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Escaravelho de Ouro e outros Contos

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MANUSCRITOENCONTRADONUMA

GARRAFA

Quin’aplusqu’unmomentàvivreN’aplusrienàdissimuler.

Quinault–Atys[1]

De minha terra e de minha família tenho pouco a dizer. Maus costumes e opassar dos anos me afastaram de uma e me alienaram da outra. A riquezahereditária proporcionou-me uma educação fora do comum, e um modo depensar contemplativo habilitou-me a sistematizar o repertório que o estudoprecoce armazenara com muita diligência. Mais do que todas as coisas, osmoralistas alemães deram-me grande deleite; não devido a alguma admiraçãodesavisada por sua loucura eloquente, mas pela naturalidade com que meusrígidos hábitos de pensamento permitiram-me detectar suas falsidades. Fuimuitas vezes repreendido devido à aridez de meu gênio; uma deficiência deimaginação foi-me imputada como um crime; e o pirronismo das minhasopiniões me fez sempre notório. De fato, um forte apego à filosofia naturalmatizouminhamente,receio,comumerromuitocomumnestestempos–refiro-me ao hábito de atribuir acontecimentos, mesmo os menos suscetíveis a taisatribuições, aos princípios dessa ciência. Em síntese, pessoa nenhuma poderiasermenospropensadoqueeuasedeixarlevarparalongedasseverasfronteirasda verdade pelos ignes fatui[2] da superstição. Julguei apropriado fazer estaintrodução por temer que a incrível história que tenho para contar possa serconsiderada antes o desvario de uma imaginação rude do que a experiênciaconcretadeumamenteparaaqualosdevaneiosdafantasiaeramletramortaenulidade.

Depois de muitos anos viajando pelo estrangeiro, embarquei, no ano de18..., no porto de Batávia, na rica e populosa ilha de Java, numa viagem aoarquipélago de Sonda. Viajei como passageiro – não tendo outra motivação

senão uma espécie de desassossego nervoso que me assombrava como umdemônio.

Nossa embarcação era umbelonaviode cercadequatrocentas toneladas,firmado em cobre e construído em Bombaim com teca de Malabar. Estavacarregadocomalgodãoemramaeóleo,dasilhasLaquedivas.Tambémtínhamosabordofibradecoco,açúcarmascavo,manteigalíquida,cocosealgumascaixasde ópio. O armazenamento fora feito de modo canhestro, e por isso o navioadernava.

Partimoscomummerosoprodeventoepormuitosdiaspermanecemosaolongo da costa oriental de Java, sem nenhum incidente que quebrasse amonotonia de nosso avanço, nada que não fosse um encontro ocasional comalgunspequenosbarcosdoarquipélagoparaoqualnosdirigíamos.

Num fimde tarde,debruçadonoparapeitodapopa,observeiumanuvemisolada,muitopeculiar,anoroeste.Elaeraformidável,tantoporsuacorquantopor ser a primeira que víamos desde que saíramos deBatávia.Olhei para elacomamaioratençãoatéopôrdosol,quandoelaseespalhoudeumasóvezaleste e oeste, cingindo o horizonte com uma estreita faixa de vapor, com aaparência de uma longa linha baixa de praia.Minha atenção foi logo a seguiratraídapelaapariçãoavermelhadada luaepeloaspectopitorescodomar.Esteúltimo estava passando por uma rápida transformação, e a água parecia maistransparentedoqueonormal.Emboraeupudesseenxergarcomclarezaofundo,verifiquei,lançandoasonda,queestávamosnumaprofundidadedetrintametros.Então o ar se tornou intoleravelmente quente, carregado de exalações espiraissemelhantes às que emanamde ferro aquecido.Àmedida que a noite caía, osmenoressoprosdeventoseesgotavam,eeraimpossívelconceberumacalmariamaiordoqueaquela.Achamadeumavelaqueimavanapopa,semapresentarnemomaisimperceptívelmovimento,eumlongofiodecabelo,sustentadocomdedão e indicador, pendia sem que houvesse a menor possibilidade dedetectarmos uma vibração. Entretanto, o capitão dizia não perceber nenhumaindicaçãodeperigo,e,comoestávamossendolevadospelacorrentediretamentepara a costa, ele ordenou que as velas fossem recolhidas e que se lançasseâncora.Nenhumvigia foidesignado,ea tripulação,constituídanamaioriapormalaios,ficoudescansandoàvontadenoconvés.Desciàscabines–nãosemumpalpável pressentimento de infortúnio. De fato, todos aqueles fenômenos meautorizavam a temer a chegada de um simum.[3] Falei de meus medos aocapitão;maselenãodeuatençãoaoqueeudisse,eseafastousemsequermedarresposta.Meudesconforto, no entanto, nãomedeixavadormir e, por volta da

meia-noite,subiparaoconvés.Assimqueboteiopénoúltimodegraudaescadadotombadilho,sobressaltei-mecomumruídoalto,umaespéciedezumbir,comoo som da rápida rotação de uma roda de moinho, e antes que eu pudessedescobrir seu significado, senti que o navio estremecia desde o centro. Nomomentoseguinte,umavastidãodeespumanosarremessouemadernamentoe,cobrindo-nosporinteiro,varreuoconvésdeproaapopa.

A extrema fúria da rajada provou-se, em grande medida, a salvação donavio. Embora completamente inundado, ele, no entanto, como osmastros sequebraramecaíramnomar,pôdeseerguercomesforçodepoisdeumminutoe,vacilandoumpouconaimensapressãodatempestade,porfimaprumou-se.

É impossível dizer que espécie demilagreme salvou damorte violenta.Estupefato pelo choque da água, encontrei-me, quando recobrei os sentidos,prensado entre o cadaste e o leme. Com grande dificuldade, levantei-me e,olhando em volta, atordoado, fui inicialmente assaltado pela ideia de queestivéssemos em área de rebentação, tão aterrorizante e avesso à mais loucaimaginação era o redemoinho de oceano montanhoso e espumante no qualestávamosengolfados.Depoisdeumtempo,ouviavozdeumvelhosueco,queembarcara no momento em que deixamos o porto. Chamei-o com todas asforças,eeleemseguidaseaproximou,cambaleandoemdireçãoàpopa.Logodescobrimos que éramos os únicos sobreviventes do acidente. Todos os queestavamnoconvés,excetonós,haviamsidovarridosparaomar;ocapitãoeosimediatos deviam ter perecido enquanto dormiam, pois as cabines estavamsubmersas em água. Sem assistência, não tínhamos como fazer muito pelasegurança do navio, e nossos esforços foram, num primeiro momento,paralisados pela expectativa temporária de que fôssemos afundar. O cabo daâncora,éclaro,rebentaracomoumbarbanteaoprimeirosoprodofuracão,enãofosseissoteríamosidoapiquenamesmahora.Estávamossendoarrastadospelomarnumavelocidadeassustadora,eaáguaelevavaondasíngremessobrenós.Aestrutura da popa estava demasiado danificada e, em quase todos os aspectos,havíamos sofrido prejuízos consideráveis; mas, para nossa máxima alegria,verificamosqueasbombasdeáguaestavamdesobstruídasequeolastroaindapodianosmanterestáveis.Oataquemaisfuriosodofuracãohaviapassado,ejánão víamos tanto perigo na violência do vento; mas aguardávamos a totalcessação com desânimo, acreditando seriamente que, em condições tãoavariadas,fatalmentepereceríamosnatremendaondulaçãoqueseseguiria.Masessa justa apreensão não parecia ter grandes probabilidades de se concretizar.Durante cinco dias e cinco noites – período no qual nossa subsistência foi

garantida apenas por uma pequena quantidade de açúcar mascavo, resgatadocom grande dificuldade no castelo de proa – o casco voou pelo mar numavelocidadequedesafiavaacompreensão,tocadoporsucessivasrajadasdeventoque,mesmosemseigualaràviolênciainicialdosimum,erammaisterríveisquequalquertempestadequeeujáhaviatestemunhado.Nossorumo,nosprimeirosquatrodias,erasudesteparasul;eprovavelmentenavegamospelacostadaNovaHolanda.[4] No quinto dia o frio se tornou extremo, embora o vento tivesseviradoumpontoparaonorte.O sol nasceu comumdoentiobrilho amarelo esubiuapenasunspoucosgrausacimadohorizonte–sememitirluzdecente.Nãose viam nuvens, mas o vento ganhava força e soprava com uma fúriaespasmódica e instável. Por volta do meio-dia, segundo a estimativa quefizéramosdohorário,nossaatençãofoimaisumavezatraídapelaapariçãodosol.Elenãoemitia luzpropriamentedita,masumbrilhoembotadoe sombrio,como se seus raios estivessem polarizados. Pouco antes de afundar no martúrgido, suas chamas centrais se apagaram de súbito, como que extintas poralgumpoderinexplicável.Eleeraapenasumaroturvoeprateadoquandosumiunooceanoinsondável.

Esperamosemvãopelachegadadosextodia–essediaaindanãochegoupara mim –; para o sueco, não chegou e não chegará. Dali em diante fomosenvolvidosporumaescuridãotãonegraquenãopodíamosenxergarumobjetoqueestivesseaquinzemetrosdonavio.Anoiteeternanosabraçavasemparar,enão havia o alívio do mar brilhante ao qual tínhamos nos acostumado nostrópicos. Também observamos que, embora a tempestade continuasse a nosassolar com violência incessante, não ocorria mais a usual aparição derebentaçãoouespumaquenosacompanharaatéali.Tudoemvoltaerahorroretrevaespessaeumopressivoenegrodesertodeébano.Terroressupersticiososforamimpregnandoaospoucosoespíritodovelhosueco,eminhaprópriaalmaficoutomadadeumassombrosilencioso.Desistimosdetodososcuidadoscomonavio,maisdoqueinúteis,e,segurando-nostãobemquantopossívelnotocodomastrodemezena,ficamosolhandocomamarguraaquelemundodeoceano.Não tínhamos como calcular o tempo nem como adivinhar nossa localização.Tínhamos,noentanto,plenaconsciênciadequeavançáramosmaisparaosuldoque qualquer outro navegador, e nos causou grande perplexidade que nãotopássemoscomosusuaisobstáculosdegelo.Enquantoisso,cadainstantenosparecia ser o último – cada vagalhão montanhoso se precipitava para nosesmagar.Aondulaçãosuperavatudoqueeujáhaviaimaginado,eéummilagreque não tenhamos sido imediatamente sepultados por ela. Meu companheiro

faloudalevezadenossacargaedasexcelentesqualidadesdonossonavio;maseu não conseguia deixar de pensar na desesperança da própria esperança, eestava preparado, com tristeza, para uma morte que, segundo pensei, nadapoderiaevitar,equeviriaemquestãodeminutos,àmedidaque,acadametroqueavançávamos,aondulaçãonegradoestupendomarsetornavamaislúgubreepavorosa.Porvezesofegávamos,semar,numaaltitudedevoodealbatroz–por vezes ficávamos tontos comavelocidadedenossadescidapara dentrodeuminfernoaquático,ondeoarseestagnavaenenhumsomperturbavaosonodokraken.[5]

Estávamosnofundodeumdessesabismosquandoumgritointensodomeucompanheiroirrompeumedonhamentenanoite.

– Veja! Veja! – ele disse, berrando em meus ouvidos. – Deus todo-poderoso!Veja!Veja!

Enquanto ele falava, tomei consciência do brilho de uma luz vermelha,embotada e sombria, que jorrava pelas paredes do vasto precipício em quecaíramos e iluminava em espasmos o nosso convés. Olhando para cima,contempleiumespetáculoquecongelouosangueemminhasveias.Aumaalturaassustadora,diretamenteacimadenós,ebemnamargemdoprecipício,estavasuspensoumnaviogigantesco,deumasquatromiltoneladas.Emboraestivesseno topodeumaondacujaalturadevia sercemvezesmaiordoquea sua, seutamanhoaparente,mesmoassim,excediaodequalquernaviodeguerraoudaCompanhiadasÍndias.Seuenormecascoeradeumpretosujoeprofundo,eeradesprovidodosentalheshabituaisdeumnavio.Umaúnicafileiradecanhõesdebronze se projetava das portinholas abertas, que refletiam, nas superfíciespolidas,aschamasdeinumeráveislanternasdebatalha,quebalançavamparaláeparacánocordame.Masoquemaisnosencheudehorroreperplexidadefoique ele se sustentava, com todoopanonosmastros, na superfície deummarsobrenatural, nas garras de um furacão incontornável. Quando começamos aavistá-lo,sóvíamosaproa,enquantoelesubiadevagaredeixavaatrásdesiumabismo obscuro e horrível. Durante ummomento de intenso terror, ele parousobreovertiginosopináculo,comoquecontemplandosuaprópriasublimidade;entãoestremeceuevacilou–ecaiu.

Nesse instante, passei a sentir em meu espírito um autocontroleinexplicável.Cambaleando,recueiparaapopaomaisquepudeeaguardeisemmedo a ruína que esmagaria tudo. Nossa própria embarcação estava agoradesistindo de lutar e afundava de cabeça no oceano.O choque daquelamassadescendenteaatingiu,assim,naporçãodesuaestruturaquejáestavasubmersa,

eoresultadoinevitávelfoiquefuiarremessado,comirresistívelviolência,atéocordamedonavioestranho.

Quandocaínele,onaviogirou,viroudebordoeprosseguiu;àconfusãoquesedeuatribuío fatodeminhapresençanão ter sidopercebidapela tripulação.Com pouca dificuldade, caminhei, despercebido, até a escotilha principal, queestavaparcialmenteaberta,elogotiveoportunidadedemeescondernoporãodecarga.Nãoseibemcomoexplicarporque fiz isso.Umsentimento indefinido,umtemorquesentiquandoolheipelaprimeiravezparaosmarinheirosdonavio,foi,quemsabe,oquemefezprocurarrefúgio.Eunãoestavadispostoaconfiarnumaespéciedegenteque,aomeuolharapressado,inspiravatantasimpressõesvagas de novidade, de dúvida e de apreensão. Julguei que omais apropriado,portanto, era arranjar um esconderijo no porão de carga. Para tanto, arranqueiumas poucas pranchas do chão, de modo que pudesse obter um abrigoconvenienteentreasenormesvigasdonavio.

Eumalacabaradecompletarmeutrabalhoquandoouvipassosnoporãoemeviobrigadoafazerusodoabrigo.Umhomempassoupormeuesconderijocom um andar lento e irregular. Não consegui enxergar seu rosto, mas tiveoportunidade de observar sua aparência geral. Havia nela uma evidência deidadeavançadaedeenfermidade.Seusjoelhosvacilavamcomopesodosanos,e todaa figuradohomem tremiaemfunçãodo fardo.Elemurmuravapara si,num tombaixo e entrecortado, palavrasdeuma línguaque eunão entendia, etateou,numcanto,emmeioaummontedeinstrumentosestranhosemapasdenavegação deteriorados. Suasmaneiras eram umamistura bizarra de rabugicesenilcomasolenedignidadedeumdeus.Porfimelesubiuaoconvés,enãoovimais.

***

Umsentimento,paraoqualnãotenhonome,tomoupossedeminhaalma–uma sensação que não admite análise, para a qual as lições do passado sãoinadequadaseparaaqual,eutemo,nemmesmoafuturidadetraráachave.Paraumamenteconstituídacomoaminha,estaúltimaconsideraçãoéumadesgraça.Nuncaestarei–seiquenuncaestarei–satisfeitonoqueconcerneànaturezademinhasconcepções.E,contudo,nãoédeestranharqueessasconcepçõessejamindefinidas, visto que se originam de fontes tão completamente inéditas. Umnovosentimento–umanovaentidadefoiadicionadaaminhaalma.

***

Faz muito tempo que andei pela primeira vez pelo convés deste terrívelnavio,eosraiosdomeudestinoestão,creio,convergindoparaumfoco.Homensincompreensíveis! Afogados em meditações de um tipo que não consigocompreender,elespassampormimenãonotamminhapresença.Esconder-meépuro desatino de minha parte, pois estas pessoas não querem ver. Foi agoramesmoquepasseibemdiantedosolhosdoimediato;nãofoimuitotempoatrásquemeaventureiaentrarnacabineprivadadocapitãoedelátireiosmateriaiscomqueescrevoevenhoescrevendo.Detemposemtemposdareicontinuidadeaestediário.Éverdadequeeupossonãovirateroportunidadedetransmiti-loaomundo,masnãoabrireimãodetentar.Noúltimomomento,acondicionareiomanuscritonumagarrafa,elançareiagarrafaaomar.

***

Ocorreuumincidentequemeforneceunovospontosparameditação.Serátudoistoaoperaçãodeumacasodesgovernado?Eumeaventurarapeloconvéseme deitara, sem despertar nenhuma atenção, entre ummonte de enfrechates evelamevelho,nofundodoescaler.Cismandonasingularidadedomeudestino,pincelei distraidamente, comuma brocha de alcatrão, as extremidades de umavela leve,dobradacomcuidado,quevipertodemim,sobreumabarrica.Essavela está agora içada no navio, e as pinceladas impensadas formam a palavraDESCOBERTA.

Observei muito, nos últimos tempos, a estrutura do navio. Embora bemarmado, ele não é, creio, um navio de guerra. O cordame, a construção, osequipamentosemgeral,tudorefutaumasuposiçãodessetipo.Oqueelenãoé,possopercebercomfacilidade;oqueeleé,temoquesejaimpossíveldizer.Nãosei como pode ser, mas, quando analiso seu estranho modelo e sua singularmastreação, seu vasto tamanho e seu enorme conjunto de velas, sua proabastantesimplesesuapopaantiquada,disparaocasionalmentepelomeucérebrouma sensação de familiaridade, e, a essas indistintas sombras de recordação,mistura-sesempreumamemória inexplicáveldevelhascrônicasestrangeirasedeerasmuitoremotas.

***

Tenhoreparadonomadeiramedestanau.Elaéfeitadeummaterialqueme

é estranho. Há uma característica peculiar namadeira queme surpreende porparecertorná-laimprópriaparaopropósitoaoqualfoiaplicada.Refiro-measuaextremaporosidade, considerada independentementede suacondiçãodepoderser devorada por vermes, o que é uma consequência da navegação por estesmares, e à parte da podridão que chega com o tempo. Parecerá, talvez, umaobservaçãoalgoextravagante,masessamadeirateriatodasascaracterísticasdocarvalho espanhol, se o carvalho espanhol pudesse se dilatar por meiosartificiais.

Lendoasentençaacima,umcuriosoaforismodeumnavegadorholandês,umvelhocalejadopelasintempéries,vemnahoraàminhacabeça:“Étãocerto”,ele tinha o costume de dizer, quando alguma dúvida era levantada acerca daveracidadedesuahistória,“comoécertoqueháummarondeopróprionavioaumentadevolume,comoocorpovivodomarinheiro”.

***

Cerca de uma hora atrás, tive a audácia deme introduzir num grupo detripulantes.Elesnãomederamatençãoe,emboraeumeparasseexatamentenomeio de todos eles, simplesmente não tomaram conhecimento da minhapresença, ao que pareceu.Como aquele que eu vira no porão, todos carregamcom eles as marcas de uma velhice encanecida. Seus joelhos tremiam porenfermidade; seus ombros se curvavam por decrepitude; suas peles enrugadasestalavamnovento;suasvozeserambaixas,trêmulaseentrecortadas;seusolhosreluziam com a reuma dos anos; e seus cabelos grisalhos ondeavam de umaforma horrível na tempestade. Em volta deles, em todos os cantos do convés,espalhavam-seinstrumentosmatemáticosdeconfiguraçãoesquisitaeobsoleta.

***

Mencionei, algum tempo atrás, o envergamento de uma vela leve. De láparacá,onavio,arrastadoatodapelovento,continuouseuaterrorizanteavançoparaosul,comtodasasvelasesfarrapadassendoutilizadas,todoopanolargadonosmastrosprincipais enosbotalósbaixose, a todomomento,balançandoasvergas do mastaréu no inferno de água mais apavorante que a mente de umhomem já pôde conceber. Acabei de sair do convés, onde me parece serimpossível ficar de pé, embora a tripulação não esteja passando por maioresinconvenientes.Éparamimomilagredosmilagresqueonossoenormecasco

não seja engolidodeuma sóvez e para sempre.Estamos condenados a pairarcontinuamente à beira da eternidade, sem nunca efetuar o mergulho final noabismo.Porvagalhõesmilvezesmaisestupendosdoquequalquerumqueeujátenha visto, planamos com a agilidade certeira de uma gaivota; e as águascolossaiselevamsuascabeçassobrenóscomodemôniosdasprofundezas,mascomodemôniosqueselimitamaameaçareestãoproibidosdedestruir.Inclino-me a atribuir nossas salvações frequentes à única causa natural que pode darcontadetalefeito.Suponhoqueonavioavançasobainfluênciadealgumafortecorrente,oudealgumaimpetuosaressaca.

***

Estivecomocapitãofrenteafrenteeemsuaprópriacabine–mas,comoeujáesperava,elenãomedeuatenção.Emboraemsuaaparêncianãohaja,paraumobservadorcasual,nadaquepossaindicarqueelesejamaisoumenoshumano,um sentimento de irreprimível reverência e temor semisturava à sensação deespanto comque eu o encarava. Sua altura é quase idêntica àminha: ele temcercadeummetroesetenta.Suacompleiçãofísicaécompactaebem-formada,nemrobustanemmuitofranzina.Maséasingularidadedaexpressãoquereinaemseu rosto, é a intensa, amaravilhosaeavibranteevidênciadevelhice, tãofunda, tão extremada, o que excita em meu espírito uma sensação – umsentimentoinefável.Suafronte,apesardepoucoenrugada,parecetrazerconsigoa estampa de uma miríade de anos. Seus cabelos grisalhos são registros dopassado,eseusolhos,aindamaiscinzentos,sãoassibilasdofuturo.Ochãodacabine estava abarrotado de in-fólios estranhos com fechos de ferro, deinstrumentos científicos deteriorados e de mapas obsoletos e há muitoesquecidos.Ocapitãotinhaacabeçaapoiadanasmãoseestudavaatentamente,comumolharvibrantee inquieto,umpapelque julguei serumaprocuraçãoeque,emtodocaso,traziaaassinaturadeummonarca.Elemurmuravaconsigo,emvozbaixa–comofaziaaquelemarinheiroquevinoporão–,algumassílabasrabugentasdeumalínguaestrangeira;eemboraeleestivessebemaomeulado,suavozpareciaadeumhomemqueestáaumquilômetrodedistância.

***

O navio e tudo nele estão imbuídos com o espírito da Antiguidade. Osmarinheirosdeslizampara lá e para cá como fantasmasde séculos enterrados;

seusolhostêmumaexpressãoansiosaeapreensiva;equandoseusvultoscruzamomeucaminho,naclaridadeagrestedaslanternasdebatalha,sintooquenuncasentiantes,emboraeutenhasidoumnegociantedeantiguidadesdurantetodaavida e tenha me embebido nas sombras das colunas caídas em Balbec, emTadmor e em Persépolis[6], até que minha própria alma se transformasse emruína.

***

Quando olho ao redor, sinto vergonha de minhas apreensões iniciais. Setremi diante da tempestade que nos acompanhou até aqui, não devo ficarhorrorizadodiantedaguerraentreventoeoceano,cujaideiaaspalavrastornadoe simum são triviais demais para transmitir? Tudo que há nas proximidadesimediatasdonavioéaescuridãodanoiteeternaeumcaosdeáguasemespuma;amaisoumenosumaléguaparacadaladodonavio,porém,podemservistos,demaneiraindistintaeaintervalos,estupendosbaluartesdegelo,queseerguemaperderdevistanocéudesolado,comosefossemasmuralhasdouniverso.

***

Comoimaginei,comprova-sequeonaviosegueumacorrente–seéquesepodenomearapropriadamenteassimumfluxoque,uivandoegritandopelogelobranco, troveja para o sul com a velocidade impetuosa e enérgica de umacatarata.

***

Conceber o horror de minhas sensações é, presumo, completamenteimpossível; e, no entanto, uma curiosidade de penetrar os mistérios desseslugareshorrendosprevaleceatémesmosobreomeudesespero,emereconciliacom o teormedonho damorte. É verdade que estamos voando na direção dealgumarevelaçãoemocionante–dealgumsegredoquenãopoderáserreveladojamais, cujadescobertanosdestruirá.Talvezessacorrentenos leveaopróprioPoloSul.Épreciso confessar queuma suposição comoessa, emprincípio tãobárbara,temtodasasprobabilidadesaseufavor.

***

Atripulaçãopercorreoconvéscompassostrêmuloseinquietos;masháemseussemblantesumaexpressãoqueémaisaavidezdaesperançadoqueaapatiadodesespero.

Enquanto isso, ovento ainda sopra emnossapopae, como temos todoopano domundo nosmastros, o navio às vezes flutua sem tocar as águas!Ah,horrordoshorrores!Ogeloderepenteseabreàdireitaeàesquerda,eestamosrodopiando vertiginosamente em imensos círculos concêntricos, girando emtornodeumgigantescoanfiteatro,cujasparedessãotãoaltasqueseperdemnaescuridãoenadistância.Maspoucotempomerestaráparaponderarsobreomeudestino!Oscírculossefechamcadavezmais,estamosmergulhandoloucamentenasgarrasdoredemoinho–eemmeioaumrugireurraretrovejardeoceanoedetempestade,onavioestáestremecendoe–meuDeus!–afundando!

Nota:O“Manuscritoencontradonumagarrafa”foipublicadooriginalmenteem 1831; e foi sómuitos anos depois que tomei conhecimento dosmapas deMercator,nosquaisooceanoérepresentadoprecipitando-se,porquatrobocas,paradentrodo(setentrional)GolfoPolar,paraserabsorvidopelasentranhasdaTerra; o próprioPolo é representadopor uma rochanegraque se eleva a umaalturaprodigiosa.

[1]DaóperatrágicaAtys(1676),dosfrancesesPhilippeQuinaulteJean-BaptisteLully:“Paraquemsórestaummomentodevida/Nãohámaisnadaadissimular”.(N.T.)[2]Fogos-fátuos.(N.T.)[3]O“ventovenenoso”,umventoviolentamentequenteeseco,carregadodeareia,quevemdosdesertosárabeseafricanos.(N.T.)[4]Austrália.(N.T.)[5]Monstromarinhonórdico.(N.T.)[6]CidadesdaAntiguidade.(N.T.)

OENCONTRO

Esperapormim!NãodeixareiDeteencontrarnovaleprofundo.

[Elegiasobreamortedesuamulher,porHenryKing,bispodeChichester][1]

Malfadadoemisteriosohomem!Aturdidonobrilhodatuaprópriaimaginaçãoeconsumido pelas chamas da tua própria juventude! Vislumbro de novo a tuaimagem!Maisumaveztuafiguraseergueudiantedemim!Não,ah,nãocomotu estás, perdido nas sombras do vale gelado, mas como deverias estar,dissipandoumavida de esplêndidameditaçãona cidadedas visões turvas, tuaprópriaVeneza–aquelaqueéumelísiodomar,apreferidadasestrelas,aquelaem que as amplas janelas dos palácios renascentistas contemplam, comexpressão absorta e amarga, os segredos das águas silenciosas. Sim! Repito:como deverias estar. É certo que existem outros mundos além deste, outrasideiasalémdasideiasdamaioria,outrasespeculaçõesalémdasespeculaçõesdosofista.Quempoderáquestionar,então, tuaconduta?Quempoderá tecensurarpor tuas horas visionárias, ou denunciar tuas ocupações como desperdício devida, quando elas eram somente a superabundância das tuas energiasinesgotáveis?

Foi em Veneza, embaixo da arcada coberta que chamam de Ponte diSospiri,queencontreipelaterceiraouquartavezapessoadequemfalo.Écomlembranças confusas que rememoro as circunstâncias do encontro. Porémrecordo – ah!, como poderia esquecer? – a meia-noite escura, a Ponte dosSuspiros,abelezadamulher,ogêniodoamorquepercorriaoestreitocanalparacimaeparabaixo.

Eraumanoitedeescuridão incomum.OgranderelógiodaPiazzasoaraaquintahoradanoiteitaliana.OlargodoCampanileestavadesertoesilencioso,eas luzesnoPalácioDucalseextinguiamrapidamente.DaPiazzetta,euvoltavaparacasapeloGrandCanal.Quandominhagôndolaalcançouaentradadocanal

deSanMarco,umavozfemininavindadeseusrecessosirrompeudesúbitonanoite, num grito selvagem, histérico, continuado. Sobressaltado com o grito,levantei-me, e o gondoleiro, deixando escapar seu único remo, perdeu-o nonegrume da água; não havia nenhuma possibilidade de recuperá-lo, portantoficamos ao sabor da corrente, que ali empurra do canal maior para o menor.Comoumenormecondordeplumagemnegra,flutuamosaospoucosnadireçãodaPontedosSuspiros.Derepente,milharesdetochaslampejaramnasjanelasenasescadariasdoPalácioDucaletransformaramatrevaespessanumdialívidoesobrenatural.

Umacriançaescorregaradosbraçosdaprópriamãee,deumajanelaaltadoimponente prédio, caíra no profundo e turvo canal. As águas tranquilas sefecharam placidamente por sobre a vítima; e, embora minha gôndola fosse aúnicaquesevia,muitosmergulhadoresaudazesjáestavamnaágua,procurandoemvãopelasuperfície,buscandootesouroque,aideles,sópodiaserencontradono fundo do abismo. Na entrada do palácio, sobre grandes lajes de mármorenegro,algunspassosacimadaágua,estavaparadaumafiguraquequementãoviu não pôde esquecer nunca mais. Era a Marquesa Afrodite, a adoração deVeneza,amaisalegreentreosalegres,amaisformosaondetodaseramlindas–mas era a jovem esposa do velho e intrigante Mentoni e mãe daquela belacriança, seu primeiro e único filho, que agora, no fundo das águas sombrias,pensava,decoraçãoamargo,nasdocescaríciasmaternaseesgotavasuasúltimasforçasesuapequenavidatentandochamaramãe.

Ela estava parada e sozinha. Seus pezinhos descalços, prateados ecintilantes,rebrilhavamnomármorenegro.Seuscabelos,aindanãodesfeitosporcompletodeumaarrumaçãodebaile,cacheavamcomojacinto,mergulhadosemdiamantes, em torno de sua cabeça clássica. Um tecido drapejado, diáfano,brancocomoneve,pareciaseraúnicavesteacobrirsuasformasdelicadas;masoardameia-noitedeverãoestavaquente,sinistroesilencioso,enãohaviaumúnicomovimentonaquelecorpodeestátua,nãohaviamovimentonemmesmonas dobras de seu vestido vaporoso, imóvel como o mármore da estátua deNíobe.[2] Porém, como era estranho! Seus grandes olhos resplandecentes nãoestavamvoltadosparabaixo,paraacovaqueabrigavasuaesperançaluminosa–estavam fixados numa direção totalmente diversa! A prisão da SereníssimaRepública é, creio, o edifício mais majestoso de toda Veneza – mas por quemotivoaqueladamacravavaneleoseuolhar,quando,abaixodela,seuprópriofilhojaziaafogado?Esseumbrosoelúgubreprédioseelevavabememfrenteàjanela de seu quarto... O que poderia haver, então, em suas sombras, em sua

arquitetura, em suas cornijas solenes e cobertas de hera, que a Marchesa diMentoni não tivesse vistomil vezes antes? Tolice!Quem não lembra que emmomentos como esse o nosso olho, comoumespelho quebrado,multiplica asimagensdeseupesarevê,eminúmeros lugares longínquos,adorqueestáaoalcancedamão?

Muitos passos acima da marquesa, na altura do portão que dava para ocanal, via-se, em traje de gala, a figura de sátiro deMentoni em pessoa. Eleestava ocupado, ao acaso, em arranhar um violão, e parecia mortalmenteentediado por ter de dar orientações para o resgate de seu filho. Chocado eestupefato, não tive forças para sair da posição ereta e petrificada em quemeencontravadesdequeouviraogrito.Pálidoerígidoemminhagôndolafunérea,flutuando entre o grupo atarefado, devo ter apresentado àqueles homens umavisãofantasmagóricaeagourenta.

Osesforçosnãoderamemnada.Muitosdosnadadoresmais enérgicos jánãomostravamomesmoempenhoeserendiamaumdesânimopesado.Parecianão restar esperança para o filho (emenos ainda para amãe!).Mas então, dointerior daquele prédio umbroso, já mencionado como parte da prisão daSereníssimaRepública,defronteaoparapeitodamarquesa,umvultoenvolvidonummantosaiuparaaluze,depoisdeumapausaàbeiradadescidavertiginosa,mergulhoudecabeçanocanal.Instantesdepois,comacriançavivaerespirandoemseusbraços, ele já estava ao ladodamarquesa sobre as lajesdemármore.Seumanto,encharcadoepesadodeágua,foidesabotoadoecaiudobradoaseuspés, descobrindo assim, aos olhos maravilhados dos espectadores, a figuragraciosa de um homemmuito jovem, cujo nome reverberava então na maiorpartedaEuropa.

Osalvadornãodissenada.Masamarquesa!Elaagoravaitomarseufilhonas mãos, vai apertá-lo de encontro ao coração, vai se grudar ao corpopequenino e cobri-lo de carícias. Não, ai dela!Outros braços o tomaram dasmãos do estranho – outros braços o levaram para longe e o carregaram,despercebidos,paradentrodopalácio!Eamarquesa!Seuslábios–seuslindoslábios tremem.As lágrimas seacumulamemseusolhos–olhosque, comoasfolhasdeacantoparaPlínio[3],são“maciosequaselíquidos”.Sim!Lágrimasseacumulamemseusolhos.Evejam!Ocorpodelavibradesdeaalma,eaestátuaganhouvida!Apalidezdosemblantedemármore,aintumescênciadobustodemármore,apurezaabsolutadospésdemármore,desúbitotudosetingedeumruborincontrolável;eumligeiroarrepioestremecesuasformasdelicadas,comoasuavebrisanapolitanaquetocaoslíriosprateadosdarelva.

Porquedeveriacoraraqueladama?Para talperguntanãoháresposta–anãoserque,tendoabandonadoaprivacidadedeseuboudoirnapressaansiosaeaterrorizada de seu coração de mãe, ela tivesse deixado de proteger seuspezinhos com chinelos e tivesse esquecido completamente de cobrir de formadevidaseusombrosvenezianos.Queoutrarazãopossívelpodiahaverparaqueela corasse assim? Para aquele olhar selvagem e atraente? Para o tumultoincomum do busto arfante? Para a compressão convulsa damão que treme, amãoqueacidentalmentecaiu,enquantoMentonisedirigiaparaopalácio,sobrea mão do estranho? Que razão podia haver para o tom baixo – para o tomsingularmente baixo daquelas palavras sem sentido que a dama proferiu àspressasaolhedaradeus?

–Conquistaste–eladisseaoestranho,ouentãoosmurmúriosdaáguameenganaram –, conquistaste... uma hora depois do nascer do sol... vamos nosencontrar...Queassimseja!

***

Otumultocessara,asluzesseapagaramnopalácioeoestranho,queagoraeureconhecia,estavasósobreaslajes.Eletremianumacomoçãoinconcebível,eseusolhosprocuravamporumagôndola.Omínimoqueeupodiafazereralheofereceros serviçosdaminha; ele aceitou a cortesia.Arranjamosum remonaentradadopalácioeseguimosjuntosparasuacasa,eelerapidamenterecuperavao domínio de si, falando, em termos afetuosos, de como nos conhecemos econvivemosumpouconopassado.

Existemassuntos sobreosquaismedáprazer serminucioso.A figuradonosso estranho – vou chamá-lo assim mesmo, ele era ainda um estranho nomundointeiro–,afiguradonossoestranhoéumdessesassuntos.Emaltura,eledeviaserantesmenordoquemaiorqueamédia–sebemqueemmomentosdeintensa paixão seu corpo se expandisse, desmentindo minha avaliação. AsimetrialeveequasemagradeseutalheseprestavamaisàquelaperipéciaqueelerealizaranaPontedosSuspirosdoqueàforçahercúleaque,comosesabia,eleempregavasemesforçoemocasiõesdegrandeperigoeemergência.Comabocaeoqueixodeumadivindade,comolhosindômitos,plenos,líquidos,cujassombrasvariavamdocastanhopuroaoazevicheintensoebrilhante,ecomumaprofusão de cabelos negros e cacheados entre os quais surgia em intervalos omarfimluminosodeumatestadelarguraincomum,suasfeiçõespossuíamumaharmonia clássica que só vi, talvez, nas feições de mármore do Imperador

Cômodo. Seu semblante era, no entanto, daqueles que todos já viram a certaaltura da vida, e nuncamais voltaram a ver.Não havia nele nada de peculiar,nenhuma expressão predominante que se fixasse na lembrança; um semblantepara ser visto e aomesmo tempo esquecido –mas esquecido comumvago eincessante desejo de vê-lo de novo na memória. Não que o espírito de cadapaixãofugazfalhasse,sempre,emdeixarsuaimagemnoespelhodaquelerosto–masoespelho,sendoespelho,nãoretinhanenhumvestígiodapaixão,quandoapaixãopartia.

Quandoodeixei,nanoitedenossaaventura,elemepediu,deummodoquepareceu insistente, que o visitassemuito cedo na manhã seguinte. Assim queamanheceu, portanto, eu já me encontrava em seu palazzo, uma daquelasenormesestruturasdepompasombriamas fantásticaque seelevamacimadaságuas do Grand Canal, nos arredores do Rialto. Fui acompanhado por umaamplaescadaemcaracol,revestidademosaicos,atéumaposentocujoesplendorinigualávelirrompiapelaportaabertanumaverdadeiraexplosãodeluz,efiqueicegoetontodiantedesuasuntuosidade.

Sabia que omeu conhecido era abastado. Rumores davam conta de suaspossesemrelatosquechegueiaconsiderarridículoseexagerados.Quandoolheiem volta, porém, não consegui crer que alguma riqueza pessoal, em toda aEuropa,pudessesuplantaramagnificênciaprincipescaquefulgiaeresplandeciaemtornodemim.

Embora, como afirmei, o sol já tivesse despontado, o quarto permaneciailuminadoebrilhante.Poressacircunstância,epeloardeexaustãoquesevianosemblante do meu amigo, julguei que ele passara a noite toda em claro. Naarquitetura e nos adornos do aposento, o propósito evidente era deslumbrar eassombrar. Na decoração, pouca atenção fora dedicada ao que chamamostecnicamentedeharmonia,ouàsconvençõesdanacionalidade.Oolharpulavade um objeto para outro e não se detinha em nada – nem nos grotescos dospintoresgregos,nemnosexemplaresdosmelhorestemposdaesculturaitaliana,nem nos enormes entalhes do Egito inculto. Em todos os cantos, tapeçariasopulentas tremiam na vibração de umamúsica baixa emelancólica que vinhanãosesabiadeonde.Ossentidoseram invadidosporumamisturaconfusadeperfumes, que exalavam de estranhos incensórios retorcidos, junto commúltiplas línguas bruxuleantes de um fogo esmeralda e violeta. Os primeirosraiosdo sol afluíramparaoquartopelas janelas, cadaumadelas formadaporumapeçainteiriçadevidrocarmesim.Indoevindoemmilreflexos,escapandode cortinas que desciam de cornijas como cataratas de prata derretida, esses

feixesgloriososmesclavam-seaospoucoscoma luzartificialedespejavam-seemcamadassuavessobreumluxuosocarpetedetecidochinês,aquoso,dourado.

–Ha, ha, ha!Ha, ha, ha! – riu o proprietário, oferecendo-meumassentoquando entrei no quarto e jogando-se de costas, ao comprido, sobre umaotomana. –Vejo – ele disse, percebendo que eu não conseguiame adaptar deprontoaodecorodeumaacolhida tãosingular–,vejoqueestáespantadocommeuquarto,comminhasestátuas,commeusquadros,comminhasconcepçõesparticulares em arquitetura e tapeçaria!Absolutamente embriagado, hein, comminhamagnificência?Masmeperdoe,meucaro–aquiseutomdevozbaixouatéumverdadeiroespíritodecordialidade–,peçoperdãopelarisadainóspita.Osenhor parecia espantado ao extremo. Além disso, certas coisas são tãocompletamente ridículas que diante delas um homem só pode rir, ou entãomorre.Morrerrindo,eisamortemaisgloriosaentretodasasmortesgloriosas!SirThomasMore(quehomemdistintoeraSirThomasMore),SirThomasMoremorreurindo[4],osenhorlembra?EnasAbsurdidadesdeRavisiusTextor[5]háuma longa lista de personagens que tiveram omesmo esplêndido fim.Mas osenhor sabe – continuou, pensativo – que em Esparta (na atual cidade dePalaiochora),emEsparta,aoestedacidadela,numcaosderuínasindistintas,háumaespécie depedestal noqual aindapodem ser lidas as letrasΛΑΣΜ?ElassemdúvidafazempartedapalavraΓΕΛΑΣΜΑ.[6]Ora,emEspartaexistemmiltemplos e santuários paramil divindades diferentes. É extremamente estranhoqueoaltardoRisotenhasobrevividoatodososoutros!Masnopresentecaso–prosseguiu, com uma singular alteração na voz e nas maneiras – não tenhodireitodemedivertiràssuascustas.Osenhorsópoderia ficardesnorteado.AEuropanãoécapazdeproduziralgotãorefinadocomoessemeugabinetereal.Meus outros aposentos nem se comparam a isso, são apenas extravagantes,elegantes e insípidos. Isso émelhor do que amoda, não? Esse recinto é umavolúpiaparaquemovê,istoé,elesetornaumobjetodedesejoparaaquelesquesó podem tê-lo à custa de tudo que possuem. Eume precavi, contudo, contraqualquerprofanação.Comumaexceção,osenhoréoúnicoserhumano,alémdemimedomeucriado,que foiadmitidonosmistériosdeste território imperial,desdequeelefoiornamentadodestamaneira!

Eume curvei em gratidão – porque a sensação opressora de esplendor eperfume, e de música, somada à excentricidade de seu discurso e de suasmaneiras, impediu-medeexprimir empalavrasoqueeudeveria ter elaboradocomosaudação.

–Aqui–eleprosseguiu,levantando-se,pegando-mepelobraçoepasseando

pelo aposento –, aqui estão pinturas que vão dos gregos até Cimbaue, e deCimbaueatéaatualidade.Muitassãoescolhidas,comoosenhorvê,semmuitorespeito ao bom-tom e às belas-artes. São todas, no entanto, decoraçõesapropriadasparaparedescomoestas.Eaqui temoschefs-d’oeuvredosgrandesartistas desconhecidos; aqui, obras inacabadas de homens cujos nomes,celebradosnopassado,asacademiasrelegaramaoesquecimentoeamim.Oqueosenhoracha–disseele,virando-seabruptamenteenquanto falava–,oqueosenhorachadestaMadonnadellaPietà?

–AMadonnadeGuido![7]–exclamei, com todooentusiasmodeminhaalma, pois eu já tinha os olhos tragados por seus encantos insuperáveis. – AMadonnadeGuido!Comoosenhorpôdeobtê-la?ElaéparaapinturaoqueaVênuséparaaescultura,semdúvida.

–Ha!– exclamouele, pensativo–, aVênus, abelaVênus?AVênusdosMédici?Adacabeçadiminutaedocabelodourado?Partedobraçoesquerdo–aquisuavozficoubaixa,quaseinaudível–etodoodireitosãorestaurações;enacoqueteriadaquelebraçodireitoreside,creio,aquintessênciadaafetação.QueroaVênusdeCanova![8]OApolotambéméumacópia,nãopodehaverdúvida...Cegoque sou, não consigo ver a inspiração ostensiva doApolo!Não consigoevitar, peço piedade, mas não consigo evitar... Prefiro o Antínoo. Não foiSócrates quem disse que o escultor encontrou sua estátua dentro do bloco demármore? EntãoMichelangelo não foi nada original em seu dístico: “Non hal’ottimoartistaalcunconcetto/Cheunmarmosoloinsenoncircunscriva”.[9]

Alguémjáafirmou,oudeveriaterafirmado,quenacondutadoverdadeirocavalheiro nós podemos sempre identificar uma diferença em relação aocomportamentodohomemvulgar,semquepossamosdeterminarcomprecisãonoqueconsisteessadiferença.Admitindoqueaafirmaçãoseaplicassedomodomaispertinenteàcondutaexteriordomeuinterlocutor,senti,naquelaacidentadamanhã, que ela se aplicava ainda mais ao seu temperamento moral e ao seucaráter.Nãopossodefinirbemapeculiaridadedeespíritoquepareciacolocá-lotão completamente à parte de todos os outros seres humanos, posso apenasatribuí-laaumhábitodereflexãointensaecontinuadaquepermeavaatémesmosuas ações mais triviais, invadindo seus momentos de folgança e seemaranhandoemseusrompantesdealegria–comoasserpentesquesaltamdosolhosdemáscarassorridentes,nascornijasdostemplosdePersépolis.

Contudo,nãopudedeixardeobservar,maisdeumavez,notomaomesmotempo leviano e solene com que ele discorreu, em comentários breves sobreassuntos de pouca importância, algo como uma trepidação, uma certa unção

nervosanaatitudeenafala,umaexcitabilidadeinquieta,umarquemepareciade todo inexplicáveleque, emalgunsmomentos, chegavaamealarmar.Comfrequência ele parava nomeio de uma frase cujo começo esquecera e pareciaficar escutando algo com a mais profunda atenção, como que esperando achegada repentina de um visitante ou ouvindo sons que só existiam na suaimaginação.

Foiduranteumdessesdevaneiosou intervalosdeaparenteabstraçãoque,virandoumapáginadabelatragédiaOrfeu,dopoetaeestudiosoPoliziano[10],aprimeiratragédiaitaliananativa–olivroestavasobreumaotomanaaomeulado– descobri uma passagem sublinhada a lápis. Era uma passagem do fim doterceiro ato, uma passagem da emoção mais enlevada, uma passagem que,emboramanchadade impureza,homemnenhumlerásemumfrêmito inaudito,mulher nenhuma lerá sem um suspiro. A página inteira estava borrada comlágrimasfrescase,numaentrefolhaaolado,liam-seosseguintesversos,escritoseminglês–enumacaligrafiatãodiferentedapeculiarletradomeuamigoquetivealgumadificuldadeemreconhecerqueeramdele:

Fostetudopramim,amor,Otodoemminhaalma–Ilhaverdenomar,amor,Afontequeacalma,Ascoresnagrinalda,emflor;Afrutaemminhapalma.Ah,osonhoeapromessa!Ah,aestrelaqueindicavaEmorre,agora,àpressa!Avozalémchamava,Ofindonãointeressa;Masfindaaalmaestava,Muda–parada–opressa!Nãovejonadaemmim,Avidaseapagou.“Acabou–acabou–acabou”(OmarseexpressaassimÀsareiasquetocou).Refloresçaaplantaabatidanojardim,Renasçaaáguiaquetombou!Meussensosjádeliram;

EashorasdeafliçãoNoescurotransegiram,Teuspassosbuscarão.NaItáliaassombrasviramEnleio,dança,clarão.Ah!,passadoatroz,Demimfosteroubada;DoAmor,ofim,eapósAnobrezasuja,onada!EmmimsórestaavozQuetrovejaatormentada!Que estes versos tenham sido escritos em inglês – não sabia que o autor

tinhafamiliaridadecomessalíngua–nãochegouasergrandesurpresa.Eutinhaperfeitanoçãodoalcancedeseusconhecimentosedoprazerinusitadocomqueele escondia sua erudição, demodo que a descoberta nãome causou espanto;masaindicaçãodelocal,nadataçãodotexto,foiparamim,devoconfessar,umassombro.OndeoriginalmenteforaescritoLondres,haviaumrabiscadoforte–insuficiente,contudo,paraocultarapalavra,numolharatento.Comoeudisse,foiumadescobertaassombrosa,poislembrobemque,emumaconversaanteriorcommeuamigo,pergunteiespecificamenteseeleemalgummomentoconheceraemLondresaMarchesadiMentoni(queporalgunsanos,antesdocasamento,residiranacidade),esuaresposta,senãoestouenganado,deuaentenderqueelenunca visitara a metrópole da Grã-Bretanha. Posso acrescentar aqui, também,queemmaisdeumaocasiãoouvi(sem,éclaro,darcréditoaumainformaçãoque envolvia tantas improbabilidades) que ele, o estranho de quem venhofalando,nãoapenasnasceranaInglaterracomoreceberaeducaçãobritânica.

***

–Háumapintura–elefalou,semperceberqueeutomaraconhecimentodatragédia –, ainda há uma pintura que o senhor não viu – e, removendo umacortina,descobriuumretratodecorpointeirodaMarquesaAfrodite.

Era omáximo que a arte podia alcançar na representação daquela belezasobre-humana.A figura etérea que eu vira na noite precedente nas escadas doPalácioDucalestavadiantedemimoutravez.Masnaexpressãodosemblante,todo luminoso em sorrisos, ainda espreitava (que anomalia incompreensível!)aquelamancha vacilante demelancolia que sempre será inseparável da belezaperfeita.Seubraçoesquerdoestavadobradosobreobusto.Oesquerdoapontava

parabaixo,paraumjarrodeestilocurioso.Umpezinhodefada,oúnicovisível,maltocavaochão,e,quaseindistintonaatmosferabrilhantequepareciacingiresagrar sua formosura, flutuava um par de asas, as mais delicadas que sepudessemconceber.Meuolharsevoltoudapinturaparaapessoadomeuamigo,easpalavrasvigorosasdoBussyD’Ambois, deChapman,[11] vibraram, comoqueporinstinto,emmeuslábios:

“EretoeleestáComoestátuaromana!Assimficará

AtéqueaMorteotransformeemmármore!”–Venha–eledissepor fim,voltando-separaumamesadepratamaciça,

esmaltada com requinte, sobre a qual se viam cálices de coloração fabulosa,junto a dois grandes jarros etruscos, modelados no estilo extraordinário doexemplar do primeiro plano da pintura, que continham, supus, vinhoJohannisberger. – Venha – falou, abruptamente –, bebamos! É cedo, masbebamos.Defatoaindaécedo–continuou,pensativo,eumquerubim,comumpesadomartelodourado,fezoaposentoressoarnaprimeirahorabatidadesdeonascerdosol.–Defatoaindaécedo...Maspoucoimporta,bebamos!Sirvamosumaoferendaaosolsolene,queestaschamaselâmpadasespalhafatosasqueremtantosubjugar!

Brindamoscomcálices transbordantes, eeleengoliu, emrápida sucessão,diversastaçasdovinho.

–Sonhar–continuou, retomandoseudiscursodespropositadoeerguendoumdosmagníficosjarros,àluzsuntuosadeumincensório–,sonhartemsidooofíciodaminhavida.Construíparamim,comoosenhorvê,umcaramanchãodesonhos. Poderia ter construído algomelhor, no coração de Veneza? O senhorcontemplaaseu redor,éverdade,umabarafundadeadornosarquitetônicos.Acastidadejônicaéofendidaporpadrõesantediluvianos,easesfingesegípciasseestendem sobre tapetes dourados. Mas o efeito só é incongruente para umamente acanhada. As convenções de estilo, no que diz respeito a origem eespecialmenteatempo,sãomonstrosquefazemahumanidadefugir,assustada,dacontemplaçãodosublime.Eumesmo já fuiumadeptododecoro;masestasublimação da insensatez entediou minha alma. Tudo isto, agora, é maisadequadoaomeupropósito.Comoestes incensórioscheiosdearabescos,meuespíritoseretorceemchamas,eodelíriodocenáriomepredispõeparaasvisõesalucinantesdaterradossonhosreais,paraaqualestoupartindo,agora,rápido.

Aqui ele fez uma pausa abrupta, inclinou a cabeça até o peito e pareceuescutarumsomqueeunãoouvia.Porfimergueuacabeça,olhouparacimae

proferiuosversosdobispodeChichester:“Esperapormim!Nãodeixarei

Deteencontrarnovaleprofundo.”Logo depois, acusando o poder do vinho, jogou-se ao comprido numa

otomana.Passosrápidossoaramnaescadaria,elogoaseguirhouveumafortebatida

naporta.CorriparatratardeimpedirqueaperturbaçãoprosseguissequandoumpajemdacasadeMentoniirrompeupeloquartoegaguejou,numavozsufocadapelaemoção,estaspalavrasincoerentes:

– A minha senhora! A minha senhora! Envenenada! Envenenada! Ah, alinda...AlindaAfrodite!

Desnorteado, voei até a otomana e tentei acordar o adormecido para arealidade chocante. Mas seus membros estavam rígidos – os lábios estavamlívidos – os olhos que pouco antes brilhavam estavam fechados pela morte.Recuei cambaleandoaté amesa–minhamãocaiu sobreuma taçaquebrada eenegrecida– e a consciência daverdade acabada e terrível explodiunaminhaalma.

[1]Poetaebispoinglês(1592-1669).(N.T.)[2]Personagemdamitologiagregaquechoraeternamenteporseusfilhosassassinados.(N.T.)[3]OescritorromanoPlínio,oMoço(62-113).(N.T.)[4]More(1478-1535),ofilósofohumanistainglês,foidecapitadoamandodeHenriqueVIII.(N.T.)[5]JoannesRavisiusTextor(c.1480-1524),humanistafrancês.(N.T.)[6]“GELASMA”:riso.(N.T.)[7]Pintoritaliano(1575-1642).(N.T.)[8]Escultoritaliano(1757-1822).(N.T.)[9]“Omelhorartistanãoconceberánada/Queumblocodemármorejánãocontenhaemsi.”(N.T.)[10]OrenascentistaitalianoAngioloPoliziano(1454-1494).(N.T.)[11]PeçadopoetaedramaturgoinglêsGeorgeChapman(1559-1634).(N.T.)

MORELLA

Αυτοχαθ΄αυτομεθ΄αυτου,μουοειδεςαιειου.Emsi,sóconsigo,parasempreunoeúnico.

Platão–Obanquete

Com um sentimento de intensa afeição, de um tipomuito singular, eu olhavaparaminha amigaMorella. Fui introduzido por acidente em seumeiomuitosanos atrás, eminha alma, desde que nos vimos pela primeira vez, ardeu numfogoqueeunãoconhecia;masnãoeraofogodeEros,eaconvicçãogradualdequeeunãopodiademaneiranenhumadefinirque fogo incomumeraesse,ouregularsuaintensidadeoscilante,eraumtormentoamargoparaomeuespírito.Masnosconhecemos;eodestinonosuniunoaltar;ejamaisfaleidepaixãooupenseiemamor.Ela,noentanto,afastou-sedasociedadee,apegando-seaseumarido e a ninguém mais, fez de mim um homem feliz. Era uma felicidademaravilhosa–eraumafelicidadedesonho.

AerudiçãodeMorellaeraimensa.Euqueriaequerovivercomoela–seustalentos eram extraordinários, o poder de sua mente era inesgotável. Isso meimpressionava e, emmuitos assuntos, tornei-me seu pupilo. No entanto, logodescobrique, talvezemfunçãodaeducaçãoquereceberaemPresburgo[1],elame apresentava em bom número aqueles escritos místicos que costumam serconsideradosmero refugoda literaturaprimitivaalemã.Tais textos,por razõesqueeunãoconseguiaentender,eramseuestudofavoritoeconstante–eofatodequeelestenhamcomotemposetornadoobjetodeestudotambémparamimsópodeserexplicadopelainfluênciasimplesmasefetivadohábitoedoexemplo.

Emtudoisso,senãoestouenganado,minharazãoestavapoucoenvolvida.Minhas convicções, pelo que posso lembrar, não foram afetadas de nenhumamaneirapeloideal,e,possoafirmar,nenhumtraçodomisticismosobreoqualeulia se refletia em meus atos ou pensamentos. Persuadido disso, aceitei aorientação daminha esposa, numa sujeição tácita, eme entreguei com toda aalma às complexidades de seus estudos.E então – então, quando, tragado porpáginasproibidas,eusentiaumespíritoproibidoincendiando-sedentrodemim–Morella colocava suamão fria sobre aminha e evocava das cinzas de uma

filosofia morta algumas palavras extravagantes, sussurradas, de significadoestranho, que ficavammarcadas com fogo emminhamemória. E então, horaapóshora,eumedeixavaficaraseulado,perdendo-menamúsicadesuavoz,até que, por fim, a melodia era maculada pelo terror – e uma sombra cobriaminhaalma,eeuficavapálido,emearrepiavano íntimocomaqueles timbressobrenaturais.Assim, a alegria se transmutava emhorror, e a coisamais lindatornava-seacoisamaishorrenda,comooEnomvirouGeena.[2]

Não é necessário especificar as reflexões que, extraídas dos volumes quemencionei,constituíram,portantotempo,praticamenteaúnicaconversaçãoqueeu tinha comMorella. Os entendidos no que podemos chamar demoralidadeteológica não terão dificuldade em conceber que especulações eram essas.Osque não são iniciados terão, em todo caso, grande dificuldade. O panteísmoselvagemdeFichte[3];oΠαλιγγενεσια[4]modificadodospitagoristas;e,acimade tudo, as doutrinas de Schelling[5] sobre a Identidade eram geralmente ospontosdediscussãoquemaismaravilhavamaimaginativaMorella.Osr.Locke,acho, define acertadamente que a chamada identidade pessoal consiste nauniformidade da existência racional.[6] E como por pessoa entendemos umaentidade inteligente dotada de razão, e como há sempre uma consciência queacompanha o pensamento, é isso que faz com que todos sejamos aquilo quechamamosdenós–enissonosdistinguimosdeoutrosseresquepensam,enissoganhamosnossa identidadepessoal.Masoprincipiumindividuationis,anoçãodeumaidentidadequenamorteéounãoéperdidaparasempre,eraparamim,otempotodo,umaconsideraçãodeprofundointeresse;nãotantopelanaturezaexcitanteedesconcertantedesuasconsequênciasquantopelamaneirainquieta,única,comqueMorellaasmencionava.

Mas,defato,chegouotempoemqueomistériodotemperamentodeminhamulhercomeçouameoprimircomofeitiçaria.Nãosuportavamaiso toquedeseusdedoslívidos,nemotimbresuavedesualinguagemmusical,nemolustrodeseusolhosmelancólicos.Eelapercebiatudo,masnãomecensurava;pareciacientedeminha fraquezaou insensatez,queela atribuía, sorrindo, aoDestino.Parecia, também, ciente de uma causa, por mim desconhecida, para aprogressivaalienaçãodeminhasatenções;masnãomedavadicasouindíciosdoqueseria.Porém,eramulher,eesmoreciaemsilêncio,diariamente,desgostosa.Passadoalgumtempo,afirmemarcacarmesimficouvisívelnasmaçãsdorostoeasveiasazuissaltaramnafrontedescorada;numprimeiromomentoamoleci,comovido,compena,masdepoisencareialuzdeseusolhosexpressivos,eentãominhaalmaficoutontaetonteounumavertigemdequemolhaparaofundode

umabismosombrioeinsondável.Será preciso dizer que desejei, com a ânsia mais ardente e sincera, que

chegasseomomentodamortedeMorella?Eudesejei.Masofrágilespíritoseagarrou a sua morada de argila por muitos dias – por muitas semanas e pormeses intermináveis –, até que os meus nervos torturados dominaram minhamenteemeenfurecicomademorae,comumavontadedemoníacanocoração,amaldiçoeiosdias,eashoras,eosmomentosamargosquepareciamsearrastarmaisemaisàmedidaquesuavidadefinhava–comoassombrasnodecairdodia.

Num entardecer de outono, porém, quando os ventos ainda sopravam nocéu,Morellamechamou,dacama.Haviaumanévoaopacapor todaa terra,eumbrilhoquentesobreaságuas,ecertamenteumarco-íriscaíradofirmamentonasfolhasdafloresta,esplêndidas,outonais.

–É umdia entre os dias – ela disse, quandome aproximei. –É umdia,entretodososdias,paraviveroumorrer.ÉumbelodiaparaosfilhosdaTerraedavida...Ah,aindamaisbeloparaasfilhasdocéuedamorte!

Beijeisuatesta,eelacontinuou:–Estoumorrendo,enoentantoviverei.–Morella!–Nunca houve o dia em queme amasses... Emvida fui abominação, na

mortetereituapaixão.–Morella!–Repito,estoumorrendo.Masdentrodemimexisteumbrindedaafeição,

ah,tãopequena!,quetutivestepormim,porMorella.Equandomeuespíritosefor,viveráacriança,filhatuaeminha,deMorella.Masteusdiasserãodiasdepesar,opesarqueéomaisduradourodos sentimentos, comoociprestequeédasárvoresamaispermanente.Pois tuashorasdealegriaacabaram,eo júbilonão se apanha duas vezes vezes numa vida, como as rosas de Pesto queflorescemduasvezesporano.Tunãomaispoderás,portanto,serAnacreonte[7]contra o tempo, mas, ignorando amurta e a vinha, deverás levar contigo tuamortalhapelaTerra,comoomuçulmanoquevaiaMeca.

–Morella!–gritei.–Morella!Comosabes?Maselavirouseurostonotravesseiroe,comumtremorligeiropelocorpo,

morreu,enãomaisouvisuavoz.Porém,comoelaprevira,suacriança–quemorrendoeladeraàluz,eque

não respirou antes que a mãe não mais respirasse –, sua criança, uma filha,sobreviveu. E cresceu estranha, na estatura e no intelecto, e era um retrato

perfeito daquela que partira, e amei-a com um amor mais fervoroso do quequalquerpaixãoqueumhabitantedaTerrapudessesentir.

Masnãotardoueocéudessaafeiçãopuraescureceu,eastrevaseohorroreadesgraçanublaramtudo.Eudissequeacriançacresceuestranhaemestaturaeinteligência.Estranho,defato,eraorápidoaumentodotamanhodeseucorpo– mas terríveis, ah!, terríveis eram os pensamentos tumultuosos que enchiamminha cabeça enquanto eu observava o desenvolvimento de sua existênciamental. Poderia ser diferente, quando todos os dias eu via nas concepções dacriança as capacidades adultas e as faculdades da mulher? Quando lições daexperiênciasaíamdoslábiosdainfância?Equandoacadahoralampejavamdeseusolhossempreativosasabedoriaeaspaixõesdamaturidade?Quando,estouafirmando,issotudoficouclaroemmeudiscernimentoaterrorizado–quandoeunãopodiamaisescondê-lodeminhaalma,nemafastá-lodeminhaspercepções,que tremiam ao notá-lo –, será de surpreender que suspeitas de naturezamedonha e emocionante se infiltrassem no meu espírito, ou que meuspensamentos recorressem, consternados, às histórias mirabolantes e às teoriasvibrantes da enterrada Morella? Furtei dos olhares do mundo um ser que odestinomecompeliaaadorar,enarigorosareclusãodolareuobservava,numaansiedadeagônica,tudoquediziarespeitoàminhaamada.

E,enquantoosanosficavamparatrás,enquantoeufitava,diaapósdia,seurostosagrado,ebrando,eeloquente,ecismavaemsuas formasamadurecidas,diaapósdiaencontravanovassemelhançasentreacriançae suamãe,amortamelancólica.Eacadahorasetornavammaisnegrasassombrasdasimilitude,emaiscompletas,emaisdefinidas,emaisdesconcertantes,emais terrivelmentemedonhasemseuaspecto.Poisqueseusorrisofosseigualaodamãe,eupodiatolerar; o queme fazia estremecer era sua identidade perfeita.Que seus olhosfossem iguais aos deMorella, eu podia aguentar; só que eles constantementeolhavamparaofundodaminhaalmacomamesmaexpressividadedoolhardeMorella,intensoseperturbadores.Enocontornodesuatestaalta,enoscachosdocabelosedoso,enosdedoslívidosquenocabeloseenterravam,enostimbresmusicaisetristesdesuafala,eacimadetudo–ah,acimadetudo–nasfraseseexpressõesdamortanoslábiosdaamada,daviva,euencontravaalimentoparaohorrorqueconsumiameupensamento–paraumvermequenãoqueriamorrer.

Assimsepassaramdoislustrosdesuavida,eatéaliminhafilhanãotinhanome sobre a Terra. “Minha criança” e “meu amor” eram as designaçõesusualmente sugeridas pela afeição paterna, e a rígida reclusão de sua rotinaimpedia qualquer outra relação. O nome de Morella morreu com sua morte.

Jamais faleidamãeà filha–era impossível falar.Naverdade,duranteocurtoperíododesuaexistência,ajovemnãoreceberanoçõesdomundoexterior,salvoaquelasquepodiamserfornecidasnosestreitoslimitesdesuaprivacidade.Mas,por fim, a cerimônia do batismo ofereceu ao meu coração, tão agitado eenervado, uma libertação imediata dos terrores de meu destino. E na fontebatismal, tendo de escolher um nome, hesitei. E muitas denominações desabedoria e de beleza, de tempos antigos e modernos, de meu país e doestrangeiro, acumularam-se emmeus lábios, commuitos,muitosbelosnomes,nomesdeestirpe,nomesdegenteboaefeliz.Oquemelevou,então,aperturbaramemóriadamortaenterrada?Quedemôniomeestimulouamurmuraraquelesom cuja mera lembrança costumava fazer meu sangue jorrar, em torrentespúrpuras, das têmporas para o coração? Que entidade maligna falou, dosrecessos deminha alma, quando, entre as turvas naves e no silêncio da noite,sussurreinoouvidodosantohomemassílabasde“Morella”?Oquemais,anãoser um demônio, convulsionou as feições de minha filha e as cobriu com ascoresdamorte,quando,sobressaltadaporaquelesomquemalsepôdeouvir,elavoltou seus olhos apagados da terra para o ceú e, caindo prostrada nas lajesnegrasdenossojazigoancestral,respondeu:“Estouaqui!”?

Os sons simples dessas poucas palavras chegaram aos meus ouvidos deforma distinta, frios, serenamente distintos, e então verteram, chiando, comochumboderretido, paradentrodomeucérebro.Anos– anospodemsepassar,masamemóriadaqueletempo,nunca!Nãoignoravamesmoasfloreseavinha,masacicutaeociprestemetoldavamdiaenoite.Enãomedeimaiscontadetempooudelugar,easestrelasdomeudestinosumiramdoscéus;eentãoaterrase obscureceu, e quando seus vultos passavam por mim, como sombrasesvoaçantes, entre eles eu via apenas – Morella. Os ventos do firmamentomurmuravamumúnicosomemmeusouvidos,easondulaçõesporsobreomarpara sempremurmuravam–Morella.Mas elamorreu; e comminhas própriasmãos levei seu corpo à tumba; e ri uma longa e amarga risada quando nãoencontreivestígiosdaprimeira,nacriptaemquedepositeiasegunda–Morella.

[1]HojeBratislava,capitaldaEslováquia.(N.T.)[2]A Geena, no Vale de Enom, perto de Jerusalém, era onde os hebreus sacrificavam crianças ao deusfenícioMoloque.(N.T.)[3]JohannGottliebFichte(1762-1814),filósofoidealistaalemão.(N.T.)[4]Paliggenesia,gregopara“renascimento”.(N.T.)[5]FriedrichWilhelmJosephvonSchelling(1775-1854),tambémfilósofoidealistaalemão.(N.T.)[6]ReferênciaaoEnsaiosobreoentendimentohumano,dofilósofoinglêsJohnLocke(1632-1704).(N.T.)

[7]Poetalíricogrego.(N.T.)

ACONVERSADEEIROSECHARMION

Πυφσοιπφοσοισω.Eutetrareiofogo.

Eurípedes–Andrômeda

EIROS

PorquemechamasdeEiros?CHARMION

Assim, de agora em diante, sempre será o teu nome.Deves esquecer tambémmeunometerrenoechamar-medeCharmion.[1]

EIROS

Istodefatonãoésonho.CHARMION

Sonhos não mais nos acompanham – mas deixemos tais mistérios para horaoportuna.Regozijo-meemtevernumaaparênciavívidaeracional.Amembranadasombrajánãocobremaisteusolhos.Tratadeterânimo,enãotemasnada.Osdiasdeestuporquetecouberamestãoexpirados;eamanhãvoueupessoalmenteintroduzir-tenaplenitudedeêxtasesemaravilhasdetuanovaexistência.

EIROS

Éverdade, não sinto estupor algum– nada em absoluto.A furiosa náusea e aterrívelescuridãonãoestãomaisemmim,enãomaisouçoaquelesomlouco,impetuoso,horrível,como“avozdemuitaságuas”.Todaviameussentidosestãodesnorteados,Charmion,pelaagudezacomquecaptamonovo.

CHARMION

Unspoucosdiaseliminarãotudoisso–masentendo-tecompletamente,esintoporti.Passaram-sejádezanosterrenosdesdequesofrioquetusofreste–enoentanto a recordação do suplício está sempre comigo. Entretanto, jáexperimentastetodaadorquevaisexperimentaremAidenn.[2]

EIROS

EmAidenn?

CHARMION

EmAidenn.EIROS

Oh,Deus!Tempiedadedemim,Charmion!Soterra-meopesodamajestadedetodas as coisas, do desconhecido agora conhecido – do especulativo FuturoimergidonoaugustoeincontestávelPresente.

CHARMION

Não te agarres a tais pensamentos. Amanhã falaremos sobre isso. Tua mentevacilaparaumladoeparaooutro,eessaagitaçãoencontraráalivionoexercíciode simplesmemórias.Nãoolhes emvolta, nempara a frente–olhapara trás.Estouardendonaansiedadedeouvircomosederamosdetalhesdesseestupendoeventoque tearremessouaténós.Conta-mecomofoi.Conversemosdecoisasfamiliares,navelhalinguagemfamiliardessemundoquepereceudemaneiratãomedonha.EIROS

Sim,damaneiramaismedonha!Issodefatonãoésonho.

CHARMION

Sonhosnãohámais.Prantearam-memuito,Eiros?

EIROS

Seteprantearam,Charmion?Ah,profundamente.Atéaúltimadetodasashoras,umanuvemdeintensatrevaededevotadopesarpairousobreatuacasa.CHARMION

Eaquelaúltimahora–falasobreela.Lembraqueeu,alémdofatoevidentedacatástrofe, de nada sei. Quando, ao sair demeu convívio com a humanidade,penetreinanoiteatravésdacova,nessaépoca,sebemmelembro,acalamidadequeteesmagoueraalgototalmenteimprevisto.Mas,defato,euconheciapoucoafilosofiaespeculativadeentão.

EIROS

Essaparticularcalamidadeera,comotudizes,algocompletamente imprevisto;mas infortúnios análogos já desde muito eram assunto de discussão entreastrônomos.Équasedesnecessáriotecontar,Charmion,que,mesmoquandotunosdeixaste,oshomensjáestavamdeacordonoentendimentodeque,naquelas

passagens das sagradas escrituras que falam da destruição final de todas ascoisas pelo fogo, a destruição refere-se ao orbe terrestre apenas. No queconcerne ao agente imediato da ruína, porém, as especulações viam-se emdilemadesdeaépocaemque,noconhecimentoastronômico,oscometasforamdespojados dos terrores das chamas. A densidade bastante moderada de seuscorpos havia sido bem estabelecida. Eles foram observados passando entre ossatélitesdeJúpiter,enãocausaramnenhumaalteraçãosensívelnemnasmassas,nemnasórbitasdessesplanetassecundários.Pormuitotempovimososcorposerrantescomoentidadesvaporosasdeinconcebíveltenuidade,eosconsideramosabsolutamente incapazesdecausardanoaonossogigantescoglobo,mesmonaocorrênciadecontato.Masumcontatonãoeraalgo temido;poisoselementosdetodososcometaseramconhecidoscomacurácia.Queentreelesdeveríamosprocurar pelo agente da ameaça de destruição pelo fogo era uma ideiaconsideradainadmissíveldesdemuitosanos.Masdivagaçõeseloucasfantasiashaviam,nosúltimostempos,alastrado-seestranhamenteentreahumanidade;e,embora tenha sido apenas em alguns dos ignorantes que a apreensão realprevaleceuquandodoanúncioporastrônomosdeumnovocometa,talanúncio,noentanto,foirecebidocomnãoseiquesentimentodeagitaçãoedesconfiança.

Os elementos do estranho orbe foram imediatamente calculados, e foireconhecidodeimediatoportodososobservadoresqueseucaminhootraria,noperiélio, aumaproximidademuitoacentuadacomaTerra.Houvedoisou trêsastrônomos,dereputaçãoinferior,quegarantiramresolutosqueumcontatoerainevitável.Eunãoconseguiriaexprimirbemparatioefeitoqueessainformaçãoteve sobre o povo. Por alguns dias as pessoas não quiseram acreditar numaasserção que seus intelectos, por tanto tempo dedicados a consideraçõesmundanas,nãopodiamdemodonenhumapreender.Masaverdadedeumfatode importância vital logo abre caminho para o entendimento,mesmo entre osmais parvos. Por fim, todos os homens viram que a ciência astronômica nãomentia e aguardaram o cometa. Sua aproximação não foi, de início,aparentemente rápida; nem seu surgimento teve alguma característica muitoincomum.Eleeradeumvermelhoopaco,etinhacaudapoucoperceptível.Porsete ou oito dias não vimos aumentomaterial em seu diâmetro aparente, e sóhouve uma alteração parcial de sua cor. Enquanto isso, os afazeres cotidianosdos homens estavam descartados, e todos os interesses foram absorvidos poruma discussão crescente, instituída pelos filósofos, a respeito da natureza docometa. Mesmo os mais ignorantes elevaram suas aptidões letárgicas a taisconsiderações. Os instruídos, agora, não direcionavam seus intelectos, suas

almas,a tópicoscomoaatenuaçãodomedo,oucomoasustentaçãode teoriasapreciadas. Eles buscavam – anelavam por visões corretas. Suspiravam peloconhecimentoaperfeiçoado.Averdade surgiuem todaapurezadesua forçaeemsuaextremamajestade,eossábiossecurvarameaadoraram.

Quealgumdanomaterialanossogloboouaseushabitantesresultariadocontato previsto era uma ideia que perdia terreno de hora em hora entre ossábios;eossábiosagoratinhamlivrepermissãopararegerarazãoeasfantasiasdamultidão.Foidemonstradoqueadensidadedonúcleodocometaeramuitomenordoqueadomaisrarefeitogás;eapassageminofensivadeumvisitantesimilar pelos satélites de Júpiter foi umpontonoqual se insistiu e que serviusobremodoparamitigaro terror.Teólogos,comumagravidade inflamadapelomedo, insistiam nas profecias bíblicas e expunham-nas ao povo com umasimplicidade sem evasivas nunca antes vista. Que a destruição final da Terradevia ser acarretada pela ação do fogo era algo instado com um vigor queinculcavaconvicçãoemtodososlugares;equeoscometasnãoeramdenaturezaígnea (como sabiam agora todos os homens) era uma verdade que aliviava atodos,emgrandemedida,daapreensãopelagrandecalamidadeprenunciada.Édigno de nota que os preconceitos populares e os erros vulgares quanto apestilênciaseguerras–errosquecostumavamentraremvogaacadaapariçãodeumcometa–agorasimplesmentenãoapareciammais.Comoquegraçasaumempenhosúbitoeconvulsivo,arazãohaviaarrancadoasuperstiçãodeseutronodeumsógolpe.Ointelectomaisdébilganharavigoratravésdointeressefebril.

Males menores que pudessem resultar do contato eram pontos dequestionamento elaborado. Os conhecedores falavam de leves distúrbiosgeológicos,dealteraçõesprováveisnoclimae,porconseguinte,navegetação;depossíveisinfluênciasmagnéticaseelétricas.Muitossustentavamquenenhumefeito visível ou perceptível seria produzido. Enquanto tais discussões sedesenrolavam, o objeto delas se aproximava, ficando maior em diâmetro eadquirindoumbrilhomaisresplandecente.Ahumanidadeempalideciadiantedachegadadocometa.Todasasoperaçõeshumanasestavamsuspensas.

Houveumperíodo,nodecorrergeraldasopiniões,emqueoorbeatingira,afinal, um tamanho que ultrapassava os de todas as visitas previamenteregistradas.Abandonandoqualquerresquíciodeesperançadequeosastrônomosestivessemerrados,opovoagoraexperimentavaporinteiroacertezadomal.Afacetaquiméricadoterrorsefora.Oscoraçõesdosmaisvalentesdenossaraçapulsavamviolentamenteemseuspeitos.Pouquíssimosdiasbastaram,entretanto,parafundiratémesmosentimentoscomoessesemimpressõesmaisintoleráveis.

Nãomais podíamos dedicar ao estranho orbe qualquer consideraçãohabitual.Seus atributos históricos haviam desaparecido. Ela nos oprimia com umahorrenda novidade de emoções. Víamos o cometa não como um fenômenoastronômiconoscéus,mascomoumíncuboemnossoscorações,ecomoumasombraemnossoscérebros.Eleassumira,comrapidezinconcebível,oaspectode um gigantesco manto de chama rarefeita, estendendo-se de horizonte ahorizonte.

Maisumdiaeoshomensrespiraramcommaisliberdade.Estavaclaroquejánosencontrávamossobainfluênciadocometa;noentanto,estávamosvivos.Sentimos atémesmo uma incomum elasticidade de corpo, uma vivacidade namente.Aextrematenuidadedoobjetodenossopavoreravisível,poistodososobjetoscelesteseramplenamenteperceptíveisatravésdele.Enquantoisso,nossavegetação se alterara demodo evidente; e reforçamos nossa fé, a partir dessacircunstânciavaticinada,naprevisãodossábios.Umaselvagemexuberânciadefolhagem,jamaistestemunhadaantes,rebentavaemtodasascoisasvegetais.

Maisoutrodia–eomalnãoestavadetodoemcimadenós.Eraevidenteagoraqueonúcleodocometanosalcançariaprimeiro.Umaviolentamudançarecaírasobretodososhomens;eaprimeirasensaçãodedorfoioviolentosinalparaalamentaçãogeraleparaohorror.Essaprimeirasensaçãodedorconsistianumarigorosacontraçãodopeitoedospulmõesenumainsuportávelsecuradepele.Não havia como negar que nossa atmosfera fora radicalmente afetada; aconformaçãodaatmosferaeaspossíveismodificaçõesàsquaiselapodiaestarsujeita eram agora os tópicos de discussão. O resultado da investigaçãotransmitiu um estremecimento elétrico, do terror mais intenso, ao coraçãouniversaldohomem.

Hámuitosesabiaqueoarquenoscircundavaeraumcompostodegasesdeoxigênio e nitrogênio, na proporção de 21 medidas de oxigênio e 79 denitrogênio a cada cem, na atmosfera. O oxigênio, que era o fundamento dacombustãoeocondutordocalor,eraabsolutamentenecessárioàmanutençãodavidaanimaleeraoagentemaispoderosoeenergéticonanatureza.Onitrogênio,aocontrário,nãoeracapazdemanternemvidaanimalnemchama.Umexcessoantinatural de oxigênio resultaria, havia sido averiguado, em uma elevação davivacidadeanimaltalqualaqueexperimentáramosrecentemente.Foiaprocura,a extensão da ideia, o que causou espanto. Qual seria o resultado de umaextração total do nitrogênio? Uma combustão irresistível, ultradevoradora,onipresente, imediata – o cumprimento por inteiro, em todos os seus detalhesmiúdos e terríveis, das ameaças flamejantes e aterrorizantes das profecias do

LivroSagrado.Dequeservequeeupinte,Charmion,ofrenesiquesedesencadeouentão

nahumanidade?Atenuidadenocometa,queantesnosinspiraraesperança,eraagora a fonte da amargura do desespero. Em seu impalpável caráter gasosopercebíamosclaramenteaconsumaçãodoDestino.Enquanto issomaisumdiase passou – levando consigo a última sombra de Esperança. Ofegávamos narápidamodificaçãodoar.Osanguevermelhoricocheteavatumultuosoemseuscanais sufocados. Um delírio furioso se apossou de todos os homens; e, debraçosrigidamenteesticadosemdireçãoaoscéusameaçadores,eles tremiamegritavam.Masonúcleododestruidorestavaagorasobrenós–mesmoaquiemAidenn,faloemearrepio.Sereibreve–brevecomoaruínaquetomoucontadetudo.Por ummomento houve apenas uma luz lúgubre e fortíssima, tocando epenetrando todas as coisas. Então – curvemo-nos, Charmion, perante amajestade excessiva do grande Deus! –, então ouviu-se um som invasivo egritado,comoquesaídodabocaDELE;etodaamassaincumbentedeéteremqueexistíamosexplodiudeumasóveznumaespéciedechamaintensa,dotadade uma radiância insuperável e de um calor ultraférvido que nem mesmo osanjos,noaltoCéudopuroconhecimento, sabemcomonomear.Assimacaboutudo.

[1]“Iras”e“Charmian”sãodamasdecompanhiadeCleópatraemAntônioeCleópatra (1606-1608),deShakespeare.(N.T.)[2]OuAden,oÉden.(N.T.)

UMADESCIDAPARADENTRODOMAELSTRÖM

OsdesígniosdeDeusnaNatureza,assimcomonaProvidência,nãosãoosnossosdesígnios;nemosmodelosquearmamossãodemodoalgumproporcionais à vastidão, à intensidade e à inescrutabilidade de Suasobras,quesãomaisprofundasqueopoçodeDemócrito.

JosephGlanville.[1]

Tínhamos alcançado o cume do rochedomais elevado. Por algunsminutos, ovelhopareceuexaustodemaisparafalar.

–Nãomuitotempoatrás–eledisse,porfim–eupoderiaterguiadovocêporestarotatãobemquantoomeufilhomaisjovem;sóque,háunstrêsanos,aconteceucomigoalgoquenuncaaconteceuantesaummortal,ou,aomenos,algodotipoquenuncadeixoualguémvivoparacontarhistória,easseishorasdeterrormortalquetivedeenfrentararrasarammeucorpoeminhaalma.Vocêachaquesouumhomemmuitovelho...masnãosou.Emmenosdeumdia,meuscabelos negros ficaram brancos e meus membros se enfraqueceram, e meusnervosficaramtãodescontroladosqueeutremoaomenoresforçoemeassustocomumasombra.Vocêacreditaquenãoconsigonemolharparaestepequenodespenhadeirosemficartonto?

O“pequenodespenhadeiro”,emcujabeiraeleseatiraraparadescansar,edeformatãodescuidadaqueamaiorpartedeseucorpopraticamentependianoabismo, no qual só não caía graças ao apoio dos cotovelos na extremidadeescorregadia do rochedo – esse “pequeno despenhadeiro”, um precipíciovertiginoso, uma parede vertical de rocha negra e reluzente, erguia-se quasequinhentosmetrosacimadeummundoderochedos.Tentaçãonenhumamefariachegaracincometrosde suaborda.Naverdade, euestava tãonervosocomaposição perigosa do meu companheiro que me deitei ao comprido no chão,firmeiasmãosemraízesdearbustosenemouseiolharparaocéu–enquantolutava em vão para me livrar da ideia de que até as fundações da montanhacorriam perigo devido à fúria dos ventos. Passou-se um longo tempo até quecrieicoragemsuficienteparasentareolhartodaaimensidão.

–Tratedepararcomsuasfantasias–disseomeuguia–,porqueeuotrouxeaquiparaquevocêtivesseamelhorvisãopossíveldocenárioemquesedeuotalacontecimento,eparacontaravocêahistóriatodacomolocalbemembaixodos seus olhos. Estamos agora – continuou, no estilo detalhista que ocaracterizava –, estamos agora bemacimada costa norueguesa, a 68 graus delatitude,nagrandeprovínciadeNordlandenosombriodistritodeLofoden.Amontanha em cujo topo nos encontramos se chama Helseggen, a Nebulosa.Agora levante-se um pouco... Segure-se no capim se estiver com vertigem...Isso...Eolheparaalémdocinturãodevaporabaixodenós,olheparaomar.

Eu olhei, meio tonto, e contemplei uma vasta extensão de oceano, cujaságuas estavam tingidasnumacoloração tão fortequeme trouxeramàmente adescrição que o geógrafo núbio fez do Mare Tenebrarum.[2] A imaginaçãohumana não poderia conceber um panorama mais deploravelmente desolado.Para a direita e para a esquerda, na maior distância que a visão alcançava,estendia-se,comosefosseamuralhadedefesadoplaneta,umrochedohorrendonegro e saliente, cuja aparência lúgubre era violentamente ressaltada pelarebentação,quelançavaaltocontraelesuacristabrancaemedonha,uivandoeurrando sem parar. Bem defronte ao promontório em cujo ápice nosencontrávamos,eunsdezquilômetrosparadentrodomar,podiaservistaumapequena ilha desértica; melhor dizendo, sua posição era mais ou menosdiscernívelnavastidãoonduladaqueaenvolvia.Aunstrêsquilômetrosdela,nadireção da terra firme, via-se outra, ainda menor, pavorosamente escarpada eáridaecercadaaintervalosvariadosporumagrupamentoderochasnegras.

Aaparênciadooceano,noespaçoentreailhamaisdistanteeapraia,tinhaalgodeincomum.Embora,demomento,oventoquesopravanadireçãodacostaestivesse tão forte que um brigue, a uma distância remota, mantinha as velasrizadas e constantemente mergulhava seu casco inteiro entre as vagas, aindaassimnãohavianadaquelembrasseumaondulaçãouniforme,haviaapenasumaprecipitaçãodeáguaparatodasasdireções,emmovimentoscruzados,rápidosefuriosos – como se omar, ali, estivesse comprandobriga comovento.Quasenãoseviaespuma,anãosernaproximidadeimediatadasrochas.

–Ailhamaisdistante–prosseguiuovelho–échamadadeVurrghpelosnoruegueses.AquelaameiocaminhoéMoskoe.Aquelaaunsdoisquilômetrosna direção norte é Ambaaren. Mais além estão Islesen, Hotholm, Keildhelm,Suarven e Buckholm. Ainda mais além, entre Moskoe e Vurrgh, estãoOtterholm,Flimen,SandfleseneStockholm.Essessãoosnomesverdadeirosdoslugares,masomotivopeloqualseachounecessáriodarnomesaelesémaisdo

quevocêoueupodemosentender.Vocêestáouvindoalgumacoisa?Vêalgumamudançanaágua?

JáestávamosnotopodoHelseggenhaviadezminutos,etínhamossubidopeloladodeLofoden,deformaquenãotivéramosnenhumvislumbredomaratéqueele irrompeuànossa frentenocume.Enquantoovelho falava, comecei aouvirumsomalto,progressivo,comoogemerdeumavastamanadadebúfalosnuma pradaria americana; e no mesmo instante percebi que aquilo que osmarinheiroschamamdemar encrespado estava rapidamente se transformando, láembaixo,numacorrenteque iaparao leste.Diantedosmeusolhos,acorrenteadquiriu uma rapidez monstruosa. A velocidade aumentava a cada momento,numaimpetuosidadeabrupta.Passadoscincominutos,todoomar,naáreaqueiaatéVurrgh,estavaaçoitadonumafúriaingovernável;maseraentreMoskoeeacostaqueseagitavaoaçoitemaisferoz.Ali,ovastoleitodaságuas,sulcadoeretalhadoemmilharesdecanaisemaranhados,explodiuderepentenumfrenesiconvulso – arfante, borbulhante, sibilante –, girando em inúmeros vórticesgigantes,rodopiandoe turbilhonandoparao lestecomumarapidezqueaáguasóassumeemquedasíngremes.

Dentro de mais alguns minutos, outra alteração radical tomou conta docenário.Asuperfícietodaficoucomoquemaislisa,eosredemoinhos,umporum, desapareceram, ao mesmo tempo que formidáveis faixas de espumaapareceramondeantesnãohavianenhuma.Depoisdeumtempo,essas faixas,estendendo-seaumagrandedistânciaeentrandoemcombinação,tomaramparasiomovimentogiratóriodosvórticesapaziguadoseformaramoembriãodeumnovo vórtice, mais vasto. Subitamente – muito subitamente – o novo vórticeficou distinto e definido, num círculo de dois quilômetros de diâmetro. Oslimites do turbilhão estavam demarcados por um largo cinturão de espumafaiscante;mas nenhum borrifo escapava para dentro da boca do terrível funil,cujointerior,atéondeosolhosconseguiamsondar,eraformadoporumaparedeaquosalisa,negra,reluzente,inclinadaparaohorizontenumângulode45graus,esemoviavertiginosamente,semparar,numaoscilaçãoenérgica,elevandoaoscéusumavoz tenebrosa,algoentreogritoeo rugido,algoquenemmesmoapoderosacataratadoNiágaraconsegueigualaremsuasprecesdeagonia.

Amontanha tremeudesdeabase,ea rochabalançou.Atirei-medefrenteparaochãoemeagarreinavegetaçãoescassa,numataquedeagitaçãonervosa.

–Isso–eudisseaovelho,porfim–,issosópodeserogranderedemoinhodoMaelström.

–Eleéchamadoassimàsvezes–elerespondeu.–Nós,osnoruegueses,o

chamamosdeMoskoe-ström,porqueailhadeMoskoeficaemseucaminho.Os relatos conhecidos sobre o vórtice não tinham de modo algum me

preparadoparaoquevi.OdeJonasRamus[3],queétalvezomaisminucioso,nãotransmiteamaisdébilconcepçãonemdesuamagnificência,nemdohorrordacena–nemdasensaçãoloucaedesconcertantedanovidadequeconfundeoespectador. Não tenho ideia de qual foi o ponto a partir do qual esse escritoravistou o fenômeno, nem de quando o fez;mas não pode ter sido a partir doHelseggen e nem durante uma tempestade. Há algumas passagens de suadescrição,noentanto,quemerecemsercitadasporseusdetalhes,apesardequeaimpressãoqueprovocamnemseaproximadetransmitirumanoçãodoqueéoespetáculo.

“EntreLofodeneMoskoe”,eleescreve,“aprofundidadedaáguaficaentre36 e quarenta braças; mas no outro lado, na direção de Ver (Vurrgh), essaprofundidade decresce a ponto de não permitir a passagem normal de umaembarcação,devidoaoriscodechoquecomasrochas,oqueocorremesmonasmaiorescalmarias.Quandohámaréenchente,acorrentesedirigeparaa terra,entre Lofoden e Moskoe, numa rapidez turbulenta; o bramido da impetuosavazante,porém,malpodesercomparadoàsmaisruidosasetemíveiscataratas;ouve-se o barulho a várias léguas de distância, e os vórtices ou fossosapresentamtamanhaextensãoeprofundidadequeumnavioqueseaproximardesuaáreadeatraçãoseráinevitavelmenteabsorvidoetragadoparaofundo,eláseráespatifadocontraaspedras;equandoaáguaseacalma,osfragmentossãodaliexpelidosedevolvidosàsuperfície.Mastaisintervalosdetranquilidadesóocorremnaesperaentrevazanteeenchenteeemtempobom,enãodurammaisdoqueumquartodehora,atéqueaviolênciagradualmenteretorne.Quandoacorrenteémaisturbulenta,equandosuafúriaéaumentadaporumatempestade,os barcos devem semanter o mais longe possível da área conturbada. Botes,iatesenaviosjáforamtragadosporfaltadeprecauçãocontraaturbulênciaeporaproximações desavisadas. Também ocorre, com frequência, que baleias seaproximem demais da corrente e sejam subjugadas por sua violência; éimpossível descrever os uivos e berros de suas infrutíferas batalhas pelasalvação.Umurso,certavez,aventurando-seanadarentreLofodeneMoskoe,foi apanhado pela corrente e levado para as profundezas, e seus rugidoshorripilantes puderam ser ouvidos na praia. Enormes troncos de abetos epinheiros, depois de absorvidos pelo fluxo, voltam à tona quebrados earrebentados de tal maneira que parecem ter sido virados do avesso. Issodemonstraqueo fundoconsistede rochaspontiagudas, entre asquais as toras

turbilhonamparaláeparacá.Acorrenteéreguladapelofluxoerefluxodomar–asmarésaltasebaixassealternamacadaseishoras.Noanode1645,noinícioda manhã do domingo da Sexagésima[4], ela se manifestou com tamanhaveemênciaquecasasvieramabaixonacosta.”

Noquedizrespeitoàprofundidadedaságuasnaproximidadedovórtice,eunão conseguia ver como ela poderia ser determinada ao certo. As “quarentabraças”devemse referirapenasapontospróximosdaspraiasdeMoskoeedeLofoden. A profundidade do centro do Moskoe-ström deve serimensuravelmentemaior; enãohámelhormaneiradeprovar esse fatodoqueobservar,nemquesejadeesguelhadesdeorochedomaisaltodoHelseggen,oabismoqueseabrenoredemoinho.OlhandodoaltodopicoparaoestrepitosoFlegetonte[5] lá embaixo, não pude deixar de sorrir frente à ingenuidade comque o singelo Jonas Ramus registra, como se fossem casos inacreditáveis, asanedotasdasbaleiasedosursos;poismepareceu,defato,umacoisamaisqueevidente o fato de que o maior navio do mundo, caindo nas garras daquelaatraçãomortal,teriatantascondiçõesderesistirquantoumaplumanumfuracão,esumiriaporinteiroedeimediato.

Quantoàs tentativasdeexplicaro fenômeno–algumasdasquais, lembrobem,me pareceram plausíveis o bastante quando as li –, assumiam agora umaspectomuitodiferenteeinsatisfatório.Aideiageralmenteaceitaédequeestevórtice,assimcomo trêsoutrosvórticesmenoresqueocorremnas ilhasFeroé,“nãotêmoutracausasenãoacolisãodeondasquesobemedescem,emfluxoerefluxo,contracadeiasderochaserecifes,oqueconfinaaáguademodoqueelaseprecipitacomoumacatarata;eassim,quantomaissubiramaré,maiordeveráseraqueda,eoresultadonaturaléumredemoinhoouvórtice,cujaprodigiosasucçãoésuficientementeconhecidagraçasaexperimentoscontrolados”.IssoéoquedizaEnciclopédiaBritânica.Kircher[6]eoutrosacreditamquenocentrodocanal do Maelström existe um abismo que penetra pelo globo terrestre edesembocaemalgumlocalmuitoremoto–oGolfodeBótniafoinomeadocomcerta resolução por um deles.Minha imaginação prontamente recorreu a estateoria, semvaloremsimesma,enquantoeuobservavao fenômeno;e,quandofalei dela ao guia, fiquei um tanto surpreso ao ouvi-lo dizer que, embora essavisãodoassuntofossecompartilhadaporquasetodososnoruegueses,eletinhaopinião diferente. Quanto ao primeiro conceito, confessou ser incapaz decompreendê-lo;eaquiconcordeicomele–jáque,pormaisconclusivaquesejanopapel,aexplicaçãoétotalmenteininteligível,eatémesmoabsurda,diantedotrovãodoabismo.

–Vocêdeuumaboaolhadanoredemoinho–disseovelho–e,sevocêsearrastarparatrásdessapedra,demodoaseabrigardoventoeescaparumpoucodobramidodaságuas,voulhecontarumahistóriaquevaiconvencê-lodequealgumacoisaeuseisobreoMoskoe-ström.

Fizoqueovelhopedia,eeleprosseguiu.– Eu emeus dois irmãos tínhamos um barquinho de pesca, uma sumaca

commastreaçãodeescuna,comcapacidadeparaumassetentatoneladas,noqualtínhamosohábitodepescarentreasilhasparaládeMoskoe,pertodeVurrgh.Asáreasderemoinhodomarsempreproporcionamboaspescarias,nasocasiõesoportunas, para quem tem coragem de se arriscar; de todos os homens queviviam na costa de Lofoden, porém, nós três éramos os únicos a fazer dessasaídaparaasilhasumaatividaderegular.Oslocaistradicionaisdepescaficambemmaisparalá,nadireçãosul.Láépossívelpegarpeixeaqualquerhora,semmuito risco, e portanto esses são os lugares preferidos. Mas os pontos maisselecionados,aquientreasrochas,nãoapenasdãoasmelhoresvariedadescomoasdãoemabundânciainigualável; tantoqueeracomumquepescássemosnumúnicodiaoqueosmaisacanhadosnãoconseguiamjuntaremumasemana.Naverdade,refletíamosmuitoasériosobreoassunto–oriscodevidaemvezdotrabalho,eacoragemvalendocomocapital.

“Deixávamos a sumaca numa angra a uns oito quilômetros daqui, costaacima;eeranossocostume,quandofaziatempobom,tirarvantagemdosquinzeminutos de calmaria para atravessar o canal principal do Moskoe-ström,mantendo amaior distância possível da área do sorvedouro, e então descer eancoraremalgumpontopertodeOtterholmouSandflesen,ondeosremoinhosnão são tão violentos quanto em outros lugares. Por ali nós costumávamospermanecer até que se aproximasse o intervalo de calmaria seguinte, e entãolevantávamosâncoraevoltávamosparacasa.Nuncafazíamosessasexpediçõessemquehouvesseumventofavorávelparairevoltar–umventoconstante,quesentíssemosquenãonos faltaria nomomentode retornar–, e nisso eradifícilque cometêssemos algum erro de cálculo.Duas vezes, ao longo de seis anos,fomos obrigados a passar toda a noite ancorados por causa de uma calmariaanormal, daquelas que são muito raras por aqui; e uma vez tivemos depermanecer na nossa zona de pescaria por quase uma semana, morrendo defome,devidoaumtemporalquecomeçoulogodepoisdanossachegadaequedeixou o canal muito turbulento para que nos arriscássemos por ele. Nessaocasião, teríamos sido empurrados mar adentro apesar de tudo (porque osredemoinhosnosfaziamgirarcomtantaviolênciaque,porfim,tivemosdesoltar

aâncoraearrastá-la),nãofosseofatodequefomospararnumadasinumeráveiscorrentes cruzadas que hoje estão aqui e amanhã em outro lugar, e por sortefomoslevadosatéFlimen,onde,asotavento,conseguimosfundear.

“Eu não conseguiriamencionar nem um vigésimo das dificuldades pelasquaispassamosnos‘camposdepesca’–écomplicadoficarporlá,mesmocomtempobom–,massempredávamosumjeitodeatravessarocorredorpolonêsdoMoskoe-ström sem problemas; apesar de que vez por outra eu ficasse com ocoraçãosaindopelaboca,quandoaconteciadeestarmosumminutoatrasadosouadiantadosemrelaçãoaointervalodecalmaria.Àsvezesoventonãoestavatãofirmequanto tínhamospensadode início,eentãoavançávamosbemmenosdoque seria desejável, e a corrente ia fazendo a sumaca ficar ingovernável.Meuirmãomaisvelho tinhaum filhodedezoito anos, e euerapaidedoisgarotosrobustos.Elesteriamajudadomuitonessasocasiões,tantonomanejodosremosde governo quanto depois, na própria pescaria, mas, de todo modo, emboracorrêssemosorisconósmesmos,nãotínhamoscoragemdecolocarosmeninosemsituaçãodeperigo– jáque,nofimdascontas,eraumperigohorrível,éapuraverdade.

“Faltam poucos dias para que tenham se passado exatamente três anosdesdequeocorreuoquevoulhecontar.Eraodécimodiadejulhode18...,umdiaqueoshabitantesdestapartedomundonuncavãoesquecer–porquefoiodia em que despencou o furacão mais terrível que o céu já produziu. E, noentanto,durantetodaamanhã,eatéofimdatarde,soprouumabrisasuavedosudoeste,eosolbrilhavaforte,demodoquenemomarinheiromaisvelhoentrenóspodiapreveroqueestavaporvir.

“Nóstrês–meusdoisirmãoseeu–tínhamosfeitoatravessiaatéasilhasporvoltadasduasdatarde,elogotínhamoscarregadoquasetodaacapacidadeda sumaca com peixes de primeira, que, todos notamos, estavam maisabundantes naquele dia do que emqualquer outro.Eram sete horas,pelomeurelógio, quando levantamos âncora e partimos para casa, de maneira quepudéssemoscruzarapiorpartedoStrömemáguascalmas,jáquesabíamosqueointervalosedariaàsoito.

“Saímoscomumbomventodeestibordoe,poralgumtempo,corremosemritmoacelerado,sequersonhandocomalgumperigo,poisdefatonãovíamosomenormotivoparaalgumaapreensão.DerepentefomossurpreendidosporumabrisaprocedentedoHelseggen. Issoeramuito incomum–algoquenuncanosaconteceraantes–,ecomeceiasentirumcertodesconforto,semsaberaocertoporquê.Colocamosobarcoafavordovento,masnãoavançamosporcausados

remoinhos, e eu estava a ponto de sugerir que retornássemos ao ponto deancoragem quando, olhando à popa, vimos o horizonte todo coberto por umaúnicanuvemcordecobrequecresciasobrenósnumavelocidadeespantosa.

“Nessemeio-tempoabrisaquenosdesviaradecursoamainou,e ficamosem calmaria total, à deriva, sem direção. Essa situação, contudo, durou tãopoucoquenemtivemostempodepensarsobreela.Emmenosdeumminutoatormenta estava em cima de nós; em menos de dois minutos, o céu estavacompletamente obscurecido; e depois disso e da espuma lançada por todos oslados, ficou tão escuro que não conseguíamos enxergar uns aos outros nasumaca.

“Éloucuratentardescreverofuracãoqueseabateusobrenós.Omaisvelhomarinheiro norueguês nunca vivenciou algo parecido. Soltamos nossas velasantesqueaventaniaconseguissenosarrastar;naprimeirarajada,porém,nossosdois mastros voaram do barco como se tivessem sido serrados – e o mastroprincipal levou consigo o meu irmão mais novo, que se amarrara nele porsegurança.

“Nossobarcoeraomaislevefragmentodeplumaquejamaisflutuoupelaágua.Eletinhaumconvéslisointeiriço.Sóhaviaumaescotilha,pertodaproa,esempre foinossocostume trancaressapequenaaberturaquandocruzávamosoStröm, por precaução contra o mar agitado. Não fosse essa medida, teríamosnaufragadonuminstante–porquechegamosaficartotalmentesubmersos.Nãoseicomomeuirmãomaisvelhoescapoudaaniquilação,nuncativeoportunidadedeesclareceressefato.Deminhaparte,assimquetermineidesoltarotraquete,atirei-medecorpointeironoconvés,commeuspésapoiadosnaestreitaamuradada proa e minhas mãos agarrando a argola de uma tranca ao pé do mastroprincipal.Foiapenasporinstintoqueprocediassim,efoisemdúvidaamelhorcoisaquepoderiaterfeito,poisestavaaturdidodemaisparapensar.

“Poralgunsmomentosficamoscompletamenteafundados,comoeudisse,epor todo o tempo eu prendi a respiração e me segurei com força na tranca.Quandonãoaguenteimais,fiqueidejoelhos,aindaagarrandoatranca,eassimemergi minha cabeça. Logo depois nosso barquinho se sacudiu, como umcachorrofazquandosaidaágua,eassimescapou,emcertamedida,domar.Euestavaagoraprocurandosuperaroestuporquetomaracontademim,procurandorecobrarossentidosparaavaliaroquepodiaserfeito,quandosentiquealguémmepegava pelo braço.Era omeu irmãomais velho, emeu coração saltou dealegria, pois tinha certeza de que ele havia caído do barco,mas nomomentoseguintetodaaalegriasetransformouemhorror–porqueeleaproximouaboca

domeuouvidoegritouapalavra‘Moskoe-ström!’“Ninguémjamaissaberáoquesentinaquelemomento.Eutremiadospésà

cabeça,comoseestivessesofrendooscalafriosdafebremaisviolenta.Eusabiamuito bemo que ele queria dizer comaquela única palavra – sabia o que elequeriaque eu compreendesse.Comoventoquenos impelia agora, estávamosnosencaminhandoparaoredemoinhodoStröm,enadapodianossalvar!

“Você sabeque,na travessiadocanaldoStröm, semprenosafastávamosbastante da área do redemoinho, mesmo com tempo bom, e observávamos eesperávamoscuidadosamentepelohoráriodo repousodacorrente–masagoraestávamosnavegandobemporcimadotrechodevoragem,enumfuracãocomoaquele! ‘Naverdade’, pensei, ‘vamoschegar lábemnomomentoda calmaria,nisso podemos ter um pouco de esperança’ – mas no momento seguinteamaldiçoeimeunomeportersidotoloapontodesonharcomalgumaesperança.Sabia muito bem que estaríamos condenados mesmo que estivéssemos numaembarcaçãomilvezesmaior.

“Aestaalturaaprimeiramanifestaçãodefúriadatempestadeseesgotara,ouaomenosnãoasentíamostanto,àmedidaqueéramosimpelidosporela,masemtodocasoaságuas,quedeiníciosemantiveramniveladascomovento,lisase espumantes, agora se projetavam em verdadeirasmontanhas.Umamudançasingular tambémocorreranoscéus.Tudoestavapretocomopicheemtodasasdireções,masquaseacimadenossascabeçasseabriu,numarupturasúbita,umabrechacirculardecéuclaro–océumaisclaroquejávi,deumazulintensoebrilhante –, e por ela refulgiu a lua cheia, num esplendor lunar que eudesconhecia.Elailuminoutudooquenoscercavaetudoficoumuitodistinto–mas,meuDeus,quecenárioeraaqueleparaviràluz!

“Fizumaouduastentativasdefalarcommeuirmão,masosestrondosdatormenta se intensificaram de maneira estranha, e ele não ouviu uma únicapalavra,emboraeugritasseomaisaltoquepodiaemseuouvido.Aseguirelebalançouacabeça,pálidocomoamorte,eergueuumdedo,comoseestivessedizendo‘Escute!’

“De início não entendi o que ele queria dizer, mas logo depois umpensamento horrendo me veio à cabeça. Tirei meu relógio do bolso. Estavaparado.Olheiseumostradoràluzdalua,joguei-olongenooceanoecomeceiachorar. Ele tinha parado às sete horas! Estávamos atrasados em relação aohoráriodacalmaria,eoredemoinhodoStrömestavanoaugedafúria!

“Quando um barco é bem construído, equipado de forma adequada, equando não está sobrecarregado e vai a favor do vento, as ondas de uma

tempestadefortesempreparecemdeslizarporbaixodele–oqueéestranhoparaquemnãoémarinheiro–,eaissochamamoscavalgaremgíriamarítima.Bem,atéalitínhamoscavalgadocombastantedestrezaosvagalhões;masentãoumaelevação gigantesca nos pegou pela parte traseira do casco e nos arrastouconsigo para cima, bem para cima, como que em direção ao céu. Erainacreditávelqueumaondapudessesubirtanto.Eentãodescemosnumacurva,deslizandoemergulhando,efiqueinauseadoetonto,comoseestivessecaindo,numsonho,dotopodeumamontanhaaltíssima.Masenquantoestivemosláemcimaolheirápido–efoimaisdoquesuficiente.Vinuminstanteemqueposiçãoestávamos. O sorvedouro do Moskoe-ström estava uns quinhentos metros àfrente,mas não era oMoskoe-ström habitual – perto dele, o redemoinho quevocêviutemaforçadeumcórrego.Seeunãosoubesseondeestávamoseoquenos esperava, nem teria reconhecidoo cenário.Comoquevi, fechei osolhosinvoluntariamente,horrorizado.Aspálpebrassecerraramnumespasmo.

“Não se passaram nem doisminutos e sentimos de repente que as ondasestavam se acalmando, baixando emmeio à espuma.Obarco deu umaviradabruscaabombordoeentãodisparoucomoumraionanovadireção.Aomesmotempooruídoatroadordaáguafoicompletamenteabafadoporumaespéciedeguincho penetrante – o tipo de som que poderíamos imaginar que viesse demilhares de barcos a vapor que acionassem seus motores ao mesmo tempo.Estávamosagoranaáreaderebentaçãoquecercaosturbilhões;epensei,éclaro,quemergulharíamos semdemora no abismo– cujo interior não conseguíamosenxergardireitoporcausada incrívelvelocidadenaqualéramosarrastados.Aimpressão era de que o barcomal tocava a água e de que ia resvalando pelasondascomoumabolhadear.Ovórticeseaproximavaaestibordo,eabombordocresciaavastidãodemarquedeixávamosparatrás.

“Podeparecerestranho,masagora,àsportasdavoragem,eumesentiamaissereno do que nos minutos anteriores. Convencido de que não havia maisesperança, livrei-meemgrandemedidado terrorquemeacovardaraatéali.Odesespero,acho,eraoquevinhadeixandoosmeusnervosabalados.

“Podeparecerqueestoumevangloriando,masoque lhedigoéverdade:comecei a refletir sobre como eramagníficomorrer daquelamaneira, e sobrecomo era uma tolice de minha parte levar em consideração algo tãoinsignificante quanto a minha própria existência individual, em vista de umamanifestação tão maravilhosa do poder de Deus. Até creio que me ruborizeiquando essa ideia me passou pela cabeça. Pouco depois fiquei possuído pelacuriosidademaisardentesobreoredemoinhoemsi.Eusentiaumdesejorealde

explorar suas profundezas,mesmo às custas demeu próprio sacrifício; emeumaiorpesarerao fatodeque jamaispoderia falaraosmeuscompanheirosemterra sobre os mistérios que estava por conhecer. Tais fantasias eram, semdúvida,umaocupaçãosingularparaamentedeumhomemnumasituação tãoextrema–edesdeentãosempreconsidereiqueasrevoluçõesdobarcoemtornodoturbilhãopodemtermedeixadoumpoucodesnorteado.

“Houveumaoutracircunstância,queacaboupormedevolverapresençadeespírito: a cessação do vento, que não nos alcançava na posição em queestávamos – visto que, como você mesmo pôde observar, o cinturão derebentaçãoéconsideravelmentemaisbaixodoqueoleitonormaldooceano,eesteúltimoseelevavaagorasobrenóscomoumamontanhanegradeágua.Sevocênunca esteve nomar emmeio a uma tempestadepesada, nãopode fazerideiadaconfusãomentalqueoventoeoaçoitedeáguapulverizadaprovocamemconjunto.Elescegam,ensurdecemeestrangulam,minamsuacapacidadedeagir ou refletir. Mas nós estávamos agora, em grande medida, livres dessasaflições – como prisioneiros condenados à morte, a quem são concedidospequenosfavoresqueeramproibidosquandoacondenaçãoeraincerta.

“É impossível dizer quantas vezes percorremos o circuito do cinturão.Rodamoserodamossempararportalvezumahora,maisvoandoqueflutuando,chegandocadavezmaisparadentrodarebentaçãoe,portanto,maisemaispertodesuahorrívelbordainterna.Durantetodoessetempo,eununcalargueiaargoladatranca.Meuirmãoestavanapopa,segurando-senumpequenobarrildeáguavazio, que fora amarrado com firmeza no viveiro do casco e que era a únicacoisaquenãotinhasidovarridaparalongedoconvésquandoaprimeirarajadade vento nos pegou. Quando ficamos bem perto da beira do sumidouro, elelargou o barril e partiu para a argola, da qual, na agonia de seu terror, tentousoltarminhasmãosà força,vistoqueelanãoeragrandeosuficienteparaquequatromãosaagarrassem.Sentiamaiordasdoresquandovioqueeleestavatentandofazer,emborasoubessequeeraumlunáticoquemofazia,ummaníacoalucinadomovido pelomedomais absoluto.Disputar comele, entretanto, nãotinhasentido.Eusabiaquenãofaziaamenordiferençaquequalquerumdenóssesegurasseounão;entãodeixeiatrancaparaeleefuiàpopaparaficarcomobarril. Não houve grande dificuldade nomeu deslocamento, porque a sumacacorria emcírculos combastante estabilidade, nahorizontal – apenasoscilandoparaláeparacánasagitaçõesturbilhonantes.Eumaltinhameestabelecidonanovaposiçãoquandoobarcoguinoubrutalmenteparaestibordoeseprecipitoude frente no abismo.Murmurei uma ligeira prece aDeus e pensei que estava

tudoacabado.“Sentindo o impulso vertiginoso da descida, segurei forte na barrica, por

instinto,efecheiosolhos.Poralgunssegundosnãotivecoragemdeabri-los–eaguardeiminhadestruiçãoimediata,eestranheiqueaindanãoestivesseemmeuenfrentamento de morte com a água. Mas o tempo passava e passava. E euestavavivo.Asensaçãodaquedacessara;eomovimentodobarcoeraquaseomesmodeantes,dequandoestávamosnocinturãodeespuma,àexceçãodequeagoraelepareciaavançarmaisaocomprido.Respireifundoeabriosolhosparaocenário.

“Nunca esquecerei as sensações de espanto, horror e admiração com queolhei àminha volta. Como que pormágica, o barco parecia estar correndo, ameio caminho da descida, sobre a superfície interior de um funil descomunal,vasto em sua circunferência e estupendo de tão profundo, cujas paredes,perfeitamente lisas, poderiam até ser confundidas com ébano, não fosse arapidezdesconcertanteemquegiravam,nãofossearadiânciafantasmagóricaecintilante que emitiam, à medida que os raios da lua cheia, vindos daquelabrechacircularentreasnuvensquejádescrevi,jorravam,emgloriosainundaçãodeouro,nasuperfícienegra,edepoisnasprofundezaslongínquas,nosrecessosmaisremotosdoabismo.

“Deinícioeuestavaconfusodemaisparapoderobservardireitoascoisas.O que eu via era uma formidável explosão de grandiosidade. Quando merecupereiumpouco,noentanto,meuolharsedirigiuinstintivamenteparabaixo.Nessadireçãoeuconseguiaobterumavisãodesobstruída,pelamaneiraemqueasumaca pendia na superfície inclinada do funil. Nossa quilha estava bastantenivelada,oumelhor,oconvéseaáguaformavamlinhasparalelas–masaáguase inclinavanumângulodemaisde45graus, demodoqueparecíamosquaseadernados.Nãodeixeideperceber,entretanto,quenessasituaçãonãoeranadadifícil permanecer no lugar ou ficar de pé, como se estivéssemos em planohorizontal;issosedevia,suponho,àvelocidadeemquerodávamos.

“Osraiosdaluapareciamquerersondarofundodoimensoabismo;maseunão conseguia distinguir nada, em função de umanévoa espessa que envolviatudo,sobreaqualpairavaumarco-írismagnífico,semelhanteàponteestreitaebamboleanteque, segundoosmuçulmanos,éoúnicoatalhoentreo tempoeaeternidade. Essa névoa, ou espuma pulverizada, era gerada sem dúvida pelacolisão das enormes paredes do funil, quando se chocavam juntas no fundo –masobramidoquesubiaaoscéusapartirdaquelanévoaéalgoquenãoousotentardescrever.

“Quandocaímosdocinturãodeespuma,deslizamosredemoinhoabaixoporumagrande distância, numprimeiromomento;mas a partir daí não descemosmais no mesmo ritmo. Seguíamos rodando e rodando, não num movimentouniforme,masemvertiginososarranqueseespasmos,quenosimpeliamàsvezesapenasporalgumascentenasdemetroseàsvezesporquasetodoocircuitodovórtice. Nosso progresso para baixo, a cada volta, era lento, mas muitoperceptível.

“Olhando em torno de mim, pelo deserto de ébano líquido sobre o qualéramosarrastados,percebiquenossobarconãoeraoúnicoobjetocolhidopeloturbilhão. Tanto acima quanto abaixo de nós se viam fragmentos deembarcações,grandespedaçosdemadeiramedeconstruçãoetroncosdeárvores,alémdemuitascoisasmenores,comopeçasdemobília,caixasquebradas,barriseaduelas.Jádescreviacuriosidadeanormalquetomaraolugardemeusterroresiniciais.Elapareciaganharforçaàmedidaqueeuficavamaisemaispertodomeutenebrosodestino.Comeceiaobservar,comestranhointeresse,asinúmerascoisasqueflutuavamemnossacompanhia.Sópodiaserdelírio–porqueeraatédivertido calcular e comparar suas velocidades nas várias descidas rumo àespumadofundo.‘Estetroncodeabeto’,eumevidizendoacertaaltura,‘serácertamenteapróximacoisaadaroterrívelmergulhoparaodesaparecimento’–e então fiquei decepcionado ao ver que os destroços de um navio mercanteholandês tomaram sua frente e sumiramprimeiro. Por fim, depois de ter feitováriasconjeturasdessetipo,enganando-meemtodas,essefato,ofatodequeeuerrava todososcálculos, inspirou-meumanova linhade reflexão–eosmeusmembrosvoltaramatremer,eomeucoraçãocomeçouabaterrápidooutravez.

“Nãoeraumnovoterroroquemeafetava,eraodespertaremocionantedeuma esperança. Essa esperança brotou em parte da memória e em parte dasminhasobservaçõesdomomento.Lembrei-medagrandevariedadedematerialflutuantequeseespalhavapelacostadeLofodenequeeraabsorvidaedepoisexpelidapeloMoskoe-ström.A imensamaioriadosobjetos sedespedaçavadamaneiramaisextraordinária,voltavamtãoesfoladosearruinadosquepareciamumamontoadodelascas–masentãorecordeicomclarezaquealgunsdelesnãovoltavamnemumpoucodesfigurados.Nãohaviaexplicaçãoparaessadiferença,salvoasuposiçãodequeosfragmentosdestroçadoseramosúnicosquetinhamsidocompletamenteabsorvidos–dequeosoutrostinhamcaídonoredemoinhonummomentomaistardiodamaré,ouporalgumarazãotinhamdescidomuitodevagardepoisdecair,deformaquenãochegaramaofundoantesdaviradadofluxooudorefluxo,conformefosseocaso.Imagineiquefossepossível,nessas

suposições, que os objetos pudessem ser regurgitados de volta ao nível dooceano sem ter sofrido o destino daqueles que são atraídos mais cedo ouabsorvidosmaisrápido.Tambémfiztrêsimportantesobservações.Primeiroque,via de regra, quanto maiores eram os corpos, mais rápida era sua descida;segundo que, entre duas massas de mesmo volume, uma esférica e outra dequalqueroutroformato,avelocidadedadescidaerasuperiornocasodaesfera;terceiro que, entre duasmassas demesmo tamanho, uma cilíndrica e outra dequalquer outro formato, a cilíndrica era absorvida mais lentamente. Desde aminhasalvação,tiveváriasconversassobreesteassuntocomumvelhoprofessordeescoladodistrito;efoicomelequeaprendiautilizarostermos‘cilindro’e‘esfera’.Elemeexplicou,emboraeutenhaesquecidoaexplicação,queoqueeuobservava era, na verdade, consequência natural das formas dos fragmentosflutuantes – e me mostrou como acontecia de um cilindro, deslizando numvórtice,oferecermaisresistênciaàsucçãoeser tragadocommaiordificuldadedoqueumcorpodemesmovolumeedequalqueroutroformato.[7]

“Haviaumacircunstânciasurpreendentequecontribuiumuitoparareforçarminhasobservaçõeseparaqueeualmejasseusá-lasemmeufavor:acadavoltacompleta,passávamosporalgocomoumbarril,ouporumavergaoumastrodenavio, emuitas dessas coisas, que se achavam ao nosso nível quando abri osolhos para asmaravilhas do redemoinho, estavam agora bem acima de nós, epareciampoucotersemovidodesuaposiçãooriginal.

“Nãohesiteimaisquantoaoquefazer.Decidimeamarrarcomfirmezaaobarrildeáguaemqueestiverameagarrando,cortarascordasqueoprendiamaocasco eme atirar com ele na água. Chamei a atenção domeu irmão fazendosinais,aponteiparaeleosbarrisflutuantesqueseaproximavamdenósefiztudoqueestavaemmeupoderparaqueeleentendesseoqueeuestavaprestesafazer.Julgueiporfimqueelecompreenderaomeuplano–mas,fosseesseocasoounão,elesacudiuacabeçaemdesesperoeserecusouaabandonarsuaposiçãonaargoladatranca.Eraimpossíveliratéele;aemergênciadasituaçãonãoadmitiadelonga;eassim,numarenúnciaamarga,abandonei-oaoseudestino,amarrei-me ao barril fazendo uso das cordas que o prendiam ao casco eme precipiteiparaomarsemhesitarpornemmaisummomento.

“Oresultadofoiprecisamenteoqueeuesperava.Comoeumesmoestoulhecontandoestahistória–eurealmenteescapei,comovocêvê–,ecomovocêjáestáinteiradodamaneiraemqueconseguimesalvarepodeassimprevertudoqueaindatenhoparadizer,vouapressaraconclusãodomeurelato.Eujáestavanaáguahaviamaisoumenosumahoraquando,aumagrandedistânciademim,

deslocadaparaofundodovórtice,asumacadeutrêsenérgicosgirosemrápidasucessãoe,levandoconsigomeuqueridoirmão,mergulhoudefrente,deumasóvez, para sempre, no caos de espuma do sumidouro. O barril em que eu meamarraradesceraatépoucomaisdoqueametadedadistânciaentreofundodovórtice e o ponto em que eu saltara, e então se deu uma grandemudança naconfiguração do redemoinho. A inclinação das paredes do imenso funil foificando cada vez menos íngreme. As rotações do turbilhão se tornaram,gradualmente, cada vez menos violentas. Aos poucos, a espuma e o arco-írisdesapareceram,eo fundodovórtice começoua subir lentamente.Océu ficoulimpo,osventos seamainaramea luacheia, radiante,descianooestequandome vi de novo na superfície do oceano, tendo à vista a costa de Lofoden eflutuandonopontopeloqualosorvedourodoMoskoe-strömpassara.Eraahorada calmaria –mas omar ainda se erguia em ondas gigantescas, por causa dofuracão.FuiarrastadoviolentamentepelocanaldoStröme,empoucosminutos,fuiimpelidocostaabaixoatéos‘camposdepesca’.Umbarcomeresgatou;euestava no limite da exaustão e (agora que o perigo se fora) incapaz de falar,devidoàmemóriadohorror.Oshomensquemeresgatarameramvelhosamigos,companheiros de todos os dias – mas eles não me conheciam mais do queconheceriam um enviado da terra dos espíritos. Meu cabelo, negro comoazeviche até o dia anterior, estava branco como você o vê agora. Eles dizemtambémquetodaaexpressãodomeurostohaviasetransformado.Conteiaelesaminhahistória–elesnãoacreditaram.Euacontoagoraavocê–enãopossoesperarquevocêponhamaisféneladoqueosalegrespescadoresdeLofoden.”

[1]JosephGlanvill(1636-1680),filósofoereligiosoinglês.(N.T.)[2]Geógrafonúbio: referênciaobscuraqueapareceemoutros textosdePoe,comonoconto“Berenice”,comosendoPtolomeu.(N.T.)[3]Padrenorueguês,escreveusobreoMaelströmem1715.(N.T.)[4]CercadesessentadiasantesdaPáscoa.(N.T.)[5]UmdosriosdoInferno,rioqueferveequeima.(N.T.)[6]AthanasiusKircher(1601-1680),filósofoecientistaalemão.(N.T.)[7]VerArquimedes,“DeIncidentibusinFluido”–lib.2.(N.A.)

OMISTÉRIODEMARIEROGÊT[1]

Es giebt eine Reihe idealischer Begebenheiten, die der Wirklichkeitparallel lauft. Selten fallen sie zusammen. Menschen und zufallemodifieiren gewohulich die idealische Begebenheit, so dass sieunvollkommen erscheint, und ihre Folgen gleichfalls unvollkommensind. So bei der Reformation; statt des Protestantismus kam dasLutherthumhervor.Existem sucessões ideais de eventos que ocorrem paralelamente aoseventosreais.Elesraramentecoincidem.Oshomenseascircunstânciascostumammodificaressasucessãoideal,logo,elapareceimperfeita,esuasconsequênciassãotambémimperfeitas.AssimfoicomaReforma;emvezdeprotestantismo,veiooluteranismo.

Novalis.[2]MoraleAnsichten.

Não há, mesmo entre os mais serenos pensadores, quem não tenhaocasionalmente sido tomado por uma sensação vaga mas excitante de fé nosobrenatural, desencadeada por coincidências cujo caráter tem aparência tãoincrível que o intelecto não consegue processá-las comomeras coincidências.Taissensações–umavezqueafévagaaquemerefironuncatemaforçatotaldopensamento–, taissensaçõesrarasvezessãocontidaspor inteiro,anãoserpor referênciaàdoutrinadoacasoou,comoo termo técnicodiz,peloCálculodasProbabilidades.Essecálculoé,emessência,puramentematemático;assim,temosaanomaliadomaisexatorigorcientíficoaplicadaaoquehádesombrioeespiritualnamaisintangívelespeculação.

Os detalhes extraordinários que sou exortado a tornar públicos, como severá, constituem a principal ramificação de uma série de coincidências quaseininteligíveis,cujaramificaçãosecundáriaseráreconhecidaportodososleitoresnorecenteassassinatodeMARYCECILIAROGERS,emNovaYork.

Quando,emumconto intitulado“Osassassinatosda ruaMorgue”, tentei,cerca de um ano atrás, descrever algumas características bastante notáveis da

natureza mental do meu amigo, o Chevalier[3] C. Auguste Dupin, não meocorreuqueeununcaesgotariaoassunto.Adescriçãoeraoqueconstituíaomeupropósito, e tal propósito foi inteiramente cumprido na sucessão frenética decircunstâncias escolhidas para exemplificar as idiossincrasias de Dupin. Eupoderiaterfornecidooutrosexemplos,porémpoucomaisseriaprovado.Eventosrecentes, entretanto, em seu desenvolvimento surpreendente, conduziram-me adetalhes adicionais, os quais trazem consigo ares de confissão forçada. Tendoouvidooquerecentementeouvi,seriamesmoestranhoeumecalardiantedoquepresencieitantotempoatrás.

NodesenrolardatragédiaenvolvidanasmortesdeMadameL’Espanayeesua filha, oChevalier descartou o assunto namesma hora e reincidiu em seucostumeiro mau humor ensimesmado. Com minha tendência, em todos osmomentos,adistrair-meemtodososmomentos,prontamentemedeixeivencerpelo humor dele.E enquanto ocupávamos nossos cômodos noFaubourgSaintGermain, jogamos o Futuro ao vento e adormecemos tranquilos no Presente,tecendoemsonhosomaçantemundoànossavolta.

Noentanto,essessonhosnãoforamtotalmenteininterruptos.Deimediato,pode-se supor que não havia arrefecido na opinião da polícia parisiense aimpressão causada pelo papel desempenhado por Dupin no drama da ruaMorgue.Entreseusemissários,onomedeDupinhaviasetornadopopular.Nãosurpreende que o caso tenha sido considerado quase como ummilagre – nemque a capacidade analítica doChevalier tenha sido atribuída à intuição – emvirtude de o caráter simples das induções por meio das quais ele haviadesenredado o mistério nunca ter sido explicado nem ao delegado nem aninguémmaisanãosereu.SuafranquezaterialevadoDupinacorrigirqualquerpré-julgamento de quem lhe interrogasse. Mas seu temperamento indolenteimpediu qualquer discussão adicional sobre um tópico cujo interesse, paraDupin,hámuitohaviacessado.Foiassimqueeleseviunocentrodasatençõesdapolícia,enãoforampoucososcasosemquetentaramusarseusserviços.UmdoscasosmaisdignosdenotafoioassassinatodeMarieRogêt.

OeventoocorreucercadedoisanosapósoscrimesdaruaMorgue.Marie,cujo nome de batismo e sobrenome chamam de imediato atenção por suasemelhançaaonomedamoçaassassinadaemNovaYork, eraaúnica filhadaviúvaEstelleRogêt.Opaihaviamorridoquandoelaeracriança,e,daépocadamorte dele até dezoitomeses antes do assassinatoque constitui o objetodestanarrativa,mãeefilhahaviammoradonaRuePavéeSaintAndrée[4],ondeasra.Rogêtadministravaumapensãocomaajudadafilha.Tudocorreunormalmente

atéMariecompletarovigésimosegundoaniversário,quandosuaimensabelezaatraiu a atenção de um perfumista que ocupava uma das lojas do subsolo doPalais Royal e cuja clientela era composta sobretudo pelos aventureirosdesesperados que infestavam aquela vizinhança. Le Blanc não ignorava asvantagens que a presença da bela Marie traria a seu estabelecimento, e suaproposta generosa foi aceita com entusiasmo pela moça, ainda que com umacertahesitaçãoporpartedeMadameRogêt.

As expectativas do comerciante se concretizaram, e empouco tempo sualoja ficou famosa por conta do charme da jovial funcionária. Ela estavatrabalhando com ele havia cerca de um ano quando seus admiradores foramacometidos por uma grande confusão em virtude de seu desaparecimentorepentinodaloja.Osr.LeBlancnãotinhacomoexplicaraausênciadamoça,eMadame Rogêt foi tomada por grande ansiedade e temor. Os jornaisimediatamente exploraram o tema, e a polícia estava prestes a começar umainvestigaçãoquando,numabelamanhã,apósolapsodeumasemana,Marie,emboasaúdemascomaspectoumtantoabatido,retomouopostoatrásdobalcãonaperfumaria.Todas as investigações, anão ser asdenaturezaprivada, foram, éclaro,imediatamenteabafadas.Osr.LeBlancprofessoutotalignorância,comoantes.Marie,comMadameRogêt,respondeuaquemlheperguntouquepassaraa semana na casa de um parente no interior. Assim, o caso esfriou e foiesquecido. Já a moça, sem dúvida a fim de escapar da impertinência dacuriosidade, logo se despediudoperfumista e buscouo abrigoda casa de suamãe,naRuePavéeSaintAndrée.

Maisoumenoscincomesesdepois,osamigosdeMarieficaramalarmadosporumsegundodesaparecimento.Trêsdiassepassaramsemnotíciasdela.Noquarto dia, seu corpo foi encontrado boiando no Sena[5], perto da margemoposta ao distrito daRue SaintAndrée e em um ponto nãomuito distante daisoladavizinhançadoBarrièreduRoule.[6]

Abrutalidadedoassassinato(poisficouevidentequeumassassinatohaviasido cometido), a juventude e a beleza da vítima e, acimade tudo, sua prévianotoriedadeconspiraramparaproduzirumaintensacomoçãonaimpressionávelopinião pública dos parisienses. Não me recordo da ocorrência de nenhumeventosemelhantequetenhacausadoefeitostãogeneralizadoseprofundos.Pordiversas semanas, com a discussão de um tema tão envolvente, até mesmotópicospolíticosimportantesnaordemdodiaforamesquecidos.Odelegadofezesforçosincomuns,eaforçapolicialparisienseinteirafoi,éclaro,mobilizadaàexaustão.Quandosedescobriuocorpo,nãosesupunhaqueoassassinopudesse

esquivar-se,pormaisdoqueumbreveperíodo,dainvestigaçãorecém-iniciada.Foi somente após o término da primeira semana que se considerou necessáriooferecer uma recompensa. E, mesmo assim, a recompensa foi limitada a milfrancos.Nessemeio-tempo,ainvestigaçãoprosseguiuvigorosa,aindaquenemsemprelevadacomdiscernimento,emuitosindivíduosforaminvestigadossemqualquerpropósito.Enquanto isso,devidoàcontínuaausênciadepistasparaomistério, a agitação popular aumentou gravemente. Ao fim do décimo dia,julgou-se recomendável redobrar a soma originalmente oferecida. E, por fim,transcorridaasegundasemanasemnenhumanovadescobertaecomaprofundadesconfiança,emdiversasémeutes[7],quesempreexistiuemParisemrelaçãoàpolícia,odelegadoseencarregoudeoferecer,elemesmo,asomadevintemilfrancos“pelacondenaçãodoassassino”ou, sehouvesseprovadequemaisdeum criminoso estava implicado, “pela condenação de qualquer um dosassassinos”.Nadeclaraçãoemqueseanunciouarecompensa,umindultototalfoi prometido ao cúmplice que apresentasse evidências contra seu parceiro, eforamafixados,ondequerqueficassemvisíveis,cartazesfeitosporumcomitêdecidadãosoferecendodezmilfrancos,queseriamsomadosàquantiapropostapelachefaturadepolícia.A recompensa inteira ficouemnãomenosque trintamilfrancos,umasomaextraordináriaselevarmosemcontaasituaçãohumildedamoçaeanotávelfrequência,emcidadesgrandes,deatrocidadescomoaaquidescrita.

Ninguém duvidava que o mistério desse crime seria imediatamenteesclarecido.Noentanto,aindaqueemumaouduasinstânciastenhamsidofeitasdetenções que prometiam conduzir a uma elucidação, nada se revelou quepudesseimplicarossuspeitos,osquaisforamliberados.Porestranhoquepareça,a terceira semana desde a descoberta do corpo passou, e passou sem que selançasse luz sobre o assunto e sem que qualquer rumor sobre os eventos queconsternaramaopiniãopúblicaalcançassemosouvidosdeDupinouosmeus.Ocupadosempesquisasqueabsorviamnossatotalatenção,jápassaraquaseummêsdesdequeumdenóshaviasaídodecasa,recebidoumavisitaoudadoumaolhadelaquefosseaosprincipaisartigossobrepolíticadeumdosjornaisdiários.AprimeirainformaçãosobreocrimefoitrazidaporG.empessoa.Eleapareceunoiníciodatardedodia13dejulhode18–––eficouconoscoatétardedanoite.Estava irritadocomseu fracassoemdesentocarosassassinos.Sua reputação–assim ele afirmou com um ar peculiarmente parisiense – estava em jogo.Inclusivesuahonraestavaemrisco.Osolhosdopúblicosepunhamsobreele,enão havia sacrifício que ele não estivesse disposto a fazer pela resolução do

mistério.Concluiu seu discurso um tanto cômico comumelogio ao que, comsatisfação, denominou o tato de Dupin e lhe fez uma proposta direta, ecertamente generosa, que eu nãome sinto no direito de revelar,mas que nãoinfluenciaemnadaoassuntodaminhanarrativa.

O elogio meu amigo refutou como pôde, mas a proposta ele aceitou deimediato,emboraasvantagensfossemtotalmenteefêmeras.Estabelecidoisso,odelegadoirrompeuaexplicarsemdelongasseuspontosdevista,intercalando-oscom longos comentários sobre as evidências, das quais ainda não tínhamosposse. Ele discorreu bastante, sem dúvida de forma instrutiva, e eu arriscavasugestões ocasionais enquanto a noite se arrastava, sonolenta. Dupin, sentadoimóvel em sua poltrona, era a personificação da atenção respeitosa. Ele usouseus óculos durante toda a conversa, e uma espiada ocasional por debaixo desuas lentes verdes foi suficiente para me convencer de que ele não haviadormido tão profunda quanto silenciosamente ao longo das sete ou oito horasdesenfreadasqueprecederamapartidadodelegado.

Namanhãseguinteprovidenciei,nadelegacia,umrelatóriocompletocomtodas as evidências levantadas e, emvários jornais, cópias de todosos artigosnos quais, do início ao fim, tivessem sido publicadas quaisquer informaçõesdecisivasarespeitodotristecaso.Livredetudoquehaviasidocategoricamenteinvalidado,todoesseaglomeradodeinformaçãoindicouoseguinte:

MarieRogêtdeixouaresidênciadamãe,naRuePavéeSaintAndrée,pertodasnovehorasdamanhãdedomingo,dia22dejunhode18–––.Aosair,avisouaosr.JacquesSt.Eustache[8],eaelesomente,suaintençãodepassarodiacomumatia,queresidianaRuedesDrômes.ARuedesDrômeséumaviacurtaeestreita,apesardepopulosa,nãomuitodistantedasmargensdorioequeficaacercadetrêsquilômetros,seguindoocaminhomaisdiretopossível,dapensãodasra.Rogêt.St.EustacheeraonamoradodeMarie,oqualpernoitavaefaziasuasrefeiçõesnapensão.Eleficoudebuscaranamoradaaoanoitecereacompanhá-laatéemcasa.À tarde,entretanto,caiuumachuva fortíssima,e,supondo queela passaria a noite na casa da tia (conforme havia feito anteriormente emcircunstânciassemelhantes),eleachoudesnecessáriomantersuapromessa.Como cair da noite, ouviu-se a sra.Rogêt (uma idosa enferma, de setenta anos deidade)manifestarseutemor“dequenuncamaisveriaMarie”.Essaobservaçãonãochamouatençãonaquelemomento.

Na segunda-feira, averiguou-se que amoça não havia estado naRue desDrômes e, tendo o dia transcorrido sem notícias dela, buscas tímidas foraminiciadasemdiversospontosdacidadeenosarredores.Foisomentenoquarto

diaapósseudesaparecimentoqueseapurouqualquer informaçãosatisfatóriaarespeitodela.Nessedia(quarta-feira,25dejunho),osr.Beauvais[9],que,comumamigo,procuravaporMariepertodoBarrièreduRoule,namargemdoSenaoposta àRuePavéeSaintAndrée, recebeu a informação de que um corpo foiretirado do rio por pescadores que o haviam encontrado boiando. Ao ver ocadáver,Beauvais,apóscertahesitação,identificou-ocomoocorpodamoçadaperfumaria.Seuamigoaidentificoumaisprontamente.

Orostodelaestava tingidoporumsangueescuro,emparteexpelidopelaboca.Nãoseencontrouespuma,comoocorrecomosmeramenteafogados.Nãohaviadescoloraçãodapele.Naáreadagargantahaviahematomasemarcasdededos.Osbraçosestavamdispostossobreopeitoerígidos.Amãodireitaestavafechada; a esquerda, parcialmente aberta. No pulso esquerdo havia duasescoriações circulares, aparentemente causadas por cordas ou por uma cordaenrolada em espiral. O pulso direito também estava bastante esfolado, assimcomo toda a extensão das costas, em especial as omoplatas.Ao carregarem ocorpo até a margem, os pescadores o amarraram com cordas, mas nenhumaescoriação foi afetada. O pescoço estava muito inchado. Não havia cortesaparentes nem hematomas que sugerissem pancadas. Um pedaço de tecidoestavaamarradocomtamanhaforçaaoredordopescoçoquenãodavaparavê-lo,poisestavacompletamenteafundadonacarneepresoporumnólogoabaixodaorelhaesquerda.Issoporsisóseriasuficienteparacausaramorte.Olaudomédico determinou sem hesitação a castidade da vítima. Ela foi submetida,segundoolaudo,aumaviolênciabrutal.Ocorpoestavaemumacondiçãotalaoserencontradoquenãohaveriadificuldadeemserreconhecidoporamigos.

Ovestidoestavatodoesfarrapadoedesarrumado.Daparteexteriordesuasroupas, um retalho de cerca de trinta centímetros de largura fora rasgadoparacimaapartirdabainha inferior até a cintura,masnão foi arrancado.Eledavatrêsvoltasaoredordacinturaeestavapresoporumaespéciedelaçonascostas.Asanáguaspordebaixodatúnicaeramdemusselinafina,edaliumretalhodecercade45centímetrosforatotalmenteextraído–uniformementeecomgrandecuidado.Essepedaçocircundavaopescoço,bastantefrouxoepresoporumnófirme.Sobreesseretalhodemusselinaeoretalhorasgadoapartirdabainha,asalçasdosutiãforamatadas, juntocomosutiã.Onóqueuniaasalçasdosutiãnãoeraumnósimples,massimumnódemarinheiro.

Apósoreconhecimentodocorpo,elenãofoi,comoseriaocostume,levadoaonecrotério(poiseraumanecessidadesupérflua),massimenterradoàspressaspertodeondeospescadoresodepuseram.PorcausadoempenhodeBeauvais,o

assunto foi criteriosamente abafado, tanto quanto possível, e vários dias sepassaram antes que se manifestasse qualquer perturbação pública. Um jornalsemanal[10],noentanto,abordouotemaemminúcias.Ocorpofoiexumadoeumanovainvestigaçãofoiinstituída,masnadaseobtevealémdojáobservado.As roupas, no entanto, foram mostradas à mãe e aos amigos da falecida eidentificadascomoasqueamoçatrajavaaosairdecasa.

Nessemeio-tempo,aexcitaçãoemtornodocrimenãoparavadeaumentar.Diversosindivíduosforampresoseliberados.St.Eustacheeraumdosprincipaissuspeitos, e ele não conseguiu, de início, dar uma explicação plausível sobreonde andou no domingo em que Marie saiu de casa. Logo em seguida,entretanto,eleofereceuaosr.G.umdepoimentojuramentadoemqueesclareceudemodosatisfatórioseuparadeiroemcadahoradodiaemquestão.Conformeotempo passava e não surgiam novas descobertas, milhares de rumorescontraditórioscomeçaramacircular,eos jornalistaspassaramaseocuparcomboatos. Entre eles, o quemais atraiu atenção foi a ideia de queMarie Rogêtainda estavaviva – queo corpo encontradonoSenapertencia a algumaoutrainfeliz. É conveniente que eu ofereça ao leitor alguns trechos que ilustrem oreferidoboato.EstaspassagenssãotraduçõesliteraisdoL’Étoile[11],umjornaladministradocommuitacompetência.

“Asrta.Rogêtdeixouacasadesuamãenodomingo,dia22dejunho,pelamanhã,comoobjetivodeclaradodeirvisitarsuatia,oualgumoutroparente,naRuedesDrômes.Apartir daquelahora,nãoháprovasdequealguéma tenhavisto. Não há rastro nem nenhuma notícia dela. (…) Entretanto, ninguém atéagora declarou tê-la encontrado naquele dia após amoça ter saído da casa damãe.(…)Agora,apesardenãohaverevidênciasdequeMarieRogêtpertenciaaindaaomundodosvivosapósasnovehorasdamanhãdodomingo,dia22dejunho,temosprovasdeque,atéaquelahora,elaestavaviva.Naquarta-feiraaomeio-dia, um corpo feminino foi encontrado boiando perto da margem doBarrièreduRoule. Issoocorreu, aindaque sepresumaqueMarieRogêt tenhasido jogada no rio dentro de três horas depois de ter deixado a casa damãe,apenastrêsdiasapóstersaídodecasa–trêsdiaseumahora.Maséumatoliceacreditar que o assassinato, se é que seu corpo sofreu assassínio, tenha sidocometidocedoapontodepermitirqueoscriminososjogassemseucorponorioantesdameia-noite.Osculpadosdecrimestãohediondospreferemaescuridãoàluz.(…)Assim,vemosque,seocorpoencontradonorioeraodeMarieRogêt,elesomentepoderiaestarnaáguahádoisdiasemeioouentãoficaratrêsdiasfora da água, na margem. Todas as experiências mostram que cadáveres de

afogados ou corpos jogados na água imediatamente após uma morte violentarequerementreseisadezdiasparachegaraumgraudedecomposiçãoqueostraga à tona.Mesmo quando um cadáver libera gases e emerge antes de ficarsubmerso aomenos cinco ou seis dias, ele submerge novamente se não sofrernenhumaoutrainterferência.Assim,questionamos,oquehouvenestecasoqueinterrompeuocursonormaldanatureza?(…)Seocorpo tivessesidomantidoemseuestadomutiladonamargemdorioatéterça-feiraànoite,algumvestígiodos assassinos teria sido ali encontrado. Questiona-se, da mesma forma, se ocorpoemergiriatãocedo,aindaquetenhasidojogadonaáguadoisdiasapósamorte. Além disso, é muitíssimo improvável que qualquer bandido que tenhacometidoumcrimecomoesteemquestãojogasseocorponaáguasemumpesoque o submergisse, quando tal precaução poderia ter sido tomada comfacilidade.”

Ojornalista,nesseponto,começaaargumentarqueocorpodeveterficadonaágua“nãomeramentetrêsdias,masnomínimocincovezesisso”,porqueseuestadodedecomposiçãoestavatãoavançadoqueBeauvaistevedificuldadeemfazer o reconhecimento. Este último ponto, no entanto, foi refutado porcompleto.Prossigocomatradução:

“Quaissãoosfatos,então,baseadonosquaisosr.BeauvaisafirmanãoterdúvidadequeocorpoencontradoéodeMarieRogêt?Elerasgouamangadovestidoeafirmou tervistomarcasqueoconvenceramacercada identidadedamorta. A opinião pública supôs que se tratava de algum tipo de cicatriz. Eleesfregou seu braço e encontrou pelos sobre ele – algo tão impreciso,acreditamos, como pode ser prontamente imaginado –, algo tão poucoconclusivo quanto encontrar um braço sob uma manga. O sr. Beauvais nãoretornounaquelanoite,masmandouavisarasra.Rogêt,àssetehoras,nanoitedequarta-feira,queumainvestigaçãosobresuafilhaestavaemandamento.Seadmitirmos que a sra. Rogêt, devido à idade e ao sofrimento, não podialocomover-se (o que é admitirmuito), seria de se esperar que alguémachasseconveniente ir até lá e ocupar-se da investigação, se havia suspeitas de que ocorpoeradeMarie.Ninguémfoi.Nadaseescutounemfoiditosobreoassuntona Rue Pavée St. Andrée que tenha chegado aos ouvidos nem aomenos dosocupantes da mesma casa. O sr. St. Eustache, namorado e futuro marido deMarieehóspededapensãodamãedesta,declarouquesósoubedadescobertadocorpodesuaprometidanamanhãseguinte,quandoosr.Beauvaisentrouemseuquartoelhecontou.Emsetratandodeumanotíciacomoessa,espanta-nostãofriarecepção.”

Dessaforma,o jornalempenhou-seemcriarumaimpressãodeapatiaporparte dos familiares de Marie, o que não condiz com a suposição de que afamília acreditassequeo corpoeradela.Essas insinuações levamao seguinte:que Marie, com a conivência de seus amigos, havia deixado a cidade pormotivos relacionados a umadenúncia contra sua castidade, e que tais amigos,quando da descoberta de um corpo que se parecia um pouco com a moça,resolveramtirarvantagemdaoportunidadeparaimpressionaraopiniãopúblicacom a convicção em suamorte.Mas oL’Étoile de novo se precipitara. Ficouprovadoquenãohouve, como se imaginou, apatia nenhuma; que a sra.Rogêtestavamuitíssimochocadae tãoperturbadaque ficou incapacitadade cumprirqualquer obrigação oficial; que St. Eustache, longe de receber a notícia comfrieza,ficoutranstornadocomosofrimentoeagiucomtamanhofrenesiqueosr.Beauvais convenceu um amigo e parente a tomar conta dele e evitar que elecomparecesseàexumação.Alémdisso,apesardeoL’Étoileterafirmadoqueocorpo foi enterrado novamente às custas do dinheiro público, uma ofertavantajosadeumasepulturaparticularfoiterminantementerecusadapelafamília,e ninguém da família compareceu ao velório – embora tudo isso tenha sidodeclaradopeloL’Étoilepara fomentar a impressão que o jornal se propunha afomentar –, ainda assim, tudo isso foi satisfatoriamente desmentido. Em umnúmerosubsequentedojornal,foifeitaumatentativadejogarassuspeitassobreopróprioBeauvais.Oeditordisse:

“Agora,umdesdobramentosurgesobreocaso.Contaram-nosque,emumaocasião, enquanto a sra. B. estava na casa da sra. Rogêt, o sr. Beauvais, queestava de saída, disse-lhe que um gendarme estava indo para lá, a quem,entretanto,elanãodeveriadizernadaatéqueBeauvaisretornasse,quedeixasseaquele assunto para ele resolver. (…) No presente estado de coisas, o sr.Beauvais parece ter a questão encerrada em sua cabeça.Nemumúnico passopode ser dado sem o sr. Beauvais pois, para qualquer lado que andemos,acabaremos por nos opor a ele. (…) Por alguma razão, ele determinou queninguém deve se envolver com providências a serem tomadas que não elemesmo e escanteou os parentes do sexomasculino, tirando-os do caminho deumamaneira muito singular, de acordo com suas declarações. Ele parece serferrenhamentecontrárioapermitirqueosfamiliaresvejamocorpo.”

Por meio do fato a seguir, floreou-se a suspeita que recaía então sobreBeauvais.Umvisitanteemseuescritório,algunsdiasantesdodesaparecimentodamoçaeduranteaausênciadeBeauvais,viuumarosanoburacodafechadurada porta e o nome “Marie” escrito no quadro-negro pendurado ao lado. A

impressãogeral,conformepudemosextrairdosjornais,pareciaserdequeMariehaviasidovítimadeumaganguedefacínoras–queahaviamcarregadoatravésdo rio, maltratado e assassinado. O Le Commerciel[12], no entanto, umperiódicodeinfluênciaabrangente,combateuessaideiacomdeterminação.Citoumaououtrapassagemdesuasmatérias:

“Estamosconvencidosdequeabuscaatéagorapartiudefalsassuspeitas,noquetangeaconcentrar-senoBarrièreduRoule.Éimpossívelqueumapessoatãoconhecidaportodoscomoessamoçatenhapassadoportrêsquarteirõessemqueninguématenhavisto,equemquerqueativessevistoirialembrar-se,poisquemaconheciaaqueriabem.Foiquandoasruasestavamcheiasdegentequeelasaiu. (…)É impossívelqueelapossa tersaídodoBarrièreduRouleoudaRue des Drômes sem ser reconhecida por uma dúzia de pessoas; todavia,ninguémqueatenhavistosairsemanifestou,enãoháevidências,comexceçãodo testemunho a respeito da intenção declarada da moça, de que ela sequersaíra. (…) Seu vestido estava rasgado, enrolado em torno do seu corpo eamarrado, e ela foi carregada como um embrulho. Se o crime tivesse sidocometidonoBarrièreduRoulenãohaverianecessidadedetaispreparativos.OfatodeocorpotersidoencontradoboiandopertodoBarrièrenadaprovasobreolocalapartirdoqualelefoijogadonorio.(…)Umpedaçodasanáguasdapobremoça,desessentacentímetrosdecomprimentoe trintade largura, foi rasgado,enlaçadoaoredordopescoçoeamarradonanuca,provavelmenteparaimpedirgritos.Issofoifeitoporindivíduosquenãotraziamlençosconsigo.”

Entretanto, um ou dois dias antes de o delegado nos contatar, umainformaçãoimportantechegouatéapolíciaepareceudeitarporterraaomenosaspartesprincipaisdaargumentaçãodoLeCommerciel.Doismeninos,filhosdasra. Deluc, enquanto perambulavam pela floresta perto do Barrière du Roule,penetraramporacasoemumbosquefechado,ondeencontraramtrêsouquatropedrasgrandesque formavamum tipodebanco comencostopara as costas epara os pés. Sobre a pedra superior havia uma anágua; sobre a segunda, umlenço de seda.Uma sombrinha, luvas e um lenço de bolso também foram aliencontrados.O lençoostentavaonome“MarieRogêt”.Fragmentosdovestidoforamdescobertos nos arbustos ao redor.A terra estava pisoteada, os arbustosestavam quebrados e havia evidências de luta. No caminho entre o bosquefechadoeorio,ascercasforamderrubadaseosoloapresentavaevidênciasdequealgopesadoforaarrastadoporali.

Umjornalsemanal,oLeSoleil[13],fezosseguintescomentáriossobreasdescobertas – comentários que ecoaram o sentimento de toda a imprensa

parisiense:“Evidentemente todas aquelas coisas haviam estado lá por três ou quatro

semanas nomínimo; estavammuitomofadas pela ação da chuva e como quegrudadasporcausadomofo.Agramacresceuemvoltaesobrealgunsdositens.Asedadasombrinhaeraforte,masseusfioscriaramnós.Apartedecima,ondeelahaviasidodobrada,estavatodaemboloradaeapodrecidaeserasgouquandoa sombrinha foi aberta. (…)Os pedaços do vestido que foram rasgados pelosespinhosdosarbustos tinhamcercadeoito centímetrosde larguraequinzedecomprimento.Umdosretalhoserapartedabainha,quehaviasidoremendada;ooutroretalhoerapartedocorpodasaia,enãodabainha.Elaspareciamfaixasque tivessem sido rasgadas e estavam sobre o espinheiro, a cerca de trintacentímetrosdochão.(…)Nãorestadúvidadequesedescobriuolocaldaquelachocanteindignidade.”

Comoconsequênciadessasdescobertas,novasevidênciassurgiram.Asra.Deluc testemunhou que mantinha uma pensão de beira de estrada perto damargem do rio oposta ao Barrière du Roule. A vizinhança é isolada –particularmente isolada. É o refúgio dominical de salafrários da cidade, quecruzamoriodebarco.Porvoltadastrêshoras,natardedodomingoemquestão,umamoçachegouàpensão,acompanhadaporumrapazdetezmorena.Osdoisficaramaliporalgumtempo.Aopartirem,pegaramaestradaemdireçãoaumbosquequeficavanasredondezas.Asra.Delucprestouatençãonasroupasqueamoçavestia,poislhelembravamasdeumaparentafalecida.Olençolheatraiuemespecial.Logo após a saídado casal, apareceuumbandode cafajestes, osquaissecomportaramruidosamente,comeramebeberamsempagar,pegaramamesmaestradaqueorapazeamoça,retornaramàpensãopertodoentardecerecruzaramorioaparentandomuitapressa.

Foilogoapóscairanoite,naquelamesmadata,queasra.Deluceseufilhomaisvelhoouviramosgritosdeumamulhernascercaniasdapensão.Osgritosforam violentos mas breves. A sra. Deluc reconheceu não apenas o lençoencontradonomato,mastambémovestidocomoqualocorpoforadescoberto.Ummotoristadeônibus,Valence[14],testemunhouqueviuMarieRogêtcruzaroSena de balsa, naquele domingo fatídico, na companhia de um rapaz de tezmorena.ValenceconheciaMarieenãoseenganariaarespeitodesuaidentidade.OsartigosachadosnobosqueforamtodosidentificadospelosparentesdeMarie.

As evidências e informações que eu coletara de jornais, por sugestão deDupin, incluíam apenas outro ponto – mas um ponto aparentemente comconsequências enormes. Parece que, logo após a descoberta das roupas,

conformesedescreveu,ocorposemvidaouquasesemvidadeSt.Eustache,oprometidodeMarie, foi encontradopertodo localonde,aoque tudo indica,ohorror acontecera. Encontrou-se perto dele um frasco vazio com uma etiquetaondeestavaescrito“láudano”.Seuhálito indicavaenvenenamento.Elemorreusemfalar.Sobreseucorpofoiencontradaumacarta,declarandobrevementeseuamorporMarieeseupropósitodeautodestruição.

– Nem preciso lhe dizer – falou Dupin, enquanto terminava a leituracompenetrada deminhas anotações – que este caso émuitomais intricado doqueocasodaruaMorgue,doqualeledifereemumimportanteaspecto.Esteéumcrimecorriqueiro,aindaqueatroz.Nãohánadapeculiarmenteoutréacercadele.Vocêvaiobservarque,poressarazão,omistériofoiconsideradofácilderesolver,quandodeveria,pelomesmomotivo,serconsideradodifícil.Assim,noinício,nãoseconsiderounecessáriooferecer recompensa.OsmirmidõesdeG.conseguiramimediatamentecompreendercomoeporquetalatrocidadepoderiatersidocometida. Eles visualizaram, em suas imaginações, ummodo (muitosmodos) e ummotivo (muitosmotivos). Uma vez que não era impossível quenenhumdessesnumerososmodosemotivosfossedefatooverdadeiro,partiramdo pressuposto de que um deles deveria ser o verdadeiro. Mas a facilidadeatribuídaaessasvariáveiseaplausibilidadequecadaumaassumiudeveriamtersidoentendidascomoindicativosdadificuldadeenãodafacilidadequefazpartedo esclarecimento. Observei, por conseguinte, que é elevando-se por sobre oplano do comum que a razão pressente o caminho da verdade, se é que opressente, e que apergunta adequada a esses casosnão é “oque aconteceu?”,mas sim “o que aconteceu aqui que nunca havia ocorrido antes?” Nasinvestigações na casa da sra. L’Espanaye[15], os agentes de G. ficaramdesencorajados e perplexos perante aquelamesmasingularidadeque, para umintelecto bem-ajustado, teria sido um presságio certeiro de sucesso, enquantoesse mesmo intelecto poderia mergulhar em desespero diante do carátercorriqueiro de tudo que se percebia no caso damoça da perfumaria, e que osfuncionáriosdadelegaciaconsideravamindíciosdeumcasofácilderesolver.

“NocasoqueenvolveuMadameL’Espanayeesuafilha,nãohaviadúvidas,mesmonoiníciodasnossasinvestigações,dequesetratavadeumassassinato.A ideia de suicídio foi refutada prontamente.Aqui, damesma forma, estamoslivres,desdeoprincípio,dequalquersuposiçãodesuicídio.OcorponoBarrièreduRoule foi encontrado sobcircunstâncias taisquenãodeixaramespaçoparaincertezas acerca desse ponto tão importante. Mas sugeriu-se que o corpoencontrado não seria o deMarie Rogêt, por cujo assassino, ou assassinos, se

presos,arecompensaéoferecida,umacordoidênticoaoquenegociamoscomodelegado–esomentecomele.Nósdoisconhecemosbemessecavalheiro.Nãoconfiomuitonele.Se,aoconcluirmosoinquéritosobreocadáverepassarmosaperseguiroassassino,descobrirmosqueocorpopertenceaoutroindivíduoquenãoMarie; ou se, ao procurarmosMarie ainda viva, nós a encontrarmos,masnãoassassinada–emqualquerumdoscasosnossoesforçovaiporáguaabaixo,uma vez que é com o sr. G. que negociamos. Para nosso próprio benefício,assim,senãopelajustiça,éindispensávelqueoprimeiropassosejadeterminaraidentidadedocorpodeMarieRogêt,quedesapareceu.

“AargumentaçãodoL’Étoilecausousensaçãonopúblico,eofatodequeojornalestavaconvencidodesua importânciaficouevidentepelamaneiracomoumdosartigossobreoassuntocomeçava: ‘Diversos jornaismatinaisdehoje’,afirmava,‘comentamamatériaconclusivadaediçãodedomingodoL’Étoile’.Amim, talmatéria era conclusivadepoucomaisdoqueo fanatismodequemaescreveu.Nãopodemos perder de vista que, emgeral, o propósito dos nossosjornais é mais causar impacto – para provar seu ponto de vista – do quepromoverabuscapelaverdade.Esteúltimofimsóéseguidoseparececoincidircom o primeiro. O periódico que adota opiniões triviais (não importa o quãobem-fundamentadasejatalopinião)nãoconquistanenhumrespeitocomopovo.Asmassasconsideramsériosomenteaquelequesugerecontradiçõespungentesàideiageral.Noraciocínio,assimcomonaliteratura,éoepigramaqueémaisimediataeuniversalmenteapreciado.Emambos,recebeamaisbaixaordemdemérito.

“Oquequerodizeréquefoiamisturaentreoepigramaeomelodramadaideia de que Marie Rogêt ainda está viva, sem haver nessa ideia nenhumaplausibilidade real, que sugeriu tal conclusão ao L’Étoile e assegurou umarecepção favorável do público. Examinemos os principais argumentos dosjornais,fazendoumesforçoparaevitaraincoerênciacomquesãooriginalmenteanunciados.

“O primeiro objetivo do jornalista é mostrar, a partir da brevidade dointervalo entre o desaparecimento de Marie e o surgimento de um corpoflutuandonorio,quetalcorponãoéodeMarie.Areduçãodesseintervaloasuamenordimensãopossível torna-se, então,uma finalidadeparaoargumentador.Nabuscaimprudentedesseobjetivo,eleseprecipita,desdeocomeço,emmerassuposições.‘Maséumatoliceacreditar’,dizele,‘queoassassinato,seéqueocorposofreuassassínio,tenhasidocometidocedoosuficienteparapermitirqueos criminosos jogassem o cadáver no rio antes da meia-noite.’ Questionamos

imediatamente, e commuita naturalidade,por quê? Por que seria tolice suporqueocrimefoicometidodentrodecincominutosapósamoçadeixaracasadamãe?Porqueseriatolicesuporqueocrimefoicometidoemqualquerperíodododia?Assassinatossãocometidosaqualquerhora.Porém,seocrimetivesseocorrido a qualquer momento entre as nove horas da manhã de domingo e23h45, ainda sobraria tempo ‘suficiente para permitir que os criminososjogassemseucorponorioantesdameia-noite’.Essahipótese,então,levaacrerprecisamente isto: que o crime não foi cometido no domingo. Se permitirmosqueoL’Étoilesuponhaisso,permitiremosquetomequalquerliberdade.ApesardepublicadonoL’Étoile,pode-seconsiderarqueoparágrafoquecomeçacom‘Maséuma toliceacreditaretc.’naverdadeestavaassimnamentedequemoescreveu: ‘Mas é uma tolice acreditar que o assassinato, se é que seu corposofreu assassínio, tenha sido cometido cedo o suficiente para permitir que oscriminosos jogassem seu corpo no rio antes da meia-noite. É uma tolice,afirmamos, supor tudo isso e supor, ao mesmo tempo (já que estamosdeterminadosafazersuposições),queocorponãofoi jogadoaorioatéapósameia-noite’–umafraseinconsequenteporsisó,masnãotãoabsurdaquantoaimpressa.”

Dupincontinuou:–Semeupropósito fossemeramentecriar casocontraessaargumentação

doL’Étoile,eupoderiadeixartudocomoestá.Nossocompromisso,noentanto,nãoécomoL’Étoile,mascomaverdade.Asentençaemquestãoaparentementesó tem um sentido, sobre o qual já discorri o suficiente;mas é essencial queleiamos nas entrelinhas a ideia que tais palavras obviamente procuraramtransmitir sem lograr êxito. O propósito dos jornalistas era afirmar que aqualquer período do dia ou da noite de domingo que o crime tenha sidocometido,seria improvávelqueosassassinossearriscassemaarrastarocorpoaté o rio antes dameia-noite.E é aí, na verdade, que se encontra a suposiçãocontraaqualeuprotesto.Pressupôs-sequeoassassinatofoicometidoemumatal posição e sob circunstâncias tais que carregá-lo até o rio tornou-senecessário.Ora,ocrimepodeterocorridoàsmargensdorio,oumesmodentrodo rio; assim, jogar o corpo na água pode ter sido um recurso a que oscriminososlançarammãoemqualquerperíodododiaoudanoite,jáqueseriaomodomaisóbvioe imediatodese livraremdocorpo.Entenda:nãosugiroquenada disso seja provável nem coincidente com minha própria opinião. Meupropósito,atéagora,nadatemavercomosfatosdocaso.Queroapenaspreveni-lo contra as suposições do L’Étoile, chamando sua atenção para a posição do

periódico,parcialdesdeoinício.“Fixando,dessemodo,umlimiteconvenienteasuasnoçõespreconcebidas

eassumindoque,seaquelecorpoeraodeMarie,elenãohaviaficadonaáguamaisdoqueumbreveperíodo,ojornalafirmaoseguinte:

‘Todas as experiências mostram que cadáveres de afogados ou corposjogadosnaáguaimediatamenteapósumamorteviolentarequeremdeseisadezdias para que haja decomposição suficiente que os faça vir à tona. Mesmoquandoumcadáverliberagaseseeleemergeantesdeficarsubmersoaomenoscincoouseisdias,elesubmergenovamenteseodeixaremcomoestá.’

“EssasafirmaçõesforamtacitamenteaceitasportodososjornaisdeParis,comexceçãodoLeMoniteur[16],quesededicouacombatersomenteotrechoque faz referência a ‘cadáveres de afogados’, citando cinco ou seiscircunstâncias nas quais corpos de indivíduos que morreram afogados foramencontradosflutuandoapósdecorridomenostempodoqueoperíodoemqueoL’Étoile insistia.Mas havia algo de excessivamente ilógico na tentativa doLeMoniteurde refutaraafirmaçãogenéricadoL’Étoileaocitar exceçõesà regraqueimpediriamaquelaafirmação.Aindaquefossepossívelfornecerprovasdecinquentaemvezdecincoexemplosdecorposflutuandoaofimdedoisoutrêsdias, esses cinquenta exemplos bem poderiam ter sido relegados a merasexceções à regra do L’Étoile, até que se chegasse a negar a própria regra.Admitindoaregra(eissooLeMoniteurnãonega,insistindomeramenteemsuasexceções),oargumentodoL’Étoilepodemantertodaaforça,umavezqueesseargumento não tem a intenção de envolvermais do que a probabilidade de ocorpoteremergidoemmenosdetrêsdias,eessaprobabilidadeestaráafavordaposição do L’Étoile até que circunstâncias tão ingenuamente alegadas sejamsuficientesemnúmeroparaestabelecerumaregraantagonista.

“Vocêperceberádesaídaquetodaargumentaçãosobreessetópicodeveserinduzida–seéquedeveserinduzida–contraaprópriaregra.Eparaessefiméprecisoanalisara lógicada regra.Ora, o corpo humano, emgeral, não é nemmais levenemmais pesadodoque a águadoSena; isso significa dizer que agravidadeespecíficadocorpohumano,emcondiçõesnaturais,temvolumeigualaovolumedeáguaquedesloca.Corposdeindivíduosgordosecorpulentoscomossospequenos, edemulheres emgeral, sãomais levesdoqueosdepessoasmagraseossudasedoqueosdehomens;alémdisso,agravidadeespecíficadaáguadeumrioédecertaformainfluenciadapelasmarés.Noentanto,deixandoamarédelado,pode-sedizerquepouquíssimoscorposhumanossubmergiriam,mesmoemáguadoce,espontaneamente.Qualquerpessoa,aocairnumrio,pode

flutuarsemprequeequilibraropesoespecíficodaáguacomoseuprópriopeso,ouseja,quesubmerjamquasetotalmente,comomínimopossívelforadaágua.A posição adequada para quem não sabe nadar é a posição ereta, como seestivessedepé,comacabeçajogadaparatráseimersa,deixandoforadaáguasomente a boca e o nariz. Em tal situação, flutuamos sem dificuldade e semesforço. No entanto, é evidente que a gravidade do corpo e a gravidade dovolumedeáguadeslocadaestãoemfrágilequilíbrio,eamínimamudançapodefazercomqueumaououtrapredomine.Umbraço foradaágua,porexemplo,privadodeseuapoio,gerapesoadicionalsuficienteparaimergirtodaacabeça,ao passo que a ajuda acidental de umpedaço demadeira, ainda que pequeno,permitiráelevaracabeçaosuficienteparaolharao redor.Ora,quemnãosabenadarsemprelevantaosbraçosaodebater-senaágua,aomesmotempoemquetentamanteracabeçaemsuaposiçãoperpendicular.Oresultadoéaimersãodaboca e do nariz e a entrada de água nos pulmões durante os esforços pararespirar.Oestômagotambémrecebeumagrandequantidadedeágua,eocorpotorna-se mais pesado em função da diferença entre o peso do ar que antesocupava tais cavidades e o peso do fluido que agora nelas se encontra. Essadiferençacostumasersuficienteparamergulharocorpo,maséinsuficienteemcasos de indivíduos de estatura pequena e com uma quantidade anormal degordura.Essesindivíduosflutuaminclusivedepoisdeafogados.

“Supondo-sequeocadáverestejanofundodorio,permaneceráaliatéqueporalgummotivoagravidadedeseupesonovamentesetornemenordoqueadovolumedeáguaqueeledesloca.Esseefeitoéprovocado,entreoutrosfatores,pela decomposição.O resultado da decomposição é a produção de gases, quedistendemostecidoscelularesetodasascavidadesedãoaocadáverahorrívelaparência inchada. Quando essa distensão progride a ponto de o volume docadáver aumentar sem o aumento correspondente de massa ou peso, suagravidadeespecífica torna-semenordoqueadaáguadeslocadae,portanto,ocorpoemerge.Adecomposição é influenciadapor inúmeras circunstâncias e éaceleradaouretardadapordiversascausas.Porexemplo,pelofriooupelocalordaestação,pelasaturaçãomineraloupurezadaágua,pelaprofundidadedesta,pela correnteza, pelas características do cadáver, pela presença ou ausência deinfecções antesdamorte.Assim, fica evidentequenãopodemosdeterminar omomento exato emque o cadáver emerge em consequência da decomposição.Sobcertascondições,esseprocessopodeiniciardentrodeumahora;soboutras,pode nem acontecer. Existem substâncias químicas que previnem adecomposição para sempre. O bicloreto de mercúrio é uma delas. Mas, a

despeito da decomposição, pode ocorrer – e em geral ocorre – a produção degases no estômago a partir da fermentação ácida dematérias vegetais (ou emoutrascavidadesporcausasdiversas),aqualpodesersuficienteparafazercomque o cadáver seja levado à superfície. A flatulência produz vibração. Podedesprenderocadáverdalamaoudolodonoqualestáincrustado,permitindoqueeleseeleveàsuperfícieassimqueosfatoresmencionadosotiverempreparadoparatanto.Podetambémvenceraresistênciadeporçõesputrescentesdotecidocelular,fazendocomqueascavidadessedistendamsobainfluênciadosgases.

“Depossedetodasasinformaçõessobreoassunto,podemosfacilmentepôras afirmaçõesdoL’Étoile à prova. ‘Todas as experiênciasmostram’, afirma ojornal, ‘que cadáveres de afogados ou corpos jogados na água imediatamenteapósumamorteviolentarequeremdeseisadezdiasparachegaraumgraudedecomposição que os traga à tona.Mesmo quando um cadáver libera gases eemerge antes de ficar submerso ao menos cinco ou seis dias, ele submergenovamentesenãosofrernenhumaoutrainterferência.’

“A totalidade desse parágrafo agora parece uma confabulaçãoinconsequenteeincoerente.Nemtodasasexperiênciasmostramque‘cadáveresde afogados’ requerem de seis a dez dias de decomposição para que sejamlevadosàtona.Aciênciaeosexperimentosmostramqueoperíododeemersãoénecessariamente indeterminado. Ademais, se um cadáver emergiu devido àliberação de gases, ele não irá ‘submergir novamente se não sofrer nenhumaoutrainterferência’,atéqueadecomposiçãoprogridaapontodepermitirasaídadegases.Gostariadechamar suaatençãoparaadiferençaentre ‘cadáveresdeafogados’ e ‘corpos jogadosnaágua imediatamenteapósumamorteviolenta’.Ainda que tenha feito a distinção entre eles, o jornalista os inclui na mesmacategoria.Mostrei comoocadáverdeumafogado torna-semaispesadoqueovolumedeáguaquedeslocaequeelenão submergeanão serqueeleve seusbraçosaosedebaternaáguaerespireaosubmergir,oquefarácomqueoespaçoantes ocupado por ar nos pulmões seja substituído por água.Mas nada dissoocorre em ‘corpos jogados na água imediatamente após umamorte violenta’.Nesse caso, o cadáver, como regra, não submergirá – fato que o L’Étoileevidentementeignora.Somenteemestadoavançadodedecomposição–quandonãohámaiscarnenosossos–ocadáverdesaparece,masnuncaantesdisso.

“Eoquepodemosconcluirdaalegaçãodequeocadáverencontradonãopoderia ser o de Marie Rogêt porque fora visto boiando após transcorridosapenastrêsdiasdesdeoseudesaparecimento?Porsermulher,épossívelquenãotenha afundado. Se afundou, pode ter reaparecido em um dia oumenos.Mas

ninguémcogitaqueelaseafogou.Seestavamortaantesdeserjogadaaorio,seucadáverpoderiatersidoencontradoemqualquermomentosubsequente.

“Emseguida,oL’Étoileafirmaque‘seocorpotivessesidomantidoemseuestadomutilado na margem do rio até terça-feira à noite, algum vestígio dosassassinos teria sido ali encontrado’. À primeira vista, é difícil perceber aintençãodetalraciocínio.Eleseantecipaaoqueimaginaserumaobjeçãoasuateoriadequeocadáverficoupordiasàmargem,sofrendorápidadecomposição–maisrápidadoqueseestivessesubmerso.Sendoesseocaso,elesupõequeocadáverpoderiateremergidoàsuperfícienaquarta-feiraequesomentesobtaiscircunstâncias ele reapareceria. Portanto, apressa-se emmostrar que o cadávernão ficara na margem pois, se tivesse ficado, ‘algum vestígio dos assassinosteriasidoaliencontrado’.Presumoquevocêsorridiantedetalconclusão.Nãoconsegueentenderdeque formaapermanênciado cadáver namargemdo riopossatercontribuídoparamultiplicarvestígiosdosassassinos.Nemeu.

“‘Além disso, é muitíssimo improvável’, prossegue o L’Étoile, ‘quequalquerbandidoquetenhacometidoumcrimecomoesteemquestãojogasseocorponaáguasemumpesoqueosubmergisse,quandotalprecauçãopoderiatersido tomada com facilidade.’ Observe aqui a risível confusão de pensamento!Ninguémquestiona – nemmesmo oL’Étoile – que o cadáver encontrado foiassassinado. Asmarcas de violência são evidentes. O objetivo do jornalista étão-somentemostrarqueocadávernãoéodeMarie.DesejaprovarqueMarienão fora assassinada, e não que o cadáver não fora. Contudo, sua observaçãocomprovaapenasesteúltimoponto.Háumcadáveraoqualnãose incorporoupesoextra.Osassassinosnãodeixariamdeincorporarpesoextraaocadáveraojogá-lo na água. Logo, ele não foi lançado ao rio pelos assassinos. Nadacomprovaalémdisso,seéquecomprovaalgo.Aquestãodaidentidadesequerélevantada,eoL’Étoile fez tamanhoesforçoapenasparacontradizeraquiloqueadmitira momentos antes. ‘Estamos convencidos’, afirma o jornal, ‘de que ocorpoencontradoédeumamoçaassassinada.’

“Essanãoéaúnicaocasiãoemqueojornalistainvoluntariamentecontradizseus próprios argumentos. Seu principal objetivo, como afirmei, é diminuir omáximopossívelointervaloentreodesaparecimentodeMarieeadescobertadocadáver.Noentanto,percebemosqueeleinsistenofatodequeninguémviraamoçadepoisqueelasaíradacasadamãe.Alegaquenãohavia‘evidênciasdequeMarie Rogêt pertencia ainda aomundo dos vivos após as nove horas damanhãdodomingo,dia22dejunho’.Sendoesseargumentoobviamenteparcial,eledeveria,nomínimo,deixá-lodelado,jáquecasosesoubessedealguémque

tivessevistoMarie,porexemplo,na segundaouna terça-feira,o intervaloemquestão seria bastante diminuído e, conforme seu próprio raciocínio, aprobabilidadedeaquelecadáverserodavendedoraseriapequena.Édivertidoobservar como oL’Étoile insiste nesse ponto acreditando piamente que assimreforçasuaargumentação.

“Reexamineagoraotrechoemquefazreferênciaàidentificaçãodocadáverfeita por Beauvais. No que diz respeito à presença de pelos sobre o braço, oL’Étoileagiucomevidentemá-fé.Nãosendoumidiota,osr.Beauvaisjamaisseapressariaem identificarocadáver simplesmenteapartirdapresençadepelosno braço. Braços contêm pelos. A generalização feita pelo L’Étoile é umadistorção da fraseologia da testemunha.Ele provavelmentemencionou algumapeculiaridade dos pelos. Pode ser uma peculiaridade de cor, quantidade,comprimentooulocalização.

“‘Seus pés eram pequenos’, prossegue o jornal, ‘mas hámilhares de péspequenos.Suascintas-ligas–e seus sapatos– tambémnãoprovamnada,umavez que são vendidos aos montes. O mesmo pode ser dito sobre as florespresentesemseuchapéu.Umpontosobreoqualosr.Beauvaisinsisteéqueapresilhadacinta-ligaforapuxadaparatrás,afimdeajustar-se.Issonãosignificanada,umavezqueamaioriadasmulheresachamaisconvenienteexperimentareajustarascintasasuaspernasemcasa,enãonalojaondeascompraram.’Nessepontoficadifícil levaraargumentaçãoasério.Seosr.Beauvais,nabuscaporMarie, houvesse encontrado um cadáver cujo tamanho e o aspectocorrespondessem às características da moça desaparecida, estaria autorizado(semqualquer referência aos trajesqueelavestia) a concluirqueabusca forabem-sucedida.Se,emreforçoàquestãoacercadoaspectogeraledo tamanho,tivesse encontrado pelos com características pecualiares cuja presença tivessesido observada emMarie quando viva, sua opinião poderia fortalecer-se comtodalegitimidade.Eograudecertezapoderiaserproporcionalàsingularidadeouàraridadedetaispelos.SendoospésdeMariepequenoscomoosdocadáver,o aumento da probabilidade de que o cadáver era o de Marie não seria umaumentodeproporçãomeramentearitmética,massimdeproporçãogeométricaoucumulativa.Acrescentem-se a issoos sapatosqueelausavanodia emquedesapareceu, os quais, ainda que sejam ‘vendidos aos montes’, aumentam aprobabilidade ao limite da certeza. Aquilo que por si mesmo não constituiriaevidência de identidade torna-se, por sua posição corroborativa, uma provasólida. Somem-se a isso flores no chapéu iguais às que a moça desaparecidausavaenãoprecisamosdemaisnada.Umasóflorbastaria–oquedizerentão

deduas,três?Cadaflorsucessivaéumaprovamúltipla–nãoprovassomadasaprovas,masmultiplicadasporcentenasoumilharesdevezes.Tragamosàbailaadescobertadecintas-ligasnocadáver,iguaisàsqueamoçausava,eéquaseumatolice prosseguir. Percebe-se que as cintas foram ajustadas do mesmo modocomoMariehaviaajustadoassuaspróprias,puxandoapresilhaparatrás,poucoantes de sair de casa. Agora é loucura ou hipocrisia duvidar. A afirmação doL’Étoile de que ajustar cintas-ligas é uma prática comum indica apenas suainsistência no erro.A natureza elástica da presilha das cintas é por si só umademonstraçãodaexcepcionalidadedoajuste.Aquiloqueé feitoparaajustar-seraramente requer ajustes extras.Deve ter sido por acidente, no sentido estrito,que as ligas de Marie precisaram do ajuste descrito. E elas isoladamente jábastariamparaestabeleceraidentidade.Masofatoéquenãoseencontraramnocadáverasmesmascintasdamoçadesaparecida,ouseussapatos,ouseuchapéuouasfloresdochapéu,oupésdomesmotamanho,ouumamarcapeculiarsobreo braço, ou estatura e fisionomia iguais à da moça – o fato é que o cadáverapresentavatudoissoaomesmotempo.Sesepudesseprovarqueoeditor-chefedo L’Étoile realmente fomentava dúvidas diante de tais circunstâncias, nemhaveria necessidade de um mandado de intervenção por insanidade[17]. Eleachou sagaz papagaiar a conversa fiada dos advogados, os quais, na maioria,contentam-seemmatraquearpreceitos intransigentesdos tribunais.Eugostariade salientar quemuito do que é rejeitado como evidência em um tribunal é amelhor das provas para a inteligência, pois o tribunal, guiado por princípiosgerais já reconhecidos eregistrados, rejeita guinadas em casos particulares. Eessa rígida aderência à lei, com inflexível desconsideração de exceçõescontraditórias,éummodosegurodeabarcaromáximode veracidadepossívelem qualquer sequência de tempo. Tal prática, aplicada universalmente, é,portanto, filosófica, mas nem por isso deixa de engendrar vastos errosindividuais.

“A respeito das insinuações levantadas contra Beauvais, você irádesconsiderá-las em um instante. Você já deve ter vislumbrado a verdadeiranaturezadessecavalheiro.Éumbisbilhoteiro, dado a fantasias e pouco sagaz.Qualquer pessoa com tais características, em ocasiões de grande conturbação,prontamenteirácomportar-sedeformaaatrairassuspeitasdosultraperspicazesoudosmal-intencionados.Osr.Beauvais,conformeosapontamentosquevocêcompilou,conversoucomoeditordoL’Étoileeoinsultouaoarriscaropinarqueocadáver,aocontráriodoqueafirmavaojornal,erasemdúvidaodeMarie.‘Eleinsiste’, prossegueo jornal, ‘emafirmarqueocadáver éodeMarie,masnão

apresenta nenhuma circunstância, em adição às que já comentamos, que façacomqueoutraspessoascorroboremsuacrença.’Ora,semreiterarofatodequeevidências mais fortes que ‘façam com que outras corroborem sua crença’jamaispoderiamseraduzidas,ébomlembrarque,emumcasodessanatureza,umapessoapodeserinduzidaaratificarumaopiniãosemqueconsigajustificaromotivo. Nada é mais vago do que impressões individuais sobre identidade.Reconhecemos o vizinho; no entanto, somente em poucas situações estamospreparados para dar uma razão que justifique nossa impressão. O editor doL’Étoilenãotinhaodireitodeofender-secomafaltadeexplicaçãodacrençadeBeauvais.

“Ascircunstânciassuspeitasqueocercamcondizemmuitomaiscomminhahipótesedequeeleéumenxeridodadoafantasiasdoquecomainsinuaçãodeculpa lançada pelo jornal. Adotando uma interpretação mais indulgente, nãoteremos dificuldade em compreender a rosa no buraco da fechadura, o nome‘Marie’ escrito no quadro-negro, o motivo pelo qual Beauvais ‘escanteou osparentesdosexomasculino’eaparentou‘serferrenhamentecontrárioapermitirqueosfamiliaresvissemocorpo’,arecomendaçãoàsra.B.paraquenãofalassecomogendarmeatéqueBeauvaisretornassee,porfim,adeterminaçãodequeninguémdeveriaseenvolvercomasprovidênciasaseremtomadasquenãoelemesmo. Parece-me inquestionável que o sr.Beauvais cortejavaMarie, que elaflertoucomeleequeelepretendia fazercrerquegozavada total intimidadeeconfiança dela. Não direi mais nada a respeito desse ponto. E como asevidências refutampor completo a alegação doL’Étoile no que diz respeito àapatia da sra. Rogêt e de outros familiares – uma apatia inconsistente com asuposiçãodequeacreditavamqueocadávereraodamoça–,prossigamosagorasupondo que a questão acerca da identidade tenha sido satisfatoriamenteresolvida.”

–Eoquevocêpensa–indaguei–sobreasopiniõesdoLeCommerciel?– Que, em essência, são muito mais dignas de atenção do que qualquer

outra proclamada sobre o assunto. As deduções a partir das premissas sãoracionais e apuradas. Porém em ao menos duas situações as premissas estãofundamentadas emobservações parciais.OLeCommerciel deseja levar a crerqueMarie foraatacadaporumaganguedevândalospertodacasadamãe. ‘Éimpossível’,incitaojornal,‘queumapessoatãoconhecidaportodoscomoessamoçatenhapassadoportrêsquarteirõessemqueninguématenhavisto.’EssaéanoçãodeumhomempúblicoquehámuitoresideemParisecujascaminhadaspelacidadelimitam-se,namaioria,àsvizinhançasdasrepartiçõespúblicas.Ele

sabequeraramenteandamaisdoquedozequarteirõesatéseuescritóriosemserreconhecidoeabordado.Reconhecendooalcancedesuasrelaçõespessoais,elecompara sua notoriedade com a da balconista da perfumaria, não encontragrandes diferenças entre ambas e chega à conclusão de que ela, em suascaminhadas, seria tão passível de ser reconhecida quanto ele. Isso somentepoderia ocorrer se as caminhadas dela tivessem omesmo caráter invariável emetódico e fossem confinadas à mesma espécie de região que as dele. Eleperambula, em intervalos regulares, em uma periferia confinada, cheia deindivíduos que são levados a observá-lo a partir do interesse na naturezasemelhantedaocupaçãodelecomassuaspróprias.MasascaminhadasdeMariepodem,nogeral,serjulgadaserrantes.Nessecaso,omaisprováveléconsiderarqueela tomouumcaminhodiferentedoquecostumava tomar.OparaleloqueimaginamosqueoLeCommerciel traçou sópoderia ser sustentadonocasodedoisindivíduoscruzandoacidadeinteira.Nessecaso,comagarantiadequeonúmerodeconhecidosseja igual,aschancesdeencontraromesmonúmerodeconhecidos também seriam iguais. Acredito que é possível e muito maisprovável que Marie tenha tomado, a qualquer momento, qualquer um dostrajetos entre a sua casa e a casa da tia sem encontrar uma só pessoa queconhecesseouporquemfossereconhecida.Aoanalisarestetemasobadevidaótica, não podemos esquecer a grande desproporção entre o número deconhecidosdeumapessoa,atémesmodosujeitomaisconhecidodeParis,eapopulaçãototaldacidade.

“MassejaqualforaforçaqueasugestãodoLeCommercielaindapareça,elaserábastantediminuídaao levarmosemcontaahoraemqueamoçasaiu.‘Foiquandoasruasestavamcheiasdegente’,afirmaoLeCommerciel,‘queelasaiu.’Não foi bem assim. Eram nove horas damanhã.Ora, às nove horas damanhãasruasestãoapinhadasdegente,excetoaosdomingos.Àsnovehorasdedomingo todos estão em casa preparando-se para ir à igreja. Um observadoratentonãodeixariadenotaroarparticularmentedesérticodacidadedasoitoàsdezhorasdamanhãemtodososdomingos.Entredezeonzehorasasruasestãocheiasdegente,masnãotãocedoquantonohorárioassinalado.

“HáoutropontoemqueháfalhasnaobservaçãodoLeCommerciel. ‘Umpedaçodasanáguasdapobremoça’,afirmaoperiódico,‘desessentacentímetrosdecomprimentoetrintadelargura,foirasgado,enlaçadoaoredordopescoçoeamarrado na nuca, provavelmente para impedir gritos. Isso foi feito porindivíduos que não traziam lenços consigo.’ Se essa ideia está ou não bem-fundamentada, logo veremos.Mas ao mencionar ‘indivíduos que não traziam

lençosconsigo’ojornalserefereaosmaisdesclassificadosdosvândalos.Esses,no entanto, constituem exatamente o tipo de pessoas que nunca serãoencontradassemumlenço,mesmoqueestejamsemcamisa.Vocêdevetertidoaoportunidade de perceber o quão indispensável o uso de lenços tornou-se nosúltimosanosparaosbandidosmaisimplacáveis.”

–EoquedevemospensararespeitodoartigodoLeSoleil?–perguntei.–Queéumapenaqueseuautornãotenhanascidoumpapagaio.Eleseriao

mais ilustre de sua raça. Meramente repetiu pontos individuais de artigos jápublicados,coletando-osaquieali,desteedaquelejornal.‘Evidentementetodasaquelas coisas haviam estado lá’, afirma, ‘por três ou quatro semanas nomínimo’, e prossegue dizendo: ‘Não restadúvidade que se descobriu o localdaquelachocante indignidade.’OsfatosaquireformuladospeloLeSoleilestãolonge de eliminar minhas dúvidas sobre o assunto, e mais adiante osexaminaremosemdetalhesnoquetangeaoutrotópicodotema.

“Nomomentoprecisamosnosocuparcomoutrasinvestigações.Vocêdeveternotadoaextremanegligênciadoexamedocadáver.Porcertoaquestãodaidentidadefoiprontamenteresolvida,oudeveriatersido.Masháoutrospontosque devem ser averiguados. O cadáver fora, de alguma forma, roubado? Avítimausavajoiasaosairdecasa?Emcasoafirmativo,aindaasusavaquandoencontrada? Essas são perguntas importantes que foram ignoradas pelasinvestigações. E há outras de igual importância que não receberam atenção.Precisamos fazer um esforço para que nos satisfaçamos com interrogatóriospessoais.Ocasodosr.St.Eustachedeveserreexaminado.Nãotenhosuspeitascontra o sujeito, mas prossigamos metodicamente. Podemos determinar semsombra de dúvida a validade do testemunho sobre seu paradeiro no domingo.Testemunhosdessanaturezafacilmentesetornamalvodemistificações.Senãohouvernadaerradoaqui,afastaremosSt.Eustachedenossasinvestigações.Seusuicídio,quecorroborariasuspeitasemcasodefalsotestemunho,nãoédemodoalgum, casoo testemunho seja verdadeiro, umeventoquenosdesvie da linhanormaldeanálise.

“A partir do que apresentarei agora, deixaremos de lado os aspectosinternosdatragédiaenosconcentraremosnospontosperiféricos.Umdoserrosmais comuns das investigações é limitar o inquérito ao imediato,desconsiderando totalmente eventos colaterais ou circunstanciais. Os tribunaissãonegligentes emconfinar evidências ediscussõesdentrodos limitesdoqueconsideram relevante. Contudo a experiência mostra, como o pensamentoracionalsempremostrará,quegrandepartedaverdade,senãoamaiorpartedela,

surge daquilo que aparentemente é irrelevante. É através do espírito desseprincípio, literalmente, que a ciência moderna determinou-se a preverimprevistos.Mas talvezeunãoesteja sendoclaro.Ahistóriadoconhecimentohumanomostra incessantemente que devemos a eventos colaterais, incidentaisou acidentais asmaisnumerosas evaliosasdescobertas.Por isso é necessário,em antecipação ao progresso, fazer as maiores concessões a invenções quesurjam por acaso e estejam fora do alcance das previsões comuns. Já não éracional fundamentar sobre o passado uma visão do porvir. Acidentes sãoadmitidos como uma parte da subestrutura. Transformamos o acaso numaquestão de cálculo absoluto. Submetemos o inesperado e o inimaginado àsfórmulasmatemáticasescolares.

“Repitoque éum fato consumadoque amaiorparte da verdade surja deeventos colaterais. E não é senão de acordo com o espírito do princípioenvolvidonessefatoquedesvioainvestigação,nopresentecaso,doinfrutíferoejátrilhadocaminhoqueopróprioeventotomouparaascircunstânciasatuaisqueocercam.Enquantovocêanalisaaveracidadedos testemunhos,examinareiosjornaismaisgenericamentedoquevocêosexaminouatéagora.Atéomomento,fizemos o reconhecimento do campo da investigação.E será estranho que umlevantamentoabrangentedosperiódicos,talcomoproponho,nãonosforneçaosindíciospontuaisqueestabelecerãoadireçãodoinquérito.”

ConformeasugestãodeDupin,fizumexamemeticulosodostestemunhos.OresultadofoiafirmeconvicçãoemsuaveracidadeeaconsequenteinocênciadeSt.Eustache.Nessemeio-tempo,meuamigoocupava-se–comumaminúciaqueamimpareciaforadepropósito–doescrutíniodeartigosdos jornais.Aofimdeumasemanaelemeapresentouosseguintestrechos:

“Cerca de três anos e meio atrás, uma conturbação muito semelhante àpresentefoicausadapelodesaparecimentodamesmaMarieRogêtdaperfumariado sr. Le Blanc no Palais Royal. Após uma semana, entretanto, a moçareapareceueretomouseuposto,bemdispostacomosempre,comexceçãodeumleveabatimentoumtantoincomum.Osr.LeBlanceamãedamoçadeclararamqueelahaviavisitadoumamigonointerior,eocasofoiprontamenteabafado.Presumimos que o presente desaparecimento de Marie seja um capricho damesmanaturezaeque,emumasemanaoutalvezummês,atenhamosdevoltaentrenósoutravez.”–EveningPaper,segunda-feira,23dejunho.[18]

“Umjornaldeontemmencionaummisteriosodesaparecimentoanteriordasrta.Rogêt.Sabe-seque,durantesuaausênciadaperfumariadosr.LeBlanc,amoçaestavanacompanhiadeum jovemoficialdaMarinhacujadevassidãoé

notória.Supõe-sequeumadiscussãoatenhafeitoretornarparacasa.Sabemosonomedo libertino emquestão, que está nomomento destacado emParis,masporrazõesevidentesnãoodivulgaremosaopúblico.”–LeMercurie,terça-feira,24dejunho.[19]

“Uma indignidade das mais atrozes foi perpetrada perto da cidadeanteontem.Aoentardecer,umcavalheiro,nacompanhiadaesposaedafilha,afimdecruzarorio,contratouosserviçosdeseisrapazesqueremavamumbarcoa esmo de um lado a outro do Sena. Ao atingir a margem oposta, os trêspassageirosdesembarcaramejáperdiamobarcodevistaquandoafilhadeu-secontadequehaviaesquecidosuasombrinhaabordo.Aoretornarparabuscarasombrinha, foi atacada pela gangue, arrastada pela correnteza, amordaçada,tratada com violência e por fim levada à margem até um ponto não muitodistantedeondehaviaembarcadocomseuspais.Osbandidosescaparameaindanãoforamencontrados,masapolíciajáestánoencalçodeseusrastrosealgunsdelesembreveserãopresos.”–MorningPaper,25dejunho.[20]

“Recebemos um ou dois comunicados cuja intenção é atribuir aMennais[21]aautoriadocrimeatrozhápoucocometido,masumavezqueelefoi plenamente liberado por falta de provas no inquérito policial, e como osargumentos dos acusadores parecem mais preconceituosos do que profundos,nãojulgamosaconselhável torná-lospúblicos.”–MorningPaper,28de junho.[22]

“Recebemos diversos comunicados – escritos com impetuosidade eprovenientesdeváriasfontes–queconsideraminquestionávelqueMarieRogêttenhasidovítimadeumadasinúmerasquadrilhasdevândalosqueinfestamosarredores da cidade aos domingos. Somos favoráveis a essa posição.Empenharemo-nos em divulgar algumas dessas opiniões daqui pra frente.” –EveningPaper,30dejunho.[23]

“Nasegunda-feira,umdosbalseirosligadosaoserviçoalfandegárioviuumbarcovaziodescendooSena.Asvelasestavamnofundodobarco.Obalseiroorebocou até a doca das balsas alfandegárias. Na manhã seguinte o barco foiretiradodalisemoconhecimentodasautoridades.Olemeestáagoranadoca.”LeDiligence,quinta-feira,26dejunho.[24]

Apósaleituradosdiversostrechos,elesnãosómepareceramirrelevantescomoeunão conseguia perceber sua influência sobre o crime.Esperei, assim,algumaexplicaçãodeDupin.

– Não tenho a intenção – ele disse – de me deter sobre o primeiro e osegundo artigo. Eu os compilei principalmente para mostrar-lhe a extrema

negligência da polícia, que, a partir do que soube pela chefatura, não seincomodou em interrogar o oficial da marinha mencionado. Contudo é toliceafirmarquesupostamentenão há relação entre o primeiro desaparecimento deMarieeosegundo.Admitamosqueaprimeirafugatenharesultadonumabrigaentreocasalenavoltadamoçatraídaaolar.Podemosagoraencararasegundafuga(sedefatohouveumasegundafuga)comoaindicaçãodeumatentativadonamoradoemreatarcomamoça,enãocomoconsequênciadaparticipaçãodeumsegundopretendente.Ouseja,podemosencararcomoumareconciliação,enãocomooiníciodeumnovorelacionamento.Sãodedezparaumaschancesde que a nova fuga fora proposta pelo antigo namorado e não por um novoindivíduo.Equerochamaraatençãoparaofatodequeoperíodoquediscorreuentreaprimeiraeasupostasegundafugaéalgunsmesesmais longodoqueoperíodo que emgeral os navios de guerra cruzamosmares.Onamorado forainterrompido, na primeira investida contraMarie, pela necessidade de sair emserviço? Aproveitara a primeira oportunidade, ao retornar, de renovar seusdesígniosaindanãorealizados–ouaindanãorealizadosporele?Nadasabemossobreisso.

“Noentanto,vocêdiráqueosegundodesaparecimentonão foiuma fuga,comoseimagina.Certamentenãofoi.MaspodemosafirmarqueaintençãodeMarienãoerafugir?AlémdeSt.Eustache,etalvezBeauvais,nãoencontramosnenhumpretendentedeMariedignodenota.Nadafoiditosobrenenhumoutro.Queméentãooamantesecreto,sobrequemosfamiliares(ouamaioriadeles)nadasabem,queMarieencontranasmanhãsdedomingoequedesfrutadesuaconfiança a ponto de ela não hesitar em ficar com ele até o cair da noite nosbosques ermos doBarrière duRoule?Quem é o amante secreto, pergunto eu,sobrequem amaioria dos familiares nada sabe? E o que significa a estranhaprofecia da sra. Rogêt na manhã do desaparecimento da jovem, ‘receio quenuncamaisvereiMarie’?

“Mas se não podemos imaginar que a sra. Rogêt estivesse a par dasintenções de fuga, não podemos aomenos supor que fosse essa a intenção damoça?Aosairdecasa,elaavisouquevisitariaa tianaRuedesDrômes,eSt.Eustache ficou encarregado de buscá-la ao entardecer. À primeira vista, issodepõecontraoquesugeri.Porém,reflitamos.Sabe-sequeelaencontrou-secomalguémecruzouoriocomesseacompanhante,chegandoàmargemdoBarrièreduRoulemaistardaràstrêshorasdatarde.Mas,aoconsentiracompanharessecavalheiro(porqualquermotivoquefosse,comousemoconhecimentodamãe),eladeveterlevadoemconsideraçãoqueinformaraseuparadeiroaosairdecasa

equecausariasurpresaedespertariasuspeitasemSt.Eustache,que,aobuscá-lanohoráriocombinadonaRuedesDrômes,descobririaqueelanãohaviaestadolá. Além disso, retornando à pensão com essa alarmante notícia, ele tomariaconhecimentodequeelacontinuavaausente.Eladeveterpensadonessascoisas,acredito.DeveterprevistoadecepçãodeSt.Eustache,assuspeitasdetodos.Elanão deve ter pensado em retornar para enfrentar as suspeitas, as quais teriampoucaimportânciasesupusermosqueelanãopretendiaretornar.

“Podemosimaginarqueelapensouoseguinte:‘Fugireiparaencontrarumapessoa com quem pretendo casar em segredo, ou para outros fins conhecidosapenaspormimmesma.Éprecisoquenãohajainterferências.Precisodispordetempo suficiente para evitar que me procurem. Farei com que saibam quevisitarei e passarei o dia com minha tia na Rue des Drômes. Pedirei a St.Eustachequenãomebusqueantesdoanoitecer.Dessemodo,tereiumadesculpapara justificar minha ausência pelo maior período possível sem levantarsuspeitasnemcausarpreocupação,eassimganhareimaistempo.SeeupediraSt.Eustachequemebusqueaoanoitecer,elecertamentenãoiráantesdisso.Massenãolhepedirquemebusque,tereimenostempoparafugir,umavezquemeesperariam em casa mais cedo e minha ausência não tardaria em causarpreocupação.Agora,seminhaintençãoévoltarparacasaapósumbrevepasseiocomoindivíduoemquestão,nãoseriaconvenientesolicitarqueSt.Eustachemebuscasse.Aomebuscar,eleverificariaqueeuhaviamentido,oquepoderiaserevitadoseeusaíssedecasasemavisá-loaondeiria,voltasseantesdoanoiteceredissessequevisitaraminhatianaRuedesDrômes.Mascomojamaispretendoretornar,oupelomenosnãonaspróximassemanas,atéqueeupossaevitarquealgunsfatosvenhamàtona,ganhartempoéaúnicacoisacomquetenhodemepreocupar.’

“Vocêdeveterpercebidoemseusapontamentosqueaopiniãogeralsobreocrime,desdeoinício,édequeamoçafoivítimadeumaganguedevândalos.Aopinião pública, sob certas condições, não deve ser desconsiderada. Quandosurgeporsimesma–nasocasiõesemquesemanifestademaneiraestritamenteespontânea – devemos considerá-la análoga à intuição característica dosformadores de opinião. Em 99 casos entre cem eu acataria seu julgamento.Poréméimportantequenãoseencontremrastrosdesugestionamento.Aopiniãodeveserrigorosamenteadopúblico.Emuitasvezesédifícilperceberesustentartaldistinção.Nessecasoespecífico,parece-mequea‘opiniãopública’,noquediz respeito à gangue, foi induzida pelo evento paralelo descrito no terceiroartigo que lhe mostrei. Paris inteira está agitada em função da descoberta do

cadáverdabela,jovemepopularMarie.Ocadávermostramarcasdeviolênciaaoserencontradoflutuandonorio.Surgeainformaçãodequenaquelemesmohorárioemquesupostamenteamoçafoiassassinadaumaselvageriadenaturezasemelhante ao que a falecida sofreu,mas demenor grau, foi cometida contrauma segunda moça por uma gangue de vândalos. Não é de espantar que osegundo crime influencie o julgamento da opinião pública a respeito doprimeiro. Tal julgamento aguardava uma direção, e o crime contra a segundamoçaparecia tãooportunamenteoferecer-lheum rumo!Marie fora encontradanorio,enaquelemesmorioregistrou-seaocorrênciadeumsegundocrime.Aconexãoentreosdoiscrimesera tãoevidentequeseriaestranhoqueaopiniãopúblicanãoapercebesseeexplorasse.Naverdade,amaneirabrutalcomqueumdos crimes foi cometido é evidência de que o outro crime, ocorrido quase aomesmotempo,não foi cometido damesma forma. Teria sido ummilagre queuma gangue de vândalos perpetrasse emumdeterminado local um crime semprecedentesequeumaganguesimilar,numaregiãopróxima,namesmacidade,sobasmesmascircunstânciasecomosmesmosmeioseinstrumentosestivessecometendoumcrimedamesmanatureza,nomesmohorário!Aindaassim,noque senão nessa impressionante cadeia de coincidências a opinião pública,acidentalmentesugestionada,nosapelaaacreditar?

“Antes de prosseguir, consideremos a cena do assassinato nos bosquesfechados do Barrière du Roule. O bosque, apesar de denso, localiza-se nasredondezas de uma via pública. Havia ali três ou quatro grandes pedras,formandoumaespéciedeassento,comencostoparaascostasedescansoparaospés.Napedradecimaencontraram-seasanáguasbrancas;nasegundapedra,amantadeseda.Asombrinha,asluvaseolençotambémforamachadosali.NolençoestavaescritoonomedeMarieRogêt.Fragmentosdovestidoforamvistosnosgalhosaoredor.Osoloestavapisoteado,osarbustosestavamquebradosehaviatodosossinaisdeumalutaviolenta.

“Apesar da excitação com que a descoberta do bosque foi recebida pelaimprensaedaunanimidadeemsuporqueaqueleeraolocaldocrime,éprecisoadmitirque restaespaçoparadúvidas.Eupoderiaacreditarounãoqueaqueleera o local exato do crime, mas havia excelentes razões para duvidar. Se overdadeirocenário,comosugeriuoLeCommerciel,fossenasredondezasdaRuePavée St. Andrée, os criminosos, supondo que morassem em Paris, ficariamaterrorizados ao perceber que a atenção pública se dirigia com tanta precisãoàquele local. Em certas pessoas, isso faria com que surgisse a necessidade deempenhar-seemcriar fatosquedesviassemaatenção.Dessemodo,diantedas

suspeitas sobre Barrière du Roule, a ideia de colocar os itens no local ondeforamencontradospoderiatersidoconcebida.Nãoháevidênciareal,apesardasuposiçãodoLeSoleil,dequeosobjetosdescobertostenhamestadomaisdoquepoucosdiasnamata,aopassoquehádiversasprovascircunstanciaisdequeelesnão poderiam ter ficado ali sem chamar atenção durante os vinte diastranscorridosentreodomingofatídicoeatardeemqueforamencontradospelosmeninos.

“Todososobjetos‘estavammuitomofados’,dizoLeSoleil,‘pelaaçãodachuva e como que grudados por causa domofo.A grama cresceu em volta esobrealgunsdositens.Asedadasombrinhaeraforte,masseusfioscriaramnós.A parte de cima, onde ela havia sido dobrada, estava toda embolorada eapodrecida e se rasgouquando a sombrinha foi aberta.’O fatode a grama tercrescido‘emvoltaesobrealgunsdositens’obviamentesópodeserconfirmadoapartirdaspalavrasedamemóriadedoismeninos,umavezqueelesmexeramnosobjetose levaramalgunsparacasaantesqueterceirososvissem.Agramacresce,especialmenteemclimasquenteseúmidos(comoodoperíodoemqueocorreu o assassinato), oito a dez centímetros em um só dia. Uma sombrinhapousadasobrearelvapoderia,emumasósemana,ficartotalmenteocultapelocrescimentodagrama.EnoqueserefereaomofosobreoqualojornalistadoLeSoleil tanto insiste, referindo-se a ele não menos do que três vezes no curtoparágrafocitado,eleconheceanaturezadessemofo?Elenãosabequesetratadeumavariedadedefungocujaprincipalcaracterísticaénasceremorrernoprazodeumdia?

“Vemosassim,derelance,queoquefoialegadodemodotriunfalemapoioàideiadequeosobjetosficaramali‘portrêsouquatrosemanasnomínimo’nãotemvalidade alguma.Poroutro lado, émuito custoso acreditarqueosobjetosficaramnobosqueporumperíodosuperioraumasemana–deumdomingoaoutro.QuemconheceaperiferiadeParissabeoquãodifíciléencontrar locaisermos,anãosermuitolongedossubúrbios.Nemporummomentoseimaginaapossibilidade de haver recessos não-explorados ou pouco frequentados entrebosquesealamedas.Considereumamantedanatureza,presopelodeveràpoeiraeaocalordestagrandemetrópole,quetentesaciarsuasededeisolamento,atémesmoemdiasúteis,entreosencantosnaturaisquenosrodeiam.Acadapassoseuencantamentoserá interrompidopelasvozesepela intrusãodebaderneirosou pela farra de vândalos. Procurará privacidade nos bosquesmais densos emvão. É exatamente nesses retiros que a ralé se encontra; são esses os templosmaisprofanados.Enojado,bateráemretiradadevoltaà imundaParis,que lhe

parecerá um sumidouromenos repulsivo. Se os arredores da cidade são assimfrequentadosemdiasúteis,imagineaosdomingos!Ésobretudonessediaqueovândalo, liberadodo trabalhoouprivadodeoportunidadesde cometer crimes,irá à periferia da cidade – não por amor à vida campestre, que seu íntimodespreza,massimcomomeiodeescapardocontroleedasconvençõessociais.Desejamenosarfrescoeárvoresverdejantesdoqueaextremalicenciosidadedocampo.Na pensão de beira de estrada ou sob a densa folhagem dos bosques,entrega-se,despercebidoportodosquenãoseusparceirosdefarra,aosexcessosdelirantesdafalsaalegria,aqualéfrutoda liberdadeedorum.QuandorepitoqueseriaummilagrequeosobjetosemquestãotenhampermanecidoocultospormaisdeumasemanaemqualquerbosquenasimediaçõesdeParisnãodigonadamais do que o óbvio a qualquer observador imparcial. E há muitos outrosmotivosparasuspeitarqueosobjetosforamdeixadosnobosquecomaintençãodedesviaraatençãodacenarealdocrime.

“Em primeiro lugar, repare na data em que os objetos foram achados.Confiraestadatacomadoquintoartigodejornalqueselecionei.Vocêveráquetal descoberta se seguiu, quase imediatamente, às informações urgentesrecebidaspelojornal.Taisinformações,emboraemgrandenúmeroeàprimeiravistaprovenientesdediversasfontes,levavamaomesmoponto,ouseja,dequeforaumaganguequemperpetraraodelitoequeacenadocrimeeraoBarrièreduRoule.Semdúvida,oquedevemosobservaraquiéqueosobjetosnãoforamencontradospelosmeninosemconsequênciadetaisinformaçõesoupelaatençãodo público que elas provocaram,mas sim que os garotos não os encontraramantesemfunçãodequeosobjetosnãoestavamlá;foramdepositadosnobosquesomentenaqueladataounodiaanteriorpeloscriminosos,quesãoelesmesmososautoresdoscomunicadosàimprensa.

“Obosqueépeculiar,muitíssimopeculiar.Éanormalmentedenso.Dentrodesuasmuralhasnaturaishátrêsextraordináriaspedrasformandoumbancocomencostoedescansoparaospés.Eessegraciosobosqueficanas imediações,aapenaspoucosmetros,daresidênciadasra.Deluc,cujosfilhostinhamohábitode procurar incansavelmente cascas de sassafrás por entre os arbustos dasredondezas. Seria insensato apostar – em um lance de mil contra um – quesequerumdiasepassousemquealgumdosmeninosadentrasseaquelesombrioambienteeseapossassedeseutrononatural?Quemquerquehesiteemfazertalapostanuncafoicriançaouesqueceu-sedanaturezadainfância.Repito:émuitodifícilcompreendercomoosobjetosficaramocultosnobosqueporumperíodosuperioraumoudoisdias.Eapartirdissohábonsindíciosparasuspeitarque,a

despeitodadogmáticaignorânciadoLeSoleil,taisobjetosforam,emumadataposterior,depositadosondeforamencontrados.

“Mashárazõesaindamaisfortesparaacreditarnissodoqueasquesugeri.Agora, peço-lhe que observe a disposição altamente artificial dos objetos. Naprimeirapedrajazaanágua;nasegunda,amantadeseda;espalhadosaoredorestavama sombrinha,as luvaseum lençocoma inscrição ‘MarieRogêt’.Eisumarranjonaturalmentefeitoporumapessoapoucoperspicazcujo intuitoeraespalharosobjetoscomnaturalidade.Masoarranjonãoédefatonatural.Seriamaisprovávelencontrartodososobjetosjogadosnochãoepisoteados.Naquelecaramanchão, teria sido quase impossível que a anágua e a manta pudessempermanecersobreapedraduranteoroçardecorposdemuitaspessoasemplenabriga.Foiditoquehaviaevidênciasde lutaequea terraestavapisoteadaeosarbustosestavamquebrados,masaanáguaeamantaestavamcomosetivessemsidocolocadasemprateleiras.‘Ospedaçosdovestidoqueforamrasgadospelosespinhosdosarbustos tinhamcercadeoito centímetrosde larguraequinzedecomprimento.Pareciamfaixasquetivessemsidorasgadas.’Aqui,pordescuido,oLeSoleilempregouumafraseinadvertidamentesuspeita.Osretalhos,comofoidescrito, realmente ‘pareciam faixas que tivessem sido rasgadas’, mas depropósito e àmão. É um acidente dosmais raros que um retalho de um trajecomoavestimentaemquestãoseja‘rasgado’porespinhos.Pelapróprianaturezado tecido, um espinho ou um prego que se prendesse à roupa a rasgariaretangularmente, dividindo o tecido em duas fendas longitudinais, em ânguloretoumacomaoutra,asquaisseencontrariamnaextremidadeondeoespinhoentrou.Masdificilmentesepodeconceberqueotecidotenhasido‘arrancado’.Nuncavinadaassim,nemvocê.Paraarrancarumpedaçodotecido,duasforçasdistintas,emdireçõesdiferentes,serãonecessáriasemquasetodososcasos.Seotecidotemduasextremidades,comoumlenço,esedesejaarrancar-lheumatira,então, e somente então, uma só força será requerida. Porém trata-se de umvestido com uma só extremidade. Somente por milagre um espinho poderiaarrancarumpedaçodaparteinternadaroupa,eumsóespinhojamaischegariaatanto. Mesmo quando há extremidades seriam necessários dois espinhos,puxandoemsentidosopostos.Issoseaextremidadenãotiverbainha.Sehouver,não há qualquer possibilidade de arrancar-lhe um pedaço. Assim, podemosperceberosinúmeroseenormesobstáculosqueimpedemqueretalhosdetecidosejam ‘arrancados’ por simples ‘espinhos’. No entanto, somos solicitados aacreditarquemaisdeumretalhofoiarrancadodessemodo.E‘umdosretalhoserapartedabainha’!Outroretalho‘erapartedocorpodasaia,enãodabainha’

–oquesignificadizerqueoretalhoforaarrancadodaparteinternadovestido,aqual não possui extremidades! É perfeitamente perdoável que não se acreditenessas coisas. Contudo, tomadas todas juntas, elas criam menos pretextosaceitáveis de suspeita do que a circunstância extraordinária de que os objetostenham sido deixados no bosque por quaisquer assassinos que tenham sidocuidadososo suficienteparapensarem removerocorpo.Entretanto,vocênãoterámecompreendidocorretamentesesupuserqueminhaintençãoénegarqueobosque tenhasidoacenadocrime.Pode terocorridoumdelitoali,oumaisprovavelmentenacasadasra.Deluc.Mastrata-se,naverdade,deumpontodemenor importância. Não estamos tentando descobrir a cena, mas sim osperpetradoresdocrime.Minhasalegações,apesardeminuciosas, têmemvistamostrar,antesdemaisnada,odisparatedasdeclaraçõesabsolutaseprecipitadasdo Le Soleil e, principalmente, levá-lo, seguindo o caminho mais naturalpossível,acontemplardeoutromodoadúvidasobreoassassinatotersidoobradeumagangueounão.

“Reiteraremosesseassuntocomameraalusãoaosdetalhesfornecidospelolegistainterrogadonoinquérito.Bastadizerque,apóspublicadas,asinferênciasdelearespeitodonúmerodeperpetradoresforamdevidamenteridicularizadaseconsideradas injustificadas e infundadas pelos melhores anatomistas de Paris.Nãoqueocrimenãopudesseterocorridocomoeleinferiu,maselenãodeixouespaçoparaapossibilidadedeoutrasinferências.

“Reflitamosagorasobre‘ossinaisdeluta’.Epermita-meindagaroquetaissinais supostamente demonstram. Uma gangue. Mas não demonstrariam, aocontrário, a ausênciadeumagangue?Queespéciede lutapode ter ocorrido –quelutatãoviolentaetãolongapodeterdeixado‘sinais’portodolado–entreumamoçaindefesaeasupostaganguedebandidos?Bastariaosilenciosoapertodebraçosforteseestariatudoterminado.Avítimaficariatotalmentesubjugada.Nesteponto,leveemconsideraçãoqueosargumentosincitadoscontraaideiadequeobosqueéacenadocrimeseaplicam,emparticular,apenasàideiadequeo bosque constitui a cena de um crime cometido pormais de um indivíduo.Somente se imaginarmos um só criminoso – e somente então – poderemosconceber uma luta de natureza tão violenta e obstinada que deixasse ‘sinais’aparentes.

“E mais. Já mencionei a suspeita incitada pelo fato de que os objetosencontrados no bosque em nenhuma hipótese foram deixados ali. É quaseimpossívelqueessasevidênciasdeculpa tenhamsidoacidentalmentedeixadasno local. Houve suficiente presença de espírito, supõe-se, para remover o

cadáver; ainda assim, uma evidênciamais explícita do que o próprio cadáver(cujascaracterísticaspoderiamserrapidamenteobliteradaspeladecomposição)édeixada exposta na cena da tragédia – refiro-me ao lenço com o nome dafalecida. Se foi acidental, não se trata de obra de uma gangue. Só podemosimaginar que foi descuido de somente uma pessoa. Vejamos. Um indivíduocometeocrime.Eleficasozinhocomofantasmadamorta.Apavoradodiantedocorpoinerteàsuafrente.Oímpetodafúriapassionalacabou,eemseucoraçãoabre-seespaçoparaohorrordesuafaçanha.Nãotemaconfiançaqueapresençadeoutrosindivíduosinevitavelmenteinspira.Estáasóscomamorta.Trêmuloedesnorteado. No entanto, precisa livrar-se do cadáver. Carrega-o até o rio,deixando para trás as outras evidências de sua culpa, pois é difícil, senãoimpossível, transportar toda a carga de uma só vez, e será fácil retornar parabuscar o que deixou. Mas na penosa caminhada até a água seus temoresredobram.Osruídosdavidaoperseguememseutrajeto.Váriasvezesouveouimagina ouvir os passos de um observador. Mesmo as luzes da cidade oatemorizam. Contudo, após longas e constantes pausas de pura agonia, elealcançaamargemdorioedesfaz-sedasinistracarga–talvezcomaajudadeumbarco.Quevantagenshaveria–quepuniçõeso esperariam– fortesobastantepara fazer com que o assassino solitário retornasse pelo mesmo penoso eperigosocaminhoatéobosqueeaoencontrodesuashorripilantesrecordações?Ele não retorna, fossem quais fossem as consequências. Não voltaria nemmesmo se quisesse. Seu único pensamento é escapar imediatamente. Dá ascostasàquelamataapavoranteparasempreefogedalicomoodiabodacruz.

“Umaganguefariaomesmo?Ogrupolhesteriainspiradoconfiança,seéque vândalos contumazes precisam de confiança. E é somente de vândaloscontumazes que as gangues se constituem. Estar em grupo, afirmo, teriaprevenidoostemoreseoterrorirracionalqueacreditoterparalisadooindivíduosozinho. Supondo que um, dois ou três deles se descuidassem, um quartocúmplice remediaria a situação. Não deixariam nada para trás, pois poderiamcarregartudodeumasóvez.Nãohaverianecessidadederetornar.

“Considereagoraacircunstânciaemque‘daparteexteriordasroupas,umretalhodecercadetrintacentímetrosdelarguraforarasgadoparacimaapartirdabainha inferioratéacintura,masnãofoiarrancado.Eledava trêsvoltasaoredordacinturaeestavapresoporumaespéciedelaçonascostas.’Issofoifeitocomaóbviaintençãodecriarumaalçaparaarrastarocadáver.Masumgrupodehomenscogitariarecorreratalexpediente?Paraumgrupodetrêsouquatro,carregarocorposegurando-opelosmembrosteriasidonãosósuficientecomo

maisfácil.Criarumaalçafoioartifíciousadoporumsóhomem,oquenoslevaao fato de que ‘no caminho entre o bosque cerrado e o rio, as cercas foramderrubadaseosoloapresentavaevidênciasdequealgopesadoforaarrastadoporali.’Umgrupodecriminososiriadar-seaotrabalhoinútildederrubarumacercapara arrastar um cadáver que eles poderiam levantar e passar por cima dequalquerobstáculonuminstante?Umgrupodehomensarrastariaumcorpodemodoadeixarrastrosevidentes?

“Devemos nos remeter a uma observação do Le Commerciel; umaobservaçãosobreaqualemcertamedidajácomentei.‘Umpedaçodasanáguasda pobre moça’, afirma o jornal, ‘de sessenta centímetros de comprimento etrintadelargura,foirasgado,enlaçadoaoredordopescoçoeamarradonanuca,provavelmenteparaimpedirgritos.Issofoifeitoporindivíduosquenãotraziamlençosconsigo.’

“Sugeri anteriormente que um arruaceiro genuíno nunca anda sem umlenço.Masnãoéaissoqueagoramerefiro.Queaataduranãofoifeitaporfaltade um lenço e pelas razões sugeridas peloLeCommerciel fica aparente pelapresença de um lenço entre os objetos achados no bosque. E que não sedestinavaa‘impedirgritos’nota-seapartirdofatodequeaatadurafoiusadaemlugar daquilo que teria cumprido tal proposta de modo mais satisfatório.Contudo,no inquérito fala-sequeoretalhoemquestão‘circundavaopescoço,bastante frouxo e preso por um nó firme’. São palavras bastante vagas, masdiferemmuitodoquedisseoLeCommerciel.Oretalhotinha45centímetrosdecomprimento; por isso, mesmo sendo de musselina, criaria uma atadura fortequandoenroladooudobradolongitudinalmentesobresi.Efoiencontradoassim.Minhadeduçãoéaseguinte.Oassassinosolitário,apóscarregarocorpoatéumacerta distância (do bosque ou de outro lugar) por meio da alça amarrada nacintura,percebeuquenão tinhaforçasparacarregarocadáver.Resolveuentãoarrastá-lo – e as evidênciasmostram que o corpo foi arrastado. Com isso emmente, ele precisou atar algo como uma corda a uma das extremidades. Omelhor lugar seria o pescoço, pois a cabeça impediria que o laço sedesprendesse.Efoientãoqueocriminosopensouemusarafaixaamarradaaoredor da cintura. Ele a teria usado se esta não estivesse enrolada em volta docadáver,senãoestivesseatadaporumnóesetivessesido‘rasgada’dovestido.Omaisfácileraarrancarmaisumpedaçodasanáguas.Elerasgouasanáguas,amarrouatirarasgadaemtornodopescoçodavítimaeaarrastouatéamargemdorio.Ofatodequeessa‘atadura’–feitacomdificuldadeeapóscontratempos,ecumprindosuafinalidadeapenasparcialmente–foiempregadademonstraque

a necessidade de usá-la surgiu nomomento em que o assassino não dispunhamaisdeumlenço,ouseja,apósdeixarobosque(sedeláocriminosopartiu),talcomoimaginamos,nocaminhoentreobosqueeorio.

“Vocêdiráqueodepoimentodasra.Deluc(!)apontaespecialmenteparaapresençadeumaganguenasredondezasdobosquemaisoumenosnaépocaemqueocrimefoicometido.Concordo.Duvidoquenãohouvessepelomenosumadúzia de gangues nas redondezas do Barrière du Roule no período em que atragédiaocorreu.Masaganguequefoialvodeatenção–apesardodepoimentotardio e bastante suspeito da sra. Deluc – foi a única que esta honesta eescrupulosa senhora relatou ter consumido bolos e bebidas sem se dar aotrabalhodepagar-lhe.Ethincillaeirae?[25]

“Qual é, no entanto, o depoimento exato da sra. Deluc? ‘Apareceu umbandodecafajestes,osquaissecomportaramruidosamente,comeramebeberamsempagar,pegaramamesmaestradaqueorapazeamoça,retornaramàpensãopertodoentardecerecruzaramorioaparentandomuitapressa.’

“Ora,essa ‘pressa’muitopossivelmentepareceu,aosolhosda sra.Deluc,umapressamaiorqueadefatoocorreu,poiselavinharuminandocomrancoredesolação o roubo de seus bolos e bebidas – e é possível que ela nutrisse aesperançadequeaindaviesseasercompensada.Porque,senãopor isso,umavezqueestavaentardecendo,asra.Delucmencionariaapressadagangue?Nãocausanenhumasurpresaquemesmoumaganguedearruaceirosseapresseemvoltarparacasaquandoéprecisocruzarumrioextensoembarcosminúsculos,háameaçadetempestadeeestáanoitecendo.

“Digoanoitecendo porque não era noite ainda. Foi ao entardecer que apressa indecentedos‘cafajestes’escandalizouosolhoscândidosdasra.Deluc.Mas foi ditoquenaquelamesmanoite ela e seu filhomaisvelho ‘ouviramosgritosdeumamulhernascercaniasdapensão’.Ecomquepalavrasasra.Delucdesigna o período da noite emque os gritos foram escutados? ‘Foi logo apóscair a noite’, ela disse.No entanto, ‘logoapós cair a noite’ já énoite. E ‘aoentardecer’certamenteaindaédia.AssimficaclaríssimoqueaganguedeixouBarrière duRouleantes que os gritos fossem ouvidos por acaso (?) pela sra.Deluc.Eaindaquenosrelatóriosdosdepoimentosasexpressõesemquestãosãodistinta e invariavelmente empregadas da forma como as empreguei nestaconversa, nenhumdos jornais diários e nenhumpolicial observaram as óbviasdiscrepâncias.

“Acrescentareimaisumargumentocontraapossibilidadedeumagangue.Mas este argumento tem, segundome parece, um peso totalmente irresistível.

Diante da oferta de uma enorme recompensa e do perdão ao cúmplice quedelatasse seuscomparsas,nemporummomentopodemosconcebera ideiadequealgummembrodagangue–oudequalquerbandosemelhante–jánãoteriahámuito tempo traído seus companheiros.O integrante de uma quadrilha sobsuspeita teme mais uma possível traição do que deseja impunidade ourecompensa.Delataseuscúmplicesassimquepossívelparaqueelemesmonãosejadelatado.Queosegredonãotenhasidodivulgadoéexatamenteaprovadeque se trata, de fato, de um segredo. Os horrores dessa façanha perversa sãoconhecidosporapenasumounomáximodoissereshumanos,eporDeus.

“Recapitulemos agora os escassos, porém indiscutíveis, frutos de nossaanálise.Chegamosàconclusãodequehouveumacidentefatalsobotetodasra.DelucoudequeumassassinatofoicometidonosbosquescerradosdoBarrièredu Roule, perpetrado por um namorado ou no mínimo por alguém íntima esecretamenteassociadoàfalecida.Essesujeitotematezmorena.Suatez,onófeito na atadura e o ‘nó de marinheiro’ nas alças do sutiã apontam para ummarinheiro.Suaamizadecomavítima–umamoçafesteiramasnãodegradada–indica que ele não era um simples marinheiro. As bem-escritas denúnciasmandadasaos jornaiscorroboramessedado.Acircunstânciadaprimeira fuga,comomencionada peloLeMercurie, tende a conectar essemarinheiro com o‘oficialdaMarinha’,quefoioprimeiroainduzi-laaoerro.

“E aqui, com mais propriedade, surge a consideração da ausência dessesujeito de tezmorena.Não seria uma tezmorena comumo que constituiria oúnicoaspectodequetantoValenceeasra.Delucrecordariam.Masporqueessehomemestáafastado?Foiassassinadopelagangue?Casotenhasido,porquehásomente vestígios da moça assassinada? A cena dos assassinatos seriasupostamente amesma. E onde está o cadáver dele?Os criminosos teriam selivradodeambososcorposdamesmamaneira.Maspodemospresumirqueessehomemestávivo,equeotemordeseracusadodocrimeoimpededeaparecer.Isso poderia influenciar o comportamento dele agora, nesta fase dasinvestigações, uma vez que testemunhas alegaram tê-lo visto comMarie,masnãooinfluenciarianaépocadocrime.Oprimeiroimpulsodeuminocenteseriaanunciar a tragédia e ajudar a identificar os assassinos. Tal seria a condutarecomendável.Eleforavistocomamoça.Cruzaraoriocomelaemumabalsaacéuaberto.Atéparaumidiotadenunciarosassassinospareceriaamaneiramaisseguradelivrar-sedesuspeitas.Nãopodemosconsiderá-loinocenteeaomesmotempo desinformado, na noite do domingo fatídico, sobre a ocorrência de umcrimenaquelaregião.Noentantosomentenessecasoépossívelimaginarque,se

estivessevivo,eledeixariadedenunciaroscriminosos.“E que meios temos para chegar à verdade? Veremos à medida que

prosseguirmos.Analisemosa fundoaquestãodoprimeirodesaparecimentodeMarie. Examinemos a história completa do ‘oficial’, incluindo sua situaçãopresenteeseuparadeironoperíododocrime.ComparemoscuidadosamenteasváriasdenúnciasenviadasaoEveningPaper, cujoobjetivo era incriminarumagangue. Isso feito, comparemos essas denúncias, tanto no que diz respeito aoestilocomoàcaligrafia,àsenviadasaoMorningPaperemumadataanterioreque insistiam tãoveementementenaculpadeMennais.Então, comparemosasváriasdenúnciascomacaligrafiadooficial.Empenhemo-nosemaveriguar,pormeiodosinterrogatóriosdasra.Delucedeseusfilhos,bemcomodomotorista,Valence, algo mais sobre a aparência e o comportamento do ‘homem de tezmorena’. Interrogatórios dirigidos com habilidade não falharão em extrair dastestemunhas informações a respeito desse aspecto particular (ou de outros) –informações que as próprias testemunhas talvez não saibam que possuem. Esigamososrastrosdobarcoresgatadopelobalseironamanhãde23dejunhoeque foi removido das docas alfandegárias semo conhecimento do funcionárioemserviçoesemoleme,antesdadescobertadocadáver.Comaprecauçãoeaperseverançaapropriadas,infalivelmenteencontraremosobarco,poisobalseironãoapenaspodeindentificá-lo,comoolemeestáporperto.Olemedeumbarcoàvelanãoseriaabandonadosemhesitaçãoporalguémcomaconsciêncialimpa.E neste ponto deixe-me fazer uma pausa para insinuar uma dúvida. Não sedivulgouqueobarcoforaremovido.Elefoilevadosemalardeatéadoca,edaliretiradodamesma forma.Mascomoéque seudonoouusuáriopoderia sabersobreoparadeirodobarcorecolhidonodiaanterior,tãocedonamanhãdeterça-feira, sem dispor de nenhuma informação, a não ser que imaginemos umaconexão com a Marinha – alguma ligação pessoal contínua que permitisseacessoaosmínimoseventoseacontecimentosinternos?

“Ao me referir ao assassino solitário carregando o corpo até a margem,sugeriqueelepodeterfeitousodeumbarco.PodemosagoradeduzirqueMariefoijogadadeumbarco.Naturalmente,éissoquedeveteracontecido.Ocadávernão podia ser confiado às águas rasas dasmargens.As peculiaresmarcas nascostasenosombrosdavítimaremetemàsbalizasdasuperfícieinferiordobarco.O fato de o cadáver ter sido encontrado sem um peso preso a si tambémcorroboraessaideia.Setivessesidojogadodamargemhaverianecessidadedeincorporar um peso ao corpo. Podemos explicar sua ausência apenas pelasuposição de que o assassino se esqueceu de providenciar um peso antes de

zarpar.Aolançarocorpoaorioelesemdúvidapercebeuseuequívoco,masnãodispunhademeiospararemediá-lo.Qualquerriscoteriasidopreferívelavoltaràquelaexecrávelpraia.Apóslivrar-sedoaterradorfardo,oassassinoapressa-seemdirigir-seàcidade.Ali,emalgumcaisobscuro,desembarca.Maseobarco:o assassino o teria prendido? Estaria muito apressado para preocupar-se comalgo como atracar umbarco.Alémdisso, atracá-lo ao cais poderia parecer aocriminosoestargarantindoprovascontrasi.Seupensamentonaturalserialivrar-se, o mais longe possível, de tudo que tivesse ligação com o crime. Ele nãoapenas se apressaria em deixar o cais, como não permitiria que o barco alipermanecesse.Comcerteza soltariaobarcoàderiva.Prossigamoscomnossassuposições. Pela manhã, o infeliz é tomado por um indescritível horror aodescobrir que o barco fora encontrado e levado a uma localidade a qualfrequenta diariamente – talvez um lugar ao qual sua ocupação o obrigue afrequentar.Nanoiteseguinte,semousarperguntarsobreo leme,ele removeobarco. Ora, onde está o barco sem leme? Descobrir seu paradeiro é um dosnossosprincipaispropósitos.Aoprimeirosinaldele,aauroradenossosucessoteráinício.Obarconosconduzirá,comumarapidezsurpreendente,àquelequeoutilizou àmeia-noite do fatal domingo.As corroborações se somarão umas àsoutras,eoassassinoseráencontrado.”

[Por razões que não especificaremos,mas que parecerão óbvias amuitosleitores,tomamosaliberdadedeomitir,dosoriginaisquepossuíamosemmãos,o seguimento da pista aparentemente insignificante indicada por Dupin.Julgamos oportuno declarar, em poucas palavras, que se atingiu o resultadoalmejado. E o delegado cumpriu fielmente, embora com certa relutância, ostermos de seu acordo com o Chevalier. O conto de Poe é concluído nosparágrafosseguintes.][26]

É evidente que falo de coincidências e nada mais. O que eu afirmeianteriormentearespeitodestetópicodevebastar.Emmeuíntimonãoháespaçopara a fé no sobrenatural. Que a Natureza e Deus são entidades distintasninguém inteligente negará.QueDeus, por ter criado aNatureza, pode, a seubel-prazer,controlá-laoumodificá-laétambéminquestionável.Digo“aseubel-prazer”porqueaquestãoéavontade,enão,comoainsanidadedalógicasupõe,opoder.NãoqueaDivindadenãopossamodificarSuaspróprias leis,massimqueA insultamos ao imaginar a necessidade de tal mudança. Em sua origemessasleisforamengendradascomointuitodeacolhertodasascontingênciasqueofuturopoderiaoferecer.ParaDeus,tudoéPresente.

Repito,então,quefalodessascoisascomomerascoincidências.Emais:em

meusrelatosserápercebidoqueentreodestinodainfelizMaryCeciliaRogers,atéondesesabe,eodeMarieRogêt–atécertopontodesuatrajetória–existeumparalelodeexatidão tãoextraordináriaque,aocontemplá-lo,arazãoacabaporconfundir-se.Afirmoquetudoissoserápercebido.Masnemporuminstantesesuponhaque,aodarprosseguimentoàtristenarrativadeMarie,desdeaépocamencionada,eaolevaraumdesfechoomistérioqueacercava,minhaintençãoveladatenhasidosugerirumprolongamentodesseparalelo,nemsugerirqueasmedidasadotadasemParisparaencontraroassassinodeumamoça,oumedidasbaseadasemumraciocínioparecido,produziriamresultadossemelhantes.Deve-se teremconta,noquedizrespeitoàúltimapartedasuposição,quemesmoamínima variação entre os fatos dos dois casos poderia levar aos maioresequívocosaodesviarcompletamenteocursodosdoiseventos.Issocorresponde,namatemática, a um erro de natureza insignificante que produz, pormeio damultiplicaçãoaolongodetodosospassosdoprocesso,umresultadomuitíssimodistantedaverdade.E,emrespeitoàprimeirapartedasuposição,nãopodemosdeixar de lembrar que o próprio Cálculo das Probabilidades a que me referiimpede qualquer possibilidade de prolongamento do paralelo – com umaconvicção forte e categórica proporcional à exatidão hámuito já estabelecidadesse mesmo paralelo. Trata-se de uma daquelas proposições anômalas que,mesmo aparentemente solicitando o pensamento não-matemático, somente oraciocíniomatemáticopodeplenamentecogitar.Porexemplo,nadaémaisdifícildo que convencer o leitor comum de que se um jogador de dados obtém omesmo número duas vezes seguidas isso é suficiente para apostar naprobabilidademaiordequeaquelenúmeronãoseráobtidonaterceiratentativa.O intelectocostuma rejeitarprontamentequalquer sugestãonesse sentido.Nãoficaevidentequeosdoislançamentosfeitos,equeagorapertencemaoPassado,podeminfluenciarumlançamentoqueexisteapenasnoFuturo.Aprobabilidadede lançar números idênticos aos dos primeiros dois lançamentos parece ser amesmaemqualquermomento,ouseja,pareceestarsujeitasomenteàinfluênciados vários lançamentos que podem ser obtidos. É uma reflexão tão óbvia quequalquer tentativadecontradizê-laé recebidaantescomdesdenhodoquecominteresserespeitoso.Nãopretendoexportalequívoco–umerrocrassoquebeiraoridículo–dentrodoslimitesdestemeupresenterelato.Eateorizaçãodispensaa necessidade de exposição. É suficiente afirmar aqui que esse equívococonstituipartedeumasérieinfinitadeerrosquesurgemnocaminhodaRazãopormeiodesuatendênciaabuscaraverdademinuciosamente.

[1] Na edição original de “O mistério de Marie Rogêt”, as notas de rodapé foram consideradasdesnecessárias; mas o transcurso de muitos anos desde a tragédia sobre a qual o conto se baseia tornaconveniente que elas sejammantidas, além de dar algumas explicações de propósito geral.Uma jovem,MaryCeciliaRogers,foiassassinadanosarredoresdeNovaYork,eapesardesuamortetercausadoumacomoçãointensaeduradoura,omistérioligadoaelanãohaviasidoresolvidonaépocaemqueocontofoiescrito e publicado (em novembro de 1842). Aqui, sob o pretexto de relatar a sorte de uma grisetteparisiense,oautorseguiu,emminúcias,osprincipaisfatosdoassassinatodeMaryRogers,aopassoquecomparoumaissuperficialmenteosfatossecundários.Dessemodo,todaaargumentaçãofundamentadanaficçãoéaplicávelàverdade,eainvestigaçãodaverdadefoioobjeto.O conto foi escrito longeda cenaondeocorreuo crime e semoutrosmeios de investigaçãoquenãoosfornecidos pelos jornais. Assim, muitos dos benefícios de estar no local e de visitar as redondezasescaparamaoescritor.Éconveniente ressaltar,noentanto,queasconfissõesdeduas pessoas (uma delasMadameDeluc, personagemnestanarrativa), emdiferentes períodos,muito tempoapós apublicaçãodoconto,confirmaramintegralmentenãosóaconclusãogeral,masabsolutamentetodososprincipaisdetalheshipotéticospormeiodosquaissechegouatalconclusão.(N.A.)[2]PseudônimodeFriedrichvonHardenburg(1772-1801),poetaalemão.(N.T.)[3]Chevalier,oucavaleiro,quintacategoriadecondecoraçõeshonoríficasdaOrdemNacionaldaLegiãodeHonrafrancesa,instituídaporNapoleãoaveteranosdeguerra.(N.T.)[4]Nocasoverdadeiro,RuaNassau.(N.A.)[5]OHudson.(N.A.)[6]Weehawken.(N.A.)[7]Focodetumulto,desordem,agitaçãopública.Emfrancêsnooriginal.(N.T.)[8]Payne.(N.A.)[9]Crommelin.(N.A.)[10]TheNewYorkMercury.(N.A.)[11]OBrotherJonathannova-iorquino,editadopeloIlmo.H.HastingsWeld.(N.A.)[12]OJournalofCommercenova-iorquino.(N.A.)[13]OSaturdayEveningPostdaFiladélfia,editadopeloIlmo.C.I.Peterson.(N.A.)[14]Adam.(N.A.)[15]Ver“OsassassinatosnaruaMorgue”.(N.A.)[16]OCommercialAdvertisernova-iorquino,editadopeloCel.Stone.(N.A.)[17]Nooriginal,delunáticoinquirendo.(N.T.)[18]Express,deNovaYork.(N.A.)[19]Herald,deNovaYork.(N.A.)[20]CouriereInquirer,deNovaYork.(N.A.)[21]Mennaisfoiumdossuspeitosinicialmentedetidos,sendoliberadoportotalfaltadeprovascontraele.(N.A.)[22]CouriereInquirer,deNovaYork.(N.A.)[23]EveningPost,deNovaYork.(N.A.)[24]Standard,deNovaYork.(N.A.)[25]“Porissosuaindignação?”Emlatimnooriginal.(N.T.)[26]Oparágrafoentrecolcheteséumaobservaçãodoeditordarevistaemqueocontofoioriginalmentepublicado.(N.T.)

OCORAÇÃODELATOR

Verdade!Nervoso–euestiveramuito,muitonervoso,pavorosamente; e aindaestou.Maspor quedirá você que estou louco?Adoença tinha aguçadomeussentidos – não os destruíra – não os embaçara. Acima de todos os sentidos,estava a audição afiada. Eu ouvia todas as coisas no céu e na terra. Eu ouviamuitas coisas no inferno. De que forma, então, estou louco? Ouça bem! Eobservecomquesanidade–comquecalmaeupossolhecontarahistóriatoda.

É impossíveldizerdequemaneiraa ideia invadiuminhamente;umavezconcebida,porém,elameassombroudiaenoite.Nãohaviapropósito.Nãohaviapaixão. Eu adorava o velho. Ele nunca me fizera mal. Ele nunca tinha meinsultado.Desuariquezaeunãoqueriasaber.Achoqueeraoolhodele!Sim,eraisso!Ele tinhaoolhodeumabutre–umolhoazul-claro,comumamembranaporcima.Semprequeoolhorecaíaemmim,meusanguegelava;eassim,poretapas–muitogradualmente–,tomeiadecisãodeacabarcomavidadovelho,parameverlivredoolhoparasempre.

Ora,opontoéoseguinte.Vocêsupõequesoulouco.Loucosnãosabemdenada. Mas você devia ter visto. Você devia ter visto com que sagacidade euprocedi–comqueprudência–comqueprevidência–comquedissimulaçãomepus a trabalhar!Nunca fuimais afável comovelhodoquena semanaque sepassouantesdequeeuomatasse.Etodasasnoites,porvoltadameia-noite,eugirava o trinco de sua porta e a abria – ah, tão devagar! E então, quando aabertura era suficiente para aminha cabeça, eu introduzia uma lanterna furta-fogo,fechada,bemfechada,deformaquenenhumaluzsaísse,eentãoimpeliaminha cabeça para dentro. Ah, você riria se visse como eu a impelia comastúcia!Euamoviadevagar–muito,muitodevagar,paranãoperturbarosonodovelho.Eulevavaumahoraparapassartodaacabeçapelaaberturaatéopontoem que pudesse vê-lo estirado em sua cama. Ah! Um louco teria sido tãosensato?E então, quandominha cabeça ficava bem para dentro do quarto, euabriaa lanternacautelosamente,ah, tãocautelosamente–cautelosamente(pois

asdobradiçasrangiam)–,euaabriaapenasosuficienteparaqueumúnicoraiofinorecaíssesobreoolhodeabutre.Efizissoporsetelongasnoites–todasasnoites, bem à meia-noite –, mas encontrava o olho sempre fechado; e dessaforma era impossível levar o trabalho a cabo; pois não era o velho quemmeatormentava, e sim o seu olhar maligno. E todas as manhãs, quando o diarompia,euentravaaudaciosamentenoaposentoeconversavacomelecheiodecoragem, chamando-o pelo nome num tom cordial, perguntando como tinhapassadoanoite.Portanto,veja,eleteriaquetersidoumvelhomuitoperspicaz,defato,parasuspeitarquetodasasnoites,àmeia-noiteemponto,euoespiavaenquantoeledormia.

Quandochegouaoitavanoite, euestavamaiscautelosodoquenuncanoatodeabriraporta.Oponteirodeminutosdeumrelógiosemovemaisrápidodoqueaminhamãosemovia.Nuncaantesdaquelanoiteeusentiraoalcancedos meus poderes – da minha sagacidade. Eu mal podia conter minhasensaçãodetriunfo.Pensarqueeuestavaali,abrindoaporta,poucoapouco,eele sem sequer sonhar com aquilo, com meus atos secretos, com meuspensamentos.Essaideiamefezrirfurtivamente;eachoqueelemeouviu,poissemexeunacamaderepente,comoqueassustado.Agoravocêpodepensarquerecuei–masnãorecuei.Comaescuridãoespessa,oquartoestavanegrocomopiche(poisasvenezianasestavamcerradasetrancadas,pormedodeladrões),epor isso eu sabia que ele não poderia ver a abertura da porta, e continueiempurrando-acomfirmeza,comfirmeza,nomesmoritmo.

Minha cabeça já estava do lado de dentro, e eu estava prestes a abrir alanternaquandomeupolegaresbarrounapresilhade latãoeovelhoergueu-sedeumsaltonacama,gritando:

–Quemestáaí?Mantive-mebemquietoenãodissenada.Aolongodeumahorainteiranão

movi ummúsculo e, nessemeio-tempo, não o ouvi deitar-se. Ele permaneciasentado na cama, escutando; tal como eu fizera, noite após noite, ouvindo osbesourosnaparede.

Emseguida,ouviumlevegemidoepercebiqueeraumgemidode terrormortal.Nãoeraumgemidodedoroudeaflição–ah,não!–,eraosomabafadoebaixoqueseelevadofundodeumaalmaimpregnadadeespanto.Euconheciabemosom.Noitesafio,bemàmeia-noite,quandoomundotododormia,osombrotoudomeuprópriopeito,intensificando,comseuecotenebroso,osterroresquemeacossavam.Estoudizendoqueconheciabemosom.Sabiaoqueovelhosentia,elastimavaporele,emboranoíntimoeutivessevontadederir.Sabiaque

eleestavaaliacordadodesdeoprimeirobarulhinho,desdequandosevirounacama.Seustemoresseagravavamdesdeentão.Eletentarasupô-losinfundados,masnãopudera.Eleestiveradizendoasimesmo:“Issonadamaisédoqueoventonachaminé,ésóumcamundongoatravessandooassoalho”,ou“Éapenasumgriloqueemitiuumúnicocricri”.Sim,eletentaraacharconsolocomessassuposições; tinha sido tudo em vão.Tudo em vão, porque aMorte, chegandoperto,comsuasombranegra,andouàespreitadiantedele,eenvolveuavítima.Efoiapesarosainfluênciadessasombradespercebidaoqueofezsentir–semnadaverououvir–,sentirapresençadaminhacabeçadentrodoquarto.

Quando eu já tinha esperado por um longo tempo, commuita paciência,sem ouvi-lo se deitar, resolvi abrir uma fresta da lamparina – uma frestapequena,bempequenina.Entãoabrialamparina–vocênãopodeimaginarcomquesutileza,comquesutileza–,atéque,depoisdeum tempo,umúnico raio,turvocomoo fiodeuma teiadearanha,projetou-seda frestae recaiusobreoolhodeabutre.

O olho estava aberto – totalmente aberto, arregalado –, e fui meenfurecendoàmedidaqueoencarava.Euoviacomperfeitanitidez–todoeledeumazulembaçado,cobertoporumvéurepulsivoquegelavameusossosatéamedula; mas não conseguia ver nada mais da face ou da figura; pois tinhadirecionadooraio,comoqueporinstinto,precisamenteparaopontomaldito.

E eu não lhe disse que o que você toma por loucura não passa de umaguçamentoextremodapercepção?Ora,estoudizendo,chegou-meaosouvidosum som baixo, abafado, ligeiro, como o som de um relógio envolvido emalgodão.Essesomeutambémconheciabem.Eraocoraçãodovelhobatendo.Osomampliouminha fúria, comoobater de um tambor infunde coragemaumsoldado.

Masmesmoentãoeumecontiveepareiquieto.Euquasenem respirava.Segurei sem movimento a lanterna. Experimentei ver com que firmeza euconseguiamanteroraioemcimadoolho.Enquantoisso,otamborilar infernaldo coração aumentava. Ficavamais emais rápido, emais emais alto a cadainstante.Oterrordovelhodevetersidoextraordinário!Ficavamaisemaisalto,repito,maisaltoacadamomento!Vocêestáreparandobem?Eudisseavocêqueestounervoso:assimestou.Eagora,nahoramortadanoite,emmeioaosilênciotenebroso da casa velha, um som estranho assim me agitava num terrorincontrolável. Pormais algunsminutos, porém, eume contive e parei quieto.Masobatimentoficavamaisalto,maisalto!Eupenseiqueocoraçãoestouraria.Eagoraumanovaansiedadeseapoderavademim–osomseriaouvidoporum

vizinho! A hora do velho tinha chegado! Com um grito alto, escancarei alanternae salteiparadentrodoquarto.Eleberrouumavez–umavezapenas.Num instante, eu o arrastei para o chão e empurrei a cama pesada sobre ele.Entãosorri jubilosamente,devero feitoatéalicumprido.Contudo,porváriosminutos,ocoraçãoseguiubatendocomumsomsufocado.Isso,entretanto,nãomeincomodava;nãoeraalgoquepudesseserouvidoatravésdaparede.Porfimcessou.Ovelho estavamorto.Removi a camae examinei o cadáver.Sim, eleestavamorto, completamente inerte.Coloqueiminhamão sobre o coração e adeixei ali por vários minutos. Não havia pulsação. Ele estava completamentemorto.Seuolhonãomeperturbariamais.

Se você ainda me considera louco, não pensará mais assim quando eudescreverassábiasprecauçõesquetomeiparaoocultamentodocorpo.Anoiteesmorecia, e eu trabalhei às pressas, mas em silêncio. Antes de tudo,desmembreiocadáver.Corteiforaacabeçaeosbraçoseaspernas.

Ergui três tabuões do piso do quarto e depositei tudo entre os caibros.Depois repus as tábuas no lugar tão engenhosamente, tão ardilosamente, quenenhumolhohumano–nemmesmoodele–poderiadetectaralgoerrado.Nãohavianadaparalimpar–nenhumamanchadeespéciealguma–nenhumamarcadesanguedequalquertipo.Eutinhaagidocommuitaprecaução.Umabanheiraseencarregaradetudo–ha,ha!

Quandotermineiessesafazeres,eramquatrodamanhã–aindaescurocomoàmeia-noite.Enquantoosinoindicavaahora,surgirambatidasnaportadarua.Desci para abri-la com o coração tranquilo – pois o que teria a temeragora?Entraram três homens que se apresentaram, com perfeita delicadeza, comooficiais de polícia.Umvizinho ouvira umgrito durante a noite; levantou-se asuspeita de um crime demorte; houve queixa na polícia; e eles (os policiais)tinhamsidoenviadosparaexaminarolocal.

Sorri–poisoqueteriaatemer?Deiboas-vindasaoscavalheiros.Ogrito,eu disse, era meumesmo, de um sonho. O velho, mencionei, estava fora, nocampo. Conduzi minhas visitas por toda a casa. Convidei-os a investigar –investigarbem.Levei-os,por fim,aoaposentodele.Mostreiosbensdovelho,seguros, intactos. No entusiasmo da minha confiança, trouxe cadeiras para oquarto,erogueiaelesquealiviassemsuasfadigasali,aopassoqueeumesmo,naaudáciaselvagemdomeuperfeito triunfo,coloqueimeupróprioassentonoexatopontoembaixodoqualrepousavaocadáverdavítima.

Ospoliciais estavamsatisfeitos.Minhaconduta os convencera.Eu estavaexcepcionalmenteàvontade.Elesficaramalisentadose,enquantoeurespondia

bastante animado, falaram de coisas familiares. Porém, nãomuito depois, mesenti empalidecendo, edesejeiqueeles sumissem.Minhacabeçadoía, emeusouvidos pareciam vibrar num som: mas eles permaneciam sentados,permaneciam falando. A vibração se tornou mais nítida – continuava, e setornavamaisnítida:paraafastarasensação,passeiafalarmaisemais:maselacontinuavaeaumentava–atéque,porfim,descobriqueoruídonãoestavaemmeusouvidos.

Euempalideceramuitoagora,semdúvida;masfalavacommaisfluência,ecommaisforçanavoz.Noentanto,osomaumentava–eoqueeupodiafazer?Eraumsombaixo,abafado, ligeiro–muitosemelhanteaosomquesaideumrelógio envolvido em algodão. Eu ofegava – e no entanto os policiais nãoouviam nada. Eu falava mais rápido – com mais veemência; mas o ruídoaumentava de forma constante. Levantei-me, discorri sobre banalidades, numtom elevado e com gesticulações violentas; mas o ruído aumentava de formaconstante. Por que eles não sumiam? Andei para lá e para cá pelo piso, compassadaspesadas,comoqueagitadoatéa fúriapelasobservaçõesdoshomens,masoruídoaumentavadeformaconstante.Ah,Deus!Oqueeupodiafazer?Euespumei–delirei–praguejei!Gireiacadeiraemqueestavasentado,arranheiastábuascomela,masoruídosesobrepunhaatudoeaumentavacontinuamente.Ele ficava mais alto – mais alto – mais alto! E os homens ainda falavamaprazivelmente, sorriam.Erapossívelquenãoouvissem?Deus todo-poderoso!Não,não!Estavamouvindo!Suspeitavam!Sabiam!Estavamzombandodomeuhorror!Foioquepensei,éoquepenso.Masqualquercoisaeramelhordoqueessa agonia! Qualquer coisa era mais tolerável do que esse escárnio! Eu nãopodia mais suportar aqueles sorrisos hipócritas! Senti que precisava gritar oumorrer!Eagora–denovo–,ouça!Maisalto!Maisalto!Maisalto!Maisalto!

–Patifes!–gritei.–Paremdedisfarçar!Euadmitooquefiz!Arranquemastábuas!Aqui,aqui!Ouçamabatidadoseuhorrendocoração!

OESCARAVELHODEOURO

Eia!Eia!Osujeitodançacomolouco!ElefoipicadopelaTarântula.

Tudoàsavessas[1]

Muitos anos atrás, adquiri intimidade com um certo sr.William Legrand. Elevinhadeumaantigafamíliahuguenoteechegouasermuitopróspero;masumasériedeinfortúniosolevouàpenúria.Paraescapardasmortificaçõescausadaspor seusdesastres, ele saiudeNovaOrleans, acidadede seusantepassados, eestabeleceu residência em Sullivan’s Island, perto de Charleston, Carolina doSul.

Essailhaébastantepeculiar.Consistedepoucomaisdoqueareiadomaretemcercadecincoquilômetrosdecomprimento.Emnenhumpontosualargurapassadequinhentosmetros.Elaéseparadadocontinenteporumcanalquemalsepercebeequeescoa seucaminhoporumermode juncose limo,o refúgioprediletodagalinha-d’água.Avegetação,comosepodesupor,éescassa,ouaomenosnanica.Nãosevênenhumaárvoredemagnitude.Pertodaextremidadeoeste,ondeficaoForteMoultrie,eondeexistemumasmiseráveisconstruçõesde madeira, ocupadas durante o verão pelos fugitivos do alvoroço febril deCharleston, podem ser encontradas, de fato, eriçadas palmeiras; mas a ilhainteira,comexceçãodessepontoocidentaledeumalinhabrancaecompactadepraianacostadomar,écobertaemvegetaçãodensaebaixapeladocemurta,tãoestimada pelos horticultores da Inglaterra. É comum, aqui, que o arbusto demurtaatinjaumaalturadecincoouseismetrosequeformeummatagalquaseimpenetrável,saturandooarcomsuafragrância.

Nos recessosmais internosdessematagal,não longedapontaorientaloumaisremotadailha,Legrandconstruíraparasiumapequenacabana,jáhabitadaporelequandopormeroacidenteoconheci.Nossaamizadeamadureceulogo–poisoreclusotinhaqualidadesdignasdeinteresseedeestima.Elemepareceumuitoeducadoedotadodepoderesintelectuaisincomuns,mascontaminadopor

misantropia e sujeito a perversas alterações de comportamento, entre oentusiasmoeamelancolia.Tinhaconsigomuitoslivros,masraramentefaziausodeles.Seusprincipaisdivertimentoseramcaçarepescar,ouvaguearpelapraiaeentre as murtas em busca de conchas ou de espécimes entomológicos – suacoleção de insetos causaria inveja a um Swammerdamm.[2]Nessas excursõeselegeralmenteeraacompanhadoporumvelhonegro,chamadoJupiter,queforaalforriado antes dos revezes da família mas não pôde ser induzido, nem porameaçasnemporpromessas,aabandonaroqueconsideravaserseudireitodeprestar assistência a cadapassode seu jovem“sinhôWill”.Não é improvávelqueosparentesdeLegrand,julgandoqueseuintelectofossemeiodesregulado,tivessem maquinado para insuflar essa obstinação em Jupiter, com vistas àsupervisãoeàguardadojovemerrante.

OsinvernosnalatitudedeSullivan’sIslandquasenuncasãoseveros,enooutonoéatéraroquesejanecessáriofazerfogo.Pelametadedeoutubrode18...houve,contudo,umdianotavelmentefrio.Poucoantesdopôrdosol,trilheipelavegetaçãoatéacabanadomeuamigo,queeunãovisitavahaviaváriassemanas–naquelaépocaeuresidiaemCharleston,aumadistânciadequinzequilômetrosda ilha,eosmeiosde idaevoltaerammuitomaisprecáriosdoqueosatuais.Chegando à cabana, bati à porta como de costume e, não obtendo resposta,encontrei a chave onde sabia que ela estava escondida, destranquei a porta eentrei. Um belo fogo ardia na lareira. Era uma novidade, e demodo nenhumdesagradável. Tirei o sobretudo, sentei numa cadeira de braço perto da lenhacrepitanteeaguardeicompaciênciaachegadademeusanfitriões.

Eleschegarampoucodepoisdocairdanoite,emesaudaramdomodomaiscaloroso. Jupiter, sorrindo de uma orelha a outra, apressou-se em preparargalinhasd’águaparao jantar.Legrandestavanumde seusespasmos–dequeoutra maneira posso defini-los? – de entusiasmo. Ele tinha encontrado umaconchabivalvedesconhecida,afigurandoumnovogêneroe,maisdoque isso,tinhaperseguidoeapanhado,comaassistênciadeJupiter,umescaravelhoqueeleacreditavasertotalmentenovo,arespeitodoqualqueriaouvirminhaopiniãonodiaseguinte.

–Eporquenãohoje?–perguntei,esfregandoasmãosemcimadachamaedesejandoquefosseaodiabotodaatribodosescarabeídeos.

–Ah, se eu soubesse que você estaria aqui! – disse Legrand. –Mas faztanto tempoquenãonosvemos; e comoeupoderia prever quevocême fariauma visita justo esta noite, entre tantas outras? Vindo para casa, encontrei otenente G..., do forte, e cometi a tolice de emprestar-lhe o inseto; então será

impossível que você o veja antes do amanhecer. Fique aqui esta noite, e eumandareiJupatrásdeleaonascerdosol.Éacoisamaislindadetodaacriação!

–Oquê?Onascerdosol?–Quenada!Não!Oinseto.Édeumacordeourobrilhante,maisoumenos

do tamanho de uma noz grande, com duas manchas negras perto de umaextremidade das costas e outra, mais espichada, na outra extremidade. Acoloraçãocobreasantenas...

– Não tem cobre nenhum nele, sinhô Will, tô dizendo pro sinhô –interrompeu Jupiter –, o bicho é inseto de oro, puro, toda parte dele, dentro etudo,sónãoaasa.Nuncanavidaeusegureiuminsetotãopesadodesse.

–Bem,vamossuporquesim,Jup–retrucouLegrand,commaisseriedade,mepareceu,doqueserianecessário–,issoporacasoémotivoparavocêdeixaras avesqueimarem?Acor– aqui ele sevoltouparamim– realmenteéquasesuficienteparaautorizaraideiadeJupiter.Vocênuncaterávistoumlustromaismetálicoebrilhantenairradiaçãodasescamas...Masvocênãopodejulgarnadadissoatéamanhã.Porenquanto,eupossolhedarumaideiadoformato.

Dizendoisso,sentou-seaumamesinhasobreaqualhaviapenaetintamasnãohaviapapel.Procurouporalgumnumagaveta,masnãoachounada.

–Nãofazmal–disse,porfim–,istovaidarconta–esacoudobolsodeseu casaco um pedaço do que eu pensei ser um papel de ofíciomuito sujo, edesenhouneleumesboçocomapena.

Ficoudesenhando,eeumemantivesentadojuntoaofogo,aindasentindofrio.Finalizouoesboçoeopassouparamimsemselevantar.Nessemomentoseouviu um rosnado alto, seguido de um arranhar na porta. Jupiter abriu-a e oenormecãoterra-novadeLegrandcorreuparadentro,pulounosmeusombroseme cobriu de carinhos; eu tinha dedicado muita atenção a ele em visitasanteriores.Quandoocãodeuporencerradososfolguedos,olheiparaopapele,parafalaraverdade,vi-menãopoucointrigadocomoqueomeuamigotraçara.

–Bom–falei,depoisdecontemplaraquiloporalgunsminutos–,esteéumescaravelho estranho, devo confessar. É novo para mim; nunca vi nada igualantes,anãoserumcrânioouumacaveira,queodesenholembramaisdoquequalqueroutracoisaquejátenhapassadopelosmeusolhos.

– Uma caveira! – repetiu Legrand. – Ah... Sim... Ele tem algo dessaaparência no papel, sem dúvida. As manchas negras de cima parecem olhos,não?Eamanchamais longaembaixopareceumaboca, e alémdissoa formatodaéoval.

–Talvez–eudisse.–Mas,Legrand, temoquevocênãosejaexatamente

umartista.Vouesperaratéquepossaveroescaravelhodeverdade,seforparaformaralgumaideiadesuaaparência.

– Bem, não sei – respondeu, um pouco exasperado –, eu desenhorazoavelmentebem,oudeveriadesenhar,nomínimo.Tivebonsmestres,emeorgulhodenãoumpateta.

–Mas,meucaro,entãovocêestábrincando–eudisse–,estaéumacaveirabemaceitável.Naverdade,possodizerqueéumacaveiraexcelente,deacordocomasnoçõesmaisvulgaressobreocorpohumano;eoseuescaravelho,setemsemelhançacomisto,deveseroescaravelhomaisextravagantedomundo.Ora,podemos criar um tanto de superstição sensacional com essa alusão. Presumoquevocêváchamaroinsetodescarabaeuscaputhominis[3],oualgodogênero;existemmuitasdenominaçõescomoessanoslivrosdehistórianatural.Masondeestãoasantenasdasquaisvocêfalou?

–Asantenas!–disseLegrand,quepareciaestarficandoinexplicavelmenteacaloradocomoassunto.–Tenhocertezadequevocêconsegueverasantenas.Meudesenhoas reproduz tal comoelas sãono insetooriginal, epresumoqueissosejasuficiente.

–Muitobem–eudisse–,talvezseja,masaindanãovejoasantenas.E devolvi o papel para ele sem comentário adicional, para não encrespar

ainda mais seu humor; mas eu estava bastante surpreso com o rumo que ascoisastomaram;oenervamentodeLegrandmeintrigava–e,quantoaodesenhodo besouro, era certo que não havia antena visível, e o conjunto tinha fortesemelhançacomoscontornoscomunsdeumacaveira.

Ele tomouopapeldemim,muito irritado,eestavaapontodeamassá-lo,aparentemente para jogá-lo no fogo, quando uma olhadela casual no desenhopareceufixarsuaatenção.Numinstanteseurostoficouviolentamentevermelho,no outro ficou pálido namesmamedida. Por algunsminutos ele continuou aescrutinaroesboçocommuitocuidado,emsuacadeira.Depoisdeum tempo,levantou-se, pegouumavela damesa e foi sentar numbaúde navio no cantomaisdistantedoaposento.Denovoelesepôsnumaverificaçãoansiosa,virandoopapelemtodasasdireções.Porém,nãodissenada,esuacondutamedeixouatônito;mesmoassim, achei prudentenão exacerbar seumau-humor crescentecomqualquer comentário.Em seguida, tiroudobolso do casacouma carteira,enfiou nela o papel, com cuidado, e guardou a carteira numa escrivaninha,chaveandoagaveta.Seucomportamentopareciaagoramaistranquilo,masseuentusiasmooriginaltinhadesaparecidonoar.Elepareciamaisabstraídodoquezangado.Anoiteiapassandoeeleficavamaisemaisabsortoemdevaneios,dos

quais nenhum gracejomeu o arrancava. Eraminha intenção passar a noite nacabana, como já fizera tantas vezes, mas, vendo meu anfitrião nesse ânimo,julgueiqueeramaisapropriadopartir.Elenãomepressionouaficar,porém,àminha saída, despediu-se de mim com uma cordialidade maior do que a desempre.

Foimaisoumenosummêsdepoisdisso(eduranteointervalonemchegueia ver Legrand) que recebi uma visita, em Charleston, de seu braço direito,Jupiter.Eununcatinhavistoobomevelhonegrotãoabatidoetemiquealgumdesastresériotivesserecaídosobremeuamigo.

–Bem,Jup–eudisse–,qualéoassuntoagora?Comovaioseupatrão?–Olha,prafaládeverdade,sinhô,elenãotátãobomcomodevia.–Elenãoestábem!Ficorealmente tristedesaberdisso.Doqueeleanda

reclamando?– Pois não é! É isso! Ele nunca tá reclamando de nada, mas ele muito

doentedaquilotudo.–Muito doente, Jupiter! Por que você não disse de uma vez? Ele está

acamado?–Não,issoelenãotá!Elenãotáacalmadonunca,issoéondeocalodói,

minhacabeçatámuitopesadadetristepelosinhôWill.–Jupiter,eugostariadeentenderdoqueéquevocêestáfalando.Vocêdiz

queoseumestreestádoente.Elenãolhecontouoqueoincomoda?–Olha,sinhô,nãovalepenaficáindoatrásdoassunto.SinhôWillnãofala

nada de nada do assunto que ele tem.Mas daí como é que ele sai em voltaolhandopraesseladodaqui,comcabeçaprabaixoeoombropracimaebrancoquenemofantasma?Edaíeletemumacifatodotempo...

–Eletemoquê,Jupiter?–Umacifacomasfiguraqueeleficaescrevendo,asfiguramaisestranha

queeununcavi.Tôcomeçandoa ficá commedo,deverdade.Preciso ficádeolhoneleondeelevai.Otrodiaeleescapôdemimantesdosolemesumiuodiaintero.Eujátavacompedaçodevaraprontopraeleapanhámaseleveioeeunãotenhoacoragempoiselenãoparecenadabom.

–Hã?Oquê?Ah!Antesdemaisnada,achoqueserámelhorvocênãosermuitodurocomopobrehomem.Nãobatanele,Jupiter,elenãoestánamelhorforma. Mas será que você não consegue ter uma ideia do que causou esseadoecimento ou essamudança de comportamento?Ocorreu algo desagradáveldesdeaminhaúltimavisita?

–Nãosinhô,nãotevenadadesgradáveldesdelá.Foiantes,eutôachando,

foinodiaqueosinhôfoidevisita.–Como?Oquevocêquerdizer?–Olha,sinhô,querodizêoinseto,poissim.–Oquê?–Oinseto.EutenhomuitacertezaquesinhôWillganhôpicadanacabeça

daqueleinsetodeoro.–Enoquevocêseagarra,Jupiter,paraumaconclusãodessas?– Ele tem garra sim sinhô, e boca também. Nunca que eu vi um bicho

malditoassim,elechutaemordetudoqueelechegaperto.SinhôWillprendeueleprimero,masdaíelesoltôelebemlogo,deverdade,foidaíqueeledeveterganhadopicada.Eunãogosteideolháprabocadobicho,jeitonenhum,daínãopego ele commeu dedo, mas seguro ele com pedaço de papel que eu achei,embrulhoelenopapeleenfioumpoconabocadele,assimquefoi.

– E você realmente pensa, então, que o seu patrão foi mordido peloescaravelho,equeamordidaodeixoudoente?

– Eu não penso nada disso. Eu sei isso. Por que ele só sonha tanto cominsetodeoro,senãoéqueele foipicadopelo insetodeoro?Eu jáouviantessobreesseinsetodeoro.

–Mascomovocêsabequeelesonhacomouro?–Comoqueeusei?Éporqueelefaladissodormindo,assimcomoeusei.– Bem, Jup, talvez você esteja certo; mas a que boa circunstância devo

atribuirahonradeumavisitasuahoje?–Comoé,sinhô?–Vocêtrouxealgumamensagemdosr.Legrand?–Nãosinhô,eutenhoaquiessacarta.EentãoJupitermeentregouumbilheteemqueselia:

Meucaro,Porquenãoovimaisportodoessetempo?Esperoquevocênãotenhasidotoloapontodese

ofendercomalgumarispidezminha;não,issoéimprovável.Desdequenosvimosganheigrandesmotivosparameinquietar.Tenhoalgoparalhecontar,só

quemalseicomofazê-lo,ousedeveriamesmocontar.Nãotenhoestadomuitobemnosúltimosdias,eopobreJupficameaborrecendo,atéolimitedo

suportável,comsuasatençõesbem-intencionadas.Outrodiaelearranjouumavaracompridaparamecastigar(vocêacredita?),porqueeuescapeidesuavigilânciaepasseiodiasozinhonascolinasdocontinente.Creioqueminhaaparênciadoentiamesalvoudoaçoite.

Nãofiznenhumacréscimoàminhacoleçãodesdequenosencontramos.Sevocêpudervirdealgumamaneira,seforconveniente,venhacomJupiter.Venha.Gostariade

vê-lohojeànoite.Oassuntoéimportante.Asseguroavocêqueédamaisaltaimportância.Sempreseu,

WilliamLegrand

Algo no tom do bilhete me causou grande desconforto. Tudo diferiasubstancialmente do estilo deLegrand.Como que ele estaria sonhando?Quenovo capricho dominava sua mente emotiva? Que “assunto da mais altaimportância”elepoderiaterparacompartilhar?PelorelatodeJupiter,nãoseriade seesperarnadadebom.Eu receavaqueacontínuapressãodos infortúniostivesse, por fim, desfigurado o raciocínio do meu amigo. Sem hesitar ummomento,portanto,preparei-meparaacompanharonegro.

Chegando ao embarcadouro, notei, no chão do barco que íamos tomar, apresençadeumafoiceedetrêspás,todaspareciamnovas.

–Qualéopropósitodissotudo,Jup?–perguntei.–Páefoicedomestre,sinhô.–Éoquesevê,masoqueelasestãofazendoaqui?–PáefoicesinhôWillmepedeacomprápraelenacidade,eelascustaum

dinherododiaboqueeutivequepagá.–Mas,portudoqueémisteriosonestemundo,oqueoseu“sinhôWill”vai

fazercomfoicesepás?–Daíémaisdoqueeusei,eodiabomeleveseeunãoachoqueémaisdo

quesinhôWillsabetambém.Masétudocoisadoinseto.VendoqueeunãoobterianadasatisfatóriodeJupiter,cujointelectointeiro

pareciaabsorvidopelo“insetodeoro”,entreinobarcoe iceivela.Comventoforteeconstante,logofomosdarnapequenaenseadaaonortedoForteMoultrie,e uma caminhada de uns três quilômetros nos levou até a cabana. Chegamospelas três da tarde. Legrand nos esperava numa expectativa impaciente. Eleagarrouminhamãocomumapressãonervosaquemealarmouequeaumentouasuspeita que eu já alimentava. Seu semblante estava pálido, espectral, e seusolhosfundosemitiamumbrilhoesquisito.Depoisdealgumasindagaçõessobresuasaúde,perguntei,semternadamelhorparadizer,seeleretomaradotenenteG...oescaravelho.

–Ah,sim–elerespondeu,corandoviolentamente–,peguei-odevoltanamanhã seguinte. Nada me afastaria desse escaravelho. Você sabe que Jupitertinhaumtantoderazãoarespeitodele?

–Emquesentido?–perguntei,comumpressentimentotristenocoração.–Nasuposiçãodequesejadeouroverdadeiro.Ele disse isso com um ar de profunda seriedade, e eu me senti

indescritivelmentechocado.– Esse inseto vai fazer minha fortuna – continuou, com um sorriso

triunfante –, vai me reintegrar as posses da minha família. É de surpreender,então,queeutenhaapreçoporele?JáqueaFortunadecidiuconfiá-loamim,émeudeverfazerusoapropriadodele,eassimvouchegaraoouroparaoqualeleaponta.Jupiter,tragaaquioescaravelho!

–Quê!Oinseto,sinhô?Prefironãoincomodáaqueleinseto.Osenhorquevaipegá.

Aqui Legrand se levantou, com ar grave e imponente, e foi tirar oescaravelhodeumacaixadevidroemqueestavaencerrado.Eraumescaravelhomagnífico, desconhecido, à época, pelos naturalistas – sem dúvida um grandetroféunumpontodevistacientífico.Haviaduasmanchasnegrasredondaspertode uma extremidade das costas e uma mancha comprida perto da outra. Asescamaseramextremamenteduraselustrosas,comtodaaaparênciadeumouropolido.Opesodoinsetoeranotável,e,levandotudoemconsideração,eradifícilrepreender Jupiter por sua opinião a respeito dele; quanto à concordância deLegrandcomessaopinião,noentanto,eunãosabia,comtodoomeuser,oquepensar.

–Chamei você – disse ele, num tomgrandiloquente, quando terminei deexaminar o besouro –, chamei você para pedir conselho e assistência, paraaprofundarconsideraçõessobreoDestinoesobreoinseto...

–MeucaroLegrand–exclamei, interrompendo-o–,vocêcertamentenãoestábem,eseriamelhorquetomassealgumaspequenasprecauções.Váparaacama,euficocomvocêporunsdias,atéquesupereisso.Vocêestáfebrile...

–Tomemeupulso–disseele.Assimfize,paradizeraverdade,nãoencontreinemomaisleveindíciode

febre.–Masvocêpodeestardoentemesmosemterfebre.Permitaquesódesta

vez eu lhe faça uma prescrição. Em primeiro lugar, vá para a cama. Emsegundo...

–Vocêestáenganado–eleinterveio–,estoutãobemquantopoderiaestar,nasofreguidãoemqueestou.Sevocêrealmentemequerbem,vaimeajudaraaliviarestasofreguidão.

–Ecomovoufazerisso?– É simples. Jupiter e eu vamos fazer uma expedição pelas colinas, no

continente,enessaexpediçãovamosprecisardaajudadeumapessoaemquempossamosconfiar.Ésócomvocêquepodemoscontar.Mesmoquenãotenhamossucesso,asofreguidãoqueagoravocêvêemmimvaiseatenuar.

–Estouprontoa lheprestarauxílio–respondi–,masvocêestáquerendo

dizer que esse besouro infernal temalguma conexão com sua expediçãopelascolinas?

–Eletem.–Então,Legrand,nãovoutomarpartenumprocedimentotãoabsurdo.–Eusinto,sintomuito,porqueteremosdetentarsónosdois.–Sóvocêsdois!Ohomemcomcertezaestálouco!Masespere;porquanto

tempovocêpretendeseausentar?– Talvez a noite inteira. Devemos partir imediatamente e estar de volta,

aconteçaoqueacontecer,aonascerdosol.–Evocêvaimeprometer,pelasuahonra,quequandoessaextravagância

sua estiver terminada, e o assunto do inseto, porDeus!, resolvido a contento,você vai voltar para casa e seguirmeus conselhos sem restrições, como se eufosseseumédico?

–Sim,euprometo.Eagoravamossair,porquenãotemostempoaperder.Acompanheimeuamigocomumasensaçãoruimnocoração.Saímospelas

quatrohoras–Legrand,Jupiter,ocachorroeeu.Jupitertinhacomeleafoiceeaspás– insistiaemcarregar tudo,maispormedo,mepareceu,dedeixarumadas ferramentas perto de seu amo do que por algum excesso de zelo ou decomplacência.Suasatitudesmostravam-semaisteimosasdoquenunca,e“esseinseto maldito” eram as únicas palavras que saíam de seus lábios durante ajornada.Deminhaparte, eu carregavaduas lanternas furta-fogo, ao passoqueLegrand se contentava com o escaravelho, que levava preso na ponta de umcordão de chicote. Caminhava rodando o cordão, com ares de ilusionista.Quando observei essa última evidência da perturbaçãomental demeu amigo,estivepertode chorar.Penseique seriamelhor, noentanto, condescender comsuafantasia,pelomenosnomomentoouatéqueeupudesseadotarmedidasmaisenérgicaseefetivas.Nomeio-tempoeumeempenhavaemsondar(emvão)qualseria o objetivo da expedição. Tendo obtido sucesso em me induzir aacompanhá-lo,eleparecianãoterinteresseemconversarsobretópicosdemenorimportância,eatodososmeusquestionamentosnãoconcediarespostaquenãofosseapenas“veremos!”.

Cruzamosaenseadanafrentedailhapormeiodeumesquifee,subindoospontosaltosdacostadocontinente,prosseguimosemdireçãonoroeste,atravésde terrenos excepcionalmente selvagens e desolados, nos quais não seencontrava rastro nenhum de passagem humana. Legrand indicava o caminhocomdecisão, fazendoapenaspausasmomentâneas,aquieali,paraconsultaroque pareciam ser pontos de referência que ele mesmo tivesse marcado no

passado.Dessemodo,caminhamosporcercadeduashoras,eosolestavasepondo

quandoingressamosnumaregiãoaindamaislúgubredoqueasoutras.Eraumaespécie de platô, perto do cume de uma colina quase inacessível, fechada pormatadabaseatéopico,entremeadaderochedosenormesqueaparentavamestarsoltos no solo e, emmuitos casos, só não se precipitavamvale abaixo porquecontavamcomosuportedasárvoresemqueserecostavam.Emváriasdireções,ravinasprofundasdeixavamocenárioaindamaissoleneeaustero.

A plataforma natural até a qual tínhamos escalado estava infestada deplantasespinhosas,pelasquais, logodescobrimos, jamaisabriríamospassagemsemafoice;eJupiter,orientadoporseuamo,clareoucaminhoatéopédeumtulipeirocolossal,muitomaisaltoqueosoitooudezcarvalhosquelhefaziamcompanhianaplaníciee,nabelezadesuafolhagem,naramificaçãoampla,namajestadedesuaaparência,maisimponentequetodasasárvoresqueeujávira.Chegando perto da árvore, Legrand se virou para Jupiter e perguntou se eleachavaqueconseguiria subirnela.Ovelhopareceuumpoucoestonteadopelapergunta, e por instantes não deu resposta. Por fim, se aproximou do vastotronco,caminhoudevagaremtornodeleeoanalisoucomamáximaatenção.Aoterminarseuexame,limitou-seadizer:

–Sim,sinhô,Jupsobequalquéárvorequeelevê.– Então se ponha lá em cima o quanto antes, porque logo estará escuro

demaisparapodermosver.–Suboquanto,sinhô?–indagouJupiter.– Suba o tronco principal, primeiro, e aí eu digo por onde você pode ir.

Aqui,espere!Leveobesourocomvocê.–O inseto, sinhôWill!O inseto de oro! – gritou o negro, recuando com

desgosto.–Oquêqueelevaifazêemcimadaárvore?Nãolevo,quediabo!–Sevocê,Jup,umnegrograndeefortecomovocê,temmedodesegurar

umbesourinhomortoeinofensivo,leve-oentãonestecordão.Massevocênãoderjeitodelevá-lodealgumamaneira,eumevereiobrigadoadarcomestapánasuacabeça.

– Que foi agora, sinhô? – disse Jup, claramente cedendo. – Sempreimplicandocomonegovelho.Tavasóbrincando.Eu,têmedodoinseto!Grandecoisaesseinseto.

Jupiterpegouapontadocordãocombastantecuidadoe,mantendooinsetotão longe de si quanto as circunstâncias permitiam, preparou-se para escalar aárvore.

Quandojovem,otulipeiro,ouoliriodendrontulipiferum,amaismagníficadasárvoresdeflorestadaAmérica,temumtroncopeculiarmenteliso,ecostumaalcançar grandes alturas sem ramificações laterais; em sua idade madura, noentanto, a casca se torna nodosa e irregular, e muitos galhos pequenos vãoaparecendo no caule. Assim, neste caso, a dificuldade da escalada diz maisrespeitoàaparênciadoqueàrealidade.Abraçandoomaisquepodiaoenormecorpocilíndrico,aspernasabertas,asmãosagarrandoalgumassaliências,ospésdescalçosseapoiandoemoutras,Jupiter,depoisdequasecairduasvezes,alçou-se até a primeira grande forquilha e pareceu considerar que o negócio todoestava virtualmente executado. Os riscos da façanha tinham de fato passado,emboraseuprotagonistaestivesseaunsvintemetrosdochão.

–Quecaminhoeuvôagora,sinhôWill?–eleperguntou.–Vápelogalhomaior,odesteladoaqui–disseLegrand.O negro o obedeceu de pronto, aparentemente sem maiores transtornos;

ascendeumaisemaisalto,atéquenãosepôdemais tervislumbrenenhumdesua figuraagachada,envolvidapeladensa folhagem.Logoaseguir suavozsefezouvirnumaespéciedeexclamação.

–Quantomaisquetemqueavançá?–Emquealturavocêestá?–perguntouLegrand.–Muitoalto–respondeuonegro.–Dápravêocéuemcimadapontada

árvore.–Esqueçaocéuepresteatençãonoqueeuvoudizer.Olheparaotroncoe

conteosgalhosabaixodevocênestelado.Porquantosgalhosvocêpassou?– Um, dois, três, quatro, cinco... Passei cinco galho grande nesse lado,

sinhô.–Entãosubamaisumgalho.Empoucosminutosavozse fezouvirdenovo,anunciandoqueosétimo

galhoforaalcançado.–Agora, Jup – gritouLegrand,mostrando grande excitação –, quero que

vocêdêum jeitode avançarpor essegalhoomáximoquepuder.Se enxergaralgumacoisaestranha,meavise.

Aessaalturajáestavamliquidadasquaisquerdúvidasqueeuaindativessequantoà insanidadedomeuamigo.Nãohaviacomonãoconcluirqueele foraacometidoporalgumademência,e levá-loparacasapassouaserminhamaiorpreocupação.Enquantoeupensavaemcomoagir,avozdeJupitersefezouvirmaisumavez.

–Muitomedodemearriscámaisprafrentenessegalho.Galhobemmorto.

–Vocêdissequeogalhoestámorto, Jupiter? – gritouLegrand, comvoztrêmula.

–Simsinhô,mortoquenempedra,acabadocomcerteza,semnemsinaldevida.

–Céus,oqueeuvoufazer?–indagouLegrand,namaiorafliçãopossível.–Oquefazer!–eudisse,felizpelaoportunidadedefazerumasugestão.–

Voltarparacasaeirparaacama.Vamoslá,façaacoisacerta.Estáficandotarde.Lembreoquevocêmeprometeu.

– Jupiter – ele gritou, sem me dar a menor atenção –, você está meouvindo?

–Tôsim,sinhôWill.– Examine bem amadeira, então, com sua faca, e veja se ela estámuito

podre.– Madera podre, sinhô, com muita certeza – retrucou o negro instantes

depois–,masnão tãopodrequantopodia.Possomearriscá sozinhoumpocomaisprafrentenogalho,deverdade.

–Sozinho!Comoassim?–O inseto, ora. Esse pesadão desse inseto. Eu podia largá ele pra baixo

primero,edaíogalhonãovaiquebrácomopesodumnegosó.– Patife do inferno! – gritou Legrand, parecendomais aliviado. –O que

vocêquerdizendoumabobagemdessas?Deixeoescaravelhocaireeuquebrooseupescoço.Olheaqui,Jupiter,vocêestámeouvindo?

–Simsinhô,nãoprecisagritácomopobrenegodessejeito.–Muitobem!Ouça!Sevocêavançarnessegalhoatéondeacharseguro,vai

ganharumdólardeprataassimquedescer.–Tô indo, sinhôWill, tô sim– retrucouo negrode imediato –, bempra

pontaagora.–Bempraponta!–exclamoucomforçaLegrand.–Vocêestádizendoque

vaialcançarofimdogalho?–Logoeutônofim,sinhô...Aaaahh!Deus-tem-piedade!Oqueéissoaqui

naárvore?–Poisbem!–gritouLegrand,comgrandesatisfação.–Oqueé?– Olha, nada mais que uma cavera. Alguém botô a cabeça em cima da

árvoreeoscorvocomeramacarnetodinhadela.–Umacaveira!Muitobem,comoelaestápresanogalho?Oqueseguraa

caveiranogalho?–Certo,sinhô,vamovê.Olhaumacircustânciacuriosa,dôminhapalavra:

temumenormedumpregonacavera,issoqueseguraelanaárvore.–Poisagora,Jupiter,façaexatamenteoquevoudizer,estáouvindo?–Simsinhô.–Entãopresteatenção:identifiqueoolhoesquerdodacaveira.–Hmm!Ooh!Essaéboa!Nãoficôolhonenhumnacavera.– Deixe de ser idiota! Você sabe qual é a sua mão esquerda e qual é a

direita?– Sei sim, sei bem sobre isso, é a minha mão esquerda que eu racho a

madera.–Paratermoscerteza:vocêusaamãoesquerda,eseuolhoesquerdoficano

ladoemqueestásuamãoesquerda.Agora,acho,vocêpode identificaroolhoesquerdo da caveira, ou o lugar onde costumava ficar o olho esquerdo.Identificou?

Aquihouveumalongapausa.Porfimonegroperguntou:– O olho esquerdo da cavera tá no mesmo lado que a mão esquerda da

caveratambém?Porqueacaveranãotemnadademãonenhuma...nãofazmal!Euseioolhoesquerdoagora,aquieletá!Fazêoquêcomele?

–Deixeobesourodesceratravésdeleatéondeacordachegar,mascuideparanãodeixarcairacorda.

– Tudo feito, sinhôWill. Fácil demais de enfiá o inseto pelo dentro doburaco...Procuraeleaídebaixo!

DuranteessediálogoafiguradeJupiterpermaneceucompletamenteforadevista;masoescaravelho,queeleconseguirafazerdescer,estavavisívelagoranapontadacorda,eresplandeciacomoouropolidonosúltimosraiosdosolpoente,alguns dos quais iluminavam de leve, ainda, a elevação em que nosencontrávamos.Oescaravelhopendianumespaço livredegalhose, secaísse,cairiaaosnossospés.Legrandpegouafoicesemperdertempoeabriucomelaumespaçocircular,deunstrêsmetrosdediâmetro,bemabaixodoinseto.Feitoisso,ordenouaJupiterquesoltasseacordaedescessedaárvore.

Comgrandeprecisão,meuamigocravouumaestacanochãobemnopontoem que o besouro caiu, e então tirou do bolso uma trena. Prendendo umaextremidadedelanopontodo troncoquemais se aproximavadomarco, ele adesenrolouatéaestacaeapartirdali,nadireçãojáestabelecidapelospontosdaárvore e da estaca, puxou-a até uma distância de dezesseismetros – enquantoJupiteriaclareandooespinhalcomafoice.UmasegundaestacafoicravadanopontoaqueLegrandchegoueemtornodelesedescreveuumcírculorudimentardecercadeummetrodediâmetro.Empunhandoumapáeentregandooutrapara

Jupitereoutraparamim,Legrandpediuquecavássemoscomamaior rapidezpossível.

Parafalaraverdade,nuncativegrandeinclinaçãoparadivertimentosdessaespécie, e naquele momento em particular teria rejeitado o convite comdeterminação, pois a noite estava chegando e eu me sentia exausto de tantaatividade física;mas não via como escapar, e temia perturbar a serenidade domeupobreamigocomumarecusa.SepudessecontarcomaajudadeJupiter,eunão teria hesitado em tentar arrastar o lunático para casa à força; mas adisposiçãodeânimodovelhonegroeraevidente,enãohaviaesperançaalgumade que ele fosse ficar domeu lado numa confrontação como seu amo.Eu játinhacertezadequeesteúltimoestavacontaminadoporalgumadasinumeráveissuperstições,típicasdoSul,sobredinheiroenterrado,edequesuafantasiaforaconfirmadapeladescobertadoescaravelho,ou,talvez,pelaobstinaçãocomqueJupiterdiziaquesetratavadeum“insetodeouroverdadeiro”.Umamentecomtendência à insanidade é facilmente vencida por sugestões desse tipo – aindamais quando sugestões e ideias preconcebidas se combinam; entãome veio àmenteadeclaraçãodopobrehomemdequeobesouroiria“fazersuafortuna”.Asoma de tudome deixou incomodado e confuso,mas por fim decidi fazer danecessidadeumavirtude–cavarcomvontadeparaconvencerovisionário,pordemonstraçãoocular,dafaláciadesuasconvicções.

Acesasaslanternas,todosnoslançamosaotrabalhocomumzelodignodeuma causa mais racional; e, no clarão que incidia sobre nós e sobre asferramentas, não pude deixar de pensar que formávamos um grupo muitopitoresco,equenossaatividadepareceriamuitoestranhaesuspeitaaumintrusoquetopasseconoscoporacaso.

Cavamos no mesmo ritmo por duas horas. Pouco se disse; nosso maiorestorvoeramosganidosdocão,quedemonstravainteresseexcessivoemnossosprocedimentos.Seuestrépitosetornoutãoalarmantequepassamosatemerquealgumcaminhantedasredondezaspudesseseratraídoporele–oumelhor,esseeraomedodeLegrand;quantoamim,qualquerinterrupçãoquemepermitisselevaroerranteparacasaseriaumregozijo.Porfim,oruídofoisilenciadocommuita eficiência por Jupiter, que, saindo do buraco com deliberação feroz,amarrouofocinhodoanimalcomumdeseussuspensórioseentãoretomousuatarefa,dandoumarisadaseca.

Quandootempomencionadoexpirou,tínhamosatingidoumaprofundidadedeummetroemeio,enãosevianenhumsinaldetesouro.Seguiu-seumaboapausa, e comecei a acreditar que a farsa estava chegando ao fim.Legrand, no

entanto, apesar de seu desconcerto evidente, limpou a testa com calma erecomeçou.Tínhamosescavadotodoocírculodeummetrodediâmetro,eagoraalargamosumpoucoo limite e avançamosmaismeiometro para baixo.Maisuma vez, nada apareceu. O caçador de ouro, por quem eu sinceramente mecompadecia,saiuporfimdofosso,comasfeiçõestomadaspelodesapontamentomaisamargo,e, lentoerelutante,foivestirseucasaco,queelehavia tiradonoiníciodotrabalho.Nessemeio-temponãoabriaboca.Jupiter,aumsinaldeseupatrão,começouarecolherosinstrumentos.Feitoisso,comocachorrojálivredafocinheira,dirigimo-nosemprofundosilêncioparacasa.

Tínhamos dado, talvez, doze passos nessa direção quando, praguejandoalto,LegrandvoouatéJupitereoagarroupelagola.Oestupefatonegroabriuosolhoseabocaomaisquepodia,deixoucairaspáseficoudejoelhos.

–Seumiserável!–disseLegrand,cuspindoassílabasporentreosdentescerrados. – Patife preto infernal! Fale, vamos! Responda neste instante, semrodeios!Qual?Qualéoseuolhoesquerdo?

–AimeuDeus,sinhôWill!Nãoéessemeuolhoesquerdocomcerteza?–berrou Jupiter, aterrorizado, colocando amão direita sobre seu órgão de visãodireito, e mantendo-a no lugar com uma obstinação desesperada, como queapavoradocomapossibilidadedequeoamofossearrancaroseuolho.

–Bemquepensei!Eusabia!Viva!–vociferouLegrand,soltandoonegroeexecutando uma série de saltinhos e curvetas, para grande estupefação de seucriado,que,pondo-sedepé,mudo,olhavaoraparamim,oraparaoseupatrão.

–Venham!Precisamosvoltar!–disseLegrand.–Ojogoaindanãoacabou–edenovonoslevouparaotulipeiro.

– Jupiter–eledisse,quandochegamosaopédaárvore–,venhaaqui!Acaveiraestavapregadaaogalhocomorostoviradoparaogalhoouparacima?

– O rosto tava pra cima, sinhô, pros corvo chegá nos olho fácil, semnenhumproblema.

–Bem,e foiatravésdesteolhooudooutroquevocê jogouobesouro?–Legrand,aqui,tocouosdoisolhosdeJupiter.

–Foiesseolhoaqui,sinhô,oolhoesquerdo,bemcomosinhômefalô–eaquifoioolhodireitoqueonegroindicou.

–Jábasta.Vamostentaroutravez.Então meu amigo, em cuja loucura eu agora via, ou imaginava que via,

certos indícios de método, transferiu a estaca quemarcava o lugar em que obesourocaíraparaumpontoaunsdezcentímetrosnadireçãooeste.Levandoatrena, agora, até o ponto do tronco que mais se aproximava da estaca, como

antes,eestendendoa fitaem linha retaatéumadistânciadedezesseismetros,fez um novo marco, afastado vários metros do ponto em que estivéramoscavando.

Emtornodessanovaposiçãoriscamosumcírculo,umpoucomaiordoqueo anterior, e de novo nos lançamos ao trabalho com as pás. Eu estavamuitocansado, mas, sem compreender bem o que havia alteradominhamaneira depensar, não sentia mais muita aversão ao trabalho forçado. Eu me viinexplicavelmente interessado – mais do que isso, até empolgado. TalvezhouvessealgonacondutaextravagantedeLegrand–algumardepremeditação,dedeliberação–quemeimpressionasse.Caveicomímpeto,eaquiealichegueia me surpreender procurando, com algo que só podia ser expectativa, pelotesouroimagináriocujavisãoenlouquecerameudesafortunadocompanheiro.Acerta altura,quandoessas fantasiasocupavamcommais forçadoquenuncaomeu pensamento, e quando já estávamos trabalhando havia talvez uma hora emeia,maisumavezfomosinterrompidospelosviolentosuivosdocachorro.Suainquietação, na primeira ocasião, evidentemente nãopassara de brincadeira oucapricho,masagorasuaentonaçãoeramaissériaeáspera.Eleofereceufuriosaresistência à tentativa de Jupiter de amordaçá-lo e, pulando para dentro doburaco, remexeu a terra freneticamente com suas garras. Em segundosdesenterrou uma boa quantidade de ossos humanos, que formavam doisesqueletoscompletoseentreosquaisseviamváriosbotõesmetálicoserestosdoquepareciasertecidodelãdecomposto.Unsdoisgolpesdepátrouxeramàtonaalâminadeumagrandeadagaespanhola,eàmedidaquefomoscavandovieramàluztrêsouquatrofragmentosesparsosdemoedasdeouroedeprata.

AalegriadeJupitercomadescobertadaspeçasmalpodiasercontida,masafisionomiadeseuamoexpressavaumardedesapontamentoextremo.Elenosinstou,contudo,aprosseguircomempenho,esequertrocamospalavrasquandotropeceiecaíparaafrentedepoisdeprenderapontadabotanumagrandeargoladeferro,aindaenterradapelametade.

Agora trabalhávamos comamaior determinação, e nunca emminhavidapassei dez minutos em excitação tão intensa. Nesse intervalo, já tínhamosdesenterrado por completo um baú retangular demadeira que, pelo estado depreservaçãonotávelepelasolidezassombrosa,claramentehaviasofridoalgumprocessodemineralização– talvezporaçãodobicloretodemercúrio.Acaixatinha um metro de comprimento, noventa centímetros de largura e 75centímetros de altura. Era firmada por tiras rebitadas de ferro trabalhado queformavamumaespéciede treliçaabertaem todooconjunto.Emcada ladodo

baú,pertoda tampa,havia trêsargolasde ferro– seisno total–pormeiodasquais ele podia ser erguido com firmeza por seis pessoas. Nossos maioresesforçosnãofizerammaisdoquemoveraarcamuitodeleveemseuleito.Deimediatovimosqueseriaimpossívelremoverumpesotãogrande.Porsorte,aspresilhasda tampase restringiamaduas travasdecorrer.Puxamosas travas–tremendo e ofegando de ansiedade. Num instante, um tesouro de valorincalculávelcintilavadiantedenós.Osraiosdaslanternasiluminavamochãodofosso, e uma incandescência de luz e brilho, deslumbrante aos nossos olhos,projetou-sedeumamontoadoconfusodeouroedejoias.

Não tenho a pretensão de descrever os sentimentos que experimentei.Perplexidadeera,claro,umsentimentopredominante.Legrandpareciaexaustodetantaexcitação,epoucodizia.OsemblantedeJupitersecobriu,poralgunsminutos,dapalidezmaiscadavéricaquepudessetransparecer,pelanaturezadascoisas,norostodeumnegro.Elepareciaestupefato–atingidoporumraio.Numinstantecaiudejoelhosnofossoe,enterrandoosbraçosnusatéoscotovelosnoouro,deixou-osafundadosali, comoquedesfrutandoda luxúriadeumbanho.Porfim,comumsuspiroprofundo,exclamou,falandoconsigo:

–Tudoissovemdoinsetodeoro!Olindodoinsetodeoro!Opobrezinhodoinsetodeoro,queeumaltrateicomaminharaiva!Negonãotácomvergonhanão?Mediz!

Foi necessário, finalmente, que eu alertasse tanto o amo quanto o criadosobreaconveniênciaderemoverotesouro.Estavaficandotardeeconvinhaquenosempenhássemospara levar tudoparacasaantesdoraiardodia.Eradifícildefiniroquedeviaserfeito,emuitotempofoigastoemdeliberações–detãoconfusasqueestavamnossasideias.Afinalaliviamosopesodacaixa,retirandodoisterçosdeseuconteúdo,eentãoconseguimos,comalgumadificuldade,tirá-ladoburaco.Aspeçasretiradasforamdepositadasentreavegetação,eaocãocoube zelar por elas, sob ordens de Jupiter de que não deveria, em hipótesealguma,nemsemexerdolugarenemabrirabocaatéquevoltássemos.Entãotomamosàspressasocaminhodecasa;chegamosàcabanaemsegurança,masdepois de labuta pesada, à uma da manhã. Esgotados como estávamos, erahumanamente impossível que fizéssemos qualquer outro esforço de imediato.Descansamosporumahorae jantamos;partimosparaascolinas logoaseguir,empunhando três sacosgrossosque,paranossa sorte, estavamàdisposiçãonacasa. Chegamos ao fosso um pouco antes das quatro, dividimos entre nós orestantedaspeçasempartesmaisoumenosiguaise,deixandoosburacoscomoestavam,tomamosdenovoocaminhodacabana,naqualoutravezdepositamos

nossas cargas de ouro – no momento em que os fracos feixes de luz doamanhecercomeçavamaraiarporentreostoposdasárvores.

Estávamosfisicamentedestroçados,masaintensaexcitaçãodaexperiêncianosnegavarepouso.Depoisdeumsonoinquietoqueduroutrêsouquatrohoras,levantamo-nos como se tivéssemos combinado algo de antemão e fomosexaminarnossotesouro.

O baú transbordava de riquezas quando o desenterramos, de modo quepassamos o dia todo, e uma grande parte do dia seguinte, averiguando seuconteúdo. Seu arranjo não obedecera nenhuma espécie de ordem. Tudo foraamontoado promiscuamente. Tendo agrupado tudo com cuidado, vimos queestávamos em posse de uma fortuna ainda mais vasta do que supusemos deinício.Emmoeda,haviabemmaisdoque450mildólares–estimamosovalordaspeças, comamaiorprecisãopossível, pelas cotaçõesda época.Nãohaviaumapartícula de prata sequer.Era tudo ouro antigo,muito variado – dinheirofrancês,espanholealemão,guinéusinglesesealgumasmoedasdeumaespécieque jamais víramos.Havia váriasmoedasmuito grandes e pesadas, tão gastasquenãopodíamosternenhumaideiadoquediziamsuasinscrições.Nãohaviamoedaamericana.Ovalordasjoiasfoimaisdifícildeestimar.Haviadiamantes,alguns deles extremamente grandes e refinados, 110 no total, nenhum delespequeno;dezoito rubisdenotávelbrilho;310esmeraldas, todasbelíssimas;21safiraseumaopala.Todasessaspedrastinhamsidoarrancadasdeseusengasteseatiradasaesmonobaú.Osengastesqueencontramosentreoouropareciamtersido batidos commartelos, como que para evitar identificação. Além de tudoisso havia uma vasta quantidade de ornamentos de ouro maciço; imponentesbrincos e anéis, quase duzentos; opulentas correntes, trinta delas, se bem melembro; 83 crucifixos enormes, pesados; cinco incensórios de ouro de grandevalor;umaprodigiosa tigeladeponchodourada,ornadacomfolhasdevideirasuntuosamente gravadas e figuras de bacantes; dois punhos de espadatrabalhadosprimorosamenteemuitosoutrosartigosmenoresdosquaisnãomelembro.Opesodessaspeçasexcedia150quilose,nessaestimativa,não incluí197soberbosrelógiosdeouro,trêsdosquaisvaliamquinhentosdólarescada,nomínimo. Muitos deles eram velhos demais, tinham as engrenagens mais oumenos arruinadas pela corrosão e não serviriam para marcar o tempo – mastodos eram ornados com joias e tinham estojos muito valiosos. Calculamosnaquelanoitequetodooconteúdodobaúvaliaummilhãoemeiodedólares,edepois da classificação subsequente de adornos e joias (separamos algumasdessas peças para nosso próprio uso) descobrimos que o tesouro valia muito

mais.Quando concluímos, por fim, nossa avaliação, a intensa exaltação que

havíamosvivenciado tinhaemcertamedidadiminuído,eLegrand,percebendoque eu morria de impaciência para ver solucionado o extraordinário enigma,começouafazerumrelatodetalhadodetodasascircunstânciasdahistória.

–Vocêdeveselembrar–disseele–danoiteemquelhemostreioesboçoquefizdoescaravelho.Vocêtambémrecordaquemeirriteicomsuainsistênciaem dizer que o meu desenho lembrava uma caveira. Quando você fez essaafirmaçãoeupenseiqueerazombaria;masemseguidamevieramàlembrançaaspeculiaresmanchasnodorsodoinseto,epasseiaadmitirquesuaasseveraçãotinha um pouquinho de fundamento. Mesmo assim, a galhofa com minhashabilidadesgráficasmeaborrecia(porquemetomamporbomartista)e,porisso,quando você me devolveu o fragmento de pergaminho, eu estava a ponto deamassá-loejogá-locomraivanofogo.

–Ofragmentodepapel,vocêquerdizer–falei.–Não;aaparênciaeradepapel,edeiníciosupusquefossemesmopapel,

masquando fuidesenharneledescobride imediatoqueeraumpedaçodeumvelino muito fino. Estava bem sujo, como você lembra. Bem, minhas mãosestavamprontasparaamassá-loquandomeuolharpassoupeloesboçoquevocêestivera observando, e não é difícil imaginar o assombro que senti quandoidentifiquei, de fato, a figuradeumacaveira exatamenteonde,meparecia, eutinhadesenhadoobesouro.Porummomentofiqueipasmodemaisparapensarcom clareza. Eu sabia que meu desenho era diferente daquilo em muitosdetalhes, embora houvesse uma certa semelhança nos contornos. Virando opergaminho, vimeupróprio esboçono reverso, bemcomo eu o fizera.Minhaprimeira sensação, agora, era de pura surpresa diante da similaridade doscontornos, diante da coincidência singular quehavia no fatodeque, semmeuconhecimento, havia uma caveira no outro lado do pergaminho, exatamenteembaixodaminhafiguradoescaravelho,edequeessacaveira,nãoapenasnaaparência geral, mas também no tamanho, tivesse tanta semelhança commeudesenho. Como eu disse, a peculiaridade da coincidência me deixouabsolutamenteestupefatoporumtempo.Éoefeitousualdecoincidênciasdessetipo.Amenteseesforçaparaestabelecerumaconexão,umasequênciadecausae efeito, e, sendo incapaz de fazê-lo, passa por uma espécie de paralisiatemporária. Porém, quando me recuperei do estupor, ganhou força em meupensamento uma convicção ainda mais espantosa do que a coincidência.Comecei a lembrar com muita clareza que não havia nenhum desenho no

pergaminhoquando fizmeuesboçodoescaravelho.Eu tinha certeza absoluta;pois lembrava terexaminadoprimeiroumladoedepoisooutroparautilizaroqueestivessemenossujo.Éobvioqueacaveiranãopoderiapassardespercebidaseelaestivesseali.Paramimeraummistérioimpossíveldeexplicar;noentanto,mesmo naquele primeiro momento, parecia tremeluzir, nos recessos maissecretos e escuros do meu pensamento, como um vaga-lume, um indício daverdadequeanossaaventuraconfirmoudeforma tãomagnífica.Levantei-me,guardei o pergaminho em lugar seguro e decidi que voltaria a refletir sobre oassuntosóquandoestivessesozinho.

“Quandovocê já tinhapartido–prosseguiuLegrand–e Jupiter já estavaem sono alto, pudeme lançar numa investigaçãomaismetódica.Emprimeirolugar,atenteiparaamaneiracomqueopergaminhochegaraàsminhasmãos.Olocalemqueencontramosoescaravelhoficavanacostadocontinente,maisoumenos umquilômetro emeio a leste da ilha, e pouco acima do nível domar.Quandopegueioescaravelho,elemedeuumapicadadoloridaeodeixeicair.Jupiter, comaprecauçãodecostume,antesdeapanharo inseto,quevoaraatéele,procurouemvoltadesiporalgo,comoumafolha,comquepudessesegurá-lo entre os dedos. Foi nesse instante que seus olhos, e os meus também,localizaramo fragmentodepergaminho,quenahora julguei serpapel.Estavameio enterrado, com uma ponta fora da areia. Perto dali notei a presença dacarcaça do que parecia ter sido um dia o escaler de um navio.A embarcaçãonaufragada devia estar ali havia muitos e muitos anos, pois não restava nelaquase nada que fosse reconhecível. Bem, Jupiter recolheu o pergaminho,embrulhouobesouroeoentregouparamim.Logoaseguirfomosparacasa,enocaminhoencontramosotenenteG.,paraquemmostreioinseto.G.implorouparalevarobesouroconsigoparaoforte.Commeuconsentimento,eleoenfiousem demora no bolso do colete, sem o embrulho do pergaminho, que segureienquantoG.faziaseuexame.Quemsabeeletemeuqueeufossemudardeideiae tratoudeassegurar apossedo troféuoquantoantes;você sabecomoele seentusiasmacomtudoquedizrespeitoàhistórianatural.Aomesmotempo,nummovimentoinvoluntário,devotercolocadoopergaminhoemmeuprópriobolso.

“Você lembra–continuoumeuamigo–quequandosentei àmesacomaintençãodedesenharobesouronãoencontreinadaondecostumoguardarpapel.Procurei na gaveta e nada achei. Examinei meus bolsos, esperando encontraralguma carta velha, e minha mão tocou o pergaminho. Estou detalhando emminúcias de que maneira ele chegou a mim, porque as circunstâncias meimpressionaramcomumaforçaespecial.Vocêvaipensarqueerapurafantasia,

semdúvida,maseujátinhaestabelecidoumaespéciedeconexão.Euuniradoiselosdeumagrandecorrente.Haviaumbarconaufragadonacostadomar,enãolonge do barco havia um pergaminho (não um papel) com uma caveirarepresentada nele. Você vai perguntar, é claro, “onde está a conexão?”.Respondo-lhe que a caveira é o reconhecido emblema dos piratas.A bandeiracomacaveiraéiçadaemtodososcombates.Comoeudisse,ofragmentoeradepergaminho, e não de papel. O pergaminho é duradouro, quase imperecível.Questõesdepoucaimportânciaquasenuncasãoconfiadasaopergaminho,jáqueparaopropósitoordináriodedesenharouescreverelenãoservetãobemquantoopapel.Essareflexãosugeriuquehaviaalgumsignificado,algumarelevância,nacaveira.Tambémnãodeixeidedaratençãoàformadopergaminho.Emboraumde seuscantos tivesse sidodestruídoporalgumacidente, eravisívelqueaformaoriginaleraretangular.Eraumapeçameiocomprida,quebempoderiatersido escolhida para um memorando, para o registro de algo que deveria serlembradoecuidadosamentepreservadopormuitotempo.”

– Mas você está dizendo – interrompi – que a caveira não aparecia nopergaminhoquandovocêfezodesenhodobesouro.Dequemaneira,então,vocêidentificaqualquerconexãoentreobarcoeacaveira,jáqueesta,segundovocêmesmo admite, deve ter sido desenhada (sabe Deus como ou por quem) emalgummomentosubsequenteaoseuesboçodoescaravelho?

–Ah,éapartirdaquiqueseesclarecetodoomistério,sebemque,aessaaltura,eujátivessemuitomenosdificuldadeemresolveroenigma.Meuspassoseramfirmesesópoderiamalcançarumúnicopontodechegada.Euraciocinava,por exemplo, assim: quando rabisquei o escaravelho, não aparecia caveiranenhumanopergaminho.Quandolheentregueiodesenho,nãotireiosolhosdevocêatépegá-lodevolta.Você, portanto,nãodesenhouacaveira, enãohavianinguémmais ali quepudesse tê-la desenhado.Não foi obrade açãohumana.Mas a caveira foi feita. Nesse estágio das minhas reflexões fiz esforço paralembrar,econsegui lembrar, com clareza absoluta, cada acontecimento que sepassou nesse período. Fazia frio (ah, que acaso raro e feliz!), e um fogoqueimavanalareira.Euestavaaquecidopeloexercíciorecenteesenteipertodamesa.Você,noentanto, tinhapuxadoumacadeiraparapertodocalor.Quandoentregueiopergaminhoemsuasmãosevocêiacomeçaraexaminá-lo,Wolf,oterra-nova, entrou e pulou nos seus ombros. Com a mão esquerda você aacariciou e o afastou um pouco, enquanto sua mão direita, que segurava opergaminho, pendeu frouxa entre os joelhos, bem próxima do fogo. A certaaltura pensei que a chama tivesse alcançado o fragmento, e estava prestes a

alertá-lo,masantesqueeupudessefalarvocêjátinhaerguidodenovoamãoecomeçadoafazersuaavaliação.Quandoconsiderei todosessesincidentes,nãoduvideinemporumminutodequeocalorhaviasidooresponsávelportrazeràluz, no pergaminho, a caveira que eu via desenhada nele. Você tem perfeitanoção de que existem, há mais tempo que se possa imaginar, preparaçõesquímicas com as quais se pode escrever tanto em papel quanto em velino demodoqueasletrassósetornemvisíveisquandosujeitasàaçãodofogo.Pode-seusaróxidodecobalto,preparadocomágua-régiaediluídoemquatrovezesseuvolumedeágua.Oresultadoéumatintaverde.Orégulodocobalto,dissolvidoem solução de salitre, dá uma tinta vermelha. Essas cores desaparecem emintervalosde tempovariáveisdepoisqueomaterialemqueseescreveuesfria,masvoltamaaparecerquandoexpostasaocalor.

“Eu examinava a caveira com cuidado agora – continuou Legrand. –Ostraçosmaispróximosdaextremidadedovelinoestavambemmaisdistintosdoque os outros. Estava claro que a ação do calor fora imperfeita ou desigual.Imediatamente acendi um fogo e submeti todo o pergaminho ao calor daschamas. De início, o único efeito que obtive foi o reforço das linhas menosvisíveis da caveira; prosseguindo com o experimento, contudo, tornou-seaparente, no canto diagonalmente oposto àquele em que estava delineada acaveira, uma figura que primeiro supus ser um bode. Uma observação maisatenta,entretanto,revelouqueafigurarepresentavaumcabrito.”

–Ha,ha!–interrompi.–Écertoquenãotenhodireitoderirdevocê(ummilhãoemeiodedólaresnãosãomotivodetroça),masassimnãopodehaverum terceiro elo na sua corrente. Você não vai encontrar nenhuma conexãoespecialentreosseuspirataseumbode;piratas,vocêsabe,nãotêmnadaavercombodes;bodespertencemaoramodaagricultura.

–Masacabeidedizerqueafiguranãoeraumbode.–Bem,quefosseumcabritoentão;praticamenteamesmacoisa.–Praticamente,masnãoamesmacoisa–disseLegrand.–Vocêjádeveter

ouvidofalardoCapitãoKidd.Logotomeiafiguradocabrito [kid]comoumaespéciedetrocadilhoouassinaturacifrada.Digoassinaturaporquesuaposiçãonopergaminho sugeria essa ideia.Acaveirado cantooposto tinha, domesmomodo, uma aparência de estampaou de selo.Mas eu estava transtornadopelaausênciadetodooresto,docorpodomeuinstrumentoimaginário,dotextonomeucontexto.

– Presumo que você esperava encontrar uma carta entre a estampa e aassinatura.

–Algo do tipo.O fato é que eume sentia irresistivelmente afetado pelopressentimentodequeumabelaevasta fortunapairavasobremim.Malpossodizerporquê.Talvez,naverdade,fossemaisumdesejodoqueumaconvicçãoreal.MasvocêimaginaqueastolasideiasdeJupiter,dequeoinsetoeradeouropuro,exerceramumefeitoforadocomumnasminhasfantasias?Edepoisasériede incidentesecoincidências;era tudo tãoextraordinário.Vocêsedácontadoacasodequetodosesseseventosocorreramnoúnicodiadetodooanoquefoiou podia ser frio o bastante para exigir um fogo, e que sem a intervenção docachorronomomentoexatoeujamaisteriatomadoconhecimentodacaveira,eportantojamaistomariapossedotesouro?

–Prossiga.Soutodoimpaciência.–Bem.Vocêjáouviu,comcerteza,asinúmerashistóriasquecorremporaí,

os mil rumores vagos que circulam fazendo referência a dinheiro que foienterrado,emalgumpontodacostadoAtlântico,porKiddeseuscompanheiros.Esses rumores devem ter tido algum fundamento.E o fato de que os rumoresexistiam há tanto tempo e permanecessem sempre circulando só podia serexplicado pela circunstância de que o tesouro continuasse sepultado. SeKiddtivesseescondidosuapilhagemporumtempoearesgatadodepois,osrumoresdificilmenteteriamnosalcançadoemseupadrãouniformeatual.Observequeashistóriasdãocontadecaçadoresdedinheiro,enãodedescobridoresdedinheiro.Seopiratativesserecuperadoseudinheiro,oassuntoestariaencerrado.Pareciaamimquealgumacidente,digamosqueaperdadeummemorandoqueindicavaalocalização,tivesseprivadoKidddosmeiospararesgatarotesouro,equeesseacidente tivesse chegado ao conhecimento de seus seguidores, que de outramaneiranuncateriamsequerouvidofalarqueotesouroforaescondido,equeosseguidores,empregandoesforçospararesgatá-lo(emtentativasvãs,pelafaltadeumguia),tivessemoriginadoecomissoespalhadoemgrandeescalaosboatosquehojesãotãocomuns.Vocêjáouviufalardealgumtesouroimportantesendodesenterradoaolongodacosta?

–Nunca.–QueKiddacumulouriquezasimensas,todossabem.Euestavaseguro,por

isso,dequeelascontinuavamenterradas;evocênemvaificarsurpresoquandoeu lhe contar que senti uma esperança, quase certeza, de que o pergaminho,encontradoemcircunstânciastãoestranhas,diziarespeitoaumregistroperdidodolocaldoesconderijo.

–Mascomovocêprocedeu?–Aproximeiovelinodocaloroutravez,depoisde reanimaro fogo,mas

nadaapareceu.Penseiqueasujeiradomaterialpudesseteralgoavercommeufracasso: então lavei o pergaminho cuidadosamente, derramando água mornasobre ele, e, feito isso, coloquei-o dentro de uma frigideira de latão, com acaveira virada para baixo, e botei a frigideira sobre uma fornalha com carvãoaceso. Em alguns minutos, com a frigideira já bastante aquecida, retirei ofragmento e, para minha indescritível felicidade, ele estava pontilhado, emvárioslugares,peloquepareciamserfigurasordenadasemlinhas.Coloquei-onafrigideiradenovoeodeixeiaquecerpormaisumminuto.Quandootirei,elejámostravatudoquevocêpodeveragora.

Aqui Legrand submeteu o pergaminho, reaquecido, à minha análise. Osseguintes caracteres estavam rudemente traçados, em tinta vermelha, entre acaveiraeobode:

53 +305))6*;4826)4. )4 );806*;48+8q60))85;1 (;: *8+83(88)5*+;46(;88*96*?;8)* (;485);5*+2:* (;4956*2(5*―4)8q8*;

4069285);)6+8)4 ;1( 9;48081;8:8 1;48+85;4)485+528806*81( 9;48;(88;4( ?34;48)4 ;161;:188; ?;

–Mas estoumais no escuro do que nunca – eu disse, devolvendo-lhe ofragmento. – Se todas as joias de Golconda[4] fossem o meu prêmio pelasoluçãodesseenigma,tenhocertezadequenãoconseguiriaobtê-las.

–Enoentanto–disseLegrand–,asoluçãonãoédemaneiraalgumatãodifícilquantooexameapressadodoscaracterespode levá-loaacreditar.Essescaracteres,comoqualquerumpodelogoadivinhar,formamumacifra,ouseja,transmitem um significado; porém, pelo que se sabe deKidd, não seria de seesperardeleacapacidadedecriarcriptogramascomplexos.Concluídeimediatoque esta era uma cifra do tipomais simples, que aos olhos simplórios de ummarinheiro,noentanto,pareceriaabsolutamenteindecifrávelsemocódigo.

–Evocêodecifrou?–Jásemdificuldade;decifreicriptogramasdezmilvezesmaiscomplexos.

Circunstânciasdavidaeumacerta inclinaçãodetemperamentomefizeramterprofundointeresseportaischaradas,esempresepodeduvidardequeoengenhohumano possa criar um enigma que o engenho humano não consiga, com oempenho necessário, resolver. Na verdade, depois de ter identificado letras

conectadas e legíveis, nem cheguei a pensar em ter qualquer dificuldade paradescobrirosignificadodamensagem.Nestecaso,eemtodososcasosdeescritaem código, a primeira questão é considerar a linguagem da cifra; pois osfundamentos da solução, especialmente no que diz respeito aos códigos maissimples,sãovariáveisedependemdascaracterísticasdecadaidioma.Emgeral,nãoháalternativaparaodecifradoranãoser testar,apartirdeprobabilidades,cada línguaqueele conhece.Nacifraque temosconosco,porém,a assinaturaeliminatodasasdificuldades.Otrocadilhocomapalavra“Kidd”sucedeapenasna língua inglesa. Não fosse essa consideração, eu teria iniciado minhastentativaspeloespanholepelofrancês,quesãoaslínguasemqueumpiratadoCaribecostumaescrever.Graçasaotrocadilho,concluíqueocriptogramaestavaescritoeminglês.

“Observe–prosseguiu–quenãohádivisõesentrepalavras.Comdivisõesatarefa teria sidomuitomais fácil.Se fosseesseocasoeu teriacomeçadocomcotejoseanálisesdaspalavrasmenorese,naocorrênciadealgumapalavradeumaletra,comoa,ouI[5],asoluçãoestariagarantida.Comonãohaviadivisão,meuprimeiroprocedimento foideterminar as letraspredominantes,bemcomoasmenosfrequentes.Contandotodas,elaboreiumatabelaassim:

Docaractere8existem33.Docaractere;existem26.Docaractere4existem19.Docaractere existem16.Docaractere)existem16.Docaractere*existem13.Docaractere5existem12.Docaractere6existem11.Docaractere(existem10.Docaractere+existem8.Docaractere1existem8.Docaractere0existem6.Docaractere9existem5.Docaractere2existem5.Docaractere:existem4.Docaractere3existem4.Docaractere?existem3.Docaractereqexistem2.

Docaractere―existe1.Docaractere.existe1.

“Ora,noinglês,aletraqueocorrecommaisfrequênciaéaletrae.Depoisdela,asucessãoé:aoidhnrstuycfglmwbkpqxz.Oeprevalecedetalmaneira que quase nunca se vê uma frase isolada em que ele não sejapredominante.Aquinós temos,portanto,bemno início,umabasequepermitemaisdoqueummeropalpite.Ousoquesepodefazerdatabelaéóbvio,mas,neste criptograma em particular, não precisamos nos valer dela por inteiro.Comonossocaracteredominanteéo8,começaremosassumindoqueesteéoedo alfabeto normal. Para validar a suposição, observemos se o 8 aparece emduplas,jáqueoeduplicadoémuitocomumeminglês,empalavrascomo,porexemplo, “meet” [encontrar, travar conhecimento], “fleet” [frota, corrervelozmente], “speed” [velocidade], “seen” [visto], “been” [sido], “agree”[concordar]etc.Nonossocaso,nósovemosduplicadonadamenosquecincovezes,emboraocriptogramasejabreve.Digamos,então,queocaractere8ée.Bem,de todas aspalavrasda língua, “the” [artigodefinido] é amais comum;vejamos,então,senãoexistemrepetiçõesdetrêscaracteres,namesmaordemdedisposição, em que o último é o 8. Se localizarmos repetições de letras nessearranjo, é muito provável que representem a palavra “the”. Fazendo averificação, encontramos nada menos que sete arranjos do mesmo tipo, oscaracteressendo;48.Podemos,porisso,considerarqueocaractere;representat,4representahe8representae,esteúltimoestandomaisdoqueconfirmado.Comisso,demosumgrandepasso.

“Tendo reconhecido uma única palavra – continuou Legrand –, estamosaptosaatingirumpatamarimportantíssimo,poispodemosdesvendarcomeçosefins de outras palavras. Vejamos, por exemplo, o penúltimo caso em que acombinação;48ocorre,nãolongedofimdacifra.Sabemosqueocaractere;quese segue é o começodeumapalavra, e, dos seis caracteres que sucedemesse“the”, conhecemos nadamenos que cinco. Podemos traduzir esses caracteres,então,paraasletrasquesabemosqueelesrepresentam,deixandoespaçoparaaletradesconhecida:

teeth.

“Aqui,logotemoscondiçõesdedescartarqueo“th”façapartedapalavraquecomeçacomoprimeirot,jáque,buscandoemtodooalfabetoporumaletraque se encaixeno espaçovazio, vemosnãohá como formarnenhumapalavra

queincluaesse“th”.Assimficamosreduzidosa

tee

e, percorrendo todo o alfabeto como antes, se necessário, chegamos à palavra“tree”[árvore]comoaúnicaleiturapossível.Assimganhamosmaisumaletra,or, representado por (com as palavras “the tree” em justaposição. Olhando umpoucoalémdessaspalavras,nósvemosmaisumavezacombinação;48,eporela determinamos o fim da palavra que a precede. Temos então o seguintearranjo:

thetree;4( ?34the.

“Comasletrasjáconhecidas,temos:

thetreethr ?3hthe.

“Bem,sedeixarmosespaçosembrancooupontosnolugardoscaracteresdesconhecidos,teremos

thetreethr...hthe,

eapalavra“through”[através]ficaevidentenoato.Essadescobertanosdátrêsnovasletras,o,ueg,representadaspeloscaracteres‡,?e3.Passandoosolhospela cifra, agora, em busca de combinações de caracteres conhecidos,encontramos,nãolongedocomeço,oarranjo

83(88,ouegree,

que só pode ser a palavra “degree” [grau] e nos dá mais uma letra, d,representada por †. Quatro letras antes da palavra “grau” podemos notar acombinação

;46(;88.

“Traduzindo os caracteres conhecidos e substituindo o desconhecido porumponto,lemos

th.rtee,

um arranjo que sugere imediatamente a palavra “thirteen” [treze] e tambémfornecedoiscaracteresnovos,ien,representadospor6e*.Observando,agora,oiníciodocriptograma,encontramosacombinação

53 +.

“Traduzindocomoantes,vamosobter

.good,

oqueasseguraqueaprimeiraletradotextoéA,equeasduasprimeiraspalavrassão“Agood” [Umbom].Nestaalturadevemosorganizarnossa tabelacomasdescobertasjáfeitas,paraevitarconfusão.Elaficaassim:

5representaa†representad8representae3representag4representah6representai*representanrepresentao

(representar;representat?representau.“Temosrepresentadas,portanto,nadamenosqueonzedasmaisimportantes

letras,enãoénecessárioprosseguircomosdetalhesdasoluçãodoenigma.Eudisseosuficienteparaquevocêseconvencessedequecifrasdessanaturezasãofáceisdesolucionareparaquevocêtivesseumaboanoçãodalógicadacriaçãodelas.Fiquesegurodequeoexemploquetemosdiantedenóspertenceàespéciemaissimplesdecriptografia.Agorasórestalheapresentaratraduçãocompletadoscaracteresdopergaminho,todosdecifrados.Aquiestá:

Umbomvidronohoteldobisponacadeiradodiaboquarentaeumgrause trezeminutosnordesteparanortetroncoprincipalsétimogalholadolesteatirardoolhoesquerdodacaveiraumalinhadeabelhadesdeaárvoreatravésdotirodezesseismetrosadiante.[6]

–Masoenigmameparecepiordoquenunca–eudisse.–Comoépossívelextrair um sentido de todo esse jargão de “cadeiras do diabo”, “caveiras” e“hotéisdobispo”?

– Confesso – retrucou Legrand – que a questão, vista superficialmente,aindatemumaaparênciacomplicada.Aprimeiracoisaquefizfoisepararafrasenasdivisõescorretasdamensagem.

–Pontuarafrase,vocêquerdizer?–Algodotipo.–Mascomoissofoipossível?–Imagineiquetivessesidoumaintençãodoescritordisporaspalavrassem

divisão,paradificultarmaisadecifração.Mesmoumhomemnãomuitoarguto,porém,temgrandeschancesderesolveraquestão,comalgumesforço.Quando,no decorrer de sua composição, o autor chegasse a umaquebra de tópico quepedissepausaouponto,tenderiaadisporoscaracterescommaisproximidadedoquenodecorrernormaldamensagem.Seobservaronossomanuscrito,vocêvaidetectarcomfacilidadecincocasosdesseajuntamentoincomum.Seguindoessepalpite,fizadivisãoassim:

Umbomvidronohoteldobisponacadeiradodiabo–quarentaeumgrausetrezeminutos–nordesteparanorte–troncoprincipalsétimogalholadoleste–atirardoolhoesquerdodacaveira–umalinhadeabelhadesdeaárvoreatravésdotirodezesseismetrosadiante.[7]

–Continuonoescuromesmocomadivisão–disseeu.–Tambémfiqueinoescuro–retrucouLegrand–poralgunsdias;enquanto

issomedediqueiabuscas,nosarredoresdeSullivan’sIsland,poralgumprédioquetivessepornome“Bishop’sHotel”[HoteldoBispo];eudescartara,claro,otermo obsoleto “hostel” [hospedaria, albergue]. Não obtendo nenhumainformação,euestavaapontodeestenderminhaáreadepesquisaedecomeçaraagirdemaneiramaissistemáticaquando,certamanhã,subitamentemeveioàcabeça que esse “Bishop’s Hotel” podia ter alguma ligação com uma antigafamília de nome Bessop, que, muitos emuitos anos atrás, possuíra um velhosolarcercadeseisquilômetrosaonortedailha.Fuiatéapropriedadeeretomeiminhasinvestigaçõesconversandocomosnegrosmaisvelhosdolugar.Porfim,umadasmulheresmaisidosasdissequeouvirafalardeumcertoBessop’sCastle[“CastelodoBispo”]eachouquepudessemelevaratélá,emboranãosetratassenemdecasteloenemdeestalagem,esimdeumarochaalta.Ofereciumbompagamento pelo transtorno e, depois de alguma indecisão, ela aceitou meacompanhar. Chegamos ao local sem maiores dificuldades e, dispensando asenhora,trateideexaminaraárea.O“castelo”eraumagrupamentoirregulardepenhascoserochedos,eumarochasedestacavatantopelaalturaquantoporsuaaparênciaisoladaeartificial.Subiatéseucumeemesentiperdidoquantoaoquefazeraseguir.

– Enquanto ia refletindo – prosseguiu Legrand –, de repente, vi umapequena saliência na face leste da rocha,mais oumenos ummetro abaixo dotopoemqueeumeencontrava.Asaliênciaseprojetavaporcercademeiometroenãotinhamaisdoquetrintacentímetrosdelargura.Umvãobemacimadela,na rocha, fazia o conjunto lembrar uma daquelas antigas cadeiras de encostocôncavoquenossosantepassadosusavam.Não tivedúvidadequeali estavaa“cadeiradodiabo”referidanomanuscrito,eosegredodoenigmapareciaestar

ao alcance das minhas mãos. O “bom vidro”, eu sabia, só poderia fazerreferência a um telescópio; o termo “glass” raramente é empregado em outrosentido pelos marinheiros. Percebi que tínhamos agora um telescópio parautilizareumpontodevistadefinidoeinvariávelapartirdoqualdevíamosusá-lo.Tambémconcluídeimediatoqueaspassagens“41grausetrezeminutos”e“nordeste para norte” eram indicações para o posicionamento da lente.Muitoentusiasmadopelas descobertas, corri para casa, peguei um telescópio e volteiparaarocha.

“Desciatéasaliênciaeviquesóexistiaumaúnicaposiçãoemquesepodiasentarnela,oqueconfirmouminhaideiainicial.Aseguir,fizusodotelescópio.Era certo que “41 graus e treze minutos” indicava a elevação a partir dohorizonte,jáqueadireçãohorizontalestavaclaramenteindicadapelaspalavras“nordesteparanorte”.Estabeleciessadireçãocomoauxíliodeumcompassodebolso.Então,apontandoalentenoquecalculeiserumaelevaçãopróximaa41graus,movi o telescópio cuidadosamente para cima e para baixo até que umaaberturacircularnafolhagemdeumaárvoreenorme,maisaltadoqueasoutras,chamouminhaatençãoaolonge.Nocentrodabrechaviumpontobranco,masdeinícionãoconseguidistinguiroqueera.Ajustandoofocodotelescópio,pudeenxergarquese tratavadeumcrâniohumano.Comestadescoberta, fiquei tãoconfiantequedeioenigmaporsolucionado;porqueotrecho“troncoprincipal,sétimo galho, lado leste” só podia se referir à posição do crânio em cima daárvore, enquanto que “atirar do olho esquerdo da caveira” também só admitiaumainterpretaçãonoquedizrespeitoàbuscadeumtesouroenterrado.Percebiqueoesquemaconsistiaemdeixarcairumabalapeloolhoesquerdodocrânio,equeumalinhadeabelha,ouseja,umalinhareta,traçadaapartirdopontomaispróximo do tronco e passando pelo “tiro” (ou pelo lugar em que o projétilcaísse), e dali estendida até uma distância de dezesseis metros, indicaria umponto preciso... E considerei que era no mínimo possível que embaixo dessepontoestivesseocultadoumdepósitovalioso.”

–Tudoissoéextremamenteclaro–falei–,simpleseexplícito,apesardeengenhoso.Quandosaiudo“HoteldoBispo”,oquevocêfez?

–Ora,fuiparacasadepoisdeanotarcomcuidadoasdireçõesdaárvore.Noinstante em que levantei da “cadeira do diabo”, no entanto, a brecha circulardesapareceu;nãoconseguimaisvislumbraraaberturadepois,pormaisqueeumudassedeposição.Achoqueamaiorengenhosidadede todasestáno fato,erepetidos testes me mostraram que é um fato, de que a abertura circular emquestãonãopodeservistadenenhumpontodevistadisponívelquenãosejao

queéproporcionadopelaestreitasaliêncianafacedarocha.Nessaexpediçãoao“Hotel do Bispo” contei com a ajuda de Jupiter, que sem dúvida vinhaobservandomeucomportamentoabstraídonasúltimassemanaseseempenhavaemnãomedeixarsozinho.Nodiaseguinte,porém,acordeimuitocedo,deiumjeitodeescapardelee fuiprocuraraárvorenascolinas.Encontrei-adepoisdemuita procura. Quanto voltei para casa, à noite, meu criado quis me açoitar.Creioqueorestodaaventuravocêconhecetãobemquantoeu.

–Suponhoque,naprimeiratentativadeescavação–comentei–,vocêerroudeposiçãograçasàestupidezdeJupiter,quefezoinsetocairpeloolhodireitodacaveira,enãopeloolhoesquerdo.

–Exato.Esseenganogerouumafastamentodecercadesetecentímetrosno“tiro”,querdizer,naposiçãodaestacapertodaárvore.Seotesouroestivesseali,embaixodo“tiro”,oerroteriafeitopoucadiferença;maso“tiro”eopontomaispróximodaárvoreeramapenasdoispontosparaoestabelecimentodeumalinhadedireção.Pormaistrivialquetivessesidonoinício,oerroaumentavaàmedidaqueseguíamoscomalinha,equandochegamosaosdezesseismetrosestávamosbem longedapista correta.Não fossemeu firme sentimentodequeo tesouroestava de fato enterrado em algum lugar perto de nós, poderíamos terdesperdiçadotodoonossotrabalho.

– Presumo que a extravagância da caveira, de deixar uma bala cair peloolhodacaveira,tenhasidosugeridaaKiddpelabandeirapirata.Elesemdúvidavia alguma coerência poética em recuperar seu dinheiro através da insígniaagourenta.

–Podeser,masnãoconsigodeixardepensarqueobomsensotivessetantarelaçãocomoassuntoquantoqualquercoerênciapoética.Paraservisíveldesdeacadeiradodiabo,oobjeto,se fossepequeno,precisariaserbranco;enãohánada como o crânio humano que retenha e até reforce a cor branca quandoexpostoatodasintempéries.

–Masea suagrandiloquência, eo seu jeitodebalançarobesouro...queexcentricidade!Eutinhacertezadequevocêestavalouco.Eporqueinsistiuemfazeroinsetocairdacaveira,enãoumabala?

– Ora, para ser franco, fiquei um tanto aborrecido com suas suspeitasmanifestassobreminhasanidade,eentãoresolvipunirvocêaospoucos,aomeumodo, com um pouco de mistificação racional. Por isso fiquei balançando obesouro,eporissoofizcairdaárvore.Umaobservaçãosuaarespeitodopesoconsideráveldoescaravelhomesugeriuessaúltimaideia.

–Entendo.Agorasóháumaquestãoqueaindameintriga.Oquedizerdos

esqueletosqueencontramosnoburaco?–Éumaquestãoquevocê teria tantascondiçõesde responderquantoeu.

Entretanto, parece existir apenas uma explicação plausível, e é aterradoracreditarnaatrocidadequeminhahipóteseimplica.ÉóbvioqueKidd,sedefatoescondeuseutesouro,eestoucertodequeescondeu,éóbvioqueelenãopodeter trabalhado sozinho.Concluído o trabalho, porém, ele deve ter consideradoconvenienteeliminar todososconhecedoresdosegredo.Talvezdoisgolpesdepicaretatenhambastado,enquantoseusassistentesestavamocupadosnofosso.Talvezumadúzia.Quempodesaber?

[1]PoeatribuiaepígrafeaAllintheWrong,comédiade1761doirlandêsArthurMurphy,masnãohánadaqueseassemelheaessetrechonasediçõesdapeça.(N.T.)[2]PoesereferenaturalistaholandêsJanSwammerdam(1637-1680).(N.T.)[3]Emlatim,“escaravelhocabeçadehomem”ou“escaravelhocaveira”.(N.T.)[4]Antigacidadeindiana,célebreporseusdiamantes.(N.T.)[5]Eminglês,asignifica“um”ou“uma”;Isignifica“eu”.(N.T.)[6]Agoodglass in thebishop’shostel in thedevil’sseatforty-onedegreesandthirteenminutesnortheastandbynorthmainbranchseventhlimbeastsideshootfromthelefteyeofthedeath’s-headabee-linefromthetreethroughtheshotfiftyfeetout.(N.T.)[7]Agoodglassinthebishop’shostelinthedevil’sseat–forty-onedegreesandthirteenminutes–northeastandby north–main branch seventh limb east side–shoot from the left eye of the death’s-head–abee-linefromthetreethroughtheshotfiftyfeetout.(N.T.)

UMCONTODASMONTANHASESCABROSAS

Duranteooutonodoanode1827,quandoeumoravapertodeCharlottesville,naVirginia, conheci por acaso o sr. Augustus Bedloe. Este jovem cavalheiro eranotávelemtodososaspectos,emedespertavaprofundointeresseecuriosidade.Eraimpossível,paramim,compreendersuasreferênciasmoraisesuascondiçõesfísicas.Não tivenotícia satisfatóriade sua família.Deondeeleveioeununcasoubeaocerto.Mesmoarespeitodesuaidade–emboraeuochamedejovemcavalheiro – havia algo queme deixava não pouco perplexo. Ele sem dúvidaparecia jovem–e faziaquestãode falarde sua juventude–,no entantohaviaocasiões emqueeu teriapoucadificuldadeem imaginá-loumhomemdecemanos de idade.Mas em nenhum aspecto era elemais peculiar do que em suaaparência. Era singularmente alto e magro. Andava sempre curvado. Seusmembroseramdemasiadolongoseemaciados.Suatestaeralargaeestreita.Suafisionomiaeraabsolutamentedescorada.Suabocaeragrandeeflexível,eseusdentes,emborasaudáveis,eramosdentesmaisirregularesqueeujáviranumserhumano.Aexpressãodosorriso,contudo,nãoerademodoalgumdesagradável,comoseriade seesperar;masnão tinhanenhumavariação.Eraumsorrisodeprofunda melancolia – de um abatimento disforme e ininterrupto. Seus olhoseramgrandeseanormais,redondoscomoosdeumgato.Alémdisso,aspupilasnãosecontraíamnemdilatavamquandosubmetidasamaisoumenosluz,bemcomo ocorre com a tribo felina. Em momentos de entusiasmo as órbitasbrilhavam numa intensidade quase inconcebível, parecendo emitir raiosluminososqueerammenosreflexosdoquefulguraçõesintrínsecas,comosedácomumavelaoucomosol;e,noentanto,aaparênciacostumeiradosolhoseratãoapagada,turvaesombriaquepassavaaideiadeumcadáverenterrado.

Essaspeculiaridadespessoaispareciamsermotivodemuitoaborrecimentopara Bedloe, e ele ficava sempre se referindo a elas num discurso às vezesexplanatório e às vezes apologético que, de início, deixou-me uma impressãodolorosa.Porém,logomeacostumeicomissoemeudesconfortopassou.Pareciaserumaintençãodesuaparteinsinuar,maisdoqueafirmar,quefisicamenteele

nãoforasempreassim–queumalongasériedeataquesnevrálgicosreduziraaissoque euviaumaaparênciaqueumdia já forabastanteharmoniosa ebela.Haviamuitosanoselevinhasendoatendidoporummédico,denomeTempleton–umsenhordeidade,talvezsetentaanos–,comquemtravaraconhecimentoemSaratoga e de cujo atendimento, na ocasião, ele obteve, ou imaginou obter,grandesbenefícios.ResultouqueBedloe,queeraabastado,fezumacordocomodr.Templetonpeloqualeste,em trocadeumgenerososubsídioanual,aceitoudevotarseu tempoesuaexperiênciamédica,comexclusividade,ao tratamentodoinválido.

OdoutorTempletonforaumviajantenajuventudeeemParisseconverteracomfervoràsdoutrinasdeMesmer.[1]Foipormeiodetratamentomagnético,ecom nada mais, que ele tivera sucesso em aliviar as dores agudas de seupaciente; e esse sucesso naturalmente incutira em Bedloe uma boa dose deconfiançanosconceitosquederamorigemataltratamento.Odoutor,entretanto,comotodososentusiastas,empenhou-secomtodasas forçaspara fazerdeseupupilo um convertido total, e afinal cumpriu seu objetivo de tal maneira queinduziuodoenteasesubmeterainúmerosexperimentos.Comintensarepetiçãodestes,obteve-seumresultadoqueultimamenteétãocomumquedespertapoucaounenhumaatenção,masquenaépoca sobreaqual escrevoerapraticamentedesconhecidonaAmérica.OquequerodizeréqueentreodoutorTempletoneBedloesurgiu,poucoapouco,deformaúnicaedistinta,umaforteconexão,ourelação magnética. Não tenho condições de afirmar, no entanto, que essaconexãoultrapassavaoslimitesdeumsimplesmétododeinduçãoaosono;masométodoemsitinhamuitopoder.Naprimeiratentativadeinduzirasonolênciamagnética,omesmeristafalhouporcompleto.Naquintaounasexta,teveêxitoparcial,apósesforçosintensosecontinuados.Otriunfocompletosóchegoucomadécimasegundatentativa.Depoisdisso,osinteressesdopacientesucumbiramrapidamenteàsvontadesdomédico,demodoque,quandoosconheci,osonoeraproduzidodemaneiraquaseinstantânea,pormeroarbítriodooperador,mesmoquandooinválidonãotinhaciênciadoprocedimento.Éapenasagora,em1845,quandomilagressimilaressãotestemunhadosaosmilharestodososdias,quemearriscoaregistrarestaaparenteimpossibilidadecomoumassuntoquepodeserencaradoasério.

O temperamento de Bedloe era, no mais alto grau, sensível, excitável,entusiástico.Suaimaginaçãoerasingularmentevigorosaecriativaesemdúvidaganhavaimpulsoadicionalcomousorotineirodemorfina,queeleconsumiaemgrandequantidadeesemaqualaexistêncialheseriainviável.Eraseucostume

tomar uma dose enorme logo depois do café-da-manhã, todos os dias – oumelhor,logodepoisdeumaxícaradecaféforte,poiselenãocomianadaantesdoalmoço–,eentãopartirsozinho,ouacompanhadoapenasporumcachorro,parauma longaperambulaçãopela soturna cadeiade colinas selvagensque seestende a oeste e ao sul de Charlottesville – os montes conhecidos peloimponentetítulodeMontanhasEscabrosas.[2]

Numdiasombrio,quenteeenevoado,pertodofimdenovembroeduranteoestranhointerregnoentreestaçõesqueéoveranicodeoutonodaAmérica,osr.Bedloetomouocaminhodascolinas,comodecostume.Odiapassoueeleaindanãotinharetornado.

Por volta das oito da noite, estávamos seriamente alarmados com suaausência prolongada e nos preparávamos para sair em sua busca quando desúbitoele reapareceu, semdar sinaisdeabalo físicoenumavivacidadepoucocomum.Orelatoquefezdesuaexpediçãoedosacontecimentosqueodetiveramfoialgomaisdoquesingular.

–Vocêsdevemlembrar–disseele–quesaídeCharlottesvilleporvoltadasnovedamanhã.Dirigi-mediretoparaasmontanhase,pelasdez,entreiporumestreitoqueeratotalmentenovoparamim.Avanceipelascurvasdessevãocommuito interesse.O cenário que se apresentava por todos os lados, embora nãopudesseserdescritocomograndioso,tinhaumindescritíveledeliciosofeitiodedesolaçãosombria.Oermopareciaabsolutamentevirgem.Nãopudedeixardecrerquearelvaverdeeopedregulhocinzaemqueeupisavajamaistinhamsidotocadospelospésdeumserhumano.A ravina,de fato, sóéacessívelporumcaminhomuitoacidentado,esuaentradaétãoisoladaqueébempossívelqueeutenhasidooprimeiroaventureiro,oprimeiroeúnicoentretodososaventureiros,apenetraremseusrecessos.

“A névoa espessa e peculiar, quase uma fumaça, tão típica do nossoveranico de outono, e que então pairava pesadamente sobre tudo que se via,contribuíasemdúvidaparaaprofundaraestranhaimpressãoqueeutinhadetudoao redor. Essa agradável neblina estava tão densa que emmomento algum euconseguiaenxergarmaisdoquedezmetrosdocaminhoàfrente.Ocaminhoerasinuosoaoextremoe,comonãosepodiaverosol,logoperdiqualquernoçãodadireção em que eu seguia. Enquanto isso, a morfina produzia seu efeitocostumeiro:odedotartodoomundoexternodeumaquantidadeinesgotáveldecoisasinteressantes.Nobalançardeumafolha;nacoloraçãodeumalâminadegrama;noformatodeumtrevo;nozumbirdeumaabelha;nacintilaçãodeumagota de orvalho; na respiração do vento; nos cheiros suaves que vinham da

floresta; disso tudo vinha um mundo de sugestões – uma sucessão festiva ecoloridadepensamentosrapsódicosedesordenados.

“Comamenteocupada,caminheiporváriashoras,eanévoaseadensouemtorno de mim numa intensidade tal que por fim fui obrigado a tatear pelocaminho. E então, um incômodo indescritível me assaltou, uma espécie dehesitaçãonervosa,umtremor.Temidarsequerumpasso,porqueacheiquemeprecipitariaemalgumabismo.Lembrei,também,dehistóriasestranhassobreasMontanhas Escabrosas e sobre as tribos bravias e ferozes que habitavam seusbosques e suas cavernas. Mil fantasias obscuras me oprimiam e medesconcertavam,asmaisperturbadorasfantasias–porqueobscuras.Derepenteminhaatençãofoiatraídapelobaterbarulhentodeumtambor.

“Meu assombro foi extremo, claro. Um tambor nessas colinas era algodesconhecido.Osomdatrombetadeumarcanjonãomecausariaumsobressaltomaior. Mas uma fonte de interesse e perplexidade ainda mais espantosaapareceu. Comecei a ouvir um som de chocalho, algo como o retinir de ummolhodegrandeschaves,enesseinstante,gritando,passoupormimumhomemcarrancudoeseminu.Passoutãopertoquesentiseuhálitoquentenomeurosto.Numadasmãoselecarregavauminstrumentocompostodeváriosanéisdeaço.Enquanto corria, agitava os anéis com vigor. Ele mal tinha desaparecido nanévoa em frente e uma besta enorme passou voando no seu encalço, de bocaabertaecomumbrilhonosolhos.Afiguradoanimalerainconfundível.Eraumahiena.

“A visão dessemonstromais aliviou do que intensificoumeus terrores –porqueagoraeutinhacertezadequeestavasonhando,etenteiacordar,voltaràconsciência.Comenergiaecoragem,deiumpassoàfrente.Esfregueiosolhos.Solteiumaexclamação.Belisqueimeusbraços.Anascentedeumcursodeáguasurgiuàminhavista,emeabaixeiemolheiasmãoseacabeçaeanuca.Comissotiveaimpressãodequehaviamsedissipadoassensaçõesequívocasquemeperturbavam.Fiqueidepéesentiqueeraumnovohomem.Prossegui,firmeeconfiante,emmeucaminhodesconhecido.

“Por fim, bastante esgotado pelo esforço e por um abafamento daatmosfera,senteiembaixodeumaárvore.Poucodepoisaluzdosolcomeçouabrilhar aos poucos, e a sombra das folhas da árvore ganhou nitidez na relva.Deixeimeuolharcorrerpelasombraporváriosminutos.Fiqueiestupefatocomaformaqueelatomava.Olheiparacima.Aárvoreeraumapalmeira.

“Levantei-menumsalto,commedo,agitado–ahipótesedequeeuestiverasonhandonãomeserviriamais.Percebi,sentiquetinhaperfeitocontrolesobre

osmeus sentidos – e esses sentidos encheramminha alma comummundodesensações novas e singulares. O calor se tornou de repente intolerável. Umcheiro estranho impregnava a brisa. Ummurmúrio baixo e contínuo, como ocorrerdeumgranderiovagaroso,soavaemmeusouvidos,misturadoaorumordeinúmerasvozeshumanas.

“Enquanto ouvia aquilo, num assombro extremo que nem preciso tentardescrever,umarajadadeventoforteebreve levouemboraanévoaquecobriatudo,comoqueatravésdaaçãodeumavaramágica.

“Eumeencontravaaopédeumaaltamontanhaenumavastaplaníciemaisabaixo serpenteava um riomajestoso.Àmargemdo rio se via uma cidade deaparênciaoriental,comoascidadessobreasquaislemosnasMileUmaNoites,mascomumaconfiguraçãoaindamaissingulardoquequalquerumadelas.Deminhaposição,muito acimadonível da cidade, pude enxergar cada recanto ecada esquina, como se tudo estivesse delineado num mapa. As ruas eraminumeráveis e se cruzavam de forma irregular e em todas as direções, maspareciammaisvielassinuosasdoqueruas,efervilhavamdehabitantes.Ascasaseram incrivelmente pitorescas. Por todos os cantos havia uma vastidão desacadas, varandas, minaretes, santuários, vitrais com imagens fantásticas.Abundavam bazares nos quais estavam expostas mercadorias opulentas, emprofusão, em variedade infinita: sedas, musselinas, a cutelaria maisdeslumbrante,asjoiaseaspedrasmaismagníficas.Alémdissotudoerapossívelver, em todos os lados, estandartes e palanquins, liteiras veladas em quecirculavamdamasimponentes,elefantescomsuntuososornamentosdemontaria,ídolosdetalhegrotesco,tambores,bandeirasegongos,lanças,bastõesprateadosedourados.Eentreamultidão,noclamor,naconfusãoenoemaranhadogeral,entre os milhares de homens negros e amarelos, paramentados e de turbante,comsuasbarbasondulantes,vagavamincontáveis tourosemadornossantos.Emacacos, imundos mas sagrados, em legiões, tagarelando e guinchando,escalavam as cornijas das mesquitas ou penduravam-se dos minaretes e dassacadas.Das ruas fervilhantesàsmargensdo rio, inúmerasescadariasdesciamaté os locais de banho, e o próprio rio parecia forçar uma passagem entre asváriasfrotasdenaviossobrecarregadosqueocupavamavastasuperfície.Alémdoslimitesdacidadeerguiam-se,emgruposmajestosos,palmeirasecacaueiros,emmeioaoutrasárvoresgigantescaseesquisitas,muitovelhas.Aquiealiviam-seumaplantaçãodearroz,acabanadesapêdeumcamponês,umacisterna,umtemplo isolado, umacampamento ciganoou aindaumadonzela graciosa, comumcântaronacabeça,seguindoseucaminhoatéasmargensdoriomagnífico.

“Agoravocêsvãodizer,éclaro,queeuestavasonhando.Não.Noquevi,noqueouvi,noquesenti,noquepensei–emnadahaviaaquelainconfundívelidiossincrasiadosonho.Tudoerarigorosamenteconsistenteemsi.Nocomeço,duvidando que pudesse estar acordado, fiz uma série de testes e logo meconvencidequedefatoestava.Ora,quandoalguémsonhae,nosonho,suspeitaestar sonhando,a suspeição jamais deixade se confirmar, e a pessoadespertaquasequeimediatamente.Porisso,Novalis[3]nãoerraemdizerque‘estamosaponto de acordar quando sonhamos que sonhamos’. Se a visão tivesse meocorrido como descrevi sem que eu suspeitasse estar sonhando, então erapossívelquefossemesmoumsonho,mas,ocorrendocomoocorreu,esubmetidaasuspeiçõesetestes,precisasertomadacomooutrotipodefenômeno.”

–Nisso,nãocreioqueosenhorestejaerrado–observouodr.Templeton.Masprossiga;osenhorselevantouedesceuatéacidade.

–Eumelevantei–continuouBedloe,olhandoparaodoutorcomumardeprofundoassombro–,eumelevantei,comoosenhordisse,edesciatéacidade.No caminho, topei com uma turba imensa, umamultidão que enchia todas asavenidaseandavanamesmadireção,exibindoemcadaaçãooentusiasmomaisselvagem. De súbito, e por um impulso inexplicável, eu me vi imbuído deinteressepessoalnoqueestavaacontecendo.Tiveaimpressãodequetinhaumafunçãoimportanteadesempenhar,sementendermuitobemoqueseria.Passeiasentir, no entanto, uma forte animosidade contra a massa que me rodeava.Recuei e me afastei deles. Com rapidez, por um caminho indireto, entrei nacidade.Ali, tudoera tumulto selvagemediscórdia.Umapequena facção, comhomens trajados com vestes em parte indianas, em parte europeias, ecomandadosporumsenhornumuniformeparcialmentebritânico,combatia,emgrandedesvantagem,aturbapoderosadasvielas.Juntei-meaogrupomaisfraco,tomandoparamimasarmasdeumoficialcaído,eluteinãoseicomquemnumdesespero feroz e nervoso. Fomos logo superados pela forçamais numerosa etivemosdenosrefugiarnumaespéciedequiosque.Construímosumabarricadaalie,demomento,estávamosseguros.Deumaaberturanoalto,pertodacúpulado quiosque, pude ver uma vasta multidão, em agitação furiosa, cercando eassaltando um vistoso palácio que se projetava sobre o rio. Logo a seguir, deuma das janelas mais altas do palácio, uma pessoa de aparência afeminadacomeçou a descer por uma corda, feita comos turbantes de seus empregados.Haviaumbarcoàdisposição,noqualeleescapouparaamargemopostadorio.

“E então um novo propósito dominou minha alma. Proferi aos meuscompanheiros algumas poucas palavras, apressadas mas enérgicas, e, tendo

conseguido convencer alguns deles a juntar-se a mim, saí do quiosque numacorrida desvairada. Investimos contra a massa que nos cercava. Os inimigosrecuaram, a princípio, frente ao nosso ataque. Refizeram-se, revidaram comoloucoserecuaramdenovo.Nisso,acabamosnosafastandobastantedoquiosquee nos vimos desnorteados e enredados nas ruas estreitas e entre as casasgigantescas,emrecessosquealuzdosoljamaistocara.Aturbanospressionavacom ímpeto, assediando-nos com suas lanças e nos cobrindo com chuvas deflechas. Estas últimas eram extraordinárias e de certa maneira lembravam alâmina ondulada do cris usado pelosmalaios.Elas eram feitas na imitação docorpo de uma serpente rastejante, e eram compridas e pretas, com pontaenvenenada.Uma delas acertouminha têmpora direita.Cambaleei e caí.Umatonturainstantâneaepavorosaseapoderoudemim.Eumedebati–arquejei–emorri.”

–Muitodificilmenteosenhorvaiinsistir,agora–disseeu,sorrindo–emdizerqueasuaaventuranãofoi,detodo,umsonho.Ouosenhortemcondiçõesdesustentarqueestámorto?

Quando fiz esse comentário, esperei, é claro, queBedloe fosse respondercom algum gracejo espirituoso. Para meu espanto, porém, ele hesitou,estremeceu, ficou medonhamente pálido e não falou nada. Olhei para o dr.Templeton.Ele estava ereto em sua cadeira, rígido – seus dentes batiam, seusolhossaltavamdasórbitas.

–Prossiga!–odoutordisseporfim,áspero.– Por vários minutos – continuou Bedloe –, minha única sensação, meu

únicosentimento,eradeescuridãoedenãoexistência,comtodaaconsciênciada morte. Depois de um tempo, senti um choque violento e súbito percorrerminha alma, como um choque elétrico. Com ele veio uma sensação deelasticidade e de luz. A luz eu não via – eu só sentia. Num instante tive aimpressãode ter levantadodochão.Maseunão tinhapresençacorpórea,nemvisível, ou audível, ou palpável. A multidão tinha desaparecido. O tumultocessara.Acidadeestavaagoraemrepouso.Abaixodemimjaziameucadáver,comaflechanatêmporaeacabeçainchadaedesfigurada.Mastudoissoeunãovia–eusentia.Nadameinteressava.Atéocadáverpareciaseralgoquenãomediziarespeito.Eunãotinhavontadenenhuma,maspareciaestarsendoimpelidoamemover,eesvoaceicomoumbalãoparaforadacidade,refazendoocaminhoindireto pelo qual entrara nela. Quando alcancei, nas montanhas, o trecho daravinaemqueencontraraahiena,maisumavezsofriumchoquegalvânico;asensaçãodepeso,dearbítrio,desubstância,voltou.Recupereiminhaidentidade

e caminhei ansiosamente para casa. Mas o que se passou não perdeu avivacidade do real, e até agora não consigo, nem por um instante, convencerminhamentedequefoitudoumsonho.

–Nãofoi–disseTempleton,comardeprofundasolenidade–,enoentantoseriadifícildizerdequeoutramaneirapoderíamosclassificaroquesepassou.Podemosapenassuporqueaalmahumanadosdiasdehojeestáprestesapassarpor descobertas psíquicas estupendas. Podemos nos contentar com essasuposição.Quantoaoresto,tenhoesclarecimentosafazer.Eisaquiumapinturaemaquarelaqueeudeviatermostradoaosenhorantes.Nãomostreiporqueuminexplicávelsentimentodeterrormeparalisava.

Examinamosapintura.Nãovinada,nela,quefosseextraordinário;masseuefeitoemBedloefoiprodigioso.Eleporpouconãodesmaiou.E,noentanto,setratavaapenasdeumretratoemminiatura–miraculosamentedetalhado,paraserjusto–desuasfeiçõesinconfundíveis.Aomenosfoiissooquepensei.

–Atentem–disseTempleton–paraadatadestapintura.Estáaqui,difícildever,nestecanto:1780.Éoanoemqueoretratofoifeito.Éaimagemdeumquerido amigo, o sr. Oldeb, de quem me tornei muito próximo em Calcutá,durante a administraçãodeWarrenHastings.[4]Eu tinhaapenasvinte anosdeidadenaépoca.Quandoovipelaprimeiravez, sr.Bedloe, emSaratoga, foi asimilaridademiraculosaqueexistiaentreosenhoreapinturaquemefezabordá-lo, conquistar sua amizade e firmar os arranjos com os quais me tornei seucompanheiro constante.Nessa aproximação, fui impulsionado emparte, talvezemgrandeparte,pelamemóriapenosadofalecido,mastambém,parcialmente,porumaincômodacuriosidade,nãodesprovidadehorror,sobreosenhor.

“No relato da visão que teve nas colinas, o senhor descreveu, comperfeição,acidadeindianadeBenares,localizadaàmargemdoRioSagrado.Osdistúrbios, os combates, o massacre aconteceram de verdade na insurreiçãolideradaporCheyteSing[5]em1780,quandoavidadeHastingsficouporumfio.OhomemqueescapoucomacordadeturbanteseraopróprioCheyteSing.O grupo do quiosque, comandado por Hastings, era formado por sipais[6] eoficiaisbritânicos.Euintegravaessafacção,efiztudoquepodiaparaimpedirainvestidaimprudenteefataldooficialquefoiabatido,nasvielascheiasdegente,pelaflechaenvenenadadeumbengali.Ooficialeraomeuqueridoamigo.EraOldeb.Podeserconstatadocomestesmanuscritos.”

Odoutornospassouumcadernonoqualváriaspáginaspareciamtersidorecém-escritasecontinuou:

– No mesmo período em que o senhor fantasiava nas colinas eu me

dedicavaadetalhá-lasnopapel,aquiemcasa.Mais ou menos uma semana depois dessa nossa conversa, os seguintes

parágrafosforampublicadosnojornaldeCharlottesville:

Temosodolorosodeverdeanunciaramortedosr.AugustusBedlo,umcavalheiro de modos amáveis e muitas virtudes que os cidadãos deCharlottesvillehámuitoadmiravam.Osr.B.,jáporalgunsanos,vinhasofrendodenevralgia,quemuitasvezesameaçouserfatal;masela

deve ser encarada como apenas uma causa indireta de seu falecimento. A causamais imediata foi algoespecialmentesingular.NumaexcursãoàsMontanhasEscabrosas,diasatrás,elecontraiuumresfriadolevee febre,acompanhadosdegrandeafluxodesangueparaacabeça.Paraaliviaroafluxo,odr.Templetonrecorreu a uma sangria tópica. Sanguessugas foram aplicadas nas têmporas. Num intervalo de tempoassustadoramentebreve,opacientemorreu,eentãoseconstatouque,najarraquecontinhaassanguessugas,foraintroduzidoporacidenteumdosespécimesvermicularesvenenososquevezporoutrasãoencontradosnos açudes da vizinhança. A criatura se aferrou a uma pequena artéria na têmpora direita. Sua grandesemelhançacomasanguessugamedicinalfezcomqueoenganopassassedespercebidoatéquefossetardedemais.

Nota:AsanguessugavenenosadeCharlottesvillepodeserdistinguidadoespécimemedicinalpor sua cor preta e principalmente por seus movimentos ondulantes ou vermiculares, que seassemelhamaosdeumacobra.

Eu conversava com o editor do jornal em questão, discutindo o incrívelacidente,quandomeocorreuperguntarporqueaconteceudeonomedofalecidotersidoreferidocomoBedlo.

–Presumo–eudisse–queosenhortemmaisautoridadedoqueeuquantoaessagrafia,massempreacheiqueonomedelefosseescritocomumenofim.

–Autoridade?Não– ele retrucou.–É sóumerro tipográfico.OnomeéBedloecome,emtodoomundo,enuncanavidaoviescritodeoutramaneira.

–Então–eudisseparamimmesmoresmungando,enquantomeviravaparasair –, então chegamos aoponto emqueumaverdade émais estranhadoquequalquerficção,porqueBedlo,seme,oqueésenãoOldebaocontrário?Eessehomemmedizqueéumerrotipográfico.

[1]FranzAntonMesmer(1734-1815),médicoalemão,paidomesmerismo,quetratadoençaspormeiodemagnetismoanimalehipnotismo.(N.T.)[2]As “RaggedMountains”, escarpadas e pedregosas, estendem-se por uma área de quatro quilômetrosquadradosnaregião.(N.T.)[3]Poetaromânticoalemão(1772-1801).(N.T.)[4]Hastings(1732-1818)foioprimeirogovernador-geraldaÍndiabritânica,de1773a1785.(N.T.)[5]Rajáindiano.(N.T.)

[6]Soldadosnativos.(N.T.)

OSEPULTAMENTOPREMATURO

Existem alguns temas que interessam e absorvem por si mesmos, mas quetambém são horríveis demais para os propósitos da ficção legítima. Se nãoquiserofenderouenojar,oautorromânticocomumdevefugirdessestemas.Elessó são manejados com propriedade quando a severa e majestosa verdade ossustenta e santifica. Vibramos, por exemplo, na mais intensa “dor aprazível”,comosrelatossobreatravessiadoRioBerezina,sobreoterremotodeLisboa,sobre a peste de Londres, sobre o massacre de São Bartolomeu ou sobre asufocação dos 123 prisioneiros do Buraco Negro de Calcutá. Nesses relatos,porém,oqueéexcitanteéofato,éarealidade,éahistória.Quandoinventados,elessãorepugnantesaosnossosolhos.

Mencioneialgumasdascalamidadesmaiseminenteseaugustasdequesetem registro; mas nelas é a amplitude, não menos que a característica dacalamidade,oque impressionade forma tãovívidaa imaginação.Nãoprecisolembrar ao leitor que, no longo e estranho catálogo dasmisérias humanas, eupoderia selecionar vários exemplos individuais bem mais repletos de purosofrimento do que qualquer uma dessas vastas generalidades de desastre. Averdadeiradesgraça,defato–oinfortúniomáximo–,éparticular,enãodifuso.Que os extremos pavorosos da agonia sejam enfrentados pelo homem que éúnico,enãopelohomemqueémassa–porestadádivamanifestemosgratidãoaumDeuspiedoso!

Ser enterrado vivo é, sem qualquer dúvida, o mais aterrorizante dosextremos que já couberam por sina a um simplesmortal. O fato de que esseextremotenhaocorridocommuitíssimafrequênciadificilmenteseránegadoporquem pensar. Os limites que separam a Vida da Morte são, na melhor dashipóteses, sombriosevagos.Quempodedizerondeumaacabaeondeaoutracomeça?Sabemosqueexistemdoençasnasquaisocorrecessaçãototaldetodasas funçõesvitaisaparentesenasquaisessacessação,noentanto,nãopassadeuma suspensão, propriamente falando. São apenas pausas temporárias nomecanismo incompreensível.Umcerto tempodecorre e então algumprincípio

misterioso e imperceptível põe em movimento novamente as engrenagensmágicaseamaquinariaenfeitiçada.Ocordãodepratanãoestavarompidoparasempre, e o cálice de ouro não estava irreparavelmente quebrado.Mas onde,nessetempo,estavaaalma?

Deixando-se de lado, entretanto, a inevitável conclusão, a priori, de quedeterminadas causas produzem determinados efeitos – de que a conhecidaocorrênciadetaiscasosdeanimaçãosuspensadevanaturalmente,aquieali,darorigemaenterrosprematuros–,deixando-sedeladoessaconsideração,temosotestemunho direto de experiências médicas e corriqueiras para provar queenterros desse tipo realmente ocorrem e ocorreram, em vasto número. Possocitar de imediato, se necessário, cem ocorrênciasmais do que autênticas.Umcaso notavelmente peculiar, cujas circunstâncias podem ainda estar frescas namemóriadealgunsdosmeusleitores,ocorreunãomuitotempoatrásnavizinhaBaltimore,ondeahistóriagerouumaexcitaçãodolorosa,intensaedifundidaemgrandemagnitude.Aesposadeumdosmaisrespeitáveismoradoresdacidade–um advogado eminente, membro do Congresso – foi acometida por umaenfermidadeincompreensível,queaturdiuporcompletooentendimentodeseusmédicos.Depoisdemuitosofrimento,morreu,oufoitidacomomorta.Ninguémsuspeitou,defato,outeverazõesparasuspeitar,quenaverdadeelanãoestavamorta. Ela apresentava todos os sinais comuns da morte. O rosto assumiu ocaracterístico aspecto comprimido e encovado. Os lábios exibiam a típicapalidez marmórea. Os olhos não tinham brilho. Não havia calor. Não haviapulsação.Por trêsdiasocorpofoimantido insepultoeacabouadquirindoumarigidez de pedra. O funeral, em resumo, foi organizado às pressas, devido aorápidoavançodoqueseconsiderouserdecomposição.

A dama foi depositada no jazigo de sua família. A cripta permaneceufechadapor três anos; ao términodesseperíodo, foi abertaparaque recebesseum sarcófago –mas um abalomedonho espreitava seumarido, que, ai dele!,abriupessoalmenteaporta.Noinstanteemquepuxouosportaisparafora,umacoisa vestida de branco caiu chocalhando em seus braços. Era o esqueleto daesposa,emsuamortalhaaindanãoapodrecida.

Uma investigação cuidadosademonstrou a evidência deque ela voltara àvidadoisdiasdepoisdosepultamentoedequesualutadentrodocaixãoofizeracairdeumaespéciedeprateleiraeseespatifarnochão,permitindoqueelaselibertasse.Umalamparinaqueforaesquecidaacidentalmentenatumba,cheiadeóleo, foi encontrada vazia; o esvaziamento, contudo, pode ter ocorrido porevaporação. No mais alto dos degraus que desciam ao chão da catacumba

horripilante,ficoudeitadoumgrandefragmentodocaixão,comoqual,aoqueparecia, ela tentara chamar atenção golpeando a porta de ferro. Enquanto seocupavadisso,provavelmentedesmaiou,ouatémesmomorreu,depuroterror;e, caindo, enganchousuamortalhaemalgumaprojeção internadaarmaçãodeferro.Assimelaficou,eassimapodreceu,ereta.

No ano de 1810, um caso de inumação em vida aconteceu na França,acompanhado de circunstâncias que vão longe o suficiente para autorizar aasserçãodequeaverdadeé,defato,maisestranhaquea ficção.Aheroínadahistória era uma mademoiselle Victorine Lafourcade, moça belíssima de umafamília ilustre e abastada. Entre seus numerosos pretendentes figurava JulienBossuet, pobre litterateur, ou jornalista, de Paris. Seus talentos e suaamabilidade com todos o tornaram atraente aos olhos da herdeira, por quemparecia ter se apaixonado de todo o coração; mas o orgulho da origem a feztomaradecisãoderejeitá-loedesecasarcomummonsieurRenelle,banqueiroediplomataquegozavadecertoprestígio.Depoisdocasamento,contudo,estesenhor a negligenciou e, mais do que isso, a maltratou abertamente. Tendoenfrentadoalgunsanosdesditososnasmãosdomarido,elamorreu–aomenos,suacondiçãoseassemelhavatantoàmortequeenganouatodosqueaviram.Foienterradanãonumacripta,masnumacovanormal,novilarejoemquenascera.Loucodedesespero,eaindainflamadopelamemóriadeumaatraçãoprofunda,oamanteparte da capital para a remotaprovíncia emque se localizaovilarejo,com o propósito romântico de desenterrar o corpo para tomar posse de seuscachos luxuriantes.Eleencontrao túmulo.Àmeia-noite,desenterraocaixãoeremoveatampa.Quandocomeçaacortarocabelo,percebequeosamadosolhosnão estão fechados. A verdade é que a senhora tinha sido enterrada viva. Avitalidadenãoabandonaradetodoocorpo;eelafoidespertada,pelascaríciasdoamante,daletargiaqueforainterpretadacomomorte.Desvairado,eleacarregoupara o seu alojamento. Ministrou certos tônicos vigorosos, baseado emconhecimentomédico considerável. E ela acabou se recuperando.Reconheceuseusalvador.Permaneceucomeleatéque,muitogradualmente, recuperouporcompletoasaúde.Seucoraçãodemulhernãoeradepedra,eessaliçãodeamorfoi suficiente para amolecê-lo.Ela o entregou aBossuet.Não retornou para omarido.Escondendodelesuaressurreição,fugiucomoamanteparaaAmérica.Vinteanosmaistarde,osdoisretornaramàFrança,persuadidosdequeotempotinhaalteradodetalmaneiraasfeiçõesdasenhoraqueseusamigosnãoseriamcapazesdereconhecê-la.Estavamenganados,porém;poisnoprimeiroencontromonsieur Renelle a reconheceu e reivindicou a esposa. Ela resistiu à

reivindicação;eumtribunalde justiçagarantiuseudireitoderesistir, julgandoqueapeculiaridadedascircunstâncias,comolongolapsodosanos,extinguira,nãoapenasemequidade,mastambémnalegalidade,aautoridadedomarido.

OJornalCirúrgicodeLeipzig, umperiódicodemérito e alta autoridade,quealgumeditoramericanofariabememtraduzirerepublicar,registra,emumnúmerorecente,umaocorrênciamuitoperturbadoradofenômenoemquestão.

Umoficialdeartilharia,homemdeestaturagigantescae saúde robusta, éatiradodeumcavaloingovernável,sofreumagravecontusãonacabeçaeperdeossentidosnoato;ocrâniosofrelevefratura;masnãoháperigourgenteatemer.Uma trepanação foi realizada com sucesso. O oficial também foi sangrado evários outros métodos usuais de socorro foram adotados. Gradualmente,contudo,eleafundounumestadomaisemaisirreversíveldeestupore,porfim,foidadocomomorto.

Fazia calor, e o oficial foi enterrado, com pressa indecente, em um doscemitérios públicos. O funeral se deu numa quinta-feira. No domingo, ocemitérioficou,comodecostume,apinhadodevisitantes,e,porvoltadomeio-dia, uma intensa agitação foi provocada por um camponês que declarou que,sentadosobreacovadooficial,sentiunitidamenteumacomoçãonaterra,comoqueocasionadaporalgoquesedebatiaembaixodela.Deinício,poucaatençãofoi dada à afirmação do homem; mas o terror que se via em seu rosto e aobstinaçãoteimosacomqueeleinsistiaemsuahistóriaacabaramnaturalmenteimpressionando a multidão. Pás foram providenciadas, e a cova,vergonhosamenterasa,foireabertaempoucosminutos–osuficienteparaqueacabeça de seu ocupante aparecesse.Ao que tudo indicava, estavamorto;mas,quase ereto, estava sentado no caixão, cuja tampa ele parcialmente levantaranumalutadesesperada.

Ooficialfoitransportadosemdemoraparaohospitalmaispróximo,ondeseconstatouqueaindaestavavivo,emboraemcondiçãodeasfixia.Recobrouaconsciênciaapósalgumashoras,reconheceupessoascomquemserelacionavae,emfrasestruncadas,faloudasagoniasqueexperimentounasepultura.

Peloquerelatou,ficouclaroquedeveterpermanecidoconscientepormaisde uma hora, enquanto era inumado, até submergir na insensibilidade.Frouxamente, sem cuidado, a cova foi tapada com uma terramuito porosa; edessamaneirafoipossibilitadaapassagemdear.Ooficialouviuaprofusãodepassosacimade si e tentou se fazerouvir.O tumultono terrenodocemitério,disse, foioquedeve tê-lodespertadodeumprofundosono–masnosegundoem que acordou já estava totalmente ciente dos horrores tremendos de sua

situação.Esse paciente, está registrado, ia passando bem e parecia se encaminhar

para uma recuperação completa, só que foi vitimado pelo charlatanismo dasexperimentaçõesmédicas.Correnteselétricasforam-lheaplicadas,eeleexpirounumdessesparoxismosdeêxtaseaqueométodoàsvezesinduz.

Masamençãodométodogalvânicometrazàmemóriaumcasoanálogo,extraordinário e muito conhecido, em que sua aplicação se provou capaz dereanimarumjovemadvogado,deLondres,queestavaenterradohaviadoisdias.O caso ocorreu em 1831 e criou, na época, enorme sensação, onde quer quetenhasidodiscutido.

O paciente, o sr. Edward Stapleton, morrera, aparentemente, de febretifoide, acompanhada de alguns sintomas anômalos que estimularam acuriosidade dos médicos que o atenderam. Com o aparente falecimento, seusamigosforamchamadosasancionarumexamepostmortem,masseabstiveramda permissão. Como se dá com frequência quando tais recusas ocorrem, osclínicos resolveram exumar o corpo para dissecá-lo nas horas de folga, emsegredo. Negociações foram efetivadas sem dificuldade com algum dosinúmerosgruposdevioladoresdetúmulosqueabundamemLondres,e,trêsdiasdepois do funeral, o suposto cadáver foi desenterrado de uma cova de doismetrosemeiodeprofundidadeedepositadonasaladeoperaçõesdeumhospitalprivado.

Uma incisão considerável chegou a ser feita no abdômen, e a aparênciafresca e conservada do cadáver sugeriu a aplicação da corrente elétrica.Experiências se sucederame os efeitos costumeiros transpareceram, comnadaqueoscaracterizasseemespecífico,àexceção,emumaeoutraocasião,deumamanifestaçãodevitalidadealgoincomumduranteasconvulsões.

Estavaficandotarde.Odiaestavaprestesanascer,eosclínicosjulgaram,por fim, que era conveniente prosseguir de uma vez com a dissecação. Umestudante, contudo, ansiavapor testar uma teoriapessoal e insistiana ideiadeaplicaraeletricidadenumdosmúsculospeitorais.Fez-seumcortegrosseironopeito.Apressadamente,umfiofoicolocadoemcontatocomotalho.Opaciente,nummovimento rápido, não convulso, levantou damesa, caminhou pela sala,olhouemvoltacomexpressãodedesconfortoeentão... falou.Oquedisseeraininteligível;maspalavras foramproferidas;asilabaçãoeraperceptível.Tendofalado,caiupesadamentenochão.

Por alguns instantes todos ficaram petrificados de assombro – mas aurgênciadocasologooschamouànecessidadedeagir.Foiconstatadoqueosr.

Stapleton estava vivo, embora desfalecido. Com uso de éter, despertou, erapidamenteele recuperoua saúdeevoltouaoconvíviode seusamigos–dosquais,noentanto, foiescondidaanotíciada ressuscitaçãoatéqueachancedeuma recaída pudesse ser descartada. Pode-se imaginar o espanto deles, aperplexidadeextasiada.

Apeculiaridademaisemocionantedoincidente,entretanto,dizrespeitoaoqueosr.S.mesmoassevera.Eledeclaraqueemnenhummomentoperdeuporcompleto os sentidos – e que, num estado de torpor e confusão, esteveconscientedetudoquelheaconteceu,dominutoemquefoideclaradomortoporseusmédicosatéoinstanteemquecaiudesmaiadonochãodohospital.“Estouvivo”foramaspalavrasincompreensíveisque,quandopercebeuestarnumasaladedissecação,tentaraproferirnoextremodeseudesespero.

Seriaalgomuitosimplescontardezenasdehistóriascomoessas,masmedetenho, já que não há necessidade de fazê-lo para provar o fato de quesepultamentos prematuros ocorrem. Quando pensamos em como é raro, pelanatureza do fenômeno, que tenhamos capacidade de detectá-lo, precisamosadmitirqueelesdevemocorrerfrequentementesemquetomemosconhecimento.É invulgar, na verdade, que se devasse por algum motivo um cemitério, pormenor que seja o terreno devassado, e não sejam encontrados esqueletos emposiçõesqueautorizamassuspeiçõesmaismedonhas.

Seasuspeiçãoémedonha,muitomaismedonhaéapredestinação!Podeserafirmado, sem hesitação, que nenhum acontecimento apresenta condições tãoterríveisdeinspiraraafliçãomentalecorporalmaisextrema–nadasecomparaaserenterradoantesdemorrer.Aopressãoinsuportáveldospulmões;osgasessufocantes do solo úmido; o aperto das vestes mortuárias; o abraço firme dahabitaçãoestreita; aescuridãodaNoiteabsoluta;o silênciocomoummarqueesmaga;apresençainvisívelmaspalpáveldoVermeConquistador;essascoisas,somadasàlembrançadoarpuroedagrama,àmemóriadeamigosqueridosquecorreriampara nos salvar se tivessem amenor ideia do que nos esperava, e àconsciênciadequeelesjamaissaberãooquenosesperava–quenossasinaeraestar junto aosmortos verdadeiros –, essas considerações, afirmo, carregam ocoração, que ainda palpita, com um horror apavorante e intolerável que faz aimaginaçãomais ousada recuar.Não conhecemos nada tão agonizante sobre aTerra,nãopodemossequersonharqueexistaalgotãohorrendonemmesmonosdomíniosmais baixos do Inferno. E assim todas as narrativas em torno desteassunto interessam, profundamente; um interesse que, no entanto, pelo medosagradoqueopróprioassuntoinfunde,depende,demaneiramuitoapropriadae

peculiar,denossaconvicçãoacercadaverdadedoqueénarrado.Oque tenhopara contar, agora, é de meu próprio conhecimento – de minha própria everdadeiraexperiência.

Por muitos anos fui sujeito aos ataques da singular enfermidade que osmédicosescolheramchamardecatalepsia,nafaltademelhordefinição.Emboraas predisposições, as causas imediatas e até o próprio diagnóstico da doençaaindasejamummistério,seussintomasóbvioseaparentessãobemconhecidos.Suasvariaçõesdizemrespeitoprincipalmenteàintensidadedamanifestação.Àsvezesopacienterepousa,porapenasumdia,oumesmoporumperíodomenor,numa espécie de letargia extremada. Ele não sente nada e nãomove nenhummúsculo;masadébilpulsaçãodocoraçãopodeserpercebida;indíciosdecalorpermanecemnocorpo;umacormuitofracanãoabandonaasmaçãsdorosto;e,seposicionarmosumespelhojuntoaoslábios,podemosdetectarumaatividadepulmonardormente,desigual,vacilante.Eentãopodehaverumtransequedurasemanas–atémesmomeses;eoexamemaiscuidadosoeostestesmédicosmaisrigorosos falham em estabelecer qualquer diferença empírica entre o estadocatalépticoeaquiloqueconsideramosseramortemaisabsoluta.Ocorremuitoqueopacientesósejasalvodoenterroprematuroporqueseusamigossabemqueele já teve um ataque de catalepsia, pela consequente suspeita que surge, e,acimadetudo,pelaausênciadesinaisdedecomposição.Porsorteaprogressãoda doença é gradual. As primeiras manifestações, embora distintas, sãoinequívocas.Osacessossãocadavezmaisnítidosecadaumduramaisdoqueoantecedente. Nisso reside a maior salvaguarda contra a inumação. Odesventurado cujo primeiro ataque for do tipo mais grave, do tipo maisduradouroquevezououtra sevê, seráquaseque inevitavelmentedespachadovivoparaatumba.

Meu caso não diferia daqueles mencionados nos livros de medicina emnenhum detalhe importante. De vez em quando, sem causa aparente, euafundava,poucoapouco,numacondiçãodesemissíncope,oumeiodesmaio;e,nessacondição,semdor,sempodermemexerou,literalmente,pensar,mascomconsciência letárgica e entorpecida do sangue correndo e da presença dos quecercavam minha cama, eu permanecia, até que o ponto crítico do ataque medevolviasubitamenteasensaçãoplena.Emoutrasocasiões,eueraderrubadodeformarápidaeimpetuosa.Ficavanauseado,embriagado,sentiafrioetonturaeaícaíaprostradonuminstante.Então,porsemanasafio,tudoeravazio,enegro,equieto,eoNadaeraouniverso.Aaniquilaçãototalnãopodiasermaisdoqueisso.Euacordavadessesataques,porém,numagradaçãoproporcionalaoassalto

súbitodoacesso.Comoodiaquenasceparaomaltrapilhoquepercorreasruasnumalongaedesoladanoitedeinverno,comessevagar,nessaexaustão–nessamesmaalegriaaluzvoltavaàminhaAlma.

Àparteainclinaçãoparaostranses,noentanto,minhasaúdepareciaboa;não havia indicativo de que ela fosse afetada de qualquer maneira pelaenfermidadeprevalecente–anãoser,claro,queumaidiossincrasiadomeusononormal pudesse ser tida como induzida. Ao acordar de uma noite de sono eununca recuperava de imediato meus sentidos, e sempre sentia, por váriosminutos,perplexidadeeespanto–asfaculdadesmentaisemgeral,eamemóriaemparticular,permaneciamemsuspensãoabsoluta.

Em tudo que enfrentei não havia um mínimo de sofrimento físico, mashavia uma afliçãomoral infinita.Minhas fantasias eram sepulcrais. Eu falava“devermes,detumbasedeepitáfios”.Perdia-meemespeculaçõesdemorte,eaideiadeumenterroprematurodominavaomeucérebrodemaneirapermanente.OPerigotenebrosoaoqualeuestavasujeitomeperseguiadiaenoite.Dedia,atortura da meditação era excessiva – à noite, era suprema. Quando a NoiteausteratomavacontadaTerra,aí,comtodoohorrordopensamento,eutremia–tremia comoos adornos esvoaçantesdeumcarro fúnebre.Quando aNaturezanãomais permitia a vigília, era com relutância que eu consentia em dormir –poisestremeciasódepensarque,acordando,eupoderiamedescobrirhabitantedeumasepultura.Equandoafinaleucaíanosono,eraapenasparamergulhardeimediato nummundo de fantasmas, sobre o qual pairava, vasto, sombrio, emeclipse,comasasgigantes,aIdeiasepulcral.

Dasinúmerasimagensdetrevaqueassimoprimiammeussonhos,escolhopara registro uma visão solitária. Vi-me imerso num transe cataléptico deduraçãoeintensidadeincomuns.Desúbitoumamãogeladatocouminhatesta,euma voz impaciente e quase incompreensível sussurrou “Levanta!” em meuouvido.

Senteiereto.Aescuridãoeratotal.Eunãoconseguiaenxergarovultoquemeacordara.Nãoconseguia lembrarnemháquanto tempoeucaírano transe,nem onde me encontrava. Eu me mantinha imóvel, empenhado em tentarorganizarospensamentos,eamãofriaagarroumeupulsocomforça,sacudindo-ocompetulância,eavozestranhadissedenovo:

–Levanta!Nãopediquetelevantasses?–Equem–questionei–éstu?– Não tenho nome nas regiões que habito – respondeu a voz, em tom

lúgubre. – Fui mortal, e sou espírito. Fui implacável, e sou piedoso. Deves

perceberquetremo.Meusdentesbatemenquantofalo,enãoéporcausadofriodanoite...danoitesemfim.Masestasituaçãoéhediondaeinsuportável.Comopodes tu dormir tranquilamente? Não posso descansar com o barulho destesgritosdeagonia.Estehorrorémaisdoquepossosuportar.Põe-tedepé!VemcomigoparaaNoiteexterioredeixaqueeutemostreostúmulos.Nãoéesteumespetáculolamentável?Vê!

Euolhei;eovultoinvisível,queaindaseguravameupulso,tinhaexpostoaoarlivre,abertas,todasassepulturasdahumanidade;edecadaumaemanavaafinaradiânciafosfóricadadecomposição,eeupodiaenxergarosrecessosmaisescondidos, e vi os corpos amortalhados no descanso triste e solene quecompartilhavamcomoverme.Noentanto,ai!,osquedescansavamdeverdadeeram poucos, e os que não dormiam erammuitos, erammilhões; e havia umdébil debater, e havia um desconforto generalizado e triste, e do fundo dasincontáveisfossasvinhaoagitarmelancólicodasvestesdosenterrados.E,entreos que pareciam desfrutar de um repouso tranquilo, vi que um vasto númerodelesnãomaisestava,emmaioroumenorgrau,naposiçãorígidaeincômodadosepultamento.Continueiolhando,eavozmedisseoutravez:

–Nãoé?Ah!Nãoéestaumavisãolamentável?Antesqueeupudesseencontrarpalavraspararesponder,porém,ovultojá

havialargadomeupulso,asluzesfosfóricasestavamextintaseastumbastinhamsido fechadas num estrondo repentino e violento, e delas se levantava umaconfusãodegritosdesesperadosquediziam:“Nãoé?Ah,Deus!,nãoéestaumavisãomuitolamentável?”.

Fantasias como essas, que se apresentavam à noite, estendiam suainfluênciaterríficaparatodasasminhashorasdevigília.Fiqueicomosnervosdilacerados, emevi subjugadopor um terror perpétuo.Não tinha coragemdecavalgar,oudeandar,oudemeentregaraqualqueratividadequemetirassedecasa. Na verdade, não ousava mais me afastar da presença imediata dos quesabiamdeminhapropensãoàcatalepsia, receosodeque,caindonumdemeusacessos habituais, pudesse ser enterrado antes que minha condição real fossecomprovada.Passeiadesconfiardoscuidadosedafidelidadedosmeusamigosmais queridos. Apavorava-me que, durante um transe de duração maior, elespudessem ser persuadidos de que minha situação era irreversível. Chegueimesmoa temerque, comoeu causavamuitos transtornos, pudessem se aliviarconsiderandoqueumataquemuitoprolongadofossedesculpacabívelparaqueselivrassemdemimdeumavezportodas.Foiemvãoqueelestentaram,comaspromessas mais solenes, garantir que eu estava seguro. Arranquei deles

juramentossagradosdequeemnenhumacircunstânciameenterrariamanãoserque a decomposição ficasse tão evidente que tornasse minha preservaçãoimpossível.Emesmoassimmeus terroresmortaisnãodavamouvidosà razão,não aceitavam nenhum consolo. Providenciei uma série de precauçõeselaboradas.Entreoutrascoisas,mandeireformaromausoléudaminhafamília,demodoquefossepossívelabri-lodedentrocomrapidez.Amaislevepressãosobre uma alavanca que se projetava até o fundo da cripta faria com que osportais de ferro saltassem para trás. Houve providências também para a livreentradadearedeluzeparaaconvenientecolocação,aoalcancedocaixãoqueme era destinado, de recipientes para comida e água. Este caixão tinhaestofamentomacioeacolhedor,edispunhadeumatampaquefoiplanejadacomomesmoprincípiodaportadojazigo;molasforaminstaladasnela,deformaqueum mínimo movimento do corpo proporcionasse liberdade instantânea. Alémdissohavia,pendendodotetodacatacumba,umsinograndecujacorda,comofoi projetado, deveria ser estendida para dentro do caixão por um buraco eamarrada a uma das mãos do cadáver. Só que, ai de mim!, de que vale avigilância contra o Destino do homem? Nem mesmo essas medidas bemorquestradas bastaram para evitar as agonias extremas da inumação em vida,parasalvarumdesgraçadodeagoniaspredestinadas!

Chegouummomento–como tantasvezesanteschegara–emquemeviemergindo da inconsciência total e experimentando uma sensação lânguida eindefinida de existência. Devagar, a passo de tartaruga, aproximou-se oamanhecerfracoecinzadodiafísico.Umdesconfortoentorpecido.Atolerânciaapáticafrenteaumadorsurda.Sempreocupação,semesperança,semempenho.Então,depoisdeumlongointervalo,umzumbidonosouvidos;então,depoisdeum lapso ainda maior, uma sensação de picada ou formigamento nasextremidades; então um período aparentemente eterno de quietude aprazível,duranteoqualossentimentosdodespertarvãopenetrandonopensamento;entãoumbreveretornoàsprofundezasdonãoser;entãoumasúbitarecuperação.Porfimolevetremelicardeumapálpebra,elogoemseguidaochoqueelétricodeumterror,mortaleindefinido,quedeslocaosangue,emtorrentes,dastêmporaspara o coração. E agora o primeiro esboço real de pensamento. E agora aprimeiratentativadelembrar.Eagoraumsucessoparcialeevanescente.Eagoraamemóriareassumiudetalformaseudomínioque,atécertoponto,tenhonoçãodemeuestado.Perceboquenãoestouacordandodeumsonocomum.Recordoqueacatalepsiameatacou.Eagora,porúltimo,sobopesodeumoceano,meuespírito arrepiado é pressionado pelo Perigomais repulsivo – pela espectral e

semprepresenteIdeia.Poralgunsminutos,possuídoporessaespeculação,permaneciimóvel.Por

quê?Porquenãoconseguiareunircoragemparamemexer.Nãoousavaexecutaro movimento que mostraria qual era o meu destino – e havia algo em meucoraçãosussurrandoqueeleestavadecidido.Desespero–dotipoquenenhumaoutra espécie de infortúnio pode forjar –, apenas o mais puro desespero melevou, depois de longa indecisão, a abrir minhas pesadas pálpebras. Abri osolhos.Estavaescuro–tudoescuro.Eusabiaqueoacessohaviapassado.Sabiaque minhas faculdades visuais estavam totalmente restauradas – mas estavaescuro,tudoescuro,aintensaeúltimaescuridadedaNoitequeperduraportodoosempre.

Tentei gritar; meus lábios e minha língua ressecada se moveramconvulsivamente na tentativa – mas nenhuma voz brotou de meus pulmõescavernosos,que,comoqueesmagadospelopesodeumamontanha,arquejavamepalpitavamjuntocomocoraçãoacadapenosainspiraçãodear.Omovimentodosmaxilares,nesteesforçoparagritaralto,indicouqueelesestavamenlaçados,como se costuma fazer comosmortos. Senti, também, que estava deitado emsuperfíciedura,equealgosimilarcomprimiameusflancos.Atéalieunãomearriscara a mover nenhum membro. Sentia os braços esticados e as mãoscruzadas – e então as joguei para cima num arroubo. Elas bateram em algosólido, um obstáculo de madeira que cobria meu corpo, quinze centímetrosacimademim.Nãohaviamaisdúvida–eurepousava,afinal,emumcaixão.

Eentão,porentreadesgraçainfinita,surgiuodocequerubimdaEsperança– pois lembrei deminhas precauções. Estremeci, e fiz esforços repetidos paraabrira tampa:elanãosemexeu.Procureipelacordadosinonosmeuspulsos:não havia corda.OConsolo desapareceu em definitivo e umDesespero aindamaisinflexívelassumiuocontrole;porquenãopudedeixardenotaraausênciado acolchoamento que eu havia providenciado com tanto cuidado – e entãoinvadiuminhasnarinasocheiroforteepeculiardeterraúmida.Aconclusãoerainevitável.Eucaíraemtranseforadecasa–entreestranhos–quandoecomoeunãolembrava–eosestranhosmeenterraramcomoseeufosseumcachorro–entalado num caixão qualquer – e jogado para sempre no fundo, no fundo deumaanônimaeordináriacova.

Enquanto essa convicção terrível penetrava à força no âmago da minhaalma, fizmaisumesforçoparagritar alto.E essa segunda tentativadeucerto.Umgritoforte,umberroselvagemecontínuodeagoniaressooupelosdomíniosdaNoitesubterrânea.

–Ei!Ei!–disseumavozrude,emresposta.–Quediaboquehouveagora?–disseoutra.–Parecomisso!–disseumaterceira.–Oquevocêquer,uivandoesquisitodessejeito,comoumgatoselvagem?Eentãofuiagarradoesacudido,duranteváriosminutos,porumajuntade

indivíduos mal-encarados. Eles não me arrancaram do sono – eu estava bemdespertoquandogritei–,masmeajudaramarecuperarporcompletoamemória.

A aventura ocorrera perto de Richmond, Virginia. Acompanhado de umamigonumaexpediçãodecaça,descialgunsquilômetrospelasmargensdorioJames.Aoanoitecer,fomossurpreendidosporumatempestade.Acabinedeumbarquinhoancoradonorio,carregadodeterradejardinagem,eraoúnicoabrigodisponível.Fizemosusodeleepassamosanoiteabordo.Dorminumdosdoisúnicosleitosdaembarcação–eneméprecisodescrevercomosãoosleitosdeumachalupadesessentatoneladas.Oqueeuocupeinãotinhanenhumaroupadecama. Tinha uma largura de 45 centímetros, e estava fixado 45 centímetrosabaixodoconvés.Tivedemeenfiarali,comextremadificuldade.Mesmoassim,dormicomoumapedra;etodaaminhavisão–nãofoisonho,nãofoipesadelo–proveio logicamente das circunstâncias de minha posição, da minha habitualpropensão mental e da dificuldade, que mencionei antes, de recuperar ossentidoseprincipalmentederecobraramemórianolongoperíodoqueseseguiuao despertar. Os homens que me sacudiram eram os tripulantes da chalupa ealgunstrabalhadoresquevieramrecolheracarga.Dacargaéqueveioocheirodeterra.Abandagemnosmaxilareseraumlençodesedaque,nafaltadaminhatoucadedormir,eutinhaenroladonacabeça.

Astorturasqueenfrentei,noentanto,foramsemdúvidaidênticas,enquantoduraram, aos suplícios reais de uma sepultura. Foram medonhas, foraminconcebivelmentetenebrosas;masdoMalgerminouoBem,poisoexcessodosuplíciodeuorigemaumareviravoltainevitável.Minhaalmaganhouumtom–ganhouserenidade.Saíparaasruas.Passeiameexercitarcomafinco.RespireioarpurodoCéu.NãopenseimaisapenasnaMorte. Joguei forameus livrosdemedicina. Queimei o “Buchan”.[1] Não li mais “Pensamentos Noturnos”[2],nenhumabobagemsobrenecrópoles,nenhumahistorietadeterror–comoesta.Emresumo,tornei-meumnovohomem,viviumavidadehomem.Desdeaquelanoitememorável,livrei-meparasempredosmeustemoresfúnebres,ecomelessefoiacatalepsia,emrelaçãoàqual, talvez,elestenhamsidomaisacausadoqueaconsequência.

Existemmomentosemque,mesmoaosolhossóbriosdaRazão,omundo

habitado pela triste Humanidade assume uma aparência de Inferno – mas aimaginaçãodohomemnãoéumaCarathis[3]quepossaexplorarimpunementetodasassuascavernas.Aidenós!Aassustadora legiãodos terroressepulcraisnãopodeserconsiderada totalmente fictícia,mas,comoosDemôniosemcujacompanhiaAfrasiab[4] fez sua viagem pelo rio Oxus, ela precisa dormir, ouentãoseremosdevoradosporela–alegiãoprecisaserforçadaaadormecer,ouentãosucumbiremos.

[1]WilliamBuchan(1729-1805),médicoescocês,autordopopularMedicinadoméstica.(N.T.)[2]NightThoughts,aobramaisfamosadopoetainglêsEdwardYoung(1683-1765).(N.T.)[3]Rainhaefeiticeira,personagemdeVathek,noveladoinglêsWilliamBeckford(1760-1844).(N.T.)[4]Reievilão,personagemdaliteraturaclássicapersa.(N.T.)

ACAIXAOBLONGA

Alguns anos atrás, parti emviagemdeCharleston, naCarolina doSul, para acidadedeNovaYork,nobelopaqueteIndependence,docapitãoHardy.Onaviopartiria nodia 15de junho, se o tempopermitisse; embarquei nodia 14, parafazeralgunsarranjosnaminhacabine.

Fiqueisabendoque teríamosumgrandenúmerodepassageiros, incluindoumaquantidade de damasmaior do que o habitual.Na lista constavamváriosconhecidosmeus,e,entreoutraspresenças,fiqueicontentedeveronomedosr.CorneliusWyatt,umjovemartistaporquemeunutriasentimentosdecalorosaamizade.EleforameucolegadeestudosnaUniversidadeC.,ondeandávamossempre juntos. Tinha o temperamento típico de um gênio, num misto demisantropia,sensibilidadeeentusiasmo.Aessasqualidadessesomavaocoraçãomaiscalorosoeverdadeiroquejamaisbateuemumpeitohumano.

Observei que seu nome estava afixado em três cabines; e, conferindonovamentealistadepassageiros,descobriqueelereservaralugaresparasi,parasuaesposaeparaduas irmãsdele.Ascabineserambastante espaçosase cadaumatinhadoisleitos,umacimadooutro.Essesleitos,naverdade,eramestreitosao extremo, de modo que eram insuficientes para mais do que uma pessoa;mesmo assim, não pude compreender por que havia três cabines para essasquatropessoas.Euestava,bemporaquelaépoca,numestadodeespíritoinstávele anormal, desses que deixam o sujeito curioso a respeito de ninharias; econfesso, com vergonha, que me ocupei numa variedade de conjeturas –impertinenteseridículas–sobreessecasodacabineexcedente.Nãoeramesmoda minha conta, mas me dediquei a solucionar o enigma com a maior dasteimosias.Porfimchegueiaumaconclusão,emeencheudeespantoofatodequenãochegaraa elamaiscedo. “Éumacriada, é claro”,pensei. “Que toliceminha,nãoterpensadoantesnumasoluçãotãoóbvia!”Entãorecorriàlistaoutravez – e então pude ter certeza de quenenhumacriada acompanharia o grupo;embora,naverdade,opropósitoinicialtivessesidotrazeruma–poisaspalavras“ecriada”tinhamsidoescritasedepoisriscadas.“Ah,umabagagemextra,comcerteza”, disse agora para mimmesmo, “algo que ele não quer que fique no

porãodecarga, algoquequeiramanter aoalcancedosolhos... ah, já sei: umapinturaoualgoassim–efoiissooqueeleandounegociandocomNicolino,ojudeu italiano.” Essa ideia me satisfez, e de momento pus de lado minhacuriosidade.

As duas irmãs de Wyatt eu conhecia muito bem, eram as garotas maisamáveiseespertasdomundo.Suaesposaeuaindanãotinhavisto,ocasamentoera recente.Maselesempre falavadelaquandoestavacomigo,enoseuestiloentusiasmadohabitual.Eleadescreviacomoumamulherdebelezainigualável,sábia,educada.Euestava,portanto,ansiosoparaconhecê-la.

Nodiaemquevisiteionavio(dia14),Wyatteosseus tambémdeveriamvisitá-lo–segundomeinformouocapitão–,eespereiabordoporumahoraamaisdoqueprevira,naesperançadeserapresentadoànoiva;maschegouumpedidodedesculpas:“Osr.W.estavaumpoucoindispostoedeclinoudevirabordoatéamanhã,atéahoradapartida”.

Tendochegadoamanhãseguinte,eumeencaminhavadohotelparaocaisquando o capitão Hardyme encontrou e disse que, “devido a circunstâncias”(umaexpressãoestúpida,masconveniente),“achavamelhorqueoIndependencenãozarpasseantesdeumoudoisdias,eque,quandotudoestivessepronto,eleanunciariaememandariaorecado”.Issomepareceuestranho,poishaviaumabrisa firme vinda do sul; mas, como “as circunstâncias” não estavamdisponíveis, embora eu procurasse identificá-las commuita perseverança, nãomerestounadaafazeranãoservoltarparacasaesuportarminhaimpaciênciacomcalma.

Não recebi a esperadamensagem do capitão por quase uma semana. Elaacabouchegando,contudo,eembarquei imediatamente.Onavioestavarepletodepassageiros,etudoestavaimersonaquelealvoroçoqueantecedeapartida.OgrupodeWyattchegoucercadedezminutosdepoisdemim.Láestavamasduasirmãs, a noiva e o artista – este último num de seus costumeiros acessos demisantropia taciturna. Eu estava acostumado demais a esses acessos, contudo,para prestar alguma atenção especial neles. Ele nemmesmome apresentou aesposa; essa cortesia coube, por força, a uma das irmãs dele, Marian – umagarota muito doce e inteligente que nos apresentou em poucas e apressadaspalavras.

A sra.Wyatt chegara usandoumvéu que lhe escondia o rosto; quando oergueu,emretribuiçãoàminha reverência, fiqueiprofundamenteatônito,devoconfessar. Eu teria ficado ainda mais espantado, não fosse o fato de que aexperiência me levou a não crer com irrestrita confiança nas descrições

entusiasmadasdomeuamigo,oartista,quandoelesederramavaemcomentáriossobreosencantosdasmulheres.Quandoabelezaeraotema,euconheciamuitobemafacilidadecomqueelevoavaàsalturasdopuroideal.

Verdade seja dita, não pude deixar de considerar a sra.Wyatt como umamulherdeaparênciacomum.Senãoerade todo feia,nãoestava, creio,muitolongedisso.Estavavestida,noentanto,comapuradobomgosto–eentãonãotive dúvida de que ela cativara o coração domeu amigo com as graçasmaisduradourasdointelectoedaalma.Eladissebempoucaspalavrasesedirigiudeimediato,comosr.W.,paraasuacabine.

Minhavelhabisbilhotice ressurgiu.Não havia criadoou criada– isso erainquestionável. Procurei, portanto, pela bagagem extra. Depois de algumademora, chegou ao cais uma carreta com uma caixa oblonga de pinho, quepareciaseraúnicacoisaqueaindaeraesperada.Logoemseguidafizemosvela,eempoucotempoestávamostranquilamentesaindodabarraerumandoparaomaraberto.

Acaixaemquestãoera,comoeudisse,oblonga.Tinhacercadeummetroeoitentadecomprimentoeunsoitentacentímetrosdelargura–euaobserveicomatenção; gosto de ser preciso. Bem, era um formato peculiar; assim que vi acaixa, gabei-me pela acurácia da minha suposição. Eu havia chegado àconclusão, podemos recordar, de que a bagagem excedente do meu amigo, oartista,sópoderiaserumconjuntodepinturas,ouaomenosumapintura;porqueeusabiaqueeleestiveraemconferênciacomNicolinoporváriassemanas;eeisque aqui estava uma caixa que, por seu formato, possivelmente não continhanadamenosqueumacópiada“ÚltimaCeia”deLeonardo;eeusabiaqueumacópiadessamesma“ÚltimaCeia”,feitaemFlorençaporRubini,oMoço,estavaempossedeNicolinohaviaalgumtempo.Considerei,portanto,queessaquestãoestavasuficientementeesclarecida.Risozinhoaopensaremminhaperspicácia.Era a primeira vez, ao que eu soubesse, queWyatt me escondia um de seussegredos artísticos; mas estava evidente, aqui, que ele queria me pregar umapeça,contrabandeandoumabelapinturaparaNovaYorkbemembaixodomeunariz,esperandoqueeunãofossedesconfiardenada.Resolvientrarnojogoeresponderàaltura,dalipordiante.

Umacoisameincomodavabastante,contudo.Acaixanãofoidepositadanacabineextra.FoicolocadanoquartodeWyatt;eali,alémdisso,elapermaneceu,ocupandopraticamentetodoopiso–paraextremodesconforto,semdúvida,doartista e de sua mulher, especialmente porque o piche ou a tinta com que seescreveu sobre a caixa, em grandes letrasmaiúsculas, emitia um cheiro forte,

desagradávele,ameuver,particularmentenojento.Natampaestavampintadasestaspalavras:

Paraa sra.AdelaideCurtis,Albany,NovaYork.Sob responsabilidadedo ilmo. sr.CorneliusWyatt.Esteladoparacima.Manejarcomcuidado.

Ora,eutinhaconhecimentodequeasra.AdelaideCurtis,deAlbany,eraamãe da mulher do artista – mas encarei a história do endereço como umamistificaçãopreparadaespecialmenteparamim.Boteinacabeçaqueacaixaeseuconteúdo,eraóbvio,nãoiriamparanenhumlugarquenãofosseoestúdiodomeumisantropoamigo,emChambersStreet,NovaYork.

Nos primeiros três ou quatro dias tivemos tempo bom, embora o ventoestivesseparadoà frente, tendosedirigidoparaonorte logodepoisde termosperdido de vista a costa. Os passageiros se achavam, em consequência, bem-dispostos e inclinados à sociabilidade. Devo excluir, contudo, Wyatt e suasirmãs,quesecomportavamdemaneirafriae,nãopudedeixardepensar,agiamaté mesmo de forma descortês com os outros. A conduta deWyatt não mechamava tanto a atenção. Ele estava tristonho, até mais do que o habitual –estava mesmo sombrio –, mas para as excentricidades dele eu estava semprepreparado. Quanto às irmãs, contudo, eu não sabia o que pensar. Elas setrancavam em sua cabine durante amaior parte do tempo e absolutamente serecusavam,emboraeuinsistissecomelas,afazercontatocomqualquerpessoaabordo.

Asra.Wyatt,porsuavez,erabemmaisagradável.Oumelhor,erafalante;eser falante é um tanto recomendável quando se está no mar. Ela ficouexcessivamente íntimadamaioriadassenhoras;e,parameuprofundoespanto,demonstrouinequívocadisposiçãodecoquetearcomoshomens.Divertiumuitoatodos.Eudigo“divertiu”–emalseicomomeexplicar.Averdadeéquelogodescobriquemuitomaisriamdasra.W.doquecomela.Oscavalheirospoucodiziam a seu respeito; as damas, porém, em questão de pouco tempo aqualificaramde“coisinhaquerida,deaparênciabembanal,totalmenteincultaedecididamente vulgar”. O grande enigma era entender como Wyatt caíra naciladadessaunião.Riquezaeraummotivocomum–masaquieusabiaquenãoeramotivonenhum,poisWyattmecontaraqueelanãopossuíanemumtostãoenão tinha perspectivas de obter renda de onde quer que fosse. Ele se casara,segundomedisse,“poramor,eapenasporamor”;esuanoivaera“muitomaisdoquemerecedora”deseuamor.Quandopenseinessasexpressõesqueomeuamigo usou, fiquei indescritivelmente perplexo, devo confessar. Seria possível

que ele estivesse perdendo o juízo? O que mais eu poderia pensar? Ele, tãorefinado, tão erudito, tão exigente, dotado de uma requintada percepção doimperfeito e de uma apurada apreciação do belo!Na verdade, a dama pareciaespecialmenteafeiçoadaaele–aindamaisnaausênciadele–,aofazerpapeldebobacomfrequentescitaçõesdoquehaviasidoditoporseu“adoradomarido,osr.Wyatt”. A palavra “marido” parecia estar sempre – para usar uma de suasdelicadasexpressões–,sempre“napontadesualíngua”.Enquantoisso,saltavaaos olhos de todos a bordo que ela era evitada por ele de maneira bastanteintencional, e que ele, na maior parte do tempo, trancava-se sozinho em suacabine,deonde,defato,podia-sedizerquepraticamentenãosaía,dandotodaaliberdadeàesposa,deixandoqueelasedivertisseàvontadeempúblico,àvistadetodos,nosalãoprincipal.

Minha conclusão, pelo que vi e ouvi, foi a de que o artista, por algumainexplicávelexcentricidadeouinclinação,outalvezemalgumacessodepaixãoentusiásticaefantasiosa,forainduzidoaseunircomumapessoaquenãoestavadenenhumamaneiraàsuaaltura,equeaconsequêncianaturalforaodesgostocompleto e imediato. Lamentei por ele, do fundo domeu coração –mas nãopodia, nem por esse motivo, perdoar sua incomunicabilidade a respeito daÚltimaCeia.Porissodecidielaborarminhavingança.

Certo dia ele veio ao convés e, levando-o pelo braço como era meucostume,passeeicomeleparaláeparacá.Seuabatimento,contudo(oqueeuconsiderava até natural, dadas as circunstâncias), parecia totalmenteinextinguível. Pouco dizia, sempre taciturno, e quando falava algo, era comevidente esforço. Arrisquei um ou dois gracejos, e ele esboçou um sorrisoforçado. Pobre sujeito! Pensando em sua mulher, ponderei se ele teriacapacidade de sequer simular jovialidade. Por fim, arrisquei um lance maiscerteiro. Resolvi dar início a uma série de insinuações encobertas e alusõesacerca da caixa oblonga – de formaque ele percebesse, gradualmente, que euestava longe de ser alvo ou vítima de seu pequeno jogo demistificação.Meuprimeiro movimento foi uma espécie de ataque disfarçado. Eu disse algumacoisaacercado“formatopeculiardaquelacaixa”e,enquantofalei,sorricomosesoubessedealgo,pisqueiparaeleeotoqueidelevenascostelascommeudedoindicador.

A maneira com que Wyatt recebeu essa brincadeira inofensiva meconvenceudeimediatodequeeleestavalouco.Primeiroelemeolhoucomosejulgasseimpossívelcompreenderaespirituosidadedaminhaobservação;porém,à medida que a insinuação começou a fazer sentido, parecendo penetrar aos

poucos em suamente, seus olhos, cada vezmais, pareceram querer saltar dasórbitas. Então seu rosto ficou muito vermelho e, em seguida, ficoumedonhamente pálido – depois, como que incrivelmente deleitado por minhainsinuação,elecomeçouariralto,deformaviolenta,umarisadaque,parameugrande assombro, elemanteve num vigor cada vezmaior por dezminutos oumais.Concluindo, caiucomoumposte sobreoconvés.Quandomeapressei aerguê-lo,eletinhatodaaaparênciadeumhomemmorto.

Chameiajudae, comamaiordificuldade, trouxemosWyattdevoltaa si.Depoisdesereanimar,elefaloudeformaincoerenteporumtempo.Porfimosangramos e o colocamos na cama. Na manhã seguinte, ele estava bastanterecuperado, no que dizia respeito a sua mera saúde física. Nem falo de suacondiçãomental,claro.Evitei-oduranteo restodaviagem,poradvertênciadocapitão, que parecia estar totalmente de acordo comminha opinião sobre suainsanidade,masmeaconselhouanãomencionarotemacomninguémabordo.

Várias circunstâncias se passaram imediatamente após esse ataque deWyatt, e elas contribuíram para intensificar a curiosidade de que eu já estavapossuído.Entre outras coisas, isto: eu estava sempre nervoso, bebiamuito umfortecháverdeedormiamalànoite–naverdade,houveduasnoitesnasquaissepodedizerquenemchegueiadormir.Bem,aportadaminhacabinedavaparao salão principal, ou sala de jantar, como ocorria com todas as cabines dehomens desacompanhados a bordo. Os três quartos de Wyatt ficavam numespaço adjacente, separado do salão principal apenas por uma porta de correrquenãoera trancadanemmesmoànoite.Seguíamosquaseo tempointeironadireçãodovento,combrisaforteeconstante,eonavioseinclinavaasotaventoemgrandemedida;semprequeoventovinhadeencontroaestibordo,essaportade correr entre as duas áreas se abria, e aberta ficava, ninguém se dando otrabalhodelevantarparafechá-la.Eaposiçãodomeuleitoeratalquequandoaportadaminhaprópria cabineestavaaberta, assimcomoaportadecorrer emquestão(minhaportaestavasempreabertadevidoaocalor),eupodiaenxergarointeriordoespaçoadjacentedeformamuitodistinta,eviajustootrechoemquese localizavam as cabines do sr. Wyatt. Pois bem, em duas noites (nãoconsecutivas),duranteminhavigília,porvoltadasonzedanoitenasduasvezes,vicommeusprópriosolhosasra.W.sairdeformasorrateiradacabinedosr.W.e entrar no quarto extra, no qual permanecia até o raiar do dia, quando erachamadapelomaridoevoltavaparaacabinedele.Eraclaroqueelesestavamvirtualmente separados. Tinham aposentos separados – sem dúvida naperspectiva de um divórcio mais permanente. Aqui, afinal, pensei, estava o

mistériodacabineextra.Havia outra circunstância, também, que me interessava muito. Nas duas

noites despertas em questão, e imediatamente após o desaparecimento da sra.Wyatt na cabine extra, fui atraído por certos ruídos singulares, cautelosos,abafados,noquartodomarido.Depoisdeescutarbemporumtempo,prestandoatençãoerefletindo,porfimtiveêxitototaleminterpretarosruídos.Eramsonsocasionadospelaaçãodoartistadeabriràforçaacaixaoblonga,pormeiodeumformão e de um malho – este último estando aparentemente silenciado, ouamortecido,poralgumtecidodelãoualgodãoqueenvolviasuacabeça.

Dessa maneira imaginei poder distinguir o preciso momento em que elesoltava por completo a tampa – e também poder perceber quando a removiainteiramente, e quando a depositava no leito mais baixo de seu quarto; esteúltimoponto,porexemplo,eudeterminavaapartirdecertasbatidaslevesqueatampa dava de encontro às extremidades de madeira do leito, enquanto eletentava deitá-la ali com amaior suavidade – não havendo espaço para ela nochão. Depois disso, nas duas ocasiões, havia uma quietude absoluta e eu nãoouviamaisnadaatépertodoraiardodia;amenos,talvez,quevalhamencionarum soluço baixo, um som de murmúrio, tão reprimido que se tornava quaseinaudível–seéque,defato,oconjuntodestesúltimossonsnãoeraproduzidomesmo porminha própria imaginação. Estou dizendo que os sons lembravamsoluçosoususpiros–maséclaroquenãopodiamsernemumacoisanemoutra.Acho que não passavam de um zumbido emmeus ouvidos.O sr.Wyatt, semdúvida,deacordocomseucostume,estavaapenasfruindoumdeseushobbies–entregando-seaumdeseusacessosdeentusiasmoartístico.Eleabrirasuacaixaoblongademodoaregalarseusolhoscomotesouropictóricoqueelacontinha.Nãohavianadaali,contudo,quedevessefazê-losoluçar.Repito,portanto,queissosópodetersidoumadasfantasiasaberrantesdeminhamente,desreguladapelo chá verde do bom capitão Hardy. Pouco antes do amanhecer, nas duasnoites de que falei, distintamente ouvi o sr.Wyatt recolocar a tampa sobre acaixaoblongaecravarospregosdevoltaemseus lugarespormeiodomalhosilenciado.Feitoisso,elesaíadesuacabine,vestido,esedirigiaàcabinedasra.W.parachamá-la.

Já estávamos no mar havia sete dias e havíamos passado pelo CaboHatteras, quando surgiu uma tremenda ventania vinda do sudoeste. Contudo,estávamospreparadospara isso, emcertamedida, já queo climavinhadandoameaçasháalgumtempo.Tudofoiajustadoparaumapossível tempestade,nointeriorenoexteriordonavio;ecomooventoiaganhandocadavezmaisforça,

tivemosderecorrer,porfim,àvelademezenaeaumavelaaltanomastrodeproa,ambasempoucopano.

Nessearranjo,navegamoscombastantesegurançapor48horas–onavioprovando-seexcelentenoenfrentamentodeturbulências,recebendobempoucaáguanoconvés.Aofimdesseperíodo,contudo,aventaniasetransformounumfuracão,enossaveladepopase rasgouemfrangalhos,comoquepassamosanos inclinar demais nas depressões domar, o convés sendo lavado por ondasprodigiosas, umadepois da outra.Com isso perdemos três homens, arrastadospara foradonavio junto coma cozinhade convés e quase toda a amuradadebombordo. Recuperamos os sentidos pouco antes do estraçalhamento da velaalta de proa, e então içamos uma vela de estai para tempestade, e com issoconseguimosficarbemporalgumashoras,onavioenfrentandoomarcommuitomaisestabilidade.

Aviolentaventanianãodava trégua,contudo,enãovíamossinaisdequefosseamainar.Descobriu-sequeocordameestavamalajustadoetensionadoemexcesso; e no terceiro dia da tempestade, por volta das cinco da tarde, nossomastroderé,numaforteguinadaabarlavento,desabouemcimadaborda.Porumahoraoumais,emvão, tentamosnoslivrardele,emfunçãodaestonteanterotaçãodonavio;e,antesmesmodequeconseguíssemosfazê-lo,ocarpinteiroveioàpopaeanunciouquehaviamaisdeummetrodeáguanoporãodecarga.Para agravar nosso dilema, verificamos que as bombas de água estavamentupidasepraticamenteimprestáveis.

Tudo,agora,eraconfusãoedesespero–mashouveumesforçoparaaliviaro peso do navio, e jogamos aomar toda a carga que conseguimos recolher, ederrubamososdoismastrosque restavam.Aliviamosopesodonavioafinal–masseguíamossempoderutilizarasbombas;enomeio-tempoovazamentonosvenciacommuitarapidez.

Aopôr do sol, a violência da ventania havia diminuído sensivelmente, e,com o assentamento do mar, ainda nutríamos débeis esperanças de quepudéssemos nos salvar nos botes. Às oito da noite, as nuvens se abriram abarlavento, e fomospresenteados comuma lua cheia – um lance de boa sortequeserviumaravilhosamenteparareanimarnossosespíritosabatidos.

Com muita dificuldade, passando por um trabalho inacreditável,conseguimos, por fim, descer o escaler principal sem acidentesmateriais, e olotamos com toda a tripulação e amaioria dos passageiros. Esse grupo partiuimediatamentee,depoisdemuitossofrimentos,chegouemsegurança,afinal,àbaíadeOracoke,trêsdiasdepoisdonaufrágio.

Catorze passageiros e o capitão permaneceram a bordo, confiando seusdestinosaobotedapopa.Nósodescemossemdificuldade,emboraapenaspormilagre tenhamos impedido que submergisse quando bateu na água. Elecontinha, já flutuando, o capitão e sua esposa, o sr.Wyatt e seu grupo, e umoficial mexicano com esposa e quatro filhos, além de mim mesmo com umpajemnegro.

Nãotínhamosespaço,éclaro,paranadaalémdeunspoucosinstrumentosestritamente necessários, de algumas provisões e das roupas que vestíamos.Ninguémsequerpensouemtentarsalvaralgomais.Qualnãofoioassombrodetodos,então,nomomentoemque,quandojáestávamosalgunsmetrosafastadosdonavio,osr.Wyattergueu-senocordamedepopaepediuaocapitãoHardy,comamaiorfrieza,queobotefosseiçadodevoltaparaquetrouxéssemossuacaixaoblonga!

– Sente-se, sr. Wyatt – respondeu o capitão, com certa severidade. – Osenhor fará o barco virar se não se sentar e ficar imóvel.Nossa amurada estáquasenaáguaagora.

–Acaixa!–vociferouosr.Wyatt,aindadepé.–Acaixa,estoudizendo!CapitãoHardy,osenhornãopode,osenhornãoirárecusarmeupedido.Opesodelaéinsignificante,nãoénada,éumacoisadenada.Pelamãequeotrouxeaomundo,peloamordosCéus,pelaesperançadesuasalvação,imploroaosenhorquevoltemosparabuscaracaixa!

Porummomento,ocapitãopareceusensibilizadopeloapelofervorosodoartista,masretomousuacomposturaseveraedisseapenas:

–Sr.Wyatt,osenhorestálouco.Nãopossolhedarouvidos.Repito,sente-seouobotevaivirar.Fiqueondeestá...Segurem-no!Agarrem-no!Elevaipularnomar!Pronto,eusabia,elepulou!

Enquanto o capitão falava, o sr. Wyatt pulou do bote e, como aindaestávamos a sotavento do navio naufragado, conseguiu, num empenho quasesobre-humano, agarrar uma corda que pendia das correntes da proa. Numinstanteelejáestavaabordo,descendoatodavelocidadeparasuacabine.

Nessemeio-tempo fomos arrastadosmais para perto da popa do navio e,saindodosotavento,ficamosàmercêdeondulaçõestenebrosasquenãoperdiamforça. Fizemos esforço para voltar, com grande determinação, mas nossopequenobarcoeracomoumaplumanosoprodatempestade.Percebemos,numrelance,queadesgraçadodesventuradoartistaestavaselada.

Àmedidaquenossadistânciadonavionaufragadoaumentavarapidamente,vimos o louco (pois só assim podíamos encará-lo) emergir da escada do

tombadilho,deonde,comusodeumaforçadignadeumgigante,elepuxouparacima, por inteiro, a caixa oblonga.Enquanto olhávamos aquilo no extremodenosso espanto, ele prendeu a caixa com várias voltas de uma corda de trêspolegadas, e em seguida, com amesma corda, fez omesmo em torno de seucorpo. Um momento depois, ambos, corpo e caixa, estavam no mar –desapareceramsubitamente,deumasóvezeparasempre.

Ficamossemreaçãoporalgumtempo,tristes,nossosremosparados,nossosolhosfixosnaqueleponto.Porfimrecomeçamosaremar.Osilênciosemanteve,absoluto,porumahora.Entãoarrisqueiumcomentário:

–Osenhorobservou,capitão,comoelesafundaramdeformainstantânea?Isso não foi uma coisa extremamente singular? Confesso que acalentei umamínima esperança de que ele se salvasse ao final, quando o vi se amarrar nacaixaeselançaraomar.

–Afundaramporumalógicanatural–disseocapitão–,ecomoumraio.Contudo,logovoltarãoàsuperfície...masnãoantesqueosalderreta.

–Osal!–exclamei.–Não falealto!–disseocapitão,apontandoparaaesposaeas irmãsdo

falecido.–Conversaremossobreessascoisasnummomentomaisapropriado.

***

Passamos por muitos tormentos e nos salvamos por um triz; a sortefavoreceu a nós assim como aos nossos companheiros do escaler principal.Descemosemterra,afinal,maismortosdoquevivos,apósquatrodiasdeintensaaflição,napraiaqueficaemfrenteaRoanokeIsland.Permanecemosaliporumasemana, não fomos importunados por saqueadores de naufrágios e por fimconseguimosseguirparaNovaYork.

MaisoumenosummêsdepoisdaperdadoIndependence,aconteceudeeuencontrar o capitão Hardy na Broadway. Nossa conversa convergiu,naturalmente,paraodesastre,eemespecialparaodestinotristedopobreWyatt.Assimtomeiconhecimentodosseguintespormenores.

Oartistacomprarapassagensparasieparaesposa,duasirmãsecriada.Suaesposaera,defato,comoforadescrita,umamulher linda,educadaeculta.Namanhãde14dejunho(odiaemquefizminhaprimeiravisitaaonavio),adamaadoeceudesúbitoemorreu.Ojovemmaridoficouforadesidetantador–mascircunstâncias de natureza imperativa não permitiram que sua viagem aNovaYorkpudesse ser adiada.Eranecessário entregar àmãedelao cadáverde sua

adoradaesposa,e,poroutrolado,opreconceitouniversalqueoimpediadefazê-lo às claras era bem conhecido. Nove entre dez passageiros prefeririamabandonaronavioaviajarcomumdefunto.

Nessedilema,ocapitãoHardyprovidenciouqueocadáver,tendosidoantesparcialmente embalsamado, e depositado, com grande quantidade de sal, numcaixão de dimensões apropriadas, pudesse ser transportado a bordo comomercadoria.Nadadeveria serditoa respeitodo falecimentodadama;e, comoestava ao alcancede todos saber queo sr.Wyatt comprarapassagempara suaesposa, tornou-se necessário que alguma pessoa a personificasse durante aviagem.Foi fácilpersuadiradamadequartoda falecidaaassumira tarefa.Acabine extra, destinada originalmente para esta moça, teve então sua reservaapenasmantida.Nessacabineapseudo-esposadormiu,éclaro,todasasnoites.Duranteodiaeladesempenhava,nomáximodesuascapacidades,opapeldesuapatroa–cujaaparência,comoforacuidadosamenteapurado,nãoeraconhecidapornenhumdospassageirosabordo.

Meupróprioenganosurgiu,algonaturalmente,deumtemperamentomuitodescuidado, muito curioso, muito impulsivo. Mas nos últimos tempos é umacoisa rara que eu consiga dormir direito à noite. Há um semblante que meassombra,pormaisqueeumevirenacama.Háumarisadahistéricaquevaisoarparasempreemmeusouvidos.

“TUÉSOHOMEM”

FareiasvezesdeÉdipo,agora,noenigmadeRattleborough.Vouexporavocês,como só eu posso fazer, o segredo da maquinaria que gerou o milagre deRattleborough – o único, o verdadeiro, o reconhecido, o inconteste, oincontestável milagre que pôs um fim definitivo à infidelidade entre oshabitantes de Rattleborough e converteu à ortodoxia das matronas todos osmundanosqueumdiaseatreveramasercéticos.

Esse acontecimento – sobre o qual deveria ser uma vergonha, paramim,discorrernumtomde inadequada leviandade–sedeunoverãode18... .Osr.BarnabasShuttleworthy–umdoscidadãosmaisabastadoserespeitáveisdavila– estava desaparecido havia vários dias, em circunstâncias que levantavam asuspeitadecrimedemorte.ShuttleworthysaíradeRattleboroughbemcedonumsábado demanhã, a cavalo, com a declarada intenção de seguir para a cidadede..., cerca de 25 quilômetros distante, e de retornar na noite do mesmo dia.Duashorasapóssuapartida,noentanto,seucavaloretornousemeleesemassacolasdeselaquehaviamsidoafixadasemseulombonoiníciodaviagem.Oanimal estava ferido e coberto de lama. Essas circunstâncias naturalmentecausaram grande perplexidade entre os amigos do homem desaparecido; equandoseconstatou,namanhãdedomingo,queeleaindanãoaparecera,todaavila,enmasse,resolveusairàprocuradeseucorpo.

Oprimeiroemaisenérgiconainiciativadessabuscaeraoamigodopeitodosr.Shuttleworthy–osr.CharlesGoodfellow,ou,comoeleerauniversalmentechamado, “Charley Goodfellow”, ou “Velho Charley Goodfellow”. Ora, quersejaumacoincidênciamaravilhosa,quersejaqueonomeemsiexerçaumefeitoimperceptível sobre a personalidade, nunca, até aqui, tive condições deaveriguar;maséumfato inquestionávelquenuncahouveumsujeitochamadoCharlesquenãofosseumcompanheirofranco,valoroso,honesto,benévoloedecoração aberto, dono de uma voz clara emelodiosa que nos faz bem quandoouvimos e de olhos que nos encaram de frente, no rosto, como que dizendo:“Tenho a consciência limpa; não tenho medo de homem nenhum, e sou

totalmente incapaz de fazer mal para alguém”. E, assim, todos os amáveis eincautosfigurantesdopalcotêmtodasaspossibilidadesdeteronomeCharles.

Ora, o “Velho Charley Goodfellow”, embora não estivesse emRattleborough não havia nem seis meses ou algo assim, e embora ninguémsoubesse nada sobre a vida que ele levara antes de vir se estabelecer navizinhança,nãotiveranenhumadificuldadenomundoemsefazerconhecidodetodas as pessoas respeitáveis na vila. Homem algum, entre essas pessoas,desconfiaria de uma só palavra dele, qualquer que fosse o caso. Quanto àsmulheres,nãohácomodizeroqueelasnãofariamparaobsequiá-lo.EtudoissoveiodeeletersidobatizadoCharles,edeelepossuir,porconsequência,aquelerostoingênuoqueéproverbialmentea“melhorcartaderecomendação”.

Já afirmei que o sr. Shuttleworthy era um dos mais respeitáveis e, semdúvida, o homem mais rico em Rattleborough, sendo que o “Velho CharleyGoodfellow”era íntimodele comose fosse seupróprio irmão.Osdoisvelhossenhoreseramvizinhosdeporta,e,emboraosr.Shuttleworthyraramente,seéque o fazia, visitava o “Velho Charley”, e nunca se soube que tivesse feitoalguma refeição na casa do amigo, nada impedia que os dois fossemextremamenteíntimos,comoacabeideobservar;poiso“VelhoCharley”jamaisdeixavaumdiasepassarsementrartrêsouquatrovezesparavercomoandavaoseuvizinho,ecomgrande frequência ficavaparaumcafédamanhãouchá,equasesempreparaojantar;e,então,aquantidadedevinhoqueeraconsumidopelosdoiscamaradasnumasentadaeraumacoisarealmentedifícildeverificar.Abebidafavoritado“VelhoCharley”eraChâteauMargaux,epareciafazerbemao coração do sr. Shuttleworthy ver o velho companheiro esvaziar garrafas,comoelefazia,litroapóslitro;demodoqueumdia,quandoovinhoestavapordentro e o juízo, como consequência natural, meio por fora, ele disse a seucamarada,dandotapinhasemsuascostas:

–Voudizeroqueé,VelhoCharley,vocêé,delonge,ocompanheiromaisgenuínocomquemjamaiscruzeiemtodaessaminhavida;e,jáquevocêadoraacabar com o vinho dessa maneira, maldito seja meu nome se eu não tepresentearcomumagrandecaixadoChâteauMargaux.Deusme livre– (osr.Shuttleworthytinhaumatristemaniadeblasfemar,emborararamentefossealémde um “Deusme livre”, ou “MeuDeus do céu”, ou “Pelo amor deDeus”) –,Deusme livre – diz ele – se eu não enviar um pedido à cidade hoje à tardemesmorequisitandoumacaixadupladomelhorquesepodeobter,ecomeletefareiumregalo,fareisim!Tunãoprecisasdizernada,euofarei,eoassuntoestáencerrado; então fica atento, o presente chegará às tuas mãos num belo dia

desses,precisamentequandotumenosesperaresporele!Mencionoestetantinhodeliberalidadedepartedosr.Shuttleworthyapenas

comoummododemostraravocêsaquepontochegavaagrandeintimidadequeexistiaentreosdoisamigos.

Bem, no domingo demanhã em questão, quando se tornoumais do queadmitido que o sr. Shuttleworthy deparara com crime de morte, em nenhummomento vi alguém tão profundamente afetado quanto o “Velho CharleyGoodfellow”.Quandoeleficousabendoqueocavalovoltaraparacasasemseudono,esemassacolasdeseladeseudonoetodoensanguentadoporumtirodepistola,queatravessaraforaaforaopeitodopobreanimalsemchegaramatá-lo– quando ficou sabendo de tudo isso, ele ficou pálido como se o homemdesaparecido fosse seu próprio querido irmão ou pai, e tremeu e tiritou todocomoseestivessenoaugedeumafebre.

Deinícioeleestavasubjugadodemaispeladorparatercondiçõesdefazeroquequerquefosse,ouparaoptarporalgumplanodeação;demaneiraqueporum bom tempo ele tentou dissuadir os outros amigos do sr. Shuttleworthy defazertantoalvoroçoemtornodoassunto,pensandoqueseriamelhoresperarumpouco–digamosqueporumasemanaouduas,ouporummêsoudois–paraver se algo não apareceria, ou se o sr. Shuttleworthy não voltaria de modonatural, explicando suas razões para enviar seu cavalo antes. Ouso dizer quevocêsjádevemterobservadomaisdeumavezestadisposiçãoparatemporizar,ou para procrastinar, em pessoas que estão passando por algum pesar muitopungente.Suascapacidadesmentaisparecemterseadormecido,demaneiraqueelastêmhorroratudoqueseassemelheaação,enãogostamdenadamaisnomundo além de repousar em silêncio na cama e “embalar sua dor”, como naexpressãodasvelhasdamas–querdizer,ruminarsobreseusproblemas.

OpovodeRattleboroughtinha,defato,umaopiniãotãoboaarespeitodasabedoria e da prudência do “Velho Charley” que a maior parte das pessoasestavadispostaaconcordarcomele,eanãofazeralvoroçodoassunto“atéquealgoaparecesse”,comooshonestossenhoresdeidadeodisseram;ecreioque,no fim das contas, essa teria sido a determinação geral, não fosse a muitosuspeita interferência do sobrinho do sr. Shuttleworthy, um jovem de hábitosmuitodissipados, e atémesmodepersonalidadebastante ruim.Esse sobrinho,cujo nome era Pennifeather, não dava ouvidos a nada racional no que diziarespeito a “deitar quieto”, e insistia em proceder a uma busca imediata pelo“cadáver do homem assassinado”. Essa foi a expressão que ele usou; e o sr.Goodfellow observou com agudeza, em seguida, que se tratava de uma

“expressãosingular,paranãodizermais”.Essaobservaçãodo“VelhoCharley”também teve grande efeito sobre o povo reunido; e se ouviu um homem dogrupo perguntar, causando grande impressão, “como acontecia de o jovem sr.Pennifeather ter conhecimento tão íntimo das circunstâncias relacionadas aodesaparecimentodeseuabastadotio,apontodesesentirautorizadoagarantir,deformadistintaeinequívoca,queotiohaviasidoassassinado”.Aseguirhouveum tanto de contenda e observações sarcásticas entre vários membros daaglomeração, especialmente entre o “Velho Charley” e o sr. Pennifeather –embora essa disputa entre os dois não fosse, de fato, de modo algum umanovidade,poispoucaboavontaderestavaentreasduaspartesnosúltimos trêsouquatromeses;eonegóciotinhaidotãolongequeosr.Pennifeatherchegaraaderrubarasocooamigodeseutioporalgumsupostoexcessodeliberdadequeoamigo tomara na casa do tio, na qual o sobrinho eramorador.Nessa ocasião,segundo se diz, o “Velho Charley” se portou com moderação exemplar etolerânciacristã.Eleserecuperoudogolpe,levantou,arrumousuasroupasenãofez qualquer tentativa de retaliação; apenas murmurou umas poucas palavrassobre“exercersumáriavingançanaprimeiraoportunidadeconveniente”–umaebuliçãoderaivanaturalemuitojustificável,quedetodomodonãoqueriadizernadae,semsombradedúvida,foiesquecidalogodepoisdetersidoaventada.

Não importando em que pé estivesse o assunto (que não tem referêncianenhuma com o ponto de que tratamos agora), é quase certo que o povo deRattleborough,principalmentegraçasàpersuasãodosr.Pennifeather,aderiuporfim à determinação de se dispersar pelas regiões adjacentes em busca dodesaparecido sr. Shuttleworthy. Estou dizendo que eles aderiram a taldeterminação num primeiromomento.Depois que estava totalmente resolvidoque uma busca devia ser feita, considerou-se quase uma coisa lógica que osinvestigadoresdeveriamsedispersar–querdizer,distribuir-seemgrupos–paraumexamemaisabrangenteda regiãoemvolta.Esqueço,entretanto,qual foialinhaderaciocínioqueo“VelhoCharley”usouparaconvenceraassembleiadeque esse era o plano mais precipitado que se podia empregar. Convencer,entretanto, ele convenceu – a todos menos ao sr. Pennifeather; e, por fim,acertou-se que uma busca devia ser realizada, com cuidado e muita minúcia,pelos habitantes da vila en masse, o próprio “Velho Charley” indicando ocaminho.

Quanto a esse último ponto, não podia haver desbravador melhor que o“Velho Charley”, que todos sabiam possuir o olho de um lince; no entanto,emboraeleosguiasseportodosostiposdeburacosecantosinusitados,porrotas

queninguémjamaissuspeitaraqueexistissemnasredondezas,eemboraabuscase mantivesse incessante, dia e noite, por quase uma semana, mesmo assimnenhumvestígiodosr.Shuttleworthypôdeserencontrado.Quandodigonenhumvestígio,noentanto,nãoéparaserentendidodeformaliteral;poisvestígio,emcertamedida,certamentehavia.Ocaminhodopobresenhorfoirastreado,pelasferraduras de seu cavalo (que eram peculiares), até um ponto cerca de cincoquilômetros ao leste da vila, na estrada principal que levava à cidade.Aqui orastrosedeslocavaparaumatrilhaparalelaatravésdeumtrechodebosque–atrilhasaindodenovo,maisadiante,naestradaprincipal,ecortandocercadeumquilômetro da distância normal. Seguindo as marcas de ferradura por essavereda,ogrupotopouporfimcomumcharcodeáguaparada,meioescondidopelos arbustos espinhosos à direita da vereda, e depois desse charco todos osvestígiosdorastroseperdiamdevista.Parecia,noentanto,quealgumaespéciede luta tomara lugarali, epodiaserconcluídoqueumcorpograndeepesado,muitomaioremaispesadodoqueodeumhomem,tinhasidoarrastadodaviaparalelaparadentrodocharco.Ocharcofoivarridocuidadosamenteduasvezes,masnadafoiencontrado;eogrupoestavaapontodeirembora,nodesesperodenão obter resultado algum, quando a Providência sugeriu ao sr.Goodfellow oexpedientededrenartodaaáguadevez.Oprojetofoirecebidocomaclamaçõesemuitos cumprimentos ao “VelhoCharley” por sua sagacidade e deliberação.Comomuitosdoscidadãoshaviamtrazidopás,nasuposiçãodequepudessemvir a ter de desenterrar um cadáver, a drenagem foi efetuada com rapidez efacilidade;etãologoofundoficouvisíveldescobriu-se,bemnomeiodalamaque restou, um colete preto de veludo de seda que quase todos os presentesreconheceramimediatamentecomosendopropriedadedosr.Pennifeather.Essecoleteestavabastanterasgadoemanchadodesangue,ehouveváriaspessoasnogrupoquetinhamclaralembrançadequeeleforausadoporseuproprietárionamesmamanhã em que o sr. Shuttleworthy partiu para a cidade; enquanto quehouveoutras,ainda,prontasa testemunharpor juramento,senecessário,queosr. P. não estava usando a peça em questão em nenhum momento durante orestantedaquelediamemorável;enãoseachavaninguémquepudessedizerquetivessevistoapeçanostrajesdosr.P.emnenhummomentoquefossedepoisdeocorridoodesaparecimentodosr.Shuttleworthy.

As coisas apresentavam agora um aspecto muito preocupante para o sr.Pennifeather,e foiobservado,comoconfirmação indubitáveldassuspeitasquese erguiam contra ele, que ele estava ficando extremamente pálido, e quandoinstado a manifestar o que tinha a dizer para se explicar foi absolutamente

incapazdedizerumapalavra.Numinstante,ospoucosamigosqueherdaradeseu turbulentomododeviveroabandonaramsemexceçãoede imediato,e setornaramaindamais clamorososdoque seus antigos edeclarados inimigosnaexigênciadequefossepresonoato.Deoutrolado,porém,amagnanimidadedosr.Goodfellow resplandeceu com brilho aindamais radioso por contraste. Elefez uma calorosa e intensamente eloquente defesa do sr. Pennifeather, na qualaludiu mais de uma vez a seu sincero perdão ao selvagem cavalheiro – “oherdeiro do valoroso sr. Shuttleworthy” – pelo insulto que aquele (o jovemcavalheiro)havia,semdúvidanocalordapaixão,julgadoadequadolançarsobreele (o sr.Goodfellow). “Eleoperdooupeloocorrido”,disseele, “do fundodeseucoração;equantoaelemesmo(osr.Goodfellow),muitoantesdelevaraumextremo as circunstâncias suspeitas que, como lamentava dizer, realmentehaviamsurgidoemdesfavordosr.Pennifeather,ele(osr.Goodfellow)fariatodoesforço de que fosse capaz, empregaria toda a pouca eloquência que possuíapara... para... para amenizar, atéonde chegasse seupoderde fazê-lo, aspioresfeiçõesdessenegóciodeverasdesconcertante.”

O sr.Goodfellow avançou nesta linha por uma boameia hora,muito emcontatantodesuacabeçacomodeseucoração;masessesnossosconhecidosdecoração aberto poucas vezes são coerentes em suas observações, incorrem emtodasortedebobagens,embaraçosedisparates,nofervordeseuzeloemserviraum amigo, fazendo dessa maneira, muitas vezes com as intenções maisbenévolasdomundo, infinitamentemaisparaprejudicarsuacausadoqueparafavorecê-la.

Foi, neste caso, o que resultou de toda a eloquência do “VelhoCharley”;pois, embora ele labutasse com dedicação pelos interesses do suspeito, aindaassim ocorreu, de um jeito ou de outro, que cada sílaba que ele proferia cujatendênciadiretamasinvoluntáriafossenãoexaltarooradornaboaestimadesuaaudiênciatinhaoefeitodeaprofundarasuspeitajáassociadaaoindivíduocujacausaelepleiteava,edeincendiarcontraeleafúriadamultidão.

Umdoserrosmais inexplicáveiscometidospeloorador foi sua referênciaao suspeito como “o herdeiro do valoroso sr. Shuttleworthy”. As pessoas, naverdade,nuncahaviampensadonissoantes.Nomáximolembravam-sedecertasameaças de deserdamento proferidas um ou dois anos antes pelo tio (que nãotinha parente vivo alémdo sobrinho), e elas, portanto, sempre encararam essedeserdamentocomoumassuntoresolvido–tãobitoladaseramasideiasdessascriaturas que habitavamRattleborough;mas a observação do “VelhoCharley”repôs de imediato, na mente de todos, a consideração desse ponto, e assim

permitiu a todosver apossibilidadedeque as ameaças tivessemsidomais doque uma ameaça. E logo a seguir surgiu a lógica questão cui bono? – umaquestão que tendia, até mais do que o colete, a associar ao jovem o terrívelcrime.Eaqui,paraqueeunãosejainterpretadomal,permitam-medivagarporum momento, apenas para observar que a frase em latim que empreguei,extremamentebreveesimples,éinvariavelmentemaltraduzidaemalentendida.“Cuibono”,emtodosos romancesdeprimeira linhaeondemais for–nosdasra. Gore, por exemplo (a autora de “Cecil”), uma dama que cita todas aslínguas, do caldaico ao chickasaw, e é auxiliada em seu saber, “quandonecessário”,numplanosistemático,pelosr.Beckford–,emtodososromancesde primeira linha, afirmo, dos de Bulwer e Dickens aos de Turnapenny eAinsworth[1],asduaspalavrinhaslatinascuibonosãoapresentadascomo“paraque propósito” ou (como emquo bono) “para que benefício”. Seu verdadeirosignificado,todavia,é“paravantagemdequem”.Cui,paraquem;bono,servedebenefício. É uma expressão puramente legal, aplicável precisamente em casostaiscomooqueestamosconsiderando,nosquaisaprobabilidadedealguémseroexecutantedeumaaçãodependedaprobabilidadedeobenefícioserviraesseindivíduoouadvirdoqueseobtevecomaação.Ora,nopresentecaso,aquestãocuibonocomprometiademaneiramuitoacentuadaosr.Pennifeather.Seutiooameaçara,depoisdefazerumtestamentoemseufavor,comdeserdamento.Masa ameaça, na verdade, não fora levada adiante; o testamento original, ao queparecia,nãoforaalterado.Tivessesidoalterado,oúnicomotivopresumívelparaassassinato, de parte do suspeito, teria sido omotivo ordinário da vingança; emesmoamotivaçãoteriasidocontrapesadapelaesperançaderestabelecerboasrelações com o tio. Com o testamento não tendo sido alterado, porém, e aameaça da alteração ainda suspensa sobre a cabeça do sobrinho, surge deimediato amais forte instigação possível para a atrocidade; assim concluíram,muitosagazes,osvalorososcidadãosdeRattleborough.

O sr. Pennifeather, consequentemente, foi preso ali mesmo, e o grupo,depoisdeprosseguirumpoucomaisnabusca,dirigiu-separacasa,comelesobcustódia.Nocaminho,entretanto,houveoutracircunstânciaqueapontavaparaaconfirmaçãodasuspeitaaventada.Osr.Goodfellow,cujozeloolevavaaestarsempre um pouco na frente do grupo, foi visto, de repente, correndo adiantealguns passos, curvando-se e então, ao que parecia, apanhando um objetopequenonarelva.Tendoexaminadorapidamenteoobjeto,elefoivisto,também,fazendo uma espécie de tentativa interrompida de escondê-lo no bolso de seucasaco;massuaação foipercebida,comoafirmei,eadequadamente impedida,

quandosedescobriuqueoobjetoapanhadoeraumaadagaespanholaqueumadúziadepessoasreconheceudeimediatocomopertencenteaosr.Pennifeather.Além domais, as iniciais dele estavam gravadas no cabo.A lâmina da adagaestavadesembainhadaecobertadesangue.

Nãorestavamaisdúvidaquantoàculpadosobrinho,elogoapóschegaraRattleboroughelefoilevadoatéummagistradoparainterrogatório.

Aqui as coisas outra vez tomaram um rumo mais do que adverso. Oprisioneiro, sendo questionado quanto ao seu paradeiro na manhã dodesaparecimentodosr.Shuttleworthy,teveaabsolutaaudáciadereconhecerqueexatamente naquela manhã ele saíra com seu rifle, para caçar cervos, nasredondezas imediatas do charco em que o colete manchado de sangue foradescobertograçasàperspicáciadosr.Goodfellow.

Esteúltimoentãoseapresentoue,comlágrimasnosolhos,pediupermissãoparaserinterrogado.Declarouqueumarigorosanoçãodorespeitoquedeviaaseu Criador, não menos que a seus irmãos humanos, não permitia que eleseguisse em silêncio.Até ali, amais sincera afeiçãopelo jovem (nãoobstantequeestetenhaagidomalcomele,osr.Goodfellow)oinduziraarecorreratodasashipótesesqueaimaginaçãopodiasugerir,nopropósitodetentardarcontadoquepareciasuspeitonascircunstânciasquedepunhamtãoseriamentecontraosr.Pennifeather; mas agora essas circunstâncias eram simplesmente convincentesdemais,condenatóriasdemais;elenãomaishesitaria–contariatudoquesabia,embora o seu coração (o do sr. Goodfellow) fosse absolutamente se fazer empedaços na tentativa. Ele prosseguiu e relatou que, na tarde do dia anterior àpartidadosr.Shuttleworthyparaacidade,aquelevalorosoanciãomencionaraaseusobrinho,emsuapresença(adosr.Goodfellow),queseuobjetivoemiràcidade namanhã seguinte era o de fazer o depósito de uma somade dinheiromais alta do que o normal no banco “Farmer’s and Mechanic’s”, e que alimesmo, então, o citado sr. Shuttleworthy havia distintamente declarado a seucitado sobrinho sua determinação irrevogável de anular o testamento feitooriginalmente e de não lhe deixar nem um tostão. Ele (a testemunha) entãosolenemente apelou ao acusado que afirmasse se o que ele (a testemunha)acabara de afirmar era ou não era a verdade em todos os seus detalhessubstanciais. Para grande assombro de todos os presentes, o sr. Pennifeatheradmitiucomfranquezaqueera.

Omagistradoentãoconsiderouseudeverenviaralgunspoliciaisparaumabuscanoquartodoacusado,nacasadotio.Dessabuscaelesretornaramquaseimediatamente, de posse da bem conhecida caderneta de bolso vermelha,

encadernadaemcouroeaço,queovelhosenhortinhaohábitodecarregardesdemuitos anos. Seu valioso conteúdo, no entanto, havia sido surrupiado, e omagistrado tentou, emvão, arrancar do prisioneiro que uso fora feito dele, ouonde estava escondido. De fato, ele obstinadamente negava ter qualquerconhecimentodoassunto.Ospoliciais,alémdisso,descobriram,entreacamaeo colchão do desafortunado, uma camisa e um lenço de pescoço, ambosmarcadoscomasiniciaisdeseunomeehorrendamenteenodoadoscomosanguedavítima.

A essa altura dos acontecimentos foi anunciado que o cavalo do homemassassinadoacabaradeexpirar,noestábulo,devidoaosefeitosdoferimentoquerecebera,efoipropostopelosr.Goodfellowqueumexamepostmortemdabestadeveria ser efetuado imediatamente, como intuito de, se possível, encontrar abala.Oexamefoifeitodeacordo;e,comoqueparademonstrar,foradequestão,a culpabilidade do acusado, o sr. Goodfellow, depois de considerávelinvestigaçãonacavidadedopeitodoanimal,foicapazdelocalizareextrairumprojétildetamanhoextraordinário,oqual,comosedescobriusobteste,adaptou-secomprecisãoaocalibredorifledosr.Pennifeather,aomesmotempoqueeramaior que os calibres das armas de todos os outrosmoradores da vila ou dasredondezas.Paratornaraquestãoaindamaisindiscutível,dequalquermodo,oprojétil,comosepôdever,tinhaumafalhaousulcoquefaziaânguloretocomasuturanormal;e,segundoumexame,osulcocorrespondiaprecisamenteaumasaliência ou elevação acidental nummolde que o próprio acusado reconheceucomo sendo de sua propriedade. Com a descoberta do projétil, o magistradointerrogadorserecusouaouvirqualquertestemunhoadicionaleimediatamenteencaminhou o prisioneiro para julgamento – declinando resolutamente deestabelecer qualquer fiançano caso, emborao sr.Goodfellowprotestasse comveemênciacontratalseveridadeeseoferecessecomofiadordequalquerquantiaque fosse requerida. Essa generosidade de parte do “Velho Charley” estavaapenasemconformidadecomoteorgeraldesuacondutaafávelecavalheirescaaolongodetodooperíododesuaestadaemRattleborough.Nopresentecaso,ovalorosohomemficou tão inteiramentearrebatadopelocalor excessivode suasolidariedadequepareceuteresquecidoporcompleto,quandoseofereceuparapagar a fiança de seu jovem amigo, que ele mesmo (o sr. Goodfellow) nãopossuíanemoequivalenteaummíserodólardepropriedadenafacedaTerra.

O restante do processo condenatório pode ser facilmente previsto. O sr.Pennifeather,diantedabarulhentaexecraçãodetodaRattleborough,foilevadoajulgamento assim que possível em sessão criminal, e a cadeia de evidências

circunstanciais(reforçadasqueforamporalgunsfatoscondenatóriosadicionais,queanoçãodeescrúpulosdosr.Goodfellowoimpediadesonegaraotribunal)foiconsideradatãosólidaecompletamenteconclusivaqueosmembrosdojúri,sem se levantar de seus assentos, anunciaram de pronto um veredicto de“culpado por assassinato em primeiro grau”. Logo a seguir o pobre infelizrecebeusentençademorteefoireconduzidoàprisãodocondadoparaaguardarainexorávelvingançadalei.

Nesse meio-tempo, o nobre comportamento do “Velho CharleyGoodfellow” o tornara duas vezes mais estimado pelos honestos cidadãos davila.Ele se firmoucadavezmais comoogrande favoritode todos,dezvezesmais do que antes; e, como resultado natural da hospitalidade com que eratratado, relaxou, sem alternativa, forçosamente, os hábitos extremamenteparcimoniosos que a pobreza o obrigara a observar até ali, e muitofrequentementeorganizavapequenasréunionsemsuaprópriacasa,nasquaisaespirituosidadeeadiversãoreinavamsupremas–estorvadasumpouco,éclaro,pelaocasionallembrançadodestinoadversoemelancólicoquepairavasobreosobrinhodofalecidoepranteadoamigodopeitodogenerosoanfitrião.

Num belo dia, este magnânimo ancião foi agradavelmente surpreendidopelorecebimentodaseguintecarta:

Ilmo.sr.CharlesGoodfellow:CaroSenhor–Emconformidadecomumpedidoencaminhadoanossafirmacercadedoismeses

atráspornossoestimadocorrespondente,sr.BarnabasShuttleworthy,tivemosahonradedespacharnestamanhã,paraoseuendereço,umacaixadupladeChâteauMargaux,damarcadoantílope,selovioleta.Caixanumeradaemarcadacomoselênamargem.

Permanecemos,senhor,seusobedientesservidores,

HOGGS,FROGS,BOGS&Co.Cidadede...,21deJunho,18....P.S.Acaixachegaráporcarroçae lheseráentregueumdiadepoisdorecebimentodestacarta.

Nossosrespeitosaosr.Shuttleworthy.H.F.B.&Co.

O fato é que o sr. Goodfellow, desde a morte do sr. Shuttleworthy, nãomantinhanenhumaexpectativadejamaisreceberoprometidoChâteauMargaux;e ele, portanto, o via agora como uma espécie de desígnio especial daProvidência em seu benefício. Ficou bastante deleitado, é claro, e, naexuberânciadesuaalegria,convidouumgrandegrupodeamigosparaumpetitsoupernodia seguinte, comopropósitodedesarrolharospresentesdobomevelhosr.Shuttleworthy.Nãoquetenhaditoalgumacoisaacercado“bomevelho

sr. Shuttleworthy” quando fez os convites. O fato é que pensou bastante econcluiuquenãodiriaabsolutamentenada.Nãomencionouaninguém–sebemme lembro – que recebera uma caixa de Château Margaux de presente. Elemeramentepediuaseusamigosquecomparecessemeoajudassemabeberalgodequalidadefinaenotáveledericosabor,algoqueencomendaradacidadeunsdoismesesatrásequereceberianodiaseguinte.Muitasvezesquebreiacabeçatentandoimaginarporqueo“VelhoCharley”chegaraàconclusãodenãodizernadasobretersidopresenteadocomvinhoporseuvelhoamigo,masnuncapudeentenderaocertoseusmotivosparasilenciar,emboraeletivessealgummotivo,excelenteemuitomagnânimo,semdúvida.

O dia seguinte por fim chegou, com um enorme e altamente respeitávelgrupodepessoasnacasadosr.Goodfellow.Defato,metadedavilaestavalá–eu mesmo em meio ao grupo –, mas, para grande embaraço do anfitrião, oChâteauMargauxsóchegoubem tarde,quandoosconvidados jáhaviam feitoampla justiça à suntuosa ceia fornecida pelo “Velho Charley”. O vinho afinalchegou,noentanto–haviaumacaixamonstruosamentegrandeparaele,também–,e,comoogrupotodoestavanumbomhumorexcessivo,foidecidido,neminecontradicente[2], que a caixa devia ser colocada sobre a mesa e que seuconteúdodeviaserdesentranhadosemdemora.

Dito e feito. Empresteimeu auxílio; e num triz botamos a caixa sobre amesa,emmeioatodasasgarrafasetaças,muitasdasquaisforamdestruídasnaação turbulenta. O “Velho Charley”, que estava um tanto inebriado eexcessivamente vermelho no rosto, então sentou-se, com ar de dignidadesimulada, à cabeceira da mesa, e a golpeou furiosamente com uma jarra,solicitando aos presentes que mantivessem a ordem “durante a cerimônia daexumaçãodotesouro”.

Depois de alguma vociferação, o silêncio foi restabelecido por completo,afinal, e, como acontece commuita frequência em casos similares, seguiu-seumaquietudeprofundaenotável.Sendoentãochamadoaabriràforçaatampa,obedeci, é claro, “com infinito prazer”. Enfiei um formão, dei umas poucaspancadas leves com ummartelo e a parte de cima da caixa voou para longesúbitaeviolentamente,enomesmoinstantesaltouparaumaposiçãosentada,defrenteparao rostodoanfitrião,o ferido,sangrentoequasepútridocadáverdoassassinadosr.Shuttleworthy,opróprio.Eleolhoudiretoparaosemblantedosr.Goodfellow por alguns momentos, de forma fixa e pesarosa, com seus olhosdeteriorados e sem lustro, proferiu, devagar, mas de maneira clara eimpressionante,aspalavras“Tuésohomem”,eentão,caindoporsobreumlado

da caixa como que completamente satisfeito, estendeu seusmembros agitadossobreamesa.

Acenaqueseseguiuéabsolutamenteindescritível.Acorridaemdireçãoàsportas e às janelas foi algo espantoso, e muitos dos mais robustos homensnaquela saladesmaiaramnoato,depuro terror.Depoisquepassouo irromperinicial daquelemedo aterrador, turbulento e ruidoso, porém, todos os olhos sevoltaramparaosr.Goodfellow.Mesmoqueeuvivamilanos,nuncaesquecereiaagoniamortíferaqueseestampouemseurostoespectral,tornadotãorubicundo,naquela noite, pelo triunfo e pelo vinho. Por vários minutos ele permaneceusentadoe rígidocomoumaestátuademármore;osolhospareciam,no intensovaziodesuaexpressão,voltadosparadentroeabsorvidosnacontemplaçãodesua própria alma assassina e miserável. Por fim, o olhar pareceu dispararsubitamente para o mundo externo quando, com um movimento ligeiro, elepuloudesuacadeirae,deixandocabeçaeombroscaírempesadamentesobreamesa,emcontatocomocadáver,botouparafora,deformarápidaeveemente,umadetalhadaconfissãodocrimemedonhopeloqualosr.Pennifeatherestavaentãoaprisionadoecondenadoamorrer.

O que ele relatou foi, em essência, isto: ele seguiu sua vítima até asproximidades do charco; ali, atirou no cavalo com uma pistola; executou ocavaleiro com a coronha; tomou posse da caderneta; e, supondo que o cavaloestivessemorto,arrastou-o,comgrandeesforço,atéavegetaçãoespinhosajuntoà água. Sobre seu próprio animal ele jogou o cadáver do sr. Shuttleworthy, eassim o levou a um esconderijo seguro, avançando uma longa distância paradentrodamata.

O colete, a adaga, a caderneta e o projétil ele os deixou onde foramencontrados, com vistas a se vingar do sr. Pennifeather. Também tramou adescobertadolençoedacamisamanchados.

Maisparaofimdessarécitadegelarosangue,aspalavrasdodesgraçadocriminosofalharameperderamtimbre.Quandoorelatoafinalseextinguiu,eleselevantou,cambaleouparatrás,afastando-sedamesa,ecaiu–morto.

Os meios pelos quais essa oportuna confissão foi extorquida, emboraeficientes,foramnaverdadesimples.Oexcessodefranquezadosr.Goodfellowmerevoltaraemederasuspeitasdesdeocomeço.Euestiverapresentequandoosr.Pennifeatherbateranele,eaexpressãodemoníacaqueentãotomoucontadeseusemblante,emboramomentânea,assegurou-mequesuaameaçadevingançaseria, se possível, rigorosamente cumprida. Assim, pude ver as manobras do“Velho Charley” sob uma luz bem diversa daquela que orientava os bons

cidadãos de Rattleborough. Percebi de imediato que todas as descobertasincriminadorassurgiam,fossediretaouindiretamente,delemesmo.Masofatoqueabriudetodoosmeusolhosparaosentidoverdadeirodocasofoiaquestãodoprojétil,encontradopelosr.G.nacarcaçadocavalo.Eunãotinhaesquecido,embora o povo de Rattleborough tivesse, que havia um buraco onde a balaentraranocorpodocavaloeoutroondeelasaíra.Seelafoientãoencontradanoanimal, depois de ter saído dele, pareceu-me claro que só podia ter sidodepositada pela pessoa que a encontrara. A camisa e o lenço manchados desangueconfirmavama ideiasugeridapeloprojétil;poisosangue, submetidoaexame, revelou-se ser nadamais do que puro clarete.Quando passei a pensarnessascoisas,etambémnorecenteaumentodaliberalidadeedosgastosdepartedosr.Goodfellow,comeceiaalimentarumasuspeitaqueeramuitoforte,apesardequeamantivesseemsegredo.

Nessemeio-tempo,deiinícioaumarigorosabuscaparticularpelocadáverdosr.Shuttleworthy,e,poróbviosmotivos,fizbuscasemregiõesquefossemasmais divergentes possíveis daquelas às quais o sr. Goodfellow conduzira seugrupo.Oresultadofoique,apósalgunsdias,topeicomumvelhopoçosecocujaboca estava quase escondida pelas plantas; e ali, no fundo, encontrei o queprocurava.

Bem,ocorreuqueeuouviraporcimaaconversaentreosdoiscamaradas,quandoosr.GoodfellowderajeitodeinduzirseuanfitriãoaprometerumacaixadeChâteauMargaux.Agiapartirdessapista.Arranjeiumabarbatanadebaleiabemrija,enfiei-apelagargantadocadáveredepositeiestenumavelhacaixadevinho – tomando o cuidado de vergar o corpo demodo a vergar a barbatanajunto. Dessa maneira, tive de usar força para pressionar a tampa para baixoenquantoaafixavacompregos;eprevi,éclaro,que,assimquea tampafosseremovida,elasaltariaparalongeeocorpoparacima.

Tendo preparado a caixa assim,marquei, numerei e enderecei-a como jádisse;eentão,depoisdeescreverumacartaemnomedosmercadoresdevinhocomosquaisosr.Shuttleworthylidava,deiinstruçõesameucriadopara,aumdadosinalmeu,carregaracaixaatéaportadosr.Goodfellownumcarrinhodemão.Quanto às palavras que eu pretendia que o cadáver falasse, apostei compresunção nas minhas habilidades de ventríloquo; quanto a seu efeito, conteicomaconsciênciadodesgraçadoassassino.

Creioquenãohánadamaisparaexplicar.O sr.Pennifeather foi soltonomesmo instante, herdou a fortuna de seu tio, fez proveito das lições daexperiência,virouumanovapáginaetocou,felizparasempre,umanovavida.

[1]Cecil,ortheAdventuresofaCoxcomb(1841):oromancedemaiorsucessodaprolíficaescritorainglesaCatherineGore;WilliamBeckfordéomilionárioexcêntricoeaventureiroautordeVathek(1786);EdwardBulwer-Lytton (1803-1873) e William Harrison Ainsworth (1805-1882) são também, como Dickens,autores ingleses;“Turnapenny”podedizer respeitoaopersonagemTurnpenny,deRedgauntlet (1824),deWalterScott.(N.T.)[2]Expressãolatina,“ninguémdissentindo”,“semoposição”.(N.T.)

ODEMÔNIODAIMPULSIVIDADE

Naconsideraçãodasfaculdadesedos impulsos,dosprimamobilia[1]daalmahumana,osfrenologistas[2]falharamemabrirespaçoparaumapropensãoque,embora obviamente existente como sentimento radical, primitivo e irredutível,foidomesmomodonegligenciadapor todososmoralistasqueosprecederam.Napuraarrogânciadarazão,todosnósfomosnegligentes.Temospadecidosuaexistênciaparaescapardenossossentidos,unicamenteporfaltadeconvicção–oudefé;sejafénaRevelação,sejafénaCabala.Aideiadapropensãonuncanosocorreusimplesmenteemfunçãodesuasuper-rogação.Nãovíamosnecessidadeparao impulso–paraapropensão.Nãoconseguíamosperceberqualeraoseusentido.Nãoconseguíamosentender,oumelhor,nãoteríamosentendido,tivessea noção deste primum mobile[3] alguma vez se apresentado; não teríamosentendidodequemaneiraelapoderiaserempregadaparapromoverosobjetivosda humanidade, os temporários ou os eternos. Não há como negar que afrenologiae,emgrandemedida,ametafísicaforamforjadasapriori.Ohomemintelectualoulógico,maisdoqueohomemcompreensivoouobservador,pôs-seaimaginardesígnios–aditarpropósitosparaDeus.Tendoassimsondado,parasua satisfação, as intenções de Jeová, dessas intenções ele construiu seusinúmeros sistemas mentais. A respeito da frenologia, por exemplo,determinamosprimeiro,demodobastantenatural,queeradesígniodaDeidadeque o homem devesse comer. Então conferimos ao homem um órgão daalimentividade, e esse órgão é o flagelo com o qual a Deidade compele ohomem,queiraeleounãoqueira,acomer.Emsegundolugar,tendoatribuídoàvontade de Deus que o homem devesse dar continuidade a sua espécie,descobrimos um órgão da amatividade, logo a seguir. E assim com acombatividade, com a idealidade, com a causalidade, com a construtividade –assim,pararesumir,todoórgãorepresentaumapropensão,umsentimentomoralouumafaculdadedopurointelecto.E,nessesarranjosdosprincipia[4]daaçãohumana,osseguidoresdeSpurzheim[5],estivessemcertosouerrados,naparteounotodo,apenasforamatrás,emprincípio,daspegadasdeseuspredecessores,

deduzindoeestabelecendo todasascoisasapartirdopreconcebidodestinodohomem,enoterrenodosobjetivosdeseuCriador.

Teriasidomaissensato,teriasidomaisseguroutilizarumaclassificação(seclassificaréumanecessidade)quetomasseporbaseoqueohomemcomumenteou por ocasiões fizesse, e estivesse sempre fazendo ocasionalmente, antes detomarporbaseoquejulgamosquesejaoqueaDeidadequerqueohomemfaça.Se não somos capazes de compreender Deus em suas obras visíveis, como ofaremos, então, em seus pensamentos inconcebíveis, que dão existência àsobras? Se não somos capazes de compreendê-lo em suas criaturas objetivas,comoofaremos,então,emsuasdisposiçõesessenciaisefasesdecriação?

Oraciocínioindutivo,aposteriori,terialevadoafrenologiaaadmitir,comoum princípio inato e primitivo da ação humana, uma coisa paradoxal quepodemoschamardeimpulsividade,nafaltadeumtermomaiscaracterizante.Nosentidoquelhedou,é,defato,ummobilesemmotivo,ummotivonãomotivirt.[6] Sob sua sugestão agimos sem objetivo compreensível; ou, se isso forentendidocomoumacontradiçãoemtermos,podemosporenquantomodificaraproposiçãoedizerque,sobsuasugestão,nósagimosseguindoarazãoquenãodeveríamosseguir.Emteoria,nenhumarazãopodesermais irracional;masnaverdade não há nenhuma que seja mais forte. Em certas mentes, sob certascondições,elasetornaabsolutamenteirresistível.Tãocertocomoeurespiroéofatodequeacertezaarespeitodoqueécertoouerradoemdeterminadaaçãoémuitasvezesaúnicaforça,imbatíveleisolada,quenosimpeleaprosseguirnaação.Eessaopressivatendênciadefazeromalpelomalnãoadmitiráanáliseenemdecomposiçãoemelementosulteriores.Éumimpulsoradical,primitivo–elementar.Dirão,eusei,quequandopersistimosematosporsentirmosquenãodeveríamospersistirneles,nossacondutanãopassadeumamodificaçãodaquelaque ordinariamente nasce da combatividade da frenologia. Mas uma rápidareflexão demonstrará a falácia dessa ideia. A combatividade frenológica temcomoessênciaanecessidadedeautodefesa.Énossasalvaguardacontradanos.Seuprincípiodizrespeitoaonossobem-estar;eassimodesejodeestarbeméestimuladojuntocomseudesenvolvimento.Seguedaíqueodesejodeestarbemprecisa ser estimulado junto com qualquer princípio que sejameramente umamodificação da combatividade, mas no caso daquela coisa que chamo deimpulsividadeodesejodeestarbemnãoapenasnãoédespertadocomooqueexisteéumsentimentofortementeantagonístico.

Umapeloaocoraçãodoindivíduoé,nofimdascontas,amelhorrespostaaosofismarecém-mencionado.Ninguémqueconsultaemconfiançaequestiona

paravalersuaprópriaalmaestarádispostoanegarocaráter totalmenteradicaldapropensãodequefalamos.Elanãoéantes incompreensíveldoquedistinta.Nãoháhomemquevivaquenãotenhasidoimpelidoemalgummomento,porexemplo,pelosincerodesejodeatormentaruminterlocutorcomcircunlóquios.O sujeito que fala tem noção de que não agrada; ele tem toda intenção deagradar; ele costuma ser breve, preciso e claro; a linguagemmais luminosa elacônicalutaparaserproferidaporsualíngua;ésócomgrandedificuldadequeelesereprimeenãodávazãoaela;eletemeeprotestacontraaraivadosujeitoaquem se dirige; e, no entanto, o vence o pensamento de que, com certasinvoluçõeseparênteses,talraivapodeserengendrada.Essepensamentoisoladoé suficiente.O impulso cresce e vira vontade, a vontade vira desejo, o desejovira ânsia incontrolável e a ânsia (para profundo remorso e mortificação dofalante,numdesafioatodasasconsequências)éatendida.

Temos diante de nós uma tarefa que deve ser executada o quanto antes.Sabemos que será desastroso protelar. A crise mais importante de nossa vidaclama,aosomde trombetas,porenergiaeporação imediata.Afogueamo-nos,consumimo-nosnoímpetodecomeçarotrabalho,enaantecipaçãodogloriosoresultado nossa alma se incendeia por inteiro. Isso deve, precisa ser levado acabohoje,enoentantodeixamostudodeladoatéamanhã,eporquê?Nãoháresposta, exceto que nos sentimos impulsivos, usando a palavra sem nenhumacompreensão do princípio. O amanhã chega; e com ele uma ansiedade maisimpaciente para realizar nossa obrigação,mas com esse poderoso aumento daansiedade nos alcança, também, um anseio sem nome, uma vontadepositivamentetemível,porqueinsondável,deprotelar.Esseanseioganhaforçaeo tempo se esvai. A última hora para agir está chegando. Trememos com aviolênciadoconflitoquetemospordentro–dodefinidocontraoindefinido–dasubstânciacontraasombra.Porém,seadisputaavançoudessamaneiraatéaqui,éasombraqueprevalece–lutamosemvão.Orelógiosoa,éodobrefúnebredenossobem-estar.Aomesmotempo,éocantardogaloparaofantasmaqueportantotemponosencheudepavor.Ofantasmavoa–desaparece–estamoslivres.Avelhaenergiaretorna.Vamostrabalharagora.Não,émuitotarde!

Estamos na beira de um precipício. Espiamos para dentro do abismo –ficamos tontos e nauseados. Nossa primeira reação é recuar do perigo.Inexplicavelmente, permanecemos imóveis. Muito aos poucos nossa tontura,nossanáuseaenossohorrorsefundemnumanuvemdesensaçõesindescritíveis.Gradativamente, num ritmo aindamais imperceptível, essa nuvem assume umformato, como ocorria com o vapor que emanava da garrafa da qual surgia o

gênionasMileUmaNoites.Masnessanossa nuvem, sobre a extremidadedoprecipício,ganhapalpabilidadeumaformamuitomaisterríveldoquequalquergêniooudoquequalquerdemôniodefábula,enoentantoelanãopassadeumpensamento,emborasejaumpensamentotemívelequearrepiaatéameduladenossosossoscomaferocidadedodeleitedeseuhorror.Éapenasaideiasobreoqueseriamnossassensaçõesduranteaarrebatadoraprecipitaçãodeumaquedaapartir de tal altura. E essa queda, essa aniquilação impetuosa, pela imperiosarazãodequeelaenvolveaimagemmaismedonhaeasquerosadetodasasmaismedonhas e asquerosas imagens de morte e sofrimento que jamais seapresentaram a nossa imaginação – precisamente por essa causa nós agora adesejamos da maneira mais vívida. E porque nossa razão nos dissuade comviolênciadepassardabeirada,porissomesmo tantomais impetuosamentenosaproximamosdela.Nãohánanaturezapaixãotãodiabólicaeimpacientequantoa paixão de quem, tremendo na beira de um precipício, cogita assim ummergulho. Ceder por um instante que for, de qualquer maneira, a essepensamento significaestar inevitavelmenteperdido;poisa reflexãoapenasnosaconselhaadesistir,eporissoafirmoqueoproblemaéquerecuaréjustamenteoquenãoconseguimosfazer.Senãoháumbraçoamigoquenosimpeça,ousefalhamos num esforço súbito de recuar e cair para trás, nós mergulhamos noabismoesomosdestruídos.

Comoquerqueexaminemosaçõessemelhantes,veremosqueelasresultamunicamente do espírito da Impulsividade. Perpetramos tais ações porquesentimos quenão deveríamos fazê-lo.Além ou aquém disso não há princípiointeligível;epoderíamos,de fato,atribuiressa impulsividadeauma instigaçãodireta do belzebu, não fosse que ela opera ocasionalmente, como se sabe, napromoçãodobem.

Já falei bastante, de modo que, em certa medida, posso responder a suapergunta,possoexplicaravocêporqueestouaqui,possoindicaravocêalgoquetenhaaomenosumdébilaspectodemotivoparaofatodeeuestarusandoestesgrilhões, e para que eu habite esta cela dos condenados.Não fosse eu prolixoassim, você poderia não ter me compreendido em nada ou, como a plebecanalha,poderiaterpensadoquesoulouco.Comonãoéocaso,vocêperceberácom facilidade que sou uma das incontáveis vítimas do Demônio daImpulsividade.

É impossível que alguma façanha pudesse ser executada com umadeliberaçãomais perfeita. Por semanas, pormeses,meditei sobre osmeios doassassinato.Rejeiteimilplanos,porquearealizaçãodelesimplicavaumachance

de descoberta. Por fim, lendo umas memórias francesas, encontrei um relatosobreumadoençaquasefatalqueseabateusobreMadamePilau[7],pelaaçãodeuma vela acidentalmente envenenada. A ideia assaltou minha imaginação deimediato. Eu sabia que minha vítima tinha o hábito de ler na cama. Sabia,também, que seu apartamento era estreito e mal ventilado. Mas não precisoaborrecê-lo comdetalhes impertinentes.Não preciso descrever quais foramosartifíciossimplescomquesubstituí,emseucastiçaldequarto,aveladeceraqueali achei por uma fabricada por mim. Namanhã seguinte, ele foi encontradomorto em sua cama, e o veredicto domédico-legista foi: “Morte por visita deDeus”.

Tendoherdadoseusbens,tudocorreubemparamimduranteanos.Aideiadeserdescobertonemumavezmepassoupelamente.Quantoaosrestosdavelafatal,eumesmooseliminara.Eunãodeixaranemumasombradeindíciopelaqual fosse possível me culpar ou sequerme fazer suspeito de ter cometido ocrime. É inimaginável a complexidade de sentimento e satisfação que semanifestava emmeupeito quando eu refletia sobreminha segurança absoluta.Por um período de tempo muito longo, estive sempre deliciado com essesentimento. Ele me fornecia mais deleite real do que todas as vantagensmeramente mundanas que advinham de meu pecado.Mas chegou afinal umaépocaapartirdaqualosentimentoaprazívelsetransformou,emgradaçõesmalemalperceptíveis,numpensamentoacossadoreatemorizante.Acossavaporqueassombrava.Eunãoconseguiamelivrardopensamentonemporuminstante.Éuma coisa bastante comum sermos assim incomodados pelo soar em nossosouvidos,ouantesemnossamemória,dealgumacançãoopressoraeordinária,oudealguns fragmentos inexpressivosdeumaópera.Enemficaremosmenosatormentadosseacançãoforemsiboa,ouseaáriadaóperativermérito.Dessamaneira, ocorreu que eu me via perpetuamente meditando sobre minhasegurançaerepetindoemvozbembaixaafrase:“Estouasalvo”.

Certo dia, enquanto saracoteava pelas ruas, estaquei no caminho aomurmurar,ameia-voz,essassílabascostumeiras.Numacessodepetulânciaeuasremodeleiassim:“Estouasalvo–estouasalvo–sim–desdequeeunãosejatoloobastanteparaconfessaroquefiz!”

Assim que acabei de pronunciar essas palavras, senti um arrepio geladosubiratéomeucoração.Eujáhaviaexperimentadoalgumasvezesessesacessosdeimpulsividade(cujarazãodesereutiveraalgumadificuldadeemexplicar)elembrei muito bem que em nenhum caso eu havia conseguido resistir aosataques.E agora aminha casual autossugestão, segundo a qual eu poderia ser

tolo o bastante para confessar o assassinato de que era culpado, vinha meconfrontar, como se fosse o próprio fantasma daquele que eu matara, e mechamarparaamorte.

A princípio, esforcei-me para expulsar esse pesadelo da alma. Eucaminhava vigorosamente – rápido – mais rápido – por fim corria. Senti umdesejo enlouquecedor de gritar. Cada onda sucessiva de pensamento meafundavanumnovo terror,pois,aidemim!,eucompreendiabem,muitobem,que pensar, na minha situação, era estar perdido. Acelerei ainda mais meuspassos.Dispareicomoumloucopelasviaspúblicascheiasdegente.Porfim,opopulacho se alarmouepassouameperseguir.Sentientão queminha sina seconsumaria.Semefossepossívelarrancarminhalíngua,euoteriafeito–masuma voz bruta ressoava em meus ouvidos – braços ainda mais brutos meseguravampelos ombros. Eume virei, ofeguei, sem fôlego. Por ummomentoexperimentei todas as angústias da sufocação; fiquei cego, e surdo, e tonto; eentão algumdemônio invisível, ao quepareceu, golpeou-menas costas comapalmadesuaenormemão.Osegredoaprisionadoportantotempoirrompeudeminhaalma.

Dizemquefaleinumaenunciaçãoclara,mascommarcadaênfaseepressaardente, como se temesse ser interrompido antes de concluir as breves masfecundasfrasesquemedespacharamparaocarrascoeparaoinferno.

Tendorelatadotudoqueeranecessárioparaamais inevitávelcondenaçãojudicial,caídesfalecido.

Mas por que seguir falando? Hoje eu uso estes grilhões, e estou aqui!Amanhãestareidesacorrentado!Masonde?

[1]Dolatim,“primeirosimpulsos”,“motivaçõesprimárias”.(N.T.)[2]Frenologia:adoutrinaoitocentistaque relacionaas faculdadese tendênciasmentaisaos tamanhosdedeterminadaspartesdocérebroeàsconfiguraçõesexternasdocrânio.(N.T.)[3]“Primeiroimpulso”.(N.T.)[4]“Princípios”.(N.T.)[5]JohannSpurzheim(1776-1832),frenologistaalemão.(N.T.)[6]GrafiadePoeparamotiviert,“motivado”emalemão.(N.T.)[7]A edição de dezembro de 1839 daNewMonthlyMagazine publicou um pequeno texto ficcional daescritoraCatherineGoresobreumaMadamePilau,aristocratanaParisdemeadosdoséculoXVII.(N.T.)

TextodeacordocomanovaortografiaTítulooriginal:TheGold-BugCapa:IvanPinheiroMachadoTradução:RodrigoBreunigTraduçãodeOmistériodeMarieRogêt:BiancaPasqualiniPreparação:PatríciaYurgeleBiancaPasqualiniRevisão:LiaCremoneseeTiagoMartins

Cip-Brasil.Catalogação-na-FonteSindicatoNacionaldosEditoresdeLivros,RJ

P798ePoe,EdgarAllan,1809-1849 O escaravelho de ouro e outras histórias [recurso eletrônico] / Edgar

AllanPoe;tradução de Rodrigo Breunig e Bianca Pasqualini. - Porto Alegre, RS :

L&PM,2011.recursodigital(ColeçãoL&PMPOCKET;v.912)Traduçãode:Thegoldbugandothertales Conteúdo parcial: O mistério de Marie Rogêt / Edgar Allan Poe ;

traduçãodeBiancaPasqualiniFormato:ePubISBN978.85.254.2294-1(recursoeletrônico) 1. Conto americano. 2. Livros eletrônicos. I. Breunig, Rodrigo. II.

Pasqualini,BiancaIII.Título.IV.Título:OmistériodeMarieRogêt.V.Série.11-0024.CDD:813CDU:821.111(73)-3

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ManuscritoencontradonumagarrafaOencontroMorellaAconversadeEiroseCharmionOmistériodeMarieRogêtOcoraçãodelatorOescaravelhodeouroUmcontodasMontanhasEscabrosasOsepultamentoprematuroAcaixaoblonga“Tuésohomem”Odemôniodaimpulsividade