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Educação intercultural e a dificuldade de sua prática: Um estudo da imagem do migrante e sua família em livros didáticos alemães Wivian Wel/er RESUMO. A primeira parte deste artigo é um pequeno relato histórico do trabalho pedagógico desenvolvido para melhorar a integração do migran- te e sua família na sociedade alemã. Os diferentes termos utilizados para definir este trabalho de apoio aos estrangeiros 1 têm sido motivo de muitas críticas e controvérsias. Os termos utilizados refletem fases diferentes do desenvolvimento desta nova pedagogia. A segunda parte reflete a forma como é tratada a situação dos migrantes e suas famílias nos livros didáticos, tomando em consideração os livros de política, história, geografia e educação para o trabalho.2 Palavras-chave: Sociedade alemã, migrante, pedagogia, livros didáticos. 1. Pedagogia do estrangeiro (Auslãnderpãdagogik): Educação intercultural ou educação anti-racista? 1 ª fase: Pedagogia do estrangeiro (Aulanderpadagogik) A Comissão Permanente dos Ministérios da Cultura e Educação dos Estados Federados da Alemanha (Die standige Konferenz der Kultusminister) introduziu em 1964 a obrigatoriedade do ensino para os filhos de trabalhadores estrangeiros e, a partir de 1966, a lei passou a vigorar em todos os Estados Federados da Alemanha Ocidental. 3 De 1964 para 1970 o número de alunos estrangeiros decuplicou (de 5 mil para 50 mil) 4 e, a partir dessa data, surgem as primeiras iniciativas de apoio social e jurídico às famílias estrangeiras. Nas escolas, esse trabalho foi iniciado com aulas especiais e ajuda nos deveres de casa para as crianças que tinham dificuldade com a língua alemã. Em 23 de novembro de 1973 o governo federal alemão cancelou o recrutamento de mão-de-obra de outros países e permitiu que trabalhadores estrangeiros que já estavam na Alemanha trouxessem suas famílias (até então a maioria dos contratos feitos com estrangeiros eram temporários e não permitiam que estes trouxessem suas famílias. Durante o Mestranda da Faculdade de Educação da Universidade Livre de Berlim. 432 Educação & Sociedade, ano XVI, n• 52, dezembro/95

Educacao Intercultural e a dificuldade de sua prática: Um estudo da imagem do migrante e sua família em livros didáticos alemães

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Educação intercultural e a dificuldade de sua prática: Um estudo da imagem do migrante e sua família em livros didáticos alemães

Wivian Wel/er

RESUMO. A primeira parte deste artigo é um pequeno relato histórico do trabalho pedagógico desenvolvido para melhorar a integração do migran­te e sua família na sociedade alemã. Os diferentes termos utilizados para definir este trabalho de apoio aos estrangeiros1 têm sido motivo de muitas críticas e controvérsias. Os termos utilizados refletem fases diferentes do desenvolvimento desta nova pedagogia.

A segunda parte reflete a forma como é tratada a situação dos migrantes e suas famílias nos livros didáticos, tomando em consideração os livros de política, história, geografia e educação para o trabalho.2

Palavras-chave: Sociedade alemã, migrante, pedagogia, livros didáticos.

1. Pedagogia do estrangeiro (Auslãnderpãdagogik): Educação intercultural ou educação anti-racista?

1 ª fase: Pedagogia do estrangeiro (Aulanderpadagogik)

A Comissão Permanente dos Ministérios da Cultura e Educação dos Estados Federados da Alemanha (Die standige Konferenz der Kultusminister) introduziu em 1964 a obrigatoriedade do ensino para os filhos de trabalhadores estrangeiros e, a partir de 1966, a lei passou a vigorar em todos os Estados Federados da Alemanha Ocidental. 3

De 1964 para 1970 o número de alunos estrangeiros decuplicou (de 5 mil para 50 mil)4 e, a partir dessa data, surgem as primeiras iniciativas de apoio social e jurídico às famílias estrangeiras. Nas escolas, esse trabalho foi iniciado com aulas especiais e ajuda nos deveres de casa para as crianças que tinham dificuldade com a língua alemã. Em 23 de novembro de 1973 o governo federal alemão cancelou o recrutamento de mão-de-obra de outros países e permitiu que trabalhadores estrangeiros que já estavam na Alemanha trouxessem suas famílias (até então a maioria dos contratos feitos com estrangeiros eram temporários e não permitiam que estes trouxessem suas famílias. Durante o

Mestranda da Faculdade de Educação da Universidade Livre de Berlim.

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contrato também não era permitido o casamento dos trabalhadores estrangeiros com cidadãos alemães). A partir de então, a Alemanha passa a ser residência permanente para muitas famílias estrangeiras.

Professores universitários também passaram a dedicar-se ao estudo dessa nova sociedade e aos problemas de integração entre alemães e estran­geiros.

Na área de organização escolar a integração é vista como o rápido acesso às classes regulares nas escolas. Quando isto não é possível, os alunos estrangeiros recebem treinamento específico na língua alemã em classes especiais. Isto leva ao desenvolvimento de uma didática especial do alemão como língua estrangeira ou como segunda língua. Os resultados positivos dessa didática da língua não podem negar no entanto que os problemas de integração não se reduzem somente ao idioma, mesmo quando este elemento se sobreponha aos outros. (Marburger 1991, p. 15)

Vários cursos introduziram a "pedagogia do estrangeiro" como campo de pesquisa na universidade. Em pouco tempo esse tr::ibalho passou a ter uma área própria dentro dos cursos de pedagogia e serviço social, abrangendo "tanto a base da ação prática-pedagógica como a base teórica da criação de novos conceitos (idem, p. 26)".

Críticas à pedagogia do estrangeiro

No início dos anos 80 a pedagogia do estrangeiro é fortemente criticada e toma um novo rumo.

Dentro da crítica a essa pedagogia destacam-se três aspectos funda­mentais:

1) A pedagogia do estrangeiro parte do princípio de que os alunos estrangeiros apresentam déficits. O fato de estes não falarem fluentemente o alemão e não se adaptarem "suficientemente" às normas alemãs é visto como um defeito. Através de cursos específicos ela tenta superar as dificuldades dos estrangeiros, mas acaba levando para a "separação e discriminação das crian­ças e jovens estrangeiros" (Marburger 1991, p. 28). Os críticos da hipótese dos déficits contrapõem com a hipótese das diferenças. Esta não parte dos defeitos e sim das vantagens que uma criança estrangeira tem sobre uma criança alemã pelo fato de dominar duas línguas. Se desde o início houvesse uma alfabetiza­ção bilíngüe, não seriam as crianças estrangeiras as que apresentariam déficits e sim as crianças alemãs, pois elas falam somente uma língua e conhecem uma única cultura. "Não são as crianças e jovens estrangeiros que precisam ser transformados, são as escolas" (idem).

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2) Griese (1981 )5 critica a "pedagogização" (Pãdagogisierung) dos pro­blemas dos estrangeiros, uma vez que a pedagogia dos estrangeiros encara as dificuldades dos mesmos como um problema individual. Niekrawitz (1990, p. 28) acrescenta que a pedagogia do estrangeiro ocupa-se dos sintomas que causa­ram o problema no indivíduo, sem tomar em conta o contexto histórico, político e econômico. Não é o indivíduo mas sim a sociedade quem originou o "problema dos estrangeiros". Por isso não se trata de buscar uma solução pedagógica mas sim uma solução política.

3) A pedagogia do estrangeiro está voltada somente para o estrangeiro e não para a sociedade como um todo. Os alemães não são alvo de crítica dentro dessa pedagogia que não vê a necessidade de uma mudança de comportamento tanto das minorias quanto das maiorias residentes no país. "Uma convivência social e pacífica entre maiorias e minorias exige não somente uma adaptação por parte das minorias, mas principalmente das maiorias" (Marburger 1991, p. 29).

Discriminações raciais só deixarão de existir quando a população nativa estiver aberta para um novo tipo de aprendizagem, ou seja, quando ela estiver disposta a aprender do outro e com o outro e quando ela aceitar a existência de uma nova sociedade.

O reconhecimento dessa necessidade levou à criação de um novo conceito, que parte de uma educação intercultural para uma sociedade multi­cultural ou pluriétnica.

2ª fase: Educação intercultural

A educação intercultural surgiu no início dos anos 80 como uma tentativa de superar os erros e as ingenuidades da pedagogia do estrangeiro. A educação intercultural

é contra a segregação e deformação cultural e reconhece que as culturas no nosso país [Alemanha] não existem apenas em forma de fracções paralelas umas às outras, mas estão cada vez mais ligadas entre si de forma equivalente. (Zimmer 1989, p. 1)

Um dos principais objetivos da educação intercultural é a integração das pessoas de culturas diferentes no contexto social como um todo. Integra­ção dentro da educação intercultural não significa adaptação e assimilação da cultura dominante. Trata-se de um processo de troca contínua entre nativos e migrantes. No entanto só é possível falar de migração quando

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comportamentos diferentes são tolerados, costumes estranhos são reco­nhecidos, o multilingüismo for comum, a prática de uma religião passe a ser algo pessoal e quando a relação com pessoas de culturas diferentes for pretendida. (Hoff 1981, pp. 63-65)

Nieke (1992, pp. 64-68) destaca os principais objetivos que a educação intercultural procura concretizar:

Reconhecimento de problemas de entendimento; Superação do etnocentrismo; Relacionamento com o desconhecido; Tolerância com o que vive e pensa em termos culturais diferentes; Aceitação das etnias; Motivação para a solidariedade; Treinamento de formas sensatas para a superação de conflitos; Convivência com conflitos culturais e relatividades culturais.

Campo de atuação da educação intercultural

A educação intercultural atinge melhores resultados em nível escolar do que em nível político. Marburger (1992, pp. 30-33) menciona três avanços importantes nesta direção:

1) Reconhecimento e aprimoramento da língua materna: Através de incentivo à língua materna por meio de aulas e outras atividades procura-se auxiliar na formação da identidade das crianças estrangeiras. A língua materna já não deve ser vista como irrelevante ou como um bloqueio do processo de alfabetização. 6

2) Abertura de todos os setores da escola para a cultura das minorias étnicas: O superamento da visão eurocentrista sobre as outras culturas tem sido um dos maiores problemas a serem enfrentados. Os próprios livros didáticos indicam que este objetivo ainda está longe de ser alcançado. "Não se trata de integrar os elementos folclóricos e exóticos de uma outra cultura em um plano curricular que continua sem ser modificado, mas sim de uma reforma geral tanto quantitativa como qualitativa" (idem, p. 32).

Algumas escolas do bairro de Kreuzberg, em Berlim, apresentam este modelo de escola aberta. Nessas escolas são festejados de forma equivalente tanto os feriados e festas vinculados ao cristianismo, como os feriados e festas ligados ao islamismo ou judaísmo. Contudo, o bairro de Kreuzberg é uma exceção e não a regra, devido ao grande número de estrangeiros que vivem e freqüentam as escolas desse bairro.

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3) Conscientização e reflexão sobre racismo e etnocentrismo: A discus­são deste tema nas escolas tem trazido poucos resultados positivos, em virtude do crescente conflito entre jovens alemães e jovens estrangeiros. Contudo, é necessário que os alunos sejam confrontados com esses temas, levando-os a uma análise racional dos fatores que originam as discriminações contra minorias étnicas, de forma que tanto os alunos alemães quanto os alunos estrangeiros possam chegar a uma consciência crítica perante esses problemas.

A prática de uma educação intercultural para uma sociedade multicultural ou pluriétnica não deve se dar somente em nível escolar. Ela deve integrar-se à vida cotidiana e deve poder interagir no meio político.

3ª fase: Educação anti-racista

A educação anti-racista surgiu como um complemento à educação intercultural, tratando-se mais de uma discussão teórica em nível acadêmico, do que de uma transformação da prática pedagógica.

Essinger (1993, pp. 21-39), um dos defensores da educação anti-racista, critica a forma como se define o conceito de cultura dentro da educação intercultural:

Sem uma definição do que nós como pedagogos e pedagogas intercultu­rais entendemos como cultura, tenho a impressão de que muitos esforços e eventos interculturais bem intencionados tratam apenas de despertar uma maior consideração para com as minorias, sem chegar à raiz do problema, ou seja, sem avançar para o fato de que a convivência entre pessoas de origem étnica e cultural diferentes acaba sempre se tornando impossível devido ao racismo personalista e institucional. (p. 21)

Ao racismo personalista Essinger associa o crescimento da discrimina­ção contra estrangeiros, que aparece como uma forma de "reencarnação do antigo racismo" (p. 23). Por este mesmo motivo não se deve separar o racismo do nazismo e do neonazismo. Uma educação intercultural ou anti-racista somente nas escolas não é suficiente para a erradicação do racismo, uma vez que este está enraizado tanto no indivíduo como nas instituições.

Enquanto a educação intercultural educa para a integração em uma sociedade multicultural, a educação anti-racista educa contra o racismo histórico dominante e tolerado pelo Estado. Outros defensores europeus da educação anti-racista (Mullard e Essed) criticam a educação intercultural pelo fato de esta fundamentar a igualdade das culturas e a igualdade de oportunidades em uma sociedade que não oferece essas condições. Por esse motivo é que Mullard e Essed defendem na educação anti-racista a igualdade de condições para cada cultura.

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A Educação Anti-racista não tem por objetivo a assimilação (Pedagogia do Estrangeiro), nem a integração (Educação Multirracial), nem a plurali­zação (Educação Multicultural). Sua teoria, prática e política trabalham de forma desafiadora na mudança radical da ordem social e educacional. Seu objetivo não é alcançar "compensações", "preferências" ou "igualda­des" - seu objetivo é o fim do racismo, seu objetivo é a justiça. (Essed & Mullard 1991, p. 62s)

Atualmente o conceito de educação anti-racista ainda é tomado com certa cautela, já que a realidade social está longe de oferecer igualdade de condições. Só o fato de haver uma série de leis para os estrangeiros já vai contra os objetivos da educação anti-racista. As experiências da luta antifascista mostram também que o fascismo está longe de ter sido superado na Alemanha. Isso significa que uma luta anti ou contra o racismo e o fascismo não é suficiente para uma transformação da sociedade.

Apesar das críticas que a educação intercultural tem recebido, ela demonstra estar mais próxima da realidade prática do que a educação anti-ra­cista. A educação intercultural tem buscado o encontro com outras culturas (por meio de centros culturais, festas, programas de intercâmbio para jovens e adultos), possibilitando à população uma maneira de conhecer outras formas de vida e modos de pensamento. Nesse sentido a educação intercultural tem estado ativa nas escolas e em outros espaços da comunidade.

2. A reprodução de conceitos racistas em livros didáticos

Este capítulo é um pequeno estudo da imagem do migrante e de sua família em livros didáticos alemães. Apesar de ser um tema pouco explorado, sabe-se que os livros didáticos influenciam na formação de normas e valores sociais na vida dos alunos, bem como na formação de preconceitos e discrimi­nações racistas. Van Dijk (1991) afirma que

paralelamente à socialização primária e à aprendizagem através da comunicação com os pais, os livros infantis e programas de televisão, as aulas e livros escolares significam o primeiro contato da criança com o ensino institucionalizado da comunicação, do saber, da fé, das normas e valores. (p. 21)

Principalmente nas grandes cidades as crianças entram em contato com pessoas de culturas e etnias diferentes, através de jardins-de-infância, área de lazer e outros. Uma pesquisa realizada na Holanda revelou que as crianças, já a partir dos 4 anos, estão conscientes de sua origem étnica e sabem a que grupo pertencem (idem). Veja um exemplo:

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Luciana tinha 4 anos de idade quando seus pais vieram do Brasil para a Alemanha e ela passou a freqüentar um jardim-de-infância em Berlim. As dificuldades de comunicar-se na nova língua foram superadas em pouco tempo, mas isto não a ajudou a sentir-se totalmente integrada na nova cultura. Luciana sabe que ela faz parte do outro grupo, ou seja, do grupo dos estrangeiros, e não foi por acaso que em pouco tempo seu melhor amigo era uma criança de origem angolana/alemã. Hoje já na escola, além de dominar perfeitamente a língua alemã, Luciana está aprendendo turco e dança do ventre, já que grande parte de suas amigas são desta origem, e, como Luciana, sentem-se como estrangeiras.

Em muitos países europeus, bem como nos Estados Unidos, no Canadá e na Austrália, discute-se a necessidade de uma educação multicultural para uma sociedade pluriétnica. Mudanças concretas na formação dos professores e nas próprias escolas praticamente não existem e muitas vezes as boas intenções de alguns professores fracassam devido ao aparelho burocrático que é a escola.

A imagem do trabalhador estrangeiro nos livros didáticos

Apesar de os livros didáticos serem vistos como uma fonte de informação fundamental nas escolas, é preciso questionar a forma e o meio como são passadas as informações sobre as minorias étnicas. Van Dijk ressalta "que os livros didáticos, de forma descarada como no passado ou de forma sutil como no presente, ignoram, marginalizam, humilham e problematizam as pessoas, sociedades e culturas que não são ocidentais" (1991, p. 22).

nº de livros analisados nº de textos sobre o tema

livros livros livros livros escolares extras escolares extras

Política 8 12 7 (88%) 8 (67%) 1977/1977 1982/1983 11 26 11 (100%) 13 (50%)

História 8 12 7(88%) 8 (67%) 1977/1978 1982/1983 11 26 11 (100%) 13 (50%)

Geografia 15 39 7 (47%) 7 (18%) 1977/1978 1982/1982 10 29 8 (80%) 11 (38%)

Educação 7/6* 13/12* 1 (14%/17%) 1 (8%/8%) 1977/1978

p/ trab. 14/1 O* 33/24* 5 (36%/50%) 7 (21%/29%) 1982/1983

Fonte: Scheron, B. und U., 1985, pp. 45-96. • Estes livros pertencem à matéria "Estudo da economia".

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O quadro da página anterior é o resultado de uma pesquisa feita sobre o tema "Migrantes na Alemanha" em livros didáticos de política, história, geo­grafia e educação para o trabalho nos anos de 1977/1978 e 1982/1983.7 A pesquisa abrange uma parte quantitativa e outra parte qualitativa sobre o tema:

A segunda parte da pesquisa analisa a imagem que é passada do trabalhador estrangeiro nos livros didáticos. Esses resultados tornam-se mais claros se os analisarmos sob diferentes aspectos, como vemos a seguir:8

a) Termos utilizados para definir o migrante estrangeiro

Nos livros didáticos aparecem diferentes termos como "estrangeiro", "trabalhador estrangeiro", "empregado", "trabalhador visitante". Estes termos são utilizados sem nenhuma explicação e distinção entre os mesmos. Os estrangeiros são categorizados de acordo com o país de origem e a idade. A maioria dos livros, quando se refere à vinda da mão-de-obra estrangeira para o país, o faz de forma breve e pouco fundamentada.

b) Função econômica atribuída ao migrante estrangeiro

Utilizando algumas expressões do vocabulário cotidiano sobre os estran­geiros, como por exemplo "Fora com os estrangeiros e trabalhadores temporários" ou "os estrangeiros estão tomando os nossos empregos", alguns livros procuram demonstrar a incoerência dessas afirmações com a realidade, já que os trabalha­dores estrangeiros em sua maioria não ocupam empregos qualificados e por esse motivo não estão tirando a vaga de um alemão desempregado. Alguns livros ressaltam o fato de que o estrangeiro realiza o trabalho que muitos alemães não estão dispostos a fazer. No entanto, utilizam formas pejorativas para defini-lo, como por exemplo ''trabalho sujo". O que parece ser um elogio aos estrangeiros - "Veja como eles são humildes e até limpam a sujeira que nós não queremos limpar!" - é uma forma discriminativa de afirmar que os estrangeiros são "sujos" e incapazes de fazer algo melhor, que exija uma maior capacidade mental.

Os livros didáticos procuram mostrar as vantagens que a mão-de-obra estrangeira trouxe para a Alemanha, mas poucas vezes mencionam as vanta­gens e desvantagens que o estrangeiro tem trabalhando na Alemanha. Quando o fazem, falam das vantagens que um estrangeiro tem recebendo seu salário em uma moeda forte como o marco, que lhe permite um poder aquisitivo superior em seu país de origem e melhora a renda per capita de seu país. Em nenhum momento menciona-se os motivos que levaram muitos a buscar trabalho em outro país, que nem sempre são motivos econômicos, mas muitas vezes políticos, como no caso de muitas pessoas procedentes do Kurdistão.

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A necessidade de justificar a mão-de-obra estrangeira no país parece ser tão grande que alguns livros fazem apelos do tipo: "A atividade dos traba­lhadores estrangeiros não é nenhuma obra de caridade! O nosso mercado econômico depende dela."9

c) Situação legal do migrante

Os livros didáticos não questionam em nenhum momento as leis sobre os estrangeiros, pelo contrário, descrevem-nas como necessárias para regula­mentar a vida dos mesmos na Alemanha. Quanto aos que não têm emprego, os livros didáticos deixam claro: Eles devem deixar o país. Em outros momentos parece haver a necessidade de se falar da bondade do Estado alemão, que também dá o direito a uma criança turca de receber o Kindergeld (salário-famí­lia), sem no entanto mencionar que também os estrangeiros pagam impostos e outros custos sociais.

Em relação à existência ou não de entidades de apoio aos estrangeiros, por exemplo na busca de uma moradia, problemas familiares e outros, é apenas mencionado que os estrangeiros devem organizar-se e tomar iniciativas pró­prias, sem colocar em questão a ausência do Estado quando se trata dos direitos do estrangeiro e ao mesmo tempo falta de apoio por parte do Estado, quando se trata de criar entidades próprias para os estrangeiros.

d) Situação de moradia e marginalização do migrante

As casas pequenas e desconfortáveis em que vive a maioria dos estran­geiros aparecem ilustradas em alguns livros didáticos, sem que seja feito um questionamento sobre essa realidade.

O fato de os estrangeiros viverem à margem da sociedade é atribuído à falta do domínio da língua alemã, que por sua vez é explicada como difícil de ser aprendida devido "à carga excessiva do trabalho braçal feito pelos estrangeiros" (Scheron & Scheron 1985, p. 95). O ceticismo de grande parte dos alemães com relação a outros valores, culturas e normas não é colocado em questionamento. O fato de o próprio governo haver exercido por muito tempo uma política de distribuição do número de estrangeiros em bairros degradados (como aconteceu em Berlim), conglomerando-os em espécies de guetos, tão pouco é questionado.

e) Discriminações contra migrantes

Os preconceitos contra os estrangeiros são mencionados várias vezes, sem no entanto se chegar a uma análise dos motivos ou funções dessa discriminação.

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t

Conflitos, brigas e preconceitos são tratados como motivos que atrapa­lham e impedem a convivência pacífica entre alemães e estrangeiros. Os motivos para esses desentendimentos são atribuídos ao "estilo de vida diferente dos estrangeiros' e não às dificuldades de comunicação.

f) Jovens estrangeiros entre a escola e a família

Problemas vivenciados por jovens estrangeiros, como por exemplo necessidade de trabalhar para ajudar a família, condições de moradia inade­quadas, dificuldades para conseguir uma vaga em uma escola profissionalizan­te, são mencionados somente de forma generalizada, sem que se faça uma análise dos fatos que levam a esses problemas.

Os filhos dos estrangeiros aparecem geralmente nos livros didáticos como problemáticos e causadores de conflitos.

g) Respostas da sociedade para a solução do conflito entre alemães e estran­geiros

Como solução são sugeridos mais incentivo à aprendizagem da língua alemã e ajuda para pessoas que têm dificuldade em comunicar-se nessa língua.

Dos trabalhadores migrantes espera-se que se integrem à sociedade alemã, aceitando e adaptando-se às normas impostas por essas sociedades. Espera-se no fundo que os migrantes assimilem a nova cultura, ignorando experiências pessoais e a cultura de origem. Alguns livros chegam inclusive a tratar a cultura de origem dos migrantes como atrasada e inferior à cultura ocidental.

Resultados da pesquisa

Inicialmente é preciso chamar a atenção para o fato de que, até o momento, praticamente não existem estudos sobre a imagem do migrante e suas famílias em livros didáticos alemães. A pesquisa de Bodo e Ursula Scheron foi a única encontrada sobre esse tema. Outras pesquisas encontradas dedi­cam-se ao estudo da religião islâmica em livros didáticos. Também não foi encontrado nenhum estudo em que se analisasse a reprodução do racismo por meio dos livros didáticos. Quando a questão do racismo é tratada, são mencio­nados os conflitos raciais nos Estados Unidos e na África do Sul, mas nunca os conflitos enfrentados, por exemplo, por negros alemães.10

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Os resultados desta pesquisa mostram que a questão do migrante e suas famílias é tratada sob o ponto de vista histórico, mencionando-se a contribuição que estes trouxeram para a reconstrução da indústria alemã nos anos 60 e 70.

Os livros de ciências sociais e políticas referem-se quase sempre so­mente aos problemas enfrentados pelas famílias migrantes. Poucas vezes mencionam os lados positivos da vinda do migrante e a contribuição que estes trouxeram para a cultura alemã, principalmente nas grandes cidades. Os livros didáticos tampouco oferecem informações suficientes para que o aluno possa refletir sobre a causa dos problemas enfrentados pelos estrangeiros. Muitos livros sugerem que os alunos façam uma pesquisa de campo e que entrevistem seus colegas estrangeiros sobre os problemas enfrentados pela família, livran­do-se da responsabilidade de tematizar questões que possam vir a ser polêmi­cas. Em outras palavras, os livros didáticos assumem uma posição neutra em relação a esses temas.

Aos alunos alemães e suas famílias os livros didáticos sugerem que sejam mais tolerantes em relação às famílias migrantes e que se disponham a ajudá-las. Aos alunos estrangeiros e suas famílias sugere-se maior integração e adaptação. Uma análise do racismo enraizado na própria cultura e na própria pessoa, independentemente do fato de ser estrangeiro ou alemão, e uma autocrítica não serão realizadas se isso depender dos livros didáticos.

Nesse sentido, os objetivos da pedagogia intercultural e da pedagogia anti-racista estão praticamente inexistentes nos conteúdos dos livros didáticos. Se depender desses meios, ainda levará muito tempo para que se concretize a idéia de uma sociedade multicultural, onde se parta dos mesmos direitos para cada grupo e onde a identidade étnica e cultural seja respeitada.

Conclusão

Os filhos de migrantes defrontam-se nos livros escolares com estereóti­pos e clichês sobre a cultura de suas famílias que, ao invés de uma identificação com a mesma, fazem com que passem a sentir vergonha dos valores e costumes nos quais vivem. Os migrantes aparecem nos livros didáticos quase sempre em funções de menor prestígio, como limpadores de rua, empregadas domésticas e outras. Essa associação leva as crianças à interpretação de que os alunos estrangeiros são filhos de pais sem "educação", ou seja, filhos de pais sem uma formação profissional.

Outra tendência dos livros didáticos é a assimilação de somente alguns aspectos da cultura das famílias migrantes, levando a uma generalização desses aspectos. Dessa forma os livros escolares transmitem imagens, como

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por exemplo: todas as mulheres turcas usam um turbante para cobrir a cabeça e são submissas aos seus maridos; todas as mulheres árabes dançam a "dança do ventre"; todos os turcos cheiram a alho; todos os estrangeiros ouvem música em alto volume e não respeitam os seus vizinhos. Essa generalização leva a uma interpretação da cultura dos migrantes como exótica e folclórica, mas sempre inferior à cultura alemã e ocidental.

Para terminar com esses tipos de clichês e estereótipos é necessário que se criem materiais didáticos que tratem da cultura dos migrantes com base em uma perspectiva que parta da realidade em que estes vivem. Não se trata de colocar o migrante como figura central dos materiais didáticos, mas de uma igualdade no tratamento dos diferentes grupos. Trata-se da valorização das diferentes culturas como um todo e não apenas de seus detalhes exóticos e folcloristas. Trata-se de um respeito pelos diferentes costumes, pelas diferentes religiões e formas de pensamento. Os livros didáticos deveriam ser uma forma de identificação com as diferentes culturas dos alunos e não um meio que os faça sentir vergonha.

Acima de tudo, os livros escolares deveriam orientar seus conteúdos para uma sociedade culturalmente diversificada e não para uma sociedade eurocêntrica que predomina sobre as outras culturas. Os livros didáticos deve­riam possibilitar também um confronto crítico com a cultura eurocêntrica e com os modos racistas produzidos por ela, para que os alunos possam identificar-se com a sua cultura ao mesmo tempo em que possam aceitar e valorizar as outras culturas existentes numa sociedade multicultural.

Notas

1. A palavra estrangeiro aparece nesta segunda parte sempre em letra cursiva. O motivo dá-se ao fato de que nem todos os que são considerados estrangeiros na Alemanha, realmente o são. Uma grande parte dos alunos de descendência turca por exemplo nasceu na Alemanha e muitos deles também possuem a nacionalidade alemã. No entanto, essas crianças ou jovens não são aceitos pela sociedade em geral como cidadãos alemães.

2. Os livros de educação para o trabalho são utilizados somente nas escolas profissionalizantes, já que esta matéria não faz parte do Gymnasium (formação escolar que dá o acesso ao ensino superior).

3. Cf. Marburger 1991, p. 23.

4. lbid.

5. Apud Marburger 1991, p. 28.

6. Na Alemanha já existem várias escolas primárias (conhecidas como escolas européias) que oferecem alfabetização bilíngüe. Na cidade de Berlim existem por exemplo escolas com a combinação das línguas russo/alemão; inglês/alemão; francês/alemão e

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espanhol/alemão. Nessas escolas o primeiro ano da alfabetização é realizado na língua materna (por exemplo em espanhol para as crianças de origem espanhola e em alemão para as crianças de origem alemã) e o segundo ano, na segunda língua. Após a alfabetização inicial as crianças passam a ter aulas nas duas línguas. A partir de 1997 está prevista a criação de uma escola com a combinação português/ale­mão, como uma iniciativa que partiu dos próprios pais. Existe em Berlim um número considerável de crianças nascidas em casamentos binacionais (bínatíona/e Ehen) entre trabalhadores moçambicanos e angolanos da antiga RDA com alemães, bem como de trabalhadores portugueses. O número de crianças de origem brasileira/alemã também não deixa de ser significante em Berlim. À parte das escolas européias, existe em várias escolas primárias berlinenses a alfabeti­zação nas línguas turca e alemã, com a diferença de que nessas escolas somente as crianças de origem turca têm direito à alfabetização nessa língua, com uma carga horária extra de cinco horas semanais.

7. Não foi encontrada pesquisa mais recente sobre este tema. Seria necessária uma pesquisa empírica para que dados atuais pudessem ser considerados, o que infelizmente não está ao alcance deste artigo.

8. As informações seguintes estão baseadas na pequisa de B. Scheron e U .• Scheron 1985, pp. 81-95.

9. lbíd., p. 91.

1 O. Existe uma grande resistência por parte da população alemã em aceitar a existência de alemães negros. Apesar de possuírem nacionalidade alemã e dominarem perfeitamente a língua, são discriminados da mesma forma como outros grupos de estrangeiros.

Intercultural Education and the difficulties of its practice. A study of the image of the migrant and his family in German School-books

ABSTRACT: The first part of this article is a short historical repor! on pedagogical effort carried out in order to improve the integration of the migrant andd his family into the German society. The different terms used to define this effort in support of the aliens aroused many criticisms and controversies. . The adapted terms reflect the different development stages of this new pedagogy. The second part reflects the way of how the situation of the migrants and their families dealt with in school-books particularly in books on politics, history, geography and occupational education.

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