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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS UFAM FACULDADE DE LETRAS FLET PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS/MESTRADO PPGL ESTUDOS LITERÁRIOS Rosa Sangrenta de Maria Teresa Horta e a ressignificação do sangue menstrual ROSIANE EUFRAZIO MACHADO Manaus AM 2021

FLET PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS – UFAM

FACULDADE DE LETRAS – FLET

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS/MESTRADO – PPGL

ESTUDOS LITERÁRIOS

Rosa Sangrenta de Maria Teresa Horta e a ressignificação do sangue menstrual

ROSIANE EUFRAZIO MACHADO

Manaus – AM

2021

ROSIANE EUFRAZIO MACHADO

Rosa Sangrenta de Maria Teresa Horta e a ressignificação do sangue menstrual

Dissertação apresentada à banca de defesa do

Programa de Pós-Graduação em Letras - Estudos

Literários da Universidade Federal do Amazonas

como requisito para obtenção do título de Mestre

em Letras, sob a orientação da Professora Doutora

Rita do Perpétuo Socorro Barbosa de Oliveira.

Manaus – AM

2021

Machado, Rosiane Eufrazio

M149r Rosa Sangrenta de Maria Teresa Horta e a ressignificação do sangue menstrual / Rosiane Eufrazio Machado . 2021

83 f.: il. color; 31 cm.

Orientadora: Rita do Perpétuo Socorro Barbosa de Oliveira Dissertação (Letras - Língua e Literatura Portuguesa) -

Universidade Federal do Amazonas.

1. Literatura. 2. Horta. 3. Corpo. 4. Menstruação. 5. Tabu. I. Oliveira, Rita do Perpétuo Socorro Barbosa de. II. Universidade

Federal do Amazonas III. Título

Ficha Catalográfica

Ficha catalográfica elaborada automaticamente de acordo com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).

UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS

FACULDADE DE LETRAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

ESTUDOS LITERÁRIOS

Título da defesa de dissertação: Rosa Sangrenta de Maria Teresa Horta e a ressignificação

do sangue menstrual.

Mestranda: Rosiane Eufrazio Machado

Composição da Banca Examinadora:

Titulares:

1. Presidente: Profª. Drª. Rita do Perpétuo Socorro Barbosa de Oliveira -

Orientadora (PPGL-UFAM)

2. Membro: Profª. Drª. Marlise Vaz Bridi (PPGLP -USP)

3. Membro: Profª. Drª. Nicia Petreceli Zucolo (PPGL- UFAM)

Suplentes:

1. Membro: Profª Drª Iraildes Caldas Torres (PPGSCA-UFAM)

2. Membro: Prof. Dr. Saturnino José Valladares López (PPGL-UFAM)

Data da defesa:

24/03/2021 Horário: 14h

Local: A sessão de defesa ocorrerá por Google Meet devido ao isolamento social em Manaus

em decorrência do combate à pandemia de COVID-19.

À minha mãe que por meio de sua trajetória

de vida ensinou-me sobre resiliência e fé.

Agradecimentos

A Deus, que me concedeu forças, num período de tantas perdas, e foco para não

desistir quando o desânimo era imenso.

À minha mãe que, com seu extraordinário amor, dissipou todos os meus medos,

minhas incertezas e afirmou acreditar em mim. Por meio de sua jornada de entrega e batalhas

me foi possível realizar sonhos e ter acesso à educação de qualidade.

Ao meu pai que, mesmo com sua discrição e carinho comedido, alegrou-se com

meus pequenos avanços e encorajou-me a dar o meu melhor. Obrigada por cada vez que ouviu

sobre minha pesquisa e por cada livro comprado, que contribuiu para minha formação

humana e acadêmica.

Aos meus avós maternos que, no primeiro ano de mestrado, partiram deixando uma

grande saudade e uma dor imensurável. A eles minha gratidão pelo exemplo de cumplicidade,

respeito e amor.

Aos meus tios e tias maternos que sempre acompanharam meus passos e

compartilharam de minhas conquistas. Tê-los como suporte emocional e muitas vezes

financeiro abriu caminho para que eu ocupasse lugares que me pareciam impossíveis.

À minha amiga Bruna, uma dádiva que generosamente me foi concedida e tem

dividido comigo as aventuras e desventuras da vida.

Ao meu namorado Gabryel que, mesmo estando a mais de 4.000 km, pacientemente

lidou com minhas crises de choro, consolou-me, incentivou-me e apoiou-me

incondicionalmente.

Aos meus amigos Edmilson, Emília, Laíza, Layanna, Taleessa e Valdenize registro

meu agradecimento por me acompanharem nesse processo, dando-me ideias e valorosos

conselhos que com carinho ouvi e acatei.

À professora Nicia e Marlise que, antes de aceitarem participar da banca, ajudaram-

me com sugestões de leitura, e no momento da qualificação, ao apontar meus erros,

contribuíram para que eu revisse minhas escolhas.

À minha orientadora, professora Rita, registro meu agradecimento final. Graças a sua

paciência, sabedoria, dedicação e amor conduziu-me pela jornada do saber científico e

apresentou-me de forma encantadora a literatura e toda sua potência.

“Uma gota de leite

me escorre entre os seios.

Uma mancha de sangue

me enfeita entre as pernas

Meia palavra mordida

me foge da boca.

Vagos desejos insinuam esperanças.

Eu-mulher em rios vermelhos

inauguro a vida.

Em baixa voz

violento os tímpanos do mundo.

Antevejo.

Antecipo.

Antes-vivo

Antes – agora – o que há de vir.

Eu fêmea-matriz.

Eu força-motriz.

Eu-mulher

abrigo da semente

moto-contínuo

do mundo.”

(Conceição Evaristo)

Resumo

Esta dissertação de mestrado se organiza com base no objetivo geral de analisar os

poemas de Rosa Sangrenta − livro publicado no ano de 1987 − a fim de pôr em evidência

como Maria Teresa Horta ressignifica o sangue menstrual, favorecendo a desconstrução de

um tabu. Com base nesse objetivo, outros três se desdobraram, sendo um deles explanar sobre

como a escrita da autora é sustentada por um campo lexical que prioriza o uso de metáforas

para tratar do sangue menstrual; o outro consiste em discutir sobre o corpo feminino e as

imagens reducionistas e estereotipadas que marcam sua construção dentro do corpo social,

vinculando-as às do livro corpus desta pesquisa, e o último se propõe a expor a organização

do livro, revelando a unidade temática que lhe dá sustentação. A proposta da pesquisa foi

bibliográfica, consistiu em uma análise poemática e apoiou-se na teoria crítica de Theodor W.

Adorno, presente em Poesia Lírica e Sociedade, haja vista que ele subsidiou a aproximação

entre o texto literário e os saberes de outros campos, tais como Antropologia, História,

Sociologia, Psicanálise e Filosofia, aqui aplicados para discutir não só a menstruação, mas

também o corpo e as relações de gênero − que contribuem significativamente para a

manutenção do silenciamento que pesa sobre o corpo feminino e tudo o que lhe é próprio.

Analisaram-se os poemas respeitando os elementos que o constituem e, quando pertinente,

aspectos do corpo social foram levantados para traçar um paralelo com o que foi exposto pelo

eu-lírico. Dentre as conclusões obtidas, ressalta-se a importância de Rosa Sangrenta enquanto

um dos poucos livros que se propõem a falar da menstruação, além de ressignificar esse

sangue menstrual, primeiramente pelo uso da linguagem poética, o que é incomum, e em

seguida pelo fato de os poemas apresentarem abordagens que se insurgem contra os discursos

ideológicos vigentes.

Palavras-chave: Poesia Portuguesa Contemporânea; Maria Teresa Horta; Rosa Sangrenta;

Menstruação.

Abstract

This master's thesis is organized based on the general objective of analyzing the

poems of Rosa Sangrenta - book published in 1987 - in order to highlight how Maria Teresa

Horta resignifies menstrual blood, favoring the deconstruction of a taboo. Based on this

objective, another three unfolded, one of them explaining how the author's writing is

supported by a lexical field that prioritizes the use of metaphors to deal with menstrual blood;

the other consists of discussing the female body and the reductionist and stereotyped images

that mark its construction within the social body, linking them to the corpus book of this

research, and the latter proposes to expose the book's organization, revealing the thematic

unity that gives you support. The research proposal was bibliographic, consisted of a poetic

analysis and was based on the critical theory of Theodor W. Adorno, present in Poesia Lírica

e Sociedade, given that he subsidized the approximation between the literary text and the

knowledge of other fields, such as Anthropology, History, Sociology, Psychoanalysis and

Philosophy applied here to discuss not only menstruation, but also the body and gender

relations - which contribute significantly to the maintenance of the silence that weighs on the

female body and everything that is his own. The poems were analyzed respecting the elements

that constitute it, and, when relevant, aspects of the social body were raised to draw a parallel

with what was exposed by the lyrical self. Among the conclusions obtained, the importance of

Rosa Sangrenta is highlighted as one of the few books that propose to talk about

menstruation, in addition to reframing this menstrual blood, first by the use of poetic

language, which is unusual, and then by the fact the poems present approaches that argue

against the current ideological discourses.

Keywords: Contemporary Portuguese Poetry; Maria Teresa Horta; Rosa Sangrenta;

Menstruation.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 12

CAPÍTULO I ........................................................................................................................................ 15

OS CAMINHOS PARA A ANÁLISE DA POESIA HORTIANA ...................................................... 15

1.1 Teoria Crítica de Adorno: os aspectos sociais como elementos de análise dos textos

literários ................................................................................................................................................ 16

1.2 Maria Teresa Horta e a literatura como sentido primeiro de vida e de luta.............................. 19

1.2.1 O corpo como espaço de criação poética em Horta .............................................................. 24

1.3 Rosa Sangrenta: a menstruação enquanto tema literário ............................................................ 28

1.3.1 A linha tênue que perpassa a organização de todo o livro ................................................... 30

1.3.2 A metáfora e a alusão a elementos naturais e culturais postos nos poemas ........................ 33

1.3.3 Tabu: sua acepção e ligação com o fluxo menstrual feminino .............................................. 34

CAPÍTULO II ...................................................................................................................................... 41

O ESPAÇO DO GOZO ........................................................................................................................ 41

2.1 Poética da liberdade ....................................................................................................................... 42

2.2. O sujeito desejante ........................................................................................................................ 46

2.3 A maternidade como pacto, acto ou sina....................................................................................... 48

CAPÍTULO III ..................................................................................................................................... 54

A FORMAÇÃO DE UM ELO ENTRE O MÊNSTRUO E AS IMAGENS DAS

MULHERES, DO CORPO, DO DESEJO E DA MÃE ..................................................................... 54

3.1 Uma teia de mulheres com o fluxo menstrual .............................................................................. 55

3.2 As sensações de um corpo menstruado ......................................................................................... 61

3.3 A menstruação e o desejo de si ...................................................................................................... 64

3.4 A mãe e a filha: o cruzamento de suas vozes ................................................................................ 69

CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................................. 75

UMA ROSA QUE SANGRA ............................................................................................................... 75

REFERÊNCIAS ................................................................................................................................... 80

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INTRODUÇÃO

Atuando desde 1960 no cenário literário português, quando publicou Espelho Inicial,

Maria Teresa Horta permanece ainda ativa, escrevendo aos 83 anos de idade e compartilhando

nas redes sociais, particularmente no Facebook, os poemas que já escreveu. Seus livros

iniciais vêm carregados de um tom de denúncia − advindos da ditadura Salazarista que

cerceava vozes por meio da imposição do medo e da violência − e assim permaneceu até

1974, quando a Revolução dos Cravos mudou a trajetória de Portugal e pôs fim ao regime que

já durava 41 anos. Contudo, o tom de denúncia de sua obra não foi cessado, pois mesmo com

o término do período ditatorial, incomodava-a o tratamento dado à mulher no cenário social

português.

Maria Teresa Horta ocupa um espaço que nem todas as mulheres alcançam ao usá-lo

para expor as vozes femininas silenciadas, que assim permaneceram por longas décadas ao

serviço de uma tradição literária falocêntrica, que as oprimia, deslegitimava seus desejos e os

temas dos quais queriam tratar. Por essa razão, sua escrita merece destaque na literatura

portuguesa, pois surge para afirmar e defender os direitos humanos, opor-se às ideologias

limitantes da liberdade feminina, dar legitimidade a vozes de mulheres caladas ao longo da

história, além de assumir uma postura avessa aos estereótipos que regulam os corpos e a

sexualidade, adotando uma linguagem aberta, sem pudor e repleta de autenticidade para falar

daquilo que permaneceu inominável: menstruação, sangue, leite materno, útero, vagina, lábios

do clitóris.

Dentre os temas elencados acima, um se mantém envolto num silêncio que advém do

constrangimento que causa, em vista do tabu que o engessa, a menstruação. Inúmeras são as

maneiras convencionadas para se referenciar a ela, e por muito tempo foi propagado o

discurso de que ao menstruar as mulheres perdiam temporariamente a razão, apresentando

certo desequilíbrio emocional.

A constatação anterior foi uma das razões que motivaram a pesquisadora desta

dissertação a refletir sobre a relação da mulher com o mênstruo, mas faltava pensar de que

maneira a Literatura faria parte disso. Foi então que lendo uma coletânea de artigos sobre a

obra de Maria Teresa Horta, encontrou-se Conceição Flores (2015) e Ana Maria Domingues

de Oliveira (2014) comentando a respeito do silêncio que envolve Rosa Sangrenta. São essas

as professoras que se dedicam a estudá-lo, contudo, seus esforços não foram suficientes, na

medida em que muitos sentidos permaneceram sem ser decodificados, restando várias ópticas

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para analisá-lo enquanto objeto de pesquisa.

Enquanto a primeira se detém na metáfora da rosa e liga-a ao discurso religioso,

mostrando como ele é anulado na poética de Horta, que trata a menstruação de modo belo, a

segunda trabalha principalmente a organização do livro, indicando como as escolhas da autora

foram atrevidas e pertinentes para criação da unidade temática da obra.

É nesse ponto que a ideia de estudá-lo surge e nasce o título que identifica essa

pesquisa: “Rosa Sangrenta de Maria Teresa Horta e a ressignificação do sangue menstrual”,

que traz como diferencial não só sua extensão, quando comparado com os das demais

estudiosas, mas também como trata da menstruação, tendo optado por discuti-la a partir de

seu lugar de tabu e a respeito de como a poetisa portuguesa o retira dele, rompendo silêncios,

transgredindo discursos e criando uma escrita que se faz pelo corpo e fala sobre o corpo da

mulher especificamente.

Buscar-se-á analisar os períodos que compõe o livro, de maneira que se aborde os

temas elencados pela autora: menstruação, aborto, maternidade, a construção do vínculo entre

mãe e filha por meio de aspectos do corpo, o autoconhecimento como ação necessária para a

liberdade feminina, recorrendo ao uso dos sentidos. Para tanto, criou-se um objetivo geral,

seguido de três objetivos específicos, que se pretende alcançar ao longo do processo de

escrita.

O objetivo geral da pesquisa consiste em analisar os poemas de Rosa Sangrenta

(1987), a fim de pôr em evidência como Maria Teresa Horta ressignifica o sangue menstrual,

favorecendo a desconstrução de um tabu. Dele se desdobram outros três, consistindo um em

explanar sobre como a escrita da autora é sustentada por um campo lexical que prioriza o uso

de metáforas para tratar do sangue menstrual; discutir sobre o corpo feminino e as imagens

reducionistas e estereotipadas que marcam sua construção dentro do corpo social, ligando-as

ao livro corpus desta pesquisa; por fim, expor a organização do livro, revelando a unidade

temática que lhe dá sustentação.

Quanto à organização da dissertação, ela se divide em três capítulos, sendo o

primeiro dedicado a tratar da autoria e seu percurso literário, falar sobre a organização dos

períodos que compõe a obra, a relevância desta pesquisa e discorrer sobre a escolha do título

que identifica o trabalho, comentando, particularmente, o termo tabu e como se associa à

menstruação. No segundo capítulo se analisa o poema de abertura do livro, sendo ele uma

síntese dos temas que Horta adiante trata: o prazer, a menstruação e a maternidade, todos eles

alinhados à ideia de que a mulher é livre para fazer suas escolhas. No último, analisam-

se alguns dos poemas de cada período, optando-se pelos que revelem as multifaces do

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mênstruo e exploram os sentidos, como as mulheres lidam com seu ciclo e o tipo de vínculo

que criam com seu corpo.

Esta pesquisa é de caráter bibliográfico, consistindo em uma crítica literária. As

fontes usadas para embasar as discussões propostas para o livro são amplas e aproximam

teorias de diversos campos do conhecimento, tais como Antropologia, História, Filosofia,

Sociologia e Psicanálise. No que diz respeito à teoria crítica escolhida, usa-se Theodor W.

Adorno (1974) e o seu livro Poesia Lírica e Sociedade, pois ele proporciona os mecanismos

necessários para que se façam as análises poéticas, enfocando, quando pertinente, nos

aspectos sociológicos do texto, mas sem que eles se sobreponham aos elementos formais do

objeto literário.

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CAPÍTULO I

OS CAMINHOS PARA A ANÁLISE DA POESIA HORTIANA

Muitas teorias literárias estão à disposição daqueles que pretendem analisar um

objeto literário. São elas quem encadearão o passo a passo do estudo do texto e conversarão

com as teorias dos demais campos do conhecimento. Quando os olhares estão voltados para a

produção de Maria Teresa Horta, os estudos culturais e feministas surgem como opção.

Contudo, para esta dissertação, optou-se pelo uso da teoria crítica desenvolvida por Theodor

Adorno em Poesia Lírica e Sociedade.

Adorno (2003) desenvolve suas declarações em torno da ideia de que o que é social

interfere em alguma medida nos aspectos formais de um texto lírico. Quando pensa a relação

do social com o texto literário, não propõe o que se pode chamar de teoria sociológica, porém,

motivado pelo contexto pós-guerra, pensa sobre o que poderia ser esperado nas produções

líricas daquele momento em diante.

No caso desta pesquisa, suas reflexões subsidiarão a aproximação entre texto literário

e aspectos sociais que o compõem, buscando revelar o motivo de analisar esses últimos

elementos do texto. No caso do objeto literário aqui analisado, Rosa Sangrenta, falar-se-á da

questão do tabu da menstruação, levando em conta como é pensado dentro do corpo social e

em que medida essas considerações interferem na composição interna dos poemas,

favorecendo sua interpretação.

Portanto, ao se usar a teoria de Adorno, buscar-se-á primordialmente desvendar de

que maneira a escrita de Horta se aproxima do social e o contesta, já que seu livro ressignifica

a menstruação por meio da subversão dos significados que o mênstruo ao longo do tempo

recebeu. Pode-se dizer que a obra dessa autora enfrenta a caótica realidade dominada por

discursos machistas e segregadores, oportunizando uma voz às mulheres que permanecem

retratadas por estereótipos que de longe não as representam.

A produção poética de Teresa Horta é, por conseguinte, uma contraideologia ao

discurso dominante vinculado socialmente, fato possível na literatura, que emprega o discurso

ideológico vigente como forma de criar outro discurso, contraideológico. A atitude literária da

poetisa converge para o argumento de Alfredo Bosi de que:

[...] um poeta não vive em uma outra História, distante ou alheia à história da

formação social em que escreve, a sua obra poderá conter (e muitas vezes

contém de fato), um equilíbrio instável, o “positivo” da ideologia corrente e

o “negativo” da contraideologia, que acaba recuperando a relação viva com a

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natureza e os homens. (BOSI, 1977, p. 119-120).

Bosi defende que a atividade poética busca uma relação intensa com o “mundo-da-

vida”, para isso o poeta usa uma linguagem singularizada, tendo como intuito falar do

mundo que o cerca, podendo concordar com a ideologia dominante, que é considerada

“positiva”, ou rompê-la, elaborando uma contraideologia, tida como “negativa”.

Entender que a literatura é perpassada por ideologias correntes mostra que as

palavras poéticas são habitadas por formas de pensar que representam uma época ou que

visam superá-la. A relação entre literatura e sociedade é real, e conceituar a primeira como

ideológica é uma das maneiras de notá-la. Terry Eagleton, ao propor um conceito para

literatura, baseia-se nesse entendimento: “A literatura torna-se uma ideologia totalmente

alternativa, e a própria “imaginação” [...] torna-se uma fuga política. Sua tarefa é transformar

a sociedade em nome das energias e valores representados pela arte.” (EAGLETON, 2006, p.

29). Na literatura existe a opção de se transformar a sociedade, ainda que essa transformação

não seja efetivada, cabendo permanecer só na imaginação.

Destarte, as análises que serão feitas possibilitarão desvelar essa relação entre a

ideologia corrente e a contraideologia que Teresa Horta instiga, mas antes disso, comentar-se-

á a respeito do livro Poesia Lírica e Sociedade de Theodor W. Adorno, que se constitui como

base principal desta dissertação.

1.1 Teoria Crítica de Adorno: os aspectos sociais como elementos de análise dos

textos literários

Pensar a Literatura e sua ligação com o social pode ser sugestivo para se tratar da

teoria sociológica, afinal, ela busca propor possíveis leituras de um texto a partir do elo

Literatura e Sociologia. Essa teoria, quando aplicada a um texto literário, acaba se

apresentando das seguintes formas: como um estudo que visa examinar o relacionamento

entre um determinado corpus e o contexto histórico e os valores sociais da época; um estudo

focado na figura do autor e no momento histórico-social em que se situa, podendo levar à

observação das condições de produção, remuneração etc.; um estudo em que se preze a obra,

sua publicação, recepção, distribuição, inclusão no cânone literário; além do estudo centrado

no público leitor e sua relação com a obra, o consumo, o sucesso, como ela ressoa entre os

leitores.

É perceptível dentro das opções elencadas, que o uso da teoria sociológica por vezes

se reduz a analisar um único elemento social do texto literário, que se sobrepõe ao que é

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próprio do texto, como seus elementos formais. Miguel Araújo Neto (2007), sobre a aplicação

da sociologia à análise literária, adverte:

Se todas estas leituras vinculadas à sociologia, legítimas em suas bases,

como quaisquer outras leituras, colocam problemas, deve-se ao fato de que

talvez nenhuma leitura deva requerer para si o estatuto de explicação da

totalidade da obra. Porém todas estas leituras dão uma ideia dos rumos

tomados, e por tomar, numa pesquisa que pretenda considerar as relações

existentes entre literatura e sociedade. (ARAÚJO NETO, 2007, p.19).

Logo, é preciso ponderar sobre a maneira como se aplica essa teoria ao texto literário

analisado, para que não se incorra no erro de minimizar certos aspectos do livro em

detrimento do contexto social em que ele foi produzido. Theodor Adorno (2003), tal qual

Miguel Araújo Neto, pensa em que medida uma abordagem sociológica pode ser

problemática, pois um único elemento literário poderia se tornar portador de um rótulo que o

limita e impede a percepção do objeto em si e de sua profundidade.

É óbvio que a única maneira de contrariar esta desconfiança não é usar

erroneamente os textos literários como objectos demonstrativos de teses

sociológicas, relevando, pelo contrário, que a sua relação com o social lhes é

qualquer coisa de intrínseco, de fundamentalmente qualitativo. Esta relação

não deve se afastar da obra de arte, mas entrar mais profundamente no seu

íntimo. (ADORNO, 2003, p. 6).

Para esse autor, os elementos sociológicos de um objeto literário devem ser

estudados desde que seu objetivo seja aprofundar a compreensão do texto, na medida em que,

enquanto parte da estrutura textual, não pode ser dissociado do todo da obra, já que a constitui

internamente. Mas se esses elementos servem meramente para tentar comprovar uma tese

sociológica, sua menção perde a importância, pois “nada que não se encontre nas obras e que

não pertença à sua forma específica, tem autoridade legítima para avaliar o que o seu

conteúdo [...] representa em termos sociais.” (ADORNO, 2003, p. 7-8). Em síntese, será

necessário conhecer o que é interno e externo à obra literária, mas esse último só terá valor se

estiver numa relação de sujeição com o primeiro.

Em vista dessas proposições, evidencia-se que a ideia de Adorno nunca fora oferecer

discussões que embasassem a teoria sociológica, como faz o outro autor citado. Seu livro não

consiste em um passo a passo de como usar Sociologia em Literatura e vice-versa, ele,

enquanto filósofo, pondera sobre uma relação (lírica - sociedade) que, dentro do contexto

histórico-social no qual estava inserido, pós segunda guerra mundial, fazia-se necessária,

afinal, até que ponto os elementos sociais que marcavam aquele momento reverberariam na

lírica? Em que medida a expressão individual de um autor se tornaria coletiva? Como a

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linguagem estaria envolvida nos processos de criação literária? É com base nessas três

questões e na ideia de que o que é social só é válido enquanto matéria de análise literária se

encaminhar para o que há de mais interno no texto, que adotou-se esse autor nesta dissertação

e preconizou-se pelo seu estudo ao invés da teoria sociológica, inicialmente mencionada.

Quando trata da questão do social, detendo-se em sua presença na poesia lírica,

Adorno pontua que o poema é, a priori, a externalização de um desejo individual, mas que em

certa medida se torna universal porque seu conteúdo acaba refletindo as relações vividas em

sociedade.

a universalidade do conteúdo lírico é de natureza eminentemente social. Só o

que escuta a voz da humanidade na solidão do poema é capaz de lhe

entender o sentido; mais do que isso, a própria solidão do verbo lírico é

predeterminada pela sociedade individualista e, em última instância,

atomizada, tal como, em sentido inverso, a dimensão universal do texto

poético vive da densidade de sua individuação. (ADORNO, 2003, p. 6-7).

Universal e individual são ideias, a princípio, excludentes, mas dentro da lírica

aparecem inter-relacionadas. Isso porque o poema parte de um desejo individual, mas vira

universal dado seu conteúdo que reflete as novas relações vividas em sociedade, em particular

as que se iniciam ao longo da Revolução Industrial.

Torna-se, destarte, um “protesto contra essa realidade, o poema exprime o sonho de

um mundo onde a vida fosse diferente.” (Adorno, 2003, p. 9), criando outras realidades

possíveis e pensando o presente a partir de outro olhar. A ideia de (re)criar pela palavra uma

outra realidade, é o que faz Maria Teresa Horta ao deter sua atenção sobre o tema da

menstruação e repensá-lo por um viés que não seja o que o coloca no lugar de tabu e exige das

mulheres menstruadas a adequação a restrições comportamentais, no modo de se vestir e até

no jeito como manifestam suas crenças religiosas.

Theodor Adorno segue suas proposições indicando que uma interpretação social da

poesia lírica não tem como objetivo imediato expor um posicionamento social ou os

interesses sociais postos pelos autores nas obras, porque mesmo que esses elementos

apareçam, a análise não fica limitada a eles. Ainda segundo o filósofo, “não são só os seus

conteúdos que manifestam ao mesmo tempo uma dimensão social: mas, num processo

inverso, é a sociedade que nasce e vive, apenas por força dos indivíduos, cuja essência ela

incarna.” (2003, p. 15), pois o social aparece n a l í r i c a não porque ela tenha a

obrigação de refleti-lo, mas porque os indivíduos que a produzem são sociais e a linguagem

de que fazem uso também é. Assim, a linguagem aparece como o elemento chave que faz a

intermediação entre lírica e sociedade, tendo em vista que ela desenrola a relação do coletivo

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com a realidade social.

Apesar disso, a relação lírica-sociedade não é propriamente de concordância, já que

muitas vezes a primeira surge rompendo com as ideologias que constituem a última e assim se

dá seu diferencial, pois “a grandeza das obras de arte reside exclusivamente no facto de elas

deixarem falar aquilo que a ideologia oculta. Com ou sem este propósito, a sua própria

consecução ultrapassa a falsa consciência.” (ADORNO, 2003, p. 8). Ou seja, a poesia lírica

cria uma linguagem poética que substitui a que se usa meramente para comunicar algo,

podendo ser usada pelos seres humanos como manifestação da individualidade. Contudo, o

registro do que é individual pode se traduzir num sentimento coletivo, pois a identificação

com o que se lê e/ou ouve leva a isso.

Por fim, diante do exposto, fica visível que, ao expor a possibilidade de pegar

aspectos sociais para estudar a poesia lírica, Adorno centra sua fala a partir da ideia de que o

que é exterior à obra de arte, quando se torna parte da análise, deve se sujeitar ao objeto

literário, ou seja, a relação do “eu” com o corpo social, sendo parte dos poemas, não será

trabalhada intencionalmente, porém involuntariamente, aparecerá porque compõe o que há de

mais intrínseco ao texto e não pode ser dele dissociado, pois compreendê-la envolve

apreender os sentidos do objeto literário.

Em vista das colocações anteriores, os poemas selecionados para análise, terão seus

elementos sociais pontuados desde que eles encaminhem para as camadas mais profundas do

texto. Pois dessa maneira, identificar-se-á a contraideologia hortiana e de que forma ela se

apropria da linguagem para externar sua concepção sobre a menstruação.

Como informado na introdução desta pesquisa, há uma série de textos selecionados

para que subsidiem as discussões a serem feitas, pontuo neste tópico a teoria crítica de

Adorno como sendo aquela que sustentou as análises. Junto a ela, teorias antropológicas,

sociológicas, históricas, psicanalíticas e filosóficas foram aplicadas, para fazer as ligações

necessárias entre a literatura e os vários saberes, a fim de proporcionar amplas possibilidades

de discussão dos poemas eleitos. Acredita-se que dessa maneira é possível aproximar o

conteúdo de Rosa Sangrenta, a menstruação, aos vários discursos correntes no corpo social.

1.2 Maria Teresa Horta e a literatura como sentido primeiro de vida e de luta

O lugar ocupado por Teresa Horta dentro do cenário literário português

contemporâneo é de quem encontrou na literatura um meio de afirmação e defesa dos direitos

humanos, de quem ressignificou a mulher e desconstruiu imagens advindas de uma visão

masculina simplificadora. Enquanto mulher-escritora-feminista denunciou preconceitos,

20

torturas, situações de repressão e buscou a liberdade de ser e fazer o que quisesse. Cabe agora

conhecê-la, para descortinar os silêncios que sobre sua obra existem e destacar a importância

de um estudo que analise um de seus livros menos estudados, Rosa Sangrenta (1987).

No ano de 2009, na cidade de Natal, ocorreu o XVIII Seminário Nacional e IV

Internacional Mulher e Literatura, tendo como uma de suas homenageadas Maria Teresa

Horta. Desse evento surgem dois livros essenciais a esta pesquisa. O primeiro deles leva o

nome do evento, Mulheres e Literatura: ensaios, e o segundo se chama O sentido primeiro

das coisas, título que advém da fala da autora quando toma a palavra para agradecer à

homenagem e então diz:

A literatura é de facto o meu sentido primeiro das coisas. A literatura é o meu

sentido primeiro das coisas.

Entre aquilo que leio e aquilo que escrevo. [...]

Refiro-me ao discurso, à linguagem, ao delírio, ao declive, ao absurdo.

Ao absoluto,

a poesia, a escrita, a paixão, como um todo de tudo. [...]

Quando escrevo, ardo de desejo.

Perecível, vulnerável, mortal – Ardo de desejo em relação ao texto, em

relação ao verso, em relação ao poema, em si mesmo chama. [...]

Como escritora não quero que o vazio me ganhe, e suba até ao

coração.

Há que escutar nos livros o bater do coração dos livros.

Há que derrotar os silêncios, num rebate de sino, gume de faca, ou estilhaço

de vidro e grito de alarme.

Num arremedo de ave.

Sem arriscar jamais se consegue alcançar o deslumbramento da literatura. Há

então que seguir pelas orlas, pelas bermas, pela beira perigosa dos abismos,

atingindo tanto o cume das serras como a fundura das lagoas e dos oceanos,

onde nadam os peixes cegos. [...]

Sem nunca se perder de vista: os ideais, os princípios, as esperanças,

a dignidade. Mas, igualmente: os sentimentos, as emoções, a irmandade...

Neste caso, a irmandade das mulheres

...escritoras.

Eis-nos, pois, pleno universo da literatura: terreno privilegiado de

metáforas, de sonho, de transfigurações, de metamorfoses, de luzimento

enchamejados [...].

A literatura é o meu sentido primeiro das coisas. Entre aquilo que leio e aquilo

que escrevo.

Tessitura do desassossego.

Corporalidade.

Numa mistura de histórias, de versos, de vidas. Preferencialmente, de

insubordinação [...]. (HORTA, 2013, p.24-28).

As palavras da poetisa são significativas, pois carregam os sentidos e as percepções

que nutre sobre o ato de escrever. Escrever é um desejo que a consome e a impulsiona a falar

sobre opostos, o inacessível, o inominável, o silenciado. Como a última palavra do excerto

assinala, a literatura é uma forma de insubordinação que se materializa na metáfora e nos

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demais recursos que estão à disposição dos escritores. Trata-se de uma tessitura que reúne

vida, anseios, sonhos, perpassando-se, encontrando-se, distanciando-se e formando o vasto

campo literário que se desdobra em forma de prosa e poesia.

Quando ela afirma que a literatura é o seu sentido primeiro das coisas evidencia que

a escrita é o sentido primeiro da sua vida e de tudo que a norteia. Esse sentido é traçado numa

escrita de insubordinação, inquietação, contestação, resistência e humanização. É uma escrita

de defesa dos direitos, não só das mulheres, que é sua causa maior, mas do ser humano que

não deve ser privado de seu direito à vida. A propósito disso, Ida Alves escreve:

Dando voz à dor, voz forte o suficiente para clamar contra todos os atos de

violência, física e mental, íntima e pública, Horta possibilita um espaço de

respiração e resistência. [...] O desejo de luta, de enfrentamento, de oposição,

não é apenas para liberação das mulheres, mas força em prol de todos os

indivíduos, não importa o gênero, cerceados de seu direito de existir e ser.

(ALVES, 2015, p.208).

Sua escrita é, portanto, ferramenta de luta, espaço em prol da liberdade e tem como

força motriz primeiramente o contexto histórico em que inicia sua produção, a ditadura

salazarista. A primeira publicação de Horta, Espelho Inicial, data de 1960, catorze anos antes

do término desse momento histórico-social, que perdurou ao longo de 41 anos, e cerceou

mulheres, inibindo sua atuação no espaço público e controlando suas funções na esfera

doméstica.

Era a elas imposto o cuidado da casa, os deveres domésticos, a função de esposa e

mãe. Deveriam zelar pela manutenção de um ambiente harmonioso que atendesse as

necessidades do marido. Aquelas que se propunham a trabalhar fora eram mal vistas, pois

estariam ocupando um lugar que não lhes pertencia, uma vez que era o homem quem devia

trabalhar, por ser considerado o chefe da família.

O salazarismo era mantido por meio de discursos ideológicos disseminados pelos

aparelhos de propaganda criados pelo Estado. Nos planos do ditador, António de Oliveira

Salazar, essas ideologias deveriam ser incutidas nas almas portuguesas que haviam se

desvirtuado e abandonado o patriotismo, os velhos costumes e a moral. Para alcançar seus

objetivos estendeu suas influências aos vários campos de atuação humana.

[...] o regime [...] em 1933, [...] [montou] e [orientou] um vasto e

diversificado sistema de propaganda e inculcação ideológica autoritária e

monolítica, [...] desdobrando-se diversamente sobre o quotidiano das

pessoas, na família, nas escolas, no trabalho e nas <<horas livres>>.

(ROSAS, 2001, p.1041).

Aos que se opusessem a esse sistema, ameaçava-se, censurava-se e punia-se, pois

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não havia espaço para que comportamentos e valores “desviantes” fossem assumidos. É nesse

cenário, em que o silenciamento imperava e muitas vozes foram caladas definitivamente, que

Horta faz sua primeira publicação e segue publicando nos anos seguintes.

Sua irreverência, em particular no livro Minha Senhora de Mim (1971), incomodou

os moralistas do período, devido à temática subversiva e contestadora que não cedeu às

ideologias segregadoras vigentes na época. Segundo Anne Cova e Antônio Costa Pinto, a

ditadura portuguesa, bem como outras, defendiam as noções do “<<regresso ao lar>>, à

glorificação da <<maternidade>> e de certo modelo de <<família>> [...].” (COVA; PINTO,

1997, p.71).

Entretanto, no mencionado livro de Horta, subvertem-se todas essas convenções por

meio de um sujeito poético feminino que fala do corpo do parceiro e do seu, enlaçados pelo

desejo, pelo desfrute pleno do prazer que o toque, o cheiro e o gosto advindos da relação

sexual proporcionam. Não há nesse livro uma mulher subordinada, tampouco uma mulher que

se sobressai ao homem, estabelece-se igualdade por meio de uma figura masculina e feminina

que conferem e sentem prazer mutuamente.

É após esse livro, que repercute negativamente em Portugal, sendo apreendido e

também a motivação para que a autora fosse vítima de violência verbal e física, que a obra

Novas Cartas Portuguesas é publicada na companhia de Maria Isabel Barreno e Maria Velho

da Costa, originando-se o caso das três Marias. Tal caso abrange a retirada de circulação deste

supracitado livro pela polícia política, além da acusação de que teriam atentado contra a moral

pública. As autoras são levadas a julgamento e seu processo dura dois anos, concluindo-se

alguns dias depois da Revolução dos Cravos - fato histórico que dá fim à ditadura - com a

absolvição das autoras.

Apesar de terem sido julgadas por escreverem, na época, o que supostamente não

deveria ser escrito por mulheres, o livro desempenha papel primordial na literatura portuguesa

ao se tornar um registro dos anseios, desejos e contestações feitas pelas mulheres, que

questionavam a posição de subalternidade a que eram obrigadas a ocupar pelos sistemas de

poder.

Dentre os trabalhos de Teresa Horta estão os livros Tatuagem (1961), que foi sua

contribuição para o movimento Poesia 61, Cidades Submersas (1961), Verão Coincidente

(1962), Amor Habitado (1963), Candelabro (1964), Jardim de Inverno (1966), Cronista Não

é Recado (1967), Educação Sentimental (1975), Mulheres de Abril (1977), Os Anjos (1983),

Ema (1984), Rosa Sangrenta (1987), A Paixão Segundo Constância H (1994). As mais

recentes são As Luzes de Leonor (2011), que lhe proporcionou o prêmio D. Dinis, Meninas

23

(2014), Anunciações (2016) e, em 2019, publicou Eu Sou a Minha Poesia, uma antologia de

poemas por ela organizada, com os textos que considera os mais essenciais de sua obra.

Há muitos outros trabalhos não contemplados na menção anterior, contudo, os que

foram citados já deixam entrever sua larga produção que versa em prosa e poesia, e que

ganharam reconhecimento no Congresso Internacional Maria Teresa Horta e a Literatura

Contemporânea: de “Espelho Inicial” (1960) a “Estranhezas” (2018), ocorrido em maio de

2019 na cidade de Lisboa, tendo como propósito discutir sua carreira, seus livros e sua

influência no cenário literário português.

Interessa destacar que muitos desses livros vivem um obscurantismo, pois não se

tornaram objeto de pesquisa ou tiveram poucos estudos a seu respeito, tornando-se escassos e

não dando conta de toda a matéria poética e narrativa de que eles são portadores. É o caso de

Rosa Sangrenta, livro de interesse desta dissertação, que se propõe, dentre outras coisas, a

desmistificar seus sentidos e suscitar o ímpeto de lê-lo, porém, antes de colocá-lo em

evidência, outras questões sobre Maria Teresa Horta precisam ser pontuadas.

Percebeu-se que vasta é sua trajetória, que segue até os dias atuais. São 59 anos

dedicados à literatura, ainda assim, há certa invisibilidade que incide sobre suas produções, tal

qual relatado acima. Com base nessa constatação algumas problematizações podem ser

geradas. A primeira delas é pensar sobre a dificuldade de encontrar qualquer material

produzido por Horta na internet. Em demasia se acham reportagens sobre sua vida,

entrevistas, comentários, menções, mas o acesso a sua produção literária é limitado. Outro

problema é a escassez de seus livros em livrarias brasileiras. Acham-se alguns e-books, em

contrapartida os livros físicos majoritariamente constam como “sem estoque” ou sequer estão

disponíveis para venda em sites ou lojas físicas, assim como faltam exemplares dos seus

livros em bibliotecas de Manaus.

No espaço universitário amazonense, poucos são os que a conhecem, já nas demais

universidades brasileiras, cita-se a USP como referência, já que discutiu o livro Novas Cartas

Portuguesas ao longo de um ano, em grupo de pesquisa chamado “Literatura de autoria

feminina”, grupo extinto em 2018, mas no tempo que esteve atuante tratou de um dos livros

de maior repercussão da autora.

O conjunto dessas informações revela a riqueza da escrita de Horta, aponta para

problemas possíveis de serem superados e reitera a importância desta pesquisa, que analisa

um dos livros até a presente data de menor interesse da comunidade acadêmica. Para isso,

passa-se a falar sobre as especificidades da escrita de Horta, seguida da exposição sobre Rosa

Sangrenta.

24

1.2.1 O corpo como espaço de criação poética em Horta

É possível perceber que Teresa Horta preza pela manutenção de aspectos que

definem sua obra, sendo elas a sintaxe fragmentada, construída pelo enjambement, a presença

de poucas rimas ou a total ausência delas, caracterizando seus versos como brancos; as

imagens abrangem a menção aos anjos, feiticeiras e bruxas, deslocando-os das concepções

usuais para colocá-los como alvos do desejo, envolvê-los por conotações de cunho sexual ou

desvinculá-los de estereótipos negativos, como no caso das últimas. Ademais, temas como

erotismo, liberdade sexual, corpo e desejo são desenvolvidos sem, no entanto, tornarem-se

pornográficos, mas sendo tratados de modo subversivo. Corroborando com essa ideia, Fabio

Mario da Silva observa que Teresa

associa o sexo ao pecado e canta livre de qualquer opressão o ato sexual e as

experimentações das descobertas dos prazeres femininos através do corpo

como ato de liberação da libido e de libertação das mulheres, que deixam de

ser meros objetos na relação sexual. (SILVA, 2017, p. 3).

Ao falar sobre tais temas, a autora parte de um mesmo espaço: o corpo. Nele cria

uma relação intercambiável com a escrita, revelando traços de sua subjetividade, como a

sensualidade com que enxerga o mundo, conforme revelou em uma entrevista à revista

Máxima:

[...] sou uma mulher da sensualidade. Vejo isso através da minha escrita.

Para mim, tudo tem corpo. O calor, o frio, os objetos, os sentimentos, as

palavras, a escrita. O erotismo é o corpo da poesia. Cada palavra tem um

corpo diferente. Sou uma colecionadora de palavras, adoro-as, tenho

cadernos cheios com elas. Adoro as palavras novas que as pessoas trazem.

Gosto de desencontrá-las, dar a volta ao sentido, colocar palavras num sítio

onde não tinham entrada. (MÁXIMA, 2012).

Assim, a escrita da poetisa se dá a partir de contínuos processos de ressignificação,

que começam com as palavras, que dão sentido às relações criadas no corpo poético,

transferindo-se, por conseguinte, para o corpo social. Marlise Vaz Bridi (2015) afirma que o

corpo em Maria Teresa Horta é “[...] uma imagem onipresente que perpassa todos os estratos

de seu processo de criação.” (p. 337). Bridi ainda ressalta:

Ao retomarmos hoje, em perspectiva, o corpo no percurso poético de Maria

Teresa Horta, é possível, em linhas gerais, lê-lo em grandes movimentos,

obviamente não lineares, em que o corpo se deixa vislumbrar como o próprio

corpo (suporte das sensações e pulsões), o corpo do outro (objeto de desejo)

e o corpo das coisas (visíveis, invisíveis e intercambiáveis entre essas duas

condições), corpos concretizados na palavra poética. (BRIDI, 2015, p. 337).

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Boa parte das representações do corpo em Horta parte de um jogo erótico iniciado

nas relações sexuais, que, segundo Ida Alves, revela “[...] um corpo que se doa ao amante ou

examina com a ponta dos dedos o corpo do amante.” (ALVES, 2015, p. 203), tornando-o

espaço de concretização do prazer e aquele que quer amar e igualmente ser amado.

António Carlos Cortez (2015) quando se detém a tratar desse tema, cria o termo

corpoemas, que sintetiza o fato de, na poesia de Horta, a imagem do corpo ocupar espaço

desde o imaginário até as folhas em branco.

Do corpo feminino ao masculino, uma releitura da História, à luz de uma

reeducação sentimental. Entrecruzando perspectivas várias sobre o amor e o

sexo, segundo um pacto de partilha em que não existe sexo fraco ou sexo

forte, as palavras do corpo são igualmente as palavras dirigidas ao corpo

social, agora objecto de sedução de alguém que por sobre ele lança palavras

provocantes. (CORTEZ, 2015, p. 113).

Logo, os corpos masculino e feminino ocupam em sua poética uma posição de

igualdade que se distingue das construções histórico-sociais que separam esses corpos e

delineiam suas funções, os espaços a serem ocupados por cada um.

Pierre Bourdieu (2017) também discorre criticamente sobre essa questão dizendo que

a separação entre os sexos parece estar ‘na ordem das coisas’ e incorpora-se no pensamento e

nas ações, resultando na noção de que um deve cozinhar, o outro dirigir empresas, um caça e

o outro costura, um cuida das crianças, outro lê jornal.

Em síntese, na poesia de Horta o corpo adquire amplas dimensões, criando novas

imagens, mas sobretudo novas formas de se relacionar com o outro, revisitando as relações

humanas com o intuito de romper com o discurso dominante, em particular com aquele que

reduz a esfera de atuação feminina, pois, de acordo com o que verifica Marlise Bridi, na

escrita dessa poetisa, “[...] é a imagem da mulher, sua condição, seu estar no mundo e suas

formas de reconhecer-se, entre as quais, não é a menor, a de expressar-se pela escrita, que se

manifestam.” (BRIDI, 2015, p. 340), gerando uma contravenção dos discursos históricos que,

ao representar as mulheres, a idealizaram a partir de extremos: ou santa ou devassa, ou

prostituta ou mulher honrada.

Retomando a história do corpo, verifica-se uma linha do tempo em que

gradativamente ele assume novos significados, mas nesse processo não deixa de servir aos

discursos dominantes, quer sejam eles da medicina, da religião ou do mercado publicitário

como se constata na atualidade. Na Antiguidade, por exemplo, o corpo é a expressão da

beleza: atlético, musculoso, cheio de vigor e saúde. Na Idade Média, a forte influência da

Igreja torna corpo e alma antagônicos. O primeiro revela a tendência pecadora do homem, que

26

é perverso e porta em si forças malignas. A mulher é particularmente afetada por essa ideia,

pois estaria, supostamente, em uma contínua luta do bem versus o mal, tendo em vista que seu

corpo é frágil e regido pelas emoções, tornando-se propensa a comportamentos criminosos,

doentios e loucos.

Nesse mesmo período, as relações de gênero se ressignificam e inicia-se a criação de

um discurso preconceituoso que coloca a mulher próxima à natureza e o homem à cultura,

criando-se um sistema de oposições: “[...] alto/baixo, em cima/embaixo, na frente/atrás,

direita/esquerda, reto/curvo, seco/úmido, duro/mole, temperado/insosso, claro/escuro, fora

(público)/dentro (privado).” (BOURDIEU, 2017, p. 20). Essas dicotomias são

inconscientemente absorvidas e colocadas em prática, de modo que se naturalizam e

estruturam as relações de gênero impostas ao meio social.

Na Renascença, o corpo emerge na arte subordinado à razão, apontando para a

construção de um saber sobre ele mais severo e sério. Já em meados da Revolução Industrial e

Grande Guerra, o corpo passa a ser representado com base na imagem do menino Jesus e na

imagem de Maria Imaculada, a virgem, para influenciar a concepção do que seria o corpo

feminino ideal, nesse caso, aquele que se preserva do pecado original. Esse período é também

determinante para a propagação de que o corpo do homem e da mulher é construído em vista

da perpetuação da espécie. Logo, reside nele uma gama de diferenças que ultrapassa a esfera

anatômica, física e encontra consonâncias na diferença moral. Tal arcabouço de ideias é usado

para respaldar a diferenciação de papéis sociais do homem e da mulher, conforme escrevem

Alain Corbin, Georges Vigarello e Jean-Jacques Courtine:

O macho, ativo e forte, é macho em certos momentos. A mulher é mulher em

cada instante de sua vida. Tudo, nela, evoca seu sexo [...]. As crenças

segundo a qual os avanços da civilização acentuam a diferença entre o

homem e a mulher embasa solidamente a divergência dos papéis. Esta visão,

acredita-se, deve ordenar todas as relações sociais [...]. (CORBIN;

VIGARELLO; COURTINE, 2012, p. 187).

A citação anterior parte da ideia de que os avanços da civilização acentuam as

divergências entre homens e mulheres, mas, sendo eles os construtores da cultura, assim como

podem perpetuar essas diferenças, podem dar fim a elas, criando novo sistema de relações em

que ambos os sexos ocupem os mesmos espaços e gozem dos mesmos direitos e deveres.

Nesse sentido, resgata-se a colocação de Chimamanda Adichie a despeito das mulheres e a

cultura:

Tem gente que diz que a mulher é subordinada ao homem porque isso faz

27

parte da nossa cultura. Mas a cultura está sempre em transformação.

Para quê serve a cultura? A cultura funciona, afinal de contas, para preservar

e dar continuidade a um povo [...].

A cultura não faz as pessoas. As pessoas fazem a cultura. Se uma

humanidade inteira de mulheres não faz parte da nossa cultura, então temos

que mudar nossa cultura. (ADICHIE, 2015, p. 48).

Portanto, a cultura não é um elemento imutável, a posição imposta à mulher não é

permanente, tanto que na atualidade ocupa espaços que já lhe foram inviáveis, reverbera sua

voz e exige seus direitos.

Dando continuidade ao panorama do corpo na história, no século XX o cenário se

altera, e ele passa a ocupar as telas do cinema, da televisão, das fotografias, expondo-se no

espaço visual e tornando-se do interesse do campo comercial. Quanto ao século XXI,

vivencia-se a metamorfose dos corpos, pois se propaga a constante necessidade de mudança, a

fim de se adaptar aos padrões da moda. O corpo passa a ser uma matéria capaz de se modelar

e remodelar permanentemente, fazendo tal processo por intermédio de acessórios, estilos de

roupas e cirurgias plásticas.

O corpo ocidental encontra-se em plena metamorfose. Não se trata mais de

aceitá-lo como ele é, mas sim de corrigi-lo, transformá-lo e reconstruí-lo. O

indivíduo contemporâneo busca em seu corpo uma verdade sobre si mesmo

que a sociedade não consegue mais lhe proporcionar. Assim, na falta de

realizar-se em sua própria existência, este indivíduo procura hoje realizar-se

através do seu corpo. Ao mudá-lo, ele busca transformar a sua relação com o

mundo, multiplicando suas personagens sociais. (PAIM; STREY, [20--],

p.7).

O corpo, portanto, é uma representação do eu insatisfeito com sua existência, em

busca de uma verdade que parece não haver. Para lidar com suas frustrações, o sujeito cria

uma personagem para cada situação, projetando em seu corpo um padrão instituído

socialmente. Desse modo, ele é mais do que um construto biológico, é um sistema que porta

diferentes significações sociais.

O corpo humano, além de seu caráter biológico, é afetado pela religião,

grupo familiar, classe, cultura e outras intervenções sociais [...]. Assim,

cumpre uma função ideológica, isto é, a aparência funciona como garantia

ou não da integridade de uma pessoa, em termos de grau de proximidade ou

de afastamento em relação ao conjunto de atributos que caracterizam a

imagem dos indivíduos em termos do espectro das tipificações. (PAIM;

STREY, 2004, p.2-3).

Ele é a expressão das diferentes normas e representações que vão sendo

historicamente introjetadas na sociedade, gerando diferentes práticas e modos de vida. Não se

pode ignorar o fato de que ele é parte de um sistema que o subjuga por meio da disciplina,

28

reduzindo-o a um estado de obediência: “[...] o corpo é objeto de investimentos tão

imperiosos e urgentes; em qualquer sociedade o corpo está preso no interior de poderes muito

apertado que lhe impõem limitações, proibições e obrigações.” (FOUCAULT, 2010, p. 163).

Exerce-se no corpo um trabalho de mecanização: manipulam-se suas ações, gestos,

comportamentos, levando-o à docilidade. Esse padrão comportamental de subjugação é

pensado a fim de lhe conferir utilidade e uma postura que o insere num sistema de disciplina.

A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”.

A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de

utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de

obediência). Em uma palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um

lado uma “aptidão”, uma “capacidade” que ela procura aumentar; e inverte

por outro lado a energia, a potência que poderia resultar disso, e faz dela uma

relação de sujeição estrita. (FOUCAULT, 2010, p. 164-165).

O corpo se torna útil enquanto matriz capaz de produzir ganhos econômicos,

mantendo-se em subserviência. O corpo feminino é um reflexo dessa condição, já que é o alvo

de uma indústria que anualmente cria produtos ditos como essenciais: “A ‘indústria do corpo’

(academias, clínicas de estética, salões de beleza, spas, butiques, revistas, costureiras, e

estilistas etc) está ao serviço da produção capitalista que a domina.” (BORIS; CESÍDIO,

2007, p. 466). Dessarte, a subjetividade da mulher serviu ao patriarcado ao longo de séculos,

agora serve ao capitalismo, que a vê como força de trabalho.

As considerações feitas mostram o corpo feminino enquanto alvo de uma docilidade

imposta que o leva ao desempenho de papéis sociais pré-estabelecidos. Diferentemente disso,

em Rosa Sangrenta, as percepções do corpo da mulher aparecem como centro de todas as

representações que ganham forma na voz do eu-lírico, que tem como foco a menstruação

enquanto tema poético.

1.3 Rosa Sangrenta: a menstruação enquanto tema literário

É Conceição Flores quem diz que Rosa Sangrenta passou “despercebido à crítica

portuguesa” (FLORES, 2015, p. 158) e que o rompimento deste silêncio só foi possível graças

a Ana Maria Domingues de Oliveira, que reafirma esse fato quando diz,

Em toda a carreira de Maria Teresa Horta como poetisa, provavelmente não

tenha havido um livro mais ignorado pela crítica do que Rosa Sangrenta.

Não duvido que tal descaso se deva ao tema escolhido pela autora para ser o

motivo dos 40 poemas que o compõem. (2013, p. 128).

Foram Flores (2015; 2018) e Oliveira (2013) quem se propuseram a estudá-lo,

29

nomeando-o como objeto de investigação de alguns dos seus artigos. A primeira publicou

“Uma rosa no ventre: a menstruação na poesia de Maria Teresa Horta” (2018) e “A geografia

mais próxima: o corpo na poesia de Maria Teresa Horta” (2015); em ambos utilizou as

prescrições religiosas presentes no livro bíblico de Levítico para escrever sobre o tema.

No caso do primeiro artigo, menciona uma teoria sobre escrita feminina para falar

sobre uma “escrita em vermelho”, obtida por meio da menstruação dentro do campo literário.

Para tanto, começa analisando o poema de abertura e reforçando a metáfora da rosa como

elemento central que surge ao longo de todo o livro. Para alcançar seu objetivo remonta às

ancestrais femininas, ao útero e à maternidade, a união entre mãe e filha, destacando-os como

temas centrais dos poemas.

Quanto ao segundo artigo, ela escreve: “Fazer da menstruação tema de um livro é ato

subversivo que rompe o silêncio e o nojo que, tradicionalmente, o ciclo menstrual inspira,

herança judaico-cristã que ordenou o corpo da mulher para a maternidade.” (FLORES, 2015,

p. 158).

Igualmente, em seu artigo, Ana Maria Domingues de Oliveira remonta a essa

herança, citando a perspectiva bíblica de que a mulher menstruada é impura, pois menstruar:

é o sinal inequívoco de que a mulher fugiu à sua missão de procriar. [...] A

menstruação é a prova de que mais uma oportunidade de gerar filhos foi

desperdiçada. Menstruar é negar-se a cumprir a tarefa bíblica de multiplicar-

se. Estar menstruada seria, assim, uma evidência da esterilidade e uma fuga

àquilo que se considera a mais importante tarefa feminina, imposta pelas leis

divinas. (OLIVEIRA, 2013, p. 129).

Considerando essa carga negativa que pesa sobre a menstruação, a mulher

menstruada raramente aparece na literatura em geral, pois não desperta interesse. A fim de

romper com esse fato, Horta escreve Rosa Sangrenta, e para dar fim ao silêncio que pesa

sobre esse livro, Oliveira o analisa destacando sua organização em períodos – cabendo aqui a

ressalva de que o vocábulo “período” resgata tanto a forma como Horta nomeia as quatro

partes de seu livro, como também remete a ideia de “período menstrual” – , além de tecer

análises sobre alguns dos poemas, indicando como a menstruação é poeticamente trabalhada a

partir de recursos como a metáfora, a sintaxe, a sonoridade.

São apenas três artigos para tratar de um livro que conta com 33 anos, no mais o que

há são menções rápidas e pequenos comentários em artigos que dão mais notoriedade a outros

livros da autora. Nele recaiu um silêncio que não conseguiu diminuir seu valor enquanto

objeto de estudo, tanto que se tornou o corpus desta pesquisa, que usará as falas de Flores e de

Oliveira nos momentos oportunos, pois elas são as poucas bases teóricas que há sobre o livro.

30

1.3.1 A linha tênue que perpassa a organização de todo o livro

Por muito tempo a literatura permaneceu restrita à representação do que era belo.

Qualquer produção que fugisse a essa regra se tornava alvo de severas críticas, não sendo bem

recebida pelo público. Os temas não considerados belos eram utilizados em formas literárias

vistas como menores em relação à literatura – que tratava de temas elevados –, tais como a

comédia, a sátira e os poemas até então chamados de eróticos.

Contudo, essa noção foi sendo repensada, e passou-se a tratar de uma diversidade de

temas que até então eram tabus. Certos fluídos corporais, bem como partes do corpo,

permaneceram suprimidos da linguagem poética, sendo metaforizados nos casos em que

mencioná-los era preciso. No caso de Horta, essa supressão foi vencida quando o inominável

foi chamado pelo nome, por isso, Constância Lima Duarte assinala que a autora portuguesa

criou uma poética da liberdade e diz, ainda, que “palavras como menstruação, aborto, vulva,

pênis, clitóris, ancas, púbis, coxas e língua permeiam poeticamente seus versos, para espanto

dos puritanos e da gramática literária que tenta determinar o que seria ou não “correto” neste

campo da produção literária.” (DUARTE, 2015, p.13).

A menstruação aparece como tema dos poemas de Maria Teresa já em Os Anjos,

publicado no ano de 1983, em um dos quais se lê:

Voamos a lua,

menstruadas

Os homens gritam:

– são as bruxas

As mulheres pensam:

– são os anjos

As crianças dizem:

– são as fadas

(HORTA, 1983, p. 113).

Sobre o poema, Patricia Santana (2013) comenta que as próprias mulheres se

enxergam como anjos, seres capazes de anunciar as boas novas; enquanto que os homens as

veem como bruxas pelo seu estilo indomado, e as crianças as associam às fadas por vê-las

como fonte de proteção, ideia ligada à maternidade. Essas três diferentes imagens resgatam os

estereótipos associados à mulher, e mais tarde, em 1987, são recuperados em Rosa Sangrenta,

que amplia essa aparição inicial do mênstruo.

Rosa Sangrenta, assim como Os Anjos, é parte da poética da liberdade de Horta, e

31

tem como enfoque justamente o sangue menstrual, que aparece ao longo de quatro períodos,

sendo o primeiro “As Mulheres”, com onze poemas, o segundo “O Corpo”, com doze

poemas, o terceiro “O Desejo”, com um total de cinco poemas, e o último, “A Mãe”, com

onze poemas.

Nomeá-los como “período” não é uma ação neutra, pois em Portugal esse termo é

usado especificamente para aludir ao ciclo menstrual e seu uso, conforme afirma Conceição

Flores (2018, p. 27), já revela a unidade temática que preside a obra.

[...] Os poemas não têm títulos, mas recebem uma numeração sequencial que

se reinicia em cada período: Há, além disso, um primeiro poema, que

antecede o início da série de períodos. Não há dúvida de que esta

distribuição em períodos expressa, de forma bastante evidente, o aspecto

cíclico da menstruação. São quatro, como são quatro as semanas de cada

ciclo. (OLIVEIRA, 2013, p.131).

Cada um desses períodos tem seu nome iniciado com um artigo definido, o que põe

em foco que mulheres, corpo, desejo e mãe são precisamente determinados pela autora. Além

disso, a ordem de organização dos períodos não é obra do acaso, mas forma um fio condutor

que tece toda a estrutura poética intentada pela poetisa.

Inicia-se o livro com os poemas organizados no período “As Mulheres” por serem

elas os seres que menstruam, logo, pensa-se um livro feito por uma mulher e escrito para

outras mulheres que se identificam como sujeitos da menstruação. O período seguinte, “O

Corpo”, serve para demarcar o espaço em que o mênstruo se manifesta e como o corpo se

prepara e reage ao sangue mensal.

O terceiro período, “O Desejo”, é algo interno, sentido no corpo, portanto inerente a

ele. A presença de um período com esse nome pode ser causadora de espanto, haja vista que

“[...] mulheres menstruadas supostamente provocam aversão e não desejo” (OLIVEIRA,

2013, p.131), só que a inclusão desse tópico é reveladora da ousadia da autora, reiterando a

ideia de que o sangue menstrual não provoca repulsa.

O último período, “A Mãe”, destaca a essencialidade da menstruação como geradora

de vida e elemento hereditário compartilhado entre mãe e filha, pois “o sangue menstrual é

um liame que une as mulheres nas relações mãe e filha, mas também nas relações das

mulheres umas com as outras [...].” (FLORES, 2018, p.30). Além desse vínculo maternal, o

sangue menstrual também se torna elemento extensivo aos homens que são parentes, amigos,

companheiros e amantes das mulheres.

O modo como os poemas estão organizados, seguindo uma disposição que inicia na

32

mulher como um todo, passando a tratar de elementos específicos, o corpo, o desejo, até

chegar à imagem da mãe, fornece ao leitor o percurso da menstruação, e faz o elo entre

sangue menstrual e maternidade, por isso o livro é finalizado com a figura materna.

Conceição Flores (2015) pondera sobre o direcionamento conferido ao livro e

destaca o enquadramento da menstruação em duas abordagens. A primeira delas é a da

menstruação como algo belo, com cor e cheiro obedecendo a um padrão de beleza avesso ao

espaço negativo que esse fluido costuma ocupar; o segundo é o sangue como algo positivo,

haja vista destoar à ideia de imundície propagada pela Bíblia.

Esse aspecto inovador leva Conceição Flores a afirmar que “o tema da menstruação é

apresentado com elementos do universo feminino dotados de um poder de encantamento, seja

através das bruxas, seja das fadas.” (FLORES, 2015, p.161). Horta toca no que é sensível às

mulheres, a fim de cativá-las e proporcionar um olhar mais afetuoso ao corpo e suas

especificidades, pois é dotada de uma

habilidade em ir ao encontro de uma poesia de ritmos variados, de versos

populares, de simplicidade imagética e naturalidade de expressão,

promovendo um canto da vida irremediavelmente comprometido com o

mundo presente. A poesia de Horta aposta no simples, no radicalmente

humano, no comum para atingir o seu leitor no que acredita ser fundamental:

a capacidade de afeto, o liame com o outro. (ALVES, 2015, p. 210).

Há, da parte da autora, um compromisso com aquilo que acredita, com a vida e sua

multiplicidade de manifestações, um compromisso que faz da sua escrita um território de

respeito à diversidade.

Reside em Rosa Sangrenta, em face das exposições feitas, uma tentativa de manter a

organização por meio da unidade temática, pela disposição dos períodos, resultando numa

linha tênue que perpassa todo o livro e mantém cada parte conectada sem que haja lacunas a

serem preenchidas, a não ser a dos sentidos que cada leitor tem a liberdade de atribuir aos

poemas, já que eles não se esgotam e variam mediante as vivências de mundo de cada pessoa.

Como um todo articulado, cabe ponderar brevemente sobre a capa e a dedicatória

que o compõem. A primeira é criação da artista plástica portuguesa Graça Martins, que desde

1979 colabora com editoras realizando capas e ilustrações de livros. Seus críticos chamam

atenção para como aquilo que representa parece ganhar ritmicidade, fluidez, dando uma ideia

de movimento.

A imagem pensada para Rosa Sangrenta dá essa impressão, ao trazer um corpo em

que os braços estão jogados para cima, uma das pernas está suspensa, dando a ideia de que se

abre para deixar exposta a genitália coberta pelos caules da planta que, ao que tudo indica,

33

tem suas raízes fincadas no pé ou próxima a ele. Os seios ficam à mostra, com a flor de caule

mais longo tão próximo que parece tocá-lo.

Quanto às flores, elas se distinguem, podendo ser um indicativo do fato de que a

menstruação é abordada no livro multifacetadamente, sendo assim, cada uma dessas

representações florais aludem ao fato de que a poetisa adota diferentes perspectivas para tratar

desse fluido. Veja que não há distinção de cor entre a flor e seu caule, todas estão tingidas de

um vermelho escuro que remete ao tom do mênstruo, núcleo temático do livro.

Por fim, a mulher da capa não possui rosto, apenas um corpo que se expõe

livremente e é no espaço do corpo que Horta desenvolverá os temas de seus poemas, fazendo

recair o foco na mulher livre e menstruada.

Figura 1: Capa do livro, 1. ed, 1987.

Fonte: Goodreads1

Quanto à dedicatória, ela diz: “À Maria José Vidigal // Ao Luís, sempre”. A primeira

é sua psicanalista, que aparece em suas dedicatórias até o livro Inquietude; o segundo é seu

esposo, homem com quem dividiu boa parte de sua vida e pode tê-la inspirado a escrever

sobre a figura do amado com quem o sujeito poético de sua obra se relaciona sexualmente.

1.3.2 A metáfora e a alusão a elementos naturais e culturais postos nos poemas

Para além da imagem da rosa, metáfora principal do livro, outras metáforas foram

eleitas pela poetisa. Ana Maria Domingues Oliveira faz um levantamento de cada uma delas e

as associa aos reinos vegetal e mineral:

1 Disponível em: <https://www.goodreads.com/book/show/36512678-rosa-sangrenta>. Acesso em: 09

nov. 2020.

34

No que concerne ao primeiro, já desde o título ele se anuncia, com a

presença da palavra ‘rosa’. Ao longo dos poemas, aparecem ‘pétala’, ‘caule’,

‘flor’, ‘erva’, ‘morangos’, ‘estepe’, ‘capim’, ‘plantas’, ‘raízes’, ‘cravo’,

‘cerejas’, ‘frutos’, ‘líquenes’, ‘lírios’ e ‘florações’. As associações com estes

elementos fazem-se de um modo geral, pela visualidade. A rosa representa,

visualmente, o sexo feminino, enquanto elementos como ‘morangos’ e

‘cerejas’, evocam, pela cor vermelha, o sangue menstrual.

No que diz respeito ao reino mineral, há palavras tanto do universo da

natureza quanto das construções humanas, como ‘ametista’, ‘rubi’, ‘pedras’,

‘cavernas’, ‘granito’, ‘muralhas’, ‘mosteiro’, ‘aquedutos’, ‘pontes’,

‘estradas’, ‘paredes’, ‘castelos’, ‘ouro’ e ‘ferro’. (OLIVEIRA, 2013, p.132).

O uso desses elementos da natureza aponta para o fato do mênstruo ser um fluído

natural, assim como a presença de palavras que dizem respeito às construções humanas

reafirmam o seu caráter sociocultural, pois ele se torna partícipe do contexto social ao

construir-se com base em discursos diversos, advindos da religião, do mercado publicitário,

da medicina, o que o leva a assumir conotações criadas pelo homem.

É com base nesse campo lexical tão vasto e metaforizado que a autora vai expondo

sua percepção sobre esse sangue mensal, rompendo com um silêncio advindo do fato de se

considerar esse um tema a ser suprimido.

1.3.3 Tabu: sua acepção e ligação com o fluxo menstrual feminino

No título desta dissertação está presente a palavra “tabu”. Faz-se necessário, antes de

qualquer análise, expor o que esse termo significa e como é possível relacioná-lo à

menstruação. Para tanto, considerou-se o que diz Freud em seu livro Totem e Tabu e se

menciona José Carlos Rodrigues e o conceito que fornece em Tabu do corpo. Só então após

essas exposições é que se conduz o leitor a entender sobre a importância de estudar Rosa

Sangrenta com base na ressignificação do tabu da menstruação, pois, ao fazer isso, salienta-se

como o texto literário hortiano reelabora a maneira de entender tal fluido, gerando, em

consequência, uma nova relação com ele e trabalhando suas múltiplas faces, indo, portanto,

para além de uma abordagem estritamente biológica, porém sem deixar de acioná-la quando

necessário.

Freud discorre, ao longo do seu livro, sobre pontos de contato entre o tabu e a

neurose obsessiva. Inicia seu ensaio pontuando a dificuldade que a tradução dessa palavra

gera e então comenta:

O significado de “tabu” se divide, para nós, em duas direções opostas. Por

um lado quer dizer “santo, consagrado”; por outro, “inquietante, perigoso,

proibido, impuro”. O contrário de “tabu”, em polinésio, é noa, ou seja,

35

“habitual, acessível a todos”. Assim, o tabu está ligado à ideia de algo

reservado, exprime-se em proibições e restrições, essencialmente. A nossa

expressão “temor sagrado” corresponde frequentemente ao sentido de

“tabu”. (FREUD, 2013, p. 12).

Assim, a palavra tabu se desdobra em torno do que é sagrado e do que é impuro e

restringe o contato com tudo que contemple essas esferas, culminando em punição e

necessidade de purificação, caso seja transgredido. É em vista desse distanciamento que surge

o sentimento de temor, pois se lida com o desconhecido, ou melhor, com o que foge do

comum.

O autor também destaca que o tabu, ao contrário das proibições religiosas, tem

origem desconhecida e sendo uma instituição social, uma criação cultural, acaba por se

relacionar com o contexto histórico-social que o cerca. Para estender sua discussão e acessar

outras declarações sobre esse tema, ele cita Northcote Thomas, a fim de conseguir uma

descrição imparcial do tabu, e Wilhelm Wundt, pois o autor promete remontar às raízes da

ideia de tabu.

O primeiro apresenta o tema a partir de três pontos: o que o tabu abrange, as classes

de tabu e os objetos de tabu. Resumindo o que diz o autor, tem-se que o tabu envolve o caráter

sagrado e/ou impuro, as proibições derivadas desse caráter e a santidade e/ou impureza que

resulta da violação da proibição. No que tange às classes, há o tabu natural, inerente a uma

pessoa ou coisa; o que é comunicado, adquirido ou imposto por um sacerdote, chefe ou outro

alguém, e o intermediário que envolve os dois fatores anteriores. Já os objetos do tabu

abrangem pessoas importantes, os fracos, cadáveres, proteção contra espíritos e deuses,

proteção de crianças ainda não nascidas ou pequenas e a salvaguarda de ladrões.

Northcote Thomas traz uma visão bem didática acerca do tabu e mostra que a

atuação dessa força é ampla, envolve desde pessoas a coisas, bem como trata do castigo que

advém da quebra do tabu. Originalmente cabia esse trabalho a uma instância interior, de efeito

automático. Mais tarde a punição se tornou atribuição do poder divino, até que coube à

sociedade punir os infratores. Mas o que acontece com quem o viola? Primeiramente, quem o

infringe também se torna tabu. Por essa razão sofre uma penitência e passa pela purificação,

retornando ao seu estado inicial.

Note que o tabu é transmissível e essa característica leva a procura por eliminá-lo

com cerimônias de expiação. Explica-se esse ponto apoiado no contexto bíblico,

especificamente do livro de Levítico, capítulo 15, que trata das imundícies provenientes de

homens e mulheres, enfocando, no caso da última, o seu sangue menstrual.

36

A mulher, quando tiver o fluxo de sangue, se este for o fluxo costumado do

seu corpo, estará sete dias na sua menstruação, e qualquer que a tocar será

imundo até à tarde.

Tudo sobre que ela se deitar durante a menstruação será imundo; e tudo

sobre que se assentar será imundo.

Quem tocar no leito dela lavará as suas vestes, banhar-se-á em água e será

imundo até à tarde. [...]

Se um homem coabitar com ela, e sua menstruação estiver sobre ele, será

imundo por sete dias; e toda cama sobre que ele se deitar será imunda.

Também a mulher, quando manar fluxo do seu sangue, por muitos dias fora

do tempo da sua menstruação ou quando tiver fluxo será imunda, como nos

dias de sua menstruação. [...]

Porém quando lhe cessar o fluxo, então, se contarão sete dias, e depois será

limpa. (BÍBLIA, Levítico 15: 19-21, 24-25 e 28).

Nos versículos transcritos se percebe a transmissibilidade do tabu, porque a mulher,

quando menstruada, é considerada imunda, estendendo sua condição a tudo em que tocar,

assentar, deitar. Ao término do seu fluxo cumpre com uma cerimônia e só então retoma ao

estado de pureza:

Ao oitavo dia, tomará duas rolas ou dois pombinhos e os trará ao sacerdote à

porta da tenda da congregação.

Então, o sacerdote oferecerá um, para oferta pelo pecado, e o outro, para

holocausto; o sacerdote fará, por ela, a expiação do fluxo de sua impureza

perante o Senhor. (BÍBLIA, Levítico 15: 29-30).

O relato bíblico desdobra-se em torno da dicotomia impuro x puro. A mulher, ao fim

do seu fluxo, retorna ao estado de pureza porque passa a estar em consonância com a ordem;

em contrapartida, quando impura (menstruada), ela é “inoportuna e nociva para os modelos

preestabelecidos. Por isso mesmo, simboliza perigo e poder” (CHAHON, 1982, p. 52),

devendo ser colocada à margem. Todavia o afastamento imposto é breve, isso porque,

conforme esclarece Freud, a menstruação é um tabu temporário, ao contrário do que recai

sobre os mortos, sacerdotes e chefes e tudo a eles relacionado, que é um tabu permanente.

Wilhelm Wundt, por sua vez, estuda o tabu dentro do contexto dos selvagens

australianos e o divide em classes: a dos animais, alguns deles não podem ser mortos e

devorados (núcleo do totemismo); a dos homens, os tabus que se direcionam a eles implicam

uma situação de vida excepcional; e a das plantas, árvores, casas e lugares que geram temor

ou inquietação. Quando fala da origem do tabu, liga-a ao temor da ação de poderes

demoníacos, explicação que desagrada Freud, pois em nada remonta às raízes das proibições

morais.

Freud, após expor essas visões, volta seu olhar para a psicanálise e diz que o tabu é

alvo de uma ambivalência, já que por trás das restrições impostas, há um forte desejo de

37

realizar uma ação sobre o objeto ou pessoa alvo do tabu, ao mesmo tempo em que não se pode

realizá-lo e convive-se com o sentimento de abominação. Logo, as proibições que tornam algo

ou alguém tabu contam com uma atitude ambivalente: não há nada mais que gostariam de

fazer a não ser infringir o tabu. Assim, obedecê-lo é renunciar a algo que se deseja, bem como

reparar a violação do tabu pela expiação ou penitência também é renunciar a algum bem ou

alguma liberdade.

Destarte, para Freud, o tabu tem duplo sentido, não porque corresponda ao sagrado e

impuro, como diz Wundt, contudo pela ambivalência que gera e o que dela se origina.

Podem-se resumir as considerações feitas no ensaio freudiano por meio do esquema abaixo:

Figura 1: O tabu na perspectiva freudiana

Fonte: Autoria Própria

Não se sabe ao certo quando as proibições do tabu surgiram, entretanto elas foram

impostas e seguiram sendo levadas adiante. É uma autoridade que as impõe, limitando o

desenvolvimento dos desejos humanos. Ao obedecer ao tabu se nega o desejo de agir sobre o

que é vetado, mas nem por isso a tentação deixa de existir. Quando ele é violado, provoca-se a

inveja: “por que lhe deveria ser permitido o que a outros é proibido? Ele é, portanto,

realmente contagioso, na medida em que todo exemplo convida à imitação, e por isso tem de

ser evitado.” (FREUD, 2013, p. 27). Para que outros não o descumpram, é preciso que o erro

seja reparado, renunciando-se a algo, para que posteriormente se volte a renunciar a quebra do

tabu.

Quanto a José Carlos Rodrigues, a sua discussão acerca do tabu é mais sucinta, já

38

que concentra seus esforços a falar das diferentes constituições culturais e como lidam com os

mortos, com o sexo e outros aspectos ligados ao corpo e suas construções. No entanto, quando

fala do tabu, parece retomar o significado polinésio da palavra, já que formula seu conceito se

baseando nas noções de sagrado, inquietante, proibido e impuro, conforme se percebe na

citação a seguir:

O tabu isola tudo o que é sagrado, inquietante, proibido ou impuro;

estabelece reserva, proibições, restrições; opõe-se ao ordinário, ao comum,

ao acessível a todos. As pessoas e objetos tabu são sede de extraordinária

energia e de uma força incomum - espécie de carga elétrica que se abandona

incontinente sobre o transgressor, ou sobre aquele que não se muniu dos

cuidados rituais de conduta diante do objeto sagrado. (RODRIGUES, 1983,

p. 26).

Duas aproximações entre os textos de Rodrigues (1983) e Freud (2013) são

possíveis. A primeira é quanto ao tabu estar acima do que é habitual, e a segunda é a

compreensão de que dele advém de um poder capaz de ser transmitido a outros. Mas aqui

encerram as semelhanças nos discursos, já que Freud vai muito além ao tratar o tema.

Ao fim dessas exposições, que pretenderam conceituar o tabu, passa-se a relacioná-

las à menstruação. Freud, como se pontuou antes, deixa claro que não se sabe quando surge

um tabu, mas mostrou que as proibições provocam um sentimento de ambivalência, caso do

mênstruo, que condiciona as mulheres a um estado de impureza temporário que, por fugir da

ordem, torna-a capaz de gerar uma inquietação, como a registrada por Aristóteles e Plínio, o

velho, que diziam que a mulher menstruada tinha um poder no olhar capaz de tirar o

polimento da superfície e de enfeitiçar aqueles a quem esse olhar fosse dirigido ou parar

relâmpagos, furacões e chuvas de granizo. Essa inquietação se reflete em crenças que variam

entre as diferentes culturas e mostra que de fato o tabu é uma instituição social, adaptável aos

diferentes contextos histórico-sociais, sendo levado a cabo indistintamente, sem que haja um

questionamento sobre o porquê reproduzi-lo.

Cecília Sardenberg (1994), ao colocar em foco as diferentes práticas simbólicas

associadas ao mênstruo, começa falando das restrições alimentares impostas à mulher

menstruada.

Em Piaçabucu, região do Vale do Rio São Francisco em Alagoas, as mulheres não

devem comer ananás, mamão, laranja, pinha, limão, jerimum, quiabo, maxixe, nem tomar

nada gelado, comer coisas azedas ou que leve coco em seu preparo. Há também uma restrição

em relação ao consumo de leite, pois ele produz ‘flores brancas’ ou ‘fungações’. Há também

atividades a evitar, tais como o preparo de bolo ou mexer mingau, pois eles podem não atingir

39

o ponto desejado; costurar em ‘máquina de pé’, montar em cavalos ruços e ruços-pedreses,

porque prejudicam a saúde.

Na comunidade Manquiri, elas não são aceitas durante a operação da queima,

tampouco trabalham quando estão nesse estado. Em comunidades de pescadores, proíbe-se

que participem da pesca e toquem em instrumentos utilizados para esse fim, como canoas e

redes.

No âmbito religioso, elas são excluídas de rituais e de atividades que estejam

direcionadas para o universo do sagrado. Nas religiões de matriz judaico-cristã, essas

limitações são mais fortes, mas nem por isso deixam de ocorrer no candomblé baiano, em que

se veta a participação delas em rituais mais dramáticos, sobretudo nos de iniciação das filhas-

de-santo. Em algumas localidades, as benzedeiras também são privadas de benzer se estão

menstruadas, pois, segundo alguns, “dá tudo pra trás”.

A essas tantas limitações se somam maneiras de suprimir o sangue menstrual para

que não seja visto, seu cheiro não seja sentido, criando-se na indústria farmacêutica e de

cosméticos, produtos com essa finalidade, que tornam o tabu da menstruação lucrativo e um

meio de reforçar o estereótipo de corpo perfeito, que surge a partir do século XX e segue em

vigência. Nessa linha de pensamento, Claudia Ratti escreve que

O tabu da menstruação relaciona-se [...] com a idealização do corpo perfeito:

que não sangra, que não sente, não tem processos naturais. Esconde-se,

então, tudo o que é tido como “imperfeito” e, consequentemente, tudo que

está vinculado à vagina. (RATTI et al., 2015, p. 5).

Como resultado desse processo, repudia-se esse fluido de origem natural, que

encontra nos discursos correntes, enraizados no machismo, respaldo para a permanência dessa

reação. Isso leva Thaís de Souza a conjecturar:

Até que ponto essas reações com relação ao mênstruo são construídas como

frutos de uma sociedade misógina que censura o corpo feminino em todas

as instâncias que não servem para o prazer sexual dos homens, e como a

menstruação seria tratada se fizesse parte da fisiologia dos corpos

masculinos. (SOUZA, 2017, p. 313).

Certamente não há como fornecer uma resposta precisa para a ponderação feita no

excerto, mas as reações referidas são as que se baseiam no nojo, na repulsa, no incômodo e

que querem apagar o que é fisiológico, recorrendo, inclusive, à própria linguagem para

auxiliar nesse apagamento, pois, ao se omitir a expressão “estou menstruada” e substituí-la

por metáforas – estar de chico, de bode, estar de regras, naqueles dias, estar doente,

indisposta, doente dos tempos – , “é como se ele deixasse de existir. Afinal, é quando

40

denominamos os objetos e fenômenos que eles passam a ser materiais.” (RATTI et al., 2015,

p. 9).

Mediante o exposto, a menstruação é um tabu pela condição temporária de impureza

que confere à mulher e permanece assim devido às crenças e práticas simbólicas que cada

grupo social lhe atribui. Ademais, esse tabu segue em vigor porque agora favorece o lucro,

obtido a partir de um ideal feminino inalcançável, mas que se vende como possível e

necessário para quem quer se sentir “aceito” no corpo social.

Nos próximos capítulos, analisa-se o objeto desta pesquisa, Rosa Sangrenta, a fim de

mostrar como a mesma linguagem que é capaz de apagar a menstruação, pode ser tomada

para ressignificá-la.

41

CAPÍTULO II

O ESPAÇO DO GOZO

Na breve abordagem feita sobre o corpo da mulher ao longo da história e as tensões

que sobre ele recaíram, viu-se que por muito tempo foi inconcebível a associação entre

mulher e prazer, pois dele era privada sob a alegação de que seu corpo estava ao serviço da

natureza e dos interesses institucionais, dada sua capacidade de procriar. Contudo, deixou-se

claro também que para a poetisa portuguesa Maria Teresa Horta o corpo feminino se faz

desejoso e desejável, sendo, portanto, um legítimo espaço do gozo.

O poema que antecede os períodos que organizam o livro é compreendido como uma

espécie de epígrafe criada pela própria autora, objetivando, possivelmente, apresentar o que

pode ser esperado do livro: as temáticas que aborda e sob qual perspectiva, sua organização −

que, como se verá mais à frente, obedece a uma gradação −, além de apresentar o corpo da

mulher, enfocando na rosa − metáfora para a genitália feminina − que quando estimulada

acarreta o prazer, mas que paralelamente menstrua a cada mês e vive a maternidade se assim

quiser sua detentora.

De forma breve, o poema a que aqui se refere, possui forte carga sinestésica.

Apropriando-se dos sentidos para falar da genitália feminina e do ato sexual, três palavras

entram em foco: prazer, menstruação e maternidade. As três ações são satisfatórias à mulher

hortiana e se dão no espaço do corpo. Ao mencionar as duas últimas, o eu-lírico mostra que

elas não excluem o alcance do prazer sexual, antes se encadeiam como etapas que culminam

na imagem da mulher-mãe.

O corpo feminino é, assim, o espaço do gozo, pois nele a mulher se satisfaz: satisfaz-

se com o jogo sexual, com seu parceiro, com sua menstruação, que não é um fenômeno

biológico limitante, com a maternidade, que não é apresentada de forma compulsória, contudo

como escolha de quem tem liberdade por optar querê-la ou não. Desta maneira, na medida em

que a mulher encontra seu gozo no prazer, no mênstruo e na maternidade, ela transgride os

códigos sociais que tentam lhe cercear, porém na escrita de Horta são rompidos, pois a mulher

a quem dá voz ocupa o lugar de sujeito de suas ações.

Por fim, para embasar este capítulo, três autoras serão usadas, Conceição Flores

(2018), Silvia Nunes (2011) e Maria Rita Kehl (1990). As proposições dessas estudiosas serão

de grande valia para a abordagem do poema e suas significações, como também de alguns dos

temas presentes em seus versos, a maternidade e o desejo, tratados particularmente pelas duas

últimas.

42

2.1 Poética da liberdade

Uma rosa que sangra

entre as pernas

no côncavo do corpo adormecida

Uma rosa no ventre

entreaberta

em si própria rasgada, enlouquecida

Uma

rosa de febre

respirada

tecida nos sucos do desdém

Orgástica - voraz

e decepada

pétala a pétala lambida e desenhada

O caule erguido

no golpe

em que vem

Uma rosa de fogo

incendiada

de lábios mansos fechados sobre a língua

De sucos doces

e de licores que cavam

esse outro gosto travado sobre a língua

Uma rosa mátria

de menstruo legado

espécie de pacto - de acto

ou de sina

Com um pequeno clitóris alto

de súbito crescido

e tumefacto

indo explodir no fundo da vagina

Uma rosa poisada

ali no quarto

entre as coxas largada e sem doçura

Carnívora, ardente e esfomeada

de tudo o que sedento

é já fissura

Uma rosa de seda

de sede

de humidade

43

Uma rosa de pele

uma ametista breve

Um rubi sangrando entre as pálpebras

Fazendo estremecer

as espáduas

ao de leve

Uma rosa!

Uma rosa!

Uma flor calada

No limite do corpo e da raiz

indo buscar ao útero

a sua outra face:

Uma rosa de púrpura

Uma rosa de saxe

Uma rosa de orgasmo e de cetim

(HORTA, 1987, p. 11-17).

O poema acima antecede todos os períodos que compõem o livro. A partir dele a

autora introduz não só a metáfora da rosa, caracterizando-a e situando-a dentro do espaço do

corpo, como os temas que pretende abordar no livro, sendo eles: o corpo feminino como

aquele que deseja, menstrua e procria. Tendo por base uma postura que defende a liberdade da

mulher conhecer a si e aos fenômenos biológicos pelos quais passa, têm-se, em Rosa

Sangrenta, os sentidos, o sexo, a relação entre mãe-filha e com outras mulheres − suas

ancestrais − como ações e sensações úteis à obtenção desse conhecimento.

No poema em questão, Horta evidencia o que Constância Lima Duarte (2015) chama

de poética da liberdade, pois ao nomear fluidos e partes do corpo que permaneceram

silenciados pelo cânone - que dita o que deve ser poetizado e o que não cabe ocupar o campo

da produção literária - ela o transgride.

Nota-se que ele não é intitulado. Essa ausência de um nome que possa, de alguma

maneira, direcionar o leitor ou fornecer uma ideia inicial não é exclusividade do livro Rosa

Sangrenta, mas de muitos outros escritos de Teresa Horta. Detendo-se a este, o fato de o

poema não ter título e iniciar com o verso “Uma rosa que sangra” lança bruscamente sobre o

interlocutor essa insólita imagem que vai se reiterando ao longo das demais estrofes com a

ajuda de outros qualificadores destinados à rosa e que demarca uma das particularidades do

corpo feminino que é a menstruação.

Conceição Flores (2018), ao falar da rosa, sugere que ela é a metáfora central do

44

livro e afirma que sua presença remete para o belo, tendo em vista sua forma e perfume, além

de dar dois possíveis direcionamentos à obra:

por um lado, a menstruação é içada a um padrão de beleza, tanto pela cor

como pelo cheiro, indo de encontro à tradição, em que predomina(va) uma

imagem negativa; (2) por outro lado, o sangue menstrual é elevado a uma

categoria positiva, transcendendo, assim, o conceito de “imundícia”, posto

pelas leis bíblicas (FLORES, 2018, p. 27).

Assim, seu caminho de leitura desconstrói a carga valorativa negativa dada ao

mênstruo, para em seguida construir uma nova, retomando para isso as tradições judaico-

cristãs presentes no livro bíblico de Levítico, a fim de apresentá-las e então rompê-las. Sua

proposta é transcender a cultura e seus ditames, de maneira que a mulher volte seu olhar para

si e suas ancestrais, relacionando-se com seu corpo livremente.

O caminho de pesquisa escolhido por Flores (2018) se aproxima do que aqui se

busca fazer, na medida em que se compreende que esse poema, e os demais do livro,

assumem um viés transgressor ao romper com as imposições sociais que procuram minimizar

a atuação do corpo feminino no contexto social e também privado, pois quando se pensa na

vida sexual da mulher, vê-se que ela permaneceu por muito tempo regrada, condicionada à

procriação e limitada a conferir desejo ao homem, sem que pudesse igualmente gozá-lo.

Cabe dizer ainda que a rosa é uma metonímia do corpo feminino que, nesse primeiro

verso, remonta ao título da obra, Rosa Sangrenta, evidenciando a preocupação da autora em

articular seus poemas em torno desse título, bem como do tema que propõe poetizar.

Ainda na primeira estrofe, os versos dois e três localizam a rosa no côncavo do

corpo, ou seja, indica-se que ela é uma superfície com o centro mais profundo do que a borda.

Assim sendo, a rosa nada mais é do que o aparelho genital feminino, que se caracteriza como

adormecida, porque depende de estímulos, sejam eles externos, promovidos pelo toque, sejam

internos, provocados por estímulos psicológicos para liberar certos fluidos, como o da

excitação e o mênstruo.

A estrofe seguinte, ao indicar a vulva como “entreaberta”, faz referência ao fato de

que o órgão sexual da mulher se mostra parcialmente, não podendo ser visto por completo,

assim como pontua que ela parece se abrir em duas metades - por isso o verso três dessa

estrofe se refere a ela como “rasgada” -, estando em cada extremidade os lábios maiores e

menores, enquanto em seu centro está o clitóris, a abertura da uretra e abertura vaginal.

A descrição do aparelho genital feminino é feita de forma lírica e sua presença

reforça a postura transgressora da poetisa, pois ao se falar do que se omite na literatura e que

45

no contexto social aparece como proibição (o corpo, o sexo da mulher, seus desejos sexuais),

obriga os proibidores a confrontar o que tentam silenciar, mas que na literatura de autoria

feminina, por exemplo, encontra um lugar para se revelar, se presentificar.

A repetição da expressão “Uma rosa” ao longo de quase todo o poema, aparecendo

implicitamente em algumas estrofes, leva a uma dêixis anafórica, que constrói em torno de si

as imagens presentes no poema, assim como chama atenção do outro para que se detenha ao

que o sujeito poético diz. Além disso, a presença do artigo indefinido “uma” evidencia que se

fala da rosa de modo amplo, sem especificá-la, pois se trata de uma rosa que está em todas as

mulheres. Mulheres essas que se procuravam controlar, porém, à medida que conquistam

direitos, dentre eles, o de gozar livremente das sensações e processos inerentes à sua vulva,

rompem com as amarras que a cerceiam.

Vinculada à anáfora estão os qualificativos dessa “uma rosa”, que a personificam de

maneira a revelar que ela é tanto calma (adormecida, calada, largada) como violenta

(orgástica, voraz, enlouquecida, carnívora, rasgada, decepada, incendiada, ardente,

esfomeada). Esses estados variados dados à rosa, que se situam em polos opostos, permitem

resgatar a dualidade com que a mulher é sempre referenciada: ora santa ora prostituta, ora

recatada ora devassa. Tais estereótipos, que delinearam as funções cabíveis à mulher e ditaram

seus aspectos psicológicos, foram sendo impostos ao longo dos séculos, conforme se

procurava defini-la.

Silvia Nunes (2011) esclarece que, até o século XVII, a maneira como a mulher era

enxergada se pautava na ideia de que o sexo feminino era carnal, dotado de sentimentos

maléficos e desregrado. Na Idade Média e Renascimento a mulher era vista como perigosa e

diabólica, inclinada à luxúria e aos excessos sexuais, portanto, carregava o mal e a morte.

Já no século XVIII, a mulher, que antes permanecia subjugada e tinha seu corpo

compreendido como uma versão inferior do masculino, tem redefinida sua posição, pois a

sociedade burguesa tem como nova preocupação a mortalidade infantil e o aperfeiçoamento

físico e moral das crianças. Assim, conforme Nunes, “[...] a partir da necessidade de redefinir

a posição da mulher na família e na sociedade europeia, se observa uma nova forma de pensar

a diferença entre os sexos e paralelamente uma nova concepção sobre a mulher” (NUNES,

2011, p. 105), que agora terá a maternidade como função principal, já que o útero será

considerado pelos médicos um órgão nobre e característico da mulher. Se antes ela era

considerada como portadora de um comportamento excessivo, agora ela é tida como frágil,

doce, afetiva, passiva e com capacidade para se sacrificar, pois são essas as características que

a tornam apta a cuidar do outro e ter sucesso no casamento e na vida familiar.

46

Como se percebe, a medicina desempenhou papel primordial nesse processo,

reiterando a divisão dos sexos, atribuindo funções para cada um e limitando seus espaços de

atuação. A mulher, que sempre teve seu corpo institucionalizado, nesse momento é

acompanhada ainda mais de perto. É neste sentido que Nunes afirma: “Qualquer desejo ou

comportamento sexual que extravasasse esses limites era tratado como um “excesso”, como

produto de uma degeneração psíquica, como uma patologia.” (NUNES, 2011, p. 106). É então

que surge a figura da histérica, a rebelde desregrada que contraria todas as imposições feitas

ao seu sexo e seu corpo.

Da mesma maneira que a histérica não se priva do desejo e de desfrutar seu corpo -

salvo o caso daquelas que, mesmo querendo concretizá-lo, não o faziam por considerá-lo

pecaminoso ou moralmente ilícito, que o reprimiam, sendo essa a causa do seu adoecimento -,

o eu-lírico do poema também se permite usá-lo livremente, mesmo que haja uma tensão, que

desaparece gradativamente, conforme ele descreve o corpo e o sexo oral.

Na terceira estrofe se fala da respiração febril da rosa (“Uma rosa de febre”)

decorrente do desdém, do tratamento pejorativo dado ao órgão sexual feminino e, por

extensão, à mulher que manifesta desejo sexual. Portanto, essa febre é um estado que sintetiza

o auge da tensão a que chega a mulher devido aos processos punitivos impostos a ela quando

transgride a interdição. Todavia, essa interdição do desejo sexual feminino manifestada nessa

estrofe é rompida nas seguintes, nas de número 4 a 7, que enfocam na liberdade do corpo do

sujeito poético como forma de cobrar o direito de usufruí-lo, de colocar em prática suas

preferências sexuais e de ressaltar seu desejo em uma parte específica de seu corpo, a vulva,

parte externa e visível da genitália feminina que aparece simbolicamente para quebrar o

silêncio de que historicamente o corpo feminino foi alvo.

2.2. O sujeito desejante

Percebe-se que é partir da terceira estrofe que o desejo se presentifica no poema pela

palavra “enlouquecida”, mas somente na quarta estrofe, capta-se o que motiva seu despertar e

gera o prazer (“orgástica - voraz”), a cunilíngua. A descrição poética se volta para o ato do

parceiro lamber a vulva, que movimenta sua língua como se estivesse desenhando a rosa.

Quando se pensa na questão do desejo, tem-se em vista que todos são sujeitos

desejantes. Maria Rita Kehl (1990) afirma que na realidade residem os objetos do desejo

humano e destaca que o real é contemplado com dois sentidos de compreensão. O primeiro

toma o real como aquilo que fala ao corpo, prazer que aplaca a carne, mas também ameaça a

vida, já que pode modificá-la, mutilá-la. O segundo aproxima o real do cultural, sendo aquele

47

objeto e relação da cultura de que faz parte. Logo, a cultura é um campo simbólico no qual

prazer e desprazer dependem de um código compartilhado.

Esse código determina o limite do possível, o aceitável às regras em vigência,

entretanto não é estático, o sujeito o re-simboliza continuamente. Ainda assim, certas pulsões

sexuais são recalcadas por não cumprirem as exigências da realidade, daí haver fantasias que

substituem o prazer sexual concreto.

No caso dos textos de Horta, os códigos sofrem sempre rearranjos, se assim não

fosse, as representações femininas de sua escrita permaneceriam sendo as das mulheres

castas, imaculadas, inalcançáveis ou maternais. Antes, porém, a mulher que ganha contorno

em seus versos é aquela que deseja e pelo desejo revela seu corpo, o outro com quem se

relaciona e quem se é. Afinal, como assinala Kehl, seguir desejando é condição para que todo

sujeito permaneça sendo, ou melhor, siga existindo.

No poema em análise, o desejo do eu-lírico a torna sujeito. A mulher desejante

apresentada, que enlouquece ao toque da língua do parceiro, que em sua rosa orgástica e voraz

sente o prazer, é a re-simbolização dos ditames que outrora a manteve como paciente nas

relações sexuais. A figura feminina hortiana é sujeito desejante porque cria, pelo gozar no

corpo, uma realidade em que é livre e é possível tornar outras também.

Seguindo o estudo dos versos, a partir do de número treze têm-se a tematização da

penetração: “O caule erguido”, indica o pênis ereto, “no golpe // em que se vem”, alude ao

momento em que o pênis penetra a vagina, promovendo em uma só ação o prazer e a dor.

Devido à penetração, o corpo é estimulado a expelir os “sucos doces// e de licores

que cavam”, permitindo que o pênis entre ainda mais fundo na vagina, fazendo com que “esse

outro gosto” - o prazer que sente devido à penetração - trave sobre a língua, isto é, os

músculos da vagina pressionem-se sobre o pênis. Essa imagem, inserida pelo verso “de lábios

mansos fechados sobre a língua”, também não deixa de remeter à boca acariciando a língua

durante o beijo. Observe que os versos remontam o ato sexual de forma delicada, sem apelar

ao pornográfico.

As estrofes de número três a sete descrevem o ato sexual que se inicia com a

cunilíngua, seguida da penetração. O eu-lírico feminino traz cada uma das etapas que levam à

atividade sexual e segue reiterando a poética da liberdade ao metaforizar os lábios da vagina,

o pênis e os líquidos expelidos devido ao orgasmo, bem como os que lubrificam a vagina.

À medida que detalha os desdobramentos da relação sexual, o sujeito poético e seu

parceiro assumem o lugar de objeto do desejo de outrem, de agente das ações mencionadas e

48

também agem como testemunha desse momento que possui viés de ritual de iniciação, dada a

observância de etapas que desvelam o corpo e ordenam-se: sente-se primeiro o desejo, em

seguida o outro faz as carícias, após isso há a penetração, para então sentir o prazer gerado

pelo movimento do pênis, capaz de fazer desprender do corpo certos líquidos.

Dessa relação e do modo como ela é posta ao leitor, percebe-se uma pedagogia que

direciona outros iniciantes nesse processo de liberdade do fazer sexo e do gozar. Portanto,

mais do que uma introdução da perspectiva que Teresa Horta assumirá ao longo de seu livro e

dos temas que receberão tratamento, esse poema é pedagógico porque em certa medida

instrui, educa o leitor mediante a abordagem das diferentes fases do prazer, envolvendo o

querer conhecer a si e ao outro sendo tocado e tocando-se, sendo sentido e sentindo-se,

considerando que, conforme afirma Maria Rita:

A atividade sexual propriamente dita não é simplesmente uma ocupação do

corpo. É também linguagem, investigação, criação de significados, troca

simbólica [...]. Investigação, no próprio corpo e no corpo do outro, sobre a

falta, o desejo alheio, os mistérios do prazer, os limites do ego e da

consciência. (KEHL, 1990, p. 379).

Conforme o eu-lírico oferta seu corpo ao outro, ele conhece a si mesmo e dá-se a

conhecer, estabelecendo uma troca que vai para além do que é corporal. Perceba que a

liberdade perpassa o poema ao requerer poder falar sobre o corpo, em especial o da mulher, a

partir do sexo e tratá-lo dessa forma é uma abertura transgressora para reivindicar sua

libertação e a da mente, pois ambos são alvos dos ditames histórico-sociais que as diferentes

sociedades androcêntricas lhes impuseram.

2.3 A maternidade como pacto, acto ou sina

Designou-se à mulher um modelo único, o materno. Como mencionado no tópico

2.1, ele entra em vigor nos séculos XVIII e XIX, favorecendo uma nova constituição familiar

burguesa, agora com a mãe enquanto figura privilegiada e responsável pelo cuidado com os

filhos.

Anterior a esse momento, vigorava uma associação da mulher à lascívia, luxúria, tida

como um ser perigoso e diabólico, alguém incapaz de ter autocontrole, mas conforme a

maternidade aparece como solução para os problemas enfrentados na sociedade, essa visão do

sexo feminino é alterada:

À medida que a maternidade aparece como um ideal, os médicos vão rejeitar

a imagem do sexo feminino como imperfeito e passam a olhá-lo como

sexualmente perfeito; o útero é considerado um órgão nobre e característico

49

da mulher. O corpo feminino vai passar a ser tratado como possuindo

características específicas, que determinariam sua vocação para a

maternidade. (NUNES, 2011, P. 105).

Por conta do útero, recai sobre a mulher a vocação materna, mantendo limitado seu

cerco de atuação à esfera doméstica, para ali desempenhar o papel de boa mãe e esposa. A

associação da mulher à maternidade ainda perdura na atualidade, mas com novos contornos.

Ainda que não haja mais uma imposição tão direta de que mulheres devem se tornar mães,

essa mentalidade não foi superada e sobrevive, por exemplo, em discursos religiosos e na

propagada ideia de que “a mulher só é completa se casar e tiver filhos”. No poema, por outro

lado, a maternidade difere de qualquer obrigação, imposição ou destino natural, é, como se

verá, um pacto, acto e sina.

A oitava estrofe revela um outro lado da rosa - introduzido pela palavra “mátria” - o

de que a vagina, como parte do aparelho reprodutor da mulher, gera duas situações

excludentes: a menstruação ou a gravidez (maternidade). Se a mulher menstrua, ela não

engravida, e isso significa, de certo modo, uma espécie de aborto. Aqui é retomada a ideia

apresentada no primeiro verso do poema, a da rosa que menstrua, agora incluindo que ela,

enquanto um “legado”, aproxima as mulheres por uma “espécie de pacto - acto // ou de sina”.

Pensando nos significados atribuídos a cada um desses termos, “pacto” é o comum

acordo entre duas ou mais pessoas de um grupo. Em contrapartida, na sociedade patriarcal há

um pacto social que submete as mulheres a uma hierarquia, a uma posição subalterna, que se

reflete em seus lugares de ocupação, afazeres, comportamentos.

O “acto”, por sua vez, é uma ação guiada por uma consciência livre, que avalia,

decide sobre o que lhe é proposto ou determinado e aparece no poema para confrontar

diretamente a ideia introduzida pela palavra anterior, já que sugere uma mulher capaz de

escolher viver a maternidade ou não.

Tal significado a distancia também da noção advinda de “sina”, que recupera o

pensamento de que a mulher nasceu para procriar, ainda que, como se torna possível perceber,

Rosa Sangrenta não reverbera essa ideia, ao contrário, coloca-a como uma possibilidade que o

corpo confere, mas nem por isso precisa acontecer. Veja que a posição dada ao vocábulo

“acto” é provocativa, pois se situa entre duas palavras que parecem impor a maternidade

como única alternativa à mulher, rompendo-as e dando um novo sentido ao materno.

Esse legado se estabelece a partir da relação entre mãe e filha, que tem o mênstruo

como elemento hereditário, transferido da primeira para a segunda ao ser formada no ventre

da primeira. No período “A Mãe” essa ideia é mais bem evidenciada, no entanto, o que se

50

percebe no poema em análise é a tentativa da autora de mostrar como a figura materna é o elo

entre as mulheres. Quanto ao termo “sina”, cujo significado dá ideia de destino,

predestinação, pode-se relacioná-lo ao corpo da mulher por ele ser, devido à menstruação,

condicionado a uma ritmicidade mensal, a uma ovulação que pode ser entendida positiva ou

negativamente como sina.

Como já indicado em outro momento, Horta nomeia o interdito em sua poética,

prova disso é a presença da palavra “clitóris” na nona estrofe, que inicialmente é colocado

como uma parte pequena, mas que se altera na medida em que é estimulado, “de súbito

crescido // e tumefacto, // indo explodir no fundo da vagina”. Ao ser tocado ou estimulado

psicologicamente, gera uma excitação, inchando-se, pois passa a receber um maior fluxo

sanguíneo, já que os vasos de sangue se dilatam.

Desse toque, que sensibiliza o corpo e transforma o clitóris, dá-se o orgasmo que,

conforme o sujeito do poema assinala, explode no fundo da vagina. A descrição do clitóris e

do modo como se altera no ato sexual, assim como do estímulo da vulva e da vagina, aparece

por meio de termos da medicina, o que valoriza o aparelho sexual e evidencia o cuidado da

autora em aproximar dois campos que parecem opostos, mas são complementares em sua

poética.

O eu-lírico, ao citar o orgasmo clitoridiano, desconstrói a teoria freudiana contida em

Três ensaios sobre a teoria da sexualidade – conforme escreve Nunes –, de que “a atividade

auto-erótica da mulher possui caráter masculino.” (NUNES, 2000, 1973), pois as pulsões e os

comportamentos ativos das meninas – ampliando-se aqui para as mulheres – seriam sinais de

sua masculinidade. Para Freud, o clitóris seria uma marca dessa masculinidade e a libido uma

energia sexual ativa de caráter masculino. Conforme as distinções entre homens e mulheres

foram sendo pensadas e inseridas no contexto social, houve a separação entre mulher e prazer,

pois o último não era útil à reprodução:

A excitação e o orgasmo clitoridiano foram considerados um fator

secundário ou mesmo inadequado para a fisiologia reprodutiva, sendo então

definidos como focos de perturbação da sensibilidade nervosa. A partir desse

momento, teve início uma verdadeira guerra contra o clitóris e a masturbação

clitoridiana, que passaram a ser associados às doenças nervosas, à

prostituição, à imoralidade e ao infantilismo psíquico. (NUNES, 2000, p.

178- 179).

Até o século XVIII o clitóris era o lugar da sede do prazer feminino, mas depois,

conforme a citação mostra, tornou-se um perigo, pois passa a ser representante de um

“excesso” sexual capaz de causar desregramentos.

51

O destaque dado ao clitóris no poema coloca-o no mesmo nível de desejo sexual

capaz de ser sentido pelo pênis. O eu-poético se distancia do pensamento médico-psicanalítico

tradicional ao repensar a libido da mulher e recuperar o lugar que foi renegado ao clitóris, o

de partícipe das relações sexuais e de parte do corpo capaz de causar à mulher tanto prazer

quanto sua vagina, já que para ele elas não são excludentes como fora para Freud.

No que concerne ao ritmo do poema, as estrofes de 1 a 7 apresentam uma gradação

que se assemelha a da excitação sexual até o orgasmo. Os primeiros versos dessas estrofes

possuem sílabas poéticas que se alternam entre 6 ou 4, os versos de número dois oscilam entre

3, 4, 2 ou 7; enquanto que o terceiro verso delas têm entre 10, 9 ou 11 sílabas poéticas,

remetendo a um movimento mais acelerado ou lento, que se assemelha com os movimentos

do ato sexual.

Nas demais estrofes, combinada ao ritmo, essa imagem visual, bem como o efeito

sexual criado, é reiterada por dois processos: primeiro, pela predominância de versos de até 7

sílabas poéticas precedidos de um verso mais longo, com 9 ou 10 sílabas poéticas; o segundo

é feito pela alternância de uma ou três estrofes - a 8, 15 e 16 - que possuem todas versos com

até 7 sílabas poéticas.

Nas estrofes seguintes, o sujeito do poema muda o tom com que trata da rosa. Antes

ela era enlouquecida, de febre, orgástica, voraz, de fogo, agora fica “poisada // ali no quarto //

entre as coxas largadas e sem doçura” pois o sexo se concluiu. Apesar disso, o sujeito do

poema, em seguida, se refere a ela como “carnívora”, “ardente” e “esfomeada”, indicando que

essa rosa é sempre sedenta de mais, porém, ao término da relação sexual, torna-se uma

fissura, uma fenda do corpo.

Mencionou-se antes a imagem da histérica, que surge como aquela que excede os

limites postos ao desejo da mulher. Tal como ela, o sujeito poético do poema, quer mais.

Deseja além do sexo que se impõe como uma relação sagrada, instrumento para gerar filhos,

sanar as vontades de um cônjuge ou um parceiro com quem se relacione. Essas mulheres

querem chegar ao ápice do prazer e senti-lo por toda a extensão de seu corpo, querem repeti-

lo sempre que estiverem sedentas, pois para elas o sexo independe da bênção dada por uma

instituição religiosa e de se estar ou não em um casamento, já que o enxergam como algo

sensível, concreto, um momento do corpo a corpo.

Explora-se em seguida uma sequência de imagens táteis que aparecem nos versos

“Uma rosa de seda”, remetendo à maciez e ao valor do órgão sexual feminino, tendo em conta

que a seda é um tecido nobre; “de sede”, relativo ao desejo, umidade - calor agradável desse

órgão; “Uma rosa de pele” lembrando o contato corporal; “Uma ametista breve”, cuja cor

52

arroxeada rememora a da vulva e sua durabilidade contrasta com a da rosa, esta efêmera; “Um

rubi sangrando entre as pálpebras”, outra pedra preciosa citada, mas de cor vermelha,

apontando outro possível tom para a vulva. Observa-se que a forma sensível e delicada com

que a vulva é mostrada ao leitor altera a ideia pejorativa que se tem sobre ela e sobre o desejo

feminino que é obtido por meio dela. Por fim, a parte final desse verso, faz uma analogia das

pálpebras com os grandes lábios da vulva, que estimulados a sentir prazer, levam ao

estremecimento das “espáduas // ao de leve”.

Próximo de sua conclusão, surge no poema uma estrofe composta pela repetição de

um mesmo verso: “Uma rosa!”, encerrado pelo ponto de exclamação. Dele pode se inferir que

o sujeito poético enfatiza que a vagina é uma rosa, que essa imagem é uma metonímia do

corpo da mulher, e que põe em cena seus desejos e frustrações, trabalhados a partir de um

lugar que busca dar vazão a eles.

Ao reiterar isso, o sujeito poético assume novamente a posição de confronto aos

ditames sociais, porque se por um lado a rosa é escondida, rebaixada, depreciada, no poema

ela é valorizada, tratada de forma sensível, ressignificada, tendo suas diversas faces

trabalhadas liricamente, sendo a última delas, a da maternidade, posta como “Uma flor

calada” que busca sua raiz no útero feminino.

Isso porque embora tenha sido construída uma ideia enobrecedora a seu respeito e

por muito tempo se ter dito que a função feminina era exclusivamente procriar, pois a

natureza lhe tinha dado o útero – ideia que se tornou útil ao ideal burguês, associada ao

casamento, para que o sexo passasse a estar ao serviço da manutenção da ordem e

funcionamento social, enquanto a mulher assumia o papel de esposa e mãe em prol do bem-

estar coletivo, tendo que lidar com a reprovação do prazer sexual que se por ela fosse vivido

geraria culpa e vergonha –, pouco se falava sobre a grávida e suas necessidades, que

acabavam desvalorizadas pelas do bebê em formação, negligenciando-se as mudanças

fisiológicas e psicológicas a que ela estava submetida.

No poema, a maternidade aparece como outra face decorrente do prazer sexual, que

apesar de suas nuances, não deixa de ser “de púrpura”, logo, sagrada, “de saxe”, transmitindo

a ideia do útero como algo sólido, seguro, e também confortável, por isso “de cetim”. Essas

três imagens, simbolizando a maternidade e o útero, mostram-nos a partir de um olhar

poético, que procura, especialmente, esclarecer que estar grávida não impede o prazer sexual

(“de orgasmo”), abordado com veemência entre as estrofes 11 e 14.

A presença da maternidade nesse poema, bem como da figura da mãe que aparece

posteriormente, compondo um período específico da obra, não são colocadas pela autora com

53

o intuito de condicionar a mulher a viver essa experiência como imposição como se fez por

um longo período histórico. Ao contrário, Horta atrela essas imagens à menstruação,

estabelecendo que, por haver esse processo fisiológico, a maternidade é possível, mas esta é

facultativa, cabendo a cada mulher escolhê-la ou não.

Destarte, esse poema que abre o livro é uma síntese poética de Rosa Sangrenta,

considerando que fornece ao leitor uma ideia geral das temáticas que serão tratadas nos

períodos posteriores que estruturam o citado livro, além de apresentar a rosa e suas facetas:

aquela que deseja o prazer e sente-o a partir da relação sexual, aquela que menstrua e aquela

que gera a vida. Essas ações são capazes de levar a mulher a experienciar seu corpo sob outras

perspectivas, especialmente sua genitália que é parte tanto do processo de obtenção do prazer,

como do ato de menstruar e gestar.

Fica claro também que, no poema, o desejo é o ponto de partida para conhecer o

corpo, sendo a partir dele que o eu-lírico aborda as relações sexuais que mantém com o outro,

o parceiro. O desejo assume, nesse contexto, uma dupla significação, o que é fruto do querer

conhecer as nuances do sexo e o que suscita a reflexão sobre uma das motivações possíveis da

escrita do poema, a vontade de corromper o leitor que o ouve ou o lê, para que ele se

desprenda dos códigos que regem o contexto social. Em certa medida, é válido afirmar que o

poema, ao corromper, na verdade educa, pois incentiva a exploração das potencialidades do

corpo.

O que se perceberá ao longo dos demais poemas de Rosa Sangrenta, é que o corpo

que sangra mensalmente não é marca de inferioridade ou assujeitamento, ele não provoca

medo ou nojo, ele não deixa de ser tocado, falado ou gozado por estar nessa condição, ao

contrário, ele é experienciado por meio dos diferentes sentidos – paladar, olfato, visão, tato,

audição – para que assim a mulher alcance a sua liberdade.

Sendo assim, as temáticas que aparecem nesse primeiro poema são resgatadas nos

demais períodos da obra e tratadas amplamente. No capítulo III esses pontos serão discutidos

com maior atenção, enfocando na menstruação como ponto de partida para tratar, por

exemplo, das interdições que recaem sobre o prazer sexual, as ideias preestabelecidas de

maternidade e a relação das mulheres com esse fluido.

54

CAPÍTULO III

A FORMAÇÃO DE UM ELO ENTRE O MÊNSTRUO E AS IMAGENS DAS

MULHERES, DO CORPO, DO DESEJO E DA MÃE

Após a análise do poema introdutório de Rosa Sangrenta, passa-se a discutir os

poemas selecionados de cada um dos períodos constitutivos do livro. Nas primeiras

observações feitas nesta dissertação, foi dito que há uma organização que torna possível um

encadeamento entre cada uma das partes. A partir das exposições que serão feitas, será

possível verificar como cada período está ligado ao outro ao retomar seus temas e/ou

aprofundá-los.

Cada tópico discutirá um dos períodos do livro, sendo o 3.1 destinado a tratar de “As

Mulheres” enfocando nos poemas que tematizam as diferentes figuras femininas e como

lidam com o mênstruo, aqueles que trazem esse fluido como aspecto central do corpo da

mulher, falam da necessidade de conhecê-lo e de compreender o elo que forma entre mãe e

filha. Todos esses temas são trabalhados por um sujeito poético feminino que promove nos

versos a liberdade feminina e a superação de dogmas que possam lhe subalternizar. Em 3.2,

fala-se de “O Corpo”, período que traz as sensações provocadas pela menstruação como

conteúdo de seus poemas, nele se analisa o poema de número 2, que apresenta esse fenômeno

fisiológico como sendo um tipo de violência: um aborto.

Já em 3.3, investiga-se “O Desejo”, trabalhando a ideia de que os sujeitos são

desejantes, e por isso um corpo, ainda que menstruado, segue sendo desejável. Nesse mesmo

período, se trata do nojo e discorre-se sobre a epígrafe do livro, visando colocar o paladar

como um dos sentidos que promovem o conhecimento do fluxo menstrual. No tópico final, a

figura da mãe e da filha são recuperadas a partir da ideia de que suas vozes se cruzam e

intercalam-se nos poemas do período “A Mãe”, criando um diálogo de cunho pedagógico que

ensina sobre o corpo feminino e o que lhe é inerente.

Para trabalhar as questões pertinentes a cada tópico, recuperam-se ideias já

pontuadas em capítulos anteriores, por isso algumas citações são reiteradas indiretamente, tais

como as de Antonio Carlos Cortez (2015), Ana Maria Domingues de Oliveira (2013), Marlise

Vaz Bridi (2015), Conceição Flores (2018), Silvia Nunes (2000; 2002), Paim e Strey [20--],

José Carlos Rodrigues (1975), mas também novos autores são adicionados às explanações,

sendo eles Maria Rita Kehl (1990), Eve Ensler (2000) e Liv Strömquist (2018).

55

3.1 Uma teia de mulheres com o fluxo menstrual

Teia tanto pode ser a rede feita por uma aranha como um conjunto, estrutura. As

mulheres formam sua própria teia a partir da ligação que estabelecem umas com as outras,

sendo possível pelo que apresentam em comum: partes constitutivas do seu corpo, tal como o

fluxo menstrual. Maria Teresa Horta trabalha essa ideia inicialmente por meio das bruxas e

das mulheres pré-históricas, que são ancestrais das mulheres da atualidade, em seguida

aprofunda essa noção levando o foco para a relação mãe e filha, em que a primeira forma o

corpo da última incluindo seu mênstruo. Em “As Mulheres” essas imagens são evocadas e

trazem um sentido de contestação quanto aos preconceitos que há sobre a menstruação, e

reivindicação de um novo lugar à mulher, que por muito tempo permaneceu presa a

imposições comportamentais.

No poema de abertura do período, há a imagem da mulher que tateia sua vagina

estando menstruada, apontando para uma situação de autodescoberta.

1

Apenas um dedo nosso

no percurso da vagina,

por dentro da menstruação

tacteando o sol

(HORTA, 1987, p. 21)

O verso primeiro fornece ao leitor o dado de que um único dedo auxiliará nesse

processo de autoconhecimento, bem como a presença do pronome possessivo “nosso” traz a

indicação de que o eu-lírico é feminino, participa desse momento tematizado e coloca-se, por

meio de sua fala, como quem dirige esse “ritual” de autodescoberta sobre o corpo.

Ao tocar-se, o eu-poético se assume como sujeito do seu corpo e quer conhecer o que

lhe é interno, passeando, para tanto, seu dedo por toda a extensão da vagina e não a repelindo

ainda que menstruada, pois o toque lhe permite um duplo saber: saber sobre seu mênstruo, sua

textura, saber sobre a parte interna de sua genitália.

Importa focar no verso final “tacteando o sol”, pois ele emite uma ideia que será

recuperada em outros poemas do livro. O sol é a estrela central de todo sistema solar, os

demais corpos desse sistema giram ao seu redor e de modo similar à menstruação é central à

mulher, pois havendo a menarca, o corpo se mostra maduro para o sexo e para gestação,

assim, o mênstruo é o sol do corpo feminino.

56

No poema 1 a liberdade se traduz no toque, no saber de si e sobre si, sendo essa

mesma ideia complementada no poema seguinte, que ao remeter às mulheres da pré-história,

apela a outro sentido, o paladar. Transcreve-se abaixo o poema 2 não só para que o leitor

perceba como a poetisa faz a inserção dessas figuras históricas, mas também para mostrar

como ela descreve o relacionamento delas com seu fluxo.

2

Elas lambiam

a menstruação

limpavam as pernas

com a língua

e as pedras

a erva

Tarde fora encostadas

à boca das cavernas

(HORTA, 1987, p. 23).

A ideia de lamber a menstruação pode parecer na atualidade anti-higiênica, mas já na

epígrafe do livro é indicada como sendo necessária para tornar-se uma mulher livre. As

mulheres do poema parecem ter uma atitude um tanto quanto felina ao limparem as pernas

com a língua, remetendo aos gatos que se lambem para se higienizar. Ao aproximar essas

mulheres dos felinos a ideia de que a mulher é uma fera – também presente no poema 11 de

“A Mãe” – é resgatada.

Nesse processo de limpeza, além da língua as pedras e a erva são também usadas, o

que reitera as explanações feitas no tópico 1.3.2 A metáfora e a alusão a elementos naturais e

culturais postos nos poemas, de que o sangue menstrual enquanto elemento natural do corpo

feminino, possui esse aspecto salientado pela aproximação com outros elementos naturais,

mas estes providos pela terra.

A sequência de ações poetizadas se dá como algo comum e ocorrem “tarde fora”,

enquanto essas mulheres ficam “encostadas à boca das cavernas”. É pela presença do

vocábulo “caverna” que se infere tratar das mulheres vividas na pré-história. Mas também se

evidencia que essa palavra pode servir como metáfora para vagina, pois elas são lugares

escuros, úmidos e de certa profundidade. Considerando isso, a estrofe final pode sugerir que

após lamberem seu mênstruo, as mulheres tocavam (encostavam) em seu órgão genital.

Gradativamente Teresa Horta vai trabalhando os sentidos como meio para se

57

autoconhecer, para compreender os fenômenos do corpo. Em 1, o tato é a maneira de sentir a

vagina, em 2, o paladar deixa que se saiba o sabor do mênstruo, no poema 3, a audição será

usada, para destacar que o saber das mulheres não esteve só ao serviço delas mas também da

humanidade.

3

À roda do seu

fogo:

as bruxas

fazem – a sua fala

intervem nos partos

modificam os actos

dos homens e da história

Fervem os seus remédios

feitos:

com o mênstruo

das mulheres

(HORTA, 1987, p. 25).

Com uma ruptura sintática, promovida pelo enjambement, o poema focaliza nas

bruxas e suas ações, pondo o mênstruo como um fluido detentor de um poder capaz de alterar

os partos, os atos dos homens e a história.

As ações das bruxas sinalizam a execução de um ritual que as mostram como

conhecedoras de uma ciência – que envolve o fogo – rejeitada pela sociedade androcêntrica,

sendo ela a de serem parteiras, posição que lhes exigia um saber sobre o corpo da mulher,

sobre a experiência do parto, dando-lhes a posse de uma conhecimento pragmático incômodo

aos homens da ciência do período medieval, que não validaram o que elas dominavam.

Neste poema, a imagem do mênstruo é ambígua: de um lado ele é um mistério que

envolve as mulheres, tendo em vista que a ciência em vigor ao longo da Antiguidade, Idade

Média e mesmo no Romantismo era de pouco aprofundamento, as informações sobre a

fisiologia feminina não eram substanciais, sendo vagas e insuficientes, mas ao mesmo tempo,

retrata-se um grupo de mulheres que detêm um saber sobre o corpo feminino, contudo sem

anuência científica, porque muitos estudiosos desses períodos não aceitavam que as figuras

femininas pudessem conhecer algo que eles, naquele momento, ainda não conheciam

adequadamente.

58

Quando se cita Foucault (2010) no primeiro capítulo, viu-se que o corpo é sempre

investido por discursos que querem limitá-lo, proibi-lo, obrigá-lo, torná-lo disciplinado, dócil.

São esses investimentos que os homens desse período se propuseram a colocar em prática,

pois toda mulher livre ou que tentava ser era perigosa, por isso perseguir, castigar e matar as

bruxas eram um reflexo da tentativa de cercear as mulheres e colocá-las debaixo do seu poder.

Ferver os remédios com a própria menstruação era algo negativo, atribuído às

bruxas, mas no poema é referência ao poder intelectual do qual essas mulheres eram donas.

Pela fala elas conduziam o ritual que intervinha nos partos, nos atos dos homens, que pode ser

compreendido no sentido de humanidade, logo, sua fala exercia uma mudança nos rumos dos

diferentes grupos humanos, bem como da história.

Marlise Vaz Bridi (2015), em citação já transcrita no capítulo primeiro, coloca a

autora desse poema como quem expressa pela palavra a mulher e o seu estar no mundo,

presentificando-a na história. Nesse poema, esse processo de se colocar enquanto sujeito

histórico, de assumir um lugar, ocorre. As bruxas, que aparecem na história dita oficial como

maléficas, demoníacas, são para Horta as ancestrais das mulheres, aquelas que pela fala, pelo

poder obtido pelo conhecimento do natural deixaram seu legado.

Em “As Mulheres” os poemas vão trazendo um aprofundamento, poema após

poema, do saber sobre o mênstruo, sobre as vivências corporais femininas. No penúltimo

poema desse período, passa-se a desvelar o corpo e sua construção, mostrando que a figura da

mãe é quem ao dar vida também a forja, a faz, criando um vínculo cheio de profundidade com

a filha, pois esta é sua extensão, sua continuidade.

10

São elas

que constroem o

mosto

o mistério

o mosteiro

do corpo

das filhas

(HORTA, 1987, p. 39)

A terceira pessoa do plural do verbo “ser” acompanhada pelo pronome pessoal

“elas” indica as pessoas responsáveis pela formação do corpo das filhas. É esse substantivo,

“filhas”, que leva a inferir que se está falando da figura materna enquanto agente que

promove a ação de construir “[...] o mosto // o mistério// o mosteiro // do corpo // das filhas.”

59

O verbo “constroem”, cujo significado varia entre criar, produzir ou mesmo juntar

materiais em determinada forma, aponta para o fato de que o corpo das filhas é forjado a

partir do agir materno, já que em seu ventre a vida é gerada. A constante referência ao vínculo

estabelecido entre mãe e filha perpassa o livro Rosa Sangrenta, especialmente no período “A

Mãe”, que conta com poemas que tematizam a semelhança entre o cheiro do mênstruo delas,

caso do de número 7, que em uma de suas estrofes diz: “A minha menstruação //com o cheiro

a ferro // do teu corpo” (HORTA, 1987, p. 101), assim como os que resgatam memórias da

mãe menstruada: “Ficava uma pequena mancha // de sangue nos lençóis // [...] Quando tu te

levantavas de manhã, com o sol” (Ibidem, p. 99), “A toalha ensanguentada // da tua //

menstruação // Memória acordada // - poisada - // a um canto do quarto.” (Ibidem, p. 105).

No poema em análise, essa ligação é melhor exposta por meio das palavras “mosto”,

“mistério” e “mosteiro”. Nota-se que apesar da diferença semântica que há entre elas, a

sonoridade, um tanto quanto similar, as aproximam. Ana Maria Domingues de Oliveira trata

desse recurso e explica-o no excerto que segue:

[...] outro recurso muito frequente na poesia de Maria Teresa Horta é o uso

de uma espécie de encadeamento sonoro das palavras que acaba por

contaminar-lhes também o sentido, estabelecendo, entre elas, um vínculo

que nasce não da sintaxe, mas da enumeração. (OLIVEIRA, 2013, p. 135).

Conforme assinala a citação acima, as palavras se distinguem semanticamente, no

entanto promovem uma enumeração que, no poema, começa com “mosto”, cujo significado é

sumo de uvas frescas, sem que tenha sido submetido ao processo de fermentação; seguido por

“mistério”, termo que designa algo escondido, não repartido com outros, um segredo;

enquanto que o “mosteiro” é um convento, local onde os monges vivem isolados.

Pensa-se agora em como cada um desses significados pode ser associados ao poema

que trabalha, em síntese, a formação do corpo das filhas. O mosto tem cor próxima a do

sangue menstrual, por isso se entende ele como sendo uma metáfora para o mênstruo,

especificamente a menarca, que sendo o primeiro fluxo de toda mulher faz parte da série de

processos necessários para que ela amadureça, assim como o mosto passa por diversas etapas,

para que se torne vinho. Mosto surge como uma metáfora que remete a elementos naturais,

pois se trata de uma planta, por isso, está ligado à terra, enquanto que no poema surge como

matéria corporal da mulher marcando sua passagem da infância à puberdade.

A ideia de pensar na menarca e não no fluxo menstrual como um todo, apoia-se no

vocábulo “mistério”. Isso porque, sendo o primeiro ciclo, ainda é desconhecido à filha o

funcionamento desse processo fisiológico, já que é só depois de experienciá-lo que deixará de

60

ser um segredo. A manutenção desse mistério se deve, em parte, por ela ser suprimida na fala,

daí existirem relatos como os que Eve Ensler cita em seu livro Os Monólogos da Vagina: “eu

tinha dez anos. Nenhuma preparação. Um líquido marrom nas calcinhas.” (2000, p. 50);

“Onze anos e usava calcinhas brancas. O sangue começou a sair de mim. Achei horrível! Não

estava preparada.” (p. 51), como se confirma, a ausência de diálogo acaba por influenciar na

manutenção desse viés misterioso do primeiro fluxo feminino.

No que tange ao “mosteiro”, pode-se trabalhar a ideia de isolamento, espaço

limitado. A presença da preposição “do”, dando a noção de pertencimento, mostra que ele é

“do corpo”, faz parte da anatomia feminina, assim sendo, o mosteiro é a parte interna da

vulva, a vagina. Esse termo, que em seu significado primário corresponde à habitação de

monges e monjas, remete ao sagrado porque essas pessoas que nele residem são relevantes e

respeitadas dentro de suas ordens religiosas; considerando isso, o “mosteiro” cria uma

analogia que coloca o corpo da mulher como sendo também sagrado, e consequentemente

precisa ter respeitado seus processos.

A enumeração criada pela poetisa inicia com o foco no sangue menstrual (mosto),

que é um mistério às mulheres quando ainda não menstruaram e fecha com o mosteiro

metaforizando a vagina, o espaço do corpo de onde esse sangue é liberado.

O poema mostra as mulheres enquanto aquelas que constroem o corpo das filhas,

ideia que Silvia Nunes (2002) também defende partindo da afirmação de que o corpo

feminino é portador de um aspecto criador e positivo, que é parte de um movimento

identificatório das meninas:

Era uma menina pequena, com aproximadamente quatro anos, e se divertia

com as bolas recém-compradas pela mãe. Com o auxílio das bolas, brincava

de ter seios e estar grávida, encenando um corpo de mulher adulta, cujas

formas exuberantes expressavam claramente um ideal, seu ideal feminino,

seu desejo de crescer e adquirir os atributos que a identificariam com a mãe.

Era flagrante seu prazer e seu regozijo com a imagem modificada diante do

espelho. (NUNES 2002, p. 35).

A menina aparece na citação como aquela que quer se assemelhar à figura materna, o

que denota o aspecto positivo do corpo desta: um corpo que inspira, que é observado e que

através de uma brincadeira infantil procura imitar. A filha se regozija com a ideia de poder se

identificar com a mãe e o sujeito poético trabalha essa noção de identificação ao dizer que

“são elas que constroem” o corpo das filhas, não focalizando nos seios e na gravidez como se

faz no excerto anterior, mas no mênstruo e na genitália feminina.

Tanto os atributos mencionados pela psicanalista quanto os que compõem os versos

61

do poema, costumam ser silenciados porque para muitos fere o pudor, entretanto, eles são

parte de um processo que continuamente mostra que a ligação mãe-filha é muito mais do que

afetiva, é antes de tudo iniciada no corpo, no físico.

O poema, em síntese, promove a aproximação entre mãe e filha, indicando que a

primeira constrói o corpo da última, sendo então uma extensão da outra. Interessa notar como

não se faz nenhuma indicação a uma presença masculina como parte desse processo.

Enquanto no contexto bíblico é uma divindade masculina, Deus, quem forma o corpo da

primeira mulher, Eva, usando para isso a costela de um homem, Adão, aqui as mulheres-mães

protagonizam essa ação, sendo a matriz capaz de construir o corpo das outras, ainda que para

isso haja uma participação masculina.

A mãe é colocada como a detentora do poder de forjar biologicamente o corpo das

filhas, de lhe oferecer suporte psicológico durante as transformações que acontecem no corpo

e cuidar de sua instrução social, que pode permanecer reproduzindo os tabus que recaem

sobre o mênstruo e o corpo feminino ou pode oferecer abertura para que se dialogue sobre

esses mesmos assuntos, transgredindo os limites que cerceiam sua fisiologia, seu sexo e

outras imposições que as têm colocado em condição de subalternização.

Os quatro poemas referenciados neste tópico visam assinalar que em Rosa Sangrenta

o mênstruo não está no lugar de tabu, entretanto de fenômeno biológico experienciado pelas

mulheres a partir de todos os sentidos e não só num contexto histórico específico, mas em

toda a história, a fim de, quem sabe, construir e reconstruir o modo de se relacionar com ele.

Brevemente, procurou-se mostrar que essa teia de mulheres que o sangue menstrual sustenta,

aproxima figuras femininas de diferentes momentos, mas que essa relação se estreita pela

ligação mãe e filha.

3.2 As sensações de um corpo menstruado

Neste período o processo menstrual é melhor especificado, recorrendo, quando

pertinente, a termos que recuperam as ciências biológicas/médicas (útero, hemorragia,

óvulos), ligando-os ao que é poético. “A poetisa aborda os aspectos biológicos da

menstruação que, elevados à matéria poética, estabelecem a rasura dos preceitos patriarcais

relativos ao corpo feminino.” (FLORES, 2018, p. 31), por isso se tem um corpo que rompe

com o silêncio, trabalhado a partir da sinestesia (“Um manso odor a doce// em fogo brando”;

“Tem um silêncio // brando que se prende [...] Um odor a mar que se desprende [...] // Tem um

rumor // secreto, uma quentura // [...] Um gosto // Uma doçura // Uma textura”; “Lambendo //

o sumo das cerejas que cresciam”; “o gosto do medo”), um corpo que metaforicamente é

62

apresentado.

Em todos os poemas deste período abrangem as sensações de se estar menstruada, do

fluxo menstrual como expressão do corpo, usando para tanto a metonímia, pois esse sangue

simboliza o corpo inteiro, tanto o fisiológico quanto o psíquico da mulher, além das metáforas

que o colocam como centro regulador da vida feminina, cujo ciclo pode gerar outra vida, e

símbolo paradoxal da fertilidade, pois assim como proporciona felicidade a quem quer a

maternidade, também serve para diminuir e impor normas às mulheres, pois conforme lembra

Nunes (2000), a menstruação, por estar vinculada à impureza, é um dos fatores de

inferiorização da mulher. Não se pode esquecer, no entanto, que o mênstruo é um indicativo

de que a saúde íntima da mulher está em dia, já que ele remete a capacidade procriadora de

outra vida.

Em religiões politeístas, como no hinduísmo, há a retratação de mulheres

menstruadas num contexto religioso, assim como existem povos indígenas que

associaram/associam a menstruação ao religioso, mágico, existencial, conforme sinaliza Liv

Strӧmquist (2018). A autora afirma que as religiões mais patriarcais são responsáveis pelo

apagamento do status religioso do sangue menstrual, pois não era válido manter um discurso

que competia com o divino masculino, e talvez “seja por isso que há uma agressão tão forte

contra a menstruação em muitos textos religiosos patriarcais” (p. 109), como o do livro de

Levítico, aqui já transcrito e discutido.

No caso dos poemas de “O Corpo”, a sujeito do poema usa o mênstruo como

símbolo do corpo da mulher para ser terreno ou espaço de luta, de transgressão, resistência e

rompimento com a ideia de tabu. Concomitantemente, é também lugar de luta estética, já que

Rosa Sangrenta rompe com a definição canônica de poesia erótica e de vocabulário proibido

ou não poético.

Quando se esboçou a linha do tempo das formas como se concebeu o corpo, citou-se

Paim e Strey [20--] para destacar as mudanças sofridas no século XX, ficando claro que as

noções atuais a seu respeito se veem sobrepostas de estereótipos criados pelas grandes

indústrias. Todavia, no livro elas são substituídas pela exploração do corpo feminino e seu

fluxo como duas grandes potências que caracterizam o ser-mulher, destituídos de pré-

conceitos.

O poema que se analisa a seguir trata do fluxo menstrual a partir da ideia de que,

enquanto hemorragia, ele expele para fora do corpo o que não é fecundado.

63

2

Apenas uma dulcíssima

hemorragia

… de flor decepada

(HORTA, 1987, p. 49)

Introduzido com um advérbio de restrição, exclusão, “apenas”, delimita-se a maneira

pela qual a menstruação é compreendida, restando a ela, dentro do contexto do poema, a

definição de que é uma “dulcíssima // hemorragia // … de flor decepada”.

Assim como em outros poemas do livro (poema 3, 5 e 7 do período “O Corpo” e

poema 6 do período “A Mãe”), usa-se nesse o superlativo, a fim de elevar uma característica

da hemorragia ao grau máximo, ela é extremamente doce, por isso dulcíssima. Contudo, o uso

desse recurso aponta para uma abordagem paradoxal, pois se o mênstruo é assim tão doce,

poderia se pensar que esse fenômeno biológico está sendo tratado como algo agradável,

porém no verso seguinte, a presença do substantivo “hemorragia” quebra esse raciocínio.

A hemorragia é o rompimento dos vasos sanguíneos, situação acarretada por um

acidente de origem violenta. Assim, pensando nela enquanto fruto de uma violência, duas

interpretações distintas podem ser atribuídas ao texto literário. O poema trata, portanto, de

uma dupla violência, sendo uma de origem natural e outra intencional/provocada.

No primeiro caso está se falando da menstruação, pois ela é própria ao corpo

feminino e mensalmente, não havendo a fecundação do óvulo, é liberada. Tal forma de pensar

permite uma aproximação com a tradição judaica que considera esse processo impuro por

romper com o princípio de “reverência pela vida” previsto na Torá: “Quando a mulher está no

período menstrual, perde um óvulo não fertilizado. Esta perda de uma vida em potencial, esta

morte em segredo é o que lhe confere o estado de impureza.” (CHAHON, 1982, p. 40). Assim

sendo, tanto no judaísmo, como para aqueles que entendem a menstruação enquanto

violência, enxergam-na dessa maneira porque a responsabilizam por uma morte, pelo fim de

uma vida que poderia ser gerada.

A segunda violência é o aborto provocado. A menstruação é natural, sempre se dará

quando não houver a fecundação, o aborto, por sua vez, pode ser espontâneo, mas aqui o

enfoque é ao que acontece motivado por uma escolha individual, que cada mulher deveria

poder ter, já que se trata de seu corpo.

O poema resulta em uma ironia mordaz contra a ideia enraizada, desde o

64

Romantismo, de que a maternidade integra a natureza feminina e cabe-lhe somente o papel de

mãe, restringindo-se suas ações ao ambiente doméstico, privado, sem que outros, como o pai

e demais membros da família, possam assumir o papel dos cuidados com a criança, com a

higiene corporal, com o vestuário e preparo de alimentos. Então, o poema apresenta a

ambivalência de a hemorragia ser decorrência natural da fisiologia da mulher e de a

hemorragia aludir, ironicamente, à transgressão que é abortar.

No poema, o verso de fechamento iniciado pelas reticências, traz uma quebra da

expectativa que vinha sendo construída ao longo da primeira estrofe, em seguida a presença

da preposição “de” indica do que é feita a hemorragia, sendo ela “de flor decepada”. A

composição dessa hemorragia colabora para o entendimento até aqui sustentado, pois o ato de

decepar implica cortar algo violentamente, no caso do texto literário, retira-se bruscamente

algo do corpo, o óvulo. Dessa retirada, quer pela menstruação quer pelo aborto, resulta a dor

(cólica).

Logo, a ação de sangrar pela vagina é ironizada no poema com base na construção de

um campo lexical que a priori parece sugerir que o sangramento é doce, porém nos versos

dois e três se desenvolve em torno dos vocábulos “hemorragia” e “decepada”, o que leva a

presumir a presença da violência tanto na forma como a flor é arrancada do corpo como no

modo como o sangue, decorrente dessa ação, escorre.

Ao trabalhar uma dupla violência no poema, Teresa Horta expõe a menstruação

como sendo violenta, perspectiva pouco discorrida, sutilmente toca na questão do aborto,

tema negligenciado na literatura e no contexto histórico-social, dando fim ao silêncio que

recai sobre eles e conferindo-lhes um espaço em sua poética.

3.3 A menstruação e o desejo de si

Quando Maria Rita Kehl (1990) fala sobre o desejo, traz também a noção de

realidade mostrando que há uma diferença entre o que se deseja e o que se vive, considerando

que o real permanece em constante negociação com as criações do mundo psíquico. A partir

da memória, atenção, discernimento e pensamento, os sujeitos conseguem distinguir que tipo

de representações podem lhe gerar prazer, desprazer ou ser neutras, sem descartar, contudo,

que há objetos prazerosos não aceitos pelos códigos compartilhados culturalmente, por isso

desejar é também nomear o proibido que funciona como uma espécie de desbaste do que turba

ou deforma o real.

65

O desejo feminino já fora colocado no lugar de ação proibida, mas nem por isso as

mulheres deixaram de ser sujeitos desejantes, já que, como outrora se falou, todo sujeito é

sujeito de um desejo que procura realizar-se plenamente ou pelo menos expressar-se para ser

reconhecido pelo “eu”, e nesse processo a linguagem ou a imagem pode concretizá-los, é

justamente o que faz Teresa Horta por meio de seus poemas.

Pela imaginação – também pela criação poética – se obtém um saber que dá

condições para conhecer a si, assim como para conhecer os conflitos entre os códigos de uma

realidade e o objeto imaginado, que acaba prevalecendo, pois é o que revela quem se é

enquanto sujeito.

O sujeito hortiano trata do desejo a partir da ideia de que a menstruação é desejada e

por isso experienciada. A respeito dos poemas que se organizam em torno dessa unidade

temática, Conceição Flores diz:

O “Período 3: O Desejo”, apresenta cinco poemas que constituem uma

unidade sinestésica, em que cada um retoma um dos sentidos. O primeiro,

elege o olfato, o “cheiro do corpo menstruado”; o segundo, o paladar, o

“gosto/ da menstruação”; o terceiro, a audição firmada no “nosso pacto”; o

quarto, a visão de “o anjo do sangue/ da menstruação”; o quinto, o tato “ela

se afagava/ durante as sextas”. (FLORES, 2018, p. 31).

O desejo e os sentidos são acionados para dar continuidade ao falar do corpo

menstruado. No poema que abaixo se analisa, recupera-se a epígrafe para compará-los e

mostrar como o corpo do texto reverbera a ideia de que o autoconhecimento é uma etapa

necessária para construção da subjetividade feminina.

2

Conhecer o gosto

da menstruação

com a língua

A descobrir aquele sabor

a ferro - aberto

No sangue

(HORTA, 1987, p. 79).

A escolha deste poema para compor as análises da dissertação se deve a sua

aproximação com a epígrafe do livro, cuja autoria pertence à Germaine Greer. A autora

afirma: “Se você se supõe uma mulher livre, imagine a hipótese de provar o seu sangue

66

menstrual. Se isso lhe causar nojo, é porque tem ainda um longo caminho a percorrer.”. Nesse

pequeno excerto, encontrado em seu livro A Mulher Eunuco, ser uma mulher livre aparece

condicionada à possibilidade de provar seu sangue menstrual.

Duas leituras carecem de ser abordadas no que tange à citação anterior. A primeira, a

liberdade feminina, incluindo-se o que diz respeito ao corpo, só é possível quando se vivencia

um processo de autoconhecimento que conta com a participação dos sentidos, sendo

destacado o paladar. Segundo, ele é iniciado no pensamento e só depois envolve uma ação

física, pois é a partir de como se concebe essa hipótese, que ela acarretará ou num ato

negativo, que é o de sentir nojo, opondo-se a viver essa experiência, ou na execução dela. Em

síntese, a forma como a mulher pensa sobre si e seus fenômenos fisiológicos são essenciais

para pautar como ela se relaciona com o que lhe é próprio.

Detendo-se no nojo, ele é “[...] uma mensagem organizada que avisa a consciência

contra o perigo inconsciente do estabelecimento da desordem e do caos.” (RODRIGUES,

1975, p. 150), logo, não deixa de ser, ainda que uma manifestação de origem natural,

condicionada pelo que culturalmente se enxerga como puro e impuro, limpo e sujo etc. A

menstruação, ao ser vista como nojenta, aponta para o fato de que ocupa um lugar impróprio,

deslocado no sistema de ordenação, por isso é também um tabu e alvo dessa reação que reitera

sua condição de elemento incomum.

José Rodrigues (1975), ao discorrer sobre o que ele nomeia como tabu do nojo,

colhe uma série de opiniões que são direcionadas a partir de perguntas. Quando solicita que

seus interlocutores falem de um acontecimento real ou fictício que lhes tenha repugnado, dois

relatos chamam atenção. Um deles diz:

Ter dormido, no escuro, com uma mulher menstruada; quando cheguei ao

banheiro, para lavar-me, quase vomitei. Já o sangue que aflora em nossa

pele, devido a um corte, não é bem visto; que se dirá desse tipo de sangue

que provém de um organismo interno não muito conhecido, resultante do

apodrecimento dos óvulos? (RODRIGUES, 1975, p. 146).

Na transcrição acima, revela-se que o nojo, causador do vômito, é decorrente da

associação do óvulo a ideia de apodrecimento, ou seja, o corpo feminino expele algo “morto”

(“um cadáver”), ao mesmo tempo, ao dizer que esse fluído deriva de um organismo interno

não muito conhecido, mostra como a falta de acesso ao saber ajuda na manutenção de certos

tabus.

O segundo relato é feito por alguém que diz ter visto uma mendiga sentada na

calçada com a saia levantada, com o órgão sexual amostra, sujo e com vestígios de

67

menstruação. Aqui, o fluxo menstrual é tido como sujeira, não se diferenciando em nada da

que é resultado da falta de asseio.

Nos dois casos, o nojo é uma reação a algo que em certo nível os desafia, que pouco

se conhece. Por essa razão Greer fala sobre provar o sangue menstrual, pois assim a mulher

passa a conhecer sua fisiologia, a transformação pela qual seu corpo passa a cada mês (tendo a

possibilidade da gravidez ou não), além de compreender a sua complexidade psicológica e

social, pontos que se revelam àquelas que sabem o valor que é deter o saber sobre o

funcionamento do seu próprio corpo.

A hipótese de Germaine Greer abre o livro de Maria Teresa Horta propondo uma

reflexão inicial aos leitores, ela consiste de forma simplista na pergunta “sou uma mulher

livre?” e as respostas são obtidas ao longo de cada poema que promove novas imagens do

fluxo menstrual feminino. No caso do que aqui está posto, ele mostra que o sujeito poético já

alcançou a liberdade de que trata Greer, pois se ela fornece uma sugestão, o eu lírico traz uma

afirmação “Conhecer o gosto // da menstruação:”, usando para isso o paladar, “com a língua”.

Os versos acima transcritos compõem a primeira estrofe do poema, que se inicia com

uma ação indicada pelo verbo “conhecer”, tendo como seu alvo “o gosto // da menstruação”.

A presença ao final do segundo verso dos dois pontos aponta para o fato de que no seguinte se

especificará de que maneira esse ato será possível. Sendo assim, no terceiro verso, a partir da

preposição “com”, que estabelece entre as palavras relação de instrumento/meio, tem-se a

língua como aquela que permite conhecer o gosto do mênstruo. No poema seguinte deste

período, o sujeito poético diz:

3

Este nosso pacto

com o sangue...

assassinado à boca

do desejo

(HORTA, 1987, p. 81).

Iniciado com dois pronomes que se sucedem, “este”, pronome demonstrativo

indicando que aquilo do que se fala está próximo de quem fala, e “nosso”, pronome

possessivo, mostrando que o “pacto” pertence a outras mulheres, mas também inclui o eu-

poético, que ao mencioná-lo emite duas informações sobre ele: o pacto é feito com o sangue e

é assassinado à boca do desejo.

68

A ideia de usar sangue para pactuar algo não é estranha, na realidade esse tipo de

pacto é usado em situações em que se queira reforçar a importância dele e o fato de que não

deve ser quebrado, pois às vezes envolve confidencialidade, exige o cumprimento de uma

série de obrigações ou é só uma forma de garantir que o acordado será respeitado.

Tratando-se do poema, as mulheres partilham de um pacto verbalizado, ouvido, feito

não com o sangue que provém de um golpe intencionalmente feito para consumá-lo, mas com

o menstrual.

No poema introdutório do livro a palavra “pacto” também aparecia e indicava os

pactos sociais que se criam para controlar e ordenar as hierarquias, as relações humanas, o

convívio em sociedade; aqui ele se reveste de novo sentido, pois é um acordo firmado por

diferentes figuras femininas, podendo corresponder, por exemplo, a decisão de fazer sexo para

engravidar ou exclusivamente para o prazer, até mesmo de não fazê-lo, também pode se

referir ao se permitir tocar, gozar e sentir o corpo ainda que menstruada, não suprimindo o

desejo ainda que o corpo esteja liberando o fluxo mensal.

As possibilidades de conteúdo do pacto apresentadas acima são pensadas a partir dos

demais poemas de “O Corpo” que tratam em menor ou maior aprofundamento dessas

questões, porém, ao término da primeira estrofe as reticências indicam a supressão de algo,

talvez uma sentença que esclareça qual é o objeto desse pacto, seu tema, só que a estrofe final

o rompe, ao indicar que ele é “assassinado à boca do desejo”, ou seja, deixa de ter validade,

porque aquilo que é objeto do seu desejo fala mais alto do que o que fora compactuado.

Os poemas de número 2 e 3 revelam, no caso do primeiro, o desejo como o que

impulsiona a querer conhecer o mênstruo, e no segundo como aquilo que exerce no sujeito

uma influência capaz de levar-lhe a quebrar seus pactos, pois como posto no início deste

tópico, o objeto do desejo acaba por sobressair ao real.

Neste período do livro, o corpo permanece sendo apresentado da mesma maneira que

foi no de número dois, segue-se construindo uma atmosfera sensual e um tanto quanto felina

do corpo menstruado, que nessa condição parece estar no máximo de sua excitação. Em “O

Desejo” ficam clara as intenções da autora de não dissociar o desejar do menstruar, porém

integrá-las, como faz no poema de número 5.

5

Adormecida,

de tarde,

na mansidão do sangue

69

Era verão

entorpecido,

onde ela se afagava

Durante as sestas

(HORTA, 1987, p. 85).

Desenvolvendo-se com base na descrição de uma mulher, inicialmente adormecida, o

poema situa no tempo, “de tarde”, “era verão”, aquilo que expõe. O sujeito poético figura

como um outro que participa da intimidade da mulher presenciando-a e verbalizando-a,

criando uma atmosfera sensual aludindo ao fato de a menstruação despertar a excitação sexual

e por isso essa mulher se afaga, masturba-se durante as horas de descanso que se proporciona

depois do almoço.

Nesse poema, há a partilha entre o outro, que observa, e a mulher menstruada que

descansa e acaricia-se em sua intimidade, enquanto ressignifica a relação de si com esse corpo

sujeito a processos biológicos. Um corpo que em silêncio permaneceu e tabu se tornou, mas

que na fala do eu-poético emerge mostrando ao leitor que o desejo não precisa se condicionar

a realidade cultural (KEHL, 1990, p. 364), aos códigos compartilhados, ele pode superá-la e

simboliza-la por outro viés.

3.4 A mãe e a filha: o cruzamento de suas vozes

No tópico 3.1, quando se falava sobre o período “As Mulheres”, citou-se o binômio

mãe e filha vagamente, pois é no período “A Mãe” que Teresa Horta o trata extensivamente.

Esse período focaliza nos laços que iniciam no ventre materno e permanecem ao longo da

vida.

Ana Maria Domingues de Oliveira (2013) resume os poemas nele organizado como o

ponto de vista da filha sobre a menstruação da mãe (“Ficava uma pequena mancha // de

sangue nos lençóis // uma pequeníssima // poça // Quando tu te levantavas”; “A toalha

ensanguentada // da tua // menstruação”), com um olhar que não é destituído de desejo,

evocando uma relação edipiana (Eu cheiro-te as axilas // as virilhas // e o cabelo // A lamber-

te o odor menstrual // das coxas”), mas também há a voz da mãe que parece dialogar com a

filha, gerando um discurso próximo ao pedagógico, pois lhe ensina sobre o corpo, mesmo que

não tenha seu completo domínio, inserindo-se numa troca, em que conforme ensina também

aprende.

Nos poemas, mãe e filha empreendem um processo de falar, escutar, observar,

70

rememorar para assim aprender sobre o corpo feminino, como se relacionar com ele, como

relacioná-lo com o mundo, com a sociedade, buscando ter o cuidado de respeitar as suas

individualidades corporais.

Nesse período é possível retomar Antonio Carlos Cortez (2015) e a ideia de que as

palavras do corpo também se dirigem ao corpo social, assim, quando nos poemas mãe e filha

aparecem como as vozes que tematizam o corpo feminino menstruado, elas lançam para o

contexto social essas mesmas palavras, que divergem em muitos sentidos dos discursos

correntes, da ideia de tabu que reveste esse fluído, por isso formam, na companhia de todos os

outros poemas da obra, a contraideologia hortiana que nas páginas iniciais deste texto se

discutiu.

Também, ainda resgatando as palavras de Cortez, é possível reler o corpo feminino –

e também masculino – à luz de uma reeducação sentimental, que nos poemas é mediada pela

mãe, àquela que inicialmente conduz o contato da filha com a realidade e com o corpo.

Maria Rita Kehl (1990, p. 376- 377) diz que a mãe dá garantia à criança de que seu

corpo é uma morada que a faz estar no mundo e de que o mundo é uma boa morada para o

corpo. Mas se a relação dessa figura materna com o corpo for problemática, se ela o conceber

como espaço de privação e sofrimento, a criança o verá de modo similar. Por isso a mãe é de

grande importância na construção da criança enquanto sujeito desejante, enquanto sujeito que

participa do mundo e no qual aprende o direito de usar livremente seu corpo e participar da

vida social.

No que concerne à voz da filha, ela aparece como expressão de um desejo de saber

sobre o corpo, por isso o investiga. Ela é portadora de uma fome do mundo, que não se

satisfaz com o que já sabe e tenta constantemente reelaborar, transformar e ressignificar suas

descobertas.

Da relação mãe e filha, do cruzamento de suas vozes, que assumem ao mesmo tempo

a condição de quem sabe e aprende sobre o corpo – espécie de pedagogia bidirecional –,

especialmente quando menstruado, dá-se, pela linguagem poética, uma troca simbólica entre

elas.

O poema que se analisa traz o eu-lírico na posição da filha e fala sobre a figura

materna a partir de dois aspectos que marcam seu corpo de mulher: o sangue menstrual e a

capacidade de gestar.

71

2

Seguramente és o lado menstrual

da vida

Com o teu sangue

fértil

A tua placenta

esquecida

(HORTA, 1987, p. 91)

Iniciado com um advérbio de modo, “seguramente”, pontuando que a colocação

seguinte é dita com toda segurança, sem possibilidade de contestação, o poema acima se

desdobra em torno da colocação de que a mãe é o lado menstrual da vida. Em consonância

com essa proposição está o tema da maternidade, abordado nas estrofes seguintes.

A segunda estrofe focaliza no sangue, que antecedido pelo artigo definido “o” e o

pronome possessivo “teu” determina que os elementos abordados pertencem a mãe, o mesmo

serve para a terceira estrofe, em que a placenta é introduzida pelo artigo definido “a” e o

pronome possessivo “tua”. Retomando a imagem do sangue, esse substantivo é acompanhado

de um qualificador, o adjetivo “fértil”, que indica sua capacidade produtiva.

O sangue menstrual e sua associação à fecundidade se baseiam no fato de que ele é um

marco na vida das mulheres, pois é o que distingue o corpo biologicamente apto a procriar, do

corpo de uma criança ainda em fase de crescimento e de uma senhora já na menopausa.

Assim, é o indicativo de um corpo pronto a conceber a vida.

Na estrofe seguinte, enfoca-se na placenta, também seguida de um adjetivo que a

caracteriza como “esquecida”. Enquanto o sangue, por ser fértil, é o que permite ocorrer a

gestação, em certa medida a antecedendo, a placenta é parte constitutiva do período

gestacional e desempenha papel primordial ao fornecer ao feto nutrientes e oxigênio,

estimular a produção de hormônios, proteger contra impactos na barriga da mãe. Em síntese, a

placenta é um vínculo entre mãe e bebê, que permite o crescimento do último.

Contudo, apesar da primordialidade que lhe cabe, no momento em que se finda a

gravidez, devido ao nascimento, a placenta é expelida do corpo e por algumas mulheres

descartada ou usada como matéria-prima para medicamentos e produtos de beleza, perdendo a

importância que inicialmente lhe era destinada, já que não é mais necessária para o

desenvolvimento do neném, os seios assumem esse papel, pois produzem leite. Em suma, a

placenta que outrora ligou a mãe e o feto, ao ser descartada após o parto, indica o início da

72

separação entre eles e o começo do processo de individualização e subjetivação do bebê, além

de corresponder aos dois lados da maternação: o fértil e o de descarte.

Chama-se atenção para o fato de que, tanto no poema de abertura quanto nesse, os

qualificadores dados à maternidade ou a algo que constitua o corpo materno, parecem indicar

que a mulher-mãe tem sua função desprestigiada. Quando feita a análise do poema de

abertura, mencionou-se que no século XVIII se criou um projeto médico em que a

maternidade é colocada em foco. Ainda que nesse momento essa função passe a ser

valorizada, o que estava em jogo era uma tentativa de diminuir os índices de mortalidade

infantil e preservar a criança e a família, logo, a mulher era uma peça necessária nesse

processo por ela ter o útero, mas isso não quer dizer que ela passe a ter respeitado seu corpo e

seus anseios, ao contrário, tornou-se um instrumento nas mãos de médicos que detinham o

saber científico, usando-o para interferir nas relações sociais e inculcar imagens e tarefas que

todos deveriam obedecer:

De início, pode-se notar que o discurso médico coloca o sexo feminino como

aquele que a natureza fez mais adequado aos cuidados com a infância.

Torna-se assim, científico o velho mito, segundo o qual a mulher teria sido

feita para o lar e o homem, para o trabalho. [...] Os médicos, reconhecendo a

utilidade da mulher enquanto agente dos cuidados com as crianças, procuram

estabelecer uma aliança com a mãe através de uma valorização de seu

estatuto dentro da família. (NUNES, 1982, p. 52).

Construindo um discurso sobre a condição feminina, no qual a mulher é

considerada voltada para a maternidade, a medicina, ao mesmo tempo em

que delega à mulher uma nova importância dentro do modelo familiar, a

reduz ao papel de esposa e mãe, atribuindo a essa perspectiva um aspecto

científico. (NUNES, 1982, p. 55).

Conforme Silvia Nunes (1982) esclarece nas citações anteriores, a mulher se torna

figura central desse projeto médico porque é útil a ele, e para sustentá-lo retomam-se velhas

concepções, como a distinção entre os sexos, assim como o resgate da ideia de que o papel

feminino já vem previamente determinado pela natureza.

Dessa forma, o papel da mulher é privilegiado porque está ao serviço de um plano

construído pela medicina, mas que não a privilegia e sim as crianças, que precisavam ser

cuidadas por alguém nascida para amar e ser amada “[...] por causa da pequena estatura e das

formas arredondadas e lisas.” (NUNES, 1982, p. 54).

Enquanto que no poema de abertura a ideia da maternidade como “calada” é

suscitada, neste poema a placenta aparece como “esquecida”. A forma como se caracteriza a

maternidade e seus elementos na obra hortiana pode parecer ao leitor a manutenção da

desvalorização da figura da mãe, mas o processo adotado pela autora é o de usar essas

73

imagens, a fim de contrapô-las e então criar novas acepções para elas, recurso que Alfredo

Bosi (1977) nomeia como contraideologia, que nada mais é do que tomar as ideologias

correntes assumindo uma postura de oposição. Seu uso se comprova, no caso do primeiro

poema, porque após o adjetivo “calada” fala-se do útero como um espaço seguro, confortável

e da maternidade como sendo sagrada, já nesse poema em análise, a mãe é apresentada como

o lado menstrual da vida, afirmação que reitera que só a mulher vive esse fenômeno

fisiológico, distinguindo-a como aquela que é a única capaz de ocupar esse lugar.

Duas ideias seguem essa assertiva, a do sangue menstrual como o que permite o

gerar da vida e a placenta como o órgão que a mantém no útero, desenvolvendo-a de modo

saudável. Entretanto, a forma como “sangue” e “placenta” são retratados se distinguem. O

primeiro, enquanto fértil, é colocado de maneira a pontuar seu papel essencial como parte

desse lado menstrual da mãe, enquanto que a placenta, dita pelo eu-lírico como esquecida,

aponta para um elemento que temporariamente desempenha uma função primordial no corpo

materno, mas que logo perde esse lugar. Uma possível justificativa para isso é o fato de que o

fluxo menstrual é recorrente, acompanha a mulher em boa parte de sua vida e serve para

distinguir biologicamente mulheres de homens, enquanto que a placenta só surge se houver

uma gestação, o que não é recorrente e não é obrigatório de haver, já que a maternidade é uma

opção e não uma obrigação.

Assim, ao trazer a ideia da mulher como o lado menstrual da vida o poema também

sugere a possibilidade da maternidade, fazendo isso ao citar dois elementos do corpo

feminino, o sangue e a placenta, que são referenciados para que se observe como se

distinguem e atuam seja antes ou durante uma gestação.

Nesse poema que dá voz à filha, ela reverbera um saber sobre o corpo materno que

lhe denota maturidade, pois reconhece dois elementos identificatórios da mulher, assim como

expressa o desejo de querer ter esses atributos, pois eles condizem com o ideal feminino

almejado por essa menina, conforme diz Silvia Nunes (2002) em citação já referenciada.

Ao se discutir a questão do desejo, tanto neste capítulo como nos anteriores,

procurou-se mostrá-lo como condição para que os sujeitos se mantenham vivos, assim como

se assinalou a possibilidade de ele romper com os códigos compartilhados culturalmente,

promovendo-lhes uma re-simbolização, pois nem sempre o que se deseja é socialmente aceito.

A questão do corpo menstruado que, em algumas localidades e contextos históricos-

culturais, fica à margem, que precisa ser coberto, suprimido na fala e é alvo de restrições

alimentares, comportamentais e religiosas, não ganha espaço no livro hortiano, que

ressignifica as relações da mulher com o seu corpo nos dias de seu fluxo. Por isso cria a

74

imagem da rosa que, estando no corpo, é tocada, lambida, penetrada; que ao sangrar, por ser

uma dulcíssima hemorragia, intervém nos partos, nos atos dos homens e na história, assim

como faz da mulher o lado menstrual da vida, que sela, na companhia de outras, quer sejam as

que se encostam à boca das cavernas quer as que se afagam durantes as sestas, um pacto

comesse sangue.

75

CONSIDERAÇÕES FINAIS

UMA ROSA QUE SANGRA

Rosa Sangrenta apresenta uma estrutura que lhe dá condições de manter sua unidade

temática: os períodos se encadeiam, os assuntos se interrelacionam, a autora preconiza a

metáfora enquanto figura de linguagem adotada, opta por uma sintaxe fragmentada, usa

poucos sinais de pontuação e constrói um sujeito poético feminino que reverbera o que foi

silenciado à mulher, assumindo um compromisso com a liberdade desta. Desde o primeiro

poema do livro, Horta aciona esses elementos e revela ao leitor aquilo de que se propõe a

tratar.

Em seu poema introdutório, também podendo ser chamado de síntese poética, a

poetisa apresenta a rosa e suas facetas, mostrando-a como aquela que sangra, é poisada, fica

no ventre, é de febre, de fogo, de seda, de pele, de púrpura, de saxe, de orgasmo, de cetim e é

mátria.

Com base nessas caracterizações da rosa, ela consegue tratar sobre a menstruação, o

desejo sexual e a maternidade entendendo que todas essas ações envolvem a genitália

feminina e que, portanto, o corpo feminino é um espaço de diferentes manifestações que ao

longo da história não foram adequadamente tratadas, mas que em Rosa Sangrenta serão

abordadas com uma linguagem livre de pudores e a partir de um novo olhar.

Dentre os termos que qualificam a rosa, chama-se atenção para “mátria”, que aparece

na oitava estrofe quando se inicia o tratamento da questão da maternidade. Seu significado diz

respeito à terra natal e local de nascimento, mas a autora recorre a ele para implicitamente

sugerir que antes de qualquer pessoa pertencer a uma pátria, ela foi cidadã de uma mátria, já

que a primeira morada de qualquer ser humano é o útero materno. Para além disso, na mesma

estrofe, diz-se que ela é de mênstruo legado, logo, é um elemento compartilhado entre mãe e

filha, que se estende ao longo de diferentes gerações.

Essa noção da menstruação, enquanto o fluido que aproxima as mulheres, aparece

em muitos dos outros poemas do livro, indicando sua essencialidade para o corpo destas. O

verso “uma rosa mátria” sintetiza a ideia que Maria Teresa procura trabalhar ao longo do

livro, a de que a genitália feminina é a matriz do corpo da mulher, porque dela se gera a

humanidade, nela se menstrua e nela se sente o desejo que o prazer sexual suscita.

No percurso traçado ao longo desta pesquisa, até que compreensões como as

anteriores se tornassem possíveis, discutiu-se, por exemplo, a autora e sua poética,

76

apresentando ao leitor deste trabalho o que ela representa ao cenário literário português e

como sua escrita se materializa enquanto espaço de defesa dos direitos humanos, inicialmente

nas publicações que ocorrem durante a ditadura portuguesa, mas depois se tornando uma

marca de sua trajetória, pois não lhe bastava apenas contestar os horrores que o salazarismo

impunha, era necessário requerer um lugar em que a mulher pudesse manifestar seus desejos,

sem que fosse silenciada pelos dogmas que lhe mantiveram na posição de subalternizada e

deslegitimaram sua voz.

Para tanto, passou a tratar de temas que por muito tempo só homens escreveram e

adotou uma linguagem livre de recatos, rompendo com a tradição canônica. Assuntos como

corpo e desejo ganham novos contornos em sua obra, permitindo o tratamento de outros que

eram incomuns, como o aborto e a menstruação. No caso do livro analisado, essas temáticas

são trabalhadas tendo como ponto de partida o fluxo menstrual.

Após comentários sobre a autora, que procuraram elucidar sua importância para a

literatura portuguesa, falou-se sobre o corpo enquanto entidade biológica, ressaltando o fato

dele ser marcado pelo contexto histórico-cultural no qual está inserido, por essa razão é alvo

de diferentes discursos que forjam a maneira de enxergá-lo e propagam um modelo a ser

seguido. As diferentes maneiras de concebê-lo vão gradativamente sendo substituídas, pois

obedecem aos interesses de quem detém o poder, geralmente grupos religiosos, médicos e na

atualidade da indústria. No caso do corpo feminino, ele foi objeto de inúmeros estudos que

oscilaram entre tomá-lo como um modelo inferior do masculino ou diferenciá-lo deste,

afirmando que um complementava o outro e por isso homens e mulheres deveriam ter

atividades distintas e ocupar espaços sociais específicos. Para esse último entendimento o

útero era a marca distintiva da mulher e determinava-lhe o papel de procriar.

Ao longo do processo de estudo do corpo feminino, a menstruação se manteve

incompreendida e ainda quando foi devidamente explicada, continuou taxada como imunda,

incômoda, fétida, tornando-se um tabu.

Freud (2013), teórico adotado para tratar dessa questão, explica que o tabu é uma

proibição antiquíssima, voltada para algo que rompe com o comum, é impuro, e que não se

sabe ao certo como começa, mas segue sendo compartilhado. Porém, o ponto principal de sua

tese, é que todo tabu é ambivalente, pois por trás dele existe um forte desejo de querer quebrá-

lo, por meio de uma ação sobre a pessoa ou objeto restringido, mas também há um sentimento

de abominação que exige que quem o quebrou seja purificado e castigado, a fim de que se

torne exemplo aos demais, evitando que outros queiram transgredi-lo.

No caso da menstruação, o livro bíblico de Levítico elucida bem sua condição de

77

tabu, ao assinalar que a mulher menstruada é impura, mas pode estender essa condição a

outros caso com ela tenham tido contato, ou deitem-se ou sentem-se onde ela possa ter

deitado ou sentado, sendo necessário para se restabelecer o estado de pureza lavar as vestes e

banhar-se, enquanto que a mulher deve aguardar cessar seu fluxo, contar sete dias e só então

estará limpa, cabendo-lhe, ainda, procurar um sacerdote em posse de duas rolas ou dois

pombinhos para que seja feita a expiação do fluxo de sua impureza perante o Senhor.

Ao contrário da noção judaico-cristã registrada na bíblia, Maria Teresa Horta coloca

a ação de menstruar como objeto desejado pela mulher, trabalhando-a em consonância com a

ideia da maternidade, da liberdade e do prazer, contribuindo, assim, para sua ressignificação.

Em seus versos, a menstruação é tida como central ao corpo feminino, pois é a partir da

menarca que não só se inicia a puberdade, como também um processo de amadurecimento

psíquico que a torna ciente da sua capacidade de gestar.

A maneira como a escritora trata desse tema a faz romper com as ideologias em

vigência, ação essa que só é possível, porque, conforme afirma Adorno (2003), as obras de

arte deixam falar aquilo que a ideologia oculta, criando a possibilidade de enxergar a

realidade a partir de um novo lugar. Horta faz isso a partir da linguagem que adota – recurso

que media a lírica e a sociedade – criando sua contraideologia que dá fim aos silêncios que

recaem sobre o corpo da mulher menstruada.

Para entender essa contrideologia, foi necessário analisar os poemas do livro,

adotando para tanto uma crítica literária. Escolheu-se para esse fim a crítica sociológica, tendo

em vista que o mênstruo é parte do corpo social e por isso está sujeito aos seus ditames.

Quando se pensa nos textos literários, elencar questões sociais que neles sejam

perceptíveis é oportuno quando colaboram para compreensão daquilo que lhe é interno, ou

seja, seu sentido. Tratando-se de Rosa Sangrenta, os discursos correntes sobre o corpo

feminino foram colocados em paralelo com o sustentado pela poetisa, assim como foram

usadas teorias dos demais campos do saber para melhor embasar as considerações que foram

tecidas e comprovar que as ideias defendidas tinham fundamentação teórica.

A respeito dos poemas analisados foi possível verificar que algumas palavras-chaves

podem sintetizá-los, sendo elas: corpo, desejo, relação sexual, figura da mãe e da filha, os

sentidos e liberdade. O corpo aparece de forma onipresente no livro, pois é o espaço de

criação poética usado pela autora. Nele as relações entre o eu-poético e os outros, podendo ser

um parceiro sexual ou a figura materna, desdobram-se. Quando se traz o parceiro, tematizam-

se as relações sexuais e suas múltiplas possibilidades, a masturbação, a cunilíngua, a

penetração, descrevendo-as e concomitantemente nomeando as diferentes partes da genitália

78

feminina, num processo pedagógico que educa o leitor sobre o corpo feminino e suas partes,

mas também lhe mostra o passo a passo da intimidade entre dois sujeitos, incitando-o a

conhecer e gozar do seu corpo.

Ao abordar a mãe, parte do pressuposto de que ela é a origem da vida, aproximando-

a da filha para criação de um vínculo que se estende às demais mulheres. A mãe e a filha

surgem intercalando suas falas nos poemas, discutindo o corpo menstruado, que permanece

desejoso e desejável quer esteja no período do seu fluxo ou não, e falando da intimidade das

mulheres que se autoconhecem pelo uso dos sentidos: o tato, o paladar, o olfato, a visão, a

audição.

Em todo o livro, as mulheres são colocadas na posição de responsáveis por suas

ações, assumindo-se como pessoas livres, que decidem sobre como usufruem de seu corpo e

de suas especificidades. Viu-se que as figuras femininas representadas rompem com as

imposições sociais que costumam mantê-las na condição de dominadas, tornando possível ao

sujeito poético ecoar uma voz transgressora que se afirma como sujeito desejante e re-

simboliza os códigos compartilhados culturalmente. Nos poemas hortianos a mulher fala do

seu sangue mensal abertamente e lida com seu corpo menstruado de maneira natural, prova

disso é que a genitália feminina é tocada, lambida, penetrada.

Em síntese, esta pesquisa, que se desdobrou a partir de um objetivo geral e três

específicos, procurou analisar os poemas selecionados para pontuar como Horta desconstrói o

tabu do mênstruo, e mostrou que ela faz isso a partir da linguagem que se desvencilha do

cânone, ao criar a sua poética da liberdade que nomeia o inominável, e também de uma

contraidologia que retira a menstruação da esfera do imundo, para colocá-la no lugar de

fenômeno fisiológico multifacetado.

Ao longo do caminho trilhado para elaboração desta dissertação, explanou-se sobre

as especificidades da escrita da autora, elencando-se o uso da metáfora que apontava tanto o

caráter natural como sócio-cultural do mênstruo, discutiu-se o corpo da mulher, recuperando

os diferentes discursos que ora o colocavam em paralelo com o do homem ora o distinguia,

resultando numa relação de poder em que as mulheres permaneciam sempre na esfera do

privado, adotando o papel de mãe e esposa. Expôs-se também a organização do livro, que a

partir de uma gradação, em que a imagem da mulher encaminhava à do corpo, que levava a do

desejo, finalizando na imagem da mãe, revelou um fio condutor que perpassou todo o livro e

manteve a sua unidade temática.

Finaliza-se esta pesquisa com a ressalva de que há muito mais a ser explorado em

Rosa Sangrenta, pois aqui não se procurou esgotar todas as possibilidades de compreendê-lo.

79

Espera-se que esse texto provoque outros pesquisadores a querer ter esse livro como objeto de

estudo, haja vista que ele já permaneceu tempo demais esquecido pela crítica.

80

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