batismo em 1832, teve somente três inocentes, frutos de seu plantel, batizados durante o
século XIX. Já Antonio Coelho Ferreira consta nos registros como senhor de apenas
dois bebês escravos e de um cativo africano, que recebeu o sacramento em 1832. Joze
Rodrigues Portos aparece apenas uma vez na documentação, na ocasião do batizado de
um escravo adulto. Única mulher a ter um cativo adulto batizado naquele momento,
106 Poder-se-ia sugerir que Ribeiro Vianna era traficante de escravos. Embora esta hipótese não possa ser descartada, o fato de que ele estivesse batizando os cativos parece desmenti-la. Ele dificilmente teria batizado estes cativos se pretendeste revendê-los, já que a certidão do batismo funcionava como documento de comprovação de propriedade.
83
Maria dos Anjos, tem seu nome presente também no assento de batismo de um inocente,
filho de uma escrava de sua propriedade.
A análise da quantidade de escravos adultos batizados, ao longo de todo o
decurso de tempo abordado, dá suporte à hipótese de que Santa Luzia tinha uma baixa
inserção no mercado de escravos. Mais da metade dos proprietários que tiveram
escravos adultos batizados aparece na documentação como senhor de um único cativo
adulto. Quase 30% tiveram entre dois e cinco cativos adultos batizados. Depois do
Comendador, a sociedade de Antonio Joze Lobo e seu irmão foi a maior responsável
por batismos de escravos adultos, com 30 assentos. Havia ainda a família Fonceca
Ferreira, com seus 14 escravos adultos batizados e outros dois senhores, que tiveram,
respectivamente, 10 e nove cativos batizados.
Mais relevante é que a maior parte dos batismos de cativos adultos pertencentes
ao Comendador ocorreram entre 1827 e 1833. Este período corresponde, com um
pequeno “atraso”, precisamente ao período aceito comumente pela historiografia como
o de intenso recurso ao mercado de cativos (1826-1831)107, decorrência do acirramento
da pressão inglesa pelo fim do comércio negreiro. Este “atraso” pode nos ser
extremamente útil, pois permite que teçamos hipóteses acerca do tempo decorrido entre
o desejo de senhores mineiros de adquirir escravos novos, desembarcados no porto do
Rio de Janeiro, e sua efetiva absorção pelo mercado da Província.
Embora viajantes, cronistas e artistas nos tenham legado vários relatos e imagens
sobre os mercados de escravos nos portos de entrada no Brasil e alguns estudos tenham
sido conduzidos sobre as viagens dos tumbeiros e sua aportagem em solo brasileiro108,
são escassos os escritos sobre a condução e venda de cativos no interior. Sabemos que
escravos eram parte dos carregamentos das tropas de muares que abasteciam Minas
Gerais de todo tipo de gêneros e efetuavam o escoamento da produção agrícola e
pastoril de sítios e fazendas. Havia ainda comboieiros, que transportavam somente
107 Ver, por exemplo, FLORENTINO, 1997.
108 DINER; COSTA, 1999. FLORENTINO, 1997. GRAHAM, 1990. RODRIGUES, 1996; RUGENDAS, 1979. SLENES, 1994. p. 271-307.
84
cativos pelos caminhos. No inicio da ocupação do território mineiro, a maioria dos
tropeiros e comboieiros, mesmo aqueles que trabalhavam por conta própria, estavam
ligados a casas comerciais do Rio de Janeiro. Com o passar dos anos, especialmente a
partir da segunda metade do século XVIII, com o maior desenvolvimento da produção
agropecuária e expansão do mercado mineiro, surge a figura do “tropeiro/proprietário de
terra”, segundo a definição de Alcir Lenharo. Grandes fazendeiros tinham tropas a seu
serviço e pequenos produtores rurais comercializavam eles mesmos a sua produção.109
Segundo Cláudia Chaves110, o comércio de cativos no mercado interno não era,
na maioria das vezes, um ramo especializado e não havia uma distinção clara entre
tropeiros e comboieiros. De todos os registros de entrada de mercadorias na capitania ao
longo do século XVIII analisados pela autora, só nos do Caminho Novo aparecem com
freqüência carregamentos compostos exclusivamente por cativos. Nos demais, por onde
passavam tropas vindas da Bahia e de São Paulo, escravos eram transportados
juntamente com fazendas secas e molhadas, gado, cavalos e bestas. A autora descobriu,
analisando os registros de passagem, que mesmo no Caminho Novo, os mesmos
negociantes que transportavam, em algumas viagens, somente escravos, em outras
levavam cargas diversas. Ou seja, o transporte e comércio de escravos nas Minas eram
determinados pela demanda e os carregamentos de escravos provavelmente atendiam a
encomendas previamente feitas por proprietários mineiros111.
Este caráter não especializado do comércio das tropas seria uma decorrência da
instabilidade dos mercados, de forma que os produtos transportados variavam de acordo
com a demanda em cada momento. Nas palavras de João Fragoso, “a redução das
potencialidades de um dado setor mercantil, cuja procura já é a princípio restrita, levaria
o comerciante a se dirigir para outro”112. Esta deve ter sido exatamente a situação do
comércio de escravos na segunda metade da década de 1820. A elevada demanda por
escravos novos deve ter estimulado a entrada de vários traficantes eventuais no
109 CHAVES, 1999. p. 51. 110 CHAVES, 1999. p. 52. 111 CHAVES, 1999. p.53. 112 FRAGOSO, 1992. p. 55.
85
mercado, além de ter provocado um aumento no número de comboios que
transportavam exclusivamente cativos pelo Caminho Novo.
A enorme freqüência com que estes “traficantes eventuais” atuavam e o
predomínio de pequenos empreendimentos, com reduzido número de escravos, são
evidenciados pelos dados de Fragoso. De acordo com os registros de saída de tropeiros
do Rio de Janeiro, nas primeiras décadas do Oitocentos, mais de 90% dos condutores
aparece nos registros apenas uma vez no espaço de nove anos e a média de escravos
transportados é 4,7. Além disto, o autor supõe que os condutores se concentravam numa
“região-mercado”, ou seja, conheciam a demanda local e trabalhavam no sentido de
atendê-la: “No tráfico interno, muitos eram mercadores por conjuntura e não por ofício,
apesar de serem especializados em uma única região”.113
Não sabemos se o Comendador Manoel Ribeiro Vianna encomendava escravos a
condutores que partiam para os portos, ou se dispunha ele mesmo de tropas, que
seguiam pelos caminhos vendendo os produtos de suas fazendas e comprando o que
fosse necessário no litoral. De uma forma ou de outra, os escravos que comprava eram
trazidos em atenção às suas necessidades e não o contrario (um comerciante adquiria
escravos no litoral e perambulava com eles pela capitania, em busca de comprador). Isto
é importante, pois estaremos trabalhando com a hipótese de que, entre o momento em
que o Comendador desejara adquirir escravos novos e o seu batizado na Freguesia de
Santa Luzia, era necessário o tempo de que a tropa incumbida da encomenda viajasse
para o porto, efetuasse lá a transação da compra de cativos – provavelmente demorando
algum tempo para completar o número desejado de peças – fizeste o caminho de
retorno, negociasse com o Comendador e este batizasse os escravos novos. Embora a lei
ditasse que um senhor tinha seis meses para batizar um escravo adulto recém-
adquirido114, não sabemos em que medida ela era realmente cumprida. Daí parecer-nos
válido especular sobre quanto tempo era necessário para que todo o processo fosse
levado a cabo.
113 FRAGOSO, 1992. p. 55. 114 OLIVEIRA, 2004.
86
O primeiro escravo adulto adquirido pelo Comendador, de cujo batizado temos
notícia, recebeu o sacramento em 1827. Em seguida, três anos se passaram sem que
ocorreste nenhum batizado de escravo adulto deste senhor, findos os quais eles se
tornaram mais freqüentes. Em 1830 foram batizados cinco escravos, em 1831, dois, em
1832 - como já sabemos - vinte e nove e, em 1833, sete.
Supondo que Ribeiro Vianna, receoso do fim do tráfico, tenha encomendado o
seu primeiro escravo adulto tão logo tomou conhecimento da assinatura do tratado entre
Brasil e Inglaterra, em 23 de novembro de 1826, então decorrera pouco mais de um ano
até o seu batizado, em 11 de novembro de 1827. Se a encomenda foi feita após a
ratificação do tratado, em 13 de março de 1827, data em que começava a contar o prazo
de três anos ao fim dos qual o tráfico internacional para o Brasil deveria cessar, o
intervalo entre a encomenda e o batismo seria de mais ou menos oito meses. Por outro
lado, se os escravos do Comendador Ribeiro Vianna, batizados em cerimônia conjunta
em 2 de junho de 1833, faziam parte da última leva legal de cativos a entrar no País, já
na véspera do dia em que entrava em vigor a lei, 7 de novembro de 1831 (o que é bem
provável, já que se acredita que são baixíssimos os números de cativos a entrar no país
no período 1831-1833), então teriam transcorrido um ano e sete meses até seu batismo
na Fazenda das Lages, Paróquia de Santa Luzia.
Temos consciência de quão frágeis são estas especulações e que são muitas as
variáveis por nós desconhecidas. Ou seja, é claro que o Comendador pode ter adquirido
a escrava Maria Cassange, batizada em novembro de 1826, muito antes da assinatura do
tratado, no mesmo ano. Da mesma maneira, nada nos garante que os escravos que
receberam o sacramento, em meados de 1833, tenham sido incorporados à posse em
questão em uma data tão tardia quanto novembro de 1831; ou, ao contrário, tenham sido
contrabandeados para o país, depois que a lei passara a vigorar. De qualquer forma,
acreditamos que nossas estimativas podem ser aceitas como uma especulação grosseira
com relação ao lapso temporal decorrido entre a encomenda de peças novas ao mercado
da Corte e sua absorção na região central de Minas Gerais – o que, de resto,
pouquíssimos historiadores se aventuraram a calcular. Em suma, transcorreria um prazo
de oito a 19 meses entre a intenção de um senhor em adquirir escravos novos, recém
87
chegados ao Brasil, e seu batismo em localidades da região central da Província de
Minas Gerais.
Voltaremo-nos agora para a sazonalidade dos batismos de adultos. Será que
havia alguma relação entre o período de chegada dos navios negreiros na Corte e o
momento de batismo dos escravos novos adquiridos por senhores mineiros?
Infelizmente, em nossa base de dados, não foram preenchidos os campos “dia” e “mês”
dos batismos. Dispomos destas informações nas fichas preenchidas à mão a partir dos
livros de registros paroquiais, mas seria bastante demorado levantar estes dados para
todo o período em tela. Optamos, para solucionar este impasse, por levantar as datas dos
batismos de adultos no ano em que são mais numerosos, 1832. Os resultados aparecem
na Tabela 2.3, que os compara com a sazonalidade da chegada de navios negreiros no
porto carioca, com base nos dados coletados por Florentino115, para o período 1796-
1810, e dos batismos de cativos adultos na Paróquia de Nossa Senhora do Pilar de Ouro
Preto, coligidos por Patrícia Porto de Oliveira, para o período 1712-1750116. O que salta
aos olhos é a ausência completa de uma relação entre as várias tendências, fato que
reforça a noção de que o comércio de escravos novos no interior de Minas funcionava,
sobretudo, em função da demanda local e não da oferta no porto de chegada.
Os batismos de escravos pertencentes a Ribeiro Vianna parecem ser bastante
representativos das tendências gerais. Após 1833, encontramos pouquíssimos assentos
relativos a adultos adquiridos pelo Comendador: é batizado um único escravo, em cada
um dos anos de 1836, 1837 e 1838, e três, em 1841. Por outro lado, os batismos de
inocentes sofrem um aumento constante. Ou seja, há fortes indícios de que os
investimentos que este senhor fizera em escravos novos, no período entre 1827 e 1833,
iam lentamente começando a dar retorno, refletindo-se na documentação na forma de
aumento dos batismos de inocentes, como resultado do crescimento da posse de
escravos via reprodução natural.
115 FLORENTINO, 1997. p. 232. 116 OLIVEIRA, 2004. p. 67.
88
De tudo o que foi aqui levantado, com base nos batismos de escravos adultos,
merece maior relevo o fato de que, durante o período em tela, foi brando o recurso dos
senhores escravistas ao mercado internacional de cativos, sendo baixas, tanto as médias
anuais de escravos adultos batizados, quanto o número total de escravos adultos de cada
proprietário individual a receberem o sacramento. Além disto, vimos que, após a fase de
maior freqüência de batizados de adultos, nos primeiros anos da década de 1830,
conseqüência do aumento da demanda por cativos nos últimos anos do decênio anterior,
praticamente findaram os registros de batismos de escravos adultos na localidade. Isto
aponta para uma gradual, porém permanente, retirada dos senhores locais das transações
envolvendo escravos africanos, após os primeiros anos da década de 1830. Em outras
palavras, por uma razão ou outra, para os senhores de Santa Luzia a compra de escravos
africanos realmente arrefecera no momento em que entrava em vigor a lei que suprimia
legalmente o tráfico internacional de escravos para o Brasil.
Isto tem importantes conseqüências. Em primeiro lugar, permite relativizar as
afirmações de Martins sobre a inserção dos escravocratas mineiras como grande
compradores de escravos durante toda a primeira metade do século XIX. Indica que,
pelo menos em alguns locais da Província, a demanda por escravos importados jamais
se recuperara após seu declínio nos primeiros anos da década de 1830.
Como foi indicado no capítulo anterior, Santa Luzia lograra reter um elevado
contingente mancípio em sua população, mesmo na década de 70 do Oitocentos. De
fato, entre os dois documentos censitários por nós utilizados, os escravos da localidade
aumentaram em termos absolutos e a sua participação no total populacional teve uma
queda ínfima, muito inferior a registrada para a Província como um todo. Vimos há
pouco que já na primeira metade do século XIX, quando a compra de escravos africanos
ainda era permitida, os senhores de escravos locais não recorriam fortemente ao
mercado para aumentarem suas posses escravistas e que as suas aquisições praticamente
cessaram nas décadas de 30 e 40, quando o comércio de cativos importados, embora
formalmente ilegal, era largamente praticado. Frente a estas evidências, é impossível
descartar a hipótese de que, entre as décadas de 30 e 70 do século XIX, a população
mancípia de Santa Luzia tenha conhecido, com o virtual fim do tráfico de escravos para
o local, condições propícias para reproduzir-se naturalmente. Isto parece bastante
89
plausível, já que, em 1831, em torno de 60% dos escravos já eram nativos do Brasil e
havia relativamente elevado percentual de jovens na população mancípia. Parece-nos
que a situação da posse de escravos do Comendador Manoel Ribeiro Vianna seria
exemplar desta tendência, como de resto já indicamos anteriormente. Se esta nossa
hipótese estiver correta, mais uma vez as estimativas de Martins têm de ser relativizadas
no tempo e no espaço. Concomitantemente, precisamos admitir que as assertivas de
Bergad, embora dificilmente generalizáveis para regiões da província de economia mais
dinâmica, podem fazer sentido para locais de relativa prosperidade mas menor
aquecimento, pelo menos a partir da década de 30.
E quanto ao período anterior? Em outras palavras, será que a potencialização de
tendências reprodutivas entre os escravos locais eram desencadeadas com a retirada dos
escravocratas do mercado de cativos importados, a partir dos anos 30, ou ela já datava
de muito antes, mais precisamente das últimas décadas do século anterior, como quer
Bergad?
Como bem se sabe, a documentação de que dispomos tem início em 1817 e não
permite a abordagem deste tipo de questão. Entretanto, estudos para outras localidades
mineiras, elaborados com base em documentação semelhante, existem para períodos
anteriores e talvez possam nos ser úteis.
Libby utilizou-se de registros paroquiais de batismos de escravos adultos como
indicadores indiretos das tendências de compra de escravos africanos em localidades de
Minas Gerais117. Trabalhando com três bases de dados cedidas por outros
pesquisadores, estudou a Paróquia de Nossa Senhora do Pilar de São João del Rei, entre
1736-1854 (embora faltem registros para os intervalos 1754-60; 1775-8; 1842-7); a
localidade de Catas Altas, entre 1715-1753 (com lacunas apenas para o ano de 1720); e
finalmente, a Paróquia de Nossa Senhora do Pilar do Ouro Preto, no período que se
estende de 1712 a 1843 (com uma lamentável lacuna para o intervalo 1720-35).
117 LIBBY, Douglas Cole. Notes on the slave trade and natural increase in Minas Gerais in the eighteenth and nineteenth centuries. November, 2004. DRAFT (Citado com autorização do autor)
90
Impressiona a consistência das tendências encontradas para cada uma destas
localidades. De modo geral, os números, elevados no começo do século XVIII,
começam a cair por volta da metade do século (décadas de 40 e 50, para São João e
Catas Altas, e 50, para Ouro Preto). A tendência decrescente se mantém até a década de
90 do Setecentos, com aumentos esporádicos em São João e Ouro Preto, mas não em
Catas Altas. À virada do século, as cifras atingem seu nível mais baixo, chegando a
cessar totalmente em Catas Altas, em 1809-10, em São João, em 1805-10, e em Ouro
Preto, em 1811.
O século XIX alvorece, portanto, com as importações de escravos africanos por
estas localidades mineiras em seu ponto mais baixo desde a introdução do escravismo
na região. Todavia, os números voltam a subir, numa forte tendência ascendente, em
São João e Ouro Preto, e de forma mais branda, em Catas Altas, atingindo cifras não
registradas desde a primeira metade do século anterior. Em todas as localidades, à
semelhança do que encontramos para Santa Luzia, são registrados picos em torno de
1830 (mas em um volume que ainda assim é muito mais baixo que os da primeira
metade do Setecentos. A partir daí, novamente como ocorrera em Santa Luzia, os
batismos de adultos virtualmente desaparecem, sendo o último africano batizado em
Catas Altas em 1843.
Os dados para estas três localidade, para o período subsequente à década de 20
do século XIX, coadunam perfeitamente com as tendências por nós esboçadas para
Santa Luzia, no mesmo período. Assim sendo, parece legítimo supor que o movimento
de batismos de adultos na Paróquia por nós estudada acompanharia, em linhas gerais, as
flutuações encontradas para estas três localidades, em momentos anteriores de sua
história. Todavia, como em termos absolutos o volume de batismos de cativos adultos
em Santa Luzia sempre se mostrou muito mais baixo que nas demais Paróquias
enfocadas, é de se supor que, nos períodos de decréscimo acentuado, a cessação
completa dos batismos tenha se observado mais cedo em Santa Luzia que alhures. Isto
importa no sentido de se demarcar a duração dos momentos de estanque na importação
de cativos africanos, a fim de perceber se haviam sido longos o bastante para permitir o
desencadeamento de tendências de reprodução natural.
91
Voltemos aos números. Se, como ocorrera em São João, Ouro Preto e Catas
Altas, o influxo de escravos para Santa Luzia tinha começado a diminuir
consideravelmente por volta da metade do século XVIII, ou talvez ainda mais cedo, e só
voltara à vida por volta de meados da primeira década da centúria seguinte, então teria
havido um intervalo, com duração entre trinta e cinqüenta anos, no tráfico para a
localidade. Este hiato, de mais de uma geração, seria suficiente para criar condições
propícias ao crescimento vegetativo da população mancípia local. Em outras palavras,
em algum momento entre a metade do século XVIII e a segunda década do XIX, as
conjecturas de Bergad, acerca da capacidade da população mancípia de Minas de
reproduzir-se naturalmente, parecem fazer sentido para a Paróquia de Santa Luzia.
Não há, no entanto, como saber ao certo em que medida estas tendências
positivas de crescimento se mantiveram para os anos posteriores. Tudo indica que o
aumento da aquisição de escravos novos, que se intensificou nos anos finais da década
de vinte, tenha tido reflexos na composição na população escrava. A entrada de mais
homens em idade adulta, trazidos no tráfico internacional, teria resultado, pelo menos de
imediato, em aumento da razão de sexo e no envelhecimento relativo da população,
interferindo negativamente na capacidade reprodutiva. Em outras palavras, o pico nas
importações deve tê-las feito temporariamente mais importantes que a reprodução
natural para o crescimento da população escrava, pelo menos para o período que gira
em torno de 1815-40. Por outro lado, como de resto já foi sublinhado, parece que as
importações no período imediatamente anterior à lei de 1831 foram um último
reavivamento do mercado de cativos, pelo menos para as regiões cobertas pelos estudos
citados. Como sugere Libby, a partir daí as importações caíram rápida e
progressivamente, não havendo importação estupenda entre 36-50. E as regiões
estudadas praticamente deixaram de participar do tráfico ilegal, passando os escravos
africanos a somente serem acessíveis aos fazendeiros nas zonas produtoras de café, ou
outros produtos para exportação, os quais podiam arcar com os elevadíssimos preços
então praticados. Em suma, por volta de 1850, pelo menos parte considerável da
população escrava da Província estava provavelmente crescendo com base na
reprodução natural.
92
Trocando em miúdos, as posições radicais de Martins e Bergad não se mostram
apropriadas para explicar o crescimento da população mancípia de Santa Luzia ao longo
do século XIX. Na verdade, ela só pode ser compreendida se percebermos que
processos de crescimento vegetativo e importação de escravos novos se alternaram, de
acordo com diferenças nas conjunturas econômicas. De fato, aparentemente, a sugestão
de Bergad, de que tendências reprodutivas começaram a se delinear ainda nas últimas
décadas do século XVIII e que elas estavam presentes a partir de mais ou menos 1840,
está correta para a localidade estudada, mas só faz sentido quando se reconhece que o
aumento do recurso dos proprietários de escravos ao mercado, na década de 20 do
século XIX, pôs um freio a estas tendências, criando um último surto de crescimento da
população mancípia com base no tráfico, corroborando, portanto, as afirmações de
Martins relativas a este período.
Ainda não está claro, contudo, se a reprodução natural era um recurso adotado
conscientemente pelos senhores, para manter ou ampliar suas posses escravistas, ou se
foi, ao contrário, uma conseqüência imprevista da diminuição do volume das
importações por parte daqueles mesmos senhores. E, caso o incentivo à reprodução
natural tenha sido uma estratégia deliberada, terá ela sido acompanhado por uma
conjuntura mais favorável para formação, formalização e manutenção de famílias
escravas? Em outras palavras, teriam os proprietários de escravos de Santa Luzia
facilitado ou incentivado a contração de matrimônios formais entre seus cativos? E, de
que maneira as tendências demográficas analisadas neste capítulo e no anterior teriam se
refletido em alguns aspectos da vida familiar dos escravos? São estas questões que
procuraremos, ao menos em parte, responder no capítulo que se seque.
93
Tabelas e gráfico: Capítulo 2
Tabela 2. 1 - Batismos de escravos adultos, por ano - Paróquia de Santa Luzia, século XIX
Ano do Batismo
N % % acumulado
Ano do Batismo
N % % acumulado
1813 1 0,50 0,50 1835 2 1,00 77,11
1818 5 2,49 2,99 1836 3 1,49 78,61
1819 4 1,99 4,98 1837 4 1,99 80,60
1820 10 4,98 9,95 1838 7 3,48 84,08
1821 5 2,49 12,44 1839 6 2,99 87,06
1822 16 7,96 20,40 1840 2 1,00 88,06
1823 2 1,00 21,39 1841 4 1,99 90,05
1824 1 0,50 21,89 1842 2 1,00 91,04
1825 2 1,00 22,89 1843 1 0,50 91,54
1826 12 5,97 28,86 1844 4 1,99 93,53
1827 7 3,48 32,34 1847 3 1,49 95,02
1828 4 1,99 34,33 1849 2 1,00 96,02
1829 7 3,48 37,81 1852 3 1,49 97,51
1830 14 6,97 44,78 1853 3 1,49 99,00
1831 4 1,99 46,77 1854 1 0,50 99,50
1832 41 20,40 67,16 1862 1 0,50 100,00
1833 15 7,46 74,63
1834 3 1,49 76,12 Total 202 100,00
Fonte: Registros Paroquiais de Batismo (microdados).
94
Tabela 2. 2 - Cor/nação dos adultos batizados - Paróquia de Santa Luzia, século XIX
Raça/Cor N % Raça/Cor N %
Não informado no assento 80 39,60 Munjola 2 0,99
Congo 35 17,33 Negro da Costa/ preto da Costa 2 0,99
Angola 32 15,84 Cassange/cazanga 3 0,99
Cabinda 19 9,41 Crioulo 1 0,50
Benguela/banguela 7 3,47 Mulato 1 0,50
Moçambique 7 3,47 Rebola 1 0,50
Mina 6 2,97 Camunda 1 0,50
Preto 3 1,49 Anes 1 0,50
Camundonga 2 0,99 Total 202 100,00
Fonte: Livro de Registros Paroquiais de Batismo, 1818-1872.
Tabela 2. 3 - Comparação da Sazonalidade de Desembarque de Navios Negreiros no Porto do Rio de Janeiro e de Batismos de Escravos Adultos nas Paróquias de N. S. do Pilar do Ouro Preto e de Santa Luzia.
Navios negreiros aportados no Rio de Janeiro.*
Batismos de escravos adultos na Paróquia de N. S. do Pilar
de Ouro Preto.**
Batismos de Escravos Adultos na Paróquia de Santa
Luzia.***
1796-1810 1712-1750 1832
Estação do ano
N % N % N %
Primavera (set-nov)
97 27 215 18 0 0
Verão (dez-fev)
96 27 320 27 7 17,5
Outono (mar-mai)
85 24 284 24 26 65
Inverno (jun-ago)
75 21 363 30 7 17,5
Total 353 100 1182 100 40 100
Fontes:
* FLORENTINO, 1997. p. 232.
** OLIVEIRA, 2004. p. 67.
*** Registros Paroquiais de Batismo (microdados).
95
Gráfico 2. 1
Fonte: Registros Paroquiais de Batismo (microdados).
Batismos de escravos adultos, por ano Paróquia de Santa Luzia, século XIX
0
10
20
30
40
50
1810 1815 1820 1825 1830 1835 1840 1845 1850 1855 1860 1865
Ano do Batismo
Núm
ero
de b
atis
mos
Batismos de escravos adultos, por ano Paróquia de Santa Luzia, século XIX
0
10
20
30
40
50
1810 1815 1820 1825 1830 1835 1840 1845 1850 1855 1860 1865
Ano do Batismo
Núm
ero
de b
atis
mos
96
Capítulo 3 – Família escrava e postura senhorial: um passeio pela
historiografia
3.1 – Breve história da história da família escrava
Família e demografia escravas são temas bastante recentes de estudo sistemático
no Brasil, tanto por parte de historiadores como de cientistas sociais. A delimitação
deste campo de estudo data da década de 1980, tornando-se, daí em diante, bastante
popular, ganhando cada vez mais adeptos na década de 1990 e nos primeiros anos do
século XXI. Até meados da década de 1970, pouca atenção foi dada para a demografia
ou a vida familiar dos cativos, que via de regra foram considerados promíscuos,
sensuais, lascivos, desenraizados, patológicos, anômalos. 118
Se as abordagens sobre a história colonial, a natureza das relações entre escravos
e senhores ou o “sentido último da história” (se racial, econômico ou cultural) variaram
enormemente, as várias gerações de intelectuais que procuraram pensar a história
brasileira pouca ou nenhuma importância conferiram ao estudo das relações familiares
de cativos. E isto é valido para os viajantes estrangeiros do século XIX, para os
bacharéis ligados às faculdades de direito ou medicina ou ao IHGB, para o Gilberto
Freire de “Casa Grande e Senzala”, para os “integrantes” da chamada “Escola de
Sociologia Paulista” e outros pensadores marxistas, como Ciro Flamarion Cardoso e
Jacob Gorender. Os poucos estudiosos que julgaram pertinente tocar no tema, via de
regra, o fizeram para salientar a já mencionada incapacidade dos escravos de
estabelecerem relações estáveis e duradouras, além do ambiente promíscuo reinante nas
senzalas. É claro que tal postura por parte das várias gerações de intelectuais não é
gratuita e está intimamente relacionada à inserção política dos autores, às suas escolhas
metodológicas e teóricas, ao foco de suas análises; mas também às questões que
118 Para maiores detalhes sobre a família escrava na historiografia ver SLENES, 1999.
97
levantaram sobre nação e identidade brasileiras, e a suas ansiedades, temores, projetos e
expectativas para o futuro do Brasil.119
Mudanças de cunho político e intelectual, ocorridas nas décadas de 1970 e 1980,
propiciaram o surgimento dos primeiros trabalhos que abordavam vida familiar e
demografia escravas sob um ponto de vista diferenciado. Segundo Slenes120, esta
mudança historiográfica se relaciona a um contexto político diverso (a queda quase
simultânea da ditadura militar no Brasil e da União Soviética, no plano internacional),
bem como à influencia da historiografia estrangeira. Por um lado, emergiam por toda
parte estudos inspirados por E. P. Thompson, destacando a necessidade de resgatar o
papel histórico de vários grupos “subalternos”; por outro lado, eram publicadas obras,
principalmente nos Estados Unidos, mas também no Caribe, que davam um novo
enfoque a família cativa. Dois autores americanos, Gutman e Genovese, tiveram
particular influência sobre os historiadores brasileiros. Suas obras, publicadas
respectivamente em 1976 e 1974, vieram desafiar com eficácia, pela primeira vez, o
consenso criado desde 1940 em torno dos preceitos estabelecidos pelos trabalhos de
Frazier, que tiveram para a América do Norte mais ou menos o mesmo efeito que a obra
de Gilberto Freire teve no Brasil. Os estudos de Frazier sobre a família negra, escritos
em 1932 e 1939, subvertiam os termos das teorias raciais anteriores, explicitando o
caráter anômico e patogênico dos escravos, mas justificando-o pelas condições
desfavoráveis do cativeiro (que passava de escola de virtudes para escola de vícios) e
não pela natureza intrinsecamente negativa da raça e cultura africanas. Gutman e
Genovese romperam, finalmente, com este legado, restituindo aos escravos a
possibilidade de estabelecimento de relações de parentesco.
É interessante notar que, no Brasil, a década de 70 testemunhou transformações
não só no terreno da história da família escrava, mas nos estudos da família em geral.
Novas fontes foram buscadas e associadas às já tradicionalmente utilizadas.
Documentos cartoriais, processos criminais, registros paroquiais, autos de devassas e
119 Um exame mais aprofundado destas questões foi feito em CORRÊA, 2004. 120 SLENES, 1999. p. 40-42.
98
listas nominativas somaram-se aos já conhecidos relatos de viajantes e documentação
oficial e contribuíram para que, aos poucos, fosse sendo desenhado um novo panorama
das relações conjugais e familiares no Brasil dos séculos XVIII e XIX.
Compreendia-se, gradativamente, que a sociedade brasileira era composta por
arranjos familiares os mais diversos e por muitas vezes, inusitados. Percebeu-se também
que, se o Brasil não era um todo homogêneo, mas sim o amálgama de vários Brasis nos
planos econômico e político, tal fato também deveria ser válido quando o assunto era
história da vida privada.
Vale notar, no entanto, que mesmo alguns dos estudos, que se tornaram marcos
no movimento revisionista na área da história da família, permaneceram céticos a
respeito da vida familiar de populações escravas. Um exemplo é “Barrocas Famílias”,
de Luciano Figueiredo, que, embora inove no tratamento dispensado à vida familiar em
Minas no Setecentos afirma:
“... havia ainda a impossibilidade de estender as relações conjugais à
população escrava, para quem o casamento, por exigir uma certa
autonomia, esbarrava com o poder do proprietário, sendo uma realidade
praticamente inviável, especialmente nas áreas urbanas de Minas
Gerais.”121
Aos poucos, esta descrença em relação à viabilidade da constituição de famílias
escravas foi caindo por terra, com o surgimento de vários estudos sobre o tema122.
Segundo Botelho123, houve uma rápida evolução historiográfica. Surgiram, em primeiro
lugar, estudos que se preocupavam em detectar matrimônios formais entre escravos,
como uma maneira de questionar o ponto de vista, anteriormente hegemônico, que
negava que cativos pudessem estabelecer relações de parentesco. Dentro em pouco,
121 FIGUEIREDO, 1997. p. 36. 122 Tais como o primeiro número da Revista População e Família, dedicado inteiramente a estudos sobre a família escrava. Ver também BOTELHO, 1994. FLORENTINO; GÓES, 1997; MATTOS, 1998; SLENES, 1999. 123 BOTELHO, 1994. p. 137.
99
começaram a aparecer outras pesquisas, numa busca de caminhos para a redefinição da
família escrava. Estes trabalhos buscaram aprofundar o conhecimento de pontos
específicos da demografia e do parentesco de cativos, procurando entender o seu
funcionamento e se questionando quanto à existência de modelos de comportamento
próprios desta população.
As pesquisas de Robert Slenes, iniciadas em meados na década de 1970 e
publicadas em 1999 sob a forma do livro Na senzala, uma Flor: esperanças e
recordações da família escrava, Brasil, século XIX, certamente se encontram entre as
mais influentes. Slenes argumenta que os escravos não foram seres “suspensos no ar”;
eles tiveram sim, tradições e memórias, advindas das regiões africanas de origem, mas
também de uma cultura aprendida e compartilhada no Brasil. Por outro lado, a condição
do cativeiro não esvaziaria suas esperanças de futuro, que poderiam compreender tanto
a almejada alforria quanto pequenos ganhos materiais. Estas esperanças estariam
intimamente ligadas à vida familiar.124
Seus estudos indicam que o matrimônio formal era freqüente e muitas vezes
duradouro; que as crianças não apenas conheciam, mas viviam com seus pais durante a
infância; e que comunidades cativas eram formadas por complexas teias de
solidariedade. Munido destas evidências, Slenes examina cuidadosamente vários relatos
de viagem e trabalhos historiográficos produzidos que têm em comum a ênfase na
promiscuidade, anomia, patogenia, desagregação e bestialização dos escravos, e
concluem, quase todos, pela impossibilidade da existência de famílias estáveis entre
eles. O autor nos mostra que, se lidos com mais cautela, para além dos estereótipos e
preconceitos, esta literatura pode corroborar o quadro demográfico por ele esboçado. A
produção iconográfica presente em relatos de viajantes, em especial, pode funcionar
para clarear aspectos da vida cotidiana de populações cativas que não aparecia na
documentação oficial.
“Ao lado das conclusões enfáticas sobre a ‘imoralidade’ do escravo nas
relações sexuais e a inexistência da família entre os cativos, existem nestes
100
depoimentos dados sobre os escravos casados e sua vida material e cultural
que são passíveis de uma outra leitura, coerente com as conclusões dos
estudos demográficos. São informações geralmente apresentadas ‘nas
entrelinhas’, geralmente não entendidas, mal interpretadas ou consideradas
sem importância pelos autores que as registram – exatamente aquilo que
seria de esperar em textos marcados por um forte viés ideológico. Apesar
disto, em seu conjunto e articuladas com dados de outras fontes –
especificamente de processos crimes e estudos etnográficos sobre povos da
África Central – estas informações permitem uma visão surpreendente do
‘lar ‘escravo”.125
Através deste minucioso trabalho de revisitação de vários relatos, Slenes analisa
a forte ligação entre aspectos da herança cultural africana e sua utilização no Brasil no
dia-a-dia do escravo. Ele nos mostra, através do estudo da arquitetura das senzalas, do
significado da casa e do casamento, das estratégias domésticas e projetos de vida, que
esta população, mesmo privada de sua liberdade, não perdera a capacidade de sonhar e
de viver, pelo menos em um certo nível, segundo suas crenças e tradições. Em suma,
Slenes utiliza fontes que abertamente detratam os escravos do ponto de vista moral e
enfatizam a sua incapacidade de forjar laços de parentesco e solidariedade, para realizar
um profundo mergulho na subjetividade escrava, apreendendo com sensibilidade alguns
de seus valores, crenças e maneiras de ver o mundo.
No entanto, antes de iniciarmos nossa incursão na vida familiar dos cativos de
Santa Luzia, gostaríamos de examinar como a historiografia tem pensado as
conseqüências, para os senhores, da existência de famílias entre os seus cativos.
124 SLENES, 1999. 125 SLENES, 1999. p. 132, 133.
101
3.2 – Família escrava e postura senhorial: dois pontos de vista
Luciano Figueiredo sintetiza muito bem a visão historiográfica, corrente antes do
movimento revisionista, sobre a postura senhorial frente à constituição de famílias por
parte dos escravos. Afirma o autor:
“O fausto das cerimônias de casamento de escravos, que funcionaria como
instrumento de re-afirmação social do proprietário, seria a principal razão
para que este permitisse a formalização das uniões de seus escravos. De
fato, senhores não teriam nenhuma outra razão (que não aumentar seu
prestígio social) em ter em sua posse famílias escravas constituídas, fossem
elas legítimas ou não, já que a lógica econômica do próprio sistema
escravista, dependente do tráfico de almas, tornaria totalmente inviável
uma ampliação das posses via procriação.”126
A relativa autonomia da escravidão urbana permitiria que escravos formassem
uniões consensuais, “que escapavam do controle do proprietário”. Ou seja, conforme
este autor, os senhores, a princípio, não só não incentivariam ou teriam qualquer
interesse na formação de famílias escravas, como colocariam obstáculos à sua
formação, já que o “sentido mercantil do escravo era mais importante para os senhores
que a sua espiritualidade”. Escravos ligados por parentesco sofreriam desvalorização de
seu preço para venda e poderiam causar conflitos quando separados no momento da
partilha dos bens quando do falecimento do proprietário. Este ponto de vista segue a
mesma linha interpretativa de Jacob Gorender, segundo a qual tal era a violência do
sistema e tão adversas as condições do cativeiro que a possibilidade da formação de
laços de qualquer natureza era tão absurda que nem merecia ser investigada. A grande
desproporção entre os sexos e a curta “esperança” de vida dos cativos após a chegada na
colônia constituíam indícios fortes da absoluta impossibilidade de reprodução natural
126 FIGUEIREDO, 1997. p. 82, 83.
102
das populações cativas, tornando desnecessário qualquer estudo demográfico sobre o
assunto.127
Recentemente este ponto de vista tem sido questionado com mais veemência, e
já é amplamente aceito que a vida familiar de cativos não só podia trazer benefícios para
os senhores, mas constituía um dos pilares do próprio sistema escravista. Duas obras
sintetizam de forma especialmente elaborada esta posição e é a elas que dedicaremos as
linhas que se seguem.
Começaremos pela posição de Robert Slenes, na obra já brevemente analisada
neste capítulo. Uma grande contribuição de Slenes aos pesquisadores da vida familiar
de mancípios é a sua reflexão sobre a relação entre nupcialidade escrava e o que ele
designa como postura ideológica senhorial (assentada em valores morais genuínos e não
no interesse econômico imediato). O autor acredita que os senhores não imporiam
cônjuges a seus escravos, mas que buscavam influenciar as escolhas matrimoniais dos
mesmos, apoiando algumas uniões e vetando outras. Por outro lado, não existiam uniões
formais entre cativos de proprietários diferentes e eram muito raras aquelas entre
escravos e pessoas livres e forras, razão pela qual os índices de nupcialidade cativa
seriam muito mais elevados nas posses médias e grandes, nas quais escravos e escravas
poderiam encontrar um maior número de parceiros em potencial. Isto mostra que o
consentimento senhorial era imprescindível para a realização do casamento, nos moldes
da Igreja, e convida o historiador a se questionar acerca dos aspectos que poderiam
motivar os proprietários a permitir ou até mesmo incentivar casamentos entre seus
cativos.
Comparando várias áreas de plantation do Sudeste, o autor percebe que, ao
longo de todo o século XIX, a taxa de nupcialidade entre os escravos, bastante elevada
em Campinas, vai caindo progressivamente à medida que se avança do oeste para o
leste, em direção às zonas cafeeiras fluminenses.128 Como explicar esta tendência?
127 GORENDER, 1978. 128 SLENES, 1999. p. 18-91.
103
Constatando que, em 1872, os índices de nupcialidade para pretos e pardos livres
também eram mais altos nas regiões de plantation paulistas que nas Fluminenses, Slenes
conclui que
“... a relação peculiar entre Estado, Igreja e sociedade em São Paulo
[aonde o tanto o primeiro quanto a segunda estariam mais presentes que
em outras províncias] não apenas teria incidido diretamente nas taxas de
nupcialidade, mas teria mantido ou fortalecido um ‘clima ideológico’ no
seio da elite, favorável à idéia do casamento religioso como instituição
benéfica e moralizadora para todas as classes sociais. Como resultado, os
senhores de São Paulo, imbuídos desta ideologia, teriam continuado a
buscar o aval da Igreja para as uniões entre seus escravos ao longo do
século XIX, enquanto seus colegas do Rio iam desistindo do costume”.129
Esta hipótese parece ser comprovada pelo fato de que, a partir do início da
década de 1860, os senhores campineiros continuaram incentivando ou permitindo as
uniões formais de seus escravos no mesmo nível que nas décadas anteriores, enquanto
nas regiões fluminenses a taxa de nupcialidade escrava teve uma queda mais acentuada.
O autor sugere que esta diferença entre a valorização de matrimônios escravos por parte
de alguns senhores estaria ligada ao desfecho da Guerra Civil Americana, com a derrota
dos Confederados e a emancipação dos escravos em 1862. Assim sendo, aqueles
senhores brasileiros que haviam valorizado o matrimônio escravo como uma forma de
incentivar a reprodução natural no interior de suas posses, com a extinção do tráfico
negreiro internacional, teriam se sentindo desincentivados com os acontecimentos
recentes nos Estados Unidos. Este seria o caso de muitos senhores do setor agro-
exportador fluminense. Por outro lado, aquelas parcelas da elite escravista que
pensavam os matrimônios de cativos sob um ponto de vista moral, ideológico, ou seja,
como um valor em si, não teriam sido em muito afetados pelo desfecho da Guerra de
Secessão. Este seria exatamente o caso dos plantadores de Campinas. Com base nestes
argumentos, o autor conclui que “simplesmente [...] as diferenças entre os índices de
129 SLENES, 1999. p. 91.
104
nupcialidade escrava das regiões de plantation do sudeste dizem respeito principalmente
a variações, não no ‘lar’ negro, mas no ‘controlar’ branco”130. Estas conclusões são da
maior importância para estudiosos da família escrava em outros lugares e momentos
históricos, pois nos dizem que é preciso pensar as taxas de matrimônio de cativos
formais como índices da postura senhorial, e não dos níveis reais das uniões estáveis de
cativos, que sempre serão muito maiores que as taxas encontradas na análise de
documentação oficial.
O estabelecimento de laços duradouros entre os escravos serviria como um
poderoso instrumento de dominação nas mãos do senhor, pois tornava o escravo um
“refém”, diminuindo significativamente a sua disposição para fugas, revoltas e outros
atos violentos. Por outro lado, o autor percebe que uma comunidade de escravos forte,
que, apoiada na estrutura familiar e nas redes de sociabilidade, tinha maiores chances de
se unir para tramar contra a autoridade senhorial, podia representar uma ameaça para a
elite proprietária. Esta ambigüidade seria inerente ao papel da vida familiar de escravos,
tanto para os próprios cativos quanto para os senhores.
Herbert Gutman, tratando do apego emocional dos escravos do Sul dos Estados
Unidos á sua terra natal, escolhe para título de um dos capítulos de seu livro131 a
expressão take root here or nowhere – crie raízes aqui, ou não as crie em lugar nenhum.
Privados de liberdade de movimentos, não podendo migrar segundo os seus próprios
desígnios, os escravos não tinham outra opção senão estabelecer vínculos emocionais na
comunidade geograficamente próxima à posse de seu senhor. E é justamente este
processo de enraizamento a origem de uma série de contradições. Integrado emocional e
materialmente à posse de seu senhor, construindo ali suas recordações do passado e suas
esperanças de futuro, o cativo tornava-se muito menos propenso à fuga e a atos abertos
de rebeldia, que se tornavam arriscados e dolorosos, pois implicariam uma série de
perdas. Todavia, o mesmo enraizamento, que dificultava o rompimento radical com a
130 SLENES, Robert W. Na Senzala, uma Flor: Esperanças e Recordações da Família Escrava, Brasil, Século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 79. 131 GUTMAN, 1976.
105
dominação senhorial, servia pra ampliar o espaço de liberdade do escravo no cativeiro e
estava associado à conquista de uma série nada desprezível de vantagens.
Finalmente, vale ressaltar que a comunidade escrava fundada nos laços de
parentesco podia se perpetuar no tempo porque era o lugar de construção e difusão de
uma cultura escrava, que estava assentada em antigas tradições africanas, mas também
em costumes e crenças forjados na experiência do cativeiro. Este arcabouço cultural era
partilhado pelos membros da comunidade e passado de geração para geração.
Analisando as preferências dos escravos de Campinas na escolha de seus esposos e
esposas, Slenes verifica que havia uma tendência à endogamia por origem, preferindo os
campineiros cônjuges de mesma procedência. Estas tendências endogâmicas não eram,
todavia, fortes132, sugerindo que não havia grandes tensões étnicas. A comunidade
escrava seria “uma agremiação imperfeita, crivada de competições internas, como todas
as ‘comunidades’ reais, mas nem por isto dividida em grupos com identidades
fortemente opostas”133.
Manolo Florentino e José Roberto Góes, como Slenes, conduziram pesquisas
sobre a família escrava em uma região na qual vigorava a “escravidão mercantil”, ou
seja, duplamente vinculada ao mercado, posto que dependente do tráfico negreiro, para
assegurar mão-de-obra, e da exportação das mercadorias produzidas.134. Trata-se de
Campos de Goitacases, no agro-fluminense, onde se produzia açúcar para o mercado
externo. Como Slenes, estes autores lidam com uma realidade muito diversa da de Santa
Luzia.
Trabalhando com variada documentação, de 1790 a 1830, os autores construíram
uma argumentação acerca da vida familiar dos cativos que, se em alguns pontos
coincide com o tratamento dado por Slenes à questão, em outros, dele diverge
radicalmente. Também eles principiam fazendo uma crítica à historiografia anterior e
salientam que as relações familiares eram um dos pilares que sustentavam a
132 SLENES, 1999. p. 78. 133 SLENES, 1999, p.78. 134 FLORENTINO; GÓES, 1997. p. 174.
106
sociabilidade brasileira nos séculos XVIII e XIX, tanto para livres quanto para escravos.
Com base em evidências empíricas, argumentam que, naquele período, pessoas de todas
as condições sociais julgavam absolutamente natural que cativos vivessem em famílias
e tivessem fortes laços afetivos com seus parentes, mostrando-se chocados e perplexos
quando estes laços eram violados135.
Ainda seguindo uma linha de raciocínio próxima a de Slenes, Florentino e Góes
percebem a relação senhor/escravo como essencialmente política, e, portanto, pautada
por embates e negociações. A perpetuação do escravismo jamais poderia ter se apoiado
inteiramente na coerção física e tampouco as decisões e estratégias senhoriais para
manejo de sua posse escravista podiam ser orientadas simplesmente por uma
racionalidade econômica moderna. Embora esta racionalidade também estivesse
presente, ou seja, embora a empresa escravista visasse, entre outras coisas, o lucro, a
relação do senhor com a sua mão-de-obra não era estritamente econômica. 136
É o reconhecimento desta natureza extra-econômica do escravismo que permite
aos autores defender a existência de laços parentais entre cativos em um contexto de
forte dependência do tráfico negreiro, discordando da opinião corrente na historiografia
das décadas de 60 e 70 do século XX, em especial de Jacob Gorender.
Segundo Gorender, a produção de gêneros agrícolas para o mercado
internacional, em decorrência do baixo emprego de tecnologia, podia crescer somente
com a injeção de maior quantidade de terra e mão-de-obra. Esta necessidade imediata de
mais braços levaria os senhores a recorrerem à compra de escravos novos. Este recurso
ao mercado de escravos desencadearia uma “perversa lógica demográfica”, causada e
135 Esta percepção compartilhada acerca da natureza sagrada dos laços de parentesco, mesmo entre cativos, fica muito clara no depoimento daqueles que testemunharam em um processo criminal de 1847, no qual o liberto Marcelino era acusado e posteriormente condenado pelo assassinato das crianças escravas Josino e Paulina, seu filhos. Todas as testemunhas tiveram dificuldade de compreender o crime, que classificaram como horroroso, bárbaro e monstruoso, percepções estas que não foram modificadas pela condição escrava presente ou passada do algoz e de suas vítimas. FLORENTINO; GÓES, 1997. p. 15-22. 136 FLORENTINO; GÓES, 1997. p. 30.
107
causadora da dependência do tráfico137. Como era totalmente impossível que as
populações escravas crescessem por reprodução natural, o senhor não se beneficiaria em
nada com a existência de famílias entre os cativos. Por outro lado, famílias escravas não
seriam formadas espontaneamente, devido ao grande desequilíbrio entre os sexos, à
baixa expectativa de vida e à desumanização dos escravos. Com o fim do tráfico
internacional e a conseqüente elevação do preço dos escravos, os senhores teriam
tentado proporcionar-lhes melhores condições de vida e passado a incentivar a
constituição de famílias. A família escrava, nas áreas agro-exportadoras, só teria, então,
se tornado uma realidade, a partir da segunda metade do século XIX.138
O raciocínio de Jacob Gorender é considerado válido para explicar as razões que
atrelariam os senhores ao tráfico de escravos. Todavia, não se daria conta de que a vida
familiar dos cativos constituía um elemento político fundamental do escravismo.139.É
aqui que a análise de Florentino e Góes se aparta da de Robert Slenes. Diferentemente
deste último, os autores julgam que os plantéis seriam, a princípio “lugares privilegiados
da dissensão e do conflito”, em decorrência da convivência entre escravos de diferentes
origens. O tráfico negreiro atuava também no sentido de reiterar os conflitos no seio da
posse escravista, pois era através dele que continuamente eram inseridos estrangeiros no
grupo. O senhor, por sua vez, nada podia fazer para frear a produção do dissenso, pois
dependia do mercado de escravos para tocar seus negócios. Em última instância,
tornava-se ele mesmo um estrangeiro perante os escravos recém adquiridos, o que
impedia que ele exercesse de forma plena a lógica paternalista que teoricamente
mediaria a relação senhor/escravo.
Por outro lado, a cooperação entre os escravos era fundamental, tanto para o
funcionamento da empresa escravista quanto para o cotidiano dos próprios escravos.
Sem esta cooperação, reinariam o caos, a desordem, a anomia, enfim, a guerra. Era
137 Quer como já vimos no capítulo anterior, esta “lógica demográfica” estaria relacionada ao excesso de homens e adultos na população e (acrescenta Gorender) taxas de mortalidade excepcionalmente elevadas – resultado da super-exploração dos cativos, conseqüência do esforço do senhor para reaver, no menor espaço de tempo possível, o capital imobilizado na compra do escravo. 138 FLORENTINO; GÓES, 1997. p. 21-31. 139 FLORENTINO; GÓES, 1997. p. 51.
108
necessário que os cativos instituíssem a paz no cativeiro. E de fato eles o fizeram. Os
laços familiares permitiram que os cativos aceitassem o outro, o estrangeiro, e pudessem
construir uma identidade comum140.
Assim, o parentesco escravo, essencial para tornar a vida no cativeiro possível,
era também imprescindível para o senhor, para quem constituía uma renda política.
Além de permitir que os escravos cooperassem entre si e desempenhassem de forma
adequada os trabalhos essenciais para o processo produtivo, o parentesco era um
elemento essencial da produção de escravos. Pois não bastaria apresar um homem para
fazer dele um escravo. Um homem só se tornaria escravo a partir do momento em que
assume esta nova identidade, aceita em certa medida sua nova condição e passa então a
criar estratégias para tornar a vida possível. Criar regras que tornem possível viver, ou
seja, regras para a nova situação em que estão inseridos, é o primeiro passo para a
produção de escravos, já que “era apenas enquanto trabalhadores escravizados que
podiam conseguir buscar uma certa ordem à vida”141.
Góes e Florentino, embora discordem de Slenes quanto ao caráter de
instrumento de dominação da família escrava, concordam quanto à ambigüidade
intrínseca a esta instituição. O enfrentamento do senhor e a conquista de pequenas
melhorias na vida cotidiana seriam as principais motivações para que os escravos se
unissem em famílias e forjassem laços de amizade.142
Uma vez alcançada alguma coesão social, era preciso a criação de normas para
ordenação do cotidiano. Todavia, este processo de fundação de regras e alianças
encontrava um ambiente mais propício nos momentos de arrefecimento do tráfico. Nos
períodos de maior aquecimento do comércio de homens, a situação seria mais
complicada para as comunidades, com a injeção de grande número de estrangeiros, e as
regras que regiam a vida tinham de ser continuamente reelaboradas. A paz era, portanto,
resultado de acordos precários e provisórios. Conflitos aconteciam com freqüência,
140 FLORENTINO; GÓES, 1997. p. 36, 37. 141 FLORENTINO; GÓES, 1997. p. 172. 142 FLORENTINO; GÓES, 1997. p. 173.
109
faziam parte da comunidade e “crioulos e africanos acalentavam entre si muitas
desconfianças”143.
Este processo de constante desordenação do mundo criado pelos escravos era, na
verdade, um elemento chave da manutenção temporal do próprio sistema escravista, tão
importante quanto o parentesco escravo.
“A escravidão só podia se recriar no tempo [...] se estivesse sempre a
enfraquecer o pouco poder conseguido e amealhado pelo escravo. O tráfico
cumpria este papel. Ao azeitar-se, ele punha em cheque as regras
arduamente construídas pelos cativos, obrigando-os a refazê-las mais uma
vez.”144
Há, como já demos a entender, algumas diferenças fundamentais entre as duas
abordagens. Slenes argumenta que, no incerto e instável mundo do cativeiro, os
escravos não descartariam a priori as solidariedades possíveis, e que a experiência do
cativeiro e elementos culturais de origem africana, compartilhados, seriam importantes
elementos de coesão dentro de um plantel. As famílias escravas, por sua vez, atuariam
de maneira ambígua, pois seriam, ao mesmo tempo, elementos de conquista de maior
autonomia no cativeiro, por parte dos escravos, e maior instrumento de controle
senhorial. Para Góes e Florentino, o plantel era antes de tudo lugar de conflito, e uma
coesão social mínima só podia existir a partir da criação de laços familiares. A família
cativa, fundamental para a existência no cativeiro, seria também necessária ao senhor,
mas não como instrumento de dominação ou controle, mas como renda política que
permitia que os homens apresados se tornassem escravos e que o processo produtivo
pudeste ser levado adiante.
Não temos aqui a intenção de julgar qual das duas análises é mais pertinente ou
de eleger uma delas como suporte teórico para o presente estudo. Acreditamos que
ambas guardam elementos de verdade e se mostram pertinentes aos contextos estudados
143 FLORENTINO; GÓES, 1997. p. 177. 144 FLORENTINO; GÓES, 1997. p. 178.
110
pelos autores. Na verdade, é o que elas têm em comum que nos interessa mais. Tanto
quanto Slenes, Florentino e Góes consideram o parentesco escravo um elemento
intrínseco ao escravismo, além de importante veículo de transmissão, construção e
perpetuação de uma cultura. Em ambos os estudos a existência da família escrava é
considerada uma realidade, realidade esta fundamental tanto para escravos quanto para
senhores. E ambos mostram que, por um lado, a existência de grupos familiares e laços
de solidariedade entre os escravos representava um risco para os proprietários. Por outro
lado, estes não só não podiam prescindir da existência do parentesco escravo, como
podiam tirar dele algumas vantagens. Além disto, ambos os estudos demonstram de
forma convincente que, embora não tivessem controle sobre os afetos de seus cativos, a
formalização de uniões escravas dependia da vontade dos proprietários. Estes são
pressupostos fundamentais para o presente estudo.
Outro fator que tornaria a família escrava importante para os senhores – e que é
apenas mencionado de passagem por Slenes, Góes e Florentino – está ligado à
reprodução natural. Como ambos os estudos lidam com áreas agro-exportadoras
fortemente dependentes do tráfico, o papel das famílias de cativos na manutenção ou
aumento dos planteis via reprodução natural não é enfocado. Vimos, no entanto, que
Tarcísio Botelho, estudando o Norte de Minas, percebe que o crescimento vegetativo
teve importante papel na continuação do escravismo em um contexto de baixa inserção
no mercado e que ele estava ligado a existência de famílias escravas.
O caso de Santa Luzia se assemelha ao da região estudada por Botelho neste
sentido – também ali, aparentemente, o escravismo pode se manter até o fim do século
XIX graças à reprodução natural. É a partir deste fato que nos indagamos sobre o perfil
das famílias escravas na região, especialmente no que diz respeito ao seu incentivo por
parte de senhores empenhados em conservar sua escravaria, em um contexto em que os
preços dos cativos subiam cada vez mais.
111
Capítulo 4 – Família escrava e postura senhorial: os dados
A maior parte dos trabalhos sobre famílias cativas busca penetrar na
subjetividade dos escravos e compreender os significados por eles atribuídos ao
parentesco. Nosso objetivo, neste trabalho, é bastante diverso. Propomos-nos a lidar
com a família cativa, mas não temos o intento de conhecer as crenças, valores e
tradições dos escravos, o que de resto já foi feito com sucesso e perspicácia pela
historiografia. Estamos antes preocupados com o ponto de vista dos senhores, ou
melhor, de como os interesses e estratégias senhoriais podem ter influído na vida
familiar de seus escravos.
Percebemos, nos capítulos anteriores, que, durante boa parte do século XIX, os
senhores de escravos de Santa Luzia recorreram pouco ao mercado de escravos e que
deixaram quase que completamente de fazê-lo, após a década de 30. Com base em uma
série de dados demográficos, coligimos evidências suficientes para argumentar que os
senhores dependiam da reprodução natural para manter ou ampliar seus plantéis e que
foram, inclusive, muito bem sucedidos neste sentido, já que, em 1872, Santa Luzia
ainda contava com numerosa população mancípia. Isto posto, gostaríamos de descobrir
quais as relações entre a família escrava e este processo de desinserção do mercado de
escravos e dependência da reprodução natural.
Por esta razão estaremos lidando aqui com o aspecto da vida familiar dos cativos
que se coloca como mais susceptível à intervenção senhorial: o casamento formal,
segundo os moldes da Igreja Católica. Examinaremos também a concessão de alforrias a
crianças escravas na pia batismal, procurando descobrir se sua freqüência teria sofrido
uma progressiva diminuição, à medida que subiam os preços de cativos e os senhores se
tornavam mais dependentes do crescimento vegetativo.
4.1 – Dois pesos e duas medidas: as vontades dos senhores e os matrimônios dos
escravos
“Comunico V. Exca que o aconticimento extraordinario que levo a presença
de V. Exca foi ter o Coronel Reformado Francisco de Paula Barboza da
112
Silva mandado cazar pelo seu feitor Antonio Barboza da Silva seu parente
os seus escravos Sinfronio e Jacinta de nação Angolas em sua Fazenda cita
neste Districto de Mathozinhos e com testemunhas sem prezença de
Parocho, nem sacerdote de sua licença e dizem que pretende effectuar
outros semelhantes Cazamentos: e parece ter atacado com este
procedimento a Constituição do Império [ilegível] 8º art, 179 § 5º, e a Lei
de 3 de Novembro de 1827.” 145
O trecho acima foi retirado de uma carta, de 28 de janeiro de 1831, escrita
Joaquim Gonsalves Moreira, Juiz de Paz do Distrito de Matozinhos, ao Presidente de
Província, em resposta a um ofício de 25 de janeiro do mesmo ano, que perguntava se
havia ali ocorrido algum acontecimento extraordinário que fosse digno de nota.
O documento, do qual faz parte a carta acima descrita, nos permite conhecer a
história da querela entre um fazendeiro, o Coronel Francisco de Paula Barboza e o
Reverendo Vigário da Paróquia de Matozinhos, Joze Soares Diniz, em torno da união de
um casal de cativos, e foi encontrado no Arquivo Público Mineiro, na Série
‘Correspondência Recebida pela Presidência da Província’. Consiste ele, na verdade, de
várias cartas enviadas ao Presidente da Província de Minas Gerais, Joze Manoel de
Almeida, pelo Juiz de Paz do Distrito de Matozinhos, Joaquim Gonsalves Moreira, e
pelo Juiz de Fora da Vila de Sabará, Manoel de Araújo da Cunha. Estas contêm em
anexo missivas do Vigário de Matozinhos, Joze Soares Diniz, do Coronel Reformado
Francisco de Paula Barboza, fazendeiro, e do administrador de sua fazenda em
Matozinhos, Antonio da Silva Barboza.
A carta acima transcita é encerrada com o Juiz de Paz dizendo que o Presidente
fará o que achar melhor para resolver o caso e que aguarda instruções futuras. O
presidente escreve então ao Juiz de Fora e pede-lhe que apure o incidente. Esta
145 Arquivo Público Mineiro, PP1/18, caixa 173, documento 12. A transcrição do documento na íntegra encontra-se em anexo. Devido a razões estéticas, os trechos citados no corpo do texto tiveram as abreviaturas desmembradas, sem que isto fosse indicado. No anexo, todavia, todas as abreviaturas desmembradas estão indicadas por sublinhado, seguindo as nornas técnicas para transcrição de documentos manuscritos, definidas durante o I e o II Encontro Nacional de Normatização Paleográfica e de Ensino de Paleografia, realizados em São Paulo, respectivamente em novembro de 1990 e setembro de 2003.
113
autoridade escreve às partes envolvidas pedindo explicações e, em 26 de março de
1831, envia ao Presidente: uma longa e furiosa resposta do fazendeiro acusado; uma
suscinta carta do Vigário, confirmando a acusação feita inicialmente pelo Juiz de Paz; e,
uma cópia feita em cartório, em “pública forma”, de uma carta que lhe enviara o
administrador do Coronel, por ocasião da polêmica união dos escravos Sinfrônio e
Jacinta. Em sua correspondência, o Coronel Francisco de Paula Barboza relatava o seu
ponto de vista sobre o problema, sendo esta de todas a parte que mais interessa a nossos
propósitos.
A carta enviada pelo fazendeiro tem mais de dez páginas, escritas com letra
firme em papel azul, em tom muito agressivo, numa tentativa de defender-se por meio
do ataque a seus acusadores. Muito irônico, às vezes mesmo debochado, Barboza inicia
tentando denegrir a imagem do Juiz de Paz, segundo ele “mosso de boa índole, porem
de educação grosseira, e idéias curtas”, que só teria conseguido aquele cargo por ter se
casado com a filha do Vigário, de quem seria mero fantoche. O próprio Vigário Joze
Soares Diniz é descrito como um homem ambicioso, que se utilizaria da batina e da
credulidade dos fiéis para “amontoar riquezas”. O fazendeiro explicita claramente que
tem desavenças com o Vigário, que é seu inimigo, e procura expôr as causas de tal
inimizade.
Esta passagem não é muito clara, mas depreende-se que muitos dos problemas
entre os dois homens se relacionam ao tratamento dispensado por Barboza à sua
escravaria. O fazendeiro começa proncurando passar a imagem de que é um bom
senhor. Diz que nas suas casas “existem mestres, como sucede naquela Fazenda de
Matozinhos, em que todas as noites se da Escolla de Doutrina Christaa” aos escravos.
Afirma ter a prática de “forrar aos meus escravos velhos, sustentalos, vestilos, e
piedozamente tratalos” e opõe, à sua benignidade, a ambição desenfreada do pároco,
que cobraria preços muito elevados pelos serviços prestados aos escravos moribundos e
os efetuados por ocasião de seu sepultamento – “e quando fallecem pobres, resulta o
perdimento do Reverendissimo de proveitosos responsorios”.
Como exemplo, conta o Coronel a história de um velho escravo, de nome
Miguel, que falecera em sua casa. Mal havia o homem agonizante cerrado os olhos,
chegara ali o Juiz de Paz, a mando do Vigário, para cobrar dívidas contraidas pelo
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enfermo com os responsórios, tomando do filho do mesmo um cavalo, único bem que
lhe ficara por herança. Indignado, o Coronel interviera a favor do rapaz, feito este que
lhe teria ganho o ódio e inimizade do Reverendo Vigário e do Juiz de Paz.
Interessante notar que, tanto a tristeza do filho – cujas lágrimas e sofrimentos
pela morte do pai escravo são aludidas, com o intuito de dramatizar os acontecimentos e
tornar ainda mais imoral aos olhos do leitor a atitude do Vigário Soares Diniz – quanto
o fato de que o velho possuía um cavalo são encarados como circunstâncias naturais e
corriqueiras. Isto nos mostra que a classe senhorial tinha claro para si que os escravos
tinham relações familiares, nas quais o afeto tinha lugar, e que eram proprietários de
bens que legavam aos seus quando morriam.
Depois de proferir mais palavras de indignação quanto à acusação pela qual
responde, Barboza finalmente aborda o assunto que mais nos interessa:
“Forão proclamados na Igreja Matriz daquela Parochia, os meus Escravos
Sinfronio, e Jacinta, e no dia marcado comparecerão, para o Vigario os
cazar; porem este, pondo em acção sua costumada Impostura e
dependencia, pretextando a falta de decencia de algumas doutrinas os
reinviou conforme o seu costume com outros muitos praticado, como se
Cazamentos, só Theologos pudestem effectuar”.146
Salienta ele, dono de numerosa posse, que julga útil casar os escravos, e que dá
dificuldade em fazê-lo resulta “a falta de propagação, continuação das mancebias, e
sumas desordens: por isto tanto promovo cazamentos, quanto a difficuldade de vigiar
restrictamente mais de 200 escravos de ambos os sexos a meu cargo”. Aqui fica bem
explícita a associação entre casamento e ordem, e entre casamento e procriação. Além
disto, há uma alusão à burocracia e aos custos de se casar cativos, fatores que
certamente teriam desanimado outros senhores, em situação semelhante à de Barboza.
Este prossegue, afirmando que o Padre complica o processo, evocando restrições
146 Arquivo Público Mineiro, PP1/18, caixa 173, documento 12.
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doutrinárias e, intui-se, exigindo gastos financeiros, criando pretextos fúteis para
dificultar a difusão do matrimônio entre seus escravos.
Francisco de Paula Barboza salienta que, em outros tempos, contornava esta
dificuldade levando os escravos que pretendia casar para uma outra fazenda que
possuía, no Distrito de Raposos:
“Outr’ora, eu removi este manejo; por que fazendo troca dos escravos que
pretendia cazar, com outros que tinha na minha antiga Parochia de
Rapozos, com húa residencia ali preciza voltarão cazados a Matozinhos;
porem já não tenho Fazenda em Rapozos: este meio faltando, dupplicousse
então o Imperio do meu o Reverendissimo Vigario Diniz.” 147
Indignado com o procedimento do Vigário, se exalta em dois longos parágrafos
contra os procedimentos de cléricos “mercenários”:
“Sim aborreço os abuzos na Religião; os ignorantes Lobos da Igreja as
artemanhas de fazer render a Estolla; ao Pastor em magistral carreira
vendendo bilhetes de confissão, a trôco de hunz[sic] de dinheiro, outros a
trôco de gallinhas, ovos, e novêllos de algodam de que muitas vezes os
compradores privando seos mizeros filhos, os deixão na fome e nudez, por
que temem a “Excomunhão”: e então se se figura rígido, e carrancurdo
Mercador, que sentado em seu balcão, despede ao tremulo comprador, se a
paga não se aprezenta.”
Este comportamento corrupto e imoral do Vigário é apresentado como
justificativa quanto à conduta do fazendeiro no incidente do casamento dos escravos.
Explica ele:
“Ordenei sim, que chamados Sinfronio, e Jacinta, fossem perguntados
diante de testemunhas na minha auzencia, se era verdade que mui
livremente desejavão ser cazados, e sendo, não obstante a oppozição do
147 Arquivo Público Mineiro, PP1/18, caixa 173, documento 12.
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Vigario viverião em união; e por que respondestem concordes, julgandose
ajustados, e contractados, para solenidade dos Esponsaes, foi então
distribuido hum barril de Caxaça, ouvindo-se mil vivas aos Noivos,
seguidos de marimbas e tambores e desde então não foi tão guardada a
Amante, e Jovem Jacinta; por que sou Senhor do Governo da minha Caza,
para ser mais, ou menos feixada húa negra. O meu Administrador e parente
Antonio Barboza da Silva, dirigio húa Carta, em que dizia ao
Reverendissimo Vigario, que Sinfronio e Jacinta, tinhão solemente
celebrado seus contratos, e Esponsaes; porem que por Ordem minha se
achavão prontos ao menor recado do mesmo Reverendissimo quando
quizeste elevar este Contracto a Sacramento; com tanto que hirião a sua
presença húa só vez; e não se dignando responder, se não, que não
estimava aquella Carta como documemto, principalmente por que nella se
dizia que novos Esponsaes se hirão practicar, por effeitos de sua Caprixoza
repugnancia. Não será permitido a hum Chefe de Familias, formar
similhantes ajustes, e contractos?” 148
Há várias informações importantes nesta passagem. Em primeiro lugar, Barboza
faz questão de salientar que a união tinha sido celebrada respeitando as vontades dos
escravos. Isto mostra que, sob o ponto de vista da elite escravista da época, era
considerado moralmente correto que os próprios cativos pudessem escolher seus
companheiros e companheiras, que não deviam ser impostos pelo proprietário. Em
segundo lugar, o união dos cativos é referida como “os esponsais”, evoncando aqui uma
tradição portuguesa, que será discutida mais adiante. Em terceiro lugar, temos o relato
de uma típíca “festa de casamento” de escravos, com cachaça, dança, música, além da
presença de testemunhas livres convidadas pelo senhor. Em terceiro lugar, embora fique
afirmada a distinção entre esponsais e matrimônio, a Barboza e seu administrador
parecia plenamente normal e aceitavel que após a cerimônia Jacinto e Sinfrônio
passassem a viver como marido e mulher, ou seja, a terem abertamente relações sexuais.
148 Arquivo Público Mineiro, PP1/18, caixa 173, documento 12.
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Ainda merecedora de nota é a indignação do fazendeiro frente à intromissão de
funcionários do Estado e da Igreja (o Juiz de Paz e o Reverendo Vigário) nas suas
relações com os seus escravos. Sentindo-se desrespeitado, frisa que aquele assunto que,
de passagem, não era de maior seriedade ou gravidade, dizia respeito somente à sua
pessoa e, assim, estranha que tivesse de prestar contas a quem quer que fosse sobre a
vida conjugal de seus cativos. Nesta medida, refere-se a si mesmo como um chefe de
famílias (no plural); ou seja, da sua própria família, mas também das famílias a ele
subordinadas, quais sejam: de agregados e de escravos. Enfatiza o fato de que apenas a
ele dizem respeito assuntos das famílias sob sua tutela e que, como senhor de sua casa,
deveria ter autonomia para administrá-las da maneira que julgasse mais pertinente.
Muito relevante ainda é a insistência do Coronel em explicitar seu perfeito
entendimento de que havia uma grande diferença entre os esponsais por ele promovidos
e o sacramento do matrimônio. Contudo, apesar de perfeitamente consciente desta
diferença, parece-lhe perfeitamente legítimo que, uma vez contratados os desponsórios,
o casal tivesse cópula. A falta de decoro, conforme seu ponto de vista, não reside em
aceitar os esponsais como um rito de passagem para a vida de casados, mas em
confundi-los com o casamento formal.
“A Crassa ignorancia do Juiz de Paz querendo gravar e denegrir tão
innocente modo de proceder, o intitula “Cazamento”. Sería seu confesso
pouco respeito e menor decoro, se para simelhante contracto se servisse o
meu Administrador da Estolla, hum dos Simbolos Parochiaes, ou de algua
das formulas que uza a Igreja. Seria pouco decorozo, se para tal Esponsal
contracto entre Sinfronio, e Jacinta, não fossem dados todos os passos de
proclames pelo mesmo Reverendissimo. Seria, sim, pouco respeitozo, se
havendo aquele Esponsal, não fosse advertido o dito Reverendissimo, de
que os Nubentes se achavão pronto[sic] ao seu recado para se hirem cazar:
ficando demonstrado que aquele reputado “Cazamento”, por que seria
118
entao desnecessário se tal enteste, voltar ao Vigario, e pôlos do seu recado
como fica dito.” 149
Encerra colocando qualquer culpa sobre o viverem Jacinta e Sinfrônio em
pecado sobre o Reverendo, que ficaria “carregando sobre sua consciencia os effeitos e
húa caprixoza restrição, a desforço de extranhas differenças, e discordias”. E assina a
carta, datada de 10 de março de 1831.
Dispomos também da explicação dada pelo Reverendo Vigário Joze Soares
Diniz para o ocorrido, escrita apenas 9 dias mais tarde que a carta do Coronel. O tom é
muito diverso. A cômoda situação do Vigário, a quem apenas cabe confirmar as
denúncias feitas contra seu inimigo, emprestam a seus escritos uma serenidade que falta
ao fazendeiro. Sua carta nada de surpreendente nos revela. Se limita a narrar o ocorrido
e umas poucas coisas merecem relêvo.
Joze Soares Diniz descreve Sinfrônio e Jacinta como Benguelas, diferentemente
do Juiz de Paz, o qual sabemos seu amigo e parente, que os classifica por Angolas em
sua missiva – sendo isto um indicativo do pouco rigor com que, na documentação
oitocentista, a escravos se atribuia ligação com uma ou outra nação africana. O
convívuo com a documentação (especialmente os registros paroquiais e os inventários
post-mortem) levaram-nos a pensar que os homens livres tinham uma tendência a
atribuir a mesma cor ou nação africana a uma casal de escravos e que isto não estava
necessariamente ligado à sua origem150. O Vigário refere-se à cerimônia de união dos
escravos como “clandestino matrimônio”, opondo aqui o linguajar da Igreja Reformada
à retórica do Coronel, em que são evocadas tradições portuguesas baseadas nas “Leis
do Reino”. Ou seja, há uma clara diferença de ponto do vista sobre o significado da
solenidade. Além disto, diz o Reverendo ter sido “appresentado pelo ditto Feitor um
149 Arquivo Público Mineiro, PP1/18, caixa 173, documento 12. 150 Caso esta suspeita venha a ser confirmada, teremos que olhar com certa cautela para os estudos sobre endogamia por naturalidade, especialmente em se tratando de cativos africanos. Procuramos fazer experimentos neste sentido (ver Tabelas 4.1 e 4.2) e descobrimos que, aparentemente, havia uma tendência à endogamia por origem, casando-se preferencialmente os nacionais e africanos com pessoas de mesma procedência. A desconfiança, no entanto, de que a informação sobre cor/etnia dos casais escravos não seja um indicativo real de naturalidade, levou-nos a ficar bastante reticentes quanto à relevância destes dados.
119
relho aos noivos com que os amiaçou para bem viverem, os quais estam vivendo como
cazados”, argumentando, assim, que o Coronel teria forçado a união. Por último, numa
tentativa de ganhar maior credibilidade, enumera cerca de dez testemunhas, respeitáveis
homens da elite local, muitos dos quais teriam frequentado a festa dos esponsórios dos
escravos e poderiam confirmar suas palavras.
Claro que não interessa aqui saber quem tinha razão, ou dizia a verdade. Não
conhecemos tampouco o destino de Sinfrônio e Jacinta, já que o inventário de Francisco
de Paula Barboza não foi encontrado. O importante é que uma disputa de poder entre
um potentado local e um religioso nos permitiu uma rara ocasião de ter acesso às
concepções da elite sobre o significado do casamento de seus escravos.
O Coronel se refere à cerimônia de que participaram seu escravos como
“esponsais”. Os chamados esponsais, ou desponsórios de futuro, eram acordos que
selavam uma promessa de casamento e faziam parte de antigas tradições portuguesas; e,
tanto em Portugal quanto no Brasil, acabaram frequentemente substituindo o
matrimônio.151 A cerimônia, bastante solene, contava com a presença de testemunhas, e
,eventualmente, com um pároco, o que aumentava ainda mais seu caráter de rito de
passagem. O problema é que, não raro, os esponsais eram seguidos de cópula e
coabitação e o matrimonio em si jamais vinha a ser realizado, sendo os esponsais
considerados suficientes para selar a união.
Embora a Igreja, após o Concílio de Trento, tenha continuado a atribuir
importância à celebração dos esponsais, ela estabeleceu medidas no sentido de evitar
que eles fossem confundidos com o casamento religioso, tido como casamento de fato.
Proibidos foram os párocos de se fazerem presentes em tais cerimônias e eram
condenados os casais que tinham relações sexuais após os desponsórios, pois ainda não
estavam ‘casados de fato’. As Constituições definiam penas para os pais e os
contraentes que contrariassem estas resoluções, o que parece não ter sido suficiente para
151 SILVA, 1984. p. 84.
120
transformar de pronto os costumes. A prática, arraigada nas tradições populares, parece
ter continuado a vigorar na colônia até o século XIX152.
Tratando das razões para a pouca difusão do casamento religioso no Brasil
colonial, Maria Beatriz Nizza da Silva aponta, além dos tradicionais motivos
correntemente elencados pela historiografia153, a persistência de antigas práticas
tradicionais portuguesas, que não reservavam ao matrimonio o mesmo significado que
lhe atribuía a Igreja Reformada. Dentre elas, destacar-se-iam os casamentos à porta da
Igreja, os casamentos presumidos, ou casamentos segundo as “Leis do Reino”, e os
esponsais ou desponsórios de futuro.
Tanto a legislação civil quanto a religiosa baseavam-se na noção de que existia
uma lei da natureza, responsável pela atração sexual entre um homem e uma mulher e
necessária à propagação da humanidade. Esta lei seria a origem primeira do
casamento154. Pertencente ao domínio dos instintos e dos apetites, ela deveria ser
regulada por outras leis, civis e religiosas, feitas pelos homens. Todavia, ela dava
sustentação à noção de que o casamento seria anterior às regulamentações do Estado e
da Igreja, sendo a raiz de uma série de práticas e crenças quanto à conjugalidade, as
quais dispensavam a mediação tanto de uma quanto de outra instituição.
152 SILVA, 1984. p.85. 153 A própria natureza da ocupação, muito provisória, pelo menos de início; a vastidão do território e o insuficiente número de párocos; a recusa, por parte do clero, de se submeter ao bispado, de aceitar as novas posturas de Igreja reformada; a “imoralidade” de muitos sacerdotes, que viviam eles mesmos concubinados; a desproporção entre os sexos, com uma carência de mulheres, especialmente as brancas, de forma que os homens portugueses tinham dificuldade de encontrar noivas “à sua altura”; e, finalmente, a burocracia e os altos custos inerentes ao processo matrimonial. 154 “O matrimônio é um contrato estabelecido: 1o pela lei da natureza, dependente só da vontade dos contraentes; 2o pelas leis de cada uma das grandes sociedades, ou nações debaixo de certas regras, e solenidades não só para o bem particular dos contratantes, mas também do público, e geral das mesmas sociedades, ou Estados; 3o foi elevado a sacramento por Nosso Senhor Jesus Cristo fundador da nossa santa religião, para maior bem da salvação dos homens.” (D. José Joaquim da Cunha de Azevedo Coutinho, Respostas dadas (...) às propostas feitas por alguns párocos, 1808.) citado por SILVA, 1984,. p. 29.
121
A expressão “casamentos presumidos” designava a coabitação prolongada, sem
mediação da igreja. Eram também conhecidos como casamentos segundo as “Leis do
Reino”155, legislação portuguesa que tratava do regime de bens do casal. Estas leis
“... eram observadas na Colônia muito antes da divulgação da doutrina
tridentina acerca do matrimônio, e [...] mesmo depois do Concílio, elas
continuaram vivas nas tradições populares. Muitos casos de concubinato,
para usarmos a terminologia da Igreja, nada mais seriam, aos olhos do
povo, do que casamentos de acordo com as leis do Reino.” 156
Esta legislação considerava existirem dois tipos de casamento: um, quando os
esposos são “casados, por palavras de presente à porta da Igreja, ou por licença do
prelado fora dela, havendo cópula carnal” (os tais “casamentos à porta da Igreja”); e,
outro, “aquele em que homem e mulher provavam estarem ‘em casa teúda e manteúda’,
ou em casa de seu pai, ou em outra, em pública voz e fama de marido e mulher por tanto
tempo que, segundo o Direito, baste para presumir matrimônio entre eles, posto que se
não provem as palavras de presente” (o casamento presumido).157
Silva argumenta que,
“Se apenas no século XVII o Estado decidiu reforçar a campanha movida
pela Igreja contra os casamentos clandestinos, é de supor que no Brasil as
autoridades civis tenham começado a colaborar com as autoridades
eclesiásticas por esta época, ou bem mais tarde. De acordo com a
mentalidade daqueles séculos o casamento contraído sem as formalidades
exigidas pelo Concílio de Trento era tão válido quanto o realizado segundo
o rito tridentino. Pois, não era a própria Igreja que definia o sacramento do
matrimônio como aquele em que os ministros eram os próprios
contraentes? Se a matéria do sacramento é ‘o domínio dos corpos, que
155 SILVA, 1984. p. 38. 156 SILVA, 1984. p. 38. 157 SILVA, 1984. p. 110.
122
mutuamente se fazem casados’ e se a forma são ‘as palavras, ou sinais de
consentimento, enquanto significam a mútua aceitação’ [Constituições
Primeiras do Arcebispado da Bahia], resultava difícil, para as populações,
aceitar a mudança imposta pelo Concílio de Trento, pois ela parecia
contradizer a definição tradicionalmente apresentada pela Igreja para o
sacramento do matrimônio.” 158
Acreditamos que, ao longo do século XIX, estas tradições foram perdendo
legitimidade junto à população livre mais bem colocada socialmente, enquanto o
matrimônio segundo as normas tridentinas ia ganhando um espaço cada vez maior. No
entanto, levantamos a hipótese de que estas práticas conjugais portuguesas continuavam
a ser consideradas legítimas, pela elite proprietária, em se tratando de seus escravos.
A Igreja, no entanto, esforçava-se para disseminar o casamento formal e
combater os outros tipos de união, mesmo para cativos. Compreende-se, portando, que o
Reverendo Joze Soares Diniz se refira a união entre os escravos Sinfronio e Jacinta
como “casamento clandestino”, enquanto o seu senhor a trata com “esponsais”. O
segundo fazia referência a tradições ligadas às Leis do Reino; o primeiro se utilizava da
linguagem da Igreja Reformada.
Segundo Figueiredo, tratando do Setecentos mineiro, Igreja e o Estado haviam
abraçado uma política de incentivo ao matrimônio religioso e à constituição de famílias
legítimas e, em consequência, de combate aos chamados “tratos ilícitos”. Este esforço
para disseminação do casamento formal, embora de forma tímida, remontava ao inicio
da colonização, mas somente veio a ser intensificado com a descoberta de ouro e a
ocupação das Minas.159 A peculiaridade da sociedade que surgia com a mineração –
com a ocupação e urbanização muito rápidas e desordenadas, com a presença de todo
tipo de gente atraída pela febre de enriquecimento, com o nomadismo da população e a
diversificação das atividades econômicas – teria colocado limites ao paternalismo,
gerando a necessidade de uma intervenção mais direta do Estado para manutenção da
158 SILVA, 1984. p. 112. 159 FIGUEIREDO, 1997. p. 21.
123
ordem social. A família legítima constituía uma peça fundamental deste projeto de
ordenação social, no qual Igreja e Estado colocam-se como aliados, unindo forças pela
sua difusão.
A implementação desta política é concomitantemente à montagem do aparelho
administrativo, mas pode ser percebida com mais clareza a partir da década de 20 do
século XVIII, como uma reação às Revoltas de Vila Rica e Pitangui.160 A defesa da
família legítima aparece como uma estratégia política de estabilização da população e
estabelecimento da ordem. O matrimônio, sacramento que dava origem à família
legítima, contribuiria para fixar as pessoas ao território e disciplina-las.161 Constituindo
família, criando raízes, e “tomando amor à terra”, os habitantes das Minas se tornariam
súditos mais leais ao rei de Portugal e menos propensos a revoltas e motins.
A outra face desta política estava ligada à preocupação com a pureza do sangue
dos “homens bons”, os portugueses estabelecidos na colônia, que acabavam se
misturando a índias, negras e mulatas. Se, no que diz respeito aos “desclassificados”, o
casamento aparecia como instituição civilizadora, moralizadora e ordenadora, no que
tange à elite, ele aparecia como forma de manter a pureza racial. A mestiçagem era
associada à desordem, e deveria ser contida. Os mestiços, em geral libertos,
representavam uma população indisciplinada e inquieta socialmente, desligada do
sistema escravista-exportador e, por isto, desvinculada dos interesses da Coroa.162 Por
tudo isto, não se defendia a união matrimonial indiscriminada, mas apenas aquela entre
pares sociais e raciais. Ou seja, casamento só era tido como útil à sociedade quando
selava a união de pessoas de mesma condição social. Ao procurar não só difundir, como
controlar, o processo matrimonial, o Estado estava, na verdade, procurando controlar o
sistema de alianças que era a base de toda a organização social.163
160 FIGUEIREDO, 1997. p. 25. 161 FIGUEIREDO, 1997. p. 26. 162 FIGUEIREDO, 1997. p. 28. 163 FIGUEIREDO, 1997. p. 29.
124
Embora a defesa do matrimônio, como veículo de controle social, domesticação
e civilização dos homens e mulheres que habitavam a capitania, estivesse fortemente
presente no discurso do Estado, ainda segundo Figueiredo, a execução de tal política
ficou principalmente a cargo da Igreja. Esta, no entanto, não atuou como mero apêndice
do Estado português – ao qual estava submetida sob o Padroado – uma vez que a defesa
do matrimônio fazia parte da própria tentativa da Igreja Reformada de se afirmar
institucionalmente
O autor salienta que é importante lembrar que, na América Portuguesa, a Igreja
ainda vive, no Setecentos, os efeitos da Reforma e do Concílio de Trento. O Sínodo da
Bahia, realizado em 1707, busca implementar as orientações tridentinas e sintetiza
normas da teologia e do direito canônico, que tomam a forma das Constituições
Primeiras do Arcebispado da Bahia. Este projeto institucional chegaria à população
através da administração dos sacramentos, ensinamento das doutrinas e correção dos
pecadores. 164 O sacramento do matrimônio ganha um lugar de destaque neste projeto de
universalização do catolicismo reformado. Lugar autorizado do sexo e da reprodução, o
matrimonio aparece como a maneira de gerar pessoas tementes a Deus, permitindo a
conciliação entre alma e carne, colocando freios à paixão e ao desejo.165
As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, além de definirem os
relacionamentos ilícitos que deveriam ser combatidos, delineavam também as regras
para o casamento na forma do Concílio Tridentino. A idade mínima para o casamento
era definida como 12 anos para as meninas e 14 para os meninos. Era instituído e
regulamentado um processo para assegurar que os contraentes não eram casados alhures
e que não haviam impedimentos que impossibilitassem a união.166
Todavia, ambos os autores salientam que todo este esforço conjunto da Igreja e
do Estado rendeu, ao menos nas Minas Gerais setecentistas, poucos frutos. A população
164 FIGUEIREDO, 1997. p. 31. 165 FIGUEIREDO, 1997. p. 31. 166 SILVA, 1984. p. 112.
125
continuava a viver de acordo com seus costumes, em grande medida surda ao discurso
governamental e religioso. Afirma Figueiredo que:
“A vida cotidiana das comunidades mineiras no decorrer do século XVIII
pareceu resistir a tanta coerência. Mesmo perseguidas por múltiplos
instrumentos punitivos que, com ferocidade singular, condenavam suas
relações extra-conjugais, estas populações insistiam no seu modo de vida
familiar. Numa perspectiva secular, as limitações institucionais foram mais
fortes e acabaram por consumir a eficiência do projeto familiar
empreendido pelos aparelhos do Estado e da Igreja, em Minas. O temor que
estes espantalhos despertavam não foi o bastante para exterminar estas
uniões e generalizar as famílias legítimas.”167
O projeto de disseminação do matrimonio pretendia também alcançar os
escravos. Estava escrito nas Constituições que:
“Conforme o direito divino, e humano, os escravos, e escravas podem casar
com outras pessoas cativas, ou livres, e seus senhores lhe não podem
impedir o matrimônio, nem o uso dele em tempo e lugar conveniente, nem
por este respeito os podem tratar pior, nem vender para outros lugares
remotos, para onde o outro por ser cativo, ou por ter outro justo
impedimento o não possa seguir, e fazendo o contrário pecam mortalmente,
e tomam sobre suas consciências culpas de seus escravos, que por este
temor se deixa muitas vezes estar, e permanecer em estado de condenação.
[...] E declaramos, que posto que casem, ficam escravos como de antes
eram, e obrigados a todo serviço de seu senhor”168
A Igreja exigia que os escravos, que desejassem se unir em matrimônio,
soubessem a doutrina cristã169, além de que passassem pelo mesmo processo burocrático
167 FIGUEIREDO, 1997. p. 21,22. 168 SILVA, 1984. p. 141. 169 “Mandamos aos vigários, coadjutores, capelães, e quaisquer outros sacerdotes de nosso Arcebispado, que antes que recebam os ditos escravos e escravas, os examinem se sabem a doutrina cristã, ao menos o Padre
126
pelo qual passavam as pessoas livres. As Constituições determinavam, ainda, que os
párocos procurassem saber se os escravos oriundos da África eram casados naquele
continente e que os dispensassem de tais casamentos, antes de contraírem nova união na
América.170 Na prática, todavia, a Igreja não podia ter uma relação imediata com os
escravos e estas determinações acabavam esbarrando na autoridade senhorial,
dependendo de sua vontade para serem cumpridas. Deixemos de lado,
momentaneamente, estas reflexões sobre nupcialidade no XVIII e debrucemo-nos sobre
os padrões matrimoniais dos escravos de Santa Luzia na centúria seguinte.
4.2 – Os padrões matrimoniais dos escravos de Santa Luzia
Começaremos pelos dados das Listas Nominativas de 1831, procurando
desvendar qual era, naquele momento, a proporção de escravos que se casavam
formalmente e quão diferente era o acesso ao matrimônio para livres e cativos. O estado
matrimonial das pessoas com quinze anos ou mais, segundo a condição, pode ser
visualizado na Tabela 4.3.171 Menos de um quinto dos escravos era casado ou viúvo,
proporção bastante inferior à de livres na mesma situação (41,3%).
Correndo o risco de cometer certo anacronismo, e apenas a título de curiosidade,
procuramos saber a proporção de pessoas unidas formalmente (casamento civil e/ou
religioso) no Brasil de hoje. Quase 150 anos depois da elaboração da Lista Nominativa,
em 1980, metade da população acima de 15 anos era casada formalmente e em torno de
10% das pessoas viviam em uniões consensuais172. Este dado, mesmo considerando
todas as imensas diferenças culturais quanto ao significado do casamento, bem como a
instituição do registro civil, é muito significativo, pois nos leva a relativizar a noção de
Nosso, Ave Maria, Creio em Deus Padre, Mandamentos da lei de Deus e da Santa Madre Igreja, e se entendem a obrigação do Santo Matrimônio, que querem tomar, e se é sua tenção permanecer nele para serviço de Deus, e bem de suas almas.” SILVA, 1984. p. 141. 170 “Que todos os párocos, quando receberem alguns escravos dos novamente convertidos, em que haja suspeita de que estão casados na sua terra (posto que não sacramentalmente) com eles dispensem no dito antigo matrimônio.” Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, citado por SILVA, 1984. p. 141. 171 Por razões já apontadas anteriormente, optamos por dividir a população apenas em livres e escravos, a primeira categoria agregando livres, libertos e pessoas para as quais não há informação quanto à condição, e a segunda, coartados e escravos. 172 Dados do Censo Demográfico (FIBGE), 1980, em BERQUÓ, 1989.
127
que os brasileiros, e os mineiros em especial, se casavam pouco nos séculos XVIII e
XIX. Noção largamente arraigada na historiografia, a qual, aliás, tem se furtado quase
completamente a fazer análises comparativas entre as taxas de nupcialidade passadas e
contemporâneas.
Procurando contextualizar um pouco a taxa de nupcialidade encontrada para a
população mancípia, comparamos os nossos achados com os de outros pesquisadores. A
porcentagem de escravos alguma vez casados calculada para Santa Luzia (19,3%) é um
pouco maior que a encontrada por Tarcísio Botelho173, para os cativos de Montes
Claros, em 1872 – momento tido por este autor como favorável à melhoria da situação
da família cativa. Este valor se aproxima, também, da porcentagem de livres alguma vez
casados para Montes Claros, no mesmo ano (21%); mas é bem inferior às taxas
referentes a escravos alguma vez casados encontradas por Robert Slenes174, para
Campinas, em 1801, 1829 e 1872 (respectivamente 39,7%, 31,4% e 41,3%).
Isto posto, analisemos com um pouco mais de detalhe a conjugalidade dos
habitantes de nosso Arraial, em 1831. Os homens livres se casavam com mais
freqüência que as mulheres de mesma condição social: quase metade daqueles eram, ou
tinham sido, casados, contra pouco mais de um terço daquelas. Isto se explica pelo
desequilíbrio sexual, havendo proporcionalmente mais mulheres que homens livres na
população. A situação, como seria de se esperar, se inverte para a população mancípia,
na qual havia um excesso de homens: 21% das escravas eram casadas ou viúvas, contra
17% dos homens175.
Percebemos que a taxa de nupcialidade era ligeiramente mais elevada para os
escravos nascidos no Brasil que para os oriundos da África: 21% dos primeiros eram
casados ou viúvos, enquanto apenas 17% dos segundos tinham tal estado matrimonial
(ver Tabela 4.4). Nascidos e criados no Brasil, envolvidos nas redes de sociabilidade
locais desde a infância, educados em uma língua e cultura comuns e em preceitos
173 BOTELHO, 1994. p. 139. 174 SLENES, 1998. p. 41. 175 Ver Capítulo 1 para detalhes sobre a distribuição sexual da população de Santa Luzia.
128
católicos, tendo um longo contato com a família senhorial (que era, portanto, mais
propensa a dar seu aval), não é de se estranhar que crioulos se casassem com mais
freqüência que africanos. Estes, afinal de contas, eram estrangeiros. Levavam algum
tempo para se adaptar culturalmente e estabelecer relações sociais, tanto com os outros
escravos quanto com os proprietários. As mulheres escravas africanas e as aqui nascidas
apresentam, em 1831, a mesma taxa de nupcialidade: 22%. Entre os homens, entretanto,
há diferenças: 19,8% dos nativos eram ou haviam sido alguma vez casados; entre os
africanos o percentual era de apenas 13,9%.
O ideal seria agora examinar o estado matrimonial da população de Santa Luzia
segundo o Recenseamento Geral do Império, de 1872. Seria então a taxa de
nupcialidade da população mancípia mais elevada? Aumentaria, ao longo do século
XIX, a disposição (ou o empenho) dos senhores em casar seus cativos? Adotariam os
senhores uma política de incentivo ao matrimônio formal dos cativos como uma
estratégia de incentivo à procriação? Seriam as tendências das taxas de nupcialidade,
seja de aumento ou de queda, as mesmas para as populações livre e escrava?
Lamentamos, todavia, informar que a qualidade dos dados para 1872 é muito
inferior à dos dados disponíveis para 1831. Além de todos os problemas inerentes ao
Recenseamento e já discutidos previamente, naquela contagem populacional, os dados
não são passíveis de desagregação por idade. Isto quer dizer que crianças e jovens - aos
quais esta variável não se aplica - foram incluídos na contagem, puxando as taxas de
nupcialidade para baixo e tornando-as pouco relevantes. Teremos, portanto, de buscar
outro meio de conhecer as mudanças nos padrões de nupcialidade da população de
Santa Luzia.
Um subterfúgio é acompanhar a legitimidade das crianças batizadas na Paróquia,
ao longo do século XIX. Mergulhemos, portanto, no universo dos registros paroquiais
de batismo. Estes, pela sua natureza contínua, mostram-se fontes confiáveis,
preenchendo a lacuna deixada pela má qualidade dos dados do Recenseamento sobre o
estado matrimonial. È necessário, porém, conhecer um pouco melhor os nossos dados.
Entre 1817 e 1872, 6817 assentos de batismo de inocentes foram anotados nos
Livros de Registros Paroquiais pelos padres de Santa Luzia (ver Tabela 4.5). Destas
129
crianças, um quarto eram filhas de mães escravas. Na imensa maioria dos casos (72%),
o padre não explicitou a condição da progenitora; por outro lado, apenas quatro mães
foram descritas como coartadas, outras quatro como livres e 140 como libertas.
Aparentemente, se repete aqui o fenômeno já observado, tanto nas Listas Nominativas
de 1831 quanto no Recenseamento Geral do Império de 1872, qual seja: aos olhos dos
párocos, tanto quanto das autoridades administrativas, não parecia relevante distinguir
entre as mulheres livres por nascimento e as forras. A distinção se fazia, isto sim, entre
escravas e não escravas. Em outras palavras, acreditamos que dentre as pessoas para as
quais não foi indicada a condição social existam tanto libertas quanto livres, porém
ninguém que fosse escrava. Vale lembrar ainda, que o batismo de escravos era
duplamente relevante para os senhores: por um lado, a cerimônia era uma ocasião
propícia para a reafirmação social do proprietário frente a seus pares; por outro, o
registro era precioso documento de comprovação de propriedade. Assim, é improvável
que houvesse negligência, por parte dos padres, em explicitar a condição de cativos, e
mais especialmente das mães cativas, já que a condição e propriedade delas
determinavam a condição a propriedade de seus filhos.176 É interessante notar que as
quatro mães descritas como livres eram todas crioulas – como se só fosse necessário
explicitar a condição de liberdade das exceções, das pessoas que não seriam
imediatamente percebidas como tal177. Este era o caso de Maria de Barros, crioula livre,
mãe de Francisco Pardo; de. Fructuoza Maria de Jezus, crioula livre, casada com
Francisco Alves de Araújo, também crioulo e também livre, pais de Quintilianno; como
era também o de Sebastiana Pereira, crioula livre, “moradora no Pescaram” e mãe da
inocente Maria parda; e ainda o de Maria, crioula livre, mãe de Filomena.
Percebe-se pela análise dos dados que a participação dos assentos de inocentes
filhos de mães escravas tendeu a diminuir em relação ao total ao longo do período em
176 Adotaremos, então, na análise dos registros paroquiais de batismo, o mesmo procedimento adotado com os dados das Listas Nominativas de 1831: classificaremos os indivíduos apenas como livres e escravos, a primeira categoria incluindo livres, libertos e sem informação e a segunda, escravos e coartados. 177 O fato de que as 31 mães descritas como brancas não tenham tido sua condição explicitada confirma a plausibilidade de tal interpretação. É como se a cor branca já fosse sinônimo inequívoco de liberdade, tornando dispensável incluir os qualificativos “branca” e “livre” no assento (pois se branca, obviamente livre).
130
tela ( Gráfico 4.1). Embora este percentual oscile bastante de ano para ano, podemos
constatar claramente uma tendência decrescente. Assim, em torno de 1820, cerca de um
terço de todas as crianças batizadas na Paróquia eram filhas de mães cativas. Em
meados da centúria, estas crianças perfaziam cerca de um quarto do total de crianças ali
batizadas e por volta de 1870, contabilizavam menos de um quinto.178
A informação sobre cor/etnia permite conhecer a origem das mães escravas. Para
as mães livres esta informação é bastante precária (não consta em quase 90% dos
assentos), para as mães escravas é relativamente boa (ver Gráfico 4.2 e Tabela 4.6). Na
verdade, nos primeiros anos do período em tela, a qualidade da informação para este
grupo de mães é excelente, faltando informação quanto à origem somente para menos
de 5% das escravas que tiveram filhos batizados na Paróquia. Chama a atenção o fato de
que a imensa maioria das crianças era filha de mães crioulas. No período de 1827 a
1836, o número de assentos nos quais não havia informação sobre a origem da mãe
aumentara bastante: quase metade das mães fora classificadas como brasileiras e apenas
uma minoria como africanas (cerca de 10%, um pouco menos que no período anterior).
No decênio 1837-1846, o percentual de assentos que não permitem determinar a origem
da mãe se reduz um pouco, enquanto o percentual de progenitoras brasileiras continua o
mesmo do decênio anterior. A proporção de mães africanas, todavia, sofre significativo
aumento, sendo o mais elevado de todo o período enfocado (quase 30%). Este fato é
bastante significativo. Podemos especular que este aumento está relacionado ao
crescimento da demanda por escravos africanos em torno de 1830. Assim, as cativas
africanas, chegadas a Santa Luzia e batizadas nos primeiros anos da década de 30,
estariam aparecendo como mães de inocentes batizados no período 1836-1847. Era
preciso algum espaço de tempo para que estas mulheres, estrangeiras, fossem
incorporadas pela comunidade, passassem a criar laços afetivos, encontrassem parceiros
Com as crioulas acontecia o inverso. Como sua cor era automaticamente associada à condição presente ou passada de cativeiro, tornava-se necessário explicar tratar-se de pessoas livres. 178 Estes achados vêm corroborar os dados de nossas contagens populacionais quanto à participação dos escravos na população. Embora tenha havido um decréscimo no percentual de mancípios no total populacional ao longo do Oitocentos, no início da década de 70, os escravos ainda contabilizavam parte não desprezível dos habitantes de nossa paróquia. O mesmo ocorre com o peso dos registros de batismo de
131
sexuais e se tornassem mães de crianças nascidas nos plantéis, cujos batismos eram
registrados nos livros com que estamos trabalhando. Assim, o aumento na proporção de
mães africanas precisamente neste momento parece confirmar as hipóteses já aventadas
quanto ao recurso dos senhores de escravos de Santa Luzia ao mercado de escravos
africanos. A partir de 1846, a qualidade dos dados só tente a piorar e, nos últimos anos
enfocados (1867-1872) não conseguimos detectar a origem de 85% das mães dos
batizados. A proporção de africanas também sofre acentuado declínio, sendo quase
insignificante em 1857-1866 e desaparecendo por completo em 1867-1872. Vale notar
que a prevalência de crioulas ao longo de todo o período e o fato de que seu percentual
sofreu redução muito inferior ao de africanas, mesmo nos anos nos quais caia muito a
qualidade da informação, só vem corroborar a nossa hipótese de que a população
mancípia de Santa Luzia fosse capaz de reproduzir-se naturalmente.
A informação quanto à legitimidade consta na imensa maioria dos batismos de
inocentes, classificados como filhos “naturais” ou “legítimos” (ver Gráfico 4.3). Para
todo o período estudado, apenas 6% dos assentos não continham esta informação, sendo
muitos raros os anos em que os assentos nos quais não foi informada a legitimidade das
crianças ultrapassaram um décimo do total. Apenas na década de 40 a qualidade dos
dados piora um pouco, mas mesmo assim o maior percentual de não informação é 40%.
De modo geral, a tendência ao longo do século é de melhoria da informação para esta
variável: nos anos 20, a proporção de batismos nos quais não constava se a criança era
legítima ou natural estava em torno de 9%; já no início da década de 70, esta proporção
caíra para cerca de 3%.
“Legítimos” eram considerados os filhos frutos de uniões contraídas segundo os
ditames do Sagrado Concílio Tridentino, explicitados nas Constituições Primeiras do
Arcebispado da Bahia. “Naturais” eram as crianças cujos pais não haviam contraído
matrimônio. Se reconhecidas pelo pai, as crianças naturais tinham direitos iguais aos
dos filhos legítimos na sucessão dos bens. As crianças naturais, ao que parece, não eram
crianças filhas de mães escravas - embora sua participação do total populacional diminua ao longo do tempo, ela permanece importante até o fim do período estudado.
132
alvo de discriminação ou preconceito, sendo acolhidas pela sociedade.179 Segundo Ana
Luiza Castro Pereira:
“... regem as Ordenações Filipinas que eram considerados, para os efeitos
da lei, como filhos naturais aqueles [...] ‘de qualquer mulher solteira com
homem solteiro sem embaraço para se casarem’. Há contudo clara
diferenciação entre os filhos naturais de pais solteiros e aqueles nascidos
de uniões concubinárias. Aos primeiros, além da possibilidade de serem
legitimados com subseqüente matrimônio, ainda existia a possibilidade de,
uma vez legalmente reconhecidos, sucederem aos seus pais. [...]
percebemos que a filiação intitulada natural não lançava qualquer estigma
sobre os indivíduos, havendo a possibilidade de inserção no cotidiano
familiar.”180
Esta mesma autora adverte quanto à diferença entre o tratamento dispensado aos
filhos “naturais” e aos filhos espúrios (frutos de relações em que havia impedimento
para a união dos progenitores), “adulterinos”, “incestuosos” ou “sacrílegos” (filhos de
religiosos que tinham feito voto de castidade), todos estes últimos com poucas chances
de inserção social. Estas crianças “eram a prova da traição, da imoralidade, frutos de
relações que se desviavam da moral, fosse sob a ótica civil ou religiosa”181
Não encontramos nenhum registro no qual crianças recebessem qualquer um dos
títulos excludentes acima listados. Isto, certamente, não quer dizer que por ali não
houvesse nascido qualquer criança de uma união proscrita, mas que havia um zelo pelo
status da criança e provavelmente uma tentativa de salvaguardar a honra dos pais, que
não precisavam assumir publicamente seu pecado.
“A inexistência, entre a documentação pesquisada, de crianças sacrílegas
ou adulterinas aponta para o fato de que a atribuição do título natural aos
179 LIBBY; BOTELHO, 2004. p. 72. 180 PEREIRA, 2004. p. 15-16.
181 PEREIRA, 2004. p. 17.
133
filhos nascidos fora do ambiente familiar legítimo era uma maneira de
garantir-lhes o direito à sucessão, bem como inserção no núcleo familiar e
no cotidiano da sociedade a qual pertenciam.”182
No nosso caso, estudaremos a taxa de legitimidade dos escravos de Santa Luzia
como um indicador de nupcialidade. Em outras palavras, um aumento no percentual de
crianças legítimas indicaria que um maior número de casais estaria contraindo
matrimônio perante a Igreja. Embora o nosso foco esteja na população cativa,
exploraremos também a legitimidade dos inocentes livres, com a intenção de melhor
contextualizar os nossos achados.
Segundo dados da documentação eclesiástica (ver Gráfico 4.4), a taxa de
legitimidade dos inocentes livres era muito mais elevada que a dos filhos de escravas –
em todo o período em tela, 67% das crianças nascidas de mães livres eram legítimas,
contra 33% dos nascidos de cativas. Todavia, a taxa de legitimidade de crianças livres
tendeu a crescer, enquanto a dos cativos tendeu a diminuir.
A taxa de legitimidade dos livres se encontra em torno de 70% no início do
período estudado. Sofre uma ligeira queda ao longo da década de 20, chegando a seu
ponto mais baixo por volta de 1830 (cerca de 55%). Depois retoma uma tendência
ascendente, e, em princípios da década de 70, chega a mais de 80%.
No caso da população mancípia, apesar de um maior grau de dispersão, podemos
detectar uma tendência inversa àquela encontrada para os livres. A taxa de legitimidade,
que estava em torno de 40%, em 1817, tende a subir, encontrando-se em torno de 50%
(um de seus pontos mais elevados) no início da década de 30. Esta década, como para a
população livre, representa um momento de ruptura. A partir daí, embora haja anos em
que o percentual de crianças legítimas conhece um aumento significativo, a tendência é,
182 PEREIRA, 2004. p. 176, 177.
134
de modo geral, decrescente. Por volta de 1870, a taxa encontrava-se em torno de
20%.183
Estes dados são, no mínimo, intrigantes. Há, em primeiro lugar, as tendências
radicalmente opostas das taxas de legitimidade de livres e de cativos. Há, ainda, a queda
na legitimidade de crianças cativas, após a década de 30. Tendo sido justamente nesta
década que os senhores de Santa Luzia pararam de comprar escravos no mercado
internacional e passaram, para manter ou ampliar suas posses de escravos, a depender
mais fortemente da reprodução natural, seria de se esperar que as taxas de nupcialidade
de escravos aumentassem a partir daquele momento, caso os proprietários pensassem no
matrimônio de seus cativos como um incentivo à procriação. Lembramos também que a
família escrava podia ter, do ponto de vista do senhor, um caráter civilizatório e
disciplinatório. Seria, portanto, perfeitamente lógico que, à medida que a população
livre passava a aceitar o matrimônio religioso como norma – o que percebemos pelo
crescimento das taxas de legitimidade para os livres – ela também se preocupasse em
estender o matrimônio aos escravos.
Sim, tudo o que foi dito nas linhas anteriores teria sido perfeitamente lógico que
se realizasse. Contudo, não foi, ao que parece, o que aconteceu, restando, assim, a
questão: como explicar estas tendências divergentes quanto à legitimidade (e, portanto,
nupcialidade) de livres e cativos?
Antes de aventar qualquer explicação, julgamos útil examinar um estudo
conduzido por Douglas Libby e Tarcísio Botelho. Estes autores trabalharam com a
legitimidade de inocentes na Paróquia de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto, durante
boa parte do Setecentos. Seus achados talvez possam ajudar-nos a especular sobre a
legitimidade das crianças de Santa Luzia naquele século.
183 Curioso é que a legitimidade das crianças nascidas de mães africanas era bastante superior à daquelas nascidas de mães crioulas, embora crioulas e africanas tenham apresentado a mesma taxa de nupcialidade segundo as Listas de 1831. Apenas cerca de um quarto dos filhos de crioulas eram legítimos, contra metade dos filhos de africanas, entre 1817-1872. Esta diferença mantém-se de forma bastante estável ao longo do tempo, oscilando a taxa de legitimidade para os filhos de mães crioulas entre 24 e 30% e, a dos filhos de africanas, entre 48 e 54% (ver Tabela 4.7).
135
O interessante é que estes autores também acharam taxas surpreendentemente
elevadas para a população livre. Trabalhando com assentos de batismo de inocentes de
1712 a 1810, encontraram uma taxa média de legitimidade de 78,8% e, segundo os
próprios autores, próxima às taxas da região do Minho em Portugal e de outras partes da
Europa, na mesma época184. Esta taxa é um pouco mais elevada que aquela por nós
calculada para Santa Luzia (67,3%), mas devemos lembrar que, no nosso caso, estamos
analisando livres e libertos conjuntamente e que Libby e Botelho encontraram uma taxa
relativamente baixa para os forros: 21,9%. Se tivessem calculado uma única taxa para a
população “não escrava”, como fizemos nós, teriam se deparado com um percentual
bem mais reduzido de inocentes legítimos. Muito menos crianças escravas eram frutos
de uniões formais: apenas 11,1% (contra 33% em Santa Luzia).
Os autores comentam que esta diferença na legitimidade dos filhos de mães
livres, libertas e escravas vêm reforçar a idéia de uma sociedade hierarquizada,
“condizente com as interpretações historiográficas mais tradicionais possíveis”, que
“quase equacionam a sociedade colonial com uma rígida hierarquia baseada em
preceitos raciais e de condição social”.185 Além disto, Libby e Botelho detectam uma
tendência de queda na taxa de legitimidade para os filhos de mães livres, nas décadas de
80 e 90 do século XVIII, enquanto exatamente o inverso ocorre para filhos de mães
forras e escravas. Em outras palavras, como nós, eles também se depararam com uma
realidade em que as mudanças nos padrões de nupcialidade não são as mesmas para
indivíduos de diferentes condições sociais. Ou seja, as percepções sobre o matrimônio,
o significado atribuído a este sacramento, além das condições práticas e materiais
envolvidas na sua realização, afetavam de maneira diferente indivíduos de condição
social diversa.
Haveria algumas explicações para estas tendências discrepantes. Em primeiro
lugar, as famílias legítimas seriam oriundas de um setor médio “razoavelmente
remediado”, proprietário de escravos, inclusive. Isto indica que os “desclassificados do
184 LIBBY; BOTELHO, 2004. p. 81. 185 LIBBY; BOTELHO, 2004. p. 81.
136
ouro” provavelmente não seriam encontrados entre a população livre. No caso da
população mancípia, os baixos índices de legitimidade (e, portanto, de nupcialidade)
remeter-nos-iam novamente ao “controlar branco”, aludido por Slenes. Ou seja, os
senhores de escravos pouco se importariam com o estado matrimonial de seus escravos
e a Igreja pouco podia fazer para extirpar este pecado, já que não podia intervir
diretamente na relação senhor/escravo, mesmo se a legislação a autorizasse a fazê-lo.
A grande maioria dos estudiosos do século XVIII afirma que os índices de
casamento formal eram geralmente baixos, especialmente na região das Minas186. É
claro que há exceções. Brügger, por exemplo, foi uma das primeiras a estudar os índices
de legitimidade de pessoas livres, encontrando taxas relativamente elevadas187.
Necessário se faz, sem dúvida, que mais pesquisas sobre este assunto sejam conduzidas,
para outros momentos e lugares. É claro que os dados de Libby e Botelho, além
daqueles por nós levantados, não são evidência suficiente para repensar as práticas
matrimoniais e os significados deste sacramento para os mineiros dos séculos XVIII e
XIX.. Ainda assim, pelo menos nas Paróquias por nós enfocadas, a taxa de legitimidade
das crianças livres era razoavelmente alta e no nosso caso só tendeu a crescer, indicando
o avanço da valoração social do casamento formal.
Voltemos a um ponto da análise de Libby e Botelho que ainda não foi
mencionado. Trata-se do exame dos registros de batismo nos quais os nomes pais das
crianças naturais aparecem, e que eram, em última instância, denúncias públicas de
relações ilícitas. Na Paróquia de Nossa Senhora do Pilar do Ouro Preto, este tipo de
assento correspondia a apenas 1,4% do total de assentos de batismo de inocentes, sendo,
portanto, pouco freqüente. Além disto, a maior parte deles se concentra no intervalo
1721-1750, parte inicial do período enfocado. A partir destes dados, os autores
concluem que a Igreja foi deixando de se importar em denunciar estas relações,
resignando-se à insistência de uma parcela da população em viver em pecado, fora dos
preceitos do Sagrado Concílio Tridentino. “Certamente em relação à população escrava,
186 Ver, por exemplo: SOUZA, 1982. LEWKOWICZ, 1994. RAMOS, 1990. p. 154-163. FIGUEIREDO, 1997. 187 BRÜGGER, 2000. p. 37-64;
137
mas também no que dizia respeito aos forros e até mesmo aos livres, quer nos parecer
que a Igreja foi assumindo, ao longo do século XVIII, uma atitude de resignação diante
de tanto desregramento.”188
Penso, no entanto, que este dado é passível de uma outra interpretação, em se
tratando da população livre. A de que, lentamente imbuída de uma moralidade difundida
pela Igreja e pelo Estado, as pessoas aos poucos foram aceitando o matrimônio entre
pares como norma social. Assim, as uniões ilícitas, antes toleradas e socialmente aceitas
(a tal ponto que podiam ser assumidas publicamente – daí que constassem, por exemplo,
os nomes dos senhores como pais dos filhos de suas escravas) foram se tornando
inconfessáveis. È claro que os “tratos ilícitos” ainda aconteciam, mas foram se tornando
um tabu maior, não sendo assumidos com tanta facilidade perante a Igreja e a sociedade.
Nos dados para a Paróquia de Santa Luzia, existem apenas 16 casos em que o
pai aparece no registro de batismo de crianças naturais (em torno de 0,2% de todos os
batismos). Em dois destes casos, tratavam-se das filhas de Tiburcio Pires e Carolina
Quirina de Mello, ambos livres. As meninas, Maria e Flavia, respectivamente batizadas
em 6 de julho de 1837 e 7 de janeiro de 1839, foram posteriormente legitimadas pelo
casamento de seus pais. A informação quanto à legitimação consta nos assentos de
batismo das meninas189, que, na verdade, parecem ter sido feitos após a celebração do
matrimônio. Ou seja, o único homem livre a assumir a paternidade de inocentes naturais
o fez após ter se casado e legitimado as crianças. Todos os outros casos em que aparece
o nome do pai no registro de uma criança natural são de casais escravos. Este era o caso
de Abraham, batizado em 1818, na Capela da Carreira Comprida, filho natural de
Joaquim Angola e Eufemia Crioula, todos escravos da sociedade do Capitão Antonio da
Fonceca Ferreira e seus irmãos; da inocente Theodora, batizada no ano de 1822, na
Capela de Matozinhos, filha dos escravos Antonio Benguela e Joana, propriedade de
Luis Francisco; de Rozenda, filha dos escravos de João Rodrigues de Aguilar, Silvério
e Joana, batizada em 1835, na Igreja Matriz de Santa Luzia; de Francisca, a última
188 LIBBY; BOTELHO, 2004. p.84. 189 “Inocente foi legitimada pelo Subsequente Matrimonio que [a mãe] celebrou com Tiburcio Pires a qual reconhece como sua filha legitima que fica sendo de hoje por diante”.
138
criança natural cujo pai consta no registro, batizada em 1865, na Igreja Matriz, filha de
Antonio e Maria, ambos escravos de Bernardo de Souza Vianna, tendo a menina sido
alforriada na pia batismal por seu senhor, que declarou que ela deveria ser “batizada
por livre de toda a escravidão”.
Não encontramos nem um caso em que o senhor aparecesse como pai do filho
natural de sua cativa. Além disto, não encontramos sequer um casal de cativos de
senhores diferentes que houvesse formalizado sua união. Diante de circunstância
semelhante para a Paróquia de Nossa Senhora do Pilar do Ouro Preto, Libby e Botelho
dizem suspeitar que,
“... especialmente em se tratando do espaço urbano da Vila propriamente
dita, os registros ‘escondem’ um bom número de uniões entre escravos e
escravas de senhores diferentes. Muito embora as Ordenações Filipinas
fossem claras em considerar que a propriedade seguia o ventre e que ao
dono da mãe pertenciam os filhos, parece que os desconfiados senhores de
escravos mineiros preferiam desconhecer tais uniões.”190
A explicação parece-nos suficientemente convincente para a situação dos cativos
de Santa Luzia. Tal desconfiança faria com que nem mesmo as uniões consensuais entre
escravos de proprietários diferentes aparecessem nos registros de batismo. Nos raros
casos em que o pai cativo aparecia no registro de seu filho natural, pai e mãe eram
propriedade do mesmo senhor.191
Voltando aos assentos de crianças naturais em que consta o nome do pai, vale
notar que todos, à exceção de um único datado de 1865, foram feitos no período anterior
a 1840. Além disto, no único caso em que os progenitores eram livres, o nome do pai
apareceu em registro que tinha o intuito de provar que as crianças haviam sido
legitimadas, sendo o assento feito após o matrimônio dos pais. Ora, estes dados, aliados
190 LIBBY; BOTELHO, 2004. p. 83 191 Ademais, relembrando aqui a sugestão de Slenes, este fato parece selar o caráter decisivo do apoio (ou permissão) senhorial para a realização de casamentos entre cativos. Fica claro então, que as taxas de
139
às tendências inversas de legitimidade de crianças livres e escravas, indicam que os
livres não pensavam no matrimonio sob um mesmo prisma para si e para seus escravos,
tendo percepções diferentes sobre o que era moralmente correto e socialmente aceitável
para pessoas de diferente condição social. E estas percepções não eram estáticas e
parecem ter sofrido mudanças ao longo do período em tela.
4.3 – Sedentarização e matrimônio
Parece-nos que, ao longo do Oitocentos, o processo de sedentarização da
população foi acompanhado por uma crescente disseminação do matrimônio formal
entre os livres. Este sacramento foi, aos poucos, sendo aceito como norma social, pelo
menos por uma parcela “mais remediada” da população. Se é que esta disseminação já
não tenha se dado no período anterior – como indica o trabalho de Libby e Botelho.
Entretanto, a crença de que casar-se era a coisa certa a fazer só se estenderia aos pares
livres, e não à população mancípia. Tudo indica que, quanto mais nos aproximamos do
fim do século XIX, menos a elite proprietária pareceu se preocupar em realizar
matrimônios entre seus cativos.
Devemos lembrar que a última metade do Oitocentos assistiu ao lento mas
progressivo desmantelamento do sistema escravista: com o Estado interferindo cada vez
mais na relação senhor/escravo; com o impacto, e seus reflexos no Brasil, da derrota do
Sul escravista na Guerra Civil Americana, em 1865; também com os preços de cativos
sofrendo aumento contínuo e com a propriedade de escravos se tornando, gradualmente,
mais e mais concentrada. E à medida que a escravidão ia perdendo legitimidade, os
senhores iam se preocupando cada vez menos em casar seus cativos. Assim, embora a
dependência da reprodução natural caminhasse conjuntamente com um projeto de
incentivo à família dos escravos, ela não passava necessariamente pela legalização das
uniões dos cativos. Daí, poder-se argumentar que os senhores relutariam em casar os
seus escravos, pois teriam mais dificuldade em vender, negociar, ou separar em herança,
escravos casados.
legitimidade e nupcialidade entre os cativos são muito mais uma conseqüência das percepções da classe
140
Todavia, é preciso lembrar que as atitudes dos senhores frente a seus escravos
não eram ditadas somente por seus interesses econômicos. Estavam relacionadas
também a questões políticas e morais. É por esta razão que proprietários de escravos
aludiam a tradições e práticas portuguesas antigas, que proporcionavam um respaldo
moral a suas resoluções concernente ao estado matrimonial de seus cativos. Estas
práticas e tradições, não mais aceitas como regras de conduta para a elite, ainda eram
consideradas legítimas no que tange ao comportamento dos escravos e, talvez, das
pessoas mais pobres. Serviam muito bem para aplacar problemas de consciência dos
senhores, que estimulavam uniões estáveis entre seus cativos, e chegavam mesmo a
promover cerimônias que as selassem. Mas evitavam a mediação da Igreja, com toda a
amolação, delonga e, é claro, os custos e prejuízos financeiros que ela acarretava.
O que parece ficar bem claro aqui é que a Igreja tinha uma postura claramente
distonante daquela mantida por boa parte da elite proprietária de escravos, quando o
assunto era a conjugalidade dos cativos. Os membros desta elite passaram a se casar
cada vez mais, à medida que avançava o século XIX, incorporando lentamente a
concepção de matrimônio nos moldes tridentinos, a qual a Igreja se esforçava, havia já
muito tempo, por disseminar. Para seus escravos, no entanto, julgavam suficientemente
boas práticas portuguesas muito antigas, que legitimavam as uniões conjugais estáveis
não formalizadas pela Igreja. Perdendo, lentamente, a própria escravidão, sua
legitimidade, iam deixando de se justificar as despesas e os transtornos necessários para
casar formalmente seus cativos; uniões consensuais duradouras, muitas das quais eram
seladas com cerimônia solene e festa, pareciam mais que suficiente. Acalmavam
eventuais culpas quanto ao pecado dos cativos e cumpriam as funções de estímulo à
procriação, disciplinarização e estabilização da escravaria.
A preocupação com a difusão de um catolicismo moralizado e moralizante
constituíra um dos motores da construção de um discurso e uma política de
disseminação do matrimônio no século XVIII. O outro motor consistia em um projeto
de disciplinarização e controle de uma população nômade, instável e desordeira. Este
proprietária quanto ao matrimônio de seus escravos que das crenças e vontades dos próprios escravos.
141
projeto, longe de enfraquecer-se, adentrou pelo século XIX, tornando-se hegemônico no
seio da elite ligada à administração.
O início do século XIX, nas Minas, ainda era marcado pelo tipo de ocupação que
marcara o século anterior, apesar da queda acentuada na exploração aurífera. Junto a um
lento processo de sedentarização, ainda conviria uma “ética da aventura”, definida por
Sérgio Buarque de Holanda como marcada por projetos pessoais imediatos, que não
visavam a estabilidade e a segurança pessoal e tinham “efeitos imprevisíveis e
variados”.192
Não é novidade que a existência desta população desenraizada, heterogênea e
desordeira causava receio e incômodo à elite e aos funcionários da administração, como
já evidenciaram as análises da realidade setecentista acima enfocadas. Todavia, a partir
dos anos 30 do século XIX, este discurso conservador começa a ganhar um caráter
diverso, à medida que vai incorporando idéias liberais e progressistas. Esta
transformação no discurso e no projeto das elites está ligada à explosão de uma série de
rebeliões violentas (especialmente a Sedição de Ouro Preto de 1833 e a Revolução
Liberal de 1842), que assustaram as elites e trouxeram para o centro do debate a
necessidade de se enquadrar a população marginalizada. A diferença é que agora o
estabelecimento da ordem não era um fim em si, mas um meio de permitir o avanço do
progresso e da civilização, de incentivo ao comércio e ao crescimento econômico e de
proteção à propriedade.193
Este novo discurso conservador associa a descentralização das instituições da
Regência à anarquia social e ineficiência administrativa, e prega a necessidade da
montagem de um aparelho administrativo racional, apolítico, impessoal e ancorado em
sólidos saberes técnicos e científicos. Pensa-se que era função do Estado criar condições
ideais de estabilidade e ordem para o pleno desenvolvimento do país rumo à
modernidade. Embora houvesse divergências no seio da elite quanto às estratégias para
192 DUARTE, 1995. p. 41 193 DUARTE, 1995. p. 42
142
a manutenção da ordem, o projeto político acima descrito “alcançou hegemonia nas
decisões institucionais”.194
Apesar da impossibilidade prática de plena realização deste projeto, com a
“persistência de uma rede de poderes locais, arbitrários e incontroláveis, ligados a uma
intrincada trama de dominações pessoais e partidárias”195, a partir da década de 40,
nota-se um claro esforço de fundação efetiva de um Estado Imperial supervisor e
burocrático. A partir daí, procurar-se-á esquadrinhar a população e o território, com o
intuito de melhor conhecer e medir pessoas e coisas.
“Ao invés de um espaço liso percorrido de forma nômade, os espaços
seriam fechados e estriados, formados por caminhos sedentários garantindo
a comunicação entre pontos bem delimitados. A partir daí, tornava-se
essencial que se criassem mecanismos de controle sobre a vagabundagem e
se dedicassem os esforços para a fixação da força de trabalho e
redistribuição de seus fluxos. Populações, mercadorias e valores
circulariam em trajetos fixos, em direções bem determinadas, limitadoras e
regulamentadoras das velocidades, relativizando os movimentos de pessoas
e coisas.”196
Como estratégias de civilização e sedentarização, o Estado Imperial procurou
mapear tanto o território, localizando serras e vales, rios e cidades, quanto a população
(e é neste contexto que surgem os Mapas de População com que estamos trabalhando.
Mas principalmente, controlar uma população desenraizada e sem papel social definido,
criando leis contra a vadiagem, numa tentativa de inserir tais pessoas em atividades
produtivas úteis. Começa aqui um discurso que valoriza o trabalho, principalmente na
agricultura, e lhe atribui uma capacidade moralizadora, semelhante a que era atribuída
ao matrimônio havia já muito tempo. Esta nova ética associada ao trabalho estaria
ligada ao processo de desmantelamento do sistema escravista, principalmente à
194 DUARTE, 1995. p. 43, 44. 195 DUARTE, 1995. p. 44. 196 DUARTE, 1995. p. 45.
143
cessação do tráfico internacional de escravos e a uma progressiva proletarização da
mão-de-obra livre.197 Este discurso, que louvava a ordem e o sedentarismo, enfatizava a
necessidade de desenvolver a vocação agrícola mineira, através da qual seria alcançado
o progresso. Isto se daria através da conquista da fixação e indústria dos homens e da
adoção de técnicas e instrumentos agrícolas modernos, que substituiriam os atrasados e
rudimentares métodos de cultivo aqui empregados. Esta discussão culminará com a
edição da Lei de Terras de 1850.198
Regina Horta Duarte deixa muito claro as imensas dificuldades para que todas
estas intenções e projetos fossem colocados em prática e salienta o caráter arraigado de
um modo de vida que muitas vezes não correspondia a estas expectativas de
estabilidade e racionalidade. Segundo a autora,
“Vimos que entre a eficácia pretendida pelos discursos governamentais e a
real implantação destas medidas há uma série de problemas. Entretanto,
acreditamos que tais discursos não são simplesmente falsos, mas trazem as
intenções e as estratégias dos agentes envolvidos neste processo histórico.
Se os mapas e os censos eram imperfeitos, as estradas continuavam num
estado lamentável e as prisões favoreciam as fugas fáceis, nem por isto
deixa de ter significado o desejo de se construir uma província ordenada e
esquadrinhada.”199
Acreditamos que este discurso só se delineou porque ocorrera um processo real
de sedentarização, e grande parte da população mineira vivia da agricultura e em
fazendas. É nesta nova realidade, aliada a um certo grau de eficácia dos discursos
oficiais e religiosos que pregavam as virtudes da estabilidade e as benesses morais do
matrimônio, que reside a explicação para as tendências ascendentes das taxas de
legitimidade da população livre de Santa Luzia.
197 DUARTE, 1995. p. 63, 64. 198 DUARTE, 1995. p. 69, 70. 199 DUARTE, 1995. p. 76, 77.
144
Deste modo, uniões estáveis de casais cativos que não tinham a benção da Igreja
eram consideradas legítimas (e moralmente aceitáveis) pelos seus senhores, que as
encarariam sob o prisma das antigas tradições do reino, as quais certamente ainda
vigoravam também entre as camadas livres mais humildes. Em outras palavras, a elite
escravista incentivava a formação de famílias escravas e preocupava-se com a sua
existência, mas não via necessidade, em razão do ônus e dos transtornos decorrentes, de
formalizá-la perante a Igreja.
Isto nos mostra que reprodução natural e constituição de famílias escravas
legítimas nem sempre andavam lado a lado. Não significando isto que os senhores não
estimulassem a formação de famílias escravas, o que eles provavelmente faziam. A
posse de escravos do Tenente Coronel Francisco Lopes de Abreu parece ser um bom
exemplo da complexa rede de relações parentais existente no seio de muitos grandes
plantéis, e que possivelmente unia também escravos pertencentes a pequenas posses.
4.4 – Nas teias de uma comunidade escrava
Tivemos a fortuna de encontrar vários documentos relacionados aos interesses
do Tenente Coronel Francisco Lopes de Abreu200. É o cruzamento destes vários
documentos que nos permite reconstituir as famílias de escravos presentes em seu
plantel. Em julho de 1807, foi lavrada em cartório uma escritura pública que criava uma
sociedade entre os irmãos Francisco e João Lopes de Abreu. Nesta escritura estão
arrolados todos os bens de Francisco, inclusive os escravos residentes na Fazenda da
Casa Branca, de sua propriedade. O irmão, João, que não contribui com bens para a
sociedade, compraria, em duas parcelas de 10 Contos de Réis, metade dos bens do
irmão. Houve uma preocupação em definir a propriedade dos filhos dos escravos do
plantel e a clásula 2ª da escritura dispõe sobre este assunto. Lê-se:
“Que todas as crias que produzirem das Escravas da sociedade de hoje em
diante, ainda que no Baptismo se não declare da sociedade, e estejão
200 Inventários dos bens deixados pelo Tenente Coronel Francisco Lopes de Abreo, Casa Borba Gato, Museu do Ouro de Sabará, IPHAN, CPON(3) 60.
145
lançados em meu nome ou dito meu socio ficarão pertencendo a Sociedade
pois que esta falha de declaração não deve transtornar a boa ordem da
Sociedade huma vez que de hoje em diante ficamos correndo o risco as
referidas Escravas.201”
De fato, ao longo do periodo estudado, foram batizados vários escravos de
propriedade dos irmãos, sendo descritos como pertencentes ora a um, ora a outro e ora à
sociedade. Em 8 de agosto de 1832, foi aberto o inventário dos bens que ficaram por
ocasião do falecimento de Francisco Lopes de Abreu, ocorrido em março do mesmo
ano. O inventariante e único herdeiro era seu irmão João. A fortuna dos dois aumentara
bastante. Além da Fazenda da Casa Branca, situada na Frequezia do Senhor Bom Jesus
de Matosinhos, onde residia Francisco, havia ainda duas outras propriedades, as
Fazendas do Brejo e do Saco das Pedras, e um sobrado e uma morada de casas na Vila
de Sabará. Todas as fazendas contavam com casas, sensalas, paióis, moinhos, engenhos,
plantações, bois, cavalos, porcos e carneiros. Os bens de cada uma delas foram descritos
separadamente, inclusive os escravos. São ao todo 248 cativos – 205 dos quais residiam
na Fazenda da Casa Branca.
Cruzando inventário, escritura e registros de batismo, procuramos reconstituir a
vida familiar dos cativos da Fazenda da Casa Branca, que era a única existente na época
da instituição da sociedade entre os irmãos Lopes de Abreu. Em 1807, descobrimos
laços de paretesco entre 86 dos 118 escravos descritos (73%). Vale notar, que, dentre
todos os individuos para os quais não detectamos relações familiares, havia apenas uma
mulher, Maria do Rosário. Todos os outros eram homens. Não nos foi dado conhecer a
origem a maioria deles; sabemos, no entanto, que 9 eram africanos (era o caso, por
exemplo, de Domingos Benguella caixeiro e Caetano Munjolo) e 4 tinham nascido no
Brasil (Custódio Mulato, Luis Mulato da Cruz). Talvez estes crioulos, que não possuiam
parentes no interior do plantel, tivessem vindo de outras partes, como sugere a presença
de Francisco Crioulo Carioca.
201 Inventários dos bens deixados pelo Tenente Coronel Francisco Lopes de Abreo, Casa Borba Gato, Museu do Ouro de Sabará, IPHAN, CPON(3) 60. Aqui fica explícito também o papel dos assentos de batismo como registros de propriedade.
146
Já em 1832, detectamos relações de parentesmo entre 153 dos 242 cativos
(63%). Todavia, este ano foi o de maior incidência de batismos de escravos adultos,
evidenciando um último surto de compra de cativos, frente à lei que proibia o tráfico em
1831. De fato, destes cativos sem parentesco, cerca de 40 eram homens africanos
relativamente jovens – caso de Vicente Ganguella, de 22 anos e Fernando Cabinda. Dos
demais, é provável que alguns mantivessem relações de parentesco no plantel, cuja
descoberta não nos foi possível, ou por serem muito velhos, ou por serem crianças
crioulas. João da Costa, de 77 anos, “rendido de uma verilha”, doente e impossibilitado
de qualquer serviço, declarado sem valor pelos avaliadores, era certamente um escravo
muito antigo do plantel, embora não tenhamos descoberto seus relacionamentos
familiares. Casos semelhantes são o de Joze Barrozo, pardo de 72 anos, entrevado, e
Manoel Pagem, de 70 anos, cego, ambos sem nenhum valor. Havia no total 19 escravos
com mais de 60 anos, na mesma situação, sendo muito pouco provável que não tivessem
relações dentro do plantel. Também não descobrimos nenhum parente de Manoel Lopes
de Abreu, um tropeiro, crioulo, de 48 anos, e Joanna de Abreo, de 68, que carregavam
o sobrenome de seus senhores e certamente tinham ali laços de parentesco e amizade.
Não descobrimos, ainda, quem eram os pais de Joze Pardo, de 11 anos, Faustina Cabra,
de 7 e Manoel, de 9, que muito provavelmente eram crias da casa. Em suma, o que
queremos frisar é que a cifra apresentada é uma estimativa mínima e que, mesmo no
início da década de 30, a realidade era certamente marcada por uma frequência muito
maior de relações de parentesco.
Através do cruzamento de dados dos vários documentos, conseguimos
reconstituir 35 famílias. Algumas são compostas apenas por um casal unido
formalmente, outras por um casal e seus filhos legítimos, e outras ainda apenas pela mãe
e seus filhos naturais. Várias delas são compostas por indivíduos de três gerações.
A mais extensa delas é composta por 42 indivíduos. Trata-se da família de Maria
Agostinha e Manoel de Souza, listados, na escritura de 1807, juntamente com seus 11
filhos: Raimundo Pardo, Inacio, Ursula, Manoel, Antonio, João, Maria, Idelfonso,
Bernarda, Anna e Francisco. Quase 25 anos depois, no inventário, não encontramos o
casal, provavelmente então já falecido. Todavia estão presentes oito dos filhos, não
havendo referência alguma a Inácio, Ursula e Francisco. Jamais saberemos o que
147
aconteceu com eles. Talvez tenham sido vendidos, mas podem muito bem ter morrido
neste intervalo de tempo. Consta ainda o filho caçula do casal, Agostinho de Souza, que
ainda não era nascido no momento em que foi lavrada a escritura, em 1807.
Raimundo Pardo tinha então 58 anos, era aleijado de um braço e aparentemente
não se casara. O pardo Manoel de Souza, de 52 anos era doente e deitava sangue pela
boca; e vivia com a mulher, Dionizia crioula, de 46 anos, também enferma, e seus dois
filhos, Vicente, de dois anos e Sabrina, de cinco, ambos cabras. Antonio de Souza, 48,
doente do fígado, era casado com Brígida parda, da mesma idade, e era pai Martinho e
Felizarda, cabras de 16 e 12 anos, respectivamente. João de Souza, pardo, 46, “quebrado
das verilhas”, tomara por esposa Joanna Cabra, 35, com quem tinha três crianças:
Silvana, nove anos, Venancio, três, e Eugenia, de um. Maria de Souza, 46, era esposa do
também pardo Antonio Ferreira, 60, com quem tinha seis filhos. A mais velha, Antonia
Parda, tinha 22 anos e a mais nova, Umbelina, seis. Os irmãos Emília, de quatro anos,
Joze, de três, e Maria, nove meses, todos pardos, eram frutos da união de Bernarda de
Souza, 37 anos, muito doente, com Joaquim Lourenço, 44. Finalmente, Anna de Souza,
de 33 anos, casara-se com Manoel Sabará de 44 anos, dado a bebidas, e era mãe de Joze
Antonio, de três anos, e Enesto, de um. Chama a atenção a quantidade de parentes com
quem conviviam estas pessoas. O pequeno Enesto, por exemplo, tinha contato com nada
menos que 19 primos e primas!
Ignez, uma escravinha cabra de quatro anos, era o mais novo membro de uma
família que vivia na Fazenda da Casa Branca a pelo menos quatro gerações. Seus
bisavós, Mateus e Madalena, aparecem listados, juntamente com sua avó, Francisca, seu
tio, Jorge Crioulo, e sua mãe, Fructuoza, na escritura de 1807. Mateus e Madalena
provavelmente já eram falecidos quando os escravos foram avaliados para o inventário,
mas a avó Francisca, já com 50 anos, sofrendo de um reumatismo crônico que não lhe
permitia trabalhar, não tendo por isto nenhum valor monetário, pode ser ali encontrada.
O tio Jorge também está lá. Tinha então 36 anos, sofria de um problema nas virilhas e se
casara com Leocádia, crioula muito mais velha que ele (tinha 50 anos e estava muito
doente). Fructuoza tinha 33 anos e era viúva e aleijada de um pé, além de mãe da já
mencionada Ignez e de Maria da Piedade, de nove anos.
148
Leocádia, a esposa do escravo Jorge, era outra que tinha raízes antigas no
plantel. Aparece na listagem de 1807 como neta do viúvo Joze Mina, filha de João
Crioulo e irmã de Joze. Seu irmão foi descrito no inventário, mas não encontramos nem
seu pai, nem seu avô. Como a própria Leocádia já tinha 50 anos em 1832, o mais
provável é que ambos tenham falecido antes desta data. Interessante também é que os
senhores tenham descrito os membros desta família a partir dos homens. Joze Mina era
viúvo, mas nada é dito sobre a companheira de João, mãe das crianças Leocádia e Joze.
Outra família composta por indivíduos de várias gerações era a encabeçada pelo
escravo Parreiras, cuja compnheira/esposa não é mencionada. A família Parreiras era
composta, em 1807, por cinco filhos do dito escravo, que, no entanto, não estava
listado. Todos haviam recibido o sobrenome do pai. Em 1832, dos cinco irmãos, apenas
três aparecem. Joaquim Parreiras tinha 59 anos e era tropeiro. Anna Parreiras, crioula de
40 anos, casara-se com Manoel Chega, de 40, com quem tivera sete filhos. Sua irmã
Justina, com 38 anos e doente, era casada com Joze Chata, 38, com quem tinha duas
filhas. O interessante é que a ascendência destas pessoas era conhecida e considerada
suficientemente relevante para ser mencionada ao avaliador, muito embora o próprio
Parreiras estivesse ausente pelo menos desde 1807.
Joze Vaqueiro Benguella e sua esposa Antonia, foram descritos na escritura,
assim como sua filha Thareza. Em 1832, nos deparamos com o casal na descrição do
bens para o inventário. Ele já tinha 80 anos, não podia prestar serviço algum, de forma
que não tinha valor; ela aparece agora com o sobrenome “de Abreo”, tinha 50 anos e,
como o marido, encontrava-se enferma. A filha, que reaparece agora como “Thereza”,
sofria de hidropsia, tinha 35 anos e era casada com Joaquim Bernardes, crioulo de 49
anos. Havia dado um neto a Joze Vaqueiro e Antonia de Abreo, o menino Martinho,
crioulo de nove anos.
Os exemplos poderiam se estender, mas creio que já basta. Ficamos de fato
impressionados com o número de pessoas que conseguimos rastrear, principalmente
porque a documentação alude com tamanha frequência ao débil estado de saúde dos
149
cativos, que seria de se esperar que a morte tivesse ceifado mais vidas no plantel202. O
mais interessante é notar como havia elos entre as várias famílias nucleares, formando
uma verdadeira teia de relacionamentos que acabava por enredar grande parte dos
individuos, como procuramos mostrar através do exame das famílias a que pertencia a
escrava Leocádia.
É claro que um número relativamente elevado de uniões matrimoniais, no caso
especfico dos escravos da posse dos irmãos Lopes de Abreu, facilitou a reconstituição
das familias. No entanto, acreditamos que situação muito semelhante seria encontrada
na maioria das posses escravistas da região, mesmo naquelas (a maioria) em que os
senhores não facilitavam ou incentivavam os matrimônios religisosos.
Começamos a seção da dissertação que lida com famílias cativas tratando dos
aspectos morais e políticos das atitudes dos senhores para com seus escravos.
Gostaríamos de encerrá-la retomando tal assunto. Vigorava, entre os proprietários da
época, o costume de conceder alforrias a recém nascidos no ato do batismo. Tal modo
de proceder, mesmo nos casos em que a liberdade da criança fora comprada, certamente
era motivado por razões extra-econômicas. Isto fica muito claro quando percebemos que
a frequência com que inocentes filhos de mães escravas eram batizados como “livres de
toda a escravidão” permaneceu estável ao longo de todo o período em tela, muito
embora a pressão sobre o mercado de cativos tenha sido, em seu conjunto, crescente.
(ver Tabela 4.8).
202 Dos 248 escravos arrolados, 97 foram descritos como doentes (39%). A lista de enfermidades inclui: “rendido ou quebrado das verilhas, padecendo de um froxo, pateta, aleijado (de um braço, de uma mão, de um pé, etc), doente do peito, deitando sangue pela boca, doente do fígado, padece de reumatismo, dado a bebidas, intrevado, cego, doente babatico, escrebutado, hidropsia, com papo mui crescido, morfética, sofre de eplepsia, doente de asma, doente de pouzos, doente de uma hernia, umbilical moléstica, zaimbro das pernas, doente de quingilha”. Aparecem também com freqüência os qualificativos “muito doente, muito enfermo, adoentado, sem poder dar serviço algum ou impossibilitado de qualquer serviço”. A maior parte dos homens doentes sofria de problemas ortopédicos, como hérnias (que parecem ser indicadas pelas expressões quebrado ou rendido das verilhas) e fraturas (com um braço quebrado, etc), isto sem mencionar os muitos aleijões. Talvez fossem sujeitos a carregar peso excessivo e, ao que parece, acidentes de tra0balho aconteciam amiúde. O interessante é que, mesmo que a maioria da população escrava tivesse um estado de saúde bastante precário (o que deve ter ocorrido), são raros os inventários nos quais as moléstias são descritas com tamanha freqüência ou detalhe. Perguntamo-nos, frente a este excepcional zelo em sublinhar as moléstias dos cativos, em que medida interessava, neste caso específico, desvalorizar os escravos avaliados, talvez por motivos ditados pela existência da já referida sociedade.
150
Uma pequena, mas significativa, porcentagem (cerca de 3,5%) do filhos de mães
escravas foram batizados como livres ou forros, após serem alforriados pelo proprietário
na pia batismal. Interessante é que algumas destas crianças tenham sido batizadas como
“livres” e não como “forras”, como seria de se esperar. Isto aponta, mais uma vez, para
uma indistinção no uso dos termos “livre” e “liberto”, da maneira como eram utilizados
no século XIX.
Meninos e meninas parecem ter tido o mesmo acesso à alforria na pia batismal,
como se vê na Tabela 4.9. A imensa maioria destas crianças era de filhos naturais:
apenas cinco das 59 crianças eram legítimas. Para as 16 crianças para as quais temos
informação sobre a cor/etnia, 10 eram pardas ou mestiças, de acordo com dados
mostrados na Tabela 4.10. Como já foi afirmado, em termos cronológicos, não há
variação substancial na freqüência com que eram concedidas alforrias a recém-nascidos.
Ou seja, a crescente pressão do mercado interno de cativos não levou a que os senhores
de Santa Luzia deixassem de alforriar crianças escravas.
O grande número de crianças pardas ou mestiças alforriadas nos sugere que,
provavelmente, parte significativa destes inocentes alforriados eram filhos de algum
membro da família senhorial. Esta continuaria alforriando crianças nascidas dos “tratos
ilícitos” de membros da classe proprietária com escravas, independentemente da ênfase
dada à reprodução natural ou da alta dos preços dos cativos. Em outras palavras, fosse
por tratar-se de seus próprios descendentes, fosse para agraciar uma família de cativos
leais, o processo de concessão de alforria na pia batismal põe em evidência as faces
extra-econômicas da lógica escravista, lembrando-nos das atitudes intrinsecamente
ambíguas da elite proprietária em relação às famílias cativas.
151
Tabelas e gráficos: Capítulo 4
Tabela 4. 1 - Origem da pai x origem da mãe de inocentes filhos de pai e mãe escravos(*) - Paróquia de Santa Luzia, 1817-1872
Período Origem da mãe Origem do pai Total
Brasil África
1817-1830 Brasil 63 45 108
África 5 35 40
Total 68 80 148
1831-1850 Brasil 71 30 101
África 12 60 72
Total 83 90 173
1851-1872 Brasil 17 7 24
África 2 2 4
Total 19 9 28
Total 340 358 698
Fonte: Registros Paroquiais de Batismo (microdados).
(*) Quando ambos os pais constam no assento e há informação quanto à sua origem. (**) Cédulas achureadas indicam uniões endogâmicas por naturalidade.
Tabela 4. 2 - Tipo de união dos pais de inocentes batizados, quanto à endogamia por naturalidade(*) - Paróquia de Santa Luzia, 1817-1872
Uniões Endogâmicas Uniões Exogâmicas Total
Período N % N % N
1817-1830 98 66,22 50 33,78 148
1831-1849 131 75,72 42 24,28 173
1850-1872 19 67,86 9 32,14 28
Total 248 71,06 101 28,94 349
Fonte: Registros Paroquiais de Batismo (microdados). (*) Quando ambos os pais constam no assento e há informação quanto à sua origem.
152
Tabela 4. 3 - Estado matrimonial da população maior de 15 anos, por condição social - Paróquia de Santa Luzia, 1831
Homem Mulher Total Condição social / estado matrimonial N % N % N %
Livres
Sem informação 2 0,3 3 0,3 5 0,3
Solteiro 355 50,2 744 63,4 1099 58,5
Casado 317 44,8 329 28,0 646 34,4
Viúvo 33 4,7 97 8,3 130 6,9
TOTAL 707 100 1173 100 1880 100
Escravos
Sem informação 6 1,1 3 0,6 9 0,8
Solteiro 457 81,9 391 77,4 848 79,8
Casado 89 15,9 97 19,2 186 17,5
Viúvo 6 1,1 14 2,8 20 1,9
TOTAL 558 100 505 100 1063 100
Fonte: Listas Nominativas de Habitantes de 1831 (microdados).
Tabela 4. 4 - Estado matrimonial dos escravos maiores de 15 anos, por sexo e origem(*) - Paróquia de Santa Luzia, 1831
Origem/ Homem Mulher Total
Estado matrimonial N % N % N %
Nacionais
Sem Informação 6 2,1 3 0,8 9 1,4
Solteiro 225 78,1 288 77,2 513 77,6
Casado 55 19,1 77 20,6 132 20,0
Viúvo 2 0,7 5 1,3 7 1,1
Total 288 100 373 100 661 100
Africanos
Solteiro 230 86,1 101 77,7 331 83,4
Casado 33 12,4 20 15,4 53 13,4
Viúvo 4 1,5 9 6,9 13 3,3
Total 267 100 130 100 397 100
Todos os escravos
Sem Informação 6 1,1 3 0,6 9 0,9
Solteiro 455 82,0 389 77,3 844 79,8
Casado 88 15,9 97 19,3 185 17,5
Viúvo 6 1,1 14 2,8 20 1,9
Total 555 100 503 100 1058 100 Fonte: Listas Nominativas de Habitantes de 1831/32 (microdados) Nota: (*) excluíndo-se aqueles cuja raça é "outros".
153
Tabela 4. 5 - Cor/etnia das mães escravas de inocentes batizados (*) - Paróquia de Santa Luzia, 1817-1872
Cor/etnia das mães N %
Crioulo 712 61,38
Angola 126 10,86
Cabra 103 8,88
Pardo/mestiço 101 8,71
Congo 33 2,84
Outra nação africana 31 2,67
Cabinda 22 1,90
Benguela/banguela 13 1,12
Rebola 11 0,95
Mina 8 0,69
Total 1160 100 Fonte: Registros Paroquiais de Batismo (microdados). (*) excluindo-se os casos para os quais não há informação
Tabela 4. 6 - Legitimidade de inocentes filhos de mães escravas, segundo origem da mãe(*) - Paróquia de Santa Luzia, 1817-1872
Origem / período Legítimo Natural Total % legítimo
Brasil
1817-1826 97 214 311 31,19
1827-1836 44 144 188 23,40
1837-1846 48 113 161 29,81
1847-1856 31 98 129 24,03
1857-1870 6 80 86 6,98
Total 226 649 875 25,83
África
1817-1826 33 36 69 47,83
1827-1836 22 21 43 51,16
1837-1846 42 39 81 51,85
1847-1856 14 12 26 53,85
1857-1870 0 2 2 0,00
Total 111 110 221 50,23 Fonte: Registros Paroquiais de Batismo (microdados). (*) Excluídos casos nos quais não havia informação quanto à cor/etnia da mãe ou quanto à legitimidade das crianças.
154
Tabela 4. 7 - Condição de inocentes filhos de mãe escrava - Paróquia de Santa Luzia, 1817-1872 Condição do batizado N %
Livre 10 0,56
Liberto 52 2,90
Escravo 1732 96,44
Sem informação 2 0,11
Total 1796 100 Fonte: Registros Paroquiais de Batismo (microdados).
Tabela 4. 8 - Sexo dos inocentes alforriados na pia batismal - Paróquia de Santa Luzia, 1817-1872
Sexo do batizado Período
Masculino Feminino Total
1700-1817 1 1
1818-1827 5 9 14
1828-1837 5 6 11
1838-1847 3 3 6
1848-1857 7 2 9
1858-1867 4 8 12
1869-1872 4 2 6
Total 29 30 59
Fonte: Registros Paroquiais de Batismo (microdados).
155
Tabela 4. 9 - Cor/etnia dos inocentes alforriados na pia batismal - Paróquia de Santa Luiza, 1817-1872 Cor/etnia N %
Crioulo 3 5,08
Pardo/Mestiço 10 16,95
Cabra 3 5,08
Sem Informação 43 72,88
Total 59 100 Fonte: Registros Paroquiais de Batismo (microdados).
Tabela 4. 10 - Legitimidade dos inocentes alforriados na pia batismal - Paróquia de Santa Luzia, 1817-1872
Legitimidade Período
Legítimo Natural Sem informação Total
1700-1817 1 1
1818-1827 13 1 14
1828-1837 3 8 11
1838-1847 1 5 6
1848-1857 1 8 9
1858-1867 12 12
1869-1872 6 6
Total 5 53 1 59
Fonte: Registros Paroquiais de Batismo (microdados).
156
Gráfico 4. 1
Percentual de assentos de batismo de inocentes filhos de mães escravas em relação ao total dos assentos
0
10
20
30
40
50
1810 1815 1820 1825 1830 1835 1840 1845 1850 1855 1860 1865 1870 1875
Ano de Batismo
Fonte: Registros Paroquiais de Batismo (microdados). Gráfico 4. 2
Origem das mães escravas de inocentes batizados - Paróquia de Santa Luzia, 1817-1872
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
70%
80%
90%
100%
1817-1826 1827-1836 1837-1846 1847-1856 1857-1866 1867-1872
Brasil África Desconhecido
Fonte: Registros Paroquiais de Batismo (microdados).
157
Gráfico 4. 3
Qualidade da Informação quanto à Legitimidade dos Inocentes Batizados - Paróquia de Santa Luzia, 1810-1880
0
10
20
30
40
1810 1820 1830 1840 1850 1860 1870 1880
% Sem Informação Linear (% Sem Informação)
Fonte: Registros Paroquiais de Batismo (microdados). Gráfico 4. 4
Percentual de Inocentes legítimos, segundo a condição social da mãe - Paróquia de Santa Luzia, 1810-1880
0
10
20
30
40
50
60
70
80
90
1810 1820 1830 1840 1850 1860 1870 1880
Ano de Batismo
% legítimo mãe escrava % legítimo mãe livre
Polinômio (% legítimo mãe livre) Polinômio (% legítimo mãe escrava)
Fonte: Registros Paroquiais de Batismo (microdados).
158
Considerações Finais
A frase “porque sou um chefe de famílias e o senhor da minha casa”, de lavra do
Coronel Francisco de Paula Barboza, não foi escolhida para título do presente Trabalho
por acaso. Acreditamos que a sua análise permite resgatar um aspecto fundamental do
escravismo brasileiro: a importância das relações familiares na organização social. Este
aspecto tem sido frequentemente negligenciado nos estudos sobre a família no Brasil,
especialmente naqueles que se utilizam de métodos e técnicas demográficas.
MATTOS, tratando da importância da família e das relações pessoais na
sociabilidade dos homens do século XIX salienta que
“Mesmo para o estabelecimento de laços de solidariedade vertical mais
permanente, a formação de uma família ou o pertencimento a uma já existente era pré-
condição, na medida em que as relações de solidariedade vertical culturalmente sólidas
e não simplesmente tácitas eram geralmente estabelecidas entre famílias e não entre
indivíduos”203.
Esta autora adverte que, na historiografia recente, com freqüência confunde-se
família extensa e família patriarcal. Segundo ela, a predominância de famílias nucleares
em listas nominativas e mapas de população levaram muitos autores a questionar a
validade do conceito de família patriarcal para explicar a realidade brasileira. No
entanto, salienta, tal conceito tem uma abrangência que transcende em muito a simples
coabitação. Ele remete a uma organização social baseada em um sistema de alianças,
através das quais as pessoas eram inseridas na sociedade, ou seja, “uma forma
específica de organização do poder e das funções familiares dentro dos grupos da
elite”204. Trata, portanto, de uma importante dimensão política da conformação social
naquela sociedade.
203 MATTOS, 1998. p. 64, 65. 204 MATTOS, 1998. p. 56.
159
Feitas as devidas ressalvas205, o conceito de família patriarcal ajuda a iluminar
um aspecto crucial da sociabilidade naquela época – o fato de que as solidariedades,
tanto verticais quanto horizontais, eram estabelecidas não entre indivíduos, mas entre
famílias.
A compreensão da estreiteza dos vínculos entre família e sociabilidade no século
XIX é, de resto, fundamental para compreender as atitudes dos senhores com relação à
vida familiar de seus cativos. Estas atitudes estavam, assim, marcadas por uma
ambigüidade fundamental: pertenciam ao mesmo tempo ao domínio da racionalidade
econômica e da moralidade, na medida em que os cativos eram percebidos pelos
senhores ao mesmo tempo como bens, mão-de-obra e membros da família senhorial.
Acreditamos que trazer de volta este aspecto do escravismo brasileiro é uma das
contribuições importantes deste trabalho, além de ter sido um passo fundamental para a
compreensão das atitudes dos senhores frente à formalização dos casamentos de seus
escravos.
Não temos a pretensão de ter encontrado respostas definitivas, mas acreditamos
ter tocado em vários problemas importantes, questionando pontos de vista estabelecidos
pela historiografia. Consideramos serem os pontos mais relevantes:
i) a discussão sobre o papel do tráfico negreiro e da reprodução natural na
manutenção ou expansão das posses escravistas de Minas Gerais. A grande demanda
por escravos novos, das décadas de 30 e 40 do século XIX aparentemente não aconteceu
na Província de forma indiscriminada. Localidades de economia menos dinâmica, como
Santa Luzia, teriam praticamente abandonado o mercado internacional de escravos a
partir dos anos 30 e passado a depender fundamentalmente do crescimento vegetativo
da população mancípia. O recurso ao tráfico internacional teria sido apenas prerrogativa
de algumas áreas e regiões;
205 No que se refere à família escrava, esta noção pode tornar-se problemática, pois pressupõe que escravos e dependentes livres constituiriam sua identidade familiar em relação ao universo senhorial, e que seriam incapazes de constituir e preservar autonomamente suas próprias famílias. A discussão historiográfica sobre a família cativa, contudo, já parece ter desenvolvido argumentos suficientemente sólidos para pôr em xeque esta limitação.
160
ii) a análise da relação entre reprodução natural e o incentivo, por parte dos
senhores, à formação de famílias cativas legítimas, deixando perceber que uma coisa
não está necessariamente associada à outra. De fato, em Santa Luzia, aconteceu
justamente o contrário: quanto maior a dependência da reprodução natural menor o
índice de crianças escravas nascidas de matrimônios formais; e,
iii) a reflexão acerca de várias transformações importantes que marcaram a
sociedade mineira, no Oitocentos. No decurso da análise, tocamos em vários processos
de mudanças, muitos dos quais já haviam sido abordados, com maior profundidade, por
outros historiadores. Tratamos de mudanças de atitude em relação à cor, ao significado
da liberdade, ao processo de fixação/sedentarização da população e à adoção, por parte
de certos grupos sociais, de padrões de moralidade mais severos que os vigentes no
século XVIII. Acreditamos, entretanto, que nossa maior contribuição neste terreno tenha
sido abordar as mudanças de atitude frente ao matrimônio nos moldes do Sagrado
Concílio Tridentino, assunto ainda pouco estudado para o século XIX.
Estamos perfeitamente cientes de que as evidências de que dispomos são
insuficientes para que façamos afirmações categóricas. Acreditamos, isto sim, estarmos
principalmente, apontando para novas possibilidades de análise. E esperamos que este
Trabalho venha a suscitar novas pesquisas, tanto com outros recortes geográficos quanto
com outra base documental.
161
Fontes Primárias e Referências Bibliográficas
Fontes manuscritas
Arquivo Público Mineiro – APM
Fundo Presidência da Província
PP1/18, caixa 173, documento 12
PP1/18, caixa 181, documento 19.
PP1/33, caixa 227, documento 40.
PP1/33, caixa 227, documento 60.
PP1/33 caixa 259, documento 17
Centro de Documentação e Informação da Cúria Metropolitana de Belo Horizonte
– CEDIC BH
Livro de Registro de Batismos, Paróquia de Santa Luzia, 1818-1833
Livro de Registro de Batismos, Paróquia de Santa Luzia, 1833-1868
Livro de Registro de Batismos, Paróquia de Santa Luzia, 1865-1888
Arquivo Casa Borba Gato/Museu do Ouro/IPHAN, Sabará
CPON(3) 60 Inventário dos bens deixados pelo falecimento do Tenente Coronel Francisco Lopes de Abreo, 1832.
Base de Dados
Roberto Borges Martins, Marcelo Magalhães Godoy, Clotilde Andrade Paiva e Maria do Carmo Salazar Martins. Lista Nominativas de Minas Gerais, 1831-1832. Brasília, Instituto de Pesquisa Aplicada, 2001.
162
Fonte Impressa
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167
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TEIXEIRA, Heloísa Maria Reprodução e famílias escravas em Mariana, 1850-1888. Dissertação (Mestrado em História) - São Paulo, 2001.
168
ANEXO 1
Distribuição dos batismos por local, para os casos incluídos e excluídos da análise quantitativa
Paróquia de Santa Luzia, 1831
Nome N % do total
% do grupo
Casos incluídos na análise quantitativa 7184 77,75 100,00
Matriz de Santa Luzia 5550 60,06 77,26
Capela da Carreira Comprida (provavelmente propriedade de Antonio da Fonceca Ferreira e família)
309 3,34 4,30
Capelas do Comendador Manoel Ribeiro Vianna (Capela de N. S. do Rozario da Fazenda das Lages e Capela de N. S. da Conceição da Fazenda das Bicas)
179 1,94 2,49
Desconhecido 170 1,84 2,37
Oratório do Cap., Major, Dr. Sebastião Dias Teixeira 148 1,60 2,06
Capela do Ribeirão do Rapozo 138 1,49 1,92
Oratório/Capela/Fazenda dos Maçaricos (provavelmente propriedade das famílias Fonceca Ferreira e/ou Souza Vianna)
137 1,48 1,91
Capela da Conceição do Rótulo 103 1,11 1,43
Nesta frequezia 91 0,98 1,27
Capela de Jezus Maria Jozé (provavelmente propriedade do Dr. Antonio da Costa Pacheco)
61 0,66 0,85
Ermida/ Oratório do Padre Joze Maria de Andrade 55 0,60 0,77
Capela de N. S. das Neves 47 0,51 0,65
Capela de Santa Anna de Joze Correia 34 0,37 0,47
Oratório/Ermida dos Angicos (provavelmente propriedade de Joze de Souza Vianna)
17 0,18 0,24
Oratório da Fazenda do Cap. Joze Nunes Moreira 14 0,15 0,19
Oratório Privado da Exma. Baroneza de Santa Luzia 12 0,13 0,17
Capelas do Dr. Antonio da Fonseca Vianna (Oratório do Dr. Antonio da Fonseca Vianna e Capela das Pindahibas)
10 0,11 0,14
Fazenda/Oratório do Campo do Cap. Antonio Joze Aris 8 0,09 0,11
Capela da Fazenda do Exmo. Barão de Santa Luzia 7 0,08 0,10
Ermida de São Joze (da Fazenda do Cazado) 7 0,08 0,10
Ermida da Cachoeirinha 6 0,06 0,08
Ermida de São Joze de Bento Pires 6 0,06 0,08
Oratório particular do Dr. Manoel Ignácio Carvalho de Mendonça 6 0,06 0,08
Fazenda das Minhocas 5 0,05 0,07
Oratório de Joaquim Francisco Pereira 5 0,05 0,07
Ermida da Fazenda Quilombo 4 0,04 0,06
Fazenda de D. Rita Pereira da Conceição 4 0,04 0,06
Oratório de Antonio de Souza Menezes 4 0,04 0,06
169
Oratório do Tenente Bernardino Alves de Senna 4 0,04 0,06
Capela de N. S. das Dores da Charara da Boa Esperança 3 0,03 0,04
Fazenda do Ten. Bernardino Alves de Souza 3 0,03 0,04
Fazenda dos Cordeiros 3 0,03 0,04
Oratório do Entreguice 3 0,03 0,04
São João da Boa Vista 3 0,03 0,04
Capela de N. S. do Pilar do Morro 2 0,02 0,03
Capela do Pau de Xeiro 2 0,02 0,03
Ermida da N. S. da Conceição em Joze Nunes 2 0,02 0,03
Oratório Particular do Ten. Cel. Serafim Thimoteo de Lima 2 0,02 0,03
Aplicação do Ribeirão 1 0,01 0,01
Capela da Fazenda do Engenho 1 0,01 0,01
Capela da Senhora do Rozario dos Pretos da Exma. Baroneza de Santa Luzia 1 0,01 0,01
Capela do Capam Groço 1 0,01 0,01
Capela do Exmo. Barão Quintilianno Rodrigues da Rocha Franco 1 0,01 0,01
Capela do Taboleiro Grande 1 0,01 0,01
Ermida de N. S. da Conceição de Tronqueira 1 0,01 0,01
Ermida de São Sebastião 1 0,01 0,01
Fazenda do Cipriano 1 0,01 0,01
Fazenda do Córrego das Lages 1 0,01 0,01
Oratório da Chacra do falescido Dr., o Reverendo Joze da Costa Moreira 1 0,01 0,01
Oratório da Fazenda de D. Custódia 1 0,01 0,01
Oratório da Fazenda do Cap. Manoel Alves de Deus 1 0,01 0,01
Oratório da Fazenda do Rev. Vigário Joze de Araújo da Cunha 1 0,01 0,01
Oratório de Joze Gomes da Costa 1 0,01 0,01
Oratório do Cap. Antonio da Fonceca Ferreira Junior 1 0,01 0,01
Oratório do Cap Antonio Pereira Lopes 1 0,01 0,01
Oratório do Vigário desta Freguezia 1 0,01 0,01
Oratório em casa de Luiz Maria da Fonceca Ferreira 1 0,01 0,01
Sitio do Sumidouro 1 0,01 0,01
Casos excluídos da análise quantitativa 2056 22,25 100,00
Capela de Jequitibá/ Trindade 380 4,11 18,48
Capela/Matriz/Igreja de N. S. da Saúde da Alagoa Santa 340 3,68 16,54
Capela do Jagoara 329 3,56 16,00
Capela de Matozinhos 278 3,01 13,52
Capela do Fidalgo/ da Quinta 223 2,41 10,85
Capela/Matriz de Santo Antonio da Venda Nova 153 1,66 7,44
Igreja de Macaúbas 142 1,54 6,91
Ermida da Ponte Nova 58 0,63 2,82
Capela de Santo Antonio da Rossa Grande 36 0,39 1,75
Matriz de Sabará 21 0,23 1,02
Capela de Sete Alagoas 18 0,19 0,88
170
Capela da Senhora da Soledade 16 0,17 0,78
Capela de Taquamysú / Taquaraçú 11 0,12 0,54
Carrancas 7 0,08 0,34
Fazenda da Caxoeira em Matozinhos 7 0,08 0,34
Campo Alegre 5 0,05 0,24
São Francisco de Taquassú (ou Taquarussu de Baixo) 5 0,05 0,24
Matriz da Senhora da Boa Viagem do Curral Del Rey/Freguezia do Curral Del Rey
5 0,05 0,24
Casa de João Gonçalves de Souza em Carrancas 4 0,04 0,19
Freguezia do Corvello 4 0,04 0,19
São Gonçalo da Contage / Matriz da Contage 4 0,04 0,19
Capela de Santa Quitéria 2 0,02 0,10
Capela de Santa Ritta filial da Matriz de Sabará 2 0,02 0,10
Casa de João Gonçalves de Souza morador em Carrancas 2 0,02 0,10
Capela de Santa Anna de Trahiras 1 0,01 0,05
Oratório da Casa Branca 1 0,01 0,05
Capela da Senhora da Lapa 1 0,01 0,05
Capela do Pau Grosso filial da Matriz do Jequitibá 1 0,01 0,05
Total geral (casos incluídos e casos excluídos) 9240 100,00 128,62
Fonte: Registros Paroquiais de Batismo (microdados).
171
ANEXO 2
Arquivo Público Mineiro - PP1/18 caixa 173 documento 12
Acuso ter recebido o officio de V. Exca de 25 de Janeiro do corrente anno datado
de 17 de Janeiro do mesmo anno e fico certo em cumprir quanto nelle me ordenna e já
em cumprimento do mesmo comunico V. Exca que o aconticimento extraordinario que
levo a presença de V. Exca foi ter o Coronel Reformado Francisco de Paula Barboza da
Silva mandado cazar pelo seu feitor Antonio Barboza da Silva seu parente os seus
escravos Sinfronio e Jacinta de nação Angolas em sua Fazenda cita neste Districto de
Mathozinhos e com testemunhas sem prezença de Parocho, nem sacerdote de sua
licença e dizem que pretende effectuar outros semelhantes Cazamentos: e parece ter
atacado com este procedimento a Constituição do Império [ilegível] 8º art, 179 § 5º, e a
Lei de 3 de Novembro de 1827.
V. Exca mandará o que achar de justiça, e espero instruçoens a tal respeito. Deos
guarde a V. Exca.
Mathozinhos, 28 de Janeiro de 1831
Illmo E Exmo Senhor. Presidente Joze Manoel de Almeida
Joaquim Gonsalvez Moreira
Juiz de Paz do Distrito de Mathozinhos
[obs: letra muito boa, indicando fluência no manejo da palavra escrita; português
muito correto e poucas abreveaturas]
Estando eu pela lei exercendo o Emprego de Juiz de Fora desta Vila, [quatro
palavras ilegíveis] d’Ouvidor, receby [sic] a ordem de V. Exca de 10 de Fevereiro
172
próximo passado, determinando, que, assista[?] do Conteúdo do Officio do Juiz de Paz
de Mathozinhos, que, veio [ilegível] copia, procedesse ao Conveniente exame, e
informasse de quanto acontesse sobre o procidimento do Coronel Reformado Francisco
de Paula Barboza no Cazamento de seus escravos.
Aquela Parochia dista 10 legoas desta Vila, pelo que se me dificultava hir ali,
[ilegível] vir aqui pessoas do Lugar para me informarem do facto por isso pareceu-me
Conveniente mandar responder o dito Coronel, e pedir informação ao Reverendíssmo
Vigario da Freguezia Joze Soares Dinis para a vista daquela [ilegível] inquerer então
[ilegível] desinteressados e imparciaes, que pudessem esclarecer o negocio, para total
conhecimento [ilegível]; mas Como esta fica já patente a vista do que ambos dizem me
parece dis[pensavel] o auxilio de [ilegível] huma vez que concordão, e levo a Prezença
de V. Exca as [ilegível] resposta do Coronel, e informaçam do Vigario para a vista deles
V. Exca decidir o que achar justo.
Deus guarde a V. Exca, Fidelissima Vila do Sabará
26 de Março de 1831
Illmo e Exmo Senhor Manoel Antonio Galvão Presidente da Provincia
Manoel de Araujo da Cunha
[Juiz de Fora da Fidelissima Vila do Sabará]
***
O inexperto Juiz de Paz no Districto de Matozinhos Joaquim Gonçalvez.
Moreira, Mosso de boa índole, porem de educação grosseira, e idéias curtas, cazando-se
com a filha de hum Vigario, que amontoando riquezas por meio de piedozos sufragios,
resultou que estas tornassem a aquele bom rapaz, acreditado para ser Juiz de Paz, e
173
effectivo Eleitor, he este o autômato, movido sempre pela destra mão do
Reverendissimo Parocho de Matozinhos Joze Soares Diniz; e he quem se pode dizer o
Juiz de Paz, author da mesma accuzaçam.
O Reverendissimo Vigario de Matozinhos, sempre coherente no seu Jezuitico
modo de proceder, obtendo astuticamente aquela Parochia, engenhozamente affirmando
haver ali terreno suficiente, quando para o Cimitério necessitou a Camara pedirmo por
que naquela então Capella ha 50 braças em quadra por doação dos meus maiores e
muitos outros cazos agora estranhos, que indispozerão o tal Reverendissimo comigo,
principalmente aquela marcha philamtropica que uso de forrar aos meus escravos
velhos, sustentalos, vestilos, e piedozamente tratalos; e quando fallecem pobres, resulta
o perdimento do Reverendissimo de proveitosos responsorios: e quando hú destes de
nome Miguel tendo fallecido em minha caza, em seu ultimo bocejo, e instantes de vida,
o Reverendissimo Vigario, Juiz de Paz Acssessor mandando despoticamente agarrar hú
cavallo que lhe ficara, cerrando os olhos às lagrimas do filho a quem nada mais
ficava,com que pagar os remedios do Pae morto, este Cavalo foi levado: seu impl[?]
reduzidos as obras de sulfragios, de que resultou pela minha oppoziçam, [ilegível] que
bazêa[sic] sua insignificante, e debil colera para comigo; e por isso ordenou ao seu Juiz
de Paz, para dar de mim a conta que respondo , quando elle por meio do Bispo seu
Protector, me conta ter dado outra, fundadas em tão futeis, quanto irrizorios pretextos;
porem elles desaparecerão desde já como fumo – ainda que se sirva da expressão
pomposa “Cazo extraordinario” !!
Eu marcho do cazo, Illmo Senhor Juiz de Fora. Eu vou responder a infame
accuzaçam.
Forão proclamados na Igreja Matriz daquela Parochia, os meus Escravos
Sinfronio, e Jacinta, e no dia marcado comparecerão, para o Vigario os cazar; porem
este, pondo em acção sua costumada Impostura e dependencia, pretextando a falta de
decencia de algumas doutrinas os reinviou conforme o seu costume com outros muitos
praticado, como se Cazamentos, só Theologos pudessem effectuar quando he practica
Sabida, que nas minhas cazas existem mestres, como sucede naquela Fazenda de
Matozinhos, em que todas as noites se da Escolla de Doutrina Christaa; procedimento
este, que com outros Parochos seria bem capaz de minorar outras restriçoens, das quaes
174
resultão a falta de propagação, continuação das mancebias, e sumas desordens: por isso
tanto promovo cazamentos, quanto a difficuldade de vigiar restrictamente mais de 200
escravos de ambos os sexos a meu cargo; e por isso mesmo, aquele bom Parocho tanto
excogita[?] pretextos a difficultálos, quanto pensa me affllige, pelo excesso em
promovêlos.
Outr’ora, eu removi esse manejo; por que fazendo troca dos escravos que
pretendia cazar, com outros que tinha na minha antiga Parochia de Rapozos, com húa
residencia ali preciza voltarão cazados a Matozinhos; porem já não tenho Fazenda em
Rapozos: este meio faltando, dupplicousse então o Imperio do meu o Reverendissimo
Vigario Diniz.
Se o bom Parocho, já disse, que o Juiz de Paz, he ali céo do Vigario quando
puerilmente falla na Lei offendida da Constuição no [ilegível] 8 art. 179, a entendesse
não a profanaria.
Rezido no centro desta Vila. Qual seja a minha moral, e proceder Religiozo, V.
Sa mesmo, na qualidade de Prezidente da Camara Municipal, e esta mesmo como o
Publico, responderão por mim.
Conservo a minha Custa effectivamente hum Capellão, e o mais que excuzo
repetir. Sim aborreço os abuzos na Religião; os ignorantes Lobos da Igreja as
artemanhas de fazer render a Estolla; ao Pastor em magistral carreira vendendo bilhetes
de confissão, a trôco de hunz[sic] de dinheiro, outros a trôco de gallinhas, ovos, e
novêllos de algodam de que muitas vezes os compradores privando seos mizeros filhos,
os deixão na fome e nudez, por que temem a “Excomunhão”: e então se se figura
rígido, e carrancurdo Mercador, que sentado em seu balcão, despede ao tremulo
comprador, se a paga não se aprezenta.
Aborreço ao prevaricador do Evangelho “Gratis date quand gratis accepistis”:
embora me contraditem com “dignus est mercenarius, mercede sua”. Se eu pago Dízimo
ao Estado, e com elle, o Estado fornece a Congrua, eis aqui pago o “Mercenarius”. As
outras conceçoens, são mecez: Mas nascerão das Constituições dos Bispados; não são
do Evangelho.
175
Aborreço o astuto hipocryta, que misteriozamente, e com fraudes piedozas,
illúde ao credulo para extorquir dinheiro, e fazer dependa[?] e he quando clamo com o
mesmo Evangelho “Generaus viprerarum”. Aborreço os Ministros, que cerrando os
olhos ao exemplo do Divino Mestre só procurão amontoar riquezas, empolgar
empregos, e pompozos Palacios como fez o mesmo Vigario de Matozinhos Joze Soares
Diniz, para quem o innocente Povo, olhando a sua caza como obra sagrada [uma linha
ilegível]. Porem altamente affirmo , que a Religião do Estado, a Catholica Romana, he o
meu Norte, e por isso nem levemente toquei o § citado.
Ordenei sim, que chamados Sinfronio, e Jacinta, fossem perguntados diante de
testemunhas na minha auzencia, se era verdade que mui livremente desejavão ser
cazados, e sendo, não obstante a oppozição do Vigario viverião em união; e por que
respondessem concordes, julgandose ajustados, e contractados, para solenidade dos
Esponsaes, foi então distribuido hum barril de Caxaça, ouvindo-se mil vivas aos
Noivos, seguidos de marimbas e tambores e desde então não foi tão guardada a Amante,
e Jovem Jacinta; por que sou Senhor do Governo da minha Caza, para ser mais, ou
menos feixada húa negra. O meu Administrador e parente Antonio Barboza da Silva,
dirigio húa Carta, em que dizia ao Reverendissimo Vigario, que Sinfronio e Jacinta,
tinhão solemente celebrado seus contratos, e Esponsaes; porem que por Ordem minha se
achavão prontos ao menor recado do mesmo Reverendissimo quando quizesse elevar
este Contracto a Sacramento; com tanto que hirião a sua presença húa só vez; e não se
dignando responder, se não, que não estimava aquella Carta como documemto,
principalmente por que nella se dizia que novos Esponsaes se hirão practicar, por
effeitos de sua Caprixoza repugnancia. Não será permitido a hum Chefe de Familias,
formar similhantes ajustes, e contractos?
A Crassa ignorancia do Juiz de Paz querendo gravar e denegrir tão innocente
modo de proceder, o intitula “Cazamento”. Sería seu confesso pouco respeito e menor
decoro, se para simelhante contracto se servisse o meu Administrador da Estolla, hum
dos Simbolos Parochiaes, ou de algua das formulas que uza a Igreja.
Seria pouco decorozo, se para tal Esponsal contracto entre Sinfronio, e Jacinta,
não fossem dados todos os passos de proclames pelo mesmo Reverendissimo.
176
Seria, sim, pouco respeitozo, se havendo aquele Esponsal, não fosse advertido o
dito Reverendissimo, de que os Nubentes se achavão pronto[sic] ao seu recado para se
hirem cazar: ficando demonstrado que aquele reputado “Cazamento”, por que seria
entao desnecessario se tal entesse, voltar ao Vigario, e pôlos do seu recado como fica
dito.
Tenho finalmente respondido que o Vigario Joze Soares Diniz, he meu inimigo:
he o Director Assessor do Juiz de Paz, que exorbitando, falta a singela verdade; por que
somente não posso negar, que celebrado aquelle Contracto, ordenei ao meu
Administrador que não entregasse muito a inutil fadiga de vigiar restrictamente os
passos de Jacinta, e Sinfronio, athe que o Reverendissimo. Vigario removendo seus
Caprixos, tomasse o acordo de elevar a Sacramento o dito contracto, carregando sobre
sua consciencia os effeitos e húa caprixoza restrição, a desforço de extranhas
differenças, e discordias.
Deus Guarde a V. Sa muitos annos.
Illmo Senhor Juiz de Fora, pela Lei e Presidente da Camara Municipal
Manoel de Araujo da Cunha
Sabará 10 de Março de 1831
Francisco de Paula Barboza
***
Illmo Senhor,
Chegando a minha caza de correr em Desobriga a minha Frequesia no dia 18 do
corrente achei o Officio de V. S. da data 28 de Fevereiro do prezente anno, e logo em
cumprimento do mesmo paço[sic] a informar a V. S. ser verdade o que afirma o Juiz de
Paz deste Destrito ao Exmo Prezidente da Provincia e acrece mais aver eu recebido do
177
Feitor do Coronel Francisco de Paula Barboza da Silva, a carta daquele remeto Publica
forma, e com isto pareser[sic] bem provado o Clandestino Matrimonio, que foi celebrar
o dito Coronel entre seus escravos Sinfronio, e Jacinta Benguellas, perante o seu Feitor
Antonio Barboza da Silva e testemunhas, que foram Luis Antonio mosso e Antonio dos
Sanctos Lesça e Capitam Victorianno Gonçalvez Torres, Luis Moreira Marques, João
Rodriguez e [ilegível] Moreira, sendo appresentado pelo ditto Feitor um relho aos
noivos com que os amiaçou para bem viverem, os quais estam vivendo como cazados
disto tenho [ilegível] informado de pessoas como, sejão o Reverendo Joze Dias de
Avellar Joaquim Manoel da Silveira Joaquim da Costa Ferreira, Francisco de Paula
Pereira Joze Antonio Dantas, e Joze Sellis, e é Publico neste Arrayal mesmo por
contarem os que assistiram a muitas pessoas e a vista da carta parece se não precisa de
outra prova e de tudo dei parte a V. Exca Reverendissima e a ela me reporto e quando V.
S. queira ter o encomodo de vir a este Arrayal enquirir [ilegível] achara quantos quizer
para comprovar o que eu digo.
Deus guarde a V. S. muitos annos.
Mathozinhos 19 de Marco[sic] de 1831
Joze Soares Diniz
Vigario de Mathozinhos
***
[À margem esquerda:] Publica forma com o theor de úma carta de Antonio
Barboza da Silva dirigida ao Reverendo Vigario Joze Soares Diniz.
Saibam quantos o presente Instrumento de Publica forma virem que sendo no
anno do Nascimento de Nosso Senhor Jezus Christo de mil oito centos e trinta e um, aos
dezoito dias do mes de Março do dito anno, em o meu Escriptorio compareceo o
Reverendo Vigario desta Freguesia Joze Soares Dinis, e appresentando-me uma carta
178
que lhe dirigio Antonio Barboza da Silva pediu-me que por obrigaçam de meu Officio
lha paçasse em Publica forma o que cumprindo é a mesma carta do theor seguinte.
Illustrissimo e Reverendissimo Senhor Vigario Joze Soares Diniz. O dono desta
Fazenda me ordenou que tratando os esponsaes com solenidade Publica dos meus
escravos que Vossa Senhoria com restriçoens caprichosas como diz o ditto dificulta os
cazamentos que elle promove, e que pretestanto falta deveras moctiva huma delonga
insopportavel e por isso ordenou o ditto dono desta caza o Senhor Coronel Francisco de
Paula Barboza que feitos os contratos já dittos avisase[sic] a Vossa Senhoria para os
elevar a Sacramento quando quizer, e que entre tanto eu relxace o feixo das portas dos
dittos noivos do Dia do esponsal em diante e por isso não só Sinfronio como outros que
se vam ligar por esponsaes estão a primeira ordem de Vossa Senhoria para irem a Igreja
uma vêz sómente, e nunca duas vezes pela mesma coiza, ainda que Vossa Senhoria
mande assim; o que lhe participo para sua inteligencia. Aqui fico pronto para em tudo
mostrar que sou de Vossa Senhoria attento Venerador e Creado.
Antonio Barboza da Silva
Illustrissimo Reverendissimo Senhor Vigario Joze Soares Diniz, muito digno
Cavaleiro da Ordem de Christo guarde Deus muitos annos. Mathozinhos. Recebida a
seis de Fevereiro de mil oito centos e trinta e hum por Gregorio cabra escravo da caza.
Reconheço a letra e firma da carta em porte ser da propria mão e punho de
Antonio Barboza da Silva por outros muitos que do mesmo tenha visto, do que dou fe e
me assigno Em Publico e razo. Mathozinhos
vinte e seis de Fevereiro de mil oito centos e trinta e hum, eu Joaquim Manoel da
Silveira Tabelliam do Juiz de Paz que a reconheci, e me assigno em Publico e razo, Em
testemunho de Verdade
Manoel da Silveira
E nada mais contem a dita carta que bem fiel a copiei e a mesma carta me
reporto em pode do appresentante, do que tudo dou minha fé, e com o appresentante me
assigno em Publico e Razo
eu Joaquim Manoel da Silveira Tabelliam do Juiz de Paz que escrevi e assignei.