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Homens e mulheres no mundo actual Sob o signo da ética, da estética e da emergência Ruben de Freitas Cabral Santo Tirso 29 de Maio de 1998 Na cultura do tempo, memória e esquecimento surgem como as duas faces de uma mesma realidade. Se, por um lado, enriquecemos o presente com a recordação dos momentos de felicidade e de prazer, parece que, por outro, os matizes mais expressivos das horas sofridas esbatem-se até que a sua lembrança pouco mais é que uma sombra triste. Este aparente paradoxo parece, assim, privilegiar o tempo que se esgotou e perturbar a clareza dos horizontes futuros. De facto, reagimos quase sempre como gente do ontem, raramente como pessoas do amanhã. As Idades de Ouro são com grande uniformidade o espaço da memória feita reminiscência, enquanto que os dias que hão-de vir são campo vasto para as mais díspares escatologias. Esse passado mítico povoado de heróis, de santos, de justeza, de respeito, de vida melhor, paira como uma sombra paradigmática sobre um presente não raro percebido como um tempo agreste, desumanizante, triturador. Ah, que bom que era nos bons velhos tempos! E nesse encadeamento de reminiscências desmemoriadas entorpecemos o espírito e a esperança.

Homens e mulheres no mundo actual

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Homens e mulheres no mundo actualSob o signo da ética, da estética e da

emergência

Ruben de Freitas CabralSanto Tirso

29 de Maio de 1998

Na cultura do tempo, memória e esquecimento surgemcomo as duas faces de uma mesma realidade. Se, por umlado, enriquecemos o presente com a recordação dosmomentos de felicidade e de prazer, parece que, poroutro, os matizes mais expressivos das horas sofridasesbatem-se até que a sua lembrança pouco mais é que umasombra triste. Este aparente paradoxo parece, assim,privilegiar o tempo que se esgotou e perturbar aclareza dos horizontes futuros. De facto, reagimosquase sempre como gente do ontem, raramente comopessoas do amanhã.

As Idades de Ouro são com grande uniformidade oespaço da memória feita reminiscência, enquanto que osdias que hão-de vir são campo vasto para as maisdíspares escatologias. Esse passado mítico povoado deheróis, de santos, de justeza, de respeito, de vidamelhor, paira como uma sombra paradigmática sobre umpresente não raro percebido como um tempo agreste,desumanizante, triturador. Ah, que bom que era nos bonsvelhos tempos! E nesse encadeamento de reminiscênciasdesmemoriadas entorpecemos o espírito e a esperança.

É certo que o passado é importante. É nele que seaprofundam as raízes que nos afirmam como gente cujahistória nos liga, na intemporalidade dos dias, até àsprimícias da criação. Estas genealogias de pessoas, detradições, de valores, de pertenças, de laços, derecordações, de dizeres, de fotografias amarelecidas,de baús esquecidos nos sótãos, de casas, de terras, deviagens, de amores que enternecem, de outros que talveznão foram, de realidades vividas, de outras que seconstruíram como reminiscências virtuais, de vidasconstantemente lembradas, de outras que se diluíram noanonimato das solidões, fazem-nos herdeiros de legadosque aceitamos, muitas vezes sem compreender o seu valorreal, ou o seu real significado. Ostentamos amiúdeestes brasões e estas armas como razão falseada de umpresente que parece não ter rumo nem sentido.

Mas será, de facto, o passado que justifica onosso presente? Será que a vida se forja numprolongamento linear do ontem para o hoje? Será que opassado-reminiscência se identifica com o passado-memória? Em que medida é que a memória influencia onosso agir no presente? Porque é que a história é, porvezes, memória e outras, virtualidade? Porqueinsistimos com tanta veemência em recuperar o passado,quando a vida acontece no presente e se projecta nofuturo?

É evidente que o passado pode enriquecer opresente. O passado, todavia, não justifica nadadaquilo que fazemos no hoje. Nós afirmamo-nos pelanossa acção responsável e criativa sobre o mundo, paraa sua transformação. Creio que o passado importa àconstrução do presente como memória, não tanto como

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reminiscência. Mas como resolver o paradoxo aparenteque existe na interdinâmica memória - esquecimento? Eserá que existe mesmo um paradoxo? Não será antes queessa interdinâmica liberta o passado como um fenómenoemergente desataviado daquilo que é acidental? Se é umfacto que as Idades de Ouro de ontem parecem tornar osnossos dias numa realidade envergonhada, certo é,também, que nada impede que as misérias de hoje nãosejam Idades de Ouro amanhã.

A memória poderá, assim, ser compreendida como umasíntese sistémica, o que é dizer, uma aprendizagem, emque a relevância é o critério principal que nos ajuda adistinguir aquilo que deve ser lembrado daquilo quedeve ser esquecido. Talvez seja, por isso, que amemória do bem prevaleça sobre a recordação do mal.Talvez seja, por isso, que cada Idade acabe por ser,para alguém, verdadeiramente de Ouro. Talvez seja, porisso, que o trabalho da vida humana no tempo transformeo infortúnio, o insucesso, o mal que nos acontece, emalgo de bom e de útil.

É tudo isto que, afinal, define a aprendizagem numcontexto desenvolvimentista. Não me parece, também,razoável que ela possa ser definida num outro contextoqualquer. Se a aprendizagem acontece no fazer e nofazer com os outros, se ela é fruto da nossa inquiriçãoresponsável e criativa sobre o mundo, e se o aprendedoré o sujeito desse processo, não parece, pois, viávelque o seu contexto seja o de uma realidade estática eaté simétrica. Isto só seria possível se a própriarealidade fosse concebida de igual modo e isso é hojemuito difícil de aceitar. Uma tal concepção darealidade reduziria o nosso tema a uma visão da pessoa

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e do mundo actual em termos de passado, uma vez quepassado e futuro pouca representação teriam noacontecer da vida.

Ora uma observação ainda que superficial da vidahumana e do mundo identifica a mudança como uma dassuas características principais. Se bem que a mudançatenha sido sempre um factor importante a considerar, asmaneiras como ela é concebida hoje alteraram-seprofundamente. A ciência, sobretudo a física dosquanta, a biologia molecular, as ciências do caos e asnovas ciências da complexidade, apontam para adescontinuidade, para a incerteza, para airregularidade, para a complexidade, para aprobabilidade, para o indeterminismo, para aimprevisibilidade, como definidores fundamentais darealidade. Por outro lado, as investigações de IlyaPrigogine1 apontam para duas outras características: onão-equilíbrio como condição de vida sintrópica e aflecha do tempo, isto é, a noção de tempounidireccional. Diz ele:

Com efeito, no decurso dos últimosdecénios nasceu uma nova ciência, a físicados processos de não-equilíbrio. Esta ciênciatem conduzido a novos conceitos, como a auto-organização e as estruturas dissipativas,hoje muito utilizadas em domínios que vão dacosmologia à ecologia e às ciências sociais,passando pela química e pela biologia. Afísica de não-equilíbrio estuda os processosdissipativos, caracterizados por um tempounidireccional, e, ao fazê-lo, confere um

1 Prigogine, Ilya (1996). O fim das certezas. Lisboa: Gradiva, p. 11.

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novo significado à irreversibilidade. (…) Airreversibilidade já não acontece apenas emfenómenos simples. Está na base de grandenúmero de fenómenos novos, como a formaçãodos turbilhões, das oscilações químicas e dasemissões laser.

Pelo seu carácter interdinâmico e complexo, tantoa aprendizagem como o desenvolvimento comungam dessasmesmas características. É difícil de negar o carácteremergente, na definição Popperiana2 (a realidade éparcialmente causal, parcialmente probabilística eparcialmente indeterminada), da aprendizagem e dodesenvolvimento. Como prever, determinar, até medir comprecisão qualquer processo de aprendizagem e dedesenvolvimento? Como saber a priori o desfecho de umprojecto de investigação? Como explicar a não-regressividade dos processos de aprendizagem e dedesenvolvimento sem o conceito da irreversibilidade dotempo? Não me parece de todo possível.

A exploração do que significa viver no mundoactual só parece fazer sentido quando perspectivadapelo desenvolvimento. O desenvolvimento com ascaracterísticas atrás apontadas, e que mais não é doque o processo de pessoas e sociedades atingirem o seupotencial máximo, difere radicalmente daquilo a quechamamos crescimento e progresso. O crescimento define-se por aumentos quantitativos de alguém ou algumacoisa, e, como todos sabemos, pode ser regressivo. Nadaparece poder crescer indefinidamente. Por seu lado, oprogresso nada mais é do que movimento direccionado, o

2 Popper, Karl R. (1988). O universo aberto. Lisboa: Publicações Dom Quixote, p. 129.

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caminhar deliberadamente numa direcção determinada.Todos sabemos, também, que o progresso pode serregressivo. A história está cheia de exemplos de naçõesque atingiram índices elevados de progresso para caíremdepois no maior dos marasmos.

Ora o desenvolvimento não é um processorelativista: a progressão através dos estádios ouníveis de desenvolvimento é invariável. A história dahumanidade é, para mim, um tal processo. Apesar detodos os acidentes de percurso, de todas as hecatombes,de todas as circunstâncias demonizadas, a humanidadetem construído um mundo cada vez melhor. O mundo dehoje é consideravelmente melhor que aquele queconhecemos há vinte ou trinta anos. A guerra, que hátrinta e tal anos ainda era ainda considerado um actoheróico, não o é mais. Ninguém de bem ousaria fazerhoje a apologia da guerra. E, todavia, ainda háguerras, se bem que localizadas, pois nem todos seencontram no mesmo nível de desenvolvimento moral. NoPortugal de há cinco ou seis anos, quem é que falava naviolência familiar como problema grave da sociedade? Noentanto, ela é hoje notícia quase diária. Quem é que,nesse tempo, consideraria a exploração do trabalhoinfantil como uma violência à criança? Todavia, taiscasos são denunciados hoje com um zelo quasefundamentalista. Continua a haver violência familiar eexploração da criança, mas a consciência social donosso povo, como um todo, já não as tolera.

Viver num contexto de desenvolvimento é viver numcontexto de esperança e de fé. Esperança que concretizaa realidade. Fé que a autentica. O desenvolvimento é,por outro lado, um fenómeno social interdependente e

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como tal baseado na solidariedade, na singularidade dapessoa humana, no amor que define qualquer actotransformador do mundo. O caminho do desenvolvimentonão é, todavia, livre de escolhos, não é, de modoalgum, uma viagem plácida e serena pelos caminhos dotempo e da vida.

O desenvolvimento acontece na realidade, nessarealidade que, como vimos, é descontínua e incerta eindeterminada e complexa e caótica e não-equilibrada eextremamente estimulante. Esse caminho de aprendizagensque continuadamente leva a novas aprendizagens, deperguntas cujas respostas mais não são que perguntasnovas, de descobertas que inevitavelmente impele paraoutras descobertas, é fecundado por sucessos que nosalimentam e por insucessos que nos desafiam. Ossucessos, todavia, não parecem ser o campo das grandesaprendizagens. É, sobretudo, no insucesso queinteriorizamos as maiores. É aqui que a tensão inerenteà interdinâmica memória-esquecimento nos possibilita acompreensão sistémica do mundo e da nossa acção sobreesse mesmo mundo.

Numa dinâmica desenvolvimentista não aprendemosmuito com os produtos da nossa actividade. É a reflexãosobre o desenrolar dos processos escolhidos que nospode levar às grandes aprendizagens. Talvez ainda maisimportante seja a reflexão que fazemos sobre a maneiracomo reflectimos, os chamados processos metacognitivos.Num mundo em que a escassez deixou de ser o flagelo queaté há bem pouco era, a produção como produção deixoude ser uma preocupação fundamental. Hoje pouco mais éque uma tecnologia.

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O que verdadeiramente começa a ser essencial é apessoa humana – o homem e a mulher – considerados cadavez mais como sujeitos dos processos de trabalho, comoverdadeiro capital das organizações, como seressingulares, únicos, autónomos e interdependentes. Davida empresarial à política, da familiar à da formação,o ser humano como pessoa começa a ser percebido comomuito mais importante que as noções e formas deorganização. Os grandes modelos já não fazem muitosentido como sistemas enquadradores da actividadehumana. Os grandes paradigmas perderam praticamente acapacidade das grandes racionalizações. Compreendemoscada vez melhor que é no estudo da fluidez complexa dasinteracções de pessoas com pessoas e com a realidadeque podemos chegar a abordagens mais aproximadas do quesignifica gerir processos e gerar novas maneiras de osconceptualizar.

Num mundo que existe porque nós existimos – ohomem e a mulher não existem coisificados na natureza,mas são eles que na belíssima expressão Freiriana3, dãonome ao mundo e o transformam – começa a serconsiderada aberração a sobrevivência ou aparição desistemas políticos, religiosos, sociais e mesmoeducacionais que tendam para uma formatação e não parauma verdadeira formação da pessoa. Essa formação é cadavez mais considerada como uma transformação, como umaverdadeira metanóia, para usar a expressão de PeterSenge4.

3 Freire, Paulo (1987/1970). A pedagogia do oprimido. São Paulo: Editora Paz e Terra S/A, p. 78.4 Senge, Peter (1993/1990). The fifth discipline. London: Century Business, p. 13.

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Vivemos, todavia, neste fim de milénio um eclodiranárquico de movimentos, apelos e propostas que, porincapacidade de gerir a complexidade, ou comoaproveitamento dessa mesma incapacidade, nos acenam comsupostas certezas, com relativismos dogmatizados, com aalienação disfarçada de solidariedade. Dosfundamentalismos religiosos fanatizados, aos regimespolíticos que, deliberadamente ou não, esmagam ebrutalizam a pessoa humana, passando por movimentossociais que desentranham essa mesma pessoa dapossibilidade de viver no real pelo apelo a uma vidadiferente no alucinogénio, o nosso quotidiano aparececomo que cercado, decerto ameaçado, por forças quetemos de resistir, e cujo confronto não podemos evitar.

Há questões, todavia, que se nos levantam: comoresistir e confrontar? Se denunciarmos a alienação, queanunciação devemos fazer? Será que muitas das nossasanunciações, das nossas propostas, não possam aparecerà pessoa alienada e confusa como algo tão difuso ou tãorígido como os apelos que se lhes contrapõem? Umapessoa perdida é uma pessoa sem horizontes definidos.Parece-me que muitas vezes não fazemos mais do queatirar uma bóia de salvação, cujo único mérito é o desustentar a flutuação por mais algum tempo. Quando éque propomos horizontes de desenvolvimento credíveis epossíveis? E de que maneira o fazemos?

Há sinais, todavia, que nos poderão permitir ummelhor aprofundamento da nossa realidade presente. Nãocreio que os sinais fundamentais tenham muito a ver coma ciência, ou com a tecnologia, ou com sistemaspolíticos, ou organizações sociais. Ciência,tecnologia, política e organização são hoje cada vez

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mais processos de aprendizagem que linhas mestras dedesenvolvimento. São mais veículos que caminhos. Maisatitudes que saber. Mais actividade que acção. Proponhotrês outros sinais, três perspectivas através das quaisdevemos compreender um pouco melhor a realidade quesomos e que nos contextualiza, a saber: a ética, aestética e a emergência.

A ÉTICA – O IMPERATIVO E A FORMA

Dado o estado de corrupção, do aguenta que valetudo, do imediatismo que persiste em querer definir onosso quotidiano, parece um pouco estranho que tenhaescolhido a Ética como o primeiro dos sinais dos nossostempos. Buscamos sinais, todavia, das grandes correntesque são subjacentes à vida, das grandes tendências, enão propriamente das aparências mais explícitas. Éfácil confundir aparência observável com realidadeintegrante. A aparência não é necessariamente sinal,pois pode muito bem ser disfarce, ou representação dumarealidade falseada ou virtual. Por sua vez, a realidadeque nos integra e que, pela nossa acção transformadora,integramos, não é sempre fácil de identificar eperceber. Assim me parece com a ética. Por outro lado,a simples percepção da extensão de sistemas corruptos,de comportamentos questionáveis, de qualidades eposturas de liderança esperadas e não realizadas,afirma sem sombra de dúvidas a preocupação que aspessoas como realidades colectivas têm com a ética.

O acontecimento que mais graficamente sublinhoueste fenómeno foi Watergate. Até aí, as expectativasdas populações relacionadas com o comportamento dospolíticos e das organizações políticas não atingiam

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índices muito elevados. Desde que as atitudes eactividades não atingissem proporções de escândalo,isto é, desde que fossem feitas com discrição, tudo eraaceite como razoável. Não era bom, mas era o real.Antes de Watergate, aparecem dois casos que conseguemapaixonar a opinião universal. O primeiro, o casoDreyfus, desmascara o racismo que prevalecia no seiodas grandes instituições da França, e por inferência,do mundo. Todavia, o caso Dreyfus atingiu essasproporções devido em grande parte à intrepidez dogrande novelista Zola que decidiu enfrentar e pôr emcausa todo o sistema político e judicial francês. Oartigo J’acuse, permanece como um símbolo do que ocidadão movido pelos imperativos éticos pode e devefazer. A consciência ética da França e do mundo aindanão tinha atingido um grau de desenvolvimento moralsuficientemente elevado que permitisse mudanças defundo. No decurso do processo, Zola viu-se obrigado aprocurar refúgio em Inglaterra. Mais tarde, o sistemapolítico e judicial francês corrigiu de certo modo ainjustiça feita a Dreyfus. Esse sistema, todavia,permaneceu. O caso Dreyfus foi isso mesmo, um caso. Osegundo incidente que gostaria de sublinhar é o do casoProfumo. Em ambos os casos paira a insinuação dapossibilidade de actos de traição. O caso Profumoinsere-se perfeitamente no modus vivendi e operandi daguerra fria com todas as suas teias emaranhadas deespionagem. John Profumo foi demitido das suas funçõesde ministro, mas a sua declaração final elucida bem amaneira como estes casos ainda eram julgados. Profumodisse que tinha infringido o 11º mandamento: Não sejasapanhado! O caso Profumo que encheu de parangonas osjornais durante muito tempo, também não logroumodificar profundamente o sistema.

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Watergate foi diferente. O caso que lhe deu origemé em si quase banal. Um grupo de espiões políticos de2ª classe, a pago da Comissão para a Reeleição doPresidente Nixon, cabeça do Partido Republicano dosEstados Unidos, penetra sem autorização na sede doPartido Democrático em Washington, situada no edifícioconhecido por Watergate, para plantar algunsinstrumentos de escuta. O desenrolar dessa acçãopertence decididamente ao mundo da comédia. Como nosfilmes do género, tudo correu mal. A espionagempolítica não era, nem é, algo de novo. Sempre haviasido praticada, e é muito provável que o continue aser. Por outro lado, o Presidente Nixon estavavirtualmente eleito, como, apesar do escândalocrescente, o foi e por larguíssima margem.

A consciência da nação americana, todavia, hámuito que começava a despertar para dinâmicas sociais epolíticas que até então tinham passado sem grandesnotícias. O levantamento social em favor dauniversalidades dos direitos civis de todos os cidadãosindependentemente da raça, credo, sexo ou origem, e atragédia de futilidade que começava a ser a guerra noVietname – uma guerra não declarada, mas que haviamobilizado mais de meio milhão de militares, ceifado avida a não poucos e a qualidade de vida a muitos mais –demonstraram que não era suficiente haver boas leis econstituições, que o que mesmo contava era aimplementação justa dessas mesmas leis e constituição.As motivações políticas já não valiam por si só. Tinhamde ser também justificadas pela moral e pela ética.Nixon não percebeu isso e tentou gerir a situação comoqualquer líder político até aí o teria feito. O

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resultado todos nós sabemos. Apesar de uma políticaexterna de grande abertura que permitiu o desanuviardas tensões entre as superpotências e a integração daChina no relacionamento do Ocidente, Nixon foi obrigadoa renunciar ao cargo de Presidente dos Estados Unidos.O primeiro a fazê-lo.

Nixon não foi condenado pela infâmia tragicómicaque foi o caso inicial do Watergate. Nem tão pouco ofoi por o ter tentado abafar, camuflar e manipular. Nãoacredito que tenha sido a sua conivência e conhecimentodirecto do que se estava a passar, nem ainda o facto dehaver mentido à nação americana, se bem que tudo issotenha sido importante. O que o condenou foi a suaarrogância de pensar que como líder eleito dumademocracia poderia agir como se fosse superior à lei,como tantos dos seus predecessores o tinham feito, ecomo muitos ainda o fazem. Foi também a suaincapacidade política de não ter conseguido perceberque a nação americana tinha mudado, que se tinhaoperado uma metanóia colectiva e que a ética passara aser mais importante que a performance política.

Watergate começou como um caso, mas acabou como umprocesso que transformou a vida social, política e até,de certo modo, pessoal da América e do mundo ocidental.Exige-se que líderes políticos, empresariais ecomunitários se rejam por princípios éticos, e essaexigência não existe só em relação ao presente efuturo, mas também em relação ao passado. A posturaimperial do Presidente Mitterrand e o seu enormeprestígio internacional não resistiram ao escrutíniofeito ao seu passado questionável durante a 2º GuerraMundial, e às maquinações da sua corte presidencial. A

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grandeza que revestiu muito do seu quotidiano e até dassuas políticas permanecerá para sempre empalidecida naspáginas da história.

Portugal não tem passado incólume a estes ventosde mudança. A vida dos líderes é hoje um livro que podea qualquer momento ser aberto e a probabilidade de oser é muito grande. A consciência dos imperativoséticos afecta inevitavelmente toda a vida pública etoda a vida privada, servindo de estímulo e deprecaução. A ideia do serviço público, quer comocidadãos quer como líderes políticos ou sociais, exigehoje comportamentos éticos, pelo menos morais.

Esta mudança tem também a ver com uma outraviragem de alcance, talvez, ainda maior: o eclipse daideologia individualista e a afirmação dainterdependência como a nova matriz interdinâmica davida. A ideologia individualista criara a noçãoabstracta de Estado ao conferir-lhe o estatuto derepositório das grandes virtudes éticas e ao sobrepô-lo, de certo modo, ao ideal de nação. Um Estadovirtuoso sempre acaba por endeusar aqueles que ocorporizam, o que é dizer que a manta virtuosa doEstado cobria e justificava toda a pouca vergonhacometida em seu nome, ou por aqueles que lhe davamnome. De acordo com a ideologia individualista, ademocracia pouco mais era do que uma série deprocedimentos organizativos, raramente um processo dedesenvolvimento.

A concepção da realidade como um fenómenoessencialmente interdependente, veio alterarprofundamente as relações cidadão-estado. A

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interdependência como processo de desenvolvimento queé, não necessita de repositórios de virtudes. Muitopelo contrário. Num sistema interdependente, asvirtudes transformam-se em horizontes comuns dedesenvolvimento,

Por outro lado, o ser humano não é maiscompreendido como um indivíduo moral e socialmenteseparado dos seus congéneres, como tinha sido, até aí,prescrito nos cânones da doutrina individualista, mascomo pessoa unida sinergeticamente a todas as outras. Acompreensão do ser humano como pessoa e da sociedadecomo realidades interdependentes permitem oaprofundamento da cultura e da vivência democráticas. Aautoridade do Estado deriva naturalmente da força daNação, não é algo que lhe seja inerente. Eu prefeririamesmo acabar com o uso da palavra Estado e usar outracomo Governo, essa sim, bem democrática. Uma democraciaprecisa de um bom governo, não creio que precise de umgrande Estado. Aliás nas democracias mais antigas apalavra Estado raramente é utilizada. Não se fala noEstado Britânico, nem no Estado Americano, mas noGoverno Britânico e no Governo dos Estados Unidos, porexemplo. Assusta-me o uso cada vez maior que se faz dapalavra Estado, dada a ideologia política que vigoroudurante o Estado Novo. Parece que sem Estado nãoexistimos. E no contexto da União Europeia onde cabe equem é que é Estado, no sentido tradicional que lheatribuímos? Gostaria, no entanto, de dizer queconsidero que numa democracia o governo deve, pornatureza, ser um governo forte. Talvez mesmo o maisforte dos governos porque assenta na vontade doscidadãos. Ora, são precisamente estas mudanças que eucreio estar na origem do surgimento da ética como um

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dos grandes sinais, das grandes tendências do nossotempo.

Se a afirmação da ética como imperativo demonstraum avanço enorme no processo de desenvolvimento dospovos, já a forma como esse processo se desenrolaalerta-nos para dinâmicas questionáveis. Se os valoreséticos são absolutos, a sua compreensão nunca o poderáser, uma vez que operamos no reino da relatividade. Poroutro lado, se bem que os princípios éticos tenham depermanecer como horizontes de desenvolvimento emexpansão contínua, o nosso quotidiano é informado porvalores morais, que não sendo propriamente absolutos,ajudam-nos, todavia, a enquadrar a nossa caminhada.

O processo de desenvolvimento em que estamosenvolvidos define-se, assim, por horizontes móveis quenos permitem imagens do absoluto, por valores moraisque, partindo da percepção desses horizontes, nosajudam a viver uma vida mais democrática, mais justa,mais livre, mais humanizante, e inevitavelmente, porinsucessos, por falhas pontuais, por correcções, emsuma, por transformação. O homem e a mulher não sãoseres estáticos, nem tão pouco determinados. São seresdinâmicos, interdependentes, seres em constantedesenvolvimento. Daí que a forma de julgar daintegridade e da idoneidade de uma pessoa não pode cairem fundamentalismos desumanos, nem em relativismosabsolutizados.

Nunca me hei-de esquecer do Senador Biden, que naera pós-Watergate foi forçado a abandonar a suacandidatura à presidência dos Estados Unidos porquealguém o acusou de copiar num teste escolar, quando

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tinha 14 anos de idade. Considerar uma falha cometidana adolescência como deficiência definitiva de carácteré definir o ser humano como incapaz de se desenvolver,exactamente a condição que o humaniza. É evidente queos media se transformaram num quase quarto estado: opoder delator. É evidente também que essa é uma dassuas funções. Os media, todavia, não podem constituir-se como investigador, como juiz e como executor. Osórgãos de informação têm de se desenvolver comoagentes, não direi mais responsáveis, mas mais sábios.

ESTÉTICA: O BELO E O EFÉMERO

Não parece haver muita dúvida sobre a importânciada estética no viver dos nossos dias. A preocupação coma beleza surpreende-nos a cada instante. Claro, que oscritérios variam e, por vezes, bem parece que não háquaisquer critérios, ou que, pelo menos a anarquiareina. Poder-se-ia dizer que a estética está na rua. Decerto modo, ainda bem. A preocupação com a estética jánão se reduz a uma elite pequena e fechada, masdemocratizou-se. De certo modo, ainda mal. Amassificação do belo é uma aberração.

Ninguém nega o direito que cada pessoa tem de seexpressar através do belo. Há, evidentemente, critériospessoais de beleza. A maneira como nos vestimos, comoandamos, como falamos, como convivemos, as casas queconstruímos e a maneira como as decoramos, dão vida,inevitavelmente, às nossas concepções de beleza. É umdireito e uma condição que nos assistem. É o espaço doartista em nós. É também uma afirmação não dediferença, mas de singularidade. É o modo como nosapresentamos aos outros e como queremos ser lidos por

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eles. Por esta perspectiva, a estética pode e é umaforma de comunicação. É uma forma de nos tornarmos maisinteligíveis, mais abertos. É, quantas vezes, uma formade estimular uma reacção por parte do outro.

Numa sociedade interdependente, a estética ocupaum lugar de primeira grandeza, porque o belo enobrece ocarácter e enriquece o espírito. A preocupação com obelo é um dever de cidadania e é, também, um processode aprendizagem, por conseguinte, um processo dedesenvolvimento. Como cidadãos temos o dever e aresponsabilidade de contribuir para que ideais debeleza permeiem toda a vida da cidade e possam envolvertodos os seus habitantes. A busca pessoal e colectivado belo define-se por uma relação interdinâmica e é,por assim dizer, um imperativo ético.

A expressão egoísta do belo parece-me, por isso,eticamente questionável. Os antigos gregos contam-nos atrágica história de Narciso e os novos tempos oferecemexemplos de narcisismo que bastem. Se há um espaçopessoal para a prossecução do belo, há um espaço maiorem que essa busca se transforma num fenómeno social.Como qualquer processo de desenvolvimento, a noção dobelo alimenta-se da memória numa perspectiva de futuro.A beleza da cidade não pode tornar-se escrava nem dopassado como reminiscência, nem da vontade atomizadados seus membros. O belo na cidade é a memória gráficaplenamente definível da maneira como aqueles que nosprecederam viveram o mesmo espaço e o engrandeceramartisticamente.

Sendo a cidade uma realidade em si própria, com oseu ritmo singular de desenvolvimento e com os seus

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próprios horizontes de desenvolvimento, cumpre a cadageração que a corporiza guardar a memória estética econtinuar a sua construção no futuro. A guarda damemória estética pressupõe a preservação do patrimónioque lhe dá o seu carácter singular e, quando possível eviável, a transformação do espólio patrimonial que lheé adventício em algo que, sem preocupações de imitar,continue o desenvolvimento do seu carácter. Nestesentido, as preocupações estéticas aproximam-se muitodas questões ecológicas. Um chalé suíço cai muito bemna cultura estética dos Alpes, mas não me parece quefaça muito sentido em Santo Tirso. Sobretudo, quando háuma cultura estética autóctone própria, afirmada, edecididamente bela, segundo critério qualquer.

A cultura estética dos nossos dias enferma devários males. A massificação da escolaridade e oprogresso acelerado sem contrapartidasdesenvolvimentistas levou a formas de expressãoartísticas desenraizadas e culturalmentedescontextualizadas. Têm-se construído casas ementalidades como se fosse possível compreender umlivro sem saber ler. Da mesma maneira que o nossoestilo pessoal de escrever é precedido de fases que vãoda cópia, à imitação, e daí à criação, do mesmo modo aexpressão artística não nasce completamentedesenvolvida, mas desenvolve-se à medida que aprendemosa apreciar e depois a criar.

Outro dos males tem a ver com a hegemonia culturalque certos centros poderosos de cultura exercem sobresociedades mais vulneráveis. Se bem que o nossoprocesso de desenvolvimento se enriqueça com aexposição à pluralidade cultural do planeta, a

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omnipresença de valores estéticos externos enfraquecee, por vezes, suplanta processos locais dedesenvolvimento. Daí a importância da educaçãoestética, preocupação que, no entanto, não parece serde grande prioridade, dada a sua quase ausência dasnossas escolas.

O fenómeno da massificação atinge também asmanifestações estéticas com grande intensidade. Acultura da massificação promove o seguidismo sobre asingularidade da expressão artística e desencorajaquaisquer tentativas de liderança. Bastará olhar asnossas escolas durante a hora de entrada paraconstatarmos os batalhões de soldados da massificaçãoperfeitamente fardados de ganga. E não me digam que épor causa do conforto. São estes mesmos, todavia, quecriticam o uso de uniforme em algumas escolas, quandoesta prática, se bem pensada e implementada, podemtransmitir uma mensagem muito diferente e levar àconstrução de atitudes e comportamentos livres daquiloque urge combater: os fenómenos ligados com amassificação.

Felizmente que nos nossos dias podemos identificarmuitos actos exemplares de boa gestão da culturaestética comunitária. A destruição de bairros inteirosde arranha-céus descontextualizados e massificantes emcidades como Londres ou Boston permitem esperar comesperança um desenvolvimento mais acelerado da estéticacomo cultura. Os arranha-céus podem funcionar muito bemcomo símbolos do poder financeiro de algumas urbes, nãopromovem de modo algum a qualidade de vida da pessoa eda comunidade. Promovem o mesmo estado de ansiedade ealienação que o de um aviário.

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A busca do belo não pode acontecer ao acaso, masnão pode também acontecer nos confins de uma clausuraqualquer. Como processo de desenvolvimento que é, sópode acontecer em liberdade e, esta impõe de imediatoresponsabilidade e solidariedade. A busca do belonoutros contextos poderá ser quando muito a busca doefémero. Tal e qual como uma dieta. Só uma alimentaçãointeligente e regrada nos possibilitará a obtenção doaspecto e do funcionamento desejável dos nossos corpos.Isto tem muito a ver com um outro factor, o dadisciplina. A auto-disciplina é uma coisa, todavia, queparece não fazer parte de muitos dos nossos projectoseducativos. A auto-disciplina não se promove com arepressão nem com o autoritarismo, mas vivifica-se emambientes verdadeiramente democráticos.

EMERGÊNCIA: A OPORTUNIDADE E A POSSIBILIDADE

Se a ética nos permite a construção de umasociedade baseada no bem, na democracia, na justiça, naliberdade e se a estética nos leva a uma vivência maisgratificante e enriquecedora porque nos alicerça nobelo, a emergência confere à nossa existência aoportunidade e a possibilidade de se afirmar não só noser, mas sobretudo no tornar-se. A realidade definida comoemergente, na elegante proposta de Popper, atrásmencionada, abre-nos caminhos de descoberta outrorainviáveis.

O mundo actual é um mundo emergente, um mundo quevai sendo construído pela nossa vontade, pelaconjugação de esforços que maximizam a suaprobabilidade, e também -- e porque não? – pelo

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indeterminado. Quer isto tudo dizer, que é um mundoaberto com um futuro perfeitamente aberto. Um mundo depossibilidades é isso mesmo. Não é um mundodeterminado, nem é um mundo em que as coisas acontecemporque alguém quer e faz com que elas aconteçam. É ummundo que conta e depende do nosso envolvimento, danossa acção consciente, responsável e criativa. É ummundo em que pode haver crescimento, em que pode haverprogresso, mas em que decerto tem de haverdesenvolvimento. É um mundo, todavia, que exigementalidades, competências e acção radicalmentediferentes das que eram requeridas ao funcionamentonuma sociedade condicionada e condicionante, comoaquela em que, apesar de exausta, teimamos em quererviver.

Esta sociedade exausta e que já não responde aos

desafios de hoje é perfeitamente inserida numaconcepção mecanicista do mundo e da vida; é umasociedade que se alimenta do passado, se bem queprevisível; é uma sociedade dependente, se bem queconfortável; é uma sociedade com um futuro determinado,se bem que certa; é uma sociedade necessariamentehierárquica, se bem que estável; é uma sociedadesegmentarizada, se bem que definível; é uma sociedadeequilibrada, se bem que em morte lenta.

A vida, todavia, não é nada disso. A vida, arealidade, tal como a conseguimos perceber hoje, abre-se para o futuro, é autónoma, é democrática, églobalmente integral, é descontínua, é caótica, evivifica-se no desequilíbrio. Viver numa tal sociedadeé um sistema de aprendizagem contínuo. É por isso queouvimos falar cada vez mais na educação ao longo da

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vida. A educação ao longo da vida não significapropriamente uma actualização constante dos saberes,das técnicas e das metodologias, mas o alargamento donosso estudo a outras áreas, algumas completamentenovas. A escolaridade já não é a preparação para avida, mas tem de ser a preparação para viver a vida. Asescolas já não dão saídas profissionais. Disto sabembem os milhares de graduados das universidades que nãoconseguem emprego. Aliás, já não se vive hoje umacultura do emprego, mas uma cultura do trabalho, que éuma coisa completamente diferente.

O avanço inexorável da tecnologia, se bem que criemuitas mais oportunidades de trabalho, está a reduzirconsideravelmente o número de empregos. O número deempregos a tempo integral está também a decrescerrapidamente. Há estatísticas que apontam para o casoda Inglaterra, onde só cerca de 50% das pessoas emidade de trabalhar ainda se encontra empregada emregime de tempo integral (Handy, 1991). Charles Handy5

diz que dentro de 30 anos poderá ser tão estranho falar sobreempregados como hoje em dia é difícil falar sobre criados (p. 229).Por sua vez, o número daqueles que se auto-empregacresce vertiginosamente, como também cresce o número deprofissionais que começa a trabalhar a partir de suaprópria casa: a telecomutação já chegou a todo o lado.Prevê-se que haja, em 2017, 250 milhões detrabalhadores, dos quais, 115 milhões nos países daOCDE6.

5 Handy, Charles (1991). Os deuses da gestão. Mem Martins: Edições CETOP.6 Nilles, Jack (1997). Entrevista ao Semanário de 27 de Março.

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Tudo parece indicar que as empresas tendem para aconstrução de estruturas centrais tão leves quantopossíveis e para subcontratar o maior número possívelde tarefas. A ser assim, o número de empregadospermanentes tende a diminuir, o que forçará muitos dosoutros ao auto-emprego, a criar pequenas empresasdestinadas a suprir as necessidades de outras. Mesmopara aqueles que conseguirem emprego, as condições detrabalho serão completamente diferentes. Não serãomais caracterizadas pela ocupação mais ou menosprodutiva, mas pela contribuição que cada empregado,melhor, que cada trabalhador poderá dar. Espera-se donovo trabalhador que seja capaz de gerir ele próprionão só o seu próprio trabalho, mas segmentos daactividade da empresa. Espera-se que ele tenhainiciativa e qualidades de liderança; que se mantenhaa par de toda a evolução do ramo em que está envolvidoe que seja suficientemente generalista para a qualquermomento poder assumir uma nova posição na empresa, oumesmo, e o que é mais importante, gerir a sua área,mantendo presente a visão e os interesses globaisdessa mesma empresa. No fundo, as qualidades que secomeçam a exigir de um trabalhador a tempo integralnuma empresa são as mesmas que se exigem de umempresário.

A cultura do trabalho pede, pois, capacidadesmuito diferentes das que eram comuns à cultura doemprego. Na cultura do trabalho exige-se que ostrabalhadores assumam completamente as suasresponsabilidades; que demonstrem iniciativa e coragempara gerir situações novas; que possuam criatividadeque baste, dado que é cada vez mais difícil assegurarqualquer espécie de sucesso através do uso de modelos

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pré-estabelecidos; que tenham um elevado grau de auto-confiança para que possam desempenhar com eficácia eeficiência as suas funções; que saibam gerir comvantagem as enormes possibilidades oferecidas pelainterdependência, o relacionamento que neste momentohistórico tem mais sentido: a dependência avilta e aindependência não é mais do que uma quimera; queafirmem a cada momento a solidariedade imprescindível àsobrevivência e à vivência numa sociedade incerta,descontínua e interdependente.

O mundo em que já vivemos é, pois, um mundo deoportunidades num universo de possibilidades. Oraacontece que raras são as escolas que promovem asaprendizagens necessárias à percepção daspossibilidades e à identificação das oportunidades. Acapacidade de perceber o maior número possível deoportunidades depende de quão desenvolvidas estão asnossas competências de mestria pessoal, de modelos mentaise, sobretudo, de pensamento sistémico. A capacidade queadvém da responsabilidade que sentimos de nosaperfeiçoarmos continuadamente, de construirmoscenários, configurações possíveis da realidade futura,e de podermos ver sistemas como todos interdinâmicos,possibilita a identificação de áreas passíveis deinvestigação, de projectos de aprendizagem, de metasnovas de desenvolvimento. Esta é uma tarefadecididamente comunitária que viabiliza a configuraçãodo horizonte como um cone aberto para a realidade e nãocomo o espaço mediado por linhas paralelas,necessariamente redutoras.

Num mundo emergente, não há lugar paraindividualismos redutores, mas para a cooperação que

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enriquece; não se dá muita valia a heranças, mas ànossa afirmação constante; não há muito espaço paraevoluções lineares, mas para o desabrochar de toda anossa complexidade. Num mundo emergente a esperançaconta mesmo e a nossa maior sustentação reside na nossafé. Essa será a medida do nosso possível.

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