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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
GONÇALINA EVA ALMEIDA DE SANTANA
SABERES E FAZERES QUILOMBOLAS: UM OLHAR SOBRE AS PRÁTICAS
PEDAGÓGICAS DA ÁREA DE CIÊNCIAS HUMANAS DA ESCOLA DE
MATA-CAVALO
CUIABÁ-MT
2019
GONÇALINA EVA ALMEIDA DE SANTANA
SABERES E FAZERES QUILOMBOLAS: UM OLHAR SOBRE AS PRÁTICAS
PEDAGÓGICAS DA ÁREA DE CIÊNCIAS HUMANAS DA ESCOLA DE
MATA-CAVALO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade Federal
de Mato Grosso como requisito para a obtenção
do título de Mestre em Educação. Área de
Concentração: Educação. Linha de Pesquisa:
Movimentos Sociais, Política e Educação
Popular.
Orientadora: Profa. Dra. Suely Dulce de Castilho
Cuiabá-MT
2019
Dedico este trabalho a Deus e a todos que
trilharam esta caminhada comigo: à minha
amada família, em especial, aos meus filhos
Evylin e Ezequiel e ao meu esposo Edirson
Paulo, à querida orientadora Suely Castilho,
aos amigos, aos meus irmãos matacavalenses
e aos professores da Escola Estadual
Professora Tereza Conceição Arruda.
Dedico, ainda, a minha amada avó, Tereza
Conceição Arruda (in memorian), e ao meu
bisavô, Antônio de Mulato.
AGRADECIMENTOS
“Por isso não tema, pois eu estou com você; não tenha medo, pois eu sou o seu Deus. Eu o
fortalecerei e o ajudarei; eu o segurarei com a minha mão direita vitoriosa” (Isaías 41:10). E
assim foi a minha confiança durante a caminhada. Foram muitos desafios no decorrer de
todo o percurso, mas sou vencedora.
Agradecimentos especiais a todos que fizeram parte desta caminhada, cada oração e apoio
incondicional.
A Deus, companhia de todas as horas e fortaleza sempre presente.
À minha orientadora, Profa. Dra. Suely Dulce de Castilho, preciosa e grandiosa mulher, pela
cordialidade, sábias palavras de incentivo, confiança e encorajamento e pelo tempo que
disponibilizou para orientação desta dissertação.
Aos demais professores do Mestrado em Educação do Programa de Pós-Graduação da
UFMT, por me guiarem, procurando sempre um futuro melhor para a Educação.
À minha família, em especial, minha mãe, Lúcia Conceição Arruda; meu pai, Manoel
Basilio de Almeida e meus irmãos, Luís, Dulcelina e Jonatta. Ao meu amado esposo,
Edirson Paulo de Santana, e aos meus filhos, Ezequiel Antônio e Evylin Maria, por
acreditarem no meu sonho e por me apoiarem, principalmente, durante as ausências que se
fizeram necessárias.
Às minhas companheiras de mestrado, Júnia e Adrianny, gratidão pelo amparo, paciência e
solidariedade que me ofereceram em todos os momentos.
Às amizades que construí neste percurso e que foram o incentivo e alento a todo tempo,
Silvana, Maria do Socorro e Michele França.
Os meus sinceros agradecimentos aos professores, estudantes, funcionários e gestão escolar
da Escola Estadual Quilombola Professora Tereza Conceição Arruda, pela disposição e
valiosas contribuições, que me possibilitaram a observação e participação dentro do contexto
da Educação Escolar Quilombola, oferecendo sempre o apoio e colaboração necessários.
Aos quilombolas de Mata-Cavalo, pela confiança e relato das suas mais ricas memórias,
quanto aprendizado! Agradeço às protagonistas desse trabalho: professoras Júnia, Edinete
Pereira e Eliane Parado; e aos anciões: Arnaldo, meu Bisavô, Antônio de Mulato, e ao
querido amigo, Natalino.
Agradeço aos avaliadores desta pesquisa: professores Dr. Acildo Leite da Silva, Dra. Nilce
Vieira Campos Ferreira e Dra. Márcia Ferreira.
Por fim, agradeço a todos que compartilharam comigo este percurso de aprendizado, regado
a esforço, dedicação e superação, e espero, sinceramente, que esta experiência rica do
mestrado seja a primeira de muitas nesta longa jornada.
SANTANA, Gonçalina Eva Almeida de. Saberes e Fazeres Quilombolas: um olhar sobre as
Práticas Pedagógicas da área de Ciências Humanas da Escola de Mata-Cavalo. Dissertação
(Mestrado em Educação). Programa de Pós-Graduação em Educação. Universidade Federal de
Mato Grosso. Cuiabá, 2018.
RESUMO
O presente estudo é resultado de uma pesquisa qualitativa de cunho etnográfico, realizada na
Escola Estadual Professora Tereza Conceição Arruda, localizada no Quilombo
Mata-Cavalo/Nossa Senhora do Livramento-MT. Neste trabalho, objetivou-se compreender
as práticas pedagógicas utilizadas pelos professores da área de Ciências Humanas da referida
escola, com centralidade na observação do processo de articulação do conhecimento
científico e dos conhecimentos tradicionais quilombolas em seu contexto sócio-
histórico-cultural. Além disso, discorre sobre as Políticas Públicas relacionadas à
modalidade de Educação Escolar Quilombola e apresenta a luta histórica dos
matacavalenses por educação formal. A fundamentação teórica está ancorada em Castilho
(2011), André (1995), Geertz (1989), Minayo (2008), Denzin e Lincoln (2006), Bardin
(1979), Hall (2006), Munanga (1995-1996), Barth (1998), Freitas (1978), Moura (1988;
2001), O’Dwyer (2002), Silva (2014), Bandeira (1992), Barros (2007), Nunes (2001), Freire
(2016), dentre outros. Os instrumentos utilizados para a coleta de dados foram: observação
participante, entrevista semiestruturada, história de vida, registro no diário de campo,
documentos e fotografias. Os resultados permitiram entrever a existência de esforços por
parte dos docentes, no sentido de realizar uma educação contextualizada com a realidade da
comunidade e articulada com os saberes científicos, apesar das condições adversas em
termos de infraestrutura, recursos financeiros e materiais pedagógicos. Identifica-se que os
professores se organizam para buscar formação para o aperfeiçoamento da pedagogia
quilombola. Percebe-se, também, que as materializações das políticas públicas para a
Educação Escolar Quilombola caminham a passos tímidos, sem dialogar e assegurar
condições dignas de trabalho e formação continuada, comprometendo o desenvolvimento da
didática quilombola, contrariando, assim, o que está regulamentado nos documentos oficiais
que orientam o trabalho em escolas inseridas nos territórios quilombolas.
Palavras-chave: Educação Quilombola. Saberes docentes. Quilombo Mata-Cavalo. Práticas
Pedagógicas.
SANTANA, Gonçalina Eva Almeida de. Quilombola Knowledge and Practice: a look at the
Pedagogical Practices of the Human Sciences area of the Mata-Cavalo School. Dissertation
(Master in Education). Graduate Program in Education. Federal University of Mato Grosso.
Cuiabá, 2018.
ABSTRACT
This study is the result of qualitative research of an ethnographic nature realized at State
School Professor Tereza Conceição Arruda, located at Quilombo Mata-Cavalo/Nossa
Senhora do Livramento-MT. The objective of this study was to understand the pedagogical
practices used by teachers of the Human Sciences area at the mentioned school, with focus
in the observation of the process of articulation of scientific knowledge and traditional
quilombola knowledge in its social, historical and cultural contexts. In addition, it discusses
the Public Policies related to the modality of Quilombola School Education and presents the
historical struggle of the matacavalenses for formal education. The theoretical foundation is
anchored in Castilho (2011), André (1995), Geertz (1989), Minayo (2008), Denzin and
Lincoln (2006), Bardin (1979), Hall (2006), Munanga Barth (1998), Freitas (1978), Moura
(1988, 2001), O'Dwyer (2002), Silva (2014), Bandeira (1992), Barros (2007), Nunes (2001),
Freire (2016) and others. The instruments used to collect data were: participant observation,
semi-structured interview, life story, field diary record, documents and photographs. Efforts
on the part of the teachers, in order to carry out an education contextualized with the
community reality, articulated with the scientific knowledge, despite the adverse conditions
in terms of infrastructure, financial resources and pedagogic materials, was showed as
results. It is identified that teachers are ourselves organized to seek training for the
improvement of quilombola pedagogy. Besides that, it is also noticed that the
materializations of the public policies for Quilombola School Education are moving in timid
steps, without dialogue and no secure decent conditions of work and continuous formation,
jeopardizing the development of quilombola didactics, thus contradicting what is regulated
in the official documents, which guide the work in schools inserted in the quilombolas
territories.
Keywords: Quilombola Education. Teacher knowledge. Quilombo Mata-Cavalo.
Pedagogical practices.
SANTANA, Gonçalina Eva Almeida de. Saber y hacer Quilombolas: una mirada sobre las
Prácticas Pedagógicas del área de Ciencias Humanas de la Escuela de Mata-Caballo.
Disertación (Maestría en Educación). Programa de Postgrado en Educación. Universidad Federal
de Mato Grosso. Cuiabá, 2018.
RESUMEN
El presente estudio es el resultado de una investigación cualitativa de cuño etnográfico,
realizada en la Escuela Estadual Profesora Tereza Conceição Arruda, ubicada en el
Quilombo Mata Caballo / Nuestra Señora del Livramento - MT. En este estudio, se objetivó
comprender las prácticas pedagógicas utilizadas por los profesores del área de Ciencias
Humanas de dicha escuela, con centralidad en la observación del proceso de articulación del
conocimiento científico y los conocimientos tradicionales quilombolas en su contexto
socio-histórico-cultural. Discurre sobre las Políticas Públicas relacionadas a la modalidad de
Educación Escolar Quilombola y presenta la lucha histórica de los matacavalenses por
educación formal. En el caso de que se trate de una de las más importantes de la historia de
la ciencia y de la ciencia, (1998), Freitas (1978), Moura (1988; 2001), O'Dwyer (2002),
Silva (2014), Bandera (1997), Barros (2007), Nunes (2001), Freire (2016) entre otros. Los
instrumentos utilizados para la recolección de datos fueron: observación participante,
entrevista semiestructurada, historia de vida, registro en el diario de campo, documentos y
fotografías. Los resultados permitieron entrever la existencia de esfuerzos por parte de los
docentes, en el sentido de realizar una educación contextualizada con la realidad de la
comunidad y articulada con los saberes científicos, a pesar de las condiciones adversas en
términos de infraestructura, recursos financieros y materiales pedagógicos. Se identifica que
los profesores se organizan para buscar formación para el perfeccionamiento de la pedagogía
quilombola. Se percibe también que las materializaciones de las políticas públicas para la
Educación Escolar Quilombola caminan a pasos tímidos, sin dialogar y asegurar condiciones
dignas de trabajo y formación continuada, comprometiendo el desarrollo de la didáctica
quilombola, contrariando así lo que está regulado en los documentos oficiales que orientan
el trabajo en escuelas insertadas en los territorios quilombolas.
Palabras clave: Educación Quilombola. Maestros Conocimiento. Quilombo Mata-Caballo.
Prácticas Pedagogicos.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - Imagem da Escola Municipal São Benedito ......................................................... 17
Figura 2 - Imagem do território quilombola de Mata-Cavalo ................................................ 35
Figura 3 - Mapa de localização das comunidades no Quilombo Mata-Cavalo ....................... 36
Figura 4 - Entrada da cidade de Nossa Senhora do Livramento/MT ...................................... 55
Figura 5 - Imagem da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Livramento (2018) ...................... 56
Figura 6 - Imagem do inventário dos negros escravizados pertencentes ao Ricardo José Alves
Bastos, em 1785 ................................................................................................................... 61
Figura 7 - Imagem do inventário dos negros escravizados pertencentes ao Ricardo José Alves
Bastos, em 1785 ................................................................................................................... 61
Figura 8 - Moradia de quilombola à beira da estrada após despejo........................................ 76
Figura 9 - Moradia quilombola situada à beira da rodovia após despejo................................ 76
Figura 10 - Imagem da sala de aula antes do despejo ............................................................ 81
Figura 11 - Imagem da sala de aula após o despejo............................................................... 81
Figura 12 - Ao fundo, imagem de uma moradia antes do despejo ......................................... 81
Figura 13 - Imagem da casa da foto 12 após o despejo ......................................................... 82
Figura 14 - Imagem dos pertences das famílias expulsas jogados na beira da estrada ............ 82
Figura 15 - Imagem de uma casa de alvenaria em Mata-Cavalo............................................ 84
Figura 16 - Imagem de uma casa de telha e paredes de palha em Mata-Cavalo ..................... 84
Figura 17 - Imagem de outra casa de telha com paredes de palha em Mata-Cavalo ............... 84
Figura 18 - Imagem do Cururu em uma festa de santo no Quilombo Mata-Cavalo ............... 88
Figura 19 - Preparo do Jantar em festa de santo no Quilombo Mata-Cavalo ......................... 88
Figura 20 - Imagem da reunião dos matacavalenses com a equipe da Superintendência do
INCRA/MT.......................................................................................................................... 90
Figura 21 - Moradores do Quilombo Mata-Cavalo protestando por seus direitos no centro da
cidade de Cuiabá/MT ........................................................................................................... 90
Figura 22 - Imagem aérea da Escola Estadual Profa. Tereza Conceição Arruda .................. 103
Figura 23 - Imagem da entrada principal da Escola Estadual Professora Tereza Conceição
Arruda ............................................................................................................................... 104
Figura 24 - Imagem do refeitório da escola abrigando uma atividade extraclasse ................ 106
Figura 25 - Parte do acervo histórico da Casa da Cultura .................................................... 107
Figura 26 - Imagem do interior de uma das salas anexas que funciona no quilombo ........... 109
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 - Dissertação sobre formação de professores quilombolas ................................... 24
Quadro 2 – Tese sobre formação de professores quilombolas ............................................. 25
Quadro 3 - Entrevistados .................................................................................................... 47
Quadro 4 - Síntese dos saberes científicos: Ciências Humanas da educação básica ........... 154
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 15
CAPÍTULO I – CAMINHOS METODOLÓGICOS ........................................................... 34
1.1 MINHA RELAÇÃO COM O CAMPO DE PESQUISA ............................................ 34
1.2 DESVELANDO O CAMPO DE PESQUISA ............................................................ 35
1.3 ABORDAGENS ....................................................................................................... 39
1.3.1 Qualitativa .......................................................................................................... 39
1.3.2 Etnografia ........................................................................................................... 41
1.4 INSTRUMENTOS E COLETAS DE DADOS .......................................................... 43
1.4.1 Observação ......................................................................................................... 43
1.4.2 Entrevista ............................................................................................................ 45
1.4.3 Análise documental ............................................................................................. 47
1.4.4 Recurso fotográfico ............................................................................................. 48
1.4.5 Análise dos conteúdos ......................................................................................... 48
CAPÍTULO II – A COMUNIDADE QUILOMBOLA DE MATA-CAVALO ................... 50
2.1 COMUNIDADES QUILOMBOLAS: CONCEITOS ................................................ 50
2.2 BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO DO MUNICÍPIO DE NOSSA SENHORA DO
LIVRAMENTO/MT ....................................................................................................... 54
2.3 QUILOMBO MATA-CAVALO: ASSIM COMEÇA SUA HISTÓRIA .................... 58
2.4 A SAGA DOS MATACAVALENSES: O RETORNO ............................................. 68
2.5 QUILOMBO MATA-CAVALO: ATUALMENTE ................................................... 80
CAPÍTULO III - A EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA: A HISTÓRIA DA
EDUCAÇÃO DE MATA-CAVALO E SEUS CONTEXTOS ............................................ 91
3.1 A LUTA HISTÓRICA DO POVO DE MATA-CAVALO POR ESCOLARIZAÇÃO
....................................................................................................................................... 91
3.2 A ESCOLA ESTADUAL PROFA. TEREZA CONCEIÇÃO ARRUDA ................. 102
CAPÍTULO IV – POLÍTICAS PÚBLICAS E A EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA
NO CONTEXTO ESCOLAR ........................................................................................... 112
4.1 POLÍTICAS PÚBLICAS PARA EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA ......... 112
4.2 CURRÍCULOS: ALGUNS CONCEITOS ............................................................... 121
4.3 PRÁTICAS PEDAGÓGICAS E A EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA ...... 126
4.4 SABERES DOCENTES: CONCEPÇÕES .............................................................. 131
CAPÍTULO V – OS SABERES E FAZERES MOBILIZADOS DURANTE AS PRÁTICAS
PEDAGÓGICAS DOS PROFESSORES DA ÁREA DE CIÊNCIAS HUMANAS .......... 136
5.1 RETRATO DOS PROFESSORES .......................................................................... 136
5.1.1 Retrato da professora Eliane .............................................................................. 137
5.1.2 Retrato da professora Júnia ............................................................................... 143
5.1.3 Retrato da professora Edinete ............................................................................ 147
5.2 OS SABERES E FAZERES PEDAGÓGICOS QUE DESFILAM NA ÁREA DE
CIÊNCIAS HUMANAS DA ESCOLA ESTADUAL PROFESSORA TEREZA
CONCEIÇÃO ARRUDA ............................................................................................. 152
5.3 SABERES CIENTÍFICOS RELACIONADOS ÀS CIÊNCIAS HUMANAS .......... 153
5.4 SABERES DOCENTES E AS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: PROFESSORA DE
HISTÓRIA ................................................................................................................... 155
5.5 OS SABERES EVIDENCIADOS DURANTE A OBSERVAÇÃO DA AULA DE
GEOGRAFIA ............................................................................................................... 161
5.6 OS SABERES EVIDENCIADOS DURANTE A OBSERVAÇÃO DA AULA DE
SOCIOLOGIA .............................................................................................................. 169
5.7 OS SABERES EVIDENCIADOS DURANTE A OBSERVAÇÃO DA AULA DE
FILOSOFIA ................................................................................................................. 176
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 181
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................. 185
15
INTRODUÇÃO
Esta dissertação está relacionada à linha de pesquisa “Movimentos Sociais, Política e
Educação Popular” vinculada ao “Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Quilombola”
(GEPEQ), do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal
de Mato Grosso (UFMT), e tem como principal objetivo compreender as práticas
pedagógicas utilizadas pelos professores da área de Ciências Humanas do Ensino
Fundamental e Médio da Escola Estadual Quilombola Tereza Conceição Arruda, a partir da
observação do processo de articulação do conhecimento científico e dos conhecimentos
tradicionais quilombolas em seu contexto sócio-histórico-cultural. A referida escola está
localizada na comunidade quilombola de Mata-Cavalo1, município de Nossa Senhora do
Livramento, estado de Mato Grosso, Brasil.
Ademais, temos os objetivos específicos focados em compreender o universo
quilombola em seus aspectos históricos, identitários e culturais nos quais os professores
estão inseridos; compreender as políticas públicas voltadas para a Educação Escolar
Quilombola; compreender os discursos acadêmicos sobre práticas pedagógicas e saberes
docentes; bem como, apreender os saberes mobilizados pelos professores em suas práticas
pedagógicas e sua relação com os saberes da comunidade, e se esses profissionais articulam
o conhecimento científico e os conhecimentos tradicionais quilombolas em seu contexto
sócio-histórico-cultural.
Minha trajetória no Quilombo Mata-Cavalo se dá desde o meu nascimento.
Tataraneta de africano escravizado, eu sou da linhagem de uma das poucas famílias que
resistiram no território quilombola, apesar de toda adversidade sofrida. Além da perseguição
praticada por fazendeiros que queriam, a todo preço, o nosso pedaço de chão, também
sofríamos com os resquícios das consequências deixadas pela escravidão, tais como:
pobreza, analfabetismo e discriminação. Nesse ambiente, cresci sempre ouvindo de meus
pais e avós sobre a importância da educação formal para transformarmos o nosso meio e
superarmos o preconceito.
Certa da mudança que minha vida teria se estudasse, a felicidade tomou conta de
meu ser quando, na época, minha avó Tereza, que lecionava na Escola Estadual José de
Barros Maciel, localizada em Nossa Senhora do Livramento, levou-me para matricular numa
1 Escrita originária para o Quilombo em estudo, conforme consta do livro Quilombo contemporâneo:
educação, família e culturas (CASTILHO, 2014).
16
escola de ensino fundamental desse município. Nessa escola, sofri todo tipo de
discriminação por parte de professores e colegas (hoje reconheço isso), pois, além de ser
negra, era uma das poucas crianças da zona rural que frequentava a escola na cidade. Nela,
aprendi a ler e escrever, mas, mesmo assim, eu me sentia deslocada e, às vezes, intrusa, pois
as histórias que eu ouvia sobre gente da minha cor e da minha localidade eram sempre ruins
e inferiorizadas. Na história, o meu povo era mostrado a mim e aos colegas como
escravizados, sem alma, sem cultura. A minha gente da zona rural era mostrada como
ignorante, sem estudo, que somente servia para os trabalhos braçais. Às vezes, até éramos
ameaçados pelos professores, que, se não estudássemos, seríamos como eles, como se isso
fosse o pior que poderia acontecer a um indivíduo.
Após terminar o ensino fundamental, no ensino médio, matriculei-me no curso de
Magistério, seguindo os passos da minha avó Tereza e da minha mãe Lúcia, que também
foram professoras. Em 1994, após finalizar o magistério, passei a dedicar o meu tempo a
ajudar minha mãe na sala de aula, com o intuito de me aperfeiçoar na nova profissão. A
escola, nessa época, funcionava na nossa própria casa, em Mata-Cavalo, onde minha mãe
ministrava as aulas numa sala multisseriada de 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental.
Durante a minha passagem pela educação básica, em nenhum momento, algum
docente trabalhou as questões raciais, em especial, a história do negro, com o intuito de
recontar a verdadeira biografia desse povo. Ao contrário, repetiam as histórias contadas pelo
livro didático, que, na maioria das vezes, trazem uma abordagem distorcida, etnocêntrica e
impregnada de preconceito e discriminação. Ou ainda, baseavam-se nas histórias que lhes
foram contadas, ora por seus professores, ora pela sociedade livramentense, também de
modo equivocado.
Em 1996, motivados pelos conflitos com fazendeiros, os moradores da comunidade,
incluindo a minha avó, resolveram criar uma associação de produtores para lutar contra a
expulsão das famílias e para reconquistar áreas já tomadas pelos fazendeiros. Criaram,
então, a Associação de Pequenos Produtores Rurais, onde iniciei a atuar como secretária da
associação. Comecei, nesse momento, a tomar consciência sobre o que os meus pais e avós
falavam, quanto à importância da escolarização formal. Cabia a mim organizar a associação,
escrever ofícios e ler os documentos, pois os demais membros da associação ou eram
analfabetos, ou tinham dificuldade com a escrita. Nessa época, ainda não conhecíamos o
termo quilombola. O que conhecíamos era a história de que as terras foram doadas aos
nossos antepassados e, posteriormente, tomadas deles por expulsão ou ‘compra’.
17
Apenas em 1997, tomamos conhecimento sobre o direito que tínhamos garantidos na
Constituição Federal de 1988 (CF/88), por meio do artigo 68 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias (ADCT), que garantia aos remanescentes de quilombo a posse
definitiva de suas terras. Após a descoberta do direito quilombola à terra, muitas famílias
começaram a retornar para a comunidade. Surge, então, a necessidade de uma escola para
ensinar as crianças, visto que a educação é considerada pelos quilombolas como
fundamental no fortalecimento da luta pela conquista do território, bem como para a
valorização da nossa cultura.
Com a implantação da Escola Municipal São Benedito na comunidade, em 1996,
comecei formalmente o exercício do magistério, aos 19 anos de idade, numa sala feita de
pau a pique, coberta com palha de babaçu, com turma multisseriada, onde eu era a auxiliar
de limpeza, merendeira e professora ao mesmo tempo. No início da minha carreira, tinha
impregnada em mim a forma de ensinar como eu fui ensinada, conteúdo desconexo da
realidade, num currículo eurocêntrico, influenciado pelo livro didático, que era o único
recurso pedagógico ao qual tinha acesso. Todavia, esse modo de ensino me incomodava
desde quando eu era estudante do primário. Comecei, então, a procurar recursos didáticos,
no intuito de abordar conteúdos mais críticos e mais próximos da realidade dos estudantes.
Figura 1 - Imagem da Escola Municipal São Benedito
Fonte: cedida por Carlos Alberto Caetano.
Como pode ser observada na figura 1, a sala de aula, que era construída com
estrutura de madeira e coberta com palha de babaçu, abrigava discentes de diferentes idades
e fase escolar em uma única turma. Não possuía paredes e os estudantes sentavam em
18
bancos inteiriços de madeira, feitos por moradores da comunidade. Apesar da precariedade
de recursos, era o início de uma nova era na comunidade.
Foi a partir da minha integração para compor a luta pela retomada do território
quilombola que passei a fazer parte do movimento Negro (Grucon/MT). Neste grupo, passei
a conhecer ao participar de palestras e a partir da leitura da bibliografia indicada por
integrantes do grupo, a verdadeira história do meu povo negro. Uma história que durante
meus (até então) 19 anos de vida, eu nunca havia tido contato.
Em 1999, movida pela necessidade de elementos para fortalecer a nossa luta,
ingressei-me no movimento nacional das articulações das Comunidades Quilombolas do
Brasil (CONAQ), vindo a fazer parte, em 2003, de uma Comissão Interministerial que
iniciava a discussão sobre políticas públicas específicas para as comunidades quilombolas,
entre elas, a regularização fundiária dos territórios e o direito a uma educação específica
para as comunidades, pois, até aquele momento, o Governo Federal não dispunha de
nenhuma política específica para quilombos, mesmo isso já sendo garantido na Carta Magna
de 1988, há mais de 15 anos.
A partir dos trabalhos oriundos da Comissão Interministerial, instituiu-se o Decreto
n.º 4887/2003, que trata da identificação, reconhecimento e regularização fundiária dos
territórios e, posteriormente, a conquista de outras políticas públicas, inclusive no campo da
Educação com a criação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar
Quilombola, que sinalizam à União, aos estados e municípios como deve ser tratada a
educação nos territórios quilombolas, em cumprimento ao disposto, anteriormente, no art. 68
do ADCT da CF/88.
De posse da história real do negro, comecei a buscar a história do povo da minha
comunidade, mostrando, para os meus discentes e moradores, como a nossa história é bonita
e importante para o nosso país e, ao mesmo tempo, desmentindo e desmistificando a história
que os livros didáticos mostravam e que as pessoas contavam através dos tempos, com o
intuito de inferiorizar e diminuir os africanos e seus descendentes.
Nessa época, também tive o prazer de conhecer a professora Suely Castilho, que
fazia doutorado, cujo objeto de pesquisa era a história do povo quilombola de Mata-Cavalo.
Seu trabalho sobre a educação quilombola também serviu para que eu pudesse refletir sobre
a minha prática pedagógica e me estimulou a buscar formas de aperfeiçoar meus
conhecimentos. Assim, em 2005, ingressei no Curso Normal Superior, concluindo-o em
2009. Tinha realizado o sonho de ser universitária! Porém o incômodo continuava por não
19
ver na instituição de formação de professores a preocupação com a formação voltada para a
prática do respeito às diferenças.
Paralelo à luta pela formação superior, no movimento quilombola, lutávamos pela
regularização fundiária e demais políticas públicas, entre elas, a implementação de uma
escola com uma estrutura melhor na comunidade, onde pudéssemos ter até o ensino médio,
evitando, assim, que as nossas crianças tivessem que deixar o seu local de origem para
estudar em Nossa Senhora Livramento ou arredores, onde sofriam muita discriminação e
outras influências negativas para sua formação. Nesse sentido, após muitas reivindicações da
Comunidade junto aos órgãos Municipal e Estadual, conseguimos, em julho de 2012, a
construção e reinauguração da Escola Estadual Professora Tereza Conceição Arruda, época
em que eu já era professora concursada do Estado de Mato Grosso, tendo sido, inclusive,
designada para ser a primeira diretora da nova escola.
Em continuidade à nossa luta e embasada na Lei n.º 10.639/2003, que alterava a Lei
n.º 9.394/1996, a qual estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, para incluir,
no currículo oficial da rede de ensino, a obrigatoriedade da temática "História e Cultura
Afro-Brasileira", propiciando, assim, meios de inclusão da educação quilombola não
somente na esfera nacional, como nas orientações curriculares para educação étnica-racial de
Mato Grosso, iniciei, juntamente com os professores e demais membros da comunidade
local, a luta pela implementação do currículo específico tão sonhado e desejado. Porém,
mesmo de posse de todas essas legislações que tratam das especificidades da educação
quilombola, enfrentamos muitos entraves para efetivar um currículo específico.
Dentre as principais dificuldades enfrentadas, destacamos a falta de material
pedagógico propício e a formação adequada dos professores. No entanto, aceitamos o
desafio e implementamos o currículo específico, mesmo sabendo não ser o ideal. Não
obstante esses entraves, e com o intuito de melhorar o trabalho dos nossos docentes,
buscamos formações junto à Secretaria de Educação do Estado de Mato Grosso (Seduc/MT),
que nos atendeu com o Curso de formação para professores quilombolas em parceria com a
UFMT. As formações, ainda que bastante interessantes, não atendiam de forma mais
completa as nossas necessidades formativas.
Em janeiro de 2015, deixei a direção da escola quilombola para assumir o cargo de
Superintendente de Diversidades Educacionais na Seduc/MT, onde a luta foi além da minha
comunidade de Mata-Cavalo. Nessa nova empreitada, além dos quilombolas, também tive a
prazerosa missão de trabalhar com Educação Escolar Indígena, Educação do Campo,
Educação Especial, Educação de Jovens e Adultos e também Diversidades e Direitos
20
Humanos. Aceitei esse desafio acreditando na minha experiência da luta quilombola e na
esperança de, junto aos movimentos sociais, garantir o direito às chamadas “minorias” a
uma educação diferenciada e de qualidade e também contribuir para a construção de um
currículo nas escolas estaduais de Mato Grosso que contemplassem a educação voltada para
o respeito ao ser humano.
Acredito que o respeito ao ser humano impede a discriminação de qualquer natureza.
Nessa experiência na Seduc/MT, percebi que as batalhas para a efetivação da especificidade
da educação quilombola vai além da aprovação de uma lei, pois o órgão que escreve a
política (e é responsável por implantá-la) não está preparado para lidar com ela, por conta de
um sistema inoperante que não considera adequadamente a diversidade existente e acaba por
dificultar a implementação dessas políticas no chão da escola.
Frente à realidade encontrada na Seduc/MT, senti que precisava de um caminho no
intuito de me preparar ainda mais para lidar com esse sistema educacional totalmente
despreparado para trabalhar com as especificidades quilombolas. Foi então que me lembrei
da Profa. Dra. Suely Castilho, que outrora havia me convidado para conhecer o Grupo de
Pesquisa em Educação Escolar Quilombola da Universidade Federal de Mato Grosso
(GEPEQ/UFMT), o qual desenvolve estudos sobre quilombos. Fui até à UFMT, conversei
com a professora Suely Castilho, que logo me convidou a participar de um projeto
coordenado por ela, que discute formação de professores quilombolas. Comecei a participar
do projeto e do curso de extensão oferecido (Formação de Professores Pesquisadores) e fui
sentindo dentro de mim o desejo de não ser apenas coadjuvante da história quilombola, mas,
sim, protagonista na busca de uma resposta para as inúmeras indagações a respeito desse
fazer pedagógico específico e diferenciado.
Diante de toda essa trajetória e da necessidade de aperfeiçoar meus conhecimentos
em relação à Educação Escolar Quilombola, fiquei sabendo do seletivo de mestrado do
Instituto de Educação da UFMT, que tinha cotas para quilombolas. Então, candidatei-me à
vaga, esperançosa de que a pesquisa poderia me ajudar a contribuir, ainda mais, com a
minha comunidade e com os demais quilombolas do Mato Grosso e quiçá do Brasil,
encontrando novos meios de consolidar a educação específica nas escolas quilombolas.
Hoje sou mestranda pela UFMT e minha experiência de quilombola, militante,
docente, somada às leituras efetuadas que me fizeram refletir sobre a necessidade de
compreender as práticas pedagógicas dos professores e devido à necessidade de delimitar
meus estudos, optei pelo recorte do tema e pelo estudo da área de Ciências Humanas,
ministrada pelos professores da Escola Estadual Quilombola Profa. Tereza Conceição
21
Arruda, com centralidade na observação do processo de articulação do conhecimento
científico e os conhecimentos tradicionais quilombola em seu contexto sócio-histórico-
cultural.
Resta claro que esta proposta de estudo é fruto da minha angústia como docente
quilombola em relação à efetivação da educação específica e materializa, de alguma forma,
o meu desejo de contribuir nesse debate. Para tanto, no intuito de atender ao que esta
pesquisa se propõe, em especial, entender a Educação Escolar Quilombola e os saberes
mobilizados pelos professores da Escola Estadual Profa. Tereza Conceição Arruda, fez-se
necessário abordar diversos temas, tais como: o conceito de quilombo, luta pela terra,
território, história, memória, cultura, identidade, conceito de Educação Escolar Quilombola,
Diretrizes Curriculares, currículo, práticas pedagógicas, saberes docentes e formação de
professores.
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 68, do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias (ADCT/CF88), preconiza: “Aos remanescentes das
comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade
definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.” (BRASIL, 1988).
Porém, mesmo após a edição da Carta Magna (CF/88), a efetivação dos direitos
quilombolas não tem acontecido em águas tranquilas. Nesse contexto, os quilombolas vêm
lutando por meio de suas associações e de sua principal organização política, a Coordenação
Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ), pela posse da terra, pelo reconhecimento
como quilombolas, pelo título definitivo de seus territórios, pela melhoria da educação, bem
como pela qualidade de vida em suas comunidades, ou seja, por políticas públicas que
garantam o direito à saúde, à moradia, ao trabalho e a uma educação que valorize as suas
especificidades étnico-culturais.
O movimento quilombola estima que existam, no Brasil, mais de cinco mil
comunidades remanescentes de quilombos. No entanto, até janeiro de 2018, segundo dados
da Fundação Cultural Palmares (FCP)2, foram emitidas 2.645 certidões de autodefinição
para 2.890 comunidades quilombolas, sendo que um certificado pode contemplar mais de
uma comunidade. A emissão de Certidão de Autodefinição de Comunidade Remanescente
de Quilombo reconhece que a população e a área que ocupam têm relação com os antigos
quilombos. A comunidade passa, então, a ter direitos e amparos legais, estabelecidos pelos
2 Fundada no dia 22 de agosto de 1988, pelo Governo Federal, a Fundação Cultural Palmares (FCP) foi a
primeira instituição pública instituída para promoção e preservação da arte e da cultura afro-brasileira. Referida
fundação é vinculada ao Ministério da Cidadania. Possui como uma de suas atribuições a certificação para
comunidades quilombolas. Para mais informações, acesse: http://www.palmares.gov.br/?page_id=52126.
22
artigos 215 e 2163 da Constituição Federal de 1988, que preveem defesa e valorização do
patrimônio cultural brasileiro e a obrigação do poder público em promovê-lo e protegê-lo
(FCP 2018).
Todavia, a certificação das comunidades não garante a posse da terra, uma vez que a
titulação em âmbito federal é de responsabilidade do Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária (INCRA). Segundo dados obtidos no site do INCRA4, em abril de 2018,
foram emitidos 210 títulos, regularizando 1.046.300,34 hectares em benefício de 151
territórios, 241 comunidades e 16.009 famílias quilombolas. Ainda segundo dados do
INCRA, no Estado de Mato Grosso, especificamente, até o momento desta pesquisa,
nenhuma comunidade quilombola foi titulada de forma definitiva.
Percebe-se que o número de comunidades quilombolas com terras regularizadas no
Brasil é muito pequeno, uma vez que, de acordo com os dados do INCRA (2018), apenas
210 títulos definitivos foram emitidos, o que denota a ineficácia e morosidade do Governo
Federal frente às necessidades e demandas de populações que foram historicamente
subalternizadas.
Em quase todos os estados brasileiros existem comunidades quilombolas. Segundo
levantamento efetuado pela Fundação Cultural Palmares, só não se sabe da existência nos
estados do Acre, Roraima e no Distrito Federal. Ainda, de acordo com informações da FCP,
os estados com maior concentração dessas comunidades são: Bahia, Minas Gerais,
Pernambuco, Maranhão e Pará. E, de acordo com dados do INCRA (2018), a população
quilombola no Brasil estava estimada em 1,17 milhão de pessoas.
Nesse cenário de luta, para garantir os direitos civis do povo quilombola,
desencadearam-se também as reivindicações pela Educação Escolar Quilombola como
política educacional. Problemática denunciada constantemente pelos movimentos
quilombolas e setores da sociedade que exigem a educação pública e de qualidade para todos
(BRASIL, 2011).
A Educação Escolar Quilombola como modalidade de ensino da Educação Básica
começa a ser estruturada pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), por meio da
Resolução CNE/CEB n.º 045, de 13 de julho de 2010, que define as Diretrizes Curriculares
Nacionais Gerais para a Educação Básica, em complemento e fundamentada no Parecer
3 Para íntegra dos artigos, acesse: https://quilombos.files.wordpress.com/2007/12/artigos-68-215-e-216.pdf. 4 http://www.incra.gov.br/quilombola. 5 Resolução CNE/CEB 4/2010. Diário Oficial da União, Brasília, 14 de julho de 2010, Seção 1, p. 824.
Disponível em: http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/rceb004_10.pdf. Acesso: out. 2018.
23
CNE/CEB n.º 07/20106, que instituiu a equipe para a elaboração das Diretrizes Curriculares
Nacionais específicas para essa modalidade; culminando na edição da Resolução CNE/CEB
n.º 08/2012, de 20 de novembro de 2012, que estabeleceu as Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação Escolar Quilombola na Educação Básica, fazendo com que esta
passasse a constar como modalidade de ensino (CASTILHO e CARVALHO, 2015).
No entanto, apesar dos avanços em termos de legislações, no chão das comunidades
quilombolas em todo o Brasil ainda existe vários desafios a serem enfrentados para que tais
legislações sejam de fato efetivadas. A formação de professores, conforme já apontado, é um
desses desafios e possui, a nosso ver, um sentido de urgência em garantir o direito desses
docentes a uma formação específica, importância essa tão balizar quanto à consolidação da
Educação Escolar Quilombola como modalidade de educação básica (CNE/CEB, 2012).
Dessa forma, para dar subsídio às discussões sobre saberes e fazeres dos docentes
quilombolas, buscou-se realizar uma Revisão Sistemática da Literatura (RSL), embasada no
método proposto por Botelho, Cunha e Macedo (2011). Para os autores, a revisão
sistemática possibilita ao pesquisador aproximar-se da realidade que deseja estudar,
desenhando um quadro das obras científicas relacionado ao seu tema de pesquisa, de forma a
potencializar o conhecimento da evolução do assunto ao longo dos anos e, com isso,
visibilizar novas possibilidades de pesquisa.
Essa revisão sistemática nos permitiu verificar lacunas que ainda existem sobre os
saberes e fazeres dos docentes quilombolas, bem como sobre a formação específica para
esse segmento no país. Da mesma maneira, possibilitou-nos conhecer as contribuições sobre
esses assuntos para o aprofundamento da discussão sobre educação quilombola, prática
pedagógica, formação específica para docentes que atuam em escolas quilombolas e
políticas públicas para Educação Escolar Quilombola no Brasil.
A revisão foi norteada por três questões que serviram como fios condutores: Quais
saberes os docentes da área de Ciências Humanas mobilizam em suas práticas pedagógicas,
no contexto da Educação Escolar Quilombola, de modo a transitar entre os saberes locais e
saberes globais? A formação dos professores que atuam nas escolas quilombolas está de
acordo com o que preconiza as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar
Quilombola? A formação desses professores tem permitido o diálogo entre o saber científico
e os saberes tradicionais das comunidades na prática em sala de aula?
6 Parecer homologado por meio de despacho do Ministro, publicado no D.O.U. de 9/7/2010, Seção 1, Pág.10.
Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=5367-
pceb007-10&Itemid=30192. Acesso em: out. 2018.
24
Partindo dessas questões, foram elaborados os descritores em Língua Portuguesa e
foi criada a metodologia de busca, que nos possibilitou encontrar e recuperar os trabalhos
que dialogam com a temática de interesse, quais sejam: “fazeres docentes”, “formação de
professores quilombolas”, “saberes docentes” e “docentes no Quilombo”. A partir dos
descritores, busquei dissertações e teses no banco de dados da CAPES, Google Acadêmico,
Plataforma Sucupira, o que nos possibilitou encontrar teses e dissertações que vieram ao
encontro da temática proposta nesta pesquisa, em linhas gerais.
Na primeira fase, até onde consegui alcançar, foram localizadas duas teses de
doutorado e oito dissertações de mestrado, desenvolvidas entre os anos de 2001 a 2016, que
tratam dos descritores estabelecidos para a busca. Na segunda fase da revisão sistemática,
foi realizada a avaliação dos trabalhos, sendo selecionadas três dissertações de mestrado e
uma tese de doutorado, desenvolvidas no período de 2001 a 2015, que tratavam sobre
práticas pedagógicas, saberes docentes e formação de professores.
Sequencialmente, após análise dos trabalhos, é importante destacar que apenas um
trabalho trata diretamente dos saberes e fazeres docentes, bem como da formação de
professores quilombolas, desafios e necessidade da formação específica. Esse dado é apresentado no Quadro 1 abaixo:
Quadro 1 - Dissertação sobre formação de professores quilombolas
Ano Tipo Nome Título Instituição
2003 Mestrado Ana Cristina do Nascimento
“Da Escola no Quilombo
à Escola do Quilombo”: a
identidade quilombola na
Escola Municipal
Etelvina Amália de
Siqueira Alves (Amparo de São Francisco-SE,
2011-2012)
UNIT/SE –
Universidade de
Tiradentes
Fonte: Elaborado pela autora (2018), com base nas pesquisas realizadas nos bancos de dados citados anteriormente.
Os sujeitos da pesquisa supracitada são docentes da Escola Municipal Etelvina
Amália de Siqueira Alves, da cidade de Amparo de São Francisco/ SE. Os resultados da
pesquisa demonstraram a necessidade de se conhecer ainda mais sobre as práticas
pedagógicas e a formação de professores quilombolas, bem como quanto a compreender os
limites e as possibilidades vivenciadas pelos profissionais no seu fazer docente, diante da
formação recebida e, principalmente, identificar as lacunas existentes nessas formações.
Em complemento às consultas bibliográficas, também foi realizada uma revisão
sistemática sobre os trabalhos de pesquisas realizados no quilombo Mata-Cavalo (local da
minha pesquisa), por apresentar um número significativo de produções acadêmicas. Assim,
25
na busca por trabalhos acadêmicos no quilombo Mata-Cavalo, foram identificadas: seis
dissertações de mestrado e uma tese de doutorado, desenvolvidas no período de 2008 a
2011. Essa revisão revelou que, apesar de todos os trabalhos possuírem como temática
central a educação no quilombo, apenas o trabalho de doutorado, realizado em 2008, fez
menção quanto aos saberes e fazeres docentes e à necessidade formativa dos professores que
atuam em comunidades quilombolas.
Esse dado está representado no Quadro 2 abaixo:
Quadro 2 – Tese sobre formação de professores quilombolas
Ano Tipo Nome Título Instituição
2008 Doutorado Suely Dulce de Castilho
Cultura escolar e cultura
quilombola: Universos
que dialogam e se negam
PUC/SP – Pontifícia
Universidade
Católica de São
Paulo
Fonte: Elaborado pela autora (2018), com base nas pesquisas realizadas nos bancos de dados citados anteriormente.
Importante destacar, ainda, que, ao longo do nosso estudo, verificamos que as
dissertações e teses, mesmo as que levantaram discussões associadas à Educação Escolar
Quilombola, realizadas na Escola Quilombola de Mata-Cavalo, não tinham como objeto de
pesquisa a questão dos saberes docentes ou a formação de professores voltadas para a área
de Ciências Humanas, ou, ainda, como essa temática deve ser trabalhada no espaço escolar
quilombola.
Dessa maneira, a realização desta pesquisa, na Escola Estadual Professora Tereza
Conceição Arruda, é importante, à medida em que busca conhecer os saberes que os
docentes da área de Ciências Humanas mobilizam em suas práticas pedagógicas, no
contexto da Educação Escolar Quilombola, tornando-se, portanto, relevante, uma vez que
contribuirá para fomentar as discussões em torno do fazer pedagógico em escolas inseridas
em território quilombola.
A lacuna de estudos nessa área justifica, assim, a necessidade de ampliação das
pesquisas sobre a temática escolhida, uma vez que, ao considerarmos a educação como um
processo que faz parte da humanidade e está presente em toda e qualquer sociedade,
podemos afirmar que a educação quilombola é aquela própria de um povo, diversa e
vinculada a uma especificidade cultural, que, segundo Silva (2014), pode/deve ter inserida,
no contexto escolar, a história da luta e organização quilombola, principalmente, no fomento
da formação de professores nos respectivos territórios.
26
Eu, enquanto quilombola, professora de escola quilombola e militante do movimento
quilombola, sou testemunha das lutas travadas em prol dessa educação diferenciada, que seja
capaz de respeitar nosso modo de vida, nossas culturas, ao mesmo tempo em que empodere
os moradores das comunidades quanto aos saberes necessários para atuarem frente à
sociedade ao qual estão inseridos. Nessa perspectiva, a pergunta de fundo, orientadora deste
estudo é: “Os docentes da área de Ciências Humanas da Escola Estadual Quilombola Profa.
Tereza Conceição Arruda, em suas práticas pedagógicas, no contexto da Educação Escolar
Quilombola, articulam os conhecimentos científicos com os saberes locais?”.
Concordamos com Celestino (2016) quando afirma que a sociedade atual se
caracteriza pela necessidade de repensar a educação e suas práticas pedagógicas, visando
uma transformação real e inovadora no interior das bases que sustentaram a escola do
passado e que ainda refletem nas instituições públicas atuais. As causas disso resistem, em
grande parte, devido à concepção de educação como reprodutora acrítica de um modelo de
sociedade. Ainda de acordo com a autora,
[...] a educação necessita de uma reestruturação para acompanhar as
transformações ocorridas na atualidade, possibilitando de forma consciente uma
interação com a realidade sócio-histórica da contemporaneidade, onde o direito à
identidade e à diversidade das comunidades contemporâneas não sejam negadas,
pois sabemos que a escola é um direito e que necessita dialogar com essa complexa realidade, apropriar-se das mudanças do nosso tempo sem perder de
vista os valores, tradições e cultura. (CELESTINO, 2016, p. 3).
Segundo Celestino (2016), a partir dessa renovação, a escola passa a possibilitar aos
educandos e aos coletivos sociais por ela organizada a prerrogativa de se experimentar,
interiormente, contextos palpáveis de uma aprendizagem inovadora por meio de práticas
pedagógicas que primam por um ato de aprender significativo, com respeito às identidades,
à diversidade, à vivência e à transmissão das suas tradições culturais, as quais são parte
constitutiva do processo de formação histórica, social, cultural e política dos povos
quilombolas.
Não obstante tal premissa, Celestino (2016) acrescenta que:
[...] a Educação Escolar Quilombola deverá ir mais além: ao incorporar e dialogar
com os conhecimentos da realidade local dos quilombolas no contexto de
aprendizagem, o currículo terá como eixo principal: a cultura, o trabalho, a oralidade, as lutas pela terra, pelo território e pela sustentabilidade dessas
comunidades. (CELESTINO, 2016, p. 18).
Ou seja,
27
[...] todas as disciplinas deverão dialogar transdisciplinarmente entre si, devendo a sua orientação ser a da vivência sócio-histórica dos conhecimentos e
aprendizagens construídos no “fazer quilombola”, incorporando práticas
pedagógicas inovadoras nos contextos de aprendizagem. (CELESTINO, 2016, p.
18).
Acerca da importância da transdisciplinariedade, é válido destacar que, em relação às
políticas educacionais vigentes, temos o artigo 26‐A7 da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDBEN) – Lei n.º 9.394/1996, introduzido pela Lei n.º 10.639/2003,
que trata da obrigatoriedade da inclusão do estudo da História da África e da Cultura
Afro-Brasileira e Africana e do ensino das relações étnico-raciais, instituindo o estudo das
comunidades remanescentes de quilombos e das experiências negras constituintes da cultura
brasileira.
Em complemento a tal dispositivo, temos o Parecer CNE/CP n.º 03/20048 prevendo
que todo sistema de ensino precisará providenciar “Registro da história não contada dos
negros brasileiros, tais como os remanescentes de quilombos, comunidades e territórios
negros urbanos e rurais” (BRASIL-CNE/CP, 2004, p. 13).
Conforme já abordado anteriormente, em 2010, tivemos um avanço nas
regulamentações voltadas à educação quilombola. Na Conferência Nacional de Educação
(CONAE), ocorrida em Brasília, naquele ano, houve a inclusão da Educação Escolar
Quilombola como modalidade da educação básica no Parecer CNE/CEB n.º 07/2010 e na
Resolução CNE/CEB n.º 04/2010, que institui as Diretrizes Curriculares Gerais para a
Educação Básica. Naquele evento (CONAE 2010), ficou definido, também, que a educação
quilombola é de responsabilidade dos governos federal, estadual e municipal. Em 2012,
tivemos a edição da Resolução CNE/CEB n.º 8, de 20 de novembro, que definiu as
Diretrizes Curriculares Para Educação Quilombola na Educação básica, normatizando a
Educação nas escolas dos territórios quilombolas e nas escolas que atendem alunos oriundos
das comunidades quilombolas.
Em Mato Grosso, a Resolução Normativa n.º 001/20139, de 22 de fevereiro de 2013,
do Conselho Estadual de Educação do Estado de Mato Grosso, embasada na Lei n.º
10.639/2003, dispôs sobre a oferta obrigatória da Educação das Relações Étnicas e Raciais e
do estudo da História e Cultura Afro-Brasileira, Africana e Indígena. Essa Resolução 7 Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2003/lei-10639-9-janeiro-2003-493157-
publicacaooriginal-1-pl.html. Acesso em: out. 2018. 8 Disponível em: http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/cnecp_003.pdf. Acesso em: out. 2018. 9 Disponível em: http://www.cee.mt.gov.br/wmmostrarmodulo.aspx?15,45,Componente+Arquivo. Acesso em out.
2018.
28
reforçou, com tom de obrigatoriedade, que as instituições de ensino do estado de Mato
Grosso cumprissem o disposto na Lei n.º 10.639/2003. Em 2014, seguindo as orientações da
Política Educacional Nacional, a Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso define
as orientações Curriculares do Estado para a Educação Escolar Quilombola que discorre
sobre a Especificidade da Educação Escolar Quilombola e Abordagem de Ensino no estado
de Mato Grosso.
A partir dessas regulamentações, percebe-se que a Educação Quilombola pôde
vislumbrar uma formação específica e diferenciada que permita uma pedagogia própria em
respeito à especificidade étnico-cultural de cada comunidade, bem como a formação
específica de seu quadro docente, observando os princípios constitucionais, os princípios
que orientam a educação básica brasileira e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC),
uma vez que as escolas quilombolas devem ser valorizadas e reconhecidas em sua
diversidade cultural (CARVALHO, 2016).
De acordo com as Orientações Curriculares para a Educação Quilombola em Mato
Grosso, o papel da Educação Quilombola é mediar o saber escolar com os saberes locais
(SEDUC, 2009-2010). Essa atitude asseguraria o direito à sustentabilidade de seu território
tradicional e a preservação de suas manifestações culturais, pois iria auxiliar as escolas
quilombolas e as escolas que atendem estudantes oriundos dos territórios quilombolas, nas
quais sejam consideradas as práticas políticas, econômicas e socioculturais das comunidades
quilombolas e os seus processos próprios de ensino-aprendizagem (BRASIL, 2012).
Nessa perspectiva, Freire (2016a; 2016b) reforça o que define a legislação para a
Educação Escolar Quilombola, quando descreve que, na prática educativa, os docentes e
mais amplamente a escola, devem, não só respeitar os saberes dos educandos, sobretudo o
das classes populares, mas também os saberes construídos no cotidiano da comunidade onde
vivem, bem como discutirem com os educandos a razão de ser de alguns saberes, em
articulação com o ensino dos conteúdos.
Importante destacar que o docente vive na prática pedagógica e, de modo especial,
na sala de aula, um verdadeiro laboratório, que disputa com o aperfeiçoamento do seu
próprio saber, do saber ensinar e do saber ser. Inserido nesse processo de aprendizagem, na
prática, o professor tem a oportunidade de ampliar conhecimentos sobre os educandos e, ao
mesmo tempo, sobre o ser professor e o saber ensinar, construindo, dessa forma, saberes
docentes. Nesse sentido, Tardif (2002) nos auxilia a entender essa ideia, ao afirmar que é nas
experiências vivenciadas no trabalho docente, relacionando-se com os pares e com os
29
educandos, que esses saberes são construídos e reconstruídos, tornando-se fonte significativa
para o redimensionamento da professoralidade.
Tardif (2002) afirma, ainda, que os professores são, ao mesmo tempo, formadores e
produtores de saberes sociais, pois são eles que atuam diretamente no meio em contato com
os educandos e ao mesmo tempo com os seus pares. Para o autor, os saberes docentes são
oriundos de diferentes fontes e correspondem a: saberes disciplinares (da tradição cultural e
de grupos sociais produtores de saberes), saberes curriculares (programas escolares os quais
os professores devem aprender a aplicar), saberes experienciais (da experiência) e saberes da
formação profissional (transmitidos pelas instituições de formação de professores)
(TARDIF, 2002).
Nessa conjuntura, Tardif (2002) destaca o papel primordial da experiência de
trabalho na constituição de um sentimento de competência entre os professores de profissão
e na aquisição do saber experiencial, considerado pelos próprios professores como a base do
saber ensinar. Assim, a atividade docente é caracterizada a partir de um contexto de
diferentes relações com o saber. Trata-se, portanto, de compreender que os professores, por
meio da reflexão sobre a prática, produzem um saber que serve de base ao desenvolvimento
do trabalho docente.
Corroborando com as análises sobre a temática, Gauthier (2013) e Nóvoa (1992)
discutem acerca dos saberes docentes, ratificando o entendimento de que os professores não
são meros transmissores de conhecimentos, mas, sim, profissionais que produzem saberes
peculiares ao ofício vivenciado.
Dessa maneira, a prática pedagógica é demarcada como ação que possui caráter
bastante específico e requer saberes e competências singulares. Nesse processo, é válido,
pois, atentarmo-nos para o fato de que a docência é um ofício feito de saberes
especializados, em que o professor mobiliza vários saberes para responder às exigências das
situações concretas de ensino. Frente a isso, ressaltamos que a formação de professores deve
privilegiar diferentes saberes (pré-profissionais, da formação acadêmica, os saberes oriundos
da experiência, entre outros), buscando a formação de um profissional com autonomia para
gerir sua prática e os processos formativos sob sua responsabilidade.
Em relação à Educação Escolar Quilombola, de acordo com o documento final da
CONAE 2010 (p. 131-132), a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios deverão,
dentre outras atribuições, “h) assegurar que a atividade docente nas escolas quilombolas seja
exercida preferencialmente por professores/as oriundos/as das comunidades quilombolas.”.
Para assegurar tal direito, o Parecer CNE/CEB n.º 08/2012 destacou a necessidade de o
30
Poder Público realizar levantamentos sistemáticos em âmbitos nacional, regional, estadual e
local de dados sobre o perfil, as condições de trabalho e a formação de professores em
atuação na Educação Escolar Quilombola no Brasil (BRASIL-CNE/CEB, 2012). Ainda
segundo o mencionado Parecer (BRASIL-CNE/CEB, 2012), a formação de professores que
atuam na Educação Escolar Quilombola deverá, por conseguinte, desencadear outra ação
dos poderes públicos federal, estadual e municipal: a inserção da realidade quilombola no
material didático e de apoio pedagógico existente e produzido para docentes da educação
básica nas suas diferentes etapas e modalidades (BRASIL-CNE/CEB, 2012).
Essas diretrizes também orientam os sistemas de ensino, em regime de colaboração e
em parceria com instituições de Educação Superior e de Educação Profissional e
Tecnológica, a desenvolver uma política nacional de formação de professores para a
Educação Escolar Quilombola (BRASIL-CNE/CEB, 2012).
Nesse mesmo sentido, a temática da formação de professores também se apresenta
entre as reivindicações do movimento quilombola, foi acordada nas deliberações da CONAE
2010, bem como reivindicada nas três audiências públicas realizadas pelo CNE durante o
processo de elaboração das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar
Quilombola, conforme se depreende do Parecer CNE/CEB n.º 08/2012. Assunto de
constante debate, a formação dos professores também foi pauta nas Audiências Públicas
realizadas pelo Conselho Estadual de Educação de Mato Grosso, juntamente com as
comunidades quilombolas, durante o ano de 2015, sob o tema A Educação Escolar
Quilombola que temos e a Educação Escolar Quilombola que queremos.
Em face ao exposto até aqui, conclui-se que a realização de uma formação específica
que leve em consideração os saberes dos professores que atuam nas escolas quilombolas do
estado de Mato Grosso,
[...] poderá desencadear um processo de apropriação de saberes importantes para a
escola e a comunidade, a ponto de modificar a relação tanto dos professores,
quanto dos estudantes e da comunidade em relação à denominação “escola
quilombola” e o reconhecimento das identidades locais. (FERREIRA, 2015, p.
123).
No entanto, apesar dos avanços, as pesquisas apontam que a escola vem sendo
implementada nas comunidades quilombolas considerando pouco (ou quase nada) das suas
especificidades. Continua com suas características predominantemente excludentes, em que
seus currículos se baseiam no modo de vida urbano, de classe média e “branca”
(CASTILHO, 2011).
31
Outro fator importante a ser destacado nesta pesquisa diz respeito ao número de
escolas localizadas nas áreas quilombolas do país. De acordo com o Censo Escolar de 2014,
existiam, no Brasil, 2.422 escolas localizadas em áreas de quilombos. Desse total, 2.408 são
públicas e quatorze privadas, sendo que, destas últimas, seis são rurais e oito são urbanas,
enquanto que, das públicas, uma é federal, 118 são estaduais e 2.289 são municipais (INEP,
2014).
Em Mato Grosso, contabilizamos dezoito escolas quilombolas, distribuídas em seis
municípios do estado, quais sejam: Barra do Bugres, Nossa Senhora do Livramento, Poconé,
Porto Estrela, Santo Antônio do Leverger e Vila Bela da Santíssima Trindade, sendo que
cinco são estaduais e treze municipais. De acordo com os dados de 2015 da Seduc/MT,
encontravam-se matriculados nessas escolas 7.834 alunos.
Como podemos observar, é significativo o número de comunidades, escolas e alunos
matriculados nos territórios quilombolas. Diante desse contexto, é impossível ignorar a
presença desse segmento no cenário educacional brasileiro e muitos menos negar o direito a
essas comunidades a uma educação específica que atenda seus modos de vidas e seus
anseios por condições melhores de existência (CASTILHO; CARVALHO, 2015).
A partir do cenário apresentado, a presente pesquisa se faz importante ao promover
reflexão sobre a atuação docente quilombola, bem como ao contribuir para fomentação de
Políticas Públicas relacionadas à formação dos professores que atuam em escolas
quilombolas. Compreendendo a multiplicidade de temas que se fez necessário pesquisar e
para não perder o foco do estudo, organizei as temáticas em cinco capítulos, apresentando os
assuntos dentro da dissertação, da seguinte forma:
No primeiro capítulo, Caminhos Metodológicos, descrevo a minha relação com o
campo de pesquisa, explicando os caminhos metodológicos trilhados, expondo os motivos
que me levaram a optar pela abordagem qualitativa, pelo método etnográfico e os critérios
utilizados na coleta, organização e análise dos dados. Para tanto, busquei subsídio, dentre
outros teóricos, em Minayo (2008), Denzin e Lincoln (2006), Castilho (2011), Geertz (1989)
e André (1995).
Já o segundo capítulo, intitulado A comunidade quilombola de Mata-Cavalo, intento
demonstrar os vários conceitos de quilombo tradicional e contemporâneos, suas lutas e
resistências. Trago também a história do Quilombo Mata-Cavalo, por meio das histórias e
memórias dos matacavalenses10. Os subsídios teóricos para essa discussão estão ancorados
10 Escrita originária do termo referente ao povo quilombola em estudo, conforme consta do livro Quilombo
contemporâneo: educação, família e culturas (CASTILHO, 2014).
32
em Hall (2006), Munanga (1995-1996), Barth (1998), Freitas (1978), Moura (2001),
O’Dwyer (2002), Castilho (2011), dentre outros.
A Educação Escolar Quilombola: a história da educação de Mata-Cavalo e seus
contextos abre o terceiro capítulo, cujo objetivo é contextualizar a luta histórica dos
matacavalenses por escolarização. Apresento, ainda, a Escola Estadual Quilombola Profa.
Tereza Conceição Arruda e reflito sobre as condições físicas e estruturais da escola, na
atualidade, bem como apresento o perfil dos professores daquela localidade. Para tanto,
dialoguei com Sacristán (1999), Arroyo (2011), Canen (1997), Freire (2002; 2011; 2016) e
Giroux (1997).
No quarto capítulo, busco refletir sobre as Políticas Públicas e a Educação Escolar
Quilombola. Em seguida, apresento diálogos viáveis voltados ao campo do currículo na
perspectiva crítica, expondo elementos inspiradores de reflexões sobre os processos de
exclusão e silenciamentos que permeiam o acesso à educação no Brasil. Sucessivamente,
trago contribuições teóricas alusivas às categorizações práticas pedagógicas, saberes e
fazeres quilombolas, os saberes docentes, o conhecimento científico e o conhecimento
tradicionais quilombolas, integrantes da base desta pesquisa. As principais referências
teóricas para esse debate são: Tardif (2002), Giroux (1997), Canen (1997) e Freire (2002;
2011; 2016).
No quinto e último capítulo, Os saberes e fazeres mobilizados durante as práticas
pedagógicas dos professores da área de Ciências Humanas, tenho como propósito descrever
a história de vida dos professores sujeitos da pesquisa, reverberada pela entrevista, bem
como procuro apresentar ao leitor as análises resultantes das observações e entrevistas
aplicadas para apreender a articulação dos saberes científicos com os saberes locais, na
prática em sala de aula. Como aporte para essa discussão, além das orientações contidas nas
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Quilombola (BRASIL, 2012), busquei
dialogar, dentre outros, com: Sacristán (1998), Arroyo (2012a, 2012b), Canen (1997), Freire
(2002; 2011; 2016) e Giroux (1997).
Por fim, descrevo sobre algumas considerações tecidas no bojo das discussões,
nascidas das experiências proporcionadas por este trabalho de mestrado.
Importante destacar que este estudo é um recorte de um projeto de pesquisa mais
amplo intitulado Saberes, fazeres e dizeres de docentes atuantes em escolas estaduais
quilombolas do Estado de Mato Grosso, financiado pelo Fundo de Amparo à Pesquisa do
Estado de Mato Grosso (FAPEMAT) e desenvolvido pelo Grupo de Estudos e Pesquisas em
Educação Quilombola da Universidade Federal de Mato Grosso (GEPEQ/UFMT),
33
coordenado pela professora Dra. Suely Dulce de Castilho, minha orientadora, cujo objetivo é
construir um mapa dos saberes dos professores que atuam nas escolas estaduais quilombolas
do estado; apreender a percepção dos professores em relação aos seus fazeres profissionais,
bem como conhecer como percebem a adequação entre a formação inicial e as exigências
legais da Educação Escolar Quilombola.
Doravante, o rumo a ser tomado será o de retratar os princípios
teórico-metodológicos que iluminam o percurso da pesquisa, alicerçados no método
etnográfico proposto por Geertz (1989). Em seguida, serão apresentados as técnicas e os
procedimentos utilizados para coletar e interpretar os dados. Prossigo, então, com a
discussão a englobar os caminhos metodológicos, elementos que darão substância ao
capítulo subsequente.
34
CAPÍTULO I – CAMINHOS METODOLÓGICOS
Este capítulo pretende traçar o percurso metodológico da pesquisa. A princípio,
discorro sobre a minha relação com o campo de pesquisa, bem como os procedimentos
metodológicos que foram adotados para realizá-la. Na sequência, desenho os caminhos
trilhados metodologicamente, expondo os motivos que provocaram a escolha pela
abordagem qualitativa, o método etnográfico, os instrumentos utilizados na coleta de dados e
os critérios para a organização e interpretação das informações. Para isso, busco dialogar
com os teóricos: Geertz (1989); Denzin e Lincoln (2006), Bardin (1979), Minayo (2007) e
Castilho (2011).
1.1 MINHA RELAÇÃO COM O CAMPO DE PESQUISA
A vida sempre nos reserva muitas experiências que causam inquietações e que nos
motivam a querer saber e se envolver sempre mais em determinadas questões. Em minha
trajetória, no quilombo Mata-Cavalo, a educação veio cumprir esse papel. As inquietações e
também insatisfações vivenciadas, inicialmente como estudante e depois, docente, numa
busca constante por respostas, motivaram-me a realizar esta pesquisa. Filha de
matacavalense, nascida no quilombo Mata-Cavalo, minha relação com o campo de pesquisa
é de pertencimento, de corpo e alma.
No início dos estudos, isso me preocupava, pois, como realizar uma pesquisa, com o
distanciamento necessário a um pesquisador, num lugar que é meu próprio “eu”, ou seja,
estudar uma situação que me é muito familiar, pois iria coletar dados no meu local de
trabalho (a escola Teresa Conceição Arruda), na minha comunidade.
Segundo André (1995), um grande risco nesse caso, por motivos óbvios, é a
confusão entre sujeito e o objeto de pesquisa, entre opiniões já existentes e revelações
evidenciadas pelo estudo. Um grande desafio para mim, nesse caso, concordando com a
autora, foi “Saber trabalhar o envolvimento com a subjetividade, mantendo o necessário
distanciamento que requer um trabalho científico” (ANDRÉ, 1995, p. 48). Isso não significa
que fui neutra, mas que tive que preservar o rigor que o trabalho requeria.
35
Ainda de acordo com André (1995, p. 48), uma das formas de lidar com esse tipo de
relação tem sido o “estranhamento”, ou seja, “um esforço sistemático de análise de uma
situação familiar como se fosse estranha”. Tive que lidar com concepções e opiniões já
formadas, recompondo-as em novos fundamentos, levando em conta, sim, minhas vivências,
mas selecionando-as com subsídio do referencial teórico.
1.2 DESVELANDO O CAMPO DE PESQUISA
O Quilombo Mata-Cavalo está localizado no município de Nossa Senhora do
Livramento/MT, distante aproximadamente 50 quilômetros da capital Cuiabá, foi
reconhecido e certificado pela Fundação Cultural Palmares (FCP) como território
quilombola em 28 de outubro do ano de 1999.
Figura 2 - Imagem do território quilombola de Mata-Cavalo
O território é composto por seis comunidades, sendo elas: Mata-Cavalo de Baixo,
Mata-Cavalo de Cima, Aguaçú, Mutuca, Ponte da Estiva e Capim Verde, espalhadas numa
área total de 14.700 hectares. As comunidades são organizadas em associações e cada uma
possui seus limites de terras, demarcados por linhas imaginárias, e são determinadas pela
36
ocupação dos “troncos” das famílias, ou seja, dos antepassados dessas famílias ocupantes de
cada comunidade. Residem no quilombo, segundo dados do INCRA (2018),
aproximadamente 418 famílias. O Quilombo Mata-Cavalo tem como marco de origem o ano
de 1883, em que os africanos escravizados, que ali residiam, receberam de sua ex-senhora
Dona Anna da Silva Tavares a doação das terras.
O acesso ao território de Mata-Cavalo se dá pela Rodovia MT 060, estrada que liga
Cuiabá ao município de Poconé. Pela Rodovia MT 060, passando pela sede do município de
Nossa Senhora do Livramento, depois do km 12, você já pode observar uma placa indicando
a existência de área quilombola próxima. Distante da cidade a quatro quilômetros, a
comunidade está às margens direita e esquerda da rodovia. O território se inicia no km 17,
no sentido Cuiabá – Poconé.
O Quilombo Mata-Cavalo é marcado, na margem direita da Rodovia MT 060, por
um enorme pneu branco, suspenso em uma porteira de madeira, e segue até o km 35. Do
sentido Cuiabá - Poconé, a primeira comunidade localizada às margens da Rodovia MT 060
é a comunidade Aguaçú (ou Aguaçú de Cima); logo depois, vem a comunidade Ponte da
Estiva; em seguida, temos a comunidade Mata-Cavalo de Baixo; após, temos a comunidade
da Mutuca e, mais adiante, temos a comunidade do Capim Verde. A comunidade de
Mata-Cavalo de Cima não se localiza às margens da rodovia, encontrando-se ao fundo das
comunidades do Aguaçú, Ponte da Estiva e Mata-Cavalo de Baixo, conforme figura 3 que
segue:
Figura 3 - Mapa de localização das comunidades no Quilombo Mata-Cavalo
Fonte: https://www.google.com.br/search?q=mapa+do+comunidades+de+mata+cavalo (adaptado pela autora).
37
Segundo os mais antigos da comunidade, Mata-Cavalo recebe este nome em função
do córrego que corta o quilombo. De acordo com os moradores, esse córrego era estreito e
fundo, principalmente, na época das enchentes. Certa vez, um carteiro novo que levava
cartas de Cuiabá para Poconé, desinformado sobre as surpresas do córrego, ao vê-lo estreito,
pensou ser raso e enfiou a tropa adentro. Por ser época de chuva, suas correntezas estavam
muito fortes, o que acabou arrebatando e os cavalos acabaram morrendo. Desde então, o
córrego passou a ser conhecido como Mata-Cavalo e, posteriormente, a comunidade, até
então denominada Boa Vida, também passou a ser chamada de Mata-Cavalo. Há, porém,
outras versões acerca da origem do nome, como a existência de um capim, tipicamente do
Cerrado, com o nome popular de “Mata-Cavalo” oriundo daquela região, porém, a mais
conhecida é sobre o córrego que matou os cavalos.
As seis comunidades estabelecem relação de parentesco entre seus moradores,
reúnem-se nas festas, nos trabalhos coletivos na roça, no fazer da farinha e nas lutas. É
importante reiterar que, mesmo as comunidades sendo separadas por linhas imaginárias,
organizadas em associações, cada uma possuindo sua instituição administrativa, todas são
congregadas em relação à certificação da Fundação Cultural Palmares, ocorrida no ano de
1999, ou seja, possuem apenas uma certificação: “o Complexo Mata-Cavalo”.
Adentrando na comunidade, é possível perceber que tem uma área de solo fértil e
rica em recursos naturais. Na predominante vegetação do cerrado, a paisagem encanta quem
mora e quem decide fazer uma visita, seja para reencontrar parentes, seja para participar das
inúmeras festas de santo realizadas na comunidade o ano todo, para realizar estudos no local
ou, ainda, por simples curiosidade sobre o quilombo. Ao entrar no território, é possível
observar belíssimas espécies que compõem a flora do cerrado brasileiro, como: ipês, jatobás,
babaçus, buritis, perobas e diversas flores de tamanho, cor e forma variados. Além das
flores, as árvores frutíferas, tais como: pequizeiro, cajueiro, limoeiro, bocaiuveira, goiabeira
e mangueira são encontradas com fartura.
As famílias que ali residem sobrevivem da pecuária (criação de animais de pequeno
porte), agricultura de subsistência, com ênfase na plantação de banana e mandioca, o que
lhes permite a produção de farinha, rapadura de cana-de-açúcar, doces de frutas, artesanatos,
como algumas das principais atividades econômicas realizadas na comunidade de
Mata-Cavalo.
No que tange às questões culturais da comunidade, destacam-se: as festas de santo,
que são realizadas no quilombo o ano todo; a feira cultural, realizada na Semana da
38
Consciência Negra, no mês de novembro; a Festa da Banana, realizada no mês de julho, na
comunidade Ribeirão da Mutuca; o Siriri e o Cururu, danças típicas de Mato Grosso, e a
Dança Afro.
Na comunidade, existem ainda sete bares, espalhados por secções, e uma igreja
católica, localizada atrás da Escola Estadual Professora Tereza Conceição Arruda. Possui,
ainda, três igrejas evangélicas: uma localizada na estrada vicinal, no limite entre a
comunidade Mata-Cavalo de Baixo e a comunidade da Mutuca; uma na estrada vicinal, entre
as comunidades Ponte da Estiva e Aguaçú e uma na estrada vicinal do Pequizeiro, no
Mata-Cavalo de Baixo. Não há hospital na localidade, apenas dois agentes de saúde que
atendem os moradores com práticas de saúde preventiva e também articulam o atendimento
médico na comunidade, o qual acontece a cada dois meses na Escola Estadual Professora
Tereza Conceição Arruda e na comunidade da Mutuca. A maioria dos matacavalenses habita
em casas feitas com madeiras e palha de babaçu, matéria-prima facilmente encontrada na
localidade.
A Escola Estadual Quilombola Profa. Tereza Conceição Arruda está localizada na
comunidade Mata-Cavalo de Baixo, as outras cinco comunidades estão localizadas no
entorno dela, sendo que as comunidades Ribeirão da Mutuca e Ponte da Estiva estão
distantes da escola, aproximadamente, dois quilômetros, enquanto que as comunidades
Aguaçú de cima, aproximadamente, quatro quilômetros; Capim Verde, aproximadamente,
seis quilômetros e Mata-Cavalo de Cima, aproximadamente, sete quilômetros.
Realizei a pesquisa de campo, primeiramente, com os moradores mais antigos do
Quilombo Mata-Cavalo, a fim de identificar os aspectos históricos, culturais e identitários
dos matacavalenses a partir do olhar dos mesmos. Para coletar esses dados, visitei três
famílias no território, optando por ouvir, inicialmente, o morador mais velho de cada
família, reconhecido pelos matacavalenses como anciões, aqueles que guardam os saberes.
Escolhi esses três anciões com a intenção de apresentar a história da comunidade a partir do
olhar deles. Um olhar de quem, cotidianamente, vive e faz a história do lugar. Na visita às
comunidades, entre um cafezinho, um guaraná e um chá com bolo, expliquei o motivo da
minha presença e também as motivações da pesquisa.
Sempre, nas primeiras palavras sobre a pesquisa, o que se viam eram olhares
curiosos, que pouco a pouco iam se transformando em um olhar acolhedor, pois entendiam a
grandeza do trabalho. E, no final do bate papo, sempre recebia incentivo dos moradores, no
sentido de que “realmente nós próprios é que temos que falar e escrever sobre nós”. E cada
39
um, no seu tempo e nas suas limitações, abria seus “baús” de lembranças, no intuito de
contribuir com a minha pesquisa no recontar dessa história.
Cada ancião foi entrevistado mais de uma vez. Nessas entrevistas, os temas
abordados estavam relacionados à comunidade, como quanto ao tempo de moradia, a
história do local e da escola, o que é ser quilombola e sobre as práticas culturais da
comunidade. Além das entrevistas, observei as práticas cotidianas dos anciões nas festas de
santo, reuniões do movimento, mutirões, almoços de final de semana, funerais, despejos,
bem como efetuei análise dos materiais impressos que tratavam do tema educação
quilombola.
Terminada as entrevistas com os moradores mais antigos, parti para a Escola
Estadual Professora Tereza Conceição Arruda, agora como pesquisadora, pois, faço-me
presente diariamente como professora. Primeiramente, reuni-me com os gestores e os três
professores da área de Ciências Humanas inseridos na pesquisa (e apresentados
posteriormente), explicando os objetivos da mesma e como se daria a coleta de dados. Sem
muita dificuldade, creio que pela nossa convivência diária, bem como pelo laço de
parentesco, consegui o apoio de todos para a realização do trabalho de pesquisa. A
consideração e respeito que os matacavalenses têm com os “parentes”, segundo Castilho
(2011), é característica marcante dos moradores, pois uma vez existindo a consanguinidade,
não importando qual seja o grau, integra-se a rede de consideração e todo respeito lhe é
assegurado.
Na escola, além das entrevistas com os professores, também observei o ambiente em
diferentes contextos, tais como: entrada e saída da escola, sala de aula, intervalo, recreação
dentro e fora da sala e as aulas práticas. Embasada no método geertzniano e seguindo o que
diz Carvalho (2015), nas minhas indagações no campo de pesquisa, busquei dosar, na
mesma proporção, a procura pelo significado das relações cotidianas, no esforço de
apreender a cultura da comunidade, ao mesmo tempo e medida em que me esforcei para
fugir dos pré-conceitos e conceitos que poderiam estar entranhados em mim, por conta da
minha vivência no lugar.
1.3 ABORDAGENS
1.3.1 Qualitativa
40
A abordagem qualitativa, segundo Minayo (2007), ocupa-se, nas pesquisas sociais,
com um nível de realidade que não pode ou não deve ser quantificado, ou seja, ela se
aprofunda no mundo dos significados, das crenças, dos valores, das aspirações e das
atitudes. Esse nível de realidade não é perceptível, ela precisa, pois, ser apresentada e
interpretada pelos próprios sujeitos pesquisados.
Nesta pesquisa, utilizaremos a abordagem qualitativa, por estar impregnada da
pretensão de aprender e compreender as práticas pedagógicas utilizadas pelos professores da
área de Ciências Humanas do ensino fundamental e médio, da Escola Estadual Quilombola
Profa. Tereza Conceição Arruda, com centralidade na observação do processo de articulação
do conhecimento científico e dos conhecimentos tradicionais quilombola, em seu contexto
sócio-histórico-cultural. Segundo Minayo (2007):
O método qualitativo é adequado aos estudos da história, das representações e
crenças, das relações, das percepções e opiniões, ou seja, dos produtos das
interpretações que os humanos fazem durante suas vidas, da forma como
constroem seus artefatos materiais e a si mesmos, sentem e pensam. (MINAYO,
2007, p. 57).
De igual forma, esta pesquisa se insere na abordagem qualitativa, por ter a intenção
de descrever e interpretar as ações cotidianas dos sujeitos da pesquisa, pois é, em si mesma,
um campo de estudo, uma vez que, segundo Denzin e Lincoln (2006), tal metodologia é uma
atividade que localiza o observador no mundo, consistindo em um conjunto de práticas
materiais e interpretativas que dão visibilidade ao mundo, onde o pesquisador estuda as
coisas em seus cenários naturais, tentando entender ou interpretar os significados que o
pesquisado tem do seu meio, na esperança de compreender melhor o assunto que está ao seu
alcance.
Em complemento a esse entendimento, Minayo (2007) ensina que, na abordagem
qualitativa, o pesquisador tem como objetivo emergir na apreensão dos fenômenos que
pesquisa, interpretando de acordo com o entendimento do próprio sujeito pesquisado, sem se
preocupar com quantidade, estatísticas e causas, seguindo elementos fundamentais como: a
interação entre sujeito de pesquisa e o observador; o registro das informações e dos dados
coletados e a interpretação do pesquisador.
Castilho (2011) afirma, em seus estudos, que a pesquisa qualitativa é a mais
adequada quando a questão em foco está ligada à vida cultural dos professores e à percepção
deles em relação à Educação Escolar Quilombola. Ela argumenta que, para a busca de
significados, faz-se necessário um envolvimento com os pesquisados que permitam
41
observar, enxergar, facilitar a expressão livre dos sujeitos e compreender a realidade da
comunidade na qual os pesquisados estão imersos, seus valores e sua organização escolar,
pois, nesse tipo de abordagem, envolve a empiria e uma sistematização progressiva do
conhecimento, até que a compreensão da lógica interna do grupo seja desvelada.
1.3.2 Etnografia
Conforme André (1995), a etnografia é um tipo de pesquisa antropológica que estuda
a cultura e a sociedade. Atualmente, esse método é utilizado também por psicólogos,
sociólogos, enfermeiros, educadores, entre outros profissionais.
Geertz (1989) retrata a etnografia como uma escrita dos fenômenos sociais,
procurando estabelecer relações, selecionar informantes, transcrever textos, levantar
genealogias, mapear campos, manter um diário e assim por diante. Mas, segundo o autor,
não são somente essas técnicas e esses processos que definem o empreendimento, mas, sim,
o tipo de esforço intelectual que ele representa: um risco elaborado para uma “descrição
densa” (GEERTZ, 1989, p. 4). Essa é a maior preocupação da etnografia: obter uma
descrição densa, a mais completa possível, sobre o que um grupo particular de pessoas faz e
o significado das perspectivas imediatas que ele tem do que faz.
Ainda segundo Geertz (1989), fazer a etnografia é como tentar ler um livro estranho,
descorado, cheio de elipses, contraposições, emendas suspeitas e comentários parciais,
escritos não com os sinais convencionais do som, mas com exemplos passageiros de
comportamento modelado. Tal escrita demanda “uma hierarquização estratificada das
estruturas significantes em termos produzidos, percebidos e interpretados pelos sujeitos, sem
as quais eles de fato não existiriam como categoria cultural” (GEERTZ, 1989, p. 5).
No intuito de aclarar e compreender as práticas pedagógicas utilizadas pelos
professores da área de Ciências Humanas da escola quilombola da nossa pesquisa, com
centralidade na observação do processo de articulação do conhecimento científico e dos
conhecimentos tradicionais quilombola em seu contexto sócio-histórico-cultural, também
empregaremos a etnografia escolar.
André (1995, p. 41) define etnografia escolar como “a pesquisa do tipo etnográfico,
que se caracteriza fundamentalmente por um contato direto do pesquisador com a situação
pesquisada, permite reconstruir os processos e as relações que configuram a experiência
escolar diária”.
42
Por meio dessas técnicas etnográficas, segundo André (1995), podemos identificar o
não identificado, ou seja, retratar os conflitos, as representações dos sujeitos, reestruturar
linguagens, formas de interlocução e sentidos que são produzidos e reproduzidos no fazer
pedagógico cotidiano. Ainda conforme a autora, esse tipo de pesquisa nos permite imergir
no espaço escolar e tentar entender como operam no cotidiano, “[...] mecanismos de
dominação e de resistência, de opressão e de contestação ao mesmo tempo em que são
veiculados e reelaborados conhecimentos, atitudes, valores, crenças, modo de ver e de sentir
a realidade e o mundo” (ANDRÉ, 1995, p. 41).
Para André (1995, p. 24), o método etnográfico pode ser usado num trabalho de
educação “quando ele faz uso das técnicas que tradicionalmente são associadas à etnografia,
ou seja, a observação participante, a entrevista intensiva e a análise de documentos”. Em
relação a isso, a autora descreve que:
O pesquisador aproxima-se de pessoas, situações, locais, eventos, mantendo com
eles um contato direto e prolongado. Como se dá esse contato? Primeiro não há
pretensão de mudar o ambiente, introduzindo modificações que serão
experimentalmente controladas como na pesquisa experimental. Os eventos, as
pessoas, as situações são observadas em sua manifestação natural. (ANDRÉ, 1995,
p. 25).
Importante destacar que uma característica precípua da pesquisa etnográfica, segundo
André (1995):
É a ênfase no processo, naquilo que está ocorrendo e não no produto ou nos
resultados finais. As perguntas que geralmente são feitas nesse tipo de pesquisa
são as seguintes: O que caracteriza esse fenômeno? O que está acontecendo nesse
momento? Como tem evoluído? (ANDRÉ, 1995, p. 25).
Nesse intuito, para a autora, a etnografia,
Busca a formulação de hipóteses, conceitos, abstrações, teorias e não sua testagem.
Para isso faz uso de um plano de trabalho aberto e flexível, em que os focos do
estudo vão sendo constantemente revistos, as técnicas de coleta, reavaliadas, os
instrumentos, reformulados e os fundamentos teóricos, repensados. O que esse tipo
de pesquisa visa a descoberta de novos conceitos, novas relações, novas formas de
entendimento da realidade. (ANDRÉ, 1995, p. 25).
Portanto, conclui-se que a pesquisa etnográfica impõe ao pesquisador a realização de
uma análise profunda do seu sujeito de pesquisa, fazendo com que as informações coletadas
tenham condições de gerar uma explicação teórica, desde a concepção até a concretização,
partindo de uma leitura crítica e interpretativa da realidade à qual se propôs estudar, mas
43
sempre atenta à interpretação daqueles que vivem determinadas experiências, isto é, o
significado que atribuem ao que vivem.
Nesta pesquisa, a etnografia, como método de estudo científico, irá trazer apoio
significativo para os estudos, que tem como foco o conhecimento de um grupo de
professores inseridos numa escola quilombola, tanto por se preocupar com uma análise
holística da cultura, que é vista como um sistema de significados mediadores entre as
estruturas sociais e a ação humana, como por introduzir os sujeitos pesquisados no processo
modificador das estruturas sociais.
Enfim, o método etnográfico deu suporte para a realização das observações, das
anotações em diário de campo, das descrições, das entrevistas e interpretações das práticas
pedagógicas dos professores da Escola Estadual Professora Tereza Conceição Arruda,
durante o contato diário com os pesquisados, bem como na participação das atividades
formativas realizadas pela escola e, ainda, quando da participação nos eventos realizados na
comunidade, tais como: as festas de santo, a feira cultural, realizada pela escola, em alusão
ao dia 20 de novembro e outras atividades socioculturais do Quilombo Mata-Cavalo.
1.4 INSTRUMENTOS E COLETAS DE DADOS
1.4.1 Observação
Minayo (2007, p. 69) define a pesquisa participante como sendo “um processo pelo
qual um pesquisador se coloca como observador de uma situação social, com a finalidade de
realizar uma investigação científica”. A referida autora salienta que o investigador fica em
relação direta com os sujeitos participantes da pesquisa, na medida do possível, participando
do cotidiano, do cenário cultural, com intuito de coletar dados e compreender o contexto da
pesquisa. Desse modo, ainda segundo a autora, “o observador faz parte do contexto sob sua
observação, e, sem dúvida, modifica esse contexto, interfere nele, assim como é modificado
pessoalmente” (MINAYO, 2007, p. 69).
De acordo com Minayo (2007, p. 69), “a filosofia que fundamenta a observação
participante é a necessidade que todo pesquisador social tem de relativizar o espaço social de
onde provém, aprendendo a se colocar no lugar do outro”, ficando assim, mais livre de pré-
julgamentos.
44
Diante disso, a observação participante foi um instrumento utilizado na pesquisa para
apreendermos o cotidiano, na comunidade de Mata-Cavalo, dos professores sujeitos da
pesquisa, da escola e também da sala de aula, o que com certeza nos ajudará a compreender
o contexto do estudo.
Foram observados e anotadas atitudes, situações, ações dos professores pesquisados
no ambiente escolar e os saberes mobilizados por eles em suas práticas pedagógicas, assim
como a organização social dos mesmos. Para tanto, elaborei as seguintes questões:
Qual é a dinâmica e a rotina dos professores e da escola?
E quanto aos outros eventos que ocorrem no ambiente escolar (conflitos,
organização dos alunos, professores e gestão)?
Como é a dinâmica e a rotina dos professores dentro da sala de aula?
Que tipo de saberes os docentes mobilizam na sua prática pedagógica
(profissionais, curriculares, experienciais e disciplinares)?
No momento da exposição do conteúdo, os professores demonstram
correção/incorreção/distorção nas definições conceituais?
Os professores levam em conta, na sua prática pedagógica, a cultura, a
história, a identidade e os saberes e fazeres da comunidade quilombola?
Quais e como os materiais didáticos são utilizados em sala de aula?
Há sintonia entre a formação inicial e a disciplina ministrada?
Também observei atividades escolares, tais como: reunião de professores, reunião do
conselho deliberativo, reunião de pais e mestres, encontro da sala do educador, aulas
práticas, principalmente, as das disciplinas da área de Ciências e Saberes Quilombolas11:
Práticas em Cultura e Artesanato Quilombola; Prática em Tecnologia Social, Prática em
Técnica Agrícola Quilombola, com o objetivo de compreender, na qualidade de
pesquisadora, o significado que esses movimentos têm para a comunidade escolar, pois,
como diz Freire (2016), é ouvindo, olhando, compartilhando dos acontecimentos, que vamos
11 Conforme as Orientações Curriculares do Estado de Mato Grosso do ano de 2014, as Ciências e Saberes
Quilombolas, que compõem a parte diversificada do currículo da Educação Escolar Quilombola, visa à potencialização da aprendizagem dos discentes das escolas quilombolas a partir dos conhecimentos
vivenciados cotidianamente nas comunidades. Ainda segundo as Orientações Curriculares, a implementação
das disciplinas de Prática Agrícola Quilombola, Prática de Cultura e Artesanato Quilombola e Prática de
Tecnologia Social, ou seja, da parte diversificada no currículo das escolas quilombolas, foi concebida a partir
das discussões em torno da realidade cultural e social das comunidades. A parte diversificada aparece nas
matrizes curriculares das escolas quilombolas a partir do ano de 2010. De acordo com a Seduc/MT, as referidas
disciplinas que compõem a Ciências e Saberes Quilombolas devem ser inseridas a partir do final do 2º ciclo do
Ensino Fundamental, com a introdução de conteúdos/práticas de conhecimentos previstos para cada uma
dessas disciplinas, que se encontram descritas na supracitada Orientação Curricular, devendo ser concluída no
Ensino Médio.
45
percebendo o que sucede e apreendendo o sentido do conjunto de hábitos da comunidade
escolar.
As observações foram anotadas em um caderno de campo, pois, segundo Minayo
(2007), essas anotações são de grande importância no momento da realização da análise
qualitativa.
1.4.2 Entrevista
A entrevista é um procedimento de pesquisa que, segundo Minayo (2007), opera na
conexão direta, face a face, do pesquisador com o seu entrevistado, com a intenção de obter
informações necessárias ao seu trabalho investigativo.
Minayo (2010) aponta, ainda, como uma das formas de registro das diversas
modalidades de entrevista, o instrumento de gravação de conversa, considerado pela autora
como um dos mais fidedignos. No entanto, é importante lembrar que é necessário o
consentimento do interlocutor para que se utilize qualquer instrumento. E, ainda que
autorizado, quando a gravação não for possível, indica-se registrar as falas imediatamente
após as coletas de dados, não devendo confiar apenas na memória.
Elaborei um roteiro para cada conjunto de entrevistado, a fim de atender aos
objetivos propostos nas diversas categorias. A primeira fase da entrevista tinha por objetivo
conhecer a história e a origem da comunidade quilombola Mata-Cavalo, bem como os
modos de vida das pessoas que vivem nesse território. Escolhi, para essa categoria, os
moradores mais antigos das comunidades, os anciões, por guardarem a memória coletiva do
lugar. Os moradores escolhidos estão inseridos nas comunidades de Mata-Cavalo de Baixo,
Ponte da Estiva e Aguaçú de Cima, todas imersas no Quilombo Mata-Cavalo.
A princípio foram convidados dois anciões e uma anciã para falarem sobre a história
do quilombo, porém, no momento das entrevistas, a anciã convidada para fazer parte do
trabalho me informou que não mais poderia participar da pesquisa, pois iria passar um
tempo em Cuiabá cuidando de um ente querido. Diante do impedimento da anciã, convidei
outro morador da comunidade, também antigo, para compor o grupo de pesquisados.
As perguntas norteadoras das entrevistas com os anciões foram: a) que idade tem o
senhor?; b) quanto tempo mora na comunidade?; c) conte um pouco da história desse lugar;
d) para você, o que é ser quilombola?; e) O que fazem para divertir ou passar o tempo?; f)
quais são as principais manifestações culturais do Quilombo?
46
Encerrada essa etapa, dei início à segunda fase da entrevista que tinha a finalidade de
compreender a trajetória de vida dos profissionais docentes atuantes na comunidade
quilombola. Para esta categoria, foram entrevistados três professores da área de Ciências
Humanas, sendo: uma professora que ministra a disciplina de Geografia, uma professora que
leciona a disciplina de História e uma professora que leciona as disciplinas de Sociologia e
Filosofia.
O roteiro da entrevista contemplou as seguintes indagações: a) fale sobre a sua vida
(desde criança até agora); b) conte sobre sua vida escolar (desde criança até agora); c)
discorra sobre sua vida profissional (desde que começou a trabalhar até o momento – quais
os desafios encontrados quando começou a trabalhar?); d) como você se tornou professora?;
e) teve influência de alguém (pai, mãe, professor(a)...)?; f) como é ser professora na escola
quilombola?; g) há quanto tempo trabalha nessa escola?
O terceiro bloco de entrevista, que tinha o objetivo de apreender de que maneira se
realiza a relação entre a proposta de Educação Escolar Quilombola e a realidade da sala de
aula, contou com questões que foram aplicadas aos professores da área de Ciências
Humanas, todavia divididas por disciplinas.
Para a professora que trabalha com a disciplina de Geografia, foi questionado: a) o
que você costuma trabalhar na disciplina de Geografia?; b) qual a importância dessa
disciplina numa escola quilombola?; c) qual a dificuldade para se trabalhar essa disciplina?;
d) quais são as experiências positivas?; e) você fez alguma formação específica para
trabalhar numa escola quilombola?; f) você faz relação entre os saberes locais e os
conhecimentos mais globais? De que forma?
Para a professora que trabalha com a disciplina de História, foram feitas as seguintes
perguntas norteadoras: a) o que você costuma trabalhar na disciplina de História?; b) qual a
importância dessa disciplina numa escola quilombola?; c) quais as dificuldades para lecionar
essa disciplina?; d) quais são as experiências positivas?; e) você fez alguma formação
específica para trabalhar numa escola quilombola?; f) você faz relação entre os saberes
locais e os conhecimentos mais globais? De que forma?
Para a professora que trabalha com a disciplina de Filosofia, foram feitos os
seguintes questionamentos: a) o que você costuma trabalhar na disciplina de Filosofia?; b)
qual a importância dessa disciplina numa escola quilombola?; c) quais as dificuldades para
trabalhar essa disciplina?; d) quais são as experiências positivas?; e) você fez alguma
formação específica para trabalhar numa escola quilombola?; f) você faz relação entre os
saberes locais e os conhecimentos mais globais? De que forma?
47
Para a professora que trabalha com a disciplina de Sociologia foram feitas as
seguintes perguntas: a) o que você costuma trabalhar na disciplina de Sociologia?; b) qual a
importância dessa disciplina numa escola quilombola?; c) quais as dificuldades para ensinar
essa disciplina?; d) quais são as experiências positivas?; e) você fez alguma formação
específica para trabalhar numa escola quilombola?; f) você faz relação entre os saberes
locais e os conhecimentos mais globais? De que forma?
Para André (2005), as entrevistas têm a finalidade de aprofundar as questões e
esclarecer os problemas observados. Seguindo os subsídios teóricos formulados por Minayo
(2010) e André (2005), todas as entrevistas foram gravadas, com autorização e
consentimento prévio dos entrevistados, oficializadas por meio da assinatura do Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
O quadro 3 a seguir apresenta de forma geral como foram estruturadas as entrevistas
realizadas (categoria dos entrevistados, número de entrevistados, objetivo da entrevista):
Quadro 3 - Entrevistados
Categoria dos entrevistados
Número de
entrevistados Objetivo da entrevista
Guardiões da memória (anciões) 03
Conhecer a história e a origem da comunidade quilombola Mata-Cavalo, bem como os modos de vida das pessoas que vivem nesse território.
Professores da área de Ciências
Humanas 03
Compreender a trajetória de vida dos profissionais, bem como apreender de que maneira se realiza a relação entre a proposta da Educação Escolar Quilombola e a realidade da sala de aula.
Fonte: elaborada pela pesquisadora (2018).
1.4.3 Análise documental
Conforme Lüdke e André (1986), a análise documental é uma técnica importante
para a abordagem de dados qualitativos, desvelando novas informações ou não sobre um
determinado assunto ou problema, contribuindo para a validação do trabalho estudado.
Nessa perspectiva, foram analisados os planos de aula e os projetos que a escola
desenvolve, com a finalidade de compreender se o trabalho que vem sendo realizado pela
escola está ou não em consonância com a Resolução n.º 002/2016 do Conselho Estadual de
Educação de Mato Grosso, com as Orientações Curriculares para a Educação Escolar
48
Quilombola do Estado de Mato Grosso (2010) e com as Diretrizes Curriculares Nacionais
para Educação Escolar Quilombola (BRASIL, 2012).
A fim de encontrar registros sobre a contextualização histórica do território
quilombola de Mata-Cavalo, realizei visita ao Instituto de Colonização e Reforma Agrária
do Estado (INCRA/MT), especificamente, na Coordenadoria de Quilombo da instituição e
no Instituto de Terras de Mato Grosso (INTERMAT), bem como lancei mão de leituras em
pesquisas de mestrado e doutorado realizadas na comunidade, a fim de me inteirar sobre os
escritos históricos que já havia sobre a comunidade.
1.4.4 Recurso fotográfico
O recurso fotográfico foi utilizado para complementar as informações, a fim de
oferecer ao leitor uma reprodução, o mais confiável possível, da comunidade de
Mata-Cavalo. Utilizei imagens que fotografei durante os procedimentos de observação e
entrevistas com moradores e professores, além das imagens do acervo escolar. Essas foram
cedidas por meio de autorização específica.
Utilizo a fotografia não somente para ilustrar o texto, mas também como recurso para
guiar o olhar de quem lê, em uma viagem etnográfica na escola e no território, bem como
para informar e tornar conhecidas questões que seriam melhor assimiladas pelo leitor ao
visualizar as imagens, apresentando e possibilitando uma visão geral do quilombo.
1.4.5 Análise dos conteúdos
Para a realização da análise do conteúdo, utilizei a concepção de Interpretação da
Cultura, proposta por Geertz (2012), com o objetivo de compreender o conjunto de opiniões,
vivências e experiências filtrado pelo olhar dos sujeitos pesquisados e sobre o tema
estudado.
A análise de conteúdo é uma reunião de instrumentos metodológicos que se
aperfeiçoa constantemente e que se aplica a discursos diversificados, principalmente, na área
das Ciências Sociais, com objetivos bem definidos e que servem para revelar o que está
escondido no texto, mediante interpretação da mensagem. Para Minayo (2007), essa análise
permite caminhar na descoberta do que está por trás dos conteúdos exprimidos, indo além
das aparências do que está sendo informado.
Já segundo Bardin (1979), a análise de conteúdo consiste em:
49
Um conjunto de técnicas de análise das comunicações, que utiliza procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens. [...] A intenção
da análise de conteúdo é a inferência de conhecimentos relativos às condições de
produção inferência esta que recorre a indicadores. (BARDIN, 1979, p. 38).
Bardin (1979) ressalta que esse estudo é composto por três fases: a primeira refere-se
à pré-análise, ou seja, o momento de organizar todo o material que será estudado,
sistematizando as ideias iniciais, a escolha dos documentos, a formulação das hipóteses e
dos objetivos; a segunda faz alusão à análise do material, de modo a definir as categorias de
estudos e aplicar as técnicas específicas propostas nos objetivos; por fim, na terceira fase
opera-se o tratamento dos resultados, as inferências e a interpretação.
Já Minayo (2013) evidencia que a análise de conteúdo tenciona verificar hipóteses e
descobrir o que está por trás de cada conteúdo manifesto. O que está redigido, declarado,
mapeado, figurativamente desenhado ou simbolicamente explicitado sempre será o ponto de
partida para a identificação do conteúdo exposto, fazendo com que a aplicação desse método
em pesquisas qualitativas seja positiva.
1.4.6 Procedimentos éticos
Esta pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisas com Seres Humanos
da Plataforma Brasil para análise e parecer. Foram encaminhados, para apreciação dos
relatores, o projeto de pesquisa, o Termo de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE) e o
Termo de Autorização do Uso de Voz e Imagem.
Os sujeitos participantes foram esclarecidos sobre os objetivos da pesquisa e
assinaram os referidos termos, nos quais constam que as informações coletadas no diário de
campo, as imagens fotográficas e a gravação de voz seriam utilizadas somente para a
finalidade desta pesquisa. A par desses esclarecimentos, no próximo capítulo, busco
contextualizar a comunidade quilombola de Mata-Cavalo.
50
CAPÍTULO II – A COMUNIDADE QUILOMBOLA DE MATA-CAVALO
Este capítulo busca demonstrar os vários conceitos de quilombo, bem como a luta e a
resistência dos quilombos contemporâneos. Posteriormente, apresento a origem do
Quilombo Mata-Cavalo, sua história e os desafios pelos quais passou e ainda passam os
matacavalenses na busca por seu reconhecimento e regularização fundiária do território, por
meio das suas histórias e memórias.
Nessas andanças pelo território, faremos uma breve pausa para tomar um licor,
saborear um delicioso francisquito ou biscoito, acompanhado de uma deliciosa garapa de
cana ou mesmo um saboroso guaraná ralado, ao som das melodias dos passarinhos, das
galinhas, enquanto as vozes dos anciões ecoam ao contarem as histórias do lugar. Para tanto,
busquei subsídios teóricos para essa discussão em Hall (2006), Munanga (1995-1996), Barth
(1998), Freitas (1978), Moura (1988; 2001), O’Dwyer (2002), Castilho (2011), Silva (2014),
Bandeira (1992), dentre outros.
2.1 COMUNIDADES QUILOMBOLAS: CONCEITOS
No Brasil escravista, até meados do século XIX, segundo Oliveira (2016), o termo
quilombo era conferido aos africanos e seus descendentes que aqui foram escravizados e que
se contrapunham à escravização, por meio da formação de grupos e organizações sociais,
políticas e econômicas independentes, que escapavam aos domínios dos senhores. Segundo
o autor, a essas organizações de negros fugidos, os senhores e o poder público atribuíam
características em que o significado era considerado negativo, pois os quilombolas eram
relacionados como bandidos e eram vistos como uma ameaça à segurança dos senhores e ao
seu sistema de produção.
De acordo com Freitas (1978,) os primeiros africanos escravizados chegaram ao
Brasil em 1554. O “tráfico negreiro”12 permaneceu por 316 anos. Em qualquer lugar em que
existia a escravidão, emergiam os quilombos como elementos de contestação dos negros ao
regime colonial escravista. De acordo com o autor, o quilombo foi uma demonstração típica
12 O tráfico negreiro representa a fase em que os negros africanos foram tirados da África para serem escravos
em outros continentes. O comércio de negros africanos como escravos foi uma das principais atividades
comerciais dos países dominantes no período de 1501 a 1867.
51
da insubmissão negra, haja vista que essa era uma forma de sobreviver e lutar contra o
sistema escravagista. De acordo com o referido autor, os negros foragidos ou libertos se
organizavam em locais distantes o suficiente para resistir ao sistema escravocrata.
As formas de resistência à escravidão aconteciam mediante ataques às fazendas,
mortes de feitores e capitães do mato, assassinatos de senhores de engenho, lutas de
guerrilha etc. Há de se considerar, ainda, os casos em que cometiam suicídio, enforcando-se
ou ingerindo veneno. O maior território de resistência política à escravidão foi o Quilombo
dos Palmares, o mais famoso do Brasil e das Américas (MOURA 1988). Quilombo é,
indiscutivelmente, o mais antigo tipo de grupo específico negro em todo o Brasil.
A origem do termo ‘quilombo’, segundo Munanga (1995-1996), seguramente é
originário do povo africano Bantu, escrito na sua origem com K: Kilombo. O autor afirma
que o Kilombo surgiu no século XVI no continente africano, especificamente, nas áreas
bantu, reunindo povos de diferentes regiões entre o Zaire e Angola. O quilombo africano se
tornou uma organização política e militar interétnica centralizada, formada por homens, sem
distinção de genealogia. Ao fazer parte da associação, os membros eram sujeitados a
dramáticas cerimônias de iniciação que os afastavam do recinto protetor de sua linhagem e
os juntava como co-guerreiros num regimento de super-homens não vulneráveis às armas
dos inimigos.
Ainda de acordo com Munanga (1995-1996), pelo conteúdo, o quilombo brasileiro é,
com certeza, uma reprodução do quilombo africano, reorganizado pelos escravizados em
oposição à política escravocrata, para implantação de outro modelo de estrutura
organizacional, na qual se encontraram todos os subalternizados, criando, portanto, uma
sociedade alternativa, diferenciada da que se efetivava sob o comando do senhorial.
Escravizados e revoltados se organizavam para fugir das senzalas e plantações, ocupando
terras não povoadas, geralmente de difícil acesso. Reproduzindo o modelo africano, eles
converteram esses territórios em espécie de preparação à resistência, abertos a todos os
oprimidos da sociedade, pressupondo um modelo de democracia plurirracial que o Brasil
ainda está a buscar.
Essas sociedades alternativas, ao serem criadas, eram organizadas política e
economicamente, lutando constantemente por seus ideais. Nas palavras de Castilho (2011, p.
62), “Elas perseguiam insistentemente a alforria, buscavam autonomia na produção,
investindo na criação de laços de família”.
No Brasil contemporâneo, o quilombo como direito étnico à terra, sua constituição e
sua organização, segundo Oliveira (2016), está prescrito na Constituição Federal de 1988, no
52
artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias- ADCT, que, apesar de já
abordado anteriormente, merece nova apresentação ao dispor que: “Aos remanescentes das
comunidades quilombolas que estejam ocupando suas terras é reconhecida a posse
definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos” (BRASIL, 1988).
Conforme Almeida (2002), o dispositivo constitucional supracitado reconheceu ao
inserir no seu texto a expressão “comunidades remanescentes de quilombos”, que, se tomado
no seu sentido exato, coloca a presença das comunidades quilombolas numa concepção de
sítio arqueológico, voltado ao passado, ou seja, o que restou, o que sobrou. No entanto,
segundo ele, ao se deparar com a realidade presente nos quilombos, o universo ideológico
dos legisladores não se sustenta. O autor sugere que se deve trabalhar o conceito de
quilombo levando em consideração o que ele é no presente, rompendo com essa separação
geográfica atribuída aos quilombos, tais como: civilização/natureza, propriedade/posse,
rural/urbano, dentre outros (ALMEIDA, 2002).
Para Oliveira (2016), as comunidades quilombolas, no passado e no presente, sempre
foram grupos específicos que, desde então, vêm se autodefinindo como tal e vivendo
experiências comunitárias próprias. Ainda de acordo com Oliveira (2016), no século XX, o
quilombo passou por transformações em seu significado, pois foi ressignificado pelas
instituições de movimento negro e quilombolas, como classe política de autodefinição para
reivindicar direitos étnicos à participação política, à educação, à saúde e, sobretudo, à terra.
A incumbência de fundamentar teoricamente a atribuição de uma identidade
quilombola a um grupo e, por extensão, garantir - ainda que formalmente - o seu acesso à
terra, trouxe à tona a necessidade de redimensionar o próprio conceito de quilombo, a fim de
abranger um conjunto de situações de ocupação de terras por grupos negros e ultrapassar o
binômio fuga-resistência, instaurado no pensamento corrente quando se trata de caracterizar
essas organizações sociais.
Segundo Castilho (2011), pesquisas e estudos históricos, antropológicos e culturais,
realizados nas comunidades quilombolas contemporâneas, demonstram que as terras
ocupadas por esses grupos têm origens diversas, como doação por parte dos antigos
proprietários aos seus escravizados, terras adquiridas por meio de compras por negros forros,
por ocupação de terras devolutas após a abolição da escravatura ou mesmo por simples
ocupação de algumas terras destinadas às promessas a algum santo. A autora afirma, ainda,
que, portanto, o conceito de “negros fugidos” não é aplicável na definição das mais de cinco
mil comunidades quilombolas existentes no Brasil, segundo dados da Coordenação Nacional
de Quilombos (CONAQ).
53
Já de acordo com O’Dwyer (2002), a Associação Brasileira de Antropologia (ABA),
atendendo solicitação do Ministério Público, em 1994, ressemantiza o conceito de quilombo,
presente no artigo 68 da Constituição Federal, “como grupos étnicos que existem ou
persistem ao longo da história como um ‘tipo’ organizacional’, segundo processos de
exclusão e inclusão que possibilitam definir os limites entre os considerados de dentro ou de
fora” (O‘DWYER, 2002, p. 14). Percebe-se que o conceito de quilombo que vem sendo
trabalhado pela Antropologia é muito mais amplo e abrange comunidades negras, arraigadas
em determinado território, que mantenham vivos as tradições e os costumes herdados de
seus antepassados. Segundo a ABA:
[...] o termo ‘quilombo’ tem assumido novos significados na literatura
especializada e também para indivíduos, grupos e organizações. Ainda que tenha
um conteúdo histórico, o mesmo vem sendo ressemantizado para designar a situação presente dos segmentos negros em diferentes regiões e contexto do país.
Definições têm sido elaboradas por organizações não governamentais, entidades
confessionais e organizações autônomas dos trabalhadores, bem como pelo próprio
Movimento Negro. Exemplo disso é o termo ‘remanescente de quilombo’,
utilizado pelos grupos para designar um legado, uma herança cultural e material
que lhes confere uma referência presencial no sentimento de ser e pertencer a um
lugar e a um grupo específico. Contemporaneamente, portanto, o termo quilombo
não se refere a resíduos ou resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou de
comprovação biológica. Também não se trata de grupos isolados ou de uma
população estritamente homogênea. Da mesma forma, nem sempre foram
constituídos a partir de uma referência histórica comum, construídas a partir de vivências e valores compartilhados. (Informativo NUER, 1996, p. 81).
Partindo da definição de Barth (1998), O’Dwyer (2002) assegura que o quilombo,
hoje, não está isolado do restante da população e que, nem sempre, a sua formação decorre
de “insubordinação ou rebelação”. Uma das finalidades na formação de quilombos, na
atualidade, é a luta ou a resistência visando à manutenção da cultura. Essa perspectiva
permite pôr em relevo a importância dos processos de construção da identidade,
considerando as características peculiares a cada grupo.
Segundo Castilho (2011), as identidades desses grupos não se definem pela
quantidade numérica de seus membros, nem pelo tamanho do seu território, mas pela
experiência construída a partir de vivências partilhadas de acontecimentos históricos comuns
e da continuidade como grupo. Em relação ao território, a ocupação da terra por esses
grupos, segundo O’Dwyer (2002), não é feita em termos de lotes individuais, predominando
o uso coletivo dos espaços, tomando por base laços de parentesco e vizinhança, assentados
em relações de solidariedade e reciprocidade.
54
Interpretando Leite (2010), o ato de aquilombar-se, ou seja, de estabelecer base
contra qualquer atitude ou plano opressivo, passa a ser, portanto, nos dias atuais, a chama
reacesa para, na condição contemporânea, dar sentido, estimular, fortalecer a luta contra a
discriminação e seus efeitos. Quilombo vem a ser, portanto, o conceito principal para se
discutir uma parte da cidadania negada, sendo este o caso do Quilombo Mata-Cavalo.
O Quilombo Mata-Cavalo, comunidade que abriga a Escola Estadual Professora
Tereza Conceição Arruda, lócus desta pesquisa, segundo Castilho (2011), configura-se como
um quilombo contemporâneo, pois não foi formado a partir de fuga, insurreição, mas, sim, a
partir de uma terra doada. Não está geograficamente isolada, pois os seus moradores
mantêm relação estreita com a sociedade envolvente. Pautados em uma identidade histórica
comum, seus/suas moradores(as) resistem e lutam até os dias atuais para serem reconhecidos
como sujeitos de direitos e de garantias fundamentais pelo Estado burocrático brasileiro.
Reivindicam, sobretudo, a regularização fundiária do território que ocupam e um lugar digno
na sociedade que lhes foram negados ao longo da história.
Os matacavalenses, ainda hoje, vivem de forma singular. Em sua maioria, as famílias
residem em casas de pau a pique, cobertas com palha de babaçu, praticam a agricultura de
subsistência, cujas culturas mais comuns na comunidade são banana, arroz, feijão, cana-de-
açúcar, milho e mandioca. As festas de santo fazem parte do calendário anual da
comunidade. Isso tudo mostra o laço cultural, mantido com muito orgulho, com a cultura de
seus antepassados escravizados que vivem nesse local desde o século XIX.
2.2 BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO DO MUNICÍPIO DE NOSSA SENHORA DO
LIVRAMENTO/MT
As terras que historicamente formam a comunidade quilombola de Mata-Cavalo,
lócus desta pesquisa, estão localizadas no município de Nossa Senhora do Livramento e
encontram-se a uma distância aproximada de 50 km de Cuiabá, capital de Mato Grosso, às
margens da Rodovia MT-060, de acesso ao município de Poconé-MT.
A sede do município de Nossa Senhora do Livramento localiza-se a
aproximadamente 40 km da capital Cuiabá, na região denominada de Baixada Cuiabana. Faz
divisa com os municípios de Várzea Grande, Poconé, Rosário Oeste, Barão de Melgaço,
Cáceres, Porto Estrela, Jangada e Santo Antônio do Leverger.
55
Figura 4 - Entrada da cidade de Nossa Senhora do Livramento/MT
Fonte: acervo particular da autora 2018.
A sede do município tem as seguintes coordenadas geográficas: 15º 46' 00'' de
latitude Sul e 56º 22' 00'' de longitude Oeste GR, na direção Sul em relação a Cuiabá. Integra
a mesorregião 130, da microrregião 534 de Cuiabá, Centro Sul de Mato Grosso.
Administrativamente, divide-se em quatro distritos: Sede, Faval, Pirizal, e Ribeirão dos
Cocais. Possui uma área de 5.331,57 km² e sua população estimada, em 2017, era de 12.484
habitantes (IBGE - Censo de 2017).
Partindo da capital Cuiabá, para ir a Nossa Senhora do Livramento, é preciso
atravessar a cidade de Várzea Grande e chegar ao Trevo do Lagarto. Chegando ao trevo,
pega-se a BR 070, seguindo, aproximadamente, por dez quilômetros até o entroncamento
com a Rodovia MT 060. Entrando à esquerda na MT 060 e seguindo por mais 12 km já
estará na cidade dos “Papa-banana”, como é carinhosamente conhecida Nossa Senhora do
Livramento. Continuando na MT 060, no sentido à cidade de Poconé, após quatro
quilômetros (de N. Sra. do Livramento), você estará adentrando ao território quilombola de
Mata-Cavalo.
Como descreve Castilho (2011), à medida que se cruza a BR 070, vão desabrochando
novas paisagens do cerrado mato-grossense, vegetação predominante desse lugar, com seus
pequenos arbustos com galhos retorcidos, entremeados por várzeas pantaneiras,
principalmente, nos períodos chuvosos, que nesta região compreende os meses de dezembro
a março.
O município de Nossa Senhora do Livramento se formou a partir da exploração do
ouro no século XVIII, quando os sorocabanos, Antônio Aires e Damião Rodrigues,
deixaram Cuiabá com todos os seus pertences, atravessaram o rio Cuiabá e, depois de uma
marcha de aproximadamente trinta quilômetros, descobriram ouro em alguns ribeirões ou
córregos em território do atual município, nas lavras que ficaram conhecidas como Cocais.
56
Com a notícia da descoberta do ouro, os sertanistas e aventureiros, ávidos por riquezas,
iniciaram a se instalar nas margens do Córrego Cocais, que foi o berço de nascimento do
atual município de Nossa Senhora do Livramento.
Em Livramento, segundo Bandeira (1992), as lembranças de muitas pessoas
associam à igreja ao surgimento da cidade, como satisfação de uma vontade divina. A autora
descreve, conforme memória oral dos livramentenses, que os tropeiros em viagem para Vila
Bela da Santíssima Trindade, após dormirem, tentavam continuar a viagem; no entanto, as
investidas eram ineficazes, pois os animais insistiam em permanecer parados no lugar.
Apesar de todo o empenho e das cipoadas, os animais persistiam em não pegar a estrada.
Depois de inúmeras tentativas, sem qualquer sucesso, alguém sugere que desçam a carga.
Ainda segundo a memória do “papa bananas”, ao descer a carga, que continha a imagem da
santa, os animais seguiram viagem. Ao recolocar novamente o fardo no lombo dos animais,
os bichos tornaram a empacar. Então, para abrigar a santa, é construída uma pequena capela
de palha, onde hoje temos a Igreja Matriz de Nossa Senhora do Livramento.
Figura 5 - Imagem da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Livramento (2018)
Fonte: acervo particular da autora, 2018.
Segundo Bandeira e Sodré (1993), fontes documentais apontam grande população de
negros não africanos, superiores aos africanos, em Nossa Senhora do Livramento, no
período de 1804-1883. De acordo com os autores, esses escravizados não africanos eram os
chamados crioulos (filhos de africanos nascidos no Brasil).
Ainda hoje, a população de Nossa Senhora do Livramento continua
predominantemente formados por negros. Segundo dados do IBGE (2010), agregando as
57
categorias pardas e pretas, 67% dos moradores de Livramento são da população negra.
Castilho (2011) assegura que, de fato, os livramentenses, assim como os matacavalenses,
mantêm uma distinção de cor, embora não sejam homogeneamente negros. A autora afirma,
ainda, que os livramentenses possuem um linguajar característico, bem como uma pronúncia
marcadamente distinta.
Embora a população livramentense seja predominantemente formada por negros,
conforme descrito acima, Sodré e Dantas (1995) detectou que em Livramento existe uma
resistente ordem racial hierarquizada, que, segundo a autora, divide-se em três categorias, de
cima para baixo: na primeira classe encontra-se a parcela branca da população; a segunda é
composta pelos mulatos e na terceira categoria, apesar das distinções que possa ocorrer,
assentam-se os negros. Contudo, segundo a autora, os não brancos são considerados
genericamente como negros.
Conforme Sodré e Dantas (1995), ser branco ou pertencer a certas famílias brancas
em Livramento significa gozar de prestígio social e, como aristocrata, participar de um
universo socialmente benéfico. Ainda de acordo com a autora, a diferença racial é um
critério de justaposição mais importante do que a de classe. Essa hierarquização racial
constatada por Sodré e Dantas (1995), na cidade de Livramento, pode explicar a relação
desarmônica entre os negros de Mata-Cavalo e os moradores da sede, sobretudo com os
brancos.
Livramento é a cidade mais próxima da comunidade de Mata-Cavalo e é aonde os
matacavalenses vão para resolver questões bancárias, comprar alimentos, roupas,
ferramentas de trabalho, vender produtos, tais como: artesanato, doces caseiros, farinha; bem
como resolver questões burocráticas, obter atendimento médico, entre outras coisas. É
também onde residem muitos de seus parentes.
Porém, como ressalta Castilho (2011), os matacavalenses, apesar da convivência
cotidiana em Livramento, nunca foram bem aceitos e vice-versa. Ainda segundo a autora,
em suas visitas à cidade de Livramento, com intuito de coletar material para sua pesquisa de
doutorado nos anos 2000, ouviu insinuações dos livramentenses que colocavam em dúvida o
direito dos quilombolas à terra, além de outras afirmações e narrativas depreciativas e
preconceituosas como “relaxados, descuidados e acomodados” (CASTILHO, 2011, p. 56).
A fala do Senhor Natalino, um dos anciões entrevistado para esta pesquisa, reforça o
descrito por Castilho (2011) quando ele relata: “Eu conheço uns dois desses fazendeiros aí
que um dia falou lá dentro da cidade de Livramento, ‘o que esses negros queriam com tanto
de terras desses’? E pouco fazia as coisas”. Ou seja, ainda nos dias atuais, os quilombolas
58
são vistos pelos livramentenses como não dignos de possuir terras, pelo fato de não serem
brancos.
O depoimento supracitado ilustra muito bem as representações sociais de cunho
racista, difundidas nos séculos XVIII e XIX, que conquistaram espaço e força na sociedade
brasileira e vigora, ainda, com muita força, nos dias atuais. Ou seja, o racismo é elemento
estruturante das relações sociais e de poder no Brasil, embora negado sistematicamente.
A seguir, passo a descrever sobre a história do Quilombo Mata-Cavalo e como a
ideologia de superioridade entre povos e culturas serviram para fundamentar o processo de
expropriação de terras dos matacavalenses.
2.3 QUILOMBO MATA-CAVALO: ASSIM COMEÇA SUA HISTÓRIA
Entende-se o lugar denominado Quilombo Mata-Cavalo como um conjunto de
comunidades ou um complexo que engloba seis comunidades. São elas: Mata-Cavalo de
Baixo, Mata-Cavalo de Cima, Aguaçú de Cima, Ponte da Estiva, Mutuca e Capim Verde.
A história da origem do Quilombo Mata-Cavalo é aqui descrita com base em
pesquisas bibliográficas e nas narrativas de três moradores que a ele se vinculam: três
anciões, que são considerados guardiões da história do grupo. O primeiro ancião
entrevistado é o Senhor Antônio Benedito da Conceição, conhecido pelo apelido que ele
gosta de ser chamado “Antônio de Mulato”, o qual, no momento da pesquisa (em 2018),
estava com 113 anos e como ele mesmo diz: “nascido e criado no Mata-Cavalo”. É
reconhecido por todos como um grande guerreiro na luta pela permanência do quilombo e
também pela educação formal dos matacavalenses.
O segundo entrevistado é o Senhor Natalino Marino da Silva, de 61 anos, bisneto de
africanos escravizados, nascido na comunidade de Mata-Cavalo. Natalino é uma espécie de
articulador entre os moradores do Quilombo. O seu conhecimento das comunidades e da
história local é reconhecido por todos os moradores.
O terceiro narrador da história da comunidade é o Senhor Arnaldo Arruda, 70 anos,
nascido e criado na comunidade de Aguaçú de Cima, que compõem o Quilombo. É
protagonista da luta pela resistência de sua família na comunidade. Seu Arnaldo é
analfabeto, mas conhece como ninguém a história do povo matacavalense.
A história do imóvel denominado Sesmaria Boa Vida, hoje Quilombo Mata-Cavalo,
inicia-se em 1751, quando foi emitida a carta de Sesmaria em favor de José Paes Falcão,
59
bandeirante paulista, pelo então capitão da capitania de Mato Grosso, Antônio Rolim de
Moura. Em 1772, a Sesmaria Boa Vida foi vendida para Antônio Roiz de Siqueira, que a
deixou de herança para seu filho Antônio Xavier de Siqueira. Posteriormente, a Sesmaria
Boa Vida Mata-Cavalo passou a pertencer à Dona Custódia Arruda e Silva (SANTOS 2017).
Em 1850, em função de uma dívida contraída pelo esposo de Dona Custódia, a
Sesmaria Boa Vida Mata-Cavalo acabou indo ao leilão público, sendo arrematada, na
ocasião, por Ricardo José Alves Bastos (SANTOS 2017).
Em 1875, o Sesmeiro, Ricardo Bastos, registrou um testamento declarando:
[...] declaro que sou natural desta província, filho legítimo dos finados Bento José
Alves Bastos e Gertrudes Maria da Conceição. Declaro que sou casado com D.
Ana da Silva Tavares, filha legitima do finado Antônio d’Almeida Lara e Dona
Ana de Moura Meirelles, de cujo matrimônio não tivemos filho algum. Declaro,
por conseguinte e por não ter herdeiro algum, necessário que instituo a mesma
minha mulher Dona Ana da Silva Tavares minha universal herdeira do
remanescente. [...] declaro que deixo todos os meus escravizados para servirem a
minha mulher durante a sua vida e por seu falecimento gozarem de plena liberdade
como se de ventre livre nascessem. (trecho retirado do Processo administrativo do
INCRA/MT).
Esse trecho do testamento de Ricardo José Alves Bastos nos revela que ele deixou a
Sesmaria Boa Vida, bem como os negros escravizados, para a sua esposa Dona Anna da
Silva Tavares, além de determinar a liberdade dos seus escravizados após a morte de sua
esposa.
Fontes documentais atestam a presença de negros na condição de escravizados em
Mata-Cavalo desde 1804, mas a origem do Quilombo Mata-Cavalo, segundo a memória dos
matacavalenses, tem como marco histórico o dia 15 de setembro de 1883. Ano em que seus
antepassados, negros cativos, receberam de sua ex-senhora, Dona Ana da Silva Tavares,
uma carta constando a doação das terras. Como confirmam, nos dias atuais, os próprios
matacavalenses:
Entrou a liberdade, acabou a escravidão. Acabou a escravidão. A Senhoria, que eu esqueci o nome dela, falou meus negros o marido morreu, entrou a liberdade,
agora, eu vou dar terra, a terra do Mata-Cavalo, a escritura da Boa vida para vocês.
(SR. ANTONIO MULATO, 2018).
O Senhor Natalino também guarda na memória a história da terra doada. Segundo
ele, sua “família é da descendência de Graciano Tavares da Silva, um dos negros que
recebeu a terra da Dona Ana da Silva Tavares”. Essa história foi repassada para ele pelo
seu pai Manoel Apolinário, que era bisneto do Graciano.
60
Segundo Castilho (2011), no imaginário dos quilombolas de Mata-Cavalo, foi a
bondade da senhoria que assegurou a permanência dos negros na fazenda após a libertação
dos escravizados por meio da Lei Áurea. Essa doação, conforme Castilho (2011), foi
registrada no cartório de Nossa Senhora do Livramento, onde a Dona Ana da Silva Tavares,
na qualidade de testamenteira, em 15 dias do mês de setembro do ano de 1883, ratificando o
testamento de seu falecido marido, Ricardo José Alves Bastos, o qual fez a doação de uma
parte da Sesmaria Boa Vida, denominado Mata-Cavalo, com suas vertentes, aos seus
escravizados, inclusive aqueles que haviam se libertado por ocasião do inventário do seu
marido.
Os estudos de Bandeira e Sodré (1993) também dão destaque à história da doação
das terras pela dona da Sesmaria aos seus negros:
Mata-Cavalos, uma dessas comunidades (rurais negras tradicionais), surgem ainda
à época da escravidão (1883), quando em vida, a meeira de Ricardo Tavares faz a
doação de uma área da Sesmaria Boa Vida a escravizados seus [...] A doação
registrada em Cartório refere-se às terras dos ribeirões de Mata-Cavalos e Mutuca,
tributários do ribeirão Santana, nas proximidades da sede do município. Negros
tornam-se dessa forma, proprietários legítimos da terra. (BANDEIRA; SODRÉ,
1993, p. 97).
Segundo relatos dos anciões de Mata-Cavalo, a partir da doação, as terras passam a
ser um bem coletivo, ou seja, pertencia a todo membro do grupo. De acordo com o Senhor
Natalino, “antigamente não existia cerca, a terra era comum”. Conforme relato dos
moradores, o direito à terra, no sentido de poder nela morar, plantar, colher, enfim, usufruir,
realizava-se e ainda prossegue, nos dias atuais, pela linhagem, por meio da descendência
direta ou indireta dos 34 negros escravizados da Dona Ana.
Em conformidade com o que consta no inventário de Ricardo José Alves Bastos e de
acordo com os registros constantes das figuras 6 e 7 deste trabalho, 34 escravizados
receberam a doação das terras, sendo que 27 deles – aproximadamente 80% - são parentes
consanguíneos, descendentes diretos de Francisco e Rita. As figuras 6 e 7 agregam, dentre
outras informações, nome, cor, idade, naturalidade, filiação, aptidão para o trabalho e
profissão.
61
Figura 6 - Imagem do inventário dos negros escravizados pertencentes ao Ricardo José Alves Bastos, em 1785
Fonte: acervo particular da autora, 2018.
Figura 7 - Imagem do inventário dos negros escravizados pertencentes ao Ricardo José Alves Bastos, em 1785
Fonte: acervo particular da autora, 2018.
62
Ao longo dos anos, segundo o Senhor Natalino, para protegerem o território, os
moradores foram se espalhando e, com isso, formaram-se as seis comunidades que integram
atualmente o Quilombo Mata-Cavalo, sempre tendo por base a posse coletiva da terra e o
vínculo das famílias descendendo de algum “tronco” dos 34 já retratados. Cada uma dessas
comunidades, ocupando um espaço específico, foi conquistada por meio das atividades
econômicas nelas exercidas, sendo os seus limites de conhecimento de cada membro
pertencente ao Quilombo, conforme nos confirma o Senhor Natalino (2018):
[...] todos eles têm os marcos. Os quatro cantos demarcados. Só que não existia
divisória de cerca, esses negócios. Não existia antigamente. Existiu agora, de
pouco tempo para cá. De 40 anos para cá, que existiu esse negócio de divisória,
mas no mais era todo comum. Cada um ficava nos seus limites, entendeu? Por
exemplo, este aqui o marco. Daqui para cá era seu, daqui para cá era meu, lá já era
outro marco, daí para lá de outo. Todo mundo respeitava o seu limite de um marco
para outro, mas não tinha divisória, como hoje em dia tem. [...] Cada um sabia seu
limite até onde que ia. Ninguém botava roça dentro do limite de outro. Cada um no
seu limite. Esse aí eu lembro muito bem. (informação verbal, SENHOR NATALINO, 2018).
Dessa forma, segundo Santos (2017), os/as matacavalenses e seus descendentes
ocupavam e cultivavam a terra, produzindo praticamente tudo o que era necessário para o
sustento e a sobrevivência. O cultivo das roças, a criação de pequenos animais, a
biodiversidade de espécies e de ecossistemas possibilitavam que os negros obtivessem quase
todos os elementos necessários para sua existência. Segundo Senhor Arnaldo (2018), “a vida
aqui [...] era boa, tranquila, antes dos atropelos dos fazendeiros, dos garimpeiros”. O Senhor
Natalino (2018) comunga da mesma opinião quando relembra: “Meus avós com meu pai
contavam que aqui no Mata-Cavalo foi muito bom, antigamente foi muito bom, diferentes
dos atritos que teve agora, aqui era bom demais!”.
Os testemunhos dos moradores revelam que Mata-Cavalo era um lugar de fartura.
Das roças, os moradores tiravam o necessário para seu sustento e de suas famílias. Revelam,
ainda, a presença de engenhos de tração animal, que permitia aos negros produzirem
melado, rapadura, açúcar de barro, tudo de maneira coletiva e solidária, por meio do
chamado muxirum (trabalho coletivo, em grupo).
De acordo com relato do Senhor Arnaldo (2018):
Antigamente aqui, nós vivíamos de trabalhar para manter a situação, unidos com
os vizinhos. Trabalhava plantando arroz, feijão, milho, banana, mandioca, cana, e
criando galinha, porco. Da mandioca fazia a farinha, da cana fazia melado, rapadura, Tio Antônio fazia até açúcar de barro. Aí engordava o porco e matava já
tinha a gordura, a carne. [...] também fazia bastante muxirum, era uma alegria só.
63
Uma quantia de homens e mulheres, cada tempo se juntava na roça de um pra
ajudar na derrubada, depois no plantio, depois para colher. Iniciava cedinho e
passava o dia inteiro, só parava para comer. (informação verbal, SENHOR ARNALDO, 2018).
O Ancião Arnaldo nos diz que, hoje em dia, os matacavalenses ainda fazem essas
coisas, porém ele desabafa com tristeza que, atualmente, não tem mais muito espaço para
plantar, porque a maioria das terras está tomada pelos grileiros.
Seu Antônio Mulato (2018) ainda hoje relembra, com saudade, da prática do
muxirum, que acontecia com mais frequência no passado. Segundo ele, “quando era dia de
muxirum, vinha gente de todos os lugares de Mata-Cavalo, da Mutuca, vinha aqui do
Aguaçú, vinha da Estiva, vinha de tudo... Era unido, era aquele muxirum o dia inteiro, tinha
muita comida, tinha bebida”.
Assim como o Senhor Mulato, o Senhor Natalino também salienta a prática do
muxirum realizado na comunidade:
[...]. Fazia muxirum. Tinha vez aqui no sitio, esse eu estou lembrado, eu tinha meus
doze, catorze anos, aqui fazia reunião na roça eram trinta, quarenta, cinquenta
pessoas na cada roça. Vamos supor hoje era você que fazia, amanhã era outro,
quando era na outra semana era outro. Era assim. Cada um ajudava um ao outro, no
muxirum. O gasto que tinha era só com o almoço, a bebida, só. (informação verbal,
SENHOR NATALINO, 2018).
Os moradores também relatam que parte da produção agrícola, pecuária e artesanatos
eram levada para vender na sede de Nossa Senhora do Livramento. Os produtores iam a pé,
a cavalo ou de carroça, conforme se depreende dos relatos abaixo:
[...] daqui do Mata-Cavalo nós carregávamos no Livramento. Nós éramos quatro
irmãos, quase todos de um tamanho só. Todo um ano e meio mais velho do que o
outro. [...] Papai arrumava doze litros de milho para o mais velho, seis para a mais
criança, três para o quarto e dois para o outro, mais criança, para levarmos no
Livramento, a pé. (informação verbal, SENHOR NATALINO, 2018).
[...]. Eu lembro que meu pai e outras pessoas pegavam o que produziam e levavam
no Livramento [...]. Nós levávamos pra trocar com guaraná, sabão, querosene, e
outras coisas de necessidade. De vez em quando nós recebíamos um dinheirinho,
mas no mais era trocado. Nós levávamos até lenha pra vender, porque antigamente na cidade muita gente cozinhava na lenha. Hoje que todo mundo cozinha no fogão
de gás. Mas a lenha só levava os que tinham carroça, porque a maioria ia ao
Livramento de pé. Levantava ainda com escurinho e se mandava, ia amanhecer no
Livramento. (informação verbal, SENHOR ARNALDO, 2018).
Ou seja, os matacavalenses, optando pelo tipo de vida coletiva, por meio das práticas
do muxirum, produziam para sua subsistência e também para abastecer a cidade de Nossa
64
Senhora do Livramento. Os relatos dos moradores nos permitem constatar que, desde o
século XIX, os matacavalenses haviam se firmado como organização social e como espaço
contestatório na e da sociedade vigente.
Porém, conforme Bandeira (1992), a partir de 1889, a permanência dos
matacavalenses na terra recebida por doação logo foi ameaçada pela Lei n.º 601, de 18 de
setembro de 1850, também conhecida como Lei de Terras. Essa lei dificultava o acesso à
propriedade da terra, aos que embora ocupantes, não possuíssem capital, categoria em que se
encontravam os negros de Mata-Cavalo. A autora (BANDEIRA, 1992) evidencia que o
pensamento escravista concebia o negro, mesmo o liberto, como mão de obra sujeita apenas
ao trabalho compulsório e como inapto a viver de maneira autônoma, compreendendo a terra
como bem exclusivo da elite branca.
Assim sendo, os embates entre os quilombolas e os expropriadores se acirraram. Na
disputa pelo território, vários conflitos emergiram e perduram até os dias atuais. Os
quilombolas enfrentam situações degradantes para poder viver num espaço constituído
historicamente, cheio de memórias, com valor imaterial imensurável para os
matacavalenses, bem como para a história do país.
O Senhor Antônio Mulato, morador mais antigo de Mata-Cavalo, evidencia a
artimanha dos fazendeiros para se apossar das terras:
[...] Aí Manequinho achou que ele não era dono. Prudêncio vendeu um pedacinho
pra ele do Mata-Cavalo. André vendeu um pedacinho pra Manequinho, de terra de
Mata-Cavalo e foi embora. André Velho vendeu por 30 cruzeiros. Trocado com
guaraná e pedacinho de fumo e foi embora. Eh! Manequinho! (informação verbal,
SENHOR ANTONIO MULATO, 2018).
O relato acima nos permite aferir que os fazendeiros iniciaram a adentrar na
comunidade comprando pequenas áreas e, após entrarem no perímetro quilombola, eles
começavam a perseguir os integrantes do Quilombo, para assim dilatarem suas propriedades.
A expropriação territorial violenta das terras de Mata-Cavalo, compreendida entre os
períodos de 1890 a 1950, é evidenciada nos estudos de Castilho (2011). A autora revela,
assim como relatou o Senhor Mulato, que, inicialmente, os fazendeiros principiaram por
comprar pequenas propriedades em Mata-Cavalo, depois encetaram a grilar as terras,
aproveitando-se do fato de os negros não terem suas terras legalizadas como previa a Lei de
Terras na época. Segundo ela, inescrupulosamente, os fazendeiros começaram a dilatar suas
cercas, a impedir que os moradores cultivassem suas roças ou criassem animais e a impedir a
livre circulação dos negros dentro do território quilombola.
65
Conforme Leite (2010), a modernização do estado brasileiro constituído como
modalidades de inclusão hegemônicas e disseminadoras de ordenamentos políticos, com
base em individualismos universalistas, era claramente excludente e violadora de direitos.
Esse tipo de organização política promovia a exclusão de diversos povos da sua condição de
humanidade plena. Segundo ela, o cidadão passou a unidade de referência da agregação
política proveniente do pacto universal que não abrangeu a todos. As leis só se tornaram
acessíveis aos detentores da leitura e da escrita, o que não era o caso dos negros e seus
descendentes recém-saídos da condição de escravizados.
Assim como Bandeira (1992), a Leite (2010) reafirma que a Lei de Terras de 1850,
redigida no evidente contexto de esgarçamento e saturação do sistema escravista, contribuiu
substancialmente para a invisibilidade do povo africano e seus descendentes. Esse
ordenamento jurídico, ao negar a condição de brasileiros aos negros, segregando-os na
categoria de “libertos”, inaugura um dos mais hábeis e sutis mecanismos de expropriação
territorial.
Leite (2010) afirma que, a partir da homologação da Lei de Terras de 1850, diversas
estratégias provenientes de instâncias legais e em forma de direito passam a combinar um
tipo de ‘justiça’ exercida no princípio de uma universalidade que não inclui a todos,
propiciando, assim, a ocorrência de inúmeros mecanismos de legitimação mediante recursos
jurídicos impetrados para garantir “o direito à propriedade”, tais como: expulsões, remoções,
registro de terras devolutas do Estado, ações de divisões sobre inventários de terras deixadas
a ex-escravizados, com cláusula de inalienabilidade, invasões, cercamentos e resgates de
terras por endividamentos, tais como ocorreram em Mata-Cavalo.
O testemunho do Senhor Arnaldo evidencia bem os efeitos provenientes dessa
legislação. Ele revela, com detalhes, a crueldade com que os grileiros avançavam contra os
quilombolas:
[...] os garimpeiros vinham com os pistoleiros e ameaçavam o meu pai, minha
mãe, todos os parentes que moravam aqui. Ameaçavam com revolver, com
espingarda, vinham com trator pra derrubar as casas e acabavam expulsando as
pessoas. Só minha mãe e nós os filhos que aguentamos aqui, os demais uns
venderam, outros foram indo pra cidade, com medo de morrer. Nós ficamos só
num cantinho, porque teve os...os...os grandão tomou posse, nós não teve como brigar, porque para brigar precisa de dinheiro, nós não tinha dinheiro. (informação
verbal, SENHOR ARNALDO, 2018).
Nota-se, pelo relato acima, que eram feitos verdadeiros atos de terrorismo contra os
moradores, com a intenção de amedrontá-los e obrigá-los a ceder, em favor da vontade dos
66
grileiros. Os expropriadores se aproveitavam da humildade e do pouco poder econômico dos
quilombolas e investiam com violências físicas e psicológicas a fim de materializar a sua
ganância.
As violências relatadas pelos quilombolas também demonstram claramente os efeitos
do racismo e da discriminação racial instalados e impregnados no pensamento social,
herdados do período colonial, que impediam os negros de se reconhecerem como sujeitos de
direitos.
Segundo registros da CONAQ (2018), o racismo, enquanto elemento estruturante das
relações de poder, é parte da formação histórica da sociedade brasileira. A formação política
do Brasil tem na sua constituição atos perversos de violência e desumanização, dirigidos
contra os negros, a exemplo da diáspora13 e da escravidão.
Um exemplo de desumanização causado pelo racismo na sociedade livramentense é
esse não reconhecimento do negro enquanto cidadão provido de direitos, que além de criar
no negro o sentimento de inferioridade e subalternização, serviu também como ferramenta
para encorajar os grileiros, com a conivência do Estado, a expropriarem o território dos
quilombolas de Mata-Cavalo.
Registros encontrados no INCRA/MT evidenciam que foi usada contra os moradores
de Mata-Cavalo violência de todas as formas, tais como: falsificação de matrículas de
imóveis, divisão judicial, inventários, usucapião, todos em total desacordo com os Códigos
de Processos Civis e regulamentações do Estado de Mato Grosso em vigor na época,
obrigando, com isso, muitas famílias a abdicar de seu direito de posse, desvelando a visão
colonialista presente nos poderes públicos.
A violência física e simbólica às quais os negros escravizados e seus descendentes
foram, e ainda continuam sendo submetidos no estado de Mato Grosso, evidencia toda a
estrutura que marcou os períodos de construção da história mato-grossense e ainda hoje
repercute sobre a população negra, submetida a um silêncio constrangedor e opressivo. Essa
violência é revelada no relato do Senhor Natalino (2018):
[...] Até poucos anos atrás, aqui até a estrada para nós andarmos era circulado de
pistoleiros. Nós já ficávamos que não podia enxergar mais ninguém, nós tínhamos que desviar. Ficamos sem estrada. Graças a Deus que teve agora essa lei que nós
estamos adquirindo o quilombo de volta outra vez. Aí que nós estamos mais com
uma vida liberto. Mas antigamente era difícil. Tinha que passar debaixo da cerca,
porque o fazendeiro cercou tudo [...] Era um sofrimento incrível. Porque tinha vez
13 A diáspora africana, também conhecida como Diáspora Negra consistiu no fenômeno histórico e
sociocultural que ocorreu muito em função da escravatura, quando indivíduos africanos eram forçosamente
transportados para outros países para trabalharem.
67
que dormia no mato escondido, ia esconder para outros lugares onde não tinha
perseguição. Voltava para dentro de casa igual passarinho arisco, com medo dos
grileiros. (informação verbal, SENHOR NATALINO, 2018).
O Senhor Arnaldo complementa o relatado pelo Senhor Natalino, concluindo:
[...] inclusive o finado Gilberto mesmo já veio aqui para eu vender para ele na
marra, mas eu num, num aceitei a proposta dele. Ele xingou, brigou e foi embora.
Ali no finado Simão, eles iam todo dia perseguir eles, tacavam fogo na roça dele,
matavam porco dele, cercaram até perto da casa dele. (informação verbal,
SENHOR ARNALDO, 2018).
Inescrupulosamente, os fazendeiros se valiam de todos os tipos de artimanhas para
expandir as suas terras: ao impedir que os quilombolas circulassem livremente pelo
território, ao impedir que plantassem, tirando, assim, toda a dignidade do povo
matacavalense, que se tornava refém em seu próprio habitat.
Os moradores de Mata-Cavalo que não resistiram a esses processos violentos de
violação de direitos tiveram destinos diversos: muitos dos quilombolas migraram para as
periferias de Cuiabá, Várzea Grande e Poconé. Outros se dispersaram com suas famílias, na
área rural, trabalhando em fazendas da região. Os moradores relembram que muitas famílias
foram transferidas por políticos da região para um local chamado “Capão de Negro”, que
deu origem ao bairro Cristo Rei (Várzea Grande/MT) e Ribeirão do Lipa (Cuiabá/MT).
Essa migração forçada para bairros periféricos de Cuiabá, Várzea Grande, Poconé e
propriedades rurais da região, sem dúvida, acarretou custos humanos inimagináveis para os
matacavalenses, pois impôs uma desarticulação de seu sistema social, religioso e, sobretudo,
econômico. Os quilombolas passam de uma vida de fartura produzida em seu território para
uma condição de pobreza, desemprego. A desarticulação de vida afetiva e a separação das
famílias que foram dispersas nos espaços causaram danos emocionais difíceis de serem
reparados.
A partir da década de 1980, com a redemocratização e com os debates para a
elaboração da Constituição Federal e as exigências de setores do movimento negro e
quilombola em torno da garantia da legitimação das terras dos remanescentes de Quilombo,
os matacavalenses foram encorajados a retornar para suas terras.
Venham comigo conhecer a emocionante história desse retorno dos matacavalenses
para a terra doada!
68
2.4 A SAGA DOS MATACAVALENSES: O RETORNO
Mesmo com as pressões dos grileiros para expropriar as terras dos quilombolas de
Mata-Cavalo, algumas famílias resistiram e continuaram habitando parte do território
quilombola. Dentre as famílias, que mesmo ameaçadas não deixaram as terras em que
viviam, encontram-se a família de meu bisavô, o Senhor Antônio Benedito da Conceição, na
região da Estiva; a família de Manoel Apolinário da Silva, na comunidade de Mata-Cavalo
de Baixo; os parentes de Vicente Ferreira, na comunidade da Mutuca e alguns familiares
descendentes de Silvério da Silva Tavares - sendo um deles o Senhor Arnaldo, um dos
sujeitos desta pesquisa - na comunidade do Aguaçú de Cima.
Os diversos fatores que contribuíram para a mobilização dos moradores da área,
visando retomar as terras que consideram suas, foram: a memória dos mais velhos detentores
da história da comunidade e as lembranças da vida no território, vistas como uma época de
fartura, de tranquilidade, de solidariedade, bem como as constantes investidas dos
fazendeiros para consolidar a expropriação total das terras do Quilombo.
A aprovação e a divulgação dos Artigos 215 e 216 da Constituição Federal de 1988 e
do artigo 68 do ADCT já apresentados nesta pesquisa, bem como de artigos das
Constituições Estaduais referentes aos direitos quilombolas, também contribuíram para as
populações dos Quilombos intensificarem as lutas por seus direitos. Também foi fator
determinante a descoberta da antiga carta de doação, efetuada por Dona Anna e de vários
documentos de compras de terras na área, documentos esses que não estavam mais em poder
dos matacavalenses, pois haviam sido “perdidos” ou deteriorados.
A soma dessas informações foi importante na luta pela retomada da terra, pois esses
documentos serviram para comprovar que as terras realmente pertenciam aos negros
matacavalenses. Assim, a existência dos preceitos constitucionais chegou ao conhecimento
de algumas lideranças do Quilombo Mata-Cavalo, por meio de ONGs (Organizações Não
Governamentais), pesquisadores e políticos. Dentre as lutas registradas e motivadoras para o
levante dos direitos dos integrantes da comunidade Mata-Cavalo, conta-se que, no início da
década de 1990, um fazendeiro por nome Ideberto, apoiado por pistoleiros, avança
cotidianamente sobre a área do Seu Cesário para retirá-lo de lá, alegando ser o proprietário
daquele espaço.
Cansados das atrocidades cometidas pelo fazendeiro, tais como: ateamento de gado
nas roças, queima de plantas, matança de animais domésticos; o Senhor Cesário, juntamente
com seus filhos, por meio de seu compadre, procuraram o Centro de Direitos Humanos
69
Henrique Trindade14. A partir de então eles tomaram conhecimento dos direitos quilombolas
garantidos na Carta Magna e articularam-se com outros moradores do quilombo e com ex-
moradores que haviam sido expulsos.
O movimento de reocupação do território se deu em 1995, quando o Senhor Cesário
Sarat, quilombola de Mata-Cavalo, com apoio do Movimento Negro do Estado e do Centro
de Direitos Humanos Henrique Trindade, protocola um requerimento junto à Procuradoria
Geral do Estado de Mato Grosso, solicitando um levantamento técnico para instruir
procedimentos que garantam a emissão do título Dominial Definitivo aos matacavalenses,
tendo por base o disposto no Artigo 68 do Ato das Disposições Transitórias da Constituição
Federal/88 e do Artigo 33 do Ato das Disposições Transitórias da Constituição Estadual de
Mato Grosso. No requerimento, o interessado sugere o levantamento geológico da área, a
população local, sua cultura, costumes, forma de sobrevivência e outros itens pertinentes.
No entanto, em outubro do mesmo ano, o pedido do Senhor Cesário foi negado. A
Procuradoria, após analisar o documento, concluiu, por meio de parecer, que não havia
provas que comprovassem a posse das terras por remanescentes de quilombo há mais de 50
anos e não havia indícios de que a solicitação era coletiva, como provia a Constituição
Federal de 88, para emissão do Título de Domínio. O parecer sugeria que, por se tratar de
uma solicitação individual, o autor pleiteasse “usucapião”. Percebe-se que, mais uma vez, a
falta de documento aceito como “legal” impede a volta de parte das terras de Mata-Cavalo
aos seus legítimos donos.
Naquele contexto, segundo Silva (2014, p. 529), “a compreensão sobre as
comunidades quilombolas passava por vários entendimentos e dificuldades, como o conceito
de comunidades quilombolas, que avocava a prova de ocupação do território em 1888, data
da abolição da escravatura”. Concordamos com Leite (2010, p. 21) que “procurar
documentos, neste caso, é distanciar-se do direito dos herdeiros – direito que só pode ser
retirado de linguagem do grupo, pois ele não está registrado em nenhum papel”.
Após a Procuradoria negar o pedido do Senhor Cesário, para iniciar os trabalhos de
levantamento, para regularizar as terras dos Negros de Mata-Cavalo, em 1996, o Senhor
Cesário, juntamente com a Dona Tereza Arruda (minha avó); o Germano, da comunidade
Mutuca; Seu Tomás, do Aguaçú de Cima e Netão, de Mata-Cavalo de Cima, iniciaram o
14 Organização Não Governamental, o Centro de Direitos Humanos Henrique Trindade (CDHHT) foi criado a
partir das articulações do Movimento Popular em Cuiabá/MT nos anos oitenta, como instrumento mobilizador
de luta contra a violação sistemática dos direitos humanos no estado de Mato Grosso.
70
processo de chamamento dos matacavalenses que haviam se dispersado para retornarem ao
Quilombo e juntos reaverem as terras de seus ancestrais.
As famílias que retornaram, em meados dos anos de 1990, se aglomeraram, em
espécies de acampamentos, nas fazendas intrusas no Quilombo. Nesses locais, erguiam suas
casas geralmente utilizando matérias-primas como palha de babaçu, cipó e as madeiras
disponíveis no local. Essas edificações geralmente se localizavam uma ao lado da outra, para
que, juntas, as famílias pudessem estar seguras de possíveis ataques de fazendeiros, que ora
ou outra, com auxílio de jagunços, investiam contra os quilombolas na tentativa de expulsá-
los novamente do território.
Na organização para o retorno dos matacavalenses à terra herdada, eles contaram
com a ajuda de movimentos sociais que subsidiaram a luta com equipamentos, materiais e
apoio intelectual. Um dos movimentos sociais mais ativos foi da Federação dos
Trabalhadores da Agricultura (FETRAGRI). Algumas das famílias ligadas à FETAGRI
permaneceram no Quilombo, especificamente, nas comunidades de Aguaçú e Ribeirão da
Mutuca e, ainda hoje, em 2018, aguardam para serem removidas do território de
Mata-Cavalo, pelo Instituto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), para outras
localidades, visto que não são pertencentes aos troncos familiares do Quilombo, logo, não
possuem direito de usufruto do território.
O primeiro acampamento surgiu em dezembro de 1996, na Comunidade do Aguaçú,
em que os quilombolas que iam chegando de Várzea Grande, Cuiabá e Poconé se
aglutinaram com a intenção de pensar estratégias para retomada da terra herdada. Uma das
táticas adotadas pelos matacavalenses foi a fundação de uma associação para
organizadamente lutarem pelo interesse comunitário, como também atender às exigências
dos órgãos públicos, que observava a necessidade de um aparelhamento de caráter jurídico
como pré-requisito para a titulação da terra.
A associação fundou-se na perspectiva de assegurar direitos de cidadania aos negros
de Mata-Cavalo, garantidos nos preceitos constitucionais. Conforme Castilho (2011), a
partir da fundação da associação, a luta adquiriu um caráter institucional, mas, por outro
lado, segundo a autora, gerou inúmeros conflitos locais, como consequência da
hierarquização das pessoas, no contexto da criação das associações, próprias de toda e
qualquer sociedade.
Em 1997, após uma luta acirrada dos quilombolas, os quais já se encontravam
organizados em associações, juntamente com o Movimento Negro de Mato Grosso, e, em
cumprimento à Carta Magna do país, inicia-se, por parte do Governo do Estado, com a
71
edição da Portaria n.º 148/97 pelo Instituo de Terras de Mato Grosso (INTERMAT), um
estudo sócio-antropológico de Mata-Cavalo, a fim de averiguar se a área pleiteada se
enquadrava na categoria remanescente de Quilombo. O grupo de trabalho foi composto por
técnicos da Secretaria de Estado da Cultura/MT, por integrantes do Grupo de União e
Consciência Negra de Mato Grosso (Grucon), pela Fundação Cultural Palmares e pela
comunidade de Mata-Cavalo. Após visita do grupo de trabalho na comunidade, depois de
inúmeras conversas com os moradores mais antigos do lugar e visitas aos cemitérios, a
comissão concluiu, tendo como referência o conceito utilizado pela Associação Brasileira de
Antropologia (ABA), que se tratava de um quilombo e, portanto, com direito às terras
pleiteadas. Com base nesse parecer, em 23 de abril de 1998, o então Governador do Estado
de Mato Grosso (Dante Martins de Oliveira), por meio do Decreto n.º 2.205, reconheceu a
comunidade de Mata-Cavalo como quilombola. Em 1999, com base no mesmo parecer, a
Fundação Cultural Palmares certificou a comunidade de Mata-Cavalo.
Após o reconhecimento do território de Mata-Cavalo por parte do Estado de Mato
Grosso e pela União, as famílias quilombolas começaram a estender a ocupação pela área,
principalmente, na fazenda Romale, de ‘propriedade’ do Senhor Ideberto Martins, uma das
fazendas intrusas no território de Mata-Cavalo. Segundo relato dos moradores, um
acampamento foi montado no lado direito do córrego de Mata-Cavalo, próximo da Rodovia
MT 060. O acampamento ali montado, conforme memória dos matacavalenses, era parecido
com os povoados dos quilombos da era colonial, descritos por Clóvis Moura (2001), com
casas sendo uma ao lado da outra, feitas de folhas e galhos de árvores, com as plantações
nos arredores. Segundo o Senhor Natalino:
Quando os quilombolas retornaram, eles fizeram barracos um perto do outro, pra
não deixar os fazendeiros derrubar as casas e machucar os pessoal. A noite um
pouco dormia e outros ficavam acordados para vigiar se os pistoleiros não vinham
tacar fogo nos barracos. No começo, quando o pessoal entrou, os fazendeiros
ficaram muito bravos. Queria por que queria tirar o povo. (informação verbal, SENHOR NATALINO, 2018).
Com a ocupação, a reação contrária veio em tentativas de expulsão, como relembra o
Senhor Natalino (2018): “Ideberto pegava o trator, embarcava os pistoleiros, vinha fazia a
picada. Um pouco de pistoleiro na frente fazendo picada, outro pouco por detrás. E dois ou
três ficavam nas casas”. Para conter as investidas do fazendeiro, o Governo do Estado, na
época, por meio do INTERMAT, intermediou o conflito, conforme é relatado pelo Senhor
Natalino:
72
A briga dos fazendeiros era muita, que o governo teve que pagar para o Ideberto deixar o povo ficar. Mas não ficou muito bom, não. Porque nós ficamos
confinados num pedacinho de terra. Um monte de gente num pedacinho de terra.
Como que ia plantar? E a água, ficou muito difícil. Não tinha nem como pegar
palha e madeira para fazer os barracos, porque nós não podíamos sair daquele
pedacinho. Pra plantar então, nem se fala. (informação verbal, SENHOR
NATALINO, 2018).
Essa negociação entre o INTERMAT e o ‘proprietário’ da Fazenda Romale resultou
na criação de um comodato15, que, inicialmente, foi constituído em uma gleba de 10
hectares, passando depois para 30 hectares e, posteriormente, estendendo-se para 360
hectares. Este último abrangia a área entre a margem esquerda do córrego Mata-Cavalo e a
Rodovia MT 060, sentido Cuiabá - Poconé, na comunidade Mata-Cavalo de Baixo e se
estendia até a comunidade Mata-Cavalo de Cima.
No referido comodato, o fazendeiro recebe do Instituto de Terras de Mato Grosso
(INTERMAT) uma quantia referente ao “aluguel” das áreas e os quilombolas,
“beneficiados” pelo acordo, deveriam respeitar as normas previstas no mesmo, entre elas: a
proibição de construção de casas de alvenaria, a abertura de poços de água, o plantio de
culturas perenes e, principalmente, respeitar os limites descritos no acordo quanto a não
ocupação de outras áreas.
A realização do comodato, intermediado pelo Estado de Mato Grosso, nos mostra
que os direitos dos quilombolas, ainda hoje, são tratados da mesma maneira daqueles que,
no período da escravidão, não eram vistos como garantidos em sua integralidade. Tal
medida – do comodato - demonstrou verdadeiramente face controladora e repressiva do
Estado, com suas políticas simbólicas. O mesmo Estado que reconheceu a comunidade
quilombola, por força do Decreto n.º 2.205/1998, é o que retira sua dignidade, quando paga
ao fazendeiro para que os herdeiros da terra possam ter o direito de permanecer no seu
território, sem quase ou nenhuma dignidade.
Durante a vigência do Comodato, as limitações impostas causavam sérios problemas
aos quilombolas, como relatado acima pelo Senhor Natalino, em relação à pouca terra
disponível para o grande número de pessoas residentes no local, perto de 200 famílias: a
precariedade das moradias; a dificuldade no abastecimento de água potável; os
impedimentos para a extração de produtos do campo, cerrado, matas e córregos; os
15 Contrato de empréstimo de gleba de terras.
73
obstáculos para o plantio de lavouras de subsistência e criação de pequenos animais, bem
como a falta de acesso a outras políticas públicas necessárias ao ser humano.
A angústia vivida pela comunidade é desnudada pelo Senhor Natalino:
[...]. Aí chegou um dia, nós enjoados de viver nesse pedacinho, começamos a
tomar conta de outras áreas, porque tinha que roçar para plantar, onde nós
estávamos não dava para todo mundo, então juntamos todo mundo e entramos.
Esperamos os governantes resolver, não fizeram nada. A gente sabia que ia ter
problema com o fazendeiro, mas não tinha outro jeito. (informação verbal,
SENHOR NATALINO, 2018).
Revoltados com a incômoda situação do comodato, que limitava o acesso dos
quilombolas ao território, os matacavalenses, em meados de 1999, decidem rejeitar o acordo
do Comodato por acreditarem que a existência do mesmo protelaria a regulamentação das
terras e iniciam, então, a ocupação de novas porções de terras por todo o território, criando,
assim, uma situação de confronto com os fazendeiros, que começaram a fazer ameaças aos
quilombolas. Da violência privada, passou-se à judicialização, com a promoção, pelos
fazendeiros, de uma enxurrada de ações possessórias e queixas em delegacias, todas com um
pressuposto discursivo que consiste na criminalização com tentativa de conversão de
moradores em estranhos e invasores de seu próprio lugar.
De acordo com Castilho (2008), o INTERMAT considerava, no final dos anos 1990,
a questão fundiária de Mata-Cavalo como um processo muito complexo, pois, no
entendimento do órgão, além de existir de fato um conflito fundiário, havia também um
confronto de competência, travado entre o Estado Federativo e a União na resolução do
litígio.
Segundo a autora, o Instituto entendia que, apesar do artigo 68 do ADCT da
Constituição Federal de 1988 reconhecer a propriedade definitiva aos remanescentes das
comunidades dos quilombos, o processo de regularização dessas terras adquiria maior
complexidade quando o imóvel se localizava dentro dos domínios particulares, sendo esta a
realidade vivenciada pela comunidade Mata-Cavalo.
Conforme Castilho (2008), o Instituto de Terras de Mato Grosso ressaltou que os
juristas, nesse tipo de situação, devem fazer prevalecer o que determina a Constituição
Federal. No entanto, ela ressalta que os próprios juristas problematizam a questão ao apontar
que a Carta Magna não declara a nulidade dos títulos anteriores, colocando, dessa forma, em
confronto a propriedade particular e a dos quilombos, ainda que previstos
74
constitucionalmente. Enquanto prevaleceu o impasse jurídico, os quilombolas padeciam
todo tipo de privação de políticas públicas básicas como habitação, saúde e educação.
Em 2000, ainda com fundamento no art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias da CF/88, no art. 14, inciso IV, alínea c, da Medida Provisória n.º 2.049-20, de
29 de junho de 2000, e na Portaria n.º 447, de 02 de dezembro de 1999, do INTERMAT, a
Fundação Cultural Palmares emitiu, no dia 14 de julho, um Título de Reconhecimento de
Domínio, com plena força e validade de escritura pública, confirmando o domínio dos
matacavalenses, numa área de 11.722 hectares. Esse título foi emitido para a Associação
Quilombola de Mata-Cavalo, criada em 2000, para representar todas as comunidades do
território matacavalense.
A Fundação Cultural Palmares, também em julho de 2000, juntamente com
representantes dos quilombolas de Mata-Cavalo, encaminhou o título de domínio expedido
em favor dos matacavalenses para o Cartório do 1º Oficio de Várzea Grande, instituição
responsável por todos os registros de imóveis do município de Nossa Senhora do
Livramento - localização do Quilombo Mata-Cavalo - para procedimento de registro. No
mesmo dia, o Cartório de Várzea Grande devolveu o documento sem registrá-lo, justificando
que o mesmo não preenchia os requisitos mínimos para sua efetivação. Na nota de recusa, o
cartório também emitiu os trâmites e os documentos necessários para o procedimento do
registro.
Em 2001, foi publicado o Decreto n.º 3.912, que regulamentava as disposições
relativas ao processo administrativo para identificação dos remanescentes das comunidades
dos quilombos, bem como para o reconhecimento, a delimitação, a demarcação, a titulação e
o registro imobiliário das terras por eles ocupadas. Baseada nessa legislação, em 2003, a
Fundação Cultural Palmares e a Advocacia Geral da União apresentaram, novamente, o
título de domínio expedido em favor da comunidade Mata-Cavalo ao Cartório do 1º Oficio
de Várzea Grande, para o devido registro, porém, novamente, ele foi negado pelo cartório,
em face das mesmas alegações feitas anteriormente.
Dentre as alegações efetuadas pelo cartório para o não registro do título de domínio
estavam que o imóvel, objeto do Título de Reconhecimento de Domínio FCP n.º 007/2000,
não estava matriculado ou registrado em nome da parte outorgante, União Federal, nem da
sua delegada para o ato - a Fundação Cultural Palmares; a existência no perímetro de várias
matrículas e registros de imóveis com áreas de dimensões variadas, de propriedade de
terceiros, particulares, entre outros motivos.
75
Se, por um lado, o título reforçou os quilombolas na luta pelo seu direito às terras, por
outro lado, não significou o fim do conflito. Pelo contrário, intensificou ainda mais, uma vez que
o título de domínio em favor dos quilombolas, segundo a Fundação Cultural Palmares, garantia a
posse imediata das terras por parte dos mesmos, ou seja, significava a saída imediata dos não
quilombolas, intrusos no território, agravando os conflitos, pois os fazendeiros reagiram com
medidas judiciais para a retirada dos quilombolas da área, culminando com ações de despejos e
perda total de suas habitações, destruição das roças com tratores, colocação de gado nas roças,
causando a destruição das plantações, fogo nas residências, conforme pôde ser observado por
esta pesquisadora em inúmeros documentos da época.
As pessoas, que já tinham tão pouco, acabaram ficando sem nada, inclusive sem a
sua dignidade, pois muitas tiveram que ser abrigadas por parentes e vizinhos ou acabaram
indo habitar às margens da Rodovia MT 060. Ainda hoje essa realidade permanece, e temos
inúmeras famílias que continuam morando (ou sobrevivendo) em barracos de palhas à beira
da rodovia, à espera da regularização fundiária do território. Vejamos o relato que segue:
Quando Dona Tereza foi pra Brasília buscar o título, nós ficamos feliz demais.
Achamos que já i poder ocupar tudo o que é nosso. Mas passou o tempo e nada. O que aconteceu foi que os fazendeiros ficaram mais com raiva de nós e começaram
a fazer despejos e ameaçar nós. Eu lembro que teve uma vez que teve despejo em
três fazendas de uma vez só. Todos que moravam nesses lugares onde teve os
despejos foram tudo posto pra fora. As casas tudo derrubado. Ficaram sem lugar,
Um pouco veio aqui para área da escola, outros foram pra outros sítios e outros
foram embora pra cidade. Foram esperar resolver na cidade. (informação verbal,
SENHOR NATALINO 2018).
A mescla de discriminação, exclusão e preconceito vivenciada pelos quilombolas se
transforma em desigualdades, ou seja, falta do básico – necessário - para se viver com
dignidade. Abaixo, as figuras 7 e 8 mostram residências de famílias matacavalenses que
moram à beira da Rodovia MT 060, especificamente, no km 25, vítimas de expulsão de suas
terras, provocada por uma liminar judicial que autorizou o despejo dos moradores de uma
área reconhecida oficialmente como área quilombola.
76
Figura 8 - Moradia de quilombola à beira da estrada após despejo
Fonte: Acervo particular da autora.
Figura 9 - Moradia quilombola situada à beira da rodovia após despejo
Fonte: Acervo particular da autora.
Apesar de todas as dificuldades, discriminações e privações, os matacavalenses
continuaram sua luta junto aos órgãos governamentais, em busca do que rege a Constituição
Federal de 1988. Em 2002, eles reivindicaram junto ao Ministério Público Federal, ações em
defesa dos direitos já garantidos pelos quilombolas, haja vista que estavam sendo atacados
constantemente pelos fazendeiros, que continuavam insistindo na expulsão de mais famílias
de outras áreas quilombolas.
Essa reivindicação junto ao Ministério Público culminou em três Ações Civis
Públicas (ACP) ajuizadas na Justiça Federal, no final de 2002 e início de 2003, sob os n.º
2002.36.00.006620-8, 2003.36.00.008934, e 2003.36.00.007491-8, cujo objeto é o
reconhecimento do quilombo e sua titulação, cujo termo de doação da Sesmaria é a pedra
angular para a comprovação da posse histórica dos negros.
77
Essas ações resultaram, ao menos em parte, em ganho para os quilombolas, pois, nas
decisões, os matacavalenses ganharam o direito de permanecerem na posse de todas as três
propriedades envolvidas nas Ações Civis Públicas, com algumas restrições, como: manter
distância de no mínimo 500 metros das sedes das fazendas, conforme se depreende do trecho a
seguir transcrito, constante da decisão nos autos da Ação Civil Pública n.º 2002.36,00.6820, de
16/10/2002, que assim determinou: “o juízo a quo determina que os membros comunidade negra
devessem permanecer no espaço territorial onde vivem tradicionalmente há muitos anos,
preservando-se, no entanto, a sede da Fazenda do que se julga proprietário”.
Em novembro de 2003, o Decreto n.° 3.912/01, que regulamentava quanto às disposições
relativas ao processo administrativo para identificação dos remanescentes das comunidades dos
quilombos e para o reconhecimento, a delimitação, a demarcação, a titulação e o registro
imobiliário das terras por eles ocupadas, é revogado, pois, na referida norma, não se
comtemplava todos os territórios quilombolas, uma vez que só reconhecia aqueles que
estivessem ocupados pelas comunidades, ignorando situações de expropriações, por exemplo,
bem como não previa indenização. No mesmo ano, após reivindicação dos quilombolas, é
publicado o Decreto n.º 4887/03, que dispõe sobre a regulamentação do art. 68 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias da CF/88.
O referido Decreto delega ao INCRA a incumbência de titular as áreas quilombolas,
função que outrora pertencia à Fundação Cultural Palmares. Essa nova legislação reacende a
esperança dos matacavalenses que, incansavelmente, buscam a posse definitiva de suas terras,
para, então, poderem cultivar seus sonhos de dignidade e paz, conforme relata o Senhor
Arnaldo:
Quando entrou o novo governo, parece que as coisas iam melhorar. As pessoas da
associação falaram que já ia resolver. O presidente já assinou. Ficamos muito
felizes, porque não ia mais ter despejo, nem fazendeiro perseguindo. Nós íamos
poder ter o nosso pedacinho de chão como era antigamente. Todo mundo reunido,
todos os negros. (informação verbal, SENHOR ARNALDO, 2018).
Diferente do Decreto anterior, o Decreto n.º 4887/03 é conhecido por efetivamente
regulamentar o procedimento, de competência atribuída ao INCRA, para identificação,
reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelas comunidades
quilombolas. Além disso, esse Decreto é responsável, também, por apresentar a definição de
maior consenso sobre comunidades remanescentes de quilombo – como sendo, de acordo
com seu artigo 2º, “grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória
histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de
78
ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida” (BRASIL,
2013).
Segundo a Fundação Cultural Palmares (2018), no que diz respeito ao processo
conduzido pelo INCRA, a demarcação e posterior titulação dos territórios ocorrem de
acordo com a Instrução Normativa n.º 57/200916, do INCRA, que esmiúça o procedimento
de identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas
por essas mesmas comunidades, após executado um conjunto de estudos que compõe
o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação do território quilombola (RTID), dentre
os quais estão o Relatório Antropológico de caracterização histórica, econômica, ambiental e
sociocultural; o levantamento fundiário; a planta e memorial descritivo do perímetro da área
reivindicada e o cadastramento das famílias.
Tão logo foi publicado o Decreto n.º 4.887/2003, que trata da regulamentação do
artigo 68 do ADCT/CF88, especificando os procedimentos para o reconhecimento e
titulação das terras de quilombo, os matacavalenses se organizaram e rapidamente
protocolaram o primeiro requerimento administrativo junto ao INCRA para tal finalidade. O
processo de demarcação e titulação do território de Mata-Cavalo foi iniciado pelo INCRA
em agosto de 2004, desta vez, envolvendo uma área de 14.700 hectares, e perdura ainda nos
dias atuais.
À medida que o INCRA avança nos procedimentos para regularização fundiária do
território e a legislação nacional e de Mato Grosso vão reconhecendo os direitos territoriais
dos quilombolas de Mata-Cavalo, políticas públicas, tais como: acesso à energia elétrica,
construção de escola, acesso ao crédito produtivo, dentre outros, vão sendo reivindicadas e
acessadas pela comunidade.
Com isso, a onda de violência também aumenta, sobretudo, após a abertura do
processo administrativo de reconhecimento e titulação no INCRA, uma vez que os
proprietários de terras inseridos no perímetro do quilombo também reivindicam a
legitimidade de sua propriedade. Ou seja, de um lado, o requerimento de reconhecimento do
território quilombola e, de outro, as mais diversas manifestações e ajuizamentos de novas
demandas de proprietários reivindicando o que entendem ser de direito.
Nesse período, as tensões vividas no quilombo eram tantas que chamaram a atenção
a nível internacional e, em 15 de agosto de 2004, o Relator Nacional para o Direito Humano
16 Disponível em: http://www.incra.gov.br/institucionall/legislacao--/atos-internos/instrucoes/file/243-
instrucao-normativa-n-57-20102009. Acesso em: out. 2018.
79
ao Meio Ambiente esteve em visita na comunidade de Mata-Cavalo para averiguar o que
acontecia no local. Como fruto das constatações, o relatório certificou que:
Enquanto a situação da área não é resolvida, há famílias inteiras morando em
barracos de palha a poucos metros do asfalto, entre a rodovia e a cerca de
fazendeiros que se apossaram da terra e impedem a entrada dos quilombolas.
Apesar de haver córregos na área cercada, as famílias são obrigadas a fazer um
poço na terra e dali tirar água contaminada para beber e preparar alimentos.
(DHESC Brasil, 2015, p. 22).
Os conflitos vivenciados em Mata-Cavalo, como a expulsão de famílias do quilombo
e a utilização da força policial para realização dos despejos dos quilombolas desnudam o
descaso do poder público com essas populações. Segundo Arroyo (2012), a morosidade da
justiça para reconhecer os direitos dos quilombolas revela que o Estado burocrático tenta
ocultar suas reais intenções sob o véu da benevolência e do paternalismo. Ainda sobre a
omissão do Estado, o autor descreve:
Perante a lei, as defesas da propriedade e da ordem prevalecem, consequentemente
se aprofunda a velha justificativa: não merecem ser reconhecido o seu direito a ter
direitos, porque ao lutarem por territórios e identidades se mostram contra ordem.
Logo, mostram não serem sujeitos de direitos porque ainda primitivos, bárbaros,
violentos, ameaçadores da ordem. Sobretudo irracionais e improdutivos.
(ARROYO, 2012a, p. 283).
Conforme Moreira e Candau (2007), uma vez compreendido como inferiores, fora da
lei, preguiçosos e invasores, também não gozam do completo acesso às políticas públicas
que contribuem para realizar a cidadania. Sobre a situação de morosidade do Estado, frente à
materialização dos direitos quilombolas, Rodrigues Held (2017) desvela:
A situação em que se encontram os quilombolas de Mata-Cavalo permite considerar que mesmo com a estrutura jurídica internacional e interna que
reconhece o direito humano ao território, com a organização do Estado brasileiro
em promover a política pública de reconhecimento e titulação das terras de
quilombo por meio das atividades desenvolvidas pela FCP e INCRA, com a
atuação do MPF nas ACPs e com todas as reivindicações das lideranças de
Mata-Cavalo, o obstáculo de maior significado é o conflito de interesses pela área,
uma vez que dezenas de particulares permanecem em disputa por um território que
é historicamente dos negros. (HELD, 2017, p. 77).
Segundo a supracitada autora, isso se dá porque, mesmo diante do reconhecimento
legal do território reforçado pela Constituição Federal de 1988, o Estado brasileiro não o
efetiva, uma vez que, ao tardar o processo de titulação do Quilombo Mata-Cavalo,
possibilita que conflitos agrários continuem existindo, que os moradores continuem sendo
80
amedrontados e o desenvolvimento econômico, social e cultural seja reprimido, mantendo os
matacavalenses no campo da invisibilidade e vulnerabilidade social.
A violência praticada pelos fazendeiros e posseiros interessados nas terras de
Mata-Cavalo é resultado da estagnação do INCRA e da ingerência que tais interesses
provocam nos processos de tomada de decisão. São 135 anos de expropriações e 25 anos de
espera pela regularização fundiária junto aos poderes públicos.
Convido vocês a virem comigo entender como está a vida dos matacavalenses no
território do Quilombo de Mata-Cavalo atualmente.
2.5 QUILOMBO MATA-CAVALO: ATUALMENTE
De acordo com o Instituto de Colonização e Reforma Agrária, vivem no quilombo
418 famílias (INCRA, 2018), distribuídas nas seis comunidades: Aguaçú, Estiva/Ourinhos,
Mata-Cavalo de Cima, Mata-Cavalo de Baixo, Mutuca, destaca-se que, apesar de a
comunidade Capim Verde também integrar o quilombo, atualmente, não existe nenhuma
família morando naquela localidade. Após a morte do Senhor João Gonçalo, líder daquela
comunidade, as famílias que ali residiam se dispersaram. Ainda de acordo com os
moradores:
Desde quando o INCRA iniciou trabalhar aqui até agora só uma área que foi
regularizada. Assim mesmo uma área pequena de duzentos e poucas hectares.
Assim mesmo porque estava correndo perigo de os quilombolas serem despejados.
Aí o Incra deu jeito e resolveu. As demais continuam do mesmo jeito, quilombola
morando, os fazendeiros também. (informação verbal, SENHOR NATALINO
2018).
Hoje não tem mais lugar quase para fazer roça, porque virou quase tudo pasto, a
terra ficou ruim. Agora de uns tempos para cá que parece que a terra vai voltar
para nós de novo. O povo tá lutando, mas até agora os fazendeiros ainda tão dentro
das terras. Já fomos a várias reuniões no INCRA, mas é só promessa, a terra que é
boa nada. Pra você ver de vez em quando os fazendeiros ainda tão fazendo
despejos nos quilombolas. Final do ano passado mesmo despejou um pouco de
gente. O pessoal perderam tudo, as casas, as plantações, as coisas foram tudo
jogado na beira da estrada. Uma tristeza, né? (informação verbal, SENHOR
ARNALDO, 2018).
As famílias quilombolas relatam, com indignação, que as ações dos policiais federais
envolvidos no cumprimento da ação são muito truculentas e, muitas vezes, impediam as
famílias matacavalenses de retirarem seus pertences, autorizando de imediato a destruição
das moradias. As imagens abaixo evidenciam claramente o que foi dito pelo Senhor
81
Arnaldo. Elas mostram o ocorrido no último despejo que houve na comunidade
Mata-Cavalo, em outubro de 2017.
Figura 10 - Imagem da sala de aula antes do despejo
Fonte: acervo particular da autora, 2017.
Figura 11 - Imagem da sala de aula após o despejo
Fonte: acervo particular da autora, 2017.
Figura 12 - Ao fundo, imagem de uma moradia antes do despejo
Fonte: acervo particular da autora, 2017.
82
Figura 13 - Imagem da casa da foto 12 após o despejo
Fonte: acervo particular da autora, 2017.
Figura 14 - Imagem dos pertences das famílias expulsas jogados na beira da estrada
Fonte: acervo particular da autora, 2017.
Andando nas terras do quilombo hoje, podemos observar que muitas das denúncias
feitas por Castilho (2011) ainda são realidades, pois a comunidade não possui o título
definitivo de suas terras e continuam a sofrer com ameaça de subtração e expropriação de
suas terras, uma vez que, mesmo com o processo de regularização em curso no INCRA,
alguns fazendeiros e posseiros continuam negociando as terras dos matacavalenses sem
nenhuma restrição.
Apesar de, em muitas áreas, os matacavalenses estarem protegidos por liminares
judiciais para permanecerem no local (caso que ocorre na fazenda Romale, Fazenda
Ourinhos, fazenda São Carlos), o medo ainda faz parte do cotidiano de muitas famílias, pois
os fazendeiros e os posseiros ainda continuam sendo os proprietários da documentação
83
oficial da terra. Segundo os moradores, as degradações ambientais da terra salientadas por
Castilho (2011) também continuam acontecendo atualmente. Segundo o Senhor Natalino
(2018) “eles continuam usufruindo as terras dos negros, porque tem fazendeiros, tem
posseiros que estão garimpando, tirando madeira, desmatando. Quando nós formos tomar
posse já está tudo estragado, tudo acabado”.
No território, a vida segue ainda muito precária, pois, apenas uma pequena parte das
famílias conseguiram acessar algumas das políticas públicas disponíveis à comunidade.
Geralmente as famílias beneficiadas são as que já se encontram no seu pedaço de chão,
conforme relatado pelo Senhor Natalino:
[...]. Muita coisa já melhorou. Hoje por exemplo não tem mais muita ameaça de
fazendeiro com pistoleiro. [...]. Hoje temos escola boa, grande. Muitas famílias já
tem seu pedacinho de chão, com casa, com luz elétrica, tem muitos que tem poço artesiano, já criam seus gadinhos. Tem gente que já tem até casa de material. Hoje
as estradas já são livres, não preciso mais andar com medo de pistoleiro nem
passar por debaixo da cerca. (informação verbal, SENHOR NATALINO 2018).
Segundo relato dos matacavalenses, nesses 23 anos passados, desde o início da
incursão dos quilombolas no território, passando pela certificação, até os dias atuais, houve
alguns avanços estruturais e culturais, mudanças significativas na comunidade que
possibilitam a melhoria de vida na comunidade. No entanto, eles alegam que a morosidade
na regularização fundiária e a falta de vontade dos governantes impedem o acesso de todas
as políticas públicas necessárias para garantir uma vida digna no quilombo.
O Quilombo Mata-Cavalo é, portanto, uma comunidade à espera. Espera esta que
acontece em meio a uma rotina de problemas de infraestrutura, como ocorre nos quilombos
em geral. Não há saneamento básico e posto de saúde; a água, geralmente extraída de poços,
é farta, mas não canalizada; muitos moradores, principalmente na época da seca, precisam
fazer longas caminhadas para pegar água nos cinco poços artesianos espalhados no
território; as estradas que cortam a comunidade são de difícil locomoção, por conta das
enormes crateras ocasionadas pelas fortes chuvas e a falta de manutenção; as moradias são
normalmente de madeira e palha e a instalação de energia elétrica ainda não está acessível a
todas as habitações. Abaixo, os tipos de moradias mais comuns no território matacavalense:
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Figura 15 - Imagem de uma casa de alvenaria em Mata-Cavalo
Fonte: acervo particular da autora.
Figura 16 - Imagem de uma casa de telha e paredes de palha em Mata-Cavalo
Fonte: acervo particular da autora.
Figura 17 - Imagem de outra casa de telha com paredes de palha em Mata-Cavalo
Fonte: acervo particular da autora.
Para sobreviverem, os matacavalenses praticam agricultura itinerante, também
denominada de agricultura de queimada ou agricultura de coivara. A produção agrícola
geralmente é destinada ao consumo da unidade produtiva (da família e pequenos animais) e
também ao mercado. Frequentemente, eles plantam arroz, milho, mandioca, feijão (muito
pouco, devido ser bastante atacado por pragas e doenças) verduras (salsa, cebolinha, couve,
coentro), legumes (batata doce, cará, inhame, maxixe, abóboras, quiabo), frutas (melão
85
cuiabano, melancia, banana de fritar, banana-maçã, laranja, maracujá, goiaba, seriguela,
limão, mamão, abacaxi), sendo que parte dessa produção é destinada ao mercado e à
alimentação de animais. As famílias que já estão com seu pedaço de chão definido plantam
em áreas maiores o arroz, o milho, a mandioca, a banana de frita e a cana-de-açúcar.
Muitos dos matacavalenses ainda utilizam, assim como seus ancestrais, a fertilidade
natural do solo, que é cultivado por um período de dois e três anos e depois deixado se
recuperar as qualidades físicas e químicas do solo, sendo uma nova área preparada para ser
utilizada com lavoura, por meio da derrubada do mato, queimada, enleiramento e plantio
entre os tocos.
Por conta do desmatamento feito pelos fazendeiros, em algumas áreas, já está sendo
utilizado o sistema de gradeamento com trator, pois, na área desmatada, não é possível se
plantar sem a intervenção de grades para afofar a terra. A mão de obra utilizada na lavoura é
basicamente familiar e em muxiruns, podendo também haver contratação de mão de obra da
própria comunidade ou comunidades vizinhas.
Atualmente, a maioria das famílias quilombolas residentes no território criam suínos
e aves, que são destinados ao consumo doméstico e, eventualmente, ao mercado. As aves de
modo geral são criadas soltas. Os suínos são criados soltos ou presos em cercados e/ou
chiqueiros (cevas). A criação de bovinos, quando feita, é em pequena quantidade, devido ao
pequeno grau de capitalização das famílias quilombolas e também por causa da não
regularização fundiária de todo o território.
Hoje podemos observar que o trabalho assalariado ou a venda sazonal de mão de
obra são praticados por grande número de famílias matacavalenses, sendo essas atividades
uma importante fonte de recursos, pois a maioria não consegue sobreviver apenas com a
produção agropecuária, que é reduzida devido à baixa fertilidade de grande parte das terras,
bem como por viverem em pequenas áreas pela falta da regularização fundiária do
quilombo. Por esses motivos, as famílias quilombolas têm parte de seus membros residindo
e trabalhando fora custeando a manutenção dos familiares que moram no quilombo e que
participam diariamente da luta pela terra, garantindo desta forma o direito de toda a família
às terras do quilombo. As aposentadorias por idade ou invalidez também têm grande
importância na manutenção das famílias matacavalenses, sendo que, em alguns casos,
representam a única fonte de recursos para a aquisição de produtos destinados ao uso
doméstico e da unidade produtiva.
Mata-Cavalo apresenta uma rica agenda cultural. Algumas festas têm caráter
irreligioso, como as comemorações organizadas pela associação, os aniversários, a Festa da
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Banana, a feira cultural, realizada na escola em comemoração à Consciência Negra, a qual
promove a cultura – especialmente, a gastronomia, a dança e o artesanato – da comunidade.
De acordo com Geertz (2012, p. 9), a cultura consiste em “estruturas de significado
socialmente estabelecidas.”. Já Gomes (2003, p.75) delineia cultura como “vivências
concretas dos sujeitos ou como a variabilidade de formas de conceber o mundo, construídas
pelos seres humanos ao longo do processo histórico e social”.
Nesse contexto, discutir sobre a cultura quilombola significa considerar as lógicas
simbólicas construídas ao longo da história por um grupo sociocultural específico, nesse
caso, os ancestrais dos matacavalenses, oriundos da África e escravizados no Brasil. Para
Gomes (2003, p. 76), “[...] a cultura negra possibilita aos negros a construção de um ‘nós’,
de uma história e de uma identidade”.
Pereira (2017), ancorado em Vasconcelos et al (2010), afirma, contudo, que a cultura
quilombola só pode ser entendida num processo contínuo da troca, na relação com outras
culturas, criação e recriação, mudança, tensão e significação. Segundo o autor, desse modo,
a cultura possibilita a construção de uma identidade coletiva, da religiosidade, da dança, do
trabalho na roça, possibilitando, por meio desses elementos, revelar aspectos pertinentes aos
seus ancestrais.
Os estudos de Pereira (2017) nos possibilitaram compreender que, na comunidade de
Mata-Cavalo, os moradores ainda possuem esses elementos proeminentes relacionados à sua
ancestralidade, como é o caso do laço de parentesco que ali se estabelece. Assim, mesmo os
que não residem no território de Mata-Cavalo retornam, frequentemente, ora para visitar um
ente querido, ora para uma festa ou para um funeral, ora para ajudar nos movimentos na luta
pela terra, ou seja, mesmo os que não habitam têm um sentimento de pertença ao quilombo.
Nessa perspectiva, Geertz (2012) assevera que:
[...] e é sobre este "estar lá" que [...] ocorre a confirmação do indivíduo como parte
do mundo, [...] o mundo da vida cotidiana, sem dúvida em si mesmo um produto
cultural, uma vez que é enquadrado em termos das concepções simbólicas do fato
obstinado passado de geração, à geração, é a cena estabelecida e o objeto dado de
nossas ações. (GEERTZ, 2012, p. 127).
Apesar das transformações, ocorridas, principalmente, pela saída do território, por
conta das expropriações das terras, alguns fatores sociais persistem, tais como, os muxiruns,
o modo de preparar a terra para o plantio, as festas de santo realizadas por muitos
moradores. Conforme Moura (1999), esses momentos festivos permitem à comunidade
recriar e formar sua identidade cultural.
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O calendário festivo de Mata-Cavalo é extenso. Além do glorioso São Benedito,
outras divindades são louvadas pela comunidade, como São Gonçalo, Senhor Divino, Nossa
Senhora Aparecida, São Sebastião, São Pedro, São João e Nossa Senhora da Conceição. São
inúmeras festas de santo, que acontecem de maneira descentralizada entre as famílias
quilombolas, como relata o Senhor Arnaldo:
[...] nós fazemos festas de Santo. Aqui mesmo eu faço a Festa de são Benedito.
Tem a reza, o erguimento de mastro, tem o cururu, a reza e dá o almoço pra quem
vem ajudar a rezar. O almoço é de graça, num paga nada. Tem outros também que fazem as festas aqui, tem a Dona Maria, ali...tem a filha de Tomás que faz a Festa
de Santo Antônio, esses aqui perto, mas no Mata-Cavalo de Cima tem várias
pessoas que fazem festa, tem Nezinho, Tem na Viúva de seu Chico, Na Mutuca
tem as festas, no Mata-Cavalo tem a Estevina filha de Finado Cesário que faz festa
de São Benedito e nas outras comunidades também. Tem festa o ano inteiro. Tudo
com janta, algumas têm o baile, também tem festa que serve o Chá com bolo, aí
tem francisquito, bolo de arroz, sempre tem linguiça encapada, licor, essas coisas,
né. (informação verbal, SENHOR ARNALDO, 2018).
As festas têm um significado muito importante para os negros. Segundo Moura
(1998), os negros escravizados, em suas festas, invocavam o poder dos deuses e dos santos.
Essas invocações, segundo ela, eram uma forma elementar de resistência para manter o
corpo vivo e transformar o terror e a tristeza em força, para sobreviver, para viver, para
resistir. Comparando as festas dos negros na era colonial com as festas realizadas no
Quilombo Mata-Cavalo, o sentido, ainda nos dias atuais, das festas nas comunidades rurais
negras, é uma forma de resistência e marca de sua persistência na luta pelos seus direitos.
Ainda de acordo com Moura (1998, p. 13-14):
A festa é uma trégua indecisa da luta: todos interrompem o confronto direto, o
trabalho, as atividades rotineiras para participar da celebração comum. As pessoas
procuram a transcendência, os pequenos desafios do cotidiano são esquecidos.
Pode-se fazer uma imagem da festa como um caleidoscópio no qual se refletem
vários aspectos da vida social.
[...]
[...] a festa se desenvolve, simultaneamente, em vários planos. Há um rito que
reivindica a sacralidade das origens e que está sendo atualizado. Ao mesmo tempo
há uma negociação do seu significado no presente, face às exigências do cotidiano, que obriga à sua reatualização. São mantidas práticas simbólicas e formas de
sociabilidade densa, ao mesmo tempo em que se disputam e definem funções de
autoridade e hierarquias sociais.
[...]
A festa [...] permite entrever as múltiplas relações que têm lugar numa micro
sociedade e os valores que assim ela explicita: do parentesco ao meio ambiente, do
calendário agrícola ao respeito aos mais velhos, da produção artesanal à história
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dos ancestrais, da liderança feminina ao conhecimento das plantas, das relações de
afetividade aos valores humanos considerados fundamentais. Por esta razão, a
festa, com seus ritos e símbolos, revela os costumes, os comportamentos, os gestos
herdados e aponta ao mesmo tempo para as negociações simbólicas entre essas
comunidades negras e os grupos com os quais interagem [...]. (MOURA, 1998, p.
13-14).
Moura (1998) entende que essas festas religiosas nas comunidades atuam como
formas de transmissão e reafirmação de valores nessas comunidades. Segundo a autora, é
uma maneira de expressão da identidade do grupo e da sua luta pelos valores intrínsecos à
comunidade, reforçando esses valores no interior do território e reafirmando-os para os de
fora. As festas no Quilombo Mata-Cavalo, portanto, reúnem parentes e amigos para
confraternizações, brincadeiras e vivências que podem configurar momentos
importantíssimos de reafirmação da identidade dos matacavalenses, fato este que pode ser
retratado pelas figuras 18 e 19 que seguem.
Figura 18 - Imagem do Cururu em uma festa de santo no Quilombo Mata-Cavalo
Fonte: acervo particular da autora.
Figura 19 - Preparo do Jantar em festa de santo no Quilombo Mata-Cavalo
Fonte: acervo particular da autora.
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Baseando-nos na dinâmica das relações, atualmente, estabelecidas no Quilombo
Mata-Cavalo, podemos dizer que a identidade quilombola dos matacavalenses está em plena
reformulação, o que, segundo Araújo (2008, p. 90), “está sendo construída pela atual
conjuntura social, econômica e política”, marcada pelo processo de reconhecimento da
comunidade como quilombola, que, segundo Hall (2013), só ocorre com luta e resistência.
Silva (2002), comungando do entendimento de Hall (2013), ressalta que o conjunto
dessas manifestações corrobora no que concerne à formação da territorialidade negra dessa
comunidade, pois essas tradições culturais vão se constituir num elemento importante na
definição positiva da identidade negra matacavalenses, propagando a memória africana, suas
crenças, traços e lutas. Segundo o autor, o povo da comunidade, ao tomar posse da cultura
negra, usa isso como pressuposto da transformação de uma cultura resistente em uma cultura
de resistência do grupo, que buscar atingir ambicioso objetivo cultural, social, educacional,
político e econômico, já que prima pela ordem organizacional coletiva.
Diante das narrativas dos anciões, a história aqui descrita nos possibilita inferir que
muitos avanços foram galgados desde o retorno dos matacavalenses para o território até
hoje, entretanto, há ainda muitos entraves que dificultam o acesso a uma melhor qualidade
de vida por parte dos quilombolas de Mata-Cavalo. Dentre eles, está o acesso aos serviços
públicos, tais como: saúde, pavimentação das estradas, saneamento básico, transporte,
segurança, emprego, educação e, principalmente, a regularização fundiária do território.
Ao que tudo indica, a situação fundiária no Mata-Cavalo ainda é uma questão
política sem definição a curto prazo, haja vista que, de acordo com os próprios
matacavalenses, após 14 anos de abertura de processo de regularização fundiária pelo
INCRA, apenas uma área foi regularizada até o momento. Em visita ao INCRA/MT, obtive
a informação no setor responsável pelos serviços vinculados à regularização fundiária de
quilombos que existem processos de várias áreas que se encontram intrusas no perímetro do
quilombo que já estão prontas para serem ajuizadas na justiça, todavia, a falta de recurso
para regularização fundiária no órgão impede o impetramento da ação. Segundo o técnico do
INCRA/MT, para ajuizar as ações na justiça e pedir a emissão de posse da área em favor dos
quilombolas, o INCRA precisa ter disponível o recurso financeiro que o permita realizar tal
ação.
Enquanto isso, os matacavalenses seguem com suas lutas, suas reivindicações junto
aos órgãos públicos, em busca da regularização fundiária das terras herdadas de seus
ancestrais, conforme se verificam nas imagens 20 e 21.
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Figura 20 - Imagem da reunião dos matacavalenses com a equipe da Superintendência do INCRA/MT
Fonte: acervo particular da autora.
Figura 21 - Moradores do Quilombo Mata-Cavalo protestando por seus direitos no centro da cidade de
Cuiabá/MT
Fonte: acervo particular da autora, 2017.
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CAPÍTULO III - A EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA: A HISTÓRIA
DA EDUCAÇÃO DE MATA-CAVALO E SEUS CONTEXTOS
Neste capítulo, objetivo descrever e contextualizar a história da educação no
Quilombo Mata-Cavalo. Inicialmente, retrato a luta histórica dos matacavalenses por
escolarização. Posteriormente, apresento a Escola Estadual Professora Tereza Conceição
Arruda na atualidade, suas condições físicas e estruturais. Para atender a esses objetivos,
dialoguei com Arroyo (2012a; 2012b), Castilho (2011), Freire (2016, 1987, 1992), Carvalho
(2016), e decisões do INEP (2015) dentre outros.
3.1 A LUTA HISTÓRICA DO POVO DE MATA-CAVALO POR ESCOLARIZAÇÃO
As principais ações para as escolas quilombolas passam a constar na legislação em
âmbito federal, a partir de 2004, com a promulgação das Diretrizes Curriculares Nacionais
para Educação das Relações Etnicorraciais e para o Ensino de História e Cultura
Afro-Brasileira e Africana e, no estado de Mato Grosso, a Educação Quilombola é
mencionada oficialmente, em 2006, no Plano Estadual de Educação, convertido na Lei n.º
8.806/2008, porém a luta dos matacavalenses por educação inicia-se na década de 1940,
tendo o Senhor Antônio Mulato, como principal protagonista.
Antônio Mulato, neto de africanos escravizados, analfabeto, habitante rural
quilombola desde o seu nascimento, relatou que os matacavalenses sempre acreditaram que,
por meio da educação, poderiam construir uma história escolar para seus descendentes,
diferente de suas histórias e das histórias de seus pais e de seus avós.
Foram desafiados a desobedecerem e desestabilizarem um sistema colocado há
décadas e consolidado como inalterável, lutaram bravamente, enfrentando muitos
obstáculos, e implantaram a primeira sala de aula na comunidade de Mata-Cavalo na década
de 1940.
Essa sala de aula, segundo relatos do Senhor Mulato, foi implantada na comunidade
quando seus filhos e de outros moradores já estavam em idade escolar e não havia na região
lugar onde pudessem estudar. Realidade que não existia só em Mata-Cavalo, mas em grande
parte da zona rural do estado brasileiro, nos anos 40. Conforme Silva (2014), havia
aglomerados populacionais formados por sítios e fazendas, distribuídos por todo o estado,
92
dentre eles Mata-Cavalo, que não tinham acesso à escola. Para que as crianças dessas
localidades tivessem acesso à escola, um dos fazendeiros, com a ajuda de outros moradores,
construía em sua propriedade uma sala de aula e contratava uma professora.
Especialmente em Mata-Cavalo, Seu Antônio reivindicou junto ao prefeito de Nossa
Senhora do Livramento - na época, o Senhor Emiliano Monteiro da Silva - uma sala de aula
na sua comunidade, para que seus filhos e parentes pudessem estudar, conforme relato
abaixo:
Eu fui à venda de Maneco do Vadô. Emiliano Monteiro chegou lá. Estava
Emiliano e Dona Estevina, a dona da venda. Oi Seu Emiliano! Será possível de o
senhor arrumar uma escola para mim, lá no Mata-Cavalo? A irmã dele tomou
conta dizendo: Oh! Emiliano você é Prefeito! Vamos arrumar escola no sítio.
Vamos arrumar a escola desde hoje. Foi assim (...), ele arrumou um caderno e um
lápis para eu tirar nome das crianças, de pai, de mãe. Aí eu saí e arrumei. Arrumei
trinta e três crianças. (informação verbal, SENHOR ANTÔNIO MULATO, 2018).
Nota-se que o Senhor Antônio Mulato vislumbrava na educação, um meio para se
libertar da situação desumana a que foram submetidos desde o período colonial. Ele era
consciente, como observado por Freire (2016a), que a liberdade não é recebida de doação,
ela é conquistada, por meio de uma busca permanente.
Assim, conquistada a primeira sala de aula na comunidade, vieram outras barreiras
para a sua implantação: a falta de espaço e mão de obra qualificada, ou seja, um lugar com
estrutura onde os estudantes se acomodassem para serem escolarizados, bem como a
disponibilização de um professor que pudesse ministrar as aulas. Inicia-se uma nova batalha,
em busca do sonho de escolarização dos matacavalenses.
O Senhor Antônio relata que caminhou ora a pé, ora a cavalo, percorrendo longas
distâncias, para acessar as casas em busca do espaço para implantar a sala de aula, mas,
devido às precariedades das estruturas das moradias, os matacavalenses não puderam
receber a sala em suas casas, então, ela foi implantada na residência do Manoel Monteiro,
“Manequinho”, que havia adquirido um pedaço de terra no Mata-Cavalo, por meio de
compra, e cedeu um cômodo para que a professora ministrasse as aulas aos quilombolas e
aos filhos dos fazendeiros da região.
A professora destinada a trabalhar no quilombo era oriunda da cidade de Nossa
Senhora do Livramento, situada a 15 km da comunidade. Era branca e tinha estudado até o
quarto ano primário. Essa realidade, presente na maioria das salas de aulas rurais, é
denunciada por Arroyo (2003), quando ele descreve, que não existe escola para o filho das
93
famílias das camadas mais pobres e para os moradores da roça, a não ser, se consideremos
‘escola’ como local de transmissão de saber ordenado, “uma casinha perdida num canto da
roça, no quintal da casa da professora, na sacristia, num galpão” (ARROYO, 2003, p. 40).
Em Mata-Cavalo, segundo relatos do Senhor Antônio Mulato, a sala de aula era um
cômodo, construído com paredes de barrote (madeira coberta com barro), coberta com
palhas de babaçu e o piso de chão batido, medindo, aproximadamente, 4x4 m. As crianças se
sentavam em bancos de madeiras inteiriços.
Não havia mesa para apoiar os materiais, os alunos desenvolviam as atividades com
o caderno no colo. A falta de estrutura adequada para as escolas rurais é evidenciada em
diversos estudos. O trabalho de Silva (2015, p. 532), por exemplo, aponta por meio de fontes
documentais que, “apesar de ter criado inúmeras escolas rurais em 1941, o governo de Mato
Grosso não as provia com estrutura física e pedagógica”. Castilho (2011) também revela que
a existência das escolas-casas e ausência de estruturas básicas nas mesmas não é somente
uma realidade de Mata-Cavalo, mas ocorre em diversas comunidades rurais e nos bairros
mais pobres da zona urbana ainda hoje.
A justificativa para o não provimento das mesmas, segundo Silva (2015), era o fato
de que o ensino nas escolas rurais era considerado sem qualidade e que a dificuldade de
acompanhamento especializado e fiscalização dessas escolas que se localizavam muito
distante das cidades, muitas vezes, sem nenhum acesso aos meios de comunicação, agravava
tal situação. Porém Arroyo (2003, p. 41) salienta que o fracasso não está nas salas de aulas
não serem adaptadas, “mas por estarem tão adaptadas, tão iguais, tão carente e miserável”,
quanto à situação dos estudantes que as frequentam.
Além da falta de estrutura, os matacavalenses também se depararam com outra
barreira na busca da educação formal: o preconceito e a discriminação racial, conforme
relata Seu Antônio Mulato:
[...] Cira [a professora], foi escolher. A escola é para esse, para esse. Você vai
embora. Apolinário meu filho chegou em casa: você brigou lá, que não teve escola para você? Não, não briguei. Uai por que você não estudou. A professora mandou
embora. Montei no cavalo. Cheguei na escola. O que foi que meu filho não tem
escola para ele. (...) eu é que sei, agora vou dar escola para esse monte de criança.
Pegou um papel, botou um papel. Manequinho, ela e eu. Pegou um papel, zaz, zaz,
zaz. É para esse que eu vou dar escola. Nem um preto ela não pôs. (informação
verbal, SENHOR ANTÔNIO DE MULATO, 2018).
A fala do Seu Mulato revela toda aflição sofrida pelo homem negro ao buscar a
escolarização, pois, apesar da iniciativa de implantar a escola tivesse partido da comunidade,
94
por conta do preconceito racial, os filhos dos matacavalenses foram expulsos da escola pela
professora, que carregava consigo a lógica racista da sociedade em que foi socializada
(CASTILHO, 2011).
Entretanto, não nos espanta que tais atitudes discriminatórias acontecessem, pois,
pesquisas realizadas com docentes vêm evidenciando a presença de formação ineficiente e,
quase sempre inexistente, para tratar da educação étnico-racial e, como agravante, o
professor não consegue distanciar da imagem negativa imposta ao negro no período da
escravidão. Novamente, a intervenção de Seu Antônio Mulato, em favor da educação dos
matacavalenses, foi fundamental.
[...]. Eu falei: eu sendo dono da escola, a senhora escarrerea [mandar embora] meu
filho! Hoje mesmo eu vou dar parte para o prefeito, que a senhora está escolhendo.
(...). Não, não. Voltou, reuniu os pretos de novo. É sério”. (informação verbal, SENHOR ANTÔNIO MULATO, 2018).
Atitudes como essa relatada pelo Senhor Mulato, demonstra, segundo Pinto (1987, p.
26), a vontade da aquisição da educação formal pelo povo negro como uma “consciência
racional das qualificações requeridas pela ocupação”, deixando clara a percepção da
importância da educação como ferramenta na ascensão do negro e a pretensão de conquistá-
la para eles e para seus filhos. Castilho (2011) reforça que pesquisas recentes no campo da
educação têm buscado desnudar o discurso do senso comum de que as famílias das classes
mais pobres, como os matacavalenses, não se interessavam pela educação de seus filhos.
Essa primeira sala de aula funcionou por pouco tempo, pois o Senhor Manoel
Monteiro, o “Manequinho”, dono das terras onde a sala de aula funcionava, juntamente com
outros fazendeiros, passaram a perseguir os moradores de Mata-Cavalo, com a intenção de
usurpar os seus territórios, como de fato ocorreu, segundos documentos oficiais que se
encontram no Processo Administrativo em andamento no INCRA de Mato Grosso, para
regularização fundiária do Quilombo Mata-Cavalo. A insensibilidade do Senhor Manoel
Monteiro em relação à educação das crianças matacavalenses é explicado por Freire (2016a,
p. 64), que afirma “que a generosidade do opressor é expressa falsamente e jamais ultrapassa
isso”.
A atitude do fazendeiro em fechar a escola encontra explicação na fala do Senhor
Natalino que revela:
[...] ninguém sabia ler. Aí vinham aqueles grileiros de terras, se eles arrumavam
um local de dez, vinte hectares cercavam trinta, quarenta hectares. Aí os donos das
95
propriedades das terras (os quilombolas) não sabiam ler, iam trabalhar com eles.
Eles (os fazendeiros), como tinham estudos, passavam as turmas de negros para
traz. (informação verbal, SENHOR NATALINO, 2018)
O fechamento da sala de aula de Mata-Cavalo, somado às pressões feitas pelos
fazendeiros locais para expropriar as terras dos negros, fizeram com que dezenas de famílias
deixassem o quilombo, seja para fugir dos ataques, da violência, das condições sociais
precárias, seja visando oportunidades de escolarização para seus filhos e trabalho nos
centros urbanos – principalmente em Cuiabá, Várzea Grande e Poconé.
As poucas famílias que resistiram no quilombo se viram obrigadas a procurar novos
locais para estudar. Nessa busca, segundo o Senhor Antônio Mulato, os moradores de
Mata-Cavalo receberam a visita de uma senhora de São Paulo, que estava percorrendo as
comunidades rurais para implantar o programa denominado de “escolas radiofônicas”,
financiado pelo Governo Federal, voltado à alfabetização de adultos no meio rural.
Segundo Borges (2013), esse projeto, iniciado nos anos de 1950, após as pesquisas
do IBGE da época, demonstraram que 50,6% da população brasileira eram analfabetas, e
contava com a participação da igreja católica, jovens estudantes seminaristas e
universitários, engajados na alfabetização dos povos do campo. Em Mato Grosso, como
descreve Borges (2013), a responsável pela implantação da escola radiofônica era a Rádio
Difusora Bom Jesus de Cuiabá.
Conforme o Sr. Antônio Mulato:
[...] A mulher que veio de São Paulo, aí na cidade, veio com ordem de fazer escola
para o povo do sítio. Ela estava morando lá na Santana (comunidade vizinha).
Veio e falou não tem algum que pode ser professora para dar escola no sitio? [...]
Tem a Tereza de Antônio. [...] amanhã você vai à Difusora lá na cidade. (...) aí, foi
de lá ela já veio com o diploma. [...] já começou no Mata-Cavalo dando escola, daí
ela mudou na Estiva dando escola. (informação verbal, SENHOR ANTONIO
MULATO, 2018).
Podemos observar que, apesar da frustação com a primeira sala de aula, desativada
poucos anos após a sua implantação, a luta pela escolarização não foi abalada. Pelo
contrário, ela foi perseguida com muito mais força. Isso nos leva a concordar com Arroyo
(2003, p. 12) quando descreve que “a história de cada sala de aula, de cada escola que se
abre nas comunidades, nos povoados, é feita com muita luta pelos seus moradores”. Nessa
época, a comunidade já contava inclusive com alguém do seu convívio diário para ministrar
as aulas.
96
Segundo relatos, os moradores, então, se reuniram e já construíram um espaço,
mesmo que precário, para abrigar as aulas. O Senhor Natalino (2018) conta que “a escola era
feita de palha. Antigamente que eu estudava era de palha”.
Conforme Castilho (2011), as famílias matacavalenses, apesar de toda precariedade
da sala de aula e dos instrumentos aos quais a professora tinha acesso para ministrar as
aulas, consideraram a instalação dessa segunda sala de aula no quilombo uma vitória, pois a
ausência de escolas na comunidade representava um sofrimento às famílias, que, muitas
vezes, tinham que enviar seus filhos para a cidade, longe da convivência familiar e, outras
vezes, sendo maltratados pelas famílias que os acolhia.
Conforme o Senhor Antônio Mulato, nesta segunda sala de aula instalada na
comunidade, a filha dele, Tereza Conceição Arruda, passou a ministrar aulas na
comunidade, permanecendo até 1980, período quando passou a dar aulas na cidade de Nossa
Senhora do Livramento.
Com a ida da professora Tereza para a sede do município, em Mata-Cavalo, as aulas
passaram a ser desenvolvida pela filha da Dona Tereza, a professora Armerinda Conceição,
que iniciou o exercício do magistério em 1981, na então Escola Municipal Ponte da Estiva,
uma sala de aula que fora implantada pela Prefeitura Municipal de Nossa Senhora do
Livramento, encerrando a era do projeto da Rádio Difusora.
Conforme relato dos matacavalenses, em 1983, devido ao crescimento da demanda
de crianças para a escolarização, é criada, na comunidade da Ponte da Estiva, outra sala de
aula, denominada Escola Estadual Afonso de Campos Maciel, que tinha como professora,
Lúcia Conceição, também filha da Dona Tereza e neta do Senhor Antônio de Mulato. O
registro do funcionamento dessas duas escolas se encontra nos arquivos da Secretaria
Municipal de Educação de Nossa Senhora do Livramento-MT.
Segundo relatos dos moradores de Mata-Cavalo, as duas escolas, tanto a municipal,
quanto a estadual, funcionavam no mesmo turno, num mesmo espaço, construídas pelos
próprios moradores, com a mesma estrutura: uma sala de pau a pique, com palhas de babaçu
na cobertura e nas paredes, sendo dividido por uma parede, construída com palha que
babaçu, que servia como divisória. De um lado ficava a professora Lúcia com os discentes
do primeiro ano do ensino fundamental e, do outro lado, a professora Armerinda com as
demais turmas, ou seja, o segundo, o terceiro e o quarto ano do ensino fundamental, que
eram as turmas que as salas atendiam. Os móveis, segundo as professoras, eram cadeiras
velhas e bancos improvisados de madeira.
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Além da responsabilidade na construção da sala de aula, as professoras também eram
responsáveis pela limpeza do local e pelo preparo do lanche, quando havia. As matrículas
dos alunos também eram obrigação das professoras.
Essas duas escolas funcionavam na comunidade Ponte da Estiva, uma das
comunidades que compõem o Quilombo Mata-Cavalo, porém elas atendiam estudantes de
todas as demais comunidades do quilombo. Esses estudantes, em sua maioria, caminhavam
muitos quilômetros para chegarem à escola, pois nessa época não contavam com o auxílio
de transporte escolar, como relembra o Senhor Natalino:
[...]. Tinha a escola, só que era longe. Hoje em dia, você vê, aluno tem de tudo.
Escolar, tem ônibus, tem tudo para levar. Antigamente era doze, treze, catorze
quilômetros para chegar na escola. [...]. Nós íamos e voltávamos todos os dias.
(informação verbal, SENHOR NATALINO, 2018).
De acordo com dados do arquivo da Secretaria Municipal de educação de Nossa
Senhora do Livramento, a Escola Municipal Ponte da Estiva funcionou até 1989. A partir de
1990, continuou em funcionamento apenas a Escola Estadual Afonso de Campos Maciel, a
qual terminou suas atividades em 2003.
Para prosseguir a história da educação escolar em Mata-Cavalo é preciso retroceder
ao ano de 1996, período em que houve um forte movimento de reocupação do território
pelos matacavalenses, que, após a Constituição Federal de 1988, para garantir aos
“remanescentes de quilombos” a regularização fundiária de suas terras, começaram a se
organizar, principalmente, entre os que deixaram o território na década de 1940, no intuito
de reaverem as suas terras.
As famílias que retornaram, em meados de 1996, se reuniram numa espécie de
acampamento, numa das fazendas intrusas no quilombo, onde erguiam suas casas
geralmente utilizando matéria-prima como palha de babaçu, cipó e as madeiras disponíveis
no local. As casas se localizavam uma ao lado da outra, para que, juntas, as famílias
pudessem estar seguras de possíveis ataques de fazendeiros, que por vezes arremetiam
contra a comunidade quilombola na tentativa de reaver a posse do território.
Com as famílias organizadas no acampamento, surge, então, a necessidade de
escolarização das crianças, visto que a educação é considerada pelos quilombolas como
fundamental no fortalecimento da luta para conquista do território. Como a escola da
comunidade Estiva ficava distante do local onde as famílias estavam acampadas e não
oferecia condições para acomodar todas as crianças, as lideranças quilombolas
98
reivindicaram junto à Secretaria Municipal de Educação do Município de Nossa Senhora do
Livramento/MT e junto à Secretaria de Educação do Estado de Mato Grosso uma sala de
aula para funcionar no acampamento.
Após muitas reuniões e discussões, a Secretaria Municipal de Educação de
Livramento implanta, em julho de 1996, a sala de aula denominada Escola Municipal São
Benedito (vide figura 1 desta pesquisa). A sala localizava-se na região central do Quilombo
Mata-Cavalo, na comunidade de Mata-Cavalo de Baixo. Inicialmente, ela era uma sala de
pau a pique, coberta com folha de babaçu. Contava apenas com uma professora, oriunda da
comunidade que tinha formação em magistério, e a turma era multisseriada, ou seja,
estudavam crianças de séries diferentes numa mesma turma.
Com o avanço da luta pela conquista do território quilombola cresce também o
número de famílias, que se espalham por todas as comunidades do quilombo, bem como o
número de salas de aula. Após a implantação da sala de aula, em 1996, em Mata-Cavalo de
Baixo, em 1998, a Secretaria Municipal implantou uma sala de aula na comunidade de
Aguaçú de Cima; no ano de 2000, foi implantada uma sala de aula na comunidade de
Mata-Cavalo de Cima e, em 2001, foi implantada uma sala de aula na comunidade da
Mutuca. Todas as salas de aulas implantadas nas comunidades funcionavam com turmas
multisseriadas, em instalações físicas precárias, com a presença de um professor, que, além
do trabalho docente, desempenhava as funções de limpar e preparar a merenda.
A presença de diversas salas de aulas espalhadas no quilombo se explica pela
distância de uma comunidade para outra e pela força política que a escola representa na luta
dos matacavalenses na conquista de seus direitos. Esse ideal dos matacavalenses é
comungado por Silva (2014), quando afirma que a escola é a alusão mais importante e um
dos meios mais significativos para difundir e consolidar novas discussões e perspectivas, a
fim de dar conta da inclusão de homens e mulheres historicamente invisibilizados e
intencionalmente encoberto na historiografia brasileira.
Contudo, essas salas de aulas espalhadas no território continuaram não atendendo
todas as demandas de escolarização da comunidade, pois elas só ofereciam os anos iniciais
do ensino fundamental. As crianças interessadas em cursar os anos posteriores tinham que
deixar a comunidade, pois, só a partir de 2002, os educandos passam a contar com transporte
escolar. Mesmo com a oferta do transporte escolar por parte do órgão público, as
dificuldades para os estudantes eram muitas, pois, como o ônibus não adentrava a
comunidade, os estudantes tinham que acordar muito cedo, andar em média 10 km a pé, ora
99
sobre o sol escaldante, ora debaixo de chuva, até a Rodovia MT 060, para pegar o transporte
que os levava para as escolas da sede do município.
Porém a saída das crianças para estudar em Livramento não era vista com bons olhos
pelos familiares, pois, na cidade, elas sofriam muita discriminação e outras influências
negativas para sua formação. Então, os quilombolas, por meio da associação, passam a
reivindicar uma escola com estrutura melhor na comunidade, onde pudessem ter inclusive o
ensino médio, assegurando que as crianças recebessem formação sem deixar o território.
Após intensa busca junto à Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso/Seduc,
em 2008, é implantada, na comunidade da Mutuca, umas das comunidades do quilombo, a
Escola Estadual Rosa Domingas de Jesus, que foi autorizada pela Seduc/MT a trabalhar com
turmas do ensino fundamental ao ensino médio. Na época, a comunidade Mutuca contava
com uma estrutura física melhor que as outras comunidades, pois, com o auxílio financeiro
de uma ONG, a associação daquela localidade construiu, em 2002, uma escola de alvenaria,
com uma estrutura razoável, com 03 salas de aula, banheiro e cozinha.
A partir da criação da escola Rosa Domingas, em 2008, os estudantes das salas de
aulas existentes nas comunidades passam a estarem reunidos na mesma escola, inclusive os
que saíam para as escolas da sede do município. Com a nucleação da escola, o quilombo
passa a constar, mesmo que de forma muito precária, com o auxílio do transporte escolar
para o deslocamento dos estudantes de suas casas até o local da escola.
Com a Escola Estadual Rosa Domingas, termina-se o ciclo das salas de aula
espalhadas no quilombo, porém antigos problemas existentes naquela realidade continuaram
presentes na nova escola. Uma delas são as turmas multisseriada, uma situação que
incomoda os moradores desde sempre. O incômodo dos matacavalenses em relação às salas
multisseriada é compreensível, pois, conforme observam Cardoso e Jacomeli (2010), essas
salas são historicamente consideradas inferiores, sem perspectivas de melhoria. Daí a luta
dos quilombolas para mudar esse cenário.
A inexistência de biblioteca, sala de professores, refeitório e a falta de formação
adequada de seus professores também são obstáculos a serem vencidos por esse povo que
busca a sua liberdade por meio da educação. Essa realidade é testemunhada no trabalho de
Castilho (2011), a autora evidencia a falta de material pedagógico diversos, como livros,
TV, vídeo, internet, revistas educativas etc.
Castilho (2011) evidencia que a falta desses recursos pedagógicos desestimula a
criatividade dos professores, o que torna o currículo educacional pobre, com conteúdo
desconexo da realidade, num currículo eurocêntrico, influenciado pelo livro didático, único
100
recurso pedagógico o qual têm acesso, reproduzindo o modo de ensino tão criticado por
Freire (2016a, p. 130), denominada como “prática bancária”, apenas transferindo conteúdo.
Mas, numa comunidade que reconhece a escola como espaço importante na construção de
conhecimento, o currículo escolar por ela constituída precisa dar espaço para essas
percepções. Isso significava repensar o conjunto das práticas educacionais.
A comunidade havia tomado consciência de que as mudanças nos rumos de sua
história passavam também pela educação. Mas como fazer o diferente sem formação, sem
informação? Como transformar a educação em ferramenta de luta por dignidade, como
acreditam os bisavós, pais e avós matacavalenses? Concordemos com Arroyo (2003), que
não é possível ensinar para a liberdade, para a participação ativa, para desalienação, com os
mesmos materiais pedagógicos, os mesmos livros, os mesmos métodos pedagógicos com
que ensinaram a ignorância e a subalternização.
Cientes das problemáticas existentes em relação à qualidade da educação que seus
filhos estavam recebendo, os quilombolas de Mata-Cavalo, juntamente com os professores e
as organizações sociais da comunidade, buscam junto às entidades dos movimentos negros e
movimentos quilombolas o apoio para implantar um currículo que não apenas decodificasse
letras e reproduzisse os conteúdos dos livros didáticos, reforçando a ideologia opressora,
mas uma escola cuja prática pedagógica tenha como seu ponto de partida os próprios
quilombolas, sua história, seu modo de vida, pois, parafraseando Freire (2016c), somente
assim, a partir da reflexão da própria realidade, os matacavalenses podem mover-se,
transformar-se, “superando a falsa consciência do mundo” (FREIRE, 2016b, p. 130).
Conforme Silva (2014, p. 24), “é desse lugar, da autodefinição do grupo, que se deve partir
para dialogar com as comunidades quilombolas e interagir com seus processos
organizativos”.
Não restam dúvidas das muitas dificuldades que precisam ser enfrentadas para se
implementar uma proposta de educação que se propõe a romper com questões tão
emblemáticas como as desigualdades raciais, de gênero, autonomia, participação, dicotomia
urbana e rural e emancipação de uma comunidade quilombola (SILVA, 2014).
É fato que o modelo educacional tradicional que, por anos, acompanhou a
escolarização dos matacavalenses permitiu e reforçou o domínio das classes dominantes e,
ainda hoje, funciona como um “sistema de classificação social, política, econômica e
cultural, inseparável de uma classificação étnica, sexual e racial” (ARROYO, 2012a, p.151),
em que, mesmo com o fim do colonialismo, a colonialidade permanece, mantém e
naturaliza, com sua pedagogia abissal, a desigualdade social.
101
Contudo, essa história de dominação e subordinação nunca ocorreu separada das
histórias de lutas e resistências quilombolas que, ainda hoje, segue buscando a romper com a
colonialidade. Nessa busca por reafirmar a pedagogia quilombola, os sujeitos lutam pela
reparação histórica, por políticas afirmativas, por melhores escolas e condições dignas de
vivência para produção de vida (ARROYO, 2012a).
Nesse sentido, a Escola Estadual Professora Tereza Conceição Arruda vem se
tornando como lugar de resistência, e um dos movimentos adotados pelos matacavalenses
foi mobilizar a comunidade quilombola para que todos sejam sujeitos na construção do
Projeto Político Pedagógico (PPP) da escola, valorizando as práticas e as experiências, a
sabedoria dos anciões, os saberes da terra, os saberes aprendidos no trabalho e a
ancestralidade (Parecer CNE/CEB n.º 16/2012, p. 49). Pois o PPP constitui a identidade de
uma escola, dos seus sonhos, de suas expectativas, do seu passado e do seu futuro.
A partir da construção do PPP, considerando os saberes que partem da vida da
própria comunidade, dos problemas por ela enfrentados cotidianamente, o grupo vem unindo
forças e vem encontrando, no dia a dia, caminhos para projetos e ações que contribuam para
superar as pedagogias de dominação.
Um fato que chama atenção e tem contribuído para o projeto de superação da
pedagogia da dominação é o sentimento de pertença dos moradores e de membros da escola
com o Quilombo Mata-Cavalo. Na perspectiva de Oliveira (2005), o território é um espaço
de identidade, que inscreve limites de tudo que expressa noção de pertencimento, ou seja, o
sentimento é a sua base. Isso nos permite afirmar que os processos educativos ocorrem em
todos os espaços, sendo também o território um lugar educativo relacionado com a cultura e
a história de um povo.
Importante ressaltar a importância da socialização e do trabalho pedagógico realizado
na Escola Estadual Professora Tereza Conceição Arruda, a partir de 2012, para a tomada de
consciência dos educandos para o desenvolvimento da pertença, do orgulho de ser negro e
quilombola e, principalmente, para o fortalecimento da luta e resistência dos
matacavalenses. Nesse local, são trabalhadas as histórias de luta vividas pelos ancestrais, de
modo que nas atividades há uma intencionalidade político-pedagógica a fim de provocar a
reflexão sobre a condição de opressão vivenciada pelo grupo.
Os projetos que a escola tem desenvolvido vêm contribuindo com a formação dos
jovens, visto que são voltados para a valorização da cultura, combate ao racismo e
valorização da identidade. Um dos projetos que merece destaque e que é muito aderido pelas
crianças e jovens é o projeto de dança Afro. Esse projeto tem contribuído para a elevação da
102
autoestima dos estudantes matacavalenses, bem como o fortalecimento da cultura
quilombola. As músicas e danças trabalhadas trazem referências culturais ligadas à
ancestralidade e se constitui em uma forma de luta contra a discriminação e o preconceito.
Outro projeto bastante relevante desenvolvido na escola é a Feira de Artes, que
acontece todos os anos no mês de novembro, na Semana da Consciência Negra, com a
apresentação de trabalhos desenvolvidos no decorrer do ano.
Sempre com temática relacionada à questão racial, a Feira de Artes, que tem o
objetivo de valorizar a cultura negra e quilombola, é desenvolvida na escola durante o ano
todo por meio de estudos e pesquisas sobre o tema escolhido e conta com a participação dos
moradores do quilombo.
Além da luta cotidiana para que a Escola Estadual Professora Tereza Conceição
Arruda seja um local que possibilite o aprendizado da cultura e dos saberes quilombolas, os
docentes também lutam para se qualificarem, pois entendem que ocupar esse espaço de
saber e poder, qualitativamente, é mais uma forma de fortalecer a comunidade.
A formação de professores quilombolas tem um peso singular para a materialização
da educação quilombola, prevista nas legislações pertinentes à modalidade e que tanto a
comunidade almeja. Assim, segundo Silva (2012, p.87), a tarefa de formar professores vai
além das questões teóricas e metodológicas e da condução do “saber” e do “conhecimento
válido” – é também formar “intelectuais orgânicos”. E para que isso ocorra, segundo a
autora, “é preciso incorporar o que emerge na sociedade contemporânea em relação à
diversidade brasileira como parte do currículo, e não apenas como uma tarefa das (os)
pesquisadores (as) desses temas”.
Até aqui intentei descrever e contextualizar a história da educação no Quilombo
Mata-Cavalo. Inicialmente, descrevi sobre a luta histórica dos matacavalenses por
escolarização, com a luta do Senhor Antônio Mulato, na década de 1940, até a
materialização da Educação Escolar Quilombola. A seguir, apresento a Escola Estadual
Professora Tereza Conceição Arruda na atualidade, suas condições físicas e estruturais.
3.2 A ESCOLA ESTADUAL PROFA. TEREZA CONCEIÇÃO ARRUDA
A Escola Estadual Professora Tereza Conceição Arruda, lócus desta pesquisa, está
localizada às margens da Rodovia MT 060, Km 25, na comunidade Mata-Cavalo de Baixo e
parece estar se constituindo como centro político, cultural e educacional do território
103
matacavalenses, por conta de promover cotidianamente o encontro de estudantes de todas as
comunidades do quilombo.
Figura 22 - Imagem aérea da Escola Estadual Profa. Tereza Conceição Arruda
Fonte: https://www.google.com.br/maps/place.
A Escola Estadual Professora Tereza Conceição Arruda passou a ser caracterizada
pela Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso – Seduc/MT como Unidade de
Ensino de Educação Escolar Quilombola, no ano de 2011, quando ainda recebia o nome de
Escola Estadual Rosa Domingas de Jesus, que funcionou na sede da Associação da
Comunidade da Mutuca até junho de 2012.
Após a inauguração da nova sede na comunidade Mata-Cavalo de Baixo, inaugurada
em 12 de julho de 2012, pelo Governo do Estado de Mato Grosso e oficializada a partir de
outubro do mesmo ano, por meio do Decreto n.º 1387/12, a escola passa a denominar
Professora Tereza Conceição Arruda, em homenagem a professora Tereza, uma das
precursoras da educação na comunidade.
104
Figura 23 - Imagem da entrada principal da Escola Estadual Professora Tereza Conceição Arruda
Fonte: acervo particular da pesquisadora, 2018.
A professora Tereza Conceição Arruda, patronesse dessa escola e minha avó, nasceu em
28 de novembro de 1937, no Quilombo Mata-Cavalo. Filha de netos de africanos escravizados,
perdeu sua mãe quando tinha apenas cinco anos de idade e, desde muito pequena, teve que lutar
incansavelmente para conseguir um lugar digno na sociedade.
Tereza Conceição foi babá, lavadeira e, com muito esforço e dedicação, se tornou
professora. Na verdade, foi a primeira professora do Quilombo Mata-Cavalo. Iniciou o exercício
do magistério como professora leiga, profissionalizando-se tempos depois. Aposentou-se dando
aulas na sede do município de Nossa Senhora do Livramento. Casada, mãe de doze filhos
biológicos e dois adotivos, sempre incentivou seus filhos a buscar a educação formal, por
acreditar na educação como ferramenta para se libertar das amarras do preconceito e de outros
resquícios impregnados e impostos aos negros decorrentes da escravidão colonial.
Após se aposentar como professora, dedicou sua vida pela causa quilombola, tanto no
que diz respeito à regularização fundiária do território quanto na busca por políticas públicas
para melhoria de vida dos matacavalenses.
Sua principal bandeira de luta em relação às políticas públicas foi pela construção de uma
escola com infraestrutura adequada na comunidade, visto que as escolas que existiam no
quilombo, conforme já descrito anteriormente, eram de estrutura precária de madeira, coberta
com palha de babaçu, onde funcionavam turmas multisseriadas.
105
Tereza Conceição Arruda morreu em 03 de março de 2011, deixando, em construção, a
escola da qual era patronesse. Não teve tempo de ver seu sonho concretizado, mas partiu com a
certeza que seu povo iria ter um lugar digno para estudar.
Sem dúvidas, ela foi uma mulher à frente do seu tempo, que não mediu esforços para
batalhar pelos seus ideais, na busca constante por uma sociedade justa e igualitária. Tereza
partiu, mas deixou seu legado de coragem, persistência e certeza de que o povo negro é capaz.
Sua história é inspiradora, além de ser motivo de orgulho para sua família e para todos nós
matacavalenses.
Atualmente, segundo a equipe gestora, a Escola Estadual Professora Tereza
Conceição Arruda atende 468 estudantes que residem no quilombo, sítios e fazendas
próximas, incluindo nas quinze salas anexas. Essas salas atendem estudantes da Educação de
Jovens e Adultos (EJA), do 1º Segmento do 1º ano do ensino médio e estão localizadas em
sua maioria no Quilombo Mata-Cavalo e, em menor número, em comunidades
circunvizinhas como Tarumã, Pedro Lavrinha e Capão Redondo.
Sobre os aspectos físicos e estruturais, a Escola Estadual Professora Tereza
Conceição Arruda, atualmente, conta com onze salas de aula, equipadas com cadeiras
escolares, quadro de giz, ventiladores de teto e aparelhos de ar condicionado. Das onze salas
de aulas, quatro delas são subdivisões de salas, ou seja, uma sala foi dividida ao meio com
auxílio de divisórias, transformando-se em duas salas.
Adentrando nas salas de aulas, observei que, onde funcionam as turmas de educação
infantil e as séries iniciais, existem muitos cartazes espalhados nas paredes, cuidadosamente
confeccionados para a alfabetização, com o compromisso de uma visão positiva da criança
negra, pois continham neles imagens de crianças de várias cores e raças, com predomínio
das crianças negras. No exterior das salas de aula, também podemos observar a presença de
imagens que trabalham a imagem positiva dos negros e quilombolas. Inclusive, nas paredes
da entrada da escola existem inúmeras pinturas de personalidades negras das comunidades,
feitas pelos próprios estudantes. Essas imagens revelam a conscientização dos docentes de
onde a escola que trabalham está inserida e mostra também que os professores
compreendem que a escola pode estabelecer uma ponte entre os conhecimentos trabalhados
nos livros didáticos e sua relação com as experiências dos educandos.
Continuando a cartografia da escola, aferimos a existência de uma sala destinada à
Direção Escolar; uma sala destinada à Secretaria Escolar e uma sala destinada à
Coordenação Pedagógica. Destacamos que a sala da Coordenação funciona num ambiente
106
que é resultado da subdivisão da Secretaria, efetuada com divisórias, pois a sala
originalmente destinada à Coordenação está sendo utilizada como sala de aula.
Segundo a equipe gestora da escola, essas improvisações foram necessárias porque o
número de salas existentes originalmente não abriga todas as turmas que a escola tem
atualmente. Ainda segundo as gestoras, já foram feitas várias solicitações de ampliação de
salas de aulas junto à Seduc/MT, mas até o momento não obtiveram êxito.
A escola conta também com uma sala ampla destinada aos professores, dois
banheiros, um refeitório, que conta com cadeiras e mesas que são as ideais para refeição,
que, além de servir como local para alimentação dos educandos, também é usado para as
apresentações das atividades práticas desenvolvidas nos projetos da escola.
Figura 24 - Imagem do refeitório da escola abrigando uma atividade extraclasse
Fonte: cedida do acervo da escola.
Não possui cantina, porém contém uma cozinha bem equipada, com dispensa e área
de serviço; além de uma sala destinada ao almoxarifado e dois banheiros para deficientes. A
higiene existe nos dois banheiros grandes, um para meninos e outro para meninas, com
subdivisões, o das meninas ainda possui chuveiro para qualquer necessidade.
Na escola possui, ainda, uma quadra poliesportiva com cobertura, que é usado,
principalmente, para as atividades de Educação Física e também é um local onde as
professoras levam os educandos da educação infantil e das séries iniciais para fazer
recreação, onde, nesse momento, as professoras se aproximam mais das crianças, em uma
relação de afetividade. A quadra esportiva também é usada pela comunidade nos finais de
semana para atividades esportivas, como futebol e voleibol.
Existe também a Casa da Cultura, construída num modelo tradicional da
comunidade, com paredes de pau a pique, cobertas com barro e telhado de palha de babaçu,
107
destinada como laboratório para as aulas das Ciências e Saberes Quilombolas. Na casa da
Cultura, ficam expostos todos os artesanatos produzidos na escola, bem como os acervos
históricos da comunidade.
Figura 25 - Parte do acervo histórico da Casa da Cultura
Fonte: cedida do acervo da escola.
No pátio aberto da escola, existem goiabeiras, cajueiros e mais três árvores, onde,
comumente as crianças conversam, penduram e brincam. Existe uma área do pátio que é
destinada para a horta escolar, onde acontece a maioria das aulas da disciplina de Práticas
Agrícolas Quilombola. A escola é toda murada, sendo a sua área total de um hectare.
As salas de aulas são limpas, algumas são amplas, outras são menores, há carteira
para todos os alunos, há cadeira e mesa para o professor e todas as salas possuem armário
para guardar materiais didáticos. Essas salas menores são resultantes da subdivisão de sala
com divisória, contudo, devido a subdivisão, todo o som feito numa sala é ouvido na outra,
dificultando a concentração dos estudantes. Na sala da turma do sétimo ano matutino, por
exemplo, os estudantes são acomodados um muito perto do outro e ainda tendo que conviver
com todos os ruídos da sala ao lado. Todas as salas possuem ventiladores e
ares-condicionados, porém nem todos os ventiladores e aparelhos de ar-condicionado
estavam funcionando no período de observação, o que deixava algumas salas muito quentes,
principalmente, no período vespertino.
A escola não possui laboratório de informática, a sala originariamente construída
para abrigar o laboratório funciona como sala de aula. A escola não possui biblioteca, possui
apenas um espaço na sala de professores onde são guardados, em armários, muitos livros
108
didáticos e também paradidáticos, que alunos e professores usam para fazer pesquisa. Em
nenhuma disciplina, segundo relatos da equipe gestora, o livro didático é suficiente para
atender a todos os estudantes, sendo o giz branco e a lousa praticamente as únicas
ferramentas de trabalho que os professores possuem.
A escola funciona em dois turnos: matutino e vespertino. No período matutino, a
escola atende nove turmas distribuídas entre ensino fundamental (sete turmas) e a educação
infantil (duas turmas). As duas turmas da educação infantil são de responsabilidade
financeira da Secretaria Municipal de Educação de Nossa Senhora do Livramento/MT,
sendo a Escola Estadual Professora Tereza Conceição Arruda apenas a cedente do prédio
para funcionamento das turmas. As outras sete turmas do ensino fundamental do turno
matutino estão organizadas da seguinte forma: uma turma do 1º ano, uma turma do 2º ano,
uma turma do 3º ano, uma turma do 4º ano, uma turma do 5º ano, uma turma do 6º ano e
uma turma do 7º ano.
No período vespertino, a escola atende nove turmas distribuídas entre o ensino
fundamental, ensino médio e a Educação de Jovens e Adultos. As turmas do fundamental
estão organizadas da seguinte maneira: uma turma do 8º ano e uma turma do 9º ano. O
ensino médio está assim organizado: uma turma do 1º ano, uma turma do 2º ano e uma
turma do 3º ano. A Educação de Jovens e adultos possui turmas do ensino fundamental e do
ensino médio. As turmas da EJA fundamental estão dispostas da seguinte forma: uma turma
do 2º segmento 1º ano e uma turma do 2º segmento 2º ano. As turmas da EJA ensino médio
estão organizadas da seguinte maneira: uma turma do 1º ano e uma turma do 2º ano. O total
de discentes atendidos na sede nos dois períodos soma 243.
A Escola possui 15 salas anexas que funcionam em comunidades no Quilombo
Mata-Cavalo e também nas comunidades circunvizinhas. Nessas salas anexas são atendidas
turmas do ensino fundamental EJA. Nas salas anexas possuem, no ensino fundamental: uma
turma do 1º segmento 1º ano, oito turmas do 1º segmento 2º ano, quatro turmas do 2º
segmento 1º ano e duas turmas do 2º segmento 2º ano. As aulas nas salas anexas acontecem
no período vespertino. O total de estudantes atendidos nas salas anexas soma um total de
225.
109
Figura 26 - Imagem do interior de uma das salas anexas que funciona no quilombo
Fonte: acervo cedido pela escola.
O quadro de servidores que atuam na Escola Estadual Professora Tereza Conceição
Arruda é formado por 46 pessoas. Desse total, 34 integram o corpo docente, sendo que
dezoito atuam na escola-sede e quinze atuam nas salas de aulas anexas. Os demais
integrantes estão divididos entre um diretor; uma coordenadora, dois técnicos
administrativos e oito apoios administrativos educacionais. Convém ressaltar que, desse total
de servidores, apenas nove professores e uma auxiliar de manutenção de limpeza não são
quilombolas, os demais todos são quilombolas de Mata-Cavalo.
De acordo com o perfil dos servidores quilombolas, fica evidenciado que a
contratação de servidores dessa escola está atendendo a contento o que preconiza as
Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Escolar Quilombola, quando assevera, por
meio da Resolução n.º 08 de 20 de novembro de 2012:
Art. 8: [...] IV - presença preferencial de professores e gestores quilombolas nas
escolas quilombolas e nas escolas que recebem estudantes oriundos de territórios quilombolas;
[...]
Art. 39. § 2º A gestão das escolas quilombolas deverá ser realizada,
preferencialmente, por quilombolas [...].
[...]
Art. 48 A Educação Escolar Quilombola deverá ser conduzida, preferencialmente,
por professores pertencentes às comunidades quilombolas. (BRASIL, 2012).
O fato de a maioria dos professores serem da comunidade evita a rotatividade desses
profissionais. Isso é um aspecto muito positivo para o desenvolvimento de projetos
110
pedagógicos e outras atividades escolares, desde que os profissionais se comprometam com
a instituição e com a comunidade escolar.
A maioria dos professores está lotada com 30 horas aulas, sendo dez delas destinadas
à hora atividade. As horas atividades são realizadas na própria escola no horário em que o
professor não se encontra em sala.
Todos os professores que atuam na Escola Estadual Professora Tereza Conceição
Arruda possuem especialização na sua área de formação já concluída. Esses dados são
significativos e denotam expressivos avanços em termos de formação inicial e continuada de
professores em territórios quilombolas, pois, segundo Arroyo (2003), a formação de
professores, especialmente, para aqueles que atuam nas escolas rurais, em sua maioria, tem
se apresentando de forma insuficiente e deficiente. Ainda conforme o autor, os professores
rurais, geralmente, são membros da própria comunidade e, assim como os demais
moradores, enfrentam diversas barreiras que os impedem de dar continuidade aos estudos e
reunir meios e condições para ofertar um trabalho mais qualificado.
Dos 34 professores que atuam na escola, apenas quatro são efetivos da rede estadual
de ensino, os demais são todos contratados temporariamente. Segundo as informações do
IPEA (2015), de acordo com os dados do Censo escolar 2013, pode-se constatar que pouco
mais de 50% dos docentes que atuam em escolas quilombolas possuem vínculo efetivo, os
demais mantêm contratos temporários com o poder público. Ainda segundo o IPEA (2015),
os contratos de trabalho precário da rede pública têm sido considerados como um dos
problemas mais agravantes do sistema educacional do Brasil, visto que os profissionais
contratados temporariamente recebem menos; possuem pouca segurança jurídica como
empregados, além do fato de serem desvinculados das redes em qualquer tempo, sem aviso
prévio.
Essa não é uma realidade apenas da Escola Estadual Professora Tereza Conceição
Arruda ou das escolas quilombolas, conforme Carvalho (2016), essa é uma realidade que
alcança muitos profissionais da educação em todo o estado de Mato Grosso. A vida do
profissional contratado é desumana, segundo Carvalho (2016), essa insegurança,
instabilidade, competitividade, provoca, inclusive, discórdias pela disputa da vaga. Por essas
e outras situações, é que se explica as lutas dos movimentos quilombolas pela realização de
concursos públicos específicos para profissionais quilombolas na educação.
Ante a apresentação, a informação aqui descrita nos possibilita enxergar que muitos
avanços foram galgados no campo da Educação Escolar Quilombola. Percebe-se que muitas
mudanças positivas ocorreram desde o início da escolarização na comunidade de
111
Mata-Cavalo, porém, os moradores se deparam com muitas barreiras que, ainda, precisam
ser vencidas para se alcançar uma escolarização de boa qualidade. Dentre eles, os que
tangem aos aspectos físicos, pois carece de muitas melhorias nas estruturas governamentais
responsáveis pela educação, para que, de fato, a legislação para educação quilombola se
realize no chão das escolas, com projetos pedagógicos e formativos propícios à
especificidade quilombola, cabendo-nos ainda ressaltar, a necessidade urgente de melhorias
no transporte escolar.
112
CAPÍTULO IV – POLÍTICAS PÚBLICAS E A EDUCAÇÃO ESCOLAR
QUILOMBOLA NO CONTEXTO ESCOLAR
Neste capítulo, intenciono retratar as Políticas Públicas para a Educação Escolar
Quilombola. Para tanto, início a discussão das especificidades quanto à Educação Escolar
Quilombola. Posteriormente, apresento diálogos viáveis voltados ao campo do currículo na
perspectiva crítica, expondo elementos inspiradores de reflexões sobre os processos de
exclusão e silenciamentos que permeiam o acesso à educação no Brasil e, em específico, nos
quilombos. Sucessivamente, trago contribuições teóricas alusivas às categorizações dos
saberes docentes, integrantes da base desta pesquisa. Também será tecida breve discussão
sobre a formação de professores e práticas pedagógicas.
4.1 POLÍTICAS PÚBLICAS PARA EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA
Organizadas a partir da resistência e reação à escravidão, as comunidades
quilombolas lutam pelos seus direitos e para manter vivas suas manifestações culturais, seus
saberes tradicionais que resistem de geração em geração. Características essas que fazem
parte de um conjunto de observações a serem feitas na construção de uma política
educacional, falando a partir de um quilombo, que, segundo Nunes (2001):
É na lógica de relação de coletivo, de concepção de escrita para além de uma
formação letrada, porque se fala de um lugar – o quilombo – para além de um
espaço físico, que aqui nos subscrevemos para refletir sobre a educação e as
relações raciais, tendo em vista crianças, adolescentes e jovens pertencentes às
comunidades de quilombos. (NUNES, 2001, p. 39).
Porém, conforme Carvalho (2016), a educação realizada nos territórios quilombolas
esteve, por muitos anos, abarcada nas políticas da Educação Rural, sem nenhuma política
pública que considerasse as suas especificidades.
Todavia, a pressão do movimento do negro e do movimento quilombola modificou
essa propositura e potencializou a conquista de um espaço próprio para essa modalidade de
ensino. Segundo o IPEA (2015), ainda que a educação nos quilombos estivesse diluída na
educação rural, inclusive comungando com alguns princípios e questões em comum, há
113
elementos distintos que diferenciam a Educação Escolar Quilombola da educação rural, tais
como: os direitos étnicos que envolvem a memória, ancestralidade e a territorialidade.
Conforme Carvalho (2016, p. 85), as mobilizações tecidas no bojo dos movimentos
quilombolas e do movimento negro fizeram com que “fosse delineado um movimento de
discussões sobre mudanças no modelo de ensino para as escolas das comunidades
quilombolas”.
Conforme Moura (2011), a busca por uma educação diferenciada se faz presente nas
reivindicações dos movimentos quilombolas desde a Marcha de Zumbi dos Palmares contra
o racismo, pela cidadania e pela vida, ocorrida em 1995, no 1º Encontro Nacional
Quilombola, realizado em Brasília. A educação que respeitasse as diferenças dessas
comunidades também estava posta no Plano Nacional de Implementação das Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais, aprovado em 2009
(IPEA, 2015).
Assim, conforme Carvalho (2016):
[...] os movimentos sociais assumem o papel fundamental de fomentar lembrança
aos esquecimentos e tornar audíveis os silenciamentos, a que as comunidades
quilombolas foram submetidas, provocando a implantação de legislações
educacionais específicas que atendessem às suas necessidades. (CARVALHO,
2016, p. 87).
O IPEA (2015) destaca que o marco de inclusão da temática da diversidade na
educação foi a Conferência Nacional de Educação em 2010 (CONAE 2010). Assim, ao
definir as modalidades da educação básica, reconhece a Educação Escolar Quilombola como
uma das modalidades educacionais, conforme supracitada no artigo 41:
Seção VII
Art. 41. A Educação Escolar Quilombola é desenvolvida em unidades
educacionais inscritas em suas terras e cultura, requerendo pedagogia própria em
respeito à especificidade étnico-cultural de cada comunidade e formação específica
de seu quadro docente, observados os princípios constitucionais, a base nacional
comum e os princípios que orientam a Educação Básica brasileira. Parágrafo único. Na estruturação e no funcionamento das escolas quilombolas, bem como
nas demais, deve ser reconhecida e valorizada a diversidade cultural. (Seção VII,
Resolução nº 4, CEB/CNE, 2010).
De acordo com Carvalho (2016), os movimentos sociais a partir de suas ações,
motivaram a promulgação de legislações, especialmente importante para a educação das
relações étnico-raciais, no geral, e particularmente para a educação quilombola, quais sejam:
114
[...] alteração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação nº 9.394, de 1996, com a
inserção dos artigos 26-A e 79-B, referidos na Lei nº 10.639, de 2003;
promulgação do Decreto Nº. 4.887, no ano de 2004, do Presidente Luiz Inácio
Lula da Silva, que regulamentou os procedimentos para titulação das terras
ocupadas pelas comunidades quilombolas, de que trata o artigo 68 do ADCT;
promulgação da Resolução CNE/CP nº 1/2004, que define Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de
História e Cultura Afro-brasileira e Africana. (CARVALHO, 2016, p. 86).
No ano de 2010, também foi publicada a Resolução n.º 4/2010, do Conselho
Nacional de Educação, que definiu as DCNs (Diretrizes Curriculares Nacionais) para a
educação básica, incluindo a Educação Escolar Quilombola como uma de suas modalidades.
A partir daí, verifica-se o aumento de debate sobre o tema, com a realização de seminários
nacionais e regionais, que culminou com a criação, no âmbito do CNE, de uma comissão
responsável pela elaboração das DCNs para a Educação Escolar Quilombola, com a
participação de representantes dos quilombos.
Das muitas lutas tecidas pelo movimento negro e quilombola, surge a Resolução n.º
08 do CNE, homologada em 20 de novembro de 2012, que estabelece as Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola na Educação Básica. Segundo
Carvalho (2016), as Diretrizes curriculares são consideradas um dos marcos de luta do
movimento, por consolidar a Educação Escolar Quilombola como uma modalidade de
ensino. Essa legislação vem para difundir e consolidar as novas abordagens e perspectivas a
fim de dar conta da inclusão de negros e quilombolas, de seus saberes e fazeres, desses
sujeitos historicamente invisibilizados e intencionalmente ocultados na historiografia
brasileira no campo da educação escolar.
É a Educação Escolar Quilombola que aponta as questões pioneiras para se pensar a
educação específica para o povo dos quilombos, até então não vista de forma clara. O artigo
1º das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola, no seu § 1º,
estabelece que:
[...] a educação escolar Quilombola na educação básica: organiza precipuamente o
ensino ministrado nas instituições educacionais fundamentando-se, informando-se
e alimentando-se: a) da memória coletiva; b) das línguas reminiscentes; c) dos
marcos civilizatório; d) das práticas culturais; e) das tecnologias e formas de produção do trabalho; f) dos acervos e repertórios orais; g) dos festejos, usos,
tradições e demais elementos que conformam o patrimônio cultural das
comunidades quilombolas de todo o país; h) da territorialidade. (BRASIL, 2012).
Conforme França e Lima (2015, p. 62), “estes princípios são referências
indispensáveis para construção de uma educação que precisa edificar-se a partir do
115
compromisso de emancipação dos sujeitos”. Esta autonomia, segundo os autores, “somente
se efetua satisfatoriamente se o conhecimento e o reconhecimento da história e cultura de
seus ancestrais converterem-se em currículo escolar cotidiana e plenamente” (p. 62).
A Educação Escolar Quilombola, conforme Brasil (2012, p. 3), “deve estar presente
na educação básica em todas as suas etapas (educação infantil, ensino fundamental, ensino
médio) e modalidades (educação especial, educação profissional técnica de nível médio,
educação de jovens e adultos)”.
A referida legislação visa orientar os sistemas de ensino para implementação de uma
educação que considere a realidade das comunidades quilombolas, suas histórias, sua origem
e sua realidade atual, em conjunto com seus sujeitos. A aplicabilidade destas diretrizes não
se restringe apenas às escolas situadas em territórios quilombolas, mas compreende também
os estabelecimentos de ensino que atendem alunos oriundos dos quilombos (BRASIL,
2012).
Com um texto bastante minucioso, as Diretrizes Curriculares no art. 2º estabelecem:
Cabe à União, aos Estados, aos Municípios e aos sistemas de ensino garantir: I) apoio técnico-pedagógico aos estudantes, professores e gestores em atuação nas
escolas quilombolas; II) recursos didáticos, pedagógicos, tecnológicos, culturais e
literários que atendam às especificidades das comunidades quilombolas; c) a
construção de propostas de Educação Escolar Quilombola contextualizadas.
(BRASIL, 2012).
As referidas diretrizes, ao estabelecerem responsabilidades para União, estados e
municípios, buscam orientar o sistema de ensino para garantia da oferta da Educação Escolar
Quilombola de forma articulada federativamente. Ressalta, ainda, a necessária atenção para
as práticas socioculturais, políticas e econômicas das comunidades quilombolas, sua forma
de produção de conhecimento e instam os estabelecimentos de ensino a promover uma
gestão escolar que considere a participação das comunidades e de suas lideranças.
Importante destacar, entre outros aspectos, que a produção de material didático e de
apoio pedagógico deve ser adequada às histórias e tradições das comunidades e a oferta de
programa de alimentação escolar deve respeitar os hábitos alimentares, de preferência com
apoio de profissionais das próprias comunidades.
Conforme Carvalho (2016), o Censo Escolar realizado pelo INEP, em parceria com
as Secretarias Estaduais e Municipais de Educação, a partir de 2004, passou a incluir nas
suas estatísticas itens de diferenciação e identificação das escolas quilombolas, como
número de alunos e professores localizados em territórios de quilombos. Segundo a autora,
116
essa iniciativa do INEP proporcionou à sociedade brasileira o conhecimento da quantidade
de escolas e sujeitos atuantes nessas comunidades, que até pouco tempo eram
desconhecidas, bem como apresenta o número de escolas e estudantes existentes nos
quilombos.
Desde 2004, quando ocorreu o primeiro Censo com identificação das escolas
quilombolas, o número de estabelecimentos de ensino nesses territórios vem crescendo a
cada novo Censo, passando de um número de 364 estabelecimentos de ensino da educação
básica, em 2004, para 2369 escolas quilombolas, em 2016. Deste total, 2.355 são públicas e
quatorze privadas.
Das privadas, seis são rurais e oito são urbanas. Das públicas, uma é federal, 118 são
estaduais e 2.236 são municipais (INEP, 2016). Ainda segundo dados do Censo 2016,
atualmente o número de estudantes matriculados nas escolas quilombolas totalizam 241.925.
Destacamos, ainda, segundo o Censo de 2016, a existência de 714 creches espalhadas pelos
quilombos em todo o Brasil. Desse número de creches, 703 são municipais e onze são
privadas.
Mato Grosso, conforme já relatado, contabiliza dezoito escolas quilombolas,
distribuídas em seis município do estado: Barra do Bugres, Nossa Senhora do Livramento,
Poconé, Porto Estrela, Santo Antônio do Leverger e Vila Bela da Santíssima Trindade,
sendo que cinco são estaduais e treze são municipais. Estão matriculados, nessas escolas,
7.834 alunos (SEDUC, 2015).
Os dados acima demonstram o crescimento de número de escolas e de matrículas
significativo nos territórios quilombolas em todo o Brasil. Esse contexto nos permite
compreender a importância de discutir a educação quilombola e fomentar ações para que
ocorra de fato uma educação de qualidade.
No que tange a legislação para educação quilombola no Mato Grosso, a Resolução
n.º 002/2016 do Conselho Estadual de Educação de Mato Grosso (CEE/MT) que dispõe
sobre a Normatização da Educação Escolar Quilombola, nos estabelecimentos de ensino da
educação básica no estado, reconhece a Educação Escolar Quilombola como modalidade. A
referida resolução é um avanço, pois ratifica a Normativa n.º 002/2015/CEE-MT, que não
reconhecia a Educação Escolar Quilombola como modalidade da educação básica, antes,
classificava-a como uma especificidade, o que Carvalho (2016) considerou como um
retrocesso, pois, segundo ela, Mato Grosso sempre foi protagonista na busca da construção
de uma educação diferenciada para o povo quilombola.
117
Ferreira (2015) também descreve sobre o pioneirismo mato-grossense na discussão e
implantação de Políticas Públicas educacionais para Quilombolas. Segundo ela, em 2007, a
Seduc/MT, a partir da realização do Seminário sobre Educação Escolar nos territórios
quilombola, realizado no município de Poconé, marca-se a criação da modalidade de ensino
no estado. Nesse seminário, os quilombolas presentes apresentaram as necessidades e os
aspectos fundamentais específicos para educação nos quilombos.
Em 2008, é criada na Seduc/MT uma Gerência de Diversidade e de Meio Ambiente,
para atender à diversidade racial, incluindo a Educação Quilombola e as questões sobre o
Meio Ambiente. Em 2009, a diversidade é desmembrada do Meio Ambiente e passa a se
chamar Gerência de Educação de Relações Étnicas Raciais, incluindo, no seu bojo de
discussões, a Educação Quilombola, Educação em Direitos Humanos, Educação e Gênero e
Diversidade Sexual.
Em 2010, a Seduc/MT publica as Orientações Curriculares para Educação Étnico-
Racial de Mato Grosso, em que, entre outros assuntos tratados, aparece a Educação Escolar
Quilombola com orientação para implantação e efetivação do currículo específico nos
territórios quilombolas, bem como em escolas que atendam alunos oriundos de quilombos.
A partir do Decreto de Criação n.º 2378/10, as escolas estaduais existentes nos territórios
quilombolas passam a ser formalmente escolas quilombolas.
Devido às pressões dos movimentos sociais, por conta da Normativa n.º
002/2015/CEE-MT, que em nada contribuía para a consolidação da Educação Escolar
Quilombola, o Estado de Mato Grosso, por meio do Conselho Estadual de Educação-
CEE/MT, durante o segundo semestre do ano de 2015, realizou Audiências Públicas nas
comunidades quilombolas, dentre elas, o Quilombo Mata-Cavalo, para discutir e elaborar
um novo documento para normatizar a Educação Escolar Quilombola no Estado de Mato
Grosso, o que culminou com a edição da Resolução n.º 002/2016 do CEE/MT.
A partir da referida Resolução e de acordo com o seu artigo 5º, as práticas e ações
pedagógicas da Educação Escolar Quilombola de Mato Grosso passam a ser regidas pelos
seguintes princípios:
I- Direito à igualdade, liberdade, diversidade e pluralidade;
II- Direito à educação pública, gratuita e de qualidade;
III- Respeito e reconhecimento da história e da cultura afro-brasileira, quilombola
como elemento estruturante do processo civilizatório nacional; IV- Proteção das
manifestações da cultura afro-brasileira;
V- Valorização da identidade étnico-racial;
VI- Promoção do bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, credo,
idade e quaisquer outras formas de discriminação;
118
VII- Garantida dos direitos humanos, sociais, econômicos, sociais, culturais,
ambientais e do controle social das comunidades quilombolas;
VIII- Reconhecimento dos quilombos como povos ou comunidades tradicionais;
IX- Conhecimento dos processos históricos de luta pela regularização dos
territórios tradicionais dos povos quilombolas;
X- Direito ao etnodesenvolvimento entendido como modelo de desenvolvimento
alternativo que considera a participação das comunidades, as suas tradições locais,
o seu ponto de vista ecológico, a sustentabilidade e as suas formas de produção do
trabalho e de vida;
XI- Superação do racismo – institucional, ambiental, alimentar, entre outros – e a eliminação de toda e qualquer forma de preconceito e discriminação racial; XII-
Respeito à diversidade religiosa, ambiental e sexual;
XIII- Superação de toda e qualquer prática de sexismo, machismo, homofobia,
lesbofobia e transfobia;
XIV- Reconhecimento e respeito da história dos quilombos, dos espaços e dos
tempos nos quais as crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos quilombolas
aprendem e se educam;
XV- Direito dos estudantes, dos profissionais da educação e da comunidade de se
apropriarem dos conhecimentos tradicionais e das formas de produção das
comunidades quilombolas de modo a contribuir para o seu reconhecimento,
valorização e continuidade; XVI- Trabalho como principio educativo das ações didático-pedagógicas da
escola;
XVII- Valorização das ações de cooperação e de solidariedade presente nas
histórias das comunidades quilombolas a fim de contribuir para o fortalecimento
das redes de colaboração solidaria por elas construídas;
XVIII- Reconhecimento do lugar social, cultural, politico, econômico, educativo e
ecológico ocupado pelas mulheres no processo histórico de organização das
comunidades quilombolas e construção das práticas educativas que visem à
superação de todas as formas de violência racial e de gênero;
XIX- Construções de escolas públicas em territórios quilombolas, por parte do
poder público sem prejuízo da ação de ONG e outras instituições comunitárias; XX- Adequação da estrutura física das escolas ao contexto quilombola,
considerando ambientais, econômicos e socioeducacionais de cada Quilombo.
XXI- Garantia de condições de acessibilidade nas escolas;
XXII- Presença preferencial de professores e gestores quilombolas nas escolas
quilombolas e nas escolas que recebem estudantes oriundos de territórios
quilombolas. (CEE/MT, 2016).
A Resolução CEE/MT n.º 002/2016 traz avanços importantes para a educação
quilombola, como: a) a transformação da Educação Escolar Quilombola em modalidade; b)
o incentivo para o trabalho com a metodologia do etnodesenvolvimento e c) na questão da
formação específica para professores que atuam nas escolas quilombolas de Mato Grosso.
Também reforça pontos importantes já constantes na Resolução CNE n.º 08/2012 do
Governo Federal, como: a) a garantia do transporte escolar; b) alimentação; c) calendário e
d) construções de escolas, dentre outros, que levem em consideração o contexto de cada
quilombo.
Apesar de avanços importantíssimos conquistados com as legislações vigentes que
tratam sobre a Educação Escolar Quilombola, tanto na esfera federal, quanto no estado de
Mato Grosso, Carvalho (2016) aponta para a necessidade de outras questões a serem
abordadas, tais como: a) as que se referem à valorização dos profissionais da educação
119
quilombola; b) concurso específico para escolas quilombolas e c) graduação e pós-
graduação específica para os profissionais quilombolas. São questões que ainda seguem nas
pautas de reivindicações do movimento quilombola de Mato Grosso.
Ressalvamos, todavia, que, desde 2016, o Programa de Pós-Graduação em Educação
da Universidade Federal de Mato Grosso, por meio de três grupos de Pesquisa GEPEQ
(Grupo de Estudos e pesquisas em Educação Quilombola), GEPEA (Grupo de Estudos e
Pesquisas em Educação Ambiental) e o NEPRE (Núcleo de Estudos e Pesquisa em Relações
Raciais), oferece cotas para quilombolas no mestrado. Importante mencionar que, nesse
mesmo ano, foi aprovado cotas para estudantes de graduação em diferentes cursos na
UFMT, com disponibilidade de 100 vagas, distribuídas em todos os cursos. Tais políticas
são consideradas avanços, no entanto, ainda necessitam ser ampliadas.
Sobre a importância do concurso específico para docentes, salientamos que essas
reivindicações são legítimas e pertinentes, visto que geralmente os profissionais das escolas
quilombolas são, em sua maioria, contratados. Facilmente são substituídos por profissionais
efetivos que, em muitos casos, não conhecem as especificidades quilombolas previstas na
legislação para educação quilombola.
Um exemplo do desrespeito à legislação quilombola aconteceu no momento em que
eu estava na Escola Estadual Professora Tereza Conceição Arruda, coletando dados para a
pesquisa. De repente, chegaram à referida escola dois professores, segundo informação da
gestão da escola, efetivos, enviados pela Assessoria Pedagógica de Nossa Senhora do
Livramento para integrar o quadro docente da instituição de ensino. Segundo a equipe
gestora da escola, os professores não são quilombolas e não apresentaram nenhuma
formação específica em educação quilombola.
A equipe gestora da escola, os educadores e as lideranças, imediatamente, se
dirigiram à Secretaria de Educação do Estado de Mato Grosso (Seduc/MT), onde, segundo
eles, se reuniram com a equipe de Gestão de Pessoas do órgão e, embasados nas legislações
estaduais e federais que preconiza sobre Educação Escolar Quilombola, cobraram
explicações e providências.
Os matacavalenses explicaram que tal atitude fere as leis pertinentes à Educação
Escolar Quilombola, pois a escola possui, em seu quadro, profissionais habilitados e com
formação em Educação Escolar Quilombola nas disciplinas pleiteadas.
Eles alegam que a substituição dos professores da comunidade acarretaria prejuízos
ao currículo escolar específico que vem sendo construído, no qual estão sendo trabalhados a
valorização e o fortalecimento da identidade quilombola, o sentimento de pertença, as
120
histórias dos quilombos, que, há muito tempo, estiveram silenciadas na escola por conta de
um currículo eurocêntrico praticado por profissionais alheios a essas comunidades.
Essa realidade pode ser evidenciada por Silva (2014, p. 30-31) quando descreve:
[...] professores (as) vinham da cidade para ensinar no quilombo sem que esse
ensino tivesse qualquer relação com os que ali viviam;
[...]
[...] assim como o olhar sobre os modos de vida e produção das comunidades
quilombolas, os saberes tradicionais não estão presentes em suas falas e práticas
pedagógicas. Quando aparecem, só confirmam a estranheza, descaso e
desconhecimento que se tem para/com esses sujeitos e suas realidades.
[...]
[...] esse ensino pouco refletia sobre a vida de seus moradores, sua identidade, sua
cultura etc.
[...]
[...] sendo assim, o que se pode esperar, na prática, desse profissional da educação
frente à educação quilombola? (SILVA, 2014, p. 30-31).
Os matacavalenses comungam com Silva (2014), quando a autora diz que:
Na formação inicial, apesar da existência de comunidades quilombolas na região,
[...] pouco se fala e se conhece acerca das dinâmicas e dos processos educativos e
organizativos das comunidades quilombolas. Tampouco se usam referenciais
teóricos na formação, principalmente nas licenciaturas, que discutam a história de
luta e organização dos quilombolas no Brasil. Isso faz com que os professores (as)
se formem sem conhecer essa parte da história do Brasil guardada nos
quilombolas. (SILVA, 2014, p. 31).
Apesar da legislação federal e da legislação do Estado de Mato Grosso para
Educação Escolar Quilombola garantirem que “preferencialmente” professores oriundos das
comunidades quilombolas possam atuar nas escolas presentes nos territórios, podemos
observar que, apesar dessa garantia legal, na prática, ela não vem sendo respeitada.
Diante do exposto, concordamos com Silva (2014), quando afirma que o fato de as
questões quilombolas não estarem inseridas nas políticas educacionais não decorrem,
obviamente, da ausência de legislação e, sim, da sua aplicabilidade na prática, estando,
portanto, as instituições instadas a desenvolverem as ações previstas na lei e, com isso,
garantir a mudança no pensamento da educação no Brasil.
Em relação ao episódio acontecido na escola de Mata-Cavalo, citado anteriormente,
após muita luta por parte dos matacavalenses, que, inclusive, ameaçaram denunciar o fato ao
121
Ministério Público Federal, alegando que o mesmo estado que deveria garantir as
especificidades quilombolas é o que contribui para o afastamento dos profissionais
quilombolas das escolas desses territórios, surtiu resultados positivos, pois a reivindicação
da comunidade para a permanência dos professores quilombolas na escola foi atendida.
Porém fica a questão: o que falta que o previsto na legislação pertinente à Educação Escolar
Quilombola se torne realidade no chão das escolas quilombolas?
Neste tópico, discorremos sobre as políticas públicas para Educação Escolar
Quilombola e os desafios para sua efetivação no chão das escolas. Diante do exposto,
podemos afirmar que, em termos de legislação, já houve avanços significativos, o que ainda
se faz presente nas escolas são as ausências de ações políticas por parte dos federativos que
possam garantir o que preconiza a lei. No tópico seguinte, dissertaremos sobre algumas
definições de currículo escolar.
4.2 CURRÍCULOS: ALGUNS CONCEITOS
Conforme Oliveira (2017, p. 150), ao pensarmos em currículo, “devemos entendê-lo
como os caminhos percorridos pela escola; portanto, tal dimensão suscita reflexões cada vez
mais frequentes em estudos acadêmicos, na formação de professores e propriamente na
escola”.
Para Moreira e Candau (2007), à palavra currículo se unem diferentes concepções,
que originam dos diversos modos de como a educação é concebida historicamente, assim
como das influências teóricas que a afetam e se fazem preponderantes em um dado
momento.
Segundo as autoras, diferentes fatores socioeconômicos, políticos e culturais
contribuem, assim, para que currículo venha a ser entendido como:
(a) os conteúdos a serem ensinados e aprendidos; (b) as experiências de
aprendizagem escolares a serem vividas pelos alunos; (c) os planos pedagógicos
elaborados por professores, escolas e sistemas educacionais; (d) os objetivos a
serem alcançados por meio do processo de ensino; (e) os processos de avaliação que terminam por influir nos conteúdos e nos procedimentos selecionados nos
diferentes graus da escolarização. (MOREIRA; CANDAU, 2007, p. 18).
Então, conforme as autoras, podemos entender o currículo como as experiências
escolares que se desdobram em torno do conhecimento, em meio às relações sociais e que
122
contribuem para a construção das identidades dos educandos, associando-se, assim, ao
conjunto de esforços pedagógicos desenvolvidos com intenções educativas.
Concordamos com Arroyo (2011) de que o currículo é um território em disputa, uma
arena política, apresentando-se como um espaço em que se encontra em jogo determinada
visão de mundo, criação e produção cultural, ou seja, representa múltiplas relações de poder.
Silva (1999) comunga com o pensamento de Arroyo (2011), quando ressalta que é
impossível pensar um currículo no simples viés de conceitos técnicos de como ensinar. O
conhecimento corporificado no currículo é um espaço de poder e, dessa forma:
O currículo é lugar, espaço, território. O currículo é relação de poder. O currículo é
trajetória, viagem, percurso. O currículo é autobiografia, nossa vida, curriculum
vitae: no currículo se forja nossa identidade. O currículo é texto, discurso,
documento. O currículo é documento de identidade. (SILVA, 1999, p. 150).
O currículo contribui para moldar quem somos, para formar nossas identidades.
Entretanto, se o currículo não é pensado e discutido pelas pessoas que compõem a
comunidade escolar, ele se sujeita a formar identidades que não correspondem aos anseios
da comunidade a quem serve (MOREIRA; SILVA, 2002).
Concordamos com Silva (1999), que entende que, resumidamente, a questão
fundamental em relação ao currículo é: “o que” ensinar? O autor afirma que “o
conhecimento que constituí o currículo está inextricavelmente, centralmente, vitalmente,
envolvido naquilo que somos, naquilo que nos tornamos: na nossa identidade, na nossa
subjetividade” (SILVA, 1999, p. 15).
É sabido que, ao longo da nossa vida, o domínio-negação do conhecimento agiu e
ainda age como demarcação, marginalização e negação da diversidade de coletivos sociais,
étnicos, raciais, de gênero, dos que habitam o campo e as periferias. A esse respeito, Arroyo
(2013) alerta que, aos grupos considerados historicamente subalternos, como é o caso das
comunidades quilombolas:
Não apenas foi negado e dificultado seu acesso ao conhecimento produzido, mas
foram despojados de seus conhecimentos, culturas, modos de pensar-se e de pensar
o mundo e a história. Foram decretados inexistentes, à margem da história
intelectual e cultural da humanidade. Logo seus saberes, culturas, modos de pensar
não foram incorporados no dito conhecimento socialmente produzido e acumulado
que as diretrizes curriculares legitimam como núcleo comum. (ARROYO, 2013, p. 15).
Essa negação da história dos grupos considerados historicamente como inferiores
tem provocado desigualdades, principalmente, entre os negros e repercutido em todos os
123
espaços da sociedade, de maneira especial, nos espaços escolares. Assim, tem relevância
particular e deve ser tratada em todas as fases de aprendizagem de uma pessoa.
Segundo a análise de Castilho (2011):
Ao examinar o currículo em suas proposições e intenções, bem como sua
materialização no espaço escolar, verifica-se que ele também instaura
silenciamentos, negações e exclusões. Isso pode ser evidenciado pelas dificuldades
que o negro, historicamente, tem enfrentado no processo de inserção no sistema
escolar. Como escravizado foi proibido por lei; como liberto pela Lei do Ventre
Livre ou, como alforriado, também não lhe foi permitido o acesso pleno à
escolarização. Contemporaneamente, é permitido a ele o acesso, mas nem sempre
lhe são oferecidas condições de permanência. (CASTILHO, 2011, p. 163).
Os estudos de Castilho (2011) nos revelam que os currículos escolares não foram
pensados levando em consideração os estudantes negros, pelo contrário, eles foram
construídos para formar mentalidades cristãs, burguesas, brancas e, preferencialmente,
masculinas. Segundo Silva (2011), em decorrência disso, na perspectiva crítica, um
currículo necessita considerar a diferença, a identidade em sua dimensão histórica e política,
assim como deve discutir as várias facetas do racismo, institucionais, históricas e
discursivas.
Moraes (2018) ressalta a necessidade de o currículo considerar também a história dos
quilombos como copartícipes da história nacional brasileira, reafirmando a contribuição
histórica, econômica e cultural. Pois, conforme Canen (2006), se as práticas educativas não
levarem em conta a necessidade de trabalhar com toda a realidade cultural contextualizada
dos alunos, dificilmente terá impacto positivo na construção de um novo olhar, livre das
amarras eurocêntricas.
Conforme Arroyo (2007), as análises sobre o currículo estão cada vez mais comuns
no chão das escolas, na formação dos docentes e nas pesquisas acadêmicas, isto é,
questionamentos sobre o conceito de currículo, tais como: para que ele serve? A quem ele se
destina? Como ele é posto em prática? São questões assíduas, atualmente, nas discussões,
nos grupos de estudo, nas formações. Perguntas que, outrora, não eram ao menos pensadas,
passam, agora, a ser o centro das discussões.
Nesse sentido, partindo do pressuposto de que não é qualquer escola que atenderá
aos interesses dos quilombolas, concordamos com Arroyo (2003, p. 15) quando indaga:
“Que escola será realmente um serviço aos interesses de classe dessas camadas? Como ir
construindo essa escola tornando-a possível? [...]. Que práticas privilegiar?”.
124
As questões levantadas sobre currículo pelos autores nos levam a indagar sobre: o
que ensinar nas escolas quilombolas, visto que a existência das comunidades quilombolas,
no Brasil, sempre foi marcada por processos de violações de direitos sociais e humanos?
As Diretrizes para a Educação Escolar Quilombola (2012) determinam como eixos
norteadores do currículo:
os conteúdos gerais sobre a educação, política educacional, gestão, currículo e
avaliação; b) os fundamentos históricos, sociológicos, sociolinguísticos,
antropológicos, políticos, econômicos, filosóficos e artísticos da educação; c) o estudo das metodologias e dos processos de ensino-aprendizagem; d) os conteúdos
curriculares da base nacional comum; e) o estudo do trabalho como princípio
educativo; f) o estudo da memória, da ancestralidade, da oralidade, da
corporeidade, da estética e do etnodesenvolvimento, entendidos como
conhecimentos e parte da cosmovisão produzidos pelos quilombolas ao longo do
seu processo histórico, político, econômico e sociocultural; g) a realização de
estágio curricular em articulação com a realidade da Educação Escolar
Quilombola; h) as demais questões de ordem sociocultural, artística e pedagógica
da sociedade e da educação brasileira de acordo com a proposta curricular da
instituição. (BRASIL, 2012, p. 17).
Silva (2014) ressalta que, para elaborar uma proposta curricular para Educação
Escolar Quilombola, primeiramente, se faz necessário observar as suas especificidades, que
por si só sugerem uma construção que envolva a participação dos quilombolas, a localização
das comunidades, conhecer um pouco mais como vivem, quais são suas manifestações
culturais, as crenças locais, as alternativas de sobrevivência, a medicina alternativa, os
arranjos produtivos, as manifestações religiosas e/ou outras expressões próprias de cada
comunidade, seus modelos de organizações e como essas populações gostariam de ser
retratadas.
Silva (2014) destaca, ainda, a necessidade de compreender o contexto que vivem
essas populações, sendo esse, talvez, o primeiro passo para pensar um currículo que,
minimamente, atenda às perspectivas das comunidades quilombolas. Segundo a autora:
Não basta uma tentativa de transmissão ou uma interpretação desconectada da
realidade das comunidades quilombolas se fazerem presente no currículo. É
preciso saber como os quilombos entendem-se, afirmam-se, reconhecem-se e
como e se autorreconhecem. Só o envolvimento desses sujeitos como agentes ativos de suas histórias poderá fazer desse processo um momento de aprendizagem
coletiva. (SILVA, 2014, p. 76).
Como podemos observar, é imprescindível que a história das comunidades, inclusive,
suas lutas pela garantia e permanência em seus territórios e os seus cuidados com o meio
ambiente façam parte do currículo escolar, colaborando para despertar nos jovens, nas
125
crianças e nos adultos o sentimento de pertencimento e orgulho de suas histórias e da
história de seus antepassados e, dessa maneira, contribuir para a formação de uma identidade
positiva dos quilombolas.
No que se refere ao currículo para atender aos preceitos da Educação Escolar
Quilombola, defendida por Silva (2014), a Resolução n.º 002/2016, do Conselho Estadual de
Educação de Mato Grosso, preconiza que a organização curricular da Educação Escolar
Quilombola deve-se pautar em ações e práticas políticas-pedagógicas que visem o
conhecimento das especificidades dos estudantes dessas comunidades quanto à sua história e
à sua organização.
Conforme a referida resolução, a realidade histórica, regional, sociocultural,
econômica e política das comunidades quilombolas deve estar presente na construção do
Projeto Político Pedagógico (PPP), possibilitando, assim, a construção de espaços
pedagógicos que propiciem aos educandos o conhecimento de suas origens, bem como a
valorização e o fortalecimento da sua identidade.
Portanto, a elaboração do Projeto Político Pedagógico (PPP) na escola quilombola,
além de ser uma ação política e envolver todos os sujeitos de forma participativa, deve
apresentar uma proposta que esteja ancorada em conceitos que problematizem o racismo, os
conflitos com a terra, a importância do território, trabalho, cultura, memória e oralidade, de
forma a combater o racismo e o preconceito ainda muito presentes no imaginário coletivo
(BRASIL, 2012).
Portanto, pensar o currículo a partir dessa perspectiva e dos novos significados,
requer pensar propostas de educação, que, além de respeitar e valorizar a contribuição desta
população na formação da sociedade brasileira, deve também observar os elementos
constitutivos deste universo social, para que, assim, possam efetuar uma abordagem
diferenciada do conhecimento (SILVA, 2012).
Dessa forma, segundo Castilho (2011), o papel da Educação Escolar Quilombola é
mediar o saber escolar com os saberes locais, advindo da ancestralidade que formou a
cultura do segmento negro no Brasil. Assim, a educação será utilizada como instrumento de
defesa perante os ataques caracterizados pelo racismo, preconceito racial e discriminação
social, dos quais as comunidades sempre foram alvo (BRASIL, 2012).
Moraes (2018) reforça que é na saliência dessas discussões, de combater o currículo
hegemônico, eurocêntrico, que os ideais da escola quilombola se firmam e afirmam,
buscando construir práticas pedagógicas que considerem os conhecimentos e vivências em
contextos concretos, mergulhados em dinâmicas sociais reais, políticas e culturais.
126
4.3 PRÁTICAS PEDAGÓGICAS E A EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA
A prática é conceituada por Sacristán (1999, p. 73) como a cultura acumulada sobre
as ações. Desse modo, é ao mesmo tempo fonte das ações e nutre-se delas: “A prática é a
cristalização coletiva da experiência histórica das ações, é o resultado da consolidação de
padrões de ação sedimentados em tradições e formas visíveis de desenvolver a atividade”.
Assim, a prática proporciona as ações e também recebe interferências destas, sendo a prática
institucionalizada com o habitus.
A partir da definição de prática de modo geral, ancoramo-nos em Sacristán (1999)
para definir a prática educativa como algo a mais que a expressão do ofício dos professores,
como uma cultura compartilhada pelos profissionais da educação. De acordo com o referido
autor, a gênese da prática educativa está em outras práticas capazes de interagir com o
sistema escolar, mantendo relação com os demais âmbitos da sociedade, por exemplo, o
econômico e o político.
Sacristán (1999) apresenta-nos, ainda, o conceito de prática pedagógica como aquela
que acontece nas salas de aula e não pode ser tomada de modo isolado ou em uma
perspectiva de prática cultural autônoma.
A partir dos estudos de Veiga (1992, p. 16), podemos entender que prática
pedagógica é “... uma prática social orientada por objetivos, finalidades e conhecimentos, e
inserida no contexto da prática social. A prática pedagógica é uma extensão da prática
social”.
Franco (2012), corroborando com as ideias de Veiga (1992), afirma que a prática
pedagógica se caracteriza como atividade social e sistemática que articula os saberes
pedagógicos, visando à transformação dos educandos e dos contextos onde se realiza.
Segundo o autor, no contexto escolar, a prática pedagógica do professor pode conduzir os
educandos a processos de emancipação, formando cidadãos autônomos, reflexivos,
conscientes, devido ao seu caráter político e intencional.
Ainda segundo Franco (2012), a estruturação da prática pedagógica do professor está
em constante processo de diálogo entre o que se faz e como deve se fazer. Ou seja, está em
contínua construção e desconstrução em busca de novos caminhos e possibilidades. O autor
reforça que o exercício de análise da própria prática permite que o professor visualize o seu
trabalho em uma dimensão mais ampla e reflexiva. A reflexão crítica pautada no
conhecimento científico possibilita a emancipação do professor perante as atividades
127
desenvolvidas e o trabalho mecânico cede espaço para a razão, a consciência das condições
da docência e a capacidade de transformações.
Conforme Castilho (2011), os ideais da escola quilombola, no intuito de combater
um currículo eurocêntrico, devem se afirmar buscando construir práticas pedagógicas que
considerem os conhecimentos e vivências em contextos concretos, imersos em dinâmicas
sociais, políticas e culturais dos educandos quilombolas.
Já Canen (2006) entende que, se, por um lado, as legislações para a educação escolar
tenham avançado no sentido de prescrever currículos que contemplem as diferenças
culturais dos grupos minoritários, invisibilizados por muito tempo; por outro lado, as
práticas pedagógicas que não levem em conta a necessidade de trabalhar com toda a
realidade cultural contextualizada dos educandos, faz com que, dificilmente, tal medida
tenha impacto positivo na construção de um novo olhar, libertos das amarras eurocêntricas.
Nessa mesma trilha de Canen (2006), Candau (2011) afirma a necessidade de
construir práticas pedagógicas mediadas pela perspectiva intercultural, que tenham como
ponto de partida o reconhecimento das diferenças. Esta é uma nova forma de olhar a prática
pedagógica. Tal tarefa não é fácil certamente, pois “supõe desconstruir a perspectiva da
homogeneização tão presente e configuradora da cultura escolar” (CANDAU, 2011, p. 250).
Nesse contexto, o fato incontestável é que a dimensão cultural é intrínseca às práticas
pedagógicas. E a instituição escolar, por conseguinte, deve considerar e valorizar os
educandos e seus contextos socioculturais, primando pelo combate a todas as formas de
silenciamento, invisibilização, favorecendo a construção de identidades culturais como
sujeitos de direito, assim como a valorização do outro (CANDAU, 2011).
Portanto, as escolas quilombolas e/ou as escolas que atendem estudantes oriundos
dos quilombos devem pensar seus currículos e práticas pedagógicas na perspectiva de levar
seus sujeitos de aprendizagens, sua origem, sua maneira de ser e de pensar o
desenvolvimento desse país, como um grande mosaico cultural, para que o respeito à
identidade seja conquistado e que a educação prime pela colaboração no ato de construção
da aprendizagem no entorno da Educação Escolar Quilombola.
Concordamos com Celestino (2016) que novos tempos vêm surgindo e, em cada
momento da história, novas esperanças são suscitadas à Educação Escolar Quilombola, que
por sua vez precisa mudar e articular sua prática pedagógica, em conformidade com os
modos de ser e de se desenvolver dos quilombolas nos diferentes contextos sociais.
Assim, podemos assinalar que a prática pedagógica que possibilita “a articulação
entre os conhecimentos científicos, os conhecimentos tradicionais e as práticas
128
socioculturais próprias das comunidades quilombolas, em processo educativo dialógico e
emancipatório” (BRASIL, 2004, p. 20) são de extrema importância na pedagogia
quilombola.
Apesar de percebermos avanços importantes em relação à inclusão dos estudos das
relações raciais nas instituições escolares, se pensarmos nas mentalidades preconceituosas
forjadas em mais de 500 anos de racismo virulento, notamos que são muito recentes para o
país essas conquistas. Essa constatação tem levado as instituições educacionais a se
debruçarem, em grande parte, com a formação de professores, pelo papel central que essa
categoria profissional ocupa no repasse de valores para a vida.
Concordamos com Giroux (1997) quando ressalta que a ausência dessas discussões
na formação inicial e continuada de professores gera circunstâncias que reforçam as
desigualdades e a subalternidade de determinados grupos sociais. Nesse entendimento, as
práticas pedagógicas acabam por corporificar formas dominantes de capital cultural, uma
vez que a escolarização, frequentemente, funciona para afirmar as histórias eurocêntricas e
patriarcais.
Arroyo (2013) nos alerta para o fato de que a formação pedagógica e docente gira em
torno de uma perspectiva hegemônica e eurocêntrica, que busca formar um modelo de
profissional fiel à reprodução de um modelo de currículo que não atende aos anseios dos
povos desprestigiados economicamente, como é o caso das comunidades quilombolas.
Forma-se um profissional tradutor e transmissor dedicado e competente a ensinar conteúdos
definidos nas diretrizes do currículo e avaliados nas provas oficiais.
Nóvoa (1992, p. 30) afirma que: “A formação continuada deve alicerçar-se numa
reflexão na prática e sobre a prática”, por meio de dinâmicas de investigação-ação e de
investigação-formação, valorizando os saberes de que os professores são portadores. Dessa
maneira, notamos que a formação continuada é constituída da reflexão da prática sobre a
prática e um dos princípios essenciais é a valorização dos conhecimentos que o professor já
traz consigo, possibilitando a eficácia do saber sistematizado da prática docente.
Diante do exposto, formar professores capazes de refletir e conduzir os processos de
ensino-aprendizagem, valorizando as diversidades existentes na sociedade, não é uma
obrigação apenas legal. É, sim, um eixo estruturador da educação de uma sociedade.
Concordamos com Silva (2014) quando ressalta que a superação ou o preenchimento das
lacunas identificadas na formação docente precisam ser debatidos e incorporados, não
apenas por alguns setores e instituições formadoras desses profissionais, mas também pelo
conjunto dos espaços por onde passam a formação, seja ela inicial ou continuada.
129
Assim como Giroux (1997), concordamos quando o autor ressalta que a ausência
dessas discussões na formação inicial e continuada de professores gera circunstâncias que
reforçam as desigualdades e a subalternidade de determinados grupos sociais. Nesse
entendimento, as práticas pedagógicas acabam por corporificar formas dominantes de capital
cultural, uma vez que a escolarização, frequentemente, funciona para afirmar as histórias
eurocêntricas e patriarcais.
A Educação Escolar Quilombola, segundo as orientações observadas nas Diretrizes
Curriculares para Educação Escolar Quilombola (2012) e nas Orientações Curriculares para
Educação Escolar Quilombola do Estado de Mato Grosso (2010), bem como na Resolução
02/2016 do Conselho Estadual e Educação de Mato Grosso, ancora-se em concepções de
valorização histórica e cultural das formas de produção da vida nas comunidades às quais
essa educação se destina, tendo como um de seus princípios e finalidades a promoção do
reconhecimento da história e da cultura afro-brasileira, como elementos estruturantes do
processo civilizatório nacional, considerando as mudanças, as recriações e as
ressignificações históricas e socioculturais que estruturam as concepções de vida dos afro-
brasileiros na diáspora africana.
Conforme Soares (2016), um dos grandes desafios que se refere à materialidade da
Educação Escolar Quilombola enquanto uma política pública de preservação de patrimônio
nacional, diz respeito à formação inicial e continuada de professores. Segundo a autora, os
atuais modelos formativos e educativos não têm contemplado os legados dos diferentes
grupos formadores da sociedade brasileira, particularmente os negros e os indígenas.
A realização de formação específica que leve em consideração os saberes dos
professores que atuam nas escolas quilombolas “poderá desencadear um processo de
apropriação de saberes importantes para a escola e a comunidade, a ponto de modificar a
relação tanto dos professores, quanto dos estudantes e da comunidade em relação à
denominação “escola quilombola” e o reconhecimento das identidades locais” (FERREIRA,
p. 123. 2015).
Ou seja, para que os desafios impostos à modalidade de Educação Escolar
Quilombola aconteçam, os professores devem estar tecnicamente preparados para
desenvolver ações pedagógicas que melhor contribuam para uma socialização crítica dos
conteúdos, de forma a estimular a criatividade e o compromisso com a transformação social,
trabalhando numa perspectiva de desconstrução de estereótipos, de preconceitos e demais
mazelas sociais que causam exclusões de toda ordem.
130
Concordamos com Giroux e McLarem, 2009 quando enfatizam que a formação dos
profissionais de educação tem um peso singular para as mudanças previstas nas legislações e
planos educacionais e que tanto a sociedade almeja.
A educação dos professores (as) raramente tem ocupado espaço público ou político
de importância dentro da cultura contemporânea, onde o sentido do social pudesse
ser resgatado e reiterado para dar professores e alunos a oportunidade de contribuir
com suas histórias culturais e pessoais e sua vontade coletiva, para o
desenvolvimento de uma contraesfera pública democrática. [...]. Não é exagero
afirmar que os programas de formação de professores(as) são concebidos para
criar intelectuais que operam a serviço dos interesses do Estado, e cuja função
social é primordialmente manter e legitimar o status quo. (GIROUX; MCLAREM,
2009, p. 128).
A partir das reflexões apresentadas, comungamos com Silva (2012) quando salienta
que pensar a formação inicial de docentes, tendo em vista a existência de grupos,
concepções e modos diferenciados de ver o mundo, bem como as múltiplas identidades que,
muitas vezes, ocupam os mesmos espaços, é formar professores para lidar com a realidade
de seu tempo que ainda é desconhecida. É sair do conceito de formar professores, para se
pensar em formar cidadãos capazes de respeitar e lidar com as diferenças existentes em seu
meio.
Assim, conforme Block e Rausch (2014, p. 252), a construção de saberes na
formação inicial está vinculada a sua aplicação prática, ou seja, “a base do ensino nos cursos
de formação visa a construção de conhecimentos oriundos do campo da Pedagogia que os
futuros professores deverão ter a capacidade de converter em práxis pedagógica, o que se
refere à relação teoria e prática”.
Ainda segundo Block e Rausch (2014, p. 252) “é durante a ação didática pedagógica
que a identidade e a profissionalização docente vão se consolidando”. Conforme as autoras
“os saberes são produzidos para subsidiar a ação prática da mesma forma que também se
formam, se reelaboram e se reestruturam a partir dela”. Ou seja, é na prática em sala de aula
que os saberes docentes são aplicados, testados, verificados e, dessa forma, vão sendo
legitimados e é justamente esta dinâmica que faz com que se originem também por meio
dela.
Pimenta (2002) argumenta que é por meio de um movimento de articulação entre os
saberes que os professores podem tornar-se capazes de perceber as peculiaridades de sua
atividade profissional e, com base nisso, reconfigurarem suas formas de saber-fazer docente
de modo sistemático, dinâmico e contínuo.
131
4.4 SABERES DOCENTES: CONCEPÇÕES
Conforme Nunes (2001), os estudos sobre saberes docentes não são algo inédito, já
que, de certa maneira, a temática já vinha sendo estudada por meio da discussão de temas
como a prática docente, o processo de ensino-aprendizagem, a relação teoria-prática no
cotidiano escolar etc., num contexto diferenciado, onde a escola era tida como “local”
privilegiado para a transmissão do saber pelo professor, que detinha todo o conhecimento a
ser repassado ao aluno.
Entretanto, segundo a referida autora,
Considerando que tanto a escola como os professores mudaram, a questão dos
saberes docentes agora se apresenta com uma outra “roupagem”, em decorrência da influência da literatura internacional e de pesquisas brasileiras, que passam a
considerar o professor como um profissional que adquire e desenvolve
conhecimentos a partir da prática e no confronto com as condições da profissão.
(NUNES, 2001, p. 27).
Segundo Nunes (2001), no Brasil, é a partir da década de 1990 que se passou a
buscar novos enfoques e paradigmas para compreender as práticas e os saberes pedagógicos
e epistemológicos relativos aos conteúdos escolares a serem ensinados e aprendidos. A partir
desse momento, é que começam a se desenvolver pesquisas que:
[...] considerando a complexidade da prática pedagógica e dos saberes docentes, buscam resgatar o papel do professor, destacando a importância de se pensar a
formação numa abordagem que vá além da acadêmica, envolvendo o
desenvolvimento pessoal, profissional e organizacional da profissão docente.
(NUNES, 2001, p. 28).
É notório que os estudos relativos aos saberes docentes têm contribuído para formar
um repertório de conhecimento a fim de legitimar a profissão, pois permitiram adentrar o
contexto da prática pedagógica e descobriram que os professores mobilizam diversos tipos
de saberes. Com outro olhar, o professor passa a ser valorizado como produtor de
conhecimento e protagonista da prática escolar, superando a visão tradicional de simples
reprodutores técnicos de conhecimentos (NUNES, 2001).
Conforme Nóvoa (1995), essa nova abordagem veio em contraposição aos estudos
anteriores que acabavam por limitar a profissão docente a um conjunto de competências e
técnicas, gerando uma crise de identidade dos professores em virtude de uma separação
entre o eu profissional e o eu pessoal. Essa reviravolta nas análises passou a ter o professor
132
como foco central em estudos e debates, considerando o quanto o “modo de vida” pessoal
acaba por interferir no profissional.
Revendo a formação docente a partir da investigação da prática pedagógica, Pimenta
(2002) percebe o aparecimento da questão dos saberes como um dos aspectos considerados
nos estudos sobre a identidade da profissão do professor. Parte do princípio de que essa
identidade é construída a partir da:
[...] significação social da profissão; da revisão constante dos significados sociais
da profissão; da revisão das tradições. Mas também da reafirmação das práticas
consagradas culturalmente e que permanecem significativas. Práticas que resistem
a inovações porque prenhes de saberes válidos às necessidades da realidade. Do
confronto entre as teorias e as práticas, da análise sistemática das práticas à luz das
teorias existentes, da construção de novas teorias. (PIMENTA, 2002, p. 19).
De acordo com Nunes (2001), dessa maneira, resgata-se a relevância de considerar o
professor em sua própria formação, num processo de autoformação, de reelaboração dos
saberes iniciais em confronto com sua prática vivenciada. Assim, seus saberes vão se
constituindo a partir de uma reflexão na e sobre a prática.
Conforme Freire (2016b), o saber da docência não se constitui apenas com
conhecimentos científicos e pedagógicos, mas, sim, torna imprescindível que o professor se
reconheça como um ser pensante, dotado de interesses e movido por questionamentos que
impulsionem sua fala, de modo que esta se torne um aprendizado de escuta, que pode
resultar em um saber lidar melhor nas suas formas de ensinar.
Conforme Tardif (2002, p. 36), o saber docente pode ser definido “como um saber
plural, formado pelo amálgama, mais ou menos coerente, de saberes oriundos da: formação
profissional e de saberes disciplinares, curriculares e experienciais”. Assim, é possível
percebermos que a construção do saber do professor demanda conhecimentos de diversas
fontes, sendo justamente da mistura dessas fontes que o mesmo surge, ou seja, não há como
desempenhar uma prática educativa com base em apenas uma única fonte de saber.
Os saberes da formação profissional, segundo Tardif (2002, p. 36-37), são um
conjunto de saberes disseminado pelas instituições de formação de professores, faculdades e
universidades de educação e se articulam concretamente na prática docente por meio da
formação inicial e continuada dos professores. A ideologia pedagógica, por sua vez, se
manifesta como concepções ou doutrinas, incorporadas à formação continuada, fornecendo
um conjunto de ideologias, em formas de técnicas e orientações de como saber fazer,
influenciando sobremaneira a prática pedagógica.
133
Segundo Nóvoa (1992), durante a formação inicial, aos poucos, o futuro professor
vai edificando sua identidade profissional, que sofre influências diversas, permitindo uma
constante ressignificação do que é ser professor para cada professor. É um processo coletivo
vivenciado socialmente que resulta em mudanças individuais. Conforme o autor:
A identidade não é um dado adquirido, não é uma propriedade, não é um produto. A identidade é um lugar de lutas e de conflitos, é um espaço de construção e de
maneiras de ser e de estar na profissão. Por isso, é mais adequado falar em
processo identitário, realçando a mescla dinâmica que caracteriza a maneira como
cada um se sente e se diz professor. [...]. É um processo que necessita de tempo.
Um tempo para refazer identidades, para acomodar inovações, para assimilar
mudanças. (NÓVOA, 1992, p. 16).
Do mesmo modo, os saberes disciplinares também se inserem na prática docente por
intermédio da formação inicial e continuada; são provenientes de diversos campos do
conhecimento, emergindo da herança cultural e social dos grupos produtores de saberes
existentes na sociedade, tais como: Matemática, História, Geografia, Literatura, sendo estes
integrados aos saberes nos cursos distintos existentes nas faculdades e universidades
(TARDIF, 2002).
Os saberes curriculares são apreendidos pelos docentes por meio dos programas
escolares apresentados pela instituição escolar, geralmente, exposto no Projeto Político
Pedagógico como sendo os conhecimentos válidos que farão parte da formação dos
estudantes (TARDIF, 2002).
Por fim, os saberes experienciais são aqueles produzidos pelos próprios docentes na
sua prática cotidiana e no conhecimento do seu meio. Constituem o estilo pessoal de ensino
que se expressam por um saber ser e por um saber fazer pessoal e profissional validado pelo
trabalho cotidiano. “[...] incorporam-se à experiência individual e coletiva sob a forma de
habitus e de habilidades, de saber-fazer e de saber ser” (TARDIF, 2002, p. 38).
Já Pimenta (2002) utiliza como referência a expressão ‘saberes da docência’,
definindo três categorias: os saberes pedagógicos, a experiência e o conhecimento. Os
saberes pedagógicos são aqueles ligados a todo contexto que envolve a Pedagogia, enquanto
ciência da educação. Trata das questões epistemológicas que foram estruturando o campo da
educação ao longo dos tempos, as teorias, as percepções de ensino, de escola e de educação
de modo geral. A autora salienta que, ao ter contato com os saberes sobre a educação e
Pedagogia, os professores “[...] podem encontrar instrumentos para se interrogarem e
alimentarem suas práticas, confrontando-os. É aí que se produzem saberes pedagógicos, na
ação” (PIMENTA, 2002, p. 26).
134
Sobre o saber da experiência, Pimenta (2002) indica que, ao iniciarem sua formação
inicial, os estudantes já trazem consigo conhecimentos acerca do ofício da profissão que
provém de suas experiências enquanto discentes. A partir das interações vividas com
professores nos vários anos de sua caminhada escolar, os futuros professores são capazes de
perceber quais de fato detinham conhecimento acerca dos conteúdos das disciplinas, quais se
destacavam na parte didática, quais contribuíram de forma mais intensa para sua formação
humana e até lhe servem de inspiração para sua futura carreira profissional.
Conforme a supracitada autora, o saber da docência destacado como conhecimento
diz respeito às áreas do conhecimento propriamente ditas, porém, a autora enfatiza que os
estudantes, futuros professores, devem se apropriar dos conhecimentos teórico científicos,
culturais e tecnológicos visando também seu processo de desenvolvimento humano.
Sobre saberes docentes necessárias à prática educativa, apresentamos, ainda, as
concepções de Freire (2002), que, na obra Pedagogia da Autonomia, traz três grandes
categorias, sendo elas: (a) não há docência sem discência; (b) ensinar não é transferir
conhecimento e (c) ensinar é uma especificidade humana.
Freire (2002), ao afirmar que não há docência sem discência, atribui à formação de
professores um caráter experiencial de onde se originam saberes, em que se torna
imprescindível a percepção de que a relação do professor como sujeito do conhecimento e
do educando como seu objeto não se justifica. Muito pelo contrário, docente e discente não
se limitam a uma relação que os torne objeto um do outro. Freire (2009, p. 26) é enfático ao
ressaltar que “inexiste validade no ensino de que não resulta um aprendizado em que o
aprendiz não se tornou capaz de recriar ou de refazer o ensinado, em que o ensinado que não
foi apreendido não pode ser realmente apreendido pelo aprendiz”. O autor compreende que
saber ensinar exige rigorosidade metódica, pesquisa, criticidade, respeito aos saberes dos
educandos e corporeificação das palavras pelo exemplo.
Em relação à categoria do saber docente ‘ensinar não é transferir conhecimento’,
Freire (2016b) infere o respeito à autonomia do educando, o bom senso, a apreensão da
realidade, alegria, esperança e curiosidade. Para o referido autor, este é um saber marcante e
evidente no sentido de se primar por uma prática educativa que respeite de fato o aluno e,
por isso, explica que:
Quando entro em uma sala de aula devo estar sendo um ser aberto a indagações, à
curiosidade, às perguntas dos alunos, as suas inibições; um ser crítico e inquiridor,
inquieto em face da tarefa que tenho – a de ensinar e não a de transferir
conhecimento. É preciso insistir: este saber necessário ao professor – que ensinar não é transferir conhecimento – não apenas precisa ser apreendido por ele e pelos
135
educandos nas suas razões de ser – ontológica, política, ética, epistemológica,
pedagógica, mas também precisa de ser constantemente testemunhado, vivido.
(FREIRE, 2016b, p. 47).
A última categoria do saber especificada por Freire (2016b) é ‘ensinar é uma
especificidade humana’. Ele argumenta que ensinar exige segurança, competência
profissional e generosidade, referindo-se ao fato de que “o professor que não leve a sério sua
formação, que não estude, que não se esforce para estar à altura de sua tarefa não tem força
moral para coordenar as atividades de sua classe” (FREIRE, 2009, p.92).
Diante das informações aqui brevemente esboçadas, podemos inferir que a
constituição dos saberes docente é fruto de uma aprendizagem cumulativa e contínua, não
acontecendo somente na formação inicial ou restrita à formação continuada.
Nas páginas subsequentes, consta o quinto e último capítulo desta dissertação. Será
discorrida a história de vida dos professores pesquisados e, em seguida, descreveremos sobre
os saberes docentes mobilizados durante as práticas pedagógicas dos professores que atuam
na área de Ciências humanas, bem como analisaremos se os mesmos articulam os saberes
científicos com os saberes locais no seu contexto sócio- histórico-cultural.
136
CAPÍTULO V – OS SABERES E FAZERES MOBILIZADOS DURANTE
AS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS DOS PROFESSORES DA ÁREA DE
CIÊNCIAS HUMANAS
Este último capítulo tem por objetivo descrever sobre a história de vida dos
professores sujeitos da pesquisa, reverberada pela entrevista. São histórias de vida das
professoras Edinete (disciplinas de Sociologia e Filosofia), Eliane (disciplina de História) e
Júnia (disciplina de Geografia). Apresento, também, os relatos proferidos a respeito de suas
vivências e experiências profissionais, procurando evidenciar as persistências e o
protagonismo dessas mulheres, que culminaram em sua ascensão social por meio da
educação, instrumento que lhes possibilitou a conquista de novos caminhos e a realização de
sonhos pessoais.
É evidente que a narrativa de vida do professor está entrelaçada aos saberes docentes,
pois o fazer profissional carrega marcas do eu pessoal. Nesse sentido, conhecer sua biografia
se torna uma importante fonte de informação acerca da prática docente. Conforme afirma
Nias (1991, apud NÓVOA, 1992, p. 15), “o professor é uma pessoa; e uma parte importante
da pessoa é o professor”, dar voz aos docentes pelo relato de sua história de vida é
considerar seu percurso pessoal conjugado com os sentidos da sua construção docente.
Aqui também descrevo sobre as práticas pedagógicas das professoras da área de
Ciências Humanas da Escola Estadual Professora Tereza Conceição Arruda, evidenciando a
articulação dos saberes científicos e os saberes locais da comunidade.
Importante registrar aqui que tais observações não tiveram como finalidade julgar as
atividades ou a competência das professoras durante a atuação profissional, tão pouco fazer
grandes generalizações. A pretensão, sim, é “descrever a situação, compreendê-la, revelar os
seus múltiplos significados, deixando que o leitor decida se as interpretações podem ou não
ser generalizáveis, com base em sua sustentação teórica e sua plausibilidade” (ANDRÉ,
1995, p. 37-38).
5.1 RETRATO DOS PROFESSORES
137
Conforme Castilho (2011), ao pensar em escola, conhecimento e ensino-
aprendizagem, é imprescindível pensar também na biografia dos docentes como algo ligado
à cultura da educação escolar. Goodson (1992, p. 72) afirma que “[...] o estilo de vida do
professor dentro e fora da escola, as suas identidades e culturas ocultas, têm impacto sobre
os modelos de ensino e sobre a prática educativa”.
Para Nóvoa (1992), é notório que a narrativa de vida do professor está tecida aos
saberes docentes, pois o fazer profissional carrega marcas do eu pessoal. Nesse sentido,
ouvir sua biografia torna-se uma importante fonte de informação acerca da prática docente.
Segundo o autor, dar voz aos professores pelo relato de sua história de vida é considerar seu
percurso pessoal conjugado com os sentidos da sua construção docente.
Goodson (1992), em consonância com Nóvoa (1992), afirma que o desenvolvimento
profissional do professor está extremamente ligado com sua história de vida, pois, em sua
atuação profissional, os docentes tomam decisões e fazem escolhas levando em conta
aspectos da vida que influenciam diretamente na sua ação educativa, “[...] o aspecto pessoal
apresenta-se irrevogavelmente associado à prática, é como se o professor fosse a sua própria
prática” (GOODSON, 1992, p. 68).
Huberman (1992) defende quanto à necessidade de ouvir os professores por meio das
suas histórias de vida. Por esse viés, Queiroz (1988) define a história de vida como:
[...] o relato de um narrador sobre sua existência através do tempo, tentando
reconstituir os acontecimentos que vivenciou e transmitir a experiência que
adquiriu. Narrativa linear e individual dos acontecimentos que nele considera
significativos, através dela se delineiam as relações com os membros de seu grupo,
de sua profissão, de sua camada social, de sua sociedade global, que cabe ao pesquisador desvendar. (QUEIROZ, 1988, p. 20).
Pois bem, seguindo os caminhos propostos pelos autores supracitados, passa-se agora
à descrição da memória de vida dos professores da Escola Estadual Professora Tereza
Conceição Arruda, sujeitos da pesquisa, com ênfase em suas trajetórias escolar e profissional
a fim de evidenciar seus percursos, no sentido de nos dar pistas que possam indicar se suas
histórias guardam relação com a prática. Para tanto, no próximo item, teço pelas vozes das
docentes, Eliane, Júnia e Edinete, (professoras/colaboradoras/sujeitos da pesquisa), suas
histórias reverberadas pela técnica de entrevista.
5.1.1 Retrato da professora Eliane
138
Eliane Prado Silva, 40 anos, nascida no Rio Grande do Sul, professora, é graduada
em História, pela Universidade Federal de Mato Grosso. Neste ano de 2018, segundo ela, é a
primeira vez que exerce o magistério como professora habilitada na Escola Estadual
Professora Tereza Conceição Arruda, visto que, outras vezes que lecionou, foi como
professora leiga. Ela se autodeclara branca.
Até aos nove anos, Eliane viveu com seus pais, sua irmã e um irmão no Rio Grande
do Sul. Aos nove anos, ela se mudou com a família para o município de Paranaíta, no Mato
Grosso. Ela conta que, até os onze anos, sua vida sempre foi perfeita. Estava tudo sempre
certo. Seus pais viviam felizes, nunca brigavam um com o outro. Na época das férias,
convivia com seus avós paternos na fazenda que eles moravam e trabalhavam. Ela conta que
gostava muito de brincar. Brincava de dar aula e na rua, quando estava na cidade. Quando
estava no sítio, saía campo afora, brincando.
Em Paranaíta, Mato Grosso, durante o período escolar, ela morava na cidade, com
uma conhecida da família, para estudar. No período de férias, ela se juntava ao restante da
família no garimpo, que funcionava na zona rural do mesmo município. Ela conta que “a
mãe não gostava muito, mas viveu um bom tempo lá”. Até que o pai dela resolveu que iam
embora “[...] construir a vida lá no Sul. Porque, a vida de quem vem do Sul para mexer com
garimpo é de ganhar dinheiro e voltar”.
Na sua estadia no garimpo, durante as férias, ela disse que andava muito no mato,
voava no cipó, tomava banho no rio. Eliane conclui que seu pai e sua mãe deixaram-na viver
a infância ali. Porém, na volta para o Rio Grande do Sul, isso quando ela tinha os seus doze
anos de idade, seus pais se separaram.
Com a separação, ela e a irmã ficaram com o pai, enquanto que o irmão ficou com a
mãe. Ela conta, entretanto, que o pai ficou com elas somente por um dia, pois, no dia
seguinte, ela foi entregue para a avó paterna e a irmã foi entregue para avó materna. Ela
lembra com tristeza que os três irmãos ficaram separados um do outro. Com a separação, o
pai voltou a Mato Grosso, especificamente para o município de Colíder, e ela permaneceu
no Rio Grande do Sul com a avó.
Segundo Eliane, a avó lhe ensinou muitas coisas, como lavar roupa, limpar casa, a
incentivou a voltar a estudar, pois, segundo relata, quando ela foi morar com a avó, ela
estava praticamente reprovada, porque, no processo de separação dos pais, ela só andava à
toa, ninguém cobrava nada dela, estava praticamente abandonada. Com a ajuda da avó,
conseguiu se concentrar novamente nos estudos, recuperar as notas e prosseguir estudando.
139
Ela permaneceu com sua avó por aproximadamente quatro anos. Em 1990, seu pai se casou
novamente e a trouxe, juntamente com sua irmã, para morar com ele no município de
Colíder.
Em Colíder, já com seus dezesseis anos, ela iniciou a cursar o ensino médio no
período noturno, no curso técnico em Contabilidade. Cursando técnico em contabilidade, ela
conseguiu um estágio em um comércio da cidadezinha onde morava. Ela conta que ficou
muito feliz em conseguir o estágio, pois sua madrasta já tinha arrumado um emprego de
doméstica para ela na casa de uma amiga da família, porém ela não queria ser doméstica.
Eliane conta que, com 16 anos, começou a namorar e acabou engravidando aos 17
anos de idade. Quando soube que estava grávida, ela saiu da casa do pai e foi morar com o
namorado na cidade de Peixoto de Azevedo/MT. Ela relata que o “[...] pai falou que não
queria filha grávida em casa. Antes de ele saber que eu estava grávida, eu fugi de casa com
medo de apanhar dele. E fui morar junto”. Quando iniciou a viver junto com o namorado,
ela se decepcionou. Pois segundo ela “[...] a pessoa não estudava, não trabalhava. Ele era
uma farsa, aquela pessoa que eu conhecia”. Ela reconta que o esposo “não queria nada com a
vida. E, aí eu trabalhava, eu conhecia todo mundo. Aí as coisas que ele fazia me deixavam
envergonhada. Até que um dia eu fui embora. Mas eu passei bastante vergonha na mão dele,
passei bastante apuro na mão dele”.
Nos três anos que ela viveu com o esposo em Peixoto de Azevedo/ MT, ela deixou
de estudar, ou seja, não concluiu o ensino médio. Ela relata que não terminou o curso de
Contabilidade porque “[...] a contabilidade exigia demais de mim, entendeu? E ainda
trabalhava, e o bebê pequeno não dormia a noite, então não conseguia juntar e ter nota
boa”. E também “[...] eu ia para a escola, levava o menino junto, mesmo assim, ele {o
esposo} ia lá sondar”. Ela relata que tentou continuar apesar das dificuldades, mas “[...] as
notas foram só ficando feia”. Aí decidiu: “não vou ficar. Pra ficar com nota ruim né.
Reprovar. E era o último ano também do curso, aí depois extinguiu o curso de
contabilidade”.
Em 1998, ela decidiu voltar a estudar, desta vez cursando o Magistério, no período
noturno, porém deixou o curso, uma vez que seu esposo era muito ciumento e ia persegui-la
na escola, conforme relata a mesma:
[...]. Eu estava estudando, fazendo o magistério, porque eu não tinha concluído...
Não conseguia concluir, pois ele [o esposo] ficava com ciúme lá na aula, eu estava
tentando terminar, porque quando eu fiquei grávida do meu filho, eu estava no
segundo ano de contabilidade e não terminei o curso. (informação verbal, PROFESSORA ELIANE, 2018).
140
A professora salienta que, não aguentando mais as perseguições, a violência sofrida e
a falta de coragem de trabalhar do esposo, decidiu por deixá-lo. Para isso, pediu ajuda ao
irmão do esposo, que prontamente a ajudou. Ela conta que foi embora para o Rio Grande do
Sul e “aí...essa história durou mais uns tempos, ele atrás, ele atrás, aí ele foi lá, deixei ele
voltar, dei mais uma chance para ele, né. E nessa chance, ele provou que não tinha como dar
mais chance para ele. Aí minha família e eu conseguimos fazer ele voltar para Mato
Grosso”. Ela conta que eles moraram junto mais uns três meses no Rio Grande do Sul, antes
de terminar de vez o relacionamento. Nessa época, ela já estava com 21 anos.
Após a separação, a necessidade de sustentar o filho a levou a procurar um emprego.
Ela começou a trabalhar como professora leiga numa escola de ensino fundamental.
Aproveitando os conhecimentos da sua pequena passagem pelo Magistério. Pois, com a sua
ida para o Rio Grande do Sul, ela acabou desistindo do curso de Magistério.
Em 1999, novamente, ela volta para Mato Grosso, desta vez, para Cuiabá. Chegando
a Cuiabá, ela logo arrumou trabalho em uma empresa da iniciativa privada. Logo, também,
conheceu uma pessoa, se envolveu emocionalmente e foi quando engravidou do seu segundo
filho. Quando ela ficou grávida, ela começou a ter problema no trabalho, pois o patrão ficou
irritadíssimo com a gravidez da funcionária. Segundo ela, “[...] o patrão tinha trauma por
conta de uma funcionária antiga dele que deu maior show nele com gravidez, e não ia
trabalhar”. Então ele pediu para que ela pedisse conta. Quando ela disse “[...] eu não tenho
família aqui para mim poder fazer isso que o senhor está querendo. Eu só posso dizer para o
senhor, que eu vou trabalhar. Eu nunca fui de faltar serviço, o senhor tem o meu
compromisso. “Eu não tenho ninguém para me amparar também”. Com essa argumentação,
ela conseguiu continuar na empresa durante a gravidez.
Porém, terminada a sua licença-maternidade, quando ela retornou ao emprego, já foi
avisada que estava despedida. Ela, com duas crianças para sustentar, foi em busca de outro
emprego. Ela reconta que “não conseguia emprego, porque ele me queimou para todo lado,
mas aí passou assim uns dois anos eu consegui colocação de novo no mercado né, aí eu fui
trabalhar com umas amigas”.
Sua volta ao mercado de trabalho culminou também com sua volta à escola. Desta
vez, ela foi estudar na Escola Técnica Federal de Mato Grosso. Cursou o ensino médio lá.
Logo após o término do ensino médio, ela conseguiu uma bolsa para fazer pré-vestibular
141
numa instituição privada. Só que, mesmo fazendo o cursinho, ela não conseguiu passar no
vestibular de uma universidade pública.
Então, em 2007, ela resolveu prestar vestibular numa universidade privada, que
oferecia curso à distância, mas por conta de não conseguir pagar as mensalidades, acabou
desistindo.
Em 2010, ela prestou novamente vestibular pela Universidade Federal de Mato
Grosso. Era um seletivo para preenchimento de três vagas no curso de História no período
noturno. Desta vez, ela conseguiu passar e, assim, iniciou a cursar a graduação pela UFMT.
Conforme ela relata: “eu fiz a prova da parte específica da história, né, fiquei em segundo
lugar. E consegui concluir o curso de história em 2012”.
Enquanto cursava História, no período noturno, ela trabalhava no diurno. Durante
esse período ela mudou de emprego, indo trabalhar numa grande empresa da iniciativa
privada. Após desentendimento nessa empresa, ela foi trabalhar na Secretaria de Habitação
de Cuiabá, onde permaneceu por dois anos.
Em 2015, ela foi para a Secretaria Municipal de Educação de Cuiabá, como
assistente administrativo do Secretário da pasta. Nessa estadia na Secretaria de Educação,
ela conheceu o seu atual esposo, o quilombola Thiago, que também trabalhava no mesmo
órgão. Ela e Thiago deixaram a Secretaria no término do mandato do Prefeito Mauro
Mendes em 2017. Ela contou que, na época, eles tiveram que remodelar a vida, pois ficaram
os dois desempregados. Ela conta que “[...] ficou durante um período trabalhando como
autônomo e a gente começou a participar das reuniões aqui do Quilombo Mata-Cavalo”.
Antes de conhecer o Quilombo Mata-Cavalo, ela disse que havia participado de um
movimento sem-terra para ver se conseguia um pedaço de terra. Porém não teve êxito, pois o
líder do movimento, segundo ela, era um charlatão que estava apenas enganando as pessoas.
E nesse período da participação no movimento, ela se batizou na Igreja Batista, onde
congrega até hoje.
Em meados de 2017, ela e o esposo passaram no seletivo do IBGE para fazer
pesquisas na zona rural. Ela fez a pesquisa do IBGE na comunidade de Mata-Cavalo. Então,
na época em que estava prestando serviço para o IBGE, ela se inscreveu e contou ponto para
o seletivo da Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso, especificamente para a
Escola Estadual Quilombola Profa. Tereza Conceição Arruda, onde trabalha atualmente,
desde fevereiro de 2018.
Ela relata que em sua vida “[...] tudo tem luta, né, tudo não é fácil, nada vem de mão
beijada, né. Aí, agora estou tendo a experiência de ser professora pela primeira vez de
142
verdade, né, porque até então, assim antes era... foi uma experiência curta, né, quando eu
estava lá antes de concluir meu ensino médio”.
Eliane atribui o gosto pelo exercício do magistério à sua professora da 1ª série. Ela
relata: “[...]. Eu lembro da minha professora da primeira série, professora Dulce. Era
assim, eu sempre dava jeito de levar flores para ela, agradar ela, né. Professora de
ensino...primeira série. Aí, as brincadeiras minhas, eu lembro que eu sempre brincava de
ser professora”. Então:
[...] dava as greves, eu ia para casa da minha avó, aí o professor era um só para
todo mundo na sala, aí eu ajudava ele, na sala. Aí, eu fui para Peixoto de Azevedo.
O que eu fui fazer? Fui procurar uma sala de aula para mim trabalhar. Lá era legal,
o negócio assim, era gostoso dar aula. (informação verbal, PROFESSORA
ELIANE, 2018).
Seu gosto pela disciplina de História, ela atribui a uma professora de História que ela
teve quando cursava o ensino médio na Escola Técnica Federal de Mato Grosso. Ela
relembra:
[...] eu tive uma professora chamada Tetê, ela dava aula de história para gente. E as
aulas dela era aquelas aulas assim, em círculo, todo mundo lia um pouco e discutia
o assunto. Era legal as aulas dela. Aí eu pensei: Ah! Eu acho que, essa profissão eu
vou querer, porque é legal. (informação verbal, PROFESSORA ELIANE, 2018).
Diante disso, podemos deduzir que a concepção dos saberes da profissão,
principalmente, no início da carreira docente, passa por momentos de reprodução, de algum
trabalho que foi ou que é referência, até conseguir construir sua própria prática, encontrando
seu próprio jeito de dar aula, “[...] muita coisa da profissão se aprende com a prática, pela
experiência, tateando e descobrindo, em suma, no próprio trabalho” (TARDIF, 2002, p. 86).
Eliane revela que, no seu exercício do magistério, procura inspiração nessas
professoras que marcaram sua vida de forma positiva e, assim, trabalhar também com seus
educandos.
Sobre ser professora numa escola quilombola, ela relata:
Ah! Eu estou gostando, estou gostando. Porque assim, você tem um relacionamento com os alunos, do jeito que eu sempre...que eu estou conseguindo ter...do jeito que eu
sempre pensei que deveria ser. [...] eu acho que o professor, ele não tem que ter aquele relacionamento de...de punição, de castigo, e sim de troca. Os alunos quilombolas são
muito esforçados e respeitadores. Eles valorizam e respeitam o professor. Então isso
me motiva a me esforçar ainda mais para que os alunos tenham um bom aprendizado e um conteúdo que vai ajudá-lo na sua vida. (informação verbal, PROFESSORA
ELIANE, 2018).
143
A fala da professora Eliane demonstra-nos que, ao chegar à escola, o professor não
vem vazio. Ele chega, carregando consigo sua cultura e se depara com a cultura da escola,
que, na visão de Candau (2008, p. 246), é “[...] mundo social, que tem suas características e
vida próprias, seus ritmos e seus ritos, sua linguagem, seu imaginário seus modos próprios
de regulação e de transgressão, seu regime próprio de produção e de gestão de símbolos”.
Nesse sentido, segundo Moraes (2018, p. 100) “o professor necessita estabelecer uma
relação de troca e ressignificação cultural, não impor sua cultura e nem aceitar totalmente a
cultura da escola, e, dessa forma, ir construindo sua identidade profissional”.
A generosidade dos alunos, segundo a professora Eliane, está fazendo com que ela se
apaixone pela escola quilombola, estimulando-a a lutar para que os direitos dos estudantes
quilombolas sejam respeitados e que políticas públicas sejam de fato concretizadas.
5.1.2 Retrato da professora Júnia
Júnia Auxiliadora Santana, 37 anos, é natural de Nossa Senhora do Livramento/MT.
Seu pai é pedreiro e a mãe (já falecida) doméstica, ambos analfabetos. Júnia é graduada em
Geografia por uma universidade privada. Possui Especialização em Relações Raciais pela
Universidade Federal de Mato Grosso/UFMT e atualmente, em 2018, é mestranda em
Educação, também pela UFMT. Exerce o magistério há dez anos. Júnia se autodeclara
negra. Atualmente, ministra a disciplina de Geografia na Escola Estadual Quilombola Profa.
Tereza Conceição Arruda.
Livramentense de “Chapa e cruz”, como orgulhosamente se autodeclara, a professora
conta que teve uma infância feliz junto de seus pais e seus quatro irmãos. Até os 10 anos, ela
conta que sua vida foi marcada por muitas brincadeiras. Sobre isso ela relata: “Minha
infância até os 10 anos, foi marcada por muitas brincadeiras, eu sempre acompanhada da
minha irmã Juliane e meus primos”. Ela relata também que na sua infância “foi muito feliz,
na presença de papai de mamãe, e da minha família, me sentia muito amada pela minha
falecida avó, que mesmo na sua simplicidade não media esforços para me agradar, assim
como a meus irmãos também”.
Sua adolescência e juventude foram marcadas por estudar e pela sua participação no
Grupo de Jovem da Igreja Católica de Nossa Senhora do Livramento. Ela reconta: “eu
sempre fui de movimento da pastoral, da CEBE, fui professora de catequese, Pastoral da
Juventude. Eu tinha essa facilidade de ir à frente, falar, não tinha vergonha”.
144
Em 2005, aos 23 anos de idade, ela se casou. Ela explanou que conheceu o seu
esposo na porta de sua casa no ano de 2002. Ela revelou que houve muita resistência de seus
pais em aceitar o namoro, pois o rapaz não era da cidade de Livramento. Ela recontou que
“[...] as pessoas julgavam muito ele, por ele ser de fora”. “[...] falavam que ele era casado,
que só ia se aproveitar de mim e sumir”. Mas, mesmo sem a aprovação da família, ela se
casou com ele em agosto de 2005. Ela conta que sua vida com ele foi incrível. Porém, em
2006, ele foi diagnosticado com câncer, vindo a falecer no ano seguinte.
A professora reconta que a morte do esposo impactou muito a sua vida, pois, com
ele, “ela aprendeu o que era amar e ser amada, sem preconceitos, sem discriminação. E sim
com muito respeito”, apesar de todo o mau tratamento que recebeu por parte da família do
esposo. Ela atribui essa não aceitação ao racismo, pelo fato de ela ser negra e eles todos
brancos. Porém ela relata que, apesar das muitas adversidades, ela foi feliz com o esposo
durante os cinco anos que conviveram.
Após a morte de seu esposo, ela retornou de Diamantino/MT, cidade onde ela vivia
com ele, para a cidade de Nossa Senhora do Livramento. Nessa volta, ela ficou um tempo
sem trabalhar e logo depois arrumou emprego numa escola estadual em Várzea Grande.
Morando em Várzea Grande, em 2009, ela conheceu um homem e iniciou um
relacionamento. Posteriormente, os dois foram morar juntos. Segundo ela, com esse rapaz
ela viveu um casamento conturbado, com muitas perdas. Ela revela que, na verdade, foi
morar com ele tentando encontrar nele o que ela tinha com o seu falecido marido. Não deu
certo e, em 2014, resolveu dar fim a esse relacionamento.
Com o fim do relacionamento com o segundo esposo, em 2014, ela novamente
retorna a Nossa Senhora do Livramento para os braços da família. Atualmente, em 2018, ela
vive um relacionamento estável com um rapaz de origem haitiana. Para ela, sua vida com
ele, “[...] tem sido de muita aprendizagem, companheirismo e compreensão”. “Ela expõe,
“que embora sejamos de culturas totalmente diferentes”, estão se “[...] adaptando dia a dia
e vivendo numa cumplicidade gostosa. “[...] e além do mais, ele vem contribuindo ainda,
para a reafirmação da minha identidade”.
Com relação à sua vida escolar, a professora narra que na sua infância e adolescência
“gostava muito de ir para a escola”. Ela entende hoje, em 2018, que naquela época “alguns
professores faziam acepção e discriminação”, segundo ela, pelo fato de “ser pobre e
negra”. Relata que teve “professores excelentes, principalmente de língua portuguesa, a
professora Maria Arminda, a finada Joana, que era professora de ciências”. Ela reconta
145
que esse período foi um momento bastante interessante na vida dela, embora percebendo
hoje que havia essa questão da discriminação e do preconceito. Assim ela relata:
[...] a gente percebe hoje que também tinha essa questão da discriminação, do
preconceito, do bullying, que hoje a gente chama de bullying, né. O professor, por
exemplo, de educação física, é...enquanto priorizava um grupo, o outro grupo
ficava ali, é... sentadinho porque não tinha muita habilidade para jogar, para
brincar, então, ficava ali, meio assim, na retaguarda. Eu mesma era uma dessas
crianças que ficava sentadinha, pois nunca era chamada para jogar. (informação verbal, PROFESSORA JÚNIA, 2018).
O sentimento de incapacidade provocado pela insensibilidade do professor é
denunciado por Arroyo (2008, p. 9) quando ressalta que, muitas vezes, “os pobres são vistos
como inferiores em capacidades de atenção, esforço, aprendizagem e valores, e acabam
sendo responsabilizados(as) por sua própria condição”. E são, “desse modo, constantemente
inferiorizados(as), reprovados(as) e segregados(as)”.
Interpretando Arroyo (2008), a insensibilidade dessa visão simplista sobre os pobres
leva a educação a desconsiderar os efeitos desumanizadores da vida na pobreza material ou
da falta de garantia de cobrir as necessidades básicas da vida como seres humanos.
Teles (2010, p. 48) argumenta que, em uma escola ou numa mesma sala de aula, há
estudantes de diferentes etnias, raças, gêneros, capacidades cognitivas, etc. Segundo ele, “é
na escola que muitos desses educandos têm o seu futuro marcado negativamente, pelo
estigma discriminatório que se traduz em “selo de incapacidade cognitiva” e se transforma
em desigualdade de inserção e de renda no mercado de trabalho”.
Retomando a história de vida da professora Júnia, ao terminar o ensino fundamental,
logo ela inicia a cursar o ensino médio na cidade de Várzea Grande, município vizinho de
Nossa Senhora do Livramento. Morando com sua irmã, em Várzea Grande, ela cursa o
primeiro ano do ensino médio numa instituição privada, que, segundo a mesma, era muito
boa. Porém, no ano seguinte, retornou a Nossa Senhora o Livramento, onde cursou os dois
últimos anos de Propedêutico. Sua volta para Livramento se deu pelo fato de que ela não se
adaptava a morar longe dos pais.
Ao terminar o ensino médio, ela iniciou fazer um cursinho pré-vestibular que durou
aproximadamente seis meses. Em 2001, ela prestou vestibular em uma universidade privada
e foi aprovada para o curso de Geografia. Ela concluiu o curso de Geografia em 2005. Ela
relata que, para cursar a graduação, “[...] tinha uma ajuda, pois na época o Prefeito é...
disponibilizava o ônibus. É um momento também bastante difícil, por que era um ônibus já
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bastante sucateado, direto quebrava, a gente chegava uma, meia noite em casa, mas enfim,
em dois mil e cinco terminei o ensino superior”.
Terminado a graduação, a professora, posteriormente, fez uma especialização em
Relações Raciais pela UFMT e, atualmente (2018), está cursando o mestrado em Educação
também pela Universidade Federal de Mato Grosso. Conforme Júnia informou, ela
qualificará em dezembro de 2018 e a defesa de sua dissertação ocorrerá em março de 2019.
A respeito de sua trajetória profissional, a professora relata que começou a trabalhar
cedo, pois as condições financeiras da sua família não eram as melhores. Então, no segundo
ano que ela estava cursando Geografia, ela já iniciou a trabalhar. Ela trabalhava de manhã na
APAE (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais) e, à tarde, ela dava aula de
Geografia numa escola estadual de Livramento. Ela conta que a escola estava sem professor
de Geografia, então, como ela já estava no segundo ano do curso, ela foi convidada para
ministrar as aulas.
Ela relata:
[...] comecei é... a trabalhar e as condições financeira dos meus pais não eram as
melhores, era na questão assim de conciliar o estudo, né, o curso da geografia é...
com o pagamento mesmo, com a questão financeira do curso. Então, assim, meio
que a gente é... fazia as duas coisas, mas fazia as duas coisas assim, preocupada.
Ah! Como que eu vou pagar a minha mensalidade no próximo mês, né. Então, por é... mais que você estava feliz de estar trabalhando, de ter tido oportunidade de
entrar dentro de uma unidade escolar mesmo sem ter terminando o curso superior,
mas sempre vinha aquela preocupação em como pagar o próximo mês da
mensalidade, né. Porque assim, embora eu trabalhava lá na APAE. Porém a APAE
era assim e é assim até hoje, é de quatro em quatro meses que paga, de cinco em
cinco meses. E como eu ainda não tinha terminado o curso superior, peguei
dezesseis aulas numa escola estadual, eu lembro como se fosse hoje, é eu recebia
duzentos reais. (informação verbal, PROFESSORA JÚNIA, 2018)
Em 2005, após o seu casamento, ela se mudou com o seu esposo para
Diamantino/MT. Chegando lá, com o auxílio de uma amiga, ela conseguiu trabalho em uma
escola particular da cidade. Ela conta que permaneceu nessa escola até final de 2006. Em
2007, ela fez seletivo para o CEFAPRO (Centro de Formação dos Profissionais do Estado de
Mato Grosso) da Regional de Diamantino.
Júnia relata que permaneceu no CEFAPRO por menos de um ano, dando formação
para professores na área de Humanas. Ela deixou a instituição no final de 2007, por conta de
um problema grave de saúde, que também culminou no falecimento do seu primeiro esposo.
No final de 2007, ela retornou a Livramento. Nesse retorno para Livramento, ela ficou de
quatro a cinco meses sem trabalhar.
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Em meados de 2008, ela foi convidada por uma ex-professora da graduação para
trabalhar de contrato em uma escola estadual de Várzea Grande. A professora de Geografia
titular da vaga entrou de licença e ela assumiu as aulas. No ano de 2009, ela contou ponto
para o seletivo de contratado da Seduc/MT, na escola Porfíria Paula, também localizada na
cidade de Várzea Grande. Ela permaneceu nesta escola por, aproximadamente, quatro anos.
A professora relembra que, no seu último ano nessa escola, ficou muito doente, com
depressão. Ela saiu de licença-médica e retornou a Livramento para se tratar. Quando ainda
estava em tratamento, ela recebeu o convite para trabalhar na Escola Estadual Professora
Tereza Conceição Arruda, aceitando-o (onde se encontra até neste momento, 2018), para
substituir a coordenadora pedagógica que entraria de licença-maternidade. Ela então aceitou
o convite e veio exercer a função de coordenadora pedagógica. No ano seguinte, participou
do seletivo da Seduc/MT para professora temporária da disciplina de Geografia e conseguiu
permanecer na escola ministrando as disciplinas de Geografia e de História. Já está na escola
quilombola há cinco anos.
Ela evidencia:
[...] a partir desse momento, que eu voltei aqui na comunidade de Mata-Cavalo, né,
comecei a...a reviver toda minha ancestralidade, as pessoas que há muito tempo eu
não via, até parentes, né, primos. Descobri quem eram realmente os parentes da
minha avó, que moravam aqui no Quilombo Mata-Cavalo, e comecei a dar aula
aqui na comunidade. [...] A comunidade também, assim como a Gonçalina,
contribuiu muito comigo, porque naquela época eu estava numa situação é...
bastante assim, deprimente mesmo na minha vida, e assim, a vinda minha aqui
para a comunidade foi de suma importância não só para...para o meu sustento, para minha vida profissional, mas também, principalmente para a minha vida pessoal,
né, porque eu mudei bastante, depois que eu vim para cá. [...]E hoje como
professora quilombola, eu sei a importância de estar trabalhando dentro de uma
comunidade quilombola, a importância de ser é... uma mulher negra, é... de me
aceitar como tal, e a partir dessa aceitação também, poder trazer essa experiência,
essa trajetória de vida para os meus alunos e para aqueles que me circundam
também. (informação verbal, PROFESSORA JÚNIA, 2018).
Júnia ressalta que sua relação com o magistério inicia com a Pastoral da Juventude,
onde ela ministrava aula de catequese para os adolescentes. Mas lembra de que também foi
influenciada por sua tia Martinha e pela prima Sueli, ambas professoras.
5.1.3 Retrato da professora Edinete
Edinete Pereira Leite, 44 anos, professora, graduada em Matemática num curso à
distância em uma universidade privada. Ela é natural de Cuiabá e se autodeclara amarela. Há
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um ano e meio está exercendo à docência na Escola Estadual Professora Tereza Conceição
Arruda. Neste ano de 2018, ela ministra aulas de Filosofia e Sociologia para o ensino médio.
Edinete fala que não lembra muito bem as coisas de quando ela era criança. Disse
que lembra mais a partir dos 09 anos. Ela conta que teve uma infância bem precária, pois
seus pais eram muito pobres. Ela revela que quando era bem pequenina, seus pais se
separaram e ela e os sete irmãos ficaram com a mãe. “Minha mãe criou nós sozinha. Sem a
ajuda de ninguém, só ela. Sempre estudei sempre ela nos colocou para estudar”. Ela relata
que:
[...] a vida escolar foi muito difícil, porque nós éramos muito pobres. Então
geralmente a gente ia à escola e não tinha uma roupa adequada para ir para a
escola. As pessoas riam. Teve muito preconceito quando nós íamos para a escola.
Tinha muita dificuldade na escola também. (informação verbal, PROFESSORA
EDINETE, 2018).
Essa realidade de desigualdade vivida pela entrevistada é, conforme Quijano (2005) e
Santos (2009), uma história que perdura desde a colonização. A produção dos pobres é
articulada e reforçada com os processos sociais que conferem assimetria à diversidade,
reduzindo o diferente à condição de inferioridade. Conforme Arroyo (2008), isso acontece
porque certos coletivos sociais e raciais se perpetuam concentrando o poder, a renda, a terra,
a riqueza, o conhecimento, a justiça, a força, enquanto os coletivos pobres são mantidos
como subalternos e marginais.
Por causa da dificuldade financeira que a família atravessava, ela teve que largar os
estudos para trabalhar de babá aos 12 anos de idade. Ficou trabalhando em casa de família.
Edinete relata que parou de estudar na 6ª série do ensino fundamental e ficou uns três anos
sem ir à escola. Quando fez quinze anos, resolveu voltar. Terminou o ensino fundamental
com 18 anos. Trabalhava em um período e estudava no outro. Concluído o ensino
fundamental, ela novamente para de frequentar a escola para se dedicar ao trabalho de
doméstica, em tempo integral, para ajudar no orçamento da família.
Passados alguns anos, ela resolve retornar à escola para cursar o ensino médio, com o
sonho de assim conseguir um emprego que não fosse mais de babá e doméstica:
Eu trabalhei muito tempo como doméstica. Depois que terminei o ensino médio eu
fiz um curso de cabelereira. Depois que terminei o curso de cabelereira, fiquei
trabalhando num salão por um certo tempo, depois saí. Depois montei um salão
para mim, mas não deu certo. Depois eu voltei a trabalhar em outro salão.
Trabalhei mais de vinte anos nesse salão de cabelereira. Depois que fui fazer a
faculdade. (informação verbal, PROFESSORA EDINETE, 2018)
149
Percebe-se que, apesar de pertencer a uma família com poucos recursos financeiros,
ela via o trabalho doméstico como uma alternativa temporária para suprir suas necessidades,
acalentando a vontade de mudar de vida.
Porém, como afirma Arroyo (2008), os indivíduos resolvem seguir a escolarização,
com a promessa de uma melhora de vida, porém o que a realidade nos mostra, contudo, é
que, em sua maioria, as pessoas não conseguem concretizar o sonho que se alimentou, tendo
de seguir uma vida de subempregos, perdendo todo ou quase todo o contato com sua cultura
local, em troca dessa “vida moderna’’. A partir das contribuições de Arroyo (2008),
percebemos, então, que a realidade não deixa as pessoas optarem por fazerem o que
realmente querem, pois, oportunidades não são oferecidas a todos, seja nos estudos ou em
simples empregos.
Após terminar o ensino médio, Edinete conciliou o trabalho com a tarefa de ser mãe,
pois, assim que terminou o ensino médio, aos 21 anos de idade, ela engravidou de seu único
filho, como relata a seguir:
[...] eu trabalhava e tinha o meu filho para cuidar. Então eu não tinha tempo para
estudar. Porque eu trabalhava o dia inteiro, a noite era o único tempo que eu tinha
para ficar com ele. Porque se eu fosse estudar a noite, eu não ia ter tempo nem de
ficar com ele a noite. Porque eu ia chegar ele estaria dormindo. Eu ia chegar onze
horas em casa, ele estaria dormindo. Eu nem ia ver ele. Ele nem ia me ver, eu ia ver ele, mas ele não ia me ver. Então eu deixei de estudar por causa disso. Porque
eu queria chegar do trabalho sete horas, oito horas e ficar com ele pelo menos até
10 horas, brincando com ele, dando atenção a ele. (informação verbal,
PROFESSORA EDINETE, 2018).
Em 2013, aos 40 anos de idade, Edinete resolve, então, cursar a educação superior
numa universidade privada, pois, na universidade pública, ela já tinha tentado uma vez e não
obteve sucesso. Segundo Ennafaa (2012, p. 160), o vestibular “continua a eliminar
candidatos aos estudos superiores nas universidades públicas, e geralmente a maioria dos
excluídos é jovem das camadas desfavorecidas que estudaram nas escolas da rede pública”,
como retrata nossa pesquisa.
Ela relata que, na graduação, encontrou muitas dificuldades, pois “[...] fazia muito
tempo que eu tinha parado de estudar, eu não lia, não buscava. Depois quando eu voltei
para faculdade eu tive que me esforçar muito, teve que estudar muito para eu conseguir,
porque eu estava bem atrasada”.
Percebe-se que a trajetória escolar da professora foi acidentada, penosa e marcada
por desafios e superação, desde o ensino fundamental, passando pelo ensino médio, até sua
formação superior. Quando no ensino fundamental, era inferiorizada por ser pobre. No final
150
da infância e durante toda a sua adolescência, surge a necessidade de trabalhar para ajudar o
sustento da família. Na vida adulta, a chegada do filho, bem como a necessidade constante
de trabalhar fora de casa e nela, completa o círculo de dificuldade que a Edinete enfrentou
no processo de escolarização.
Em 2017, a professora consegue vaga para trabalhar na Escola Estadual Professora
Tereza Conceição Arruda, ministrando aulas de Matemática. No ano de 2018, ela permanece
na escola, ministrando aulas de Filosofia e Sociologia.
Ela relata que tem enfrentado dificuldade em atuar em disciplinas na qual não tem
formação. Ela relata:
[...] não tenho pleno conhecimento daquela área {filosofia e sociologia}. Eu tento
me esforçar ao máximo. Leio os livros, faço pesquisa na internet, para eu estar por
dentro daquela área que eu estou dando. A maior dificuldade é essa. Pois o que eu sei mesmo, que eu estudei mesmo, eu não atuo. Eu acho que se eu estivesse
atuando na minha disciplina que eu fiz, eu estaria sendo bem melhor. (informação
verbal, PROFESSORA EDINETE, 2018).
É nítida a preocupação da Edinete quanto à sua atuação fora da disciplina de
formação. Segundo Cruz (2012, p. 2093), o profissional docente que atua fora da sua área de
formação é denominado de professor polivalente. Segundo o autor, a polivalência “designa a
capacidade de o trabalhador poder atuar em diversas áreas, podendo caracterizar ainda um
profissional pautado pela flexibilização funcional”.
Assim, conforme Cruz (2012, p. 2906), “a noção de professor polivalente seria
associada à visão de que este seria um profissional que transita por diferentes áreas de
conhecimentos articulando saberes e procedimentos”. Porém o autor ressalta que a própria
perspectiva interdisciplinar, que seria um princípio de formação para a constituição da
polivalência, não tem uma sustentação sólida nas discussões das políticas, configurando-se
num discurso muito genérico.
Edinete ressalta que, desde pequena, sonhou em ser professora, mas com o passar do
tempo havia abandonado esse sonho. Porém, há pouco tempo atrás, ao ver o trabalho da sua
irmã na sala de aula, o sonho se reacendeu e ela resolveu cursar a licenciatura para exercer o
magistério. Apesar de temer a não realização dos seus sonhos, mal sabia ela que um dia se
tornaria realidade o fato de tornar-se professora e que exerceria o magistério na terra de seus
ancestrais.
Ela conta que a experiência na sala de aula está sendo maravilhosa, ainda mais por
ser numa escola que fica dentro da sua comunidade. Edinete é quilombola de Mata-Cavalo,
151
porém a mesma não morava na comunidade porque tinha que trabalhar fora do quilombo.
Ela conta que seu sonho foi duplamente realizado: O de ser professora e também de atuar na
escola de sua comunidade.
Analisando a história de vida das professoras partícipes da pesquisa, reverberada
pelos seus relatos, percebe-se que apresentam alguns pontos incomuns, quais foram: a
infância e a juventude simples e, comumente, permeada por sofrimentos, privações, por
conta das desigualdades sociais presentes na nossa sociedade. A elas não faltaram episódios
em que suas necessidades básicas ligadas à alimentação, vestimentas, material escolar não
foram atendidas. No entanto, elas encontraram em sua realidade as estratégias para que a
infância e a juventude não passassem em branco e usufruíram das possibilidades a elas
oferecidas, como as brincadeiras, que, muitas vezes, foram transmitidas por seus pais e avós.
Experiências vivenciadas com amor, respeito e muita solidariedade entre os familiares.
Destacamos a importância do brincar na infância, pois, segundo Salomão; Martini &
Jordão (2007), as brincadeiras que as crianças realizam contribuem para diferentes níveis de
desenvolvimento, como é o caso do desenvolvimento físico, da autonomia, do intelectual e
social e ainda contribui positivamente para a formação da personalidade das mesmas.
Quando uma criança brinca, tem consciência de si própria e dos outros. Os autores também
afirmam que as brincadeiras influenciam a formação da personalidade das crianças.
Acrescentam, ainda, que estas, ao brincarem, estabelecem relações não somente com
pessoas, mas também com materiais e objetos que estão presentes no seu dia a dia.
Em relação à escolarização, houve diferenças marcantes na vida das três
entrevistadas. No caso da Júnia, o percurso escolar seguiu um curso considerado normal do
ensino fundamental, médio e superior. Pelo relato da professora, a família exerceu papel
fundamental no êxito escolar da mesma. Apesar de ter pouca instrução escolar, os seus pais
souberam conduzi-las para uma trajetória de sucesso, uma vez que Júnia concluiu a
educação básica e o ensino superior sem interrupção em nenhuma das etapas.
A partir da trajetória escolar da professora Júnia e com base nos estudos de Lahire
(2004), apreendemos que o grau de sucesso escolar não depende obrigatoriamente do nível
de escolarização dos pais ou outros familiares, nem de seu capital escolar. Há pessoas com
pouca ou nenhuma escolarização que atuam como mediadores nesse processo educacional.
Diferentemente da professora Júnia, o percurso escolar da professora Edinete e da
professora Eliane foram marcadas por inúmeras interrupções, da educação básica ao ensino
superior. Segundo relato das professoras, as dificuldades financeiras e o cumprimento da
função de mãe e esposa tornaram-se obstáculos que essas docentes tiveram que vencer,
152
contudo, percebemos que essas dificuldades não as impediram de lutar diariamente na busca
de melhorias para si mesmas e para os seus.
Os episódios de memória das três docentes nos permitem perceber nítidas relações
entre as experiências escolares e a formação da identidade do professor (QUADROS et al.,
2005). Mesmo tendo claro que as idealizações permeiam narrativas quando estas envolvem
lembranças, recordações e memórias, segundo o autor, pode-se considerar que a maneira
como o passado é reconstruído pode representar como o entrevistado pretende que seja a sua
vida (postura). Na vida das três professoras, as principais influências foram: os fatores
familiares e a identificação com outros professores que impactaram suas vidas, ao longo de
sua trajetória educacional desde a escola primária até o ensino superior.
Comungando com Quadros et al. (2005), Pimenta (2002) ressalta que a identidade do
docente é construída historicamente, por meio das características do sujeito, das experiências
e das práticas sociais que, dinamicamente, constroem sua identidade como professor.
Conforme Pimenta (2002), ao construir a trajetória, a identidade profissional do
docente vai também sendo formada. Segundo o autor, esse processo é dinâmico, constante e
alicerçado nas vivências, nas trocas e no significado que cada professor confere à sua
atividade. Esse significado deriva dos valores, de sua história de vida pessoal, de sua visão
de mundo e da educação, dos aprendizados, das angústias, das escolhas, das representações,
dos desejos e, é claro, do sentido que tem em sua vida o fato de ser professor (PIMENTA,
2002).
Diante da multiplicidade de significados, pode-se inferir que, para a professora
Edinete, a docência ainda é basicamente uma transmissão de conhecimento e informação.
Enquanto que Júnia e Eliane vão além, veem-se como autoras e demonstram consciência do
seu papel enquanto profissionais da educação e “formadoras” de outros cidadãos.
5.2 OS SABERES E FAZERES PEDAGÓGICOS QUE DESFILAM NA ÁREA DE
CIÊNCIAS HUMANAS DA ESCOLA ESTADUAL PROFESSORA TEREZA
CONCEIÇÃO ARRUDA
Conforme proposto no início deste capítulo, descrevo nesta seção sobre os saberes e
fazeres dos professores da área de Ciências humanas da Escola Estadual Quilombola Profa.
Tereza Conceição Arruda, mobilizados na prática docente, bem como se os mesmos estão
articulando os saberes científicos com os saberes da comunidade quilombola. Para que fique
153
evidenciado como foram feitas as interfaces dos saberes científicos com os saberes
profissionais, demonstrarei também quais são os saberes científicos relacionados à área de
Ciências Humanas.
As observações das aulas que compõem a área de Ciências Humanas ocorreram
durante todo o mês de outubro de 2018. Durante esse período, acompanhei as práticas
pedagógicas das professoras: Júnia, Eliane e Edinete. Nos primeiros dias, acompanhei a
professora Eliane, responsável pela disciplina de História, no ensino fundamental e no
ensino médio. Sucessivamente, acompanhei a professora Júnia, responsável pela disciplina
de Geografia, também no ensino fundamental e médio. Por último, realizei as observações
das aulas da professora Edinete, que leciona a disciplina de Filosofia e Sociologia no ensino
médio.
A pesquisa empírica evidenciou que as aulas ministradas na Escola Estadual
Quilombola Profa. Tereza Conceição Arruda, em sua maioria, são expositivas e dialogadas,
seguidas de atividades. Os professores geralmente usam o livro didático como principal
ferramenta pedagógica para elaboração dos conteúdos a serem ministrados.
A instituição escolar desenvolve alguns projetos escolares que, em sua maioria, são
de autoria coletiva, sendo eles: Páscoa, Dia das mães, Festa Junina, Folclore, Feira Cultural.
Os projetos são desenvolvidos durante todo o ano letivo. Bimestralmente, a escola realiza
culminância para a socialização dos trabalhos desenvolvidos em sala com a comunidade em
geral. Parte dos trabalhos realizados também é apresentada na Feira Cultural, realizada na
Semana da Consciência Negra, em novembro, com participação da comunidade escolar, bem
como dos moradores do Quilombo Mata-Cavalo.
A análise da produção e da constituição dos saberes e fazeres mobilizados pelos
docentes participantes desta pesquisa será ancorado nas tipologias propostas por Tardif
(2002), Gauthier (2013), Freire (2016) e Pimenta (2002) já evidenciados no Capítulo IV.
Importante destacar que os saberes docentes formam um amálgama difícil de classificar.
Assim, falar do saber do professor é falar do seu trabalho (TARDIF, 2002).
Descrevo a seguir as práticas pedagógicas dos docentes na área de Ciências
Humanas, entrecruzando com suas vozes, perseguindo o objetivo proposto no início do
capítulo.
5.3 SABERES CIENTÍFICOS RELACIONADOS ÀS CIÊNCIAS HUMANAS
154
A área de Ciências Humanas, de acordo com Brasil (2018, p. 352) contribui:
Para que os alunos desenvolvam a cognição in situ, ou seja, sem prescindir da
contextualização marcada pelas noções de tempo e espaço, conceitos fundamentais
da área. Cognição e contexto são, assim, categorias elaboradas conjuntamente, em
meio a circunstâncias históricas específicas, nas quais a diversidade humana deve ganhar especial destaque, com vistas ao acolhimento da diferença. O raciocínio
espaço-temporal baseia-se na ideia de que o ser humano produz o espaço em que
vive, apropriando-se dele em determinada circunstância histórica. A capacidade de
identificação dessa circunstância impõe-se como condição para que o ser humano
compreenda, interprete e avalie os significados das ações realizadas no passado ou
no presente, o que o torna responsável tanto pelo saber produzido quanto pelo
controle dos fenômenos naturais e históricos dos quais é agente. (BRASIL, 2018).
Ou seja, o tratamento das relações espaciais e o consequente desenvolvimento do
raciocínio espaço-temporal no ensino de Ciências Humanas devem favorecer a
compreensão, pelos educandos, dos tempos sociais, da natureza e de suas relações com os
espaços. O estudo das noções de espaço e tempo deve se dar por meio de diferentes
linguagens, de modo a permitir que os educandos se tornem produtores e leitores de mapas
dos mais variados lugares vividos, concebidos e percebidos (BRASIL, 2018).
Entretanto, segundo Brasil (2018, p. 352), “embora o tempo, o espaço e o movimento
sejam categorias básicas na área de Ciências Humanas”, é fundamental “valorizar também a
crítica sistemática à ação humana, às relações sociais e de poder e, especialmente, à
produção de conhecimentos e saberes, frutos de diferentes circunstâncias históricas e
espaços geográficos”.
Enfim, as Ciências Humanas devem, assim, estimular uma formação ética, que
auxilie os educandos a valorizar: os direitos humanos; o respeito ao ambiente e à própria
coletividade; o fortalecimento de valores sociais, tais como: a solidariedade, a participação e
o protagonismo voltados para o bem comum e, sobretudo, a preocupação com as
desigualdades sociais.
A seguir apresento, no Quadro 4, uma síntese dos saberes científicos relacionados à
área de Ciências Humanas na educação básica, de acordo com as Orientações Curriculares
do Estado de Mato Grosso para a educação básica e ainda as Orientações Curriculares para a
Educação Escolar Quilombola.
Quadro 4 - Síntese dos saberes científicos: Ciências Humanas da educação básica
Saberes Científicos/ Ensino Fundamental e Médio/
Orientações curriculares do Estado de Mato
Grosso para educação básica
Saberes Científicos/ Orientações curriculares do
Estado de Mato Grosso para Educação Escolar
Quilombola
155
A área de Ciências Humanas proporcionará aos
estudantes, situações de aprendizagem nas quais
possam construir noções conceituais, científicas,
articuladas aos eixos:
Trabalho;
sociedade;
tempo e espaço;
diversidades socioculturais e religiosas,
(gênero, sexualidades, religiosidades,
geracionais e étnico-raciais);
democracia;
nação;
paisagem;
espaço geográfico e território.
A área de Ciências Humanas pode contribuir com a
ampliação de conhecimentos referentes à história e
cultura afro-brasileira e africana. Articuladas aos
referenciais:
Impérios africanos pré-colonial;
os quilombos e sua organização no Brasil;
legalização das terras quilombolas;
formas de organização negra na África e
Diáspora;
contribuições africanas e afro-brasileiras na
formação do país;
continente africano;
cartografia etnorracial;
mecanismos de inclusão;
desconstrução dos estereótipos, estigmas
racistas no Brasil.
Fonte: elaborado pela autora, 2018.
A produção do conhecimento na área das Ciências Humanas, conforme Mato Grosso
(2012) e Brasil (2018), está assentada na perspectiva da centralidade do homem resgatando
valores éticos e sociais de consolidação da cidadania; na criação de novas formas de
intervenção e de produção de bens e nas posturas humanitárias e valorização do coletivo, no
que diz respeito às diferenças e à valorização da vida.
A seguir, apresento os saberes docentes e a análise das práticas pedagógicas das
professoras da área de Ciências Humanas.
5.4 SABERES DOCENTES E AS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: PROFESSORA DE
HISTÓRIA
Nas Orientações Curriculares do Estado de Mato Grosso para a educação básica
(OCs) do ano de 2010, o ensino de História encontra-se marcado por profundas e aceleradas
transformações que impactam todos os âmbitos e estruturas da sociedade, não apenas da
brasileira, mas também da comunidade internacional, especialmente, no que tange à
informação, ao conhecimento e à educação.
156
Conforme as Orientações Curriculares do Estado de Mato Grosso para a educação
básica, o objetivo do estudo da disciplina de História é a construção de uma postura diante
do conhecimento, que possibilite ao educando reconhecer-se como um ser social, político e
cultural por meio de sua participação na ação coletiva de ensino e aprendizagem.
A disciplina de História “tem grande importância para a percepção e valorização das
semelhanças e diferenças no tocante às formas culturais africanas, que deram base à cultura
afro-brasileira”. A referida legislação ressalta que “além dos conteúdos curriculares da
educação básica, deve-se trabalhar à história e cultura dos quilombos locais, enfatizando a
origem dos africanos e seus descendentes que se espalharam pelo país em especial no estado
de Mato Grosso” (MATO GROSSO, 2012, p. 22).
Ancorada nos pressupostos contidos nas Orientações Curriculares para Educação
Escolar Quilombola (2010) e nas Diretrizes Curriculares para Educação Escolar Quilombola
(2012), dei início à observação das aulas de História, ministradas pela professora Eliane
Prado, entre os dias 01/10/2018 a 11/10/2018, na Escola Estadual Quilombola Profa. Tereza
Conceição Arruda, nos períodos matutino e vespertino. Ao todo, foram observadas seis aulas
da disciplina, sendo duas no 9º ano do ensino fundamental, duas aulas no 3º ano de ensino
médio e duas aulas no 1º ano do ensino médio.
Importante registrar que as informações aqui transcritas são frutos das observações
realizadas nas disciplinas já mencionadas, dos trechos da entrevista individual e das
anotações do caderno de campo, produzidas durante o tempo em que estive imersa no campo
pesquisado.
A partir das observações, pode-se constatar que as atitudes da professora Eliane em
relação aos seus educandos seguem uma sequência uniforme. Ao adentrar na sala de aula,
ela sempre os cumprimenta com um “Bom dia!” ou um “Boa tarde”. A professora também é
recepcionada pelos estudantes com um caloroso cumprimento. Nota-se que há um bom
relacionamento entre a professora e os estudantes. A solidariedade entre ambos também
chama atenção. Um exemplo de solidariedade que presenciei nas minhas observações é que
existem discentes que já são mães e elas são ajudadas pelos colegas, bem como pela
docente, no cuidado com a criança em sala. Segundo Castilho (2011), esse comportamento
de ajuda mútua pode ser explicado pela teoria da dádiva, que segundo a autora repousa:
[...] na compreensão de que a sociedade não se reduz à lógica do mercado ou do
Estado, mas traduz uma pluralidade de lógicas não redutíveis entre si. O tecido
social se exprimiria, portanto por valores também imateriais: doação, confiança,
solidariedade, reciprocidade”. “[...] que não se liga apenas às sociedades do
157
passado, mas está incorporado também nas sociedades contemporânea.
(CASTILHO, 2011, p. 47).
Castilho (2011) acredita que o motivo da existência da moral da dádiva entre os
matacavalenses está fundamentado no fato de que as relações entre os moradores são de
parentescos ou de amizades muito próximas e que isso se estende inclusive para a escola. O
que fica evidenciado na fala da professora Eliane, quando diz: “eu acho que o professor, ele
não tem que ter aquele relacionamento de... de punição, de castigo, e sim de troca”.
Solidária e receptiva, a professora inicia a aula fazendo a chamada dos estudantes e,
em seguida, fala do assunto que será tratado no dia, estabelecendo uma conversa prévia. A
docente faz uso do quadro, todos os dias, em todas as suas aulas, para a escrita do conteúdo.
Logo após a exposição do conteúdo na lousa, ela aguarda a finalização da escrita por parte
dos alunos. Inicia-se, então, um diálogo e a aula é concluída com os alunos respondendo
questões relacionadas à temática no caderno. Didaticamente, podemos inferir que Eliane
utiliza como estratégia de ensino aulas expositivas e dialogadas.
A convivência na sala de aula nos permitiu também constatar que a professora
mobiliza, na sua prática pedagógica, os saberes da formação profissional, os saberes
curriculares e os saberes disciplinares, que aparecem na ação da docente bastante ligados,
porém é perceptível que os saberes das ciências das disciplinas ficam mais evidenciados no
seu fazer em sala, apesar de Tardif (2002, p. 36) definir “o saber docentes como um saber
plural, formado pelo amálgama, mais ou menos coerente, entretanto, na maioria dos casos,
essas informações angariadas, não dialogam entre si”.
Sabemos que a formação inicial e continuada é uma etapa do desenvolvimento
profissional e não se pode esperar que ela contemple e ofereça produtos acabados,
requisitando do professor a sensibilidade para a escolha do conteúdo que de fato contribua
para o crescimento intelectual dos educandos (TARDIF, 2002).
A prática pedagógica da docente permitiu inferir também que o seu saber curricular
está bem ancorado, pois exprime uma ação alinhada com seu discurso, demonstrando
preocupação com a qualidade do aprendizado dos estudantes, procurando respeitar o ritmo
de aprendizagem deles e não somente com os prazos estabelecidos pela matriz curricular
anual.
A observação da primeira aula ocorreu no dia 1º de outubro de 2018, na turma do
terceiro ano do ensino médio. Nesse dia, houve duas aulas de História. Nessa turma,
estudam quatorze discentes. Todos estavam presentes.
158
Ao soar o sinal às 13 horas, inicialmente, os educandos participam da acolhida
preparada pelos professores. Em seguida, discentes e docentes se encaminham para a sala de
aula. A professora Eliane inicia a aula realizando a chamada dos discentes. Em seguida, ela
dá continuidade à aula anterior, ou seja, nessa aula continua passando o filme chamado
“Ondas”, que conta a história de um professor educado no sistema nazista que vai ministrar
aulas numa escola secundária nos Estados Unidos. Na sua prática docente, ela incorpora os
saberes adquiridos no sistema nazista. Esse filme serviu para subsidiar a discussão sobre o
tema: o sistema autoritarista. A professora Eliane informou que utiliza de filmes para
facilitar a discussão e o entendimento dos conteúdos de sua disciplina.
Vale ressaltar que o filme foi passado de maneira precária, em que os quatorze
educandos assistiram em um notebook, sem o auxilio de nenhuma caixinha de som. A
professora comentou que quando não consegue o notebook, os discentes assistem aos filmes
em uma tela de celular. Importa destacar que, mesmo com toda a precariedade, os educandos
se mostraram interessados na aula, pois estavam todos bem concentrados na atividade
proposta pela professora. Eles se ajeitaram na sala como se sentiam melhor. Sem ter aquela
obrigação das tradicionais cadeiras enfileiradas.
Terminado o filme, a professora estimulou os aprendizes a refletirem sobre ele. Os
alunos relacionavam a história do filme com o conteúdo estudado, bem como com a
realidade vivida hoje em relação à organização política do município de Nossa Senhora do
Livramento, do Estado de Mato Grosso e do Brasil, e seu impacto na vida da minoria
desfavorecida economicamente, perfil onde se encaixa os quilombolas. Após o debate, no
final da aula, a professora sugeriu que os alunos fizessem um relatório e que a entregasse na
próxima aula. Ela escreveu no quadro um roteiro a ser seguido na construção do relatório.
Eliane defende ser fundamental que o aluno conheça o local e o regional, pois isso
possibilita a ele conhecer a história a partir do seu cotidiano, dos seus hábitos, das memórias
construídas culturalmente, de forma que ele consiga entender os impactos que as ações
sociais, econômica e políticas do país afetam o dia a dia de sua comunidade e, assim, possa
avaliar e até propor mudanças.
O pensamento de Eliane é defendido por Freire (2016), quando ressalta que o
professor, mesmo desde a sua formação inicial, deve se assumir como sujeito produtor de
saber e, assim, se convencer definitivamente que ensinar não é meramente transmitir saber,
mas, sim, criar condições para sua construção. Ainda conforme o autor, o educador “não
pode negar-se o dever de, na sua prática docente, reforçar a capacidade crítica do educando,
sua curiosidade, sua insubmissão” (FREIRE, 2016, p. 28).
159
A visão da professora comunga também com os objetivos descritos nas Orientações
Curriculares para Educação Escolar Quilombola do Estado de Mato Grosso (2010), que
assim descreve:
As leituras desses estudantes adquirem agora um caráter político, possibilitando a
percepção dos conflitos e a compreensão da vida pelo domínio de novos códigos.
A formação no espaço escolar, desse modo, precisa incluir a reflexão sobre o
comportamento da humanidade; sobre as relações com o local, regional, nacional e
mundial; e sobre o exercício da cidadania e a compreensão das relações de poder
que marcam a historicidade, nos processos de negociação e conflitos entre
diferentes grupos” [...] o ensino de História, diante da realidade apresentada na
contemporaneidade, requer a elaboração de propostas a partir de conceitos
próprios, sendo estes fundamentais por aguçar o questionamento e a identificação das contradições presentes na sociedade. (MATO GROSSO, 2010, p. 37).
Com base nas Orientações Curriculares e nos estudos de Freire (2016), podemos
constatar que o ensino de História não é a obtenção acumulativa e acrítica de
conhecimentos, mas, sim, a construção de uma postura diante das informações, que
possibilite ao estudante reconhecer-se como um ser social, político e cultural por meio de
sua participação na ação coletiva de ensino e aprendizagem.
Eliane ressalta que tem aprendido muito nesses seis meses que está ministrando aulas
de História. Ela reconta:
O que eu... li ao longo do meu curso e o que eu vivi ao longo da minha vida, porque ser professor não é só a faculdade, é também as experiências da vida, a
busca de novos conhecimentos em conversas com outros colegas de profissão,
você tem que pegar e pôr na prática. E, é o que eu tenho posto a cada dia.
(informação verbal, PROFESSORA ELIANE, 2018).
A professora esclarece que sempre tenta inovar, levando para a sala de aula os
conteúdos de uma forma mais atrativa, ora trazendo filmes, ora promovendo aulas de campo
na própria comunidade, de modo que desperte o interesse dos estudantes e contribua de
forma positiva para a construção de novos conhecimentos. A professora comentou também
que gosta de trabalhar com seminários, sempre propondo trabalhos em grupos. Segundo ela,
o trabalho em grupo contribuiu bastante, pois os alunos aprendem uns com os outros.
Na observação, percebi também que ela procura articular o conteúdo que trabalha
com os conhecimentos locais ligados às lutas, à cultura, à identidade e ao pertencimento
étnico-racial quilombola. Isso mostra que a professora possui consciência em qual realidade
a escola em que trabalha está inserida e compreende que ela pode estabelecer uma ponte
entre os conteúdos trabalhados nos livros didáticos e as vivências e experiências dos
160
educandos. Parafraseando Freire (2016b), contextualizar as manifestações dos quilombolas
nas aulas é uma medida essencial para a formação integral do educando.
Eliane tem conhecimento da importância de se trabalhar um currículo voltado para a
valorização da cultura quilombola, porém reconhece que “não basta apenas o professor ter
conhecimento acerca do que venha a ser esta modalidade de Educação Escolar
Quilombola”, Para ela, é fundamental que as instituições governamentais responsáveis pela
política educacional ofereçam condições de infraestrutura, material pedagógico e formação
adequada para os docentes, para que se possa desenvolver um trabalho mais adequado a essa
realidade. Em relação ao aparato pedagógico, ela relata:
[...] eu gostaria de ter assim...como mostrar mais imagens para eles, porque assim a
disciplina de história ela pega, né, muitas figuras, filmes, mostra um passado, traz
para a realidade, como que era a sociedade de uma época, como é que está hoje essa sociedade. [...]. Então, uma forma que o professor e história tem assim lúdica,
seria mostrar, por exemplo, como que é lá no Japão, como que é lá na Rússia,
como que é lá nos estados Unidos, mostrar as outras sociedades, aí trazer para
nossa sociedade. [...], porém não temos recursos pedagógicos para fazer esse tipo
de trabalho, pois na escola não tem laboratório de informática, não tem uma
biblioteca, não tem um aparelho de televisão, nada. (informação verbal,
PROFESSORA ELIANE, 2018).
A angústia da professora Eliane quando reclama da falta de material didático é
explicada por Castilho (2011), ao afirmar que a escassez de material pedagógico
diversificado dificulta ao docente a criatividade e o enriquecimento do seu planejamento de
aula.
Sobre a necessidade de formação docente, essa preocupação é compartilhada por
Freire (2016), o qual reitera que a formação permanente deve ser entendida como um
processo de reflexão crítica sobre a prática que deve ser problematizada, com a intenção de
se conhecer e compreender suas múltiplas determinações e relações. Para o autor, a
formação de professores é uma das soluções para os desafios contemporâneos da escola e
que esses eventos devem ter como foco a construção de um profissional politizado e
comprometido com a emancipação dos grupos culturalmente dominados, estereotipados e
secularmente deixados à margem da sociedade.
Ferreira (2015) salienta ser de suma importância uma proposta de formação
específica para professores que atuam nas escolas quilombolas, pois tal ação poderá
desencadear um processo importante de apropriação de saberes para escola e para a
comunidade, modificando tanto a relação dos professores, quanto dos estudantes e da
161
comunidade em relação à denominação “escola quilombola” e o reconhecimento das
identidades locais.
A professora Eliane elucida que sua grande motivação para continuar trabalhando em
uma escola quilombola, mesmo em meio a tantos desafios, deve-se, primeiramente, ao
sentimento de pertença, construída juntamente com seu esposo Thiago, que é oriundo da
comunidade de Mata- valo e é o seu elo com a comunidade.
5.5 OS SABERES EVIDENCIADOS DURANTE A OBSERVAÇÃO DA AULA DE
GEOGRAFIA
Conforme as Orientações Curriculares para a Educação Básica do Estado de Mato
Grosso, homologado no ano de 2010, o objetivo do ensino da Geografia é possibilitar aos
educandos a compreensão de que espaço geográfico é um conjunto indissociável de sistemas
de objetos e de sistemas de ações que procura revelar as práticas sociais dos diferentes
grupos que nele produzem, luta, sonham, enfim, vivem.
Nesse contexto, segundo as Orientações Curriculares (2010):
[...] o professor deve possibilitar situações para que o estudante desenvolva a capacidade de analisar criticamente os fatos da natureza e da sociedade,
estabelecer relações, analogias, generalizações, enfim, realizar análises com
argumentações, próprias da sua idade, priorizando as relações sociais e uma leitura
crítica do mundo vivido, construindo conhecimentos. (MATO GROSSO, 2010, p.
25).
Norteada por essas orientações, entre os dias 10 e 20 de outubro de 2018,
acompanhei, na Escola Estadual Quilombola Profa. Tereza Conceição Arruda, as aulas
ministradas pela professora Júnia, na disciplina de Geografia. Ao todo, foram observadas
seis aulas, sendo duas no 9º ano do ensino fundamental, duas aulas no 1º ano do ensino
médio e duas aulas no 2º ano do ensino médio. A exposição feita a seguir é proveniente do
período de observação realizado em sala, da entrevista realizada com a professora e das
anotações feitas no caderno de campo.
A rotina diária de aula da professora Júnia segue uma uniformização. Chegando à
sala, ela cumprimenta os estudantes, faz a chamada, recapitula os conteúdos anteriores e
informa o conteúdo que será visto na aula em curso e quando tem conteúdo para ser escrito
no quadro, ela assim o faz. Percebi uma relação educador-educando de cordialidade,
162
respeito, solidariedade e principalmente de liberdade. Após passar o conteúdo na lousa, a
professora Júnia promove discussão com os alunos sobre o que está sendo descrito no
quadro.
Notei que ela questiona aos educandos para que eles reflitam sobre os textos
apresentados. Ela utiliza a técnica de falar frases para que os estudantes complementem e
assim os estimula a debaterem o tema. Essa metodologia de iniciar a frase e esperar que os
educandos as complementem, de certa forma, nos dá pistas a respeito da construção dos seus
saberes, isso se assemelha com o perfil de outros professores que teve durante o seu percurso
escolar e vê-se que eles lhe serviram de inspiração. Assim, remete-se ao que a própria Júnia
disse: “A Professora Martinha, me marcou bastante, pois ela ajudava muito nós alunos.
Quando a gente não sabia a resposta ela iniciava a resposta e daí a gente conseguia
lembrar e responder. Ela era muito boa”. Nesse sentido, a prática da Júnia traz semelhança
aos saberes da professora Martinha, a sua professora do ensino fundamental, desvelada por
ela na história de vida.
Após a exposição e diálogo, a professora escreve na lousa atividades envolvendo o
tema estudado. Percebi que algumas questões ela retira do livro didático, outras vezes de um
caderno de anotações e, ainda, observei que algumas questões ela escreve espontaneamente.
Os alunos, ao terminarem as atividades, chamam a professora ou levam o caderno até ela
para serem corrigidas.
Ao descrever as atividades espontaneamente na lousa, sem o auxílio do livro didático
ou do caderno de atividades, a professora mobiliza os saberes experienciais adquiridos
durante os seus dez anos no exercício do magistério. Conforme Tardif (2002, p. 39), os
docentes “desenvolvem saberes específicos, baseados em seu trabalho cotidiano e no
conhecimento do seu meio. [...] eles incorporam-se às experiências individuais e coletivas
sob a forma de habitus e de habilidades de saber fazer e de saber ser”.
Na Escola Estadual Professora Tereza Conceição Arruda, a socialização entre os
docentes no tocante à troca de experiências acontece constantemente, principalmente, nas
salas dos professores e nas reuniões pedagógicas realizadas quinzenalmente na escola.
Durante o período da observação, muitas vezes, deparei com os docentes conversando sobre
conteúdo, pedindo conselhos, dicas ou até mesmo planejando aulas juntos. As informações
trocadas são diversas e estão relacionadas ao planejamento coletivo, materiais, conteúdos,
metodologia, avaliação. Para Tardif (2002), o saber é situado e personalizado, é forjado a
partir de uma situação concreta e singular de trabalho. Nessa perspectiva, a escola é o local
privilegiado para a socialização e a construção de saberes, em que,
163
[...] as situações de trabalho colocam na presença uns dos outros seres humanos que devem negociar e compreender juntos o significado de seu trabalho coletivo.
Essa compreensão comum supõe que as situações de ensino sejam elaboradas e
partilhadas dentro dessas próprias situações; noutras palavras, eles estão
ancorados, situados nas ações que ajudam a definir. (TARDIF, 2002, p. 266).
Dessa maneira, podemos compreender que os saberes experienciais da professora
Júnia, em partes, se constituem na socialização com os colegas de profissão, a partir da
busca de ajuda aos problemas que se colocam no cotidiano, a fim de encontrar meios de
melhorar a sua prática pedagógica. Os saberes da experiência se constituem em “saberes
mobilizados e empregados na prática cotidiana, saberes esses que dela se originam, e que
servem para dar sentido às situações de trabalho que lhes são próprias” (TARDIF;
RAYOMOND, 2000, p. 02).
Conforme Borges (2004), a construção dos saberes docente carrega as marcas da
pluralidade, pois este processo inicia a se desenvolver antes mesmo da formação inicial.
Sendo assim, “a prática docente se inscreve na linha da vida, e incorpora os saberes
experienciais de toda ordem, aqueles que provêm da vida pessoal e também do período de
escolarização” (BORGES, 2004, p. 82).
Contudo, é importante nos atermos ao fato de que os saberes experienciais por si
podem não garantir uma prática pedagógica eficiente, os saberes disciplinares, curriculares e
da formação profissional, de certa forma sempre estão presentes e dão sustentação ao
trabalho desenvolvido pelos professores.
Especificamente, nas aulas observadas da professora Júnia, tais saberes são
mobilizados quando ela organiza a turma em grupos para realizar seminários e outras
atividades durante a aula, quando mobiliza os saberes da sua formação profissional para
explicar os conceitos de Geografia, quando propõe os filmes como atividade para melhor
compreensão do conteúdo ministrado. Dessa forma, a professora traduz os saberes que
construiu no decorrer de sua existência, demonstrando que:
A experiência provoca um efeito de retomada crítica (retroalimentação) dos
saberes adquirido antes ou fora da prática profissional. Ela filtra e seleciona outros
saberes, permitindo assim aos professores reverem seus saberes, julgá-los e avaliá-
los e, portanto, objetivar um saber formado de todos os saberes retraduzidos e
submetidos ao processo de validação constituído pela prática cotidiana. (TARDIF 2014, p. 53).
Essas múltiplas articulações entre a prática docente e os saberes fazem dos
professores um grupo social e profissional cuja existência depende, em grande parte, de sua
164
capacidade de dominar, integrar e mobilizar tais saberes enquanto condições para sua prática
(TARDIF, 2002).
A primeira aula observada na disciplina de Geografia foi na turma do 9º ano do
ensino fundamental. Nessa aula, a professora Júnia colocou um filme para os discentes
assistirem. Conforme nos informou a docente, ela está trabalhando na turma sobre o mapa
das desigualdades e o filme serviria para fomentar a discussão sobre o conteúdo.
O filme se chama “Django”. Esse filme conta a história de um negro norte-americano
que luta para resgatar sua esposa do cativeiro na era colonial, no Texas, Estados Unidos. A
professora, à medida em que o filme ia passando, explicava sobre a discriminação racial e os
maus tratos sofridos pelos negros na época da escravidão.
Importante destacar que o filme foi passado de maneira precária, pois a escola não
possui sala equipada para projeção. Com a claridade na sala, ficou difícil para os educandos
enxergarem claramente a imagem do filme na televisão. A professora sugeriu aos alunos que
anotassem as partes que julgasse interessante para posterior discussão.
No momento da discussão, após o término do filme, a professora instiga os alunos ao
debate com perguntas como:
[...]o que vocês acharam o filme? Esse filme tem a ver com a nossa história aqui
no Quilombo Mata-Cavalo? Por que os negros são em sua maioria desprovidos de
bens econômicos e materiais? Você sabe o que é discriminação racial? O que
explica o preconceito contra os negros? (informação verbal, PROFESSORA
JÚNIA, 2018).
A partir dessas questões e partir das falas e curiosidades dos educandos, ela vai
trazendo a discussão para a realidade onde estão inseridos.
Essa postura da professora Júnia evidencia a consciência e o compromisso com uma
educação antirracista, no sentido de empreender reeducação das relações étnico-raciais que
desfaz mentalidades racistas, eurocêntricas, internalizadas no povo brasileiro desde a era
colonial. Sua atuação comunga com o que está proposto nas Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura
Afro-Brasileira e Africana, que propõem ações que problematiza e indaga, desafiando
currículos homogeneizadores e reprodutores de uma perspectiva universalista de cultura.
As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola também
reforçam a implementação da educação étnico-racial. Vejamos no seu artigo 35:
[...]
165
II - implementar a Educação das Relações Étnico-Raciais e o Ensino de História e
Cultura Afro-Brasileira e Africana, nos termos da Lei nº 9.394/96, na redação dada
pela Lei nº 10.639/2003, e da Resolução CNE/CP nº 1/2004; IV - promover o
fortalecimento da identidade étnico-racial, da história e cultura afro-brasileira e
africana ressignificada, recriada e reterritorializada nos territórios quilombolas.
(BRASIL, 2012, 13).
Gomes (2017, p. 117) considera importante tematizar e incorporar as discussões
étnico-raciais na escola, considerada um espaço de poder e de conhecimento, possibilitando,
assim, aos educandos questionar e criticar “o ideal de brancura impregnado na sociedade
brasileira e a lógica da branquitude, construídas nas tensas relações de poder”, além de
permitir a construção um saber emancipatório.
De acordo com a concepção pós-crítica, o currículo tem se esforçado para significar,
compreender e traduzir a educação, considerando a diversidade social e cultural dos
educandos. Para Moreira e Silva (2002, p. 117), a pedagogia crítica sempre busca incorporar
a experiência do aluno ao conteúdo curricular “oficial”. Pois essa articulação pode fortalecer
o poder do educando e, ao mesmo tempo, instituir uma forma de crítica às relações que os
silenciam. Em relação à sua prática, a professora Júnia relata:
[...] o que eu procuro fazer, quando eu estou trabalhando os conteúdos, que eu
trabalho os conteúdos que são pertinentes, né, a educação regular, mas quando eu
estou trabalhando, eu procuro inserir o que é competente dentro de uma Educação
Escolar Quilombola. Eu trabalho o que é para ser trabalhado, né, o que é cobrado,
por exemplo, lá fora, no ENEM ou num concurso, mas eu também não deixo de lado de trabalhar a questão cultural, a questão da identidade, a questão da
valorização do ser quilombola. (informação verbal, PROFESSORA JÚNIA, 2018).
A partir do relato acima e das ações observadas em sala, nos permite constatar, que a
docente dialoga com os saberes científicos, articulando os mesmos com os saberes locais. A
prática docente da Júnia traduz um currículo que considera concepções históricas, culturais,
e valores do povo negro e quilombolas. Essa postura condiz com o que propõe as Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola, no artigo 35, inciso I, que
assim preconiza “Garantir ao educando o direito a conhecer o conceito, a história dos
quilombos no Brasil, o protagonismo do movimento quilombola e do movimento negro,
assim como seu histórico de luta” (BRASIL, 2012, p. 13).
A professora relata que foi difícil construir junto aos alunos um novo significado
para as aulas de Geografia, haja vista que a visão eurocêntrica ainda é muito presente nos
currículos escolares, mas que já houve significativas mudanças. Em relação ao conteúdo
para trabalhar a disciplina de Geografia, ela relata:
166
A geografia como... outras disciplinas, principalmente das disciplinas da área de ciência humanas, é você por exemplo, colocar o aluno como agente dentro da
situação, né. Como por exemplo, qual que é o maior desafio dentro de uma...de
uma comunidade quilombola, é a questão territorial. E a geografia ela contribui
muito, porque ela vai trazer várias abordagens de território, de paisagem, de lugar,
né, de pertencimento, de região. Então, a geografia ela...ela tem importância nesse
sentido. (informação verbal, PROFESSORA JÚNIA, 2018).
O processo de construção de uma nova consciência não é tarefa fácil, segundo
Arroyo (2015), a tendência é aprisionar, fechar em um ciclo os conhecimentos que sempre
circularam no espaço da escola como legítimos e verdadeiros, seja no livro didático, nas
práticas docentes ou na cultura escolar. Segundo o autor, é preciso, portanto, quebrar as
barreiras.
Os princípios da professora Júnia condizem com o que preconiza as Orientações
Curriculares para Ciências Humanas do Estado de Mato Grosso/2010, que descreve: “o
professor deve possibilitar situações para que o estudante desenvolva a capacidade de
analisar criticamente os fatos da natureza e da sociedade [...] priorizando as relações sociais
e uma leitura crítica do mundo vivido, construindo conhecimentos” (MATO GROSSO,
2010, p. 25).
A professora relata que os estudantes são bastante participativos, porém ela ressalta
que, às vezes, é impedida de dar continuidade em atividades pela ausência frequente dos
estudantes, provocada pela não regularidade do transporte escolar que atende a comunidade.
Vejamos o relato da professora:
Os alunos são muito participativos, curiosos. O que os atrapalha é a falta de
regularidade do transporte escolar. Aí, os alunos faltam muitas aulas e isso
prejudica muito, por exemplo, as atividades. Às vezes a gente planeja um
seminário, ou uma aula de campo com os alunos, aí o ônibus quebra. A maioria
dos alunos não vem, porque quase todos moram distante da escola e precisam do
ônibus para vir. Então o transporte precário, prejudica até a continuidade de
discussões, às vezes os alunos saem animados num debate de uma aula, e fica para dar continuidade na próxima aula, aí no próximo dia já vem pouco aluno, porque o
transporte não passou, aí ficam desmotivados, né. (informação verbal,
PROFESSORA JÚNIA, 2018)
Nos dias em que fiz observações na escola, pude constatar essa realidade denunciada
pela professora. Durante os dias de observações, notei que, muitas vezes, o transporte
chegou às 7h30min, sendo que a aula já havia iniciado às 7h. Especificamente, no dia da
observação de aula de Geografia, na turma do 9º ano, no período vespertino, o ônibus não
167
apareceu. Nesse dia, estavam presentes na aula apenas sete de um total de quatorze
estudantes, ou seja, metade dos estudantes da turma havia faltado alheios a sua vontade.
A Resolução n.º 08/2012, sobre o transporte escolar, assegura:
Art. 28 Quando se fizer necessária a adoção do transporte escolar no Ensino
Fundamental, Ensino Médio, integrado ou não à Educação Profissional Técnica, e na Educação de Jovens e Adultos devem ser considerados o menor tempo possível
no percurso residência-escola e a garantia de transporte intracampo dos estudantes
quilombolas, em condições adequadas de segurança. [...]Art. 29 O eventual
transporte de crianças e jovens com deficiência, em suas próprias comunidades ou quando houver necessidade de deslocamento para a nucleação, deverá adaptar-se
às condições desses estudantes, conforme leis específicas. [...]Art. 30 O transporte
escolar quando for comprovadamente necessário, deverá considerar o Código Nacional de Trânsito, as distâncias de deslocamento, a acessibilidade, as condições
de estradas e vias, as condições climáticas, o estado de conservação dos veículos
utilizados e sua idade de uso, a melhor localização e as melhores possibilidades de
trabalho pedagógico com padrão de qualidade. (BRASIL, 2012, p. 12).
Como podemos constar, de acordo com a legislação, os estudantes quilombolas tem
direito ao transporte escolar que lhe assegure a frequência na escola, com qualidade e
segurança. Porém, no chão das comunidades quilombolas, o que vem ocorrendo são
descasos e descompromissos com os estudantes quilombolas. Veja o que diz a Relatora dos
Direitos Humanos à Educação/ONU, Denise Carreiro, no Portal do Aprendiz, sobre uma de
suas visitas nas comunidades quilombolas do Pará.
Vejamos o que Denise Carreiro relatou ao Portal:
[...] durante a visita, observou que várias comunidades conquistaram o acesso à
escola, algumas com prédio na própria comunidade, outras tendo de se deslocar
com transporte escolar até uma comunidade próxima. Contudo, esse transporte, feito de maneira precária, é o primeiro obstáculo à educação quilombola.17
O que se percebe é que o problema de transporte escolar não é uma exclusividade do
Quilombo Mata-Cavalo, mas, sim, da maioria dos estudantes quilombolas que dependem de
transporte escolar para chegarem até a escola. Quanto a isso, Júnia narra num tom de
desabafo: “é muito triste ver esse descaso das autoridades com os estudantes quilombolas”.
Além do transporte escolar, a professora Júnia também apresenta alguns problemas
de aparato pedagógico, que prejudicam a sua prática pedagógica. Como mostra o relato a
seguir:
17 Disponível em: https://portal.aprendiz.uol.com.br/arquivo/2011/09/23/relatora-constata-falta-de-estrutura-e-
falhas-pedagogicas-em-escolas-quilombolas/. Acesso em out. 2018.
168
“[...] gostaria na verdade que tivesse mais é multimídia, né, uma internet, para
você levar o aluno...não ficar só na questão da fala, na teoria. [...] porque muitas
vezes, por exemplo, eu estou falando de que: estou falando de um polo industrial
na região Centro-oeste, seria bem mais palpável se eu pudesse pegar esse aluno e
levar num laboratório de informática para ele ver qual que é a localização, onde é
que está esses principais polos de industrialização, porque que são principais polos
de industrialização. Então, se tivesse essa multimídia bem mais presente, seria bem
mais dinâmica as aulas de geografia”. (informação verbal, PROFESSORA JÚNIA,
2018).
A narrativa da professora revela seu saber a respeito da importância do contato com a
tecnologia para enriquecer o seu fazer pedagógico, visto que, ao entrar em contato visual
com o que é tratado na teoria, de uma maneira mais real, o estudante vai ampliando o seu
conhecimento de mundo e tendo a oportunidade de conhecer e, consequentemente,
interpretar melhor o mundo de diferentes formas. Concordamos com Castilho (2011, p. 161)
que “à distância e à falta de condução somam-se outros desestimulantes para que os
estudantes continuem a frequentar a escolar”.
A professora Júnia também atribui algumas falhas na sua prática pedagógica à
escassez de formação continuada para docentes que atuam em escolas quilombolas. Vejamos
o que ela relata:
Em relação à formação específica também é oferecido muito pouco. Nestes cinco
anos que eu estou atuando nesta escola quilombola, eu já participei de apenas dois
cursos que a SEDUC/MT, ofereceu para nós. Agora a pouco tempo em parceria
com a Universidade Federal de Mato Grosso que tivemos mais alguns, bem como
aqui mesmo na escola organizamos grupo de estudos para nos preparar melhor
para na prática docente, porém, ainda é pouco diante de tantas demandas que as
Diretrizes Curriculares para Educação Escolar Quilombola preconizam. E outra,
precisamos de formação continuada numa perspectiva decolonialista, para
desentranhar de nós essa prática pedagógica na perspectiva eurocêntrica. Depois
que eu comecei a fazer mestrado também me ajudou bastante, principalmente em
relação à conscientização da necessidade de refletir sobre a minha prática. (informação verbal, PROFESSORA JÚNIA, 2018)
Esse discurso de Júnia nos possibilita verificar que, mesmo dispondo de pouca
formação continuada voltada para a materialização do currículo quilombola, a professora
procura meios de investir em sua formação profissional, ampliar seus saberes e levar para a
sala de aula conteúdos contextualizados à realidade de seus estudantes e metodologias que
contribuem para formação crítica.
A falta de formação específica para docentes quilombolas já foi constatada nos
estudos de Ferreira e Castilho (2015). As autoras desnudam que “há dificuldade, por parte
dos professores, em ministrar uma educação contextualizada e voltada para a afirmação
169
cultural e identitária dos alunos por falta de formação inicial e ou continuada” FERREIRA;
CASTILHO, 2015, p. 366).
Moraes (2018) defende que, para os professores que atuam em escolas quilombolas,
a formação continuada é condição essencial e indispensável, pois, a partir dos cursos, o
docente tem a possibilidade de ampliar a consciência acerca da especificidade da Educação
Escolar Quilombola, de forma a realizar um ensino que respeite a história e a cultura das
comunidades.
A autora ainda ressalta que os saberes docentes provenientes da formação inicial de
qualquer área do conhecimento, por si só não são suficientes para atender a contento um
currículo específico que requer uma Pedagogia Quilombola.
Contudo, mesmo diante de um contexto tão adverso, marcado, principalmente, pela
falta de recursos didáticos como, mapas, laboratório de informática, para dar suporte às suas
aulas, formação específica, Júnia tenta, a seu modo, construir estratégias para oportunizar
novos conhecimentos aos estudantes, demonstrando saber que a aprendizagem da Geografia
permite “[...] ultrapassar a fase da memorização e conduzir o estudante a atribuir
significados e a entender os processos que ocorrem no ambiente” (MATO GROSSO-CEE,
p. 25).
O decorrer das observações proporcionou subsídios para perceber que a professora
Júnia considera e contempla, no seu fazer pedagógico, conteúdos que dialogam com as
comunidades quilombolas da localidade, garantindo, assim, os conhecimentos e saberes
quilombolas contextualizados. Para a docente, trabalhar numa escola quilombola foi
“vivenciar na prática a questão do pertencimento, que é também, um dos conceitos da
geografia. Do pertencimento, da identidade e da valorização cultural”.
Cumprindo o cronograma apresentado no início, descrevi a prática pedagógica da
professora Júnia, bem como apresentei algumas das dimensões dos seus saberes constituídos
e mobilizados na prática docente. Prosseguindo, descrevo, a seguir, os saberes docentes da
professora Edinete e também suas práticas pedagógicas.
5.6 OS SABERES EVIDENCIADOS DURANTE A OBSERVAÇÃO DA AULA DE
SOCIOLOGIA
Conforme as Orientações Curriculares para a Educação Básica no Estado de Mato
Grosso (2010, p. 81) o ensino da Sociologia,
170
[...] tem como objetivo contribuir para o aprimoramento do estudante como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual
e do pensamento crítico, preparando o estudante para o pleno exercício da
cidadania, entendida como condições de igualdade para o diálogo reflexivo e
crítico na grande rede social, política, econômica e cultural no qual vive. (MATO
GROSSO, 2010).
De acordo com a referida legislação, esses conhecimentos poderão possibilitar aos
estudantes a problematização das questões sociais que perpassam sua vivência cotidiana na
escola, comunidade e demais espaços da sociedade. Assim, podemos entender que a
Sociologia visa orientar o educando para um olhar sociológico acerca das temáticas que se
colocam no contexto da comunidade escolar e da sociedade na qual ele está inserido.
Ainda segundo as Orientações Curriculares de Mato Grosso/2010, os conteúdos e as
atividades de Sociologia desenvolvidos em sala de aula devem levar o estudante a um
“movimento de distanciamento do olhar além de sua própria realidade e de aproximação
sobre outras realidades, para que possa desenvolver uma compreensão de outro nível e
crítica”. Ainda conforme preconiza a referida legislação, para isso, o docente “deve ter
conceitos claros e coesos para fundamentar sua prática pedagógica” (MATO GROSSO,
2010, p. 83). Nesse sentido, a escola há de considerar que os estudantes, ao nela adentrarem,
traz consigo arcabouços históricos, culturais, políticos, resultante da sua interação com seu
meio e com a sociedade. (MATO GROSSO, 2010).
Nessa direção, a escola deve ser entendida como espaço fundamental para
socialização dessas vivências e conhecimentos acumulados historicamente e que pode ser
ressignificado por esse espaço. Contudo, não é suficiente somente a vivência dessa cultura, é
necessário problematizar, refletir, propor ações que facilitem o entendimento das intenções e
relações sociais envolvidas nessas práticas, permitindo construir novos significados (MATO
GROSSO, 2010).
Levando em consideração as reflexões externalizadas pelas Orientações Curriculares
para Educação Escolar Quilombola do Estado de Mato Grosso (2010), dei início à
observação das aulas de Sociologia, que se iniciou no dia 22/10/2018 e se estendeu até as
aulas ministradas no dia 26/10/2018. Ao todo foram observadas três aulas de Sociologia,
sendo uma em cada turma do ensino médio dessa escola.
Importante destacar que as aulas de Sociologia são ministradas pela professora
Edinete Pereira Leite, que é graduada em Matemática e atua como professora contratada na
Escola Estadual Quilombola Profa. Tereza Conceição Arruda há um ano e meio.
171
Especificamente, na disciplina de Sociologia, a mesma atua há, aproximadamente, seis
meses.
Na observação, percebi que as aulas da professora seguem uma rotina uniforme. Ela
chega, cumprimenta os estudantes e, em seguida, inicia a chamada. Sem nenhum diálogo
prévio sobre o assunto a ser estudado, a professora começa a escrever o conteúdo na lousa.
Nas três aulas observadas, a professora usou os 45 minutos, que são o tempo de cada aula no
ensino médio nesta escola, escrevendo na lousa o conteúdo retirado do livro didático, sem
fazer nenhuma introdução prévia. Ao final de cada aula, ela comunicou aos alunos que as
atividades relacionadas aos conteúdos seriam disponibilizadas na próxima aula.
Em conversa com a docente, questionei o motivo das aulas no ensino médio durarem
apenas 45 minutos, vistos que, segundo normativa da Seduc/MT, as aulas devem ser de uma
hora cada. A docente justifica que, no ensino médio, as aulas ocorrem dessa maneira, devido
ao quantitativo de aulas na matriz curricular ser maior que a carga horária do ensino
fundamental. Como a escola atende as duas etapas no mesmo horário e os discentes do
ensino médio não podem chegar mais cedo ou sair mais tarde, porque dependem do
transporte escolar que atende a todos os estudantes num mesmo horário, então, a escola fez
esse arranjo. Ela explicou também que os minutos retirados das aulas normais do ensino
médio são recompensados com atividades extraclasses. Porém não citou quais seriam essas
atividades extraclasses.
Os conteúdos trazidos pela professora são conteúdos pertinentes da Sociologia, tais
como: planejamento familiar e os meios de comunicação em massas, porém a docente, ao
menos durante as minhas observações, não fez nenhuma discussão sobre os temas, nem
mesmo uma fala introdutória sobre do que se trata cada um dos temas. Ou seja, a
participação dos educandos não foi estimulada em momento algum, eles se comportam
como ouvintes e/ou como copiador. Percebe-se uma metodologia aos moldes tradicional.
Perguntada sobre a escolha dos conteúdos de Sociologia, a docente responde: “Na
disciplina de sociologia eu julgo importante falar da história da comunidade e também do
livro didático né, que tem... pra eles entenderem melhor a história da Comunidade deles e
estarem passando também essa história adiante” (informação verbal, PROFESSORA
EDINETE, 2018).
Pela fala da professora e na observação do seu planejamento anual das aulas,
constatei que os conteúdos ministrados para as turmas do ensino médio compõem de uma
listagem de conteúdos transcritos tal e qual se apresenta no livro didático de Sociologia
adotado pela escola. Não encontrei, no plano, nenhum conteúdo, nenhuma referência ligada
172
à luta pela terra, à história e à identidade do negro, apesar de, na sua fala, a professora
reconhecer a importância de se falar da história da comunidade. Em relação ao uso restrito
do livro didático, eu trago uma fala da professora que reforça a sua dependência desse
recurso: “[...] Você tem que estar passando no quadro, dividindo livro para eles estarem
lendo, né, do livro para poder estar adquirindo mais conhecimento”.
Ao não problematizar os conteúdos estudados em Sociologia e não os articular com a
realidade dos educandos, a docente está na contramão do que preconiza as Orientações
Curriculares do Estado de Mato Grosso/2010, que assegura que os conhecimentos da
Sociologia “poderão possibilitar aos estudantes a problematização das questões sociais que
perpassam sua vivência cotidiana na escola, comunidade e demais espaços da sociedade”
(MATO GROSSO, 2010, p.82).
Ademais, o mesmo documento destaca que as práticas pedagógicas e todas as ações
desenvolvidas no âmbito da escola precisam levar em conta a cultura e tradições do povo
quilombola, respeitando as peculiaridades e demandas, criando espaços de aprendizagem
coletiva e incentivando a prática e as trocas de experiências que emergem do chão da
comunidade (MATO GROSSO, 2010).
Nesse sentido, segundo as orientações, ressalta-se ainda que:
[...] o ensino de Sociologia não compete à transmissão de conteúdos e conceitos da
área, mas estes devem estar correlacionados à prática cotidiana dos estudantes, para que, no conjunto com as demais áreas de conhecimento, o estudante possa
desenvolver-se como ser humano, construindo seu projeto pessoal e seu
entendimento enquanto agente participante dos caminhos da sociedade (MATO
GROSSO, p. 83).
Um fato que vale a pena ressaltar também é o de que a professora Edinete não está
atuando na sua área de formação. Apesar de a docente ser graduada em Matemática, ela está
atuando na disciplina da área de Ciências Humanas, ou seja, totalmente fora de sua área de
formação. Vejamos o que ela diz sobre isso:
Na sala de aula a maior dificuldade que eu venho encontrando, é que eu atuo numa
área que eu não sou formada. Não tenho pleno conhecimento daquela área. Eu tento me esforçar ao máximo. Leio os livros, faço pesquisa na internet, para eu
estar por dentro daquela área que eu estou dando. A maior dificuldade é essa. Pois
o que eu sei mesmo, o que eu estudei mesmo, eu não atuo. Eu acho que se eu
estivesse atuando na minha disciplina que eu fiz, eu estaria sendo bem melhor. Ou
ainda se eu tivesse tido uma orientação, uma formação para atuar em outra área,
acho que também me ajudaria muito. (informação verbal, PROFESSORA
EDINETE, 2018).
173
A contratação de professores fora da sua formação nos leva a retomarmos aqui a
ideia da polivalência, homologado pelo Parecer n.º 895/71, que indicava que o professor
polivalente poderia atuar do ensino fundamental ao ensino médio, podendo ministrar
disciplinas diferentes (Cruz, 2012).
O parágrafo 4° do artigo 3° da Lei n.º 9.394 de 20 de dezembro de 1996 afirma: “a
formação de professores para atuação em campos específicos dos conhecimentos far-se-á em
cursos de licenciaturas, podendo os habilitados atuarem no ensino da sua especialidade, em
qualquer etapa da educação básica, desde que tenha formação adequada”.
Porém, de acordo com Dalberio e Bertoldi (2012), com as disciplinas estudadas
durante sua formação, o professor tem permissão para atuar em uma área que não seja a sua.
Segundo os autores, isso pode ocorrer na ausência de um professor formado na área, fato
que ocorre com a professora Edinete. Perguntada do porquê de ela atuar numa área
totalmente alheia à sua graduação, Edinete assim responde:
É que está faltando professores habilitados nessas áreas e como são poucas turmas,
resultando em apenas 03 aulas de sociologia, a escola não encontrou nenhum
professor habilitado na sociologia para ministrar as aulas, então eu as peguei e estou me esforçando bastante para fazer o melhor para os estudantes. (informação
verbal, PROFESSORA EDINETE, 2018).
O relato de Edinete nos leva a constatar que, ainda hoje, o que foi desvelado por Cruz
(2012, p. 2905) de que “a noção de polivalência estaria associada a uma relação
economicista de relação “custo-benefício”, sob a justificativa de se suprir o déficit de
professores para atuarem na crescente população escolar com ensino obrigatório”, ainda é
realidade, principalmente, nas escolas rurais.
No caso da Escola Estadual Professora Tereza Conceição Arruda, a polivalência
acontece pelo fato de não se ter professor habilitado na disciplina e a dificuldade de algum
professor de fora do território matacavalense deslocar para ministrar apenas três aulas, que
corresponde ao total de aula de sociologia no ensino médio da escola.
Sobre a preparação do professor para atuar em diferentes áreas, Cruz (2012) baseia
suas conclusões nos estudos de Gatti (2008) sobre o tema do professor polivalente.
Conforme Cruz (2012), os estudos de Gatti constatou que há insuficiência na formação
inicial na perspectiva polivalente, pois em tais cursos foi verificado superficialidade no trato
dos conteúdos das diversas áreas do conhecimento (Português, Matemática, Geografia, entre
outros) que compõem o currículo da educação básica. Essa falha na formação inicial para
174
atuar nas diversas áreas do conhecimento nos leva a entender as dificuldades desveladas pela
professora Edinete.
Conforme a Lei n.º 9394/96, sobre a garantia do direito à formação continuada, por
meio do seu artigo 2º, afirma:
Os cursos de formação de professores para a educação básica serão organizados de modo a atender aos seguintes requisitos: (1) compatibilidade com a etapa da
educação básica que atuarão os graduados; (2) possibilidade de complementação
de estudos, de modo a permitir a atuação em outra etapa da educação básica; (3)
formação básica comum, com concepção curricular integrada, de modo a assegurar
as especificidades do trabalho do professor na formação para atuação
multidisciplinar e em campos específicos do conhecimento; (4) articulação entre os
cursos de formação inicial e os diferentes programas e processos de formação
continuada. (BRASIL, 1996).
A partir do que preconiza a referida legislação, a professora Edinete e demais
professores que atuam fora da sua graduação e mesmo os que atuam na sua habilitação
teriam direito a uma formação para atuação multidisciplinar.
Porém, segundo Tardif (2002), existem “problemas epistemológicos” na formação
acadêmica, problemas que se encontram na maior parte nos objetivos de formação, como,
por exemplo, a separação entre a pesquisa, a formação e a prática, “três polos separados: os
pesquisadores produzem conhecimentos que são em seguida transmitidos no momento da
formação e finalmente aplicados a prática” (TARDIF, 2002, p. 270). Assim, de acordo com
o autor:
Os cursos de formação para o magistério são globalmente idealizados segundo um
modelo aplicacionista do conhecimento: os alunos passam um certo número de
anos a assistir aulas baseadas em disciplinas e constituídas de conhecimentos
proposicionais. Em seguida, ou durante essas aulas, eles vão estagiar para
“aplicarem” esses conhecimentos. Enfim, quando a formação termina, eles
começam a trabalhar sozinhos, apreendendo seu ofício na prática e constatando, na
maioria das vezes, que esses conhecimentos proposicionais não se aplicam bem na
ação cotidiana. (TARDIF, 2002, p. 270).
Para Tardif (2002), os saberes dos professores, além de temporais e plurais, resultam
dos currículos e das disciplinas que apreenderam durante seu percurso escolar e esses podem
estar fragmentados pela negligência dos seus mestres durante sua formação, ou seja, o
distanciamento entre a teoria e a realidade que acontece nos espaços escolares.
Na observação e na conversa com a professora, foi possível observar que os saberes
docentes que prevalecem na sua prática pedagógica são os saberes disciplinares e os saberes
curriculares. Segundo Tardif (2002, p. 40), “esses saberes não são o saber dos professores
175
nem o saber docente”. Conforme o autor, esses saberes, ou seja, os saberes disciplinares e os
saberes curriculares “situam numa situação de exterioridade em relação à prática docente:
eles aparecem como produtos que já se encontram consideravelmente determinados em sua
forma e conteúdo, produtos oriundos da tradição cultural e dos grupos produtores de saberes
social”.
Nesse sentido, a professora Edinete pode ser comparada, segundo Tardif (2002), a
mera executora destinada à tarefa de transmissão de saberes escolares. Ou seja, um saber da
Pedagogia. Talvez isso aconteça, principalmente, pelo fato de a professora estar atuando fora
de sua formação, somado ao fato de que a mesma atua há apenas um ano e meio no
exercício do magistério.
Em abordagens convergentes, Tardif (2014) e Borges (2004) expressam que os
saberes docentes passam por transformações vinculadas às diversas etapas da carreira
docente, caracterizando diferentes fases da vida e da prática profissional, a exemplo
podemos citar, “[...] as parcerias, as experiências adquiridas em diferentes estabelecimentos
escolares, a participação em eventos, seminários e programas de formação continuada, as
leituras e estudos, entre outros momentos da carreira” (BORGES, 2004, p. 83).
Como evidenciado em sua história de vida, a professora Edinete é quilombola de
Mata-Cavalo, descendente de um dos negros escravizados em Mata-Cavalo e que receberam
a terra por doação. Porém, conforme pôde ser observado a partir da fala da professora, ela
não se inclui como pertencente da comunidade, quando diz “[...] pra eles entenderem
melhor a história da Comunidade deles”. Outro fato que chamou atenção foi o de, no
questionário de perfil do educador, aplicado por mim com os sujeitos participantes da
pesquisa, no quesito raça/cor, ela se autodeclarar como sendo amarela.
Apesar de não ter nascido na comunidade, vale ressaltar que ela já convive na
comunidade há bastante tempo, como pode ser observado no relato feito por ela:
Eu sou quilombola, porém não nasci, nem fui criada na comunidade. Minha mãe e
minhas irmãs que já moram aqui há mais de 15 anos. Mas mesmo não morando aqui no Mata-Cavalo, eu sempre frequento muito aqui. Venho na casa das minhas
irmãs e agora que estou dando aula aqui na escola, eu estou passando mais tempo
aqui na comunidade. (informação verbal, PROFESSORA EDINETE, 2018).
Podemos entender essa dificuldade de reconhecimento e pertença da professora a
partir do Olhar de Castilho (2011), que sobre isso escreve:
176
Os novos estabelecidos em Mata-Cavalo – as famílias mais distantes dos troncos
familiares (dos antigos), e que reocuparam as terras no Quilombo mais
recentemente-estão tentando juntar seus pedaços por meio do que contam os mais
velhos. [...]. Percebem-se a dificuldade deles em se reconhecerem e expressarem o
sentimento de pertença com a mesma profundidade e emoção que os antigos
moradores o fazem. (CASTILHO, 2011, p. 89).
A partir de Castilho (2011), podemos constatar que, apesar da professora ser uma
matacavalense, talvez o fato de não ter nascido e convivido na comunidade, faz com que ela
não tenha a memória sobre sua ancestralidade, dificultando o seu pertencimento com o
lugar, apesar de atualmente conviver nele.
Outra possibilidade é que essa apreendência da docente aponta que no convívio
social dos quilombolas existem famílias que ainda estão impregnadas de fragmentos de
estereotipação do negro. O fato de alguns não se reconhecerem negros “relaciona-se com a
questão da estereotipação iniciada na família que, ao ver o negro negativamente, impõe, de
certa forma, a desvalorização dessa cultura” (ANDRADE, 2018, p. 126).
Andrade (2018) ressalta que essa visão estereotipada se fortalece nos movimentos
impostos pela cultura dominante, quando trata da questão da negritude em datas específicas
com festividades em favor da folclorização e, ainda, por meio da mídia, que, muitas vezes,
adentrando as famílias, traz junto à criança negra, “a visão negativa que acaba se
constituindo em baixa autoestima, quando adolescente, jovem, e principalmente na
dificuldade de se aceitar e se ver como tal, diante desse outo lado da história” (ANDRADE,
2018, p. 127).
Contudo, apesar de suas dificuldades, a professora Edinete se diz feliz por estar
trabalhando na escola da sua comunidade e que se esforça para melhorar sua prática docente.
5.7 OS SABERES EVIDENCIADOS DURANTE A OBSERVAÇÃO DA AULA DE
FILOSOFIA
De acordo com o que preconiza as Orientações Curriculares do Estado de Mato
Grosso/2010, a disciplina de Filosofia “tem por tarefa apresentar temas, problemas e
reflexões da tradição filosófica interligada aos eixos articuladores centrais das áreas de
conhecimento, particularmente com aqueles da área de ciências humanas e suas
tecnologias”. Sobretudo nesse processo, “[...] os docentes de Filosofia são alertados a não
perder de vista a valorização da experiência do estudante, sua realidade social e seus focos
177
de interesse, sem os quais o desencadeamento da investigação e reflexão filosóficas não
avança” (MATO GROSSO, 2010, p. 71).
Ainda conforme as Orientações Curriculares do Estado de Mato Grosso, quanto aos
processos cognitivos e comportamentos atitudinais a serem perseguidos, os objetivos da
Filosofia são:
Colaborar para a efetivação de reflexões pertinentes à participação política (através
da filosofia política) e do agir humano na sociedade (através da ética), fazendo o
mesmo com os elementos que dizem respeito à estrutura e à validação dos conhecimentos (através da lógica, da teoria do conhecimento e da filosofia da
ciência) e com os valores estéticos e culturais presentes na história passada e na
sociedade contemporânea (através da antropologia, filosófica e estética),
[...]ancorado sempre na interligação entre a tradição e os procedimentos da
investigação filosóficos e as experiências do estudante. (MATO GROSSO, 2010,
p. 73).
Levando em consideração as reflexões externalizadas pelas Orientações Curriculares
para Educação Escolar Quilombola do Estado de Mato Grosso (2010), dei início à
observação das aulas de Filosofia, que se iniciou no dia 25/10/2018 e se estendeu até as
aulas ministradas no dia 29/10/2018. Ao todo foram observadas três aulas de Filosofia,
sendo uma em cada turma do ensino médio dessa escola.
Vale destacar que as aulas de Filosofia, assim como as de sociologia, são ministradas
pela professora Edinete Pereira Leite, que é graduada em Matemática e atua como
professora contratada na Escola Estadual Quilombola Profa. Tereza Conceição Arruda há
um ano e meio. Assim como na Sociologia, na Filosofia, a professora também atua há
aproximadamente seis meses.
Da mesma maneira como observado na aula de Sociologia, nas aulas de Filosofia, a
rotina da professora segue uniformemente. Ela chega, cumprimenta os estudantes e em
seguida inicia a chamada. Porém em relação aos tratos em relação aos conteúdos, nota-se
uma pequena diferença.
Enquanto nas aulas de Sociologia que observei a professora não dialogou sobre o
conteúdo a ser escrito no quadro, em relação à disciplina de Filosofia, a professora realizou
introdução sobre o tema a ser ministrado. Porém essa introdução se limitou ao conteúdo
descrito no livro didático.
Na observação na turma do 3º ano do ensino médio, após a chamada, a docente fez
uma breve introdução sobre cultura, conteúdo que será estudado pela turma. A introdução
foi feita somente levando em conta o descrito no livro didático, sem nenhuma articulação
com a realidade do educando. Após a breve introdução, a professora utilizou os minutos
178
restantes para escrever o conteúdo na lousa. O conteúdo escrito na lousa estava sendo
retirado do livro didático. Ao término da aula de 45 minutos, a professora disse aos
educandos que continuaria o conteúdo na próxima aula.
Contudo, as orientações curriculares preconizam:
Que para além da observação e do atendimento de uma adequada seleção dos conteúdos a partir da tradição filosófica, possa poder obter ganho significativo em
termos formativos ao concentrar-se nos procedimentos da leitura e da investigação
filosóficas – a linguagem, a construção de significados e de conceitos, a
sistematicidade e encadeamento dos argumentos. E, dessa forma, proporcionar ao
estudante a compreensão e utilização dos procedimentos de análise, de
argumentação e de crítica filosóficos na leitura dos próprios textos filosóficos e em
outros contextos. (MATO GROSSO, 2010. p. 73).
Ou seja, segundo as Orientações Curriculares do Estado de Mato Grosso para manter
a riqueza da Filosofia, o docente precisa manter vivas as pluralidades das Filosofias. Para
isso, as metodologias precisam estar afinadas com os próprios procedimentos das atividades
filosóficas, pois essa pluralidade possibilita ao educando a ampliação do senso comum,
favorecendo a passagem do senso comum para o conhecimento científico.
Para evitar riscos e equívocos no ensino da Filosofia, a citada legislação sugere:
(a) A tradição filosófica através do texto de Filosofia. Com o adequado
conhecimento dos temas, dos problemas e dos procedimentos da Filosofia por
parte do professor, variados recortes didáticos podem ser efetuados sem ferir as finalidades almejadas, bem como as próprias especificidades do saber filosófico.
Tais recortes ou enfoques necessitam estar apoiados na História da Filosofia, daí a
importância do recurso permanente ao texto filosófico como meio prioritário de
contato com a Filosofia e seus procedimentos de análise e de interpretação. b) Por
outro lado, é preciso manter uma tripla articulação entre os conteúdos e
procedimentos da Filosofia, as capacidades intelectuais e as experiências culturais
vividas pelo estudante. A apresentação da linguagem filosófica e da produção
conceitual da filosofia precisa ser mediada pela ação pedagógica do professor, de
forma a ser explorada gradual e progressivamente, crescendo em rigor expositivo e
complexidade conceitual conforme o desenvolvimento intelectual dos estudantes e
seu interesse pelas questões tratadas. (MATO GROSSO, 2010).
Segundo as Orientações Curriculares, o docente necessita de formação, ou seja, de
um profundo conhecimento sobre a tradição e a didática filosófica para realizar uma prática
pedagógica que favoreça o aprendizado dos educandos. O que não foi oferecido para a
professora Edinete, conforme ela própria relatou anteriormente.
Conforme Nóvoa (1992) a formação contínua pode ser muito útil para potencializar a
prática profissional. Para o autor, é preciso investir positivamente nos saberes de que o
179
professor é portador, trabalhando-os de um ponto de vista teórico e conceitual, uma vez que
os desafios que ele é intimado a enfrentar apresentam características singulares.
A formação dos professores possibilita a revisão de saberes já consolidados, bem
como a incorporação de novos saberes, pois segundo Freire (1996, p. 25) ‘quem forma, se
forma e re-forma ao formar, e quem é formado forma-se e forma ao ser formado. [...] Quem
ensina aprende a ensinar, e quem aprende, ensina ao aprender’.
Assim, conforme Soares (2012), a formação deve fornecer subsídios teóricos para
que os professores repensem suas ações pedagógicas de forma que em sua prática
pedagógica valorize as referências históricas, socioculturais e econômicas dos estudantes e
em seu currículo incorpore os cenários da vida cotidiana dos mesmos. Pois, “se o trabalho
modifica o professor, modifica também, sempre com o passar do tempo o seu saber
trabalhar” (TARDIF, 2002, p.57). Reafirmando o entendimento de Soares (2012) quanto às
legislações pertinentes à Educação Escolar Quilombola, ainda se apregoa que docentes e
equipe gestora devem empreender esforços visando garantir uma educação que contemple as
particularidades e especificidades étnicas, culturais, políticas e históricas das comunidades
quilombolas. Nesse sentido, um plano de aula coerente com os pressupostos requeridos pela
modalidade de Educação Escolar Quilombola necessitaria, além de outros conteúdos, a
inserção de elementos da cultura negra.
Baseados nos pressupostos legislativos para o ensino da Filosofia na modalidade
quilombola, ousamos questionar: o que esperar da prática pedagógica na disciplina de
Filosofia nessa escola quilombola, onde o professor não é formado na disciplina, onde o
docente praticamente não recebe nenhum acompanhamento técnico-pedagógico que possa
auxiliar na execução do programa de ensino, nos objetivos a serem alcançados, conteúdos,
metodologias?
A prática da professora, por falta de formação continuada e alternativas diferentes,
baseia-se nos conteúdos trazidos nos livros didáticos. E temos que concordar com Castilho
(2011) quando desvela que os conteúdos trazidos pelo livro didático não incluem as escolas
quilombolas. Ainda segundo a autora, outra dificuldade que o livro didático traz é grande
quantidade de propostas de atividades que o aluno que reside nas comunidades quilombolas
rurais não tem possibilidade de responder, ora por estar distante da realidade do educando,
ora por falta de recursos que permitam ao estudante a prática da pesquisa (biblioteca,
internet, etc.).
Na entrevista com a professora Edinete, percebe-se que há uma vontade de se fazer
um trabalho contextualizado com o cotidiano do educando quilombola, conforme preconiza
180
as Orientações Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola e a do Estado de
Mato Grosso, porém, por falta de preparo para lidar com essa metodologia, ela acaba por
realizar um trabalho de transmissão de conteúdo, ou seja, nenhuma articulação do saber
científico com o saber local do estudante quilombola.
Concordando com Castilho (2011), que o intuito não é vitimizar ou culpar a docente,
a intenção é refletir criticamente sobre a gravidade do problema: a relação de esquecimento
e exclusão que o Estado estabelece com a escola quilombola, mesmo com a presença de uma
legislação que garanta sua especificidade com garantia de qualidade. Importa também
colocar em relevo as implicações acarretadas dessa relação descompromissada, tais como:
baixa qualidade de ensino, evasão escolar, entre outras.
A partir dessa realidade vivenciada na escola de Mata-Cavalo, concordamos com
Castilho (2011, p. 177), ao afirmar que “imputar aos sujeitos abarcados no processo de
ensino-aprendizagem a responsabilidade pelo fracasso da escola, [...] é desresponsabilizar o
Estado por seu histórico descompromisso com a maioria das populações rurais, na qual se
inclui as comunidades quilombolas”.
Diante das situações refletidas neste capítulo, foi possível apreender que os saberes
mobilizados pelas docentes, Eliane Prado, Júnia Auxiliadora e Edinete Pereira, na Escola
Estadual Professora Tereza Conceição Arruda, são oriundos de experiências vivenciadas em
vários momentos da vida, inclusive de conhecimentos adquiridos antes de escolher a
profissão docente. São conhecimentos processuais, que se amalgamam em meio às
multiplicidades de sentidos, englobando aí os saberes oriundos de diferentes naturezas: os da
formação profissional, os saberes disciplinares, saberes curriculares e saberes experienciais.
Na observação e na entrevista das professoras também ficou evidenciada a
necessidade de que haja, seja na formação inicial ou continuada, abordagem sobre a temática
quilombola, pois dessa maneira possibilitará aos docentes que atuam diretamente nesta
modalidade educacional, construírem e colocar em prática a pedagogia quilombola,
alicerçados nas legislações pertinentes à Educação Escolar Quilombola.
A escrita seguinte é dedicada às discussões referentes aos resultados obtidos a partir
dos objetivos da pesquisa, englobando as apreensões da realidade do cotidiano trazidas nas
narrativas das professoras entrevistadas sobre os saberes mobilizados pelas professoras da
Escola Estadual Professora Tereza Conceição Arruda, na área de Ciências Humanas, e se os
mesmos em sua prática pedagógica articulam os saberes científicos com os saberes locais
em seu contexto sócio-histórico-cultural, conforme preconiza a Resolução n.º 08/2012 e as
Orientações Curriculares do Estado de Mato grosso para essa modalidade.
181
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste trabalho, propomo-nos a descrever quais saberes mobilizam os professores da
área de Ciências Humanas da Escola Estadual Professora Tereza Conceição Arruda e se os
mesmos articulam, nas suas práticas pedagógicas, o conhecimento científico e os
conhecimentos tradicionais quilombolas em seu contexto sócio-histórico-cultural.
Para descrever o lócus de pesquisa, a Escola Estadual Professora Tereza Conceição
Arruda, fez-se necessário um breve relato do processo histórico do Quilombo Mata-Cavalo.
Ao perscrutar a história da comunidade quilombola de Mata-Cavalo, deparei-me com o
negro matacavalense escravizado, expropriado, marginalizado, que se organizam em torno
da luta pela regularização fundiária e por políticas públicas, como saúde, educação, moradia,
saneamento básico, que favoreçam uma melhor condição de existência dos quilombolas.
Nos trilhos dessas histórias, vi descortinar, por intermédio das vozes dos anciões, a
luta secular entre um projeto de liberdade e vida, contra um projeto de injustiça e exclusão,
em que os humanos mais pobres são desumanizados pela estrutura social racista e capitalista
da sociedade brasileira, na qual a “diferença” é usada como desculpa para promover a
desigualdade social. Porém, nos deparamos também com uma população que, apesar de
viver anos invisibilizados pelo poder público, não se calaram; buscaram e, ainda buscam,
diariamente, fazer-se ouvir pela sociedade, pelos representantes políticos, em vista da luta
pelo cumprimento dos seus direitos.
Ao descrever o lócus desta pesquisa, possibilitou-se a análise das Políticas Públicas
de Educação Escolar Quilombola na Escola Estadual Professora Tereza Conceição Arruda,
e, dessa forma, entendemos que, apesar dos avanços significativos ocorridos em termos
legais, a realidade da maioria das escolas quilombolas do Brasil, seja em território
quilombola ou que atende alunos oriundos de comunidades quilombolas, a pesquisa nos
revelou que as dificuldades enfrentadas diariamente pelos professores e estudantes são
colossais, marcadas pela precariedade de recursos didáticos e pedagógicos, pela inexistência
de laboratório de informática, biblioteca, internet e transporte escolar de qualidade. Aliado a
todos os obstáculos citados, está a insuficiência dos recursos destinados à merenda escolar e
a escassez de oferta de formação continuada específica para os professores que atuam na
referida escola.
182
As precariedades enfrentadas para a materialização dessa modalidade no chão das
escolas quilombolas já foi retratada nas pesquisas de Castilho (2011), Ferreira (2015) e
Carvalho (2016), pesquisadores do grupo de Pesquisa GEPEQ da UFMT. Dessa forma,
compreendemos que existe uma disparidade entre a legislação e a concretude, em que a
escola quilombola ainda não é protagonista.
A questão central que norteou esta pesquisa pode ser assim compreendida: quais
saberes os docentes da área de Ciências Humanas do ensino fundamental e médio da Escola
Estadual Quilombola Profa. Tereza Conceição Arruda mobilizam em suas práticas
pedagógicas? Nas práticas pedagógicas desses professores, articulam-se o conhecimento
científico e os conhecimentos tradicionais quilombolas em seu contexto sócio-histórico-
cultural? Quais são as experiências formativas oportunizadas a esses docentes?
Para melhor compreensão do contexto no qual o estudo se insere, fez-se necessário
abordar diversos temas, tais como, o conceito de quilombo, luta pela terra, território,
história, memória, cultura, identidade, conceito de Educação Escolar Quilombola, Diretrizes
Curriculares, currículo, práticas pedagógicas, saberes docentes, formação de professores.
Todos esses temas compõem o conjunto que esta pesquisa busca apreender e se fez
necessário para entender a Educação Escolar Quilombola e os saberes mobilizados pelos
professores da Escola Estadual Professora Tereza Conceição Arruda na sua prática
pedagógica.
Durante a realização do trabalho, oportunizou evidenciar na observação das aulas da
área de Ciências Humanas que os saberes curriculares e disciplinares estão consolidados,
pois os professores expressam uma ação alinhada ao seu discurso, demonstrando preocupar-
se mais com o aprendizado dos estudantes do que com a quantidade de conteúdo ou prazos
estabelecidos pela matriz curricular anual e lidam bem com as estratégias de ensino que
costumam escolher para ministrar os conteúdos. Os saberes experienciais se evidenciam
principalmente nas aulas da professora Júnia, que está há mais tempo no exercício do
magistério, à medida em que os docentes recorrem aos saberes construídos durante a sua
trajetória de vida pessoal e profissional para implementar as aulas com ações e
procedimentos diferenciados, mesmo diante de situações complexas.
Ficou notabilizado que as professoras das disciplinas de Geografia e História, em
suas práticas, conseguiram fazer ou estabelecer relação entre o que estava sendo apresentado
aos alunos com a realidade local quilombola. Dessa maneira, as práticas pedagógicas das
professoras em questão estão em consonância com o proposto nas Orientações Curriculares
183
para Educação Escolar Quilombola do Estado de Mato Grosso e nas Diretrizes Curriculares
Nacionais para Educação Escolar Quilombola.
No entanto, é importante destacar que a professora das disciplinas de Filosofia e
Sociologia, nas aulas observadas, em nenhum momento, conseguiu fazer ou estabelecer
relação entre o que estava sendo apresentado aos educandos, retirados do livro didático, com
a realidade local quilombola, que pode ser justificada pelo fato de seu curto tempo no
exercício do magistério, fora da sua área de graduação, como também pela escassez da
formação específica para atuar na escola quilombola.
As narrativas das professoras revelam a carência e a necessidade de formação
continuada. Elas relatam, ainda, que a formação continuada ofertada pela Seduc/MT não
contemplou a maioria dos professores da escola. Elas expõem suas dificuldades e angústias,
por não se sentirem preparadas o bastante para atuar numa escola quilombola. Em razão
disso, consideramos que, sem a formação continuada que prepare o professor para atuar
nessa pedagogia própria, para uma educação que promova a valorização da cultura e a
afirmação identitária, fica bastante comprometida.
A partir deste contexto, é necessário estabelecer um diálogo entre as instituições
responsáveis pela implementação das políticas públicas para essa modalidade e as
instituições educacionais quilombolas e, a partir daí, promover ações para que as
necessidades formativas sejam remodeladas a fim de ofertar aos professores um curso que os
potencialize a efetivar a pedagogia quilombola, em consonância com os preceitos legais.
Ainda assim, é interessante registrar que, mesmo perante todas as adversidades em
que os docentes se esbarram cotidianamente no ambiente escolar, a exemplo da falta de
formação adequada, inexistência de recursos didáticos e pedagógicos, os professores
participantes da pesquisa não medem esforços na tentativa de empreender ações cada vez
mais alinhadas ao contexto escolar quilombola e às vivências dos estudantes. Percebem-se
ações inovadoras na prática pedagógica, principalmente, nas disciplinas de História e
Geografia, rompendo com a prática pedagógica tradicional, sempre respeitando o tempo de
maturidade cognitiva e social de cada educando envolvido no processo de ensino-
aprendizagem.
Por fim, acreditamos ser necessário o estreitamento entre as escolas quilombolas, os
quilombos, as universidades, faculdades e movimentos sociais, para que possam continuar
suscitando debates em torno das temáticas pertinentes à modalidade Educação Escolar
Quilombola e, dessa forma, consigam serem desvelados outros aspectos relevantes atrelados
ao tema, pois entendemos que a escola não pode mais permanecer atuando perante os seus
184
educandos, ideologicamente, como se todos fossem iguais, reproduzindo um ideal abstrato
dos sujeitos e, ao mesmo tempo, transmitindo uma neutralidade em seus conteúdos
curriculares.
Salientamos a necessidade de uma proposta de pedagogia quilombola que envolva
aqueles saberes das comunidades quilombolas e um intercâmbio de conhecimentos entre
diversas áreas para que venham a contribuir com a elaboração de um currículo pertinente a
essa modalidade. Para esse fim, necessita pensar a educação quilombola com base nos
contextos de uso do território, da etnicidade e da memória presentes nas narrativas dos
quilombolas.
185
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