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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO GONÇALINA EVA ALMEIDA DE SANTANA SABERES E FAZERES QUILOMBOLAS: UM OLHAR SOBRE AS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS DA ÁREA DE CIÊNCIAS HUMANAS DA ESCOLA DE MATA-CAVALO CUIABÁ-MT 2019

gonçalina eva almeida de santana - UFMT

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

INSTITUTO DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

GONÇALINA EVA ALMEIDA DE SANTANA

SABERES E FAZERES QUILOMBOLAS: UM OLHAR SOBRE AS PRÁTICAS

PEDAGÓGICAS DA ÁREA DE CIÊNCIAS HUMANAS DA ESCOLA DE

MATA-CAVALO

CUIABÁ-MT

2019

GONÇALINA EVA ALMEIDA DE SANTANA

SABERES E FAZERES QUILOMBOLAS: UM OLHAR SOBRE AS PRÁTICAS

PEDAGÓGICAS DA ÁREA DE CIÊNCIAS HUMANAS DA ESCOLA DE

MATA-CAVALO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Educação da Universidade Federal

de Mato Grosso como requisito para a obtenção

do título de Mestre em Educação. Área de

Concentração: Educação. Linha de Pesquisa:

Movimentos Sociais, Política e Educação

Popular.

Orientadora: Profa. Dra. Suely Dulce de Castilho

Cuiabá-MT

2019

Dedico este trabalho a Deus e a todos que

trilharam esta caminhada comigo: à minha

amada família, em especial, aos meus filhos

Evylin e Ezequiel e ao meu esposo Edirson

Paulo, à querida orientadora Suely Castilho,

aos amigos, aos meus irmãos matacavalenses

e aos professores da Escola Estadual

Professora Tereza Conceição Arruda.

Dedico, ainda, a minha amada avó, Tereza

Conceição Arruda (in memorian), e ao meu

bisavô, Antônio de Mulato.

AGRADECIMENTOS

“Por isso não tema, pois eu estou com você; não tenha medo, pois eu sou o seu Deus. Eu o

fortalecerei e o ajudarei; eu o segurarei com a minha mão direita vitoriosa” (Isaías 41:10). E

assim foi a minha confiança durante a caminhada. Foram muitos desafios no decorrer de

todo o percurso, mas sou vencedora.

Agradecimentos especiais a todos que fizeram parte desta caminhada, cada oração e apoio

incondicional.

A Deus, companhia de todas as horas e fortaleza sempre presente.

À minha orientadora, Profa. Dra. Suely Dulce de Castilho, preciosa e grandiosa mulher, pela

cordialidade, sábias palavras de incentivo, confiança e encorajamento e pelo tempo que

disponibilizou para orientação desta dissertação.

Aos demais professores do Mestrado em Educação do Programa de Pós-Graduação da

UFMT, por me guiarem, procurando sempre um futuro melhor para a Educação.

À minha família, em especial, minha mãe, Lúcia Conceição Arruda; meu pai, Manoel

Basilio de Almeida e meus irmãos, Luís, Dulcelina e Jonatta. Ao meu amado esposo,

Edirson Paulo de Santana, e aos meus filhos, Ezequiel Antônio e Evylin Maria, por

acreditarem no meu sonho e por me apoiarem, principalmente, durante as ausências que se

fizeram necessárias.

Às minhas companheiras de mestrado, Júnia e Adrianny, gratidão pelo amparo, paciência e

solidariedade que me ofereceram em todos os momentos.

Às amizades que construí neste percurso e que foram o incentivo e alento a todo tempo,

Silvana, Maria do Socorro e Michele França.

Os meus sinceros agradecimentos aos professores, estudantes, funcionários e gestão escolar

da Escola Estadual Quilombola Professora Tereza Conceição Arruda, pela disposição e

valiosas contribuições, que me possibilitaram a observação e participação dentro do contexto

da Educação Escolar Quilombola, oferecendo sempre o apoio e colaboração necessários.

Aos quilombolas de Mata-Cavalo, pela confiança e relato das suas mais ricas memórias,

quanto aprendizado! Agradeço às protagonistas desse trabalho: professoras Júnia, Edinete

Pereira e Eliane Parado; e aos anciões: Arnaldo, meu Bisavô, Antônio de Mulato, e ao

querido amigo, Natalino.

Agradeço aos avaliadores desta pesquisa: professores Dr. Acildo Leite da Silva, Dra. Nilce

Vieira Campos Ferreira e Dra. Márcia Ferreira.

Por fim, agradeço a todos que compartilharam comigo este percurso de aprendizado, regado

a esforço, dedicação e superação, e espero, sinceramente, que esta experiência rica do

mestrado seja a primeira de muitas nesta longa jornada.

SANTANA, Gonçalina Eva Almeida de. Saberes e Fazeres Quilombolas: um olhar sobre as

Práticas Pedagógicas da área de Ciências Humanas da Escola de Mata-Cavalo. Dissertação

(Mestrado em Educação). Programa de Pós-Graduação em Educação. Universidade Federal de

Mato Grosso. Cuiabá, 2018.

RESUMO

O presente estudo é resultado de uma pesquisa qualitativa de cunho etnográfico, realizada na

Escola Estadual Professora Tereza Conceição Arruda, localizada no Quilombo

Mata-Cavalo/Nossa Senhora do Livramento-MT. Neste trabalho, objetivou-se compreender

as práticas pedagógicas utilizadas pelos professores da área de Ciências Humanas da referida

escola, com centralidade na observação do processo de articulação do conhecimento

científico e dos conhecimentos tradicionais quilombolas em seu contexto sócio-

histórico-cultural. Além disso, discorre sobre as Políticas Públicas relacionadas à

modalidade de Educação Escolar Quilombola e apresenta a luta histórica dos

matacavalenses por educação formal. A fundamentação teórica está ancorada em Castilho

(2011), André (1995), Geertz (1989), Minayo (2008), Denzin e Lincoln (2006), Bardin

(1979), Hall (2006), Munanga (1995-1996), Barth (1998), Freitas (1978), Moura (1988;

2001), O’Dwyer (2002), Silva (2014), Bandeira (1992), Barros (2007), Nunes (2001), Freire

(2016), dentre outros. Os instrumentos utilizados para a coleta de dados foram: observação

participante, entrevista semiestruturada, história de vida, registro no diário de campo,

documentos e fotografias. Os resultados permitiram entrever a existência de esforços por

parte dos docentes, no sentido de realizar uma educação contextualizada com a realidade da

comunidade e articulada com os saberes científicos, apesar das condições adversas em

termos de infraestrutura, recursos financeiros e materiais pedagógicos. Identifica-se que os

professores se organizam para buscar formação para o aperfeiçoamento da pedagogia

quilombola. Percebe-se, também, que as materializações das políticas públicas para a

Educação Escolar Quilombola caminham a passos tímidos, sem dialogar e assegurar

condições dignas de trabalho e formação continuada, comprometendo o desenvolvimento da

didática quilombola, contrariando, assim, o que está regulamentado nos documentos oficiais

que orientam o trabalho em escolas inseridas nos territórios quilombolas.

Palavras-chave: Educação Quilombola. Saberes docentes. Quilombo Mata-Cavalo. Práticas

Pedagógicas.

SANTANA, Gonçalina Eva Almeida de. Quilombola Knowledge and Practice: a look at the

Pedagogical Practices of the Human Sciences area of the Mata-Cavalo School. Dissertation

(Master in Education). Graduate Program in Education. Federal University of Mato Grosso.

Cuiabá, 2018.

ABSTRACT

This study is the result of qualitative research of an ethnographic nature realized at State

School Professor Tereza Conceição Arruda, located at Quilombo Mata-Cavalo/Nossa

Senhora do Livramento-MT. The objective of this study was to understand the pedagogical

practices used by teachers of the Human Sciences area at the mentioned school, with focus

in the observation of the process of articulation of scientific knowledge and traditional

quilombola knowledge in its social, historical and cultural contexts. In addition, it discusses

the Public Policies related to the modality of Quilombola School Education and presents the

historical struggle of the matacavalenses for formal education. The theoretical foundation is

anchored in Castilho (2011), André (1995), Geertz (1989), Minayo (2008), Denzin and

Lincoln (2006), Bardin (1979), Hall (2006), Munanga Barth (1998), Freitas (1978), Moura

(1988, 2001), O'Dwyer (2002), Silva (2014), Bandeira (1992), Barros (2007), Nunes (2001),

Freire (2016) and others. The instruments used to collect data were: participant observation,

semi-structured interview, life story, field diary record, documents and photographs. Efforts

on the part of the teachers, in order to carry out an education contextualized with the

community reality, articulated with the scientific knowledge, despite the adverse conditions

in terms of infrastructure, financial resources and pedagogic materials, was showed as

results. It is identified that teachers are ourselves organized to seek training for the

improvement of quilombola pedagogy. Besides that, it is also noticed that the

materializations of the public policies for Quilombola School Education are moving in timid

steps, without dialogue and no secure decent conditions of work and continuous formation,

jeopardizing the development of quilombola didactics, thus contradicting what is regulated

in the official documents, which guide the work in schools inserted in the quilombolas

territories.

Keywords: Quilombola Education. Teacher knowledge. Quilombo Mata-Cavalo.

Pedagogical practices.

SANTANA, Gonçalina Eva Almeida de. Saber y hacer Quilombolas: una mirada sobre las

Prácticas Pedagógicas del área de Ciencias Humanas de la Escuela de Mata-Caballo.

Disertación (Maestría en Educación). Programa de Postgrado en Educación. Universidad Federal

de Mato Grosso. Cuiabá, 2018.

RESUMEN

El presente estudio es el resultado de una investigación cualitativa de cuño etnográfico,

realizada en la Escuela Estadual Profesora Tereza Conceição Arruda, ubicada en el

Quilombo Mata Caballo / Nuestra Señora del Livramento - MT. En este estudio, se objetivó

comprender las prácticas pedagógicas utilizadas por los profesores del área de Ciencias

Humanas de dicha escuela, con centralidad en la observación del proceso de articulación del

conocimiento científico y los conocimientos tradicionales quilombolas en su contexto

socio-histórico-cultural. Discurre sobre las Políticas Públicas relacionadas a la modalidad de

Educación Escolar Quilombola y presenta la lucha histórica de los matacavalenses por

educación formal. En el caso de que se trate de una de las más importantes de la historia de

la ciencia y de la ciencia, (1998), Freitas (1978), Moura (1988; 2001), O'Dwyer (2002),

Silva (2014), Bandera (1997), Barros (2007), Nunes (2001), Freire (2016) entre otros. Los

instrumentos utilizados para la recolección de datos fueron: observación participante,

entrevista semiestructurada, historia de vida, registro en el diario de campo, documentos y

fotografías. Los resultados permitieron entrever la existencia de esfuerzos por parte de los

docentes, en el sentido de realizar una educación contextualizada con la realidad de la

comunidad y articulada con los saberes científicos, a pesar de las condiciones adversas en

términos de infraestructura, recursos financieros y materiales pedagógicos. Se identifica que

los profesores se organizan para buscar formación para el perfeccionamiento de la pedagogía

quilombola. Se percibe también que las materializaciones de las políticas públicas para la

Educación Escolar Quilombola caminan a pasos tímidos, sin dialogar y asegurar condiciones

dignas de trabajo y formación continuada, comprometiendo el desarrollo de la didáctica

quilombola, contrariando así lo que está regulado en los documentos oficiales que orientan

el trabajo en escuelas insertadas en los territorios quilombolas.

Palabras clave: Educación Quilombola. Maestros Conocimiento. Quilombo Mata-Caballo.

Prácticas Pedagogicos.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Imagem da Escola Municipal São Benedito ......................................................... 17

Figura 2 - Imagem do território quilombola de Mata-Cavalo ................................................ 35

Figura 3 - Mapa de localização das comunidades no Quilombo Mata-Cavalo ....................... 36

Figura 4 - Entrada da cidade de Nossa Senhora do Livramento/MT ...................................... 55

Figura 5 - Imagem da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Livramento (2018) ...................... 56

Figura 6 - Imagem do inventário dos negros escravizados pertencentes ao Ricardo José Alves

Bastos, em 1785 ................................................................................................................... 61

Figura 7 - Imagem do inventário dos negros escravizados pertencentes ao Ricardo José Alves

Bastos, em 1785 ................................................................................................................... 61

Figura 8 - Moradia de quilombola à beira da estrada após despejo........................................ 76

Figura 9 - Moradia quilombola situada à beira da rodovia após despejo................................ 76

Figura 10 - Imagem da sala de aula antes do despejo ............................................................ 81

Figura 11 - Imagem da sala de aula após o despejo............................................................... 81

Figura 12 - Ao fundo, imagem de uma moradia antes do despejo ......................................... 81

Figura 13 - Imagem da casa da foto 12 após o despejo ......................................................... 82

Figura 14 - Imagem dos pertences das famílias expulsas jogados na beira da estrada ............ 82

Figura 15 - Imagem de uma casa de alvenaria em Mata-Cavalo............................................ 84

Figura 16 - Imagem de uma casa de telha e paredes de palha em Mata-Cavalo ..................... 84

Figura 17 - Imagem de outra casa de telha com paredes de palha em Mata-Cavalo ............... 84

Figura 18 - Imagem do Cururu em uma festa de santo no Quilombo Mata-Cavalo ............... 88

Figura 19 - Preparo do Jantar em festa de santo no Quilombo Mata-Cavalo ......................... 88

Figura 20 - Imagem da reunião dos matacavalenses com a equipe da Superintendência do

INCRA/MT.......................................................................................................................... 90

Figura 21 - Moradores do Quilombo Mata-Cavalo protestando por seus direitos no centro da

cidade de Cuiabá/MT ........................................................................................................... 90

Figura 22 - Imagem aérea da Escola Estadual Profa. Tereza Conceição Arruda .................. 103

Figura 23 - Imagem da entrada principal da Escola Estadual Professora Tereza Conceição

Arruda ............................................................................................................................... 104

Figura 24 - Imagem do refeitório da escola abrigando uma atividade extraclasse ................ 106

Figura 25 - Parte do acervo histórico da Casa da Cultura .................................................... 107

Figura 26 - Imagem do interior de uma das salas anexas que funciona no quilombo ........... 109

LISTA DE QUADROS

Quadro 1 - Dissertação sobre formação de professores quilombolas ................................... 24

Quadro 2 – Tese sobre formação de professores quilombolas ............................................. 25

Quadro 3 - Entrevistados .................................................................................................... 47

Quadro 4 - Síntese dos saberes científicos: Ciências Humanas da educação básica ........... 154

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 15

CAPÍTULO I – CAMINHOS METODOLÓGICOS ........................................................... 34

1.1 MINHA RELAÇÃO COM O CAMPO DE PESQUISA ............................................ 34

1.2 DESVELANDO O CAMPO DE PESQUISA ............................................................ 35

1.3 ABORDAGENS ....................................................................................................... 39

1.3.1 Qualitativa .......................................................................................................... 39

1.3.2 Etnografia ........................................................................................................... 41

1.4 INSTRUMENTOS E COLETAS DE DADOS .......................................................... 43

1.4.1 Observação ......................................................................................................... 43

1.4.2 Entrevista ............................................................................................................ 45

1.4.3 Análise documental ............................................................................................. 47

1.4.4 Recurso fotográfico ............................................................................................. 48

1.4.5 Análise dos conteúdos ......................................................................................... 48

CAPÍTULO II – A COMUNIDADE QUILOMBOLA DE MATA-CAVALO ................... 50

2.1 COMUNIDADES QUILOMBOLAS: CONCEITOS ................................................ 50

2.2 BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO DO MUNICÍPIO DE NOSSA SENHORA DO

LIVRAMENTO/MT ....................................................................................................... 54

2.3 QUILOMBO MATA-CAVALO: ASSIM COMEÇA SUA HISTÓRIA .................... 58

2.4 A SAGA DOS MATACAVALENSES: O RETORNO ............................................. 68

2.5 QUILOMBO MATA-CAVALO: ATUALMENTE ................................................... 80

CAPÍTULO III - A EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA: A HISTÓRIA DA

EDUCAÇÃO DE MATA-CAVALO E SEUS CONTEXTOS ............................................ 91

3.1 A LUTA HISTÓRICA DO POVO DE MATA-CAVALO POR ESCOLARIZAÇÃO

....................................................................................................................................... 91

3.2 A ESCOLA ESTADUAL PROFA. TEREZA CONCEIÇÃO ARRUDA ................. 102

CAPÍTULO IV – POLÍTICAS PÚBLICAS E A EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA

NO CONTEXTO ESCOLAR ........................................................................................... 112

4.1 POLÍTICAS PÚBLICAS PARA EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA ......... 112

4.2 CURRÍCULOS: ALGUNS CONCEITOS ............................................................... 121

4.3 PRÁTICAS PEDAGÓGICAS E A EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA ...... 126

4.4 SABERES DOCENTES: CONCEPÇÕES .............................................................. 131

CAPÍTULO V – OS SABERES E FAZERES MOBILIZADOS DURANTE AS PRÁTICAS

PEDAGÓGICAS DOS PROFESSORES DA ÁREA DE CIÊNCIAS HUMANAS .......... 136

5.1 RETRATO DOS PROFESSORES .......................................................................... 136

5.1.1 Retrato da professora Eliane .............................................................................. 137

5.1.2 Retrato da professora Júnia ............................................................................... 143

5.1.3 Retrato da professora Edinete ............................................................................ 147

5.2 OS SABERES E FAZERES PEDAGÓGICOS QUE DESFILAM NA ÁREA DE

CIÊNCIAS HUMANAS DA ESCOLA ESTADUAL PROFESSORA TEREZA

CONCEIÇÃO ARRUDA ............................................................................................. 152

5.3 SABERES CIENTÍFICOS RELACIONADOS ÀS CIÊNCIAS HUMANAS .......... 153

5.4 SABERES DOCENTES E AS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: PROFESSORA DE

HISTÓRIA ................................................................................................................... 155

5.5 OS SABERES EVIDENCIADOS DURANTE A OBSERVAÇÃO DA AULA DE

GEOGRAFIA ............................................................................................................... 161

5.6 OS SABERES EVIDENCIADOS DURANTE A OBSERVAÇÃO DA AULA DE

SOCIOLOGIA .............................................................................................................. 169

5.7 OS SABERES EVIDENCIADOS DURANTE A OBSERVAÇÃO DA AULA DE

FILOSOFIA ................................................................................................................. 176

CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 181

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................. 185

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INTRODUÇÃO

Esta dissertação está relacionada à linha de pesquisa “Movimentos Sociais, Política e

Educação Popular” vinculada ao “Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Quilombola”

(GEPEQ), do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal

de Mato Grosso (UFMT), e tem como principal objetivo compreender as práticas

pedagógicas utilizadas pelos professores da área de Ciências Humanas do Ensino

Fundamental e Médio da Escola Estadual Quilombola Tereza Conceição Arruda, a partir da

observação do processo de articulação do conhecimento científico e dos conhecimentos

tradicionais quilombolas em seu contexto sócio-histórico-cultural. A referida escola está

localizada na comunidade quilombola de Mata-Cavalo1, município de Nossa Senhora do

Livramento, estado de Mato Grosso, Brasil.

Ademais, temos os objetivos específicos focados em compreender o universo

quilombola em seus aspectos históricos, identitários e culturais nos quais os professores

estão inseridos; compreender as políticas públicas voltadas para a Educação Escolar

Quilombola; compreender os discursos acadêmicos sobre práticas pedagógicas e saberes

docentes; bem como, apreender os saberes mobilizados pelos professores em suas práticas

pedagógicas e sua relação com os saberes da comunidade, e se esses profissionais articulam

o conhecimento científico e os conhecimentos tradicionais quilombolas em seu contexto

sócio-histórico-cultural.

Minha trajetória no Quilombo Mata-Cavalo se dá desde o meu nascimento.

Tataraneta de africano escravizado, eu sou da linhagem de uma das poucas famílias que

resistiram no território quilombola, apesar de toda adversidade sofrida. Além da perseguição

praticada por fazendeiros que queriam, a todo preço, o nosso pedaço de chão, também

sofríamos com os resquícios das consequências deixadas pela escravidão, tais como:

pobreza, analfabetismo e discriminação. Nesse ambiente, cresci sempre ouvindo de meus

pais e avós sobre a importância da educação formal para transformarmos o nosso meio e

superarmos o preconceito.

Certa da mudança que minha vida teria se estudasse, a felicidade tomou conta de

meu ser quando, na época, minha avó Tereza, que lecionava na Escola Estadual José de

Barros Maciel, localizada em Nossa Senhora do Livramento, levou-me para matricular numa

1 Escrita originária para o Quilombo em estudo, conforme consta do livro Quilombo contemporâneo:

educação, família e culturas (CASTILHO, 2014).

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escola de ensino fundamental desse município. Nessa escola, sofri todo tipo de

discriminação por parte de professores e colegas (hoje reconheço isso), pois, além de ser

negra, era uma das poucas crianças da zona rural que frequentava a escola na cidade. Nela,

aprendi a ler e escrever, mas, mesmo assim, eu me sentia deslocada e, às vezes, intrusa, pois

as histórias que eu ouvia sobre gente da minha cor e da minha localidade eram sempre ruins

e inferiorizadas. Na história, o meu povo era mostrado a mim e aos colegas como

escravizados, sem alma, sem cultura. A minha gente da zona rural era mostrada como

ignorante, sem estudo, que somente servia para os trabalhos braçais. Às vezes, até éramos

ameaçados pelos professores, que, se não estudássemos, seríamos como eles, como se isso

fosse o pior que poderia acontecer a um indivíduo.

Após terminar o ensino fundamental, no ensino médio, matriculei-me no curso de

Magistério, seguindo os passos da minha avó Tereza e da minha mãe Lúcia, que também

foram professoras. Em 1994, após finalizar o magistério, passei a dedicar o meu tempo a

ajudar minha mãe na sala de aula, com o intuito de me aperfeiçoar na nova profissão. A

escola, nessa época, funcionava na nossa própria casa, em Mata-Cavalo, onde minha mãe

ministrava as aulas numa sala multisseriada de 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental.

Durante a minha passagem pela educação básica, em nenhum momento, algum

docente trabalhou as questões raciais, em especial, a história do negro, com o intuito de

recontar a verdadeira biografia desse povo. Ao contrário, repetiam as histórias contadas pelo

livro didático, que, na maioria das vezes, trazem uma abordagem distorcida, etnocêntrica e

impregnada de preconceito e discriminação. Ou ainda, baseavam-se nas histórias que lhes

foram contadas, ora por seus professores, ora pela sociedade livramentense, também de

modo equivocado.

Em 1996, motivados pelos conflitos com fazendeiros, os moradores da comunidade,

incluindo a minha avó, resolveram criar uma associação de produtores para lutar contra a

expulsão das famílias e para reconquistar áreas já tomadas pelos fazendeiros. Criaram,

então, a Associação de Pequenos Produtores Rurais, onde iniciei a atuar como secretária da

associação. Comecei, nesse momento, a tomar consciência sobre o que os meus pais e avós

falavam, quanto à importância da escolarização formal. Cabia a mim organizar a associação,

escrever ofícios e ler os documentos, pois os demais membros da associação ou eram

analfabetos, ou tinham dificuldade com a escrita. Nessa época, ainda não conhecíamos o

termo quilombola. O que conhecíamos era a história de que as terras foram doadas aos

nossos antepassados e, posteriormente, tomadas deles por expulsão ou ‘compra’.

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Apenas em 1997, tomamos conhecimento sobre o direito que tínhamos garantidos na

Constituição Federal de 1988 (CF/88), por meio do artigo 68 do Ato das Disposições

Constitucionais Transitórias (ADCT), que garantia aos remanescentes de quilombo a posse

definitiva de suas terras. Após a descoberta do direito quilombola à terra, muitas famílias

começaram a retornar para a comunidade. Surge, então, a necessidade de uma escola para

ensinar as crianças, visto que a educação é considerada pelos quilombolas como

fundamental no fortalecimento da luta pela conquista do território, bem como para a

valorização da nossa cultura.

Com a implantação da Escola Municipal São Benedito na comunidade, em 1996,

comecei formalmente o exercício do magistério, aos 19 anos de idade, numa sala feita de

pau a pique, coberta com palha de babaçu, com turma multisseriada, onde eu era a auxiliar

de limpeza, merendeira e professora ao mesmo tempo. No início da minha carreira, tinha

impregnada em mim a forma de ensinar como eu fui ensinada, conteúdo desconexo da

realidade, num currículo eurocêntrico, influenciado pelo livro didático, que era o único

recurso pedagógico ao qual tinha acesso. Todavia, esse modo de ensino me incomodava

desde quando eu era estudante do primário. Comecei, então, a procurar recursos didáticos,

no intuito de abordar conteúdos mais críticos e mais próximos da realidade dos estudantes.

Figura 1 - Imagem da Escola Municipal São Benedito

Fonte: cedida por Carlos Alberto Caetano.

Como pode ser observada na figura 1, a sala de aula, que era construída com

estrutura de madeira e coberta com palha de babaçu, abrigava discentes de diferentes idades

e fase escolar em uma única turma. Não possuía paredes e os estudantes sentavam em

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bancos inteiriços de madeira, feitos por moradores da comunidade. Apesar da precariedade

de recursos, era o início de uma nova era na comunidade.

Foi a partir da minha integração para compor a luta pela retomada do território

quilombola que passei a fazer parte do movimento Negro (Grucon/MT). Neste grupo, passei

a conhecer ao participar de palestras e a partir da leitura da bibliografia indicada por

integrantes do grupo, a verdadeira história do meu povo negro. Uma história que durante

meus (até então) 19 anos de vida, eu nunca havia tido contato.

Em 1999, movida pela necessidade de elementos para fortalecer a nossa luta,

ingressei-me no movimento nacional das articulações das Comunidades Quilombolas do

Brasil (CONAQ), vindo a fazer parte, em 2003, de uma Comissão Interministerial que

iniciava a discussão sobre políticas públicas específicas para as comunidades quilombolas,

entre elas, a regularização fundiária dos territórios e o direito a uma educação específica

para as comunidades, pois, até aquele momento, o Governo Federal não dispunha de

nenhuma política específica para quilombos, mesmo isso já sendo garantido na Carta Magna

de 1988, há mais de 15 anos.

A partir dos trabalhos oriundos da Comissão Interministerial, instituiu-se o Decreto

n.º 4887/2003, que trata da identificação, reconhecimento e regularização fundiária dos

territórios e, posteriormente, a conquista de outras políticas públicas, inclusive no campo da

Educação com a criação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar

Quilombola, que sinalizam à União, aos estados e municípios como deve ser tratada a

educação nos territórios quilombolas, em cumprimento ao disposto, anteriormente, no art. 68

do ADCT da CF/88.

De posse da história real do negro, comecei a buscar a história do povo da minha

comunidade, mostrando, para os meus discentes e moradores, como a nossa história é bonita

e importante para o nosso país e, ao mesmo tempo, desmentindo e desmistificando a história

que os livros didáticos mostravam e que as pessoas contavam através dos tempos, com o

intuito de inferiorizar e diminuir os africanos e seus descendentes.

Nessa época, também tive o prazer de conhecer a professora Suely Castilho, que

fazia doutorado, cujo objeto de pesquisa era a história do povo quilombola de Mata-Cavalo.

Seu trabalho sobre a educação quilombola também serviu para que eu pudesse refletir sobre

a minha prática pedagógica e me estimulou a buscar formas de aperfeiçoar meus

conhecimentos. Assim, em 2005, ingressei no Curso Normal Superior, concluindo-o em

2009. Tinha realizado o sonho de ser universitária! Porém o incômodo continuava por não

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ver na instituição de formação de professores a preocupação com a formação voltada para a

prática do respeito às diferenças.

Paralelo à luta pela formação superior, no movimento quilombola, lutávamos pela

regularização fundiária e demais políticas públicas, entre elas, a implementação de uma

escola com uma estrutura melhor na comunidade, onde pudéssemos ter até o ensino médio,

evitando, assim, que as nossas crianças tivessem que deixar o seu local de origem para

estudar em Nossa Senhora Livramento ou arredores, onde sofriam muita discriminação e

outras influências negativas para sua formação. Nesse sentido, após muitas reivindicações da

Comunidade junto aos órgãos Municipal e Estadual, conseguimos, em julho de 2012, a

construção e reinauguração da Escola Estadual Professora Tereza Conceição Arruda, época

em que eu já era professora concursada do Estado de Mato Grosso, tendo sido, inclusive,

designada para ser a primeira diretora da nova escola.

Em continuidade à nossa luta e embasada na Lei n.º 10.639/2003, que alterava a Lei

n.º 9.394/1996, a qual estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, para incluir,

no currículo oficial da rede de ensino, a obrigatoriedade da temática "História e Cultura

Afro-Brasileira", propiciando, assim, meios de inclusão da educação quilombola não

somente na esfera nacional, como nas orientações curriculares para educação étnica-racial de

Mato Grosso, iniciei, juntamente com os professores e demais membros da comunidade

local, a luta pela implementação do currículo específico tão sonhado e desejado. Porém,

mesmo de posse de todas essas legislações que tratam das especificidades da educação

quilombola, enfrentamos muitos entraves para efetivar um currículo específico.

Dentre as principais dificuldades enfrentadas, destacamos a falta de material

pedagógico propício e a formação adequada dos professores. No entanto, aceitamos o

desafio e implementamos o currículo específico, mesmo sabendo não ser o ideal. Não

obstante esses entraves, e com o intuito de melhorar o trabalho dos nossos docentes,

buscamos formações junto à Secretaria de Educação do Estado de Mato Grosso (Seduc/MT),

que nos atendeu com o Curso de formação para professores quilombolas em parceria com a

UFMT. As formações, ainda que bastante interessantes, não atendiam de forma mais

completa as nossas necessidades formativas.

Em janeiro de 2015, deixei a direção da escola quilombola para assumir o cargo de

Superintendente de Diversidades Educacionais na Seduc/MT, onde a luta foi além da minha

comunidade de Mata-Cavalo. Nessa nova empreitada, além dos quilombolas, também tive a

prazerosa missão de trabalhar com Educação Escolar Indígena, Educação do Campo,

Educação Especial, Educação de Jovens e Adultos e também Diversidades e Direitos

20

Humanos. Aceitei esse desafio acreditando na minha experiência da luta quilombola e na

esperança de, junto aos movimentos sociais, garantir o direito às chamadas “minorias” a

uma educação diferenciada e de qualidade e também contribuir para a construção de um

currículo nas escolas estaduais de Mato Grosso que contemplassem a educação voltada para

o respeito ao ser humano.

Acredito que o respeito ao ser humano impede a discriminação de qualquer natureza.

Nessa experiência na Seduc/MT, percebi que as batalhas para a efetivação da especificidade

da educação quilombola vai além da aprovação de uma lei, pois o órgão que escreve a

política (e é responsável por implantá-la) não está preparado para lidar com ela, por conta de

um sistema inoperante que não considera adequadamente a diversidade existente e acaba por

dificultar a implementação dessas políticas no chão da escola.

Frente à realidade encontrada na Seduc/MT, senti que precisava de um caminho no

intuito de me preparar ainda mais para lidar com esse sistema educacional totalmente

despreparado para trabalhar com as especificidades quilombolas. Foi então que me lembrei

da Profa. Dra. Suely Castilho, que outrora havia me convidado para conhecer o Grupo de

Pesquisa em Educação Escolar Quilombola da Universidade Federal de Mato Grosso

(GEPEQ/UFMT), o qual desenvolve estudos sobre quilombos. Fui até à UFMT, conversei

com a professora Suely Castilho, que logo me convidou a participar de um projeto

coordenado por ela, que discute formação de professores quilombolas. Comecei a participar

do projeto e do curso de extensão oferecido (Formação de Professores Pesquisadores) e fui

sentindo dentro de mim o desejo de não ser apenas coadjuvante da história quilombola, mas,

sim, protagonista na busca de uma resposta para as inúmeras indagações a respeito desse

fazer pedagógico específico e diferenciado.

Diante de toda essa trajetória e da necessidade de aperfeiçoar meus conhecimentos

em relação à Educação Escolar Quilombola, fiquei sabendo do seletivo de mestrado do

Instituto de Educação da UFMT, que tinha cotas para quilombolas. Então, candidatei-me à

vaga, esperançosa de que a pesquisa poderia me ajudar a contribuir, ainda mais, com a

minha comunidade e com os demais quilombolas do Mato Grosso e quiçá do Brasil,

encontrando novos meios de consolidar a educação específica nas escolas quilombolas.

Hoje sou mestranda pela UFMT e minha experiência de quilombola, militante,

docente, somada às leituras efetuadas que me fizeram refletir sobre a necessidade de

compreender as práticas pedagógicas dos professores e devido à necessidade de delimitar

meus estudos, optei pelo recorte do tema e pelo estudo da área de Ciências Humanas,

ministrada pelos professores da Escola Estadual Quilombola Profa. Tereza Conceição

21

Arruda, com centralidade na observação do processo de articulação do conhecimento

científico e os conhecimentos tradicionais quilombola em seu contexto sócio-histórico-

cultural.

Resta claro que esta proposta de estudo é fruto da minha angústia como docente

quilombola em relação à efetivação da educação específica e materializa, de alguma forma,

o meu desejo de contribuir nesse debate. Para tanto, no intuito de atender ao que esta

pesquisa se propõe, em especial, entender a Educação Escolar Quilombola e os saberes

mobilizados pelos professores da Escola Estadual Profa. Tereza Conceição Arruda, fez-se

necessário abordar diversos temas, tais como: o conceito de quilombo, luta pela terra,

território, história, memória, cultura, identidade, conceito de Educação Escolar Quilombola,

Diretrizes Curriculares, currículo, práticas pedagógicas, saberes docentes e formação de

professores.

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 68, do Ato das Disposições

Constitucionais Transitórias (ADCT/CF88), preconiza: “Aos remanescentes das

comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade

definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.” (BRASIL, 1988).

Porém, mesmo após a edição da Carta Magna (CF/88), a efetivação dos direitos

quilombolas não tem acontecido em águas tranquilas. Nesse contexto, os quilombolas vêm

lutando por meio de suas associações e de sua principal organização política, a Coordenação

Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ), pela posse da terra, pelo reconhecimento

como quilombolas, pelo título definitivo de seus territórios, pela melhoria da educação, bem

como pela qualidade de vida em suas comunidades, ou seja, por políticas públicas que

garantam o direito à saúde, à moradia, ao trabalho e a uma educação que valorize as suas

especificidades étnico-culturais.

O movimento quilombola estima que existam, no Brasil, mais de cinco mil

comunidades remanescentes de quilombos. No entanto, até janeiro de 2018, segundo dados

da Fundação Cultural Palmares (FCP)2, foram emitidas 2.645 certidões de autodefinição

para 2.890 comunidades quilombolas, sendo que um certificado pode contemplar mais de

uma comunidade. A emissão de Certidão de Autodefinição de Comunidade Remanescente

de Quilombo reconhece que a população e a área que ocupam têm relação com os antigos

quilombos. A comunidade passa, então, a ter direitos e amparos legais, estabelecidos pelos

2 Fundada no dia 22 de agosto de 1988, pelo Governo Federal, a Fundação Cultural Palmares (FCP) foi a

primeira instituição pública instituída para promoção e preservação da arte e da cultura afro-brasileira. Referida

fundação é vinculada ao Ministério da Cidadania. Possui como uma de suas atribuições a certificação para

comunidades quilombolas. Para mais informações, acesse: http://www.palmares.gov.br/?page_id=52126.

22

artigos 215 e 2163 da Constituição Federal de 1988, que preveem defesa e valorização do

patrimônio cultural brasileiro e a obrigação do poder público em promovê-lo e protegê-lo

(FCP 2018).

Todavia, a certificação das comunidades não garante a posse da terra, uma vez que a

titulação em âmbito federal é de responsabilidade do Instituto Nacional de Colonização e

Reforma Agrária (INCRA). Segundo dados obtidos no site do INCRA4, em abril de 2018,

foram emitidos 210 títulos, regularizando 1.046.300,34 hectares em benefício de 151

territórios, 241 comunidades e 16.009 famílias quilombolas. Ainda segundo dados do

INCRA, no Estado de Mato Grosso, especificamente, até o momento desta pesquisa,

nenhuma comunidade quilombola foi titulada de forma definitiva.

Percebe-se que o número de comunidades quilombolas com terras regularizadas no

Brasil é muito pequeno, uma vez que, de acordo com os dados do INCRA (2018), apenas

210 títulos definitivos foram emitidos, o que denota a ineficácia e morosidade do Governo

Federal frente às necessidades e demandas de populações que foram historicamente

subalternizadas.

Em quase todos os estados brasileiros existem comunidades quilombolas. Segundo

levantamento efetuado pela Fundação Cultural Palmares, só não se sabe da existência nos

estados do Acre, Roraima e no Distrito Federal. Ainda, de acordo com informações da FCP,

os estados com maior concentração dessas comunidades são: Bahia, Minas Gerais,

Pernambuco, Maranhão e Pará. E, de acordo com dados do INCRA (2018), a população

quilombola no Brasil estava estimada em 1,17 milhão de pessoas.

Nesse cenário de luta, para garantir os direitos civis do povo quilombola,

desencadearam-se também as reivindicações pela Educação Escolar Quilombola como

política educacional. Problemática denunciada constantemente pelos movimentos

quilombolas e setores da sociedade que exigem a educação pública e de qualidade para todos

(BRASIL, 2011).

A Educação Escolar Quilombola como modalidade de ensino da Educação Básica

começa a ser estruturada pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), por meio da

Resolução CNE/CEB n.º 045, de 13 de julho de 2010, que define as Diretrizes Curriculares

Nacionais Gerais para a Educação Básica, em complemento e fundamentada no Parecer

3 Para íntegra dos artigos, acesse: https://quilombos.files.wordpress.com/2007/12/artigos-68-215-e-216.pdf. 4 http://www.incra.gov.br/quilombola. 5 Resolução CNE/CEB 4/2010. Diário Oficial da União, Brasília, 14 de julho de 2010, Seção 1, p. 824.

Disponível em: http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/rceb004_10.pdf. Acesso: out. 2018.

23

CNE/CEB n.º 07/20106, que instituiu a equipe para a elaboração das Diretrizes Curriculares

Nacionais específicas para essa modalidade; culminando na edição da Resolução CNE/CEB

n.º 08/2012, de 20 de novembro de 2012, que estabeleceu as Diretrizes Curriculares

Nacionais para a Educação Escolar Quilombola na Educação Básica, fazendo com que esta

passasse a constar como modalidade de ensino (CASTILHO e CARVALHO, 2015).

No entanto, apesar dos avanços em termos de legislações, no chão das comunidades

quilombolas em todo o Brasil ainda existe vários desafios a serem enfrentados para que tais

legislações sejam de fato efetivadas. A formação de professores, conforme já apontado, é um

desses desafios e possui, a nosso ver, um sentido de urgência em garantir o direito desses

docentes a uma formação específica, importância essa tão balizar quanto à consolidação da

Educação Escolar Quilombola como modalidade de educação básica (CNE/CEB, 2012).

Dessa forma, para dar subsídio às discussões sobre saberes e fazeres dos docentes

quilombolas, buscou-se realizar uma Revisão Sistemática da Literatura (RSL), embasada no

método proposto por Botelho, Cunha e Macedo (2011). Para os autores, a revisão

sistemática possibilita ao pesquisador aproximar-se da realidade que deseja estudar,

desenhando um quadro das obras científicas relacionado ao seu tema de pesquisa, de forma a

potencializar o conhecimento da evolução do assunto ao longo dos anos e, com isso,

visibilizar novas possibilidades de pesquisa.

Essa revisão sistemática nos permitiu verificar lacunas que ainda existem sobre os

saberes e fazeres dos docentes quilombolas, bem como sobre a formação específica para

esse segmento no país. Da mesma maneira, possibilitou-nos conhecer as contribuições sobre

esses assuntos para o aprofundamento da discussão sobre educação quilombola, prática

pedagógica, formação específica para docentes que atuam em escolas quilombolas e

políticas públicas para Educação Escolar Quilombola no Brasil.

A revisão foi norteada por três questões que serviram como fios condutores: Quais

saberes os docentes da área de Ciências Humanas mobilizam em suas práticas pedagógicas,

no contexto da Educação Escolar Quilombola, de modo a transitar entre os saberes locais e

saberes globais? A formação dos professores que atuam nas escolas quilombolas está de

acordo com o que preconiza as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar

Quilombola? A formação desses professores tem permitido o diálogo entre o saber científico

e os saberes tradicionais das comunidades na prática em sala de aula?

6 Parecer homologado por meio de despacho do Ministro, publicado no D.O.U. de 9/7/2010, Seção 1, Pág.10.

Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=5367-

pceb007-10&Itemid=30192. Acesso em: out. 2018.

24

Partindo dessas questões, foram elaborados os descritores em Língua Portuguesa e

foi criada a metodologia de busca, que nos possibilitou encontrar e recuperar os trabalhos

que dialogam com a temática de interesse, quais sejam: “fazeres docentes”, “formação de

professores quilombolas”, “saberes docentes” e “docentes no Quilombo”. A partir dos

descritores, busquei dissertações e teses no banco de dados da CAPES, Google Acadêmico,

Plataforma Sucupira, o que nos possibilitou encontrar teses e dissertações que vieram ao

encontro da temática proposta nesta pesquisa, em linhas gerais.

Na primeira fase, até onde consegui alcançar, foram localizadas duas teses de

doutorado e oito dissertações de mestrado, desenvolvidas entre os anos de 2001 a 2016, que

tratam dos descritores estabelecidos para a busca. Na segunda fase da revisão sistemática,

foi realizada a avaliação dos trabalhos, sendo selecionadas três dissertações de mestrado e

uma tese de doutorado, desenvolvidas no período de 2001 a 2015, que tratavam sobre

práticas pedagógicas, saberes docentes e formação de professores.

Sequencialmente, após análise dos trabalhos, é importante destacar que apenas um

trabalho trata diretamente dos saberes e fazeres docentes, bem como da formação de

professores quilombolas, desafios e necessidade da formação específica. Esse dado é apresentado no Quadro 1 abaixo:

Quadro 1 - Dissertação sobre formação de professores quilombolas

Ano Tipo Nome Título Instituição

2003 Mestrado Ana Cristina do Nascimento

“Da Escola no Quilombo

à Escola do Quilombo”: a

identidade quilombola na

Escola Municipal

Etelvina Amália de

Siqueira Alves (Amparo de São Francisco-SE,

2011-2012)

UNIT/SE –

Universidade de

Tiradentes

Fonte: Elaborado pela autora (2018), com base nas pesquisas realizadas nos bancos de dados citados anteriormente.

Os sujeitos da pesquisa supracitada são docentes da Escola Municipal Etelvina

Amália de Siqueira Alves, da cidade de Amparo de São Francisco/ SE. Os resultados da

pesquisa demonstraram a necessidade de se conhecer ainda mais sobre as práticas

pedagógicas e a formação de professores quilombolas, bem como quanto a compreender os

limites e as possibilidades vivenciadas pelos profissionais no seu fazer docente, diante da

formação recebida e, principalmente, identificar as lacunas existentes nessas formações.

Em complemento às consultas bibliográficas, também foi realizada uma revisão

sistemática sobre os trabalhos de pesquisas realizados no quilombo Mata-Cavalo (local da

minha pesquisa), por apresentar um número significativo de produções acadêmicas. Assim,

25

na busca por trabalhos acadêmicos no quilombo Mata-Cavalo, foram identificadas: seis

dissertações de mestrado e uma tese de doutorado, desenvolvidas no período de 2008 a

2011. Essa revisão revelou que, apesar de todos os trabalhos possuírem como temática

central a educação no quilombo, apenas o trabalho de doutorado, realizado em 2008, fez

menção quanto aos saberes e fazeres docentes e à necessidade formativa dos professores que

atuam em comunidades quilombolas.

Esse dado está representado no Quadro 2 abaixo:

Quadro 2 – Tese sobre formação de professores quilombolas

Ano Tipo Nome Título Instituição

2008 Doutorado Suely Dulce de Castilho

Cultura escolar e cultura

quilombola: Universos

que dialogam e se negam

PUC/SP – Pontifícia

Universidade

Católica de São

Paulo

Fonte: Elaborado pela autora (2018), com base nas pesquisas realizadas nos bancos de dados citados anteriormente.

Importante destacar, ainda, que, ao longo do nosso estudo, verificamos que as

dissertações e teses, mesmo as que levantaram discussões associadas à Educação Escolar

Quilombola, realizadas na Escola Quilombola de Mata-Cavalo, não tinham como objeto de

pesquisa a questão dos saberes docentes ou a formação de professores voltadas para a área

de Ciências Humanas, ou, ainda, como essa temática deve ser trabalhada no espaço escolar

quilombola.

Dessa maneira, a realização desta pesquisa, na Escola Estadual Professora Tereza

Conceição Arruda, é importante, à medida em que busca conhecer os saberes que os

docentes da área de Ciências Humanas mobilizam em suas práticas pedagógicas, no

contexto da Educação Escolar Quilombola, tornando-se, portanto, relevante, uma vez que

contribuirá para fomentar as discussões em torno do fazer pedagógico em escolas inseridas

em território quilombola.

A lacuna de estudos nessa área justifica, assim, a necessidade de ampliação das

pesquisas sobre a temática escolhida, uma vez que, ao considerarmos a educação como um

processo que faz parte da humanidade e está presente em toda e qualquer sociedade,

podemos afirmar que a educação quilombola é aquela própria de um povo, diversa e

vinculada a uma especificidade cultural, que, segundo Silva (2014), pode/deve ter inserida,

no contexto escolar, a história da luta e organização quilombola, principalmente, no fomento

da formação de professores nos respectivos territórios.

26

Eu, enquanto quilombola, professora de escola quilombola e militante do movimento

quilombola, sou testemunha das lutas travadas em prol dessa educação diferenciada, que seja

capaz de respeitar nosso modo de vida, nossas culturas, ao mesmo tempo em que empodere

os moradores das comunidades quanto aos saberes necessários para atuarem frente à

sociedade ao qual estão inseridos. Nessa perspectiva, a pergunta de fundo, orientadora deste

estudo é: “Os docentes da área de Ciências Humanas da Escola Estadual Quilombola Profa.

Tereza Conceição Arruda, em suas práticas pedagógicas, no contexto da Educação Escolar

Quilombola, articulam os conhecimentos científicos com os saberes locais?”.

Concordamos com Celestino (2016) quando afirma que a sociedade atual se

caracteriza pela necessidade de repensar a educação e suas práticas pedagógicas, visando

uma transformação real e inovadora no interior das bases que sustentaram a escola do

passado e que ainda refletem nas instituições públicas atuais. As causas disso resistem, em

grande parte, devido à concepção de educação como reprodutora acrítica de um modelo de

sociedade. Ainda de acordo com a autora,

[...] a educação necessita de uma reestruturação para acompanhar as

transformações ocorridas na atualidade, possibilitando de forma consciente uma

interação com a realidade sócio-histórica da contemporaneidade, onde o direito à

identidade e à diversidade das comunidades contemporâneas não sejam negadas,

pois sabemos que a escola é um direito e que necessita dialogar com essa complexa realidade, apropriar-se das mudanças do nosso tempo sem perder de

vista os valores, tradições e cultura. (CELESTINO, 2016, p. 3).

Segundo Celestino (2016), a partir dessa renovação, a escola passa a possibilitar aos

educandos e aos coletivos sociais por ela organizada a prerrogativa de se experimentar,

interiormente, contextos palpáveis de uma aprendizagem inovadora por meio de práticas

pedagógicas que primam por um ato de aprender significativo, com respeito às identidades,

à diversidade, à vivência e à transmissão das suas tradições culturais, as quais são parte

constitutiva do processo de formação histórica, social, cultural e política dos povos

quilombolas.

Não obstante tal premissa, Celestino (2016) acrescenta que:

[...] a Educação Escolar Quilombola deverá ir mais além: ao incorporar e dialogar

com os conhecimentos da realidade local dos quilombolas no contexto de

aprendizagem, o currículo terá como eixo principal: a cultura, o trabalho, a oralidade, as lutas pela terra, pelo território e pela sustentabilidade dessas

comunidades. (CELESTINO, 2016, p. 18).

Ou seja,

27

[...] todas as disciplinas deverão dialogar transdisciplinarmente entre si, devendo a sua orientação ser a da vivência sócio-histórica dos conhecimentos e

aprendizagens construídos no “fazer quilombola”, incorporando práticas

pedagógicas inovadoras nos contextos de aprendizagem. (CELESTINO, 2016, p.

18).

Acerca da importância da transdisciplinariedade, é válido destacar que, em relação às

políticas educacionais vigentes, temos o artigo 26‐A7 da Lei de Diretrizes e Bases da

Educação Nacional (LDBEN) – Lei n.º 9.394/1996, introduzido pela Lei n.º 10.639/2003,

que trata da obrigatoriedade da inclusão do estudo da História da África e da Cultura

Afro-Brasileira e Africana e do ensino das relações étnico-raciais, instituindo o estudo das

comunidades remanescentes de quilombos e das experiências negras constituintes da cultura

brasileira.

Em complemento a tal dispositivo, temos o Parecer CNE/CP n.º 03/20048 prevendo

que todo sistema de ensino precisará providenciar “Registro da história não contada dos

negros brasileiros, tais como os remanescentes de quilombos, comunidades e territórios

negros urbanos e rurais” (BRASIL-CNE/CP, 2004, p. 13).

Conforme já abordado anteriormente, em 2010, tivemos um avanço nas

regulamentações voltadas à educação quilombola. Na Conferência Nacional de Educação

(CONAE), ocorrida em Brasília, naquele ano, houve a inclusão da Educação Escolar

Quilombola como modalidade da educação básica no Parecer CNE/CEB n.º 07/2010 e na

Resolução CNE/CEB n.º 04/2010, que institui as Diretrizes Curriculares Gerais para a

Educação Básica. Naquele evento (CONAE 2010), ficou definido, também, que a educação

quilombola é de responsabilidade dos governos federal, estadual e municipal. Em 2012,

tivemos a edição da Resolução CNE/CEB n.º 8, de 20 de novembro, que definiu as

Diretrizes Curriculares Para Educação Quilombola na Educação básica, normatizando a

Educação nas escolas dos territórios quilombolas e nas escolas que atendem alunos oriundos

das comunidades quilombolas.

Em Mato Grosso, a Resolução Normativa n.º 001/20139, de 22 de fevereiro de 2013,

do Conselho Estadual de Educação do Estado de Mato Grosso, embasada na Lei n.º

10.639/2003, dispôs sobre a oferta obrigatória da Educação das Relações Étnicas e Raciais e

do estudo da História e Cultura Afro-Brasileira, Africana e Indígena. Essa Resolução 7 Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2003/lei-10639-9-janeiro-2003-493157-

publicacaooriginal-1-pl.html. Acesso em: out. 2018. 8 Disponível em: http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/cnecp_003.pdf. Acesso em: out. 2018. 9 Disponível em: http://www.cee.mt.gov.br/wmmostrarmodulo.aspx?15,45,Componente+Arquivo. Acesso em out.

2018.

28

reforçou, com tom de obrigatoriedade, que as instituições de ensino do estado de Mato

Grosso cumprissem o disposto na Lei n.º 10.639/2003. Em 2014, seguindo as orientações da

Política Educacional Nacional, a Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso define

as orientações Curriculares do Estado para a Educação Escolar Quilombola que discorre

sobre a Especificidade da Educação Escolar Quilombola e Abordagem de Ensino no estado

de Mato Grosso.

A partir dessas regulamentações, percebe-se que a Educação Quilombola pôde

vislumbrar uma formação específica e diferenciada que permita uma pedagogia própria em

respeito à especificidade étnico-cultural de cada comunidade, bem como a formação

específica de seu quadro docente, observando os princípios constitucionais, os princípios

que orientam a educação básica brasileira e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC),

uma vez que as escolas quilombolas devem ser valorizadas e reconhecidas em sua

diversidade cultural (CARVALHO, 2016).

De acordo com as Orientações Curriculares para a Educação Quilombola em Mato

Grosso, o papel da Educação Quilombola é mediar o saber escolar com os saberes locais

(SEDUC, 2009-2010). Essa atitude asseguraria o direito à sustentabilidade de seu território

tradicional e a preservação de suas manifestações culturais, pois iria auxiliar as escolas

quilombolas e as escolas que atendem estudantes oriundos dos territórios quilombolas, nas

quais sejam consideradas as práticas políticas, econômicas e socioculturais das comunidades

quilombolas e os seus processos próprios de ensino-aprendizagem (BRASIL, 2012).

Nessa perspectiva, Freire (2016a; 2016b) reforça o que define a legislação para a

Educação Escolar Quilombola, quando descreve que, na prática educativa, os docentes e

mais amplamente a escola, devem, não só respeitar os saberes dos educandos, sobretudo o

das classes populares, mas também os saberes construídos no cotidiano da comunidade onde

vivem, bem como discutirem com os educandos a razão de ser de alguns saberes, em

articulação com o ensino dos conteúdos.

Importante destacar que o docente vive na prática pedagógica e, de modo especial,

na sala de aula, um verdadeiro laboratório, que disputa com o aperfeiçoamento do seu

próprio saber, do saber ensinar e do saber ser. Inserido nesse processo de aprendizagem, na

prática, o professor tem a oportunidade de ampliar conhecimentos sobre os educandos e, ao

mesmo tempo, sobre o ser professor e o saber ensinar, construindo, dessa forma, saberes

docentes. Nesse sentido, Tardif (2002) nos auxilia a entender essa ideia, ao afirmar que é nas

experiências vivenciadas no trabalho docente, relacionando-se com os pares e com os

29

educandos, que esses saberes são construídos e reconstruídos, tornando-se fonte significativa

para o redimensionamento da professoralidade.

Tardif (2002) afirma, ainda, que os professores são, ao mesmo tempo, formadores e

produtores de saberes sociais, pois são eles que atuam diretamente no meio em contato com

os educandos e ao mesmo tempo com os seus pares. Para o autor, os saberes docentes são

oriundos de diferentes fontes e correspondem a: saberes disciplinares (da tradição cultural e

de grupos sociais produtores de saberes), saberes curriculares (programas escolares os quais

os professores devem aprender a aplicar), saberes experienciais (da experiência) e saberes da

formação profissional (transmitidos pelas instituições de formação de professores)

(TARDIF, 2002).

Nessa conjuntura, Tardif (2002) destaca o papel primordial da experiência de

trabalho na constituição de um sentimento de competência entre os professores de profissão

e na aquisição do saber experiencial, considerado pelos próprios professores como a base do

saber ensinar. Assim, a atividade docente é caracterizada a partir de um contexto de

diferentes relações com o saber. Trata-se, portanto, de compreender que os professores, por

meio da reflexão sobre a prática, produzem um saber que serve de base ao desenvolvimento

do trabalho docente.

Corroborando com as análises sobre a temática, Gauthier (2013) e Nóvoa (1992)

discutem acerca dos saberes docentes, ratificando o entendimento de que os professores não

são meros transmissores de conhecimentos, mas, sim, profissionais que produzem saberes

peculiares ao ofício vivenciado.

Dessa maneira, a prática pedagógica é demarcada como ação que possui caráter

bastante específico e requer saberes e competências singulares. Nesse processo, é válido,

pois, atentarmo-nos para o fato de que a docência é um ofício feito de saberes

especializados, em que o professor mobiliza vários saberes para responder às exigências das

situações concretas de ensino. Frente a isso, ressaltamos que a formação de professores deve

privilegiar diferentes saberes (pré-profissionais, da formação acadêmica, os saberes oriundos

da experiência, entre outros), buscando a formação de um profissional com autonomia para

gerir sua prática e os processos formativos sob sua responsabilidade.

Em relação à Educação Escolar Quilombola, de acordo com o documento final da

CONAE 2010 (p. 131-132), a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios deverão,

dentre outras atribuições, “h) assegurar que a atividade docente nas escolas quilombolas seja

exercida preferencialmente por professores/as oriundos/as das comunidades quilombolas.”.

Para assegurar tal direito, o Parecer CNE/CEB n.º 08/2012 destacou a necessidade de o

30

Poder Público realizar levantamentos sistemáticos em âmbitos nacional, regional, estadual e

local de dados sobre o perfil, as condições de trabalho e a formação de professores em

atuação na Educação Escolar Quilombola no Brasil (BRASIL-CNE/CEB, 2012). Ainda

segundo o mencionado Parecer (BRASIL-CNE/CEB, 2012), a formação de professores que

atuam na Educação Escolar Quilombola deverá, por conseguinte, desencadear outra ação

dos poderes públicos federal, estadual e municipal: a inserção da realidade quilombola no

material didático e de apoio pedagógico existente e produzido para docentes da educação

básica nas suas diferentes etapas e modalidades (BRASIL-CNE/CEB, 2012).

Essas diretrizes também orientam os sistemas de ensino, em regime de colaboração e

em parceria com instituições de Educação Superior e de Educação Profissional e

Tecnológica, a desenvolver uma política nacional de formação de professores para a

Educação Escolar Quilombola (BRASIL-CNE/CEB, 2012).

Nesse mesmo sentido, a temática da formação de professores também se apresenta

entre as reivindicações do movimento quilombola, foi acordada nas deliberações da CONAE

2010, bem como reivindicada nas três audiências públicas realizadas pelo CNE durante o

processo de elaboração das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar

Quilombola, conforme se depreende do Parecer CNE/CEB n.º 08/2012. Assunto de

constante debate, a formação dos professores também foi pauta nas Audiências Públicas

realizadas pelo Conselho Estadual de Educação de Mato Grosso, juntamente com as

comunidades quilombolas, durante o ano de 2015, sob o tema A Educação Escolar

Quilombola que temos e a Educação Escolar Quilombola que queremos.

Em face ao exposto até aqui, conclui-se que a realização de uma formação específica

que leve em consideração os saberes dos professores que atuam nas escolas quilombolas do

estado de Mato Grosso,

[...] poderá desencadear um processo de apropriação de saberes importantes para a

escola e a comunidade, a ponto de modificar a relação tanto dos professores,

quanto dos estudantes e da comunidade em relação à denominação “escola

quilombola” e o reconhecimento das identidades locais. (FERREIRA, 2015, p.

123).

No entanto, apesar dos avanços, as pesquisas apontam que a escola vem sendo

implementada nas comunidades quilombolas considerando pouco (ou quase nada) das suas

especificidades. Continua com suas características predominantemente excludentes, em que

seus currículos se baseiam no modo de vida urbano, de classe média e “branca”

(CASTILHO, 2011).

31

Outro fator importante a ser destacado nesta pesquisa diz respeito ao número de

escolas localizadas nas áreas quilombolas do país. De acordo com o Censo Escolar de 2014,

existiam, no Brasil, 2.422 escolas localizadas em áreas de quilombos. Desse total, 2.408 são

públicas e quatorze privadas, sendo que, destas últimas, seis são rurais e oito são urbanas,

enquanto que, das públicas, uma é federal, 118 são estaduais e 2.289 são municipais (INEP,

2014).

Em Mato Grosso, contabilizamos dezoito escolas quilombolas, distribuídas em seis

municípios do estado, quais sejam: Barra do Bugres, Nossa Senhora do Livramento, Poconé,

Porto Estrela, Santo Antônio do Leverger e Vila Bela da Santíssima Trindade, sendo que

cinco são estaduais e treze municipais. De acordo com os dados de 2015 da Seduc/MT,

encontravam-se matriculados nessas escolas 7.834 alunos.

Como podemos observar, é significativo o número de comunidades, escolas e alunos

matriculados nos territórios quilombolas. Diante desse contexto, é impossível ignorar a

presença desse segmento no cenário educacional brasileiro e muitos menos negar o direito a

essas comunidades a uma educação específica que atenda seus modos de vidas e seus

anseios por condições melhores de existência (CASTILHO; CARVALHO, 2015).

A partir do cenário apresentado, a presente pesquisa se faz importante ao promover

reflexão sobre a atuação docente quilombola, bem como ao contribuir para fomentação de

Políticas Públicas relacionadas à formação dos professores que atuam em escolas

quilombolas. Compreendendo a multiplicidade de temas que se fez necessário pesquisar e

para não perder o foco do estudo, organizei as temáticas em cinco capítulos, apresentando os

assuntos dentro da dissertação, da seguinte forma:

No primeiro capítulo, Caminhos Metodológicos, descrevo a minha relação com o

campo de pesquisa, explicando os caminhos metodológicos trilhados, expondo os motivos

que me levaram a optar pela abordagem qualitativa, pelo método etnográfico e os critérios

utilizados na coleta, organização e análise dos dados. Para tanto, busquei subsídio, dentre

outros teóricos, em Minayo (2008), Denzin e Lincoln (2006), Castilho (2011), Geertz (1989)

e André (1995).

Já o segundo capítulo, intitulado A comunidade quilombola de Mata-Cavalo, intento

demonstrar os vários conceitos de quilombo tradicional e contemporâneos, suas lutas e

resistências. Trago também a história do Quilombo Mata-Cavalo, por meio das histórias e

memórias dos matacavalenses10. Os subsídios teóricos para essa discussão estão ancorados

10 Escrita originária do termo referente ao povo quilombola em estudo, conforme consta do livro Quilombo

contemporâneo: educação, família e culturas (CASTILHO, 2014).

32

em Hall (2006), Munanga (1995-1996), Barth (1998), Freitas (1978), Moura (2001),

O’Dwyer (2002), Castilho (2011), dentre outros.

A Educação Escolar Quilombola: a história da educação de Mata-Cavalo e seus

contextos abre o terceiro capítulo, cujo objetivo é contextualizar a luta histórica dos

matacavalenses por escolarização. Apresento, ainda, a Escola Estadual Quilombola Profa.

Tereza Conceição Arruda e reflito sobre as condições físicas e estruturais da escola, na

atualidade, bem como apresento o perfil dos professores daquela localidade. Para tanto,

dialoguei com Sacristán (1999), Arroyo (2011), Canen (1997), Freire (2002; 2011; 2016) e

Giroux (1997).

No quarto capítulo, busco refletir sobre as Políticas Públicas e a Educação Escolar

Quilombola. Em seguida, apresento diálogos viáveis voltados ao campo do currículo na

perspectiva crítica, expondo elementos inspiradores de reflexões sobre os processos de

exclusão e silenciamentos que permeiam o acesso à educação no Brasil. Sucessivamente,

trago contribuições teóricas alusivas às categorizações práticas pedagógicas, saberes e

fazeres quilombolas, os saberes docentes, o conhecimento científico e o conhecimento

tradicionais quilombolas, integrantes da base desta pesquisa. As principais referências

teóricas para esse debate são: Tardif (2002), Giroux (1997), Canen (1997) e Freire (2002;

2011; 2016).

No quinto e último capítulo, Os saberes e fazeres mobilizados durante as práticas

pedagógicas dos professores da área de Ciências Humanas, tenho como propósito descrever

a história de vida dos professores sujeitos da pesquisa, reverberada pela entrevista, bem

como procuro apresentar ao leitor as análises resultantes das observações e entrevistas

aplicadas para apreender a articulação dos saberes científicos com os saberes locais, na

prática em sala de aula. Como aporte para essa discussão, além das orientações contidas nas

Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Quilombola (BRASIL, 2012), busquei

dialogar, dentre outros, com: Sacristán (1998), Arroyo (2012a, 2012b), Canen (1997), Freire

(2002; 2011; 2016) e Giroux (1997).

Por fim, descrevo sobre algumas considerações tecidas no bojo das discussões,

nascidas das experiências proporcionadas por este trabalho de mestrado.

Importante destacar que este estudo é um recorte de um projeto de pesquisa mais

amplo intitulado Saberes, fazeres e dizeres de docentes atuantes em escolas estaduais

quilombolas do Estado de Mato Grosso, financiado pelo Fundo de Amparo à Pesquisa do

Estado de Mato Grosso (FAPEMAT) e desenvolvido pelo Grupo de Estudos e Pesquisas em

Educação Quilombola da Universidade Federal de Mato Grosso (GEPEQ/UFMT),

33

coordenado pela professora Dra. Suely Dulce de Castilho, minha orientadora, cujo objetivo é

construir um mapa dos saberes dos professores que atuam nas escolas estaduais quilombolas

do estado; apreender a percepção dos professores em relação aos seus fazeres profissionais,

bem como conhecer como percebem a adequação entre a formação inicial e as exigências

legais da Educação Escolar Quilombola.

Doravante, o rumo a ser tomado será o de retratar os princípios

teórico-metodológicos que iluminam o percurso da pesquisa, alicerçados no método

etnográfico proposto por Geertz (1989). Em seguida, serão apresentados as técnicas e os

procedimentos utilizados para coletar e interpretar os dados. Prossigo, então, com a

discussão a englobar os caminhos metodológicos, elementos que darão substância ao

capítulo subsequente.

34

CAPÍTULO I – CAMINHOS METODOLÓGICOS

Este capítulo pretende traçar o percurso metodológico da pesquisa. A princípio,

discorro sobre a minha relação com o campo de pesquisa, bem como os procedimentos

metodológicos que foram adotados para realizá-la. Na sequência, desenho os caminhos

trilhados metodologicamente, expondo os motivos que provocaram a escolha pela

abordagem qualitativa, o método etnográfico, os instrumentos utilizados na coleta de dados e

os critérios para a organização e interpretação das informações. Para isso, busco dialogar

com os teóricos: Geertz (1989); Denzin e Lincoln (2006), Bardin (1979), Minayo (2007) e

Castilho (2011).

1.1 MINHA RELAÇÃO COM O CAMPO DE PESQUISA

A vida sempre nos reserva muitas experiências que causam inquietações e que nos

motivam a querer saber e se envolver sempre mais em determinadas questões. Em minha

trajetória, no quilombo Mata-Cavalo, a educação veio cumprir esse papel. As inquietações e

também insatisfações vivenciadas, inicialmente como estudante e depois, docente, numa

busca constante por respostas, motivaram-me a realizar esta pesquisa. Filha de

matacavalense, nascida no quilombo Mata-Cavalo, minha relação com o campo de pesquisa

é de pertencimento, de corpo e alma.

No início dos estudos, isso me preocupava, pois, como realizar uma pesquisa, com o

distanciamento necessário a um pesquisador, num lugar que é meu próprio “eu”, ou seja,

estudar uma situação que me é muito familiar, pois iria coletar dados no meu local de

trabalho (a escola Teresa Conceição Arruda), na minha comunidade.

Segundo André (1995), um grande risco nesse caso, por motivos óbvios, é a

confusão entre sujeito e o objeto de pesquisa, entre opiniões já existentes e revelações

evidenciadas pelo estudo. Um grande desafio para mim, nesse caso, concordando com a

autora, foi “Saber trabalhar o envolvimento com a subjetividade, mantendo o necessário

distanciamento que requer um trabalho científico” (ANDRÉ, 1995, p. 48). Isso não significa

que fui neutra, mas que tive que preservar o rigor que o trabalho requeria.

35

Ainda de acordo com André (1995, p. 48), uma das formas de lidar com esse tipo de

relação tem sido o “estranhamento”, ou seja, “um esforço sistemático de análise de uma

situação familiar como se fosse estranha”. Tive que lidar com concepções e opiniões já

formadas, recompondo-as em novos fundamentos, levando em conta, sim, minhas vivências,

mas selecionando-as com subsídio do referencial teórico.

1.2 DESVELANDO O CAMPO DE PESQUISA

O Quilombo Mata-Cavalo está localizado no município de Nossa Senhora do

Livramento/MT, distante aproximadamente 50 quilômetros da capital Cuiabá, foi

reconhecido e certificado pela Fundação Cultural Palmares (FCP) como território

quilombola em 28 de outubro do ano de 1999.

Figura 2 - Imagem do território quilombola de Mata-Cavalo

O território é composto por seis comunidades, sendo elas: Mata-Cavalo de Baixo,

Mata-Cavalo de Cima, Aguaçú, Mutuca, Ponte da Estiva e Capim Verde, espalhadas numa

área total de 14.700 hectares. As comunidades são organizadas em associações e cada uma

possui seus limites de terras, demarcados por linhas imaginárias, e são determinadas pela

36

ocupação dos “troncos” das famílias, ou seja, dos antepassados dessas famílias ocupantes de

cada comunidade. Residem no quilombo, segundo dados do INCRA (2018),

aproximadamente 418 famílias. O Quilombo Mata-Cavalo tem como marco de origem o ano

de 1883, em que os africanos escravizados, que ali residiam, receberam de sua ex-senhora

Dona Anna da Silva Tavares a doação das terras.

O acesso ao território de Mata-Cavalo se dá pela Rodovia MT 060, estrada que liga

Cuiabá ao município de Poconé. Pela Rodovia MT 060, passando pela sede do município de

Nossa Senhora do Livramento, depois do km 12, você já pode observar uma placa indicando

a existência de área quilombola próxima. Distante da cidade a quatro quilômetros, a

comunidade está às margens direita e esquerda da rodovia. O território se inicia no km 17,

no sentido Cuiabá – Poconé.

O Quilombo Mata-Cavalo é marcado, na margem direita da Rodovia MT 060, por

um enorme pneu branco, suspenso em uma porteira de madeira, e segue até o km 35. Do

sentido Cuiabá - Poconé, a primeira comunidade localizada às margens da Rodovia MT 060

é a comunidade Aguaçú (ou Aguaçú de Cima); logo depois, vem a comunidade Ponte da

Estiva; em seguida, temos a comunidade Mata-Cavalo de Baixo; após, temos a comunidade

da Mutuca e, mais adiante, temos a comunidade do Capim Verde. A comunidade de

Mata-Cavalo de Cima não se localiza às margens da rodovia, encontrando-se ao fundo das

comunidades do Aguaçú, Ponte da Estiva e Mata-Cavalo de Baixo, conforme figura 3 que

segue:

Figura 3 - Mapa de localização das comunidades no Quilombo Mata-Cavalo

Fonte: https://www.google.com.br/search?q=mapa+do+comunidades+de+mata+cavalo (adaptado pela autora).

37

Segundo os mais antigos da comunidade, Mata-Cavalo recebe este nome em função

do córrego que corta o quilombo. De acordo com os moradores, esse córrego era estreito e

fundo, principalmente, na época das enchentes. Certa vez, um carteiro novo que levava

cartas de Cuiabá para Poconé, desinformado sobre as surpresas do córrego, ao vê-lo estreito,

pensou ser raso e enfiou a tropa adentro. Por ser época de chuva, suas correntezas estavam

muito fortes, o que acabou arrebatando e os cavalos acabaram morrendo. Desde então, o

córrego passou a ser conhecido como Mata-Cavalo e, posteriormente, a comunidade, até

então denominada Boa Vida, também passou a ser chamada de Mata-Cavalo. Há, porém,

outras versões acerca da origem do nome, como a existência de um capim, tipicamente do

Cerrado, com o nome popular de “Mata-Cavalo” oriundo daquela região, porém, a mais

conhecida é sobre o córrego que matou os cavalos.

As seis comunidades estabelecem relação de parentesco entre seus moradores,

reúnem-se nas festas, nos trabalhos coletivos na roça, no fazer da farinha e nas lutas. É

importante reiterar que, mesmo as comunidades sendo separadas por linhas imaginárias,

organizadas em associações, cada uma possuindo sua instituição administrativa, todas são

congregadas em relação à certificação da Fundação Cultural Palmares, ocorrida no ano de

1999, ou seja, possuem apenas uma certificação: “o Complexo Mata-Cavalo”.

Adentrando na comunidade, é possível perceber que tem uma área de solo fértil e

rica em recursos naturais. Na predominante vegetação do cerrado, a paisagem encanta quem

mora e quem decide fazer uma visita, seja para reencontrar parentes, seja para participar das

inúmeras festas de santo realizadas na comunidade o ano todo, para realizar estudos no local

ou, ainda, por simples curiosidade sobre o quilombo. Ao entrar no território, é possível

observar belíssimas espécies que compõem a flora do cerrado brasileiro, como: ipês, jatobás,

babaçus, buritis, perobas e diversas flores de tamanho, cor e forma variados. Além das

flores, as árvores frutíferas, tais como: pequizeiro, cajueiro, limoeiro, bocaiuveira, goiabeira

e mangueira são encontradas com fartura.

As famílias que ali residem sobrevivem da pecuária (criação de animais de pequeno

porte), agricultura de subsistência, com ênfase na plantação de banana e mandioca, o que

lhes permite a produção de farinha, rapadura de cana-de-açúcar, doces de frutas, artesanatos,

como algumas das principais atividades econômicas realizadas na comunidade de

Mata-Cavalo.

No que tange às questões culturais da comunidade, destacam-se: as festas de santo,

que são realizadas no quilombo o ano todo; a feira cultural, realizada na Semana da

38

Consciência Negra, no mês de novembro; a Festa da Banana, realizada no mês de julho, na

comunidade Ribeirão da Mutuca; o Siriri e o Cururu, danças típicas de Mato Grosso, e a

Dança Afro.

Na comunidade, existem ainda sete bares, espalhados por secções, e uma igreja

católica, localizada atrás da Escola Estadual Professora Tereza Conceição Arruda. Possui,

ainda, três igrejas evangélicas: uma localizada na estrada vicinal, no limite entre a

comunidade Mata-Cavalo de Baixo e a comunidade da Mutuca; uma na estrada vicinal, entre

as comunidades Ponte da Estiva e Aguaçú e uma na estrada vicinal do Pequizeiro, no

Mata-Cavalo de Baixo. Não há hospital na localidade, apenas dois agentes de saúde que

atendem os moradores com práticas de saúde preventiva e também articulam o atendimento

médico na comunidade, o qual acontece a cada dois meses na Escola Estadual Professora

Tereza Conceição Arruda e na comunidade da Mutuca. A maioria dos matacavalenses habita

em casas feitas com madeiras e palha de babaçu, matéria-prima facilmente encontrada na

localidade.

A Escola Estadual Quilombola Profa. Tereza Conceição Arruda está localizada na

comunidade Mata-Cavalo de Baixo, as outras cinco comunidades estão localizadas no

entorno dela, sendo que as comunidades Ribeirão da Mutuca e Ponte da Estiva estão

distantes da escola, aproximadamente, dois quilômetros, enquanto que as comunidades

Aguaçú de cima, aproximadamente, quatro quilômetros; Capim Verde, aproximadamente,

seis quilômetros e Mata-Cavalo de Cima, aproximadamente, sete quilômetros.

Realizei a pesquisa de campo, primeiramente, com os moradores mais antigos do

Quilombo Mata-Cavalo, a fim de identificar os aspectos históricos, culturais e identitários

dos matacavalenses a partir do olhar dos mesmos. Para coletar esses dados, visitei três

famílias no território, optando por ouvir, inicialmente, o morador mais velho de cada

família, reconhecido pelos matacavalenses como anciões, aqueles que guardam os saberes.

Escolhi esses três anciões com a intenção de apresentar a história da comunidade a partir do

olhar deles. Um olhar de quem, cotidianamente, vive e faz a história do lugar. Na visita às

comunidades, entre um cafezinho, um guaraná e um chá com bolo, expliquei o motivo da

minha presença e também as motivações da pesquisa.

Sempre, nas primeiras palavras sobre a pesquisa, o que se viam eram olhares

curiosos, que pouco a pouco iam se transformando em um olhar acolhedor, pois entendiam a

grandeza do trabalho. E, no final do bate papo, sempre recebia incentivo dos moradores, no

sentido de que “realmente nós próprios é que temos que falar e escrever sobre nós”. E cada

39

um, no seu tempo e nas suas limitações, abria seus “baús” de lembranças, no intuito de

contribuir com a minha pesquisa no recontar dessa história.

Cada ancião foi entrevistado mais de uma vez. Nessas entrevistas, os temas

abordados estavam relacionados à comunidade, como quanto ao tempo de moradia, a

história do local e da escola, o que é ser quilombola e sobre as práticas culturais da

comunidade. Além das entrevistas, observei as práticas cotidianas dos anciões nas festas de

santo, reuniões do movimento, mutirões, almoços de final de semana, funerais, despejos,

bem como efetuei análise dos materiais impressos que tratavam do tema educação

quilombola.

Terminada as entrevistas com os moradores mais antigos, parti para a Escola

Estadual Professora Tereza Conceição Arruda, agora como pesquisadora, pois, faço-me

presente diariamente como professora. Primeiramente, reuni-me com os gestores e os três

professores da área de Ciências Humanas inseridos na pesquisa (e apresentados

posteriormente), explicando os objetivos da mesma e como se daria a coleta de dados. Sem

muita dificuldade, creio que pela nossa convivência diária, bem como pelo laço de

parentesco, consegui o apoio de todos para a realização do trabalho de pesquisa. A

consideração e respeito que os matacavalenses têm com os “parentes”, segundo Castilho

(2011), é característica marcante dos moradores, pois uma vez existindo a consanguinidade,

não importando qual seja o grau, integra-se a rede de consideração e todo respeito lhe é

assegurado.

Na escola, além das entrevistas com os professores, também observei o ambiente em

diferentes contextos, tais como: entrada e saída da escola, sala de aula, intervalo, recreação

dentro e fora da sala e as aulas práticas. Embasada no método geertzniano e seguindo o que

diz Carvalho (2015), nas minhas indagações no campo de pesquisa, busquei dosar, na

mesma proporção, a procura pelo significado das relações cotidianas, no esforço de

apreender a cultura da comunidade, ao mesmo tempo e medida em que me esforcei para

fugir dos pré-conceitos e conceitos que poderiam estar entranhados em mim, por conta da

minha vivência no lugar.

1.3 ABORDAGENS

1.3.1 Qualitativa

40

A abordagem qualitativa, segundo Minayo (2007), ocupa-se, nas pesquisas sociais,

com um nível de realidade que não pode ou não deve ser quantificado, ou seja, ela se

aprofunda no mundo dos significados, das crenças, dos valores, das aspirações e das

atitudes. Esse nível de realidade não é perceptível, ela precisa, pois, ser apresentada e

interpretada pelos próprios sujeitos pesquisados.

Nesta pesquisa, utilizaremos a abordagem qualitativa, por estar impregnada da

pretensão de aprender e compreender as práticas pedagógicas utilizadas pelos professores da

área de Ciências Humanas do ensino fundamental e médio, da Escola Estadual Quilombola

Profa. Tereza Conceição Arruda, com centralidade na observação do processo de articulação

do conhecimento científico e dos conhecimentos tradicionais quilombola, em seu contexto

sócio-histórico-cultural. Segundo Minayo (2007):

O método qualitativo é adequado aos estudos da história, das representações e

crenças, das relações, das percepções e opiniões, ou seja, dos produtos das

interpretações que os humanos fazem durante suas vidas, da forma como

constroem seus artefatos materiais e a si mesmos, sentem e pensam. (MINAYO,

2007, p. 57).

De igual forma, esta pesquisa se insere na abordagem qualitativa, por ter a intenção

de descrever e interpretar as ações cotidianas dos sujeitos da pesquisa, pois é, em si mesma,

um campo de estudo, uma vez que, segundo Denzin e Lincoln (2006), tal metodologia é uma

atividade que localiza o observador no mundo, consistindo em um conjunto de práticas

materiais e interpretativas que dão visibilidade ao mundo, onde o pesquisador estuda as

coisas em seus cenários naturais, tentando entender ou interpretar os significados que o

pesquisado tem do seu meio, na esperança de compreender melhor o assunto que está ao seu

alcance.

Em complemento a esse entendimento, Minayo (2007) ensina que, na abordagem

qualitativa, o pesquisador tem como objetivo emergir na apreensão dos fenômenos que

pesquisa, interpretando de acordo com o entendimento do próprio sujeito pesquisado, sem se

preocupar com quantidade, estatísticas e causas, seguindo elementos fundamentais como: a

interação entre sujeito de pesquisa e o observador; o registro das informações e dos dados

coletados e a interpretação do pesquisador.

Castilho (2011) afirma, em seus estudos, que a pesquisa qualitativa é a mais

adequada quando a questão em foco está ligada à vida cultural dos professores e à percepção

deles em relação à Educação Escolar Quilombola. Ela argumenta que, para a busca de

significados, faz-se necessário um envolvimento com os pesquisados que permitam

41

observar, enxergar, facilitar a expressão livre dos sujeitos e compreender a realidade da

comunidade na qual os pesquisados estão imersos, seus valores e sua organização escolar,

pois, nesse tipo de abordagem, envolve a empiria e uma sistematização progressiva do

conhecimento, até que a compreensão da lógica interna do grupo seja desvelada.

1.3.2 Etnografia

Conforme André (1995), a etnografia é um tipo de pesquisa antropológica que estuda

a cultura e a sociedade. Atualmente, esse método é utilizado também por psicólogos,

sociólogos, enfermeiros, educadores, entre outros profissionais.

Geertz (1989) retrata a etnografia como uma escrita dos fenômenos sociais,

procurando estabelecer relações, selecionar informantes, transcrever textos, levantar

genealogias, mapear campos, manter um diário e assim por diante. Mas, segundo o autor,

não são somente essas técnicas e esses processos que definem o empreendimento, mas, sim,

o tipo de esforço intelectual que ele representa: um risco elaborado para uma “descrição

densa” (GEERTZ, 1989, p. 4). Essa é a maior preocupação da etnografia: obter uma

descrição densa, a mais completa possível, sobre o que um grupo particular de pessoas faz e

o significado das perspectivas imediatas que ele tem do que faz.

Ainda segundo Geertz (1989), fazer a etnografia é como tentar ler um livro estranho,

descorado, cheio de elipses, contraposições, emendas suspeitas e comentários parciais,

escritos não com os sinais convencionais do som, mas com exemplos passageiros de

comportamento modelado. Tal escrita demanda “uma hierarquização estratificada das

estruturas significantes em termos produzidos, percebidos e interpretados pelos sujeitos, sem

as quais eles de fato não existiriam como categoria cultural” (GEERTZ, 1989, p. 5).

No intuito de aclarar e compreender as práticas pedagógicas utilizadas pelos

professores da área de Ciências Humanas da escola quilombola da nossa pesquisa, com

centralidade na observação do processo de articulação do conhecimento científico e dos

conhecimentos tradicionais quilombola em seu contexto sócio-histórico-cultural, também

empregaremos a etnografia escolar.

André (1995, p. 41) define etnografia escolar como “a pesquisa do tipo etnográfico,

que se caracteriza fundamentalmente por um contato direto do pesquisador com a situação

pesquisada, permite reconstruir os processos e as relações que configuram a experiência

escolar diária”.

42

Por meio dessas técnicas etnográficas, segundo André (1995), podemos identificar o

não identificado, ou seja, retratar os conflitos, as representações dos sujeitos, reestruturar

linguagens, formas de interlocução e sentidos que são produzidos e reproduzidos no fazer

pedagógico cotidiano. Ainda conforme a autora, esse tipo de pesquisa nos permite imergir

no espaço escolar e tentar entender como operam no cotidiano, “[...] mecanismos de

dominação e de resistência, de opressão e de contestação ao mesmo tempo em que são

veiculados e reelaborados conhecimentos, atitudes, valores, crenças, modo de ver e de sentir

a realidade e o mundo” (ANDRÉ, 1995, p. 41).

Para André (1995, p. 24), o método etnográfico pode ser usado num trabalho de

educação “quando ele faz uso das técnicas que tradicionalmente são associadas à etnografia,

ou seja, a observação participante, a entrevista intensiva e a análise de documentos”. Em

relação a isso, a autora descreve que:

O pesquisador aproxima-se de pessoas, situações, locais, eventos, mantendo com

eles um contato direto e prolongado. Como se dá esse contato? Primeiro não há

pretensão de mudar o ambiente, introduzindo modificações que serão

experimentalmente controladas como na pesquisa experimental. Os eventos, as

pessoas, as situações são observadas em sua manifestação natural. (ANDRÉ, 1995,

p. 25).

Importante destacar que uma característica precípua da pesquisa etnográfica, segundo

André (1995):

É a ênfase no processo, naquilo que está ocorrendo e não no produto ou nos

resultados finais. As perguntas que geralmente são feitas nesse tipo de pesquisa

são as seguintes: O que caracteriza esse fenômeno? O que está acontecendo nesse

momento? Como tem evoluído? (ANDRÉ, 1995, p. 25).

Nesse intuito, para a autora, a etnografia,

Busca a formulação de hipóteses, conceitos, abstrações, teorias e não sua testagem.

Para isso faz uso de um plano de trabalho aberto e flexível, em que os focos do

estudo vão sendo constantemente revistos, as técnicas de coleta, reavaliadas, os

instrumentos, reformulados e os fundamentos teóricos, repensados. O que esse tipo

de pesquisa visa a descoberta de novos conceitos, novas relações, novas formas de

entendimento da realidade. (ANDRÉ, 1995, p. 25).

Portanto, conclui-se que a pesquisa etnográfica impõe ao pesquisador a realização de

uma análise profunda do seu sujeito de pesquisa, fazendo com que as informações coletadas

tenham condições de gerar uma explicação teórica, desde a concepção até a concretização,

partindo de uma leitura crítica e interpretativa da realidade à qual se propôs estudar, mas

43

sempre atenta à interpretação daqueles que vivem determinadas experiências, isto é, o

significado que atribuem ao que vivem.

Nesta pesquisa, a etnografia, como método de estudo científico, irá trazer apoio

significativo para os estudos, que tem como foco o conhecimento de um grupo de

professores inseridos numa escola quilombola, tanto por se preocupar com uma análise

holística da cultura, que é vista como um sistema de significados mediadores entre as

estruturas sociais e a ação humana, como por introduzir os sujeitos pesquisados no processo

modificador das estruturas sociais.

Enfim, o método etnográfico deu suporte para a realização das observações, das

anotações em diário de campo, das descrições, das entrevistas e interpretações das práticas

pedagógicas dos professores da Escola Estadual Professora Tereza Conceição Arruda,

durante o contato diário com os pesquisados, bem como na participação das atividades

formativas realizadas pela escola e, ainda, quando da participação nos eventos realizados na

comunidade, tais como: as festas de santo, a feira cultural, realizada pela escola, em alusão

ao dia 20 de novembro e outras atividades socioculturais do Quilombo Mata-Cavalo.

1.4 INSTRUMENTOS E COLETAS DE DADOS

1.4.1 Observação

Minayo (2007, p. 69) define a pesquisa participante como sendo “um processo pelo

qual um pesquisador se coloca como observador de uma situação social, com a finalidade de

realizar uma investigação científica”. A referida autora salienta que o investigador fica em

relação direta com os sujeitos participantes da pesquisa, na medida do possível, participando

do cotidiano, do cenário cultural, com intuito de coletar dados e compreender o contexto da

pesquisa. Desse modo, ainda segundo a autora, “o observador faz parte do contexto sob sua

observação, e, sem dúvida, modifica esse contexto, interfere nele, assim como é modificado

pessoalmente” (MINAYO, 2007, p. 69).

De acordo com Minayo (2007, p. 69), “a filosofia que fundamenta a observação

participante é a necessidade que todo pesquisador social tem de relativizar o espaço social de

onde provém, aprendendo a se colocar no lugar do outro”, ficando assim, mais livre de pré-

julgamentos.

44

Diante disso, a observação participante foi um instrumento utilizado na pesquisa para

apreendermos o cotidiano, na comunidade de Mata-Cavalo, dos professores sujeitos da

pesquisa, da escola e também da sala de aula, o que com certeza nos ajudará a compreender

o contexto do estudo.

Foram observados e anotadas atitudes, situações, ações dos professores pesquisados

no ambiente escolar e os saberes mobilizados por eles em suas práticas pedagógicas, assim

como a organização social dos mesmos. Para tanto, elaborei as seguintes questões:

Qual é a dinâmica e a rotina dos professores e da escola?

E quanto aos outros eventos que ocorrem no ambiente escolar (conflitos,

organização dos alunos, professores e gestão)?

Como é a dinâmica e a rotina dos professores dentro da sala de aula?

Que tipo de saberes os docentes mobilizam na sua prática pedagógica

(profissionais, curriculares, experienciais e disciplinares)?

No momento da exposição do conteúdo, os professores demonstram

correção/incorreção/distorção nas definições conceituais?

Os professores levam em conta, na sua prática pedagógica, a cultura, a

história, a identidade e os saberes e fazeres da comunidade quilombola?

Quais e como os materiais didáticos são utilizados em sala de aula?

Há sintonia entre a formação inicial e a disciplina ministrada?

Também observei atividades escolares, tais como: reunião de professores, reunião do

conselho deliberativo, reunião de pais e mestres, encontro da sala do educador, aulas

práticas, principalmente, as das disciplinas da área de Ciências e Saberes Quilombolas11:

Práticas em Cultura e Artesanato Quilombola; Prática em Tecnologia Social, Prática em

Técnica Agrícola Quilombola, com o objetivo de compreender, na qualidade de

pesquisadora, o significado que esses movimentos têm para a comunidade escolar, pois,

como diz Freire (2016), é ouvindo, olhando, compartilhando dos acontecimentos, que vamos

11 Conforme as Orientações Curriculares do Estado de Mato Grosso do ano de 2014, as Ciências e Saberes

Quilombolas, que compõem a parte diversificada do currículo da Educação Escolar Quilombola, visa à potencialização da aprendizagem dos discentes das escolas quilombolas a partir dos conhecimentos

vivenciados cotidianamente nas comunidades. Ainda segundo as Orientações Curriculares, a implementação

das disciplinas de Prática Agrícola Quilombola, Prática de Cultura e Artesanato Quilombola e Prática de

Tecnologia Social, ou seja, da parte diversificada no currículo das escolas quilombolas, foi concebida a partir

das discussões em torno da realidade cultural e social das comunidades. A parte diversificada aparece nas

matrizes curriculares das escolas quilombolas a partir do ano de 2010. De acordo com a Seduc/MT, as referidas

disciplinas que compõem a Ciências e Saberes Quilombolas devem ser inseridas a partir do final do 2º ciclo do

Ensino Fundamental, com a introdução de conteúdos/práticas de conhecimentos previstos para cada uma

dessas disciplinas, que se encontram descritas na supracitada Orientação Curricular, devendo ser concluída no

Ensino Médio.

45

percebendo o que sucede e apreendendo o sentido do conjunto de hábitos da comunidade

escolar.

As observações foram anotadas em um caderno de campo, pois, segundo Minayo

(2007), essas anotações são de grande importância no momento da realização da análise

qualitativa.

1.4.2 Entrevista

A entrevista é um procedimento de pesquisa que, segundo Minayo (2007), opera na

conexão direta, face a face, do pesquisador com o seu entrevistado, com a intenção de obter

informações necessárias ao seu trabalho investigativo.

Minayo (2010) aponta, ainda, como uma das formas de registro das diversas

modalidades de entrevista, o instrumento de gravação de conversa, considerado pela autora

como um dos mais fidedignos. No entanto, é importante lembrar que é necessário o

consentimento do interlocutor para que se utilize qualquer instrumento. E, ainda que

autorizado, quando a gravação não for possível, indica-se registrar as falas imediatamente

após as coletas de dados, não devendo confiar apenas na memória.

Elaborei um roteiro para cada conjunto de entrevistado, a fim de atender aos

objetivos propostos nas diversas categorias. A primeira fase da entrevista tinha por objetivo

conhecer a história e a origem da comunidade quilombola Mata-Cavalo, bem como os

modos de vida das pessoas que vivem nesse território. Escolhi, para essa categoria, os

moradores mais antigos das comunidades, os anciões, por guardarem a memória coletiva do

lugar. Os moradores escolhidos estão inseridos nas comunidades de Mata-Cavalo de Baixo,

Ponte da Estiva e Aguaçú de Cima, todas imersas no Quilombo Mata-Cavalo.

A princípio foram convidados dois anciões e uma anciã para falarem sobre a história

do quilombo, porém, no momento das entrevistas, a anciã convidada para fazer parte do

trabalho me informou que não mais poderia participar da pesquisa, pois iria passar um

tempo em Cuiabá cuidando de um ente querido. Diante do impedimento da anciã, convidei

outro morador da comunidade, também antigo, para compor o grupo de pesquisados.

As perguntas norteadoras das entrevistas com os anciões foram: a) que idade tem o

senhor?; b) quanto tempo mora na comunidade?; c) conte um pouco da história desse lugar;

d) para você, o que é ser quilombola?; e) O que fazem para divertir ou passar o tempo?; f)

quais são as principais manifestações culturais do Quilombo?

46

Encerrada essa etapa, dei início à segunda fase da entrevista que tinha a finalidade de

compreender a trajetória de vida dos profissionais docentes atuantes na comunidade

quilombola. Para esta categoria, foram entrevistados três professores da área de Ciências

Humanas, sendo: uma professora que ministra a disciplina de Geografia, uma professora que

leciona a disciplina de História e uma professora que leciona as disciplinas de Sociologia e

Filosofia.

O roteiro da entrevista contemplou as seguintes indagações: a) fale sobre a sua vida

(desde criança até agora); b) conte sobre sua vida escolar (desde criança até agora); c)

discorra sobre sua vida profissional (desde que começou a trabalhar até o momento – quais

os desafios encontrados quando começou a trabalhar?); d) como você se tornou professora?;

e) teve influência de alguém (pai, mãe, professor(a)...)?; f) como é ser professora na escola

quilombola?; g) há quanto tempo trabalha nessa escola?

O terceiro bloco de entrevista, que tinha o objetivo de apreender de que maneira se

realiza a relação entre a proposta de Educação Escolar Quilombola e a realidade da sala de

aula, contou com questões que foram aplicadas aos professores da área de Ciências

Humanas, todavia divididas por disciplinas.

Para a professora que trabalha com a disciplina de Geografia, foi questionado: a) o

que você costuma trabalhar na disciplina de Geografia?; b) qual a importância dessa

disciplina numa escola quilombola?; c) qual a dificuldade para se trabalhar essa disciplina?;

d) quais são as experiências positivas?; e) você fez alguma formação específica para

trabalhar numa escola quilombola?; f) você faz relação entre os saberes locais e os

conhecimentos mais globais? De que forma?

Para a professora que trabalha com a disciplina de História, foram feitas as seguintes

perguntas norteadoras: a) o que você costuma trabalhar na disciplina de História?; b) qual a

importância dessa disciplina numa escola quilombola?; c) quais as dificuldades para lecionar

essa disciplina?; d) quais são as experiências positivas?; e) você fez alguma formação

específica para trabalhar numa escola quilombola?; f) você faz relação entre os saberes

locais e os conhecimentos mais globais? De que forma?

Para a professora que trabalha com a disciplina de Filosofia, foram feitos os

seguintes questionamentos: a) o que você costuma trabalhar na disciplina de Filosofia?; b)

qual a importância dessa disciplina numa escola quilombola?; c) quais as dificuldades para

trabalhar essa disciplina?; d) quais são as experiências positivas?; e) você fez alguma

formação específica para trabalhar numa escola quilombola?; f) você faz relação entre os

saberes locais e os conhecimentos mais globais? De que forma?

47

Para a professora que trabalha com a disciplina de Sociologia foram feitas as

seguintes perguntas: a) o que você costuma trabalhar na disciplina de Sociologia?; b) qual a

importância dessa disciplina numa escola quilombola?; c) quais as dificuldades para ensinar

essa disciplina?; d) quais são as experiências positivas?; e) você fez alguma formação

específica para trabalhar numa escola quilombola?; f) você faz relação entre os saberes

locais e os conhecimentos mais globais? De que forma?

Para André (2005), as entrevistas têm a finalidade de aprofundar as questões e

esclarecer os problemas observados. Seguindo os subsídios teóricos formulados por Minayo

(2010) e André (2005), todas as entrevistas foram gravadas, com autorização e

consentimento prévio dos entrevistados, oficializadas por meio da assinatura do Termo de

Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

O quadro 3 a seguir apresenta de forma geral como foram estruturadas as entrevistas

realizadas (categoria dos entrevistados, número de entrevistados, objetivo da entrevista):

Quadro 3 - Entrevistados

Categoria dos entrevistados

Número de

entrevistados Objetivo da entrevista

Guardiões da memória (anciões) 03

Conhecer a história e a origem da comunidade quilombola Mata-Cavalo, bem como os modos de vida das pessoas que vivem nesse território.

Professores da área de Ciências

Humanas 03

Compreender a trajetória de vida dos profissionais, bem como apreender de que maneira se realiza a relação entre a proposta da Educação Escolar Quilombola e a realidade da sala de aula.

Fonte: elaborada pela pesquisadora (2018).

1.4.3 Análise documental

Conforme Lüdke e André (1986), a análise documental é uma técnica importante

para a abordagem de dados qualitativos, desvelando novas informações ou não sobre um

determinado assunto ou problema, contribuindo para a validação do trabalho estudado.

Nessa perspectiva, foram analisados os planos de aula e os projetos que a escola

desenvolve, com a finalidade de compreender se o trabalho que vem sendo realizado pela

escola está ou não em consonância com a Resolução n.º 002/2016 do Conselho Estadual de

Educação de Mato Grosso, com as Orientações Curriculares para a Educação Escolar

48

Quilombola do Estado de Mato Grosso (2010) e com as Diretrizes Curriculares Nacionais

para Educação Escolar Quilombola (BRASIL, 2012).

A fim de encontrar registros sobre a contextualização histórica do território

quilombola de Mata-Cavalo, realizei visita ao Instituto de Colonização e Reforma Agrária

do Estado (INCRA/MT), especificamente, na Coordenadoria de Quilombo da instituição e

no Instituto de Terras de Mato Grosso (INTERMAT), bem como lancei mão de leituras em

pesquisas de mestrado e doutorado realizadas na comunidade, a fim de me inteirar sobre os

escritos históricos que já havia sobre a comunidade.

1.4.4 Recurso fotográfico

O recurso fotográfico foi utilizado para complementar as informações, a fim de

oferecer ao leitor uma reprodução, o mais confiável possível, da comunidade de

Mata-Cavalo. Utilizei imagens que fotografei durante os procedimentos de observação e

entrevistas com moradores e professores, além das imagens do acervo escolar. Essas foram

cedidas por meio de autorização específica.

Utilizo a fotografia não somente para ilustrar o texto, mas também como recurso para

guiar o olhar de quem lê, em uma viagem etnográfica na escola e no território, bem como

para informar e tornar conhecidas questões que seriam melhor assimiladas pelo leitor ao

visualizar as imagens, apresentando e possibilitando uma visão geral do quilombo.

1.4.5 Análise dos conteúdos

Para a realização da análise do conteúdo, utilizei a concepção de Interpretação da

Cultura, proposta por Geertz (2012), com o objetivo de compreender o conjunto de opiniões,

vivências e experiências filtrado pelo olhar dos sujeitos pesquisados e sobre o tema

estudado.

A análise de conteúdo é uma reunião de instrumentos metodológicos que se

aperfeiçoa constantemente e que se aplica a discursos diversificados, principalmente, na área

das Ciências Sociais, com objetivos bem definidos e que servem para revelar o que está

escondido no texto, mediante interpretação da mensagem. Para Minayo (2007), essa análise

permite caminhar na descoberta do que está por trás dos conteúdos exprimidos, indo além

das aparências do que está sendo informado.

Já segundo Bardin (1979), a análise de conteúdo consiste em:

49

Um conjunto de técnicas de análise das comunicações, que utiliza procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens. [...] A intenção

da análise de conteúdo é a inferência de conhecimentos relativos às condições de

produção inferência esta que recorre a indicadores. (BARDIN, 1979, p. 38).

Bardin (1979) ressalta que esse estudo é composto por três fases: a primeira refere-se

à pré-análise, ou seja, o momento de organizar todo o material que será estudado,

sistematizando as ideias iniciais, a escolha dos documentos, a formulação das hipóteses e

dos objetivos; a segunda faz alusão à análise do material, de modo a definir as categorias de

estudos e aplicar as técnicas específicas propostas nos objetivos; por fim, na terceira fase

opera-se o tratamento dos resultados, as inferências e a interpretação.

Já Minayo (2013) evidencia que a análise de conteúdo tenciona verificar hipóteses e

descobrir o que está por trás de cada conteúdo manifesto. O que está redigido, declarado,

mapeado, figurativamente desenhado ou simbolicamente explicitado sempre será o ponto de

partida para a identificação do conteúdo exposto, fazendo com que a aplicação desse método

em pesquisas qualitativas seja positiva.

1.4.6 Procedimentos éticos

Esta pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisas com Seres Humanos

da Plataforma Brasil para análise e parecer. Foram encaminhados, para apreciação dos

relatores, o projeto de pesquisa, o Termo de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE) e o

Termo de Autorização do Uso de Voz e Imagem.

Os sujeitos participantes foram esclarecidos sobre os objetivos da pesquisa e

assinaram os referidos termos, nos quais constam que as informações coletadas no diário de

campo, as imagens fotográficas e a gravação de voz seriam utilizadas somente para a

finalidade desta pesquisa. A par desses esclarecimentos, no próximo capítulo, busco

contextualizar a comunidade quilombola de Mata-Cavalo.

50

CAPÍTULO II – A COMUNIDADE QUILOMBOLA DE MATA-CAVALO

Este capítulo busca demonstrar os vários conceitos de quilombo, bem como a luta e a

resistência dos quilombos contemporâneos. Posteriormente, apresento a origem do

Quilombo Mata-Cavalo, sua história e os desafios pelos quais passou e ainda passam os

matacavalenses na busca por seu reconhecimento e regularização fundiária do território, por

meio das suas histórias e memórias.

Nessas andanças pelo território, faremos uma breve pausa para tomar um licor,

saborear um delicioso francisquito ou biscoito, acompanhado de uma deliciosa garapa de

cana ou mesmo um saboroso guaraná ralado, ao som das melodias dos passarinhos, das

galinhas, enquanto as vozes dos anciões ecoam ao contarem as histórias do lugar. Para tanto,

busquei subsídios teóricos para essa discussão em Hall (2006), Munanga (1995-1996), Barth

(1998), Freitas (1978), Moura (1988; 2001), O’Dwyer (2002), Castilho (2011), Silva (2014),

Bandeira (1992), dentre outros.

2.1 COMUNIDADES QUILOMBOLAS: CONCEITOS

No Brasil escravista, até meados do século XIX, segundo Oliveira (2016), o termo

quilombo era conferido aos africanos e seus descendentes que aqui foram escravizados e que

se contrapunham à escravização, por meio da formação de grupos e organizações sociais,

políticas e econômicas independentes, que escapavam aos domínios dos senhores. Segundo

o autor, a essas organizações de negros fugidos, os senhores e o poder público atribuíam

características em que o significado era considerado negativo, pois os quilombolas eram

relacionados como bandidos e eram vistos como uma ameaça à segurança dos senhores e ao

seu sistema de produção.

De acordo com Freitas (1978,) os primeiros africanos escravizados chegaram ao

Brasil em 1554. O “tráfico negreiro”12 permaneceu por 316 anos. Em qualquer lugar em que

existia a escravidão, emergiam os quilombos como elementos de contestação dos negros ao

regime colonial escravista. De acordo com o autor, o quilombo foi uma demonstração típica

12 O tráfico negreiro representa a fase em que os negros africanos foram tirados da África para serem escravos

em outros continentes. O comércio de negros africanos como escravos foi uma das principais atividades

comerciais dos países dominantes no período de 1501 a 1867.

51

da insubmissão negra, haja vista que essa era uma forma de sobreviver e lutar contra o

sistema escravagista. De acordo com o referido autor, os negros foragidos ou libertos se

organizavam em locais distantes o suficiente para resistir ao sistema escravocrata.

As formas de resistência à escravidão aconteciam mediante ataques às fazendas,

mortes de feitores e capitães do mato, assassinatos de senhores de engenho, lutas de

guerrilha etc. Há de se considerar, ainda, os casos em que cometiam suicídio, enforcando-se

ou ingerindo veneno. O maior território de resistência política à escravidão foi o Quilombo

dos Palmares, o mais famoso do Brasil e das Américas (MOURA 1988). Quilombo é,

indiscutivelmente, o mais antigo tipo de grupo específico negro em todo o Brasil.

A origem do termo ‘quilombo’, segundo Munanga (1995-1996), seguramente é

originário do povo africano Bantu, escrito na sua origem com K: Kilombo. O autor afirma

que o Kilombo surgiu no século XVI no continente africano, especificamente, nas áreas

bantu, reunindo povos de diferentes regiões entre o Zaire e Angola. O quilombo africano se

tornou uma organização política e militar interétnica centralizada, formada por homens, sem

distinção de genealogia. Ao fazer parte da associação, os membros eram sujeitados a

dramáticas cerimônias de iniciação que os afastavam do recinto protetor de sua linhagem e

os juntava como co-guerreiros num regimento de super-homens não vulneráveis às armas

dos inimigos.

Ainda de acordo com Munanga (1995-1996), pelo conteúdo, o quilombo brasileiro é,

com certeza, uma reprodução do quilombo africano, reorganizado pelos escravizados em

oposição à política escravocrata, para implantação de outro modelo de estrutura

organizacional, na qual se encontraram todos os subalternizados, criando, portanto, uma

sociedade alternativa, diferenciada da que se efetivava sob o comando do senhorial.

Escravizados e revoltados se organizavam para fugir das senzalas e plantações, ocupando

terras não povoadas, geralmente de difícil acesso. Reproduzindo o modelo africano, eles

converteram esses territórios em espécie de preparação à resistência, abertos a todos os

oprimidos da sociedade, pressupondo um modelo de democracia plurirracial que o Brasil

ainda está a buscar.

Essas sociedades alternativas, ao serem criadas, eram organizadas política e

economicamente, lutando constantemente por seus ideais. Nas palavras de Castilho (2011, p.

62), “Elas perseguiam insistentemente a alforria, buscavam autonomia na produção,

investindo na criação de laços de família”.

No Brasil contemporâneo, o quilombo como direito étnico à terra, sua constituição e

sua organização, segundo Oliveira (2016), está prescrito na Constituição Federal de 1988, no

52

artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias- ADCT, que, apesar de já

abordado anteriormente, merece nova apresentação ao dispor que: “Aos remanescentes das

comunidades quilombolas que estejam ocupando suas terras é reconhecida a posse

definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos” (BRASIL, 1988).

Conforme Almeida (2002), o dispositivo constitucional supracitado reconheceu ao

inserir no seu texto a expressão “comunidades remanescentes de quilombos”, que, se tomado

no seu sentido exato, coloca a presença das comunidades quilombolas numa concepção de

sítio arqueológico, voltado ao passado, ou seja, o que restou, o que sobrou. No entanto,

segundo ele, ao se deparar com a realidade presente nos quilombos, o universo ideológico

dos legisladores não se sustenta. O autor sugere que se deve trabalhar o conceito de

quilombo levando em consideração o que ele é no presente, rompendo com essa separação

geográfica atribuída aos quilombos, tais como: civilização/natureza, propriedade/posse,

rural/urbano, dentre outros (ALMEIDA, 2002).

Para Oliveira (2016), as comunidades quilombolas, no passado e no presente, sempre

foram grupos específicos que, desde então, vêm se autodefinindo como tal e vivendo

experiências comunitárias próprias. Ainda de acordo com Oliveira (2016), no século XX, o

quilombo passou por transformações em seu significado, pois foi ressignificado pelas

instituições de movimento negro e quilombolas, como classe política de autodefinição para

reivindicar direitos étnicos à participação política, à educação, à saúde e, sobretudo, à terra.

A incumbência de fundamentar teoricamente a atribuição de uma identidade

quilombola a um grupo e, por extensão, garantir - ainda que formalmente - o seu acesso à

terra, trouxe à tona a necessidade de redimensionar o próprio conceito de quilombo, a fim de

abranger um conjunto de situações de ocupação de terras por grupos negros e ultrapassar o

binômio fuga-resistência, instaurado no pensamento corrente quando se trata de caracterizar

essas organizações sociais.

Segundo Castilho (2011), pesquisas e estudos históricos, antropológicos e culturais,

realizados nas comunidades quilombolas contemporâneas, demonstram que as terras

ocupadas por esses grupos têm origens diversas, como doação por parte dos antigos

proprietários aos seus escravizados, terras adquiridas por meio de compras por negros forros,

por ocupação de terras devolutas após a abolição da escravatura ou mesmo por simples

ocupação de algumas terras destinadas às promessas a algum santo. A autora afirma, ainda,

que, portanto, o conceito de “negros fugidos” não é aplicável na definição das mais de cinco

mil comunidades quilombolas existentes no Brasil, segundo dados da Coordenação Nacional

de Quilombos (CONAQ).

53

Já de acordo com O’Dwyer (2002), a Associação Brasileira de Antropologia (ABA),

atendendo solicitação do Ministério Público, em 1994, ressemantiza o conceito de quilombo,

presente no artigo 68 da Constituição Federal, “como grupos étnicos que existem ou

persistem ao longo da história como um ‘tipo’ organizacional’, segundo processos de

exclusão e inclusão que possibilitam definir os limites entre os considerados de dentro ou de

fora” (O‘DWYER, 2002, p. 14). Percebe-se que o conceito de quilombo que vem sendo

trabalhado pela Antropologia é muito mais amplo e abrange comunidades negras, arraigadas

em determinado território, que mantenham vivos as tradições e os costumes herdados de

seus antepassados. Segundo a ABA:

[...] o termo ‘quilombo’ tem assumido novos significados na literatura

especializada e também para indivíduos, grupos e organizações. Ainda que tenha

um conteúdo histórico, o mesmo vem sendo ressemantizado para designar a situação presente dos segmentos negros em diferentes regiões e contexto do país.

Definições têm sido elaboradas por organizações não governamentais, entidades

confessionais e organizações autônomas dos trabalhadores, bem como pelo próprio

Movimento Negro. Exemplo disso é o termo ‘remanescente de quilombo’,

utilizado pelos grupos para designar um legado, uma herança cultural e material

que lhes confere uma referência presencial no sentimento de ser e pertencer a um

lugar e a um grupo específico. Contemporaneamente, portanto, o termo quilombo

não se refere a resíduos ou resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou de

comprovação biológica. Também não se trata de grupos isolados ou de uma

população estritamente homogênea. Da mesma forma, nem sempre foram

constituídos a partir de uma referência histórica comum, construídas a partir de vivências e valores compartilhados. (Informativo NUER, 1996, p. 81).

Partindo da definição de Barth (1998), O’Dwyer (2002) assegura que o quilombo,

hoje, não está isolado do restante da população e que, nem sempre, a sua formação decorre

de “insubordinação ou rebelação”. Uma das finalidades na formação de quilombos, na

atualidade, é a luta ou a resistência visando à manutenção da cultura. Essa perspectiva

permite pôr em relevo a importância dos processos de construção da identidade,

considerando as características peculiares a cada grupo.

Segundo Castilho (2011), as identidades desses grupos não se definem pela

quantidade numérica de seus membros, nem pelo tamanho do seu território, mas pela

experiência construída a partir de vivências partilhadas de acontecimentos históricos comuns

e da continuidade como grupo. Em relação ao território, a ocupação da terra por esses

grupos, segundo O’Dwyer (2002), não é feita em termos de lotes individuais, predominando

o uso coletivo dos espaços, tomando por base laços de parentesco e vizinhança, assentados

em relações de solidariedade e reciprocidade.

54

Interpretando Leite (2010), o ato de aquilombar-se, ou seja, de estabelecer base

contra qualquer atitude ou plano opressivo, passa a ser, portanto, nos dias atuais, a chama

reacesa para, na condição contemporânea, dar sentido, estimular, fortalecer a luta contra a

discriminação e seus efeitos. Quilombo vem a ser, portanto, o conceito principal para se

discutir uma parte da cidadania negada, sendo este o caso do Quilombo Mata-Cavalo.

O Quilombo Mata-Cavalo, comunidade que abriga a Escola Estadual Professora

Tereza Conceição Arruda, lócus desta pesquisa, segundo Castilho (2011), configura-se como

um quilombo contemporâneo, pois não foi formado a partir de fuga, insurreição, mas, sim, a

partir de uma terra doada. Não está geograficamente isolada, pois os seus moradores

mantêm relação estreita com a sociedade envolvente. Pautados em uma identidade histórica

comum, seus/suas moradores(as) resistem e lutam até os dias atuais para serem reconhecidos

como sujeitos de direitos e de garantias fundamentais pelo Estado burocrático brasileiro.

Reivindicam, sobretudo, a regularização fundiária do território que ocupam e um lugar digno

na sociedade que lhes foram negados ao longo da história.

Os matacavalenses, ainda hoje, vivem de forma singular. Em sua maioria, as famílias

residem em casas de pau a pique, cobertas com palha de babaçu, praticam a agricultura de

subsistência, cujas culturas mais comuns na comunidade são banana, arroz, feijão, cana-de-

açúcar, milho e mandioca. As festas de santo fazem parte do calendário anual da

comunidade. Isso tudo mostra o laço cultural, mantido com muito orgulho, com a cultura de

seus antepassados escravizados que vivem nesse local desde o século XIX.

2.2 BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO DO MUNICÍPIO DE NOSSA SENHORA DO

LIVRAMENTO/MT

As terras que historicamente formam a comunidade quilombola de Mata-Cavalo,

lócus desta pesquisa, estão localizadas no município de Nossa Senhora do Livramento e

encontram-se a uma distância aproximada de 50 km de Cuiabá, capital de Mato Grosso, às

margens da Rodovia MT-060, de acesso ao município de Poconé-MT.

A sede do município de Nossa Senhora do Livramento localiza-se a

aproximadamente 40 km da capital Cuiabá, na região denominada de Baixada Cuiabana. Faz

divisa com os municípios de Várzea Grande, Poconé, Rosário Oeste, Barão de Melgaço,

Cáceres, Porto Estrela, Jangada e Santo Antônio do Leverger.

55

Figura 4 - Entrada da cidade de Nossa Senhora do Livramento/MT

Fonte: acervo particular da autora 2018.

A sede do município tem as seguintes coordenadas geográficas: 15º 46' 00'' de

latitude Sul e 56º 22' 00'' de longitude Oeste GR, na direção Sul em relação a Cuiabá. Integra

a mesorregião 130, da microrregião 534 de Cuiabá, Centro Sul de Mato Grosso.

Administrativamente, divide-se em quatro distritos: Sede, Faval, Pirizal, e Ribeirão dos

Cocais. Possui uma área de 5.331,57 km² e sua população estimada, em 2017, era de 12.484

habitantes (IBGE - Censo de 2017).

Partindo da capital Cuiabá, para ir a Nossa Senhora do Livramento, é preciso

atravessar a cidade de Várzea Grande e chegar ao Trevo do Lagarto. Chegando ao trevo,

pega-se a BR 070, seguindo, aproximadamente, por dez quilômetros até o entroncamento

com a Rodovia MT 060. Entrando à esquerda na MT 060 e seguindo por mais 12 km já

estará na cidade dos “Papa-banana”, como é carinhosamente conhecida Nossa Senhora do

Livramento. Continuando na MT 060, no sentido à cidade de Poconé, após quatro

quilômetros (de N. Sra. do Livramento), você estará adentrando ao território quilombola de

Mata-Cavalo.

Como descreve Castilho (2011), à medida que se cruza a BR 070, vão desabrochando

novas paisagens do cerrado mato-grossense, vegetação predominante desse lugar, com seus

pequenos arbustos com galhos retorcidos, entremeados por várzeas pantaneiras,

principalmente, nos períodos chuvosos, que nesta região compreende os meses de dezembro

a março.

O município de Nossa Senhora do Livramento se formou a partir da exploração do

ouro no século XVIII, quando os sorocabanos, Antônio Aires e Damião Rodrigues,

deixaram Cuiabá com todos os seus pertences, atravessaram o rio Cuiabá e, depois de uma

marcha de aproximadamente trinta quilômetros, descobriram ouro em alguns ribeirões ou

córregos em território do atual município, nas lavras que ficaram conhecidas como Cocais.

56

Com a notícia da descoberta do ouro, os sertanistas e aventureiros, ávidos por riquezas,

iniciaram a se instalar nas margens do Córrego Cocais, que foi o berço de nascimento do

atual município de Nossa Senhora do Livramento.

Em Livramento, segundo Bandeira (1992), as lembranças de muitas pessoas

associam à igreja ao surgimento da cidade, como satisfação de uma vontade divina. A autora

descreve, conforme memória oral dos livramentenses, que os tropeiros em viagem para Vila

Bela da Santíssima Trindade, após dormirem, tentavam continuar a viagem; no entanto, as

investidas eram ineficazes, pois os animais insistiam em permanecer parados no lugar.

Apesar de todo o empenho e das cipoadas, os animais persistiam em não pegar a estrada.

Depois de inúmeras tentativas, sem qualquer sucesso, alguém sugere que desçam a carga.

Ainda segundo a memória do “papa bananas”, ao descer a carga, que continha a imagem da

santa, os animais seguiram viagem. Ao recolocar novamente o fardo no lombo dos animais,

os bichos tornaram a empacar. Então, para abrigar a santa, é construída uma pequena capela

de palha, onde hoje temos a Igreja Matriz de Nossa Senhora do Livramento.

Figura 5 - Imagem da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Livramento (2018)

Fonte: acervo particular da autora, 2018.

Segundo Bandeira e Sodré (1993), fontes documentais apontam grande população de

negros não africanos, superiores aos africanos, em Nossa Senhora do Livramento, no

período de 1804-1883. De acordo com os autores, esses escravizados não africanos eram os

chamados crioulos (filhos de africanos nascidos no Brasil).

Ainda hoje, a população de Nossa Senhora do Livramento continua

predominantemente formados por negros. Segundo dados do IBGE (2010), agregando as

57

categorias pardas e pretas, 67% dos moradores de Livramento são da população negra.

Castilho (2011) assegura que, de fato, os livramentenses, assim como os matacavalenses,

mantêm uma distinção de cor, embora não sejam homogeneamente negros. A autora afirma,

ainda, que os livramentenses possuem um linguajar característico, bem como uma pronúncia

marcadamente distinta.

Embora a população livramentense seja predominantemente formada por negros,

conforme descrito acima, Sodré e Dantas (1995) detectou que em Livramento existe uma

resistente ordem racial hierarquizada, que, segundo a autora, divide-se em três categorias, de

cima para baixo: na primeira classe encontra-se a parcela branca da população; a segunda é

composta pelos mulatos e na terceira categoria, apesar das distinções que possa ocorrer,

assentam-se os negros. Contudo, segundo a autora, os não brancos são considerados

genericamente como negros.

Conforme Sodré e Dantas (1995), ser branco ou pertencer a certas famílias brancas

em Livramento significa gozar de prestígio social e, como aristocrata, participar de um

universo socialmente benéfico. Ainda de acordo com a autora, a diferença racial é um

critério de justaposição mais importante do que a de classe. Essa hierarquização racial

constatada por Sodré e Dantas (1995), na cidade de Livramento, pode explicar a relação

desarmônica entre os negros de Mata-Cavalo e os moradores da sede, sobretudo com os

brancos.

Livramento é a cidade mais próxima da comunidade de Mata-Cavalo e é aonde os

matacavalenses vão para resolver questões bancárias, comprar alimentos, roupas,

ferramentas de trabalho, vender produtos, tais como: artesanato, doces caseiros, farinha; bem

como resolver questões burocráticas, obter atendimento médico, entre outras coisas. É

também onde residem muitos de seus parentes.

Porém, como ressalta Castilho (2011), os matacavalenses, apesar da convivência

cotidiana em Livramento, nunca foram bem aceitos e vice-versa. Ainda segundo a autora,

em suas visitas à cidade de Livramento, com intuito de coletar material para sua pesquisa de

doutorado nos anos 2000, ouviu insinuações dos livramentenses que colocavam em dúvida o

direito dos quilombolas à terra, além de outras afirmações e narrativas depreciativas e

preconceituosas como “relaxados, descuidados e acomodados” (CASTILHO, 2011, p. 56).

A fala do Senhor Natalino, um dos anciões entrevistado para esta pesquisa, reforça o

descrito por Castilho (2011) quando ele relata: “Eu conheço uns dois desses fazendeiros aí

que um dia falou lá dentro da cidade de Livramento, ‘o que esses negros queriam com tanto

de terras desses’? E pouco fazia as coisas”. Ou seja, ainda nos dias atuais, os quilombolas

58

são vistos pelos livramentenses como não dignos de possuir terras, pelo fato de não serem

brancos.

O depoimento supracitado ilustra muito bem as representações sociais de cunho

racista, difundidas nos séculos XVIII e XIX, que conquistaram espaço e força na sociedade

brasileira e vigora, ainda, com muita força, nos dias atuais. Ou seja, o racismo é elemento

estruturante das relações sociais e de poder no Brasil, embora negado sistematicamente.

A seguir, passo a descrever sobre a história do Quilombo Mata-Cavalo e como a

ideologia de superioridade entre povos e culturas serviram para fundamentar o processo de

expropriação de terras dos matacavalenses.

2.3 QUILOMBO MATA-CAVALO: ASSIM COMEÇA SUA HISTÓRIA

Entende-se o lugar denominado Quilombo Mata-Cavalo como um conjunto de

comunidades ou um complexo que engloba seis comunidades. São elas: Mata-Cavalo de

Baixo, Mata-Cavalo de Cima, Aguaçú de Cima, Ponte da Estiva, Mutuca e Capim Verde.

A história da origem do Quilombo Mata-Cavalo é aqui descrita com base em

pesquisas bibliográficas e nas narrativas de três moradores que a ele se vinculam: três

anciões, que são considerados guardiões da história do grupo. O primeiro ancião

entrevistado é o Senhor Antônio Benedito da Conceição, conhecido pelo apelido que ele

gosta de ser chamado “Antônio de Mulato”, o qual, no momento da pesquisa (em 2018),

estava com 113 anos e como ele mesmo diz: “nascido e criado no Mata-Cavalo”. É

reconhecido por todos como um grande guerreiro na luta pela permanência do quilombo e

também pela educação formal dos matacavalenses.

O segundo entrevistado é o Senhor Natalino Marino da Silva, de 61 anos, bisneto de

africanos escravizados, nascido na comunidade de Mata-Cavalo. Natalino é uma espécie de

articulador entre os moradores do Quilombo. O seu conhecimento das comunidades e da

história local é reconhecido por todos os moradores.

O terceiro narrador da história da comunidade é o Senhor Arnaldo Arruda, 70 anos,

nascido e criado na comunidade de Aguaçú de Cima, que compõem o Quilombo. É

protagonista da luta pela resistência de sua família na comunidade. Seu Arnaldo é

analfabeto, mas conhece como ninguém a história do povo matacavalense.

A história do imóvel denominado Sesmaria Boa Vida, hoje Quilombo Mata-Cavalo,

inicia-se em 1751, quando foi emitida a carta de Sesmaria em favor de José Paes Falcão,

59

bandeirante paulista, pelo então capitão da capitania de Mato Grosso, Antônio Rolim de

Moura. Em 1772, a Sesmaria Boa Vida foi vendida para Antônio Roiz de Siqueira, que a

deixou de herança para seu filho Antônio Xavier de Siqueira. Posteriormente, a Sesmaria

Boa Vida Mata-Cavalo passou a pertencer à Dona Custódia Arruda e Silva (SANTOS 2017).

Em 1850, em função de uma dívida contraída pelo esposo de Dona Custódia, a

Sesmaria Boa Vida Mata-Cavalo acabou indo ao leilão público, sendo arrematada, na

ocasião, por Ricardo José Alves Bastos (SANTOS 2017).

Em 1875, o Sesmeiro, Ricardo Bastos, registrou um testamento declarando:

[...] declaro que sou natural desta província, filho legítimo dos finados Bento José

Alves Bastos e Gertrudes Maria da Conceição. Declaro que sou casado com D.

Ana da Silva Tavares, filha legitima do finado Antônio d’Almeida Lara e Dona

Ana de Moura Meirelles, de cujo matrimônio não tivemos filho algum. Declaro,

por conseguinte e por não ter herdeiro algum, necessário que instituo a mesma

minha mulher Dona Ana da Silva Tavares minha universal herdeira do

remanescente. [...] declaro que deixo todos os meus escravizados para servirem a

minha mulher durante a sua vida e por seu falecimento gozarem de plena liberdade

como se de ventre livre nascessem. (trecho retirado do Processo administrativo do

INCRA/MT).

Esse trecho do testamento de Ricardo José Alves Bastos nos revela que ele deixou a

Sesmaria Boa Vida, bem como os negros escravizados, para a sua esposa Dona Anna da

Silva Tavares, além de determinar a liberdade dos seus escravizados após a morte de sua

esposa.

Fontes documentais atestam a presença de negros na condição de escravizados em

Mata-Cavalo desde 1804, mas a origem do Quilombo Mata-Cavalo, segundo a memória dos

matacavalenses, tem como marco histórico o dia 15 de setembro de 1883. Ano em que seus

antepassados, negros cativos, receberam de sua ex-senhora, Dona Ana da Silva Tavares,

uma carta constando a doação das terras. Como confirmam, nos dias atuais, os próprios

matacavalenses:

Entrou a liberdade, acabou a escravidão. Acabou a escravidão. A Senhoria, que eu esqueci o nome dela, falou meus negros o marido morreu, entrou a liberdade,

agora, eu vou dar terra, a terra do Mata-Cavalo, a escritura da Boa vida para vocês.

(SR. ANTONIO MULATO, 2018).

O Senhor Natalino também guarda na memória a história da terra doada. Segundo

ele, sua “família é da descendência de Graciano Tavares da Silva, um dos negros que

recebeu a terra da Dona Ana da Silva Tavares”. Essa história foi repassada para ele pelo

seu pai Manoel Apolinário, que era bisneto do Graciano.

60

Segundo Castilho (2011), no imaginário dos quilombolas de Mata-Cavalo, foi a

bondade da senhoria que assegurou a permanência dos negros na fazenda após a libertação

dos escravizados por meio da Lei Áurea. Essa doação, conforme Castilho (2011), foi

registrada no cartório de Nossa Senhora do Livramento, onde a Dona Ana da Silva Tavares,

na qualidade de testamenteira, em 15 dias do mês de setembro do ano de 1883, ratificando o

testamento de seu falecido marido, Ricardo José Alves Bastos, o qual fez a doação de uma

parte da Sesmaria Boa Vida, denominado Mata-Cavalo, com suas vertentes, aos seus

escravizados, inclusive aqueles que haviam se libertado por ocasião do inventário do seu

marido.

Os estudos de Bandeira e Sodré (1993) também dão destaque à história da doação

das terras pela dona da Sesmaria aos seus negros:

Mata-Cavalos, uma dessas comunidades (rurais negras tradicionais), surgem ainda

à época da escravidão (1883), quando em vida, a meeira de Ricardo Tavares faz a

doação de uma área da Sesmaria Boa Vida a escravizados seus [...] A doação

registrada em Cartório refere-se às terras dos ribeirões de Mata-Cavalos e Mutuca,

tributários do ribeirão Santana, nas proximidades da sede do município. Negros

tornam-se dessa forma, proprietários legítimos da terra. (BANDEIRA; SODRÉ,

1993, p. 97).

Segundo relatos dos anciões de Mata-Cavalo, a partir da doação, as terras passam a

ser um bem coletivo, ou seja, pertencia a todo membro do grupo. De acordo com o Senhor

Natalino, “antigamente não existia cerca, a terra era comum”. Conforme relato dos

moradores, o direito à terra, no sentido de poder nela morar, plantar, colher, enfim, usufruir,

realizava-se e ainda prossegue, nos dias atuais, pela linhagem, por meio da descendência

direta ou indireta dos 34 negros escravizados da Dona Ana.

Em conformidade com o que consta no inventário de Ricardo José Alves Bastos e de

acordo com os registros constantes das figuras 6 e 7 deste trabalho, 34 escravizados

receberam a doação das terras, sendo que 27 deles – aproximadamente 80% - são parentes

consanguíneos, descendentes diretos de Francisco e Rita. As figuras 6 e 7 agregam, dentre

outras informações, nome, cor, idade, naturalidade, filiação, aptidão para o trabalho e

profissão.

61

Figura 6 - Imagem do inventário dos negros escravizados pertencentes ao Ricardo José Alves Bastos, em 1785

Fonte: acervo particular da autora, 2018.

Figura 7 - Imagem do inventário dos negros escravizados pertencentes ao Ricardo José Alves Bastos, em 1785

Fonte: acervo particular da autora, 2018.

62

Ao longo dos anos, segundo o Senhor Natalino, para protegerem o território, os

moradores foram se espalhando e, com isso, formaram-se as seis comunidades que integram

atualmente o Quilombo Mata-Cavalo, sempre tendo por base a posse coletiva da terra e o

vínculo das famílias descendendo de algum “tronco” dos 34 já retratados. Cada uma dessas

comunidades, ocupando um espaço específico, foi conquistada por meio das atividades

econômicas nelas exercidas, sendo os seus limites de conhecimento de cada membro

pertencente ao Quilombo, conforme nos confirma o Senhor Natalino (2018):

[...] todos eles têm os marcos. Os quatro cantos demarcados. Só que não existia

divisória de cerca, esses negócios. Não existia antigamente. Existiu agora, de

pouco tempo para cá. De 40 anos para cá, que existiu esse negócio de divisória,

mas no mais era todo comum. Cada um ficava nos seus limites, entendeu? Por

exemplo, este aqui o marco. Daqui para cá era seu, daqui para cá era meu, lá já era

outro marco, daí para lá de outo. Todo mundo respeitava o seu limite de um marco

para outro, mas não tinha divisória, como hoje em dia tem. [...] Cada um sabia seu

limite até onde que ia. Ninguém botava roça dentro do limite de outro. Cada um no

seu limite. Esse aí eu lembro muito bem. (informação verbal, SENHOR NATALINO, 2018).

Dessa forma, segundo Santos (2017), os/as matacavalenses e seus descendentes

ocupavam e cultivavam a terra, produzindo praticamente tudo o que era necessário para o

sustento e a sobrevivência. O cultivo das roças, a criação de pequenos animais, a

biodiversidade de espécies e de ecossistemas possibilitavam que os negros obtivessem quase

todos os elementos necessários para sua existência. Segundo Senhor Arnaldo (2018), “a vida

aqui [...] era boa, tranquila, antes dos atropelos dos fazendeiros, dos garimpeiros”. O Senhor

Natalino (2018) comunga da mesma opinião quando relembra: “Meus avós com meu pai

contavam que aqui no Mata-Cavalo foi muito bom, antigamente foi muito bom, diferentes

dos atritos que teve agora, aqui era bom demais!”.

Os testemunhos dos moradores revelam que Mata-Cavalo era um lugar de fartura.

Das roças, os moradores tiravam o necessário para seu sustento e de suas famílias. Revelam,

ainda, a presença de engenhos de tração animal, que permitia aos negros produzirem

melado, rapadura, açúcar de barro, tudo de maneira coletiva e solidária, por meio do

chamado muxirum (trabalho coletivo, em grupo).

De acordo com relato do Senhor Arnaldo (2018):

Antigamente aqui, nós vivíamos de trabalhar para manter a situação, unidos com

os vizinhos. Trabalhava plantando arroz, feijão, milho, banana, mandioca, cana, e

criando galinha, porco. Da mandioca fazia a farinha, da cana fazia melado, rapadura, Tio Antônio fazia até açúcar de barro. Aí engordava o porco e matava já

tinha a gordura, a carne. [...] também fazia bastante muxirum, era uma alegria só.

63

Uma quantia de homens e mulheres, cada tempo se juntava na roça de um pra

ajudar na derrubada, depois no plantio, depois para colher. Iniciava cedinho e

passava o dia inteiro, só parava para comer. (informação verbal, SENHOR ARNALDO, 2018).

O Ancião Arnaldo nos diz que, hoje em dia, os matacavalenses ainda fazem essas

coisas, porém ele desabafa com tristeza que, atualmente, não tem mais muito espaço para

plantar, porque a maioria das terras está tomada pelos grileiros.

Seu Antônio Mulato (2018) ainda hoje relembra, com saudade, da prática do

muxirum, que acontecia com mais frequência no passado. Segundo ele, “quando era dia de

muxirum, vinha gente de todos os lugares de Mata-Cavalo, da Mutuca, vinha aqui do

Aguaçú, vinha da Estiva, vinha de tudo... Era unido, era aquele muxirum o dia inteiro, tinha

muita comida, tinha bebida”.

Assim como o Senhor Mulato, o Senhor Natalino também salienta a prática do

muxirum realizado na comunidade:

[...]. Fazia muxirum. Tinha vez aqui no sitio, esse eu estou lembrado, eu tinha meus

doze, catorze anos, aqui fazia reunião na roça eram trinta, quarenta, cinquenta

pessoas na cada roça. Vamos supor hoje era você que fazia, amanhã era outro,

quando era na outra semana era outro. Era assim. Cada um ajudava um ao outro, no

muxirum. O gasto que tinha era só com o almoço, a bebida, só. (informação verbal,

SENHOR NATALINO, 2018).

Os moradores também relatam que parte da produção agrícola, pecuária e artesanatos

eram levada para vender na sede de Nossa Senhora do Livramento. Os produtores iam a pé,

a cavalo ou de carroça, conforme se depreende dos relatos abaixo:

[...] daqui do Mata-Cavalo nós carregávamos no Livramento. Nós éramos quatro

irmãos, quase todos de um tamanho só. Todo um ano e meio mais velho do que o

outro. [...] Papai arrumava doze litros de milho para o mais velho, seis para a mais

criança, três para o quarto e dois para o outro, mais criança, para levarmos no

Livramento, a pé. (informação verbal, SENHOR NATALINO, 2018).

[...]. Eu lembro que meu pai e outras pessoas pegavam o que produziam e levavam

no Livramento [...]. Nós levávamos pra trocar com guaraná, sabão, querosene, e

outras coisas de necessidade. De vez em quando nós recebíamos um dinheirinho,

mas no mais era trocado. Nós levávamos até lenha pra vender, porque antigamente na cidade muita gente cozinhava na lenha. Hoje que todo mundo cozinha no fogão

de gás. Mas a lenha só levava os que tinham carroça, porque a maioria ia ao

Livramento de pé. Levantava ainda com escurinho e se mandava, ia amanhecer no

Livramento. (informação verbal, SENHOR ARNALDO, 2018).

Ou seja, os matacavalenses, optando pelo tipo de vida coletiva, por meio das práticas

do muxirum, produziam para sua subsistência e também para abastecer a cidade de Nossa

64

Senhora do Livramento. Os relatos dos moradores nos permitem constatar que, desde o

século XIX, os matacavalenses haviam se firmado como organização social e como espaço

contestatório na e da sociedade vigente.

Porém, conforme Bandeira (1992), a partir de 1889, a permanência dos

matacavalenses na terra recebida por doação logo foi ameaçada pela Lei n.º 601, de 18 de

setembro de 1850, também conhecida como Lei de Terras. Essa lei dificultava o acesso à

propriedade da terra, aos que embora ocupantes, não possuíssem capital, categoria em que se

encontravam os negros de Mata-Cavalo. A autora (BANDEIRA, 1992) evidencia que o

pensamento escravista concebia o negro, mesmo o liberto, como mão de obra sujeita apenas

ao trabalho compulsório e como inapto a viver de maneira autônoma, compreendendo a terra

como bem exclusivo da elite branca.

Assim sendo, os embates entre os quilombolas e os expropriadores se acirraram. Na

disputa pelo território, vários conflitos emergiram e perduram até os dias atuais. Os

quilombolas enfrentam situações degradantes para poder viver num espaço constituído

historicamente, cheio de memórias, com valor imaterial imensurável para os

matacavalenses, bem como para a história do país.

O Senhor Antônio Mulato, morador mais antigo de Mata-Cavalo, evidencia a

artimanha dos fazendeiros para se apossar das terras:

[...] Aí Manequinho achou que ele não era dono. Prudêncio vendeu um pedacinho

pra ele do Mata-Cavalo. André vendeu um pedacinho pra Manequinho, de terra de

Mata-Cavalo e foi embora. André Velho vendeu por 30 cruzeiros. Trocado com

guaraná e pedacinho de fumo e foi embora. Eh! Manequinho! (informação verbal,

SENHOR ANTONIO MULATO, 2018).

O relato acima nos permite aferir que os fazendeiros iniciaram a adentrar na

comunidade comprando pequenas áreas e, após entrarem no perímetro quilombola, eles

começavam a perseguir os integrantes do Quilombo, para assim dilatarem suas propriedades.

A expropriação territorial violenta das terras de Mata-Cavalo, compreendida entre os

períodos de 1890 a 1950, é evidenciada nos estudos de Castilho (2011). A autora revela,

assim como relatou o Senhor Mulato, que, inicialmente, os fazendeiros principiaram por

comprar pequenas propriedades em Mata-Cavalo, depois encetaram a grilar as terras,

aproveitando-se do fato de os negros não terem suas terras legalizadas como previa a Lei de

Terras na época. Segundo ela, inescrupulosamente, os fazendeiros começaram a dilatar suas

cercas, a impedir que os moradores cultivassem suas roças ou criassem animais e a impedir a

livre circulação dos negros dentro do território quilombola.

65

Conforme Leite (2010), a modernização do estado brasileiro constituído como

modalidades de inclusão hegemônicas e disseminadoras de ordenamentos políticos, com

base em individualismos universalistas, era claramente excludente e violadora de direitos.

Esse tipo de organização política promovia a exclusão de diversos povos da sua condição de

humanidade plena. Segundo ela, o cidadão passou a unidade de referência da agregação

política proveniente do pacto universal que não abrangeu a todos. As leis só se tornaram

acessíveis aos detentores da leitura e da escrita, o que não era o caso dos negros e seus

descendentes recém-saídos da condição de escravizados.

Assim como Bandeira (1992), a Leite (2010) reafirma que a Lei de Terras de 1850,

redigida no evidente contexto de esgarçamento e saturação do sistema escravista, contribuiu

substancialmente para a invisibilidade do povo africano e seus descendentes. Esse

ordenamento jurídico, ao negar a condição de brasileiros aos negros, segregando-os na

categoria de “libertos”, inaugura um dos mais hábeis e sutis mecanismos de expropriação

territorial.

Leite (2010) afirma que, a partir da homologação da Lei de Terras de 1850, diversas

estratégias provenientes de instâncias legais e em forma de direito passam a combinar um

tipo de ‘justiça’ exercida no princípio de uma universalidade que não inclui a todos,

propiciando, assim, a ocorrência de inúmeros mecanismos de legitimação mediante recursos

jurídicos impetrados para garantir “o direito à propriedade”, tais como: expulsões, remoções,

registro de terras devolutas do Estado, ações de divisões sobre inventários de terras deixadas

a ex-escravizados, com cláusula de inalienabilidade, invasões, cercamentos e resgates de

terras por endividamentos, tais como ocorreram em Mata-Cavalo.

O testemunho do Senhor Arnaldo evidencia bem os efeitos provenientes dessa

legislação. Ele revela, com detalhes, a crueldade com que os grileiros avançavam contra os

quilombolas:

[...] os garimpeiros vinham com os pistoleiros e ameaçavam o meu pai, minha

mãe, todos os parentes que moravam aqui. Ameaçavam com revolver, com

espingarda, vinham com trator pra derrubar as casas e acabavam expulsando as

pessoas. Só minha mãe e nós os filhos que aguentamos aqui, os demais uns

venderam, outros foram indo pra cidade, com medo de morrer. Nós ficamos só

num cantinho, porque teve os...os...os grandão tomou posse, nós não teve como brigar, porque para brigar precisa de dinheiro, nós não tinha dinheiro. (informação

verbal, SENHOR ARNALDO, 2018).

Nota-se, pelo relato acima, que eram feitos verdadeiros atos de terrorismo contra os

moradores, com a intenção de amedrontá-los e obrigá-los a ceder, em favor da vontade dos

66

grileiros. Os expropriadores se aproveitavam da humildade e do pouco poder econômico dos

quilombolas e investiam com violências físicas e psicológicas a fim de materializar a sua

ganância.

As violências relatadas pelos quilombolas também demonstram claramente os efeitos

do racismo e da discriminação racial instalados e impregnados no pensamento social,

herdados do período colonial, que impediam os negros de se reconhecerem como sujeitos de

direitos.

Segundo registros da CONAQ (2018), o racismo, enquanto elemento estruturante das

relações de poder, é parte da formação histórica da sociedade brasileira. A formação política

do Brasil tem na sua constituição atos perversos de violência e desumanização, dirigidos

contra os negros, a exemplo da diáspora13 e da escravidão.

Um exemplo de desumanização causado pelo racismo na sociedade livramentense é

esse não reconhecimento do negro enquanto cidadão provido de direitos, que além de criar

no negro o sentimento de inferioridade e subalternização, serviu também como ferramenta

para encorajar os grileiros, com a conivência do Estado, a expropriarem o território dos

quilombolas de Mata-Cavalo.

Registros encontrados no INCRA/MT evidenciam que foi usada contra os moradores

de Mata-Cavalo violência de todas as formas, tais como: falsificação de matrículas de

imóveis, divisão judicial, inventários, usucapião, todos em total desacordo com os Códigos

de Processos Civis e regulamentações do Estado de Mato Grosso em vigor na época,

obrigando, com isso, muitas famílias a abdicar de seu direito de posse, desvelando a visão

colonialista presente nos poderes públicos.

A violência física e simbólica às quais os negros escravizados e seus descendentes

foram, e ainda continuam sendo submetidos no estado de Mato Grosso, evidencia toda a

estrutura que marcou os períodos de construção da história mato-grossense e ainda hoje

repercute sobre a população negra, submetida a um silêncio constrangedor e opressivo. Essa

violência é revelada no relato do Senhor Natalino (2018):

[...] Até poucos anos atrás, aqui até a estrada para nós andarmos era circulado de

pistoleiros. Nós já ficávamos que não podia enxergar mais ninguém, nós tínhamos que desviar. Ficamos sem estrada. Graças a Deus que teve agora essa lei que nós

estamos adquirindo o quilombo de volta outra vez. Aí que nós estamos mais com

uma vida liberto. Mas antigamente era difícil. Tinha que passar debaixo da cerca,

porque o fazendeiro cercou tudo [...] Era um sofrimento incrível. Porque tinha vez

13 A diáspora africana, também conhecida como Diáspora Negra consistiu no fenômeno histórico e

sociocultural que ocorreu muito em função da escravatura, quando indivíduos africanos eram forçosamente

transportados para outros países para trabalharem.

67

que dormia no mato escondido, ia esconder para outros lugares onde não tinha

perseguição. Voltava para dentro de casa igual passarinho arisco, com medo dos

grileiros. (informação verbal, SENHOR NATALINO, 2018).

O Senhor Arnaldo complementa o relatado pelo Senhor Natalino, concluindo:

[...] inclusive o finado Gilberto mesmo já veio aqui para eu vender para ele na

marra, mas eu num, num aceitei a proposta dele. Ele xingou, brigou e foi embora.

Ali no finado Simão, eles iam todo dia perseguir eles, tacavam fogo na roça dele,

matavam porco dele, cercaram até perto da casa dele. (informação verbal,

SENHOR ARNALDO, 2018).

Inescrupulosamente, os fazendeiros se valiam de todos os tipos de artimanhas para

expandir as suas terras: ao impedir que os quilombolas circulassem livremente pelo

território, ao impedir que plantassem, tirando, assim, toda a dignidade do povo

matacavalense, que se tornava refém em seu próprio habitat.

Os moradores de Mata-Cavalo que não resistiram a esses processos violentos de

violação de direitos tiveram destinos diversos: muitos dos quilombolas migraram para as

periferias de Cuiabá, Várzea Grande e Poconé. Outros se dispersaram com suas famílias, na

área rural, trabalhando em fazendas da região. Os moradores relembram que muitas famílias

foram transferidas por políticos da região para um local chamado “Capão de Negro”, que

deu origem ao bairro Cristo Rei (Várzea Grande/MT) e Ribeirão do Lipa (Cuiabá/MT).

Essa migração forçada para bairros periféricos de Cuiabá, Várzea Grande, Poconé e

propriedades rurais da região, sem dúvida, acarretou custos humanos inimagináveis para os

matacavalenses, pois impôs uma desarticulação de seu sistema social, religioso e, sobretudo,

econômico. Os quilombolas passam de uma vida de fartura produzida em seu território para

uma condição de pobreza, desemprego. A desarticulação de vida afetiva e a separação das

famílias que foram dispersas nos espaços causaram danos emocionais difíceis de serem

reparados.

A partir da década de 1980, com a redemocratização e com os debates para a

elaboração da Constituição Federal e as exigências de setores do movimento negro e

quilombola em torno da garantia da legitimação das terras dos remanescentes de Quilombo,

os matacavalenses foram encorajados a retornar para suas terras.

Venham comigo conhecer a emocionante história desse retorno dos matacavalenses

para a terra doada!

68

2.4 A SAGA DOS MATACAVALENSES: O RETORNO

Mesmo com as pressões dos grileiros para expropriar as terras dos quilombolas de

Mata-Cavalo, algumas famílias resistiram e continuaram habitando parte do território

quilombola. Dentre as famílias, que mesmo ameaçadas não deixaram as terras em que

viviam, encontram-se a família de meu bisavô, o Senhor Antônio Benedito da Conceição, na

região da Estiva; a família de Manoel Apolinário da Silva, na comunidade de Mata-Cavalo

de Baixo; os parentes de Vicente Ferreira, na comunidade da Mutuca e alguns familiares

descendentes de Silvério da Silva Tavares - sendo um deles o Senhor Arnaldo, um dos

sujeitos desta pesquisa - na comunidade do Aguaçú de Cima.

Os diversos fatores que contribuíram para a mobilização dos moradores da área,

visando retomar as terras que consideram suas, foram: a memória dos mais velhos detentores

da história da comunidade e as lembranças da vida no território, vistas como uma época de

fartura, de tranquilidade, de solidariedade, bem como as constantes investidas dos

fazendeiros para consolidar a expropriação total das terras do Quilombo.

A aprovação e a divulgação dos Artigos 215 e 216 da Constituição Federal de 1988 e

do artigo 68 do ADCT já apresentados nesta pesquisa, bem como de artigos das

Constituições Estaduais referentes aos direitos quilombolas, também contribuíram para as

populações dos Quilombos intensificarem as lutas por seus direitos. Também foi fator

determinante a descoberta da antiga carta de doação, efetuada por Dona Anna e de vários

documentos de compras de terras na área, documentos esses que não estavam mais em poder

dos matacavalenses, pois haviam sido “perdidos” ou deteriorados.

A soma dessas informações foi importante na luta pela retomada da terra, pois esses

documentos serviram para comprovar que as terras realmente pertenciam aos negros

matacavalenses. Assim, a existência dos preceitos constitucionais chegou ao conhecimento

de algumas lideranças do Quilombo Mata-Cavalo, por meio de ONGs (Organizações Não

Governamentais), pesquisadores e políticos. Dentre as lutas registradas e motivadoras para o

levante dos direitos dos integrantes da comunidade Mata-Cavalo, conta-se que, no início da

década de 1990, um fazendeiro por nome Ideberto, apoiado por pistoleiros, avança

cotidianamente sobre a área do Seu Cesário para retirá-lo de lá, alegando ser o proprietário

daquele espaço.

Cansados das atrocidades cometidas pelo fazendeiro, tais como: ateamento de gado

nas roças, queima de plantas, matança de animais domésticos; o Senhor Cesário, juntamente

com seus filhos, por meio de seu compadre, procuraram o Centro de Direitos Humanos

69

Henrique Trindade14. A partir de então eles tomaram conhecimento dos direitos quilombolas

garantidos na Carta Magna e articularam-se com outros moradores do quilombo e com ex-

moradores que haviam sido expulsos.

O movimento de reocupação do território se deu em 1995, quando o Senhor Cesário

Sarat, quilombola de Mata-Cavalo, com apoio do Movimento Negro do Estado e do Centro

de Direitos Humanos Henrique Trindade, protocola um requerimento junto à Procuradoria

Geral do Estado de Mato Grosso, solicitando um levantamento técnico para instruir

procedimentos que garantam a emissão do título Dominial Definitivo aos matacavalenses,

tendo por base o disposto no Artigo 68 do Ato das Disposições Transitórias da Constituição

Federal/88 e do Artigo 33 do Ato das Disposições Transitórias da Constituição Estadual de

Mato Grosso. No requerimento, o interessado sugere o levantamento geológico da área, a

população local, sua cultura, costumes, forma de sobrevivência e outros itens pertinentes.

No entanto, em outubro do mesmo ano, o pedido do Senhor Cesário foi negado. A

Procuradoria, após analisar o documento, concluiu, por meio de parecer, que não havia

provas que comprovassem a posse das terras por remanescentes de quilombo há mais de 50

anos e não havia indícios de que a solicitação era coletiva, como provia a Constituição

Federal de 88, para emissão do Título de Domínio. O parecer sugeria que, por se tratar de

uma solicitação individual, o autor pleiteasse “usucapião”. Percebe-se que, mais uma vez, a

falta de documento aceito como “legal” impede a volta de parte das terras de Mata-Cavalo

aos seus legítimos donos.

Naquele contexto, segundo Silva (2014, p. 529), “a compreensão sobre as

comunidades quilombolas passava por vários entendimentos e dificuldades, como o conceito

de comunidades quilombolas, que avocava a prova de ocupação do território em 1888, data

da abolição da escravatura”. Concordamos com Leite (2010, p. 21) que “procurar

documentos, neste caso, é distanciar-se do direito dos herdeiros – direito que só pode ser

retirado de linguagem do grupo, pois ele não está registrado em nenhum papel”.

Após a Procuradoria negar o pedido do Senhor Cesário, para iniciar os trabalhos de

levantamento, para regularizar as terras dos Negros de Mata-Cavalo, em 1996, o Senhor

Cesário, juntamente com a Dona Tereza Arruda (minha avó); o Germano, da comunidade

Mutuca; Seu Tomás, do Aguaçú de Cima e Netão, de Mata-Cavalo de Cima, iniciaram o

14 Organização Não Governamental, o Centro de Direitos Humanos Henrique Trindade (CDHHT) foi criado a

partir das articulações do Movimento Popular em Cuiabá/MT nos anos oitenta, como instrumento mobilizador

de luta contra a violação sistemática dos direitos humanos no estado de Mato Grosso.

70

processo de chamamento dos matacavalenses que haviam se dispersado para retornarem ao

Quilombo e juntos reaverem as terras de seus ancestrais.

As famílias que retornaram, em meados dos anos de 1990, se aglomeraram, em

espécies de acampamentos, nas fazendas intrusas no Quilombo. Nesses locais, erguiam suas

casas geralmente utilizando matérias-primas como palha de babaçu, cipó e as madeiras

disponíveis no local. Essas edificações geralmente se localizavam uma ao lado da outra, para

que, juntas, as famílias pudessem estar seguras de possíveis ataques de fazendeiros, que ora

ou outra, com auxílio de jagunços, investiam contra os quilombolas na tentativa de expulsá-

los novamente do território.

Na organização para o retorno dos matacavalenses à terra herdada, eles contaram

com a ajuda de movimentos sociais que subsidiaram a luta com equipamentos, materiais e

apoio intelectual. Um dos movimentos sociais mais ativos foi da Federação dos

Trabalhadores da Agricultura (FETRAGRI). Algumas das famílias ligadas à FETAGRI

permaneceram no Quilombo, especificamente, nas comunidades de Aguaçú e Ribeirão da

Mutuca e, ainda hoje, em 2018, aguardam para serem removidas do território de

Mata-Cavalo, pelo Instituto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), para outras

localidades, visto que não são pertencentes aos troncos familiares do Quilombo, logo, não

possuem direito de usufruto do território.

O primeiro acampamento surgiu em dezembro de 1996, na Comunidade do Aguaçú,

em que os quilombolas que iam chegando de Várzea Grande, Cuiabá e Poconé se

aglutinaram com a intenção de pensar estratégias para retomada da terra herdada. Uma das

táticas adotadas pelos matacavalenses foi a fundação de uma associação para

organizadamente lutarem pelo interesse comunitário, como também atender às exigências

dos órgãos públicos, que observava a necessidade de um aparelhamento de caráter jurídico

como pré-requisito para a titulação da terra.

A associação fundou-se na perspectiva de assegurar direitos de cidadania aos negros

de Mata-Cavalo, garantidos nos preceitos constitucionais. Conforme Castilho (2011), a

partir da fundação da associação, a luta adquiriu um caráter institucional, mas, por outro

lado, segundo a autora, gerou inúmeros conflitos locais, como consequência da

hierarquização das pessoas, no contexto da criação das associações, próprias de toda e

qualquer sociedade.

Em 1997, após uma luta acirrada dos quilombolas, os quais já se encontravam

organizados em associações, juntamente com o Movimento Negro de Mato Grosso, e, em

cumprimento à Carta Magna do país, inicia-se, por parte do Governo do Estado, com a

71

edição da Portaria n.º 148/97 pelo Instituo de Terras de Mato Grosso (INTERMAT), um

estudo sócio-antropológico de Mata-Cavalo, a fim de averiguar se a área pleiteada se

enquadrava na categoria remanescente de Quilombo. O grupo de trabalho foi composto por

técnicos da Secretaria de Estado da Cultura/MT, por integrantes do Grupo de União e

Consciência Negra de Mato Grosso (Grucon), pela Fundação Cultural Palmares e pela

comunidade de Mata-Cavalo. Após visita do grupo de trabalho na comunidade, depois de

inúmeras conversas com os moradores mais antigos do lugar e visitas aos cemitérios, a

comissão concluiu, tendo como referência o conceito utilizado pela Associação Brasileira de

Antropologia (ABA), que se tratava de um quilombo e, portanto, com direito às terras

pleiteadas. Com base nesse parecer, em 23 de abril de 1998, o então Governador do Estado

de Mato Grosso (Dante Martins de Oliveira), por meio do Decreto n.º 2.205, reconheceu a

comunidade de Mata-Cavalo como quilombola. Em 1999, com base no mesmo parecer, a

Fundação Cultural Palmares certificou a comunidade de Mata-Cavalo.

Após o reconhecimento do território de Mata-Cavalo por parte do Estado de Mato

Grosso e pela União, as famílias quilombolas começaram a estender a ocupação pela área,

principalmente, na fazenda Romale, de ‘propriedade’ do Senhor Ideberto Martins, uma das

fazendas intrusas no território de Mata-Cavalo. Segundo relato dos moradores, um

acampamento foi montado no lado direito do córrego de Mata-Cavalo, próximo da Rodovia

MT 060. O acampamento ali montado, conforme memória dos matacavalenses, era parecido

com os povoados dos quilombos da era colonial, descritos por Clóvis Moura (2001), com

casas sendo uma ao lado da outra, feitas de folhas e galhos de árvores, com as plantações

nos arredores. Segundo o Senhor Natalino:

Quando os quilombolas retornaram, eles fizeram barracos um perto do outro, pra

não deixar os fazendeiros derrubar as casas e machucar os pessoal. A noite um

pouco dormia e outros ficavam acordados para vigiar se os pistoleiros não vinham

tacar fogo nos barracos. No começo, quando o pessoal entrou, os fazendeiros

ficaram muito bravos. Queria por que queria tirar o povo. (informação verbal, SENHOR NATALINO, 2018).

Com a ocupação, a reação contrária veio em tentativas de expulsão, como relembra o

Senhor Natalino (2018): “Ideberto pegava o trator, embarcava os pistoleiros, vinha fazia a

picada. Um pouco de pistoleiro na frente fazendo picada, outro pouco por detrás. E dois ou

três ficavam nas casas”. Para conter as investidas do fazendeiro, o Governo do Estado, na

época, por meio do INTERMAT, intermediou o conflito, conforme é relatado pelo Senhor

Natalino:

72

A briga dos fazendeiros era muita, que o governo teve que pagar para o Ideberto deixar o povo ficar. Mas não ficou muito bom, não. Porque nós ficamos

confinados num pedacinho de terra. Um monte de gente num pedacinho de terra.

Como que ia plantar? E a água, ficou muito difícil. Não tinha nem como pegar

palha e madeira para fazer os barracos, porque nós não podíamos sair daquele

pedacinho. Pra plantar então, nem se fala. (informação verbal, SENHOR

NATALINO, 2018).

Essa negociação entre o INTERMAT e o ‘proprietário’ da Fazenda Romale resultou

na criação de um comodato15, que, inicialmente, foi constituído em uma gleba de 10

hectares, passando depois para 30 hectares e, posteriormente, estendendo-se para 360

hectares. Este último abrangia a área entre a margem esquerda do córrego Mata-Cavalo e a

Rodovia MT 060, sentido Cuiabá - Poconé, na comunidade Mata-Cavalo de Baixo e se

estendia até a comunidade Mata-Cavalo de Cima.

No referido comodato, o fazendeiro recebe do Instituto de Terras de Mato Grosso

(INTERMAT) uma quantia referente ao “aluguel” das áreas e os quilombolas,

“beneficiados” pelo acordo, deveriam respeitar as normas previstas no mesmo, entre elas: a

proibição de construção de casas de alvenaria, a abertura de poços de água, o plantio de

culturas perenes e, principalmente, respeitar os limites descritos no acordo quanto a não

ocupação de outras áreas.

A realização do comodato, intermediado pelo Estado de Mato Grosso, nos mostra

que os direitos dos quilombolas, ainda hoje, são tratados da mesma maneira daqueles que,

no período da escravidão, não eram vistos como garantidos em sua integralidade. Tal

medida – do comodato - demonstrou verdadeiramente face controladora e repressiva do

Estado, com suas políticas simbólicas. O mesmo Estado que reconheceu a comunidade

quilombola, por força do Decreto n.º 2.205/1998, é o que retira sua dignidade, quando paga

ao fazendeiro para que os herdeiros da terra possam ter o direito de permanecer no seu

território, sem quase ou nenhuma dignidade.

Durante a vigência do Comodato, as limitações impostas causavam sérios problemas

aos quilombolas, como relatado acima pelo Senhor Natalino, em relação à pouca terra

disponível para o grande número de pessoas residentes no local, perto de 200 famílias: a

precariedade das moradias; a dificuldade no abastecimento de água potável; os

impedimentos para a extração de produtos do campo, cerrado, matas e córregos; os

15 Contrato de empréstimo de gleba de terras.

73

obstáculos para o plantio de lavouras de subsistência e criação de pequenos animais, bem

como a falta de acesso a outras políticas públicas necessárias ao ser humano.

A angústia vivida pela comunidade é desnudada pelo Senhor Natalino:

[...]. Aí chegou um dia, nós enjoados de viver nesse pedacinho, começamos a

tomar conta de outras áreas, porque tinha que roçar para plantar, onde nós

estávamos não dava para todo mundo, então juntamos todo mundo e entramos.

Esperamos os governantes resolver, não fizeram nada. A gente sabia que ia ter

problema com o fazendeiro, mas não tinha outro jeito. (informação verbal,

SENHOR NATALINO, 2018).

Revoltados com a incômoda situação do comodato, que limitava o acesso dos

quilombolas ao território, os matacavalenses, em meados de 1999, decidem rejeitar o acordo

do Comodato por acreditarem que a existência do mesmo protelaria a regulamentação das

terras e iniciam, então, a ocupação de novas porções de terras por todo o território, criando,

assim, uma situação de confronto com os fazendeiros, que começaram a fazer ameaças aos

quilombolas. Da violência privada, passou-se à judicialização, com a promoção, pelos

fazendeiros, de uma enxurrada de ações possessórias e queixas em delegacias, todas com um

pressuposto discursivo que consiste na criminalização com tentativa de conversão de

moradores em estranhos e invasores de seu próprio lugar.

De acordo com Castilho (2008), o INTERMAT considerava, no final dos anos 1990,

a questão fundiária de Mata-Cavalo como um processo muito complexo, pois, no

entendimento do órgão, além de existir de fato um conflito fundiário, havia também um

confronto de competência, travado entre o Estado Federativo e a União na resolução do

litígio.

Segundo a autora, o Instituto entendia que, apesar do artigo 68 do ADCT da

Constituição Federal de 1988 reconhecer a propriedade definitiva aos remanescentes das

comunidades dos quilombos, o processo de regularização dessas terras adquiria maior

complexidade quando o imóvel se localizava dentro dos domínios particulares, sendo esta a

realidade vivenciada pela comunidade Mata-Cavalo.

Conforme Castilho (2008), o Instituto de Terras de Mato Grosso ressaltou que os

juristas, nesse tipo de situação, devem fazer prevalecer o que determina a Constituição

Federal. No entanto, ela ressalta que os próprios juristas problematizam a questão ao apontar

que a Carta Magna não declara a nulidade dos títulos anteriores, colocando, dessa forma, em

confronto a propriedade particular e a dos quilombos, ainda que previstos

74

constitucionalmente. Enquanto prevaleceu o impasse jurídico, os quilombolas padeciam

todo tipo de privação de políticas públicas básicas como habitação, saúde e educação.

Em 2000, ainda com fundamento no art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais

Transitórias da CF/88, no art. 14, inciso IV, alínea c, da Medida Provisória n.º 2.049-20, de

29 de junho de 2000, e na Portaria n.º 447, de 02 de dezembro de 1999, do INTERMAT, a

Fundação Cultural Palmares emitiu, no dia 14 de julho, um Título de Reconhecimento de

Domínio, com plena força e validade de escritura pública, confirmando o domínio dos

matacavalenses, numa área de 11.722 hectares. Esse título foi emitido para a Associação

Quilombola de Mata-Cavalo, criada em 2000, para representar todas as comunidades do

território matacavalense.

A Fundação Cultural Palmares, também em julho de 2000, juntamente com

representantes dos quilombolas de Mata-Cavalo, encaminhou o título de domínio expedido

em favor dos matacavalenses para o Cartório do 1º Oficio de Várzea Grande, instituição

responsável por todos os registros de imóveis do município de Nossa Senhora do

Livramento - localização do Quilombo Mata-Cavalo - para procedimento de registro. No

mesmo dia, o Cartório de Várzea Grande devolveu o documento sem registrá-lo, justificando

que o mesmo não preenchia os requisitos mínimos para sua efetivação. Na nota de recusa, o

cartório também emitiu os trâmites e os documentos necessários para o procedimento do

registro.

Em 2001, foi publicado o Decreto n.º 3.912, que regulamentava as disposições

relativas ao processo administrativo para identificação dos remanescentes das comunidades

dos quilombos, bem como para o reconhecimento, a delimitação, a demarcação, a titulação e

o registro imobiliário das terras por eles ocupadas. Baseada nessa legislação, em 2003, a

Fundação Cultural Palmares e a Advocacia Geral da União apresentaram, novamente, o

título de domínio expedido em favor da comunidade Mata-Cavalo ao Cartório do 1º Oficio

de Várzea Grande, para o devido registro, porém, novamente, ele foi negado pelo cartório,

em face das mesmas alegações feitas anteriormente.

Dentre as alegações efetuadas pelo cartório para o não registro do título de domínio

estavam que o imóvel, objeto do Título de Reconhecimento de Domínio FCP n.º 007/2000,

não estava matriculado ou registrado em nome da parte outorgante, União Federal, nem da

sua delegada para o ato - a Fundação Cultural Palmares; a existência no perímetro de várias

matrículas e registros de imóveis com áreas de dimensões variadas, de propriedade de

terceiros, particulares, entre outros motivos.

75

Se, por um lado, o título reforçou os quilombolas na luta pelo seu direito às terras, por

outro lado, não significou o fim do conflito. Pelo contrário, intensificou ainda mais, uma vez que

o título de domínio em favor dos quilombolas, segundo a Fundação Cultural Palmares, garantia a

posse imediata das terras por parte dos mesmos, ou seja, significava a saída imediata dos não

quilombolas, intrusos no território, agravando os conflitos, pois os fazendeiros reagiram com

medidas judiciais para a retirada dos quilombolas da área, culminando com ações de despejos e

perda total de suas habitações, destruição das roças com tratores, colocação de gado nas roças,

causando a destruição das plantações, fogo nas residências, conforme pôde ser observado por

esta pesquisadora em inúmeros documentos da época.

As pessoas, que já tinham tão pouco, acabaram ficando sem nada, inclusive sem a

sua dignidade, pois muitas tiveram que ser abrigadas por parentes e vizinhos ou acabaram

indo habitar às margens da Rodovia MT 060. Ainda hoje essa realidade permanece, e temos

inúmeras famílias que continuam morando (ou sobrevivendo) em barracos de palhas à beira

da rodovia, à espera da regularização fundiária do território. Vejamos o relato que segue:

Quando Dona Tereza foi pra Brasília buscar o título, nós ficamos feliz demais.

Achamos que já i poder ocupar tudo o que é nosso. Mas passou o tempo e nada. O que aconteceu foi que os fazendeiros ficaram mais com raiva de nós e começaram

a fazer despejos e ameaçar nós. Eu lembro que teve uma vez que teve despejo em

três fazendas de uma vez só. Todos que moravam nesses lugares onde teve os

despejos foram tudo posto pra fora. As casas tudo derrubado. Ficaram sem lugar,

Um pouco veio aqui para área da escola, outros foram pra outros sítios e outros

foram embora pra cidade. Foram esperar resolver na cidade. (informação verbal,

SENHOR NATALINO 2018).

A mescla de discriminação, exclusão e preconceito vivenciada pelos quilombolas se

transforma em desigualdades, ou seja, falta do básico – necessário - para se viver com

dignidade. Abaixo, as figuras 7 e 8 mostram residências de famílias matacavalenses que

moram à beira da Rodovia MT 060, especificamente, no km 25, vítimas de expulsão de suas

terras, provocada por uma liminar judicial que autorizou o despejo dos moradores de uma

área reconhecida oficialmente como área quilombola.

76

Figura 8 - Moradia de quilombola à beira da estrada após despejo

Fonte: Acervo particular da autora.

Figura 9 - Moradia quilombola situada à beira da rodovia após despejo

Fonte: Acervo particular da autora.

Apesar de todas as dificuldades, discriminações e privações, os matacavalenses

continuaram sua luta junto aos órgãos governamentais, em busca do que rege a Constituição

Federal de 1988. Em 2002, eles reivindicaram junto ao Ministério Público Federal, ações em

defesa dos direitos já garantidos pelos quilombolas, haja vista que estavam sendo atacados

constantemente pelos fazendeiros, que continuavam insistindo na expulsão de mais famílias

de outras áreas quilombolas.

Essa reivindicação junto ao Ministério Público culminou em três Ações Civis

Públicas (ACP) ajuizadas na Justiça Federal, no final de 2002 e início de 2003, sob os n.º

2002.36.00.006620-8, 2003.36.00.008934, e 2003.36.00.007491-8, cujo objeto é o

reconhecimento do quilombo e sua titulação, cujo termo de doação da Sesmaria é a pedra

angular para a comprovação da posse histórica dos negros.

77

Essas ações resultaram, ao menos em parte, em ganho para os quilombolas, pois, nas

decisões, os matacavalenses ganharam o direito de permanecerem na posse de todas as três

propriedades envolvidas nas Ações Civis Públicas, com algumas restrições, como: manter

distância de no mínimo 500 metros das sedes das fazendas, conforme se depreende do trecho a

seguir transcrito, constante da decisão nos autos da Ação Civil Pública n.º 2002.36,00.6820, de

16/10/2002, que assim determinou: “o juízo a quo determina que os membros comunidade negra

devessem permanecer no espaço territorial onde vivem tradicionalmente há muitos anos,

preservando-se, no entanto, a sede da Fazenda do que se julga proprietário”.

Em novembro de 2003, o Decreto n.° 3.912/01, que regulamentava quanto às disposições

relativas ao processo administrativo para identificação dos remanescentes das comunidades dos

quilombos e para o reconhecimento, a delimitação, a demarcação, a titulação e o registro

imobiliário das terras por eles ocupadas, é revogado, pois, na referida norma, não se

comtemplava todos os territórios quilombolas, uma vez que só reconhecia aqueles que

estivessem ocupados pelas comunidades, ignorando situações de expropriações, por exemplo,

bem como não previa indenização. No mesmo ano, após reivindicação dos quilombolas, é

publicado o Decreto n.º 4887/03, que dispõe sobre a regulamentação do art. 68 do Ato das

Disposições Constitucionais Transitórias da CF/88.

O referido Decreto delega ao INCRA a incumbência de titular as áreas quilombolas,

função que outrora pertencia à Fundação Cultural Palmares. Essa nova legislação reacende a

esperança dos matacavalenses que, incansavelmente, buscam a posse definitiva de suas terras,

para, então, poderem cultivar seus sonhos de dignidade e paz, conforme relata o Senhor

Arnaldo:

Quando entrou o novo governo, parece que as coisas iam melhorar. As pessoas da

associação falaram que já ia resolver. O presidente já assinou. Ficamos muito

felizes, porque não ia mais ter despejo, nem fazendeiro perseguindo. Nós íamos

poder ter o nosso pedacinho de chão como era antigamente. Todo mundo reunido,

todos os negros. (informação verbal, SENHOR ARNALDO, 2018).

Diferente do Decreto anterior, o Decreto n.º 4887/03 é conhecido por efetivamente

regulamentar o procedimento, de competência atribuída ao INCRA, para identificação,

reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelas comunidades

quilombolas. Além disso, esse Decreto é responsável, também, por apresentar a definição de

maior consenso sobre comunidades remanescentes de quilombo – como sendo, de acordo

com seu artigo 2º, “grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória

histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de

78

ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida” (BRASIL,

2013).

Segundo a Fundação Cultural Palmares (2018), no que diz respeito ao processo

conduzido pelo INCRA, a demarcação e posterior titulação dos territórios ocorrem de

acordo com a Instrução Normativa n.º 57/200916, do INCRA, que esmiúça o procedimento

de identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas

por essas mesmas comunidades, após executado um conjunto de estudos que compõe

o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação do território quilombola (RTID), dentre

os quais estão o Relatório Antropológico de caracterização histórica, econômica, ambiental e

sociocultural; o levantamento fundiário; a planta e memorial descritivo do perímetro da área

reivindicada e o cadastramento das famílias.

Tão logo foi publicado o Decreto n.º 4.887/2003, que trata da regulamentação do

artigo 68 do ADCT/CF88, especificando os procedimentos para o reconhecimento e

titulação das terras de quilombo, os matacavalenses se organizaram e rapidamente

protocolaram o primeiro requerimento administrativo junto ao INCRA para tal finalidade. O

processo de demarcação e titulação do território de Mata-Cavalo foi iniciado pelo INCRA

em agosto de 2004, desta vez, envolvendo uma área de 14.700 hectares, e perdura ainda nos

dias atuais.

À medida que o INCRA avança nos procedimentos para regularização fundiária do

território e a legislação nacional e de Mato Grosso vão reconhecendo os direitos territoriais

dos quilombolas de Mata-Cavalo, políticas públicas, tais como: acesso à energia elétrica,

construção de escola, acesso ao crédito produtivo, dentre outros, vão sendo reivindicadas e

acessadas pela comunidade.

Com isso, a onda de violência também aumenta, sobretudo, após a abertura do

processo administrativo de reconhecimento e titulação no INCRA, uma vez que os

proprietários de terras inseridos no perímetro do quilombo também reivindicam a

legitimidade de sua propriedade. Ou seja, de um lado, o requerimento de reconhecimento do

território quilombola e, de outro, as mais diversas manifestações e ajuizamentos de novas

demandas de proprietários reivindicando o que entendem ser de direito.

Nesse período, as tensões vividas no quilombo eram tantas que chamaram a atenção

a nível internacional e, em 15 de agosto de 2004, o Relator Nacional para o Direito Humano

16 Disponível em: http://www.incra.gov.br/institucionall/legislacao--/atos-internos/instrucoes/file/243-

instrucao-normativa-n-57-20102009. Acesso em: out. 2018.

79

ao Meio Ambiente esteve em visita na comunidade de Mata-Cavalo para averiguar o que

acontecia no local. Como fruto das constatações, o relatório certificou que:

Enquanto a situação da área não é resolvida, há famílias inteiras morando em

barracos de palha a poucos metros do asfalto, entre a rodovia e a cerca de

fazendeiros que se apossaram da terra e impedem a entrada dos quilombolas.

Apesar de haver córregos na área cercada, as famílias são obrigadas a fazer um

poço na terra e dali tirar água contaminada para beber e preparar alimentos.

(DHESC Brasil, 2015, p. 22).

Os conflitos vivenciados em Mata-Cavalo, como a expulsão de famílias do quilombo

e a utilização da força policial para realização dos despejos dos quilombolas desnudam o

descaso do poder público com essas populações. Segundo Arroyo (2012), a morosidade da

justiça para reconhecer os direitos dos quilombolas revela que o Estado burocrático tenta

ocultar suas reais intenções sob o véu da benevolência e do paternalismo. Ainda sobre a

omissão do Estado, o autor descreve:

Perante a lei, as defesas da propriedade e da ordem prevalecem, consequentemente

se aprofunda a velha justificativa: não merecem ser reconhecido o seu direito a ter

direitos, porque ao lutarem por territórios e identidades se mostram contra ordem.

Logo, mostram não serem sujeitos de direitos porque ainda primitivos, bárbaros,

violentos, ameaçadores da ordem. Sobretudo irracionais e improdutivos.

(ARROYO, 2012a, p. 283).

Conforme Moreira e Candau (2007), uma vez compreendido como inferiores, fora da

lei, preguiçosos e invasores, também não gozam do completo acesso às políticas públicas

que contribuem para realizar a cidadania. Sobre a situação de morosidade do Estado, frente à

materialização dos direitos quilombolas, Rodrigues Held (2017) desvela:

A situação em que se encontram os quilombolas de Mata-Cavalo permite considerar que mesmo com a estrutura jurídica internacional e interna que

reconhece o direito humano ao território, com a organização do Estado brasileiro

em promover a política pública de reconhecimento e titulação das terras de

quilombo por meio das atividades desenvolvidas pela FCP e INCRA, com a

atuação do MPF nas ACPs e com todas as reivindicações das lideranças de

Mata-Cavalo, o obstáculo de maior significado é o conflito de interesses pela área,

uma vez que dezenas de particulares permanecem em disputa por um território que

é historicamente dos negros. (HELD, 2017, p. 77).

Segundo a supracitada autora, isso se dá porque, mesmo diante do reconhecimento

legal do território reforçado pela Constituição Federal de 1988, o Estado brasileiro não o

efetiva, uma vez que, ao tardar o processo de titulação do Quilombo Mata-Cavalo,

possibilita que conflitos agrários continuem existindo, que os moradores continuem sendo

80

amedrontados e o desenvolvimento econômico, social e cultural seja reprimido, mantendo os

matacavalenses no campo da invisibilidade e vulnerabilidade social.

A violência praticada pelos fazendeiros e posseiros interessados nas terras de

Mata-Cavalo é resultado da estagnação do INCRA e da ingerência que tais interesses

provocam nos processos de tomada de decisão. São 135 anos de expropriações e 25 anos de

espera pela regularização fundiária junto aos poderes públicos.

Convido vocês a virem comigo entender como está a vida dos matacavalenses no

território do Quilombo de Mata-Cavalo atualmente.

2.5 QUILOMBO MATA-CAVALO: ATUALMENTE

De acordo com o Instituto de Colonização e Reforma Agrária, vivem no quilombo

418 famílias (INCRA, 2018), distribuídas nas seis comunidades: Aguaçú, Estiva/Ourinhos,

Mata-Cavalo de Cima, Mata-Cavalo de Baixo, Mutuca, destaca-se que, apesar de a

comunidade Capim Verde também integrar o quilombo, atualmente, não existe nenhuma

família morando naquela localidade. Após a morte do Senhor João Gonçalo, líder daquela

comunidade, as famílias que ali residiam se dispersaram. Ainda de acordo com os

moradores:

Desde quando o INCRA iniciou trabalhar aqui até agora só uma área que foi

regularizada. Assim mesmo uma área pequena de duzentos e poucas hectares.

Assim mesmo porque estava correndo perigo de os quilombolas serem despejados.

Aí o Incra deu jeito e resolveu. As demais continuam do mesmo jeito, quilombola

morando, os fazendeiros também. (informação verbal, SENHOR NATALINO

2018).

Hoje não tem mais lugar quase para fazer roça, porque virou quase tudo pasto, a

terra ficou ruim. Agora de uns tempos para cá que parece que a terra vai voltar

para nós de novo. O povo tá lutando, mas até agora os fazendeiros ainda tão dentro

das terras. Já fomos a várias reuniões no INCRA, mas é só promessa, a terra que é

boa nada. Pra você ver de vez em quando os fazendeiros ainda tão fazendo

despejos nos quilombolas. Final do ano passado mesmo despejou um pouco de

gente. O pessoal perderam tudo, as casas, as plantações, as coisas foram tudo

jogado na beira da estrada. Uma tristeza, né? (informação verbal, SENHOR

ARNALDO, 2018).

As famílias quilombolas relatam, com indignação, que as ações dos policiais federais

envolvidos no cumprimento da ação são muito truculentas e, muitas vezes, impediam as

famílias matacavalenses de retirarem seus pertences, autorizando de imediato a destruição

das moradias. As imagens abaixo evidenciam claramente o que foi dito pelo Senhor

81

Arnaldo. Elas mostram o ocorrido no último despejo que houve na comunidade

Mata-Cavalo, em outubro de 2017.

Figura 10 - Imagem da sala de aula antes do despejo

Fonte: acervo particular da autora, 2017.

Figura 11 - Imagem da sala de aula após o despejo

Fonte: acervo particular da autora, 2017.

Figura 12 - Ao fundo, imagem de uma moradia antes do despejo

Fonte: acervo particular da autora, 2017.

82

Figura 13 - Imagem da casa da foto 12 após o despejo

Fonte: acervo particular da autora, 2017.

Figura 14 - Imagem dos pertences das famílias expulsas jogados na beira da estrada

Fonte: acervo particular da autora, 2017.

Andando nas terras do quilombo hoje, podemos observar que muitas das denúncias

feitas por Castilho (2011) ainda são realidades, pois a comunidade não possui o título

definitivo de suas terras e continuam a sofrer com ameaça de subtração e expropriação de

suas terras, uma vez que, mesmo com o processo de regularização em curso no INCRA,

alguns fazendeiros e posseiros continuam negociando as terras dos matacavalenses sem

nenhuma restrição.

Apesar de, em muitas áreas, os matacavalenses estarem protegidos por liminares

judiciais para permanecerem no local (caso que ocorre na fazenda Romale, Fazenda

Ourinhos, fazenda São Carlos), o medo ainda faz parte do cotidiano de muitas famílias, pois

os fazendeiros e os posseiros ainda continuam sendo os proprietários da documentação

83

oficial da terra. Segundo os moradores, as degradações ambientais da terra salientadas por

Castilho (2011) também continuam acontecendo atualmente. Segundo o Senhor Natalino

(2018) “eles continuam usufruindo as terras dos negros, porque tem fazendeiros, tem

posseiros que estão garimpando, tirando madeira, desmatando. Quando nós formos tomar

posse já está tudo estragado, tudo acabado”.

No território, a vida segue ainda muito precária, pois, apenas uma pequena parte das

famílias conseguiram acessar algumas das políticas públicas disponíveis à comunidade.

Geralmente as famílias beneficiadas são as que já se encontram no seu pedaço de chão,

conforme relatado pelo Senhor Natalino:

[...]. Muita coisa já melhorou. Hoje por exemplo não tem mais muita ameaça de

fazendeiro com pistoleiro. [...]. Hoje temos escola boa, grande. Muitas famílias já

tem seu pedacinho de chão, com casa, com luz elétrica, tem muitos que tem poço artesiano, já criam seus gadinhos. Tem gente que já tem até casa de material. Hoje

as estradas já são livres, não preciso mais andar com medo de pistoleiro nem

passar por debaixo da cerca. (informação verbal, SENHOR NATALINO 2018).

Segundo relato dos matacavalenses, nesses 23 anos passados, desde o início da

incursão dos quilombolas no território, passando pela certificação, até os dias atuais, houve

alguns avanços estruturais e culturais, mudanças significativas na comunidade que

possibilitam a melhoria de vida na comunidade. No entanto, eles alegam que a morosidade

na regularização fundiária e a falta de vontade dos governantes impedem o acesso de todas

as políticas públicas necessárias para garantir uma vida digna no quilombo.

O Quilombo Mata-Cavalo é, portanto, uma comunidade à espera. Espera esta que

acontece em meio a uma rotina de problemas de infraestrutura, como ocorre nos quilombos

em geral. Não há saneamento básico e posto de saúde; a água, geralmente extraída de poços,

é farta, mas não canalizada; muitos moradores, principalmente na época da seca, precisam

fazer longas caminhadas para pegar água nos cinco poços artesianos espalhados no

território; as estradas que cortam a comunidade são de difícil locomoção, por conta das

enormes crateras ocasionadas pelas fortes chuvas e a falta de manutenção; as moradias são

normalmente de madeira e palha e a instalação de energia elétrica ainda não está acessível a

todas as habitações. Abaixo, os tipos de moradias mais comuns no território matacavalense:

84

Figura 15 - Imagem de uma casa de alvenaria em Mata-Cavalo

Fonte: acervo particular da autora.

Figura 16 - Imagem de uma casa de telha e paredes de palha em Mata-Cavalo

Fonte: acervo particular da autora.

Figura 17 - Imagem de outra casa de telha com paredes de palha em Mata-Cavalo

Fonte: acervo particular da autora.

Para sobreviverem, os matacavalenses praticam agricultura itinerante, também

denominada de agricultura de queimada ou agricultura de coivara. A produção agrícola

geralmente é destinada ao consumo da unidade produtiva (da família e pequenos animais) e

também ao mercado. Frequentemente, eles plantam arroz, milho, mandioca, feijão (muito

pouco, devido ser bastante atacado por pragas e doenças) verduras (salsa, cebolinha, couve,

coentro), legumes (batata doce, cará, inhame, maxixe, abóboras, quiabo), frutas (melão

85

cuiabano, melancia, banana de fritar, banana-maçã, laranja, maracujá, goiaba, seriguela,

limão, mamão, abacaxi), sendo que parte dessa produção é destinada ao mercado e à

alimentação de animais. As famílias que já estão com seu pedaço de chão definido plantam

em áreas maiores o arroz, o milho, a mandioca, a banana de frita e a cana-de-açúcar.

Muitos dos matacavalenses ainda utilizam, assim como seus ancestrais, a fertilidade

natural do solo, que é cultivado por um período de dois e três anos e depois deixado se

recuperar as qualidades físicas e químicas do solo, sendo uma nova área preparada para ser

utilizada com lavoura, por meio da derrubada do mato, queimada, enleiramento e plantio

entre os tocos.

Por conta do desmatamento feito pelos fazendeiros, em algumas áreas, já está sendo

utilizado o sistema de gradeamento com trator, pois, na área desmatada, não é possível se

plantar sem a intervenção de grades para afofar a terra. A mão de obra utilizada na lavoura é

basicamente familiar e em muxiruns, podendo também haver contratação de mão de obra da

própria comunidade ou comunidades vizinhas.

Atualmente, a maioria das famílias quilombolas residentes no território criam suínos

e aves, que são destinados ao consumo doméstico e, eventualmente, ao mercado. As aves de

modo geral são criadas soltas. Os suínos são criados soltos ou presos em cercados e/ou

chiqueiros (cevas). A criação de bovinos, quando feita, é em pequena quantidade, devido ao

pequeno grau de capitalização das famílias quilombolas e também por causa da não

regularização fundiária de todo o território.

Hoje podemos observar que o trabalho assalariado ou a venda sazonal de mão de

obra são praticados por grande número de famílias matacavalenses, sendo essas atividades

uma importante fonte de recursos, pois a maioria não consegue sobreviver apenas com a

produção agropecuária, que é reduzida devido à baixa fertilidade de grande parte das terras,

bem como por viverem em pequenas áreas pela falta da regularização fundiária do

quilombo. Por esses motivos, as famílias quilombolas têm parte de seus membros residindo

e trabalhando fora custeando a manutenção dos familiares que moram no quilombo e que

participam diariamente da luta pela terra, garantindo desta forma o direito de toda a família

às terras do quilombo. As aposentadorias por idade ou invalidez também têm grande

importância na manutenção das famílias matacavalenses, sendo que, em alguns casos,

representam a única fonte de recursos para a aquisição de produtos destinados ao uso

doméstico e da unidade produtiva.

Mata-Cavalo apresenta uma rica agenda cultural. Algumas festas têm caráter

irreligioso, como as comemorações organizadas pela associação, os aniversários, a Festa da

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Banana, a feira cultural, realizada na escola em comemoração à Consciência Negra, a qual

promove a cultura – especialmente, a gastronomia, a dança e o artesanato – da comunidade.

De acordo com Geertz (2012, p. 9), a cultura consiste em “estruturas de significado

socialmente estabelecidas.”. Já Gomes (2003, p.75) delineia cultura como “vivências

concretas dos sujeitos ou como a variabilidade de formas de conceber o mundo, construídas

pelos seres humanos ao longo do processo histórico e social”.

Nesse contexto, discutir sobre a cultura quilombola significa considerar as lógicas

simbólicas construídas ao longo da história por um grupo sociocultural específico, nesse

caso, os ancestrais dos matacavalenses, oriundos da África e escravizados no Brasil. Para

Gomes (2003, p. 76), “[...] a cultura negra possibilita aos negros a construção de um ‘nós’,

de uma história e de uma identidade”.

Pereira (2017), ancorado em Vasconcelos et al (2010), afirma, contudo, que a cultura

quilombola só pode ser entendida num processo contínuo da troca, na relação com outras

culturas, criação e recriação, mudança, tensão e significação. Segundo o autor, desse modo,

a cultura possibilita a construção de uma identidade coletiva, da religiosidade, da dança, do

trabalho na roça, possibilitando, por meio desses elementos, revelar aspectos pertinentes aos

seus ancestrais.

Os estudos de Pereira (2017) nos possibilitaram compreender que, na comunidade de

Mata-Cavalo, os moradores ainda possuem esses elementos proeminentes relacionados à sua

ancestralidade, como é o caso do laço de parentesco que ali se estabelece. Assim, mesmo os

que não residem no território de Mata-Cavalo retornam, frequentemente, ora para visitar um

ente querido, ora para uma festa ou para um funeral, ora para ajudar nos movimentos na luta

pela terra, ou seja, mesmo os que não habitam têm um sentimento de pertença ao quilombo.

Nessa perspectiva, Geertz (2012) assevera que:

[...] e é sobre este "estar lá" que [...] ocorre a confirmação do indivíduo como parte

do mundo, [...] o mundo da vida cotidiana, sem dúvida em si mesmo um produto

cultural, uma vez que é enquadrado em termos das concepções simbólicas do fato

obstinado passado de geração, à geração, é a cena estabelecida e o objeto dado de

nossas ações. (GEERTZ, 2012, p. 127).

Apesar das transformações, ocorridas, principalmente, pela saída do território, por

conta das expropriações das terras, alguns fatores sociais persistem, tais como, os muxiruns,

o modo de preparar a terra para o plantio, as festas de santo realizadas por muitos

moradores. Conforme Moura (1999), esses momentos festivos permitem à comunidade

recriar e formar sua identidade cultural.

87

O calendário festivo de Mata-Cavalo é extenso. Além do glorioso São Benedito,

outras divindades são louvadas pela comunidade, como São Gonçalo, Senhor Divino, Nossa

Senhora Aparecida, São Sebastião, São Pedro, São João e Nossa Senhora da Conceição. São

inúmeras festas de santo, que acontecem de maneira descentralizada entre as famílias

quilombolas, como relata o Senhor Arnaldo:

[...] nós fazemos festas de Santo. Aqui mesmo eu faço a Festa de são Benedito.

Tem a reza, o erguimento de mastro, tem o cururu, a reza e dá o almoço pra quem

vem ajudar a rezar. O almoço é de graça, num paga nada. Tem outros também que fazem as festas aqui, tem a Dona Maria, ali...tem a filha de Tomás que faz a Festa

de Santo Antônio, esses aqui perto, mas no Mata-Cavalo de Cima tem várias

pessoas que fazem festa, tem Nezinho, Tem na Viúva de seu Chico, Na Mutuca

tem as festas, no Mata-Cavalo tem a Estevina filha de Finado Cesário que faz festa

de São Benedito e nas outras comunidades também. Tem festa o ano inteiro. Tudo

com janta, algumas têm o baile, também tem festa que serve o Chá com bolo, aí

tem francisquito, bolo de arroz, sempre tem linguiça encapada, licor, essas coisas,

né. (informação verbal, SENHOR ARNALDO, 2018).

As festas têm um significado muito importante para os negros. Segundo Moura

(1998), os negros escravizados, em suas festas, invocavam o poder dos deuses e dos santos.

Essas invocações, segundo ela, eram uma forma elementar de resistência para manter o

corpo vivo e transformar o terror e a tristeza em força, para sobreviver, para viver, para

resistir. Comparando as festas dos negros na era colonial com as festas realizadas no

Quilombo Mata-Cavalo, o sentido, ainda nos dias atuais, das festas nas comunidades rurais

negras, é uma forma de resistência e marca de sua persistência na luta pelos seus direitos.

Ainda de acordo com Moura (1998, p. 13-14):

A festa é uma trégua indecisa da luta: todos interrompem o confronto direto, o

trabalho, as atividades rotineiras para participar da celebração comum. As pessoas

procuram a transcendência, os pequenos desafios do cotidiano são esquecidos.

Pode-se fazer uma imagem da festa como um caleidoscópio no qual se refletem

vários aspectos da vida social.

[...]

[...] a festa se desenvolve, simultaneamente, em vários planos. Há um rito que

reivindica a sacralidade das origens e que está sendo atualizado. Ao mesmo tempo

há uma negociação do seu significado no presente, face às exigências do cotidiano, que obriga à sua reatualização. São mantidas práticas simbólicas e formas de

sociabilidade densa, ao mesmo tempo em que se disputam e definem funções de

autoridade e hierarquias sociais.

[...]

A festa [...] permite entrever as múltiplas relações que têm lugar numa micro

sociedade e os valores que assim ela explicita: do parentesco ao meio ambiente, do

calendário agrícola ao respeito aos mais velhos, da produção artesanal à história

88

dos ancestrais, da liderança feminina ao conhecimento das plantas, das relações de

afetividade aos valores humanos considerados fundamentais. Por esta razão, a

festa, com seus ritos e símbolos, revela os costumes, os comportamentos, os gestos

herdados e aponta ao mesmo tempo para as negociações simbólicas entre essas

comunidades negras e os grupos com os quais interagem [...]. (MOURA, 1998, p.

13-14).

Moura (1998) entende que essas festas religiosas nas comunidades atuam como

formas de transmissão e reafirmação de valores nessas comunidades. Segundo a autora, é

uma maneira de expressão da identidade do grupo e da sua luta pelos valores intrínsecos à

comunidade, reforçando esses valores no interior do território e reafirmando-os para os de

fora. As festas no Quilombo Mata-Cavalo, portanto, reúnem parentes e amigos para

confraternizações, brincadeiras e vivências que podem configurar momentos

importantíssimos de reafirmação da identidade dos matacavalenses, fato este que pode ser

retratado pelas figuras 18 e 19 que seguem.

Figura 18 - Imagem do Cururu em uma festa de santo no Quilombo Mata-Cavalo

Fonte: acervo particular da autora.

Figura 19 - Preparo do Jantar em festa de santo no Quilombo Mata-Cavalo

Fonte: acervo particular da autora.

89

Baseando-nos na dinâmica das relações, atualmente, estabelecidas no Quilombo

Mata-Cavalo, podemos dizer que a identidade quilombola dos matacavalenses está em plena

reformulação, o que, segundo Araújo (2008, p. 90), “está sendo construída pela atual

conjuntura social, econômica e política”, marcada pelo processo de reconhecimento da

comunidade como quilombola, que, segundo Hall (2013), só ocorre com luta e resistência.

Silva (2002), comungando do entendimento de Hall (2013), ressalta que o conjunto

dessas manifestações corrobora no que concerne à formação da territorialidade negra dessa

comunidade, pois essas tradições culturais vão se constituir num elemento importante na

definição positiva da identidade negra matacavalenses, propagando a memória africana, suas

crenças, traços e lutas. Segundo o autor, o povo da comunidade, ao tomar posse da cultura

negra, usa isso como pressuposto da transformação de uma cultura resistente em uma cultura

de resistência do grupo, que buscar atingir ambicioso objetivo cultural, social, educacional,

político e econômico, já que prima pela ordem organizacional coletiva.

Diante das narrativas dos anciões, a história aqui descrita nos possibilita inferir que

muitos avanços foram galgados desde o retorno dos matacavalenses para o território até

hoje, entretanto, há ainda muitos entraves que dificultam o acesso a uma melhor qualidade

de vida por parte dos quilombolas de Mata-Cavalo. Dentre eles, está o acesso aos serviços

públicos, tais como: saúde, pavimentação das estradas, saneamento básico, transporte,

segurança, emprego, educação e, principalmente, a regularização fundiária do território.

Ao que tudo indica, a situação fundiária no Mata-Cavalo ainda é uma questão

política sem definição a curto prazo, haja vista que, de acordo com os próprios

matacavalenses, após 14 anos de abertura de processo de regularização fundiária pelo

INCRA, apenas uma área foi regularizada até o momento. Em visita ao INCRA/MT, obtive

a informação no setor responsável pelos serviços vinculados à regularização fundiária de

quilombos que existem processos de várias áreas que se encontram intrusas no perímetro do

quilombo que já estão prontas para serem ajuizadas na justiça, todavia, a falta de recurso

para regularização fundiária no órgão impede o impetramento da ação. Segundo o técnico do

INCRA/MT, para ajuizar as ações na justiça e pedir a emissão de posse da área em favor dos

quilombolas, o INCRA precisa ter disponível o recurso financeiro que o permita realizar tal

ação.

Enquanto isso, os matacavalenses seguem com suas lutas, suas reivindicações junto

aos órgãos públicos, em busca da regularização fundiária das terras herdadas de seus

ancestrais, conforme se verificam nas imagens 20 e 21.

90

Figura 20 - Imagem da reunião dos matacavalenses com a equipe da Superintendência do INCRA/MT

Fonte: acervo particular da autora.

Figura 21 - Moradores do Quilombo Mata-Cavalo protestando por seus direitos no centro da cidade de

Cuiabá/MT

Fonte: acervo particular da autora, 2017.

91

CAPÍTULO III - A EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA: A HISTÓRIA

DA EDUCAÇÃO DE MATA-CAVALO E SEUS CONTEXTOS

Neste capítulo, objetivo descrever e contextualizar a história da educação no

Quilombo Mata-Cavalo. Inicialmente, retrato a luta histórica dos matacavalenses por

escolarização. Posteriormente, apresento a Escola Estadual Professora Tereza Conceição

Arruda na atualidade, suas condições físicas e estruturais. Para atender a esses objetivos,

dialoguei com Arroyo (2012a; 2012b), Castilho (2011), Freire (2016, 1987, 1992), Carvalho

(2016), e decisões do INEP (2015) dentre outros.

3.1 A LUTA HISTÓRICA DO POVO DE MATA-CAVALO POR ESCOLARIZAÇÃO

As principais ações para as escolas quilombolas passam a constar na legislação em

âmbito federal, a partir de 2004, com a promulgação das Diretrizes Curriculares Nacionais

para Educação das Relações Etnicorraciais e para o Ensino de História e Cultura

Afro-Brasileira e Africana e, no estado de Mato Grosso, a Educação Quilombola é

mencionada oficialmente, em 2006, no Plano Estadual de Educação, convertido na Lei n.º

8.806/2008, porém a luta dos matacavalenses por educação inicia-se na década de 1940,

tendo o Senhor Antônio Mulato, como principal protagonista.

Antônio Mulato, neto de africanos escravizados, analfabeto, habitante rural

quilombola desde o seu nascimento, relatou que os matacavalenses sempre acreditaram que,

por meio da educação, poderiam construir uma história escolar para seus descendentes,

diferente de suas histórias e das histórias de seus pais e de seus avós.

Foram desafiados a desobedecerem e desestabilizarem um sistema colocado há

décadas e consolidado como inalterável, lutaram bravamente, enfrentando muitos

obstáculos, e implantaram a primeira sala de aula na comunidade de Mata-Cavalo na década

de 1940.

Essa sala de aula, segundo relatos do Senhor Mulato, foi implantada na comunidade

quando seus filhos e de outros moradores já estavam em idade escolar e não havia na região

lugar onde pudessem estudar. Realidade que não existia só em Mata-Cavalo, mas em grande

parte da zona rural do estado brasileiro, nos anos 40. Conforme Silva (2014), havia

aglomerados populacionais formados por sítios e fazendas, distribuídos por todo o estado,

92

dentre eles Mata-Cavalo, que não tinham acesso à escola. Para que as crianças dessas

localidades tivessem acesso à escola, um dos fazendeiros, com a ajuda de outros moradores,

construía em sua propriedade uma sala de aula e contratava uma professora.

Especialmente em Mata-Cavalo, Seu Antônio reivindicou junto ao prefeito de Nossa

Senhora do Livramento - na época, o Senhor Emiliano Monteiro da Silva - uma sala de aula

na sua comunidade, para que seus filhos e parentes pudessem estudar, conforme relato

abaixo:

Eu fui à venda de Maneco do Vadô. Emiliano Monteiro chegou lá. Estava

Emiliano e Dona Estevina, a dona da venda. Oi Seu Emiliano! Será possível de o

senhor arrumar uma escola para mim, lá no Mata-Cavalo? A irmã dele tomou

conta dizendo: Oh! Emiliano você é Prefeito! Vamos arrumar escola no sítio.

Vamos arrumar a escola desde hoje. Foi assim (...), ele arrumou um caderno e um

lápis para eu tirar nome das crianças, de pai, de mãe. Aí eu saí e arrumei. Arrumei

trinta e três crianças. (informação verbal, SENHOR ANTÔNIO MULATO, 2018).

Nota-se que o Senhor Antônio Mulato vislumbrava na educação, um meio para se

libertar da situação desumana a que foram submetidos desde o período colonial. Ele era

consciente, como observado por Freire (2016a), que a liberdade não é recebida de doação,

ela é conquistada, por meio de uma busca permanente.

Assim, conquistada a primeira sala de aula na comunidade, vieram outras barreiras

para a sua implantação: a falta de espaço e mão de obra qualificada, ou seja, um lugar com

estrutura onde os estudantes se acomodassem para serem escolarizados, bem como a

disponibilização de um professor que pudesse ministrar as aulas. Inicia-se uma nova batalha,

em busca do sonho de escolarização dos matacavalenses.

O Senhor Antônio relata que caminhou ora a pé, ora a cavalo, percorrendo longas

distâncias, para acessar as casas em busca do espaço para implantar a sala de aula, mas,

devido às precariedades das estruturas das moradias, os matacavalenses não puderam

receber a sala em suas casas, então, ela foi implantada na residência do Manoel Monteiro,

“Manequinho”, que havia adquirido um pedaço de terra no Mata-Cavalo, por meio de

compra, e cedeu um cômodo para que a professora ministrasse as aulas aos quilombolas e

aos filhos dos fazendeiros da região.

A professora destinada a trabalhar no quilombo era oriunda da cidade de Nossa

Senhora do Livramento, situada a 15 km da comunidade. Era branca e tinha estudado até o

quarto ano primário. Essa realidade, presente na maioria das salas de aulas rurais, é

denunciada por Arroyo (2003), quando ele descreve, que não existe escola para o filho das

93

famílias das camadas mais pobres e para os moradores da roça, a não ser, se consideremos

‘escola’ como local de transmissão de saber ordenado, “uma casinha perdida num canto da

roça, no quintal da casa da professora, na sacristia, num galpão” (ARROYO, 2003, p. 40).

Em Mata-Cavalo, segundo relatos do Senhor Antônio Mulato, a sala de aula era um

cômodo, construído com paredes de barrote (madeira coberta com barro), coberta com

palhas de babaçu e o piso de chão batido, medindo, aproximadamente, 4x4 m. As crianças se

sentavam em bancos de madeiras inteiriços.

Não havia mesa para apoiar os materiais, os alunos desenvolviam as atividades com

o caderno no colo. A falta de estrutura adequada para as escolas rurais é evidenciada em

diversos estudos. O trabalho de Silva (2015, p. 532), por exemplo, aponta por meio de fontes

documentais que, “apesar de ter criado inúmeras escolas rurais em 1941, o governo de Mato

Grosso não as provia com estrutura física e pedagógica”. Castilho (2011) também revela que

a existência das escolas-casas e ausência de estruturas básicas nas mesmas não é somente

uma realidade de Mata-Cavalo, mas ocorre em diversas comunidades rurais e nos bairros

mais pobres da zona urbana ainda hoje.

A justificativa para o não provimento das mesmas, segundo Silva (2015), era o fato

de que o ensino nas escolas rurais era considerado sem qualidade e que a dificuldade de

acompanhamento especializado e fiscalização dessas escolas que se localizavam muito

distante das cidades, muitas vezes, sem nenhum acesso aos meios de comunicação, agravava

tal situação. Porém Arroyo (2003, p. 41) salienta que o fracasso não está nas salas de aulas

não serem adaptadas, “mas por estarem tão adaptadas, tão iguais, tão carente e miserável”,

quanto à situação dos estudantes que as frequentam.

Além da falta de estrutura, os matacavalenses também se depararam com outra

barreira na busca da educação formal: o preconceito e a discriminação racial, conforme

relata Seu Antônio Mulato:

[...] Cira [a professora], foi escolher. A escola é para esse, para esse. Você vai

embora. Apolinário meu filho chegou em casa: você brigou lá, que não teve escola para você? Não, não briguei. Uai por que você não estudou. A professora mandou

embora. Montei no cavalo. Cheguei na escola. O que foi que meu filho não tem

escola para ele. (...) eu é que sei, agora vou dar escola para esse monte de criança.

Pegou um papel, botou um papel. Manequinho, ela e eu. Pegou um papel, zaz, zaz,

zaz. É para esse que eu vou dar escola. Nem um preto ela não pôs. (informação

verbal, SENHOR ANTÔNIO DE MULATO, 2018).

A fala do Seu Mulato revela toda aflição sofrida pelo homem negro ao buscar a

escolarização, pois, apesar da iniciativa de implantar a escola tivesse partido da comunidade,

94

por conta do preconceito racial, os filhos dos matacavalenses foram expulsos da escola pela

professora, que carregava consigo a lógica racista da sociedade em que foi socializada

(CASTILHO, 2011).

Entretanto, não nos espanta que tais atitudes discriminatórias acontecessem, pois,

pesquisas realizadas com docentes vêm evidenciando a presença de formação ineficiente e,

quase sempre inexistente, para tratar da educação étnico-racial e, como agravante, o

professor não consegue distanciar da imagem negativa imposta ao negro no período da

escravidão. Novamente, a intervenção de Seu Antônio Mulato, em favor da educação dos

matacavalenses, foi fundamental.

[...]. Eu falei: eu sendo dono da escola, a senhora escarrerea [mandar embora] meu

filho! Hoje mesmo eu vou dar parte para o prefeito, que a senhora está escolhendo.

(...). Não, não. Voltou, reuniu os pretos de novo. É sério”. (informação verbal, SENHOR ANTÔNIO MULATO, 2018).

Atitudes como essa relatada pelo Senhor Mulato, demonstra, segundo Pinto (1987, p.

26), a vontade da aquisição da educação formal pelo povo negro como uma “consciência

racional das qualificações requeridas pela ocupação”, deixando clara a percepção da

importância da educação como ferramenta na ascensão do negro e a pretensão de conquistá-

la para eles e para seus filhos. Castilho (2011) reforça que pesquisas recentes no campo da

educação têm buscado desnudar o discurso do senso comum de que as famílias das classes

mais pobres, como os matacavalenses, não se interessavam pela educação de seus filhos.

Essa primeira sala de aula funcionou por pouco tempo, pois o Senhor Manoel

Monteiro, o “Manequinho”, dono das terras onde a sala de aula funcionava, juntamente com

outros fazendeiros, passaram a perseguir os moradores de Mata-Cavalo, com a intenção de

usurpar os seus territórios, como de fato ocorreu, segundos documentos oficiais que se

encontram no Processo Administrativo em andamento no INCRA de Mato Grosso, para

regularização fundiária do Quilombo Mata-Cavalo. A insensibilidade do Senhor Manoel

Monteiro em relação à educação das crianças matacavalenses é explicado por Freire (2016a,

p. 64), que afirma “que a generosidade do opressor é expressa falsamente e jamais ultrapassa

isso”.

A atitude do fazendeiro em fechar a escola encontra explicação na fala do Senhor

Natalino que revela:

[...] ninguém sabia ler. Aí vinham aqueles grileiros de terras, se eles arrumavam

um local de dez, vinte hectares cercavam trinta, quarenta hectares. Aí os donos das

95

propriedades das terras (os quilombolas) não sabiam ler, iam trabalhar com eles.

Eles (os fazendeiros), como tinham estudos, passavam as turmas de negros para

traz. (informação verbal, SENHOR NATALINO, 2018)

O fechamento da sala de aula de Mata-Cavalo, somado às pressões feitas pelos

fazendeiros locais para expropriar as terras dos negros, fizeram com que dezenas de famílias

deixassem o quilombo, seja para fugir dos ataques, da violência, das condições sociais

precárias, seja visando oportunidades de escolarização para seus filhos e trabalho nos

centros urbanos – principalmente em Cuiabá, Várzea Grande e Poconé.

As poucas famílias que resistiram no quilombo se viram obrigadas a procurar novos

locais para estudar. Nessa busca, segundo o Senhor Antônio Mulato, os moradores de

Mata-Cavalo receberam a visita de uma senhora de São Paulo, que estava percorrendo as

comunidades rurais para implantar o programa denominado de “escolas radiofônicas”,

financiado pelo Governo Federal, voltado à alfabetização de adultos no meio rural.

Segundo Borges (2013), esse projeto, iniciado nos anos de 1950, após as pesquisas

do IBGE da época, demonstraram que 50,6% da população brasileira eram analfabetas, e

contava com a participação da igreja católica, jovens estudantes seminaristas e

universitários, engajados na alfabetização dos povos do campo. Em Mato Grosso, como

descreve Borges (2013), a responsável pela implantação da escola radiofônica era a Rádio

Difusora Bom Jesus de Cuiabá.

Conforme o Sr. Antônio Mulato:

[...] A mulher que veio de São Paulo, aí na cidade, veio com ordem de fazer escola

para o povo do sítio. Ela estava morando lá na Santana (comunidade vizinha).

Veio e falou não tem algum que pode ser professora para dar escola no sitio? [...]

Tem a Tereza de Antônio. [...] amanhã você vai à Difusora lá na cidade. (...) aí, foi

de lá ela já veio com o diploma. [...] já começou no Mata-Cavalo dando escola, daí

ela mudou na Estiva dando escola. (informação verbal, SENHOR ANTONIO

MULATO, 2018).

Podemos observar que, apesar da frustação com a primeira sala de aula, desativada

poucos anos após a sua implantação, a luta pela escolarização não foi abalada. Pelo

contrário, ela foi perseguida com muito mais força. Isso nos leva a concordar com Arroyo

(2003, p. 12) quando descreve que “a história de cada sala de aula, de cada escola que se

abre nas comunidades, nos povoados, é feita com muita luta pelos seus moradores”. Nessa

época, a comunidade já contava inclusive com alguém do seu convívio diário para ministrar

as aulas.

96

Segundo relatos, os moradores, então, se reuniram e já construíram um espaço,

mesmo que precário, para abrigar as aulas. O Senhor Natalino (2018) conta que “a escola era

feita de palha. Antigamente que eu estudava era de palha”.

Conforme Castilho (2011), as famílias matacavalenses, apesar de toda precariedade

da sala de aula e dos instrumentos aos quais a professora tinha acesso para ministrar as

aulas, consideraram a instalação dessa segunda sala de aula no quilombo uma vitória, pois a

ausência de escolas na comunidade representava um sofrimento às famílias, que, muitas

vezes, tinham que enviar seus filhos para a cidade, longe da convivência familiar e, outras

vezes, sendo maltratados pelas famílias que os acolhia.

Conforme o Senhor Antônio Mulato, nesta segunda sala de aula instalada na

comunidade, a filha dele, Tereza Conceição Arruda, passou a ministrar aulas na

comunidade, permanecendo até 1980, período quando passou a dar aulas na cidade de Nossa

Senhora do Livramento.

Com a ida da professora Tereza para a sede do município, em Mata-Cavalo, as aulas

passaram a ser desenvolvida pela filha da Dona Tereza, a professora Armerinda Conceição,

que iniciou o exercício do magistério em 1981, na então Escola Municipal Ponte da Estiva,

uma sala de aula que fora implantada pela Prefeitura Municipal de Nossa Senhora do

Livramento, encerrando a era do projeto da Rádio Difusora.

Conforme relato dos matacavalenses, em 1983, devido ao crescimento da demanda

de crianças para a escolarização, é criada, na comunidade da Ponte da Estiva, outra sala de

aula, denominada Escola Estadual Afonso de Campos Maciel, que tinha como professora,

Lúcia Conceição, também filha da Dona Tereza e neta do Senhor Antônio de Mulato. O

registro do funcionamento dessas duas escolas se encontra nos arquivos da Secretaria

Municipal de Educação de Nossa Senhora do Livramento-MT.

Segundo relatos dos moradores de Mata-Cavalo, as duas escolas, tanto a municipal,

quanto a estadual, funcionavam no mesmo turno, num mesmo espaço, construídas pelos

próprios moradores, com a mesma estrutura: uma sala de pau a pique, com palhas de babaçu

na cobertura e nas paredes, sendo dividido por uma parede, construída com palha que

babaçu, que servia como divisória. De um lado ficava a professora Lúcia com os discentes

do primeiro ano do ensino fundamental e, do outro lado, a professora Armerinda com as

demais turmas, ou seja, o segundo, o terceiro e o quarto ano do ensino fundamental, que

eram as turmas que as salas atendiam. Os móveis, segundo as professoras, eram cadeiras

velhas e bancos improvisados de madeira.

97

Além da responsabilidade na construção da sala de aula, as professoras também eram

responsáveis pela limpeza do local e pelo preparo do lanche, quando havia. As matrículas

dos alunos também eram obrigação das professoras.

Essas duas escolas funcionavam na comunidade Ponte da Estiva, uma das

comunidades que compõem o Quilombo Mata-Cavalo, porém elas atendiam estudantes de

todas as demais comunidades do quilombo. Esses estudantes, em sua maioria, caminhavam

muitos quilômetros para chegarem à escola, pois nessa época não contavam com o auxílio

de transporte escolar, como relembra o Senhor Natalino:

[...]. Tinha a escola, só que era longe. Hoje em dia, você vê, aluno tem de tudo.

Escolar, tem ônibus, tem tudo para levar. Antigamente era doze, treze, catorze

quilômetros para chegar na escola. [...]. Nós íamos e voltávamos todos os dias.

(informação verbal, SENHOR NATALINO, 2018).

De acordo com dados do arquivo da Secretaria Municipal de educação de Nossa

Senhora do Livramento, a Escola Municipal Ponte da Estiva funcionou até 1989. A partir de

1990, continuou em funcionamento apenas a Escola Estadual Afonso de Campos Maciel, a

qual terminou suas atividades em 2003.

Para prosseguir a história da educação escolar em Mata-Cavalo é preciso retroceder

ao ano de 1996, período em que houve um forte movimento de reocupação do território

pelos matacavalenses, que, após a Constituição Federal de 1988, para garantir aos

“remanescentes de quilombos” a regularização fundiária de suas terras, começaram a se

organizar, principalmente, entre os que deixaram o território na década de 1940, no intuito

de reaverem as suas terras.

As famílias que retornaram, em meados de 1996, se reuniram numa espécie de

acampamento, numa das fazendas intrusas no quilombo, onde erguiam suas casas

geralmente utilizando matéria-prima como palha de babaçu, cipó e as madeiras disponíveis

no local. As casas se localizavam uma ao lado da outra, para que, juntas, as famílias

pudessem estar seguras de possíveis ataques de fazendeiros, que por vezes arremetiam

contra a comunidade quilombola na tentativa de reaver a posse do território.

Com as famílias organizadas no acampamento, surge, então, a necessidade de

escolarização das crianças, visto que a educação é considerada pelos quilombolas como

fundamental no fortalecimento da luta para conquista do território. Como a escola da

comunidade Estiva ficava distante do local onde as famílias estavam acampadas e não

oferecia condições para acomodar todas as crianças, as lideranças quilombolas

98

reivindicaram junto à Secretaria Municipal de Educação do Município de Nossa Senhora do

Livramento/MT e junto à Secretaria de Educação do Estado de Mato Grosso uma sala de

aula para funcionar no acampamento.

Após muitas reuniões e discussões, a Secretaria Municipal de Educação de

Livramento implanta, em julho de 1996, a sala de aula denominada Escola Municipal São

Benedito (vide figura 1 desta pesquisa). A sala localizava-se na região central do Quilombo

Mata-Cavalo, na comunidade de Mata-Cavalo de Baixo. Inicialmente, ela era uma sala de

pau a pique, coberta com folha de babaçu. Contava apenas com uma professora, oriunda da

comunidade que tinha formação em magistério, e a turma era multisseriada, ou seja,

estudavam crianças de séries diferentes numa mesma turma.

Com o avanço da luta pela conquista do território quilombola cresce também o

número de famílias, que se espalham por todas as comunidades do quilombo, bem como o

número de salas de aula. Após a implantação da sala de aula, em 1996, em Mata-Cavalo de

Baixo, em 1998, a Secretaria Municipal implantou uma sala de aula na comunidade de

Aguaçú de Cima; no ano de 2000, foi implantada uma sala de aula na comunidade de

Mata-Cavalo de Cima e, em 2001, foi implantada uma sala de aula na comunidade da

Mutuca. Todas as salas de aulas implantadas nas comunidades funcionavam com turmas

multisseriadas, em instalações físicas precárias, com a presença de um professor, que, além

do trabalho docente, desempenhava as funções de limpar e preparar a merenda.

A presença de diversas salas de aulas espalhadas no quilombo se explica pela

distância de uma comunidade para outra e pela força política que a escola representa na luta

dos matacavalenses na conquista de seus direitos. Esse ideal dos matacavalenses é

comungado por Silva (2014), quando afirma que a escola é a alusão mais importante e um

dos meios mais significativos para difundir e consolidar novas discussões e perspectivas, a

fim de dar conta da inclusão de homens e mulheres historicamente invisibilizados e

intencionalmente encoberto na historiografia brasileira.

Contudo, essas salas de aulas espalhadas no território continuaram não atendendo

todas as demandas de escolarização da comunidade, pois elas só ofereciam os anos iniciais

do ensino fundamental. As crianças interessadas em cursar os anos posteriores tinham que

deixar a comunidade, pois, só a partir de 2002, os educandos passam a contar com transporte

escolar. Mesmo com a oferta do transporte escolar por parte do órgão público, as

dificuldades para os estudantes eram muitas, pois, como o ônibus não adentrava a

comunidade, os estudantes tinham que acordar muito cedo, andar em média 10 km a pé, ora

99

sobre o sol escaldante, ora debaixo de chuva, até a Rodovia MT 060, para pegar o transporte

que os levava para as escolas da sede do município.

Porém a saída das crianças para estudar em Livramento não era vista com bons olhos

pelos familiares, pois, na cidade, elas sofriam muita discriminação e outras influências

negativas para sua formação. Então, os quilombolas, por meio da associação, passam a

reivindicar uma escola com estrutura melhor na comunidade, onde pudessem ter inclusive o

ensino médio, assegurando que as crianças recebessem formação sem deixar o território.

Após intensa busca junto à Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso/Seduc,

em 2008, é implantada, na comunidade da Mutuca, umas das comunidades do quilombo, a

Escola Estadual Rosa Domingas de Jesus, que foi autorizada pela Seduc/MT a trabalhar com

turmas do ensino fundamental ao ensino médio. Na época, a comunidade Mutuca contava

com uma estrutura física melhor que as outras comunidades, pois, com o auxílio financeiro

de uma ONG, a associação daquela localidade construiu, em 2002, uma escola de alvenaria,

com uma estrutura razoável, com 03 salas de aula, banheiro e cozinha.

A partir da criação da escola Rosa Domingas, em 2008, os estudantes das salas de

aulas existentes nas comunidades passam a estarem reunidos na mesma escola, inclusive os

que saíam para as escolas da sede do município. Com a nucleação da escola, o quilombo

passa a constar, mesmo que de forma muito precária, com o auxílio do transporte escolar

para o deslocamento dos estudantes de suas casas até o local da escola.

Com a Escola Estadual Rosa Domingas, termina-se o ciclo das salas de aula

espalhadas no quilombo, porém antigos problemas existentes naquela realidade continuaram

presentes na nova escola. Uma delas são as turmas multisseriada, uma situação que

incomoda os moradores desde sempre. O incômodo dos matacavalenses em relação às salas

multisseriada é compreensível, pois, conforme observam Cardoso e Jacomeli (2010), essas

salas são historicamente consideradas inferiores, sem perspectivas de melhoria. Daí a luta

dos quilombolas para mudar esse cenário.

A inexistência de biblioteca, sala de professores, refeitório e a falta de formação

adequada de seus professores também são obstáculos a serem vencidos por esse povo que

busca a sua liberdade por meio da educação. Essa realidade é testemunhada no trabalho de

Castilho (2011), a autora evidencia a falta de material pedagógico diversos, como livros,

TV, vídeo, internet, revistas educativas etc.

Castilho (2011) evidencia que a falta desses recursos pedagógicos desestimula a

criatividade dos professores, o que torna o currículo educacional pobre, com conteúdo

desconexo da realidade, num currículo eurocêntrico, influenciado pelo livro didático, único

100

recurso pedagógico o qual têm acesso, reproduzindo o modo de ensino tão criticado por

Freire (2016a, p. 130), denominada como “prática bancária”, apenas transferindo conteúdo.

Mas, numa comunidade que reconhece a escola como espaço importante na construção de

conhecimento, o currículo escolar por ela constituída precisa dar espaço para essas

percepções. Isso significava repensar o conjunto das práticas educacionais.

A comunidade havia tomado consciência de que as mudanças nos rumos de sua

história passavam também pela educação. Mas como fazer o diferente sem formação, sem

informação? Como transformar a educação em ferramenta de luta por dignidade, como

acreditam os bisavós, pais e avós matacavalenses? Concordemos com Arroyo (2003), que

não é possível ensinar para a liberdade, para a participação ativa, para desalienação, com os

mesmos materiais pedagógicos, os mesmos livros, os mesmos métodos pedagógicos com

que ensinaram a ignorância e a subalternização.

Cientes das problemáticas existentes em relação à qualidade da educação que seus

filhos estavam recebendo, os quilombolas de Mata-Cavalo, juntamente com os professores e

as organizações sociais da comunidade, buscam junto às entidades dos movimentos negros e

movimentos quilombolas o apoio para implantar um currículo que não apenas decodificasse

letras e reproduzisse os conteúdos dos livros didáticos, reforçando a ideologia opressora,

mas uma escola cuja prática pedagógica tenha como seu ponto de partida os próprios

quilombolas, sua história, seu modo de vida, pois, parafraseando Freire (2016c), somente

assim, a partir da reflexão da própria realidade, os matacavalenses podem mover-se,

transformar-se, “superando a falsa consciência do mundo” (FREIRE, 2016b, p. 130).

Conforme Silva (2014, p. 24), “é desse lugar, da autodefinição do grupo, que se deve partir

para dialogar com as comunidades quilombolas e interagir com seus processos

organizativos”.

Não restam dúvidas das muitas dificuldades que precisam ser enfrentadas para se

implementar uma proposta de educação que se propõe a romper com questões tão

emblemáticas como as desigualdades raciais, de gênero, autonomia, participação, dicotomia

urbana e rural e emancipação de uma comunidade quilombola (SILVA, 2014).

É fato que o modelo educacional tradicional que, por anos, acompanhou a

escolarização dos matacavalenses permitiu e reforçou o domínio das classes dominantes e,

ainda hoje, funciona como um “sistema de classificação social, política, econômica e

cultural, inseparável de uma classificação étnica, sexual e racial” (ARROYO, 2012a, p.151),

em que, mesmo com o fim do colonialismo, a colonialidade permanece, mantém e

naturaliza, com sua pedagogia abissal, a desigualdade social.

101

Contudo, essa história de dominação e subordinação nunca ocorreu separada das

histórias de lutas e resistências quilombolas que, ainda hoje, segue buscando a romper com a

colonialidade. Nessa busca por reafirmar a pedagogia quilombola, os sujeitos lutam pela

reparação histórica, por políticas afirmativas, por melhores escolas e condições dignas de

vivência para produção de vida (ARROYO, 2012a).

Nesse sentido, a Escola Estadual Professora Tereza Conceição Arruda vem se

tornando como lugar de resistência, e um dos movimentos adotados pelos matacavalenses

foi mobilizar a comunidade quilombola para que todos sejam sujeitos na construção do

Projeto Político Pedagógico (PPP) da escola, valorizando as práticas e as experiências, a

sabedoria dos anciões, os saberes da terra, os saberes aprendidos no trabalho e a

ancestralidade (Parecer CNE/CEB n.º 16/2012, p. 49). Pois o PPP constitui a identidade de

uma escola, dos seus sonhos, de suas expectativas, do seu passado e do seu futuro.

A partir da construção do PPP, considerando os saberes que partem da vida da

própria comunidade, dos problemas por ela enfrentados cotidianamente, o grupo vem unindo

forças e vem encontrando, no dia a dia, caminhos para projetos e ações que contribuam para

superar as pedagogias de dominação.

Um fato que chama atenção e tem contribuído para o projeto de superação da

pedagogia da dominação é o sentimento de pertença dos moradores e de membros da escola

com o Quilombo Mata-Cavalo. Na perspectiva de Oliveira (2005), o território é um espaço

de identidade, que inscreve limites de tudo que expressa noção de pertencimento, ou seja, o

sentimento é a sua base. Isso nos permite afirmar que os processos educativos ocorrem em

todos os espaços, sendo também o território um lugar educativo relacionado com a cultura e

a história de um povo.

Importante ressaltar a importância da socialização e do trabalho pedagógico realizado

na Escola Estadual Professora Tereza Conceição Arruda, a partir de 2012, para a tomada de

consciência dos educandos para o desenvolvimento da pertença, do orgulho de ser negro e

quilombola e, principalmente, para o fortalecimento da luta e resistência dos

matacavalenses. Nesse local, são trabalhadas as histórias de luta vividas pelos ancestrais, de

modo que nas atividades há uma intencionalidade político-pedagógica a fim de provocar a

reflexão sobre a condição de opressão vivenciada pelo grupo.

Os projetos que a escola tem desenvolvido vêm contribuindo com a formação dos

jovens, visto que são voltados para a valorização da cultura, combate ao racismo e

valorização da identidade. Um dos projetos que merece destaque e que é muito aderido pelas

crianças e jovens é o projeto de dança Afro. Esse projeto tem contribuído para a elevação da

102

autoestima dos estudantes matacavalenses, bem como o fortalecimento da cultura

quilombola. As músicas e danças trabalhadas trazem referências culturais ligadas à

ancestralidade e se constitui em uma forma de luta contra a discriminação e o preconceito.

Outro projeto bastante relevante desenvolvido na escola é a Feira de Artes, que

acontece todos os anos no mês de novembro, na Semana da Consciência Negra, com a

apresentação de trabalhos desenvolvidos no decorrer do ano.

Sempre com temática relacionada à questão racial, a Feira de Artes, que tem o

objetivo de valorizar a cultura negra e quilombola, é desenvolvida na escola durante o ano

todo por meio de estudos e pesquisas sobre o tema escolhido e conta com a participação dos

moradores do quilombo.

Além da luta cotidiana para que a Escola Estadual Professora Tereza Conceição

Arruda seja um local que possibilite o aprendizado da cultura e dos saberes quilombolas, os

docentes também lutam para se qualificarem, pois entendem que ocupar esse espaço de

saber e poder, qualitativamente, é mais uma forma de fortalecer a comunidade.

A formação de professores quilombolas tem um peso singular para a materialização

da educação quilombola, prevista nas legislações pertinentes à modalidade e que tanto a

comunidade almeja. Assim, segundo Silva (2012, p.87), a tarefa de formar professores vai

além das questões teóricas e metodológicas e da condução do “saber” e do “conhecimento

válido” – é também formar “intelectuais orgânicos”. E para que isso ocorra, segundo a

autora, “é preciso incorporar o que emerge na sociedade contemporânea em relação à

diversidade brasileira como parte do currículo, e não apenas como uma tarefa das (os)

pesquisadores (as) desses temas”.

Até aqui intentei descrever e contextualizar a história da educação no Quilombo

Mata-Cavalo. Inicialmente, descrevi sobre a luta histórica dos matacavalenses por

escolarização, com a luta do Senhor Antônio Mulato, na década de 1940, até a

materialização da Educação Escolar Quilombola. A seguir, apresento a Escola Estadual

Professora Tereza Conceição Arruda na atualidade, suas condições físicas e estruturais.

3.2 A ESCOLA ESTADUAL PROFA. TEREZA CONCEIÇÃO ARRUDA

A Escola Estadual Professora Tereza Conceição Arruda, lócus desta pesquisa, está

localizada às margens da Rodovia MT 060, Km 25, na comunidade Mata-Cavalo de Baixo e

parece estar se constituindo como centro político, cultural e educacional do território

103

matacavalenses, por conta de promover cotidianamente o encontro de estudantes de todas as

comunidades do quilombo.

Figura 22 - Imagem aérea da Escola Estadual Profa. Tereza Conceição Arruda

Fonte: https://www.google.com.br/maps/place.

A Escola Estadual Professora Tereza Conceição Arruda passou a ser caracterizada

pela Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso – Seduc/MT como Unidade de

Ensino de Educação Escolar Quilombola, no ano de 2011, quando ainda recebia o nome de

Escola Estadual Rosa Domingas de Jesus, que funcionou na sede da Associação da

Comunidade da Mutuca até junho de 2012.

Após a inauguração da nova sede na comunidade Mata-Cavalo de Baixo, inaugurada

em 12 de julho de 2012, pelo Governo do Estado de Mato Grosso e oficializada a partir de

outubro do mesmo ano, por meio do Decreto n.º 1387/12, a escola passa a denominar

Professora Tereza Conceição Arruda, em homenagem a professora Tereza, uma das

precursoras da educação na comunidade.

104

Figura 23 - Imagem da entrada principal da Escola Estadual Professora Tereza Conceição Arruda

Fonte: acervo particular da pesquisadora, 2018.

A professora Tereza Conceição Arruda, patronesse dessa escola e minha avó, nasceu em

28 de novembro de 1937, no Quilombo Mata-Cavalo. Filha de netos de africanos escravizados,

perdeu sua mãe quando tinha apenas cinco anos de idade e, desde muito pequena, teve que lutar

incansavelmente para conseguir um lugar digno na sociedade.

Tereza Conceição foi babá, lavadeira e, com muito esforço e dedicação, se tornou

professora. Na verdade, foi a primeira professora do Quilombo Mata-Cavalo. Iniciou o exercício

do magistério como professora leiga, profissionalizando-se tempos depois. Aposentou-se dando

aulas na sede do município de Nossa Senhora do Livramento. Casada, mãe de doze filhos

biológicos e dois adotivos, sempre incentivou seus filhos a buscar a educação formal, por

acreditar na educação como ferramenta para se libertar das amarras do preconceito e de outros

resquícios impregnados e impostos aos negros decorrentes da escravidão colonial.

Após se aposentar como professora, dedicou sua vida pela causa quilombola, tanto no

que diz respeito à regularização fundiária do território quanto na busca por políticas públicas

para melhoria de vida dos matacavalenses.

Sua principal bandeira de luta em relação às políticas públicas foi pela construção de uma

escola com infraestrutura adequada na comunidade, visto que as escolas que existiam no

quilombo, conforme já descrito anteriormente, eram de estrutura precária de madeira, coberta

com palha de babaçu, onde funcionavam turmas multisseriadas.

105

Tereza Conceição Arruda morreu em 03 de março de 2011, deixando, em construção, a

escola da qual era patronesse. Não teve tempo de ver seu sonho concretizado, mas partiu com a

certeza que seu povo iria ter um lugar digno para estudar.

Sem dúvidas, ela foi uma mulher à frente do seu tempo, que não mediu esforços para

batalhar pelos seus ideais, na busca constante por uma sociedade justa e igualitária. Tereza

partiu, mas deixou seu legado de coragem, persistência e certeza de que o povo negro é capaz.

Sua história é inspiradora, além de ser motivo de orgulho para sua família e para todos nós

matacavalenses.

Atualmente, segundo a equipe gestora, a Escola Estadual Professora Tereza

Conceição Arruda atende 468 estudantes que residem no quilombo, sítios e fazendas

próximas, incluindo nas quinze salas anexas. Essas salas atendem estudantes da Educação de

Jovens e Adultos (EJA), do 1º Segmento do 1º ano do ensino médio e estão localizadas em

sua maioria no Quilombo Mata-Cavalo e, em menor número, em comunidades

circunvizinhas como Tarumã, Pedro Lavrinha e Capão Redondo.

Sobre os aspectos físicos e estruturais, a Escola Estadual Professora Tereza

Conceição Arruda, atualmente, conta com onze salas de aula, equipadas com cadeiras

escolares, quadro de giz, ventiladores de teto e aparelhos de ar condicionado. Das onze salas

de aulas, quatro delas são subdivisões de salas, ou seja, uma sala foi dividida ao meio com

auxílio de divisórias, transformando-se em duas salas.

Adentrando nas salas de aulas, observei que, onde funcionam as turmas de educação

infantil e as séries iniciais, existem muitos cartazes espalhados nas paredes, cuidadosamente

confeccionados para a alfabetização, com o compromisso de uma visão positiva da criança

negra, pois continham neles imagens de crianças de várias cores e raças, com predomínio

das crianças negras. No exterior das salas de aula, também podemos observar a presença de

imagens que trabalham a imagem positiva dos negros e quilombolas. Inclusive, nas paredes

da entrada da escola existem inúmeras pinturas de personalidades negras das comunidades,

feitas pelos próprios estudantes. Essas imagens revelam a conscientização dos docentes de

onde a escola que trabalham está inserida e mostra também que os professores

compreendem que a escola pode estabelecer uma ponte entre os conhecimentos trabalhados

nos livros didáticos e sua relação com as experiências dos educandos.

Continuando a cartografia da escola, aferimos a existência de uma sala destinada à

Direção Escolar; uma sala destinada à Secretaria Escolar e uma sala destinada à

Coordenação Pedagógica. Destacamos que a sala da Coordenação funciona num ambiente

106

que é resultado da subdivisão da Secretaria, efetuada com divisórias, pois a sala

originalmente destinada à Coordenação está sendo utilizada como sala de aula.

Segundo a equipe gestora da escola, essas improvisações foram necessárias porque o

número de salas existentes originalmente não abriga todas as turmas que a escola tem

atualmente. Ainda segundo as gestoras, já foram feitas várias solicitações de ampliação de

salas de aulas junto à Seduc/MT, mas até o momento não obtiveram êxito.

A escola conta também com uma sala ampla destinada aos professores, dois

banheiros, um refeitório, que conta com cadeiras e mesas que são as ideais para refeição,

que, além de servir como local para alimentação dos educandos, também é usado para as

apresentações das atividades práticas desenvolvidas nos projetos da escola.

Figura 24 - Imagem do refeitório da escola abrigando uma atividade extraclasse

Fonte: cedida do acervo da escola.

Não possui cantina, porém contém uma cozinha bem equipada, com dispensa e área

de serviço; além de uma sala destinada ao almoxarifado e dois banheiros para deficientes. A

higiene existe nos dois banheiros grandes, um para meninos e outro para meninas, com

subdivisões, o das meninas ainda possui chuveiro para qualquer necessidade.

Na escola possui, ainda, uma quadra poliesportiva com cobertura, que é usado,

principalmente, para as atividades de Educação Física e também é um local onde as

professoras levam os educandos da educação infantil e das séries iniciais para fazer

recreação, onde, nesse momento, as professoras se aproximam mais das crianças, em uma

relação de afetividade. A quadra esportiva também é usada pela comunidade nos finais de

semana para atividades esportivas, como futebol e voleibol.

Existe também a Casa da Cultura, construída num modelo tradicional da

comunidade, com paredes de pau a pique, cobertas com barro e telhado de palha de babaçu,

107

destinada como laboratório para as aulas das Ciências e Saberes Quilombolas. Na casa da

Cultura, ficam expostos todos os artesanatos produzidos na escola, bem como os acervos

históricos da comunidade.

Figura 25 - Parte do acervo histórico da Casa da Cultura

Fonte: cedida do acervo da escola.

No pátio aberto da escola, existem goiabeiras, cajueiros e mais três árvores, onde,

comumente as crianças conversam, penduram e brincam. Existe uma área do pátio que é

destinada para a horta escolar, onde acontece a maioria das aulas da disciplina de Práticas

Agrícolas Quilombola. A escola é toda murada, sendo a sua área total de um hectare.

As salas de aulas são limpas, algumas são amplas, outras são menores, há carteira

para todos os alunos, há cadeira e mesa para o professor e todas as salas possuem armário

para guardar materiais didáticos. Essas salas menores são resultantes da subdivisão de sala

com divisória, contudo, devido a subdivisão, todo o som feito numa sala é ouvido na outra,

dificultando a concentração dos estudantes. Na sala da turma do sétimo ano matutino, por

exemplo, os estudantes são acomodados um muito perto do outro e ainda tendo que conviver

com todos os ruídos da sala ao lado. Todas as salas possuem ventiladores e

ares-condicionados, porém nem todos os ventiladores e aparelhos de ar-condicionado

estavam funcionando no período de observação, o que deixava algumas salas muito quentes,

principalmente, no período vespertino.

A escola não possui laboratório de informática, a sala originariamente construída

para abrigar o laboratório funciona como sala de aula. A escola não possui biblioteca, possui

apenas um espaço na sala de professores onde são guardados, em armários, muitos livros

108

didáticos e também paradidáticos, que alunos e professores usam para fazer pesquisa. Em

nenhuma disciplina, segundo relatos da equipe gestora, o livro didático é suficiente para

atender a todos os estudantes, sendo o giz branco e a lousa praticamente as únicas

ferramentas de trabalho que os professores possuem.

A escola funciona em dois turnos: matutino e vespertino. No período matutino, a

escola atende nove turmas distribuídas entre ensino fundamental (sete turmas) e a educação

infantil (duas turmas). As duas turmas da educação infantil são de responsabilidade

financeira da Secretaria Municipal de Educação de Nossa Senhora do Livramento/MT,

sendo a Escola Estadual Professora Tereza Conceição Arruda apenas a cedente do prédio

para funcionamento das turmas. As outras sete turmas do ensino fundamental do turno

matutino estão organizadas da seguinte forma: uma turma do 1º ano, uma turma do 2º ano,

uma turma do 3º ano, uma turma do 4º ano, uma turma do 5º ano, uma turma do 6º ano e

uma turma do 7º ano.

No período vespertino, a escola atende nove turmas distribuídas entre o ensino

fundamental, ensino médio e a Educação de Jovens e Adultos. As turmas do fundamental

estão organizadas da seguinte maneira: uma turma do 8º ano e uma turma do 9º ano. O

ensino médio está assim organizado: uma turma do 1º ano, uma turma do 2º ano e uma

turma do 3º ano. A Educação de Jovens e adultos possui turmas do ensino fundamental e do

ensino médio. As turmas da EJA fundamental estão dispostas da seguinte forma: uma turma

do 2º segmento 1º ano e uma turma do 2º segmento 2º ano. As turmas da EJA ensino médio

estão organizadas da seguinte maneira: uma turma do 1º ano e uma turma do 2º ano. O total

de discentes atendidos na sede nos dois períodos soma 243.

A Escola possui 15 salas anexas que funcionam em comunidades no Quilombo

Mata-Cavalo e também nas comunidades circunvizinhas. Nessas salas anexas são atendidas

turmas do ensino fundamental EJA. Nas salas anexas possuem, no ensino fundamental: uma

turma do 1º segmento 1º ano, oito turmas do 1º segmento 2º ano, quatro turmas do 2º

segmento 1º ano e duas turmas do 2º segmento 2º ano. As aulas nas salas anexas acontecem

no período vespertino. O total de estudantes atendidos nas salas anexas soma um total de

225.

109

Figura 26 - Imagem do interior de uma das salas anexas que funciona no quilombo

Fonte: acervo cedido pela escola.

O quadro de servidores que atuam na Escola Estadual Professora Tereza Conceição

Arruda é formado por 46 pessoas. Desse total, 34 integram o corpo docente, sendo que

dezoito atuam na escola-sede e quinze atuam nas salas de aulas anexas. Os demais

integrantes estão divididos entre um diretor; uma coordenadora, dois técnicos

administrativos e oito apoios administrativos educacionais. Convém ressaltar que, desse total

de servidores, apenas nove professores e uma auxiliar de manutenção de limpeza não são

quilombolas, os demais todos são quilombolas de Mata-Cavalo.

De acordo com o perfil dos servidores quilombolas, fica evidenciado que a

contratação de servidores dessa escola está atendendo a contento o que preconiza as

Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Escolar Quilombola, quando assevera, por

meio da Resolução n.º 08 de 20 de novembro de 2012:

Art. 8: [...] IV - presença preferencial de professores e gestores quilombolas nas

escolas quilombolas e nas escolas que recebem estudantes oriundos de territórios quilombolas;

[...]

Art. 39. § 2º A gestão das escolas quilombolas deverá ser realizada,

preferencialmente, por quilombolas [...].

[...]

Art. 48 A Educação Escolar Quilombola deverá ser conduzida, preferencialmente,

por professores pertencentes às comunidades quilombolas. (BRASIL, 2012).

O fato de a maioria dos professores serem da comunidade evita a rotatividade desses

profissionais. Isso é um aspecto muito positivo para o desenvolvimento de projetos

110

pedagógicos e outras atividades escolares, desde que os profissionais se comprometam com

a instituição e com a comunidade escolar.

A maioria dos professores está lotada com 30 horas aulas, sendo dez delas destinadas

à hora atividade. As horas atividades são realizadas na própria escola no horário em que o

professor não se encontra em sala.

Todos os professores que atuam na Escola Estadual Professora Tereza Conceição

Arruda possuem especialização na sua área de formação já concluída. Esses dados são

significativos e denotam expressivos avanços em termos de formação inicial e continuada de

professores em territórios quilombolas, pois, segundo Arroyo (2003), a formação de

professores, especialmente, para aqueles que atuam nas escolas rurais, em sua maioria, tem

se apresentando de forma insuficiente e deficiente. Ainda conforme o autor, os professores

rurais, geralmente, são membros da própria comunidade e, assim como os demais

moradores, enfrentam diversas barreiras que os impedem de dar continuidade aos estudos e

reunir meios e condições para ofertar um trabalho mais qualificado.

Dos 34 professores que atuam na escola, apenas quatro são efetivos da rede estadual

de ensino, os demais são todos contratados temporariamente. Segundo as informações do

IPEA (2015), de acordo com os dados do Censo escolar 2013, pode-se constatar que pouco

mais de 50% dos docentes que atuam em escolas quilombolas possuem vínculo efetivo, os

demais mantêm contratos temporários com o poder público. Ainda segundo o IPEA (2015),

os contratos de trabalho precário da rede pública têm sido considerados como um dos

problemas mais agravantes do sistema educacional do Brasil, visto que os profissionais

contratados temporariamente recebem menos; possuem pouca segurança jurídica como

empregados, além do fato de serem desvinculados das redes em qualquer tempo, sem aviso

prévio.

Essa não é uma realidade apenas da Escola Estadual Professora Tereza Conceição

Arruda ou das escolas quilombolas, conforme Carvalho (2016), essa é uma realidade que

alcança muitos profissionais da educação em todo o estado de Mato Grosso. A vida do

profissional contratado é desumana, segundo Carvalho (2016), essa insegurança,

instabilidade, competitividade, provoca, inclusive, discórdias pela disputa da vaga. Por essas

e outras situações, é que se explica as lutas dos movimentos quilombolas pela realização de

concursos públicos específicos para profissionais quilombolas na educação.

Ante a apresentação, a informação aqui descrita nos possibilita enxergar que muitos

avanços foram galgados no campo da Educação Escolar Quilombola. Percebe-se que muitas

mudanças positivas ocorreram desde o início da escolarização na comunidade de

111

Mata-Cavalo, porém, os moradores se deparam com muitas barreiras que, ainda, precisam

ser vencidas para se alcançar uma escolarização de boa qualidade. Dentre eles, os que

tangem aos aspectos físicos, pois carece de muitas melhorias nas estruturas governamentais

responsáveis pela educação, para que, de fato, a legislação para educação quilombola se

realize no chão das escolas, com projetos pedagógicos e formativos propícios à

especificidade quilombola, cabendo-nos ainda ressaltar, a necessidade urgente de melhorias

no transporte escolar.

112

CAPÍTULO IV – POLÍTICAS PÚBLICAS E A EDUCAÇÃO ESCOLAR

QUILOMBOLA NO CONTEXTO ESCOLAR

Neste capítulo, intenciono retratar as Políticas Públicas para a Educação Escolar

Quilombola. Para tanto, início a discussão das especificidades quanto à Educação Escolar

Quilombola. Posteriormente, apresento diálogos viáveis voltados ao campo do currículo na

perspectiva crítica, expondo elementos inspiradores de reflexões sobre os processos de

exclusão e silenciamentos que permeiam o acesso à educação no Brasil e, em específico, nos

quilombos. Sucessivamente, trago contribuições teóricas alusivas às categorizações dos

saberes docentes, integrantes da base desta pesquisa. Também será tecida breve discussão

sobre a formação de professores e práticas pedagógicas.

4.1 POLÍTICAS PÚBLICAS PARA EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA

Organizadas a partir da resistência e reação à escravidão, as comunidades

quilombolas lutam pelos seus direitos e para manter vivas suas manifestações culturais, seus

saberes tradicionais que resistem de geração em geração. Características essas que fazem

parte de um conjunto de observações a serem feitas na construção de uma política

educacional, falando a partir de um quilombo, que, segundo Nunes (2001):

É na lógica de relação de coletivo, de concepção de escrita para além de uma

formação letrada, porque se fala de um lugar – o quilombo – para além de um

espaço físico, que aqui nos subscrevemos para refletir sobre a educação e as

relações raciais, tendo em vista crianças, adolescentes e jovens pertencentes às

comunidades de quilombos. (NUNES, 2001, p. 39).

Porém, conforme Carvalho (2016), a educação realizada nos territórios quilombolas

esteve, por muitos anos, abarcada nas políticas da Educação Rural, sem nenhuma política

pública que considerasse as suas especificidades.

Todavia, a pressão do movimento do negro e do movimento quilombola modificou

essa propositura e potencializou a conquista de um espaço próprio para essa modalidade de

ensino. Segundo o IPEA (2015), ainda que a educação nos quilombos estivesse diluída na

educação rural, inclusive comungando com alguns princípios e questões em comum, há

113

elementos distintos que diferenciam a Educação Escolar Quilombola da educação rural, tais

como: os direitos étnicos que envolvem a memória, ancestralidade e a territorialidade.

Conforme Carvalho (2016, p. 85), as mobilizações tecidas no bojo dos movimentos

quilombolas e do movimento negro fizeram com que “fosse delineado um movimento de

discussões sobre mudanças no modelo de ensino para as escolas das comunidades

quilombolas”.

Conforme Moura (2011), a busca por uma educação diferenciada se faz presente nas

reivindicações dos movimentos quilombolas desde a Marcha de Zumbi dos Palmares contra

o racismo, pela cidadania e pela vida, ocorrida em 1995, no 1º Encontro Nacional

Quilombola, realizado em Brasília. A educação que respeitasse as diferenças dessas

comunidades também estava posta no Plano Nacional de Implementação das Diretrizes

Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais, aprovado em 2009

(IPEA, 2015).

Assim, conforme Carvalho (2016):

[...] os movimentos sociais assumem o papel fundamental de fomentar lembrança

aos esquecimentos e tornar audíveis os silenciamentos, a que as comunidades

quilombolas foram submetidas, provocando a implantação de legislações

educacionais específicas que atendessem às suas necessidades. (CARVALHO,

2016, p. 87).

O IPEA (2015) destaca que o marco de inclusão da temática da diversidade na

educação foi a Conferência Nacional de Educação em 2010 (CONAE 2010). Assim, ao

definir as modalidades da educação básica, reconhece a Educação Escolar Quilombola como

uma das modalidades educacionais, conforme supracitada no artigo 41:

Seção VII

Art. 41. A Educação Escolar Quilombola é desenvolvida em unidades

educacionais inscritas em suas terras e cultura, requerendo pedagogia própria em

respeito à especificidade étnico-cultural de cada comunidade e formação específica

de seu quadro docente, observados os princípios constitucionais, a base nacional

comum e os princípios que orientam a Educação Básica brasileira. Parágrafo único. Na estruturação e no funcionamento das escolas quilombolas, bem como

nas demais, deve ser reconhecida e valorizada a diversidade cultural. (Seção VII,

Resolução nº 4, CEB/CNE, 2010).

De acordo com Carvalho (2016), os movimentos sociais a partir de suas ações,

motivaram a promulgação de legislações, especialmente importante para a educação das

relações étnico-raciais, no geral, e particularmente para a educação quilombola, quais sejam:

114

[...] alteração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação nº 9.394, de 1996, com a

inserção dos artigos 26-A e 79-B, referidos na Lei nº 10.639, de 2003;

promulgação do Decreto Nº. 4.887, no ano de 2004, do Presidente Luiz Inácio

Lula da Silva, que regulamentou os procedimentos para titulação das terras

ocupadas pelas comunidades quilombolas, de que trata o artigo 68 do ADCT;

promulgação da Resolução CNE/CP nº 1/2004, que define Diretrizes Curriculares

Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de

História e Cultura Afro-brasileira e Africana. (CARVALHO, 2016, p. 86).

No ano de 2010, também foi publicada a Resolução n.º 4/2010, do Conselho

Nacional de Educação, que definiu as DCNs (Diretrizes Curriculares Nacionais) para a

educação básica, incluindo a Educação Escolar Quilombola como uma de suas modalidades.

A partir daí, verifica-se o aumento de debate sobre o tema, com a realização de seminários

nacionais e regionais, que culminou com a criação, no âmbito do CNE, de uma comissão

responsável pela elaboração das DCNs para a Educação Escolar Quilombola, com a

participação de representantes dos quilombos.

Das muitas lutas tecidas pelo movimento negro e quilombola, surge a Resolução n.º

08 do CNE, homologada em 20 de novembro de 2012, que estabelece as Diretrizes

Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola na Educação Básica. Segundo

Carvalho (2016), as Diretrizes curriculares são consideradas um dos marcos de luta do

movimento, por consolidar a Educação Escolar Quilombola como uma modalidade de

ensino. Essa legislação vem para difundir e consolidar as novas abordagens e perspectivas a

fim de dar conta da inclusão de negros e quilombolas, de seus saberes e fazeres, desses

sujeitos historicamente invisibilizados e intencionalmente ocultados na historiografia

brasileira no campo da educação escolar.

É a Educação Escolar Quilombola que aponta as questões pioneiras para se pensar a

educação específica para o povo dos quilombos, até então não vista de forma clara. O artigo

1º das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola, no seu § 1º,

estabelece que:

[...] a educação escolar Quilombola na educação básica: organiza precipuamente o

ensino ministrado nas instituições educacionais fundamentando-se, informando-se

e alimentando-se: a) da memória coletiva; b) das línguas reminiscentes; c) dos

marcos civilizatório; d) das práticas culturais; e) das tecnologias e formas de produção do trabalho; f) dos acervos e repertórios orais; g) dos festejos, usos,

tradições e demais elementos que conformam o patrimônio cultural das

comunidades quilombolas de todo o país; h) da territorialidade. (BRASIL, 2012).

Conforme França e Lima (2015, p. 62), “estes princípios são referências

indispensáveis para construção de uma educação que precisa edificar-se a partir do

115

compromisso de emancipação dos sujeitos”. Esta autonomia, segundo os autores, “somente

se efetua satisfatoriamente se o conhecimento e o reconhecimento da história e cultura de

seus ancestrais converterem-se em currículo escolar cotidiana e plenamente” (p. 62).

A Educação Escolar Quilombola, conforme Brasil (2012, p. 3), “deve estar presente

na educação básica em todas as suas etapas (educação infantil, ensino fundamental, ensino

médio) e modalidades (educação especial, educação profissional técnica de nível médio,

educação de jovens e adultos)”.

A referida legislação visa orientar os sistemas de ensino para implementação de uma

educação que considere a realidade das comunidades quilombolas, suas histórias, sua origem

e sua realidade atual, em conjunto com seus sujeitos. A aplicabilidade destas diretrizes não

se restringe apenas às escolas situadas em territórios quilombolas, mas compreende também

os estabelecimentos de ensino que atendem alunos oriundos dos quilombos (BRASIL,

2012).

Com um texto bastante minucioso, as Diretrizes Curriculares no art. 2º estabelecem:

Cabe à União, aos Estados, aos Municípios e aos sistemas de ensino garantir: I) apoio técnico-pedagógico aos estudantes, professores e gestores em atuação nas

escolas quilombolas; II) recursos didáticos, pedagógicos, tecnológicos, culturais e

literários que atendam às especificidades das comunidades quilombolas; c) a

construção de propostas de Educação Escolar Quilombola contextualizadas.

(BRASIL, 2012).

As referidas diretrizes, ao estabelecerem responsabilidades para União, estados e

municípios, buscam orientar o sistema de ensino para garantia da oferta da Educação Escolar

Quilombola de forma articulada federativamente. Ressalta, ainda, a necessária atenção para

as práticas socioculturais, políticas e econômicas das comunidades quilombolas, sua forma

de produção de conhecimento e instam os estabelecimentos de ensino a promover uma

gestão escolar que considere a participação das comunidades e de suas lideranças.

Importante destacar, entre outros aspectos, que a produção de material didático e de

apoio pedagógico deve ser adequada às histórias e tradições das comunidades e a oferta de

programa de alimentação escolar deve respeitar os hábitos alimentares, de preferência com

apoio de profissionais das próprias comunidades.

Conforme Carvalho (2016), o Censo Escolar realizado pelo INEP, em parceria com

as Secretarias Estaduais e Municipais de Educação, a partir de 2004, passou a incluir nas

suas estatísticas itens de diferenciação e identificação das escolas quilombolas, como

número de alunos e professores localizados em territórios de quilombos. Segundo a autora,

116

essa iniciativa do INEP proporcionou à sociedade brasileira o conhecimento da quantidade

de escolas e sujeitos atuantes nessas comunidades, que até pouco tempo eram

desconhecidas, bem como apresenta o número de escolas e estudantes existentes nos

quilombos.

Desde 2004, quando ocorreu o primeiro Censo com identificação das escolas

quilombolas, o número de estabelecimentos de ensino nesses territórios vem crescendo a

cada novo Censo, passando de um número de 364 estabelecimentos de ensino da educação

básica, em 2004, para 2369 escolas quilombolas, em 2016. Deste total, 2.355 são públicas e

quatorze privadas.

Das privadas, seis são rurais e oito são urbanas. Das públicas, uma é federal, 118 são

estaduais e 2.236 são municipais (INEP, 2016). Ainda segundo dados do Censo 2016,

atualmente o número de estudantes matriculados nas escolas quilombolas totalizam 241.925.

Destacamos, ainda, segundo o Censo de 2016, a existência de 714 creches espalhadas pelos

quilombos em todo o Brasil. Desse número de creches, 703 são municipais e onze são

privadas.

Mato Grosso, conforme já relatado, contabiliza dezoito escolas quilombolas,

distribuídas em seis município do estado: Barra do Bugres, Nossa Senhora do Livramento,

Poconé, Porto Estrela, Santo Antônio do Leverger e Vila Bela da Santíssima Trindade,

sendo que cinco são estaduais e treze são municipais. Estão matriculados, nessas escolas,

7.834 alunos (SEDUC, 2015).

Os dados acima demonstram o crescimento de número de escolas e de matrículas

significativo nos territórios quilombolas em todo o Brasil. Esse contexto nos permite

compreender a importância de discutir a educação quilombola e fomentar ações para que

ocorra de fato uma educação de qualidade.

No que tange a legislação para educação quilombola no Mato Grosso, a Resolução

n.º 002/2016 do Conselho Estadual de Educação de Mato Grosso (CEE/MT) que dispõe

sobre a Normatização da Educação Escolar Quilombola, nos estabelecimentos de ensino da

educação básica no estado, reconhece a Educação Escolar Quilombola como modalidade. A

referida resolução é um avanço, pois ratifica a Normativa n.º 002/2015/CEE-MT, que não

reconhecia a Educação Escolar Quilombola como modalidade da educação básica, antes,

classificava-a como uma especificidade, o que Carvalho (2016) considerou como um

retrocesso, pois, segundo ela, Mato Grosso sempre foi protagonista na busca da construção

de uma educação diferenciada para o povo quilombola.

117

Ferreira (2015) também descreve sobre o pioneirismo mato-grossense na discussão e

implantação de Políticas Públicas educacionais para Quilombolas. Segundo ela, em 2007, a

Seduc/MT, a partir da realização do Seminário sobre Educação Escolar nos territórios

quilombola, realizado no município de Poconé, marca-se a criação da modalidade de ensino

no estado. Nesse seminário, os quilombolas presentes apresentaram as necessidades e os

aspectos fundamentais específicos para educação nos quilombos.

Em 2008, é criada na Seduc/MT uma Gerência de Diversidade e de Meio Ambiente,

para atender à diversidade racial, incluindo a Educação Quilombola e as questões sobre o

Meio Ambiente. Em 2009, a diversidade é desmembrada do Meio Ambiente e passa a se

chamar Gerência de Educação de Relações Étnicas Raciais, incluindo, no seu bojo de

discussões, a Educação Quilombola, Educação em Direitos Humanos, Educação e Gênero e

Diversidade Sexual.

Em 2010, a Seduc/MT publica as Orientações Curriculares para Educação Étnico-

Racial de Mato Grosso, em que, entre outros assuntos tratados, aparece a Educação Escolar

Quilombola com orientação para implantação e efetivação do currículo específico nos

territórios quilombolas, bem como em escolas que atendam alunos oriundos de quilombos.

A partir do Decreto de Criação n.º 2378/10, as escolas estaduais existentes nos territórios

quilombolas passam a ser formalmente escolas quilombolas.

Devido às pressões dos movimentos sociais, por conta da Normativa n.º

002/2015/CEE-MT, que em nada contribuía para a consolidação da Educação Escolar

Quilombola, o Estado de Mato Grosso, por meio do Conselho Estadual de Educação-

CEE/MT, durante o segundo semestre do ano de 2015, realizou Audiências Públicas nas

comunidades quilombolas, dentre elas, o Quilombo Mata-Cavalo, para discutir e elaborar

um novo documento para normatizar a Educação Escolar Quilombola no Estado de Mato

Grosso, o que culminou com a edição da Resolução n.º 002/2016 do CEE/MT.

A partir da referida Resolução e de acordo com o seu artigo 5º, as práticas e ações

pedagógicas da Educação Escolar Quilombola de Mato Grosso passam a ser regidas pelos

seguintes princípios:

I- Direito à igualdade, liberdade, diversidade e pluralidade;

II- Direito à educação pública, gratuita e de qualidade;

III- Respeito e reconhecimento da história e da cultura afro-brasileira, quilombola

como elemento estruturante do processo civilizatório nacional; IV- Proteção das

manifestações da cultura afro-brasileira;

V- Valorização da identidade étnico-racial;

VI- Promoção do bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, credo,

idade e quaisquer outras formas de discriminação;

118

VII- Garantida dos direitos humanos, sociais, econômicos, sociais, culturais,

ambientais e do controle social das comunidades quilombolas;

VIII- Reconhecimento dos quilombos como povos ou comunidades tradicionais;

IX- Conhecimento dos processos históricos de luta pela regularização dos

territórios tradicionais dos povos quilombolas;

X- Direito ao etnodesenvolvimento entendido como modelo de desenvolvimento

alternativo que considera a participação das comunidades, as suas tradições locais,

o seu ponto de vista ecológico, a sustentabilidade e as suas formas de produção do

trabalho e de vida;

XI- Superação do racismo – institucional, ambiental, alimentar, entre outros – e a eliminação de toda e qualquer forma de preconceito e discriminação racial; XII-

Respeito à diversidade religiosa, ambiental e sexual;

XIII- Superação de toda e qualquer prática de sexismo, machismo, homofobia,

lesbofobia e transfobia;

XIV- Reconhecimento e respeito da história dos quilombos, dos espaços e dos

tempos nos quais as crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos quilombolas

aprendem e se educam;

XV- Direito dos estudantes, dos profissionais da educação e da comunidade de se

apropriarem dos conhecimentos tradicionais e das formas de produção das

comunidades quilombolas de modo a contribuir para o seu reconhecimento,

valorização e continuidade; XVI- Trabalho como principio educativo das ações didático-pedagógicas da

escola;

XVII- Valorização das ações de cooperação e de solidariedade presente nas

histórias das comunidades quilombolas a fim de contribuir para o fortalecimento

das redes de colaboração solidaria por elas construídas;

XVIII- Reconhecimento do lugar social, cultural, politico, econômico, educativo e

ecológico ocupado pelas mulheres no processo histórico de organização das

comunidades quilombolas e construção das práticas educativas que visem à

superação de todas as formas de violência racial e de gênero;

XIX- Construções de escolas públicas em territórios quilombolas, por parte do

poder público sem prejuízo da ação de ONG e outras instituições comunitárias; XX- Adequação da estrutura física das escolas ao contexto quilombola,

considerando ambientais, econômicos e socioeducacionais de cada Quilombo.

XXI- Garantia de condições de acessibilidade nas escolas;

XXII- Presença preferencial de professores e gestores quilombolas nas escolas

quilombolas e nas escolas que recebem estudantes oriundos de territórios

quilombolas. (CEE/MT, 2016).

A Resolução CEE/MT n.º 002/2016 traz avanços importantes para a educação

quilombola, como: a) a transformação da Educação Escolar Quilombola em modalidade; b)

o incentivo para o trabalho com a metodologia do etnodesenvolvimento e c) na questão da

formação específica para professores que atuam nas escolas quilombolas de Mato Grosso.

Também reforça pontos importantes já constantes na Resolução CNE n.º 08/2012 do

Governo Federal, como: a) a garantia do transporte escolar; b) alimentação; c) calendário e

d) construções de escolas, dentre outros, que levem em consideração o contexto de cada

quilombo.

Apesar de avanços importantíssimos conquistados com as legislações vigentes que

tratam sobre a Educação Escolar Quilombola, tanto na esfera federal, quanto no estado de

Mato Grosso, Carvalho (2016) aponta para a necessidade de outras questões a serem

abordadas, tais como: a) as que se referem à valorização dos profissionais da educação

119

quilombola; b) concurso específico para escolas quilombolas e c) graduação e pós-

graduação específica para os profissionais quilombolas. São questões que ainda seguem nas

pautas de reivindicações do movimento quilombola de Mato Grosso.

Ressalvamos, todavia, que, desde 2016, o Programa de Pós-Graduação em Educação

da Universidade Federal de Mato Grosso, por meio de três grupos de Pesquisa GEPEQ

(Grupo de Estudos e pesquisas em Educação Quilombola), GEPEA (Grupo de Estudos e

Pesquisas em Educação Ambiental) e o NEPRE (Núcleo de Estudos e Pesquisa em Relações

Raciais), oferece cotas para quilombolas no mestrado. Importante mencionar que, nesse

mesmo ano, foi aprovado cotas para estudantes de graduação em diferentes cursos na

UFMT, com disponibilidade de 100 vagas, distribuídas em todos os cursos. Tais políticas

são consideradas avanços, no entanto, ainda necessitam ser ampliadas.

Sobre a importância do concurso específico para docentes, salientamos que essas

reivindicações são legítimas e pertinentes, visto que geralmente os profissionais das escolas

quilombolas são, em sua maioria, contratados. Facilmente são substituídos por profissionais

efetivos que, em muitos casos, não conhecem as especificidades quilombolas previstas na

legislação para educação quilombola.

Um exemplo do desrespeito à legislação quilombola aconteceu no momento em que

eu estava na Escola Estadual Professora Tereza Conceição Arruda, coletando dados para a

pesquisa. De repente, chegaram à referida escola dois professores, segundo informação da

gestão da escola, efetivos, enviados pela Assessoria Pedagógica de Nossa Senhora do

Livramento para integrar o quadro docente da instituição de ensino. Segundo a equipe

gestora da escola, os professores não são quilombolas e não apresentaram nenhuma

formação específica em educação quilombola.

A equipe gestora da escola, os educadores e as lideranças, imediatamente, se

dirigiram à Secretaria de Educação do Estado de Mato Grosso (Seduc/MT), onde, segundo

eles, se reuniram com a equipe de Gestão de Pessoas do órgão e, embasados nas legislações

estaduais e federais que preconiza sobre Educação Escolar Quilombola, cobraram

explicações e providências.

Os matacavalenses explicaram que tal atitude fere as leis pertinentes à Educação

Escolar Quilombola, pois a escola possui, em seu quadro, profissionais habilitados e com

formação em Educação Escolar Quilombola nas disciplinas pleiteadas.

Eles alegam que a substituição dos professores da comunidade acarretaria prejuízos

ao currículo escolar específico que vem sendo construído, no qual estão sendo trabalhados a

valorização e o fortalecimento da identidade quilombola, o sentimento de pertença, as

120

histórias dos quilombos, que, há muito tempo, estiveram silenciadas na escola por conta de

um currículo eurocêntrico praticado por profissionais alheios a essas comunidades.

Essa realidade pode ser evidenciada por Silva (2014, p. 30-31) quando descreve:

[...] professores (as) vinham da cidade para ensinar no quilombo sem que esse

ensino tivesse qualquer relação com os que ali viviam;

[...]

[...] assim como o olhar sobre os modos de vida e produção das comunidades

quilombolas, os saberes tradicionais não estão presentes em suas falas e práticas

pedagógicas. Quando aparecem, só confirmam a estranheza, descaso e

desconhecimento que se tem para/com esses sujeitos e suas realidades.

[...]

[...] esse ensino pouco refletia sobre a vida de seus moradores, sua identidade, sua

cultura etc.

[...]

[...] sendo assim, o que se pode esperar, na prática, desse profissional da educação

frente à educação quilombola? (SILVA, 2014, p. 30-31).

Os matacavalenses comungam com Silva (2014), quando a autora diz que:

Na formação inicial, apesar da existência de comunidades quilombolas na região,

[...] pouco se fala e se conhece acerca das dinâmicas e dos processos educativos e

organizativos das comunidades quilombolas. Tampouco se usam referenciais

teóricos na formação, principalmente nas licenciaturas, que discutam a história de

luta e organização dos quilombolas no Brasil. Isso faz com que os professores (as)

se formem sem conhecer essa parte da história do Brasil guardada nos

quilombolas. (SILVA, 2014, p. 31).

Apesar da legislação federal e da legislação do Estado de Mato Grosso para

Educação Escolar Quilombola garantirem que “preferencialmente” professores oriundos das

comunidades quilombolas possam atuar nas escolas presentes nos territórios, podemos

observar que, apesar dessa garantia legal, na prática, ela não vem sendo respeitada.

Diante do exposto, concordamos com Silva (2014), quando afirma que o fato de as

questões quilombolas não estarem inseridas nas políticas educacionais não decorrem,

obviamente, da ausência de legislação e, sim, da sua aplicabilidade na prática, estando,

portanto, as instituições instadas a desenvolverem as ações previstas na lei e, com isso,

garantir a mudança no pensamento da educação no Brasil.

Em relação ao episódio acontecido na escola de Mata-Cavalo, citado anteriormente,

após muita luta por parte dos matacavalenses, que, inclusive, ameaçaram denunciar o fato ao

121

Ministério Público Federal, alegando que o mesmo estado que deveria garantir as

especificidades quilombolas é o que contribui para o afastamento dos profissionais

quilombolas das escolas desses territórios, surtiu resultados positivos, pois a reivindicação

da comunidade para a permanência dos professores quilombolas na escola foi atendida.

Porém fica a questão: o que falta que o previsto na legislação pertinente à Educação Escolar

Quilombola se torne realidade no chão das escolas quilombolas?

Neste tópico, discorremos sobre as políticas públicas para Educação Escolar

Quilombola e os desafios para sua efetivação no chão das escolas. Diante do exposto,

podemos afirmar que, em termos de legislação, já houve avanços significativos, o que ainda

se faz presente nas escolas são as ausências de ações políticas por parte dos federativos que

possam garantir o que preconiza a lei. No tópico seguinte, dissertaremos sobre algumas

definições de currículo escolar.

4.2 CURRÍCULOS: ALGUNS CONCEITOS

Conforme Oliveira (2017, p. 150), ao pensarmos em currículo, “devemos entendê-lo

como os caminhos percorridos pela escola; portanto, tal dimensão suscita reflexões cada vez

mais frequentes em estudos acadêmicos, na formação de professores e propriamente na

escola”.

Para Moreira e Candau (2007), à palavra currículo se unem diferentes concepções,

que originam dos diversos modos de como a educação é concebida historicamente, assim

como das influências teóricas que a afetam e se fazem preponderantes em um dado

momento.

Segundo as autoras, diferentes fatores socioeconômicos, políticos e culturais

contribuem, assim, para que currículo venha a ser entendido como:

(a) os conteúdos a serem ensinados e aprendidos; (b) as experiências de

aprendizagem escolares a serem vividas pelos alunos; (c) os planos pedagógicos

elaborados por professores, escolas e sistemas educacionais; (d) os objetivos a

serem alcançados por meio do processo de ensino; (e) os processos de avaliação que terminam por influir nos conteúdos e nos procedimentos selecionados nos

diferentes graus da escolarização. (MOREIRA; CANDAU, 2007, p. 18).

Então, conforme as autoras, podemos entender o currículo como as experiências

escolares que se desdobram em torno do conhecimento, em meio às relações sociais e que

122

contribuem para a construção das identidades dos educandos, associando-se, assim, ao

conjunto de esforços pedagógicos desenvolvidos com intenções educativas.

Concordamos com Arroyo (2011) de que o currículo é um território em disputa, uma

arena política, apresentando-se como um espaço em que se encontra em jogo determinada

visão de mundo, criação e produção cultural, ou seja, representa múltiplas relações de poder.

Silva (1999) comunga com o pensamento de Arroyo (2011), quando ressalta que é

impossível pensar um currículo no simples viés de conceitos técnicos de como ensinar. O

conhecimento corporificado no currículo é um espaço de poder e, dessa forma:

O currículo é lugar, espaço, território. O currículo é relação de poder. O currículo é

trajetória, viagem, percurso. O currículo é autobiografia, nossa vida, curriculum

vitae: no currículo se forja nossa identidade. O currículo é texto, discurso,

documento. O currículo é documento de identidade. (SILVA, 1999, p. 150).

O currículo contribui para moldar quem somos, para formar nossas identidades.

Entretanto, se o currículo não é pensado e discutido pelas pessoas que compõem a

comunidade escolar, ele se sujeita a formar identidades que não correspondem aos anseios

da comunidade a quem serve (MOREIRA; SILVA, 2002).

Concordamos com Silva (1999), que entende que, resumidamente, a questão

fundamental em relação ao currículo é: “o que” ensinar? O autor afirma que “o

conhecimento que constituí o currículo está inextricavelmente, centralmente, vitalmente,

envolvido naquilo que somos, naquilo que nos tornamos: na nossa identidade, na nossa

subjetividade” (SILVA, 1999, p. 15).

É sabido que, ao longo da nossa vida, o domínio-negação do conhecimento agiu e

ainda age como demarcação, marginalização e negação da diversidade de coletivos sociais,

étnicos, raciais, de gênero, dos que habitam o campo e as periferias. A esse respeito, Arroyo

(2013) alerta que, aos grupos considerados historicamente subalternos, como é o caso das

comunidades quilombolas:

Não apenas foi negado e dificultado seu acesso ao conhecimento produzido, mas

foram despojados de seus conhecimentos, culturas, modos de pensar-se e de pensar

o mundo e a história. Foram decretados inexistentes, à margem da história

intelectual e cultural da humanidade. Logo seus saberes, culturas, modos de pensar

não foram incorporados no dito conhecimento socialmente produzido e acumulado

que as diretrizes curriculares legitimam como núcleo comum. (ARROYO, 2013, p. 15).

Essa negação da história dos grupos considerados historicamente como inferiores

tem provocado desigualdades, principalmente, entre os negros e repercutido em todos os

123

espaços da sociedade, de maneira especial, nos espaços escolares. Assim, tem relevância

particular e deve ser tratada em todas as fases de aprendizagem de uma pessoa.

Segundo a análise de Castilho (2011):

Ao examinar o currículo em suas proposições e intenções, bem como sua

materialização no espaço escolar, verifica-se que ele também instaura

silenciamentos, negações e exclusões. Isso pode ser evidenciado pelas dificuldades

que o negro, historicamente, tem enfrentado no processo de inserção no sistema

escolar. Como escravizado foi proibido por lei; como liberto pela Lei do Ventre

Livre ou, como alforriado, também não lhe foi permitido o acesso pleno à

escolarização. Contemporaneamente, é permitido a ele o acesso, mas nem sempre

lhe são oferecidas condições de permanência. (CASTILHO, 2011, p. 163).

Os estudos de Castilho (2011) nos revelam que os currículos escolares não foram

pensados levando em consideração os estudantes negros, pelo contrário, eles foram

construídos para formar mentalidades cristãs, burguesas, brancas e, preferencialmente,

masculinas. Segundo Silva (2011), em decorrência disso, na perspectiva crítica, um

currículo necessita considerar a diferença, a identidade em sua dimensão histórica e política,

assim como deve discutir as várias facetas do racismo, institucionais, históricas e

discursivas.

Moraes (2018) ressalta a necessidade de o currículo considerar também a história dos

quilombos como copartícipes da história nacional brasileira, reafirmando a contribuição

histórica, econômica e cultural. Pois, conforme Canen (2006), se as práticas educativas não

levarem em conta a necessidade de trabalhar com toda a realidade cultural contextualizada

dos alunos, dificilmente terá impacto positivo na construção de um novo olhar, livre das

amarras eurocêntricas.

Conforme Arroyo (2007), as análises sobre o currículo estão cada vez mais comuns

no chão das escolas, na formação dos docentes e nas pesquisas acadêmicas, isto é,

questionamentos sobre o conceito de currículo, tais como: para que ele serve? A quem ele se

destina? Como ele é posto em prática? São questões assíduas, atualmente, nas discussões,

nos grupos de estudo, nas formações. Perguntas que, outrora, não eram ao menos pensadas,

passam, agora, a ser o centro das discussões.

Nesse sentido, partindo do pressuposto de que não é qualquer escola que atenderá

aos interesses dos quilombolas, concordamos com Arroyo (2003, p. 15) quando indaga:

“Que escola será realmente um serviço aos interesses de classe dessas camadas? Como ir

construindo essa escola tornando-a possível? [...]. Que práticas privilegiar?”.

124

As questões levantadas sobre currículo pelos autores nos levam a indagar sobre: o

que ensinar nas escolas quilombolas, visto que a existência das comunidades quilombolas,

no Brasil, sempre foi marcada por processos de violações de direitos sociais e humanos?

As Diretrizes para a Educação Escolar Quilombola (2012) determinam como eixos

norteadores do currículo:

os conteúdos gerais sobre a educação, política educacional, gestão, currículo e

avaliação; b) os fundamentos históricos, sociológicos, sociolinguísticos,

antropológicos, políticos, econômicos, filosóficos e artísticos da educação; c) o estudo das metodologias e dos processos de ensino-aprendizagem; d) os conteúdos

curriculares da base nacional comum; e) o estudo do trabalho como princípio

educativo; f) o estudo da memória, da ancestralidade, da oralidade, da

corporeidade, da estética e do etnodesenvolvimento, entendidos como

conhecimentos e parte da cosmovisão produzidos pelos quilombolas ao longo do

seu processo histórico, político, econômico e sociocultural; g) a realização de

estágio curricular em articulação com a realidade da Educação Escolar

Quilombola; h) as demais questões de ordem sociocultural, artística e pedagógica

da sociedade e da educação brasileira de acordo com a proposta curricular da

instituição. (BRASIL, 2012, p. 17).

Silva (2014) ressalta que, para elaborar uma proposta curricular para Educação

Escolar Quilombola, primeiramente, se faz necessário observar as suas especificidades, que

por si só sugerem uma construção que envolva a participação dos quilombolas, a localização

das comunidades, conhecer um pouco mais como vivem, quais são suas manifestações

culturais, as crenças locais, as alternativas de sobrevivência, a medicina alternativa, os

arranjos produtivos, as manifestações religiosas e/ou outras expressões próprias de cada

comunidade, seus modelos de organizações e como essas populações gostariam de ser

retratadas.

Silva (2014) destaca, ainda, a necessidade de compreender o contexto que vivem

essas populações, sendo esse, talvez, o primeiro passo para pensar um currículo que,

minimamente, atenda às perspectivas das comunidades quilombolas. Segundo a autora:

Não basta uma tentativa de transmissão ou uma interpretação desconectada da

realidade das comunidades quilombolas se fazerem presente no currículo. É

preciso saber como os quilombos entendem-se, afirmam-se, reconhecem-se e

como e se autorreconhecem. Só o envolvimento desses sujeitos como agentes ativos de suas histórias poderá fazer desse processo um momento de aprendizagem

coletiva. (SILVA, 2014, p. 76).

Como podemos observar, é imprescindível que a história das comunidades, inclusive,

suas lutas pela garantia e permanência em seus territórios e os seus cuidados com o meio

ambiente façam parte do currículo escolar, colaborando para despertar nos jovens, nas

125

crianças e nos adultos o sentimento de pertencimento e orgulho de suas histórias e da

história de seus antepassados e, dessa maneira, contribuir para a formação de uma identidade

positiva dos quilombolas.

No que se refere ao currículo para atender aos preceitos da Educação Escolar

Quilombola, defendida por Silva (2014), a Resolução n.º 002/2016, do Conselho Estadual de

Educação de Mato Grosso, preconiza que a organização curricular da Educação Escolar

Quilombola deve-se pautar em ações e práticas políticas-pedagógicas que visem o

conhecimento das especificidades dos estudantes dessas comunidades quanto à sua história e

à sua organização.

Conforme a referida resolução, a realidade histórica, regional, sociocultural,

econômica e política das comunidades quilombolas deve estar presente na construção do

Projeto Político Pedagógico (PPP), possibilitando, assim, a construção de espaços

pedagógicos que propiciem aos educandos o conhecimento de suas origens, bem como a

valorização e o fortalecimento da sua identidade.

Portanto, a elaboração do Projeto Político Pedagógico (PPP) na escola quilombola,

além de ser uma ação política e envolver todos os sujeitos de forma participativa, deve

apresentar uma proposta que esteja ancorada em conceitos que problematizem o racismo, os

conflitos com a terra, a importância do território, trabalho, cultura, memória e oralidade, de

forma a combater o racismo e o preconceito ainda muito presentes no imaginário coletivo

(BRASIL, 2012).

Portanto, pensar o currículo a partir dessa perspectiva e dos novos significados,

requer pensar propostas de educação, que, além de respeitar e valorizar a contribuição desta

população na formação da sociedade brasileira, deve também observar os elementos

constitutivos deste universo social, para que, assim, possam efetuar uma abordagem

diferenciada do conhecimento (SILVA, 2012).

Dessa forma, segundo Castilho (2011), o papel da Educação Escolar Quilombola é

mediar o saber escolar com os saberes locais, advindo da ancestralidade que formou a

cultura do segmento negro no Brasil. Assim, a educação será utilizada como instrumento de

defesa perante os ataques caracterizados pelo racismo, preconceito racial e discriminação

social, dos quais as comunidades sempre foram alvo (BRASIL, 2012).

Moraes (2018) reforça que é na saliência dessas discussões, de combater o currículo

hegemônico, eurocêntrico, que os ideais da escola quilombola se firmam e afirmam,

buscando construir práticas pedagógicas que considerem os conhecimentos e vivências em

contextos concretos, mergulhados em dinâmicas sociais reais, políticas e culturais.

126

4.3 PRÁTICAS PEDAGÓGICAS E A EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA

A prática é conceituada por Sacristán (1999, p. 73) como a cultura acumulada sobre

as ações. Desse modo, é ao mesmo tempo fonte das ações e nutre-se delas: “A prática é a

cristalização coletiva da experiência histórica das ações, é o resultado da consolidação de

padrões de ação sedimentados em tradições e formas visíveis de desenvolver a atividade”.

Assim, a prática proporciona as ações e também recebe interferências destas, sendo a prática

institucionalizada com o habitus.

A partir da definição de prática de modo geral, ancoramo-nos em Sacristán (1999)

para definir a prática educativa como algo a mais que a expressão do ofício dos professores,

como uma cultura compartilhada pelos profissionais da educação. De acordo com o referido

autor, a gênese da prática educativa está em outras práticas capazes de interagir com o

sistema escolar, mantendo relação com os demais âmbitos da sociedade, por exemplo, o

econômico e o político.

Sacristán (1999) apresenta-nos, ainda, o conceito de prática pedagógica como aquela

que acontece nas salas de aula e não pode ser tomada de modo isolado ou em uma

perspectiva de prática cultural autônoma.

A partir dos estudos de Veiga (1992, p. 16), podemos entender que prática

pedagógica é “... uma prática social orientada por objetivos, finalidades e conhecimentos, e

inserida no contexto da prática social. A prática pedagógica é uma extensão da prática

social”.

Franco (2012), corroborando com as ideias de Veiga (1992), afirma que a prática

pedagógica se caracteriza como atividade social e sistemática que articula os saberes

pedagógicos, visando à transformação dos educandos e dos contextos onde se realiza.

Segundo o autor, no contexto escolar, a prática pedagógica do professor pode conduzir os

educandos a processos de emancipação, formando cidadãos autônomos, reflexivos,

conscientes, devido ao seu caráter político e intencional.

Ainda segundo Franco (2012), a estruturação da prática pedagógica do professor está

em constante processo de diálogo entre o que se faz e como deve se fazer. Ou seja, está em

contínua construção e desconstrução em busca de novos caminhos e possibilidades. O autor

reforça que o exercício de análise da própria prática permite que o professor visualize o seu

trabalho em uma dimensão mais ampla e reflexiva. A reflexão crítica pautada no

conhecimento científico possibilita a emancipação do professor perante as atividades

127

desenvolvidas e o trabalho mecânico cede espaço para a razão, a consciência das condições

da docência e a capacidade de transformações.

Conforme Castilho (2011), os ideais da escola quilombola, no intuito de combater

um currículo eurocêntrico, devem se afirmar buscando construir práticas pedagógicas que

considerem os conhecimentos e vivências em contextos concretos, imersos em dinâmicas

sociais, políticas e culturais dos educandos quilombolas.

Já Canen (2006) entende que, se, por um lado, as legislações para a educação escolar

tenham avançado no sentido de prescrever currículos que contemplem as diferenças

culturais dos grupos minoritários, invisibilizados por muito tempo; por outro lado, as

práticas pedagógicas que não levem em conta a necessidade de trabalhar com toda a

realidade cultural contextualizada dos educandos, faz com que, dificilmente, tal medida

tenha impacto positivo na construção de um novo olhar, libertos das amarras eurocêntricas.

Nessa mesma trilha de Canen (2006), Candau (2011) afirma a necessidade de

construir práticas pedagógicas mediadas pela perspectiva intercultural, que tenham como

ponto de partida o reconhecimento das diferenças. Esta é uma nova forma de olhar a prática

pedagógica. Tal tarefa não é fácil certamente, pois “supõe desconstruir a perspectiva da

homogeneização tão presente e configuradora da cultura escolar” (CANDAU, 2011, p. 250).

Nesse contexto, o fato incontestável é que a dimensão cultural é intrínseca às práticas

pedagógicas. E a instituição escolar, por conseguinte, deve considerar e valorizar os

educandos e seus contextos socioculturais, primando pelo combate a todas as formas de

silenciamento, invisibilização, favorecendo a construção de identidades culturais como

sujeitos de direito, assim como a valorização do outro (CANDAU, 2011).

Portanto, as escolas quilombolas e/ou as escolas que atendem estudantes oriundos

dos quilombos devem pensar seus currículos e práticas pedagógicas na perspectiva de levar

seus sujeitos de aprendizagens, sua origem, sua maneira de ser e de pensar o

desenvolvimento desse país, como um grande mosaico cultural, para que o respeito à

identidade seja conquistado e que a educação prime pela colaboração no ato de construção

da aprendizagem no entorno da Educação Escolar Quilombola.

Concordamos com Celestino (2016) que novos tempos vêm surgindo e, em cada

momento da história, novas esperanças são suscitadas à Educação Escolar Quilombola, que

por sua vez precisa mudar e articular sua prática pedagógica, em conformidade com os

modos de ser e de se desenvolver dos quilombolas nos diferentes contextos sociais.

Assim, podemos assinalar que a prática pedagógica que possibilita “a articulação

entre os conhecimentos científicos, os conhecimentos tradicionais e as práticas

128

socioculturais próprias das comunidades quilombolas, em processo educativo dialógico e

emancipatório” (BRASIL, 2004, p. 20) são de extrema importância na pedagogia

quilombola.

Apesar de percebermos avanços importantes em relação à inclusão dos estudos das

relações raciais nas instituições escolares, se pensarmos nas mentalidades preconceituosas

forjadas em mais de 500 anos de racismo virulento, notamos que são muito recentes para o

país essas conquistas. Essa constatação tem levado as instituições educacionais a se

debruçarem, em grande parte, com a formação de professores, pelo papel central que essa

categoria profissional ocupa no repasse de valores para a vida.

Concordamos com Giroux (1997) quando ressalta que a ausência dessas discussões

na formação inicial e continuada de professores gera circunstâncias que reforçam as

desigualdades e a subalternidade de determinados grupos sociais. Nesse entendimento, as

práticas pedagógicas acabam por corporificar formas dominantes de capital cultural, uma

vez que a escolarização, frequentemente, funciona para afirmar as histórias eurocêntricas e

patriarcais.

Arroyo (2013) nos alerta para o fato de que a formação pedagógica e docente gira em

torno de uma perspectiva hegemônica e eurocêntrica, que busca formar um modelo de

profissional fiel à reprodução de um modelo de currículo que não atende aos anseios dos

povos desprestigiados economicamente, como é o caso das comunidades quilombolas.

Forma-se um profissional tradutor e transmissor dedicado e competente a ensinar conteúdos

definidos nas diretrizes do currículo e avaliados nas provas oficiais.

Nóvoa (1992, p. 30) afirma que: “A formação continuada deve alicerçar-se numa

reflexão na prática e sobre a prática”, por meio de dinâmicas de investigação-ação e de

investigação-formação, valorizando os saberes de que os professores são portadores. Dessa

maneira, notamos que a formação continuada é constituída da reflexão da prática sobre a

prática e um dos princípios essenciais é a valorização dos conhecimentos que o professor já

traz consigo, possibilitando a eficácia do saber sistematizado da prática docente.

Diante do exposto, formar professores capazes de refletir e conduzir os processos de

ensino-aprendizagem, valorizando as diversidades existentes na sociedade, não é uma

obrigação apenas legal. É, sim, um eixo estruturador da educação de uma sociedade.

Concordamos com Silva (2014) quando ressalta que a superação ou o preenchimento das

lacunas identificadas na formação docente precisam ser debatidos e incorporados, não

apenas por alguns setores e instituições formadoras desses profissionais, mas também pelo

conjunto dos espaços por onde passam a formação, seja ela inicial ou continuada.

129

Assim como Giroux (1997), concordamos quando o autor ressalta que a ausência

dessas discussões na formação inicial e continuada de professores gera circunstâncias que

reforçam as desigualdades e a subalternidade de determinados grupos sociais. Nesse

entendimento, as práticas pedagógicas acabam por corporificar formas dominantes de capital

cultural, uma vez que a escolarização, frequentemente, funciona para afirmar as histórias

eurocêntricas e patriarcais.

A Educação Escolar Quilombola, segundo as orientações observadas nas Diretrizes

Curriculares para Educação Escolar Quilombola (2012) e nas Orientações Curriculares para

Educação Escolar Quilombola do Estado de Mato Grosso (2010), bem como na Resolução

02/2016 do Conselho Estadual e Educação de Mato Grosso, ancora-se em concepções de

valorização histórica e cultural das formas de produção da vida nas comunidades às quais

essa educação se destina, tendo como um de seus princípios e finalidades a promoção do

reconhecimento da história e da cultura afro-brasileira, como elementos estruturantes do

processo civilizatório nacional, considerando as mudanças, as recriações e as

ressignificações históricas e socioculturais que estruturam as concepções de vida dos afro-

brasileiros na diáspora africana.

Conforme Soares (2016), um dos grandes desafios que se refere à materialidade da

Educação Escolar Quilombola enquanto uma política pública de preservação de patrimônio

nacional, diz respeito à formação inicial e continuada de professores. Segundo a autora, os

atuais modelos formativos e educativos não têm contemplado os legados dos diferentes

grupos formadores da sociedade brasileira, particularmente os negros e os indígenas.

A realização de formação específica que leve em consideração os saberes dos

professores que atuam nas escolas quilombolas “poderá desencadear um processo de

apropriação de saberes importantes para a escola e a comunidade, a ponto de modificar a

relação tanto dos professores, quanto dos estudantes e da comunidade em relação à

denominação “escola quilombola” e o reconhecimento das identidades locais” (FERREIRA,

p. 123. 2015).

Ou seja, para que os desafios impostos à modalidade de Educação Escolar

Quilombola aconteçam, os professores devem estar tecnicamente preparados para

desenvolver ações pedagógicas que melhor contribuam para uma socialização crítica dos

conteúdos, de forma a estimular a criatividade e o compromisso com a transformação social,

trabalhando numa perspectiva de desconstrução de estereótipos, de preconceitos e demais

mazelas sociais que causam exclusões de toda ordem.

130

Concordamos com Giroux e McLarem, 2009 quando enfatizam que a formação dos

profissionais de educação tem um peso singular para as mudanças previstas nas legislações e

planos educacionais e que tanto a sociedade almeja.

A educação dos professores (as) raramente tem ocupado espaço público ou político

de importância dentro da cultura contemporânea, onde o sentido do social pudesse

ser resgatado e reiterado para dar professores e alunos a oportunidade de contribuir

com suas histórias culturais e pessoais e sua vontade coletiva, para o

desenvolvimento de uma contraesfera pública democrática. [...]. Não é exagero

afirmar que os programas de formação de professores(as) são concebidos para

criar intelectuais que operam a serviço dos interesses do Estado, e cuja função

social é primordialmente manter e legitimar o status quo. (GIROUX; MCLAREM,

2009, p. 128).

A partir das reflexões apresentadas, comungamos com Silva (2012) quando salienta

que pensar a formação inicial de docentes, tendo em vista a existência de grupos,

concepções e modos diferenciados de ver o mundo, bem como as múltiplas identidades que,

muitas vezes, ocupam os mesmos espaços, é formar professores para lidar com a realidade

de seu tempo que ainda é desconhecida. É sair do conceito de formar professores, para se

pensar em formar cidadãos capazes de respeitar e lidar com as diferenças existentes em seu

meio.

Assim, conforme Block e Rausch (2014, p. 252), a construção de saberes na

formação inicial está vinculada a sua aplicação prática, ou seja, “a base do ensino nos cursos

de formação visa a construção de conhecimentos oriundos do campo da Pedagogia que os

futuros professores deverão ter a capacidade de converter em práxis pedagógica, o que se

refere à relação teoria e prática”.

Ainda segundo Block e Rausch (2014, p. 252) “é durante a ação didática pedagógica

que a identidade e a profissionalização docente vão se consolidando”. Conforme as autoras

“os saberes são produzidos para subsidiar a ação prática da mesma forma que também se

formam, se reelaboram e se reestruturam a partir dela”. Ou seja, é na prática em sala de aula

que os saberes docentes são aplicados, testados, verificados e, dessa forma, vão sendo

legitimados e é justamente esta dinâmica que faz com que se originem também por meio

dela.

Pimenta (2002) argumenta que é por meio de um movimento de articulação entre os

saberes que os professores podem tornar-se capazes de perceber as peculiaridades de sua

atividade profissional e, com base nisso, reconfigurarem suas formas de saber-fazer docente

de modo sistemático, dinâmico e contínuo.

131

4.4 SABERES DOCENTES: CONCEPÇÕES

Conforme Nunes (2001), os estudos sobre saberes docentes não são algo inédito, já

que, de certa maneira, a temática já vinha sendo estudada por meio da discussão de temas

como a prática docente, o processo de ensino-aprendizagem, a relação teoria-prática no

cotidiano escolar etc., num contexto diferenciado, onde a escola era tida como “local”

privilegiado para a transmissão do saber pelo professor, que detinha todo o conhecimento a

ser repassado ao aluno.

Entretanto, segundo a referida autora,

Considerando que tanto a escola como os professores mudaram, a questão dos

saberes docentes agora se apresenta com uma outra “roupagem”, em decorrência da influência da literatura internacional e de pesquisas brasileiras, que passam a

considerar o professor como um profissional que adquire e desenvolve

conhecimentos a partir da prática e no confronto com as condições da profissão.

(NUNES, 2001, p. 27).

Segundo Nunes (2001), no Brasil, é a partir da década de 1990 que se passou a

buscar novos enfoques e paradigmas para compreender as práticas e os saberes pedagógicos

e epistemológicos relativos aos conteúdos escolares a serem ensinados e aprendidos. A partir

desse momento, é que começam a se desenvolver pesquisas que:

[...] considerando a complexidade da prática pedagógica e dos saberes docentes, buscam resgatar o papel do professor, destacando a importância de se pensar a

formação numa abordagem que vá além da acadêmica, envolvendo o

desenvolvimento pessoal, profissional e organizacional da profissão docente.

(NUNES, 2001, p. 28).

É notório que os estudos relativos aos saberes docentes têm contribuído para formar

um repertório de conhecimento a fim de legitimar a profissão, pois permitiram adentrar o

contexto da prática pedagógica e descobriram que os professores mobilizam diversos tipos

de saberes. Com outro olhar, o professor passa a ser valorizado como produtor de

conhecimento e protagonista da prática escolar, superando a visão tradicional de simples

reprodutores técnicos de conhecimentos (NUNES, 2001).

Conforme Nóvoa (1995), essa nova abordagem veio em contraposição aos estudos

anteriores que acabavam por limitar a profissão docente a um conjunto de competências e

técnicas, gerando uma crise de identidade dos professores em virtude de uma separação

entre o eu profissional e o eu pessoal. Essa reviravolta nas análises passou a ter o professor

132

como foco central em estudos e debates, considerando o quanto o “modo de vida” pessoal

acaba por interferir no profissional.

Revendo a formação docente a partir da investigação da prática pedagógica, Pimenta

(2002) percebe o aparecimento da questão dos saberes como um dos aspectos considerados

nos estudos sobre a identidade da profissão do professor. Parte do princípio de que essa

identidade é construída a partir da:

[...] significação social da profissão; da revisão constante dos significados sociais

da profissão; da revisão das tradições. Mas também da reafirmação das práticas

consagradas culturalmente e que permanecem significativas. Práticas que resistem

a inovações porque prenhes de saberes válidos às necessidades da realidade. Do

confronto entre as teorias e as práticas, da análise sistemática das práticas à luz das

teorias existentes, da construção de novas teorias. (PIMENTA, 2002, p. 19).

De acordo com Nunes (2001), dessa maneira, resgata-se a relevância de considerar o

professor em sua própria formação, num processo de autoformação, de reelaboração dos

saberes iniciais em confronto com sua prática vivenciada. Assim, seus saberes vão se

constituindo a partir de uma reflexão na e sobre a prática.

Conforme Freire (2016b), o saber da docência não se constitui apenas com

conhecimentos científicos e pedagógicos, mas, sim, torna imprescindível que o professor se

reconheça como um ser pensante, dotado de interesses e movido por questionamentos que

impulsionem sua fala, de modo que esta se torne um aprendizado de escuta, que pode

resultar em um saber lidar melhor nas suas formas de ensinar.

Conforme Tardif (2002, p. 36), o saber docente pode ser definido “como um saber

plural, formado pelo amálgama, mais ou menos coerente, de saberes oriundos da: formação

profissional e de saberes disciplinares, curriculares e experienciais”. Assim, é possível

percebermos que a construção do saber do professor demanda conhecimentos de diversas

fontes, sendo justamente da mistura dessas fontes que o mesmo surge, ou seja, não há como

desempenhar uma prática educativa com base em apenas uma única fonte de saber.

Os saberes da formação profissional, segundo Tardif (2002, p. 36-37), são um

conjunto de saberes disseminado pelas instituições de formação de professores, faculdades e

universidades de educação e se articulam concretamente na prática docente por meio da

formação inicial e continuada dos professores. A ideologia pedagógica, por sua vez, se

manifesta como concepções ou doutrinas, incorporadas à formação continuada, fornecendo

um conjunto de ideologias, em formas de técnicas e orientações de como saber fazer,

influenciando sobremaneira a prática pedagógica.

133

Segundo Nóvoa (1992), durante a formação inicial, aos poucos, o futuro professor

vai edificando sua identidade profissional, que sofre influências diversas, permitindo uma

constante ressignificação do que é ser professor para cada professor. É um processo coletivo

vivenciado socialmente que resulta em mudanças individuais. Conforme o autor:

A identidade não é um dado adquirido, não é uma propriedade, não é um produto. A identidade é um lugar de lutas e de conflitos, é um espaço de construção e de

maneiras de ser e de estar na profissão. Por isso, é mais adequado falar em

processo identitário, realçando a mescla dinâmica que caracteriza a maneira como

cada um se sente e se diz professor. [...]. É um processo que necessita de tempo.

Um tempo para refazer identidades, para acomodar inovações, para assimilar

mudanças. (NÓVOA, 1992, p. 16).

Do mesmo modo, os saberes disciplinares também se inserem na prática docente por

intermédio da formação inicial e continuada; são provenientes de diversos campos do

conhecimento, emergindo da herança cultural e social dos grupos produtores de saberes

existentes na sociedade, tais como: Matemática, História, Geografia, Literatura, sendo estes

integrados aos saberes nos cursos distintos existentes nas faculdades e universidades

(TARDIF, 2002).

Os saberes curriculares são apreendidos pelos docentes por meio dos programas

escolares apresentados pela instituição escolar, geralmente, exposto no Projeto Político

Pedagógico como sendo os conhecimentos válidos que farão parte da formação dos

estudantes (TARDIF, 2002).

Por fim, os saberes experienciais são aqueles produzidos pelos próprios docentes na

sua prática cotidiana e no conhecimento do seu meio. Constituem o estilo pessoal de ensino

que se expressam por um saber ser e por um saber fazer pessoal e profissional validado pelo

trabalho cotidiano. “[...] incorporam-se à experiência individual e coletiva sob a forma de

habitus e de habilidades, de saber-fazer e de saber ser” (TARDIF, 2002, p. 38).

Já Pimenta (2002) utiliza como referência a expressão ‘saberes da docência’,

definindo três categorias: os saberes pedagógicos, a experiência e o conhecimento. Os

saberes pedagógicos são aqueles ligados a todo contexto que envolve a Pedagogia, enquanto

ciência da educação. Trata das questões epistemológicas que foram estruturando o campo da

educação ao longo dos tempos, as teorias, as percepções de ensino, de escola e de educação

de modo geral. A autora salienta que, ao ter contato com os saberes sobre a educação e

Pedagogia, os professores “[...] podem encontrar instrumentos para se interrogarem e

alimentarem suas práticas, confrontando-os. É aí que se produzem saberes pedagógicos, na

ação” (PIMENTA, 2002, p. 26).

134

Sobre o saber da experiência, Pimenta (2002) indica que, ao iniciarem sua formação

inicial, os estudantes já trazem consigo conhecimentos acerca do ofício da profissão que

provém de suas experiências enquanto discentes. A partir das interações vividas com

professores nos vários anos de sua caminhada escolar, os futuros professores são capazes de

perceber quais de fato detinham conhecimento acerca dos conteúdos das disciplinas, quais se

destacavam na parte didática, quais contribuíram de forma mais intensa para sua formação

humana e até lhe servem de inspiração para sua futura carreira profissional.

Conforme a supracitada autora, o saber da docência destacado como conhecimento

diz respeito às áreas do conhecimento propriamente ditas, porém, a autora enfatiza que os

estudantes, futuros professores, devem se apropriar dos conhecimentos teórico científicos,

culturais e tecnológicos visando também seu processo de desenvolvimento humano.

Sobre saberes docentes necessárias à prática educativa, apresentamos, ainda, as

concepções de Freire (2002), que, na obra Pedagogia da Autonomia, traz três grandes

categorias, sendo elas: (a) não há docência sem discência; (b) ensinar não é transferir

conhecimento e (c) ensinar é uma especificidade humana.

Freire (2002), ao afirmar que não há docência sem discência, atribui à formação de

professores um caráter experiencial de onde se originam saberes, em que se torna

imprescindível a percepção de que a relação do professor como sujeito do conhecimento e

do educando como seu objeto não se justifica. Muito pelo contrário, docente e discente não

se limitam a uma relação que os torne objeto um do outro. Freire (2009, p. 26) é enfático ao

ressaltar que “inexiste validade no ensino de que não resulta um aprendizado em que o

aprendiz não se tornou capaz de recriar ou de refazer o ensinado, em que o ensinado que não

foi apreendido não pode ser realmente apreendido pelo aprendiz”. O autor compreende que

saber ensinar exige rigorosidade metódica, pesquisa, criticidade, respeito aos saberes dos

educandos e corporeificação das palavras pelo exemplo.

Em relação à categoria do saber docente ‘ensinar não é transferir conhecimento’,

Freire (2016b) infere o respeito à autonomia do educando, o bom senso, a apreensão da

realidade, alegria, esperança e curiosidade. Para o referido autor, este é um saber marcante e

evidente no sentido de se primar por uma prática educativa que respeite de fato o aluno e,

por isso, explica que:

Quando entro em uma sala de aula devo estar sendo um ser aberto a indagações, à

curiosidade, às perguntas dos alunos, as suas inibições; um ser crítico e inquiridor,

inquieto em face da tarefa que tenho – a de ensinar e não a de transferir

conhecimento. É preciso insistir: este saber necessário ao professor – que ensinar não é transferir conhecimento – não apenas precisa ser apreendido por ele e pelos

135

educandos nas suas razões de ser – ontológica, política, ética, epistemológica,

pedagógica, mas também precisa de ser constantemente testemunhado, vivido.

(FREIRE, 2016b, p. 47).

A última categoria do saber especificada por Freire (2016b) é ‘ensinar é uma

especificidade humana’. Ele argumenta que ensinar exige segurança, competência

profissional e generosidade, referindo-se ao fato de que “o professor que não leve a sério sua

formação, que não estude, que não se esforce para estar à altura de sua tarefa não tem força

moral para coordenar as atividades de sua classe” (FREIRE, 2009, p.92).

Diante das informações aqui brevemente esboçadas, podemos inferir que a

constituição dos saberes docente é fruto de uma aprendizagem cumulativa e contínua, não

acontecendo somente na formação inicial ou restrita à formação continuada.

Nas páginas subsequentes, consta o quinto e último capítulo desta dissertação. Será

discorrida a história de vida dos professores pesquisados e, em seguida, descreveremos sobre

os saberes docentes mobilizados durante as práticas pedagógicas dos professores que atuam

na área de Ciências humanas, bem como analisaremos se os mesmos articulam os saberes

científicos com os saberes locais no seu contexto sócio- histórico-cultural.

136

CAPÍTULO V – OS SABERES E FAZERES MOBILIZADOS DURANTE

AS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS DOS PROFESSORES DA ÁREA DE

CIÊNCIAS HUMANAS

Este último capítulo tem por objetivo descrever sobre a história de vida dos

professores sujeitos da pesquisa, reverberada pela entrevista. São histórias de vida das

professoras Edinete (disciplinas de Sociologia e Filosofia), Eliane (disciplina de História) e

Júnia (disciplina de Geografia). Apresento, também, os relatos proferidos a respeito de suas

vivências e experiências profissionais, procurando evidenciar as persistências e o

protagonismo dessas mulheres, que culminaram em sua ascensão social por meio da

educação, instrumento que lhes possibilitou a conquista de novos caminhos e a realização de

sonhos pessoais.

É evidente que a narrativa de vida do professor está entrelaçada aos saberes docentes,

pois o fazer profissional carrega marcas do eu pessoal. Nesse sentido, conhecer sua biografia

se torna uma importante fonte de informação acerca da prática docente. Conforme afirma

Nias (1991, apud NÓVOA, 1992, p. 15), “o professor é uma pessoa; e uma parte importante

da pessoa é o professor”, dar voz aos docentes pelo relato de sua história de vida é

considerar seu percurso pessoal conjugado com os sentidos da sua construção docente.

Aqui também descrevo sobre as práticas pedagógicas das professoras da área de

Ciências Humanas da Escola Estadual Professora Tereza Conceição Arruda, evidenciando a

articulação dos saberes científicos e os saberes locais da comunidade.

Importante registrar aqui que tais observações não tiveram como finalidade julgar as

atividades ou a competência das professoras durante a atuação profissional, tão pouco fazer

grandes generalizações. A pretensão, sim, é “descrever a situação, compreendê-la, revelar os

seus múltiplos significados, deixando que o leitor decida se as interpretações podem ou não

ser generalizáveis, com base em sua sustentação teórica e sua plausibilidade” (ANDRÉ,

1995, p. 37-38).

5.1 RETRATO DOS PROFESSORES

137

Conforme Castilho (2011), ao pensar em escola, conhecimento e ensino-

aprendizagem, é imprescindível pensar também na biografia dos docentes como algo ligado

à cultura da educação escolar. Goodson (1992, p. 72) afirma que “[...] o estilo de vida do

professor dentro e fora da escola, as suas identidades e culturas ocultas, têm impacto sobre

os modelos de ensino e sobre a prática educativa”.

Para Nóvoa (1992), é notório que a narrativa de vida do professor está tecida aos

saberes docentes, pois o fazer profissional carrega marcas do eu pessoal. Nesse sentido,

ouvir sua biografia torna-se uma importante fonte de informação acerca da prática docente.

Segundo o autor, dar voz aos professores pelo relato de sua história de vida é considerar seu

percurso pessoal conjugado com os sentidos da sua construção docente.

Goodson (1992), em consonância com Nóvoa (1992), afirma que o desenvolvimento

profissional do professor está extremamente ligado com sua história de vida, pois, em sua

atuação profissional, os docentes tomam decisões e fazem escolhas levando em conta

aspectos da vida que influenciam diretamente na sua ação educativa, “[...] o aspecto pessoal

apresenta-se irrevogavelmente associado à prática, é como se o professor fosse a sua própria

prática” (GOODSON, 1992, p. 68).

Huberman (1992) defende quanto à necessidade de ouvir os professores por meio das

suas histórias de vida. Por esse viés, Queiroz (1988) define a história de vida como:

[...] o relato de um narrador sobre sua existência através do tempo, tentando

reconstituir os acontecimentos que vivenciou e transmitir a experiência que

adquiriu. Narrativa linear e individual dos acontecimentos que nele considera

significativos, através dela se delineiam as relações com os membros de seu grupo,

de sua profissão, de sua camada social, de sua sociedade global, que cabe ao pesquisador desvendar. (QUEIROZ, 1988, p. 20).

Pois bem, seguindo os caminhos propostos pelos autores supracitados, passa-se agora

à descrição da memória de vida dos professores da Escola Estadual Professora Tereza

Conceição Arruda, sujeitos da pesquisa, com ênfase em suas trajetórias escolar e profissional

a fim de evidenciar seus percursos, no sentido de nos dar pistas que possam indicar se suas

histórias guardam relação com a prática. Para tanto, no próximo item, teço pelas vozes das

docentes, Eliane, Júnia e Edinete, (professoras/colaboradoras/sujeitos da pesquisa), suas

histórias reverberadas pela técnica de entrevista.

5.1.1 Retrato da professora Eliane

138

Eliane Prado Silva, 40 anos, nascida no Rio Grande do Sul, professora, é graduada

em História, pela Universidade Federal de Mato Grosso. Neste ano de 2018, segundo ela, é a

primeira vez que exerce o magistério como professora habilitada na Escola Estadual

Professora Tereza Conceição Arruda, visto que, outras vezes que lecionou, foi como

professora leiga. Ela se autodeclara branca.

Até aos nove anos, Eliane viveu com seus pais, sua irmã e um irmão no Rio Grande

do Sul. Aos nove anos, ela se mudou com a família para o município de Paranaíta, no Mato

Grosso. Ela conta que, até os onze anos, sua vida sempre foi perfeita. Estava tudo sempre

certo. Seus pais viviam felizes, nunca brigavam um com o outro. Na época das férias,

convivia com seus avós paternos na fazenda que eles moravam e trabalhavam. Ela conta que

gostava muito de brincar. Brincava de dar aula e na rua, quando estava na cidade. Quando

estava no sítio, saía campo afora, brincando.

Em Paranaíta, Mato Grosso, durante o período escolar, ela morava na cidade, com

uma conhecida da família, para estudar. No período de férias, ela se juntava ao restante da

família no garimpo, que funcionava na zona rural do mesmo município. Ela conta que “a

mãe não gostava muito, mas viveu um bom tempo lá”. Até que o pai dela resolveu que iam

embora “[...] construir a vida lá no Sul. Porque, a vida de quem vem do Sul para mexer com

garimpo é de ganhar dinheiro e voltar”.

Na sua estadia no garimpo, durante as férias, ela disse que andava muito no mato,

voava no cipó, tomava banho no rio. Eliane conclui que seu pai e sua mãe deixaram-na viver

a infância ali. Porém, na volta para o Rio Grande do Sul, isso quando ela tinha os seus doze

anos de idade, seus pais se separaram.

Com a separação, ela e a irmã ficaram com o pai, enquanto que o irmão ficou com a

mãe. Ela conta, entretanto, que o pai ficou com elas somente por um dia, pois, no dia

seguinte, ela foi entregue para a avó paterna e a irmã foi entregue para avó materna. Ela

lembra com tristeza que os três irmãos ficaram separados um do outro. Com a separação, o

pai voltou a Mato Grosso, especificamente para o município de Colíder, e ela permaneceu

no Rio Grande do Sul com a avó.

Segundo Eliane, a avó lhe ensinou muitas coisas, como lavar roupa, limpar casa, a

incentivou a voltar a estudar, pois, segundo relata, quando ela foi morar com a avó, ela

estava praticamente reprovada, porque, no processo de separação dos pais, ela só andava à

toa, ninguém cobrava nada dela, estava praticamente abandonada. Com a ajuda da avó,

conseguiu se concentrar novamente nos estudos, recuperar as notas e prosseguir estudando.

139

Ela permaneceu com sua avó por aproximadamente quatro anos. Em 1990, seu pai se casou

novamente e a trouxe, juntamente com sua irmã, para morar com ele no município de

Colíder.

Em Colíder, já com seus dezesseis anos, ela iniciou a cursar o ensino médio no

período noturno, no curso técnico em Contabilidade. Cursando técnico em contabilidade, ela

conseguiu um estágio em um comércio da cidadezinha onde morava. Ela conta que ficou

muito feliz em conseguir o estágio, pois sua madrasta já tinha arrumado um emprego de

doméstica para ela na casa de uma amiga da família, porém ela não queria ser doméstica.

Eliane conta que, com 16 anos, começou a namorar e acabou engravidando aos 17

anos de idade. Quando soube que estava grávida, ela saiu da casa do pai e foi morar com o

namorado na cidade de Peixoto de Azevedo/MT. Ela relata que o “[...] pai falou que não

queria filha grávida em casa. Antes de ele saber que eu estava grávida, eu fugi de casa com

medo de apanhar dele. E fui morar junto”. Quando iniciou a viver junto com o namorado,

ela se decepcionou. Pois segundo ela “[...] a pessoa não estudava, não trabalhava. Ele era

uma farsa, aquela pessoa que eu conhecia”. Ela reconta que o esposo “não queria nada com a

vida. E, aí eu trabalhava, eu conhecia todo mundo. Aí as coisas que ele fazia me deixavam

envergonhada. Até que um dia eu fui embora. Mas eu passei bastante vergonha na mão dele,

passei bastante apuro na mão dele”.

Nos três anos que ela viveu com o esposo em Peixoto de Azevedo/ MT, ela deixou

de estudar, ou seja, não concluiu o ensino médio. Ela relata que não terminou o curso de

Contabilidade porque “[...] a contabilidade exigia demais de mim, entendeu? E ainda

trabalhava, e o bebê pequeno não dormia a noite, então não conseguia juntar e ter nota

boa”. E também “[...] eu ia para a escola, levava o menino junto, mesmo assim, ele {o

esposo} ia lá sondar”. Ela relata que tentou continuar apesar das dificuldades, mas “[...] as

notas foram só ficando feia”. Aí decidiu: “não vou ficar. Pra ficar com nota ruim né.

Reprovar. E era o último ano também do curso, aí depois extinguiu o curso de

contabilidade”.

Em 1998, ela decidiu voltar a estudar, desta vez cursando o Magistério, no período

noturno, porém deixou o curso, uma vez que seu esposo era muito ciumento e ia persegui-la

na escola, conforme relata a mesma:

[...]. Eu estava estudando, fazendo o magistério, porque eu não tinha concluído...

Não conseguia concluir, pois ele [o esposo] ficava com ciúme lá na aula, eu estava

tentando terminar, porque quando eu fiquei grávida do meu filho, eu estava no

segundo ano de contabilidade e não terminei o curso. (informação verbal, PROFESSORA ELIANE, 2018).

140

A professora salienta que, não aguentando mais as perseguições, a violência sofrida e

a falta de coragem de trabalhar do esposo, decidiu por deixá-lo. Para isso, pediu ajuda ao

irmão do esposo, que prontamente a ajudou. Ela conta que foi embora para o Rio Grande do

Sul e “aí...essa história durou mais uns tempos, ele atrás, ele atrás, aí ele foi lá, deixei ele

voltar, dei mais uma chance para ele, né. E nessa chance, ele provou que não tinha como dar

mais chance para ele. Aí minha família e eu conseguimos fazer ele voltar para Mato

Grosso”. Ela conta que eles moraram junto mais uns três meses no Rio Grande do Sul, antes

de terminar de vez o relacionamento. Nessa época, ela já estava com 21 anos.

Após a separação, a necessidade de sustentar o filho a levou a procurar um emprego.

Ela começou a trabalhar como professora leiga numa escola de ensino fundamental.

Aproveitando os conhecimentos da sua pequena passagem pelo Magistério. Pois, com a sua

ida para o Rio Grande do Sul, ela acabou desistindo do curso de Magistério.

Em 1999, novamente, ela volta para Mato Grosso, desta vez, para Cuiabá. Chegando

a Cuiabá, ela logo arrumou trabalho em uma empresa da iniciativa privada. Logo, também,

conheceu uma pessoa, se envolveu emocionalmente e foi quando engravidou do seu segundo

filho. Quando ela ficou grávida, ela começou a ter problema no trabalho, pois o patrão ficou

irritadíssimo com a gravidez da funcionária. Segundo ela, “[...] o patrão tinha trauma por

conta de uma funcionária antiga dele que deu maior show nele com gravidez, e não ia

trabalhar”. Então ele pediu para que ela pedisse conta. Quando ela disse “[...] eu não tenho

família aqui para mim poder fazer isso que o senhor está querendo. Eu só posso dizer para o

senhor, que eu vou trabalhar. Eu nunca fui de faltar serviço, o senhor tem o meu

compromisso. “Eu não tenho ninguém para me amparar também”. Com essa argumentação,

ela conseguiu continuar na empresa durante a gravidez.

Porém, terminada a sua licença-maternidade, quando ela retornou ao emprego, já foi

avisada que estava despedida. Ela, com duas crianças para sustentar, foi em busca de outro

emprego. Ela reconta que “não conseguia emprego, porque ele me queimou para todo lado,

mas aí passou assim uns dois anos eu consegui colocação de novo no mercado né, aí eu fui

trabalhar com umas amigas”.

Sua volta ao mercado de trabalho culminou também com sua volta à escola. Desta

vez, ela foi estudar na Escola Técnica Federal de Mato Grosso. Cursou o ensino médio lá.

Logo após o término do ensino médio, ela conseguiu uma bolsa para fazer pré-vestibular

141

numa instituição privada. Só que, mesmo fazendo o cursinho, ela não conseguiu passar no

vestibular de uma universidade pública.

Então, em 2007, ela resolveu prestar vestibular numa universidade privada, que

oferecia curso à distância, mas por conta de não conseguir pagar as mensalidades, acabou

desistindo.

Em 2010, ela prestou novamente vestibular pela Universidade Federal de Mato

Grosso. Era um seletivo para preenchimento de três vagas no curso de História no período

noturno. Desta vez, ela conseguiu passar e, assim, iniciou a cursar a graduação pela UFMT.

Conforme ela relata: “eu fiz a prova da parte específica da história, né, fiquei em segundo

lugar. E consegui concluir o curso de história em 2012”.

Enquanto cursava História, no período noturno, ela trabalhava no diurno. Durante

esse período ela mudou de emprego, indo trabalhar numa grande empresa da iniciativa

privada. Após desentendimento nessa empresa, ela foi trabalhar na Secretaria de Habitação

de Cuiabá, onde permaneceu por dois anos.

Em 2015, ela foi para a Secretaria Municipal de Educação de Cuiabá, como

assistente administrativo do Secretário da pasta. Nessa estadia na Secretaria de Educação,

ela conheceu o seu atual esposo, o quilombola Thiago, que também trabalhava no mesmo

órgão. Ela e Thiago deixaram a Secretaria no término do mandato do Prefeito Mauro

Mendes em 2017. Ela contou que, na época, eles tiveram que remodelar a vida, pois ficaram

os dois desempregados. Ela conta que “[...] ficou durante um período trabalhando como

autônomo e a gente começou a participar das reuniões aqui do Quilombo Mata-Cavalo”.

Antes de conhecer o Quilombo Mata-Cavalo, ela disse que havia participado de um

movimento sem-terra para ver se conseguia um pedaço de terra. Porém não teve êxito, pois o

líder do movimento, segundo ela, era um charlatão que estava apenas enganando as pessoas.

E nesse período da participação no movimento, ela se batizou na Igreja Batista, onde

congrega até hoje.

Em meados de 2017, ela e o esposo passaram no seletivo do IBGE para fazer

pesquisas na zona rural. Ela fez a pesquisa do IBGE na comunidade de Mata-Cavalo. Então,

na época em que estava prestando serviço para o IBGE, ela se inscreveu e contou ponto para

o seletivo da Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso, especificamente para a

Escola Estadual Quilombola Profa. Tereza Conceição Arruda, onde trabalha atualmente,

desde fevereiro de 2018.

Ela relata que em sua vida “[...] tudo tem luta, né, tudo não é fácil, nada vem de mão

beijada, né. Aí, agora estou tendo a experiência de ser professora pela primeira vez de

142

verdade, né, porque até então, assim antes era... foi uma experiência curta, né, quando eu

estava lá antes de concluir meu ensino médio”.

Eliane atribui o gosto pelo exercício do magistério à sua professora da 1ª série. Ela

relata: “[...]. Eu lembro da minha professora da primeira série, professora Dulce. Era

assim, eu sempre dava jeito de levar flores para ela, agradar ela, né. Professora de

ensino...primeira série. Aí, as brincadeiras minhas, eu lembro que eu sempre brincava de

ser professora”. Então:

[...] dava as greves, eu ia para casa da minha avó, aí o professor era um só para

todo mundo na sala, aí eu ajudava ele, na sala. Aí, eu fui para Peixoto de Azevedo.

O que eu fui fazer? Fui procurar uma sala de aula para mim trabalhar. Lá era legal,

o negócio assim, era gostoso dar aula. (informação verbal, PROFESSORA

ELIANE, 2018).

Seu gosto pela disciplina de História, ela atribui a uma professora de História que ela

teve quando cursava o ensino médio na Escola Técnica Federal de Mato Grosso. Ela

relembra:

[...] eu tive uma professora chamada Tetê, ela dava aula de história para gente. E as

aulas dela era aquelas aulas assim, em círculo, todo mundo lia um pouco e discutia

o assunto. Era legal as aulas dela. Aí eu pensei: Ah! Eu acho que, essa profissão eu

vou querer, porque é legal. (informação verbal, PROFESSORA ELIANE, 2018).

Diante disso, podemos deduzir que a concepção dos saberes da profissão,

principalmente, no início da carreira docente, passa por momentos de reprodução, de algum

trabalho que foi ou que é referência, até conseguir construir sua própria prática, encontrando

seu próprio jeito de dar aula, “[...] muita coisa da profissão se aprende com a prática, pela

experiência, tateando e descobrindo, em suma, no próprio trabalho” (TARDIF, 2002, p. 86).

Eliane revela que, no seu exercício do magistério, procura inspiração nessas

professoras que marcaram sua vida de forma positiva e, assim, trabalhar também com seus

educandos.

Sobre ser professora numa escola quilombola, ela relata:

Ah! Eu estou gostando, estou gostando. Porque assim, você tem um relacionamento com os alunos, do jeito que eu sempre...que eu estou conseguindo ter...do jeito que eu

sempre pensei que deveria ser. [...] eu acho que o professor, ele não tem que ter aquele relacionamento de...de punição, de castigo, e sim de troca. Os alunos quilombolas são

muito esforçados e respeitadores. Eles valorizam e respeitam o professor. Então isso

me motiva a me esforçar ainda mais para que os alunos tenham um bom aprendizado e um conteúdo que vai ajudá-lo na sua vida. (informação verbal, PROFESSORA

ELIANE, 2018).

143

A fala da professora Eliane demonstra-nos que, ao chegar à escola, o professor não

vem vazio. Ele chega, carregando consigo sua cultura e se depara com a cultura da escola,

que, na visão de Candau (2008, p. 246), é “[...] mundo social, que tem suas características e

vida próprias, seus ritmos e seus ritos, sua linguagem, seu imaginário seus modos próprios

de regulação e de transgressão, seu regime próprio de produção e de gestão de símbolos”.

Nesse sentido, segundo Moraes (2018, p. 100) “o professor necessita estabelecer uma

relação de troca e ressignificação cultural, não impor sua cultura e nem aceitar totalmente a

cultura da escola, e, dessa forma, ir construindo sua identidade profissional”.

A generosidade dos alunos, segundo a professora Eliane, está fazendo com que ela se

apaixone pela escola quilombola, estimulando-a a lutar para que os direitos dos estudantes

quilombolas sejam respeitados e que políticas públicas sejam de fato concretizadas.

5.1.2 Retrato da professora Júnia

Júnia Auxiliadora Santana, 37 anos, é natural de Nossa Senhora do Livramento/MT.

Seu pai é pedreiro e a mãe (já falecida) doméstica, ambos analfabetos. Júnia é graduada em

Geografia por uma universidade privada. Possui Especialização em Relações Raciais pela

Universidade Federal de Mato Grosso/UFMT e atualmente, em 2018, é mestranda em

Educação, também pela UFMT. Exerce o magistério há dez anos. Júnia se autodeclara

negra. Atualmente, ministra a disciplina de Geografia na Escola Estadual Quilombola Profa.

Tereza Conceição Arruda.

Livramentense de “Chapa e cruz”, como orgulhosamente se autodeclara, a professora

conta que teve uma infância feliz junto de seus pais e seus quatro irmãos. Até os 10 anos, ela

conta que sua vida foi marcada por muitas brincadeiras. Sobre isso ela relata: “Minha

infância até os 10 anos, foi marcada por muitas brincadeiras, eu sempre acompanhada da

minha irmã Juliane e meus primos”. Ela relata também que na sua infância “foi muito feliz,

na presença de papai de mamãe, e da minha família, me sentia muito amada pela minha

falecida avó, que mesmo na sua simplicidade não media esforços para me agradar, assim

como a meus irmãos também”.

Sua adolescência e juventude foram marcadas por estudar e pela sua participação no

Grupo de Jovem da Igreja Católica de Nossa Senhora do Livramento. Ela reconta: “eu

sempre fui de movimento da pastoral, da CEBE, fui professora de catequese, Pastoral da

Juventude. Eu tinha essa facilidade de ir à frente, falar, não tinha vergonha”.

144

Em 2005, aos 23 anos de idade, ela se casou. Ela explanou que conheceu o seu

esposo na porta de sua casa no ano de 2002. Ela revelou que houve muita resistência de seus

pais em aceitar o namoro, pois o rapaz não era da cidade de Livramento. Ela recontou que

“[...] as pessoas julgavam muito ele, por ele ser de fora”. “[...] falavam que ele era casado,

que só ia se aproveitar de mim e sumir”. Mas, mesmo sem a aprovação da família, ela se

casou com ele em agosto de 2005. Ela conta que sua vida com ele foi incrível. Porém, em

2006, ele foi diagnosticado com câncer, vindo a falecer no ano seguinte.

A professora reconta que a morte do esposo impactou muito a sua vida, pois, com

ele, “ela aprendeu o que era amar e ser amada, sem preconceitos, sem discriminação. E sim

com muito respeito”, apesar de todo o mau tratamento que recebeu por parte da família do

esposo. Ela atribui essa não aceitação ao racismo, pelo fato de ela ser negra e eles todos

brancos. Porém ela relata que, apesar das muitas adversidades, ela foi feliz com o esposo

durante os cinco anos que conviveram.

Após a morte de seu esposo, ela retornou de Diamantino/MT, cidade onde ela vivia

com ele, para a cidade de Nossa Senhora do Livramento. Nessa volta, ela ficou um tempo

sem trabalhar e logo depois arrumou emprego numa escola estadual em Várzea Grande.

Morando em Várzea Grande, em 2009, ela conheceu um homem e iniciou um

relacionamento. Posteriormente, os dois foram morar juntos. Segundo ela, com esse rapaz

ela viveu um casamento conturbado, com muitas perdas. Ela revela que, na verdade, foi

morar com ele tentando encontrar nele o que ela tinha com o seu falecido marido. Não deu

certo e, em 2014, resolveu dar fim a esse relacionamento.

Com o fim do relacionamento com o segundo esposo, em 2014, ela novamente

retorna a Nossa Senhora do Livramento para os braços da família. Atualmente, em 2018, ela

vive um relacionamento estável com um rapaz de origem haitiana. Para ela, sua vida com

ele, “[...] tem sido de muita aprendizagem, companheirismo e compreensão”. “Ela expõe,

“que embora sejamos de culturas totalmente diferentes”, estão se “[...] adaptando dia a dia

e vivendo numa cumplicidade gostosa. “[...] e além do mais, ele vem contribuindo ainda,

para a reafirmação da minha identidade”.

Com relação à sua vida escolar, a professora narra que na sua infância e adolescência

“gostava muito de ir para a escola”. Ela entende hoje, em 2018, que naquela época “alguns

professores faziam acepção e discriminação”, segundo ela, pelo fato de “ser pobre e

negra”. Relata que teve “professores excelentes, principalmente de língua portuguesa, a

professora Maria Arminda, a finada Joana, que era professora de ciências”. Ela reconta

145

que esse período foi um momento bastante interessante na vida dela, embora percebendo

hoje que havia essa questão da discriminação e do preconceito. Assim ela relata:

[...] a gente percebe hoje que também tinha essa questão da discriminação, do

preconceito, do bullying, que hoje a gente chama de bullying, né. O professor, por

exemplo, de educação física, é...enquanto priorizava um grupo, o outro grupo

ficava ali, é... sentadinho porque não tinha muita habilidade para jogar, para

brincar, então, ficava ali, meio assim, na retaguarda. Eu mesma era uma dessas

crianças que ficava sentadinha, pois nunca era chamada para jogar. (informação verbal, PROFESSORA JÚNIA, 2018).

O sentimento de incapacidade provocado pela insensibilidade do professor é

denunciado por Arroyo (2008, p. 9) quando ressalta que, muitas vezes, “os pobres são vistos

como inferiores em capacidades de atenção, esforço, aprendizagem e valores, e acabam

sendo responsabilizados(as) por sua própria condição”. E são, “desse modo, constantemente

inferiorizados(as), reprovados(as) e segregados(as)”.

Interpretando Arroyo (2008), a insensibilidade dessa visão simplista sobre os pobres

leva a educação a desconsiderar os efeitos desumanizadores da vida na pobreza material ou

da falta de garantia de cobrir as necessidades básicas da vida como seres humanos.

Teles (2010, p. 48) argumenta que, em uma escola ou numa mesma sala de aula, há

estudantes de diferentes etnias, raças, gêneros, capacidades cognitivas, etc. Segundo ele, “é

na escola que muitos desses educandos têm o seu futuro marcado negativamente, pelo

estigma discriminatório que se traduz em “selo de incapacidade cognitiva” e se transforma

em desigualdade de inserção e de renda no mercado de trabalho”.

Retomando a história de vida da professora Júnia, ao terminar o ensino fundamental,

logo ela inicia a cursar o ensino médio na cidade de Várzea Grande, município vizinho de

Nossa Senhora do Livramento. Morando com sua irmã, em Várzea Grande, ela cursa o

primeiro ano do ensino médio numa instituição privada, que, segundo a mesma, era muito

boa. Porém, no ano seguinte, retornou a Nossa Senhora o Livramento, onde cursou os dois

últimos anos de Propedêutico. Sua volta para Livramento se deu pelo fato de que ela não se

adaptava a morar longe dos pais.

Ao terminar o ensino médio, ela iniciou fazer um cursinho pré-vestibular que durou

aproximadamente seis meses. Em 2001, ela prestou vestibular em uma universidade privada

e foi aprovada para o curso de Geografia. Ela concluiu o curso de Geografia em 2005. Ela

relata que, para cursar a graduação, “[...] tinha uma ajuda, pois na época o Prefeito é...

disponibilizava o ônibus. É um momento também bastante difícil, por que era um ônibus já

146

bastante sucateado, direto quebrava, a gente chegava uma, meia noite em casa, mas enfim,

em dois mil e cinco terminei o ensino superior”.

Terminado a graduação, a professora, posteriormente, fez uma especialização em

Relações Raciais pela UFMT e, atualmente (2018), está cursando o mestrado em Educação

também pela Universidade Federal de Mato Grosso. Conforme Júnia informou, ela

qualificará em dezembro de 2018 e a defesa de sua dissertação ocorrerá em março de 2019.

A respeito de sua trajetória profissional, a professora relata que começou a trabalhar

cedo, pois as condições financeiras da sua família não eram as melhores. Então, no segundo

ano que ela estava cursando Geografia, ela já iniciou a trabalhar. Ela trabalhava de manhã na

APAE (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais) e, à tarde, ela dava aula de

Geografia numa escola estadual de Livramento. Ela conta que a escola estava sem professor

de Geografia, então, como ela já estava no segundo ano do curso, ela foi convidada para

ministrar as aulas.

Ela relata:

[...] comecei é... a trabalhar e as condições financeira dos meus pais não eram as

melhores, era na questão assim de conciliar o estudo, né, o curso da geografia é...

com o pagamento mesmo, com a questão financeira do curso. Então, assim, meio

que a gente é... fazia as duas coisas, mas fazia as duas coisas assim, preocupada.

Ah! Como que eu vou pagar a minha mensalidade no próximo mês, né. Então, por é... mais que você estava feliz de estar trabalhando, de ter tido oportunidade de

entrar dentro de uma unidade escolar mesmo sem ter terminando o curso superior,

mas sempre vinha aquela preocupação em como pagar o próximo mês da

mensalidade, né. Porque assim, embora eu trabalhava lá na APAE. Porém a APAE

era assim e é assim até hoje, é de quatro em quatro meses que paga, de cinco em

cinco meses. E como eu ainda não tinha terminado o curso superior, peguei

dezesseis aulas numa escola estadual, eu lembro como se fosse hoje, é eu recebia

duzentos reais. (informação verbal, PROFESSORA JÚNIA, 2018)

Em 2005, após o seu casamento, ela se mudou com o seu esposo para

Diamantino/MT. Chegando lá, com o auxílio de uma amiga, ela conseguiu trabalho em uma

escola particular da cidade. Ela conta que permaneceu nessa escola até final de 2006. Em

2007, ela fez seletivo para o CEFAPRO (Centro de Formação dos Profissionais do Estado de

Mato Grosso) da Regional de Diamantino.

Júnia relata que permaneceu no CEFAPRO por menos de um ano, dando formação

para professores na área de Humanas. Ela deixou a instituição no final de 2007, por conta de

um problema grave de saúde, que também culminou no falecimento do seu primeiro esposo.

No final de 2007, ela retornou a Livramento. Nesse retorno para Livramento, ela ficou de

quatro a cinco meses sem trabalhar.

147

Em meados de 2008, ela foi convidada por uma ex-professora da graduação para

trabalhar de contrato em uma escola estadual de Várzea Grande. A professora de Geografia

titular da vaga entrou de licença e ela assumiu as aulas. No ano de 2009, ela contou ponto

para o seletivo de contratado da Seduc/MT, na escola Porfíria Paula, também localizada na

cidade de Várzea Grande. Ela permaneceu nesta escola por, aproximadamente, quatro anos.

A professora relembra que, no seu último ano nessa escola, ficou muito doente, com

depressão. Ela saiu de licença-médica e retornou a Livramento para se tratar. Quando ainda

estava em tratamento, ela recebeu o convite para trabalhar na Escola Estadual Professora

Tereza Conceição Arruda, aceitando-o (onde se encontra até neste momento, 2018), para

substituir a coordenadora pedagógica que entraria de licença-maternidade. Ela então aceitou

o convite e veio exercer a função de coordenadora pedagógica. No ano seguinte, participou

do seletivo da Seduc/MT para professora temporária da disciplina de Geografia e conseguiu

permanecer na escola ministrando as disciplinas de Geografia e de História. Já está na escola

quilombola há cinco anos.

Ela evidencia:

[...] a partir desse momento, que eu voltei aqui na comunidade de Mata-Cavalo, né,

comecei a...a reviver toda minha ancestralidade, as pessoas que há muito tempo eu

não via, até parentes, né, primos. Descobri quem eram realmente os parentes da

minha avó, que moravam aqui no Quilombo Mata-Cavalo, e comecei a dar aula

aqui na comunidade. [...] A comunidade também, assim como a Gonçalina,

contribuiu muito comigo, porque naquela época eu estava numa situação é...

bastante assim, deprimente mesmo na minha vida, e assim, a vinda minha aqui

para a comunidade foi de suma importância não só para...para o meu sustento, para minha vida profissional, mas também, principalmente para a minha vida pessoal,

né, porque eu mudei bastante, depois que eu vim para cá. [...]E hoje como

professora quilombola, eu sei a importância de estar trabalhando dentro de uma

comunidade quilombola, a importância de ser é... uma mulher negra, é... de me

aceitar como tal, e a partir dessa aceitação também, poder trazer essa experiência,

essa trajetória de vida para os meus alunos e para aqueles que me circundam

também. (informação verbal, PROFESSORA JÚNIA, 2018).

Júnia ressalta que sua relação com o magistério inicia com a Pastoral da Juventude,

onde ela ministrava aula de catequese para os adolescentes. Mas lembra de que também foi

influenciada por sua tia Martinha e pela prima Sueli, ambas professoras.

5.1.3 Retrato da professora Edinete

Edinete Pereira Leite, 44 anos, professora, graduada em Matemática num curso à

distância em uma universidade privada. Ela é natural de Cuiabá e se autodeclara amarela. Há

148

um ano e meio está exercendo à docência na Escola Estadual Professora Tereza Conceição

Arruda. Neste ano de 2018, ela ministra aulas de Filosofia e Sociologia para o ensino médio.

Edinete fala que não lembra muito bem as coisas de quando ela era criança. Disse

que lembra mais a partir dos 09 anos. Ela conta que teve uma infância bem precária, pois

seus pais eram muito pobres. Ela revela que quando era bem pequenina, seus pais se

separaram e ela e os sete irmãos ficaram com a mãe. “Minha mãe criou nós sozinha. Sem a

ajuda de ninguém, só ela. Sempre estudei sempre ela nos colocou para estudar”. Ela relata

que:

[...] a vida escolar foi muito difícil, porque nós éramos muito pobres. Então

geralmente a gente ia à escola e não tinha uma roupa adequada para ir para a

escola. As pessoas riam. Teve muito preconceito quando nós íamos para a escola.

Tinha muita dificuldade na escola também. (informação verbal, PROFESSORA

EDINETE, 2018).

Essa realidade de desigualdade vivida pela entrevistada é, conforme Quijano (2005) e

Santos (2009), uma história que perdura desde a colonização. A produção dos pobres é

articulada e reforçada com os processos sociais que conferem assimetria à diversidade,

reduzindo o diferente à condição de inferioridade. Conforme Arroyo (2008), isso acontece

porque certos coletivos sociais e raciais se perpetuam concentrando o poder, a renda, a terra,

a riqueza, o conhecimento, a justiça, a força, enquanto os coletivos pobres são mantidos

como subalternos e marginais.

Por causa da dificuldade financeira que a família atravessava, ela teve que largar os

estudos para trabalhar de babá aos 12 anos de idade. Ficou trabalhando em casa de família.

Edinete relata que parou de estudar na 6ª série do ensino fundamental e ficou uns três anos

sem ir à escola. Quando fez quinze anos, resolveu voltar. Terminou o ensino fundamental

com 18 anos. Trabalhava em um período e estudava no outro. Concluído o ensino

fundamental, ela novamente para de frequentar a escola para se dedicar ao trabalho de

doméstica, em tempo integral, para ajudar no orçamento da família.

Passados alguns anos, ela resolve retornar à escola para cursar o ensino médio, com o

sonho de assim conseguir um emprego que não fosse mais de babá e doméstica:

Eu trabalhei muito tempo como doméstica. Depois que terminei o ensino médio eu

fiz um curso de cabelereira. Depois que terminei o curso de cabelereira, fiquei

trabalhando num salão por um certo tempo, depois saí. Depois montei um salão

para mim, mas não deu certo. Depois eu voltei a trabalhar em outro salão.

Trabalhei mais de vinte anos nesse salão de cabelereira. Depois que fui fazer a

faculdade. (informação verbal, PROFESSORA EDINETE, 2018)

149

Percebe-se que, apesar de pertencer a uma família com poucos recursos financeiros,

ela via o trabalho doméstico como uma alternativa temporária para suprir suas necessidades,

acalentando a vontade de mudar de vida.

Porém, como afirma Arroyo (2008), os indivíduos resolvem seguir a escolarização,

com a promessa de uma melhora de vida, porém o que a realidade nos mostra, contudo, é

que, em sua maioria, as pessoas não conseguem concretizar o sonho que se alimentou, tendo

de seguir uma vida de subempregos, perdendo todo ou quase todo o contato com sua cultura

local, em troca dessa “vida moderna’’. A partir das contribuições de Arroyo (2008),

percebemos, então, que a realidade não deixa as pessoas optarem por fazerem o que

realmente querem, pois, oportunidades não são oferecidas a todos, seja nos estudos ou em

simples empregos.

Após terminar o ensino médio, Edinete conciliou o trabalho com a tarefa de ser mãe,

pois, assim que terminou o ensino médio, aos 21 anos de idade, ela engravidou de seu único

filho, como relata a seguir:

[...] eu trabalhava e tinha o meu filho para cuidar. Então eu não tinha tempo para

estudar. Porque eu trabalhava o dia inteiro, a noite era o único tempo que eu tinha

para ficar com ele. Porque se eu fosse estudar a noite, eu não ia ter tempo nem de

ficar com ele a noite. Porque eu ia chegar ele estaria dormindo. Eu ia chegar onze

horas em casa, ele estaria dormindo. Eu nem ia ver ele. Ele nem ia me ver, eu ia ver ele, mas ele não ia me ver. Então eu deixei de estudar por causa disso. Porque

eu queria chegar do trabalho sete horas, oito horas e ficar com ele pelo menos até

10 horas, brincando com ele, dando atenção a ele. (informação verbal,

PROFESSORA EDINETE, 2018).

Em 2013, aos 40 anos de idade, Edinete resolve, então, cursar a educação superior

numa universidade privada, pois, na universidade pública, ela já tinha tentado uma vez e não

obteve sucesso. Segundo Ennafaa (2012, p. 160), o vestibular “continua a eliminar

candidatos aos estudos superiores nas universidades públicas, e geralmente a maioria dos

excluídos é jovem das camadas desfavorecidas que estudaram nas escolas da rede pública”,

como retrata nossa pesquisa.

Ela relata que, na graduação, encontrou muitas dificuldades, pois “[...] fazia muito

tempo que eu tinha parado de estudar, eu não lia, não buscava. Depois quando eu voltei

para faculdade eu tive que me esforçar muito, teve que estudar muito para eu conseguir,

porque eu estava bem atrasada”.

Percebe-se que a trajetória escolar da professora foi acidentada, penosa e marcada

por desafios e superação, desde o ensino fundamental, passando pelo ensino médio, até sua

formação superior. Quando no ensino fundamental, era inferiorizada por ser pobre. No final

150

da infância e durante toda a sua adolescência, surge a necessidade de trabalhar para ajudar o

sustento da família. Na vida adulta, a chegada do filho, bem como a necessidade constante

de trabalhar fora de casa e nela, completa o círculo de dificuldade que a Edinete enfrentou

no processo de escolarização.

Em 2017, a professora consegue vaga para trabalhar na Escola Estadual Professora

Tereza Conceição Arruda, ministrando aulas de Matemática. No ano de 2018, ela permanece

na escola, ministrando aulas de Filosofia e Sociologia.

Ela relata que tem enfrentado dificuldade em atuar em disciplinas na qual não tem

formação. Ela relata:

[...] não tenho pleno conhecimento daquela área {filosofia e sociologia}. Eu tento

me esforçar ao máximo. Leio os livros, faço pesquisa na internet, para eu estar por

dentro daquela área que eu estou dando. A maior dificuldade é essa. Pois o que eu sei mesmo, que eu estudei mesmo, eu não atuo. Eu acho que se eu estivesse

atuando na minha disciplina que eu fiz, eu estaria sendo bem melhor. (informação

verbal, PROFESSORA EDINETE, 2018).

É nítida a preocupação da Edinete quanto à sua atuação fora da disciplina de

formação. Segundo Cruz (2012, p. 2093), o profissional docente que atua fora da sua área de

formação é denominado de professor polivalente. Segundo o autor, a polivalência “designa a

capacidade de o trabalhador poder atuar em diversas áreas, podendo caracterizar ainda um

profissional pautado pela flexibilização funcional”.

Assim, conforme Cruz (2012, p. 2906), “a noção de professor polivalente seria

associada à visão de que este seria um profissional que transita por diferentes áreas de

conhecimentos articulando saberes e procedimentos”. Porém o autor ressalta que a própria

perspectiva interdisciplinar, que seria um princípio de formação para a constituição da

polivalência, não tem uma sustentação sólida nas discussões das políticas, configurando-se

num discurso muito genérico.

Edinete ressalta que, desde pequena, sonhou em ser professora, mas com o passar do

tempo havia abandonado esse sonho. Porém, há pouco tempo atrás, ao ver o trabalho da sua

irmã na sala de aula, o sonho se reacendeu e ela resolveu cursar a licenciatura para exercer o

magistério. Apesar de temer a não realização dos seus sonhos, mal sabia ela que um dia se

tornaria realidade o fato de tornar-se professora e que exerceria o magistério na terra de seus

ancestrais.

Ela conta que a experiência na sala de aula está sendo maravilhosa, ainda mais por

ser numa escola que fica dentro da sua comunidade. Edinete é quilombola de Mata-Cavalo,

151

porém a mesma não morava na comunidade porque tinha que trabalhar fora do quilombo.

Ela conta que seu sonho foi duplamente realizado: O de ser professora e também de atuar na

escola de sua comunidade.

Analisando a história de vida das professoras partícipes da pesquisa, reverberada

pelos seus relatos, percebe-se que apresentam alguns pontos incomuns, quais foram: a

infância e a juventude simples e, comumente, permeada por sofrimentos, privações, por

conta das desigualdades sociais presentes na nossa sociedade. A elas não faltaram episódios

em que suas necessidades básicas ligadas à alimentação, vestimentas, material escolar não

foram atendidas. No entanto, elas encontraram em sua realidade as estratégias para que a

infância e a juventude não passassem em branco e usufruíram das possibilidades a elas

oferecidas, como as brincadeiras, que, muitas vezes, foram transmitidas por seus pais e avós.

Experiências vivenciadas com amor, respeito e muita solidariedade entre os familiares.

Destacamos a importância do brincar na infância, pois, segundo Salomão; Martini &

Jordão (2007), as brincadeiras que as crianças realizam contribuem para diferentes níveis de

desenvolvimento, como é o caso do desenvolvimento físico, da autonomia, do intelectual e

social e ainda contribui positivamente para a formação da personalidade das mesmas.

Quando uma criança brinca, tem consciência de si própria e dos outros. Os autores também

afirmam que as brincadeiras influenciam a formação da personalidade das crianças.

Acrescentam, ainda, que estas, ao brincarem, estabelecem relações não somente com

pessoas, mas também com materiais e objetos que estão presentes no seu dia a dia.

Em relação à escolarização, houve diferenças marcantes na vida das três

entrevistadas. No caso da Júnia, o percurso escolar seguiu um curso considerado normal do

ensino fundamental, médio e superior. Pelo relato da professora, a família exerceu papel

fundamental no êxito escolar da mesma. Apesar de ter pouca instrução escolar, os seus pais

souberam conduzi-las para uma trajetória de sucesso, uma vez que Júnia concluiu a

educação básica e o ensino superior sem interrupção em nenhuma das etapas.

A partir da trajetória escolar da professora Júnia e com base nos estudos de Lahire

(2004), apreendemos que o grau de sucesso escolar não depende obrigatoriamente do nível

de escolarização dos pais ou outros familiares, nem de seu capital escolar. Há pessoas com

pouca ou nenhuma escolarização que atuam como mediadores nesse processo educacional.

Diferentemente da professora Júnia, o percurso escolar da professora Edinete e da

professora Eliane foram marcadas por inúmeras interrupções, da educação básica ao ensino

superior. Segundo relato das professoras, as dificuldades financeiras e o cumprimento da

função de mãe e esposa tornaram-se obstáculos que essas docentes tiveram que vencer,

152

contudo, percebemos que essas dificuldades não as impediram de lutar diariamente na busca

de melhorias para si mesmas e para os seus.

Os episódios de memória das três docentes nos permitem perceber nítidas relações

entre as experiências escolares e a formação da identidade do professor (QUADROS et al.,

2005). Mesmo tendo claro que as idealizações permeiam narrativas quando estas envolvem

lembranças, recordações e memórias, segundo o autor, pode-se considerar que a maneira

como o passado é reconstruído pode representar como o entrevistado pretende que seja a sua

vida (postura). Na vida das três professoras, as principais influências foram: os fatores

familiares e a identificação com outros professores que impactaram suas vidas, ao longo de

sua trajetória educacional desde a escola primária até o ensino superior.

Comungando com Quadros et al. (2005), Pimenta (2002) ressalta que a identidade do

docente é construída historicamente, por meio das características do sujeito, das experiências

e das práticas sociais que, dinamicamente, constroem sua identidade como professor.

Conforme Pimenta (2002), ao construir a trajetória, a identidade profissional do

docente vai também sendo formada. Segundo o autor, esse processo é dinâmico, constante e

alicerçado nas vivências, nas trocas e no significado que cada professor confere à sua

atividade. Esse significado deriva dos valores, de sua história de vida pessoal, de sua visão

de mundo e da educação, dos aprendizados, das angústias, das escolhas, das representações,

dos desejos e, é claro, do sentido que tem em sua vida o fato de ser professor (PIMENTA,

2002).

Diante da multiplicidade de significados, pode-se inferir que, para a professora

Edinete, a docência ainda é basicamente uma transmissão de conhecimento e informação.

Enquanto que Júnia e Eliane vão além, veem-se como autoras e demonstram consciência do

seu papel enquanto profissionais da educação e “formadoras” de outros cidadãos.

5.2 OS SABERES E FAZERES PEDAGÓGICOS QUE DESFILAM NA ÁREA DE

CIÊNCIAS HUMANAS DA ESCOLA ESTADUAL PROFESSORA TEREZA

CONCEIÇÃO ARRUDA

Conforme proposto no início deste capítulo, descrevo nesta seção sobre os saberes e

fazeres dos professores da área de Ciências humanas da Escola Estadual Quilombola Profa.

Tereza Conceição Arruda, mobilizados na prática docente, bem como se os mesmos estão

articulando os saberes científicos com os saberes da comunidade quilombola. Para que fique

153

evidenciado como foram feitas as interfaces dos saberes científicos com os saberes

profissionais, demonstrarei também quais são os saberes científicos relacionados à área de

Ciências Humanas.

As observações das aulas que compõem a área de Ciências Humanas ocorreram

durante todo o mês de outubro de 2018. Durante esse período, acompanhei as práticas

pedagógicas das professoras: Júnia, Eliane e Edinete. Nos primeiros dias, acompanhei a

professora Eliane, responsável pela disciplina de História, no ensino fundamental e no

ensino médio. Sucessivamente, acompanhei a professora Júnia, responsável pela disciplina

de Geografia, também no ensino fundamental e médio. Por último, realizei as observações

das aulas da professora Edinete, que leciona a disciplina de Filosofia e Sociologia no ensino

médio.

A pesquisa empírica evidenciou que as aulas ministradas na Escola Estadual

Quilombola Profa. Tereza Conceição Arruda, em sua maioria, são expositivas e dialogadas,

seguidas de atividades. Os professores geralmente usam o livro didático como principal

ferramenta pedagógica para elaboração dos conteúdos a serem ministrados.

A instituição escolar desenvolve alguns projetos escolares que, em sua maioria, são

de autoria coletiva, sendo eles: Páscoa, Dia das mães, Festa Junina, Folclore, Feira Cultural.

Os projetos são desenvolvidos durante todo o ano letivo. Bimestralmente, a escola realiza

culminância para a socialização dos trabalhos desenvolvidos em sala com a comunidade em

geral. Parte dos trabalhos realizados também é apresentada na Feira Cultural, realizada na

Semana da Consciência Negra, em novembro, com participação da comunidade escolar, bem

como dos moradores do Quilombo Mata-Cavalo.

A análise da produção e da constituição dos saberes e fazeres mobilizados pelos

docentes participantes desta pesquisa será ancorado nas tipologias propostas por Tardif

(2002), Gauthier (2013), Freire (2016) e Pimenta (2002) já evidenciados no Capítulo IV.

Importante destacar que os saberes docentes formam um amálgama difícil de classificar.

Assim, falar do saber do professor é falar do seu trabalho (TARDIF, 2002).

Descrevo a seguir as práticas pedagógicas dos docentes na área de Ciências

Humanas, entrecruzando com suas vozes, perseguindo o objetivo proposto no início do

capítulo.

5.3 SABERES CIENTÍFICOS RELACIONADOS ÀS CIÊNCIAS HUMANAS

154

A área de Ciências Humanas, de acordo com Brasil (2018, p. 352) contribui:

Para que os alunos desenvolvam a cognição in situ, ou seja, sem prescindir da

contextualização marcada pelas noções de tempo e espaço, conceitos fundamentais

da área. Cognição e contexto são, assim, categorias elaboradas conjuntamente, em

meio a circunstâncias históricas específicas, nas quais a diversidade humana deve ganhar especial destaque, com vistas ao acolhimento da diferença. O raciocínio

espaço-temporal baseia-se na ideia de que o ser humano produz o espaço em que

vive, apropriando-se dele em determinada circunstância histórica. A capacidade de

identificação dessa circunstância impõe-se como condição para que o ser humano

compreenda, interprete e avalie os significados das ações realizadas no passado ou

no presente, o que o torna responsável tanto pelo saber produzido quanto pelo

controle dos fenômenos naturais e históricos dos quais é agente. (BRASIL, 2018).

Ou seja, o tratamento das relações espaciais e o consequente desenvolvimento do

raciocínio espaço-temporal no ensino de Ciências Humanas devem favorecer a

compreensão, pelos educandos, dos tempos sociais, da natureza e de suas relações com os

espaços. O estudo das noções de espaço e tempo deve se dar por meio de diferentes

linguagens, de modo a permitir que os educandos se tornem produtores e leitores de mapas

dos mais variados lugares vividos, concebidos e percebidos (BRASIL, 2018).

Entretanto, segundo Brasil (2018, p. 352), “embora o tempo, o espaço e o movimento

sejam categorias básicas na área de Ciências Humanas”, é fundamental “valorizar também a

crítica sistemática à ação humana, às relações sociais e de poder e, especialmente, à

produção de conhecimentos e saberes, frutos de diferentes circunstâncias históricas e

espaços geográficos”.

Enfim, as Ciências Humanas devem, assim, estimular uma formação ética, que

auxilie os educandos a valorizar: os direitos humanos; o respeito ao ambiente e à própria

coletividade; o fortalecimento de valores sociais, tais como: a solidariedade, a participação e

o protagonismo voltados para o bem comum e, sobretudo, a preocupação com as

desigualdades sociais.

A seguir apresento, no Quadro 4, uma síntese dos saberes científicos relacionados à

área de Ciências Humanas na educação básica, de acordo com as Orientações Curriculares

do Estado de Mato Grosso para a educação básica e ainda as Orientações Curriculares para a

Educação Escolar Quilombola.

Quadro 4 - Síntese dos saberes científicos: Ciências Humanas da educação básica

Saberes Científicos/ Ensino Fundamental e Médio/

Orientações curriculares do Estado de Mato

Grosso para educação básica

Saberes Científicos/ Orientações curriculares do

Estado de Mato Grosso para Educação Escolar

Quilombola

155

A área de Ciências Humanas proporcionará aos

estudantes, situações de aprendizagem nas quais

possam construir noções conceituais, científicas,

articuladas aos eixos:

Trabalho;

sociedade;

tempo e espaço;

diversidades socioculturais e religiosas,

(gênero, sexualidades, religiosidades,

geracionais e étnico-raciais);

democracia;

nação;

paisagem;

espaço geográfico e território.

A área de Ciências Humanas pode contribuir com a

ampliação de conhecimentos referentes à história e

cultura afro-brasileira e africana. Articuladas aos

referenciais:

Impérios africanos pré-colonial;

os quilombos e sua organização no Brasil;

legalização das terras quilombolas;

formas de organização negra na África e

Diáspora;

contribuições africanas e afro-brasileiras na

formação do país;

continente africano;

cartografia etnorracial;

mecanismos de inclusão;

desconstrução dos estereótipos, estigmas

racistas no Brasil.

Fonte: elaborado pela autora, 2018.

A produção do conhecimento na área das Ciências Humanas, conforme Mato Grosso

(2012) e Brasil (2018), está assentada na perspectiva da centralidade do homem resgatando

valores éticos e sociais de consolidação da cidadania; na criação de novas formas de

intervenção e de produção de bens e nas posturas humanitárias e valorização do coletivo, no

que diz respeito às diferenças e à valorização da vida.

A seguir, apresento os saberes docentes e a análise das práticas pedagógicas das

professoras da área de Ciências Humanas.

5.4 SABERES DOCENTES E AS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: PROFESSORA DE

HISTÓRIA

Nas Orientações Curriculares do Estado de Mato Grosso para a educação básica

(OCs) do ano de 2010, o ensino de História encontra-se marcado por profundas e aceleradas

transformações que impactam todos os âmbitos e estruturas da sociedade, não apenas da

brasileira, mas também da comunidade internacional, especialmente, no que tange à

informação, ao conhecimento e à educação.

156

Conforme as Orientações Curriculares do Estado de Mato Grosso para a educação

básica, o objetivo do estudo da disciplina de História é a construção de uma postura diante

do conhecimento, que possibilite ao educando reconhecer-se como um ser social, político e

cultural por meio de sua participação na ação coletiva de ensino e aprendizagem.

A disciplina de História “tem grande importância para a percepção e valorização das

semelhanças e diferenças no tocante às formas culturais africanas, que deram base à cultura

afro-brasileira”. A referida legislação ressalta que “além dos conteúdos curriculares da

educação básica, deve-se trabalhar à história e cultura dos quilombos locais, enfatizando a

origem dos africanos e seus descendentes que se espalharam pelo país em especial no estado

de Mato Grosso” (MATO GROSSO, 2012, p. 22).

Ancorada nos pressupostos contidos nas Orientações Curriculares para Educação

Escolar Quilombola (2010) e nas Diretrizes Curriculares para Educação Escolar Quilombola

(2012), dei início à observação das aulas de História, ministradas pela professora Eliane

Prado, entre os dias 01/10/2018 a 11/10/2018, na Escola Estadual Quilombola Profa. Tereza

Conceição Arruda, nos períodos matutino e vespertino. Ao todo, foram observadas seis aulas

da disciplina, sendo duas no 9º ano do ensino fundamental, duas aulas no 3º ano de ensino

médio e duas aulas no 1º ano do ensino médio.

Importante registrar que as informações aqui transcritas são frutos das observações

realizadas nas disciplinas já mencionadas, dos trechos da entrevista individual e das

anotações do caderno de campo, produzidas durante o tempo em que estive imersa no campo

pesquisado.

A partir das observações, pode-se constatar que as atitudes da professora Eliane em

relação aos seus educandos seguem uma sequência uniforme. Ao adentrar na sala de aula,

ela sempre os cumprimenta com um “Bom dia!” ou um “Boa tarde”. A professora também é

recepcionada pelos estudantes com um caloroso cumprimento. Nota-se que há um bom

relacionamento entre a professora e os estudantes. A solidariedade entre ambos também

chama atenção. Um exemplo de solidariedade que presenciei nas minhas observações é que

existem discentes que já são mães e elas são ajudadas pelos colegas, bem como pela

docente, no cuidado com a criança em sala. Segundo Castilho (2011), esse comportamento

de ajuda mútua pode ser explicado pela teoria da dádiva, que segundo a autora repousa:

[...] na compreensão de que a sociedade não se reduz à lógica do mercado ou do

Estado, mas traduz uma pluralidade de lógicas não redutíveis entre si. O tecido

social se exprimiria, portanto por valores também imateriais: doação, confiança,

solidariedade, reciprocidade”. “[...] que não se liga apenas às sociedades do

157

passado, mas está incorporado também nas sociedades contemporânea.

(CASTILHO, 2011, p. 47).

Castilho (2011) acredita que o motivo da existência da moral da dádiva entre os

matacavalenses está fundamentado no fato de que as relações entre os moradores são de

parentescos ou de amizades muito próximas e que isso se estende inclusive para a escola. O

que fica evidenciado na fala da professora Eliane, quando diz: “eu acho que o professor, ele

não tem que ter aquele relacionamento de... de punição, de castigo, e sim de troca”.

Solidária e receptiva, a professora inicia a aula fazendo a chamada dos estudantes e,

em seguida, fala do assunto que será tratado no dia, estabelecendo uma conversa prévia. A

docente faz uso do quadro, todos os dias, em todas as suas aulas, para a escrita do conteúdo.

Logo após a exposição do conteúdo na lousa, ela aguarda a finalização da escrita por parte

dos alunos. Inicia-se, então, um diálogo e a aula é concluída com os alunos respondendo

questões relacionadas à temática no caderno. Didaticamente, podemos inferir que Eliane

utiliza como estratégia de ensino aulas expositivas e dialogadas.

A convivência na sala de aula nos permitiu também constatar que a professora

mobiliza, na sua prática pedagógica, os saberes da formação profissional, os saberes

curriculares e os saberes disciplinares, que aparecem na ação da docente bastante ligados,

porém é perceptível que os saberes das ciências das disciplinas ficam mais evidenciados no

seu fazer em sala, apesar de Tardif (2002, p. 36) definir “o saber docentes como um saber

plural, formado pelo amálgama, mais ou menos coerente, entretanto, na maioria dos casos,

essas informações angariadas, não dialogam entre si”.

Sabemos que a formação inicial e continuada é uma etapa do desenvolvimento

profissional e não se pode esperar que ela contemple e ofereça produtos acabados,

requisitando do professor a sensibilidade para a escolha do conteúdo que de fato contribua

para o crescimento intelectual dos educandos (TARDIF, 2002).

A prática pedagógica da docente permitiu inferir também que o seu saber curricular

está bem ancorado, pois exprime uma ação alinhada com seu discurso, demonstrando

preocupação com a qualidade do aprendizado dos estudantes, procurando respeitar o ritmo

de aprendizagem deles e não somente com os prazos estabelecidos pela matriz curricular

anual.

A observação da primeira aula ocorreu no dia 1º de outubro de 2018, na turma do

terceiro ano do ensino médio. Nesse dia, houve duas aulas de História. Nessa turma,

estudam quatorze discentes. Todos estavam presentes.

158

Ao soar o sinal às 13 horas, inicialmente, os educandos participam da acolhida

preparada pelos professores. Em seguida, discentes e docentes se encaminham para a sala de

aula. A professora Eliane inicia a aula realizando a chamada dos discentes. Em seguida, ela

dá continuidade à aula anterior, ou seja, nessa aula continua passando o filme chamado

“Ondas”, que conta a história de um professor educado no sistema nazista que vai ministrar

aulas numa escola secundária nos Estados Unidos. Na sua prática docente, ela incorpora os

saberes adquiridos no sistema nazista. Esse filme serviu para subsidiar a discussão sobre o

tema: o sistema autoritarista. A professora Eliane informou que utiliza de filmes para

facilitar a discussão e o entendimento dos conteúdos de sua disciplina.

Vale ressaltar que o filme foi passado de maneira precária, em que os quatorze

educandos assistiram em um notebook, sem o auxilio de nenhuma caixinha de som. A

professora comentou que quando não consegue o notebook, os discentes assistem aos filmes

em uma tela de celular. Importa destacar que, mesmo com toda a precariedade, os educandos

se mostraram interessados na aula, pois estavam todos bem concentrados na atividade

proposta pela professora. Eles se ajeitaram na sala como se sentiam melhor. Sem ter aquela

obrigação das tradicionais cadeiras enfileiradas.

Terminado o filme, a professora estimulou os aprendizes a refletirem sobre ele. Os

alunos relacionavam a história do filme com o conteúdo estudado, bem como com a

realidade vivida hoje em relação à organização política do município de Nossa Senhora do

Livramento, do Estado de Mato Grosso e do Brasil, e seu impacto na vida da minoria

desfavorecida economicamente, perfil onde se encaixa os quilombolas. Após o debate, no

final da aula, a professora sugeriu que os alunos fizessem um relatório e que a entregasse na

próxima aula. Ela escreveu no quadro um roteiro a ser seguido na construção do relatório.

Eliane defende ser fundamental que o aluno conheça o local e o regional, pois isso

possibilita a ele conhecer a história a partir do seu cotidiano, dos seus hábitos, das memórias

construídas culturalmente, de forma que ele consiga entender os impactos que as ações

sociais, econômica e políticas do país afetam o dia a dia de sua comunidade e, assim, possa

avaliar e até propor mudanças.

O pensamento de Eliane é defendido por Freire (2016), quando ressalta que o

professor, mesmo desde a sua formação inicial, deve se assumir como sujeito produtor de

saber e, assim, se convencer definitivamente que ensinar não é meramente transmitir saber,

mas, sim, criar condições para sua construção. Ainda conforme o autor, o educador “não

pode negar-se o dever de, na sua prática docente, reforçar a capacidade crítica do educando,

sua curiosidade, sua insubmissão” (FREIRE, 2016, p. 28).

159

A visão da professora comunga também com os objetivos descritos nas Orientações

Curriculares para Educação Escolar Quilombola do Estado de Mato Grosso (2010), que

assim descreve:

As leituras desses estudantes adquirem agora um caráter político, possibilitando a

percepção dos conflitos e a compreensão da vida pelo domínio de novos códigos.

A formação no espaço escolar, desse modo, precisa incluir a reflexão sobre o

comportamento da humanidade; sobre as relações com o local, regional, nacional e

mundial; e sobre o exercício da cidadania e a compreensão das relações de poder

que marcam a historicidade, nos processos de negociação e conflitos entre

diferentes grupos” [...] o ensino de História, diante da realidade apresentada na

contemporaneidade, requer a elaboração de propostas a partir de conceitos

próprios, sendo estes fundamentais por aguçar o questionamento e a identificação das contradições presentes na sociedade. (MATO GROSSO, 2010, p. 37).

Com base nas Orientações Curriculares e nos estudos de Freire (2016), podemos

constatar que o ensino de História não é a obtenção acumulativa e acrítica de

conhecimentos, mas, sim, a construção de uma postura diante das informações, que

possibilite ao estudante reconhecer-se como um ser social, político e cultural por meio de

sua participação na ação coletiva de ensino e aprendizagem.

Eliane ressalta que tem aprendido muito nesses seis meses que está ministrando aulas

de História. Ela reconta:

O que eu... li ao longo do meu curso e o que eu vivi ao longo da minha vida, porque ser professor não é só a faculdade, é também as experiências da vida, a

busca de novos conhecimentos em conversas com outros colegas de profissão,

você tem que pegar e pôr na prática. E, é o que eu tenho posto a cada dia.

(informação verbal, PROFESSORA ELIANE, 2018).

A professora esclarece que sempre tenta inovar, levando para a sala de aula os

conteúdos de uma forma mais atrativa, ora trazendo filmes, ora promovendo aulas de campo

na própria comunidade, de modo que desperte o interesse dos estudantes e contribua de

forma positiva para a construção de novos conhecimentos. A professora comentou também

que gosta de trabalhar com seminários, sempre propondo trabalhos em grupos. Segundo ela,

o trabalho em grupo contribuiu bastante, pois os alunos aprendem uns com os outros.

Na observação, percebi também que ela procura articular o conteúdo que trabalha

com os conhecimentos locais ligados às lutas, à cultura, à identidade e ao pertencimento

étnico-racial quilombola. Isso mostra que a professora possui consciência em qual realidade

a escola em que trabalha está inserida e compreende que ela pode estabelecer uma ponte

entre os conteúdos trabalhados nos livros didáticos e as vivências e experiências dos

160

educandos. Parafraseando Freire (2016b), contextualizar as manifestações dos quilombolas

nas aulas é uma medida essencial para a formação integral do educando.

Eliane tem conhecimento da importância de se trabalhar um currículo voltado para a

valorização da cultura quilombola, porém reconhece que “não basta apenas o professor ter

conhecimento acerca do que venha a ser esta modalidade de Educação Escolar

Quilombola”, Para ela, é fundamental que as instituições governamentais responsáveis pela

política educacional ofereçam condições de infraestrutura, material pedagógico e formação

adequada para os docentes, para que se possa desenvolver um trabalho mais adequado a essa

realidade. Em relação ao aparato pedagógico, ela relata:

[...] eu gostaria de ter assim...como mostrar mais imagens para eles, porque assim a

disciplina de história ela pega, né, muitas figuras, filmes, mostra um passado, traz

para a realidade, como que era a sociedade de uma época, como é que está hoje essa sociedade. [...]. Então, uma forma que o professor e história tem assim lúdica,

seria mostrar, por exemplo, como que é lá no Japão, como que é lá na Rússia,

como que é lá nos estados Unidos, mostrar as outras sociedades, aí trazer para

nossa sociedade. [...], porém não temos recursos pedagógicos para fazer esse tipo

de trabalho, pois na escola não tem laboratório de informática, não tem uma

biblioteca, não tem um aparelho de televisão, nada. (informação verbal,

PROFESSORA ELIANE, 2018).

A angústia da professora Eliane quando reclama da falta de material didático é

explicada por Castilho (2011), ao afirmar que a escassez de material pedagógico

diversificado dificulta ao docente a criatividade e o enriquecimento do seu planejamento de

aula.

Sobre a necessidade de formação docente, essa preocupação é compartilhada por

Freire (2016), o qual reitera que a formação permanente deve ser entendida como um

processo de reflexão crítica sobre a prática que deve ser problematizada, com a intenção de

se conhecer e compreender suas múltiplas determinações e relações. Para o autor, a

formação de professores é uma das soluções para os desafios contemporâneos da escola e

que esses eventos devem ter como foco a construção de um profissional politizado e

comprometido com a emancipação dos grupos culturalmente dominados, estereotipados e

secularmente deixados à margem da sociedade.

Ferreira (2015) salienta ser de suma importância uma proposta de formação

específica para professores que atuam nas escolas quilombolas, pois tal ação poderá

desencadear um processo importante de apropriação de saberes para escola e para a

comunidade, modificando tanto a relação dos professores, quanto dos estudantes e da

161

comunidade em relação à denominação “escola quilombola” e o reconhecimento das

identidades locais.

A professora Eliane elucida que sua grande motivação para continuar trabalhando em

uma escola quilombola, mesmo em meio a tantos desafios, deve-se, primeiramente, ao

sentimento de pertença, construída juntamente com seu esposo Thiago, que é oriundo da

comunidade de Mata- valo e é o seu elo com a comunidade.

5.5 OS SABERES EVIDENCIADOS DURANTE A OBSERVAÇÃO DA AULA DE

GEOGRAFIA

Conforme as Orientações Curriculares para a Educação Básica do Estado de Mato

Grosso, homologado no ano de 2010, o objetivo do ensino da Geografia é possibilitar aos

educandos a compreensão de que espaço geográfico é um conjunto indissociável de sistemas

de objetos e de sistemas de ações que procura revelar as práticas sociais dos diferentes

grupos que nele produzem, luta, sonham, enfim, vivem.

Nesse contexto, segundo as Orientações Curriculares (2010):

[...] o professor deve possibilitar situações para que o estudante desenvolva a capacidade de analisar criticamente os fatos da natureza e da sociedade,

estabelecer relações, analogias, generalizações, enfim, realizar análises com

argumentações, próprias da sua idade, priorizando as relações sociais e uma leitura

crítica do mundo vivido, construindo conhecimentos. (MATO GROSSO, 2010, p.

25).

Norteada por essas orientações, entre os dias 10 e 20 de outubro de 2018,

acompanhei, na Escola Estadual Quilombola Profa. Tereza Conceição Arruda, as aulas

ministradas pela professora Júnia, na disciplina de Geografia. Ao todo, foram observadas

seis aulas, sendo duas no 9º ano do ensino fundamental, duas aulas no 1º ano do ensino

médio e duas aulas no 2º ano do ensino médio. A exposição feita a seguir é proveniente do

período de observação realizado em sala, da entrevista realizada com a professora e das

anotações feitas no caderno de campo.

A rotina diária de aula da professora Júnia segue uma uniformização. Chegando à

sala, ela cumprimenta os estudantes, faz a chamada, recapitula os conteúdos anteriores e

informa o conteúdo que será visto na aula em curso e quando tem conteúdo para ser escrito

no quadro, ela assim o faz. Percebi uma relação educador-educando de cordialidade,

162

respeito, solidariedade e principalmente de liberdade. Após passar o conteúdo na lousa, a

professora Júnia promove discussão com os alunos sobre o que está sendo descrito no

quadro.

Notei que ela questiona aos educandos para que eles reflitam sobre os textos

apresentados. Ela utiliza a técnica de falar frases para que os estudantes complementem e

assim os estimula a debaterem o tema. Essa metodologia de iniciar a frase e esperar que os

educandos as complementem, de certa forma, nos dá pistas a respeito da construção dos seus

saberes, isso se assemelha com o perfil de outros professores que teve durante o seu percurso

escolar e vê-se que eles lhe serviram de inspiração. Assim, remete-se ao que a própria Júnia

disse: “A Professora Martinha, me marcou bastante, pois ela ajudava muito nós alunos.

Quando a gente não sabia a resposta ela iniciava a resposta e daí a gente conseguia

lembrar e responder. Ela era muito boa”. Nesse sentido, a prática da Júnia traz semelhança

aos saberes da professora Martinha, a sua professora do ensino fundamental, desvelada por

ela na história de vida.

Após a exposição e diálogo, a professora escreve na lousa atividades envolvendo o

tema estudado. Percebi que algumas questões ela retira do livro didático, outras vezes de um

caderno de anotações e, ainda, observei que algumas questões ela escreve espontaneamente.

Os alunos, ao terminarem as atividades, chamam a professora ou levam o caderno até ela

para serem corrigidas.

Ao descrever as atividades espontaneamente na lousa, sem o auxílio do livro didático

ou do caderno de atividades, a professora mobiliza os saberes experienciais adquiridos

durante os seus dez anos no exercício do magistério. Conforme Tardif (2002, p. 39), os

docentes “desenvolvem saberes específicos, baseados em seu trabalho cotidiano e no

conhecimento do seu meio. [...] eles incorporam-se às experiências individuais e coletivas

sob a forma de habitus e de habilidades de saber fazer e de saber ser”.

Na Escola Estadual Professora Tereza Conceição Arruda, a socialização entre os

docentes no tocante à troca de experiências acontece constantemente, principalmente, nas

salas dos professores e nas reuniões pedagógicas realizadas quinzenalmente na escola.

Durante o período da observação, muitas vezes, deparei com os docentes conversando sobre

conteúdo, pedindo conselhos, dicas ou até mesmo planejando aulas juntos. As informações

trocadas são diversas e estão relacionadas ao planejamento coletivo, materiais, conteúdos,

metodologia, avaliação. Para Tardif (2002), o saber é situado e personalizado, é forjado a

partir de uma situação concreta e singular de trabalho. Nessa perspectiva, a escola é o local

privilegiado para a socialização e a construção de saberes, em que,

163

[...] as situações de trabalho colocam na presença uns dos outros seres humanos que devem negociar e compreender juntos o significado de seu trabalho coletivo.

Essa compreensão comum supõe que as situações de ensino sejam elaboradas e

partilhadas dentro dessas próprias situações; noutras palavras, eles estão

ancorados, situados nas ações que ajudam a definir. (TARDIF, 2002, p. 266).

Dessa maneira, podemos compreender que os saberes experienciais da professora

Júnia, em partes, se constituem na socialização com os colegas de profissão, a partir da

busca de ajuda aos problemas que se colocam no cotidiano, a fim de encontrar meios de

melhorar a sua prática pedagógica. Os saberes da experiência se constituem em “saberes

mobilizados e empregados na prática cotidiana, saberes esses que dela se originam, e que

servem para dar sentido às situações de trabalho que lhes são próprias” (TARDIF;

RAYOMOND, 2000, p. 02).

Conforme Borges (2004), a construção dos saberes docente carrega as marcas da

pluralidade, pois este processo inicia a se desenvolver antes mesmo da formação inicial.

Sendo assim, “a prática docente se inscreve na linha da vida, e incorpora os saberes

experienciais de toda ordem, aqueles que provêm da vida pessoal e também do período de

escolarização” (BORGES, 2004, p. 82).

Contudo, é importante nos atermos ao fato de que os saberes experienciais por si

podem não garantir uma prática pedagógica eficiente, os saberes disciplinares, curriculares e

da formação profissional, de certa forma sempre estão presentes e dão sustentação ao

trabalho desenvolvido pelos professores.

Especificamente, nas aulas observadas da professora Júnia, tais saberes são

mobilizados quando ela organiza a turma em grupos para realizar seminários e outras

atividades durante a aula, quando mobiliza os saberes da sua formação profissional para

explicar os conceitos de Geografia, quando propõe os filmes como atividade para melhor

compreensão do conteúdo ministrado. Dessa forma, a professora traduz os saberes que

construiu no decorrer de sua existência, demonstrando que:

A experiência provoca um efeito de retomada crítica (retroalimentação) dos

saberes adquirido antes ou fora da prática profissional. Ela filtra e seleciona outros

saberes, permitindo assim aos professores reverem seus saberes, julgá-los e avaliá-

los e, portanto, objetivar um saber formado de todos os saberes retraduzidos e

submetidos ao processo de validação constituído pela prática cotidiana. (TARDIF 2014, p. 53).

Essas múltiplas articulações entre a prática docente e os saberes fazem dos

professores um grupo social e profissional cuja existência depende, em grande parte, de sua

164

capacidade de dominar, integrar e mobilizar tais saberes enquanto condições para sua prática

(TARDIF, 2002).

A primeira aula observada na disciplina de Geografia foi na turma do 9º ano do

ensino fundamental. Nessa aula, a professora Júnia colocou um filme para os discentes

assistirem. Conforme nos informou a docente, ela está trabalhando na turma sobre o mapa

das desigualdades e o filme serviria para fomentar a discussão sobre o conteúdo.

O filme se chama “Django”. Esse filme conta a história de um negro norte-americano

que luta para resgatar sua esposa do cativeiro na era colonial, no Texas, Estados Unidos. A

professora, à medida em que o filme ia passando, explicava sobre a discriminação racial e os

maus tratos sofridos pelos negros na época da escravidão.

Importante destacar que o filme foi passado de maneira precária, pois a escola não

possui sala equipada para projeção. Com a claridade na sala, ficou difícil para os educandos

enxergarem claramente a imagem do filme na televisão. A professora sugeriu aos alunos que

anotassem as partes que julgasse interessante para posterior discussão.

No momento da discussão, após o término do filme, a professora instiga os alunos ao

debate com perguntas como:

[...]o que vocês acharam o filme? Esse filme tem a ver com a nossa história aqui

no Quilombo Mata-Cavalo? Por que os negros são em sua maioria desprovidos de

bens econômicos e materiais? Você sabe o que é discriminação racial? O que

explica o preconceito contra os negros? (informação verbal, PROFESSORA

JÚNIA, 2018).

A partir dessas questões e partir das falas e curiosidades dos educandos, ela vai

trazendo a discussão para a realidade onde estão inseridos.

Essa postura da professora Júnia evidencia a consciência e o compromisso com uma

educação antirracista, no sentido de empreender reeducação das relações étnico-raciais que

desfaz mentalidades racistas, eurocêntricas, internalizadas no povo brasileiro desde a era

colonial. Sua atuação comunga com o que está proposto nas Diretrizes Curriculares

Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura

Afro-Brasileira e Africana, que propõem ações que problematiza e indaga, desafiando

currículos homogeneizadores e reprodutores de uma perspectiva universalista de cultura.

As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola também

reforçam a implementação da educação étnico-racial. Vejamos no seu artigo 35:

[...]

165

II - implementar a Educação das Relações Étnico-Raciais e o Ensino de História e

Cultura Afro-Brasileira e Africana, nos termos da Lei nº 9.394/96, na redação dada

pela Lei nº 10.639/2003, e da Resolução CNE/CP nº 1/2004; IV - promover o

fortalecimento da identidade étnico-racial, da história e cultura afro-brasileira e

africana ressignificada, recriada e reterritorializada nos territórios quilombolas.

(BRASIL, 2012, 13).

Gomes (2017, p. 117) considera importante tematizar e incorporar as discussões

étnico-raciais na escola, considerada um espaço de poder e de conhecimento, possibilitando,

assim, aos educandos questionar e criticar “o ideal de brancura impregnado na sociedade

brasileira e a lógica da branquitude, construídas nas tensas relações de poder”, além de

permitir a construção um saber emancipatório.

De acordo com a concepção pós-crítica, o currículo tem se esforçado para significar,

compreender e traduzir a educação, considerando a diversidade social e cultural dos

educandos. Para Moreira e Silva (2002, p. 117), a pedagogia crítica sempre busca incorporar

a experiência do aluno ao conteúdo curricular “oficial”. Pois essa articulação pode fortalecer

o poder do educando e, ao mesmo tempo, instituir uma forma de crítica às relações que os

silenciam. Em relação à sua prática, a professora Júnia relata:

[...] o que eu procuro fazer, quando eu estou trabalhando os conteúdos, que eu

trabalho os conteúdos que são pertinentes, né, a educação regular, mas quando eu

estou trabalhando, eu procuro inserir o que é competente dentro de uma Educação

Escolar Quilombola. Eu trabalho o que é para ser trabalhado, né, o que é cobrado,

por exemplo, lá fora, no ENEM ou num concurso, mas eu também não deixo de lado de trabalhar a questão cultural, a questão da identidade, a questão da

valorização do ser quilombola. (informação verbal, PROFESSORA JÚNIA, 2018).

A partir do relato acima e das ações observadas em sala, nos permite constatar, que a

docente dialoga com os saberes científicos, articulando os mesmos com os saberes locais. A

prática docente da Júnia traduz um currículo que considera concepções históricas, culturais,

e valores do povo negro e quilombolas. Essa postura condiz com o que propõe as Diretrizes

Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola, no artigo 35, inciso I, que

assim preconiza “Garantir ao educando o direito a conhecer o conceito, a história dos

quilombos no Brasil, o protagonismo do movimento quilombola e do movimento negro,

assim como seu histórico de luta” (BRASIL, 2012, p. 13).

A professora relata que foi difícil construir junto aos alunos um novo significado

para as aulas de Geografia, haja vista que a visão eurocêntrica ainda é muito presente nos

currículos escolares, mas que já houve significativas mudanças. Em relação ao conteúdo

para trabalhar a disciplina de Geografia, ela relata:

166

A geografia como... outras disciplinas, principalmente das disciplinas da área de ciência humanas, é você por exemplo, colocar o aluno como agente dentro da

situação, né. Como por exemplo, qual que é o maior desafio dentro de uma...de

uma comunidade quilombola, é a questão territorial. E a geografia ela contribui

muito, porque ela vai trazer várias abordagens de território, de paisagem, de lugar,

né, de pertencimento, de região. Então, a geografia ela...ela tem importância nesse

sentido. (informação verbal, PROFESSORA JÚNIA, 2018).

O processo de construção de uma nova consciência não é tarefa fácil, segundo

Arroyo (2015), a tendência é aprisionar, fechar em um ciclo os conhecimentos que sempre

circularam no espaço da escola como legítimos e verdadeiros, seja no livro didático, nas

práticas docentes ou na cultura escolar. Segundo o autor, é preciso, portanto, quebrar as

barreiras.

Os princípios da professora Júnia condizem com o que preconiza as Orientações

Curriculares para Ciências Humanas do Estado de Mato Grosso/2010, que descreve: “o

professor deve possibilitar situações para que o estudante desenvolva a capacidade de

analisar criticamente os fatos da natureza e da sociedade [...] priorizando as relações sociais

e uma leitura crítica do mundo vivido, construindo conhecimentos” (MATO GROSSO,

2010, p. 25).

A professora relata que os estudantes são bastante participativos, porém ela ressalta

que, às vezes, é impedida de dar continuidade em atividades pela ausência frequente dos

estudantes, provocada pela não regularidade do transporte escolar que atende a comunidade.

Vejamos o relato da professora:

Os alunos são muito participativos, curiosos. O que os atrapalha é a falta de

regularidade do transporte escolar. Aí, os alunos faltam muitas aulas e isso

prejudica muito, por exemplo, as atividades. Às vezes a gente planeja um

seminário, ou uma aula de campo com os alunos, aí o ônibus quebra. A maioria

dos alunos não vem, porque quase todos moram distante da escola e precisam do

ônibus para vir. Então o transporte precário, prejudica até a continuidade de

discussões, às vezes os alunos saem animados num debate de uma aula, e fica para dar continuidade na próxima aula, aí no próximo dia já vem pouco aluno, porque o

transporte não passou, aí ficam desmotivados, né. (informação verbal,

PROFESSORA JÚNIA, 2018)

Nos dias em que fiz observações na escola, pude constatar essa realidade denunciada

pela professora. Durante os dias de observações, notei que, muitas vezes, o transporte

chegou às 7h30min, sendo que a aula já havia iniciado às 7h. Especificamente, no dia da

observação de aula de Geografia, na turma do 9º ano, no período vespertino, o ônibus não

167

apareceu. Nesse dia, estavam presentes na aula apenas sete de um total de quatorze

estudantes, ou seja, metade dos estudantes da turma havia faltado alheios a sua vontade.

A Resolução n.º 08/2012, sobre o transporte escolar, assegura:

Art. 28 Quando se fizer necessária a adoção do transporte escolar no Ensino

Fundamental, Ensino Médio, integrado ou não à Educação Profissional Técnica, e na Educação de Jovens e Adultos devem ser considerados o menor tempo possível

no percurso residência-escola e a garantia de transporte intracampo dos estudantes

quilombolas, em condições adequadas de segurança. [...]Art. 29 O eventual

transporte de crianças e jovens com deficiência, em suas próprias comunidades ou quando houver necessidade de deslocamento para a nucleação, deverá adaptar-se

às condições desses estudantes, conforme leis específicas. [...]Art. 30 O transporte

escolar quando for comprovadamente necessário, deverá considerar o Código Nacional de Trânsito, as distâncias de deslocamento, a acessibilidade, as condições

de estradas e vias, as condições climáticas, o estado de conservação dos veículos

utilizados e sua idade de uso, a melhor localização e as melhores possibilidades de

trabalho pedagógico com padrão de qualidade. (BRASIL, 2012, p. 12).

Como podemos constar, de acordo com a legislação, os estudantes quilombolas tem

direito ao transporte escolar que lhe assegure a frequência na escola, com qualidade e

segurança. Porém, no chão das comunidades quilombolas, o que vem ocorrendo são

descasos e descompromissos com os estudantes quilombolas. Veja o que diz a Relatora dos

Direitos Humanos à Educação/ONU, Denise Carreiro, no Portal do Aprendiz, sobre uma de

suas visitas nas comunidades quilombolas do Pará.

Vejamos o que Denise Carreiro relatou ao Portal:

[...] durante a visita, observou que várias comunidades conquistaram o acesso à

escola, algumas com prédio na própria comunidade, outras tendo de se deslocar

com transporte escolar até uma comunidade próxima. Contudo, esse transporte, feito de maneira precária, é o primeiro obstáculo à educação quilombola.17

O que se percebe é que o problema de transporte escolar não é uma exclusividade do

Quilombo Mata-Cavalo, mas, sim, da maioria dos estudantes quilombolas que dependem de

transporte escolar para chegarem até a escola. Quanto a isso, Júnia narra num tom de

desabafo: “é muito triste ver esse descaso das autoridades com os estudantes quilombolas”.

Além do transporte escolar, a professora Júnia também apresenta alguns problemas

de aparato pedagógico, que prejudicam a sua prática pedagógica. Como mostra o relato a

seguir:

17 Disponível em: https://portal.aprendiz.uol.com.br/arquivo/2011/09/23/relatora-constata-falta-de-estrutura-e-

falhas-pedagogicas-em-escolas-quilombolas/. Acesso em out. 2018.

168

“[...] gostaria na verdade que tivesse mais é multimídia, né, uma internet, para

você levar o aluno...não ficar só na questão da fala, na teoria. [...] porque muitas

vezes, por exemplo, eu estou falando de que: estou falando de um polo industrial

na região Centro-oeste, seria bem mais palpável se eu pudesse pegar esse aluno e

levar num laboratório de informática para ele ver qual que é a localização, onde é

que está esses principais polos de industrialização, porque que são principais polos

de industrialização. Então, se tivesse essa multimídia bem mais presente, seria bem

mais dinâmica as aulas de geografia”. (informação verbal, PROFESSORA JÚNIA,

2018).

A narrativa da professora revela seu saber a respeito da importância do contato com a

tecnologia para enriquecer o seu fazer pedagógico, visto que, ao entrar em contato visual

com o que é tratado na teoria, de uma maneira mais real, o estudante vai ampliando o seu

conhecimento de mundo e tendo a oportunidade de conhecer e, consequentemente,

interpretar melhor o mundo de diferentes formas. Concordamos com Castilho (2011, p. 161)

que “à distância e à falta de condução somam-se outros desestimulantes para que os

estudantes continuem a frequentar a escolar”.

A professora Júnia também atribui algumas falhas na sua prática pedagógica à

escassez de formação continuada para docentes que atuam em escolas quilombolas. Vejamos

o que ela relata:

Em relação à formação específica também é oferecido muito pouco. Nestes cinco

anos que eu estou atuando nesta escola quilombola, eu já participei de apenas dois

cursos que a SEDUC/MT, ofereceu para nós. Agora a pouco tempo em parceria

com a Universidade Federal de Mato Grosso que tivemos mais alguns, bem como

aqui mesmo na escola organizamos grupo de estudos para nos preparar melhor

para na prática docente, porém, ainda é pouco diante de tantas demandas que as

Diretrizes Curriculares para Educação Escolar Quilombola preconizam. E outra,

precisamos de formação continuada numa perspectiva decolonialista, para

desentranhar de nós essa prática pedagógica na perspectiva eurocêntrica. Depois

que eu comecei a fazer mestrado também me ajudou bastante, principalmente em

relação à conscientização da necessidade de refletir sobre a minha prática. (informação verbal, PROFESSORA JÚNIA, 2018)

Esse discurso de Júnia nos possibilita verificar que, mesmo dispondo de pouca

formação continuada voltada para a materialização do currículo quilombola, a professora

procura meios de investir em sua formação profissional, ampliar seus saberes e levar para a

sala de aula conteúdos contextualizados à realidade de seus estudantes e metodologias que

contribuem para formação crítica.

A falta de formação específica para docentes quilombolas já foi constatada nos

estudos de Ferreira e Castilho (2015). As autoras desnudam que “há dificuldade, por parte

dos professores, em ministrar uma educação contextualizada e voltada para a afirmação

169

cultural e identitária dos alunos por falta de formação inicial e ou continuada” FERREIRA;

CASTILHO, 2015, p. 366).

Moraes (2018) defende que, para os professores que atuam em escolas quilombolas,

a formação continuada é condição essencial e indispensável, pois, a partir dos cursos, o

docente tem a possibilidade de ampliar a consciência acerca da especificidade da Educação

Escolar Quilombola, de forma a realizar um ensino que respeite a história e a cultura das

comunidades.

A autora ainda ressalta que os saberes docentes provenientes da formação inicial de

qualquer área do conhecimento, por si só não são suficientes para atender a contento um

currículo específico que requer uma Pedagogia Quilombola.

Contudo, mesmo diante de um contexto tão adverso, marcado, principalmente, pela

falta de recursos didáticos como, mapas, laboratório de informática, para dar suporte às suas

aulas, formação específica, Júnia tenta, a seu modo, construir estratégias para oportunizar

novos conhecimentos aos estudantes, demonstrando saber que a aprendizagem da Geografia

permite “[...] ultrapassar a fase da memorização e conduzir o estudante a atribuir

significados e a entender os processos que ocorrem no ambiente” (MATO GROSSO-CEE,

p. 25).

O decorrer das observações proporcionou subsídios para perceber que a professora

Júnia considera e contempla, no seu fazer pedagógico, conteúdos que dialogam com as

comunidades quilombolas da localidade, garantindo, assim, os conhecimentos e saberes

quilombolas contextualizados. Para a docente, trabalhar numa escola quilombola foi

“vivenciar na prática a questão do pertencimento, que é também, um dos conceitos da

geografia. Do pertencimento, da identidade e da valorização cultural”.

Cumprindo o cronograma apresentado no início, descrevi a prática pedagógica da

professora Júnia, bem como apresentei algumas das dimensões dos seus saberes constituídos

e mobilizados na prática docente. Prosseguindo, descrevo, a seguir, os saberes docentes da

professora Edinete e também suas práticas pedagógicas.

5.6 OS SABERES EVIDENCIADOS DURANTE A OBSERVAÇÃO DA AULA DE

SOCIOLOGIA

Conforme as Orientações Curriculares para a Educação Básica no Estado de Mato

Grosso (2010, p. 81) o ensino da Sociologia,

170

[...] tem como objetivo contribuir para o aprimoramento do estudante como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual

e do pensamento crítico, preparando o estudante para o pleno exercício da

cidadania, entendida como condições de igualdade para o diálogo reflexivo e

crítico na grande rede social, política, econômica e cultural no qual vive. (MATO

GROSSO, 2010).

De acordo com a referida legislação, esses conhecimentos poderão possibilitar aos

estudantes a problematização das questões sociais que perpassam sua vivência cotidiana na

escola, comunidade e demais espaços da sociedade. Assim, podemos entender que a

Sociologia visa orientar o educando para um olhar sociológico acerca das temáticas que se

colocam no contexto da comunidade escolar e da sociedade na qual ele está inserido.

Ainda segundo as Orientações Curriculares de Mato Grosso/2010, os conteúdos e as

atividades de Sociologia desenvolvidos em sala de aula devem levar o estudante a um

“movimento de distanciamento do olhar além de sua própria realidade e de aproximação

sobre outras realidades, para que possa desenvolver uma compreensão de outro nível e

crítica”. Ainda conforme preconiza a referida legislação, para isso, o docente “deve ter

conceitos claros e coesos para fundamentar sua prática pedagógica” (MATO GROSSO,

2010, p. 83). Nesse sentido, a escola há de considerar que os estudantes, ao nela adentrarem,

traz consigo arcabouços históricos, culturais, políticos, resultante da sua interação com seu

meio e com a sociedade. (MATO GROSSO, 2010).

Nessa direção, a escola deve ser entendida como espaço fundamental para

socialização dessas vivências e conhecimentos acumulados historicamente e que pode ser

ressignificado por esse espaço. Contudo, não é suficiente somente a vivência dessa cultura, é

necessário problematizar, refletir, propor ações que facilitem o entendimento das intenções e

relações sociais envolvidas nessas práticas, permitindo construir novos significados (MATO

GROSSO, 2010).

Levando em consideração as reflexões externalizadas pelas Orientações Curriculares

para Educação Escolar Quilombola do Estado de Mato Grosso (2010), dei início à

observação das aulas de Sociologia, que se iniciou no dia 22/10/2018 e se estendeu até as

aulas ministradas no dia 26/10/2018. Ao todo foram observadas três aulas de Sociologia,

sendo uma em cada turma do ensino médio dessa escola.

Importante destacar que as aulas de Sociologia são ministradas pela professora

Edinete Pereira Leite, que é graduada em Matemática e atua como professora contratada na

Escola Estadual Quilombola Profa. Tereza Conceição Arruda há um ano e meio.

171

Especificamente, na disciplina de Sociologia, a mesma atua há, aproximadamente, seis

meses.

Na observação, percebi que as aulas da professora seguem uma rotina uniforme. Ela

chega, cumprimenta os estudantes e, em seguida, inicia a chamada. Sem nenhum diálogo

prévio sobre o assunto a ser estudado, a professora começa a escrever o conteúdo na lousa.

Nas três aulas observadas, a professora usou os 45 minutos, que são o tempo de cada aula no

ensino médio nesta escola, escrevendo na lousa o conteúdo retirado do livro didático, sem

fazer nenhuma introdução prévia. Ao final de cada aula, ela comunicou aos alunos que as

atividades relacionadas aos conteúdos seriam disponibilizadas na próxima aula.

Em conversa com a docente, questionei o motivo das aulas no ensino médio durarem

apenas 45 minutos, vistos que, segundo normativa da Seduc/MT, as aulas devem ser de uma

hora cada. A docente justifica que, no ensino médio, as aulas ocorrem dessa maneira, devido

ao quantitativo de aulas na matriz curricular ser maior que a carga horária do ensino

fundamental. Como a escola atende as duas etapas no mesmo horário e os discentes do

ensino médio não podem chegar mais cedo ou sair mais tarde, porque dependem do

transporte escolar que atende a todos os estudantes num mesmo horário, então, a escola fez

esse arranjo. Ela explicou também que os minutos retirados das aulas normais do ensino

médio são recompensados com atividades extraclasses. Porém não citou quais seriam essas

atividades extraclasses.

Os conteúdos trazidos pela professora são conteúdos pertinentes da Sociologia, tais

como: planejamento familiar e os meios de comunicação em massas, porém a docente, ao

menos durante as minhas observações, não fez nenhuma discussão sobre os temas, nem

mesmo uma fala introdutória sobre do que se trata cada um dos temas. Ou seja, a

participação dos educandos não foi estimulada em momento algum, eles se comportam

como ouvintes e/ou como copiador. Percebe-se uma metodologia aos moldes tradicional.

Perguntada sobre a escolha dos conteúdos de Sociologia, a docente responde: “Na

disciplina de sociologia eu julgo importante falar da história da comunidade e também do

livro didático né, que tem... pra eles entenderem melhor a história da Comunidade deles e

estarem passando também essa história adiante” (informação verbal, PROFESSORA

EDINETE, 2018).

Pela fala da professora e na observação do seu planejamento anual das aulas,

constatei que os conteúdos ministrados para as turmas do ensino médio compõem de uma

listagem de conteúdos transcritos tal e qual se apresenta no livro didático de Sociologia

adotado pela escola. Não encontrei, no plano, nenhum conteúdo, nenhuma referência ligada

172

à luta pela terra, à história e à identidade do negro, apesar de, na sua fala, a professora

reconhecer a importância de se falar da história da comunidade. Em relação ao uso restrito

do livro didático, eu trago uma fala da professora que reforça a sua dependência desse

recurso: “[...] Você tem que estar passando no quadro, dividindo livro para eles estarem

lendo, né, do livro para poder estar adquirindo mais conhecimento”.

Ao não problematizar os conteúdos estudados em Sociologia e não os articular com a

realidade dos educandos, a docente está na contramão do que preconiza as Orientações

Curriculares do Estado de Mato Grosso/2010, que assegura que os conhecimentos da

Sociologia “poderão possibilitar aos estudantes a problematização das questões sociais que

perpassam sua vivência cotidiana na escola, comunidade e demais espaços da sociedade”

(MATO GROSSO, 2010, p.82).

Ademais, o mesmo documento destaca que as práticas pedagógicas e todas as ações

desenvolvidas no âmbito da escola precisam levar em conta a cultura e tradições do povo

quilombola, respeitando as peculiaridades e demandas, criando espaços de aprendizagem

coletiva e incentivando a prática e as trocas de experiências que emergem do chão da

comunidade (MATO GROSSO, 2010).

Nesse sentido, segundo as orientações, ressalta-se ainda que:

[...] o ensino de Sociologia não compete à transmissão de conteúdos e conceitos da

área, mas estes devem estar correlacionados à prática cotidiana dos estudantes, para que, no conjunto com as demais áreas de conhecimento, o estudante possa

desenvolver-se como ser humano, construindo seu projeto pessoal e seu

entendimento enquanto agente participante dos caminhos da sociedade (MATO

GROSSO, p. 83).

Um fato que vale a pena ressaltar também é o de que a professora Edinete não está

atuando na sua área de formação. Apesar de a docente ser graduada em Matemática, ela está

atuando na disciplina da área de Ciências Humanas, ou seja, totalmente fora de sua área de

formação. Vejamos o que ela diz sobre isso:

Na sala de aula a maior dificuldade que eu venho encontrando, é que eu atuo numa

área que eu não sou formada. Não tenho pleno conhecimento daquela área. Eu tento me esforçar ao máximo. Leio os livros, faço pesquisa na internet, para eu

estar por dentro daquela área que eu estou dando. A maior dificuldade é essa. Pois

o que eu sei mesmo, o que eu estudei mesmo, eu não atuo. Eu acho que se eu

estivesse atuando na minha disciplina que eu fiz, eu estaria sendo bem melhor. Ou

ainda se eu tivesse tido uma orientação, uma formação para atuar em outra área,

acho que também me ajudaria muito. (informação verbal, PROFESSORA

EDINETE, 2018).

173

A contratação de professores fora da sua formação nos leva a retomarmos aqui a

ideia da polivalência, homologado pelo Parecer n.º 895/71, que indicava que o professor

polivalente poderia atuar do ensino fundamental ao ensino médio, podendo ministrar

disciplinas diferentes (Cruz, 2012).

O parágrafo 4° do artigo 3° da Lei n.º 9.394 de 20 de dezembro de 1996 afirma: “a

formação de professores para atuação em campos específicos dos conhecimentos far-se-á em

cursos de licenciaturas, podendo os habilitados atuarem no ensino da sua especialidade, em

qualquer etapa da educação básica, desde que tenha formação adequada”.

Porém, de acordo com Dalberio e Bertoldi (2012), com as disciplinas estudadas

durante sua formação, o professor tem permissão para atuar em uma área que não seja a sua.

Segundo os autores, isso pode ocorrer na ausência de um professor formado na área, fato

que ocorre com a professora Edinete. Perguntada do porquê de ela atuar numa área

totalmente alheia à sua graduação, Edinete assim responde:

É que está faltando professores habilitados nessas áreas e como são poucas turmas,

resultando em apenas 03 aulas de sociologia, a escola não encontrou nenhum

professor habilitado na sociologia para ministrar as aulas, então eu as peguei e estou me esforçando bastante para fazer o melhor para os estudantes. (informação

verbal, PROFESSORA EDINETE, 2018).

O relato de Edinete nos leva a constatar que, ainda hoje, o que foi desvelado por Cruz

(2012, p. 2905) de que “a noção de polivalência estaria associada a uma relação

economicista de relação “custo-benefício”, sob a justificativa de se suprir o déficit de

professores para atuarem na crescente população escolar com ensino obrigatório”, ainda é

realidade, principalmente, nas escolas rurais.

No caso da Escola Estadual Professora Tereza Conceição Arruda, a polivalência

acontece pelo fato de não se ter professor habilitado na disciplina e a dificuldade de algum

professor de fora do território matacavalense deslocar para ministrar apenas três aulas, que

corresponde ao total de aula de sociologia no ensino médio da escola.

Sobre a preparação do professor para atuar em diferentes áreas, Cruz (2012) baseia

suas conclusões nos estudos de Gatti (2008) sobre o tema do professor polivalente.

Conforme Cruz (2012), os estudos de Gatti constatou que há insuficiência na formação

inicial na perspectiva polivalente, pois em tais cursos foi verificado superficialidade no trato

dos conteúdos das diversas áreas do conhecimento (Português, Matemática, Geografia, entre

outros) que compõem o currículo da educação básica. Essa falha na formação inicial para

174

atuar nas diversas áreas do conhecimento nos leva a entender as dificuldades desveladas pela

professora Edinete.

Conforme a Lei n.º 9394/96, sobre a garantia do direito à formação continuada, por

meio do seu artigo 2º, afirma:

Os cursos de formação de professores para a educação básica serão organizados de modo a atender aos seguintes requisitos: (1) compatibilidade com a etapa da

educação básica que atuarão os graduados; (2) possibilidade de complementação

de estudos, de modo a permitir a atuação em outra etapa da educação básica; (3)

formação básica comum, com concepção curricular integrada, de modo a assegurar

as especificidades do trabalho do professor na formação para atuação

multidisciplinar e em campos específicos do conhecimento; (4) articulação entre os

cursos de formação inicial e os diferentes programas e processos de formação

continuada. (BRASIL, 1996).

A partir do que preconiza a referida legislação, a professora Edinete e demais

professores que atuam fora da sua graduação e mesmo os que atuam na sua habilitação

teriam direito a uma formação para atuação multidisciplinar.

Porém, segundo Tardif (2002), existem “problemas epistemológicos” na formação

acadêmica, problemas que se encontram na maior parte nos objetivos de formação, como,

por exemplo, a separação entre a pesquisa, a formação e a prática, “três polos separados: os

pesquisadores produzem conhecimentos que são em seguida transmitidos no momento da

formação e finalmente aplicados a prática” (TARDIF, 2002, p. 270). Assim, de acordo com

o autor:

Os cursos de formação para o magistério são globalmente idealizados segundo um

modelo aplicacionista do conhecimento: os alunos passam um certo número de

anos a assistir aulas baseadas em disciplinas e constituídas de conhecimentos

proposicionais. Em seguida, ou durante essas aulas, eles vão estagiar para

“aplicarem” esses conhecimentos. Enfim, quando a formação termina, eles

começam a trabalhar sozinhos, apreendendo seu ofício na prática e constatando, na

maioria das vezes, que esses conhecimentos proposicionais não se aplicam bem na

ação cotidiana. (TARDIF, 2002, p. 270).

Para Tardif (2002), os saberes dos professores, além de temporais e plurais, resultam

dos currículos e das disciplinas que apreenderam durante seu percurso escolar e esses podem

estar fragmentados pela negligência dos seus mestres durante sua formação, ou seja, o

distanciamento entre a teoria e a realidade que acontece nos espaços escolares.

Na observação e na conversa com a professora, foi possível observar que os saberes

docentes que prevalecem na sua prática pedagógica são os saberes disciplinares e os saberes

curriculares. Segundo Tardif (2002, p. 40), “esses saberes não são o saber dos professores

175

nem o saber docente”. Conforme o autor, esses saberes, ou seja, os saberes disciplinares e os

saberes curriculares “situam numa situação de exterioridade em relação à prática docente:

eles aparecem como produtos que já se encontram consideravelmente determinados em sua

forma e conteúdo, produtos oriundos da tradição cultural e dos grupos produtores de saberes

social”.

Nesse sentido, a professora Edinete pode ser comparada, segundo Tardif (2002), a

mera executora destinada à tarefa de transmissão de saberes escolares. Ou seja, um saber da

Pedagogia. Talvez isso aconteça, principalmente, pelo fato de a professora estar atuando fora

de sua formação, somado ao fato de que a mesma atua há apenas um ano e meio no

exercício do magistério.

Em abordagens convergentes, Tardif (2014) e Borges (2004) expressam que os

saberes docentes passam por transformações vinculadas às diversas etapas da carreira

docente, caracterizando diferentes fases da vida e da prática profissional, a exemplo

podemos citar, “[...] as parcerias, as experiências adquiridas em diferentes estabelecimentos

escolares, a participação em eventos, seminários e programas de formação continuada, as

leituras e estudos, entre outros momentos da carreira” (BORGES, 2004, p. 83).

Como evidenciado em sua história de vida, a professora Edinete é quilombola de

Mata-Cavalo, descendente de um dos negros escravizados em Mata-Cavalo e que receberam

a terra por doação. Porém, conforme pôde ser observado a partir da fala da professora, ela

não se inclui como pertencente da comunidade, quando diz “[...] pra eles entenderem

melhor a história da Comunidade deles”. Outro fato que chamou atenção foi o de, no

questionário de perfil do educador, aplicado por mim com os sujeitos participantes da

pesquisa, no quesito raça/cor, ela se autodeclarar como sendo amarela.

Apesar de não ter nascido na comunidade, vale ressaltar que ela já convive na

comunidade há bastante tempo, como pode ser observado no relato feito por ela:

Eu sou quilombola, porém não nasci, nem fui criada na comunidade. Minha mãe e

minhas irmãs que já moram aqui há mais de 15 anos. Mas mesmo não morando aqui no Mata-Cavalo, eu sempre frequento muito aqui. Venho na casa das minhas

irmãs e agora que estou dando aula aqui na escola, eu estou passando mais tempo

aqui na comunidade. (informação verbal, PROFESSORA EDINETE, 2018).

Podemos entender essa dificuldade de reconhecimento e pertença da professora a

partir do Olhar de Castilho (2011), que sobre isso escreve:

176

Os novos estabelecidos em Mata-Cavalo – as famílias mais distantes dos troncos

familiares (dos antigos), e que reocuparam as terras no Quilombo mais

recentemente-estão tentando juntar seus pedaços por meio do que contam os mais

velhos. [...]. Percebem-se a dificuldade deles em se reconhecerem e expressarem o

sentimento de pertença com a mesma profundidade e emoção que os antigos

moradores o fazem. (CASTILHO, 2011, p. 89).

A partir de Castilho (2011), podemos constatar que, apesar da professora ser uma

matacavalense, talvez o fato de não ter nascido e convivido na comunidade, faz com que ela

não tenha a memória sobre sua ancestralidade, dificultando o seu pertencimento com o

lugar, apesar de atualmente conviver nele.

Outra possibilidade é que essa apreendência da docente aponta que no convívio

social dos quilombolas existem famílias que ainda estão impregnadas de fragmentos de

estereotipação do negro. O fato de alguns não se reconhecerem negros “relaciona-se com a

questão da estereotipação iniciada na família que, ao ver o negro negativamente, impõe, de

certa forma, a desvalorização dessa cultura” (ANDRADE, 2018, p. 126).

Andrade (2018) ressalta que essa visão estereotipada se fortalece nos movimentos

impostos pela cultura dominante, quando trata da questão da negritude em datas específicas

com festividades em favor da folclorização e, ainda, por meio da mídia, que, muitas vezes,

adentrando as famílias, traz junto à criança negra, “a visão negativa que acaba se

constituindo em baixa autoestima, quando adolescente, jovem, e principalmente na

dificuldade de se aceitar e se ver como tal, diante desse outo lado da história” (ANDRADE,

2018, p. 127).

Contudo, apesar de suas dificuldades, a professora Edinete se diz feliz por estar

trabalhando na escola da sua comunidade e que se esforça para melhorar sua prática docente.

5.7 OS SABERES EVIDENCIADOS DURANTE A OBSERVAÇÃO DA AULA DE

FILOSOFIA

De acordo com o que preconiza as Orientações Curriculares do Estado de Mato

Grosso/2010, a disciplina de Filosofia “tem por tarefa apresentar temas, problemas e

reflexões da tradição filosófica interligada aos eixos articuladores centrais das áreas de

conhecimento, particularmente com aqueles da área de ciências humanas e suas

tecnologias”. Sobretudo nesse processo, “[...] os docentes de Filosofia são alertados a não

perder de vista a valorização da experiência do estudante, sua realidade social e seus focos

177

de interesse, sem os quais o desencadeamento da investigação e reflexão filosóficas não

avança” (MATO GROSSO, 2010, p. 71).

Ainda conforme as Orientações Curriculares do Estado de Mato Grosso, quanto aos

processos cognitivos e comportamentos atitudinais a serem perseguidos, os objetivos da

Filosofia são:

Colaborar para a efetivação de reflexões pertinentes à participação política (através

da filosofia política) e do agir humano na sociedade (através da ética), fazendo o

mesmo com os elementos que dizem respeito à estrutura e à validação dos conhecimentos (através da lógica, da teoria do conhecimento e da filosofia da

ciência) e com os valores estéticos e culturais presentes na história passada e na

sociedade contemporânea (através da antropologia, filosófica e estética),

[...]ancorado sempre na interligação entre a tradição e os procedimentos da

investigação filosóficos e as experiências do estudante. (MATO GROSSO, 2010,

p. 73).

Levando em consideração as reflexões externalizadas pelas Orientações Curriculares

para Educação Escolar Quilombola do Estado de Mato Grosso (2010), dei início à

observação das aulas de Filosofia, que se iniciou no dia 25/10/2018 e se estendeu até as

aulas ministradas no dia 29/10/2018. Ao todo foram observadas três aulas de Filosofia,

sendo uma em cada turma do ensino médio dessa escola.

Vale destacar que as aulas de Filosofia, assim como as de sociologia, são ministradas

pela professora Edinete Pereira Leite, que é graduada em Matemática e atua como

professora contratada na Escola Estadual Quilombola Profa. Tereza Conceição Arruda há

um ano e meio. Assim como na Sociologia, na Filosofia, a professora também atua há

aproximadamente seis meses.

Da mesma maneira como observado na aula de Sociologia, nas aulas de Filosofia, a

rotina da professora segue uniformemente. Ela chega, cumprimenta os estudantes e em

seguida inicia a chamada. Porém em relação aos tratos em relação aos conteúdos, nota-se

uma pequena diferença.

Enquanto nas aulas de Sociologia que observei a professora não dialogou sobre o

conteúdo a ser escrito no quadro, em relação à disciplina de Filosofia, a professora realizou

introdução sobre o tema a ser ministrado. Porém essa introdução se limitou ao conteúdo

descrito no livro didático.

Na observação na turma do 3º ano do ensino médio, após a chamada, a docente fez

uma breve introdução sobre cultura, conteúdo que será estudado pela turma. A introdução

foi feita somente levando em conta o descrito no livro didático, sem nenhuma articulação

com a realidade do educando. Após a breve introdução, a professora utilizou os minutos

178

restantes para escrever o conteúdo na lousa. O conteúdo escrito na lousa estava sendo

retirado do livro didático. Ao término da aula de 45 minutos, a professora disse aos

educandos que continuaria o conteúdo na próxima aula.

Contudo, as orientações curriculares preconizam:

Que para além da observação e do atendimento de uma adequada seleção dos conteúdos a partir da tradição filosófica, possa poder obter ganho significativo em

termos formativos ao concentrar-se nos procedimentos da leitura e da investigação

filosóficas – a linguagem, a construção de significados e de conceitos, a

sistematicidade e encadeamento dos argumentos. E, dessa forma, proporcionar ao

estudante a compreensão e utilização dos procedimentos de análise, de

argumentação e de crítica filosóficos na leitura dos próprios textos filosóficos e em

outros contextos. (MATO GROSSO, 2010. p. 73).

Ou seja, segundo as Orientações Curriculares do Estado de Mato Grosso para manter

a riqueza da Filosofia, o docente precisa manter vivas as pluralidades das Filosofias. Para

isso, as metodologias precisam estar afinadas com os próprios procedimentos das atividades

filosóficas, pois essa pluralidade possibilita ao educando a ampliação do senso comum,

favorecendo a passagem do senso comum para o conhecimento científico.

Para evitar riscos e equívocos no ensino da Filosofia, a citada legislação sugere:

(a) A tradição filosófica através do texto de Filosofia. Com o adequado

conhecimento dos temas, dos problemas e dos procedimentos da Filosofia por

parte do professor, variados recortes didáticos podem ser efetuados sem ferir as finalidades almejadas, bem como as próprias especificidades do saber filosófico.

Tais recortes ou enfoques necessitam estar apoiados na História da Filosofia, daí a

importância do recurso permanente ao texto filosófico como meio prioritário de

contato com a Filosofia e seus procedimentos de análise e de interpretação. b) Por

outro lado, é preciso manter uma tripla articulação entre os conteúdos e

procedimentos da Filosofia, as capacidades intelectuais e as experiências culturais

vividas pelo estudante. A apresentação da linguagem filosófica e da produção

conceitual da filosofia precisa ser mediada pela ação pedagógica do professor, de

forma a ser explorada gradual e progressivamente, crescendo em rigor expositivo e

complexidade conceitual conforme o desenvolvimento intelectual dos estudantes e

seu interesse pelas questões tratadas. (MATO GROSSO, 2010).

Segundo as Orientações Curriculares, o docente necessita de formação, ou seja, de

um profundo conhecimento sobre a tradição e a didática filosófica para realizar uma prática

pedagógica que favoreça o aprendizado dos educandos. O que não foi oferecido para a

professora Edinete, conforme ela própria relatou anteriormente.

Conforme Nóvoa (1992) a formação contínua pode ser muito útil para potencializar a

prática profissional. Para o autor, é preciso investir positivamente nos saberes de que o

179

professor é portador, trabalhando-os de um ponto de vista teórico e conceitual, uma vez que

os desafios que ele é intimado a enfrentar apresentam características singulares.

A formação dos professores possibilita a revisão de saberes já consolidados, bem

como a incorporação de novos saberes, pois segundo Freire (1996, p. 25) ‘quem forma, se

forma e re-forma ao formar, e quem é formado forma-se e forma ao ser formado. [...] Quem

ensina aprende a ensinar, e quem aprende, ensina ao aprender’.

Assim, conforme Soares (2012), a formação deve fornecer subsídios teóricos para

que os professores repensem suas ações pedagógicas de forma que em sua prática

pedagógica valorize as referências históricas, socioculturais e econômicas dos estudantes e

em seu currículo incorpore os cenários da vida cotidiana dos mesmos. Pois, “se o trabalho

modifica o professor, modifica também, sempre com o passar do tempo o seu saber

trabalhar” (TARDIF, 2002, p.57). Reafirmando o entendimento de Soares (2012) quanto às

legislações pertinentes à Educação Escolar Quilombola, ainda se apregoa que docentes e

equipe gestora devem empreender esforços visando garantir uma educação que contemple as

particularidades e especificidades étnicas, culturais, políticas e históricas das comunidades

quilombolas. Nesse sentido, um plano de aula coerente com os pressupostos requeridos pela

modalidade de Educação Escolar Quilombola necessitaria, além de outros conteúdos, a

inserção de elementos da cultura negra.

Baseados nos pressupostos legislativos para o ensino da Filosofia na modalidade

quilombola, ousamos questionar: o que esperar da prática pedagógica na disciplina de

Filosofia nessa escola quilombola, onde o professor não é formado na disciplina, onde o

docente praticamente não recebe nenhum acompanhamento técnico-pedagógico que possa

auxiliar na execução do programa de ensino, nos objetivos a serem alcançados, conteúdos,

metodologias?

A prática da professora, por falta de formação continuada e alternativas diferentes,

baseia-se nos conteúdos trazidos nos livros didáticos. E temos que concordar com Castilho

(2011) quando desvela que os conteúdos trazidos pelo livro didático não incluem as escolas

quilombolas. Ainda segundo a autora, outra dificuldade que o livro didático traz é grande

quantidade de propostas de atividades que o aluno que reside nas comunidades quilombolas

rurais não tem possibilidade de responder, ora por estar distante da realidade do educando,

ora por falta de recursos que permitam ao estudante a prática da pesquisa (biblioteca,

internet, etc.).

Na entrevista com a professora Edinete, percebe-se que há uma vontade de se fazer

um trabalho contextualizado com o cotidiano do educando quilombola, conforme preconiza

180

as Orientações Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola e a do Estado de

Mato Grosso, porém, por falta de preparo para lidar com essa metodologia, ela acaba por

realizar um trabalho de transmissão de conteúdo, ou seja, nenhuma articulação do saber

científico com o saber local do estudante quilombola.

Concordando com Castilho (2011), que o intuito não é vitimizar ou culpar a docente,

a intenção é refletir criticamente sobre a gravidade do problema: a relação de esquecimento

e exclusão que o Estado estabelece com a escola quilombola, mesmo com a presença de uma

legislação que garanta sua especificidade com garantia de qualidade. Importa também

colocar em relevo as implicações acarretadas dessa relação descompromissada, tais como:

baixa qualidade de ensino, evasão escolar, entre outras.

A partir dessa realidade vivenciada na escola de Mata-Cavalo, concordamos com

Castilho (2011, p. 177), ao afirmar que “imputar aos sujeitos abarcados no processo de

ensino-aprendizagem a responsabilidade pelo fracasso da escola, [...] é desresponsabilizar o

Estado por seu histórico descompromisso com a maioria das populações rurais, na qual se

inclui as comunidades quilombolas”.

Diante das situações refletidas neste capítulo, foi possível apreender que os saberes

mobilizados pelas docentes, Eliane Prado, Júnia Auxiliadora e Edinete Pereira, na Escola

Estadual Professora Tereza Conceição Arruda, são oriundos de experiências vivenciadas em

vários momentos da vida, inclusive de conhecimentos adquiridos antes de escolher a

profissão docente. São conhecimentos processuais, que se amalgamam em meio às

multiplicidades de sentidos, englobando aí os saberes oriundos de diferentes naturezas: os da

formação profissional, os saberes disciplinares, saberes curriculares e saberes experienciais.

Na observação e na entrevista das professoras também ficou evidenciada a

necessidade de que haja, seja na formação inicial ou continuada, abordagem sobre a temática

quilombola, pois dessa maneira possibilitará aos docentes que atuam diretamente nesta

modalidade educacional, construírem e colocar em prática a pedagogia quilombola,

alicerçados nas legislações pertinentes à Educação Escolar Quilombola.

A escrita seguinte é dedicada às discussões referentes aos resultados obtidos a partir

dos objetivos da pesquisa, englobando as apreensões da realidade do cotidiano trazidas nas

narrativas das professoras entrevistadas sobre os saberes mobilizados pelas professoras da

Escola Estadual Professora Tereza Conceição Arruda, na área de Ciências Humanas, e se os

mesmos em sua prática pedagógica articulam os saberes científicos com os saberes locais

em seu contexto sócio-histórico-cultural, conforme preconiza a Resolução n.º 08/2012 e as

Orientações Curriculares do Estado de Mato grosso para essa modalidade.

181

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho, propomo-nos a descrever quais saberes mobilizam os professores da

área de Ciências Humanas da Escola Estadual Professora Tereza Conceição Arruda e se os

mesmos articulam, nas suas práticas pedagógicas, o conhecimento científico e os

conhecimentos tradicionais quilombolas em seu contexto sócio-histórico-cultural.

Para descrever o lócus de pesquisa, a Escola Estadual Professora Tereza Conceição

Arruda, fez-se necessário um breve relato do processo histórico do Quilombo Mata-Cavalo.

Ao perscrutar a história da comunidade quilombola de Mata-Cavalo, deparei-me com o

negro matacavalense escravizado, expropriado, marginalizado, que se organizam em torno

da luta pela regularização fundiária e por políticas públicas, como saúde, educação, moradia,

saneamento básico, que favoreçam uma melhor condição de existência dos quilombolas.

Nos trilhos dessas histórias, vi descortinar, por intermédio das vozes dos anciões, a

luta secular entre um projeto de liberdade e vida, contra um projeto de injustiça e exclusão,

em que os humanos mais pobres são desumanizados pela estrutura social racista e capitalista

da sociedade brasileira, na qual a “diferença” é usada como desculpa para promover a

desigualdade social. Porém, nos deparamos também com uma população que, apesar de

viver anos invisibilizados pelo poder público, não se calaram; buscaram e, ainda buscam,

diariamente, fazer-se ouvir pela sociedade, pelos representantes políticos, em vista da luta

pelo cumprimento dos seus direitos.

Ao descrever o lócus desta pesquisa, possibilitou-se a análise das Políticas Públicas

de Educação Escolar Quilombola na Escola Estadual Professora Tereza Conceição Arruda,

e, dessa forma, entendemos que, apesar dos avanços significativos ocorridos em termos

legais, a realidade da maioria das escolas quilombolas do Brasil, seja em território

quilombola ou que atende alunos oriundos de comunidades quilombolas, a pesquisa nos

revelou que as dificuldades enfrentadas diariamente pelos professores e estudantes são

colossais, marcadas pela precariedade de recursos didáticos e pedagógicos, pela inexistência

de laboratório de informática, biblioteca, internet e transporte escolar de qualidade. Aliado a

todos os obstáculos citados, está a insuficiência dos recursos destinados à merenda escolar e

a escassez de oferta de formação continuada específica para os professores que atuam na

referida escola.

182

As precariedades enfrentadas para a materialização dessa modalidade no chão das

escolas quilombolas já foi retratada nas pesquisas de Castilho (2011), Ferreira (2015) e

Carvalho (2016), pesquisadores do grupo de Pesquisa GEPEQ da UFMT. Dessa forma,

compreendemos que existe uma disparidade entre a legislação e a concretude, em que a

escola quilombola ainda não é protagonista.

A questão central que norteou esta pesquisa pode ser assim compreendida: quais

saberes os docentes da área de Ciências Humanas do ensino fundamental e médio da Escola

Estadual Quilombola Profa. Tereza Conceição Arruda mobilizam em suas práticas

pedagógicas? Nas práticas pedagógicas desses professores, articulam-se o conhecimento

científico e os conhecimentos tradicionais quilombolas em seu contexto sócio-histórico-

cultural? Quais são as experiências formativas oportunizadas a esses docentes?

Para melhor compreensão do contexto no qual o estudo se insere, fez-se necessário

abordar diversos temas, tais como, o conceito de quilombo, luta pela terra, território,

história, memória, cultura, identidade, conceito de Educação Escolar Quilombola, Diretrizes

Curriculares, currículo, práticas pedagógicas, saberes docentes, formação de professores.

Todos esses temas compõem o conjunto que esta pesquisa busca apreender e se fez

necessário para entender a Educação Escolar Quilombola e os saberes mobilizados pelos

professores da Escola Estadual Professora Tereza Conceição Arruda na sua prática

pedagógica.

Durante a realização do trabalho, oportunizou evidenciar na observação das aulas da

área de Ciências Humanas que os saberes curriculares e disciplinares estão consolidados,

pois os professores expressam uma ação alinhada ao seu discurso, demonstrando preocupar-

se mais com o aprendizado dos estudantes do que com a quantidade de conteúdo ou prazos

estabelecidos pela matriz curricular anual e lidam bem com as estratégias de ensino que

costumam escolher para ministrar os conteúdos. Os saberes experienciais se evidenciam

principalmente nas aulas da professora Júnia, que está há mais tempo no exercício do

magistério, à medida em que os docentes recorrem aos saberes construídos durante a sua

trajetória de vida pessoal e profissional para implementar as aulas com ações e

procedimentos diferenciados, mesmo diante de situações complexas.

Ficou notabilizado que as professoras das disciplinas de Geografia e História, em

suas práticas, conseguiram fazer ou estabelecer relação entre o que estava sendo apresentado

aos alunos com a realidade local quilombola. Dessa maneira, as práticas pedagógicas das

professoras em questão estão em consonância com o proposto nas Orientações Curriculares

183

para Educação Escolar Quilombola do Estado de Mato Grosso e nas Diretrizes Curriculares

Nacionais para Educação Escolar Quilombola.

No entanto, é importante destacar que a professora das disciplinas de Filosofia e

Sociologia, nas aulas observadas, em nenhum momento, conseguiu fazer ou estabelecer

relação entre o que estava sendo apresentado aos educandos, retirados do livro didático, com

a realidade local quilombola, que pode ser justificada pelo fato de seu curto tempo no

exercício do magistério, fora da sua área de graduação, como também pela escassez da

formação específica para atuar na escola quilombola.

As narrativas das professoras revelam a carência e a necessidade de formação

continuada. Elas relatam, ainda, que a formação continuada ofertada pela Seduc/MT não

contemplou a maioria dos professores da escola. Elas expõem suas dificuldades e angústias,

por não se sentirem preparadas o bastante para atuar numa escola quilombola. Em razão

disso, consideramos que, sem a formação continuada que prepare o professor para atuar

nessa pedagogia própria, para uma educação que promova a valorização da cultura e a

afirmação identitária, fica bastante comprometida.

A partir deste contexto, é necessário estabelecer um diálogo entre as instituições

responsáveis pela implementação das políticas públicas para essa modalidade e as

instituições educacionais quilombolas e, a partir daí, promover ações para que as

necessidades formativas sejam remodeladas a fim de ofertar aos professores um curso que os

potencialize a efetivar a pedagogia quilombola, em consonância com os preceitos legais.

Ainda assim, é interessante registrar que, mesmo perante todas as adversidades em

que os docentes se esbarram cotidianamente no ambiente escolar, a exemplo da falta de

formação adequada, inexistência de recursos didáticos e pedagógicos, os professores

participantes da pesquisa não medem esforços na tentativa de empreender ações cada vez

mais alinhadas ao contexto escolar quilombola e às vivências dos estudantes. Percebem-se

ações inovadoras na prática pedagógica, principalmente, nas disciplinas de História e

Geografia, rompendo com a prática pedagógica tradicional, sempre respeitando o tempo de

maturidade cognitiva e social de cada educando envolvido no processo de ensino-

aprendizagem.

Por fim, acreditamos ser necessário o estreitamento entre as escolas quilombolas, os

quilombos, as universidades, faculdades e movimentos sociais, para que possam continuar

suscitando debates em torno das temáticas pertinentes à modalidade Educação Escolar

Quilombola e, dessa forma, consigam serem desvelados outros aspectos relevantes atrelados

ao tema, pois entendemos que a escola não pode mais permanecer atuando perante os seus

184

educandos, ideologicamente, como se todos fossem iguais, reproduzindo um ideal abstrato

dos sujeitos e, ao mesmo tempo, transmitindo uma neutralidade em seus conteúdos

curriculares.

Salientamos a necessidade de uma proposta de pedagogia quilombola que envolva

aqueles saberes das comunidades quilombolas e um intercâmbio de conhecimentos entre

diversas áreas para que venham a contribuir com a elaboração de um currículo pertinente a

essa modalidade. Para esse fim, necessita pensar a educação quilombola com base nos

contextos de uso do território, da etnicidade e da memória presentes nas narrativas dos

quilombolas.

185

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