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IV SEMINÁRIO INTERNACIONAL VIOLÊNCIA E CONFLITOS SOCIAIS:
TERRITORIALIDADES E NEGOCIAÇÕES
02 a 05 de dezembro de 2014, Laboratório de Estudos da Violência, UFC,
Fortaleza- CE
Grupo de Trabalho 15: Violência, Fronteiras e Periferias.
ENCORPORANDO O ESTADO EM BAIRROS PERIFÉRICOS: RISCO E MEDIAÇÃO NAS EQUIPES DE SAÚDE DA FAMÍLIA
Roberto Marques (URCA. e-mail: [email protected]) Antônio Lucas Cordeiro Feitosa (URCA. e-mail: [email protected])
Lucas Palmeira Dantas (URCA. e-mail: [email protected])
Crato, 2014
Apresentaremos aqui resultados parciais de uma pesquisa interdisciplinar mais
abrangente que avalia o acesso e apropriação de políticas públicas por
mulheres vítimas de violência no centro-sul cearense1.
Notadamente, as Delegacias de Atendimento a Mulheres, as DEAMs, tem se
consolidado desde sua criação em 1985 como principal destino para cidadãs e
cidadãos que buscam a ação do Estado na mediação para relações de gênero
marcadas pela inequidade (SCHRAIBER, D´OLIVEIRA, 1999) 2. Em 2006, essa
política que articula movimentos sociais e políticas públicas, atinge um marco
importante com a aprovação da lei 11.340, de 07 de agosto de 2006, conhecida
como Lei Maria da Penha.
Se por um lado a noção de gênero dá forma a um evidente limite da construção
da noção plena de cidadania, por outro lado, seria impossível tratá-la de forma
descontextualizada e distanciada de outros marcadores sociais. Como nos
ensina Leal (2014)3 a reapresentação contínua da ideia de inequidade de
gênero pela grande mídia estabelece uma oposição entre áreas sensíveis a
ideais contemporâneos dos direitos humanos e da cidadania e as margens
dessas áreas, consideradas atrasadas, bárbaras, periféricas4.
As DEAMs e seus números são apresentados como um desafio ao alcance do
Estado, de sua extensão a áreas desafiadoras, margens da civilização.
Há alguns efeitos nessa polarização: 1) Todas as formas de tratamento da
diferença são confundidas com desigualdade; 2) Em um exemplo clássico de
etnocentrismo, a forma de conjugar elementos da diferença entre sujeitos é
imediatamente comparada ao tratamento ocidental da gestão da diferença de
gênero, tomada como harmônica, desde que mediada pelo Estado; 3) Toda a
1 A pesquisa Acesso e apropriação de mulheres em situação de violência no centro-sul cearense teve
início em março de 2013, tendo sido financiada pelo CNPq através da Chamada n º 32/2012. A pesquisa é coordenada pelos professores Roberto Marques, Iara Maria de Araújo e Glauberto Quirino, e conta com a participação do professor Antônio Lucas Cordeiro Feitosa além de 08 alunos e egressos dos cursos de ciências sociais, pedagogia, direito e enfermagem. Na fase relatada nesse trabalho, participaram, além dos autores, Tayenne de Oliveira e Cássio Holanda, ambos sob orientação de Glauberto Quirino. 2 SCHRAIBER, L.; D´OLIVEIRA, A.P.L. Violência contra as mulheres: interfaces com a saúde. Interface-
Comunicação, saúde e educação, Botucatu, UNI/UNESP, 3(5), p. 11-27, 1999. 3 LEAL, Bruno Souza. Narrativas de um problema cotidiano: o testemunho jornalístico e a violência de
gênero. Apresentação Oral no Seminário de apresentação dos resultados da Chamada Pública: Relações de Gênero, Mulheres e Feminismos, Brasília, 2014. 4 SCHRAIBER, L; D´OLIVEIRA, A.P.L. (1999: p. 17) nos ensinam que a partir dos anos 1990, a discussão
sobre a violência contra a mulher fora remetida estrategicamente pelos movimentos sociais para além da área da justiça, permeando as áreas dos direitos humanos, da saúde das populações e do desenvolvimento.
organização social passa a requerer mais presença do Estado5, muitas vezes
esvaziando o sentido de participação e protagonismo na vida pública e, por fim,
4) A polarização entre áreas marcadas pelos ideais ocidentais e suas margens
induz a ideia de que todos tem acesso equânime aos equipamentos de
políticas públicas do Estado, podendo fazer desses equipamentos o destino
para suas queixas.
De acordo com esse último raciocínio, caso se deseje tornar a delegacia, seus
serviços e profissionais envolvidos, o destino para suas queixas, bastaria
dirigir-se a elas, mimetizando a partir da presença nesses órgãos ideais de
comportamento afeitos ao mundo contemporâneo.
Ora, é certo que as DEAMs são órgãos pedagógicos para as relações de
gênero, marcadas por demandas múltiplas das usuárias e usuários,
profissionais, movimentos sociais e agentes. Essas demandas podem ser
eminentemente polarizadas entre a mediação do conflito entre familiares,
parceiros ou ex-parceiros e a criminalização da violência contra mulher.
No entanto, a despeito da forma de reapresentação dos dados das delegacias
como configurador de duas posições: fora e dentro do Estado, o número de
delegacias existentes, o acesso a esses equipamentos, a recepção complexa
das queixas das usuárias e usuários desses serviços pela delegacia está longe
de configurar a relação das cidadãs e cidadãos com esses órgãos como um
mero desejo ou não pela presença do Estado.
No Brasil, das 5.565 cidades, apenas 397 possuem delegacias especializadas
em atendimento a mulher. No Ceará, por exemplo, apenas 09 cidades
possuem delegacias da mulher. A legislação do estado aponta para um déficit
de 14 delegacias especializadas.
Portanto, ainda se considerarmos a oposição fora-dentro do Estado,
sobreposta a ideia de fronteiras da civilização, teríamos que levar em conta
aqueles que estão à margem da possibilidade de presença do Estado, os
desassistidos pelas estatísticas, os sem número6.
5 Ver: BUTLER, Judith. O parentesco é sempre tido como heterossexual?. Cad. Pagu, Campinas , 21, p.
219-260, 2003. 6 No Ceará, apenas 23 municípios possuem mais de 60.000 habitantes. Pela legislação em vigor, apenas
esses municípios sediariam DEAMs. Há, portanto, uma ambiguidade patente na legislação sobre as delegacias da mulher: ao tempo que ancoradas nas ideias de solidariedade e rede de apoio para enfrentamento da violência, ainda que a questão da inequidade de gênero seja pensada como um
Como seria possível observar a relação dessas populações com a ideia de
equidade de gênero?
Resolvemos refletir sobre o tema a partir de outra política pública, com maior
abrangência e com especial sensibilidade para as questões de gênero: as
Estratégias de Saúde da Família.
Saúde da Família é uma estratégia de reorientação do modelo assistencial que
estabelece a família como:
(...) objeto precípuo da atenção, entendida a partir do ambiente onde se
vive. Mais que uma delimitação geográfica, é nesse espaço que se
constroem as relações intra e extrafamiliar. E onde se desenvolve a luta
pela melhoria das condições de vida- permitindo, ainda, uma
compreensão ampliada do processo saúde/doença e, portanto, da
necessidade de intervenção de maior impacto e significação social
(MINISTÉRIO DA SAÚDE,1997, p. 087).
A estratégia está marcada, portanto, pelos ideais de centralidade na família, e
não no indivíduo; na qualidade de vida a partir de ações que promovam a
saúde, e não na intervenção anatomo-patológico sobre a doença; na
humanização dos serviços, a partir do estabelecimento de relações contínuas
entre profissionais de saúde, o indivíduo e a comunidade; na ação integrada
entre profissionais e na comunidade como lócus da ação sobre a saúde,
rompendo com o modelo hospitalocêntrico.
De acordo com SANTOS (2006)8 a criação dos Programa de Saúde da Família
em 1994 está relacionada com a instituição desse ano como ano da família,
promovido pelas Nações Unidas. A ONU estabelece anualmente um tema para
mobilização e adequação das legislações nacionais ao que vem sendo
apresentado nas normas internacionais (COSTA apud SANTOS, 2006: p.100).
As equipes das ESFs são formadas, no mínimo, por um médico, um
enfermeiro, auxiliar de enfermagem e Agentes Comunitários de Saúde (ACS),
podendo outros profissionais de saúde integrar a equipe.
problema de desenvolvimento, apenas as cidades pólo e a capital contariam com esse equipamento e a repercussão, legal; pedagógica; moral, de sua presença. 7 MINISTÉRIO DA SAÚDE. Saúde da Família: Uma estratégia para reorientação do modelo assistencial.
Brasília, 1997. 8 SANTOS, Dayse Amâncio dos. Políticas públicas e família: o programa de sapude da família e questão.
In: CAMPOS, Roberta Bivar Carneiro; HOFFNAGEL, Judith Chamblis.(Orgs.) Pensando família, gênero e sexualidade . Recife: Ed. UFPE, 2006.p. 99-132.
Para garantir a vinculação e identidade cultural com as famílias sob sua
responsabilidade, os Agentes Comunitários de Saúde devem,
igualmente, residir em suas respectivas áreas de atuação. (MINISTÉRIO
DA SAÚDE, 1997, p. 13).
A partir dessa contextualização da Estratégia de Saúde da Família,
apresentaremos dados colhidos na cidade de Iguatu, centro-sul do Estado.
Deixamos claro que as situações abaixo descritas são significativas e refletem
em sua grande parte observações realizadas pela equipe de pesquisadores e
alunos também nas cidades de Crato, Juazeiro do Norte.
Tendemos a pensar que a oposição entre áreas afeitas aos ideais de equidade
e cidadania e as demais áreas da cidade aparecem na fala dos profissionais da
ESF sobrepostas às ideias de centro e periferia.
A principal diferenciação entre esses polos está na forma de relatar a violência
nas duas áreas9. Se a fala sobre violência é igualmente marcada por
ambiguidades e borramentos, há algo no conteúdo da descrição que distingue
a forma da fala nelas, polarizando as ações das ESFs entre centro e periferia.
Dessa forma, responsáveis pelos postos de São Miguel, em Crato e São
Sebastião, em Iguatu, advertiam à equipe que seria inútil realizar aquele
trabalho ali “por ser uma unidade localizada em uma região que atende
pessoas de classes mais altas”.
Ao mesmo tempo, no bairro São Miguel, próximo ao centro de Crato, as
posições sobre violência nas falas da equipe variam entre a ausência de casos
e o relato de terceiros.
Uma das enfermeiras, por exemplo, diz que: “—Em nenhuma visita domiciliar
no período de mais de dois anos que eu estou aqui, nunca soube de nenhum
caso—”. Já uma das ACS da mesma unidade, relata o caso de uma gestante
que sofre violência de seu marido: “—Na última agressão que a mulher havia
sofrido, achei que ela ia perder o bebê—”. Segundo a profissional que relata o
caso, houve orientação para que a esposa denunciasse seu marido, mas o
agressor ameaçava “tocar fogo na casa se ela o denunciasse”.
A oposição centro e periferia organiza também, ainda que informalmente, a
quantidade de famílias cobertas pelo serviço.
9 RAPPORT, Nigel. Talking violence. St. John´s: Institute of Social and Economic Research, 1987.
A Unidade Adil Uchôa, em Iguatu, por exemplo, possui cobertura de 2.100
famílias atendidas por 12 agentes comunitários. De acordo com o enfermeiro
responsável: “—Dá para realizar o trabalho porque o bairro tem famílias de
classes mais altas e que não utilizam a Unidade Básica de Saúde, o que
permite aos agentes de saúde dar atenção aos locais com maior
necessidade—”
Poderíamos, portanto, dizer que a violência, notadamente a violência contra a
mulher, nos territórios de abrangência das Unidades Básicas de Saúde (UBS)
próximas ao centro é, quando relatada, relatada por terceiros, nunca por
demanda espontânea.
Tratada como alvo de notificação compulsória pelo Sistema de Notificação de
Agravos de Notificação, a Violência Doméstica, Sexual e outras violências
possui ficha própria a ser preenchida pelos profissionais das UBSs no
momento do atendimento na sede ou visita familiar10. Possivelmente pensada
sob a ótica do tratamento biológico de prevenção a doenças, a notificação de
casos de violência é tratada como acessória, não tendo sido preenchida uma
única ficha sequer em mais de um ano de presença das equipes de
pesquisadores em quase uma dezena de unidades básicas de saúde em três
municípios diferentes.
Aparentemente, a qualidade de vida das populações é vista como algo distante
dos objetivos e interesse das ESFs visitadas.
No entanto, como relatado acima na caracterização da política de Saúde da
Família, a própria concepção da estratégia como responsável por ações que
melhorem a qualidade de vida a partir da integração com a comunidade
demonstra que a ESF teria como objetivo não apenas mapear, cadastrar e
tratar de corpos como unidades anátomo-fisiológicas.
As ideias de comunidade e identidade cultural, presentes em todos os
documentos do Ministério da Saúde sobre esta política pública, impõe a ela
uma concepção particular na relação entre saúde e vida comunitária. Essa
concepção é particularmente perceptível pelo caráter da função da Agente
Comunitária de Saúde (ACS), obrigatoriamente residente na comunidade que
sedia a UBS em que trabalha.
10
http://dtr2004.saude.gov.br/sinanweb/novo/Documentos/SinanNet/fichas/violencia.pdf
Pode-se dizer que a própria concepção da Estratégia de Saúde da Família, a
obrigatoriedade de presença de agentes comunitárias moradores das áreas
atendidas pressupõe que a partir dela haverá um encontro/mediação entre
gramáticas sociais. São as Agentes Comunitárias de Saúde as mediadoras(es)
entre o saber médico e dos especialistas e o cotidiano da comunidade; são
eles(as) também que possibilitarão ao serviço estar presente na casa da
população assistida, sensibilizando a equipe para as necessidades e modo de
vida locais e à comunidade da experiência médica sobre a relação
saúde/doença.
Dessa forma, retomando a comparação entre o trabalho nas DEAMs e nas
ESFs, poderíamos dizer que se aquela é marcada por uma readequação
compulsória da linguagem da vítima e agressor(a) a uma fala do Estado, o ESF
pressupõe que idealmente o trabalho da saúde só será possível através da
mediação entre gramáticas, a ideia de transmissão como troca de saberes
impõe-se como ideal no serviço.
Essa situação de encontro de gramáticas marca as falas sobre violência nas
equipes de bairros periféricos, mostrando seus limites e contradições. Se
submetidos à gramática do bairro, a equipe corre os riscos de contágio com a
realidade existente nessas áreas, com seus consequentes riscos. Pensemos
sobre alguns exemplos de campo:
Na comunidade Vila Neuma, Lucas Palmeira Dantas presenciou um longo
debate entre 04 gestantes sobre uma briga de facas entre duas mulheres no
bairro. Contam que na calçada de sua casa, com o filho de colo, Marina11 fora
xingada por Carol. O xingamento resultou em uma série de acusações verbais
e, por fim, em um golpe de faca desferido por Carol.
As 04 mulheres grávidas discutiam se a família “ia deixar por isso mesmo”.
Daniela, prima da vítima, afirmava que a família “já sabia onde Carol se
encontrava e que ia mandar matá-la”. Joana, por sua vez, dizia que se Carol
fosse sua parente e ela não tivesse dinheiro para mandar matar a moça que
esfaqueou , iria se prostituir até arrecada o valor. Reticente às falas, Rita dizia
que não concordava com tudo aquilo e que Deus faria a justiça dele, que não
precisava a família fazer nada.
11
Todos os nomes próprios aqui relatados são fictícios.
O episódio da briga fora acompanhado por parentes, vizinhos, pela polícia
militar, ronda do quarteirão, e em seguida Marina fora encaminhada ao
Hospital.
Perceba-se que a delegacia da mulher ou a ESF do bairro não aparecem na
fala de nenhuma das grávidas como destinos possíveis para o(a)s
envolvidos(as).
Iniciado o atendimento médico na unidade, todos mudaram de assunto, como
se, enfim, houvesse se iniciada a ação que vieram realizar ali: o atendimento
médico de prevenção12.
Em quase um ano de presença nas ESFs em Crato, Iguatu e Juazeiro do Norte
em nenhuma ocasião nossa equipe de pesquisadores presenciou qualquer
demanda que envolvesse violência doméstica. Também não foi relatada
qualquer investigação ativa por parte dos profissionais da unidade de
situações, demandas em relação a violência.
Schraiber et alli (2000)13 chama a atenção para a potencialidade dos
programas de saúde no acolhimento de queixas no nível primário e suporte
Inter setorial às necessidades das mulheres, de saúde e de melhores
qualidades de vida14.
O relato acima nos parece particularmente significativo por distinguir demandas
em torno do bem estar das grávidas e bebês e relatos sobre cotidiano, valores,
morais presentes no bairro, com evidente priorização da equipe pela demanda
anátomo-fisiológica.
Um fator, no entanto, demonstra formas diferentes de narrar a violência nos
pólos organizadores centro- periferia. Se nas unidades do São Miguel e São
Sebastião, não há demanda espontânea, e a ação dos profissionais é, no
máximo, sugerir a denúncia junto as DEAMs locais, nos bairros Vila Neuma;
Vila Sônia e Batateira, periferias de Iguatu e Crato, a fala sobre violência é
12
SANTOS (2006) chama a atenção para a obsessão das ESFs pelo acompanhamento pré-natal e do primeiro ano dos bebês. De acordo com a autora, em nome da diminuição de óbitos de recém-nascidos, todas as outras ações e interpretações sobre a vida em comunidade, seus limites e valores são esquecidos, ou interpretados a partir da polarização entre as figuras da “mãe boa” ou “mãe desleixada”. 13
SCHRAIBER, L.B. et alli. A violência contra mulheres: demandas espontâneas e busca ativa em unidade básica de saúde. Revista Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 9, n.1-2, p. 3-15, 2000. 14
Como chama a atenção SCHRAIBER et ali (2000, p. 04):” Acolher demandas e propiciar assistência é parte dos direitos em saúde, embora os serviços não estejam voltados para tal e ocorra pouca detecção de casos.”
marcada pela ideia de risco para a equipe. Os profissionais, os pesquisadores
estariam todos em risco por estarem em um campo de contágio.
Assim, Lucas Palmeira, bolsista da pesquisa e acadêmico de direito foi
aconselhado a nunca sair do prédio da UBS, não trabalhar nenhuma forma
preventiva contra a violência ou uso de drogas, jamais falar que cursava Direito
ou entrar em contato verbal com nenhum paciente da unidade.
A permanência no prédio da UBS minimizaria o risco que estaria correndo por
estar nessa área. Localizada na avenida principal que dá acesso ao centro da
cidade, o prédio da UBS materializava uma relação limite entre “Nós” e “Eles”.
Os profissionais da equipe, médico, enfermeira e auxiliares não saem do
prédio, não realizam qualquer campanha de prevenção contra violência ou
drogas, já que “os traficantes não gostam de ser incomodados”. As campanhas
de vacinação são realizadas pelas ACS e o bairro atendido chamado como “ai
pra dentro”.
A tensão vivida pelos profissionais como risco e compreendida como natural
para os moradores “lá de dentro” ganha seu relato alegórico15 no caso
exemplar da expulsão de um médico da unidade pelos traficantes locais.
Segundo a enfermeira responsável pela unidade, um médico membro da
equipe fez um diagnóstico de uma adolescente constatando que ela tinha sido
abusada sexualmente. A avó, que acompanhava a menor até a unidade,
informou ao agressor o laudo do médico. O sujeito, envolvido com o tráfico no
bairro, “mandou avisar que o médico deveria deixar a unidade”. Segundo a
enfermeira, o profissional fora transferido imediatamente e jamais retornou
àquela unidade.
Nesse mesmo prédio, outra UBS funciona, com horários e equipes distintas. Ao
contrário do relatado pela equipe que abrange o bairro Vila Neuma, essa outra
equipe não impõe dificuldades para a permanência da equipe, devendo
futuramente o trabalho de campo evoluir para visitas domiciliares
acompanhando as ACSs.
Os dados expostos até o presente momento serão suficientes para expressar
algumas reflexões sobre os relatos de violência na ESFs.
15
CLIFFORD, James. A experiência etnográfica: Antropologia e literatura no século XX. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002.
Tal como relatada na literatura (SCHRAIBER et ali, 1999; SCHRAIBER e
OLIVEIRA, 2000; SANTOS, 2006 e SCOTT, 200516), a ESF possui dificuldades
de superar a ênfase no corpo individual, portador de problemas de saúde. Se a
presença contínua de profissionais de saúde junto às comunidades parece ter
facilitado a vacinação, a distribuição de remédios e a diminuição de índices de
mortalidade infantil, entre outros, o sucesso da estratégia é bastante relativo
quando se passar a avaliar a percepção das demandas de comunidade quanto
a qualidade de vida e busca ativa de indícios e demandas não expressos
claramente pelos(as) usuários(as). A prevenção à violência e a notificação de
casos de violência de gênero, encontrariam-se nesse segundo bloco de
demandas.
Retomando a ideia de mediação nas relações complexas de poder que
caracterizam as margens do Estado, se a posição de contato com ideais
contemporâneos de saúde, bem estar e equidade da equipe entram em contato
tensões desafiadoras nas margens desses ideais, aparentemente a equipe
parece identificar-se exclusivamente com o Estado, fazendo de sua presença
uma incorporação desse, inclusive na estigmatização da violência nos bairros
periféricos como dado próprio e inelutável.
Ao se comparar os profissionais das equipes, pode-se perceber que suas
posições são frutos de diferentes formas de identificação com o estado a partir
de grupos de referência distintos: vínculos e hierarquias profissionais, ,
natureza do vínculo empregatício, nacionalidade, experiência profissional, entre
outros.
Entre as possibilidades de relatar informalmente casos de violência não
notificadas ocorridas a terceiros, desconsiderar a existência da violência em
suas áreas de atuação ou sentir-se em risco pela incorporação inconsciente do
Estado em áreas de risco, parece-nos que a identificação majoritária se dá com
o Estado e não com suas contradições e tensões nas margens, o que
possivelmente potencializaria o contágio com o outro e a sensibilidade às suas
demandas e questões.
16
SCOTT, Parry. Gênero, família e comunidades: observações e aportes teóricos sobre o programa saúde da família. In: VILELA, Wilza; MONTEIRO, Simone. Gênero e saúde: Programa Saúde da Família em questão. São Paulo: Arbeit fator, 2005. P. 75-99.