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1 Hanseníase: uma doença muito complexa para um paradigma simples de eliminação Diana N.J. Lockwood 1 & Sujai Suneetha 2 Boletim da Organização Mundial da Saúde // março 2005, 83 (Vol. 3; página 230) RESUMO É possível eliminar a Hanseníase? Este artigo considera a questão em relação ao contexto do programa de eliminação da Hanseníase da Organização Mundial de Saúde (OMS). Em 1991, a Assembléia Mundial de Saúde estabeleceu a meta de eliminar a Hanseníase como problema de saúde pública até 2000. A eliminação se definiu como o alcance de uma prevalência de < 1 caso por 10.000 habitantes. O programa de eliminação teve êxito na distribuição de um esquema antibiótico altamente eficaz ao redor do mundo. Porém, apesar desse avanço, o coeficiente de detecção de casos novos continua estável nos países com maior taxa de endemicidade para Hanseníase, como Brasil e Índia. Isso sugere que a transmissão não foi controlada adequadamente somente com antibióticos. Talvez seja mais apropriado classificar a Hanseníase como uma doença crônica estável do que uma doença transmissível aguda sensível a estratégias de eliminação. Em muitos países, atividades para controlar e tratar a Hanseníase estão sendo integradas no sistema geral de atenção à saúde. Isso reduz o estigma associado à doença. Mesmo assim, a Hanseníase causa complicações imunológicas, incapacidades e deformidades duradouras. As atividades de tratamento e prevenção de incapacidades devem ser realizadas dentro de um contexto de atenção integrada à saúde. A detecção de casos novos e o monitoramento de incapacidades causadas pela Hanseníase vão ser desafios no futuro. Uma solução é a implementação de um sistema de vigilância em países prioritários com maior taxa de endemicidade para que uma estimativa real da carga de Hanseníase seja determinada. Também é essencial que pesquisas diversas sobre essa doença desafiadora continuem até a resolução real dos problemas. Palavras-chave: Hanseníase / diagnóstico / prevenção e controle / complicações; Doença crônica / terapia; Mecanismos de provisão de atenção integrada à saúde; Quimioterapia / combinada; Pesquisa biomédica (fonte: MeSH, BIREME) Introdução A Hanseníase é causada pelo Mycobacterium leprae e se manifesta nos danos à pele e nervos periféricos. A doença é temida por causa dos danos que ocorrem em pés e mãos fracos e anestésicos, bem como a cegueira e deformidade facial. É estimado que, ao redor do mundo, 2 milhões de pessoas têm incapacidades como resultado das conseqüências da Hanseníase. A poliquimioterapia (PQT) para Hanseníase é altamente eficaz na cura da infecção micobacteriana, mas o tratamento dos danos neurais é muito mais difícil. Em 1991, a Assembléia Mundial de Saúde estabeleceu a meta da “eliminação da 1 Hansenóloga clínica, London School of Hygiene and Tropical Medicine, Rua Keppel, Londres WC1E 7HT, Reino Unido (email: [email protected] ) Correspondência deve ser enviada a essa autora 2 Hansenóloga aposentada, Blue Peter Research Centre 3, Cherlapally, Hyderabad, Índia. Referência número 04-013730 (Entregue para revisão em 30 de março de 2004 – Versão final e revisada entregue em 20 de outubro de 2004 – Aceito para publicação em 21 de outubro de 2004)

Hanseníase: uma doença muito complexa para um paradigma simples de eliminação

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Hanseníase: uma doença muito complexa para um paradigma simples de eliminação Diana N.J. Lockwood1 & Sujai Suneetha2

Boletim da Organização Mundial da Saúde // março 2005, 83 (Vol. 3; página 230)

RESUMO É possível eliminar a Hanseníase? Este artigo considera a questão em relação ao contexto do programa de eliminação da Hanseníase da Organização Mundial de Saúde (OMS). Em 1991, a Assembléia Mundial de Saúde estabeleceu a meta de eliminar a Hanseníase como problema de saúde pública até 2000. A eliminação se definiu como o alcance de uma prevalência de < 1 caso por 10.000 habitantes. O programa de eliminação teve êxito na distribuição de um esquema antibiótico altamente eficaz ao redor do mundo. Porém, apesar desse avanço, o coeficiente de detecção de casos novos continua estável nos países com maior taxa de endemicidade para Hanseníase, como Brasil e Índia. Isso sugere que a transmissão não foi controlada adequadamente somente com antibióticos. Talvez seja mais apropriado classificar a Hanseníase como uma doença crônica estável do que uma doença transmissível aguda sensível a estratégias de eliminação. Em muitos países, atividades para controlar e tratar a Hanseníase estão sendo integradas no sistema geral de atenção à saúde. Isso reduz o estigma associado à doença. Mesmo assim, a Hanseníase causa complicações imunológicas, incapacidades e deformidades duradouras. As atividades de tratamento e prevenção de incapacidades devem ser realizadas dentro de um contexto de atenção integrada à saúde. A detecção de casos novos e o monitoramento de incapacidades causadas pela Hanseníase vão ser desafios no futuro. Uma solução é a implementação de um sistema de vigilância em países prioritários com maior taxa de endemicidade para que uma estimativa real da carga de Hanseníase seja determinada. Também é essencial que pesquisas diversas sobre essa doença desafiadora continuem até a resolução real dos problemas. Palavras-chave: Hanseníase / diagnóstico / prevenção e controle / complicações; Doença crônica / terapia; Mecanismos de provisão de atenção integrada à saúde; Quimioterapia / combinada; Pesquisa biomédica (fonte: MeSH, BIREME) Introdução A Hanseníase é causada pelo Mycobacterium leprae e se manifesta nos danos à pele e nervos periféricos. A doença é temida por causa dos danos que ocorrem em pés e mãos fracos e anestésicos, bem como a cegueira e deformidade facial. É estimado que, ao redor do mundo, 2 milhões de pessoas têm incapacidades como resultado das conseqüências da Hanseníase. A poliquimioterapia (PQT) para Hanseníase é altamente eficaz na cura da infecção micobacteriana, mas o tratamento dos danos neurais é muito mais difícil. Em 1991, a Assembléia Mundial de Saúde estabeleceu a meta da “eliminação da 1 Hansenóloga clínica, London School of Hygiene and Tropical Medicine, Rua Keppel, Londres WC1E 7HT, Reino Unido (email: [email protected]) Correspondência deve ser enviada a essa autora 2 Hansenóloga aposentada, Blue Peter Research Centre 3, Cherlapally, Hyderabad, Índia. Referência número 04-013730 (Entregue para revisão em 30 de março de 2004 – Versão final e revisada entregue em 20 de outubro de 2004 – Aceito para publicação em 21 de outubro de 2004)

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Hanseníase como problema da saúde pública” até 2000 (1). A eliminação se definiu como uma prevalência de menos de um caso para 10.000 habitantes. Muitas pessoas tiveram dificuldade para entender essa definição. O slogan da “eliminação da Hanseníase” fortaleceu atividades mundialmente, mas também acabou dominando as prioridades no controle da doença. No artigo, apresentamos o argumento que a eliminação não é uma meta apropriada em relação à Hanseníase e que é melhor enxergá-la como doença crônica que requeira planejamento e controle de longo prazo. O desafio novo é aproveitar do sucesso da campanha internacional e fornecer serviços sustentáveis aos pacientes. O conceito da eliminação O sucesso da poliquimioterapia criou a base na qual o conceito de eliminação foi desenvolvido. A PQT foi introduzida pela OMS em 1982 (2). Nesse programa, o paciente é classificado com um de dois tipos da doença – paucibacilar (PB) ou multibacilar (MB) – e recebe ou a combinação de rifampicina e dapsona (conhecida como poliquimioterapia paucibacilar ou PQT-PB) ou a combinação tríplice de rifampicina, dapsona e clofazimina (conhecida como poliquimioterapia multibacilar ou PQT-MB). A rifampicina e parte da clofazimina são ingeridas mensalmente sob supervisão. A PQT-PB tem duração de 6 meses e a PQT-MB dura ou 24 meses (3) ou 12 meses (4). As taxas de recidiva são baixas (equivalente a 0 a 2,04 pessoas em 100 anos de vida) com o esquema de PQT-PB de seis meses e o PQT-MB de 24 meses (5). Ao longo das décadas de 1980 e 1990, o programa da Hanseníase na OMS realizou uma campanha bem sucedida para implantar a poliquimioterapia ao redor do mundo. As organizações não-governamentais (ONGs) foram fundamentais no apoio dado às decisões governamentais de implantar a PQT. Os programas verticais de controle da Hanseníase foram utilizados para identificar e tratar os pacientes. Entre 1994 e 1999, a Fundação Nippon no Japão (através da Fundação Sasakawa para a Saúde) assumiu o custo global da PQT. Mais de 13 milhões de casos foram detectados e tratados com poliquimioterapia entre 1982 e 2002 (6). Prevalência e Coeficientes de Detecção As taxas de prevalência foram utilizadas para mensurar progresso, e as estimativas do número de pacientes com Hanseníase caíram de 12 milhões em 1985 para 0,6 milhões em 2002 (figura 1) (7,8). A prevalência da doença se calcula através do registro de todos os pacientes em tratamento em uma data definida e se expressa como razão com a população total como denominador. A prevalência, portanto, sofre alterações devido aos aspectos operacionais dos programas, tais como a duração do tratamento; por exemplo, cortando a duração de tratamento de PQT-MB pela metade de 24 para 12 meses também reduz a prevalência desse grupo pela mesma proporção. Além disso, os meios de administração da PQT podem influenciar os dados; por exemplo, os pacientes que recebem o tratamento de dose única (rifampicina, ofloxacina e minociclina) para lesão única não aparecem na taxa de prevalência e nem aparecem os pacientes paucibacilares que completaram PQT nos primeiros meses do ano visto que só os pacientes no registro ativo em 31 de dezembro entram no cálculo para o ano em questão. Em 1985, 122 países no mundo tiveram uma prevalência de > 1 caso por 10.000 habitantes. Esse total caiu para 24 países em 2000, 15 em 2001 e 12 até 2002. A maioria de casos de Hanseníase se concentra em sete países: Brasil, Índia, Madagascar, Moçambique, Mianmar, Nepal e a República Unida da Tanzânia (8), mas só a Índia representa 64% da prevalência da Hanseníase e 78% dos casos novos detectados mundialmente (9).

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O quadro é diferente quando se usa o coeficiente de detecção em vez de prevalência. A detecção de casos novos é um indicador mais fidedigno da doença porque não é afetado pela mudança da definição de um caso, nem da duração do tratamento. Quando se comparam os dados da Índia usando esses dois tipos de medição, mostram que embora a prevalência tenha caído dramaticamente, os coeficientes de detecção continuaram quase constantes (figura 2). A figura 3 demonstra os coeficientes de detecção dos países com maior taxa de Hanseníase durante os últimos oito anos. Em todos esses países, o coeficiente de detecção está estável ou em declínio. Pode haver explicações operacionais para essas tendências, como um aumento nas atividades de busca ativa ou no número de pessoas comparecendo aos serviços de saúde porque recebeu a mensagem que a Hanseníase tem cura. Os coeficientes de detecção em conjunto com a proporção de casos em tratamento de PQT-MB e as altas taxas entre crianças (aproximadamente 17%) indicam que a Hanseníase continua sendo transmitida na comunidade (6).

O conceito de eliminação se baseou na hipótese que ao chegar a uma taxa de prevalência de < 1 por 10.000 habitantes, a transmissão da Hanseníase na comunidade seria interrompida. O Fórum Técnico da Associação Internacional da Hanseníase (ILA—International Leprosy Association) notou que havia

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pouca evidência para respaldar essa hipótese, mas também reconheceu que quando o coeficiente de detecção cai, muitas vezes não há motivo claro para explicar essa redução (10). A Hanseníase tem um longo período de incubação, variando de 2 a 20 anos (11). Os pacientes recém diagnosticados com a Hanseníase podem ter transmitido a doença a parentes ou outros na comunidade por muito tempo antes de receberem o diagnóstico. Utilizando a definição da OMS, a África do Sul atingiu a eliminação em 1924, porém ainda detecta casos novos no norte da região conhecida como Transvaal (12). Aspectos biológicos de M. Leprae M. leprae é um organismo resistente que pode sobreviver fora de um corpo humano por até 45 dias (13). Nos países endêmicos, como Etiópia e Indonésia, até 5% da população carregam o DNA de M. leprae no nariz, muitas vezes de forma transitória e sem manifestação explícita de doença (14). Na Etiópia o organismo foi encontrado nos seios nasais de 5,9% de moradores em um vilarejo onde a PQT tinha sido distribuída havia 16 anos (15). M. leprae é emitido da mucosa nasal de pacientes lepromatosos (forma virchoviana) sem tratamento e provavelmente sobrevive no ambiente antes de infeccionar o próximo hospedeiro. A única fonte animal de significância é o tatu de nove bandas que habita o Sul dos Estados Unidos nos estados de Texas e Louisiana; nenhum outro vetor animal foi identificado fora dessa região (16). A combinação de evidências epidemiológicas e biológicas sugere que a Hanseníase não poderá ser eliminada somente através da poliquimioterapia (17). Essa análise tem respaldo em modelos matemáticos recentes de indicadores epidemiológicos que mostram um declínio lento da Hanseníase, porém com uma taxa incerta nessa redução e o pré-requisito de um programa de controle sustentável (18). Apesar dos dados coletados e publicados pela OMS mostrando que a Hanseníase está longe de ser eliminada, principalmente nas áreas com maiores taxas de endemicidade, a OMS anunciou em maio de 2001 que a doença tinha sido eliminada como problema de saúde pública a nível global. Isso foi possível pelo uso da população de todos os países com até um caso de Hanseníase no denominador do cálculo da prevalência mundial. Vacinas Nenhuma das vacinas contra a Hanseníase fornece altos níveis de proteção. Mesmo assim, várias pesquisas randomizadas e estudos de caso-controle mostraram que o bacilo Calmette-Guérin (BCG) oferece uma proteção variável contra a Hanseníase (20% em Mianmar, 80% em Uganda) (5). No Brasil, o uso neonatal da vacina BCG foi eficaz na proteção contra a Hanseníase (19). Visto que essa vacina já é aplicada nos países mais endêmicos para a doença, o uso rotineiro da BCG poderia fazer parte da estratégia da OMS para o controle da Hanseníase. Efeitos políticos da eliminação Sucesso da eliminação A vantagem de uma campanha de eliminação foi a mobilização de recursos humanos e financeiros. Os governos e ONGs trabalharam juntos nas campanhas em que equipes técnicas e especialistas locais atenderam milhares de pessoas; em 1998 no estado de Orissa na Índia, 62.804 casos confirmados da Hanseníase foram detectados em uma semana de campanha (20). O monitoramento da doença foi

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realizado eficazmente (21). A Hanseníase chegou a ser prioridade e isso foi um êxito do Programa de Hanseníase da OMS. Desvantagens Mesmo assim, a campanha de eliminação também teve vários efeitos negativos em aspectos como o planejamento para enfrentar os desafios futuros da Hanseníase, a prioridade dada à doença no financiamento de pesquisas e a interação entre os vários serviços de atenção ao paciente. Um problema mundial de significância é que o público geral, inclusive as autoridades sanitárias que planejam e financiam a saúde pública, não compreenderam o conceito de eliminação como uma prevalência de < 1 para 10.000 habitantes, pensando que significou uma ausência de casos. O prospecto da eliminação também inibiu a pesquisa em Hanseníase, com algumas exceções notáveis como a seqüência do genoma do M. leprae. Algumas fontes importantes de recursos, como a Fundação Gates, decidiu não financiar a pesquisa em Hanseníase porque não percebeu a doença como problema importante. É difícil atrair alunos de pós-doutorado e pesquisadores clínicos para a área: como é possível construir uma carreira estudando uma doença em fase de eliminação? Mesmo assim há muitos temas de pesquisa importantes que poderiam influenciar as políticas e práticas a respeito da Hanseníase. Efeito nos parceiros As ONGs tiveram uma contribuição substancial à provisão de serviços de Hanseníase. Em 1999, a Aliança Global para Eliminar a Hanseníase (GAEL – Global Alliance to Eliminate Leprosy) foi formada como uma parceria multisetorial com a meta de eliminar a Hanseníase. A GAEL era composta da OMS, a Fundação Nippon, a Federação Internacional de Associações de Combate à Hanseníase (ILEP – International Federation of Anti-leprosy Associations) e a Fundação Novartis. A GAEL mobilizou muitos compromissos políticos e criou parcerias que asseguraram o suprimento de medicamentos gratuitos disponíveis em áreas de difícil acesso (avaliação da GAEL, dados não publicados, 2003). Porém, houve tensão na parceria e a ILEP foi retirada da aliança em 2000. No início de 2003, a OMS convidou Richard Skolnik e uma equipe para realizar uma avaliação independente da GAEL (22).

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A avaliação reconheceu as vantagens acima mencionadas, mas também observou que a aliança estava falhando porque a OMS ignorou as preocupações de seus colaboradores. Essas incluíam dúvidas sobre o uso da prevalência e a introdução de novos esquemas nos quais o paciente recebia todas as doses de PQT na primeira visita, assim perdendo o componente supervisionado da administração de PQT. Essas tensões surgiram parcialmente por causa de diferenças de perspectiva: a OMS tem um foco em saúde pública embora as ONGs focalizem o indivíduo (23). A avaliação também recomendou que a Assembléia Mundial de Saúde devesse passar uma resolução esclarecendo que a Hanseníase ainda não tinha sido eliminada. Atores interessados, como Trevor Durston, diretor de Leprosy Mission International, agora sugerem que é preciso enfatizar a união das entidades envolvidas da forma que melhor atende as pessoas com Hanseníase (24). Desafios contemporâneos Molyneux argumentou que a Hanseníase deveria ser vista como uma doença crônica estável entre um grupo de outras semelhantes que estão sob controle eficaz (25). Porém, ele também avisa que é vital manter as atividades que levaram ao controle dessas doenças. No caso da Hanseníase, isso significa manter a detecção de casos, acesso ao tratamento e o enfrentamento do desafio duradouro da prevenção de incapacidades. Também há importantes temas de pesquisa a serem estudados, tais como a melhor maneira de detectar e tratar danos neurais e compreender a transmissão. Integração Muitos governos estão mudando os programas de Hanseníase de intervenções verticais e especializadas para uma abordagem integrada na qual os profissionais da atenção básica realizam o diagnóstico e tratamento dos pacientes com Hanseníase. A integração traz várias vantagens, inclusive a ampliação da rede básica, assim levando os serviços de diagnóstico e tratamento mais perto do paciente. A integração é um modo eficiente de oferecer serviços de Hanseníase dada a prevalência atual da doença. Porém, essa vantagem pode ser anulada se não houver um quadro de profissionais nos serviços de atenção primária. Além disso, é essencial que haja um número suficiente de centros de saúde disponíveis. Por exemplo, em Bihar, Índia, há somente um centro de saúde para cada 200.000 habitantes, em comparação com 1:30.000 no sul da Índia (26). Sistemas de referência e contra-referência eficazes são necessários para que os casos mais complicados possam ter acesso a centros especializados. Vigilância e capacitação A vigilância deve ser realizada dentro de um contexto integrado utilizando indicadores clinicamente relevantes. É provável que o número de casos novos caia à medida que a integração progride, e é crítico determinar se os pacientes com Hanseníase estão sendo incluídos no sistema de vigilância (27). Áreas de vigilância especial poderiam ser estabelecidas nas regiões onde a integração foi implantada; nessas áreas é preciso realizar buscas ativas para que uma avaliação correta dos indicadores principais seja mantida. Por exemplo, a taxa de incapacidade oferece uma indicação aproximada do tempo percorrido até receber o diagnóstico, portanto se essa taxa aumentar, isso representa um atraso diagnóstico. A Índia atualmente tem baixas taxas de incapacidade física e seria infeliz ver um aumento no futuro. É imprescindível ter liderança dos governos e OMS para lidar com essas questões. Quando ocorrer a integração, haverá uma demanda significativa por capacitação técnica em países como a Índia. A capacitação é um elemento crítico para garantir o diagnóstico, tratamento e prevenção de danos neurais e incapacidades. As ONGs

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previamente trabalharam com programas verticais e agora precisam definir seu novo papel dentro da estrutura integrada. Diagnóstico O diagnóstico da Hanseníase é simples, mas requer muita habilidade para diferenciar lesões cutâneas e reconhecer comprometimento neural. Quando o diagnóstico se baseia somente em manchas anestésicas é possível perder aproximadamente 30% dos casos MB (28). Os agentes comunitários de saúde requerem um nível de treinamento para poder identificar pelos menos dois sinais cardinais da Hanseníase: lesões cutâneas com dormência e nervos espessados. Isso envolve capacitação, supervisão e monitoramento dos profissionais da atenção primária bem como a possibilidade de atualização técnica. Tratamento Há várias questões importantes no tratamento da Hanseníase que requerem pesquisas e evidências adicionais para orientar a formação de políticas públicas. Por exemplo, uma porcentagem limitada de pacientes tem uma carga bacilar elevada; é provável que eles sejam responsáveis pela manutenção da transmissão na comunidade. Dados da Índia e Mali sugerem que as taxas de recidiva são mais altas dentre esse grupo mesmo que recebam 24 doses de poliquimioterapia (29). Deve ser uma prioridade de a saúde pública descobrir a forma mais eficaz de identificar esses pacientes e fornecer o tratamento apropriado. A aderência do paciente ao tratamento é problemática com doenças como Hanseníase e tuberculose porque requerem longos períodos de terapia medicamentosa. A provisão de doses mensais supervisionadas fornece a oportunidade de observar diretamente o tratamento e educar o paciente quanto à necessidade de tomar doses regularmente e de completar todo o esquema de tratamento. A medida tomada para implantar a PQT assistida em que o paciente recebe todo o esquema de 6 ou 12 meses na primeira visita pode ser contraprodutiva. Esse esquema terapêutico vai à contramão dos programas de tratamento de tuberculose que mudaram o foco de esquemas sem supervisão para o DOTS; essa mudança ocorreu após um aumento no abandono como resultado da falta de supervisão. O uso de PQT uniforme de curta duração para todos os pacientes está sob consideração. É vital avaliar as taxas de recidiva 5 anos após o tratamento para detectar recidivas tardias. Reações e danos neurais Em Hanseníase, as reações são fenômenos imunológicos agudos que ocorrem durante o curso normal da doença. As reações hansênicas podem ser desastrosas: causam danos neurais agudos. É importante reconhecer reações precocemente e iniciar tratamento com corticóides; esse tratamento melhora o quadro por aproximadamente 50% dos pacientes. Quase 30% dos pacientes MB desenvolvem reações durante o curso da doença. As reações podem aparecer no diagnóstico, durante o tratamento após a alta. É essencial que os profissionais da atenção básica estejam capacitados para reconhecer e tratar as reações o mais rápido possível. Os corticóides devem estar disponíveis nas unidades básicas de saúde. Um sistema de referência deve ser estabelecido para permitir a prescrição de corticoterapia na atenção básica ou o encaminhamento de pacientes a centros especializados para avaliação e tratamento. Prevenção de incapacidades A prevenção do progresso de danos neurais para incapacidade física e deformidade é um desafio que durará pelo resto da vida desse paciente. Os pacientes com anestesia neural e fraqueza muscular precisam

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receber ensinamentos sobre como cuidar dos pés e mãos: devem inspecionar seus membros diariamente e tratar qualquer lesão com prontidão. É necessário fornecer calçados especializados aos pacientes com deformidades nos pés para prevenir a ulceração. O manejo de úlceras corresponde a uma grande parte de qualquer serviço de Hanseníase. Os profissionais de saúde devem trabalhar com pacientes para prevenir a ulceração através da identificação da causa da lesão inicial. A prevenção de incapacidades é crítica para o sucesso de um programa. Precisamos compreender melhor os caminhos que levam à incapacidade. Hanseníase e estigma A reabilitação socioeconômica é outro componente importante nos cuidados aos pacientes com Hanseníase. Muitos pacientes acabam sendo marginalizados nas suas comunidades após o diagnóstico (30). A estigmatização continua e deve ser combatida através de abordagens baseadas na comunidade. Hanseníase e pobreza Há muito tempo se suspeita um vínculo entre a Hanseníase e pobreza, mas é difícil demonstrar isso em nível nacional, comunitário ou até individual. Um estudo no Malauí mostrou que para o indivíduo o fato de morar em um domicílio lotado foi um fator de risco tal como a falta de educação (31). Um estudo no nível da comunidade no Brasil indicou que em uma área altamente endêmica para Hanseníase, níveis mais altos de iniqüidade eram associados com níveis maiores de Hanseníase (32). A Hanseníase deve ser incluída no portfólio de doenças associadas à pobreza e o controle da Hanseníase (inclusive detecção e tratamento de casos e redução de incapacidades) deve ser incorporado nos programas de redução da pobreza (33). Papel do setor privado e dermatologistas Os profissionais de saúde e dermatologistas do setor privado na África, Ásia e América Latina atendem pacientes de Hanseníase. Embora eles sirvam um segmento significativo da sociedade, eles não foram incluídos nos programas públicos de capacitação e freqüentemente utilizam esquemas alternativos de tratamento. Os serviços de Hanseníase poderiam ser melhorados se esses profissionais fossem sensibilizados e capacitados no diagnóstico e tratamento, inclusive como reconhecer e manejar danos neurais. Pesquisa Um tema vital que precisa ser estudado é por que a poliquimioterapia não interrompeu a transmissão. É essencial encontrar novas abordagens parar compreender a transmissão. Talvez a quimioprofilaxia seja outra ferramenta útil e várias pesquisas sobre agentes potenciais estão em andamento. Um entendimento melhor da patogenicidade do dano neural também facilitaria a mudança para um atendimento melhor. Reflexões sobre a campanha de eliminação da Hanseníase A campanha de eliminação da Hanseníase tem lições importantes para todos os envolvidos. Talvez não fosse aconselhável escolher uma doença sem uma biologia propícia para eliminação. Porém, a campanha de eliminação teve grande sucesso em termos de oferecer um tratamento gratuito ao redor do mundo. Mesmo assim, não houve apreciação adequada dos problemas complexos que os pacientes de Hanseníase apresentam durante o tratamento e as necessidades duradouras dos pacientes com incapacidades. A OMS perdeu uma oportunidade para ter abertura intelectual quando deixou de reconhecer que a Hanseníase não

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será eliminada somente com a poliquimioterapia. Se a OMS tivesse discutido isso com seus parceiros, poderia ter estabelecido um diálogo favorável à criação de soluções inovadoras. Nós endossamos as recomendações da avaliação da GAEL que esclarecem o fato que haverá ainda casos novos de Hanseníase, que um leque de serviços de controle da Hanseníase precisa ser oferecido no futuro e que os governos devem tomar a responsabilidade pelo controle da doença. Também apoiamos a recomendação que a Assembléia Mundial de Saúde deve aprovar uma resolução que orienta as atividades de controle da Hanseníase após 2005. Conflitos de interesse: Nenhum declarado. Referências bibliográficas

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