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Proceedings of PNUM 2013, Coimbra, Portugal, 27 e 28 de Junho 27 de 2013 437 Feições morfológicas para a contaminação positiva: Évora Andrea GONÇALVES 1 ; Ana TOMÉ 2 ; Valério MEDEIROS 1,2 1 Instituto Superior Técnico da Universidade Técnica de Lisboa Av. Rovisco Pais, 1, Lisboa, 1049-001, Portugal +351 961485732, [email protected] (autor correspondente) 2 Instituto Superior Técnico da Universidade Técnica de Lisboa Av. Rovisco Pais, 1, Lisboa, 1049-001, Portugal +351 968154676, [email protected] 1,2 Universidade de Brasília (PPG/FAU), Instituto Central de Ciências – ICC Norte – Gleba A Campus Universitário Darcy Ribeiro – Asa Norte – Caixa Postal 04431 CEP: 70904-970 – Brasília/DF, Brasil +55 61 96495795, [email protected] Palavras-chave: contaminação positiva, regeneração urbana, morfologia urbana, Sintaxe Espacial, Évora. Resumo A pesquisa explora os processos de contaminação positiva inerentes ao fenómeno urbano, com origem em mudanças implementadas no património edificado. Por contaminação positiva entende-se a inter-relação de factores que permite a propagação dos efeitos de determinada acção, resultando numa transformação contínua afecta a um contexto cada vez mais abrangente do sistema urbano, com impacto na sua regeneração. Com referência a Évora (Portugal), é objectivo estudar a sua morfologia ao longo do tempo e identificar alterações na configuração espacial, acreditando que estas serão reflexo ou origem de novas dinâmicas urbanas que precisam ser melhor compreendidas. Partindo da premissa que essas alterações se disseminam no espaço e no tempo por meio de relações sociais, assume-se a leitura da contaminação urbana sob a perspectiva da Sintaxe Espacial, proposta por Hillier e Hanson [1], entendendo o conceito de atractividade do lugar segundo Whyte [2]. O uso das ferramentas configuracionais para a reconstrução da malha urbana tem vindo a revelar-se uma estratégia promissora para compreender os processos de transformação dos assentamentos humanos [3] e para mensurar o grau de afectação de intervenções na cidade ao explorar as relações inter-partes, colaborando

Feições morfológicas para a contaminação positiva: Évora

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Feições morfológicas para a contaminação positiva: Évora

Andrea GONÇALVES1; Ana TOMÉ2; Valério MEDEIROS1,2

1Instituto Superior Técnico da Universidade Técnica de Lisboa Av. Rovisco Pais, 1, Lisboa,

1049-001, Portugal

+351 961485732, [email protected] (autor correspondente) 2Instituto Superior Técnico da Universidade Técnica de Lisboa Av. Rovisco Pais, 1, Lisboa,

1049-001, Portugal

+351 968154676, [email protected] 1,2Universidade de Brasília (PPG/FAU), Instituto Central de Ciências – ICC Norte – Gleba A

Campus Universitário Darcy Ribeiro – Asa Norte – Caixa Postal 04431

CEP: 70904-970 – Brasília/DF, Brasil

+55 61 96495795, [email protected]

Palavras-chave: contaminação positiva, regeneração urbana, morfologia urbana, Sintaxe Espacial, Évora.

Resumo

A pesquisa explora os processos de contaminação positiva inerentes ao fenómeno urbano, com origem em mudanças implementadas no património edificado. Por contaminação positiva entende-se a inter-relação de factores que permite a propagação dos efeitos de determinada acção, resultando numa transformação contínua afecta a um contexto cada vez mais abrangente do sistema urbano, com impacto na sua regeneração. Com referência a Évora (Portugal), é objectivo estudar a sua morfologia ao longo do tempo e identificar alterações na configuração espacial, acreditando que estas serão reflexo ou origem de novas dinâmicas urbanas que precisam ser melhor compreendidas. Partindo da premissa que essas alterações se disseminam no espaço e no tempo por meio de relações sociais, assume-se a leitura da contaminação urbana sob a perspectiva da Sintaxe Espacial, proposta por Hillier e Hanson [1], entendendo o conceito de atractividade do lugar segundo Whyte [2]. O uso das ferramentas configuracionais para a reconstrução da malha urbana tem vindo a revelar-se uma estratégia promissora para compreender os processos de transformação dos assentamentos humanos [3] e para mensurar o grau de afectação de intervenções na cidade ao explorar as relações inter-partes, colaborando

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para o estudo da propagação dos efeitos associados à contaminação positiva.

Introdução

Actualmente, sob a perspectiva da sustentabilidade e da regeneração urbana, verifica-se um interesse crescente pela cidade herdada. Os assentamentos urbanos, enquanto objectos físicos e espaciais, constituem o produto dos processos funcionais ao longo da história e, simultaneamente, o meio de suporte desses mesmos processos e das relações, individuais ou colectivas, ao nível social, económico, cultural, espacial e político [4, 5]. Para aspectos morfológicos a sua forma é lida, por um lado, como o resultado de uma “evolução natural”, semelhante a um sistema vivo com capacidades de auto- regeneração [6]; por outro, mediante lógicas planeadas e implementadas por meio de projectos que evocam a eficácia da inter-relação entre estratégia global e intervenção local [7]. Em ambas as visões é aceite que acções introduzidas nos assentamentos urbanos têm o potencial de desencadear alterações nas dinâmicas correspondentes, promovendo um processo de disseminação no sistema (contaminação). Tal processo é aqui entendido como o relacionamento de factores ou elementos urbanos que permite a propagação dos efeitos de determinada acção, resultando numa transformação contínua associada a um contexto progressivamente maior do sistema urbano, com impacto na sua regeneração. No entanto, esta abordagem encontra-se por avaliar, não existindo, ainda, ferramentas metodológicas adequadas para alcançar esse objectivo [8]. A considerar tais premissas, este estudo integra uma investigação mais vasta que procura contribuir para o debate por meio da experimentação de casos de estudo em Évora, Portugal. São exploradas estratégias de regeneração urbana implementadas sobre o património edificado existente e que, através de acções pontuais, permitem alcançar melhorias significativas no ambiente urbano. Acredita-se que, ao reconhecer as dinâmicas de propagação inatas ao fenómeno urbano, é possível beneficiar das oportunidades para criar sinergias, efeitos de difusão e multiplicação de cada acção. Este artigo em particular, visa reflectir sobre os processos de contaminação urbana existentes nesta cidade, segundo a interpretação das alterações morfológicas experimentadas pela cidade de Évora ao longo do tempo, uma vez que o modo de expansão e transformação urbana pode comportar em si processos de contaminação. Para tal, desenvolve-se uma retrospectiva da expansão da cidade, balizada temporalmente pelo estágio em que o

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assentamento extravasou os limites da muralha medieval, ao ser efectivada a ligação ferroviária a Évora, em 1863. A investigação procura reflectir os eventos histórico-morfológicos mais significativos para a transformação da cidade. Assume-se que alterações identificadas na forma e configuração espacial sejam reflexo ou origem de novas dinâmicas urbanas, que precisam ser melhor compreendidas, colaborando para a perspectiva de propagação dos efeitos associados à contaminação positiva. Defende-se, que a avaliação desses processos no sistema urbano só será possível através de um estudo diacrónico do lugar.

Metodologia

A metodologia de abordagem compreendeu, primeiro, a recolha de registos cartográficos da cidade, representativos dos seus momentos mais significativos (cidade consolidada, intra-muros e extra-muros, e cidade emergente), de modo a construir uma retrospectiva sobre o processo de ocupação, transformação e expansão urbana. Esta fase contemplou ainda uma análise morfológica da cidade actual, nas suas componentes físicas, espaço-funcionais e sociais, assente no levantamento in loco, observações directas e registo fotográfico da vivência do espaço, e observações indirectas decorrentes da consulta de documentos narrativos. Partindo da premissa que os processos de transformação se disseminam no espaço e no tempo por meio das relações sociais que lhe são inerentes, assume-se a leitura diacrónica da contaminação urbana sob a perspectiva da Sintaxe Espacial, proposta por Hillier e Hanson [1], e entendendo o conceito de atractividade do lugar segundo Whyte [2]. Assim, numa segunda fase, com base na cartografia e documentos narrativos, recorreu-se a instrumentos configuracionais, de representação e análise sintáctica da malha urbana, explorando-se uma abordagem diacrónica e relacional das características morfológicas da cidade. Esta etapa incluiu a elaboração de mapas axiais e mapas de segmentos1, representativos dos espaços de possível circulação pedonal, numa lógica sequencial e afecta aos períodos mais significativos da transformação e expansão urbana. A representação através das ferramentas sintácticas partiu da cartografia digital cedida pela Câmara Municipal de Évora, com actualizações pontuais através de levantamentos in loco, obtendo-se a representação da cidade hoje, 2013. Em seguida elaboraram-se as representações dos momentos precedentes. As representações de 1990 e 1960 foram construídas com base em documentos gráficos e escritos descritivos, partindo do pressuposto que

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as relações entre a cidade intra-muros e a expansão extra-muros se estabelecem pelas estradas de ligação regional pré-existentes. As duas representações mais antigas correspondem à planta de 1882, desenvolvida por técnica de levantamento rudimentar “à vista e passo”, e à planta de 1928, que terá sido elaborada com apoio de fotografia aérea [9]. Conforme a perspectiva da Sintaxe Espacial, a disposição e inter-relação dos elementos constituintes dos sistemas espaciais são estudadas e descritas prioritariamente a partir das relações de natureza topológica, partindo do pressuposto que existe uma lógica social subjacente à organização do espaço baseada na hierarquia entre os elementos. Ou seja, as relações configuracionais revelam aspectos funcionais e sociais inerentes ao sistema urbano através do potencial2 de movimento, resultado da interpretação do vazio entre os objectos e respectivas inter-relações. O movimento é indicativo do aspecto relacional no espaço urbano e expressa como a forma interfere e sofre interferência na distribuição dos fluxos dentro de uma cidade [5], assumindo um papel preponderante no processo de disseminação das mudanças que se assistem no sistema. Por fim, procedeu-se à leitura comparada dos mapas e respectivo confronto dos resultados das análises sintácticas, estabelecendo ainda correlações com as capacidades atractivas de alguns trechos urbanos, como a diversidade de actividades e as feições qualitativas. Esta etapa foi crucial para os objectivos da investigação, já que os lugares e/ou elementos urbanos são diversos, correspondem a tipologias e a programas funcionais distintos, comportando, por sua vez, diferentes graus de influência nos processos de contaminação urbana. Neste contexto, as capacidades atractivas foram entendidas sob a perspectiva de Whyte [2], considerando aspectos como a acessibilidade, usos, imagem e sociabilidade. Procurou-se, assim, deduzir a distribuição dos usos e dos lugares mais atractivos com capacidade efectiva em contaminar os sistemas urbanos em que se inserem, conforme recomenda a Lógica Social do Espaço.

Abordagem metodológica ao caso de estudo: Évora

A cidade de Évora, localizada no interior do território português, caracteriza-se pela sua delimitação confinada que se desenvolveu pelo poder de atracção sobre as regiões envolventes, apresentando uma profunda dualização entre cidade consolidada e restante urbanização [8]. Vários autores definem Évora como sendo constituída pelo centro histórico e pelo somatório dos bairros existentes, distintos na sua dimensão, tipologia, função, época de construção e localização [10,11]. Na presente investigação

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é considerada a cidade delimitada pelo perímetro urbano distinguindo-se duas realidades: a cidade consolidada, da zona histórica e patrimonializada intra-muros e urbanizações adjacentes; e a cidade emergente, constituída pelo preenchimento descontínuo do território, através de loteamentos habitacionais e zonas industriais.

Expansão urbana extra-muros

Os mapas obtidos permitem visualizar a transformação de Évora ao longo do tempo, a considerar o acréscimo progressivo de novas áreas e o consequente rearranjo das relações espaciais. A análise axial (pedonal) possibilita avaliar e quantificar, diacronicamente, os potenciais padrões de movimento com base na configuração da malha urbana, o que permite o confronto das alterações em relação a aspectos reportados na história urbana. A Figura 1 representa o processo de expansão urbana da cidade, analisando a variável de integração ao nível global do sistema. O mapa de 1882 reflecte a primeira expansão para fora das muralhas, em direcção a sul, consequência da chegada do comboio à cidade. Os eixos da Avenida Barahona e Avenida dos Combatentes estabelecem a relação com a estação ferroviária a partir do Rossio e anteveriam uma expansão urbana nessa direcção. O mapa de 1928 destaca o preenchimento da malha urbana a sul, consolidando a área de ligação à estação ferroviária, e revela a expansão a norte pela implantação da fábrica de massas “Os Leões” e do ramal ferroviário de Mora.

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Figura 1. Expansão urbana da cidade de Évora (1882-2013) representada segundo os eixos de possível circulação pedonal (análise da variável

integração global HH).

Nos dois primeiros mapas (1882 e 1928) os eixos mais integrados coincidem com o primeiro perímetro da cidade correspondente ao núcleo romano, contemplando a Praça do Giraldo, e ainda o eixo que se dirige à Porta de Avis.

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O mapa de 1960 revela fortes alterações do núcleo mais integrado. Embora os eixos mais integrados identificados nos recortes anteriores continuem a apresentar elevados valores de integração, outros eixos, que se afastam do centro, ganham destaque denunciando uma deslocação do núcleo de integração (conjunto de eixos mais integrados, que correspondem às vias a vermelho). Este mapa revela também o processo de expansão urbana de Évora caracterizado pelo surgimento de bairros clandestinos no território periférico: tais áreas, ao apresentarem baixos valores de integração, demonstram o cenário de segregação face ao centro da cidade. Apesar desta situação, neste mapa já está representada a primeira área de expansão ordenada: a urbanização nº1, adjacente às muralhas, a leste, reflexo do plano de urbanização de Éttienne de Gröer, elaborado na década de 40 [12]. O mapa de 1990 veio consolidar o deslocamento dos eixos mais integrados para fora do centro histórico, localizados agora na estrada de circunvalação às muralhas que sofreu melhorias significativas, um aumento da sua extensão e um incremento dos respectivos níveis de conectividade. A importância destes eixos demonstra um atenuar gradual da dependência funcional da cidade em relação à cidade herdada, motivado pela deslocalização de alguns serviços e à abertura de superfícies comerciais na periferia [11]. O mapa é também representativo do ambiente pós-revolução, reflectindo na configuração espacial as primeiras iniciativas do poder local para resolver problemas de infra-estruturação afectos aos bairros clandestinos. Nessa década já está consolidado o Bairro da Malagueira, do arquitecto Siza Vieira, no âmbito das operações SAAL3, e outras urbanizações de iniciativa privada que, pela sua implementação, procuraram assimilar esses bairros clandestinos e promover características de continuidade e de urbanidade [10]. Por último, o mapa da cidade actual (2013) exprime novo deslocamento dos eixos mais integrados: consolida-se a estrada da circunvalação como contendo os eixos mais integrados e evidenciam-se os eixos da estrada de ligação a Lisboa. O deslocamento será fruto do crescimento do sistema e da implementação de uma nova via circular mais periférica estabelecendo a ligação à zona industrial, a sul, a reforçar os respectivos níveis de acessibilidade. Note-se ainda a introdução da Ecopista de Évora, consistindo na requalificação do antigo canal ferroviário em espaço de circulação pedonal/ciclovia, que promoveu uma aproximação dos bairros periféricos, a norte, à cidade consolidada (Figura 8). Para uma leitura numérica comparada, aplicou-se o artifício de normalização dos valores de integração para cada mapa, no que se convenciona denominar Base 100 [5]. A interpretação panorâmica permite

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verificar que o sistema à data de 1960 apresenta os níveis mais elevados de integração, reflectindo a forma como os respectivos elementos constituintes se relacionam: apesar do crescimento da cidade, mantêm-se adequados graus de relacionamento entre as partes constituintes do assentamento. A partir daí, e à medida que o sistema cresce, observa-se uma queda desses valores (Figura 2), o que revela uma progressiva fragmentação e descontinuidade, a converter-se na redução potencial da acessibilidade em Évora.

70

65

60

55

50

45

40 1882

1928 1960 1990 2013�

Figura 2. Valor de integração global ao longo da expansão urbana (para comparação recorreu-se à normalização de base 100).

A Figura 3 representa igualmente o processo de expansão urbana da cidade, com foco nas centralidades locais, através da análise da variável integração local (considerando um raio topológico até 5 eixos, avaliado como o de melhor correspondência funcional após realização de sucessivos testes). Do que se depreende da investigação, novas centralidades locais surgem ao longo do tempo, mas as pré-existentes tendem a manter-se, embora os eixos globalmente mais integrados se desloquem, afastando-se do centro.

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Figura 3: Expansão urbana da cidade de Évora (1882-2013) representada segundo os eixos de possível circulação pedonal (análise da variável integração local R5).

A interpretação axial permitiu analisar a variável inteligibilidade, correspondente à correlação entre as variáveis conectividade e integração

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global, quantificando o grau de dependência de uma variável em relação à outra. A inteligibilidade associa-se à expectativa de que linhas mais conectadas correspondam àquelas com valores de integração mais elevados, o que se converterá em estratégia para a leitura do grau de apreensão e legibilidade do assentamento, a implicar a orientabilidade do sistema. Ao longo do tempo os valores de inteligibilidade são bastante baixos, apresentando uma queda continuada à medida que a cidade se expande (Figura 4): a fragmentação também compromete a percepção do lugar. Apenas pontualmente se tem uma apreensão do sistema como um todo, nomeadamente em áreas elevadas que oferecem uma vista panorâmica sobre a cidade, ou em localizações da cidade periférica que permitam contacto visual com a cidade amuralhada, uma verdadeira referência à orientação no sistema. De resto, um transeunte facilmente se perde no labirinto de ruas que caracterizam a estrutura do núcleo urbano (consolidado e emergente). A análise axial também permitiu a avaliação da sinergia, que corresponde ao grau de sincronia entre as variáveis de integração global e integração local. Verifica-se novamente um pico nos valores referentes ao mapa de 1960. Desde então esse valor tem vindo a decrescer (Figura 4).

80%

70%

60%

50%

40%

30%

20%

10%

0% 1882 1928 1960 1990 2013

Inteligibilidade Sinergia

Figura 4. Inteligibilidade e sinergia ao longo do tempo (correlação entre variáveis através do coeficiente de determinação R2).

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A cidade hoje

Para uma análise mais precisa da cidade contemporânea, o estudo prosseguiu com a exploração do mapa de segmentos, de modo a analisar a sincronia com o movimento pedonal tendo em conta o tempo e a distância de deslocamento. A investigação permitiu uma previsão do padrão de movimento considerando mudanças de direcção, ou continuidades, e o seu desempenho na percepção da distância, factor importante na escolha/utilização de percursos [13]. Foram exploradas as variáveis integração e escolha, ao nível global do sistema e ao nível local com base num raio métrico de 1200m, correspondente a uma distância pedonal de 15 minutos. A cidade intra-muros, Património Mundial da UNESCO desde 1986, encontra-se em bom estado de conservação, possibilitando uma leitura clara da sua transformação e respectivos processos espaço-funcionais, desde a época romana à cidade medieval. Por meio das análises do mapa de segmentos (Figuras 5 a 8), percebe-se que os eixos de ligação entre as principais praças públicas da cidade medieval e conventos mantêm a sua importância ao corresponderem às ruas mais utilizadas e com maior densidade comercial. As características configuracionais e elevados valores de integração local propiciam um padrão de movimento mais intenso, contribuindo para a fixação de actividades comerciais diversificadas, preponderantes na geração de mais movimento, conferindo atractividade àquela área. Estes eixos foram recentemente intervencionados com a introdução de melhorias físicas que permitiram uma maior eficiência do respectivo desempenho, como é exemplo a Rua João de Deus (Figura 5). O centro histórico é a área que apresenta uma maior diversidade funcional e social. Embora, o parque edificado seja predominantemente habitacional, concentra os principais equipamentos de abrangência regional, nacional e internacional. Estes constituem pólos de atracção e geração de dinâmicas urbanas próprias com capacidade de contaminar abrangentemente o sistema, contribuindo para a heterogeneidade social existente. Importa referir que a Praça do Giraldo, apesar da deslocação do núcleo de integração para fora das muralhas, conforme análise axial, apresenta um elevado valor de escolha, comprovando o seu preponderante papel na atracção e distribuição do movimento (Figura 6).

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Figura 5. Rua João de Deus, intervencionada e pedonalizada no âmbito de acção de regeneração urbana (mapa de segmentos, integração local R1200m).

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Figura 6. Praça do Giraldo (mapa de segmentos, escolha local R1200m).

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Figura 7. Estrada de circunvalação ao núcleo histórico (mapa de segmentos, integração global).

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Figura 8. Ecopista de Évora, antiga fábrica “Os Leões”, actual Faculdade de Arquitectura (mapa de segmentos, escolha global).

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As urbanizações adjacentes à muralha, influenciadas física e visualmente pelo centro histórico e respectivos elementos monumentais, são também marcadas pela estrada de circunvalação que, com algumas excepções, representa uma verdadeira descontinuidade física na malha urbana, apesar dos seus elevados valores de integração (Figura 7). As excepções verificam- se pelas características configuracionais de continuidade e níveis de integração local elevados (Figura 5) e correspondem a bairros habitacionais com comércio e serviços de proximidade e a partir dos quais as ligações ao centro são suficientemente urbanizadas. A cidade emergente e periférica, com sectores físicos, espaço-funcionais e sociais distintos, apresenta uma deficiente articulação física e funcional com o restante sistema, o que nos induz à leitura da dualidade que caracteriza Évora. A variável integração ao nível global (Figura 7) corrobora esta observação, revelando que os eixos mais segregados se encontram na periferia da cidade. A variável escolha ao nível global do sistema revela que os segmentos potencialmente mais utilizados correspondem à circunvalação à muralha (Figura 8), coincidindo com alguns focos de actividade diversificada (Figura 7).

Conclusão

Os resultados obtidos para Évora reforçam que o uso de ferramentas configuracionais na reconstrução da malha urbana ao longo do tempo, baseada em registos cartográficos existentes, constitui uma estratégia promissora para compreender os processos de transformação dos assentamentos humanos [3]. Através dos confrontos entre mapas axiais e eventos histórico-morfológicos predominantes percebe-se a estreita relação entre alterações físicas e a conformação de novos arranjos espaciais que afectam a cidade daquela altura em diante, em graus variados. A pesquisa apresentada permitiu identificar áreas urbanas (centro histórico intra-muros, núcleo romano e artérias comerciais intra-muros), espaços públicos (Praça do Giraldo e Ecopista) e edifícios (monumentos, equipamentos colectivos e superfícies comerciais) de grande atractividade, quer pelas características qualitativas, ao nível físico e visual, quer pelas características configuracionais geradoras de movimento. Estas últimas correspondem a elevados níveis de acessibilidade e de utilização (conforme resultados da análise sintáctica), originando uma apropriação não consciente por parte dos indivíduos e numa forma de comportamento compatível com o potencial padrão de movimento [14]. Estes focos identificados correspondem ainda a áreas de grande diversidade de actividades, factor

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crucial para heterogeneidade dos seus utilizadores e para a vitalidade urbana [2,15]. Questões de atractividade, acessibilidade, conectividade, integração, escolha e diversidade têm uma clara influência nas dinâmicas urbanas que se geram e desempenham um papel preponderante nos processos de transformação da cidade. Neste sentido, as ferramentas configuracionais permitem mensurar o grau de afectação de mudanças que se implementem no sistema, o que colabora para a perspectiva de propagação dos efeitos associados à contaminação positiva.

Agradecimentos

Os agradecimentos são dirigidos à Câmara Municipal de Évora pela cedência da cartografia digital da cidade, pela permissão do seu uso, bem como por todo o apoio que tem sido prestado no âmbito do desenvolvimento da investigação, na qual este estudo se insere.

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